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7/24/2019 O Psicanalista No Tribunal de Famlia - Possibilidades e Limites - Hlio Cardoso Miranda Jnior
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HLIO CARDOSO DE MIRANDA JNIOR
O psicanalista no Tribunal de Famlia:Possibilidades e limites de um trabalho na instituio
Tese apresentada ao
Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulopara obteno do ttulo de
Doutor em Psicologia.
rea de concentrao:Psicologia Clnica
Orientadora: Profa. Dra.Mriam Debieux Rosa
So Paulo2009
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARAFINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogao na publicaoBiblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo
Miranda Jnior, Hlio Cardoso.O psicanalista no tribunal de famlia: possibilidades e limites de
um trabalho na instituio / Hlio Cardoso Miranda Jnior; orientadoraMiriam Debieux Rosa. -- So Paulo, 2009.
238 p.Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Psicologia.
rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulo.
1. Psicanlise 2. Direito 3. Psicologia forense 4. Famlia I.
Ttulo.
RC504
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Nome: MIRANDA JNIOR, Hlio Cardoso.
Ttulo: O psicanalista no Tribunal de Famlia: Possibilidades e limites de umtrabalho na instituio
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de So Paulo para obteno do ttulo
de Doutor em Psicologia.
Aprovado em: ___/___/_____
Banca Examinadora
Prof. Dr.___________________________________________________
Instituio:_____________________Assinatura:___________________
Prof. Dr.___________________________________________________
Instituio:_____________________Assinatura:___________________
Prof. Dr.___________________________________________________
Instituio:_____________________Assinatura:___________________
Prof. Dr.___________________________________________________
Instituio:_____________________Assinatura:___________________
Prof. Dr.___________________________________________________
Instituio:_____________________Assinatura:___________________
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DEDICATRIA
Para minha famlia,
sobretudo para meus pais
e
para Camille e Janice.
Alguns nomes permanecem,
Clio GarciaJeferson Machado Pinto
Mriam Debieux Rosa
pois, mesmo compondo uma srie,como todos os nomes compem,
conseguem deixar nelasua marca singular.
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AGRADECIMENTOS
minha famlia, que soube tolerar o isolamento necessrio realizao de uma pesquisa e
tentou contribuir na sua elaborao, sobretudo Janice e Camille.
minha orientadora, Profa. Mriam Debieux Rosa, que aceitou o desafio desta pesquisa e
conseguiu unir a rdua tarefa da orientao ao constante incentivo ao trabalho, sempre com
disponibilidade e humor.
A PUC Minas, que incentivou essa pesquisa com licena remunerada de trs anos por meio do
Programa Permanente de Capacitao Docente.
Aos colegas da PUC Minas que, em muitos momentos, auxiliaram na resoluo de questes
acadmicas e administrativas derivadas de minha dedicao a esta pesquisa. Agradeo
especialmente a Carla Derzi, Cristina Marcos e Flvio Dures, pois coordenamos juntos o
curso de especializao Clnica Psicanaltica na Atualidade e, elegantemente, eles me
permitiram um ano de afastamento completo das atividades do curso para me dedicar
pesquisa.
Ao Tribunal de Justia de Minas Gerais, que autorizou a utilizao dos casos apresentados
nesta pesquisa e que, mesmo no possuindo um incentivo institucional especfico pesquisa,
constitui o terreno discursivo no qual se insere a articulao que aqui exponho.
Aos colegas da Central de Servio Social e Psicologia do Frum Lafayette, em Belo
Horizonte, que sempre me apoiaram no percurso da pesquisa e, principalmente, queles quelutam para manter a qualidade e a tica do trabalho jurdico com as famlias. Agradeo,
sobretudo, a Cleide Rocha Andrade, de quem admiro o trabalho e cuja palavra tem a fora e a
coragem da palavra amiga.
Ao pesquisador e amigo Sidney Shine, pelo incentivo e pelas amplas ponderaes nos curtos
espaos de tempo entre um caf e outro.
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Aos estagirios que me acompanharam no Frum Falayette e que muito ajudaram a construir
este trabalho em diferentes pocas: Grazielle Paola, Gilsiane A. Ribeiro Braga, Hugo Rangel
Bata Vieira, Ely Fernandes Silva, Nazira Peixoto Barbosa e Aline Rabelo Cunha Silva.
Ao Professor Patrick Guyomard, que me recebeu como aluno em seu seminrio na Universit
Paris 7 Denis Diderot, Frana, durante quatro meses para ampliar as articulaes conceituais
dessa pesquisa e CAPES (Coordenao de Aperfeioamento do Pessoal de Ensino Superior)
que permitiu, com a concesso de bolsa de estudos, essa experincia em Paris, onde pude
buscar muitas outras referncias de pesquisa e desfrutar da riqueza do convvio com outros
pesquisadores.
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O verdadeiro problema no estudar como a vida humana se submete s regras elasimplesmente no se submete o verdadeiro problema saber como as regras se adaptaram vida.
Malinowski
O Verbo no simplesmente para ns a lei onde nos inserimos para portar, cada um de ns, acarga da dvida que faz nosso destino. Ele abre para ns a possibilidade, a tentao de onde possvel nos maldizermos, no somente como destino particular, como vida, mas como oprprio caminho onde o Verbo nos conduz, e como encontro com a verdade, como hora daverdade.
Lacan
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RESUMO
MIRANDA JNIOR, H.C. O Psicanalista no Tribunal de Famlia: Possibilidades e
limites de um trabalho na instituio. 2009. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia,
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.
Esta pesquisa tem como campo de investigao a aplicao da prtica psicanaltica fora da
clnica stricto sensu (extenso). O seu eixo norteador a interface do Direito com a
Psicanlise e seu foco de ateno a insero do psiclogo psicanalista nos Tribunais de
Justia para prestar servios vinculados s Varas de Famlia. Procura-se verificar a prtica
desse profissional em termos de sua coerncia com os conceitos fundamentais da psicanlise
e, portanto, com uma prxis que questiona os ideais sociais, em uma instituio que o
convoca a trabalhar a partir do discurso normativo. Para compreender o trabalho do psiclogo
/ psicanalista em uma perspectiva clnica, procurando definir seus principais conceitos
operadores, utilizou-se a noo de cena como articuladora dos dois discursos: o jurdico e o
psicanaltico. A cena jurdica explicitada em seus parmetros discursivos e compreendida
em uma leitura antropolgica sobre a sua instituio. A cena psicanaltica abordada tendo
como conceitos principais inconsciente, fantasia, desejo e demanda. Tanto a cena jurdica
quanto a cena psicanaltica so vinculadas fundamentalmente s questes da famlia para, emseguida, explicitarem-se os conceitos fundamentais e os orientadores da prtica possvel do
psicanalista no Tribunal de Famlia. Nesse percurso, faz-se uma leitura da percia judicial
conforme as elaboraes de Michel Foucault para propor uma prtica diferenciada de acordo
com as formulaes de Freud e de Lacan sobre o desejo e a demanda. Para responder
questo sobre a possibilidade de ocupar a posio do psicanalista e intervir nos casos
atendidos em Varas de Famlia, utilizou-se o estudo de caso de alguns processos judiciais
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encaminhados Central de Servio Social e Psicologia do Frum Lafayette (Belo Horizonte,
Minas Gerais) e atendidos pelo prprio pesquisador, haja vista sua insero na instituio
como Psiclogo Judicial. O critrio para a escolha dos casos foi a presena de conflito
familiar institudo no qual se tentou a interveno pelo vis da escuta analtica. Concluiu-se
pela possibilidade de interveno em alguns casos, dentro dos limites impostos pela
instituio e pelo lugar que o psicanalista pode ocupar na interface desses discursos.
Palavras-chave: psicanlise, direito, norma, psicologia jurdica, famlia.
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ABSTRACT
MIRANDA JNIOR, H.C. The psychoanalist in Family Court: possibility and limit of his
practise an institution. 2009. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia, Universidade de
So Paulo, So Paulo, 2009.
The following research has as an investigation field the application of the psychoanalythical
practice outside the clinic strict sense. Its guiding axis is the interface of the law and the
psychoanalysis, and its focus of attention is the insertion of the psychoanalist psychologist in
the Law Courts, in order to render services linked with the Family Court. It is intended to
verify the practise of such professional in terms of his coherence with the fundamental
concepts of psychoanalysis and, thus, with a praxis which questions the social ideals, in an
institution which convokes him to work based upon the normative discourse. In order to
inderstand the work of this psychologist / psychoanalist from a clinical perspective. Aiming at
defining his main operating concepts, a notion os scene as an articulation joint of two
discourses: the juridical and the psychoanalythical ones. The juridical scene is made explicit
in its discoursive parameters and from an anthropological interpretation of its institution as
well. The psychoanalythical scene is broached from the concepts of the unconscious, fantasy,
desire and demand. Both the juridical scene and the psychoanalythical onde are fundamentally
linked with the family questions in order to. Soon after, make esplicit the fundamentally
concepts and the orientations of the possible psychoanalists practise in the family court. In
this course, an interpretation of the judicial skill was made according to Michel Foucault, in
order to propose a differentiated practise from the Freuds and Lacans formulations about
desire and demand. To answer the questions about the possibility of intervention in the cases
taken to the Family Court, from the psychoanalists standpoint. The cases os some judicial
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lawsuits which were taken to the Central de Servio Social e Psicologia do Frum Lafayette
(Center of Social and Psychology Service of Lafayette Forum), in Belo Horizonte, Minas
Gerais, and taken care of by the reseacher himself, were studied, taking into consideration his
insertion in the institution as a judicial psychologist. The criterion for the choice of the cases
was the presence of instituted family conflict in which it was intended an intervention based
upon analythical listening. The conclusion was for the possibility of intervention in some
cases inside the limits imposed by the institution and by the place the psychoanalist may
occupy in the interface of these discourses.
Key words: psychoanalisis, law, norm, juridical psychology, family.
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Listas de Siglas
CF Constituio da Repblica Federativa do Brasil
CC Cdigo Civil
CPC Cdigo do Processo Civil
CP Cdigo Penal
CPP Cdigo do Processo Penal
CFP Conselho Federal de Psicologia
ECA Estatuto da Criana e do Adolescente
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Sumrio
Introduo 14
1 A cena jurdica 22
1.1 A lei, demasiado humana 22
1.2 A famlia na cena jurdica 29
1.2.1 A famlia 29
1.2.2 O Direito de Famlia 34
1.2.3 A formalizao / institucionalizao de um conflito 48
1.2.4 A prova pericial 51
1.2.5 O psiclogo judicial 53
1.2.6 O psiclogo judicial no Frum 56
1.3 A cena jurdica e o teatro social 57
1.3.1 Em torno da cena jurdica institucionalizada 57
1.3.2 O conflito familiar encenado juridicamente 60
2 A cena psicanaltica 65
2.1 A cena em psicanlise 65
2.2 A cena psicanaltica e a famlia 85
2.2.1 Conjugalidade 88
2.2.2 Filiao 99
3 O psicanalista no Tribunal de Famlia 110
3.1 A palavra entre escritos, ditos e dizeres 110
3.1.1 Psicologia e percia 111
3.1.2 A verdade: discurso jurdico / discurso cientfico 114
3.1.3 O exame, a verdade e a norma jurdica 118
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3.2 O psicanalista na cena 127
3.2.1 O psicanalista, a psicanlise e o problema do
mtodo na interface 129
3.2.2 Palavra e verdade em psicanlise 139
3.2.3 Algumas propostas de trabalho 144
3.3.3 O discurso institucional e o psicanalista 153
4 Estudos de casos 160
4.1 O uso da cena jurdica 160
4.2 O lao sexual 168
4.2.1 Pai e me, homem-mulher 171
4.2.2 Um homem e suas filhas 176
O enigma do objeto de desejo de um homem 176
O abuso sexual como meia-verdade 179
4.2.3 O casal como Um 186
4.3 Encontros e desencontros entre pais e filhos
4.3.1 Ideal e Ser: a mestria das imagens e dos significantes 192
Constituir um pai e uma me 195
4.3.2 Demanda e ideal entre pais e filhos 201
O dinheiro e a demanda 201
Dar o que no se tem 204
Uma mulher e sua filha: o Ideal e o segredo 206
4.4 Da cena psicanaltica cena jurdica: lugar e funo do
relatrio na interface 2095 Concluso 217
Referncias bibliogrficas 226
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Introduo
Muito se tem produzido recentemente sobre a interface Direito, Psicologia ePsicanlise. Alm das proximidades discursivas, h que se lembrar de que entre aqueles
chamados pelas instituies judicirias a trabalharem nessa interface, compondo equipes
tcnicas ou exercendo a funo de perito, esto tambm os psicanalistas.
Porm, pouco se produziu at o momento sobre a prxis do psicanalista na instituio
judiciria. Ademais, tal produo ainda carece de fundamentao adequada em muitos
aspectos e, talvez por isto, no consiga convencer plenamente que a utilizao da psicanlise
nessa interface possa no se reduzir a um mero instrumento terico de interpretao dosfenmenos, o que desvirtua sua potencialidade questionadora, cujo fundamento est na noo
de desejo e no seu mal-estar inerente.
Em vrios trabalhos anteriores, a preocupao que nos guiou foi a de destacar a prtica
do psicanalista nessa interface, tentando compreender as possibilidades e limites do trabalho
na instituio judiciria que trata das questes de Direito de Famlia1. A proposta de pesquisa,
delineada a seguir, tem como foco essa questo.
Direito, Psicologia e Psicanlise
A Justia moderna tende a absorver, cada vez mais, contribuies de diversos campos
do saber. A interface psicologia e direito, apesar de no ser recente, foco de pesquisas e
publicaes no Brasil h pouco tempo. Os psiclogos chamados a trabalhar nessa interface
esto prestando servios ao judicirio na forma de percias, trabalhos de acompanhamento,
orientao, entre outros.
Historicamente, a primeira demanda que se fez psicologia em nome da Justia
ocorreu no campo do exame e da psicopatologia. A cincia mdica desde cedo foi chamada a
se posicionar sobre questes de direito por meio da atividade do exame. Conforme Foucault
(1993), a psiquiatria, desde suas origens, encontra-se justamente nesses interstcios
discursivos do saber que articulam subjetividade, direito, moral e poder. O campo em que
primeiro essa funo surge o da criminologia. Os psiclogos, neste mesmo esteio, eram
chamados a fornecer um parecer pericial no qual, pelo uso neutro dos instrumentos e
tcnicas de avaliao psicolgica, emitiam um laudo no qual informavam instituio
1Alguns textos sero indicados no decorrer deste trabalho.
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judiciria, via seus representantes, um mapa subjetivo do sujeito diagnosticado. O objetivo era
melhor instruir a instituio para tomada de decises supostamente mais fundamentadas e,
portanto, mais justas. Os profissionais que executavam esse tipo de trabalho, geralmente
realizavam a avaliao a partir da idia de uma subjetividade individual descontextualizada e
objetivada; em outros termos, reificada. Nesse sentido, podemos dizer que, nas primeiras
dcadas do sculo XX, a cincia psicolgica serviu como mais uma das tcnicas de exame.
Um exemplo dessa viso centrada na psicopatologia e na criminologia pode ser encontrado no
livro Manual de Psicologia Jurdica, de Mira Y Lpez (1945), cuja primeira edio de
1936.
Esse tipo de avaliao psicolgica continua a ser realizado hoje, geralmente com
procedimentos aperfeioados e com postura mais crtica. esse trabalho pericial (ou deexame/avaliao) que responde mais diretamente demanda prpria da instituio jurdica,
pois est a servio da produo de uma verdade que auxilie a tomada de uma deciso judicial.
Desde os seus primrdios, a psicanlise tambm foi chamada a participar da busca da
verdade jurdica. Vale registrar as observaes de Freud (1906/1980), sobre os limites dessa
aplicao. Sua argumentao, justamente a respeito da rea criminal, tem como base a idia
de que o mtodo psicanaltico, apesar de ter como objetivo intrnseco a investigao, tem
particularidades que dificultam sua aplicao aos objetivos judicirios. Apesar disso, apsicanlise continuou a ser utilizada nessa interface, o que podemos constatar pelo prprio
Freud em texto de 1930 intitulado O parecer do perito no caso Halsmann (FREUD,
1930/1980).
As prticas atuais
O trabalho do psiclogo vinculado ao campo do direito e da Justia cresceu em termosquantitativos ao longo das ltimas dcadas. Isso pode ser verificado na participao dos
psiclogos no trabalho com as crianas e com os adolescentes, desde as dcadas de 70 e 80,
em instituies como a Febem e a Funabem e, mais recentemente, sua insero em programas
e projetos vinculados proteo aos direitos deste pblico em rgos do Poder Executivo 2.
A partir de 1988, poca da promulgao da Constituio Federal, a legislao,
absorveu e caucionou o discurso cientfico-psicolgico e estabeleceu como necessrio, em
2Em Belo Horizonte marcante a participao de psiclogos e psicanalistas no Programa de Liberdade Assistidae no Programa de Prestao de Servios Comunidade, nos quais so acompanhadas as execues de medidassocioeducativas aplicadas pelo Poder Judicirio ao adolescente autor de ato infracional. Podemos citar tambmos Servios de Orientao Sociofamiliar, os Conselhos Tutelares, entre outros.
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muitos casos, a participao do psiclogo no mbito judicirio. Um exemplo disso o
Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), de 1990, que veio afirmar de forma incisiva a
necessidade da presena do psiclogo na lida com as questes prprias da rea. (arts. 150 e
151) Com isso, registra-se um reconhecimento social importante para a psicologia e a
concomitante absoro de psiclogos nos Tribunais de Justia por concurso pblico. Alguns
estados brasileiros, como So Paulo, absorveram psiclogos no Tribunal de Justia por meio
de concursos pblicos antes mesmo da aprovao do ECA. Esses trabalhos pioneiros foram
muito importantes para a efetivao e a transformao da prtica do psiclogo nessas
instituies.
Na Resoluo n 014/00, do Conselho Federal de Psicologia, regulamentada pela
Resoluo n 02/01, que definiu o ttulo profissional de Especialista em Psicologia Jurdica,podemos encontrar tambm, alm das definies sobre o trabalho de avaliao caracterstico
da percia, outras atribuies dessa especialidade relacionadas ao atendimento e assistncia
psicolgica. Tal Resoluo do CFP est de acordo com os artigos do ECA.
Recentemente, a Lei n. 11.698/2008 que modificou os artigos 1.583 e 1.584 do
Cdigo Civil referentes guarda de crianas e instituiu a guarda compartilhada, tambm
menciona que para estabelecer as atribuies do pai e da me e os perodos de convivncia
sob guarda compartilhada, o juiz, de ofcio ou a requerimento do Ministrio Pblico, poderbasear-se em orientao tcnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. (art. 1.584 3)
A inovao da definio do lugar do psiclogo judicial presente no ECA e a nova
demanda que a se criou, juntamente com o fortalecimento da rede de proteo da criana e do
adolescente por meio dos Conselhos Tutelares e da maior participao do Ministrio Pblico,
suscitaram questes referentes ao exerccio da funo pericial exigida anteriormente.
Tanto a Resoluo do CFP citada quanto a redao do ECA e a modificao legal dos
artigos 1.583 e 1584 do Cdigo Civil favorecem a colocao do psiclogo na situao de umaencruzilhada, como afirmam Ramos e Shine (1994) e com a qual concorda Denise Silva
(2003), entre a tica do cuidado (ideal teraputico) e a lgica da Justia (produo da
verdade). Sua funo oscila entre limitar-se tarefa de avaliar o indivduo e a famlia ou
intervir no conflito familiar e, assim, transcender o dualismo certo/errado, ganhador/perdedor,
inocente/culpado esperado pelo Judicirio.
A partir dessas questes, os psiclogos passaram a discutir a chamada psicologia
jurdica no campo da famlia, da criana e do adolescente para tentar definir sua sustentao
terica, sua funo social e suas principais prticas. Hoje, h literatura ampla sobre o tema,
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porm ainda pouco convergente. Como comum ao campo cientfico brasileiro, muitas
prticas e teorizaes ainda so locais, no divulgadas para um frum de debates.
Os autores os tericos e os profissionais implicados no campo do direito de famlia se
dividem em, basicamente, trs posies a respeito dos pontos citados acima.
Um primeiro grupo defende que a prtica do psiclogo junto s Varas de Famlia tem
carter pericial, no mantendo uma distncia muito grande em relao percia propriamente
dita. Nesse grupo se inserem mais explicitamente os psiclogos que utilizam testes para a
avaliao psicolgica. Um segundo grupo, em geral influenciado pela psicanlise, defende
que o trabalho do psiclogo no pericial, devendo se pautar pela escuta da singularidade e
pela interveno na dinmica familiar. Nesse grupo tambm podem ser includos os
psiclogos com formao em teoria sistmica, presentes tambm na literatura que defende ainterveno no conflito. O terceiro grupo oscila entre os dois primeiros. Os autores defendem
a prtica em seu carter pericial, mas procuram delimit-la em funo de peculiaridades do
campo e do exerccio da psicologia, em um esforo para indicar as particularidades da percia
psicolgica. Em tal grupo podem se encontrar autores de perspectivas e orientaes diversas,
sejam de cunho estritamente clnico-psicolgico, seja de cunho social.
A questo de pesquisa
Os posicionamentos dos autores relativos bibliografia pesquisada no texto citado se
distinguem em relao direta com as diferenas de compreenso sobre o objeto, o objetivo, o
foco de ateno do trabalho e a prpria organizao da instituio.
Avaliar (investigar) e intervir continuam a ser nomes dos polos de oscilao do
trabalho. A questo em quais lugares epistemolgicos se assentam essas duas possibilidades.
Nossa posio situa-se no segundo grupo e a questo central nesta pesquisa ,portanto, verificar a possibilidade de trabalho do psicanalista em uma instituio jurdica no
trato com as questes do direito de famlia na interface entre a demanda institucional e a tica
que orienta a prxis do psicanalista.
A pergunta que inicia a discusso baseando-se no posicionamento citado : pode-se
afirmar que o psicanalista nesse lugar institucional no executa uma percia?
Se a resposta for a de que o psicanalista executa uma percia, ser preciso questionar o
uso da psicanlise para a produo de um saber normatizante em meio ao biopoder, quer
dizer, em meio s tcnicas de controle dos corpos e das subjetividades, das quais a psicologia
faz parte no entendimento de Foucault (2005). Roudinesco (2003, p. 87) tambm aponta a
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utilizao da psicanlise nessa mesma vertente pelas mais diversas correntes poltico-
ideolgicas durante o sculo XX, entre elas a dos prprios psicanalistas que enxergaram no
complexo de dipo um modelo psicolgico capaz de restaurar uma ordem familiar
normalizante na qual as figuras do pai e da me seriam determinadas pelo primado da
diferena sexual. Assim, cada filho era chamado a se tornar o rival de seu pai, cada filha a
concorrente de sua me. Para ela, quando a psicanlise se encerra nessa leitura do complexo,
arrisca-se a se transformar em um procedimento de percia que merece a hostilidade a ele
reservada (p. 90).
Portanto, quando, nas primeiras dcadas do sculo XX, a famlia torna-se objeto de
poltica de controle centrada na preveno das anomalias sociais e psquicas a fim de garantir
o desenvolvimento de seus membros, a psicanlise comps o projeto profiltico juntamentecom a pedagogia, a medicina (em especial a psiquiatria) e a psicologia. Donzelot (1980)
chamou os trabalhadores especializados neste campo de tcnicos da relao. J nas dcadas
de 60 e 70 surge uma terminologia tcnica, relacionada noo de parentalidade, de origem
anglfona, a partir da qual se avaliava a qualidade de ser pai e ser me, a faculdade de exercer
bem tal funo. Para Roudinesco (2003), tal terminologia indica o fim da configurao
romanesca e mtica que alimentara o discurso sobre as relaes entre os homens e as
mulheres, entre os sexos e os gneros, entre o destino e o sujeito durante muitos sculos,produzindo um universo funcionalista de onde fora evacuado todo o sentido do trgico (p.
157).
Sabe-se que, no rigor de sua proposta, a psicanlise confronta as idealizaes e as
psicologizaes do indivduo moderno. Contra toda forma de conhecimento que chamado de
cincias humanas, Jacques Lacan ope sua noo do sujeito representado no liame entre os
significantes, cujo carter material e contingencial no pode ser desprezado. Entretanto,
sabemos tambm que qualquer teoria, inclusive a psicanlise, pode servir para explicar ejustificar formas de controle e de exerccio do saber-poder.
Por outro lado, retornando questo que inicia nossa discusso, se a resposta for a de
que o psicanalista no executa uma percia, devemos nos perguntar ento o que ele faz, pois
ao final de seu trabalho, que em geral tem um tempo delimitado, emite um laudo como
qualquer outro psiclogo no mesmo lugar, submetido ao mesmo discurso, e, assim, fornece ao
juiz um saber escrito que, como documento com valor de prova, compor os processos
judiciais, influenciando as atitudes posteriores dos envolvidos no conflito e, talvez tambm, a
deciso judicial a ser tomada.
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O judicirio palco de histrias e cenas familiares. Ali, o sofrimento que,
psicanaliticamente, advm do mal-estar inerente cultura, encontra uma forma particular de
se expressar e de demandar alvio. Mas no um palco passivo, pois, na verdade, fornece uma
linguagem, um discurso, que tambm ajuda a constituir essa famlia. Porm, para o
psicanalista que recebe uma famlia a ser escutada (avaliada?), a dimenso do trabalho
poderia se reduzir s idiossincrasias desse discurso articulado pela norma? Como considerar o
registro do conflito, do pulsional, do eu que no senhor de si, no seio da normatividade
engendrada pelo biopoder?
Os principais textos existentes sobre o assunto utilizam conceitos como o de
entrevistas preliminares e retificao subjetiva para nomear as possibilidades de interveno
no conflito familiar. Mas como entender a retificao subjetiva sem fazer referncia transferncia? Qual a possibilidade de manejo da transferncia em um trabalho institucional?
A demanda do sujeito que fala dirigida a quem? Seria possvel desloc-la para uma posio
de questionamento acerca do desejo?
Considerando essas questes, o desafio a que nos propomos neste texto verificar a
possibilidade de adjetivar como psicanaltica uma prtica vinculada ao exerccio da escuta no
mbito dos processos judiciais em direito de famlia.
Para buscar uma resposta a tal desafio, fundamento-me em minha insero comopsiclogo judicial no Tribunal de Justia de Minas Gerais, Frum Lafayette em Belo
Horizonte, desde 1994, trabalhando com processos judiciais em direito de famlia.
O ponto central de trabalho so as questes de famlia que, inseridas no discurso
jurdico, esto a demandar uma deciso ou uma legitimao. Tais questes se transformam em
processos judiciais que so tomados como casos. Para realizar a interface entre os dois
campos, direito e psicanlise no mbito da famlia, utilizamos a noo de cenada forma como
esboado no percurso abaixo:O captulo 1, A Cena Jurdica, introduz o leitor no mundo jurdico por meio de um
percurso sucinto pelas idias de norma e regra, presentes em todas as sociedades e apropriadas
na nossa por um corpo de conhecimentos especfico que o direito. Indicam-se as concepes
sobre o direito na modernidade e contextualiza-se a famlia no mbito do direito positivado -
das leis escritas e legitimadas socialmente - para permitir compreender no que se constitui um
processo judicial em direito de famlia. Expe-se tambm o trabalho do psiclogo nas Varas
de Famlia em Belo Horizonte em seus procedimentos bsicos. Por fim, prope-se uma leitura
do processo judicial como cena social, como montagem discursiva que organiza os fatos e os
valora com fins de obter a soluo de um conflito e a manuteno da ordem social.
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O captulo 2,A Cena Psicanaltica, se prope a articular teoricamente a noo da outra
cena, a cena do inconsciente, constatada pela psicanlise em sua prtica e teorizada com base
em conceitos como complexo de dipo e fantasia. Nesse captulo, trata-se tambm da cena
psicanaltica e a famliapara propor uma leitura das relaes familiares luz da noo de
cena inconsciente. esta a cena familiar que se abre ao psicanalista quando ele se coloca
escuta dos sujeitos que compem a famlia.
por esse caminho que podemos propor novas maneiras de compreender a cena
familiar em sua relao com a norma e com o desejo. As chamadas novas configuraes
familiares demandam essa reflexo. Hoje, como exemplo dessas novas configuraes
familiares, alm das famlias chamadas reconstitudas, cujos laos e alianas se expandem em
direes diversas, h famlias chamadas homoparentais, cuja emergncia traz em seu bojoquestes sobre, por exemplo, a identificao e a filiao. Encontramos tambm as famlias
construdas sobre relaes diretas com a cincia, nas fecundaes in vitro, no esperma
congelado e colocado em testamento ou nos vulos cedidos de uma mulher para serem
fecundados por um homem e colocados em outra mulher para que, no nascimento, a criana
seja entregue a uma terceira pessoa que o encomendou; esta ltima, juridicamente, a me da
criana. Roudinesco (2003) d vrios exemplos em seu texto.
No captulo 3, O Psicanalista no Tribunal de Famlia, explicitam-se as questescrticas sobre a posio pericial do psiclogo na rea de famlia tendo por base Foucault e
Lacan e se propem as bases metodolgicas para o trabalho com os casos no mbito jurdico a
partir da posio do psicanalista na escuta e no manejo da transferncia em meio s cenas que
se superpem. Isso significa abordar a questo da chamada psicanlise aplicada e
compreender que, se no est simplesmente no uso da teoria a diferena do trabalho do
psicanalista com o trabalho pericial, ela s pode ser localizada na posio do psicanalista
frente ao sujeito que fala. Esta assero encontra-se embasada nas proposies de Lacanacerca da estrutura da experincia analtica e o ponto desenvolvido tambm neste captulo.
Tais bases fundamentam tambm a leitura terica dos casos.
O captulo 4 apresenta a exposio dos casos escolhidos para este trabalho. Como o
interesse central o de verificar a possibilidade de sistematizar a prtica do psicanalista na
instituio jurdica, os casos foram escolhidos por representarem conflitos familiares que
indicavam a necessidade de interveno. Em cada um deles, se discutem as possibilidades e
os impasses da interveno no mbito jurdico.
No captulo 5 retomamos o percurso feito e retiramos dele as concluses possveis,
tanto com relao s possibilidades do trabalho quanto com relao aos impasses desta
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experincia. Nesse captulo tambm procuramos indicar outros pontos que merecem novas
pesquisas.
Empreender este trabalho importante para se colherem desta interface, alm de uma
resposta possvel sobre a prtica do psicanalista na instituio jurdica, questes que
movimentem ambos os campos, problematizando conceitos e aplicaes conceituais que no
respondem mais realidade atual. Acreditamos que enfrentar tal desafio andar no fio da
navalha da interface, j que ela exige muito do pesquisador. Porm, tambm indica a
possibilidade de bons frutos.
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Captulo 1
A cena jurdica
As instituies judicirias e o discurso jurdico sero tomados aqui como parte do
cenrio social que auxilia a sustentar o lao que mantm a sociedade humana. Nesse sentido,
elas se constituem como cena, como ritualizao de aspectos fundamentais da realidade
humana que sustentam a convivncia em sociedade. Sociedade esta que no existe sem o
intercmbio e sem a regra para o intercmbio.
Para isso, empreendemos um percurso sobre o discurso jurdico e a formalizao da
realidade que ele promove ao solucionar conflitos e indicar um dever-ser. A cincia que
sustenta tal discurso em nossa cultura o Direito e nela fomos buscar as fontes para
compreender o formato judicial de resoluo dos conflitos de famlia judicialmente. Temos a
clara noo de que o fizemos de forma esquemtica, cotejando textos importantes e
recortando o corpo de conhecimentos jurdicos grosseiramente. Porm, no h meio de
contextualizar a famlia no mbito jurdico sem nos arriscarmos dessa forma. Ademais, talvez
o texto possa incitar a curiosidade do leitor para aprofundar-se em questes especficas.
Para aqueles que no so operadores do direito, o percurso sobre a formalizao do
conflito no mbito jurdico pode ser penoso devido ao vocabulrio especfico e lgica
prprias que movimentam este discurso. Contudo, um percurso necessrio para que
possamos compreender a famlia no Tribunal e a proposta sobre a atuao do psicanalista
convocado por esse discurso. Alm do mais, este percurso demonstra o esforo de rigor e
racionalidade dos representantes deste discurso que, apesar disto, no consegue capturar
plenamente o movimento da vida em suas determinaes. Na verdade, a vida cria outra
situao nova aps cada nova norma. O constante fracasso da racionalidade, depois de cada
sucesso, talvez o fundamento daquilo que apaixonante no discurso jurdico e que sustentao debate poltico inerente a este discurso.
1.1 - A lei, demasiado humana
No h grupo humano que no possua regras. Isto um fato. Para muitos filsofos,
juristas, psiclogos e psicanalistas justamente a enunciao de regras que nos faz distintos
dos grupos de outros animais. Alguns animais possuem um nvel de organizao curioso emseus grupos, mas nenhum deles, pelo que se sabe at hoje, criou as regras que segue, ou
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modificou-as a partir de uma atividade mental ou um ato de vontade. Alm disso, nenhum
deles possui uma forma de transmisso da regra pela linguagem.
Pensar a origem do direito cogitar sobre as regras que ordenam a convivncia desde
tempos dos quais possumos apenas resqucios de um quebra-cabea no qual faltam muitas
peas.
Para muitos autores, desde que o grupo humano estabeleceu normas de convivncia
pelo costume, pela autoridade ou pela escrita, surgiram os rudimentos do que hoje nossa
sociedade nomeia como direito3. Regras de aliana com grupos rivais ou inimigos, regras de
convivncia entre os pertencentes ao mesmo agrupamento, regras de parentesco e matrimnio
(que tambm servem para a aliana com outros grupos), regras sobre domnio e posse, regras
para diferenciar crianas de adultos, regras sobre as trocas sociais e o comrcio, sobre aherana, o uso do trabalho alheio, regras sobre os crimes e as punies... uma extensa lista.
Quanto mais se tornava complexa a sociedade humana, mais regras foram necessrias
e mais claras elas precisavam ser. Com isso, tornou-se necessrio, em organizaes sociais
como a nossa, a criao de normas sobre como se fazem as normas - a legitimidade do ato de
legislar - e tambm sobre como se julgam as transgresses e os conflitos - a legitimidade do
ato de julgar.
O fato que a necessidade de possuir regras bem estabelecidas, que permitissem astrocas serem realizadas nos grupos humanos e tambm os julgamentos, encontra-se, hoje,
descoberta em diversas fontes histricas. Exemplos conhecidos so o Cdigo de Lipit-Istar,
vigente na Sumria em 1900 a.C.; o Cdigo de Bilalama, da Babilnia de 1970a.C.; o Cdigo
de Ur-Namu, de 2.050 a.C.; e um outro, da sociedade babilnica, mais conhecido, o clebre
Cdigo de Hamurabi, de cerca de 1.750 a.C.4. Isso para no falar de outras leis constituintes
do discurso judaico-cristo: os Dez Mandamentos, a Lei de Talio, etc.
Mesmo em sociedades tribais, as normas que regem o grupo so fundamentais. Trsestudos clssicos muito conhecidos podem ser citados para demonstrar isso: Malinowski
(2003), que estudou a submisso lei e ordem para as sociedades selvagens; Mauss
(2003), com o Ensaio sobre a ddiva, no qual estuda a regra que, nas sociedades arcaicas,
obriga a troca de presentes, a circulao das coisas entre as pessoas 5 e, por fim, Lvi-Strauss,
com seu texto Estruturas Elementares do Parentesco (1982), no qual prope a formao das
alianas em sua relao com o tabu do incesto.
3
Ubi societas, ibi jus no h sociedade sem direito nem direito sem sociedade.4Cf. compilao feita por Nascimento (2004).
5 O autor afirma que visava a atingir, de certo modo arqueolgico, concluses acerca da natureza dastransaes humanas, antes da instituio dos mercadores e da inveno da moeda.
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tambm digno de registro que as leis, as normas, estiveram ligadas, desde cedo, a
fatores msticos e religiosos. Conceder autoridade a algum investia o lder de uma aura
divina e, em algumas sociedades, tal investidura foi fundamental para a unio em torno de sua
imagem, em torno do exerccio do poder. Ademais, conforme Mauss (2003), o ritual religioso,
como o prprio nome diz, um acontecimento carregado de regras que visa, muitas vezes, ao
cumprimento de uma outra regra de troca entre os homens e as divindades.
A norma em seu sentido amplo regula as aes e as condutas, diminui o poder de
todos em benefcio, teoricamente, tambm de todos. Porm, preciso que alguns sejam
investidos de maior poder para exercer as funes de governar, orientar, administrar, julgar.
As razes da escolha do lder sempre variaram muito: idade, inteligncia, descendncia, fora
fsica, etc. So muitas as histrias e seus desfechos; entretanto, em todas elas esteve presente anoo de realizao da justia. As leis no tm eficcia duradoura se no permitem manter a
idia de justia.
E a justia, a realizao de um justo, de uma medida, necessria mesmo
considerando o conflito entre a lei rigorosa e o uso legalizado, entre o desvio tolervel - pois a
lei no espera que todos vivamos de acordo com as normas ideais - e o desvio que gera a
reao da sociedade ou de uma instituio, como afirma Bohannan (1966); ou entre aquilo
que pode ser transgredido sem se tornar pblico e a necessidade de punir o que se torna dedomnio pblico, como destaca Malinowski (1926/2003). Em torno da realizao da justia se
criou, na sociedade ocidental, a cincia do Direito.
A palavra direito formou-se da juno latina entre dis (muito, intenso) e rectum
(reto, justo), donde disrectume, depois, directum, que significa, ento, muito reto e muito
justo. Curiosamente, directum do latim popular e tambm se relaciona ao verbo dirigere
(dirigir, ordenar, endireitar), donde se deduz o sentido do que, sendo reto, segue uma s
direo, ou seja, tudo que conforme a razo, a justia e a equidade. No latim clssico,utilizava-se a palavra ius (ou jus), provavelmente originada do snscrito is, relativa ao
recinto sagrado onde se ministrava a justia. O jusromano enfatizava a idia de proteo e
salvao, idia que faz do direito uma faculdade e no uma norma obrigatria6.
Nosso direito pertence linhagem jurdica romano-germnica, ou seja, o direito
romano - Direito de Roma, que no separava o direito em ramos diferenciados - mesclado s
contribuies dos povos brbaros que dominaram as regies do Imprio Romano na poca de
6 O que segue sobre a histria do Direito tem por base: NASCIMENTO, W. op.cit.; BITTAR, E.C.B. eALMEIDA, G.A. Curso de Filosofia do Direito- 4ed. So Paulo: Atlas, 2005; FIZA, C. Direito Civil: cursocompleto - 9 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; FERRAZ Jr., T.S . A cincia do direito - 2 ed. So Paulo:Atlas, 1980; SILVA, De Plcido. Vocabulrio Jurdico- 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
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sua decadncia. No perodo feudal, a Alta Idade Mdia, o Direito no se encontrava
sistematizado; predominavam o Direito Cannico para as questes internas da Igreja,
instituio que se firmou e se unificou naquele perodo, e os costumes locais para dirimir os
conflitos em geral. Foi um perodo caracterizado tambm por uma tradio oral no Direito,
pois ainda no havia o direito escrito, e pelas ordlias, termo que designa as provas por meio
das quais os indivduos solucionavam conflitos e produziam a verdade da justia. Alguns
exemplos so os duelos e jogos divinos, os juramentos, a prova pelo fogo, a prova de bebidas
amargas, a prova da gua fria, etc.
Na Baixa Idade Mdia dominaram os glosadores, juristas que tomaram por base os
textos do Imperador Justiniano e deram-lhe um tratamento metdico, desenvolvendo uma
tcnica especial de abordagem de textos pr-fabricados e aceitos por sua autoridade. Dessaconfrontao entre o texto estabelecido e o seu tratamento explicativo nasceu a dogmtica
jurdica. O texto era a prpria encarnao da razo e o trabalho dos juristas era o de
harmonizao na elaborao de uma concordncia, alguns mtodos, dos quais o mais simples
era a subordinao (hierrquica) de autoridades. Da o carter exegtico de seus propsitos.
O direito que nos interessa o direito nascido no sculo XVI, quando o pensamento
jurdico dos glosadores comeou a sofrer crticas, sobretudo acerca da falta de
sistematicidade. Naquele perodo a sociedade ocidental estava s voltas com a consolidaodas naes e com o problema da submisso dos povos a um soberano e, depois, a um Estado,
o Estado Nacional Absolutista. Outros acontecimentos compuseram o mesmo perodo e foram
marcantes para o movimento em direo modernidade. De forma resumida, tal poca foi
marcada por certa pacificao na Europa, pelo surgimento do mercado, da indstria, do
comrcio ampliado, dos bancos e da circulao monetria, das grandes navegaes, da
urbanizao, da criao das universidades e das Escolas de Direito, pelo Renascimento e o
estudo dos clssicos e pela nfase na racionalidade, com o incremento da atividade cientfica. a partir da, com as leis escritas, que vai se instituir com mais clareza a diferena entre o
direito subjetivo o fato de algum considerar que tem um direito, a faculdade de exigir
proteo de um interesse em nome de uma lei, ou seja, o jus romano citado antes,
compreendido como a fruio e o gozo do que nos pertence ou do que nos foi dado e o
direito objetivo a soma de preceitos, regras e leis, com as respectivas sanes, que regem as
relaes entre os homens em sociedade, promovem o reconhecimento deste direito pelos
outros homens e cuja caracterstica dominante a coao social. Todo direito de algum
implica a obrigao de outrem em respeit-lo e encontra respaldo para isto na proteo social
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e na coao social. Implica tambm um titular do direito, chamado sujeito do direito, e um
objeto do direito, no qual incide sua fruio ou gozo a partir de uma relao jurdica.
Com a secularizao do direito e a consolidao do Estado, a atividade legislativa se
intensificou e a Justia se tornou mais centralizada com a criao dos tribunais. Os juzes se
profissionalizaram e o direito se tornou mais patrimonialista, individualista e racional. Os
sistemas de prova das ordlias, baseado em duelos e jogos divinos, foram substitudos por
outros baseados em meios racionais de prova.
Vamos destacar trs roupagens que o pensamento jurdico assumiu na sua proposta
de se apresentar como cincia a partir da: o Jusnaturalismo, a Escola Histrica e o
Positivismo.
Do Jusnaturalismo podemos tambm destacar trs verses fundamentais que renemas diversas concepes sobre o direito natural: a lei ditada por uma vontade divina; a lei
conatural aos seres animados, guisa de instinto; e a lei ditada pela razo, ou seja, a idia de
que o Direito um conjunto de princpios bsicos cuja fonte a natureza humana, sendo que
as caractersticas de tal natureza podem ser descobertas por meio da observao racional.
Nesse sentido, o direito um conjunto de normas logicamente anteriores e eticamente
superiores s do Estado. Hoje, as idias fundadoras desses direitos se encontram, por
exemplo, na defesa de direitos individuais como os de vida, liberdade, dignidade e dosdireitos patrimoniais que asseguram a existncia do homem.
A maior contribuio do jusnaturalismo moderno ao direito privado foi o conceito de
sistema. A partir da sistematizao das normas, que pressupe a correo e a perfeio formal
de uma deduo, a jurisprudncia passou a possuir o carter lgico-demonstrativo de um
sistema fechado. A reduo das proposies a relaes lgicas um pressuposto da
formulao de leis naturais, universalmente vlidas, com as quais toda a cincia da poca se
via implicada a partir do projeto da descoberta dos elementos simples e de sua composioprogressiva - o que indica o projeto de uma ordenao exaustiva. De acordo com Foucault 7
(apud FERRAZ JR. 1980, p. 25), tal projeto se associa a um mtodo de estabelecimento de
identidades e diferenas por aproximaes sucessivas. Tal reduo aplicada ao direito
conferiu a este uma dignidade metodolgica especial.
Com o Jusnaturalismo moderno, a cincia do Direito rompe com o procedimento
dogmtico fundado na autoridade, mas no com o carterdogmtico, que na verdade tentou
aperfeioar dando-lhe a qualidade de sistemaconstrudo em nome da razo. Sistema no s
7Foucault, M.Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.
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conforme o rigor lgico da deduo, mas instrumento de crtica da realidade do direito posto
em nome de padres ticos contidos nos princpios reconhecidos pela razo.
Tal sistema ganha a qualidade da contingncia com a Escola Histrica. Os
representantes dessa escola questionavam a crena ilimitada na razo humana presente entre
os jusnaturalistas. Para eles, era preciso compreender a cincia jurdica como cincia
histrica, donde a dogmtica jurdica como histria do direito, que tem sua essncia dada pela
Histria8. Dessa escola originou-se o pandectismo, movimento que de dedicou pesquisa dos
Pandectas ou Digestodo Imperador Justiniano, compilador dos textos romanos. Na Frana
destacou-se a Escola da Exegese, que se constituiu por meio da discusso do Cdigo de
Napoleo de 1.804 advogando a codificao das normas - emanadas do povo - sem deixar
espao ao direito natural. Na Inglaterra destacou-se a Escola Analtica, que tambm advogavaa codificao das leis emanadas do soberano.
Acrescente-se a esses movimentos a jurisprudncia dos interesses, que defende uma
perspectiva sociolgica e elege o interesse como mola propulsora do direito. Isso significa
enfatizar o carter concreto da aplicao da norma ao caso especfico, em contraposio
qualidade lgico-abstrata que caracterizava a nova concepo sobre direito que tomava fora -
o Positivismo - que, nascido do prprio Jusnaturalismo em sua perspectiva mais radical,
passou a confront-lo e contradiz-lo.O positivismo jurdico foi uma reao contra o jusnaturalismo, do qual manteve
apenas o conceito de sistema. Resumidamente, pode-se dizer que o movimento de codificao
do direito, poca coincidente com o apogeu do positivismo, teve como principal objetivo
organizar o caos do direito no escrito (natural e consuetudinrio) e oferecer ao Estado um
instrumento de controle da vida em sociedade, fundamentalmente visando segurana da
sociedade burguesa.
A denominao positivismo no unvoca. Designa um movimento amplo quecongrega autores divergentes, inclusive. De qualquer modo, podemos sintetizar a concepo
que sustenta o positivismo: o reconhecimento da impossibilidade de atingir as causas
imanentes e criadoras dos fenmenos, o que leva, ento, a aceitar os fatos e suas relaes
recprocas como nico objeto possvel da investigao cientfica. Nesse sentido, o positivismo
jurdico procura se restringir compreenso da norma e do sistema jurdico no qual ela est
inserida. Seguindo a trilha aberta por Comte, o positivismo jurdico pretendeu negar toda a
metafsica e teleologia da liberdade e da vontade, dando preferncia s explicaes causais e
8Ferraz Jr. (1980) comenta que a Histria defendida por esta escola acabou se tornando mais uma estilizaosistemtica da tradio pela seleo abstrata das fontes histricas. (p. 29).
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ao determinismo. Ele afastou tambm as referncias sociologia, histria e antropologia
visando a fornecer uma melhor compreenso lgico-sistemtica do direito. Da que o que no
pode ser provado racionalmente no pode ser conhecido.
Nessa perspectiva, o sistema normativo constitui uma totalidade formal que tende a
fechar-se sobre si mesma, na qual as lacunas aparentes devem sofrer correo, no ato
interpretativo, pela reduo de determinado caso lei superior na hierarquia lgica.
Como sistema textual, o direito, assim, refere-se ao que foi validado e se encontra
registrado nas leis escritas, podendo ser alterado de acordo com procedimentos especficos.
Conforme Bobbio (2000), para o positivismo, numa perspectiva radical, s h o direito
estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referncia a valores ticos. O
maior expoente dessa tendncia foi Hans Kelsen9.Esses trs eixos, ou roupagens do Direito, como diz Ferraz Jr. (1980), no esgotam a
riqueza histrica e filosfica desta cincia. As tendncias atuais e os debates em torno das
posies filosficas e polticas podem ser acompanhados nos livros que serviram de
referncia no percurso empreendido at aqui.
Interessa agora contextualizar a famlia, no sem antes registrar algumas linhas sobre o
direito civil no Brasil.
No Brasil, o direito se organizou a partir das Ordenaes Filipinas de Portugal, um
cdigo datado do sculo XV (aproximadamente 1.603) que representou poca uma reao
contra o direito cannico. No sculo XIX, Portugal organizou seu Cdigo Civil, mas o Brasil
manteve intacta a parte relativa ao Direito Civil das Ordenaes. Somente no final desse
mesmo sculo, empreendeu-se no Brasil a tarefa de compilar um Cdigo Civil, cujo expoente
maior foi Clvis Bevilqua. H quem entenda, como Orlando Gomes (2003) e Leite10(apud
Fachin, 1999), que o Cdigo Civil de 1916, elaborado num perodo de transio, temcaractersticas monarquistas, escravagistas, paternalistas e reflete a diviso da sociedade
brasileira entre a elite e os pobres ainda no proletarizados. Sua elaborao foi realizada por
uma classe mdia composta por burocratas e militares subservientes elite agrria e
aristocrtica, portanto com um cunho bastante conservador. Isso se percebe pela nfase na
livre iniciativa e a falta de inovaes de fundo social. Gomes (2003) acrescenta que os
interesses da elite agrria eram coincidentes com os da burguesia emergente, porm no se
9Voltaremos a citar este autor nos captulos seguintes devido s articulaes que outros pesquisadores propementre algumas de suas teses e a teoria psicanaltica. Cf. KELSEN, H. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre:Fabris, 1986.10LEITE, E.O. Tratado de Direito de Famlia: origem e evoluo do casamento. Curitiba: Juru, 1993.
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toleravam certas ousadias. O mesmo autor afirma que o Cdigo reflete tambm um
privatismo domstico, denunciado na preponderncia do crculo da famlia despoticamente
patriarcal, mesmo que contenha elementos de tolerncia e afetividade. O prprio Bevilqua
afirmara que o direito brasileiro era um direito afetivo, pois continha predisposies
inspiradas em causas sentimentais.
No ano de 2002 entrou em vigor o novo Cdigo Civil e ele ser a referncia ao
abordar a famlia no que vem a seguir.
1.2 - A Famlia na Cena Jurdica
1.2.1 - A Famlia
Etimologicamente, a palavra famlia provm do latim famulus, que significava o
conjunto de empregados de um senhor na Roma Antiga. Porm, sob esse significante,
famlia, pode-se descrever um extenso leque de formas de organizao social, modos de
relao e ideais de realizao pessoal que se encontram registrados ao longo de toda a histria
humana.
Linton (2000) oferece uma definio interessante, pelo seu carter universal: unidadescooperativas intimamente entrelaadas e internamente organizadas que ocupam lugar
intermedirio entre o indivduo e a sociedade total de que ele faz parte. Para o mesmo autor,
h tambm a expectativa de que essa unidade seja o centro principal dos interesses e da
lealdade daqueles que a ela pertencem e que tm obrigao de cooperar entre si, auxiliar-se
mutuamente e colocar os interesses de seus membros acima de interesses estranhos. Alm
disso, ele cita que esperado que a interao das personalidades dentro da famlia seja ntima
e contnua, por meio de laos de afeio e de interesse.Nessa definio no aparece a questo das alianas matrimoniais e de filiao,
secundrias imagem protpica de adultos dividindo tarefas, gerando crianas e cuidando
delas. secundrio justamente porque h uma enorme variedade de formas de organizao e
de modos de relao pessoal que regulam as alianas matrimoniais, a filiao, a autoridade
parental e os papis sexuais. Os exemplos colhidos por inmeros pesquisadores do conta da
diversidade quase pitoresca das muitas possibilidades de se organizar para acasalar, cuidar de
crianas e transmitir a herana.
Para considerar esses registros em uma mnima universalidade, pode-se compreender
famlia como um grupo humano unido por laos de parentesco e/ou alianas sexuais que
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convive e se auxilia mutuamente para a satisfao das necessidades bsicas de sobrevivncia.
Tal definio extremamente restrita para o que se conhece e se nomeia hoje como famlia,
mas uma tentativa de produzir uma imagem que rena toda a diversidade que os
pesquisadores j encontraram sob a forma de famlia. Essa imagem, a de adultos convivendo
com crianas ou adolescentes sob certas regras, prototpica de qualquer grupo organizado.
Toda criana advm de uma cpula11e, com raras excees antropolgicas, para sobreviver
deve ser cuidada durante algum tempo por um adulto. Ao ser cuidada por um adulto, essa
criana inserida em um universo simblico de regras, lugares, alianas, deveres, obrigaes
e direitos no qual, em geral, permanecer e se reproduzir no acasalamento.
No cabe, no escopo deste texto, uma histria das formaes familiares e de sua
variedade, histria que acompanha as transformaes dos modelos de organizao social. Hliteratura extensa sobre o tema12. Interessa-nos compreender que a famlia com que lidamos
hoje, mesmo no possuindo uma definio nem um formato nicos, possui certa configurao
que, mesmo em transformao, permite aproximaes didticas.
Para considerarmos coerentemente a famlia no interesse deste trabalho, destacaremos
dois temas relevantes para compreend-la: as alianas (casamento e parentesco) e a criao
dos filhos, temas que repercutem diretamente no provimento da sobrevivncia e na regulao
da sexualidade. A partir da, focalizaremos a forma conhecida como famlia nuclear, cujomodelo o dos pais biolgicos convivendo com os filhos em um ambiente particularizado.
A denominada famlia nuclear surgiu no sculo XIX a partir de formas variadas e de
sistemas de parentesco mais amplos, de acordo com as regies, as tradies, os meios sociais
e culturais. A Revoluo Industrial e a urbanizao j haviam interferido na organizao e no
funcionamento das famlias europeias, estabelecendo inclusive diferenas importantes entre a
populao rural e a urbana e entre as classes sociais. Para alguns, os filhos eram numerosos e
se transformavam rapidamente em mo-de-obra na luta pela sobrevivncia. Para outros, osfilhos eram criaturas a serem investidas de proteo para a formao de herdeiros.
Aos poucos, com a interferncia crescente do discurso mdico e do Estado, as regras
de aliana, as prticas sexuais e o cuidado com as crianas tenderam a se homogeneizar, pelo
menos discursivamente. Por isso, a famlia nuclear passa a ser louvada como clula social,
tanto por libertrios quanto por conservadores, e tendeu a absorver todas as funes da
11 importante lembrar, desde j, que hoje a cincia j permite no haver cpula.12
Para citar algumas, mais conhecidas: ENGELS, F. A origem da famlia, da propriedade privada e do
Estado. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1982. LVI-STRAUSS, C. A famlia. Porto Alegre, VilllaMartha, 1980; POSTER, M. Teoria crtica da famlia. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; BADINTER,E. Um amorconquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; LINTON, R.op.cit.
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regulao social. Centro de uma moralidade natural e princpio do Estado, ainda hoje a
famlia oscila entre exigir a submisso de seus membros s determinaes familiares e inseri-
los em uma organizao social que passa a ter o desempenho individual como medida.
Foi justamente o fortalecimento da noo de indivduo autnomo que instituiu, a partir
da revoluo industrial e da organizao social liberal e democrtica, o statuscomo fruto de
uma competio regulada por normas universais e padronizadas, o que fez da famlia na
sociedade ocidental uma instituio de formao do futuro indivduo por meio da disciplina
uma instituio com funo distinta daquela em vigor na poca da patronagem e da herana
caractersticas da sociedade aristocrtica. Conforme Casey (1992), a criana e o adolescente
passam ento a ser preparados para a competio social por meio do conhecimento e da
autorregulao, formao na qual passa a ter papel crescente a escolarizao incentivada peloIluminismo. Isso justificou, ento, a interveno cada vez maior do Estado no seio da famlia
fundamentalmente a famlia pobre: a criana passa a ser o capital mais precioso do Estado.
Nesse percurso, a famlia se torna o grupo autnomo e ntimo, a clula social, mas
passa a ser constituda por indivduos e no membros, como destaca Perrot (1999). Espaos
privados, valorizao das diferenas individuais e demanda por tratamento igualitrio, no
sentido de direitos e deveres, crescem paulatinamente. Da que, progressivamente, os
indivduos recorram Justia contra as determinaes familiares. Da tambm que tendam adesaparecer progressivamente as leis que concediam privilgios de herana ou autoridade aos
primognitos.
Pode-se destacar a um movimento paradoxal: a famlia fecha-se sobre si mesma na
intimidade ao mesmo tempo em que aceita a regulao da sexualidade pelo discurso mdico e
busca a legitimao do Estado tanto para sua constituio quanto para o reconhecimento de
direitos individuais no prprio seio da famlia.
Um processo histrico semelhante ocorre no Brasil do sculo XIX: a famlia volta-sesobre si mesma num processo de interiorizao (intimidade), e a rua passa a ser vista como
lugar perigoso ou indevido, viso que acompanha a crescente urbanizao brasileira. De
acordo com Costa (1989), tal processo sofreu um forte incremento com a absoro do
discurso mdico-higinico pelo Estado e a sua aplicao populao. Este tipo de discurso foi
muito poderoso no Brasil em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, sendo caracterizado
por uma tentativa de normatizar o comportamento dos indivduos segundo concepes
mdicas sobre a higiene corporal e mental. O cuidado com os filhos e a nfase na sua
educao passam a ser sinais de afeto, de amor.
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O modelo idealizado de famlia hoje , em geral, o de um grupo que conta com a
presena de adultos, genitores da criana, dividindo as tarefas polticas e econmicas de
manuteno de uma unidade chamada lar e cuidando de seus filhos com afeto, o que implica o
amparo material e moral, alm de permitir-lhes certa autonomia e o desfrute de bens de
consumo. Os filhos, nesse modelo, seguiriam as determinaes parentais e procurariam se
inserir socialmente pela via da educao e do trabalho, mantendo o vnculo de afeto com seus
pais e prestando-lhes auxlio na velhice. Evidentemente, apenas um modelo. A realidade
muito distinta, pois os fatos no se encaixam na imagem.
Tanto a concepo de famlia modificou-se com o tempo quanto a concepo dos
papis e funes de cada um de seus membros em relao aos aspectos econmicos,
religiosos, sexuais, afetivos, sociais. Apesar de refletir um modelo idealizado, a legislaotende a se modificar para acompanhar as mudanas sociais.
Perdeu-se a clareza quanto aos papis sociais a serem desempenhados pelos membros
adultos. A entrada das mulheres no mercado de trabalho como fora produtiva e renda
necessria para a economia domstica, e a luta pelos direitos individuais femininos levaram o
homem a deixar de ser o chefe da famlia, o cabea do casal, e a mulher deixou de
necessitar da aprovao do marido para se representar socialmente no trabalho ou na gesto
de seu patrimnio. A diviso de tarefas na qual ao homem cabia o domnio pblico daprofisso e mulher o domnio domstico, centrado no cuidado da casa e na educao dos
filhos, tambm cedeu lugar a outras concepes e necessidades, apesar de as tarefas
domsticas ainda serem delegadas em grande parte s mulheres, tanto quanto o
acompanhamento da educao formal dos filhos.
Tambm os papis sexuais, antes mais demarcados, perderam fora. As mudanas de
atitude e de concepo sobre a sexualidade advindas da interveno da cincia em sua
vertente higienista e preventiva, alm do aparecimento da plula anticoncepcional e dadisseminao do controle da natalidade, modificaram as relaes de gnero e colocaram na
pauta do dia-a-dia para os casais o planejamento familiar e a reivindicao de satisfao
sexual. Tambm se tornaram mais comuns os casais homossexuais, hoje chamados
homoafetivos. O exerccio da sexualidade, antes vinculada a regras prescritivas mais
definidas, foi ganhando espao na vida das novas geraes, incentivado pela cincia e pela
mdia.
No seio das famlias, a criana e o adolescente gradativamente ganham espao
privilegiado. Tal processo histrico se relaciona s mudanas relativas ao lugar que eles
ocupam na sociedade. Aris (1978) indica que a partir do final da Idade Mdia, cada vez mais,
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a famlia passa a se organizar em torno da rotina das crianas. Elas, progressivamente,
ocupam posio de representar o futuro da famlia e passam a ser objeto de valorizao
crescente. Isso se relaciona s concepes burguesas de ascenso social; pedagogizao /
escolarizao das crianas, que destacou a infncia como perodo de vida importante como
preparao para o futuro e com caractersticas prprias; e Medicina que, por meio do
higienismo e da preveno, destacou o valor desse perodo particular de vida para a
construo do futuro cidado saudvel e produtivo. O Estado, absorvendo esse discurso sobre
a infncia, passa a intervir na famlia por meio de polticas especficas em nome da proteo
s crianas e aos adolescentes e, por extenso, da proteo da prpria sociedade, da nao
significante de destaque na poca em que tal discurso tomou maior relevncia. O mesmo
processo pde ser verificado no Brasil, com as suas particularidades, por Del Priore (1991).Em trabalho anterior (MIRANDA JR., 2000), acompanhamos como esses discursos,
munidos de concepes psicolgicas sobre o desenvolvimento infantil, interferiram na
construo dos textos legais destinados infncia e adolescncia no Brasil.
Todos estes discursos e processos afetam a sociedade, mas devemos convir que as
concepes sobre famlia so distintas entre as classes econmicas e as regies culturais. As
questes acerca dos papis econmicos, sexuais e intergeracionais, tanto quanto suas funes
se modificam dependendo de fatores sociais variados, como afirma, por exemplo, Kallas13
(apud PEREIRA, 2004). A legislao, contudo, tende a refletir as concepes dominantes em
certa poca, lugar e economia.
A diversidade de formas de organizao familiar em nossa complexa sociedade deixa
entrever que continua no ser possvel encontrar umadefinio de famlia. Contudo, o direito
precisa estabelecer definies e estas, por meio das leis e da doutrina, permitem explicitar os
interesses e os discursos hegemnicos na atual sociedade. Ao estabelecerem legitimaes
sobre as relaes familiares, o direito e a justia tornam claros os interminveis jogos depoder que atravessam e so atravessados pelas mudanas sociais.
Entretanto, apesar da existncia dos modelos ideais e de sua reproduo, pode-se
afirmar que, em funo dos processos sociais expostos anteriormente, a famlia hoje se
assenta em bases menos rgidas e, portanto, mais transitrias e tambm mais imprevisveis.
Diversos estudos tomam a famlia por objeto, tanto para caracterizar as formas
familiares (em nomes como monoparentais, reconstitudas, homoafetivas, etc.) quanto para
caracterizar as relaes que se estabelecem nelas entre os indivduos que a compem de
13KALLAS, M.L. Do outro lado do muro: da instituio comunidade. Um estudo da famlia de baixa renda. In:______. Debate social: famlia ontem, hoje e amanh. Rio de Janeiro: CBICISS/PUC Rio, 1990.
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acordo com suas prprias caractersticas (hetero ou homossexual, crianas, adolescentes, pai,
me, avs, etc.)14.
1.2.2 - O Direito de Famlia
A regulao do matrimnio e do parentesco sempre foi um dos principais temas das
regras do que hoje se nomeia como direito de famlia. A variao de tais normas em termos
histricos e culturais muito ampla. Como exemplo, pode-se citar a possibilidade ou a
exigncia de npcias entre parentes, o repdio ao companheiro e o divrcio, o dote noiva ou
da noiva, so temas recorrentes nas legislaes comparadas. Pode-se destacar como pontos
comuns nesses estudos, de acordo com Nascimento (2004), a necessidade da realizao de umcontrato ou de um pacto de carter pblico, quer dizer, que inclua testemunhas do ato de
aliana realizado. Envolta em mstica prpria, a formao de uma famlia geralmente
acompanhada de um carter tambm religioso, conforme a proximidade entre as normas e o
elemento religioso nas sociedades e, mais ainda, a proximidade entre o elemento religioso e a
famlia.
Vamos localizar a formalizao da legitimao jurdica da famlia em nossa
organizao social iniciando pelas definies e contextualizaes sobre a famlia no discursojurdico. A parte relacionada famlia no Cdigo Civil e o Estatuto da Criana e do
Adolescente (Lei 8.069/90) sero nossas principais referncias.
O Direito Privado o direito que regula as relaes jurdicas entre particulares, que
organiza juridicamente os interesses de ordem individual15. Nele se insere o Direito Civil, que
regula os direitos da personalidade (nome, estado, etc.), o direito das coisas e bens, das
obrigaes, da famlia e das sucesses. No sentido subjetivo dos direitos, podemos dizer que odireito civil regula duas ordens de direito: as patrimoniais e as pessoais. O Direito de Famlia
um ramo do Direito Civil, apesar de aquele envolver o interesse pblico de forma mais
direta que outros campos deste. A concepo jurdica de famlia, que sustenta o ordenamento
no direito civil, pode ser encontrada no art. XVI 2 da Declarao Universal dos Direitos
Humanos (1948): A famlia o ncleo natural e fundamental da sociedade e tem direito
14Ver, por exemplo, o livro de Fres-Carneiro, 1999.15O que se segue tem por base as seguintes referncias: SILVA, De Plcido, op. cit. ; DINIZ, M.H. Curso deDireito Civil Brasileiro- 21 ed. So Paulo: Saraiva, 2006 v. 5; WALD, Arnold. O novo direito de famlia-15 ed. So Paulo: Saraiva, 2004. Citaremos a referncia especfica somente quando considerarmos necessrio.
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proteo da sociedade e do Estado. Tal concepo se reflete no art. 226 da nossa
Constituio Federal.
O direito de famlia constitui o complexo de normas que regulam a celebrao, a
validade e os efeitos do casamento, as relaes pessoais e econmicas da sociedade conjugal e
tambm a sua dissoluo, a unio estvel, as relaes entre pais e filhos e o vnculo de
parentesco. Abrange ainda os institutos da tutela e da curatela, de carter protetivo e
assistencial. Tais normas regem as relaes pessoais, patrimoniais e assistenciais entre
cnjuges ou conviventes, filhos e pais, tutelados e interditos. Cabe destacar que, de acordo
com a doutrina, o direito de famlia no tem contedo econmico a no ser indiretamente,
pois cuida de interesses superiores aos do indivduo. Esse aspecto incitou doutrinadores a
sugerirem sua incluso no campo do Direito Pblico; afinal, sobressai a importncia doelemento social e tico que constitui a famlia no papel intermedirio entre o Estado e o
indivduo. Por esse mesmo motivo, o direito de famlia exercido, idealmente, menos no
interesse individual de cada um dos membros do que em favor do interesse comum da famlia,
que superior como realidade autnoma, pois a solidez da famlia influi no desenvolvimento
e na vitalidade do prprio Estado.
Pelo mesmo motivo, a maioria das disposies em direito de famlia tem reflexos
importantes na vida social. Da no admitirem modalidade. Por exemplo: quem reconhece umfilho no pode fazer um reconhecimento condicional. Neste sentido que Diniz (2006) afirma
que a maioria das normas em direito de famlia so cogentes, quer dizer, de ordem pblica,
nas quais a autonomia da vontade sofre muitas limitaes. Os vnculos so estabelecidos e os
poderes outorgados mais para impor deveres que criar direitos.
Alm disso, o direito de famlia menos universal que outros campos do direito, pois
implica os valores e a ideologia dominante de cada poca, o que inclui as tradies e as
crenas religiosas tambm dominantes. Apesar disso, o direito de famlia influencia todos osramos do direito pblico e do privado16.
Historicamente, somente a Constituio de 1934 incorporou um captulo dedicado
famlia. A Constituio do Brasil outorgada por D. Pedro I, em 1824, e a primeira
Constituio da Repblica de 1981 no possuem um captulo sobre a famlia. De l at os dias
atuais houve mudanas importantes nas concepes sobre casamento e separao, culpa,
16No Direito Civil: direito das obrigaes (alienao de bens, etc.), direito das coisas (hipoteca legal), direito dassucesses. No Direito Pblico: direito constitucional, direito tributrio (isenes, etc.), direito administrativo(remoo de cargos pblicos, etc.), direito previdencirio (penses alimentcias), direito processual (suspeio do
juiz, etc.), direito penal (crimes contra o estado de filiao, etc.).
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guarda, visitas, etc. Tais modificaes e incrementos legislativos demonstram a mudana nos
costumes e nas concepes morais da sociedade brasileira.
De forma esquemtica, pode-se dizer que o direito de famlia possui quatro tpicos
que renem seu contedo: o direito matrimonial, o direito convivencial (unio estvel e
concubinato), o direito parental (relaes de parentesco, filiao, adoo, poder familiar,
alimentos) e o direito assistencial (guarda, tutela, curatela, proteo ao menor). Para Diniz
(2006, p. 5), importante destacar que o casamento ainda poder ser considerado o centro de
onde irradiam as normas bsicas do direito de famlia, apesar de a legislao atual proteger a
famlia no matrimonial.
A definio de famlia, em termos do direito brasileiro, complexa e varia de acordo
com o critrio adotado pela legislao que a define. Tais critrios permitem inferir o sentidotcnico do termo em cada situao prevista, mas no configuram uma definio comum ou
universal de famlia. Diniz (2006) cita cinco critrios das legislaes para a definio de
famlia: sucessrio, alimentar, da autoridade, fiscal e previdencirio. Em cada legislao, o
termo famlia abranger mais ou menos indivduos de acordo com determinantes histricos e
sociais das mais diversas ordens. Como exemplo, podemos citar a diferena entre o critrio
alimentar, na qual figuram como pertencentes famlia os ascendentes, descendentes e
irmos; e o critrio da autoridade, que se aplica apenas s relaes entre pais e filhos.A mesma autora extrai de todas essas definies um sentido tcnico de famlia no
direito: o grupo fechado de pessoas, composto dos pais e filhos, e, para efeitos limitados,
de outros parentes, unidos pela convivncia e afeto numa mesma economia e sob a mesma
direo. (DINIZ, 2006 p. 5). Para ela, famlia significa uma possibilidade de convivncia
marcada pelo afeto e pelo amor, o ncleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. o
instrumento para a realizao integral do ser humano e possui os seguintes caracteres:
biolgico, como agrupamento natural; psicolgico, pois possui um elemento que liga osmembros - o amor familiar; econmico, relativo ao auxlio mtuo; religioso, porque um ser
eminentemente tico ou moral formado pela influncia crist na sociedade ocidental; e
poltico, por ser a clula da sociedade.
Os princpios que orientaram a atual concepo jurdica de famlia, ainda segundo
Diniz (2006), so: a) a afeio como fundamento bsico da vida conjugal, o que faz da
extino da affectiouma justificativa legtima para a ruptura da unio; b) a igualdade jurdica
dos cnjuges e dos companheiros no que atina aos seus direitos e deveres, o que modificou
principalmente a posio de submisso jurdica da mulher; c) a igualdade jurdica de todos os
filhos, proibindo-se denominaes diferenciadas, como filho legtimo, ilegtimo, natural, etc.;
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d) o pluralismo familiar, expresso na Constituio Federal de 1988 (art. 127), que, mesmo
mantendo a diferena entrefamlia, que se refere ao conjunto de pessoas unidas pelos laos do
matrimnio e da filiao, ou seja, os cnjuges e a prole, e entidade familiar, a comunidade
formada pelos pais que vivem em unio estvel, ou por qualquer dos pais e descendentes,
abriu a possibilidade de conferir legitimidade jurdica a diversas formas de famlia, inclusive a
chamada famlia monoparental ou unilinear; e) a consagrao do poder familiar, que
substituiu o poder marital e o paterno, antes denominado ptrio poder, pela categoria de
autoridade parental, o que quer dizer que o poder-dever de dirigir a famlia exercido
conjuntamente por ambos os genitores; f) a liberdade, relacionado escolha da forma de
organizao da vida familiar, incluindo o planejamento familiar; g) o respeito da dignidade da
pessoa humana, relacionado ao pleno desenvolvimento de seus membros, principalmente dacriana e do adolescente.
Convm registrar tambm que a famlia objeto de preocupao das legislaes que
tratam prioritariamente da criana e do adolescente. No prembulo da Conveno
Internacional sobre os Direitos da Criana (ONU, 1989), ratificada pelo Brasil no Decreto n.
99.710/99, define-se a famlia como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para
o crescimento de todos os seus membros, em particular, as crianas. Termos semelhantes
podem ser encontrados no art. XVI da Declarao Universal dos Direitos Humanos, j citada.No difcil perceber a estreita relao entre essas concepes e os modelos ideais
citados anteriormente: o indivduo livre, igual, que forma a famlia a partir de laos afetivos
(de amor) e fornece (ampara) o novo indivduo nascido em seu seio no exerccio de seu
direito ao desenvolvimento de suas potencialidades.
Trataremos agora dos vnculos jurdicos relativos ao direito de famlia.
O casamento se compe de um vnculo e um ato jurdico que legitima este vnculo. Oacasalamento, a formao de um casal, independe do ato jurdico, mas este ato, reconhecido
pela coletividade, que torna legtimo o vnculo estabelecido e gera direitos e deveres. A
natureza do ato jurdico do casamento discutida por muitos autores. Alguns o aproximam de
um contrato, cuja caracterstica a bilateralidade que cria obrigaes; outros admitem a
natureza contratual, mas indicam ser um contrato de natureza particular, pois ato que
implica a sujeio a normas de ordem pblica e necessita da interveno da autoridade
pblica. Justamente por estas ltimas caractersticas, h autores, como Wald (2004), que no
admitem a natureza contratual, conceituando-o como ato jurdico complexo e solene que faz
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do casamento uma instituio qual, diferentemente dos contratos, no se aplicam as normas
gerais referentes ao direito das obrigaes.
O casamento como ato jurdico dividido entre casamento civil e religioso, sendo que
o casamento religioso pode ter efeito civil. (CF art. 226, 2). Tal ato jurdico implica
definies sobre sua preparao e celebrao, alm da habilitao dos proponentes. H
mesmo casos nos quais se necessita autorizao especfica.
O casamento como vnculo conjugal forma a sociedade conjugal. O vnculo se desfaz
em casos de morte, sentena anulatria ou declaratria de nulidade (possibilidade que tema
de discusses e debates doutrinrios por englobar diversas situaes17) e divrcio. J a
sociedade se desfaz quando ocorre a separao judicial.
A sociedade conjugal que compe a famlia implica a unidade de nome, que significaa possibilidade de os cnjuges assumirem o sobrenome um do outro (CC 1565); a unidade de
domiclio, que o dever recproco de coabitao questionada a sua obrigatoriedade por
alguns autores, como Fachin (1999); a unidade de nacionalidade, que faz com que um cnjuge
adquira a cidadania do outro; e a unidade patrimonial, que implica a escolha do regime de
bens do casal (separao, comunho parcial e comunho universal). Este ltimo item indica a
necessidade de regular o aspecto econmico do casal, que ponto de contato entre o direito de
famlia e o direito dos contratos18
.Os cnjuges tambm passam a ter deveres recprocos: a mtua assistncia; sustento,
guarda e educao dos filhos; fidelidade fsica (relaes sexuais exclusivas) e moral
(lealdade); respeito e considerao mtuos. A violao de qualquer deles pode dar ensejo
separao judicial.
Interessante destacar tambm os pactos (ou convenes) antenupciais. Nos
documentos registrados em escritura pblica, que lhe confere a solenidade e a publicidadenecessrias, os nubentes tm a liberdade de estabelecerem clusulas extras para a sociedade
conjugal, desde que no atentem contra as disposies absolutas da lei e que realizem o
casamento posteriormente. Aqui se destaca o aspecto contratual do casamento. Exemplos de
clusulas: obrigar os cnjuges a educarem os filhos segundo determinados princpios
religiosos; obrigar o marido a fixar desde logo o domiclio do casal.
17 Causas como ignorncia a respeito de crime anterior ao casamento, defeito fsico irremedivel, que incluiproblemas relativos s relaes sexuais entre os cnjuges, diferenas de religio, condutas sexuais (prostituio ehomossexualidade), declaraes falsas sobre filiao, etc.18Nesse sentido, tambm a possibilidade de formao de sociedade comercial entre os cnjuges (CC 977).
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A separao judicial uma das formas de trmino da sociedade conjugal (CC art.
1.571), podendo ser amigvel ou litigiosa, sendo que a primeira segue o procedimento
especial de jurisdio voluntria (arts.1.120 a 1.124 do CPC) e a litigiosa, o rito ordinrio.
Cada um dos tipos de separao possui parmetros prprios, como prazos, motivos e efeitos
no que tange penso alimentcia, guarda dos filhos, uso do sobrenome, etc.
A separao litigiosa pode ser dar por vontade de um dos cnjuges ou motivada por
ato de um dos cnjuges que implique grave violao dos deveres do casamento e torne
insuportvel a vida em comum. (CC art. 1.572). Assim, o Cdigo manteve a noo de culpa
pela separao, apesar de todas as crticas que foram feitas a esta noo ao longo do tempo.
A questo da culpa pela separao ainda motivo de debates entre juristas, pois implica
efeitos questionveis nas relaes familiares.O art. 1.573 do CC indica hipteses que podem caracterizar a impossibilidade da vida
em comum: adultrio (que tambm crime previsto no CP, art. 240), tentativa de morte,
sevcia ou injria grave, abandono voluntrio do lar conjugal durante um ano contnuo,
condenao por crime infamante e conduta desonrosa. A apreciao sobre a injria grave ou a
conduta desonrosa bastante relativa. Considera-se como casos indiscutveis, de acordo com
Wald (2004, p. 145), a embriaguez habitual, o uso imoderado de txicos, a prtica de crimes,
a vida desregrada, o homossexualismo, a perverso sexual e outros. fcil perceber quemesmo nesses casos indiscutveis, a presena de avaliaes morais e preconceitos no so
incomuns. Wald (2004) acrescenta que h deveres conjugais no previstos na lei, mas
ditados pela moral conjugal (p. 143), que podem ser motivo da separao. Entre eles
podemos destacar o chamado dbito conjugal, o direito de exigir do outro a satisfao sexual.
A separao judicial convertida em divrcio aps decorrido um tempo previsto na
lei. H tambm previso legal para o divrcio direto, consensual ou litigioso, o qual tambm
possui alguns parmetros legais em relao ao tempo. O divrcio extingue o vnculo conjugale as pessoas divorciadas podem se casar novamente. Se na separao conjugal pode haver
reconciliao, que desfaz a separao do ponto de vista jurdico, os divorciados, se quiserem
voltar a estar juntos, devem se casar de novo. A histria do divrcio no Brasil d conta das
dificuldades inerentes nossa cultura a respeito da concepo sobre a indissolubilidade do
vnculo conjugal. Ponto curioso: o divrcio pe fim afinidade de parentesco na linha
colateral, mas no na linha reta contnua, ou seja, um homem divorciado, por exemplo, pode
se casar com a irm de sua ex-mulher, m