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FRANCO JÚNIOR, Hilário. Introdução. In.: A Idade média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. O (pré)conceito de Idade Média Se numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão “Idade Média”, eles não teriam ideia do que estaríamos falando. Como todos os homens de todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento da civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passara de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média. A Idade Média para os renascentistas e iluministas Admirador dos clássicos, o italiano Francesco Petrarca (13041374) já se referira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andrea, bibliotecário papal, falava em media tempestas, literalmente “tempo médio”, mas também com o sentido figurado de “flagelo”, “ruína”. A ideia enraizou-se quando em meados do século XVI Giorgio Vasari, numa obra biográfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo “Renascimento”. Assim, por contraste, difundiram-se em relação ao período anterior as expressões media aetas, media antiquitas e media tempora. De qualquer forma, o critério era inicialmente filológico. Opunha-se o século XVI, que buscava na sua produção literária utilizar o latim nos moldes clássicos, aos séculos anteriores, caracterizados por um latim “bárbaro”. A arte medieval, por fugir aos padrões clássicos, também era vista como grosseira, daí o grande pintor Rafael Sanzio

O (Pré)Conceito de Idade Média

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O (Pré)Conceito de Idade Média

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  • FRANCO JNIOR, Hilrio. Introduo. In.: A Idade

    mdia: nascimento do ocidente.

    So Paulo: Brasiliense, 2001.

    O (pr)conceito de Idade Mdia

    Se numa conversa com homens medievais utilizssemos a expresso Idade

    Mdia, eles no teriam ideia do que estaramos falando. Como todos os homens de todos

    os perodos histricos, eles viam-se na poca contempornea. De fato, falarmos em Idade

    Antiga ou Mdia representa uma rotulao a posteriori, uma satisfao da necessidade de

    se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Mdia, foi o

    sculo XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo

    expressava um desprezo indisfarado em relao aos sculos localizados entre a

    Antiguidade Clssica e o prprio sculo XVI. Este se via como o renascimento da

    civilizao greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de criatividade

    artstico-literria (de seu prprio ponto de vista, claro) no passara de um hiato, de um

    intervalo. Logo, de um tempo intermedirio, de uma idade mdia.

    A Idade Mdia para os renascentistas e iluministas

    Admirador dos clssicos, o italiano Francesco Petrarca (13041374) j se

    referira ao perodo anterior como de tenebrae: nascia o mito historiogrfico da Idade das

    Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andrea, bibliotecrio papal, falava em media

    tempestas, literalmente tempo mdio, mas tambm com o sentido figurado de flagelo,

    runa. A ideia enraizou-se quando em meados do sculo XVI Giorgio Vasari, numa

    obra biogrfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo Renascimento.

    Assim, por contraste, difundiram-se em relao ao perodo anterior as expresses media

    aetas, media antiquitas e media tempora.

    De qualquer forma, o critrio era inicialmente filolgico. Opunha-se o sculo

    XVI, que buscava na sua produo literria utilizar o latim nos moldes clssicos, aos

    sculos anteriores, caracterizados por um latim brbaro. A arte medieval, por fugir aos

    padres clssicos, tambm era vista como grosseira, da o grande pintor Rafael Sanzio

  • (1483-1520) cham-la de gtica, termo ento sinnimo de brbara. Na mesma linha,

    Franois Rabelais (1483-1553) falava da Idade Mdia como a espessa noite gtica.

    No sculo XVII, foi ainda com aquele sentido filolgico que passou a

    prevalecer a expresso medium aevum, usada pelo francs Charles de Fresne Du Cange

    em 1678 (13). Mas o sucesso do termo veio com o manual escolar do alemo Christoph

    Keller (1638-1707, conhecido tambm pela latinizao de seu nome, Cellarius),

    publicado cm 1688 c intitulado Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad

    Constantinopolim a Turcis captam deducta. Esse livro completava outros dois do autor,

    um dedicado aos tempos antigos e outro aos modernos.

    Portanto, o sentido bsico mantinha-se renascentista: a Idade Mdia teria

    sido uma interrupo no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e

    retomado pelos homens do sculo XVI. Ou seja, tambm para o sculo XVII os tempos

    medievais teriam sido de barbrie, ignorncia e superstio. Os protestantes criticavam-

    nos como poca de supremacia da Igreja Catlica. Os homens ligados s poderosas

    monarquias absolutistas lamentavam aquele perodo de reis fracos, de fragmentao

    poltica. Os burgueses capitalistas desprezavam tais sculos de limitada atividade

    comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura muito ligada a valores

    espirituais.

    O sculo XVIII, antiaristocrtico e anticlerical, acentuou o menosprezo

    Idade Mdia, vista como momento ureo da nobreza e do clero. A filosofia da poca,

    chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razo, censurava sobretudo a forte

    religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Mdia a um estrito racionalismo e o peso

    poltico de que a Igreja ento desfrutara. Sintetizando tais crticas, Denis Diderot (1713-

    1784) afirmava que sem religio seramos um pouco mais felizes, Para o marqus de

    Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre marchou em direo ao progresso, com

    exceo do perodo no qual predominou o cristianismo, isto , a Idade Mdia. Para

    Voltaire (1694-1778), os papas eram smbolos do fanatismo e do atraso daquela fase

    histrica, por isso afirmava, irnico, que uma prova da divindade de seus caracteres

    terem subsistido a tantos crimes. A posio daquele pensador sobre a Idade Mdia

    poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava Igreja: a Infame.

  • A Idade Mdia para os romnticos

    O Romantismo da primeira metade do sculo XIX inverteu, contudo, o

    preconceito em relao Idade Mdia. O ponto de partida foi a questo da identidade

    nacional, que ganhara forte significado com a Revoluo Francesa. As conquistas de

    Napoleo tinham alimentado o fenmeno, pois a pretenso do imperador francs de reunir

    a Europa sob uma nica direo despertou em cada regio dominada ou ameaada uma

    valorizao de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua histria, enfim.

    Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade do racionalismo, to exaltado

    pela centria anterior, e que levara a Europa quele contexto de conturbaes, revolues

    e guerras. A nostalgia romntica pela Idade Mdia fazia com que ela fosse considerada o

    momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do

    sculo XIX.

    Vista como poca de f, autoridade e tradio, a Idade Mdia oferecia um

    remdio insegurana e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao

    cientificismo. Vista como fase histrica das liberdades, das imunidades e dos privilgios,

    reforava o liberalismo burgus vitorioso no sculo XIX. Dessa maneira, o equilbrio e a

    harmonia na literatura e nas artes, que o Renascimento e o Classicismo do sculo XVII

    tinham buscado, cedia lugar paixo, exuberncia e vitalidade encontrveis na Idade

    Mdia. A verdade procurada atravs do raciocnio, que guiara o Iluminismo do sculo

    XVIII, cedia lugar valorizao dos sentidos, do instinto, dos sonhos, das recordaes.

    Abundam ento obras de ambientao, inspirao ou temtica medievais, como Fausto

    (1808 e 1832) de Goethe, O corcunda de Notre Dame (1831) de Victor Hugo, os vrios

    romances histricos de Walter Scott (1771-1832), dentre eles Ivanho e Contos dos

    cruzados, diversas composies de Wagner, como Tristo e lsolda (1859) e Parsifal

    (1882).

    Essa Idade Mdia dos escritores e msicos romnticos era to preconceituosa

    quanto a dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois, ela teria sido uma poca

    negra, a ser relegada da memria histrica. Para aqueles, um perodo esplndido, um dos

    grandes momentos da trajetria humana, algo a ser imitado, prolongado. Tal atrao fez

    o Romantismo restaurar inmeros monumentos medievais e construir palcios e igrejas

    neogticas, mas inventando detalhes, modificando concepes, criando a sua Idade

    Mdia. A historiografia tambm no ficou imune a isso, como mostra o caso de Thomas

  • Carlyle, que escrevendo em 1841 afirmava ter sido a civilizao feudal a coisa mais

    elevada que a Europa tinha produzido. Mais til para futuros estudos, apesar de suas

    imperfeies, foi a organizao de grandes colees documentais, como a Monumenta

    alem (7), a Patrologia francesa (8), os Rolls Series ingleses (9), todas elas produto da

    paixo do sculo XIX pela poca medieval.

    De qualquer forma, a Idade Mdia permanecia incompreendida. Ela ainda

    oscilava entre o pessimismo renascentista/iluminista e a exaltao romntica. Aos

    preconceitos anteriores juntava-se o da idealizao, j antecipado por Gotthold Lessing

    (1729-1781): Noite da Idade Mdia, que seja! Mas era uma noite resplandecente de

    estrelas. A melhor sntese daquela oscilao est no maior historiador da poca, Jules

    Michelet (1798-1874). Na sua Histoire de France, ele reservou seis volumes Idade

    Mdia (1833-1844), definindo-a como aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou

    quando pequenos, aquilo que foi nosso pai e nossa me, aquilo que nos cantava to

    docemente no bero. Mas nas reedies de 1845-1855 ele mostra uma Idade Mdia

    negativa, reduzida a longo prembulo ao sculo XVI, mudana que resultava das

    dificuldades do presente histrico da Frana e do prprio Michelet.

    A Idade Mdia para o sculo XX

    Finalmente, passou-se a tentar ver a Idade Mdia como os olhos dela prpria,

    no com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Entendeu-se que a funo

    do historiador compreender, no a de julgar o passado. Logo, o nico referencial

    possvel para se ver a Idade Mdia a prpria Idade Mdia. Com base nessa postura, e

    elaborando, para concretiz-la, inmeras novas metodologias e tcnicas, a historiografia

    medievalstica deu um enorme salto qualitativo. Sem risco de exagerar, pode-se dizer que

    o medievalismo se tornou uma espcie de carro-chefe da historiografia contempornea,

    ao propor temas, experimentar mtodos, rever conceitos, dialogar intimamente com

    outras cincias humanas.

    Isso no apenas deu um grande prestgio produo medievalstica nos meios

    cultos como popularizou a Idade Mdia diante de um pblico mais vasto e mais

    consciente do que o do sculo XIX. O que no significa que a imagem negativa da Idade

  • Mdia tenha desaparecido. No raro encontrarmos pessoas sem conhecimento histrico

    ainda qualificando de medieval algo que elas reprovam. Pior, mesmo certos eruditos

    no conseguem escapar ao enraizamento do sentido depreciativo atribudo desde o sculo

    XVI Idade Mdia. Ao analisar as dificuldades do fim do sculo XX, o francs Alain

    Minc falou mesmo em uma Nova Idade Mdia. No entanto, de forma geral, os

    tradicionais juzos de valor sobre aquele perodo parecem recuar.

    Isso no quer dizer, claro, que os historiadores do sculo XX tenham

    resgatado a verdadeira Idade Mdia. Ao examinar qualquer perodo do passado, o

    estudioso necessariamente trabalha com restos, com fragmentos as fontes primrias,

    no jargo dos historiadores desse passado, que portanto jamais poder ser

    integralmente reconstitudo. Ademais, o olhar que o historiador lana sobre o passado no

    pode deixar de ser um olhar influenciado pelo seu presente. Na clebre formulao de

    Lucien Febvre, feita em 1942 no seu Le problme de l'incroyance au XVI sicle. La

    religion de Rabelais, a Histria filha de seu tempo, por isso cada poca tem sua

    Grcia, sua Idade Mdia e seu Renascimento.

    De fato, a historiografia um produto cultural que, como qualquer outro,

    resulta de um complexo conjunto de condies materiais e psicolgicas do ambiente

    individual e coletivo que a v nascer. Da a histria poltica ter-se desenvolvido nas

    cidades-Estado gregas, a histria de hagiografias nos mosteiros medievais, a histria

    dinstica e nacional nas cortes monrquicas modernas, a histria econmica no ambiente

    da industrializao dos sculos XIX-XX, a histria das mentalidades no contexto das

    inquietaes e esperanas da segunda metade do sculo XX. Logo, apesar de neste

    momento fazermos uma histria medieval baseada em maior disponibilidade de fontes e

    em tcnicas mais rigorosas de interpretao dessas fontes, no podemos afirmar que a

    leitura da Idade Mdia realizada pelo sculo XX a definitiva.

    Feitas essas ressalvas metodolgicas obrigatrias, o que devemos entender

    por Idade Mdia, pelo menos no atual momento historiogrfico? Trata-se de um perodo

    da histria europeia de cerca de um milnio, ainda que suas balizas cronolgicas

    continuem sendo discutveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (s vezes

    poltica, s vezes religiosa, s vezes econmica), j se falou, dentre outras datas, em 330

    (reconhecimento da liberdade de culto aos cristos), em 392 (oficializao do

    cristianismo), em 476 (deposio do ltimo imperador romano) e em 698 (conquista

  • muulmana de Cartago) como o ponto de partida da Idade Mdia. Para seu trmino, j se

    pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492

    (descoberta da Amrica) e 3517 (incio da Reforma Protestante). Sendo a Histria um

    processo, naturalmente se deve renunciar busca de um fato especfico que teria

    inaugurado ou encerrado um determinado perodo. Mesmo assim os problemas

    permanecem, pois no h unanimidade sequer quanto ao sculo em que se deu a passagem

    da Antiguidade para a Idade Mdia. Tampouco h acordo no que diz respeito transio

    dela para a Modernidade. Mais ainda, apesar da existncia de estruturas bsicas ao longo

    daquele milnio, no se pode pensar, claro, num imobilismo. Passou-se ento a

    subdividir a histria medieval em fases que apresentaram certa unidade interna. Mas

    tambm aqui no chega a haver consenso entre os historiadores. A periodizao que

    propomos a seguir no a nica aceitvel, ainda que nos parea mais adequada maneira

    como montamos este livro, isto , buscando a compreenso das estruturas (e no dos

    eventos) medievais.

    Se no, vejamos. O perodo que se estendeu de princpios do sculo IV a

    meados do sculo VIII sem dvida apresenta uma feio prpria, no mais antiga e

    ainda no claramente medieval. Apesar disso, talvez seja melhor cham-la de Primeira

    Idade Mdia do que usar o velho rtulo de Antiguidade Tardia, pois nela teve incio a

    convivncia e a lenta interpenetrao dos trs elementos histricos que comporiam todo

    o perodo medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade Mdia:

    herana romana clssica, herana germnica, cristianismo.

    A participao do primeiro deles na formao da Idade Mdia deu-se

    sobretudo aps a profunda crise do sculo III, quando o Imprio Romano tentou a

    sobrevivncia por meio do estabelecimento de novas estruturas, que no impediram (e

    algumas at mesmo aceleraram) sua decadncia, mas que permaneceriam vigentes por

    sculos. Foi o caso, por exemplo, do carter sagrado da monarquia, da aceitao de

    germanos no exrcito imperial, da petrificao da hierarquia social, do crescente

    fiscalismo sobre o campo, do desenvolvimento de uma nova espiritualidade que

    possibilitou o sucesso cristo.

    Nesse mundo em transformao, a penetrao germnica intensificou as

    tendncias estruturais anteriores, mas sem alter-las. Foi o caso da pluralidade poltica

    substituindo a unidade romana, da concepo de obrigaes recprocas entre chefe e

  • guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia

    seu carter mediterrnico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a

    articulao entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a sntese daquelas duas

    sociedades forjou a unidade espiritual, essencial para a civilizao medieval. Isso foi

    possvel pelo prprio carter da Igreja nos seus primeiros tempos. De um lado, ela negava

    aspectos importantes da civilizao romana, como a divindade do imperador, a hierarquia

    social, o militarismo. De outro, ela era um prolongamento da romanidade, com seu carter

    universalista, com o cristianismo transformado em religio do Estado, com o latim que

    por intermdio da evangelizao foi levado a regies antes inatingidas.

    Completada essa sntese, a Europa catlica entrou em outra fase, a Alta Idade

    Mdia (meados do sculo VIII-fins do X). Foi ento que se atingiu, ilusoriamente, uma

    nova unidade poltica com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas

    tendncias centrfugas que levariam posteriormente fragmentao feudal. Contudo, para

    se alcanar essa efmera unidade, a dinastia Carolngia precisou ser legitimada pela

    Igreja, que pelo seu poder sagrado considerava-se a nica e verdadeira herdeira do

    Imprio Romano. Em contrapartida, os soberanos Carolngios entregaram um vasto bloco

    territorial italiano Igreja, que desta forma se corporificou e ganhou condies de se

    tornar uma potncia poltica atuante. Ademais, dando fora de lei ao antigo costume do

    pagamento do dzimo Igreja, os Carolngios vincularam-na definitivamente economia

    agrria da poca.

    Graas a esse temporrio encontro de interesses entre a Igreja e o Imprio,

    ocorreu uma certa recuperao econmica e o incio de uma retomada demogrfica.

    Iniciou-se ento a expanso territorial crist sobre regies pags que se estenderia

    pelos sculos seguintes reformulando o mapa civilizacional da Europa. Por fim, como

    resultado disso tudo, deu-se a transformao do latim nos idiomas neolatinos, surgindo

    em fins do sculo X os primeiros textos literrios em lngua vulgar. Mas a fase terminaria

    em crise, devido s contradies do Estado Carolngio e a uma nova onda de invases

    (vikings, muulmanas, magiares).

    A Idade Mdia Central (sculos XI-XIII) que ento comeou foi, grosso

    modo, a poca do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta crise geral do

    sculo X. De fato, utilizando material histrico que vinha desde o sculo IV, aquela

    sociedade nasceu por volta do ano 1000, tendo conhecido seu perodo clssico entre os

  • sculos XI e XIII. Assim reorganizada, a sociedade crist ocidental conheceu uma forte

    expanso populacional c uma conseqente expanso territorial, da qual as Cruzadas so

    a face mais conhecida. Graas maior procura de mercadorias e maior disponibilidade

    de mo-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produo cultural

    acompanhou essa tendncia nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas cincias.

    Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Mdia, da ter

    merecido em todos os captulos deste livro uma maior ateno.

    Mas aquelas transformaes atingiram a prpria essncia do feudalismo

    sociedade fortemente estratificada, fechada, agrria, fragmentada politicamente,

    dominada culturalmente pela Igreja. De dentro dela, e em concorrncia com ela,

    desenvolveu-se um segmento urbano, mercantil, que buscava outros valores, que

    expressava e ao mesmo tempo acelerava as mudanas decorrentes das prprias estruturas

    feudais. Aquela sociedade passava da etapa feudo-clerical para a feudo-burguesa, na qual

    o segundo elemento ia lenta mas firmemente sobrepujando o primeiro: emergiam as

    cidades, as universidades, a literatura verncula, a filosofia racionalista, a cincia

    emprica, as monarquias nacionais. Os conservadores, como Dante Alighieri, lamentavam

    tais transformaes. Inegavelmente caminhava-se para novos tempos.

    A Baixa Idade Mdia (sculo XIV-meados do sculo XVI) com suas crises e

    seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade.

    A crise do sculo XIV, orgnica, global, foi uma decorrncia da vitalidade e da contnua

    expanso (demogrfica, econmica, territorial) dos sculos XI-XIII, o que levara o

    sistema aos limites possveis de seu funcionamento. Logo, a recuperao a partir de

    meados do sculo XV deu-se em novos moldes, estabeleceu novas estruturas, porm

    ainda assentadas sobre elementos medievais: o Renascimento (baseado no Renascimento

    do sculo XII), os Descobrimentos (continuadores das viagens dos normandos e dos

    italianos), o Protestantismo (sucessor vitorioso das heresias*), o Absolutismo

    (consumao da centralizao monrquica).

    Em suma, o ritmo histrico da Idade Mdia foi se acelerando, e com ele

    nossos conhecimentos sobre o perodo. Sua infncia e adolescncia cobriram boa parte

    de sua vida (sculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas so

    comparativamente poucas. Sua maturidade (sculos XI-XIII) e senilidade (sculo XIV-

    XVI) deixaram, pelo contrrio, uma abundante documentao. essa diviso cronolgica

  • que nos guiar ao longo do exame de cada uma das estruturas bsicas da Idade Mdia. Se

    nos captulos a seguir dedicamos ateno desigual a cada uma daquelas fases, porque,

    grosso modo, acompanhamos inversamente o ritmo histrico c diretamente a

    disponibilidade de fontes e trabalhos sobre elas.

    A Idade Mdia para os medievais

    Mas, enfim, que conceito tinham da Idade Mdia os prprios medievos?

    Questo difcil de ser respondida, apesar dos progressos metodolgicos das ltimas

    dcadas. A resposta, mesmo provisria e incompleta, precisaria ser matizada no tempo e

    no espao, e ainda considerar pelo menos duas grandes vertentes, a do clero, elaborada a

    partir de interpretaes teolgicas, e a dos leigos, presa a concepes antigas, pr-crists.

    Simplificadamente, essa bipolarizao quanto Histria partia de duas vises distintas

    quanto ao tempo.

    A postura pag, fortemente enraizada na psicologia coletiva, aceitava a

    existncia de um tempo cclico, daquilo que se chamou de mito do eterno retorno. Ou

    seja, as primeiras sociedades s registravam o tempo biologicamente, sem transform-lo

    em Histria, portanto sem conscincia de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas,

    viver no real era viver segundo modelos extra-humanos, arquetpicos. Assim, tanto o

    tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) s existiam por reproduzir

    atos ocorridos na origem dos tempos. Da a importncia da festa de Ano-Novo, que era

    uma retomada do tempo no seu comeo, isto , uma repetio da cosmogonia, com ritos

    de expulso de demnios e de doenas.

    Tal concepo sofreu sua primeira rejeio com o judasmo, que v em Iav

    no uma divindade criadora de gestos arquetpicos, mas uma personalidade que intervm

    na Histria. O cristianismo retornou e desenvolveu essa ideia, enfatizando o carter linear

    da Histria, com seu ponto de partida (Gnese), de inflexo (Natividade) e de chegada

    (Juzo Final). Portanto, linear mas no ao infinito, pois h um tempo escatolgico que

    s Deus conhece limitando o desenrolar da Histria, isto , da passagem humana pela

    Terra.

  • Contudo, se o cristianismo reinterpretou a Histria, no pde deixar de sentir

    seu peso, inclusive da mentalidade cclica, da a liturgia crist basear-se na repetio

    peridica e real de eventos essenciais como Natividade, Paixo e Ressurreio de Jesus:

    ao participar da reproduo do evento divino, o fiel volta ao tempo em que ele ocorreu.

    Ou seja, a cristianizao das camadas populares no aboliu a teoria cclica, pelo contrrio,

    influenciou o cristianismo erudito e reforou certas categorias do pensamento mtico.

    Em virtude disso, pelo menos at o sculo XII os medievos no sentiam

    necessidade de maior preciso no cmputo do tempo, o que expressava e acentuava a falta

    de um conceito claro sobre sua prpria poca. De maneira geral, prevalecia o sentimento

    de viverem em tempos modernos, devido conscincia que tinham do passado, dos

    tempos antigos, pr-cristos. Estava tambm presente a ideia de que se caminhava para

    o Fim dos Tempos, no muito distante. Espera difusa, que raramente se concentrou em

    momentos precisos. Sabemos hoje que os pretendidos terrores do ano 1000 foram uma

    criao historiogrfica, pois no houve nenhum sentimento especial e generalizado de

    que o mundo fosse acabar naquele momento.

    Mas inegvel que a psicologia coletiva medieval esteve constantemente

    (ainda que com flutuaes de intensidade) preocupada com a proximidade do Apocalipse.

    Catstrofes naturais ou polticas eram frequentemente interpretadas como indcios da

    chegada do Anticristo. Havia uma difundida viso pessimista do presente, porm

    carregada de esperana no iminente triunfo do Reino de Deus. Nesse sentido, a viso de

    mundo medieval trazia implcita em si a concepo de um tempus medium, precedendo a

    Nova Era. Tempo no monoltico, dividido em vrias fases.

    A quantidade e a caracterizao delas no eram, contudo, consensuais. A

    periodizao mais comum, ao menos entre o clero, concebia seis fases histricas, de

    acordo com os dias da Criao. Como no stimo dia Deus descansou, na stima fase os

    homens descansaro no seio de Deus. Assim pensavam muitos, de Santo Agostinho (354-

    430) e Isidoro de Sevilha (560-636) at Ferno Lopes (1380-1460). Tambm teve sucesso

    uma concepo trinitria da Histria, surgida no sculo IX com Joo Escoto Ergena (ca.

    830-ca. 880) e que teve seu maior representante no monge cisterciense Joaquim de Fiore

    (1132-1202). Para este, a Era do Pai ter-se-ia caracterizado pelo temor servil lei divina,

    a Era do Filho pela sabedoria, f e obedincia humilde, a do Esprito Santo (que comearia

    em 1260) pela plenitude do conhecimento, do amor universal e da liberdade espiritual.

  • Qualquer que fosse a diviso temporal adotada, reconhecia-se que o suceder das fases

    acabaria com a Parusia, quando a Histria enquanto tal deixaria de existir.