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O (Pré)Conceito de Idade Média
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FRANCO JNIOR, Hilrio. Introduo. In.: A Idade
mdia: nascimento do ocidente.
So Paulo: Brasiliense, 2001.
O (pr)conceito de Idade Mdia
Se numa conversa com homens medievais utilizssemos a expresso Idade
Mdia, eles no teriam ideia do que estaramos falando. Como todos os homens de todos
os perodos histricos, eles viam-se na poca contempornea. De fato, falarmos em Idade
Antiga ou Mdia representa uma rotulao a posteriori, uma satisfao da necessidade de
se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Mdia, foi o
sculo XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo
expressava um desprezo indisfarado em relao aos sculos localizados entre a
Antiguidade Clssica e o prprio sculo XVI. Este se via como o renascimento da
civilizao greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de criatividade
artstico-literria (de seu prprio ponto de vista, claro) no passara de um hiato, de um
intervalo. Logo, de um tempo intermedirio, de uma idade mdia.
A Idade Mdia para os renascentistas e iluministas
Admirador dos clssicos, o italiano Francesco Petrarca (13041374) j se
referira ao perodo anterior como de tenebrae: nascia o mito historiogrfico da Idade das
Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andrea, bibliotecrio papal, falava em media
tempestas, literalmente tempo mdio, mas tambm com o sentido figurado de flagelo,
runa. A ideia enraizou-se quando em meados do sculo XVI Giorgio Vasari, numa
obra biogrfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo Renascimento.
Assim, por contraste, difundiram-se em relao ao perodo anterior as expresses media
aetas, media antiquitas e media tempora.
De qualquer forma, o critrio era inicialmente filolgico. Opunha-se o sculo
XVI, que buscava na sua produo literria utilizar o latim nos moldes clssicos, aos
sculos anteriores, caracterizados por um latim brbaro. A arte medieval, por fugir aos
padres clssicos, tambm era vista como grosseira, da o grande pintor Rafael Sanzio
(1483-1520) cham-la de gtica, termo ento sinnimo de brbara. Na mesma linha,
Franois Rabelais (1483-1553) falava da Idade Mdia como a espessa noite gtica.
No sculo XVII, foi ainda com aquele sentido filolgico que passou a
prevalecer a expresso medium aevum, usada pelo francs Charles de Fresne Du Cange
em 1678 (13). Mas o sucesso do termo veio com o manual escolar do alemo Christoph
Keller (1638-1707, conhecido tambm pela latinizao de seu nome, Cellarius),
publicado cm 1688 c intitulado Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad
Constantinopolim a Turcis captam deducta. Esse livro completava outros dois do autor,
um dedicado aos tempos antigos e outro aos modernos.
Portanto, o sentido bsico mantinha-se renascentista: a Idade Mdia teria
sido uma interrupo no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e
retomado pelos homens do sculo XVI. Ou seja, tambm para o sculo XVII os tempos
medievais teriam sido de barbrie, ignorncia e superstio. Os protestantes criticavam-
nos como poca de supremacia da Igreja Catlica. Os homens ligados s poderosas
monarquias absolutistas lamentavam aquele perodo de reis fracos, de fragmentao
poltica. Os burgueses capitalistas desprezavam tais sculos de limitada atividade
comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura muito ligada a valores
espirituais.
O sculo XVIII, antiaristocrtico e anticlerical, acentuou o menosprezo
Idade Mdia, vista como momento ureo da nobreza e do clero. A filosofia da poca,
chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razo, censurava sobretudo a forte
religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Mdia a um estrito racionalismo e o peso
poltico de que a Igreja ento desfrutara. Sintetizando tais crticas, Denis Diderot (1713-
1784) afirmava que sem religio seramos um pouco mais felizes, Para o marqus de
Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre marchou em direo ao progresso, com
exceo do perodo no qual predominou o cristianismo, isto , a Idade Mdia. Para
Voltaire (1694-1778), os papas eram smbolos do fanatismo e do atraso daquela fase
histrica, por isso afirmava, irnico, que uma prova da divindade de seus caracteres
terem subsistido a tantos crimes. A posio daquele pensador sobre a Idade Mdia
poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava Igreja: a Infame.
A Idade Mdia para os romnticos
O Romantismo da primeira metade do sculo XIX inverteu, contudo, o
preconceito em relao Idade Mdia. O ponto de partida foi a questo da identidade
nacional, que ganhara forte significado com a Revoluo Francesa. As conquistas de
Napoleo tinham alimentado o fenmeno, pois a pretenso do imperador francs de reunir
a Europa sob uma nica direo despertou em cada regio dominada ou ameaada uma
valorizao de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua histria, enfim.
Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade do racionalismo, to exaltado
pela centria anterior, e que levara a Europa quele contexto de conturbaes, revolues
e guerras. A nostalgia romntica pela Idade Mdia fazia com que ela fosse considerada o
momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do
sculo XIX.
Vista como poca de f, autoridade e tradio, a Idade Mdia oferecia um
remdio insegurana e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao
cientificismo. Vista como fase histrica das liberdades, das imunidades e dos privilgios,
reforava o liberalismo burgus vitorioso no sculo XIX. Dessa maneira, o equilbrio e a
harmonia na literatura e nas artes, que o Renascimento e o Classicismo do sculo XVII
tinham buscado, cedia lugar paixo, exuberncia e vitalidade encontrveis na Idade
Mdia. A verdade procurada atravs do raciocnio, que guiara o Iluminismo do sculo
XVIII, cedia lugar valorizao dos sentidos, do instinto, dos sonhos, das recordaes.
Abundam ento obras de ambientao, inspirao ou temtica medievais, como Fausto
(1808 e 1832) de Goethe, O corcunda de Notre Dame (1831) de Victor Hugo, os vrios
romances histricos de Walter Scott (1771-1832), dentre eles Ivanho e Contos dos
cruzados, diversas composies de Wagner, como Tristo e lsolda (1859) e Parsifal
(1882).
Essa Idade Mdia dos escritores e msicos romnticos era to preconceituosa
quanto a dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois, ela teria sido uma poca
negra, a ser relegada da memria histrica. Para aqueles, um perodo esplndido, um dos
grandes momentos da trajetria humana, algo a ser imitado, prolongado. Tal atrao fez
o Romantismo restaurar inmeros monumentos medievais e construir palcios e igrejas
neogticas, mas inventando detalhes, modificando concepes, criando a sua Idade
Mdia. A historiografia tambm no ficou imune a isso, como mostra o caso de Thomas
Carlyle, que escrevendo em 1841 afirmava ter sido a civilizao feudal a coisa mais
elevada que a Europa tinha produzido. Mais til para futuros estudos, apesar de suas
imperfeies, foi a organizao de grandes colees documentais, como a Monumenta
alem (7), a Patrologia francesa (8), os Rolls Series ingleses (9), todas elas produto da
paixo do sculo XIX pela poca medieval.
De qualquer forma, a Idade Mdia permanecia incompreendida. Ela ainda
oscilava entre o pessimismo renascentista/iluminista e a exaltao romntica. Aos
preconceitos anteriores juntava-se o da idealizao, j antecipado por Gotthold Lessing
(1729-1781): Noite da Idade Mdia, que seja! Mas era uma noite resplandecente de
estrelas. A melhor sntese daquela oscilao est no maior historiador da poca, Jules
Michelet (1798-1874). Na sua Histoire de France, ele reservou seis volumes Idade
Mdia (1833-1844), definindo-a como aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou
quando pequenos, aquilo que foi nosso pai e nossa me, aquilo que nos cantava to
docemente no bero. Mas nas reedies de 1845-1855 ele mostra uma Idade Mdia
negativa, reduzida a longo prembulo ao sculo XVI, mudana que resultava das
dificuldades do presente histrico da Frana e do prprio Michelet.
A Idade Mdia para o sculo XX
Finalmente, passou-se a tentar ver a Idade Mdia como os olhos dela prpria,
no com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Entendeu-se que a funo
do historiador compreender, no a de julgar o passado. Logo, o nico referencial
possvel para se ver a Idade Mdia a prpria Idade Mdia. Com base nessa postura, e
elaborando, para concretiz-la, inmeras novas metodologias e tcnicas, a historiografia
medievalstica deu um enorme salto qualitativo. Sem risco de exagerar, pode-se dizer que
o medievalismo se tornou uma espcie de carro-chefe da historiografia contempornea,
ao propor temas, experimentar mtodos, rever conceitos, dialogar intimamente com
outras cincias humanas.
Isso no apenas deu um grande prestgio produo medievalstica nos meios
cultos como popularizou a Idade Mdia diante de um pblico mais vasto e mais
consciente do que o do sculo XIX. O que no significa que a imagem negativa da Idade
Mdia tenha desaparecido. No raro encontrarmos pessoas sem conhecimento histrico
ainda qualificando de medieval algo que elas reprovam. Pior, mesmo certos eruditos
no conseguem escapar ao enraizamento do sentido depreciativo atribudo desde o sculo
XVI Idade Mdia. Ao analisar as dificuldades do fim do sculo XX, o francs Alain
Minc falou mesmo em uma Nova Idade Mdia. No entanto, de forma geral, os
tradicionais juzos de valor sobre aquele perodo parecem recuar.
Isso no quer dizer, claro, que os historiadores do sculo XX tenham
resgatado a verdadeira Idade Mdia. Ao examinar qualquer perodo do passado, o
estudioso necessariamente trabalha com restos, com fragmentos as fontes primrias,
no jargo dos historiadores desse passado, que portanto jamais poder ser
integralmente reconstitudo. Ademais, o olhar que o historiador lana sobre o passado no
pode deixar de ser um olhar influenciado pelo seu presente. Na clebre formulao de
Lucien Febvre, feita em 1942 no seu Le problme de l'incroyance au XVI sicle. La
religion de Rabelais, a Histria filha de seu tempo, por isso cada poca tem sua
Grcia, sua Idade Mdia e seu Renascimento.
De fato, a historiografia um produto cultural que, como qualquer outro,
resulta de um complexo conjunto de condies materiais e psicolgicas do ambiente
individual e coletivo que a v nascer. Da a histria poltica ter-se desenvolvido nas
cidades-Estado gregas, a histria de hagiografias nos mosteiros medievais, a histria
dinstica e nacional nas cortes monrquicas modernas, a histria econmica no ambiente
da industrializao dos sculos XIX-XX, a histria das mentalidades no contexto das
inquietaes e esperanas da segunda metade do sculo XX. Logo, apesar de neste
momento fazermos uma histria medieval baseada em maior disponibilidade de fontes e
em tcnicas mais rigorosas de interpretao dessas fontes, no podemos afirmar que a
leitura da Idade Mdia realizada pelo sculo XX a definitiva.
Feitas essas ressalvas metodolgicas obrigatrias, o que devemos entender
por Idade Mdia, pelo menos no atual momento historiogrfico? Trata-se de um perodo
da histria europeia de cerca de um milnio, ainda que suas balizas cronolgicas
continuem sendo discutveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (s vezes
poltica, s vezes religiosa, s vezes econmica), j se falou, dentre outras datas, em 330
(reconhecimento da liberdade de culto aos cristos), em 392 (oficializao do
cristianismo), em 476 (deposio do ltimo imperador romano) e em 698 (conquista
muulmana de Cartago) como o ponto de partida da Idade Mdia. Para seu trmino, j se
pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492
(descoberta da Amrica) e 3517 (incio da Reforma Protestante). Sendo a Histria um
processo, naturalmente se deve renunciar busca de um fato especfico que teria
inaugurado ou encerrado um determinado perodo. Mesmo assim os problemas
permanecem, pois no h unanimidade sequer quanto ao sculo em que se deu a passagem
da Antiguidade para a Idade Mdia. Tampouco h acordo no que diz respeito transio
dela para a Modernidade. Mais ainda, apesar da existncia de estruturas bsicas ao longo
daquele milnio, no se pode pensar, claro, num imobilismo. Passou-se ento a
subdividir a histria medieval em fases que apresentaram certa unidade interna. Mas
tambm aqui no chega a haver consenso entre os historiadores. A periodizao que
propomos a seguir no a nica aceitvel, ainda que nos parea mais adequada maneira
como montamos este livro, isto , buscando a compreenso das estruturas (e no dos
eventos) medievais.
Se no, vejamos. O perodo que se estendeu de princpios do sculo IV a
meados do sculo VIII sem dvida apresenta uma feio prpria, no mais antiga e
ainda no claramente medieval. Apesar disso, talvez seja melhor cham-la de Primeira
Idade Mdia do que usar o velho rtulo de Antiguidade Tardia, pois nela teve incio a
convivncia e a lenta interpenetrao dos trs elementos histricos que comporiam todo
o perodo medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade Mdia:
herana romana clssica, herana germnica, cristianismo.
A participao do primeiro deles na formao da Idade Mdia deu-se
sobretudo aps a profunda crise do sculo III, quando o Imprio Romano tentou a
sobrevivncia por meio do estabelecimento de novas estruturas, que no impediram (e
algumas at mesmo aceleraram) sua decadncia, mas que permaneceriam vigentes por
sculos. Foi o caso, por exemplo, do carter sagrado da monarquia, da aceitao de
germanos no exrcito imperial, da petrificao da hierarquia social, do crescente
fiscalismo sobre o campo, do desenvolvimento de uma nova espiritualidade que
possibilitou o sucesso cristo.
Nesse mundo em transformao, a penetrao germnica intensificou as
tendncias estruturais anteriores, mas sem alter-las. Foi o caso da pluralidade poltica
substituindo a unidade romana, da concepo de obrigaes recprocas entre chefe e
guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia
seu carter mediterrnico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a
articulao entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a sntese daquelas duas
sociedades forjou a unidade espiritual, essencial para a civilizao medieval. Isso foi
possvel pelo prprio carter da Igreja nos seus primeiros tempos. De um lado, ela negava
aspectos importantes da civilizao romana, como a divindade do imperador, a hierarquia
social, o militarismo. De outro, ela era um prolongamento da romanidade, com seu carter
universalista, com o cristianismo transformado em religio do Estado, com o latim que
por intermdio da evangelizao foi levado a regies antes inatingidas.
Completada essa sntese, a Europa catlica entrou em outra fase, a Alta Idade
Mdia (meados do sculo VIII-fins do X). Foi ento que se atingiu, ilusoriamente, uma
nova unidade poltica com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas
tendncias centrfugas que levariam posteriormente fragmentao feudal. Contudo, para
se alcanar essa efmera unidade, a dinastia Carolngia precisou ser legitimada pela
Igreja, que pelo seu poder sagrado considerava-se a nica e verdadeira herdeira do
Imprio Romano. Em contrapartida, os soberanos Carolngios entregaram um vasto bloco
territorial italiano Igreja, que desta forma se corporificou e ganhou condies de se
tornar uma potncia poltica atuante. Ademais, dando fora de lei ao antigo costume do
pagamento do dzimo Igreja, os Carolngios vincularam-na definitivamente economia
agrria da poca.
Graas a esse temporrio encontro de interesses entre a Igreja e o Imprio,
ocorreu uma certa recuperao econmica e o incio de uma retomada demogrfica.
Iniciou-se ento a expanso territorial crist sobre regies pags que se estenderia
pelos sculos seguintes reformulando o mapa civilizacional da Europa. Por fim, como
resultado disso tudo, deu-se a transformao do latim nos idiomas neolatinos, surgindo
em fins do sculo X os primeiros textos literrios em lngua vulgar. Mas a fase terminaria
em crise, devido s contradies do Estado Carolngio e a uma nova onda de invases
(vikings, muulmanas, magiares).
A Idade Mdia Central (sculos XI-XIII) que ento comeou foi, grosso
modo, a poca do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta crise geral do
sculo X. De fato, utilizando material histrico que vinha desde o sculo IV, aquela
sociedade nasceu por volta do ano 1000, tendo conhecido seu perodo clssico entre os
sculos XI e XIII. Assim reorganizada, a sociedade crist ocidental conheceu uma forte
expanso populacional c uma conseqente expanso territorial, da qual as Cruzadas so
a face mais conhecida. Graas maior procura de mercadorias e maior disponibilidade
de mo-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produo cultural
acompanhou essa tendncia nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas cincias.
Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Mdia, da ter
merecido em todos os captulos deste livro uma maior ateno.
Mas aquelas transformaes atingiram a prpria essncia do feudalismo
sociedade fortemente estratificada, fechada, agrria, fragmentada politicamente,
dominada culturalmente pela Igreja. De dentro dela, e em concorrncia com ela,
desenvolveu-se um segmento urbano, mercantil, que buscava outros valores, que
expressava e ao mesmo tempo acelerava as mudanas decorrentes das prprias estruturas
feudais. Aquela sociedade passava da etapa feudo-clerical para a feudo-burguesa, na qual
o segundo elemento ia lenta mas firmemente sobrepujando o primeiro: emergiam as
cidades, as universidades, a literatura verncula, a filosofia racionalista, a cincia
emprica, as monarquias nacionais. Os conservadores, como Dante Alighieri, lamentavam
tais transformaes. Inegavelmente caminhava-se para novos tempos.
A Baixa Idade Mdia (sculo XIV-meados do sculo XVI) com suas crises e
seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade.
A crise do sculo XIV, orgnica, global, foi uma decorrncia da vitalidade e da contnua
expanso (demogrfica, econmica, territorial) dos sculos XI-XIII, o que levara o
sistema aos limites possveis de seu funcionamento. Logo, a recuperao a partir de
meados do sculo XV deu-se em novos moldes, estabeleceu novas estruturas, porm
ainda assentadas sobre elementos medievais: o Renascimento (baseado no Renascimento
do sculo XII), os Descobrimentos (continuadores das viagens dos normandos e dos
italianos), o Protestantismo (sucessor vitorioso das heresias*), o Absolutismo
(consumao da centralizao monrquica).
Em suma, o ritmo histrico da Idade Mdia foi se acelerando, e com ele
nossos conhecimentos sobre o perodo. Sua infncia e adolescncia cobriram boa parte
de sua vida (sculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas so
comparativamente poucas. Sua maturidade (sculos XI-XIII) e senilidade (sculo XIV-
XVI) deixaram, pelo contrrio, uma abundante documentao. essa diviso cronolgica
que nos guiar ao longo do exame de cada uma das estruturas bsicas da Idade Mdia. Se
nos captulos a seguir dedicamos ateno desigual a cada uma daquelas fases, porque,
grosso modo, acompanhamos inversamente o ritmo histrico c diretamente a
disponibilidade de fontes e trabalhos sobre elas.
A Idade Mdia para os medievais
Mas, enfim, que conceito tinham da Idade Mdia os prprios medievos?
Questo difcil de ser respondida, apesar dos progressos metodolgicos das ltimas
dcadas. A resposta, mesmo provisria e incompleta, precisaria ser matizada no tempo e
no espao, e ainda considerar pelo menos duas grandes vertentes, a do clero, elaborada a
partir de interpretaes teolgicas, e a dos leigos, presa a concepes antigas, pr-crists.
Simplificadamente, essa bipolarizao quanto Histria partia de duas vises distintas
quanto ao tempo.
A postura pag, fortemente enraizada na psicologia coletiva, aceitava a
existncia de um tempo cclico, daquilo que se chamou de mito do eterno retorno. Ou
seja, as primeiras sociedades s registravam o tempo biologicamente, sem transform-lo
em Histria, portanto sem conscincia de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas,
viver no real era viver segundo modelos extra-humanos, arquetpicos. Assim, tanto o
tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) s existiam por reproduzir
atos ocorridos na origem dos tempos. Da a importncia da festa de Ano-Novo, que era
uma retomada do tempo no seu comeo, isto , uma repetio da cosmogonia, com ritos
de expulso de demnios e de doenas.
Tal concepo sofreu sua primeira rejeio com o judasmo, que v em Iav
no uma divindade criadora de gestos arquetpicos, mas uma personalidade que intervm
na Histria. O cristianismo retornou e desenvolveu essa ideia, enfatizando o carter linear
da Histria, com seu ponto de partida (Gnese), de inflexo (Natividade) e de chegada
(Juzo Final). Portanto, linear mas no ao infinito, pois h um tempo escatolgico que
s Deus conhece limitando o desenrolar da Histria, isto , da passagem humana pela
Terra.
Contudo, se o cristianismo reinterpretou a Histria, no pde deixar de sentir
seu peso, inclusive da mentalidade cclica, da a liturgia crist basear-se na repetio
peridica e real de eventos essenciais como Natividade, Paixo e Ressurreio de Jesus:
ao participar da reproduo do evento divino, o fiel volta ao tempo em que ele ocorreu.
Ou seja, a cristianizao das camadas populares no aboliu a teoria cclica, pelo contrrio,
influenciou o cristianismo erudito e reforou certas categorias do pensamento mtico.
Em virtude disso, pelo menos at o sculo XII os medievos no sentiam
necessidade de maior preciso no cmputo do tempo, o que expressava e acentuava a falta
de um conceito claro sobre sua prpria poca. De maneira geral, prevalecia o sentimento
de viverem em tempos modernos, devido conscincia que tinham do passado, dos
tempos antigos, pr-cristos. Estava tambm presente a ideia de que se caminhava para
o Fim dos Tempos, no muito distante. Espera difusa, que raramente se concentrou em
momentos precisos. Sabemos hoje que os pretendidos terrores do ano 1000 foram uma
criao historiogrfica, pois no houve nenhum sentimento especial e generalizado de
que o mundo fosse acabar naquele momento.
Mas inegvel que a psicologia coletiva medieval esteve constantemente
(ainda que com flutuaes de intensidade) preocupada com a proximidade do Apocalipse.
Catstrofes naturais ou polticas eram frequentemente interpretadas como indcios da
chegada do Anticristo. Havia uma difundida viso pessimista do presente, porm
carregada de esperana no iminente triunfo do Reino de Deus. Nesse sentido, a viso de
mundo medieval trazia implcita em si a concepo de um tempus medium, precedendo a
Nova Era. Tempo no monoltico, dividido em vrias fases.
A quantidade e a caracterizao delas no eram, contudo, consensuais. A
periodizao mais comum, ao menos entre o clero, concebia seis fases histricas, de
acordo com os dias da Criao. Como no stimo dia Deus descansou, na stima fase os
homens descansaro no seio de Deus. Assim pensavam muitos, de Santo Agostinho (354-
430) e Isidoro de Sevilha (560-636) at Ferno Lopes (1380-1460). Tambm teve sucesso
uma concepo trinitria da Histria, surgida no sculo IX com Joo Escoto Ergena (ca.
830-ca. 880) e que teve seu maior representante no monge cisterciense Joaquim de Fiore
(1132-1202). Para este, a Era do Pai ter-se-ia caracterizado pelo temor servil lei divina,
a Era do Filho pela sabedoria, f e obedincia humilde, a do Esprito Santo (que comearia
em 1260) pela plenitude do conhecimento, do amor universal e da liberdade espiritual.
Qualquer que fosse a diviso temporal adotada, reconhecia-se que o suceder das fases
acabaria com a Parusia, quando a Histria enquanto tal deixaria de existir.