Upload
ledan
View
227
Download
5
Embed Size (px)
Citation preview
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
149
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
O PONTO DE VISTA DETERMINA O OBJETO: UMA
LEITURA MATERIALISTA POSSÍVEL DO OBJETO DE
ESTUDO CONCEBIDO POR SAUSSURE EM SUA
TEORIZAÇÃO
ÉLCIO ALOISIO FRAGOSO1
Fundação Universidade Federal de Rondônia
Campus - BR 364, Km 9,5 – 76801-059 – Porto Velho – RO – Brasil
Resumo. Neste artigo, filiando-nos à perspectiva teórico-metodológica da
Análise de Discurso, conforme os trabalhos de Michel Pêcheux, na França,
e de Eni Orlandi, no Brasil, articulada à metodologia da História das Ideias
Linguísticas, procuramos trazer uma reflexão sobre a prática teórica como
prática discursiva, produzida pela teoria linguística de Chomsky,
considerando a história de suas ideias basilares. Desse ponto de vista, as
teorias linguísticas são processos discursivos que se realizam sob
determinadas condições históricas, colocando em funcionamento efeitos de
sentido, sem que se questione, de fato, a constituição desses efeitos,
decorrendo, portanto, na negação da ideologia em suas práticas (teóricas).
Palavras-chave: análise de discurso; ideologia; língua; prática discursiva;
teorias linguísticas.
Abstract. In this article, we proposed to do a reflection on the theoretical
practice, as a discursive practice, produced by linguistic theory of Chomsky,
considering the history of their basic ideas. The theoretical framework
adopted in this study is the French school of Discourse of Analysis, based on
theoretical concepts and ideas of Michel Pêcheux and Eni Orlandi,
articulated at methodology of History of Linguistic Ideas. From this
perspective, the linguistic theories are discursive processes which are
accomplished in the base of the language, under certain conditions, putting
in functioning certain effects of sense, without any questioning, in fact, of the
constitution of these effects not even material existence of ideology.
Keywords: discourse analysis; ideology; language; discursive practice;
linguistic theories.
1 Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Docente na Universidade Federal de
Rondônia (UNIR), onde atua na graduação e nos Mestrados Acadêmicos em Letras e em História e Estudos
Culturais. http://lattes.cnpq.br/0480649113661832.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
150
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
Introdução
O título deste artigo dialoga com uma afirmação de Saussure, em relação à
definição e à concepção do objeto de estudo da Linguística, em seu Curso de Linguística
Geral, postumamente publicado por dois de seus alunos, em 1916. Inicialmente, podemos
dizer que a Linguística materializa um discurso científico sobre a (s) língua (s) e isso,
certamente, traz consequências importantes de serem analisadas no âmbito da história das
ideais linguísticas. Em outras palavras, com a Linguística temos a constituição de um
discurso científico sobre a (s) língua (s) e compreender o processo histórico de
constituição dessas ideias nos coloca numa posição materialista que implica em outra
forma de conceber a (s) ciência (s).
Temos com o discurso científico, teorizado pela Linguística, por meio de
Saussure, a constituição de um objeto de conhecimento, determinado por um discurso
positivista que institui a língua como um todo, efeito de sentido, produzido pela
cientificidade, instaurado pela Linguística.
A reflexão que faremos nesse trabalho inscreve-se numa forma de compreender a
prática científica num quadro de questões que problematiza essa própria prática,
procurando estabelecer relações entre prática teórica, sujeito e ideologia. Uma ciência,
para nós, é uma teorização de seu objeto (ALTHUSSER, 1991, p. 64).
Para desenvolvermos qualquer reflexão teórica2, precisamos estabelecer
princípios e procedimentos que determinarão a constituição dessas ideias. Mais que isso,
de uma posição materialista, devemos entender que a produção do conhecimento não se
dá fora das relações sociais de produção. Assim, a constituição de uma teoria deve ser
pensada relativamente às práticas sociais, dentre as quais a prática científica não é uma
prática qualquer, é por meio dela que os indivíduos são interpelados em sujeitos
pesquisadores, cientistas etc.
No caso, o presente artigo busca apresentar uma reflexão sobre teorias, os métodos
a elas relacionados, a fim de pensar a própria constituição dessas teorias (de suas ideias).
Estamos nos referindo, especificamente, às ciências da linguagem e suas relações com a
ideologia, ou seja, o nosso interesse aqui é o de compreender a constituição dessas
discursividades científicas.
A nossa filiação à metodologia da história das ideias linguísticas se deve ao fato
desta (metodologia) também considerar a história como fator determinante, incontornável
para o estudo da constituição das ideias linguísticas. Nunes (2008), em seu artigo, “Uma
articulação da análise de discurso com a história das ideias linguísticas”, vai nos dizer que
Embora a chamada linguística moderna, tal como iniciada pelos
comparatistas no século XIX e depois por Saussure no século XX, seja
contemplada, ela não é considerada como o ponto de início das ciências
da linguagem, que têm uma história bem mais longa e plural. Assim,
2 E aqui estamos falando, especificamente, do processo histórico de produção do conhecimento que se
constitui nas práticas sociais, principalmente, na prática científica.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
151
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
quando utilizamos o adjetivo linguístico, ele se refere a qualquer saber
produzido sobre a linguagem na história. (NUNES, 2008, p. 109)
Nossa questão nesse artigo é também a de compreender a prática científica como
uma prática político-ideológica e, dessa forma, ela não é, como veremos (a partir dos
estudos de Henry, 1992) uma prática qualquer. O conhecimento, portanto, não se produz,
a não ser teórica, histórica e ideologicamente falando. O conhecimento não é algo neutro
como encontramos no discurso positivista e cientificista da Linguística.
Um exemplo que podemos dar é a neutralidade científica, o efeito de
cientificidade, que encontramos no discurso da Linguística, elaborado por Saussure. Uma
reflexão dessa natureza só é possível quando nos colocamos na posição de querer
compreender como o conhecimento é teoricamente construído, pois ele se produz sob
formas históricas muito variadas, considerando as práticas sociais, as práticas científicas
enquanto condições materiais para a sua existência, e que, por isso mesmo, essa discussão
só se pode dar no nível teórico3. Trata-se, então, de uma forma de produzir conhecimento
que leve em conta o processo histórico de produção desse conhecimento, isto é, o
processo histórico de constituição das teorias linguística.
Dessa perspectiva, estamos filiados a uma posição que, ao refletir sobre a prática
teórico-científica, o faz assumindo que dessa filiação, o nosso objeto de estudo é a própria
história das ciências e a constituição de seus objetos de estudo.
A produção do conhecimento é sempre uma teorização do objeto de estudo. Não
se tem como falar de ciência se não teoricamente, o que já constitui uma prática
discursiva, nas práticas sociais. Toda teorização se dá a partir de certas formações
discursivas que determinam o que pode e o que deve ser dito. Acreditamos que tenha
ficado clara a nossa posição em relação à prática científica teórica enquanto prática
ideológica.
Faremos a seguir algumas considerações de ordem epistemológica para situar
nossa filiação teórica à metodologia da Análise de Discurso na linha de Michel Pêcheux
e Eni Orlandi.
1. A Linguística e a extensão irrefletida de seu domínio
Tratar de todas as teorias linguísticas, da constituição de suas ideias,
evidentemente, é uma tarefa ambiciosa demais para o espaço desse artigo. Entretanto,
quando, em nosso texto, tematizamos as teorias linguísticas, não estamos com isso,
igualmente, generalizando ou descuidando de suas especificidades históricas4, estamos
3 Lembramos que não fazemos distinção entre teoria e prática, pois a própria teorização, enquanto prática
científica, já é uma prática ideológica/discursiva. 4 Essa é, aliás, a nossa tese defendida nesse artigo, a de que cada teoria linguística constitui uma teorização
própria, é um processo discursivo próprio. E isso fica ainda mais instigante quando evocamos a metodologia
da história das ciências como referência para tal estudo.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
152
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
apenas querendo explicitar o corte teórico-epistemológico que a Análise de Discurso
realizou no domínio dos estudos linguísticos. Portanto, não se trata de pensar a Linguística
como uma ciência uma, homogênea5, coisa que ela, realmente, não é. Queremos, sim, por
outro lado, compreender as teorias linguísticas como processos discursivos, explicitando,
dessa forma, a configuração ideológica na constituição do conhecimento científico. Faz-
se necessário, então, para melhor alcançarmos nossos objetivos neste trabalho, recortar
uma teoria linguística específica para compreender o processo de constituição de suas
ideias.
As ideias desenvolvidas, pelos estudiosos, através dos tempos, a respeito da
questão das línguas vão constituindo em diferentes abordagens um material que relata
sobre esta questão.
Estamos tratando aqui da produção do conhecimento, produção esta que é um
processo histórico e que, portanto, devemos pensá-lo como uma prática social em que
indivíduos concretos (cf. ALTHUSSER apud HENRY, 1992) que, se não são os sujeitos,
são pelo menos os agentes, agem na e sob a determinação das formas de existência
histórica das relações sociais de produção e reprodução (processo de trabalho, divisão e
organização do trabalho, processo de produção e reprodução, luta de classes etc.).
Dessa posição é que podemos afirmar, segundo Lecourt (1980), referindo-se à
história real das ciências, que as teorias linguísticas, o conjunto delas, não constituem
uma realidade homogênea, uma unidade dum todo indiferenciado.
Embora haja discursos, em particular nas ciências positivistas, que apregoam que
o conhecimento seja algo que se produz na cabeça das pessoas, nossa posição, como
analista de discurso, é a de que o conhecimento se constitui sócio-historicamente, em
determinadas condições de produção.
Nesse sentido, podemos dizer que a Linguística é uma ciência construída pelo
homem, ou seja, através da Linguística foi possível produzir certo conhecimento sobre a
(s) língua (s), por meio de uma teoria. É o próprio Saussure (1999) quem diz “bem longe
de dizer que é o objeto que precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que
cria o objeto” (SAUSSURE, 1999, p. 15).
Estamos falando, especificamente, do objeto de conhecimento, pois este, como
nos diz Henry (1992),
é objeto que muda, que tem uma história inscrita na história da ciência
da qual é objeto, na confrontação de suas teorias, nas práticas
específicas que o caracterizam, assim como nas condições históricas
que produziram essa história, essas confrontações, essa prática.
(HENRY, 1992, p. 16)
5 De nossa perspectiva, não acreditamos que fazer a história da Linguística seria admitir que ela (a
Linguística) é só uma totalidade dos momentos de seu desenvolvimento. Sobre esta questão ver Auroux
(2014, p. 13).
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
153
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
Sob o efeito de unidade e da cientificidade, a Linguística constrói seu objeto de
conhecimento. Esses efeitos são produzidos ideologicamente, visto que o discurso da
Linguística se constitui num processo de produção de conhecimento, numa forma de
apropriação do objeto real pelo conhecimento.
O problema para Henry (1992) está em ignorar essa apropriação do objeto real
pelo conhecimento e tomá-la como uma prática “espontânea”. O autor afirma-nos que
“essa é mais uma maneira de contornar a contradição objeto real-objeto de conhecimento
ou, mais exatamente, de produzir uma apropriação ignorando-a ao mesmo tempo”
(HENRY, 1992, p. 18).
A seguir, faremos algumas considerações, acerca da teorização de Chomsky, a fim
de nos deslocarmos desse cientificismo empírico que, na verdade, é efeito de sentido
produzido pela ideologia que está funcionando na prática discursiva (teórica) desse autor.
Para isso, apoiaremo-nos nos estudos realizados por Henry acerca da pressuposição e a
configuração epistêmica da Linguística. Procuraremos apreender dos estudos deste autor,
questões referentes às teorias linguísticas e à constituição de suas ideias, a fim de
compreendermos o processo histórico-ideológico subjacente a estas ideias.
O empirismo presente no discurso de Chomsky é explicitado com a intuição
linguística do sujeito falante. Segundo Henry (1992), esta noção de intuição, referindo-se
a Chomsky, intervém em dois níveis, em um nível prático e um nível teórico:
No nível prático, trata-se inicialmente de poder decidir se tal ou tal
forma, construída a partir de elementos tomados como fazendo parte da
língua, em função de regras tomadas como fazendo parte da gramática,
pertence ou não à língua. [...] No nível teórico, dá-se a essa intuição um
fundamento, que é a competência linguística. (HENRY, 1992, p. 19)
Esta noção de intuição linguística intervém na teorização de Chomsky como
fazendo parte da produção do conhecimento científico deste autor e da legitimação da
prática do linguista sobre a linguagem.
Ainda segundo Henry (1992), é interessante observar que a prática de construção
de elementos de uma gramática, tal como concebe Chomsky, não opera fora da teoria,
numa relação especular com o real que ela apenas revelaria.
Acerca do funcionamento do conceito de intuição na teoria de Chomsky, Henry
(1992) vai nos dizer,
Em outras palavras, essa noção representa na prática do linguista, no
quadro dessa teoria, uma apropriação da contradição entre objeto real e
objeto de conhecimento, mas trata-se de uma modalidade de
apropriação que tem por característica desconhecer seu objeto (a
contradição) substituindo-o por um outro. O apelo aos fatos pelo viés
da intuição linguística é na realidade um apelo a evidências e
representações ideológicas: evidência do sentido, evidência da
individualidade do sujeito enquanto unidade de uma interioridade
singular e de sua universalidade. (HENRY, 1992, p. 20)
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
154
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
Nessa sequência, entendemos, discursivamente, o sentido do conceito de intuição
na teoria de Chomsky, ou seja, entendemos o que está subjacente a este conceito nesta
teoria. A prática teórico-científica de Chomsky não é uma prática espontânea, tampouco
é uma prática que se dá fora da ideologia. É dessa forma que compreendemos o discurso
da teoria linguística de Chomsky, considerando o objetivo central desse nosso artigo.
Feitas essas considerações a respeito da teoria linguística de Chomsky,
enfatizaremos o que entendemos por prática científica, com base também em Henry
(1992):
ocorre que, do ponto de vista do materialismo histórico, o processo de
produção do conhecimento, enquanto processo histórico, realiza-se
concretamente sob formas históricas variadas, nas práticas sociais,
principalmente no que chamamos a prática científica. (HENRY, 1992,
p. 22)
Desse modo, a produção de conhecimento se dá sob determinadas condições
históricas, não sendo, portanto, a teorização uma prática espontânea realizada por um
sujeito também autônomo que se apropriaria de um objeto real (empírico). De nossa
perspectiva, e remetendo-nos a Henry (1992), podemos assim compreender esta questão:
Dizer que esses agentes agem na e sob a determinação das formas
históricas de existência é dizer que eles são constituídos em sujeitos nas
práticas sociais e por elas. No que concerne aos agentes do processo de
produção de conhecimentos, eles se constituem na prática científica e
por essa prática como sujeitos, cientistas, pesquisadores, pensadores,
que descobrem, sabem, pensam etc... Ora, precisamente, são formações
ideológicas que constituem indivíduos concretos, agentes de práticas
sociais, em sujeitos: ‘só há prática através de uma ideologia’ e ‘só há
ideologia por e para sujeitos’. (HENRY, 1992, p. 23)
Em, “Há uma via para a Linguística fora do logicismo e do sociologismo?”,
Pêcheux e Gadet (1998), já no início do texto nos alerta para a questão da contradição que
na história da Linguística toma sucessivamente múltiplas formas:
o título que demos a esta comunicação traduz que, segundo nós, a
própria história da Linguística pode ser compreendida como uma
espécie de luta entre duas vias – o logicismo e o sociologismo –
formando os elementos de uma contradição que toma sucessivamente
múltiplas formas, desde a pré-história da Linguística até seus aspectos
mais modernos, mais atuais e mais científicos. (PÊCHEUX & GADET,
1998, p. 5)
Essa contradição (ou esses elementos contraditórios) não é sentida como tal,
“contenta-se em afirmar que a Linguística comporta aspectos diversos e variados, e
eventualmente complementares em na sua diversidade” (PÊCHEUX & GADET, 1998,
p. 5).
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
155
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
Os autores também nos chamam à atenção para outro fato, o de que esta
contradição pode ser explicitada. Ou seja, segundo estes autores, esta contradição oculta
poderá se tornar aparente, na medida em que se reconhece a existência de um elemento
(também ele recoberto pela “neutralidade” científica da Linguística) que é a filosofia
espontânea dos linguistas. (PÊCHEUX & GADET, 1998, p. 6)
É preciso desmontar as várias figuras da ideologia que vão sendo requisitadas pela
Linguística sob a evidência de uma aliança natural, quando, na verdade, elas são as formas
da ideologia que recobrem a contradição, evitando com isso que a própria contradição
seja trabalhada. Estas figuras ideológicas estão significando sob efeitos de sentidos
diversos: o biologismo, o psicologismo, o sociologismo, o empirismo, o positivismo, etc.
Dessa forma, Althusser (1991), referindo-se à “invasão” dessas ideologias tanto na
psicanálise quanto no marxismo, vai nos dizer que “elas são, cada uma a seu modo,
efetivações de uma mesma tendência, que é o idealismo da ideologia dominante burguesa
[...]” (ALTHUSSER, 1991, p. 57).
Ainda sobre esta questão, Pêcheux e Gadet (1998) vão afirmar que estes elementos
contraditórios, o logicismo e o sociologismo,
conduzem atualmente a Linguística a uma crise, a uma espécie de
impasse. No entanto essa contradição não se impõe à evidência na
medida em que, a maior parte das vezes, ela não é sentida como tal.
(PÊCHEUX & GADET, 1998, p. 5)
Pêcheux e Gadet (1998), ainda sobre o ocultamento/apagamento da contradição
no domínio da Linguística, vão nos dizer que:
assistimos, com efeito, à produção de conceitos científicos mas, e isto
é significativo, aquilo contra o que se constituíram esses conceitos
continua a existir e a produzir efeitos na pesquisa: é assim para o corte
saussuriano, é assim para as críticas construtivas que Chomsky
endereçou às gramáticas estruturalistas. Não podemos, pois, levar em
conta só a história da Linguística, temos de levar igualmente em conta
o que chamamos de filosofia espontânea dos linguistas [...].
(PÊCHEUX & GADET, 1998, p. 6)
Para estes autores, esta filosofia espontânea dos linguistas explica a perpetuação
destas contradições, ainda que de forma transformada.
Estas duas tendências (o logicismo e o sociologismo), dizem os autores (idem),
não são puras, evidentemente, não se realizam de forma absoluta, elas são apenas
dominantes, “sendo que numerosas formas intermediárias que poderíamos chamar de
‘compromissadas’ têm como pretensão servir de paliativo das insuficiências de uma
tendência pela outra” (PÊCHEUX & GADET, 1998, p. 6).
Duas questões, podemos levantar, segundo a linha de reflexão dos autores que
aqui mencionamos: Por que essa divisão do trabalho teórico se dá dessa forma, constitui-
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
156
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
se sob, principalmente, a dominância dessas duas tendências? Por que a divisão deste
trabalho teórico se constitui sob a evidência/aparência de duas tendências contraditórias?
Acreditamos que para respondermos a estas questões é preciso mudar de terreno,
como bem observa Orlandi (1998):
ao mesmo tempo em que se faz necessária uma desubjetivação da teoria
da linguagem – e aí a noção de língua é fundamental – é preciso
considerá-la como base comum de processos discursivos diferenciados.
Para isso, há necessidade de uma mudança de terreno que não reduz a
inclusão do sujeito, da história e da sociedade a um simples apêndice
de uma reflexão já feita pela Linguística ou pelas Ciências Sociais.
(ORLANDI, 1998, pp. 3-4)
Em relação às questões que nos colocamos neste artigo, compreendemos que as
teorias linguísticas recobrem as relações de produção (e de reprodução) e as lutas
ideológicas ao se apresentarem como filosofias espontâneas.
Portanto, a (s) língua (s) é o objeto de estudo da Linguística, e este objeto é
construído a partir de uma teoria, ou seja, a constituição de um objeto de estudo está
relacionada à sua teorização (objeto de conhecimento). Mas ela – com o tempo – passou
a receber diferentes tratamentos pelos linguistas, ou seja, o terreno específico da
Linguística começou a ser contextualizado, e disso decorreu em outras abordagens,
provocando a redefinição deste objeto de estudo, tal qual ele foi configurado pela
Linguística, por Saussure. E, aqui, não estamos entendendo o discurso da Linguística
como um discurso uno (como tendo uma unidade), nem tampouco acreditamos que as
teorias linguísticas se constituíram de forma contínua, cumulativa, linear, sucessiva6.
Dessa forma, o que tematizamos nesse trabalho é o fato de podermos compreender as
teorias linguísticas como efeito de sentidos, considerando a determinação histórica dos
processos de constituição das ideias linguísticas.
Por esta via, incorporaram-se aos estudos linguísticos, a realidade psicológica, a
realidade social, a lógica etc. (filosofias espontâneas). No entanto, no campo
epistemológico, Pêcheux e Gadet (2004) encaram essa trajetória da Linguística como uma
forma de extensão, uma forma de abandono de seu objeto próprio – que é o real da língua
–, uma forma de surdez interna, numa dura crítica à Linguística e às certezas a que ela
cedeu. Os autores vão dizer que a Linguística sucumbe às realidades psicossociológicas
dos atos de linguagem. Ou em outras palavras, criticam o método científico e o trabalho
linguístico que ele impõe, que constitui o sintoma dessa surdez, ao buscar realizar um
estudo cego que não faz intervir as questões da ordem própria da língua:
o que, então, a linguística foraclui no interior de si mesma? Nosso
empreendimento é recuperar (através das escolas, das teorias e das
problemáticas que marcam sua história) as recorrências que, pela
organização que impõem ao trabalho linguístico e pelo regime de
funcionamento científico que determinam para esse trabalho, são o
6 Essa posição de produzir conhecimento não levaria em conta a luta ideológica, dissimulando a história
real das ciências.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
157
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
sintoma dessa insistência no ensurdecimento. (GADET & PÊCHEUX,
1994, p. 19)
Ao refletir criticamente sobre as ilusões e o idealismo que recobrem o discurso da
Linguística, Pêcheux propõe uma nova teoria, com seu método e seu objeto próprios que
leve em consideração o real da língua, a ambiguidade7, a falha, o equívoco que lhes são
inerentes. Trata-se da Análise de Discurso.
Dessa forma, Pêcheux visa constituir um espaço teórico que reflita sobre a própria
prática teórica e científica de produção de conhecimento sobre a língua, que leve em conta
que esta prática teórica é uma prática ideológica. Só temos acesso ao conhecimento
porque temos acesso à história do conhecimento. Orlandi (2004), na abertura da tradução
A língua inatingível – o discurso na história da linguística, afirma que “é este o
procedimento da análise de discurso em uma reflexão que se dá como objeto a elaboração
de uma história da reflexão sobre a linguagem. É essa a análise de discurso que Michel
Pêcheux propôs” (ORLANDI, 2004, p. 9).
No interior da própria Linguística, e também, de certa forma, determinados por
ela, os estudiosos foram interpretando o seu objeto de estudo de formas diferentes, ora
dentro de um cientificismo positivista (e idealista) que nada reflete sobre a própria prática
ideológica, sob a qual a sua (da Linguística) prática teórico-científica se dá, ora dentro
de um empirismo que vê a língua como um todo (como aquilo que está ou não está na
língua), que numa investigação, a teoria revelaria esta língua . É contra esse discurso que
Pêcheux direciona fortes críticas ao narcisismo e ao idealismo das teorias linguísticas que
marcaram os desdobramentos da Linguística até metade do século XX.
Vale ressaltar que a Linguística não é um bloco fechado, impermeável que
acumularia tendências que se complementariam. As teorias linguísticas, sob a forma de
tendências, não deixam ver as disputas de sentidos, as lutas ideológicas, o que simula o
efeito de uma ciência homogênea/una que estaria em evolução, sob o efeito de uma
história contínua.
No entanto, as teorias linguísticas não são evidentes, transparentes, quando nos
perguntamos pelo efeito da ideologia subjacente a elas. Assim, compreendemos que
aquilo que aparece como natural, é, na verdade, o funcionamento da ideologia que pode
ser reconhecido na prática discursiva (científica) dessas teorias.
Esse movimento das teorias linguísticas não se dá espontaneamente, ele é
determinado histórica e ideologicamente. Não temos uma visão continuísta da história da
Linguística.
O discurso científico da Linguística, e uma vez inscrito nele, regula até onde o
sujeito-linguista8 poderá chegar em suas reflexões. A prática científica como qualquer
outra prática social, dá-se sob determinadas regras que cerceiam o que o sujeito-
7 Ambiguidade aqui não está sendo tomada no sentido lógico-semântico. 8 A inserção da noção de sujeito, teoricamente falando, foi o que possibilitou, principalmente, a mudança
de terreno promovida pela teoria da análise de Discurso.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
158
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
pesquisador/cientista pode ou não dizer. Mais que isso, a prática científica promove/eleva
o dizer à condição de produção de conhecimento, mas isso não se dá fora das lutas
ideológicas. A prática científica é uma prática histórica que legitima um dizer, instituindo
um espaço em que se naturalizam as “ideias”, as “reflexões”. Estas considerações têm o
objetivo de provocar para novas discussões tendo em vista o estudo da especificidade de
cada teoria linguística e dos efeitos de sentidos por elas sustentados. Desse modo,
interessa-nos, da perspectiva de que estamos falando, a história real dessas teorias
linguísticas, ou seja, o discurso que elas produzem.
Dessa forma, segundo Pêcheux (2004), a Linguística não mexe em suas feridas,
e, ao invés disso, vai estendendo seu domínio (ao invés de trabalhar as contradições) e se
mostrando surda à sua própria história. Escutar o “real” da língua, suas falhas, seus
equívocos, como sendo constitutivos dela, é o que levou Pêcheux (idem) a outra
compreensão de seu objeto de estudo.
2. Não existem ideias linguísticas na “minha cabeça”
Discursivamente falando, os estudos efetuados sobre a língua olham para este
objeto dentro já de certo “realismo”, ou seja, partem de um objeto imaginário, de seus
efeitos de sentidos (a realidade evidente deste objeto), de um objeto já interpretado (eles
não se interessam pela constituição de seu objeto), mas acreditam estar descrevendo-o em
si mesmo, já que são pegos por esta evidência (a ilusão referencial, conforme nos diz
Pêcheux, 1995), isto é, reproduzem esta evidência ideológica, e que, a todo tempo, eles
se deparam com obstáculos (entram em contradições9), mas que logo cuidam de eliminá-
los, pois estes são considerados “erros” / “equívocos” (dificuldades) e devem ser
superados.
Estes estudos não consideram a constituição histórico-ideológica inerente ao seu
objeto de estudo: a língua. Em outras palavras, estes estudos ficam em uma análise
empírica10 do objeto. Dessa posição, a empírica, o objeto real é reflexo direto de uma
realidade. Eles se iludem com seus objetos. Desse modo, criaram-se teorias em torno da
língua, cada uma segundo o seu recorte. Não acreditamos que estas teorias
realizam/realizaram um estudo “neutro” e “imparcial” sobre a língua. Algumas destas
9 A contradição aqui não é tematizada no sentido lógico. Ela é tomada no sentido (discursivo) daquilo que
trabalha e interroga o que é próprio da língua, e que está sujeito à falha, ao equívoco. Mas, que no discurso
da Linguística vemos a contradição sendo recoberta por um sentido de fechamento, de completude da
língua. 10 A filosofia empirista valorizava a experiência como fonte de conhecimento. É pela experiência que se
chega ao conhecimento. Remetemo-nos aqui também a Evangelista (1991) que traz o seguinte
questionamento: “Mas o que é empirismo? Empirismo é identificar o objeto-real como o objeto-de-
conhecimento. É dizer que o objeto-de-conhecimento, que a essência está no objeto-real, de uma maneira
ou de outra. Empirismo é conceber o processo do conhecimento como uma modalidade de extração da
verdade a partir do real. Assim como Marx não chegou ao conceito de “mais-valia” abstraindo esse conceito
da realidade da exploração capitalista, Freud não chegou ao conceito de “inconsciente” abstraindo esse
conceito da realidade do modo de ser humano neurótico ou psicótico” (1991, p. 35).
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
159
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
disciplinas são puramente “experimentais”, pois partem do observável, portanto, de uma
realidade empírica.
Com isso, queremos dizer que a teorização já é uma interpretação. Não existe
prática discursiva a não ser sob uma ideologia. Desse modo, as questões que nos
colocamos são: sob quais ideologias Saussure, Martinet, Chomsky entre outros
produziram suas teorizações? Suas práticas científicas se inscrevem em quais formações
discursivas? Em seus discursos estão representadas quais ideologias? Isso é um fato11. E
não seria diferente com as práticas científicas. Somente com outros trabalhos, que
poderíamos levar adiante o estudo dessas questões.
Por ora, podemos apenas afirmar que em uma certa teorização estão funcionando
certas ideologias e não outras.
Estas teorias desejam superar seus “problemas”, suas “deficiências”. Trata-se do
idealismo (da vontade de uma verdade, de fechamento), da busca de uma verdade, da
tentativa de “apaziguar” essa tensão, em outras palavras, elas são constituídas dentro de
um idealismo. Dessa maneira, e considerando essa filosofia idealista, elas estão sempre
na ilusão de que partem de um objeto concreto (que existe na sua “essência”), único,
homogêneo que vai determinar suas análises (o objeto determina a análise).
Sobre esta questão, é importante lembrarmos de que Saussure, por exemplo, de
outra perspectiva, faz trabalhar em seu discurso a ideia de que é o ponto de vista que cria
o objeto. O que isso significa no discurso científico desse autor? Parece-me que ele
reconhece a necessidade de estabelecer um método teórico para o estudo do objeto. Ele
afirma que o objeto não será mais o mesmo quando se fala deste ou daquele prisma
(BENVENISTE, 1995, p. 42). A língua não oferece nenhuma substância, diz Saussure.
Benveniste (1995) mostra esse posicionamento de Saussure na sequência que
transcreveremos abaixo:
É claro que se pode tomar como objeto da análise linguística um fato
material, por exemplo um segmento de enunciado ao qual não se
prenderia nenhuma significação, considerando-o como simples
produção do aparelho vocal, ou mesmo uma vogal isolada. Acreditar
que temos aí uma substância é ilusório; é precisamente e apenas por
uma operação de abstração e de generalização que podemos delimitar
semelhante objeto de estudo. Saussure insiste nisso: é só o ponto de
vista que cria essa substância. (BENVENISTE, 1995, p. 44)
A Linguística, enquanto a ciência da linguagem, constitui-se no espaço da
cientificidade em que temos o positivismo do século XIX um fator determinante.
Podemos dizer que Saussure realiza o seu gesto de interpretação (ORLANDI, 1996), ao
delimitar seu objeto de estudo e definir seu método teórico, tendo em vista este pré-
construído de ciência marcado pelos sentidos (pré-) estabelecidos pelo positivismo.
11 A presença das ideologias em qualquer prática discursiva.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
160
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
Há diferenças importantes a serem analisadas em relação à constituição dessas
teorias linguísticas no que se refere a suas filiações teóricas (positivista, empirista,
logicista, materialista etc.) que devem ser explicitadas.
Não se pode negar ou ignorar o fato de que muitos estudiosos já pensaram este
objeto (a língua), no campo da Linguística. No entanto, este objeto é concebido por
diferentes teorizações que, se consideradas em suas evidências, não nos permitirá
apreender a relação entre discurso (prática discursiva), sujeito e ideologia, o que produzirá
um apagamento das determinações histórico-ideológicas subjacentes a essas práticas.
Mais que isso, ficando na evidência dessas teorizações, cairíamos no reducionismo e no
generalismo de que a Linguística é uma ciência una/homogênea e que essas teorizações
se completariam ou se acumulariam numa linha cronológica, diluindo-se, dessa forma, a
singularidade/ a especificidade das ideias linguísticas. Não há encadeamentos (lógicos)
das teorias. Todas essas teorizações configuraram certa memória para este objeto, uma
produção de conhecimento sobre a língua. Em outras palavras, podemos chamar de um
arquivo do conhecimento científico, do discurso da ciência (GUIMARÃES &
ORLANDI, 2006, p. 143).
Dessa forma, falar de uma determinada maneira de produzir conhecimento sobre
este objeto não pode, de maneira alguma, de nosso ponto de vista, fechar os olhos para as
outras formas de conhecimento já existentes. Isto porque não se pode recobrir teorias, e
nem as compreender como complementares, o que levaria a uma compreensão idealista
da prática científica. Tudo o que já foi falado sobre a língua, configura uma memória
discursiva deste objeto, conforme já dissemos. E isso também determina o que será feito
e o próprio sujeito dessa prática científica. Os conceitos12 sob os quais uma teoria se
sustenta não são neutros, eles já recortam o olhar sobre o objeto, problematizando-o e
visando (limitando já) responder às questões feitas ao objeto dentro deste recorte. A
relação que uma determinada teoria mantém com seu objeto de estudo é o que vai definir
esse corpo de conceitos13. Vemos, então, que é o objeto em si (isto em uma perspectiva
empirista) que se acredita estar descrevendo, quando, na verdade, se está no seu
imaginário. É a confusão, conforme Pêcheux e Fichant (1989, p. 117), entre o real e o
conhecimento, num estilo empirista, que confere ao conhecimento as propriedades do
real. O que para nós se trata de uma prática, que é ideológica, do sujeito.
Sob a teoria científica de Saussure, como já dissemos, efeitos de sentidos são
produzidos, garantindo a cientificidade (com a elaboração de um objeto de estudo próprio
e da produção de um conhecimento) e a unidade desse discurso, em outras palavras, trata-
se do processo de constituição de evidências científicas.
Acreditamos que os apontamentos de Evangelista (1991), acerca da reflexão de
Althusser (1991) sobre o caráter científico da psicanálise e do marxismo, em Freud e
Lacan/Marx e Freud, são de suma importância para entendermos a discussão que estamos
12 Ver sobre esta noção, estudo sobre a história dos conceitos, conforme Lecourt (1980, p.65). 13 Pêcheux & Fichant (1989) vão dizer que “uma ciência não nasce da definição de um objeto, nem do
encontro com um objeto, nem de imposição de um método. Nasce da constituição de um corpo de conceitos,
com as suas regras de produção. Por esta mesma razão o devir de uma ciência é a formulação dos conceitos
e das teorias desta ciência” (PÊCHEUX & FICHANT, 1989, p. 113).
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
161
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
trazendo aqui neste artigo em torno do discurso das teorias linguísticas e de seus
recobrimentos que se configuram na evidência de tendências pouco sustentáveis, quando
se pensa a história da constituição dessas ideias. Seguimos, então, fazendo algumas
considerações sobre as noções de objeto real-objeto de conhecimento, pensando nossas
próprias questões neste artigo.
Nesse sentido, acreditamos que esta busca pela compreensão (pelo conhecimento)
do objeto não seja tão direta assim como se imagina, pois se trata da contradição entre o
objeto real e o objeto do conhecimento, como nos diz Evangelista (idem). Este autor, que
faz a introdução crítico-histórica do livro (do qual também é o tradutor) Freud e
Lacan/Marx e Freud, de Althusser (1991), vai nos dizer: “Ora, o objeto de uma ciência,
enquanto objeto-de-conhecimento, ou seja, um objeto produzido teoricamente, não pode
ser simplesmente apontado como a primeira realidade empírica vinda” (EVANGELISTA,
1991, 12). A passagem seguinte, formulada por Althusser (1991 apud EVANGELISTA,
1991, pp.35-36), constitui a base para toda a reflexão que fazemos aqui neste texto: “O
conhecimento científico é uma forma de apropriação do objeto real pelo objeto de
conhecimento”. Ainda sobre esta importante questão que problematiza essa relação entre
o objeto-real e o objeto-de-conhecimento, Evangelista (idem) vai pontuar:
Logo, o que faz com que uma ciência exista não é apenas a existência
de um real, de um objeto real. Uma ciência existe quando ela produz
um objeto-de-conhecimento capaz de se apropriar do real. O que
caracteriza uma ciência é o fato de ela ter sido capaz de construir, com
seus conceitos rigorosamente definidos, o seu objeto-de-conhecimento.
(EVANGELISTA, 1991, p. 36)
Desse modo, podemos, a partir dessas falas, chegar a algumas hipóteses em nossas
discussões. O teórico nunca é o real, ele é um lugar para se pensar e falar do real. A
descrição do objeto se dá de acordo com a imagem que fazemos dele ou de uma “parte”
dele, pois, o objeto real nós não o conhecemos, apenas nos deparamos com ele. Olhamos
para o nosso objeto por um ângulo que muitas vezes não nos damos conta desta
interpelação ou filiação. É preciso certo procedimento para a produção do conhecimento.
As teorias, desta perspectiva, produzem determinado conhecimento sobre o objeto real, a
partir de um método que já o recorta. Não nos relacionamos com o objeto real, mas sim
com suas representações, isto é, com suas interpretações. Através da teoria, chegamos no
objeto de conhecimento. Abandona-se a ideia ou a ilusão da descrição de um objeto total.
O método está inscrito no próprio modo de enunciação dos conceitos, das descrições, etc.
Dessa posição, ao contrário, pensa-se que é a teoria que constrói o objeto. Ou seja, a partir
de uma posição ideológica, certo conhecimento será produzido, respondendo às perguntas
formuladas dentro dessa formação ideológica.
A definição, o delineamento do objeto de uma ciência não se reduz à evidência de
uma realidade empírica, mas sim da constituição teórica deste objeto. O fato de se
conceber a língua de uma forma e não de outra, é uma questão ideológica, pois envolve
uma interpretação e sabemos de acordo com Orlandi (1996) que não há interpretação sem
ideologia. E a Linguística caminha “cega” neste ponto. Desse modo, a teorização de certo
objeto obedece a princípios rigorosos, que podemos chamar de regularidades discursivas
(Foucault, 2009), pois cerceiam o que se vai dizer (ou não) acerca de tal objeto e também
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
162
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
possibilitam distinguir uma teoria de outra. São estas questões levantadas aqui que entram
em jogo na constituição de uma teoria e de seu objeto de conhecimento.
Nossa reflexão vai na direção de discutir sobre o processo de constituição de uma
teoria, instalando e reafirmando a existência da ideologia nesse processo de teorização,
concluindo que toda ciência é uma prática teórica, que se constitui sob uma ideologia,
não sendo, portanto, uma ciência que se constitui por si e para si mesma, negando a
ideologia. Dessa forma, não separamos ciência de ideologia, nem teoria de prática.
Pêcheux critica o projeto da Linguística dizendo que:
não cessou, desde a origem, de se negar através de uma alternância de
diásporas reais e de reunificações enganosas, remetendo, talvez no
pensamento do genebrino, à inclinação interna de seu auto-
recobrimento. (PÊCHEUX, 1999, p. 9)
A Linguística vai fazendo alianças, como já foi afirmado aqui, que vão desviando-
a de suas questões fundadoras, e que a fizeram cair em tendências psicologistas,
empiristas, sociologistas e logicistas, resultando na perda do que seriam as ideias próprias
de Saussure (como disse Benveniste (1995): “e Saussure ficava sozinho com seus
problemas...”).
Sobre essa colocação de Benveniste, é interessante observar que ele se referia, a
meu ver, ao projeto de Saussure de ter realizado um corte epistemológico nos estudos da
linguagem, por ele ter pensado contra seu tempo, uma vez que buscava, não a origem da
linguagem ou suas determinações de ordem biológica, lógica ou filosófica, mas aquilo
que constitui propriamente a língua (Pêcheux, 1999 apud DIAS, 2003).
De fato, Benveniste vai nos dizer que
os linguistas estavam tão absorvidos num grande esforço de
investigação histórica no emprego dos materiais de comparação e na
elaboração de repertórios etimológicos. Esses grandes
empreendimentos, afinal muito úteis, não deixavam lugar às
preocupações teóricas. E Saussure permanecia sozinho com os seus
problemas [...]. (BENVENISTE, 1995, pp. 41 e 42)
Saussure sabia que precisava definir sua teoria para que ela se instituísse,
constituindo-se, dessa forma, em referência para os linguistas, enfim, como diz
Benveniste (1995), era necessário teorizar o que um linguista faz.
Considerando o desdobramento da Linguística no século XX, Pêcheux (1999) vai
assinalar as diferentes interpretações (sociologistas, logicistas ou psicologistas) que se
incorporaram ao projeto de conhecimento da língua, de Saussure, concluindo que o seu
projeto não se cumpriu.
O que estamos fazendo aqui é interrogar o modo pelo qual estas teorias se
constituíram, em outras palavras, queremos compreender como estas teorias acabaram
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
163
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
por reproduzir um discurso de ordem positivista biopsicofuncional, porque aderiram às
tendências sem questioná-las ou negá-las. À língua é incorporada a ideia de instrumento
de comunicação, concepção esta que não faz trabalhar os efeitos materiais (as relações de
sentidos) e as falhas e os equívocos da língua.
Daí o nosso interesse pela Análise de Discurso, por se tratar de uma teoria
materialista que busca compreender os discursos enquanto processos históricos de
produção de sentidos, determinados pelas relações de produção estabelecidas
ideologicamente.
E, em relação à reflexão que a Análise de Discurso se autopromove no bojo dessas
relações, isto constitui, a meu ver, sua principal marca de nascença, fruto das condições
histórico-políticas em que ela se originou. É este o método que a Análise de discurso
desenvolve e que lhe permite compreender o processo de constituição de um discurso,
inclusive de seu próprio discurso, o que a coloca num lugar muito específico no domínio
das ciências humanas e sociais, isto é, num lugar de entremeio, por trabalhar nas fronteiras
das regiões disciplinares, elaborando suas contradições, ou seja, refletindo sobre essas
relações teóricas contraditórias constitutivas.
A teoria da Análise de Discurso não cai nessas armadilhas (o idealismo, o
empirismo, o psicologismo, o positivismo, etc.) ao definir seu objeto de estudo. Pelo
contrário, ela se constitui em uma disciplina que critica essas tendências acolhidas pelas
teorias de linguagem. Ela permite ver fronteiras e trabalha com a contradição, com a falha,
com o equívoco, com a falta. Em Análise de Discurso, falamos em construção discursiva
dos referentes. A Análise de Discurso vai, em seus pressupostos teórico-metodológicos,
criar uma teorização específica acerca da língua, partindo de uma conceituação em que a
língua é definida como sendo uma base material para a realização dos processos
discursivos, ou seja, trata-se de considerar a materialidade da língua. Enfim, chegamos
no que é a produção teórica desta disciplina – a construção de seu objeto-de-
conhecimento.
Conclusão
Nossa preocupação principal, ao elaborarmos este texto, foi apresentar uma
reflexão que problematizasse os efeitos de sentido praticados pelas teorias linguísticas
sob a transparência da linguagem e dos sujeitos, dando visibilidade às ilusões e as
contradições que são constitutivas destas teorias.
De início, um deslocamento já se faz necessário. Essas teorias, como qualquer
outra, não são simplesmente teorias, elas têm um funcionamento que é ideológico, ou
seja, elas não são teorias por si e por elas mesmas, são práticas teóricas que se fazem por
meio de e sob uma ideologia.
O que nós defendemos neste texto, e da posição que o fazemos, está representado
nele pela nossa filiação teórica à Análise de Discurso, teoria esta que nos permite
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
164
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
compreender este “gesto de interpretação”, inerente ao sujeito do discurso, que nos leva
a comprometermos com certos sentidos e não outros. E isto, é claro, também está presente
na produção discursiva científica, o que não significa que a Análise de Discurso estaria
fora da ideologia, da interpretação, porque ela, decididamente, não está. Não existe
exterior à ideologia. Portanto, dessa posição, da Análise de Discurso, estamos expostos a
compreender como os discursos funcionam, como os sentidos se constituem, sem
negarmos os efeitos materiais da ideologia.
Dessa forma, nosso estudo se inscreve num modo de pensar a linguagem e a
teorização sobre ela encontradas, como já dissemos, na teoria da Análise de Discurso, de
linha francesa, na perspectiva de Michel Pêcheux e aqui no Brasil, de Eni Orlandi,
articulada ao método da História das Ideias Linguísticas.
Foi por esta via que conseguimos elaborar algumas inquietações concernentes às
teorias linguísticas até chegarmos a uma teorização própria da Análise de Discurso e de
seu objeto de estudo.
O percurso que realizamos buscou enfatizar que a Análise de Discurso parte do
corte epistemológico efetuado por Saussure para instalar a problemática do real da língua,
recoberto pelas teorias linguísticas ao se constituírem sob tendências formalistas,
sociologistas, enunciativas que acabam por não interpretar o funcionamento próprio
dessas ideias, na teorização que fazem sob o evidente efeito ideológico.
Também a Análise de Discurso se constitui em uma forma de conhecimento, que
em sua constituição, encontramos a Linguística. Desse modo, compreendemos que seja
necessário trabalhar o processo histórico da construção de suas ideias, para observarmos
a mudança de terreno que, de fato, ela instaura nos estudos dessas teorias linguísticas, ao
pensar a língua como a base para a realização dos processos discursivos. E aí, teríamos
matéria para a escrita de outro texto, em torno de uma questão provocativa e longe de ser
tranquilo o caminho a ser trilhado...
Por fim, com este artigo, pretendemos enfatizar o caráter material das ideias, ao
enfocarmos que uma teorização é uma prática político-ideológica e que, portanto, a
produção do conhecimento deve ser considerada na sua relação com a história, com o
sujeito e com a ideologia, condições materiais para a sua real existência.
Referências bibliográficas
ALTHUSSER, L. Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1991.
BALDINI, L.J.S. Frege e Hussel: a questão do pressuposto. Línguas e instrumentos
linguísticos, 27 e 28, Jan/Dez 2011. Campinas, Universidade Estadual de Campinas,
Editora RG, 2011.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
165
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
BENVENISTE, É. Saussure após meio século. Em: Problemas de linguística geral I.
Campinas: Pontes, 1995.
DIAS, L.F. Resistência e desafio: traços do pensamento de Pêcheux no Brasil. Em:
Painéis, Anais do I SEAD [Seminário de Estudos em Análise de Discurso, recurso
eletrônico], Porto Alegre, UFRGS, 2003.
EVANGELISTA, W.J. Introdução: Althusser e a psicanálise. Em: ALTHUSSER, L.
Freud e Lacan/ Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1991.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
HENRY, P. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992.
LECOURT, D. Para uma crítica da epistemologia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1980.
NUNES, J.H. Uma articulação da análise de discurso com a história das ideias
linguísticas. Letras, nº 37, Santa Maria, v. 18, nº 02, 107-124, jul./dez. 2008.
ORLANDI, E.P. Nota introdutória do tradutor. Escritos [Linguagem, Cidade, Política,
sociedade – Discurso e Política], nº 3, LABEURB, NUDECRI, 1998.
_____. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes,
1996.
PÊCHEUX, M. Sobre a (des-) construção das teorias linguísticas. Língua e instrumentos
linguísticos, nº 2, Campinas, Pontes, Julho-Dezembro 1999.
_____. Há uma via para a Linguística fora do logicismo e do sociologismo? Em: Escritos
[Linguagem, Cidade, Política, sociedade – Discurso e Política], nº 3, LABEURB –
Laboratório de Estudos Urbanos – NUDECRI, 1998.
_____. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da
Unicamp, 1995.
_____; GADET, F. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Campinas:
Pontes, 2004.
_____; FICHANT, M. Sobre a história das ciências. São Paulo: Mandacaru, 1989.
SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1999.
DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166
166
Entremeios: revista de estudos do discurso. v.14, jan.- jun./2017 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >
***
Artigo recebido em: janeiro de 2017.
Aprovado e revisado em: março de 2017.
Publicado em: abril de 2017.
Para citar este texto:
FRAGOSO, Élcio Aloisio. O ponto de vista determina o objeto: uma leitura materialista
possível do objeto de estudo concebido por Saussure em sua teorização. Entremeios
[Revista de Estudos do Discurso, on-line], Seção Estudos, Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Linguagem (PPGCL), Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS),
Pouso Alegre (MG), vol. 14, p. 149-166, jan. - jun. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol14pagina149a166