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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO
O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS
MEMÓRIAS DO SERTÃO DE IRECÊ (1943-1985)
ALÉCIO GAMA DOS REIS
Feira de Santana – BA 2012
O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS
MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ (1943-1985)
ALÉCIO GAMA DOS REIS
O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS
MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ
(1943-1985)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA (BA)
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em História da Universidade
Estadual de Feira de Santana (BA), como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre.
Orientadora: Profª Drª Elizete da Silva.
Feira de Santana - BA 2012
TERMO DE APROVAÇÃO
O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS
MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ
(1943-1985)
ALÉCIO GAMA DOS REIS
Data da Aprovação: ______/______/______
Banca Examinadora:
_______________________________________________________________ Profº Drº Clóvis Frederico Ramaiana Mores Oliveira
_______________________________________________________________ Profª Drª Elizete da Silva
_______________________________________________________________
Profª Drª Márcia de Melo Martins Kuyumjian
Feira de Santana 2012
Ficha Catalográfica - Biblioteca Central Julieta Carteado - UEFS
Reis, Alécio Gama dos R298q O que farpa o boi farpa o homem: das memórias dos vaqueiros do campo
sertão de Irecê (1943 – 1985) / Alécio Gama dos Reis. – Feira de Santana, 2012. 363 f. : il.
Orientadora: Elizete da Silva
Dissertação (Mestrado em História)– Universidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em História, 2012.
1. Vaqueiros - Memórias. 2. Sertão de Irecê. 3. História do Bahia. 4. Memória coletiva. 5. Modernidade. I. Silva, Elizete da. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Departamento de Ciências Humanas e Filosofia. IV. Título.
CDU: 981(814.22)
Aos vaqueiros do Sertão de Irecê, que me permitiram
entrar em suas casas, ouvir suas histórias, dormir nas
malhadas de suas lembranças; assistir a arte de sobreviver
e entender muito mais sobre mim mesmo.
Quem foi vaqueiro que vê outro vaqueiro aboiar
fica lembrando dos "tempo" que vivia a vaquejar
sofre igual quem ama alguém e vê com outro, passar
Mestre Costa bom vaqueiro
no sertão do Maranhão muntado no seu cavalo
num cachorro um barbatão e com carreira e meia
não jogasse ele no chão
Hoje em vez de peitoral traz no peito uma paixão
de não poder vaquejar nem vestir o seu gibão passa boi passa boiada
pisa no seu coração
Mestre Costa na fazenda hoje só abre cancela mocidade deixou ele
ele também deixou ela a veice montou nele
e ele desmontou da sela
Bom Vaqueiro (Fagner/João do Vale)
Se eu tiver morreno e tem [tiver] uma licença, e eu puder me levantar eu... vocês pensa que eu tô dento de casa, eu tô deitado lá no curral! Manheço morto no curral! Porque arranjei a vida, cumê, foi trabaiano com gado! José Estevão dos Santos, vaqueiro, 67 anos, popular Zé dos Morrinhos. Jussara,Ba, 2012
AGRADECIMENTOS
Este trabalho resume o esforço de dois anos e meio de estrada. Muitos foram os que ajudaram a edificá-lo e que, aqui, ainda que correndo o risco de passear pelas ondas do esquecimento, merecem ser lembrados. Em primeiro lugar agradeço aos trabalhadores vaqueiros que em mim depositaram a confiança da realização dessa tarefa, me concederam suas memórias e o compartilhamento de suas vivências: Véi Herme, Gilson Vaqueiro, Francisquinho do Véi Otílio, Almir Vaqueiro, Zé dos Morrinhos, Jairo Fininho, Juarez, Samuel, Luiz Vaqueiro, Guilhermino, Sinó, Zizinho, Reinaldo de Zé Pedro, Reinaldo de Lôro, Roxinho Vaqueiro, Viana Vaqueiro, Licuri. Suas palavras representam aqui todos os trabalhadores atingidos pelo cruel processo de modernização capitalista do campo. Agradeço à minha família pela confiança inabalável nos meus intentos. D. Maria, minha mãe, mulher batalhadora, acompanhou minuciosamente todas as etapas desse trabalho e todas as angústias vividas, obrigado pelo amor incondicional. À Kátia, minha irmã, pela sólida fé, pelos abraços nos momentos difíceis. À Seu Aurindo, meu pai, pelo amor, o cuidado, por ter me chamado atenção para o mundo dos vaqueiros e muitas vezes me acompanhado nas estradas barrentas do sertão em nossa “motoca 99”. À meus sobrinhos Mailane Gabriela, Ibson e Clícia, pelos momentos de distração que me possibilitaram alegrias durante o pedregoso trajeto. Espero que esse trabalho lhes seja útil nos seus futuros caminhos. À Rinaldo Pereira, meu cunhado, pela amizade e por me permitir fazer da sua casa um pouso constante. Ao meu irmão Zan, pela ajuda na confecção do banco de fotos. Devo grande agradecimento à professora Drª Elizete da Silva, que aceitou o desafio de compartilhar comigo essa jornada. Obrigado pela atenção, pelas cobranças, pela amizade e companheirismo. Agradeço ainda ao professor Drº Clóvis Ramaiana, pelo acompanhamento, pelas prosas sertanejas e pela correção dos textos e a professora Drª Edil Silva Costa, pela participação no Exame de Qualificação, pelas críticas e elogios. Outros amigos ainda devem aqui ser lembrados e agradecidos. Exelby e Suzana, pela amizade eterna, por se desafiarem a viver um pedacinho do meu sertão, das minhas indagações. Claudiano, por compartilhar da fé em uma sociedade mais justa, pela militância diária em nome da educação e das questões agrárias. São esses amigos exemplos de inquietude e a muito lhes devo por nossas conversas e nossos desafios em entender a injusta realidade social. Agradeço ainda a Rosely Vieira (Lili), que assistiu e compartilhou comigo momentos bons e ruins desde o início dessa caminhada que hora repousa. Obrigado pelo carinho e pelos incentivos! Diógenes Sena, o “Papá”, obrigado meu irmão, pelo exemplo de força, pelos conselhos, pelas cervejas. Elizangela Ferreira, uma sertaneja das franjas do mar, obrigado pelo apoio, pelos braços sempre abertos a me receber. À Tarcíso Maia, o “Tatá”, sua força de vontade é um exemplo pra mim, e a Pedro Silvestre, o torcedor incansável do Bahia, grande
amigo. À Manuela Muniz, por ter me apoiado na elaboração do projeto, pelas conversas livres. À Eliseu Couto e Flávio Ribeiro, que dividiram comigo o sonho do imortal “Maracujá do Mato”. Saudades! Meus grandes compadres, obrigado pelo ombro amigo sempre disponível. À Silvana, minha comadre, pela torcida silenciosa e pelo apoio na hora tão cansativa das transcrições. À Juliana Novaes, pela serenidade, pela paciência em ouvir minhas dores, por me ajudar também com as transcrições. Agradeço ainda a Paulo Xavier, que por tantas vezes me retirou de casa para jogarmos sinuca. Nossa diversão sempre me fez respirar melhor. À Gabriel Simões, George Rocha, Ademária Dourado, Charlene Brito e Wilton Francisco, pelas palavras de incentivo. A Adriana Oliveira pela concessão de fotos. À James Wilker, que tolerou com muita paciência minhas ausências em nossas lutas artísticas. À professora Nacelice Freitas, cujos conselhos acalentaram momentos de grande dúvida, me ajudando a trilhar caminhos mais seguros. À Silvério Gama, pelo empréstimo de documentos sem os quais haveria nesse trabalho grandes lacunas. À Drica e Reinam, por terem me recebido em suas casas e me ajudado na composição do quadro de entrevistados. À Edivaldo Cunha pela amizade e apoio desinteressado na busca por novos documentos. Aos professores Elói Barreto e Jaques Depelchin, por me desafiarem a acreditar na humanização dos homens. Aos funcionários do Programa de Pós Graduação em História Mestrado, especialmente, Julival, sempre prestativo. Aos professores e colegas do curso que me agraciaram com momentos de debates e refinamento dos dizeres necessários ao ofício. Cabem referências de agradecimento ainda aos companheiros e companheiras da Escola Tenente Wilson Marques Moitinho, em Irecê, pela força e pelas rodas de violão, especialmente a Paulo pela compreensão diante das minhas dificuldades finais do trabalho; Joyce, Júnior e Arlene, por me fazerem sentir-me querido no espaço de tantas lutas árduas. Agradeço ainda a algumas instituições: FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia -, pela concessão da bolsa que me permitiu dedicação integral ao trabalho durante a maior parte do tempo. À SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia -, na figura de seus funcionários, sempre atenciosos. À unidade regional da EBDA – Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola -, em Irecê, na pessoa do senhor Raimundo Rocha, por me permitir acesso o à biblioteca e arquivos. À Câmara Municipal de Irecê, especialmente ao funcionário Afonso, que me disponibilizou sua sala de trabalho para consulta de documentos. À Residência Universitária da UEFS, que me abrigou os sonhos e me empurrou até aqui. Por fim, agradeço àqueles que já trilham os caminhos da eternidade: Evériton Martins, o “Tinho”, por ter me mostrado, ainda em nossa infância, o sangue que da terra emergia no momento em que mais um trecho de caatinga ia ao chão sob as grossas correntes de um trator. Essa lembrança é um dos motivos desse trabalho. À professora Ely Estrela, pelas análises acuradas e críticas no Exame de Qualificação. Nossos projetos foram interrompidos com sua súbita ida. Ao professor Rogério Fátima, pela lição de vida que nos deixou, humana e profissional. Ao senhor Felisberto, o primeiro dos vaqueiros com quem tive o prazer de conversar, ainda que informalmente. Saudades eternas de todos! Peço desculpas aos que aqui não foram citados, mas que, com seus exemplos, doação de textos e empréstimo de livros, colaboraram com essa tarefa. Agradeço a todos! Esse
trabalho não foi uma pesquisa, foi uma experiência de vida embalada nas cordas de um violão chamado Zé.
RESUMO
Sobre o Platô Norte da Chapada Diamantina desenvolveu-se, entre meados do século XIX e a década de 1970, uma dimensão sócio-espacial e histórica baseada no costume: o Sertão de Irecê. Neste espaço-tempo, predominaram as relações de produção e as relações sociais de produção de base poliagropecuária, voltadas para o aprovisionamento, baseadas especialmente no valor de uso e nas necessidades cotidianas de suas populações, na apropriação e transformação direta dos recursos da natureza, no uso comum da terra, nas relações sociais e simbólicas de base comunitária, familiar e de compadrio, na reprodução geracional e imemorial dos valores, juízos, normas e fronteiras sociais dos grupos. As iniciativas de modernização rural vigentes no Brasil do pós-guerra, instalaram sobre o Sertão de Irecê uma “região econômica” organizada pelo capital, pautada na dinâmica de um pólo agromercantil de alta produtividade e voltada para o abastecimento do mercado interno. Esse processo deslegitimou, restringiu, e até mesmo eliminou, modos populares costumeiros de trabalho, sociabilidade e uso/propriedade da terra das comunidades do Sertão de Irecê, inviabilizando a reconstrução dos seus elementos simbólicos e identitários. As mudanças por ele impostas atingiram de forma intensa a tradicional prática da pecuária à solta e as relações de trabalho dos vaqueiros, a partir da extinção das áreas de campo, da mercantilização das terras, do cercamento e da expansão das relações assalariadas. Esses trabalhadores vivenciaram o avanço do projeto de modernização rural como um conflito e buscaram, a partir de diversas estratégias, manterem-se ativos em suas funções como forma de produzir sentido para o existir presente. A memória coletiva dos vaqueiros do Sertão de Irecê, apresenta-se hoje como um dos principais meios de rompimento do silenciamento ao qual foram submetidos.
Palavras-chave: Vaqueiro; Campo; Sertão de Irecê; Região Econômica de Planejamento;
Modernidade; Memória Coletiva
ABSTRACT
In the North Plateau of Chapada Diamantine developed between the 19th century and the decade of 1970, a social-spatial and historical dimension based on habits: in the backwoods of Irecê. At that space-time context overcrowded the relations of production and the social relations of production of varied crop and animal husbandry basis, focused on procurement, which were mainly based on value of use and daily necessities of people, appropriation and direct changes of natural sources, the common use of the land, social and symbolic relations of community basis, relative and godparenthood, immemorial and generative reproduction of values, judgments, rules and social limits of groups. The initiatives of rural modernization established in the post-war Brazil, implanted in the backwoods of Irecê an “economical region” organized by the capital, based on the dynamic of an agricultural and commercial centre of high production which was intended to supply the internal market. This process deprived of legitimization, restricted, and even excluded, popular and usual manners of work, sociability and communities usage/ownership of the land in the backwoods of Irecê, making impracticable the reconstruction of their symbolical and identity elements. The changes imposed affected in an intense manner the traditional practice of animal husbandry in non-bordered land and the work relations of the cow keeper, due to the extinction of field areas, the commerce of lands, fencing, and the growth of employment relationship. These workers experienced the advance of the rural modernization project as a conflict and attempted, making use of a variety of strategies, to maintain themselves in their active functions as a way of producing a sense for the present existence. The collective memory of cow keepers in the backwoods of Irecê, is nowadays presented as one of the main manners of breaking the silence they had been submitted.
Key-words: Cow keeper. Field. Backwoods of Irecê. Planning Economical Region. Collective memory.
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 - Localização do Platô Norte da Chapada Diamantina e áreas próximas .............. 79
Imagem 2 - Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1889 ..................................................................................................................................... 81
Imagem 3 - Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1940 .................................................................................................................................... 81
Imagem 4 - Divisão político-administrativa atual do Platô Norte da Chapada Diamantina .. 81
Imagem 5 - Localização da atual Região Administrativa de Irecê em relação a Salvador .... 81
Imagem 6 - Figura estampada na capa de um dos informes da SUDENE .......................... 166
Imagem 7 - Distribuição dos recursos do POLONORDESTE pelos estados da região Nordeste (1975/1976) ....................................................................................................... 169
Imagem 8 - Primeiros tratores do Sertão de Irecê, década de 1940 ..................................... 182
Imagem 9 - Produção agrícola das principais culturas da “região agrícola” de Irecê (1950-1956) ................................................................................................................................ 185
Imagem 10 - Asfaltamento da BA-052, Estrada do Feijão ................................................. 198 Imagem 11 - Expansão das áreas agrícolas no Platô Norte Diamantino e proximidades (1975) ............................................................................................................................... 200
Imagem 12 - Carro-de-boi nas ruas de Irecê, 1963 ............................................................ 218
Imagem 13 - Crônica “Jeito de Agricultor” ...................................................................... 243
Imagem 14 - Instalação do Governo do Estado da Bahia em Irecê ................................... 250
Imagem 15 - Governo inicia plantio do feijão em Irecê, 1980 (SECOM). ......................... 251
Imagem 16 - Desfile cívico na cidade de Irecê (1970-1980) .............................................. 252
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Iniciação profissional dos entrevistados ........................................................... 103
Tabela 2 - Perfil dos criadores e rebanhos do Sertão de Irecê ............................................. 109
Tabela 3 - Vaqueiros: associação entre o trato com o gado e a agricultura ........................ 115
Tabela 4 - Área cultivada x número de estabelecimentos no município de Irecê (1950-1970) ................................................................................................................... 190 Tabela 5 - Relação total da Quantidade produzida (t) X Área Cultivada/Colhida (ha) X Valor (Cr$) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí entre 1966-1968. ................................................................ 196
Tabela 6 - Relação total da Área Cultivada/Colhida (ha) x Quantidade produzida (t) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, (1970-1982) .................................................................................... 201
Tabela 7- Número de estabelecimentos no município de Irecê (1970-1975) ...................... 203
Tabela 8- Dados pluviométricos do período 1975/1978, dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí .............................................................. 204
Tabela 9 - Relação entre os beneficiados com crédito do POLONORDESTE e o total de produtores na região de Irecê, abril/79 a mar/80 ................................................................ 206
Tabela 10 - Acesso dos produtores às linhas de crédito do Projeto Sertanejo “fase preliminar” para o período de 1978/1980 no município de Irecê............................................................ 208
Tabela 11 - Ano da criação dos municípios do Platô Norte Diamantino e áreas próximas, e municípios de origem ........................................................................................................ 219
Tabela 12 - Divisão espaço-populacional nos municípios de Barra do Mendes, Canarana, Central, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Presidente Dutra e Uibaí ....................................... 220
Tabela 13 - Crescimento populacional da cidade de Irecê ................................................. 223
Tabela 14 - Aquisição de empréstimos agrícolas entre os vaqueiros ................................. 244
Tabela 15 - Rebanho bovino total (1964/1981), referente aos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ................................................................ 271
Tabela 16- Número de bovinos por município (1968/1981), referente a B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ................................................................ 273
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Área total cultivada no município de Irecê (ha) (1950-1970) .......................... 190
Gráfico 2 - Número total de estabelecimentos no município de Irecê (1950-1970) ............ 191
Gráfico 3 - Quantidade total produzida (t) e área total cultivada/colhida (ha) – feijão, milho, mamona – nos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí entre 1966-1968 ....................................................................................................... 196
Gráfico 4 – Quantidade total produzida (t) e área total cultivada/colhida (ha) – feijão, milho, mamona – nos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, (1970-1982) ............................................................................................................ 202 Gráfico 5 - Rebanho bovino total (1964/1981) dos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ............................................................................ 272 Gráfico 6 - Número total de bovinos por município (1968/1975), referente à B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ................................................................ 273 Gráfico 7 - Número de bovinos por município (1968/1980), referente a Irecê e Morro do Chapéu .............................................................................................................................. 274
LISTA DE FOTOS
Foto 1- Amendoeiras localizadas no centro da cidade de Jussara, usadas pelos vaqueiros para amarrarem seus cavalos ..................................................................................................... 145
Foto 2 - Zadruga, um dos primeiros modelos de tratores agrícolas a chegarem no Sertão de Irecê, ainda na década de 1950. ......................................................................................... 195 Foto 3 - Arame usado para os cercamentos entre 1950-1970 ............................................. 213
Foto 4 - Arame atualmente usado ...................................................................................... 213
Foto 5 - Arado de tração animal, monumento dedicado a agricultura na “Praça do Feijão” em Irecê (outubro de 1971) .................................................................................................... 253 Foto 6-7 - Monumento à agricultura em frente ao Banco do Brasil em Irecê ............... 253-254
Foto 8 - Luiz Vaqueiro ordenha diariamente suas vacas .................................................... 279
Foto 9 - Zizinho alimenta seus animais diariamente no quintal da sua casa ........................ 280
Foto 10-11 - Instrumentos de couro produzidos por Almir Vaqueiro ................................. 282
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................ 16
Capítulo I - O sertão em movimento: relações agrárias, costume e uso comum de terras ... 55 1.1 Sertão: povoamento, relações de produção e circuito mercantil ..................................... 55
1.2 Uso comum no sertão: permanências em frente a lei ...................................................... 68
1.3 Sertão de Irecê: o viver entre o costume e o campo ...................................................... 77
Capítulo II - Campear no espaço do costume ..................................................................... 98
2.1 “O que é bom já nasce (por ser) feito!” ........................................................................... 98 2.2 Mundo laboral: relações de trabalho e saberes no campo ............................................. 105
2.3 Sociabilidades da vaquerama: habilidades, poder simbólico e representação social ...... 132
Capítulo III - Região, nação, sertão: rastros da modernização agrária capitalista no caminho da “grande empresa nacional” .......................................................................................... 152 3.1 Debates sobre o agrário brasileiro e a reversão do Nordeste rural como modelo do planejamento nacional ..................................................................................................... 152
3.2 A modernização conservadora: a face agrária nacional do capital planejado ................ 162
3.3 Modernizando a roça: impactos do capital planejado na dinâmica produtiva dos trabalhadores rurais .......................................................................................................... 173 3.4 “Aquí, govêrno e povo irmanados, plantam a semente do progresso”: mudanças agrárias desfazendo o Sertão de Irecê ............................................................................................ 181
3.5 A urbanidade articulada: Irecê - uma Capital ............................................................... 216
Capítulo IV - Ser vaqueiro na Região ............................................................................... 228 4.1 Região de Irecê: uma “especificidade regional” ............................................................ 228
4.2 A “vocação agrícola”: um chamado da ciência para o “tempo da integração” ............... 235
4.3 “A mode qui isso tudo qué dizê então, que de agora por diente, pelas terra do sertão, nóis num vai mais campiá”? ...................................................................................................... 257 4.4 O fim de uma região... ................................................................................................. 293
Considerando o dito e o não dito... ..................................................................................... 299 Lista de Fontes e Bibliografia ............................................................................................ 307
Caderno de Fontes e Documentos Complementares ........................................................... 327
Introdução
Só é possível entender o saber do povo através do compromisso com a sua causa, com a sua luta, com a sua vida, com a sua esperança. Só há objetividade quando há esse envolvimento profundo e intenso, quando há um destino comum. O resto é ilusão, ainda que bem elaborada pelo nosso treino profissional para nos enganarmos a nós mesmos e nos justificarmos diante daqueles a quem oprimimos, fazendo-os objeto de nosso profissionalismo.
(José de Souza Martins) Prefácio de Os Deuses do Povo de Carlos Rodrigues
Brandão Onde fica o vaqueiro, fica também a voz.
(Maria Laura de A. Maurício) Memória de Aboios: História de Vida do Vaqueiro Zé
Preto
os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada.
(PrinsGwyn) A escrita da História
En1: É, nós vamo no mato, lá avistamo o boi, né! Se ele for uma rês mansa que for pra, que dê pra você traquejar montado né, raia com ele aí ele sai viajano [...] e se for um bicho mei ligêro na hora que você raiô, já vê ele... só faz virar os quarto pra você e já sai voano, já sai mermo com tudo que tem! Aí o cavalo...eu também boto o cavalo no que ele puder! [...] Pra derrubar! E puxa, adiante quando o cavalo dá pra derrubar você puxa e derruba, e deles que não cai, como eu tô lhe dizeno, ele bate a carrêra, não agüenta mais corrê, ele vira pra brigar, quando é valente, e quando não é, tem vez que derruba outras vez ele barra, esgota a carrêra e ai pronto, a gente tirava o laço e laçava. E: E se ele vier, e vier correndo pra pegar? [...] En:Ele vai, você vai encostado nele, quando vai impurrado ele, quando ele não agüenta mais ele joga os quarto pra lá e vem pra pegar! Ele vem de cabeça baixa pra pegá, furá o cavalo imbaxo, no peito do cavalo, é na hora que você sustenta o
1 En = Entrevistado; E: Entrevistador (sublinhado).
18
cavalo, para o cavalo, e... num tem ôto recurso, é a faca! Ai puxa a faca e bota a faca nele, aí ele vem “taco!” mete-lhe o cangote na faca, que deles da faca entrar é mais de palmo! Palmo! Quando ele recebe aquela agulhada, tem deles que, que arria ainda bate as mão no chão, torna levantar as mão, quando é bruto, vem outra vez2.
A narrativa desenha o fato, o descreve, denuncia sua vontade de ser lembrado, de
ser fixado no que há de mais sólido na mente humana. Muitas vezes retornou o velho vaqueiro
ao campo, de muitos bois “tirou o calor”, porém, houve um dia em que isso não mais foi
possível. Houve um dia em que a cena não mais se repetiu. No lugar da caatinga encontrava-
se agora uma plantação e algumas árvores solitárias imitavam rugas verdes em meio ao plano.
Ao seu redor, uma cerca de arame. Por ali não mais circularam homens encourados, nem bois
fugitivos, nem cavalos em disparadas, foram todos afastados, farpados como a um só
desconhecido. Restou ao homem lembrar. Houve um dia em que o vivido virou lembrança.
Essa dissertação localiza-se na dimensão da História Social do Trabalho, na
interface com a Geografia Humana, a Antropologia, a História Econômica e os estudos sócio-
ambientais. Focamos o domínio das relações agrárias a partir do contato com a memória
coletiva dos trabalhadores rurais, entendida enquanto espaço da história da relação do homem
com o mundo, proporcionada pela a abordagem da História Oral. Nesse espaço buscamos
compreender as experiências vivênciadas pelos vaqueiros do Sertão de Irecê, diante da
expansão das relações capitalistas no Platô Norte Diamantino e áreas vizinhas (1943 e 1985)
que impôs a disciplinarização do uso da terra e a eliminação da prática costumeira da pecuária
à solta, assim como as memórias defendidas por esses trabalhadores atualmente. A presente
pesquisa pauta-se na indissociabilidade entre as dinâmicas sociais e espaciais e no enfoque
sobre o cotidiano, como a dimensão a partir da qual os homens experimentam o mundo.
Parafraseando Francisco de Oliveira, não se narra aqui uma luta de homens contra homens,
mas, um processo histórico, portanto, processo social contraditório, enquanto síntese de todas
as determinações3.
Sertões...
Diversos foram as formas de apropriação e os sentidos atribuídos ao termo sertão no
pensamento social brasileiro. Às vezes, uma categoria espacial, outras, referencial ideológico,
artístico-cultural ou ainda uma representação. Já significou o vasto e desconhecido, mas 2 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme), 71 anos, lavrador e antigo vaqueiro, Vila de Recife/
Jussara, 1º momento, 11 de out/2010. 3 OLIVEIRA, Francisco de Oliveira. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião: SUDENE, Nordeste, planejamento e conflito de classes. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 127.
19
também um recorte afetivo do espaço, foi falado, mas também foi vivido, já foi vazio, mas
também povoado, já foi pobre e farto, remete ao passado, mas se desenha no presente. O
sertão pode simbolizar o semi-árido, mas também já foi úmido, foi improdutivo, mas garantiu
as condições materiais de sobrevivência de muitas populações; foi o oposto do litoral, mas
também já o completou...
Alguns pesquisadores afirmam que o termo sertão origina-se do latim sertum (mata) e
definiria a terra inferior de um país, coberta de vegetação e pouco povoada4. Outros defendem
que o termo origina-se da expressão mediterraneus lócus (que fica no meio de terras) e se
refere às terras do interior da África5. Outros autores ainda destacam que “sertão” ou “certão”
seria originário de serere, sertanum (trançado, entrelaçado, embrulhado), desertum (desertor,
aquele que sai da fileira e da ordem) e desertanum (lugar desconhecido para onde foi o
desertor)6. No Brasil a expressão sertão firma-se, inicialmente, como categoria do
colonizador. Pero Vaz de Caminha, no final do século XV, informara a D. Manuel sobre a
“descoberta” das novas terras, afirmando que “pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito
grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos, terra que nos
parecia muito extensa”7.
Tomado a princípio como sinônimo de “interior vasto e desconhecido”, o vocábulo
sertão remetia em tempos coloniais a possibilidade de enriquecimento fácil e aos riscos da
natureza. Era o lugar dos animais ferozes, das doenças; o limite da frente colonizadora, o
lugar das minas, da guerra contra o “bárbaro” e o incivilizado. Ronaldo Vainfas afirma que o
termo, nos nossos primeiros séculos, não significava necessariamente áreas áridas, podendo
mesmo se referir a espaços com grande unidade8. Como nos diz Janaína Amado, definindo o
lugar do “outro”, o dominador europeu definia também o seu, o litoral: menor, lugar do
branco, onde os poderes administrativos e religiosos estavam mais próximos, centro
irradiador da civilização9.
Segundo Erivaldo Fagundes Neves, no século XIX o termo “sertão” era associado
tanto às áreas semi-áridas, como às áreas onde se desenvolviam atividades econômicas 4 BUENO, Silveira. Grande dicionário etimológico prosódico da Língua Portuguesa. São Paulo: Edição Saraiva, 1968, vol. 7, 2ª Tiragem, p. 3721. 5 FERREIRA, Antônio Gomes. Dicionário de Português-Latim. Porto: Porto Editora, 1989. 6 AMADO. Janaína. Região, Sertão, Nação. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n. 15, p. 147, 1995 7 A Carta, de Pero Vaz de Caminha. Dominus: São Paulo, 1963. Disponível em: <http//:www.culturabrasil.pro.br/zip/carta.pdf>. Acesso em 15 de jan/2010, p.8. 8 VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 528-529. 9 AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação..., p. 148.
20
relacionadas à pecuária10. Ricardo de Oliveira destaca que, para as elites que participavam do
debate sobre a essência nacional brasileira, no final desse século, a expressão significava o
“atraso” ou o lugar onde o “descompasso” com a “civilização” era maior11. Foi somente a
partir da publicação d’Os Sertões, em 1902, que o termo sertão passou a ser positivado,
demarcando ao mesmo tempo a decadência da visão européia sobre a História do Brasil.
Para Euclides da Cunha, os “sertões do Norte” eram áridos, isolados geográfica e
socialmente, nele, porém, vivia uma sociedade rude, mestiça luso-indígena original. Uma raça
forte, imutável, retrógrada, mas não degenerada, possuidora de tendências civilizatórias,
embora ainda não as tivesse posto em prática. Como era comum aos intelectuais do fim do
século XIX e início do século XX, o termo “degenerado” remetia a presença de sangue negro.
Afirma o autor:
Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os ante do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de envolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior12
Para Cunha, pois, os “sertões do Norte” era uma terra seca e engarranchada sobre a
qual formou-se uma espécie de oásis étnico e genético essencialmente brasileiro. Segundo
Ricardo Oliveira, Os Sertões fundamentou e consolidou representações e mitos em torno da
existência de um “Brasil profundo”, ainda pouco conhecido, onde a natureza cravou no
homem suas características gerando um tipo sociológico nacional, uma “brasilidade sertaneja”
rude e autêntica13.
No decorrer do século XX, Câmara Cascudo também enfatizou o sertão como
sinônimo das áreas semi-áridas do Brasil, ligadas “ao ciclo do gado” e a “costumes e tradições
antigas”14. Historiadores como Capistrano de Abreu, Oliveira Viana, Nelson Werneck Sodré,
Sérgio Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo enfocaram o conceito de diversas formas,
sempre apontando para sua importância como categoria essencial para compreensão histórica
10 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural. In: POLITÉIA: História e Sociedade. Vitória da Conquista: Edições UESB, vol. 3, nº 1, 2003, p. 155-156. 11 OLIVEIRA, Ricardo de. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPHU- Associação Nacional de História, vol. 22, nº 44, 2002, p. 522. 12 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 10ª Ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2008, p. 117. Sobre a formação da mestiçagem sertaneja e sua relação com o meio ver p. 71-120. 13 OLIVEIRA, R. de. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção...., p. 511. 14 CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 5ª Ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1984, p. 710.
21
da nação brasileira15. O sertão, pois, nascido das afirmações do colonizador e definido como
o vasto desconhecido e incivilizado, passou a significar as áreas nacionais onde havia
marcante presença da atividade pecuária, e no século XX, firmou-se no pensamento social
brasileiro como um espaço de identidade nacional.
As artes em muito contribuíram para a polissemia e para a consolidação de
representações em torno do termo sertão. Enquanto referência artístico-cultural o sertão foi
proclamado desde a poesia romântica do século XIX, passando pela prosa romântica e pela
literatura realista. Destacam-se nesse campo os “romancistas de trinta” a partir de obras como
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, O Quinze, de Raquel de Queiroz e A Bagaceira de José
Américo, que afirmaram o sertão e o sertanejo sob o enfoque nos contrastes sociais do
interior semi-árido rural, da seca, do abandono e da migração. Todavia, é com João
Guimarães Rosa que o sertão literário ganha projeção máxima. Sua obra clássica, Grande
Sertão: veredas, foi, e continua sendo, fonte de diversos debates e pesquisas.
O sertão rosenano ultrapassa o espaço geográfico para simbolizar o universo, uma
dimensão psicológica, lugar do bem e do mal, a existência de Deus e do Diabo, como afirma
Riobaldo, protagonista do romance: “O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não
seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem [...] O sertão está
em toda a parte”16. Outros campos da arte também deram sua contribuição para polissemia do
termo, como a pintura (Cândido Portinari - Os Retirantes), a música (por exemplo Luiz
Gonzaga ou as “duplas caipiras”), o cinema (Cinema Novo de Glauber Rocha), a poesia,
(Patativa do Assaré), o teatro (as obras de Ariano Sussuna), as novelas e o cordel. Dentro e
fora do Nordeste, o sertão foi (e é) criado e recriado pelas abordagens do humor, da saudade,
da honra, do trabalho ou da tragédia.
O sertão pode ser apresentado ainda como uma invenção imagética ou uma
representação. Durval Muniz de Albuquerque defende que o sertão, tal qual como o
conhecemos hoje, é um produto discursivo do século XX, uma das dimensões componentes
da formação imagético-discursiva da Região Nordeste. Para ele, os diversos discursos
artísticos e intelectuais, dos quais se destacam Os Sertões e os “romancistas de trinta”, ao
denunciarem o abandono das populações nordestinas, a miséria, o coronelismo, o
messianismo, o cangaço ou ao afirmarem o valor da tradição, produziram imagens que
15 AMADO, J. Região, Sertão, Nação..., p. 146. 16 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1.
22
compuseram uma forma de dizer o espaço do interior nordestino. Como destaca ainda esse
autor, é no século XX que o sertão deixa de ser o espaço abstrato interior para se tornar um
espaço concreto no interior, específico do Nordeste17.
Valter Guimarães Soares analisou a obra sócio-histórica Fidalgos e Vaqueiros, do
poeta feirense Eurico Alves Boaventura, para compreender a emergência discursiva de um
sertão baiano a partir de meados do século XX. Segundo Soares, a incorporação da Bahia na
região Nordeste e a criação da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste), em finais dos anos 1950, impulsionou o surgimento no território baiano de obras
que se intitularam sertanejas e que assumiram, de forma variada, certas imagens já
consolidadas sobre outras áreas semi-áridas interioranas do estado18. Para esse autor, Eurico
Alves evoca uma memória de sertão e uma identidade sertaneja como reação às mudanças
que a “modernização urbana” impunha às oligarquias agrárias baianas da qual fazia parte, por
meio de um discurso épico-saudosista que reivindica importância histórica para a sociedade
sertaneja pastoril - “civilização do pastoreio” -, calcada na tradição, na honra, na ordem e no
trabalho; autônoma, que em nada devia à “civilização do açúcar”. O sertão em Eurico Alves
Boaventura, afirma ainda Soares, é, antes de tudo, produto de uma vontade de ser sertão, uma
representação, construção histórica discursiva19. Muniz e Soares aproximam-se tanto em
relação às afinidades teóricas, quanto em relação à preocupação em demonstrar as influências
do lugar social dos sujeitos “discursores” sobre as referências espaciais e imaginárias que
usamos hoje.
Recentemente, Gilmar Arruda, também em busca de uma memória discursiva sobre os
espaços, demonstrou ser o sertão um elemento do presente, ao mesmo tempo uma
espacialidade e uma identidade vivida. Seus estudos demonstram como o processo de
urbanização que reconfigurou o espaço interiorano do Sudeste, também atribuiu ao termo
sertão o sentido de “incivilizado”, passando este a ser utilizado como categoria definidora das
17 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª Ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009, p. 134. 18 A saber: Cascalho (1944) e Além dos Marimbus (1946) de Herbeto Sales; Seara Vermelha de Jorge Amado (1946); O Médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros (1952), Os cabras do coronel (1964), O Reduto (1965) e Remanso da Valentia (1967) de Wilson Lins; Jagunços e heróis (1963) de Walfrido Moraes, Horácio de Matos: sua vida e suas lutas (1956), de Olympio Barbosa; O sertão que eu conheci (1961), de Caludionor Queiroz; O coronel Horácio de Matos (1961), de Américo Chagas, além de Fidalgos e Vaqueiros (1953), de Eurico Alves Boaventura além de uma série de ensaios do mesmo autor abordando o sertão e o sertanejo, publicados na década de 1940. 19 SOARES, Valter Guimarães. Cartografia da Saudade: Eurico Alves e a invenção da Bahia sertaneja. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.
23
áreas e dos habitantes do interior. Para Arruda, o estudo das transformações do termo
ultrapassa a compreensão das formas pelas quais foi tratado pelos intelectuais e explica a
própria história das alterações sobre as espacialidades brasileiras20.
Sertão é assim, sertões. Uma das características do termo é a capacidade de aglomerar
sentidos, sem excluir os anteriores. Como nos lembra Janaína Amado, desde os primórdios
coloniais, o vocábulo sertão contém uma “perspectiva dual”. Se para o colonizador o sertão,
era o lugar desconhecido, selvagem, para o seu morador ele representava a liberdade, a
possibilidade da fuga, a esperança de uma vida livre dos grilhões e das perseguições, podia ser
o inferno ou o paraíso a depender de quem o anunciava21.
Diversas dessas perspectivas e sentidos são ainda vigentes e até fundidas. Como
demonstrado, o termo não se refere a uma categoria de uso exclusivo, a sua característica
polissêmica permite que seja utilizado em diversas áreas do Brasil. Contudo, sertão passou a
representar, de forma geral, as áreas de clima semi-árido do País, atualmente identificas como
Polígono das Secas, que engloba parte do Nordeste e o Norte de Minas. Essa fração espacial é
marcada pela baixa pluviosidade anual, pelo bioma caatinga, e, até recentemente, pela
predominância de relações sócio-econômicas de base rural. Na perspectiva social, o sertão do
Brasil corresponde ao espaço onde se concentram os maiores níveis de desigualdade.
Apesar de direcionado, o sertão nunca deixou de ser polissêmico. Mesmo no interior
do Nordeste, convivem: o “sertão vasto e desconhecido” colonial, representado ainda pela
caatinga ressequida, despovoada; o “sertão do gado” do século XIX alardeado e poetizado
pela imagem do vaqueiro e o “sertão da miséria” do século XX, ao qual se associa o cangaço,
o coronelismo, as secas e os movimentos messiânicos.
Quem é o vaqueiro?: discursos e possibilidades
Nossa segunda categoria de trabalho não se apresenta menos complexa. Quem é o
“vaqueiro”? O que realmente permite-nos classificar os sujeitos como “vaqueiros”? O
vaqueiro é o personagem símbolo dos sertões nordestinos, um dos mais falados e cantados
representantes da cultura rural do Brasil. As representações mais correntes pelas quais é
definido, foram elaboradas por memorialistas, literatos e folcloristas ou mesmo, emergem das
20 ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões: entre a história e á memória. Bauru: EDUSC, 2000. 21 AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação..., p. 150.
24
artes populares cotidianas como cordéis/repentes e está associado às abordagens que
enfocaram o sertão como lugar da pecuária.
No tocante ao campo da historiografia, o vaqueiro é um sujeito silenciado, sobre ele
predomina uma visão generalizante. Durante a maior parte do século XX os historiadores
absorveram de forma acrítica as imagens do vaqueiro produzidas pelas obras literário-
memorialísticas. O paradigma historiográfico economicista totalizador na década de 1960,
atribuiu à pecuária e aos vaqueiros uma perspectiva subalterna no contexto de formação
histórica do Brasil, produzindo um silêncio sobre esses sujeitos que só recentemente tem sido
rompido. Como nos diz Eduardo Magalhães Ribeiro, entre os cientistas sociais a pecuária não
tem passado de uma “praga dos campos brasileiros”, enfatiza-se o seu caráter “extrativo,
latifundiário e predador” e sua pobre função interiorizadora e povoadora, com “magros surtos
de riqueza” e de uma mobilidade fatigante22. Em tudo ela se antagoniza ao mundo farto do
açúcar. Ao vaqueiro restou a genérica definição do “homem que cuida do gado”.
Assim como fizemos anteriormente em relação a categoria sertão, busquemos aqui
um pequeno intinerário discursivo sobre o vaqueiro, que nos indique algumas formas pelas
quais foram e são definidos e nos permita entender os fios e questionar os silêncios que tecem
suas representações. Os primeiros documentos pelos quais temos conhecimento desse sujeito
são os relatórios e anotações de viajantes, cientistas e estrangeiros que estiveram no Brasil nos
séculos XVIII e XIX. O termo “vaqueiro” está contido nas anotações do jesuíta Antonil, dos
naturalistas von Martius e von Spix, do inglês Henry Coster e do engenheiro Teodoro
Sampaio, mas, é o príncipe Wied-Neuwied, quando da sua passagem por Barra da Vereda, na
Bahia, em 1817, que nos dá a descrição mais pormenorizada dos vaqueiros:
Já aqui pude travar conhecimento com os homens encarregados de guardas o gado; são os “vaqueiros” ou “campistas”, como os chamam em Minas Gerais, vestidos de couro de veado da cabeça aos pés. Essa vestimenta parece extravagante à primeira vista, mas é muito adequada pois, esses homens têm muitas vezes de correr atrás do gado, que foge através dos arbustos espinhosos e das “caatingas”, ou então são obrigados a fazer passar o gado por aí, para reuni-lo. A sua vestimenta consta de sete peças feitas de couro de veado: o “chapéu” pequeno e arredondado com abas estreitas, que se alarga e alonga para trás para formar uma pala que abriga o pescoço; o “gibão” ou jaqueta, aberto na frente, por baixo do qual está o “guarda-peito”, largo pedalo de couro que desce até a barriga; as “perneiras” ou calções, por debaixo das quais estão as botas munidas de esporas. [...] O “vaqueiro”, montado num bom cavalo sobre uma sela acolchoada, leva na mão uma longa vara cuja
22 RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Vaqueiros, bois e boiadas – trabalho, negócio e cultura na pecuária do nordeste mineiro. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ, vol. 10, abril/1998, p. 135. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/esa/index.php?cA=db&aI=112&vT=da&vA=285>. Acesso em: 20 de mar/2011.
25
extremidade é guarnecida por uma ponta de ferro rombuda, com que afasta ou abate os bois furiosos; às vezes leva também um “laço” para pegar os animais mais bravios23.
Acrescenta-nos o observador que os “vaqueiros”, espalhados nas diversas fazendas dos seus
patrões, “vivem separados do mundo, levando uma verdadeira existência de solitários”24.
Quanto ao perfil psicológico desses homens nos diz ainda Wied-Neuwied: quanto aos vaqueiros, homens agrestes, indolentes e exclusivamente ocupados de cuidar de seus animais, nenhum auxílio se pode esperar da parte deles. Só a muito custo se consegue, mediante boa paga, que eles cacem para nós. Afastados de qualquer pretensão ao título de homens instruídos, consideram o estudo da história natural e os trabalhos que a acompanham como uma ocupação tola e pueril25.
Aos olhos do viajante estrangeiro os vaqueiros eram figuras estranhas, ora pitorescas,
ora rudes, que poucas relações buscavam com o mundo externo. O debate que se travou no
final do século XIX em torno das originalidades nacionais, fez emergir novos discursos que
tomaram o vaqueiro como referência. Em O Sertanejo, romance regionalista publicado em
1875, José de Alencar discorreu sobre o interior cearense do Vale do Jaguaribe do século
XVIII, tendo como pano de fundo as paisagens do sertão pecuário, palco do protagonista
Arnaldo, o primeiro vaqueiro da Fazenda Oiticica, de propriedade do capitão-mor Arnaldo
Campelo. Conhecemos melhor o personagem em meio à conversa que trava com seu patrão:
Não sei lidar com os homens; cada um tem seu gênio: o meu é para viver no mato. Tornou o Campelo ainda mais fechado: — Quer dar em bandoleiro, como esses que aí andam ao cosso pelo sertão, acabando o gado das fazendas, à fiúza de matar barbatão, e praticando toda casta de maldades em suas correrias? Arnaldo ergueu a fronte com um assomo de escândalo contra a injuriosa suspeita. — O senhor capitão-mor não pode temer isso de mim. Conhece-me bem. — Conheço, disse o velho fazendeiro, descansando solenemente a larga mão sobre o ombro do rapaz, a título de reparação da injustiça. — Vivo de pouco e Deus me dá de sobra. Não careço do alheio, nem o cobiço. Tão pouco se ligará com bandoleiros quem não pode acostumar-se à gente de melhor avença. Procuro o sertão, e moro nele para estar só. Mas fique vossa senhoria descansado, que se não presto para camarada ou vaqueiro, quando se tratar de o defender e acatar, a si e aos que lhe são caros, pode contar que não tem servidor mais pronto, nem mais devoto. Minha vida lhe pertence, é dispor dela como lhe aprouver26.
23 WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. São Paulo-Rio de Janeiro-Recife-Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1940, p.376 <http://www.brasiliana.com.br/obras/viagem-ao-brasil-nos-anos-de-1815-a-1817/pagina/376>. Acesso em 15 de fev/2012. 24 Idem, Ibidem, loc. cit. 25 Idem, Ibidem, p. 391. 26 ALENCAR, José de. O Sertanejo. Rio de Janeiro: Editora Escala, [s.d.] (Coleção Grandes Mestres da Literatura Brasileira), p. 77 (grifo nosso).
26
Arnaldo é um homem servidor, simples, destemido, herdou a profissão do pai, o
vaqueiro Louredo, tem grande conhecimento sobre a natureza e os animais, prefere dormir nas
árvores e andar só, além disso, possui grande respeito por Campelo, seu patrão. Também no
campo literário regionalista o vaqueiro surge personificado no pobre Fabiano, de Vidas Secas.
Em O Quinze, Vicente e Chico Bento, ambos vaqueiros, encarnam duas realidades diversas, o
primeiro cuidando do seu próprio gado e o segundo, sendo expulso da fazenda, torna-se
retirante em uma desastrosa migração à Fortaleza. O vaqueiro é também personagem de
Guimarães Rosa, no conto Entremeio: com o vaqueiro Mariano, publicado em 1969.
É, contudo, com a publicação de Os Sertões que o vaqueiro foi elevado à condição de
tipo social brasileiro. Em Euclides da Cunha a imagem do vaqueiro se confunde com a
imagem da própria sociedade forte, rude e original que vimos linhas acima, pois, como afirma
esta é uma “sociedade rude, libérrima e forte dos vaqueiros”27. “Todo sertanejo é vaqueiro”28,
sintetiza Cunha. Assim o descreve: O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o do guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as “perneiras” de couro curtido ainda muito justas cozidas às pernas subindo até as virilhas, articuladas em “joelheiras” de sola, e resguardados os pés e as mãos pelas “luvas” e “guarda-pés” de pele de veado – é como forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo29.
É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o “campeão” que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência30.
Os vaqueiros euclidianos são homens bravos, mestiços luso-indígenas, imutáveis e
desbravadores, produto do sol e da terra, são os responsáveis pelo povoamento do interior,
antípoda do missionário e do minerador que apenas se poram ao sertão para explorar o
silvícola e a riqueza mineral. O vaqueiro é, porém, de aparência fatigada, desengonçado,
abatido e forte, lento como as boiadas, mas ágil na captura da rês fugitiva, fiel a seu patrão,
vivendo nas fazendas uma servidão inconsciente. Sua existência é produto de intercalas
“horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias”, “atravessou a mocidade numa
27 CUNHA, Euclides. Os Sertões.., p. 106. 28 Idem, Ibidem, p. 125. 29 Idem, Ibidem, p. 122-123. 30 Idem, Ibidem, 119-20.
27
intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança”. “Compreendeu-se
envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as
energias” 31.
No final da década de 1930, Câmara Cascudo parece retomar algumas observações de
Euclides da Cunha, redesenhando o vaqueiro como um herói cunhado pelo meio e pela função
que exerce. O ciclo do gado determina o individualismo do seu participante. Dá-lhe a noção imediata de independência, de improvisação, de autonomia de livre arbítrio de arrojo pessoal. Fundada a fazenda o vaqueiro antigamente um escravo ficava senhor do gado, da casa, dos cavalos, responsável pelas iniciativas imediatas para defender os animais entregues a sua energia. Movimenta-se livremente nos plainos dos tabuleiros e caatingas, no galope árduo do seu cavalo de fábrica, caçando as reses tresmalhadas ou ariscas32.
Para Cascudo, o vaqueiro é um homem portador de um “individualismo arrogante” e
de uma “autonomia moral”33, que vive “encourado, com sua armadura côr de tijolo, suas
esporas de prateleiras, [e] seu gibão medieval”34 nos livres campos em busca das reses. Este
autor resgata a fidelidade do vaqueiro para com seu patrão defendida por Euclides da Cunha,
afirmando a existência de uma relação harmônica entre esses sujeitos, pois, “na criação do
gado, a lida unificou os homens ricos e pobres [...] Vão os dois, patrão e servo, para a mesma
batalha, lado a lado, ao encontro do mesmo fim, com disposições idênticas, e nas veias a
mesma herança orgulhosa de vaqueiro e de cavalo sem derrotas”35.
É ainda no início do século XX que surgem as primeiras observações propriamente
historiográficas sobre os vaqueiros. Nesse grupo podemos incluir de forma exemplar Urbino
Vianna, Basílio de Magalhães e Capistrano de Abreu. Preocupados em explicar os processos
de ocupação territorial do Brasil, não dedicaram esses autores em suas obras mais que
algumas linhas ao vaqueiro. “Vaqueiro”, destaca Capistrano de Abreu se remetendo ao
“admirável” Roteiro do Maranhão a Goiás, era entre “as gentes da Bahia, Pernambuco,
Ceará”, um título honorífico36.
31 Idem, Ibidem, p. 104-106, 122-124, 125-128. 32 CASCUDO, Luís da Câmara. Tradições Populares da pecuária Nordestina. Pernambuco: ASA, 1985, p. 32 33 Idem. Dicionário do Folclore Brasileiro..., p. 783. 34 Idem.Vaqueiros e Cantadores: folclore poético do Sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [198-], p. 80. 35 Idem. Sociologia da abolição em Mossoró. In: Boletim Bibliográfico. Mossoró, nº 95-100 apud Idem. Dicionário do Folclore Brasileiro..., p. 783. 36 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500-1800). Fundação Biblioteca Nacional – Departamento Nacional do Livro, p. 73. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000062.pdf>. Acessado em 23 de mai/2011.
28
O vaqueiro que emerge da obra de Capistrano é, essencialmente, o “homem que cuida
da fazenda e do gado” do seu patrão, que o protege das feras, o homem povoador das áreas
interioranas. Descrito como um homem astuto, nos lembra Arnaldo, prefere dormir no campo,
tende a liberdade. Basílio de Magalhães, em rápida passagem, chega mesmo a reclamar o
esquecimento ao qual estão expostos os trabalhadores do gado, afirmando que o “imerecido
anonimato” dos “audazes vaqueiros” é resultado do fato de que estes não foram “contribuintes
de peso do erário de Portugal!”37.
Na década de 1950, a “sociedade rude dos vaqueiros” afirmada por Euclides no
início do século XX, ecoou novamente, dessa vez entre os intelectuais literatos baianos. Entre
seus adeptos merecem destaque Eurico Alves Boaventura e Wilson Lins. Pertence ao primeiro
o já citado Fidalgos e Vaqueiros. Este, como já pudemos nos referir, foi alvo dos estudos de
Valter Guimarães Soares e tem despertado o interesse de diversos outros pesquisadores. É a
mais relevante obra sobre a pecuária baiana e foi publicado postumamente.
Assim como em Euclides da Cunha, o vaqueiro euriquiano é também um
“bandeirante pastoril”, mestiço superior, com pouquíssimo ou nenhum sangue africano, é o
símbolo de uma sociedade original esquecida no interior do País, trabalhador fiel ao seu
patrão, o verdadeiro desbravador e povoador das caatingas, pois, “saiu o vaqueiro, vestido de
bandeirante, a desbravar o horizonte, a rasgar as serras e a esfarrapar nesgas de mato mais
alto, para caminhos posteriores à cata de mais pasto”. Ainda segundo Eurico Alves, o
vaqueiro tem a necessidade de “explorar novos horizontes”, isso, todavia, não significa que
seja nômade como o índio, não está perdido na caatinga sem pouso, apenas herdou desse a
“acomodação à vida movimentada, o bem estar da solidão”38. Para esse autor a sociedade do
vaqueiro é também harmônica: É absoluta a autoridade do fazendeiro e vive ele na comunhão integral com seu domínio e sua gente. Apesar de fidalgo, não sentia repúdio ao trabalho, sobretudo pelo belo trabalho do vaqueiro. Possivelmente, o fato de não ser escravo o vaqueiro tenha concorrido para animar o dinamismo do homem que se atirou ao pastoreio39.
Emerge da citação um fazendeiro que não só comunga da vida com seus vaqueiros
como também é, ele próprio, um vaqueiro. Como nos mostra Igor Gomes Santos, Eurico
37 MAGALHÃES, Basílio de. Expansão Geográfica do Brasil Colonial. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 153. 38 BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e Vaqueiros. Salvador: UFBA, Centro Editorial e Didático, 1989, p. 125. 39 Idem, Ibidem, p. 103.
29
Alves buscou horizontalizar racial e socialmente o vaqueiro e o fidalgo, excluindo (ainda que
sem negar a existência) a influência africana da sociedade sertaneja e enfatizando o gosto pelo
trabalho por parte das elites aristocráticas40.
Assim como Eurico Alves, Wilson Lins também foi integrante da aristocracia
pecuária baiana, tendo desfrutado de grande influência política em meados do século XX e
sendo eleito diversas vezes como deputado. Firmou-se no campo das artes como ensaísta,
romancista e jornalista sendo sua obra de maior peso O Médio São Francisco: uma sociedade
de pastores e guerreiros, um ensaio sócio-histórico sobre o coronelismo e a cultura do sertão
do vale sanfranciscano, produzido a partir de suas lembranças de infância. Embora não tenha
na pecuária e no vaqueiro seu foco narrativo, Lins incorpora as representações sociais
euclidianas do homem forte, rude, corajoso, honrado e fiel a seus patrões para definir o
vaqueiro.
Afirma Lins que no vale sanfranciscano “os covardes nascem mortos”41, ali “todos
eram vaqueiros, todos vestiam o mesmo gibão de couro, moravam as mesmas casas de taipa,
comiam a mesma carne seca com farinha e rapadura”, viviam uma “indigência coletiva”42. Na
sociedade wilsoniana o “caibra vaqueiro” é o “exemplar magnífico de uma raça de curibocas
puros quase sem mescla de sangue africano”43. A “sociedade rude dos vaqueiros” emerge em
Lins também calçada por uma positivação da hierarquia social, da originalidade racial mestiça
curiboca, do mundo rural pastoril e de seus personagens. É importante notarmos, contudo,
que o retorno aos discursos de Euclides da Cunha feito pelos dois autores baianos não visou
mais afirmar a existência de uma originalidade nacional. A proposta foi outra. Buscaram esses
autores afirmar uma importância histórica para a aristocracia pecuária da qual faziam parte em
um momento (meados do século XX) onde as relações de poder e prestígio se voltavam para o
mundo urbano.
Também no campo memorialístico na década de 1950, José Norberto de Macêdo
publicou Fazendas de Gado no Vale do São Francisco. A obra é um relato das observações
do autor sobre o cotidiano nas fazendas de gado do Vale do São Francisco, fundamentadas
sobre as representações euclidianas de sertão e vaqueiro e a defesa da necessidade de 40 SANTOS, Igor Gomes. Eurico Alves Boaventura: uma “democracia mestiça” para uma civilização de “uma classe só”. In: SILVA, Aldo José Moraes (Org.). História, poesia, sertão: explorando a obra de Eurico Alves Boaventura. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. 41 LINS, Wilson. O Médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros. Salvador: Oxumare, 1952, p. 135. 42 Idem, Ibidem, p. 37-38. 43 Idem, Ibidem, p. 16.
30
incorporação das tecnologias modernas ao mundo pecuário baiano. Para o autor, o Vale do
São Francisco é “antes de tudo” o lugar onde o gado e o homem se “interdependem”. O
vaqueiro de Macêdo é também um desbravador, braço trabalhador e ocupador da terra, calmo,
comedido, aprendeu a falar pouco e observar muito, fiel seguidor da orientação traçada pelo
patrão, vive curvado, tem o estômago chupado, seus braços e mãos são fortes, “são enormes e
grossas como que desajeitadas para os trabalhos suaves e delicados”, “nasceu mesmo para
viver escarranchado numa sela, bamboleando suas pernas longas e magras nos cavalinhos
adelgaçados”. Embora heróis, “não cremos”, destaca ainda o autor, que estes pobres e
humildes trabalhadores possam constituir nem ao menos os arautos de suas necessidades; suas
vozes se perdem e morrem no limiar dos currais e das caatingas”44.
Enquanto os literatos e memorialistas nordestinos resgataram em meados do século
XX o vaqueiro heróico euclidiano, o Cinema Novo de Glauber Rocha os confrontou expondo
Manoel Vaqueiro, um “anti-herói”, homem pobre e resignado, que vive entre as calamidades
das injustiças sociais e da seca45. O emergir da década de 1960 marca ainda a fundamentação
de um novo dizer sobre o vaqueiro no campo historiográfico, a partir da consolidação do
modelo econômico explicativo da gênese histórica brasileira, defendido por Caio Prado,
Fernando Novais e Jobson Arruda.
Focando a importância do grande mercado do açúcar, as relações comerciais
externas e o sistema escravista dentro do contexto mundial de expansão das relações
capitalistas mercantis, esses autores afirmaram ser a pecuária, e consequentemente, os
vaqueiros, fatores secundários na História Brasileira, cuja importância se reduzia à sua
colaboração para com a atividade agroexportadora. Para Caio Prado o vaqueiro era o dirigente
do “estabelecimento” (fazenda), um dos poucos “empregados”, vivia ele “montado o dia
inteiro” sem poder se descuidar do disperso rebanho. Prossegue Prado destacando que as
fazendas mais importantes possuíam dois ou três vaqueiros. Para o autor, a vida nas fazendas
dos sertões, eram marcadas por relações de trabalho “rudimentares” e “primitivas”, por
formas atrasadas de trato com os animais e de condições materiais de vida46.
44 MACEDO, José Norberto de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Serviço de Informação Agrícola, 1952, p. 48-53. 45 DEUS e o Diabo na Terra do Sol. Direção Glauber Rocha. Produção: Luís Augusto Mendes. Versátil Home Vídeo; Riofilme, 1964, DVD Duplo, Versão Restaurada e Remasterizada (125 min.), Fullscreen, P&B 46 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 36,48,52,55-59,113,118,182-193, passim.
31
A ênfase na gênese capitalista da História Brasileira levou Prado, em outro texto, a
afirmar, o sistema tradicional de pagamento dos vaqueiros47 como uma forma disfarçada de
assalariamento48. José de Souza Martins, analisando o colonato na região cafeeira, este
também alvo das observações de Prado, realizou crítica ao posicionamento do autor,
destacando que suas afirmações se fundamentavam mais em polarizações políticas
vivenciadas em seu contexto do que em uma real preocupação para com a reconstrução
histórica da realidade49. Como veremos, no tocante ao entendimento das relações e sujeitos de
trabalho envolvidos no mundo da pecuária, só recentemente esse modelo explicativo genérico
passou a ser questionado.
A partir da década de 1980, surgiu uma nova geração de trabalhos memorialísticos
que transitaram pela temática do vaqueiro. Entre os anos de 1985 e 1988 foi produzida e
publicada a coletânea História de Vaqueiros: vivências e mitologias. O projeto foi apoiado
por órgãos estaduais como IPAC (Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural da Bahia) e
coordenado por Washington Queiroz. Em suas viagens os pesquisadores percorreram 37
municípios baianos e reuniram dezenas de entrevistas dos trabalhadores vaqueiros, abordando
os hábitos, cultura material, religiosidade, crenças, festas, mitos e medicação animal. O
resultado desse levantamento foi a publicação de 2 volumes e um catálogo bibliográfico, os
quais, no nosso entender, compõem ainda um dos materiais mais completos no que tange ao
contato com a memória dos vaqueiros baianos. O objetivo do projeto, no entanto, não foi o de
debater ou analisar as narrativas colhidas, mas, apenas registrá-las. Na introdução de um dos
livros ressalta Queiroz: A transformação cada vez maior das zonas de criação de gado solto em zonas de criação de pastagens, com gado marcado a ferro e preso em currais, modifica as atividades do vaqueiro, transformando-o apenas em tangedor, zelador de gado. Com isso, a figura tradicional do vaqueiro deixa de existir ou, pelo menos, começa a ser transmutada, na medida em que não mais enfrenta os obstáculos próprios à criação extensiva do gado. Tais mudanças poderão, rapidamente, levar ao desaparecimento desta personalidade tetracentenária, extinguindo assim suas histórias, sem o devido registro50
47 Era comum os vaqueiros receberem 1 em cada 4 animais nascidos no rebanho sobre o qual se responsabilizava. Esse sistema será melhor abordado no capítulo II. 48 Idem. Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil. In: PRADO JÚNIOR, Caio. A questão agrária no Brasil. 5ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 60-65. 49 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9ª Ed. revisada e ampliada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 28-29. 50 BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Histórias de vaqueiros: vivências e mitologia. Salvador; IPAC, 1987, vol 1, p. 15.
32
A consolidação da pesquisa acadêmica no Brasil após 1980, impulsionou os
historiadores a reverem as visões macro analíticas economicistas da década de 1960. A
continuidade desse processo tem permitido recentemente o surgimento de pesquisas
historiográficas voltadas para as especificidades dos sertões nordestinos a partir de novos
pressupostos teóricos e metodológicos. Embora parte dessas obras não tome a pecuária e o
vaqueiro como foco de análise, as tramas sócio-econômicas, agrárias, familiares e raciais
descortinadas tem permitido produzir novos questionamentos e compreender mundos
complexos dos quais eram os vaqueiros parte integrante. Nesse grupo podemos incluir, por
exemplo, os trabalhos do pesquisador Erivaldo Fagundes Neves, Luiz Cléber Moraes Freire,
Elisangela Oliveira Ferreira e Maria Aparecida Silva de Sousa. O primeiro, centrado no
campo teórico-metodológico da História Econômica, História Agrária e História Regional,
buscou entender a dinâmica agrária do Alto Sertão da Bahia entre os séculos XVIII e XIX,
apontando para a existência de vaqueiros escravos e para estratégias de acumulação de micro-
patrimônios desses sujeitos, a partir da sua condição cativa51.
Freire, influenciado por Neves, analisou a participação da mão-de-obra escrava em
Feira de Santana entre 1850 e 1888, identificando também entre os documentos oficiais
analisados 10 vaqueiros escravos e 1 curraleiro, categoria de trabalhador ainda pouco
conhecida52. Ainda apontando para a existência dos vaqueiros escravos está a obra Entre
vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no Sertão do São
Francisco, no século XIX53 de Elisangela Oliveira. Maria Aparecida em A Conquista do
Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia, dedica parte de sua
obra para demonstrar a importância da pecuária como fator de ocupação das terras apossadas
pelos colonizadores54. Em todos esses trabalhos emerge uma leitura mais profunda e acurada
sobre a importância do gado como patrimônio familiar, mesmo para os mais despossuídos, e
ferramenta de domínio dos espaços conquistados nos primeiros séculos.
Ainda no campo historiográfico recente e abordando especialmente a dinâmica
pecuária e os seus trabalhadores, podemos citar os estudos de Francisco Carlos Teixeira da
51 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sucessão dominial e escravidão na pecuária do Rio das Rãs. In: Sitientibus. Feira de Santana: UEFS Editora, nº 21, jul/dez 1999, p. 126-127. 52 FREIRE, Luiz Cléber Moraes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santana, 1850-1888. Salvador: UFBA, 2007 p. 87-91. 53 FERREIRA, Elisangela Oliveira. Entre vazante, caatingas e serras: Trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São Francisco, no século XIX. Salvador: UFBA, 2008 [Tese de Doutorado], p. 25. 54 SOUSA, Maria Aparecida Silva de. A conquista do sertão da ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da Conquista: UESB, 2001, p. 100-110.
33
Silva. Esse autor tem nos chamado atenção para a forma “idealizada e impressionista” com
que o vaqueiro tem sido tratado. Refere-se Teixeira da Silva à existência de uma “mitologia
do vaqueiro”, composta por uma visão heroicizada e romantizada do homem vestido em seu
gibão como um “sucedâneo brasileiro do cawboy”.
Para esse autor a historiografia dos anos 1960 usou de forma genérica o termo
“vaqueiro”, definindo-o como todos os que trabalhavam com gado nas fazendas. Esse fato
impediu a percepção das hierarquias existentes dentro da fazenda e subalternas ao vaqueiro
como os camaradas, cabras ou fábricas. De acordo com Teixeira, o vaqueiro dos tempos
imperiais e coloniais era um homem livre, ocupava posto de prestígio dentro das fazendas,
tinha acesso aos seus senhores, o sistema de partilha lhe permitia adquirir terras e por vezes
tornavam-se credores dos próprios fazendeiros. Para ele, o vaqueiro podia ainda criar animais
seus e de vizinhos ao mesmo tempo, recebendo por esse serviço55.
O surgimento dessas novas abordagens sobre o mundo da pecuária e seus sujeitos,
como nos acrescenta ainda Teixeira, só foi possível depois dos estudos de Luíz Mott sobre as
fazendas de gado do Piauí. Segundo ele, Mott desafiou a historiografia tradicional ao enfatizar
a predominância da escravidão nas relações pecuárias do sertão e romper o mito da aptidão
indígena ao caráter livre da pecuária56.
Eduardo Magalhães Ribeiro, em artigo intitulado Vaqueiros, bois e boiadas –
trabalho, negócio e cultura na pecuária do nordeste mineiro, cuja perspetiva analítica se
aproxima dos estudos de Francisco Carlos Teixeira (embora não faça referência aos trabalhos
deste), destaca o vaqueiro como um sujeito imerso em uma rede de relações de trabalho e
comerciais formada por agregados, comerciantes, fazendeiros e boiadeiros. Também para
Ribeiro, o vaqueiro era um trabalhador especializado que recebia um tratamento diferente por
parte dos seus patrões, sendo muitas vezes tolerado mais que os outros empregados. O
vaqueiro, ainda segundo Ribeiro, tinha acesso às casas e essa proximidade era cultivada pelos
próprios fazendeiros como forma de manter o controle sobre o trabalho do seu empregado57.
Tanya Maria Pires Brandão, afirmando ser o vaqueiro o tipo social ideal para análise
da vivência no sertão, uma vez que este incorpora ao mesmo tempo a liberdade do ofício e a
55 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ, nº 8, abr/1997, O trabalho: vaqueiros, cabras e escravos. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/oito/francis8.htm>. Acesso em 01 de fev/2011. 56 Idem, Ibidem, loc. cit. 57 RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Vaqueiros, bois e boiadas..., p. 137-144.
34
dominação dos fazendeiros, também reconhece sua distinção laboral e define-o como
administrador da fazenda, como integrante da escala de poder, homem de confiança do patrão.
Essa autora chega a se referir a um “posto de vaqueiro”58. Essa visão, contudo, nos parece
encaminhar para um equívoco. Erivaldo Fagundes Neves aponta para a existência de
diferenças entre os vaqueiros e administradores das fazendas. Estes, nem sempre residiam nas
fazendas pelas quais eram responsáveis. Para esse autor, o erro em considerar esses dois
sujeitos como um só emerge das crônicas coloniais, a exemplo da de Antonil. Vaqueiros e
administradores eram, pois, funções diferentes e gozavam de prestígios diferentes59.
O enfoque direto sobre o vaqueiro e suas relações de trabalho no contexto
historiográfico recente, ganha maior fôlego na obra de Joana Medrado Nascimento
denominada “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho e cultura política na pecuária
(Geremoabo, 1880-1900). Medrado analisa, a partir de inventários e cartas trocadas entre o
Barão de Geremoabo e seus vaqueiros, as práticas desses trabalhadores, os pontos
conflituosos das relações de trabalho, as estratégias e resistências na disputa por espaços e
prestígio. Para essa pesquisadora, o importante é perceber o ponto de vista dos próprios
vaqueiros sobre as relações de trabalho nas quais se encontravam. Joana Medrado questiona
os mitos da harmonia social e da fidelidade dos trabalhadores a seus patrões, proclamadas
desde o trabalho de Euclides da Cunha. Para ela, ser vaqueiro era um ofício de “valorização
social e prazer pessoal”, o que não deve ser confundido com “adoração ao dono da fazenda”,
uma vez que era justamente a possibilidade de construção de uma autonomia (pessoal e
patrimonial) e independência em relação ao fazendeiro que tornava o trabalho com o gado
uma função almejada60.
Esses novos trabalhos historiográficos, tanto os que abordam de forma indireta como
os que se voltam diretamente para os vaqueiros, fundados em novas abordagens teórico-
metodológicas, propuseram novas leituras sobre os documentos enfatizando os silêncios e as
relações cotidianas dos grupos “comuns”, nesse sentido, o vaqueiro tem emergido como um
sujeito complexo, envolto em diversas relações de trabalho e portador de grande poder
simbólico junto a seus patrões. O vaqueiro livre, luso-indígena, afirmado por literatos e 58 BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão. In: MONTENEGRO, Antônio Torres; et. al. História: Cultura e Sentimento: Outras Histórias do Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Cuiabá: Ed. da UFMAT, 2008, p. 121-134. 59 NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2005, p. 222. 60 MEDRADO, Joana. “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho e cultura política na pecuária (Geremoabo 1880-1900). Campinas, SP: [s. n.], 2008 [Dissertação de Mestrado].
35
memorialistas surge agora como homens escravos, negros ou mestiços. Suas relações de
poder são repensadas e a subserviência outrora afirmada, ganha hoje formas de poder de
barganha. O vaqueiro surge em meio a uma teia de relações familiares, de relações de
trabalho, junto com outras categorias de trabalhadores, parece não ser mais o genérico
“homem que cuida do gado”. Estamos aqui bem longe da “subalternidade econômica”
afirmada por Caio Prado e também “servidão inconsciente” e heróica de Euclides da Cunha,
tantas vezes repetidas.
Sabemos, contudo, que a leitura dos textos historiográficos é ainda uma prática
restrita e que muito se tem a descobrir sobre o mundo da pecuária e dos seus trabalhadores.
Pertencem ainda aos literatos, folcloristas e memorialistas as principais representações que
tornam o vaqueiro definível. A força dessas representações pode ser identificada, por
exemplo, no recente artigo publicado de Washington Queiroz, Bahia e Vaqueiros: um débito,
no qual o autor resgata a ação desbravadora do vaqueiro a partir dos discursos de Eurico
Alves Boaventura. Queiroz reafirma os vaqueiros como “bandeirantes”, homens que
possibilitaram o povoamento do sertão, o alargamento das fronteiras, os únicos cuja coragem
transpôs os obstáculos do mundo sertão, formando um “Estado do Sertão”. O vaqueiro de
Queiroz é novamente um rústico, um homem que carrega no rosto os sulcos que são “marca
daquele chão”61.
Como já era notável em História de Vaqueiros, Queiroz está preocupado com a
extinção dos vaqueiros que lidavam com o gado em meio às caatingas devido ao avanço das
relações capitalistas. No citado artigo, o autor afirma existir uma dívida nacional para com o
vaqueiro uma vez que este ainda não recebeu o devido merecimento. Essa dívida recai mais
fortemente sobre a cidade Feira de Santana, núcleo urbano cujas origens estão ligadas ao
comércio de gado e a ação dos vaqueiros. Nesse sentido, Queiroz propõe o reconhecimento
oficial da importância da pecuária e do vaqueiro para a Bahia, através da criação de um
“organismo de referência nacional e internacional” que abarque o patrimônio da “civilização
vaqueira”62. No contornar das linhas do autor, o vaqueiro baiano retorna à condição de herói a
ser reconhecido.
61 QUEIROZ, Washington. Bahia e vaqueiros: um débito. In: R. FACED. Salvador, nº 7, jan/jun. 2010, p.80. Disponível em: <http//:www.portalseer.ufba.br/índex.php/rfaced/article/download/.../3809>. Acesso em: 15 de jun/2011. Queiroz é antropólogo, uma das autoridades de maior destaque no estudo dos vaqueiros e da pecuária na Bahia. 62 Idem, Ibidem, p. 82.
36
Estamos aqui diante de um “jogo da memória”. Para os interesses de Queiroz (chamar
a atenção dos órgãos oficiais) se torna inviável apresentar o vaqueiro pelo discurso da nova
historiografia, que o apresenta muitas vezes como um escravo. Recorre esse autor, pois, às
imagens mais sólidas da memória social, retomando o aspecto heróico e brilhante do
vaqueiro. Diante desse fato e do restrito acesso aos textos historiográficos (para não falar do
pequeno número de pesquisas que tem se voltado para a temática em foco) o vaqueiro ainda
persiste como o genérico “homem que cuida do gado”.
Sua imagem continua sendo confundida nos diversos meios de comunicação com
outras categorias de trabalhadores como carreiros, camaradas, tropeiros. Define-se vaqueiro
como todo aquele que usa indumentárias de couro e trabalha com o gado. Sua imagem é ainda
a do homem, rústico e desbravador de Euclides, ou mesmo a de Arnaldo, subserviente e
solitário, ou a do resignado Manoel Vaqueiro. Para isso, muito contribuiu o silêncio imposto
pelas visões historiográficas macro-analíticas de meados do século XX, de onde só agora a
pecuária e o vaqueiro passam a ser retirados para uma “reavaliação” por parte dos
historiadores. Essas novas pesquisas historiográficas tem se pautado exclusivamente no trato
com fontes oficiais como inventários e testamentos do século XVIII e XIX, contudo, um
razoável conjunto de materiais que aborda o vaqueiro está disponível também fora dos
arquivos.
O vaqueiro é mesmo um dos elementos centrais na composição do imaginário popular
dos sertanejos. Os cordéis e repentes criam e recriam suas aventuras e proezas, alimentando as
representações de heroísmo, coragem, pobreza, força, rusticidade e originalidade. Citemos
alguns exemplos: O vaqueiro que montou no touro fantasma e na mula sem cabeça, do poeta
baiano Antônio Alves da Silva e O barbatão Mandigueiro, de Romenick Cruz Sena. No
campo religioso, Carlos Alberto Steil já demonstrou como a figura do vaqueiro e do boi foram
incorporados pelos romeiros do Santuário de Bom Jesus da Lapa (BA), como forma
metafórica atualizada de reproduzir o mito bíblico do “pastor” e do nascimento de Jesus.
Afirmando ter sido um vaqueiro o “descobridor” da gruta durante a perseguição a uma rês, os
romeiros recriam sua relação com o espaço do santuário e estruturam uma tradição oral que ao
mesmo tempo os liga e possibilita o acesso a práticas religiosas nem sempre aceitas pelo clero
católico63.
63 STEIL, Carlos Alberto. O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 153-158.
37
O imaginário popular sobre os vaqueiros pode ser alcançado também por meio das
corografias e dos livros de memórias64. Muitos municípios já possuem suas próprias
“histórias”, que podem subsidiar um estudo sobre as formas de registro memorial da pecuária
e de seus trabalhadores e da importância dessas memórias para constituição das identidades
locais, ou mesmo, servir de “pista” para o contato inicial com fatos referentes ao tema. O trato
com esse tipo de fonte, no entanto, apresenta dificuldades devido a dispersão física dos
documentos e a forma sintética com que o tema é geralmente abordado nessas obras. A
literatura também tem contribuído com novos “falares” sobre os vaqueiros. O romance A
Dama do Velho Chico, de autoria de Carlos Barbosa, publicado em 2002, nos presenteia com
um protagonista vaqueiro denominado Agenor.
Para além das fontes escritas, as fontes sonoras são recursos de grande potencial
para o entendimento da memória sobre a pecuária e os vaqueiros. Podemos citar aqui,
ilustrativamente, as obras Cantiga do Boi Encantado e História de Vaqueiros, do cantor e
compositor baiano Elomar Figueira de Melo, as músicas da dupla Vavá Machado e Marcolino
e de outros grupos de aboios e toadas65. No campo da pintura indicamos os trabalhos do
artista feirense Juraci Dórea.
É possível que o interesse pelas peculiaridades pecuárias dos sertões baianos e dos
vaqueiros ganhe novo fôlego a partir desse momento. Um elemento de destaque foi dado
nesse sentido: a transformação do ofício de vaqueiro, e seus saberes, em Patrimônio Imaterial
da Bahia, pelo decreto nº 13.150, de 09 de agosto de 2011. No ano de 2007 o município de
Feira de Santana já havia dado um primeiro passo, instituindo o dia 31 de maio como o Dia
Municipal do Vaqueiro. Essas ações de institucionalização, todavia, nos remete ao
pensamento de Pierre Nora: a necessidade da memória sinaliza o fim dos meios de memória66.
64 Além dos já citados, possuem trechos específicos sobre o vaqueiro: SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador: [1970 à 1980], p. 75-76; BATTISTEL, Arlindo Itacir; CAMANDAROBA, Joana. Barra: um retrato do Brasil. Porto Alegre: Edições EST, 1999, p. 53-64. 65 Tendo a música como fonte de pesquisa, podemos citar aqui a monografia de VIEIRA, Natã Silva. O cotidiano dos vaqueiros do sertão nordestino nas músicas dos cantadores aboiadores. Salvador: UFBA, 2006 [Monografia de Graduação]. 66 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dez. 1993, p. 7.
38
Problemática
Em que pese os avanços da nova historiografia que tem abordado a pecuária e seus
trabalhadores direta ou indiretamente, o vaqueiro permanece ainda, para os historiadores,
como sujeito do passado. Inicialmente sua imagem está atrelada aos processos coloniais de
povoação do interior, através da criação das grandes fazendas de gado, que se estenderam
entre o século XVI e o século XVIII. É possível encontrarmos algumas referências ainda
abordando essas temáticas nas primeiras décadas século XX. Aos olhos dos historiadores do
presente só faz sentido falar em “vaqueiro” nesses contextos temporais, parecem aceitar o
“limiar dos currais e das caatingas” proposto por Macedo67, como o limite para o homem e o
boi.
Em claro antagonismo a esses discursos historiográficos, os vaqueiros ainda são
sujeitos presentes em muitas partes do Nordeste. No caso específico do interior baiano, o
processo de mercantilização das terras, oficializado em 1850 com a Lei de Terras, só se
implantou efetivamente na segunda metade do século XX, permitindo que relações de
trabalho e sociabilidades, formas de uso da terra, de recursos naturais e de trato com o gado,
muitas vezes afirmados como referências de um passado colonial pela bibliografia
apresentada, existissem até recentemente.
Outro fator que pesa sobre a imagem em torno dos sujeitos de análise desta dissertação
são as relações de trabalho. O vaqueiro é sempre visto como funcionário de uma “fazenda”,
propriedade de um latifundiário pecuarista, seu “patrão”. Mesmo as pesquisas historiográficas
que se voltaram a analisar diretamente o mundo pecuarista ou que marcam seus recortes
temporais nas primeiras décadas do século XX, afirmam que vaqueiro não existe sem
fazenda68. Nessa perspectiva, o vaqueiro é sempre visto como um apêndice do seu “patrão”,
ainda que se mova, a partir do qual se define. É certo que trabalhar em uma fazenda com o
gado alheio, corresponde a uma regra nas relações de trabalho dos vaqueiros, porém,
antecipemos, nossos estudos apontaram para necessidade observar as peculiaridades do
mundo do trabalho desses sujeitos e relativizar categorias como “vaqueiro”, “fazenda” e
“patrão”, pelo menos para o entendimento das dinâmicas pecuárias recentes do interior da
Bahia para as quais nos voltamos.
67 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 53. 68 RIBEIRO, E. M. Vaqueiros, bois e boiadas..., p.139.
39
Entrevistamos homens que se autodenominam “vaqueiros” pelo simples fato de
conhecerem as artes do trabalho com o gado nas caatingas, no sistema tradicional à solta.
Estamos aqui diante de trabalhadores que entendem o “ser vaqueiro” como algo além de uma
função ou de uma relação de trabalho, mas, como uma identidade. Muitos cuidaram por
décadas dos rebanhos da própria família, obtendo suas rendas pelo sistema tradicional de ¼,
ou a “sorte”, como preferem chamar, mas não possuíram um “patrão” no sentido comumente
abordado na bibliografia consultada. Não acreditamos aqui na hipótese de que houve uma
vulgarização do termo no decorrer do tempo, mesmo porque, os vaqueiros atuais, tais como o
de outrora, continuam sendo trabalhadores especializados, gozando de grande prestígio social
em suas comunidades. É importante notarmos ainda que, toda a bibliografia sobre o tema
pauta-se em leituras exógenas, ora de viajantes, ora de memorialistas, ora de historiadores.
Em síntese, considerado como sujeito do passado, evitou-se perguntar aos vaqueiros atuais “o
que é ser vaqueiro”.
Alguns dos vaqueiros por nós entrevistados cuidaram do rebanho de vários donos ao
mesmo tempo, inclusive dos seus. Uma inversão importante ocorre aqui: no contexto
abordado nessa pesquisa era comum que o vaqueiro fosse procurado pelo criador e não o
contrário, uma vez que aquele possuía uma mão-de-obra especializada. Essa inversão retira do
fazendeiro a condição de epicentro das relações de trabalho. Como vimos, Francisco Carlos
Teixeira já aponta para esse poder de barganha por parte dos vaqueiros. O termo “patrão” é
utilizado pelos entrevistados para designar pequenos e médios criadores, possuidores de
rebanhos que variavam de 50 a 300 gados, grandes pecuaristas, ou até mesmo criadores de
algumas cabeças. Além disso, o vocábulo “patrão”, para os vaqueiros depoentes, não significa
necessariamente a existência de uma relação de trabalho estável, podendo designar, por
exemplo, um contratante de serviços rápidos como a captura ou condução de animais
Outro elemento de destaque em nossas observações foi o fato dos vaqueiros
entrevistados não se definirem como “empregados” e sim como “sócios” do criador. Essa
perspectiva em muito se choca com as leituras da bibliografia consultada. O termo
“empregado” é usado comumente para definir os vaqueiros que atualmente trabalham pelo
sistema assalariado em fazendas cercadas. Acreditamos aqui que a categoria “patrão” ainda
permanece sob as representações euclidianas do grande fazendeiro absenteísta. Por outro lado,
a maior parte dos entrevistados não vivenciou as “fazendas” no sentido clássico do termo,
40
trabalharam com o gado sob sua responsabilidade em meio às áreas de uso comum do Platô
Norte Diamantino ou áreas próximas, ocupando quase a função de donos dos animais.
Tanya Maria Pires Brandão ressalta que a tomada da imagem clássica do vaqueiro
como figura representativa do sertão, pode se vincular com a percepção que se “pretende
difundir da vida no sertão”69. As palavras da autora nos impulsiona a pensar nas
intensionalidades por trás da forma como é apresentado ou silenciado o vaqueiro. Nesse
sentido nos questionamos: Por que os historiadores enterraram o vaqueiro nos primeiros
séculos da História Brasileira? Por que os historiadores, mesmo nos estudos mais recentes,
alguns dos quais se propõem a reler as relações de trabalho em torno da pecuária, ainda
entendem o fazendeiro como o ponto fixo a partir do qual o vaqueiro planeja suas ações?
Já vimos como sua exaltação do vaqueiro serviu para Euclides da Cunha afirmar uma
originalidade social nacional, ou mesmo para autores como Wilson Lins e Eurico Alves
Boaventura reclamarem o desprestígio que a aristocracia pecuária sofria em meados do século
XX. Mais recentemente o vaqueiro serviu de instrumento para Washington Queiroz afirmar a
necessidade da criação de um organismo público que conservasse a memória da “civilização
vaqueira”. E o silêncio dos historiadores, a quem serve?
Márcia Menendes Motta tem apontado para as formas de gestação de uma “amnésia
social” em torno da ação dos sujeitos rurais comuns a partir da manutenção de memórias
oficiais70, muitas vezes alimentadas pela própria História. Ainda Motta nos mostra como os
historiadores, apegados a um dado modelo teórico e formas tipológicas, tem se omitido em
debater a ação do “homem pobre do campo” no século XIX, mesmo diante dos indícios
apontados pelas fontes. Segundo ela, esse fato dá-se em parte pela aceitação da tese
“tradicional” da Sociologia Rural, que defende a criação das Ligas Camponesas como marco
político da criação do campesinato brasileiro71. James Scott também alerta que o trabalho com
registros oficiais, muitas vezes, impossibilita historiadores e cientistas sociais de
compreenderem a dinâmica de ação e luta dos trabalhadores comuns, o que termina por
69 BRANDÃO, T. M. P. O vaqueiro: símbolo da liberdade..., p. 128. 70 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Jogos da Memória: conflitos de terra e amnésia social. In: Tempo. Rio de Janeiro: UFF, vol. 16, abr/2001, p. 113-128 Disponível em: < http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg6-11.pdf>. Acesso em: 14 de jan/2012. 71 Idem. Movimentos rurais nos Oitocentos: uma história em (re)construção. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ, vol. 16, abr/2001, p. 113-128. Disponível em: < http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/dezesseis/marcia16.htm>. Acesso em: 14 de jan/2012.
41
colaborar com o silêncio já existente sobre eles72. Para esses autores, e também para nós, cabe
à História e aos historiadores questionar suas próprias categorias e formas de trabalho,
silêncios e abordagens.
Acreditamos aqui que os motivos que fundamentam o silêncio, a manutenção das
representações generalizantes e anacrônicas dos vaqueiros por parte dos historiadores podem
ser sintetizados em quatro pontos: 1) pequeno número de pesquisadores que se voltam para os
sertões e às dinâmicas de trabalho e sociabilidade em torno da pecuária. Como se tentou
demonstrar, essa realidade só começou a se alterar nas últimas décadas; 2) insuficiência de
centros acadêmicos, linhas de pesquisa voltadas ao mundo rural e resistência por parte de
alguns historiadores quanto ao trato com o domínio que ficou conhecido como História
Recente; 3) ausência de bibliografia e fontes específicas sobre o tema; 4) permanência entre
os historiadores da tese da subalternidade pecuária defendida por Caio Prado e seus
seguidores, ou mesmo, da incorporação por parte dos pesquisadores de leituras modernizantes
e categorias “oficializadas”.
Na verdade esse “aparente apagamento” e a afirmação do vaqueiro como um sujeito
do passado, deve-se ao fato de que os intelectuais da História temem mais contar o que se
vive, do que as pessoas “comuns” de viver. Pensando nessas problemáticas nos propusemos
aqui a analisar os vaqueiros baianos a partir do foco nos processos históricos recentes e de
uma abordagem qualitativa que privilegie a fala dos sujeitos. Nosso espaço de pesquisa é o
Platô Norte Diamantino e seus espaços circunvizinhos, ou melhor, o Sertão de Irecê.
Embora se assemelhasse em linhas gerais a várias outras populações do semi-árido
nordestino, o Sertão de Irecê formou-se e viveu processos sócio-históricos singulares que o
diferenciou de outras áreas. Esse espaço do interior baiano só passou a ser efetivamente
povoado a partir da segunda metade do século XIX. O Sertão de Irecê esteve na maior parte
do tempo à margem das grandes disputas coronelistas. Em relação às disputas políticas
clássicas do interior da Bahia, as ocorrências aí existentes foram eventuais ou de pequenas
proporções.
Tendo sido espaço de povoamento tardio, a escravidão, embora tenha marcado
presença, foi vivida pelas comunidades aí existentes mais como efeito do que como
instituição. Também não foi esse espaço lugar de grandes fazendas de gado, nem alvo direto
72 SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. In: Raízes. Campina Grande – PB: UFCG, vol. 21, nº 01, jan/jun 2002, p. 14.
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das vias férreas instaladas no interior baiano no final do século XIX e início do século XX, e
nem espaço de mineração. Não deixou, porém, de sofrer a influência desses processos. Do
ponto de vista agrário, o Sertão de Irecê firmou-se no processo de fragmentação das grandes
propriedades pela ação de posseiros e arrendatários ou de pequenos sitiantes
poliagropecuários que compraram terras.
Diante dessas peculiaridades entendemos o Sertão de Irecê como a dimensão humano-
espacial e simbólica que possibilitou a emergência de um modo de vida rural costumeiro
sobre o Platô Norte Diamantino entre a segunda metade do século XIX e a década de 1970
(período marcado pela expansão das relações capitalistas no Platô), baseado na apropriação e
transformação direta dos recursos da natureza, no uso comum da terra, na policultura e
polipecuária, nas relações sociais e simbólicas de base comunitária, familiar e de compadrio,
na reprodução geracional dos valores, na produção imemorial das formas de trabalho e nas
relações sócio-econômicas de aprovisionamento.
Emília Pietrafesa de Godoi, baseada nos estudos do antropólogo estadunidense
Marshall Sahlins, esclarece que o aprovisionamento diferencia-se de uma “economia de
subsistência” por ser este comumente associado ao binômio “trabalho contínuo-
sobrevivência”. O aprovisionamento, pelo contrário, não significa uma produção
exclusivamente para consumo direto das famílias, abarca a formação de excedentes (que
garantem a troca por produtos dos quais não dispõem nos mercados locais e regionais), a
formação de reservas e estoques, além de não significar uma “vocação” ao trabalho contínuo,
integrando assim os momentos de lazer e descanso dos sujeitos73.
De certo modo a expressão Sertão de Irecê abarca uma contradição, pois, como
tentaremos demonstrar, a emergência de Irecê como espaço referencial no interior baiano,
firmado sobre um modo de vida urbano, baseado nas relações comerciais e assalariadas, a
partir de meados do século XX, opõe-se às características de “Sertão” predominantes até esse
momento sobre o Platô Norte Diamantino e nas suas proximidades. Contudo, entendemos que
o termo, enquanto noção sócio-espacial, se constitui em uma ferramenta válida para os
objetivos propostos nesta pesquisa por facilitar a delimitação espacial e a compreensão do
modo de vida sertanejo, assim como das transformações pelas quais este passou recentemente.
73 GODOI, Emília Pietrafesa de. O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas SP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 91-92.
43
Para efeito de nosso estudo, espacializamos o Sertão de Irecê a partir da etno-noção de
campo que nos foi apresentada pelos entrevistados. O campo, de forma genérica, era
composto pelas áreas de pastagem de uso comum, mas era também o elemento determinante
na construção da Geografia Social das populações sertanejas. Era sobre o campo que erguiam-
se as casas, povoações, os caminhos, as roças, os currais, nele estava a caça, a fibra, o boi, o
vaqueiro. O campo é muito mais que a caatinga, é uma proposta comunal de uso e
propriedade da terra.
Como reflexo do avanço das relações capitalistas de produção no mundo pós-
guerra, e sua posterior adoção pelos Governos Brasileiros como padrão político-econômico de
desenvolvimento, o Sertão de Irecê tornou-se alvo de várias iniciativas de modernização
agrária e urbana. Esse processo baseou-se na expansão do crédito oficial, na ênfase sobre a
agricultura comercial triconsorciada (feijão, milho e mamona), na horizontalização e
cercamento das terras, na reestruturação urbana, na monetarização das relações de trabalho, na
mecanização das relações de produção e na ação protagonizada do Estado, via produção de
infraestrutura e ergueu, a partir da década de 1970, sobre o Platô Norte Diamantino e áreas
próximas, um pólo agromercantil de grãos nacionalmente interligado e voltado para o
abastecimento interno.
Como se desenvolveu esse processo e quais os seus impactos sobre o modo de vida
das comunidades do Platô Norte Diamantino e circunvizinhança? Como os vaqueiros do
Sertão de Irecê viveram esse momento? Que estratégias usaram para sobreviver em suas
funções? Até que ponto foi possível manter-se vaqueiro? Até que ponto foram eliminados?
Que lembranças alimentam no contexto presente?
O Sertão de Irecê, enquanto lugar de bois e vaqueiros, é tão atual quanto as
modernidades ali chegantes. Entender esse encontro nos requereu ferramentas.
Referencial teórico-metodológico
Este estudo centra-se sobre o pressuposto da indissociabilidade entre sociedade e
espaço, enfocando as dimensões cotidianas e locais como totalidades explicativas dos
processos históricos. Como nos afirma Milton Santos, entender os processos que se
desenvolvem no “lugar”, é hoje um pressuposto para entendermos as dinâmicas do nosso
tempo. O mundo se faz como possibilidade e se materializa no “lugar”. Os grandes conflitos
44
atuais não são outra coisa senão conflitos pelo uso dos “lugares”. Como ainda defende Santos,
no atual contexto de expansão das relações capitalistas, cada vez mais, os “lugares” se
distinguem pelas suas capacidades de oferecerem rentabilidade aos investimentos. Mas, o
“lugar” não é um vazio a ser preenchido por interesses externos, é a dimensão do vivido, do
cotidiano, é a dimensão das paixões, da sobrevivência e das espontaneidades humanas. O
“lugar” é uma totalidade, é a síntese do local e do global74.
Nosso lugar é o Sertão de Irecê, definido aqui como uma dimensão sócio-espacial e
simbólica organizada pelo costume. O costume, nos diz Thompson, é o produto da práxis
cotidiana dos trabalhadores pobres, o conjunto de normas e regras sociais, que disciplinam os
usos dos bens e recursos naturais e sociais, legitimado localmente na prática em comum, no
exercício rotineiro da sobrevivência e nos tempos imemoriais. O costume também se
apresenta como lei, na medida em que produz noções de direito de uso e de continuidade das
práticas e sentidos de vida, ao mesmo tempo em que os legitima a partir da transmissão
geracional. O costume é em si uma propriedade, reivindicada quando em risco. Esse conceito
nos põe em contato com as práticas dos trabalhadores, com seus “juízos” sobre o mundo e
sobre a sociedade, seus mecanismos de reprodução desses juízos, seus códigos de convívio,
suas noções de uso e direito, suas fronteiras e mecanismos de controle social. Ao ser
reivindicado, o costume demonstra os projetos e as expectativas presentes e futuras dos
homens75.
Foi por meio do costume que os habitantes do Sertão de Irecê produziram suas
concepções morais de vivência e uso de suas materialidades, noções espaciais, identitárias,
econômicas, temporais, de ordem e desordem. Criar animais à solta, reconhecer na função de
vaqueiro uma forma de prestígio, usar comunitariamente a terra e os recursos naturais, fazer
um “benefício”, abrir as roças, erguer as casas, usar os espaços urbanos eram no Sertão de
Irecê modos costumeiros de produção da sobrevivência. Pensar o Sertão de Irecê como
produto do costume é buscar entender a realidade do ponto de vista dos que a vivenciaram,
apropriando-se das categorias por eles mesmos gestadas como forma de compreensão dos
sentidos pelos quais definem o mundo e narram suas histórias.
74 SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª Ed. 2ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 212-232. 75 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [Trad. Rosaura Eichemberg], p. 13-24,86-149. Ver também: THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (Coleção Oficinas da História, v. 7) [Trad. Denise Bottman].
45
Para compreensão do processo de modernização rural que se expandiu sobre o
Sertão de Irecê na segunda metade do século XX, nos apropriamos das categorias teóricas de
Francisco de Oliveira. Entendemos o pólo agromercantil erguido sobre o Platô Norte
Diamantino e áreas próximas como uma “região econômica”: a “região do feijão” ou “Região
de Irecê”, uma “especificidade regional” dentro da “Região econômica Nordeste”. Como nos
fala Oliveira, uma região é um espaço especial de produção do capital dentro do modo de
produção capitalista, é um espaço onde se imbrincam o econômico e o político, determinado
por uma das formas do capital, cuja finalidade maior é garantir os meios para a reprodução
ampliada desse capital e sua inserção nas esferas superiores76.
Enquanto espaço do capital, a região possui sua própria hierarquia de classes,
estruturada pela posição em que os sujeitos se encontram em relação às dinâmicas que
controlam os sistemas de produção e reprodução do sistema77. O conceito de região, ou
melhor, a noção de “especificidade regional”, nos possibilita entender os processos pelos
quais o capital determina a forma de uso das espacialidades no seu processo de reprodução
desigual e combinado, que determina e produz a divisão regional do trabalho no País. A partir
dessa abordagem buscamos compreender os reflexos da dinâmica sobre a sociedade que os
vivencia.
Se o costume era o poder que organizava as relações sociais no Sertão de Irecê, a
partir de meados do século XX, o capital, enquanto relação social, tornou-se o novo poder que
mediou a relação dos homens com o meio e dos homens entre si. Com a expansão da
agricultura comercial não se plantou mais para abastecer a casa, mas, para atender aos
mercados das grandes cidades; se fez cada vez menos adjuntos; cantou-se cada vez menos nas
fontes, viu-se cada vez menos reses fugidas em meio à caatinga, cada vez menos aboios, cada
vez menos caatinga. O Sertão de Irecê foi, pois, substituído pela Região de Irecê no ritmo em
que os mecanismos de reprodução do costume deixaram de ser repostos, dando lugar a novos
sentidos para as relações sociais e de trabalho, para a terra e para a cidade. O Sertão de Irecê,
pois, não existe mais como realidade sócio-espacial vivenciada, existe agora como lugar de
memória, nos termos definidos por Pierre Nora78.
Considerar o local como uma totalidade explicativa da relação entre as dinâmicas
capitalistas atuais e o cotidiano dos homens, é alcançar os sujeitos em seu movimento
76 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 145-164, 228. 77 Idem, Ibidem, p. 149. 78 NORA, Pierre. Entre memória e história..., p. 21-28.
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concreto de vida sem esquecermos o peso do global sobre a existência. O homem, em sua
dimensão integral, emerge da intersecção entre esse movimento e esse peso. Compreender
essa dinâmica nos exigiu olhar para o homem comum, para os trabalhadores na faina rotineira
do sustento, que vivem suas vidas de modo pragmático, possuindo poucas possibilidades de
sobrevivência, mas, que, a partir delas, engendram suas artes de viver e defender seus
interesses. Mergulhamos aqui, no que Thompson definiu como experiência humana. A
experiência é a vivência cotidiana, conflituosa, concreta, que permite aos indivíduos uma
leitura crítica das relações de exploração nas quais estão inseridos, assim como da sua posição
e de suas possibilidades conscientes de ação sobre essas relações. A experiência é
determinada dentro das relações de produção em que os homens entram involuntariamente79.
É a partir da experiência que a atividade diária dos vaqueiros no trato com o gado em
meio às caatingas, pode ser vista como ato produtor de leitura de mundo. Os interesses do
capital se antagonizaram às suas expectativas de vida. Retirou-lhes o trabalho, ofuscou suas
representações sociais, dominou-lhes em grande parte o saber, o comportamento. Considerar a
experiência é considerar as possibilidades dos sujeitos produzirem formas conscientes de
sobreviver em meio ao conflito que se ergue e se sente no exercício do trabalho. Não as
formas ideais, mas as formas possíveis no seu tempo e no seu espaço.
Pensar e entender o vaqueiro e a prática da pecuária à solta como uma realidade
recente nos impôs o exercício de ouvir os trabalhadores e buscar os sentidos de suas versões,
para tanto, nos apropriamos do método da História Oral. Jorge Eduardo Aceves Lozano, nos
explica que a História Oral é um espaço de contato e influência interdisciplinar, no qual se
enfatiza os fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, gerar interpretações
qualitativas dos processos históricos. Como destaca esse autor, a História Oral busca as visões
e versões que emergem do interior das experiências dos atores sociais80. Quanto ao uso do
recurso oral como fonte de pesquisa, nos lembra Alessandro Portelli que a suposta
superioridade da escrita sobre a oralidade, defendida por muitos historiadores, não possui
fundamento uma vez que estas não são dimensões antagônicas, uma vez que muitas fontes
79 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um panfletário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182. Ver também: THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2001 [Trad. Antônio Luigi Negro e Sérgio Silva]; THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vols. 80 AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos & abusos da história oral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 16.
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escritas tem por base a oralidade assim como a oralidade moderna está saturada de escrita81.
Para Yara Aun Khoury, a responsabilidade do pesquisador ao lidar com as fontes orais é
identificá-las e compreendê-las em seu contexto social e dentro dos seus objetivos analíticos,
não como dados e informações, mas, como práticas e/ou expressões de práticas sociais através
das quais os sujeitos se constituem historicamente82.
Foram produzidas 17 entrevistas semi-dirigidas (com roteiro temático previamente
montado) abordando temáticas relacionadas ao mundo do trabalho e as mudanças recentes
implantadas pelo avanço das relações capitalistas. Os vaqueiros entrevistados foram homens
com mais de 60 anos, que conheceram e trabalharam com gado no sistema à solta no Platô
Norte Diamantino ou mesmo nas áreas circunvizinhas, que afirmam ser ou terem sido
vaqueiros e que tiveram no trato com o gado bovino uma de suas principais fontes de renda,
pelo menos temporariamente.
Dois entrevistados, porém, divergem um pouco desse perfil. Um deles afirmou que
trabalhou no campo, mas que não era vaqueiro porque não executava as destrezas de seus
colegas, outro, trabalhou em diversas fazendas do interior baiano e também em áreas de
caatinga mas, não cuidou de rebanhos no espaço em estudo. Optamos por incluir as narrativas
desses trabalhadores, haja vista a riqueza de detalhes em torno das funções e representações
do vaqueiro abordadas e a possibilidade de entendermos as diferenças entre trabalhar no
campo e ser vaqueiro de campo. De modo geral, os entrevistados sobrevivem atualmente da
aposentadoria, agricultura, artesanato em couro e de serviços esporádicos de trato e condução
dos rebanhos ainda restantes no Platô Setentrional da Chapada Diamantina.
Durante o processo de elaboração das narrativas orais percorremos 8 municípios que
compunham o antigo Sertão de Irecê, a saber: São Gabriel, Jussara, Central, João Dourado,
Uibaí, Lapão, Canarana e Irecê. Optou-se aqui por uma dispersão territorial dos entrevistados
como forma de abarcar a maior diversidade de fatos e narrações possíveis. O contato com
esses trabalhadores deu-se pelo modo indicativo, tanto por parte dos próprios entrevistados
como por parte de amigos. As entrevistas foram realizadas nos locais de moradia dos
vaqueiros e organizadas em dois momentos: 1) abordando as representações e formas de
trabalho dos vaqueiros no campo. Se incluem aqui também os debates sobre a alteridade, a 81 PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDCU, vol. 14, fev/1997b, p. 33. 82 KHOURY, Yara Aun. Narrativas orais na investigação da História Social. In: Projeto História. São Paulo, vol. 22, jun. 2001, p. 81.
48
saudade, o passado; 2) destacamos a ação dos agentes capitalistas, o desenvolvimento
agrícola, as estratégias de sobrevivência, o hoje. Essa divisão deu-se apenas didaticamente,
como é natural, durante as entrevistas os temas se entrecruzaram, emergindo mesmo em
vários momentos das conversas.
A realização desses dois momentos de entrevista foi planejada inicialmente em um
prazo não inferior a uma semana, porém, devido a disponibilidade de tempo dos entrevistados
essa dinâmica foi alterada, havendo casos em que a conversa foi realizada em um único
momento ou mesmo em três momentos diferentes. Com o objetivo de nos aprofundarmos nas
memórias dos entrevistados, utilizamos duas imagens (ver Caderno de Fontes
Complementares) no decorrer das entrevistas que mostram vaqueiros em seus trajes de
trabalho. A imagem 1, uma foto, mereceu destaque nesse sentido, uma vez que os
entrevistados atribuíram a ela uma familiaridade. Diz o senhor Juarez José de Brito olhando a
imagem:
Quando eu me vistia de côro e cedim chamava na lapa do xxx pra o campo, de manhã cedo e vinha chegar de noite, me lembro direitim como fosse..., ferrão..., tudo mais aqui na mão... gostei muito viu. Cavalim branco que’nem o meu... e já é de idade tomém esse vaquêro. Eu só lembro dos meus colega que já tudo já morrero, que era nós tudo vistido de côro e saia tudo junto, eu, cumpade Fernande, Roxinho e muitas pessoa aqui, muitos vaquêro aqui no Gabriel, cumpade Samuel tomém (...)83
O senhor Amado Alves Pinto, popular Roxinho Vaqueiro, chega mesmo a se
confundir com o vaqueiro representado na imagem: En: Essa foto é minha! Num é minha não?! E: (risos). É do sinhô! É de um vaquêro de Uibaí! En:É, né não rapaz! (no sentido de: “É, num sou eu não?!”). (...) Achei bonita! Aqui é o ferrão né!?84
Essa estratégia rendeu momentos de grande emoção, a emergência de lembranças não
contadas ou mesmo o detalhamento de algumas já citadas. De forma geral, a imagem acionou
o pensamento e foi muitas vezes entendida como um presente. As narrativas elaboradas
totalizaram 38 horas, 28 minutos e 37 segundos de gravação, que foi posteriormente transcrita
e organizada segundo eixos temáticos. Ao lado da produção das entrevistas realizamos
também os registros fotográficos que embasam o trabalho.
83 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez), 73 anos, lavrador, criador e antigo vaqueiro, Sede/São Gabriel, 2º momento, 15 de out/2010. 84 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro), 76 anos, lavrador e vaqueiro, Povoado de Mandacarú dos Pilões/Central, 2º momento, 28 de ago/2011.
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Durante o processo de transcrição optamos por manter os termos expressos o mais
próximo possível da forma falada, exemplo: “tiraram”, permaneceu “tiraro”, “lutou”,
permaneceu “lutô”. Evitamos, no entanto, grandes alterações que viessem a prejudicar a
leitura dos textos transcritos, por exemplo: palavras como “filho” e “cavalo”, geralmente
pronunciadas como “fii” e “carralo”, tiveram sua grafia gramatical mantida. Evitamos
também realizar mais de uma alteração por palavra. Os verbos no infinitivo foram mantidos
em sua forma gramatical, por serem eles de extrema importância no entendimento dos
períodos, uma vez que indicam as ações. Por fim, ainda nos apropriamos das contrações: “que
eu”, permaneceu “qu’eu”; “neste instante” permaneceu “nes’tante”. No decorrer do texto, as
falas foram organizadas em forma de diálogo, optamos ainda por mantermos, sempre que
possível, a fala do entrevistador (sempre sublinhada) como indício das condições concretas de
desenvolvimento da conversa.
As narrativas orais aqui trabalhadas são entendidas como um gênero específico de
discurso, composto de outros gêneros - formado por um conjunto de interrupções, pausas,
ritmos, tonalidades, significados -, produto das Ciências Sociais, na medida em que resultam
de um ato dialógico e intencional de entrevista, como concebido por Alessandro Portelli85, e
situadas em um campo multitemporal próprio, transitando entre o mítico, o vivido e o
mitificado, como defende Tânia Risério D’Almeida Gandon86. Essa perspectiva nos orientou
para uma leitura plural das versões históricas dos vaqueiros do Sertão de Irecê. As narrativas
emergiram como textos complexos, formados por tradições, histórias, necessidades e casos,
pelas condições do presente e as marcas do passado, pelo lugar que se encontram e o que
almejam os entrevistados.
As narrativas orais nos possibilitaram o acesso às experiências vivenciadas pelos
trabalhadores vaqueiros diante das mudanças impostas pelo projeto de modernização rural do
Platô Norte Diamantino. A partir delas pudemos entender as possibilidades de ação e defesa
dos territórios de pastagens, as mudanças impostas em seu modo de vida, as estratégias de
valorização dos espaços de prestígio e reprodução profissional, as formas como os vaqueiros
85 PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História: EDUC. São Paulo, vol. 22, jun. 2001, [Trad. Maria Therezinha Janine Ribeiro], p. 10,13. 86 GANDON, Tânia Risério D’Almeida. Entre história e memória: tempos múltiplos de um discurso a muitas vozes. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História: EDUC. São Paulo, vol, 22, jun. 2001, p. 141-146.
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vivenciaram a expulsão ou buscaram manter práticas tradicionais de trabalho e os sentidos
que esses fatos possuem hoje.
O trato com a oralidade, por sua vez, nos põe em contato com a memória coletiva dos
sujeitos. Segundo Maurice Halbwachs, as memórias dos indivíduos se referenciam em uma
memória grupal. Em outras palavras, enquanto seres sociais, os homens produzem vivências
coletivas que servem como uma base comum a partir da qual os indivíduos produzem seus
“pontos de vista” sobre suas experiências. Esses “pontos de vista” variam de acordo com o
lugar que ocupamos nos grupos e as relações que estabelecemos com outros grupos. Para
Halbwachs, nunca estamos realmente sós, mesmo os nossos sentimentos e nossos
pensamentos aparentemente mais autônomos, possuem sua base nos meios e circunstâncias
sociais definidas. Só temos a capacidade de nos lembrar quando nos colocamos do ponto de
vista de um ou mais grupos87.
Acrescenta-nos Ecléa Bosi que a memória coletiva é um trabalho. Ainda que prevaleça
a base comum, é o indivíduo que recorda, é ele que se põe ao trato, seleciona seus passados,
desenvolve o trabalho de usar, reconstruir e manusear suas lembranças significando-as. A
memória coletiva é assim definida como uma ação ativa, relacional, comum (pertence aos
indivíduos e aos meios coletivos) e seletiva de ressignificar atos do passado no presente,
como meio de produção de solidariedades, relações de pertencimento e de disputa pelos
espaços sociais no contexto em que se vive88.
Entendemos aí, que recontar é também uma estratégia dos indivíduos de significarem
o viver. A memória não um depósito de lembranças, mas um tear socialmente vivido, onde
cada indivíduo tece suas peças de formas diversas a partir dos materiais disponíveis ao grupo,
aí colorem e se descolorem os sentidos e valores dos objetos, das relações, do mundo. A
memória nos permite aqui, entendermos como o vivido-passado sobrevive no presente e se
remodela a partir deste. É a partir do acesso à memória coletiva dos trabalhadores que
buscamos analisar como eles se definem hoje, como lembram o passado, que sentido atribuem
ao passado a partir dos seus lugares de vida atuais.
Na medida em que o presente impõe aos indivíduos novos valores e normas, estes
buscam manipular suas reminiscências - passados importantes dos indivíduos selecionados
entre as lembranças – no sentido de garantir a existência ou continuidade de suas práticas e
87 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990, p. 25-52. 88 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1987, p. 17; 411.
51
pontos de vista, através de um processo de composição. A composição, nos diz Alistair
Thomson, nos demonstra que os atos de esquecer e lembrar são atos intencionais,
manipulados em situações específicas nas quais vivem os sujeitos. Todavia, por se basear em
seleções, bloqueios e exclusões, o processo de composição é sempre incompleto, o silêncio do
não falado denuncia o falado como uma estratégia, como uma ação consciente, como um
modo de defesa de certas práticas e valores89. É a partir da relação entre as formas/temas
falados e as formas/temas silenciadas que o historiador consegue entender a memória coletiva
como um “trabalho”, tal qual nos diz Bosi.
A memória, assim, não se apresenta neutra, é fruto de um trabalho intencional. Jacques
Le Goff já destacou que o controle da memória é ,nas sociedades atuais, uma das questões de
maior relevância. Tornarem-se “senhores da memória e do esquecimento”, nos diz ainda Le
Goff, é uma das grandes preocupações dos grupos sociais90. Como nos afirma também Emília
Pietrafesa de Godoi, não podemos nos esquecer que as versões do passado exercem um poder
determinante sobre as formas de definição da realidade atual e de perspectivas futuras, da
mesma forma que as perspectivas futuras também redefinem o “dizer” sobre o passado, até
mesmo como estratégia de ação política dos indivíduos91. A memória é, pois, um poder, um
uso consciente do passado para dados fins presentes.
Trabalhar na interface entre a memória e a História requer a determinação de
fronteiras. Como nos diz Júlio Pimentel Pinto, ambas partem do mesmo ponto, o passado, mas
diferem-se quanto as suas naturezas e formas de ação. Enquanto a História busca demonstrar
as versões a partir de verdades organizadas e compreensíveis, a memória destaca-se
justamente por dificultar a percepção histórica na medida em que reconstrói os sentidos para
as lembranças, produzindo leituras coerentes de episódios na origem desconexos92.
Também Antônio Torres Montenegro nos ajuda a entender que a memória contém
elementos básicos para construção de uma concepção histórica. Sua característica fundante é
o processo reativo que a realidade presente provoca no sujeito, é portadora do desejo coletivo
e individual, ela se forma e opera como conseqüência do impacto das realidades sobre os
grupos, formando um imaginário que se torna referência. Por outro lado, destaca ainda Torres, 89 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDUC, vol. 15, abr. 1997, p. 51-84. 90 GOFF, Jaques Le. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 426. 91 GODOI, Emília Pietrafesa de. O trabalho da memória..., p. 28-29. 92 PINTO, Júlio Pimentel. Os muitos tempos da memória. In: Projeto História. São Paulo, vol. 17, nov. 1998, p. 206.
52
a História opera com a versão pública, estrutura-se como uma leitura social recortada
tematicamente, trabalhada a partir do método e está mais distante do imaginário93. O ponto de
vista da História é o de quem fala do passado com vistas na compreensão da ação dos homens
em um contexto; o ponto de vista da memória coletiva é o de quem fala do passado para
compartilhar sentidos necessários ao seu presente, ao seu grupo.
Como forma de ampliar a compreensão dos impactos dos processos de modernização
rural sobre o trabalho dos vaqueiros analisamos paralelamente às fontes orais, um conjunto de
documentos oficiais que fundamentaram o discurso de “vocação agrícola” para a terra e os
homens do Sertão de Irecê e consequentemente possibilitaram o erguimento da Região de
Irecê. O objetivo central do trato com esses documentos foi tentar entender os projetos
traçados pelo Estado para o campo e a cidade do Platô Norte Diamantino e/ou próximas a
este, assim como as versões históricas e as representações dos trabalhadores no discurso
oficial.
A primeira parte desse conjunto de fontes foi formado por relatórios, pareceres,
mapas, diagnósticos e estatísticas do Ministério da Agricultura, do Ministério do
Planejamento e do Interior, da Companhia de Ação Regional (CAR), da Secretaria do
Planejamento, Ciência e Tecnologia, de órgãos como a Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste (SUDENE), os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND’s), dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Superintendência de Estudos
Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), do Instituto de Urbanismo e Administração Municipal
da Bahia (IURAM), das fundações de Planejamento, de Pesquisas e da Fundação Centro de
Estudos e Projetos da Bahia, do Centro de Estatísticas e Informações da Bahia, do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Secretaria da Indústria, Comércio
e Mineração. Esses documentos foram localizados, em sua maioria, nos arquivos da biblioteca
da SEI, em Salvador.
Outra parcela de documentos oficiais foi colhido na biblioteca da unidade regional da
Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA) em Irecê. São relatórios, dados,
folhetos, jornais e circulares internos, mapas, manuais, textos reflexivos e diagnósticos
pertencentes e publicados pelas agências de assistência técnica e extensão rural, que
participaram do processo de implantação do pólo agromercantil de Irecê, especialmente da
93 MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e memória: a cultura popular revisitada. 5ª Ed. São Paulo: Contexto, 2003, p. 18-20.
53
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia (EMATERBA) e da Empresa de
Pesquisa Agropecuária da Bahia (EPABA).
A análise desses documentos nos possibilitou compreender o processo de
modernização rural do Platô Norte Diamantino e das áreas vizinhas, dentro do processo
nacional desenvolvimentista da segunda metade do século XX. Ao mesmo tempo
identificamos os projetos e agentes locais, suas ações, discursos e contra-discursos, a chegada
de recursos, dados estatísticos sobre a produção de feijão, milho e mamona, rebanhos bovinos
e horizontalização das terras. A catalogação desses dados permitiu a elaboração de tabelas e
porcentagens quanto as variações de produção agrícola e a sua relação direta com o processo
de devastação da caatinga, o crescimento populacional, os níveis de crédito e as variações nos
níveis dos rebanhos bovinos. Esses instrumentos apontaram para o ritmo intenso com que deu
a mercantilização das terras e mecanização das relações de trabalho na área em estudo.
Completando o conjunto de documentos oficiais analisados, encontramos nos arquivos
da Câmara Municipal de Irecê (CMI) correspondências, orçamentos municipais, projetos de
lei, requerimentos, telegramas e abaixo-assinados que exemplificam as formas de contato
entre as representações políticas municipais e as instâncias estaduais e federais. Ainda aí
tivemos acesso às atas de sessões da Câmara entre o período de novembro de 1977 à
novembro de 1984. Esses documentos demonstram como a ênfase no desenvolvimento
agrícola foi assumida e alardeada pelas elites locais, como elas buscaram interferir nos
processos, a preocupação com a disponibilidade de máquinas na lavoura, suas ligações
políticas e suas preocupações diante do fim do crédito agrícola subsidiado em meados dos
anos 1980. Por fim, analisamos ainda a Lei de Terras de 1850, o Código Civil de 1916, o
Estatuto da Terra de 1964 e a lei 4.829 de 1965, que institucionalizou o crédito rural.
Diante dessa diversidade de fontes buscamos entender as versões dos trabalhadores e
do Estado de forma integrada sobre o processo que possibilitou a expansão da agricultura
comercial no Platô Norte Diamantino e nas proximidades e a consequente eliminação do
modo costumeiro de vida e o Sertão de Irecê. Na base desse processo instala-se um conflito
pelo direito de falar.
Buscamos organizar as temáticas em uma perspectiva contextual, de forma a
esclarecer as características centrais do modo de vida costumeiro das comunidades do Sertão
de Irecê, como ele foi modificado a partir de meados do século XX, e como os vaqueiros, a
partir da vivência da exclusão, buscaram defender seus espaços e práticas de trabalho.
54
O capítulo I está voltado para o entendimento dos fatores históricos que possibilitaram
a emergência do Sertão de Irecê. Apresentamos, a partir de referências historiográficas
recentes, os traços centrais do povoamento, das dinâmicas agrárias e mercantis dos sertões
baianos, como forma de contextualizar o processo tardio de ocupação do Platô Norte da
Chapada Diamantina, compreender o modo costumeiro de vida que aí foi desenvolvido e a
espacialização do Sertão de Irecê a partir da etnonoção de campo. No capítulo II abordamos
os sujeitos de pesquisa em seu cotidiano de trabalho. Enfatiza-se aqui a formação social dos
vaqueiros, sua relação com terra, as formas de trabalho tradicionais e a construção de suas
representações sociais.
No capítulo III demonstramos o processo que possibilitou a consolidação da
modernização conservadora como modelo de desenvolvimento agrário brasileiro na segunda
metade do século XX. No primeiro momento, buscamos as interrelações entre os debates
sobre a natureza e as condições do espaço agrário brasileiro no pensamento social e a
expansão das ações de desenvolvimento pelo País, destacando o papel das iniciativas de
modernização do Nordeste como modelo para formação de um padrão político-econômico
para o Brasil durante os Governos Militares. No segundo momento, enfatizamos a
modernização conservadora como face planejada do capital, destacando em seguida a chegada
e consolidação dessas iniciativas sobre o Sertão de Irecê, especificando o arranjo urbano-
agrário que aí foi produzido.
No capítulo IV partimos das mudanças e iniciativas de modernização, destacadas no
capítulo anterior, para defendermos a Região de Irecê como uma “especificidade regional” da
Região Econômica do Nordeste. Descortinamos em seguida o discurso científico-tecnológico-
oficial que afirmou a existência de uma vocação agrícola para os homens e terra do Sertão de
Irecê como forma de fundamentar os objetivos do Estado. Na sequência, destacamos o
contexto conflituoso vivido pelos vaqueiros diante do avanço da lavoura comercial, do
cercamento e do fim das terras de campo, apontando para experiências e formas de resistência
engendradas cotidianamente por esses trabalhadores como meio de se manterem próximos às
práticas e lembranças que lhes dão sentido à vida. O capítulo se encerra abordando o processo
que levou a crise da Região de Irecê e as formas atuais de sobrevivência do Sertão de Irecê
como lugar de memória, logo após, realizamos as considerações finais da pesquisa.
55
Acrescentamos ao fim do trabalho um Caderno de Fontes Complementares composto
por algumas fontes iconográficas, poéticas e pelos documentos que nos serviram de base
durante a produção, catalogação e análise das narrativas orais.
56
CAPÍTULO I
O sertão em movimento: relações agrárias, costume e uso comum de terras
Não eu não sou do lugar dos esquecidos Não sou da nação dos condenados Não sou do sertão dos ofendidos Você sabe bem! Conheço meu lugar!
(Belchior)
Sertão: povoamento, relações de produção e circuito mercantil
Desde a primeira metade do século XVI, a Coroa Portuguesa buscou povoar e explorar
as novas terras tendo como política principal a doação de capitanias e a concessão de amplos
privilégios aos chamados “donatários”. Essas iniciativas, contudo, surtiram pouco efeito e a
maior parte das terras continuou ainda desconhecida por longo período. Entre o final deste
século e o decorrer do século XVII, as sesmarias doadas à família D’Ávila, descendentes de
Tomé de Souza, e a família Guedes de Brito, transformam-se em grandes domínios fundiários
que compuseram a tela principal sobre a qual se desenvolveu o processo de povoação das
zonas interioranas da Colônia. Além dessas, diversas outras sesmarias foram doadas até o
início do século XIX.
Como nos informa Erivaldo Fagundes Neves, o regime de sesmarias no Brasil,
representou a ordem jurídico-política da colonização, estabelecendo critérios e normas para
repartição, posse, exploração e ocupação dos territórios conquistados. Porém, a ausência de
controle administrativo por parte da Coroa, a busca dos sesmeiros por ampliar suas posses por
meio da expulsão dos indígenas e da incorporação de territórios “vazios”, a constante omissão
das fronteiras de seus domínios junto aos órgãos da Coroa, o desrespeito para com as
determinações legais e a própria ineficácia de muitas dessas determinações, marcadas que
foram por corriqueiras revogações e reeditações de normas, transformaram o regime de
sesmarias em um “caos fundiário” já visível no final do século XVIII. A esse contexto
acrescentou-se a ação dos posseiros, nunca combatidos pelo Governo Português94.
94 NEVES, E. F.. Estrutura Fundiária..., p. 98-100.
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Analisando as observações do governador da capitania do Pará, Francisco Maurício de
Souza Coutinho, elaboradas em 1797, Márcia Menendes Motta demonstra que tal “caos” era
motivo de grande preocupação entre as elites coloniais. Entre os problemas que envolviam a
posse das terras, estava a ausência de mão-de-obra qualificada para demarcar áreas contíguas
em grandes extensões, como geômetras e astrônomos, e a necessidade de cartas cartográficas.
Outro problema apontado pelo representante do Governo Português relacionava-se à
disparidade entre a extensão das terras doadas e a capacidade de cultivo. Relata Motta as
reflexões de Coutinho a esse respeito: Meia légua em quadra, vem a ser um espaço um espaço de dois milhões duzentas e cinqüenta mil braças quadradas. Um lavrador que tenha pouco mais ou menos 100 escravos de todas as idades, e sexo de que venha a apurar trinta de cada sexo capazes de trabalho, o mais a que poderá entender os seus roçados de modo que os aproveite, e que ele possa dar a tempo o preciso benefício, será tralvez duzentas braças de frente com igual fundo, segundo o que tenho podido alcançar a este respeito, e ouvido das pessoas de mais confiança na sua inteligência, que ainda duvidam que a tanto possam chegar.
Além disso, aponta ainda a autora, em áreas antigas o conflito de terras já se fazia
muito antes da concessão de sesmarias, a concessão desta por sua vez abria precedente para
incorporação de áreas limítrofes pela alegação, por parte de seus possuidores, da existência de
“sobras”, recurso para o qual a Coroa não possuía disposições. Nesse sentido, afirma ainda
Motta que a concessão de sesmarias era antes de tudo uma concessão política e não territorial.
Na ritualística da conceção das terras, encontravam-se um Estado investido enquanto
determinador da justiça e harmonia e um solicitante súdito, mediados por uma suposta relação
de submissão. Alcançar a posição de sesmeiro, conclui Márcia Menendes Motta, era mesmo
uma forma de ascensão social, diferenciando o seu portador do “universo de lavradores, sem
títulos de propriedade”95.
As sesmarias eram assim um capital fundiário e simbólico em movimento e em
constante disputa. A dilatação constante dos domínios avançou sobre os territórios indígenas e
os conflitos foram inevitáveis. Como afirma Erivaldo Fagundes Neves, os colonizadores
buscaram, na luta contra as populações indígenas, garantir mão-de-obra escrava e recursos e
terminaram por produzir uma “desterritorialização em cadeia”. Em muitos casos os
colonizadores se apropriaram das divisões entre grupos indígenas para obter apoio na guerra
contra outros grupos, além disso, muitos ou nenhum, eram os argumentos usados para o
95 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito a terra no Brasil: a gestação do conflito 1975-1824. São Paulo: Alameda, 2009, p. 113-126, 170-171.
58
estabelecimento da chamada “guerra justa”. De qualquer forma, “descobrir” as novas terras
significou a dominação armada, a expulsão, submissão e eliminação física das populações
autóctones96. Francisco Carlos Teixeira sintetiza esse processo ao relatar que os primeiros
momentos da ocupação do sertão deram-se pelo despovoamento97. Ainda contribuíram para
esse extermínio as diversas doenças e a ruptura social e cultural às quais foram expostos os
grupos indígenas98.
Seguindo esse processo ou mesmo paralelo a ele, deu-se a implantação das fazendas
de gado no interior da Colônia. Como nos afirma Maria Yeda Linhares, a expansão da
fazenda de gado para a fronteira aberta, constituiu ao mesmo tempo uma estratégia econômica
e prática do Governo Português, uma vez que liberou as terras litorâneas para o cultivo da
cana e garantiu a ocupação dos territórios interioranos nos primeiros séculos99. O gado bovino
chegou ao Brasil ainda no século XVI e consolidou sua marcha nos séculos seguintes em
direção as partes mais afastadas da Capital. Como destaca Basílio de Magalhães, por volta de
1700 o rio São Francisco já era chamado de “rio dos currais”100. Por tal dimensão, afirma
Eurico Alves Boaventura que o “boi” foi o grande descobridor do sertão, onde se fundou uma
“civilização do pastoreio” que tinha na “fazenda de criar” o símbolo maior de sua “origem” e
no “curral” a sua “identidade”101. O gado trazido para colônia recebeu o nome de “curraleiro”,
“crioulo” ou “peduro”, suas matrizes tem origem portuguesa e espanhola, mais tarde
miscigenaram-se com bovinos holandeses e franceses102 gerando um tipo de animal
condicionado às especificidades do semi-árido103. A criação desses animais deu-se de forma
96 NEVES, E. F. Estrutura Fundiária e Dinâmica..., p. 122-132. 97 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conflito de terras numa fronteira antiga: o Sertão do São Francisco no século XIX. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF, nº 7, v. 4, jul/1999, p. 10. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg7-1.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011. 98 Maria Hilda Baqueiro Paraíso tem desenvolvido importantes trabalhos sobre o conflito entre colonizadores e indígenas no Brasil, a partir da interface entre a Antropologia e a História. 99 LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, alimentos e sistemas agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF. nº 2, v. 1, [s. p.], A pecuária como parte de um sistema de susbsistência dez/1996. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg2-6.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011. 100 MAGALHÃES, B. de. Expansão Geográfica do Brasil Colonial..., p. 145. 101 BOAVENTURA, Fidalgos e Vaqueiros..., p. 24. Para esse autor, essa “civilização” se opunha à “civilização do açúcar” e a ela nada devia. 102 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). 2ª Ed. rev. e ampl. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2008, p. 188-189.; Sobre o processo de miscigenação do gado bovino no sertão do sanfranciscano ver também: MACEDO, Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 3-4. 103 Alguns autores (cf. Erivaldo Fagundes Neves, José Roberto de Macedo, Flávio Guerra) afirmam que a miscigenação desordenada e o contato com a região semi-árida do Brasil, onde as pastagens teriam supostamente baixos índices nutricionais, teria “degenerado”, “atrofiado” ou desenvolvido “graves defeitos” na espécie bovina, gerando animais pequenos e ossudos. O gado sertanejo é nessa perspectiva um “subproduto genético” das raças
59
extensiva em meio às caatingas, uma vez que as fazendas não possuíam cercamentos e nem
delimitações precisas. No século XVIII, João Antonil já afirmava que: as fazendas e os currais do gado se situam aonde há largueza de campo, e água sempre manante de rios ou lagoas, por isso os currais da parte da Bahia estão postos na borda do rio de São Francisco, na do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio Para-mirim, na do rio Jacuípe, na do rio Ipojuca, na do rio Inhambuque, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vaza-barris, na do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por informação tomada de vários que correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais, e, só na borda aquém do rio de São Francisco, cento e seis. [...] se tem por certo que passam de meio milhão [de cabeças de gado]104.
As observações de Antonil têm sido revistas por pesquisadores como Erivaldo
Fagundes e Francisco Carlos Teixeira. Segundo Teixeira da Silva, informações do jesuíta tem
contribuído para o equívoco corrente em confundirmos o grande domínio sesmeiro
(configurado pela jurisdição, ou seja, pelo exercício de direitos de senhorio) com as fazendas
de gado. Esclarece ele que os grandes domínios nunca foram em si explorações diretas e na
verdade se constituíram de um conjunto disperso de várias unidades (sítios, situações,
fazendas) arrendadas sob diversas formas. O grande domínio e as áreas de exploração direta
eram, pois, categorias sociais e economicamente diferentes. Nesse sentido, acrescenta ainda
Teixeira da Silva, conquistar mais terra para arrendar tornou-se um dos grandes objetivos dos
desbravadores e sacralizou o arrendamento como forma dominante de posse da terra, o que
garantiu aos seus reais donos a apropriação do sobretrabalho sem nenhum investimento
prévio105.
De qualquer modo, o gado foi fator fundamental na ocupação dos espaços do
interior. O deslocamento dos rebanhos em direção à Capital da Colônia deu origem às grandes
estradas que cortaram o sertão baiano, como por exemplo, a Estrada Real do Gado, a qual,
partindo de Cachoeira, atravessava o atual território do município de Feira de Santana, que aqui chegaram. Não podemos perder de vista que os problemas relacionados as pastagens do sertão não são, necessariamente, de ordem qualitativa, mas sim, quantitativas (disponibilidade suficiente e constante de pastagens, acesso a água, deslocamento por grandes distâncias). O atual fenótipo dos bovinos sertanejos é um reflexo da relação entre os fatores climáticos, genéticos e ambientais no qual se formaram, o que não quer dizer uma “degradação”, mas a geração de animais com características diferentes das européias. Acreditamos que essa “desqualificação” dos animais concebida pelos autores, tem mais a ver com uma visão moderna de mercado, na medida em que o gado possui pequeno porte, do que com o entendimento do processo biológico ao qual foram submetidos. 104 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3ª Ed. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp, 1982. [s.p.] Quarta parte: I - Da grande extensão de terras para pasto, cheias de gado, que há no Brasil. Disponível em: <http://www.seed.pr.gov.br/portals/portal/usp/primeiro_trimestre/textos/literatura/andre_antonil/cultura/cultura.html> Acesso em: 30 de fev/2011. 105 SILVA, F. C. T. da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-Colônia..., A fazenda de criar: uma análise da empresa sertaneja.
60
Conceição do Coité, e de lá, bifurcando em direção a Jacobina e Juazeiro. Outra dessas
grandes vias partia de Salvador em direção aos sertões de Pernambuco através de Jeremoabo,
uma ramificação desta chegava também até Jacobina. Antonil assim descreve as viagens das
boiadas: CONSTAM AS BOIADAS que ordinariamente vêm para a Bahia de cem, cento e cinqüenta, duzentas cabeças de gado; e, destas, quase cada semana chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade oito léguas, aonde têm pasto e aonde os marchantes as compram; e em alguns tempos do ano há semanas em que, cada dia, chegam boiadas. Os que as trazem, são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado, e outros vêm atrás das reses, tangendo-as, e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontoem. As suas jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos aonde vão parar. Porém, aonde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra às reses o vão por onde hão de passar106
Estudando o povoamento do Sertão da Ressaca, Maria Aparecida Silva de Sousa
demonstra a ação de João Gonçalves da Costa na construção de diversas estradas que
facilitassem o acesso à Capital e as áreas do norte de Minas. Do ponto de vista da Coroa,
esses caminhos significavam uma maior facilidade de abastecimento de Salvador e das vilas
litorâneas com boiadas e outras mercadorias107. Autores como Capistrano de Abreu108 e
Felisbello Freire109 também descreveram as estradas e o deslocamento das boiadas.
Além dessas, muitas outras entrecortavam o sertão interligando povoações,
fazendas, áreas de mineração e áreas de produção de sal. Em torno dos pontos de parada
desenvolveram-se núcleos comerciais e populacionais, a exemplo da cidade de Feira de
Santana. Em seu clássico Fidalgos e Vaqueiros, Eurico Alves Boaventura sintetiza esse
processo ao afirmar que “em toda parte onde rolou um aboio vespertino para um pouso,
marcando o final de uma marcha, ou se acendeu a trempe para o repasto rude de uma tropa,
caiu a semente de uma cidade ou vila sertaneja”110.
106 ANTONIL, A. J. Cultura e opulência do Brasil... Quarta parte: III - Da condução das boiadas do sertão do Brasil; preço ordinário do gado que se mata e do que vai para as fábricas. 107 SOUSA, M. A. S. de. A conquista do sertão da ressaca..., p. 94-95. 108 ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1960, p. 96. 109 FREIRE, Felisbello. História territorial do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1906, p. 89-90. 110 BOAVENTURA, E. A.. Fidalgos e Vaqueiros..., p. 39.
61
A emergência de áreas de mineração intensificou a circulação comercial e
populacional nas áreas interioranas e destas com a Capital, a exemplo da descoberta de ouro
em Jacobina (início do século XVIII) e na Serra do Assuruá (meados do século XIX).
Discorrendo sobre esta última, Elisangela Oliveira Ferreira nos informa sobre a preocupação
das autoridades da vila de Xique-Xique, localizada a cerca de “dezesseis ou dezoito léguas”
das minas do Assuruá, diante do abandono em que caiu a povoação logo espalhou-se a notícia
de ouro. Segundo reclamações oficiais, continua a autora, em apenas sete meses já existiam
mais de mil pessoas minerando e muitas outras não paravam de chegar. Junto à possibilidade
de riqueza erguiam-se também o tráfico, o despotismo e a violência assustando ainda mais as
autoridades que não dispunham de força policial suficiente.
Ainda segundo Ferreira, o penoso trabalho de escavação não poupava homens nem
mulheres, e até mesmo as crianças pobres arriscavam suas vidas em busca da sobrevivência.
Para ela, a mineração não só atraiu fluxos populacionais ao interior, mas, desenvolveu entre
os sertanejos de Xique-Xique o hábito de migrar em busca de novas áreas sempre que as
reservas do local escavado pareciam diminuir ou os trabalhos se tornavam muito difíceis111. A
mineração diamantífera na Chapada Diamantina, iniciada em meados do século XIX,
alcançou proporções ainda maiores e estendeu-se até início do século XX112. Discorre
Teodoro Sampaio sobre esta: “Nas lavras, ainda as mais importantes não se empregavam
maquinismo, mas o processo geralmente seguido de desviar as águas para se lavar o cascalho
no leito posto a seco, e trabalhado tão-somente com ferramentas de uso manual”113.
Mas a ocupação espacial do interior não se formou só de fazendas, de guerras contra
o autóctone e de mineração. Refletindo sobre a importância da pequena lavoura dentro do
processo de colonização, afirma Maria Yeda Linhares que a roça articulou-se de várias formas
ao trato com o gado, a grande lavoura de caráter comercial e à pequena criação de consumo
local, ocupando assim um lugar central na reprodução do sistema colonial. Essa reprodução
apresentou baixo custo monetário para a Coroa uma vez que a disponibilidade de terras uniu-
se ao constante tráfico atlântico - garantia de mão-de-obra – permitindo a recriação do sistema
agrário-escravista nas áreas de fronteira. Esse arranjo, além de garantir o domínio da terra,
111 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 108-114. 112 Sobre mineração na Bahia ver: FARIAS, Sara Oliveira. Enredos e tramas nas minas de ouro de Jacobina. Recife: UFPE, 2008 [Tese de Doutorado]; RIOS DE JESUS, Zeneide. Eldorado Sertanejo: garimpos e garimpeiros nas serras de Jacobina (1930-1940). Salvador: UFBA, 2005 [Dissertação de Mestrado]. 113 SAMPAIO, Teodoro. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. (Org. José Carlos Barreto de Santana). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 265-266.
62
manteve ativo o mercado de escravos. Em meio a esse processo, as pequenas propriedades
produtoras de alimentos eram a base da economia litorânea e sertaneja, o instrumento central
de manutenção do homem à terra114.
O uso direto de uma área nos sertões, contudo, estava sempre condicionado aos
recursos ali disponíveis. O acesso a água, sal, solo de melhor qualidade agrícola ou produtor
de melhor pastagem e até mesmo o acesso a madeiras, eram fatores decisivos para uso das
parcelas de terra e em grande parte justificava a necessidade de arrendamento. Vivendo em
regiões distantes dos centros de poder administrativo e sujeitos a estiagens, a terra foi sempre
o meio central de produção da sobrevivência dos sertanejos. Elisangela Ferreira demonstra
essa centralidade da terra ao relatar a preferência dos grupos familiares sertanejos em realizar
casamentos entre parentes próximos, como forma de manter a integridade do patrimônio ou
mesmo, o costume de se adquirir as terras dos parentes que as dispunham à venda. Poucos
eram, todavia, os trabalhadores que possuiam a propriedade efetiva da terra. A sociedade
sertaneja foi fortemente marcada pela presença de posseiros, agregados e arrendatários
pobres115.
Eram nas pequenas roças plantadas de feijão, milho, cana, mandioca, frutas,
amendoim, algodão onde a sobrevivência se consubstanciava. Associavam-se a esses recursos
a criação de animais de pequeno porte como cabras e ovelhas, aves, porcos e algumas
unidades de gado bovino. Os produtos gerados nessas pequenas unidades poliagropecuárias
eram estocados e a parte excedente trocados nas feiras semanais por sal, roupas, rapaduras e
ferramentas. Quanto a posse do gado bovino, nos diz ainda Elisangela Oliveira que, na vila do
Xique-Xique, mesmo as famílias mais pobres, tinham especial preocupação em adquirir esses
animais, uma vez que isso apontava para uma diferenciação social em relação aos que viviam
apenas da lavoura e para a melhoria das condições de vida do grupo116. Acreditamos ser esse
um traço comum às diversas áreas dos sertões, pelos menos nos baianos, na medida em que o
gado bovino sempre compôs parte significativa das riquezas presentes nos testamentos e
inventários.
Segundo Erivaldo Fagundes, no século XVIII as populações do Alto Sertão da
Bahia já possuíam autonomia de abastecimento e movimentavam laços comerciais inter- 114 LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, alimentos e sistemas agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF. nº 2, v. 1, [s. p.], dez/1996. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg2-6.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011. 115 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 58, 162. 116 Idem, Ibidem, p. 162.
63
provinciais e inter-regionais por meio dos excedentes gerados. A produção nesse sentido
ultrapassava a linha da subsistência gerando uma economia de traços próprios e uma
acumulação interna de peso significativo para os padrões da época117. O sertão ainda foi palco
das formas comunais de uso da terra. Por ser esta uma categoria de extrema relevância para
este estudo, as debateremos adiante de forma aprofundada.
O carro de boi e a tropa sempre foram os principais meios de transporte das
populações sertanejas. Jurema Paes já destacou a importância dos tropeiros na manutenção do
intercâmbio de mercadorias, produtos e notícias entre as povoações interioranas do Alto
Sertão da Bahia, e destas com outras áreas do interior e a Capital, na primeira metade do
século XIX. Afirma a autora que o tropeiro era uma “pessoa do mundo”, aguardada com
ansiedade nas vilas e seu prestígio era proporcional ao tamanho da tropa que possuía ou
conduzia118. Os tropeiros muitas vezes compunham redes de comércio que chegavam até o
exterior da Colônia, exemplo significativo dessa participação nos é dado por Erivaldo
Fagundes ao afirmar que, o algodão produzido no Alto Sertão da Bahia chegava através das
tropas ao porto de São Felix, no Recôncavo, e de lá passava a Salvador, chegando, no século
XVIII, às indústrias têxteis da Inglaterra119.
A marca central da produção da sobrevivência no sertão foi sem dúvida a
apropriação direta dos recursos da natureza. Capistrano de Abreu, em passagem clássica do
seu Capítulo de História Colonial, já discorreu sobre a importância do couro para as
populações sertanejas, destacando ser essa a matéria-prima das camas, das cordas, dos
utensílios domésticos, da bainha das facas, dos recipientes para pegar água e até para se pisar
tabaco120. Assim também eram as ferramentas e até as próprias residências, estas, construídas
de barro, madeira e palhas, geralmente em formato de “taipa” e de chão batido. Em sua
viagem pelo rio São Francisco, no final do século XIX, Teodoro Sampaio nos deixou uma
descrição do ambiente residencial sertanejo: No interior das casas não havia mais que sala, quarto, corredor e cozinha; o chão duro, mas escavado pelo transitar e varrer; as paredes barreadas e enegrecidas pela fumaça; o tecto de palha não tinha melhor aspecto. A um canto, estava o pote cheio d’água que se ia buscar ao rio, cuja qualidade todos nos gabavam, pois é crença geral que a água do S. Francisco não se corrompe. Notávamos pelo chão as esteiras estendidas em que as moças costumam assentar-se para fazer renda em almofadas, e
117 NEVES, E. F. Uma comunidade sertaneja..., p. 184-205; Estrutura Fundiária..., p. 220- 238. 118 PAES, Jurema Mascarenhas. Tropas e tropeiros na primeira metade do século XIX no Alto Sertão baiano. Salvador: UFBA, 2001 [Dissertação de Mestrado], p. 71-74. 119 NEVES, E. F. Uma comunidade sertaneja..., p. 192. 120 ABREU, C. de. Capítulos de História Colonial..., p. 73.
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em que empregam bilros feitos de coquilhos e espinhos de mandacaru substituindo os alfinetes; víamos as redes que, logo que entrávamos, eram estendidas ou armadas para nos receberem, algumas feitas de algodão e guarnecidas de rendas, outras mais singelas feitas de palha macia do butiti121.
Luiz Cléber Freire aponta para a existência de móveis e utensílios básicos entre os
inventários da população pobre de Feira de Santana no século XIX, como mesas, bancos,
selas e espingardas122. Segundo Elisangela Ferreira, até mesmo as roupas podiam ser
inventariadas para posterior divisão da herança o que demonstra a sua condição de
patrimônio. Ainda segundo essa autora o registro de talheres nos documentos não comprova o
seu uso, era comum que essas peças fossem guardadas apenas como “patrimônio distintivo”
da família123. A imagem que emerge das observações acima, corresponde em traços gerais ao
modo de vida das populações pobres do sertão124, bem diferente era a vida dos grandes
proprietários, a exemplo dos Fidalgos feirenses: Até figurinhas biscuit se encontram em alguns salões rurais. É fina a mobília, toda de palhinha, com bons espelhos para sala-de-visitas e nas alcovas. Do hirto catre rude passa-se à comodidade nas amplas camas envernizadas, de encosto harto aberto em lavores modestos de talhas. Camas largas sustentando-se até em pés-de-bicho. Algumas de leito alto, bem alto. Esconde-se nas salas-de-dentro e nas camarinhas o velho estrado. [...] Adornam-se os altares e enfeitam-se os salões e as salas-de-jantar com finos jarros de porcelana e de apaline lindíssimos. Não se dispensam as escarradeiras de louça bem interessantes125.
Euclides da Cunha afirmou no início do século XX que, às margens do sertão,
bateram “por igual” “o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro”126. A sintética expressão serviu
por muito tempo para encobrir uma diversidade social marcante do mundo sertanejo dos
primeiros séculos. Ao lado destes, estiveram os indígenas combatidos, o minerador pobre, o 121 SAMPAIO, T. O Rio São Francisco e a Chapada..., p. 98-99. 122 FREIRE, L. C. M.. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra..., p. 112-113. 123 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 142, 143, 160. 124 Ainda predomina entre alguns historiadores uma leitura estereotipada dessa cultura material, que em muito devem às formas exóticas e inferiorizadas com que foram registradas pelos viajantes. Erivaldo Fagundes Neves, embora produza uma perspectiva revisada das dinâmicas agrárias dos sertões baianos, incorre ainda nesse equivoco. Para ele, as habitações eram “rústicas”, os móveis e utensílios “toscos e rústicos”, as trancas das casas eram “toscas”, os tamboretes ‘incômodos”, as camas “rudes”, os transportes eram “precários”, dificultavam a circulação de mercadorias, reforçando a necessidade da auto-suficiência, o que “desmonetarizava” a economia colonial e “debilitava” a economia regional. Optamos por não nos apropriar desses termos por entendermos que as relações agrárias do sertão foram, sempre, produto das condições possíveis de sobrevivência do homem no seu espaço e no seu tempo. Se hoje utensílios e móveis de madeira ou barro e casas de enchimento nos parecem “rústicos”, não eram assim entendidos no seu momento histórico (as “camas de couro”, por muito tempo, foram artigos de luxo nos sertões!); o carro-de-boi e a tropa, antes de “dificultar” ou “debilitar” o transporte, o permitia, possibilitava as trocas e o deslocamento. Desenvolvimento tecnológico e monetário maior não foi possível por um longo período nos sertões baianos. Ver: NEVES, E. F. Estrutura Fundiária..., p. 217-218; Uma comunidade sertaneja... p. 189-190, 104. 125 BOAVENTURA, E. A. Fidalgos e Vaqueiros..., p. 137. 126 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 100.
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estrangeiro viajante, o tropeiro, o ribeirinho, o pequeno lavrador, o grande fazendeiro, o cabra,
o passador, o marchante (atravessadores que negociavam o gado nas feiras), o comerciante, o
negro. Esses sujeitos incorporaram situações diversas de sobrevivência. Foi muitas vezes o
vaqueiro, o tropeiro, o cabra, um lavrador; foi o vaqueiro um escravo127; foi o lavrador
também um criador; foi o indígena um garimpeiro pobre em busca da sorte, um meeiro; foi o
grande comerciante um homem pobre falido; foi o jesuíta um fundador de povoações, um
fazendeiro; foi o negro um escravo, um homem livre, um agregado, um quilombola; foi o
ribeirinho um posseiro; foram os pobres retirantes em momentos de grandes calamidades.
Também diverso foi o uso da terra: a propriedade privada aceitou o uso comum integralmente
ou em partes e, por vezes, gerou terras comuns; a grande sesmaria recebeu em seu meio a
pequena roça, a mina, o sítio, a fazenda. Em busca da sobrevivência, a mudança de condição
era sempre uma realidade e emergia ora como tragédia ora como possibilidade128.
Em meio a essa busca, ressalta enfaticamente Elisangela Ferreira se referindo as
comunidades do Médio São Francisco do século XIX, que o núcleo familiar foi sempre a base
do trabalho, das relações sociais e de poder. Seja pela organização de casamentos com intuitos
políticos e patrimoniais, seja pela importância da mão-de-obra familiar nas pequenas roças,
foi ela a rede que garantiu a sobrevivência. Essa autora expande a noção de família,
estendendo-a aos laços consaguíneos ainda que distantes, às alianças e relações de compadrio
e parentesco fictício129.
Para alguns poucos grupos familiares do sertão, possuidores de maior patrimônio, as
condições de vida foram mais amenas. Os estudos historiográficos apontam para a natureza
tripartite desses patrimônios, formados por escravos, gado e terra, sendo os primeiros os
elementos mais valiosos. Como nos demonstra Luiz Cléber Moraes Freire, o número de
escravos de uma família podia aumentar na medida em que eram mais significativas as rendas
oriundas da atividades consorciadas com a agricultura, uma vez que esta exigia maior
quantidade de mão-de-obra130. A essa base se acrescentava o comércio e a aquisição de cargos
públicos e militares como fatores de distinção social e econômica dos grupos. A realização de 127 Já é significativo o número de obras que apresentam informações sobre a escravidão nas áreas sertanejas, indicamos aqui apenas de forma ilustrativa, além dos trabalhos citados de Erivaldo Fagundes, Elisangela Ferreira e Luiz Cléber Moraes, os trabalhos de Luíz Mott, estes voltados especialmente para a escravidão indígena: MOTT, Luiz. Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí colonial. In: Revista de Antropologia, Separata do volume XXII, USP, 1979. 128 Sobre a migração das populações do Alto Sertão para São Paulo ver: ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: EDUC, Humanitas, 2003. 129 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 378. 130 FREIRE, L. C. M. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra..., p. 42-71.
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atividades comerciais, contudo, nem sempre foi tão estável e a “rede de endividamento” da
qual nos fala Elisangela Ferreira, foi uma constante para os indivíduos nelas envolvidos. Essa
“rede” incluía comerciantes locais e da capital131, não sendo poucos os que incorreram na
falência. Como regra geral, a diversificação de atividades foi sempre o mecanismo mais
seguro das famílias abastadas sertanejas para manterem ou elevarem suas riquezas.
A vivência nos sertões nos primeiros séculos estava assim, longe de uma estagnação
como muitas vezes deixa transparecer os textos historiográficos clássicos. A sobrevivência se
revestiu de diversas formas, foi garantida por formas próprias de uso dos recursos naturais
onde se mesclavam estratégias comunitárias e privadas, fez-se nas minas, nas fazendas, nas
roças policultoras, nas pequenas casas, no caminho das boiadas ou das tropas, nas pequenas
feiras. A seca foi sempre o elemento instabilizador e, por mais que as comunidades sertanejas
tenham desenvolvido estratégias próprias e eficazes de lidar com ela, a ocorrência de pouca
ou nenhuma chuva por anos seguidos ameaçava não só o patrimônio, mas a continuidade da
própria vida. É importante notarmos, porém, que suas conseqüências mais imediatas e graves
recaíam sempre sobre as camadas mais pobres da população, desprovidas de recursos e
patrimônio.
Em momentos de estiagem, a calamidade tendia a se instalar pelo encarecimento do
preço dos alimentos, pela necessidade do êxodo, pela ausência de emprego, ausência de água
e comida para os animais, pelo aparecimento de doenças, pelo crescimento da violência (os
mais ricos se armavam temendo os saques) e pela fome. Relata Teodoro Sampaio quando da
sua passagem por Penedo, Alagoas:
A população da cidade estava então muito aumentada com a gente emigrada dos sertões assolados pela seca. Viam-se nas ruas muito povo faminto e sem trabalho, levas de mendigos androjos esmolando ou estendidos pelo chão à sombra das árvores, homens que foram robustos, belos tipos de uma adaptação admirável, como se foram esqueletos vestidos de couro. A fome que os tinha depauperado e dizimado aos centos, cedera lugar agora à varíola, que devorava as famílias inteiras destes desgrçados que de tão longe, fugindo às misérias da seca, tinham vindo procurar socorro às margens do grande rio. O São Francisco, com um oásis no deserto, através dos sertões adustos da Bahia ao Ceará, de Pernambuco ao Piauí, é, na verdade a terra da promissão e o refúgio daqueles povos assolados pela seca prolongada e priódica”132
A fuga em busca de melhores condições de vida causou o deslocamento de grupos
humanos pelo interior gerando o fenômeno dos retirantes, imortalizado na memória popular 131 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 204, 209, 211, 224. 132 SAMPAIO, T. O Rio São Francisco e a Chapada..., p. 65-66.
67
tanto pelas obras de autores como Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938) e Cândido Portinari
(Retirantes, 1944), como pelos cordéis e repentes dos cantadores anônimos dos sertões. Na
custosa necessidade de migrar, muitos “Fabianos” não suportavam o deslocamento e eram
enterrados pelas caatingas e estradas, essas, já salpicadas de “manchas brancas que eram
ossadas”133 de animais. Às autoridades restou solicitar ao governo apoio e ajuda aos
flagelados no que raramente eram atendidos.
Na medida em que foram decaindo as zonas de mineração, um grande contingente
de trabalhadores passou a se deslocar em busca de áreas para cultivo, especialmente na
segunda metade do século XIX. O fim do regime sesmarial em 1822 e a fragmentação/venda
dos domínios da Casa da Ponte da família Guedes de Brito, finalizada em 1830, possibilitou
aos pobres um acesso relativo à posse/propriedade da terra nos períodos seguintes. Como nos
explica Erivaldo Fagundes, muitos desses trabalhadores compraram propriedades, arrendaram
partes a seus novos donos, agreraram-se nas fazendas já constituídas ou mesmo se apossaram
de trechos ainda virgens134.
Como já nos referimos, Márcia Menendes Motta tem buscado demonstrar a ação
desses sujeitos no decorrer dos oitocentos, atribuindo a eles um grande poder de disputa pela
posse da terra135. No interior baiano a ação dos posseiros chegou mesmo a ser facilitada na
medida em que, buscando combater as ocupações “ilícitas”, os procuradores da Casa da
Ponte, no início do século XIX, arrendaram terrenos com prazos de carência, muitos deles já
ocupados, e até cederam gratuitamente faixas de terra por determinado tempo136. Sem dúvida
a extensão dos domínios, a dispersão das fazendas e pequenas glebas, as dificuldades de
transporte e a precariedade de recursos humanos para fiscalização e cobrança dos foros,
permitiram a muitos grupos de posseiros sobreviverem por anos sem uma formulação jurídica
do uso da terra ou mesmo, nunca a oficializarem junto aos donos das sesmarias.
A primeira grande mudança nas relações socioespaciais, comerciais e políticas do
interior baiano dá-se entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século
XX. Esse período foi marcado pela instalação de duas grandes vias de transporte: a estrada de
Ferro Bahia-São Francisco e a navegação a vapor no rio São Francisco. Em 1855 a companhia
inglesa Bahia and San Francisco Railway Company já possuía a concessão para a construção
133 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 107ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008, p. 10. 134 NEVES, E. F. Uma comunidade sertaneja..., p. 105. 135 MOTTA, M. M. M. Movimentos rurais nos Oitocentos..., p. 113-128. 136NEVES, E. F. Estrutura Fundiária..., p. 174.
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da ferrovia. Só em 1896 os trilhos chegaram a Juazeiro, depois de terem passado por Serrinha,
Santa Luz, Queimadas, Itiúba e Senhor do Bonfim. Saindo desta cidade em 1917, os trilhos
chegam a Jacobina em 1919 e a Iaçu em 1937. Além de empresas nacionais, franceses e
belgas tiveram por certo tempo o controle da Estrada de Ferro Bahia-São Francisco, além do
próprio estado brasileiro.
A navegação a vapor no rio São Francisco se estruturou a partir da década de 1870,
predominando até 1950. Além de pessoas, os “vapores” ou “gaiolas”, transportavam
mercadorias e notícias. Cidades como Xique-Xique e especialmente Juazeiro, pontos de
parada dos vapores, tornaram-se pólos comerciais e populacionais de grande importância no
interior baiano. A implantação desses dois serviços simultaneamente aumentou o fluxo
mercadorias e a diversidade de produtos, formou centros distribuidores, possibilitou o
deslocamento de pessoas, encurtou o tempo de viagem à Capital e elevou a capacidade de
carga137. Diante da extensão do interior baiano, porém, o impacto da ferrovia e da navegação
restringiu-se uma pequena parte das populações, as demais continuaram tendo o carro-de-boi
e as tropas como formas predominantes de transporte138.
A chegada da República impôs a interligação dos espaços nacionais. Fatos como a
Guerra de Canudos, a seca de 1877-1879 e o cangaço atraíram os “olhos políticos e militares”
dos centros administrativos do País, deixando suas marcas na formação social e histórica das
populações sertanejas. A partir da década de 1930 os Governos Baianos empenharam-se na
abertura de estradas com vistas na circulação de automóveis, aos poucos foram essas vias
substituindo a estrada de ferro e os vapores do São Francisco.
O processo de povoamento do sertão baiano se desenvolve ainda hoje e seu
território é composto por um grande número de municípios com baixa densidade demográfica.
Longe da tão pregada “insignificância histórica”, o sertão e suas formas de produção,
fundamentadas na pequena policultura, na pecuária extensiva e na formação de pequenos
excedentes que chegavam a alcançar mercados externos, tiveram papel fundamental na
estruturação do “macro-modelo” agrário colonial. A roça, pequena e policultora, foi o suporte 137 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL. Diagnóstico parâmetro para avaliação do PDRI Irecê: 1ª etapa. Salvador: CAR, 1984. v.2 - O Sertão da Bahia, p. 89-99. 138 A respeito dos impactos das políticas de transporte e comunicação sobre as espacialidades baianas ver: FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro de. “Eu vou para a Bahia”: a construção da regionalidade contemporânea. Bahia Análise & Dados. Salvador-Ba: SEI, vol. 9, nº 4, mar/2000, p. 24-37; Sobre ferrovias na Bahia ver: SOUZA, Robério Santos. Tudo pelo trabalho livre! Trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador; São Paulo: EDUFBA, FAPESP, 2011; ZORZO, Francisco Antônio. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia: doze cidades conectadas pela ferrovia no sul do Recôncavo e sudoeste baiano (1870-1930). Feira de Santana: UEFS, 2001.
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das grandes e pequenas fazendas que dilatavam os horizontes, enquanto a mineração moveu
grupos de trabalhadores pelo interior num entrecruzar em busca de riqueza, ao mesmo tempo,
os grandes domínios se fragmentaram pela ação de posseiros, arrendatários e sitiantes. Do
ponto de vista social a escravidão negra e do extermínio indígena compõe os maiores traços
das populações sertanejas.
Uso comum no sertão: permanências em frente a lei
É recente o debate sobre as terras de uso comum e usos comunitários de recursos
naturais no Brasil. Francisco Carlos Teixeira tem apontado para um possível uso dilatado e
costumeiro dessas formas comunitárias de trabalho entre os posseiros dos sertões
sanfranciscanos dos séculos XVIII e XIX, acentuando ainda a existência de uma diversidade
de áreas comunitariamente apropriadas nesse espaço, como as malhadas (áreas de reunião do
gado para pernoite, para junta, ou mesmo para ruminar), pastos comuns, áreas de extração de
madeira ou mesmo de fornecimento de água139.
Para além dessas, Teixeira identificou também entre a documentação da Freguesia
do Porto da Folha, em Sergipe, terras declaradas como “indivisas” ou “pró-indivisas”. No seu
entendimento esse termo remete a existência de áreas usadas coletivamente por indivíduos
sem vínculo aparente de parentesco, a partir da aquisição dos direitos de uso de certas frações
da terra. Essa aquisição, no entanto, não mudava em nada a natureza coletiva da área.
Segundo o autor, essas terras não se tratavam de terrenos que, por ausência de partilha
familiar, tivessem continuado unidas, mas sim, de uma prática corriqueira entre os posseiros
sanfranciscanos que poderia mesmo estar presente na quase “totalidade das terras”. Conclui
Teixeira que esse fato aponta para a existência de comunidades de posseiros que não
reconheciam a “noção de apropriação privada de uma parcela” tal qual existe hoje140.
Ainda em suas pesquisas, Francisco Carlos Teixeira afirma que certos declarantes
relatam possuir um lugar “reservado” ou “fixo” para suas posses. Essa afirmação leva o
pesquisador a cogitar (embora reconheça a ausência de fontes e a característica recente do
tema) a existência de áreas “não fixas”, ou seja, a existência de uma espécie de “rodízio” entre
trabalhadores e parcelas trabalhadas, que se fundamentava na aquisição temporária de um
139 SILVA, F. C. T. da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia... O regime de terras na pecuária sertaneja. 140 Idem. Conflito de terras numa fronteira antiga..., p. 26.
70
direito de uso. Buscando elaborar hipóteses que justifiquem a existência dessas práticas
comunais entre os posseiros, Teixeira afirma que elas poderiam ter se originado da mistura
das tradições comunitárias dos indígenas, dos negros africanos e dos missionários
capuchinhos, acrescidas ainda da participação de brancos pobres e permeadas pela busca de
autonomia de certos grupos a partir do uso da terra, resultando na união de terras para
trabalho, para refúgio e para negócio.
A segunda hipótese apresentada por Teixeira estrutura-se a partir do caráter não
mercantil das terras do morgadio, o que teria desenvolvido uma comunidade de posseiros com
tradição de trabalhar terras em comum, tendo essa prática permanecido após o fim da
instituição. Embora afirme serem “precárias” essas indagações, conclui o autor que “muito
possivelmente”, o sertão sanfranciscano foi palco de uma “paisagem agrária original” de base
camponesa, onde se misturaram, em um contexto colonial, as tradições comunitárias de várias
culturas141.
Cabe-nos aqui um parênteses para contextualizarmos a densidade das observações
de Teixeira da Silva. José Nazareno Campos, estudando as diversas formas de uso comum da
terra no Brasil, nos apresenta três categorias analíticas para o entendimento desse contexto: as
terras de uso comum, o uso comum dos recursos e as terras de uso coletivo. Segundo
Campos, as terras de uso comum correspondem ao que se denomina corriqueiramente de
“terra devoluta” ou “terra pública”, seu uso é feito por grupos que agem individualmente e
tem no espaço uma de suas fontes complementares de sobrevivência. O uso comum dos
recursos, inclusive da terra, é uma prática, e sua efetivação independe do regime jurídico da
área, contando que a continuidade de sua utilização seja garantida. O organograma abaixo
esclarece mais sobre essa categoria:
141 Idem, Ibidem, p. 27-28. Este autor ainda nos lembra que até hoje, no sertão sanfranciscano, existem formas
comunitárias de uso da terra que se mantém pela transmissão via herança.
Propriedade
Uso comum das terras e dos bens naturais
Produção
Agricultura
Pecuária
Extração
Pública
Privada
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O esquema acima demonstra como é possível a pessoas de uma comunidade usarem
comunalmente tanto áreas públicas quanto privadas, por exemplo, para pastorarem seus
animais. Da mesma forma certas famílias podem realizar a coleta de frutos para consumo
doméstico ou comercial em uma propriedade pública ou privada. O ponto central para
compreensão da noção de uso comum é o fato de que uma propriedade privada não significa,
necessariamente, um uso exclusivo, podendo a mesma ser apropriada por outras pessoas sem
que seu pertencimento seja questionado. As terras de uso coletivo, completa Nazareno José de
Campos, remetem a áreas apropriadas consuetudinariamente por um grupo que limita o seu
uso. O fator de une essas três categorias é a perspectiva comunitária que as atravessa, nesse
sentido, afirma este autor que elas são categorias inter-relacionadas e assumem arranjos
complexos, nunca surgindo sob formas “puras”142:
As terras de uso comum, o uso comum dos recursos ou mesmo o uso coletivo tem
importância fundamental para sobrevivência de muitas comunidades rurais, servindo como
reserva (madeira, folhas, lenha, barro, água, caça, frutos), como espaço para o pastoreio de
animais, complementando as rendas das áreas exploradas diretamente ou sendo elas próprias
áreas de exploração direta. Há casos, como o de alguns grupos indígenas e quilombolas, que a
área de uso comum chega a ser a única terra disponível para cultivo e usufruto. Para Campos
as áreas de uso comum são geralmente aquelas que despertaram menor interesse comercial143.
Esse não é o caso, por exemplo, das áreas de uso coletivo, onde a união dos trabalhadores
pode corresponder a uma estratégia para aquisição de parcelas de melhor qualidade.
A diversidade de formas e combinações apresentadas se misturam ainda às normas
culturais, às especificidades ambientais locais, regionais, nacionais, históricas e até religiosas
que delimitam e modelam as formas de uso comunitário em cada contexto. Ocorre ainda casos
em que o direito de uso se restringe a certos recursos ou a totalidade deles, à certas épocas do
ano, a certas funcionalidades ou a certas qualidades físicas que possuem os terrenos como por
exemplo o acesso a água ou solos de melhor qualidade agrícola. Os usos comunitários podem
ainda beneficiar diretamente as comunidades próximas ou a grupos transitórios como
viajantes e podem ainda ser efetivados por grupos “não-proprietários”, como as terras de
142 CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil: um estudo de suas diferentes formas. São Paulo: USP, 2000 [Tese de Doutorado], p. 46-47. 143 Idem, Ibidem, p. 109-114.
72
índios, de negros (reservas, quilombos) ou de Santo ou Santa (nesses casos podem ainda ser
definidas por força de justiça ou pelo direito consuetudinário)144.
Nos espaços usados comunalmente ou coletivamente, não são apenas a terra e os
recursos naturais que são compartilhados, na base dessas práticas está uma experiência
coletiva de vida. Os estudos de Thompson sobre os usos comunitários das florestas inglesas
nos demonstram que as comunidades do século XVIII experimentavam as matas (coletavam
arbustos, madeira ou pastoreavam seus animais) como espaços sociais e resistiam ao avanço
dos cercamentos e a apropriação privada das terras, através da reivindicação do direito de uso,
da derrubada de cercas e/ou portões, da caça aos cervos do rei e da ameaça direta às
autoridades florestais. A forma comunal de uso das florestas inglesas expressava uma noção
alternativa de posse baseada nos direitos e práticas de usos transmitidos ao longo do tempo
como “propriedades dos pobres”, que fora, por muitas vezes, posta em conflito e até
reconhecida pela justiça inglesa enquanto direito local. Esse direito, que por si só já era uma
propriedade, permitia aos florestanos disputarem e argumentarem pela continuidade de suas
práticas costumeiras e das formas “legítimas” de uso que haviam herdado no decorrer do
tempo145.
Podemos assim concluir que os estudos de Teixeira tem apontado para a existência
nos sertões baianos das três dimensões descritas por Campos: as malhadas e áreas de
pastagem podem ser consideradas áreas de uso comum (quando realizada em espaços de
regime jurídico não definido) ou configurar um uso comum de áreas (quando ocorre em
propriedades com regime jurídico definido). Basta lembrarmos que na ausência das cercas os
animais transitavam por todas as partes. Por fim, a existência de áreas cultivadas em regime
de “indiviso” nos demonstra áreas apropriadas de forma coletiva.
Teixeira nos induz a pensar que o uso comunitário e coletivo das terras e recursos
naturais nos sertões sanfranciscanos, alcançou proporções superiores às até então imaginadas.
Como tentaremos demonstrar, o presente do interior baiano foi até recentemente palco de
vivas mostras dessa prática. Até meados do século XX as populações do Sertão de Irecê
tinham no campo um lugar de uso comum. O campo era definido como “terra da nação” ou
“terra solta” de uso imemorial, nele pastavam os animais, dele se retiravam as madeiras e
144 Idem, Ibidem, p. 114-246. 145 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... ; THOMPSON, E. P. Costumes em comum..., p. 13-24,86-149.
73
outros recursos de forma comunitária. Mesmo as áreas que eram tidas como privadas
integravam o espaço de uso comum.
O entendimento da continuidade das práticas de uso comunitário e das áreas de uso
comum durante o século XX, requer um esclarecimento das medidas fundiárias implantadas
no País a partir da Lei de Terras de 1850 e da compreensão das formas e ritmos com que suas
determinações alcançaram aos diversos lugares e populações. A Lei de Terras representou um
novo projeto de nação que tinha por base uma reestruturação fundiária pautado na criação de
um mercado de terras, na eliminação de formas não exclusivas de trato com esta e na sujeição
do trabalho ao capital. Afirma-se:
Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra. Art. 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado. [...] Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente [...] § 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o contrario. Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados cahidos em commisso, e perderão por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da presente Lei, conservando-o sómente para serem mantidos na posse do terreno que occuparem com effectiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto. Art. 11. Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão hypothecar os mesmos terrenos, nem alienal-os por qualquer modo146.
Ao tempo em que estabeleceu a compra como meio único de acesso à terra, a lei de
1850 também estabeleceu o Estado como árbitro das relações agrárias e passou a obrigar os
trabalhadores a medirem e apresentarem títulos de suas posses, correndo o risco de perdê-las
caso não as registrassem. Essa estratégia foi, no decorrer do tempo, expondo as áreas não
146 BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm>. Acesso em: 05 de fev/2011, (grifo nosso).
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declaradas usadas comunitariamente. Como nos diz Márcia Menendes Motta, foi definindo
primeiramente as terras privadas que o Estado buscou “encontrar” as terras públicas, tudo o
que não se encaixava no primeiro grupo passou ao segundo147. Identificar as terras públicas
foi o primeiro passo para a mercantilização das terras.
É importante observarmos ainda no trecho acima, que o critério abordado pela lei
para legitimação das posses foi a exploração direta, não valendo para tanto “os simples
roçados, derribadas ou queimas de mattos ou campos, levantamentos de ranchos e outros
actos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura effectiva e morada habitual
exigidas” (art. 6º). Esse mecanismo atingiu diretamente as áreas de uso comum, uma vez que
nelas se desenvolviam atividades temporárias ou complementares, não sendo, pois, áreas de
exploração direta.
Nos termos oficiais, os “campos de uso commum”, deveriam existir apenas
“emquanto por Lei não se dispuzer o contrario” e acabaram sendo interpretados como terras
públicas (portanto, expostas à venda). Ainda assim, durante sua existência regressiva, os
“campos communs” passaram a ser fiscalizados na medida em que se proibiu a derrubada de
matos e o uso do fogo. Essa possibilidade de alteração na lei se tornou ainda mais real devido
ao fato de que a Constituição de 1891 transferiu para os Estados-membros da federação a
responsabilidade sobre as terras devolutas, ficando essas sujeitas a uma maior pressão local.
Como destaca ainda Menendes Motta, os interesses que fundamentam a Lei de
Terras, nos permite entendê-la como uma expressão legal dos conflitos sociais da segunda
metade do século XIX148. Diante da iminência de escassez de mão-de-obra, devido a
proibição do tráfico atlântico de negros africanos (Lei Eusébio de Queiroz), da expansão da
cafeicultura paulista e da afirmação da política de imigração, os deputados e senadores do
Império, em sua maioria integrantes da elite latifundiária do Sudeste, buscaram mecanismos
que obrigassem os pobres nacionais e estrangeiros a venderem sua força de trabalho por certo
tempo antes de conseguirem o acesso à terra. A Lei de Terras foi o maior desses mecanismos,
de modo que agiu produzindo a mercantilização das áreas e evitando que a existência de terras
livres absorvessem os imigrantes e servissem de pressuposto para a intensificação das revoltas
e fugas de escravos. Muitos foram, todavia, os obstáculos à efetivação dessas determinações.
147 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Terra, Nação e Tradições Inventadas: uma abordagem sobre a Lei de Terras de 1850. In: MENDONÇA, Sônia; MOTTA, Márcia (Org.) Nação e poder: as dimensões da história. Niterói: EDUFF, 1998, p. 84. 148 Idem, Ibidem, p. 82.
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José Murilo de Carvalho chega a afirmar que a lei de 1850 “não pegou”149. Nos
esclarece Fagundes Neves que os registros e declarações de terra (feitos pelas freguesias)
ficaram a cargo dos párocos e apresentam dados imprecisos e falsificados, quer pelo
despreparo dos seus responsáveis, quer pela desconfiança por parte dos declarantes quanto à
política agrária do Governo Imperial, levando-os a omitir informações ou mesmo a adulterá-
las como forma de englobar novas áreas ao seu patrimônio. Comuns foram ainda as queixas
relativas à venda de “terras do Estado” por parte das municipalidades e a cobrança de
rendimentos, por parte dos párocos, para a realização do registro. Tal cobrança baseava-se no
número de palavras escritas, o que tornou os textos concisos, com poucos detalhes150.
Exemplificando essas dificuldades na freguesia de Porto da Folha, no sertão
sanfranciscano, Francisco Carlos Teixeira afirma que nos anos seguintes à promulgação da lei
as autoridades locais ainda debatiam sobre em quem recairia a responsabilidade pela
aquisição dos livros nos quais se fariam os registros, se sobre o governo ou sobre o pároco
local. Ainda segundo Teixeira da Silva, até mesmo o conceito de “terra devoluta” era
desconhecido na região de Porto da Folha durante os primeiros anos de vigência da Lei de
Terras, gerando diversas informações contraditórias, que só puderam ser resolvidas à medida
que a noção de propriedade foi se tornando sinônimo de obrigatoriedade de registro cartorial
do domínio. A princípio, todavia, causava “perplexidade” às autoridades locais a necessidade
de se definir claramente as dimensões das áreas151.
As dificuldades de aplicação efetiva da lei de 1850 permitiram, até pelo menos
meados do século XX, a existência de diversas formas de uso comum e coletivo entre as
comunidades rurais no interior baiano. Esses fatores limitadores, porém, não impediram que a
Lei de Terras se constituísse em um marco no processo de expansão do capitalismo no Brasil,
ao servir de parâmetro para a construção do arranjo agrário do período republicano,
oficializando e garantindo a manutenção da propriedade privada exclusiva como forma padrão
de propriedade e de uso. A sua emergência, é o “ressoar” sobre o Brasil da Revolução
Industrial que se expandia pelo mundo, impondo novas relações sociais, produzindo a divisão
social do trabalho e novas formas jurídicas.
149 CARVALHO, José Murilo de. A política de terras: o veto dos barões. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro nas sombras: a política imperial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 346. 150 NEVES, E. F. Estrutura Fundiária..., p. 194-197. 151 SILVA, F. C. T. da. Conflito de Terras numa fronteira..., p. 11-15.
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As linhas gerais que definiam as formas de posse e propriedade da terra, firmadas
pela lei de 1850 permanecem até hoje. Como nos diz Nazareno José de Campos, a redação
referente às terras de uso comum passou a ser reproduzida (semântica ou integralmente) nas
leis de diversos estados até as primeiras décadas do século XX152. Destaca ainda esse autor
que o Código Civil de 1916, vigente até 2002, absorve as terras de uso comum sob a categoria
de compáscuos em terras públicas (art. 646) sem se preocupar com o real sentido dessa forma
de uso. O compáscuo se caracteriza pelo uso de terrenos para pastagem de animais de
diversos donos de forma comum e livre, enquanto as terras públicas tem seu uso regulado
pelo Estado153.
Ao afirmar que “o compáscuo em terrenos baldios e públicos regular-se-á pelo
disposto na legislação municipal” abre-se espaço para interferências locais e
“mercantilização” das terras. Campos ainda afirma que, enquanto os fundamentos da política
fundiária no Brasil se mantém os mesmos do período imperial, a referência às terras de uso
comum se tornaram cada vez mais raras e vagas nos documentos oficiais, especialmente a
partir da Constituição de 1946154. A falta de legislação própria e a generalidade das
referências às terras de uso comum na atualidade é a continuação do projeto de 1850 que
firmava a propriedade e o uso privado exclusivo como formas únicas de acesso e trabalho na
terra. A lei silencia uma prática secular das comunidades, inclusive as dos sertões baianos,
que a cultura teima em recriar.
Apesar dessas restrições e omissões legais, alguns estudos apontam para a
importância e continuidade das terras de uso comum e das formas comunitárias de uso em
tempos recentes. Os camponeses do sul do Piauí, estudados por Maria Dione de Carvalho
Moraes, estruturaram um sistema produtivo que articulava o uso dos baixões (áreas mais
férteis e úmidas, lugar da moradia, do cultivo, das comunidades, da posse e propriedade, das
relações com os vizinhos) e das chapadas (áreas de pastoreio aberto e de obtenção de espécies
vegetais alimentares, terapêuticas, madeira e diversas espécies de animais) garantindo assim a
reprodução social do grupo por meio do “sistema antigo”, como eles próprios denominavam,
até a segunda metade do século XX. O processo de modernização rural instalado sobre as
chapadas, impôs mudanças radicais no modo de vida e na organização espacial desses
152 CAMPOS, N. J. Terras de uso comum..., p. 257-264. 153 Idem, Ibidem, p. 247-250. Cf.: BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071impressao.htm>. Acesso em: 05 de fev/2011, artigo 646 completo. 154 Idem, Ibidem, p. 262.
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trabalhadores. Como nos afirma Moraes, esse conflito demonstrou as diferenças entre a noção
de “utilidade” espacial dos camponeses e a dos empresários/Estado: para os primeiros as áreas
de uso comum tinham papel fundamental na manutenção dos rebanhos e no fornecimento de
recursos naturais; para o capital, a chapada era um “espaço vazio” e improdutivo155.
Em outro estudo, também sobre o mundo rural do Piauí, nos demonstra Emília
Pietrafesa de Godoi como a reprodução social de um dado grupo de camponeses- o “povo do
Véi Vitorino” – passa pelo uso comum e coletivo não só da terra, mas das regras morais,
éticas, econômicas, sociais, parentais e simbólicas, assim como da manutenção de uma
memória genealógica comum. Alimentando uma matriz ancestral, que remonta ao processo de
apossamento dos primeiros ocupantes, esses camponeses mantêm uma noção de
pertencimento familiar sobre a terra (a terra é dos descendentes) como base moral do seu uso,
o que não exclui a existência de direitos individuais - “sistema de direitos combinados”-, ao
mesmo tempo em que reservam áreas comuns em terras de conjunto, terras de ausente e
terras de padroeiro (fonte de recursos, inclusive de terra), nas quais os mais jovens podem
abrir seu “serviço” (roça)156.
A presença de formas comunais de uso e de terras de uso comum na atualidade,
reforça a hipótese da presença expandida dessas práticas e espaços entre as comunidades
rurais dos primeiros séculos. Os diversos modos de defesa dos direitos de uso comum – por
exemplo, a ação direta da derrubada das cercas, a afirmação de outra noção de utilidade dos
espaços, a manutenção de uma memória comum ou mesmo o conflito direto entre
trabalhadores e fazendeiros157 – reforça a importância que essas formas de trabalho e
propriedade tem ainda hoje as para muitas comunidades interioranas e apontam para
resistentes e flexíveis mecanismos de perpetuação do uso comum que o fizeram chegar até o
155 MORAES, Maria Dione Carvalho de. Memórias de um sertão desencantado: modernização agrícola, narrativas e atores sociais nos Cerrados do sudoeste piauiense. Campinas, SP: [s. n.], 2000. [Tese de Doutorado], p. 248-284. 156 GODOI, E. P. de. O trabalho da memória..., p. 41-98. 157 Os dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os conflitos no campo, lançados em setembro de 2010 (referentes ao período de 1º de janeiro a 31 de julho do mesmo ano), demonstram, em relação a 2009, que ao lado do crescimento de conflitos pela água (32%), da elevação das taxas de conflito pela terra (o Nordeste centralizando 54% dos casos) e do número de ocorrências de trabalhadores presos, agredidos submetidos a condições de escravidão no País, cresceu também o número de manifestações de trabalhadores (18%) (Fonte: www.cptnacional.org.br). Esses dados não se reduzem aos conflitos em torno das terras e recursos de uso comum (englobam conflitos referentes a diversas formas de uso/propriedade da terra, recursos naturais e condições de trabalho), além disso, reconhecerem as “manifestações” como forma central de resistência (não abarcam, portanto, diversas outras formas), no entanto, nos servem como base reflexiva, uma vez que parte significativa desses conflitos provém do choque entre as formas tradicionais de uso e trabalho das comunidades rurais (entre elas o uso comum da terra e dos recursos naturais) e o avanço do agronegócio.
78
presente. É baseado nessas reflexões que buscamos entender o campo do Sertão de Irecê e as
formas de uso de seus espaços e recursos.
Como afirma Márcia Menendes Motta, é preciso superar as visões reducionistas que
apresentam os posseiros e camponeses como derrotados e buscar entender as formas pelas
quais os camponeses, ainda que sob alvo de despejos e pressões dos fazendeiros, tentaram
assegurar suas parcelas de terra e suas formas de trabalho com base nas suas próprias noções
de justiça e nas suas tradições advindas da prática diária158.
Sertão de Irecê: o viver entre o costume e o campo
A área a qual denominamos Sertão de Irecê era uma parte do Sertão do São Francisco,
mais conhecido como caatingas de Xique-Xique, englobava o Platô Setentrional da Chapada
Diamantina e áreas circunvizinhas e formou-se entre meados do século XIX e a década de
1970. Entendemos o Sertão de Irecê como uma dimensão sócio-espacial e simbólica de
formação tardia em relação a diversas outras áreas do interior baiano, cuja ocupação se iniciou
ainda nos primeiros séculos. Comumente se atribui esse “retardamento” na povoação dessa
área ao fato dela não possuir, em número significativo, reservas aquíferas perenes. Há, no
entanto, a necessidade de se averiguar a possibilidade da existência de outros fatores.
Atualmente essa área corresponde em partes ou integralmente aos atuais territórios dos
municípios de Irecê, João Dourado, América Dourada, Canarana, Lapão, Jussara, Ibititá,
Ibibeba, Uibaí, Central, São Gabriel, Presidente Dutra, Barro Alto, Cafarnaum, Itaguaçú da
Bahia, Morro do Chapéu, Gentio do Ouro, Barra do Mendes e Mulungu do Morro.
Como já pudemos afirmar, essa área do interior baiano viveu os últimos fôlegos da
escravidão institucional, isso, no entanto, não significa que esta tenha sido menos cruel ou que
suas conseqüências aí tenham adquirido formas mais tênues. Espalhados pelo Platô Norte
Diamantino e áreas vizinhas estiveram diversos grupos quilombolas, alguns deles atualmente
tem sido reconhecidos pelas políticas públicas de valorização étnica. Assim como na maior
parte do interior baiano, as comunidades indígenas existentes foram também expulsas pelo
colonizador e delas hoje restam apenas fragmentos da cultura material e fatores genéticos. Do
ponto de vista econômico-estrutural e político oficial, essa área permaneceu à margem dos
grandes processos e disputas que atravessaram o interior baiano até meados do século XX,
158 MOTTA, M. M. M. Movimentos rurais nos Oitocentos..., p. 113-128.
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quando da estruturação sobre o Platô de pólo agromercantil de grãos para abastecimento
interno, baseado no crédito público subsidiado e na ação do Estado.
As terras do Platô Norte Diamantino pertenciam aos domínios da família Guedes de
Brito. De acordo com as observações do memorialista Jackson Rubem, a primeira negociação
envolvendo as terras do Platô deu-se em 21 de fevereiro de 1807, quando os representantes da
Casa da Ponte venderam a Antônio Teixeira Leite e Felipe Alves Ferreira, moradores do
município de Morro do Chapéu, uma extensa área denominada Barra de São Rafael com as
seguintes fronteiras: Nascente: fazenda tereco, dos vendedores, onde faz meio com o Sítio São Rafael; Poente: pelos contrafortes desta até o Sítio Santa Rosa, no poço de Água Verde (já é no rio Verde) e deste ao lugar chamado São Pedro, nas imediações da Chapada Velha. Norte: com a travessia de Dona Joana, (que é cá no centro da caatinga), cortando por cima da serra chamada São Francisco, procurando o lugar chamado São Pedro e daí cercando a Lagoa dos Porcos, acima do pasto de deste lugar à Travessia de Dona Joana... Sul: do lugar São Pedro, a Lagoa dos Porcos daí vereda abaixo até a Barra de São Rafael159.
Anos depois, ainda segundo Rubem, Joaquim Alves Ferreira, Joaquim Gomes Pereira
e Domiciano Barbosa Pereira adquiriram parte do território da Barra de São Rafael chamado
Lagoa Grande e nessa área passaram a arrendar porções de terra. Sabe-se que parte dessa
propriedade foi revendida a João José da Silva Dourado em 1840, incluindo aí a fazenda
Lagoa das Caraybas ou Brejo das Caraíbas onde hoje se encontra a cidade de Irecê.
Devido a crise das zonas auríferas e diamantíferas do interior baiano, no final do
século XIX, e a ocorrência de períodos de estiagem, diversos grupos migrantes se deslocaram
para o Platô Norte Diamantino em busca de terras para cultivo. A chegada desses grupos
obrigou João José da Silva Dourado e seus descendentes a ocupar as suas propriedades a
partir de 1877160, passando a residir na fazenda Lagoa das Caraybas. É importante notarmos,
contudo, que a propriedade Lagoa Grande abarcou a área central do Platô Norte Diamantino,
as áreas localizadas nas bordas deste foram ocupadas especialmente por posseiros até meados
do século XX. Outro fluxo de povoamento do Platô pode ser atribuído também à instalação da
fazenda Barra (na localidade onde atualmente existe o município de Barra do Mendes) no
início do século XIX.
159 RUBEM, Jackson. Irecê: história, casos e lendas. 2. ed. Irecê: Print Fox Editora, 2001, p. 37. 160 Idem, Ibidem, p. 40.
80
Imagem 1: Localização do Platô Norte da Chapada Diamantina e áreas próximas
Área aproximada do Platô de Irecê.
Fonte: IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/mapas/ba_mapa.htm>. Acesso em 20 de fevereiro de 2011.
Como é comum na área semi-árida, as comunidades do Platô Norte da Chapada
Diamantina se desenvolveram próximas às fontes de água, aguadas, pequenos córregos ou em
locais mais úmidos onde era possível a abertura manual de poços e cacimbas. Nesses locais
originaram-se as primeiras povoações como América Dourada, Rochedo (atual Ibititá),
Canarana, Canal (hoje João Dourado) e Caraíbas (hoje Irecê)161. Infelizmente não dispomos
ainda de obras específicas sobre os processos iniciais de ocupação dessa parte do interior
baiano. A dispersão ou mesmo a ausência de documentos escritos referentes a esse processo,
impõe a memória oral como uma das poucas fontes para o conhecimento do modo de vida dos
primeiros habitantes do Platô.
161 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes: Região de Irecê. Salvador: SEI, 2000. (Série Estudos e Pesquisas, nº 48), p. 18-21.
81
A construção do sistema hidroferroviário da Bahia, entre a segunda metade do
século XIX e a primeira metade do século XX, influenciou indiretamente a vida das
populações aí localizadas. O contato destas com as linhas de transporte deu-se por meio de
relações comerciais estabelecidas via porto da cidade de Xique-Xique e ramal ferroviário de
Jacobina. Reinaldo de Lôro, morador do povoado de Lagoinha, em Canarana, afirma que
“antigamente”
os tropêro panhava mamona aqui, fejão, milho, até quando cumeçô caminhão, panhava pra ir pra Jacobina e Miguel Calmon! [...] Por causa da linha do trem, o trem passava, a Maria-Fumaça, pra Salvador, vinha de São Paulo, lá tinha as istação, ai o trem de ferro pegava os produto daqui do sertão, que era tirado em lombo de burro! [...] Ia carregado de mamona e milho pra lá, voltava carregado de bibida, rôpa, sal, querosene, sabão, biscoito, bulacha [...], nas imbalage de madêra!162
Independente da influência das ferrovias e dos vapores, o comércio de gado sempre fora
frequente entre o Platô Norte Diamantino e as zonas de Morro do Chapéu, Jacobina e beira do
Rio São Francisco. O senhor Luiz Batista de Oliveira, Luiz Vaqueiro, afirma que por muitos
anos conduziu boiadas para Jacobina: “Lá era uma região rica, Jacobina, que a gente levava...
um saia com 200 boi, ôto saia com 300, ôto saia com 100, ôto saia com 50, tudo vindia de,
chegava em Jacobina de um dia pra ôto vindia, tudo! Voltava aqui pr’esse sertão”163.
Foi a partir da década de 1920 que surgiram aí as primeiras vilas e municípios.
Irecê, o município mais antigo, obteve sua emancipação de Morro do Chapéu em 1926,
ratificada em 1933164. As mudanças sócio-espaciais e políticas mais intensas na área em foco
só ocorreram a partir de 1950, com a abertura das estradas, a modificação nas bases
produtivas, a circulação dos caminhões e a criação de novas unidades municipais. Em 1962 o
Platô Setentrional da Chapada Diamantina já estava dividido entre 12 municípios165, tendo
sido esse número elevado para 19 até o final da década de 1980166.
162 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro), 67 anos, lavrador e vaqueiro, Povoado de Lagoinha/Canarana-Ba, momento único, 07 de jan/2012. 163 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro), 61 anos, vaqueiro, Sede/Irecê, 2º momento, 14 de nov/2010. 164 Sobre os embates políticos em torno da emancipação de Irecê ver: LEITE, Gedean Gomes. “Terra do frio”, coronéis de “sangue quente”?: política, poder e alianças em Morro do Chapéu (1919-1926). Feira de Santana: UEFS, 2009 [Dissertação de Mestrado em História]. 165 Barra do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Presidente Dutra, Uibaí e Xique-Xique. 166 Surgiram na década de 1980 os municípios de São Gabriel, Mulungu do Morro, Lapão, João Dourado, Itaguaçu da Bahia, Barro Alto e América Dourada.
82
Imagem 5: Localização da atual Região Administrativa de Irecê em relação a Salvador
Imagem 2: Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1889
Imagem 3: Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1940
Imagem 4: Divisão político-administrativa atual do Platô Norte da Chapada Diamantina
Fonte: Prefeitura Municipal de Irecê. Disponível em: <http://irece.ba.gov.br/news/imapas.asp>. Acesso em 05 de fevereiro 2011
Fonte: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONOMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Evolução territorial e administrativa do Estado da Bahia: um breve histórico (CD ROM). Salvador: SEI, 2003 (Série Estudos e Pesquisas, nº 56).
83
As relações sócio-econômicas e agrárias aí desenvolvidas até meados do século XX,
basearam-se em normas morais sustentadas sobre o direito de uso, na policultura e pecuária,
no uso comum das áreas de campo e no predomínio das relações familiares/comunitárias de
vida e trabalho. A terra foi sempre o elemento central no provimento da sobrevivência das
populações do Sertão de Irecê. Nas áreas pertencentes à família Dourado os trabalhadores
realizaram aquisições de parcelas para cultivo e moradia, um dos entrevistados, o senhor
Amado Alves Pinto, conhecido como Roxinho Vaqueiro, nos repassou as informações que
ouvira do seu pai:
A terra nesse tempo era..., eles tinha uma iscritura... é o siguinte, daí os Dourado (família Dourado) vendia uma parte de terra. Você tem que comprar da fazenda Lagoa Grande, se tiver 100 tarefa, você ia e comprava um taco, aí você mandava ao redor de sua fazenda toda, eles vendia, dizia: _“Aqui vamo vender a fazenda Lagoa Grande!” Acho que era (esse o nome) né, aí você ia e comprava aquele taco ali (quer dizer que a família Dourado vendeu parcelas da Fazenda Lagoa Grande), aí pagava aquele xxxx167 e pronto! Ficava mandano!168
Embora não tenham sido relatadas nas entrevistas ocorrências quanto ao arrendamento
de partes da Fazenda Lagoa Grande, não é equivocado imaginarmos que essa prática ocorreu
paralela a aquisição de parcelas por compra ou mesmo a ação de posseiros. Esses, contudo, ao
que tudo indica foram mais comuns nas áreas que margeavam essa propriedade. O senhor
Sinobilino Francisco Nunes, morador do povoado de Poço, município de Uibaí afirma: E: [...] de quem era a terra assim como é, comprava a terra? En:A terra era de valor, terra num tinha dono. E: Num tinha dono! En: Não, terra era de quem, de quem fizesse sua roça, quem quisesse fazer sua roça169.
O senhor Hermes José da Silva, popular Véi Herme, afirma também ter existido a ação
de posseiros na Vila de Recife de Jussara. qualquer um chegasse, podia pegar e fazer, aonde num tivesse, um num já estiver, que à vez, aqueles mais primêro circulava uma área [...] de variante (pequena clareira que demarca a fronteira do terreno) que’nem nós chama, fazer as picada né, 4 picada cercava ali (demarcava), dento da catinga. Então aquele ali já respeitava que já tinha dono né, aquele já tirô a área dele, mas, eu e ôto pudia tocar a foice e tirar ôta área pra frente tombem né! Como todo mundo fez aqui foi assim.170
167 XXX = Trecho inaudível. 168 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 169 Entrevista do senhor Sinobilino Francisco Nunes (Sinó), 86 anos, antigo lavrador e vaqueiro, Poço/Uibái, momento único, 26 de ago/2011. 170 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme), 71 anos, lavrador, criador e antigo vaqueiro, Vila de Recife/Jussara, 3º momento, 16 de out/2010.
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A disponibilidade de terras e a pequena população, manteve o sistema de apossamento
primário equilibrado. O senhor Almir Mendes Batista, popular Almir Vaqueiro, também
morador da Vila de Recife, se lembra que esse sistema valia igualmente para a construção das
moradias e que permaneceu até tempos recentes: Aí você chegava, dizia: _“Eu vô tirar uma...” Metia a foice pra dentro aí, tirava sua terra e óia. Em [19]70! E aqui, era quem chegasse, onde agradasse podia fazer sua casa, sua roçinha... eles pegava e fazia as roça171
A origem do sistema de apossamento primário remonta ao período colonial. Não só
senhores de sesmarias avançavam sobre os territórios reivindicando-lhes os direitos de uso,
como defende Márcia Menendes Motta, os posseiros foram uma categoria ativa quanto a
ocupação e disputa das áreas. Emília Pietrafesa de Godoi encontrou esse mesmo sistema entre
os camponeses do Piauí. Para ela a noção de posse continuou existindo entre os seus sujeitos
de estudo, mesmo após a abolição do sistema jurídico de posses com a Lei de Terras de
1850172. Como vimos, Francisco Carlos Teixeira, tentando explicar a origem das práticas
comunais no sertão sanfranciscano, também cogita a continuidade da noção de posse coletiva
entre os posseiros de Porto da Folha no século XIX, após a sacralização da compra como
forma de acesso à terra173.
Para os trabalhadores do Sertão de Irecê, os recursos naturais não tinham valor
monetário direto, sua apropriação era baseada em um valor de uso. Mesmo aqueles que
adquiriram por compra parcelas junto a família Dourado, proprietária da Fazenda Lagoa
Grande, optaram por assim fazer por reconhecerem nas áreas que almejavam características
julgadas importantes. Como demonstrado, nas margens do Platô existiam, até meados do
século XX, áreas de caatinga consideradas sem dono que eram alvo da ação de posseiros.
Almir Vaqueiro e Chico França, este também por nós entrevistado, nos dão um claro exemplo
das concepções não-monetárias que pesavam sobre os recursos naturais, ao relembrarem a
chegada de suas famílias à Vila de Recife, no final da década de 1930:
171 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista, (Almir Vaqueiro), 69 anos, vaqueiro, Vila de Recife/Jussara, 1º momento, 11 de nov/2010. 172 GODOI, E. P. de. O trabalho da memória..., p.41-108. 173 SILVA, F. C. T. da. Conflito de terras numa fronteira antiga..., p. 28.
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En 1 :É a vereda de desce pra’i óia. É, comprou a vereda! A terra aí, onde você chegava, ia fazer sua roça onde quisesse aí óia!174 E: Por que só comprou a vereda? En 1: É por que... nessa época...175 En 2: Ele (seu pai) comprou foi os direito!176 En 1: Os direito! Foi os direito ali né, pra cuido daquela pessoa... XXX pra quê que ele quer terra? Só queria a vereda óia! [...] Aí, ia chegando as pessoas... onde agradasse você ia fazer sua roça pra lá e pronto, não tinha negócio...XXX comprar um terreno não, era onde chegasse aí.
É importante notarmos aí que a negociação realizada não visava a compra do recurso
natural em si, mas a compra dos direitos de uso sobre ele. Esse sistema deixa claro a
perspectiva comunitária que recaía sobre os bens naturais que garantiam a sobrevivência. A
aquisição dos direitos de uso, porém, não lhe retirava a característica comunitária, dessa
forma, nada impedia que os moradores vizinhos dessedentassem os animais em um riacho
cujos direitos foram adquiridos por outros. Assustado com a pergunta do entrevistador sobre a
existência do sistema de compra de terras, questiona Almir Vaqueiro: “pra quê ele quer
terra?”. A questão esclarece ainda mais a proximidade entre a noção de valor e de uso que
atravessa a fala dos entrevistados.
Havendo terra disponível para posse, era a presença de fatores naturais como a água,
ou mesmo a realização de algum trabalho que lhe atribuía características especiais. Hermes
exemplifica. E: E essa coisa de comprar e vender a terra, ninguém comprava e vendia? En: Não! Se por acauso, eu, ou ôtro, qualquer um, fizesse uma roça e quisesse sair, ou ficar sem ela, mudar pra comprar ôta área em ôto canto, aí ele vendia, aquele binifício (benefício) que fez né, só o binifício que fez ou cercô [...] mas, mais pra frente não, que num era dele!177
174 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. (En 1). 175 Alessandro Portelli nos desafia a entender o áudio como “o documento real” a ser trabalhado, uma vez que o processo de transcrição desconfigura a linguagem oral, na medida em que objetiva tornar compreensível certas tonalidades, volumes e ritmos, (reveladores da dimensão emocional da narrativa) “irreproduzíveis na escrita”. Ver: PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDCU, vol. 14, fev/1997b, p. 26-29. O caso aqui descrito é claro na gravação, buscamos expressar por meio das reticências o “espanto” do entrevistado em relação a pergunta, por outro lado as exclamações marcam a tonalidade e a firmeza das respostas. Essa observação nos serve para refletirmos tanto sobre a forma concreta com que os trabalhadores concebiam sua noção particular de propriedade, baseada no valor de uso, como sobre a distância desta em relação à noção de propriedade capitalista atualmente predominante, presente no próprio entrevistador. 176 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França), 77 anos, antigo lavrador, vaqueiro, matador de boi e artesão, Vila de Recife/Jussara-Ba, 1º momento, 13 de nov/2010. (En 2). 177 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.
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O entrevistado demonstra que não era a terra em si o fator comercializado, mas o
“binifício” que estava sobre ela. Os entrevistados usam o termo “binifício” para designar os
produtos das ações humanas que incorporavam valor à terra, estes podiam ser das mais
diversas naturezas, desde o desmatamento de uma área, um reservatório, uma cerca ou uma
casa, por exemplo. Outros fatores não humanos poderiam ainda valorizar certas parcelas.
Hermes, mesmo podendo abrir sua própria gleba na caatinga virgem, optou por comprar uma
pequena roça quando da sua chegada à Vila de Recife (município de Jussara) em 1968,
justificando ser esta mais próxima de sua residência.
De qualquer forma, a compra dos direitos de uso ou o apossamento de certa parcela
inseria os indivíduos nas regras morais e sociais da comunidade que regulavam a convivência
e a apropriação dos bens, passando o mesmo a ser reconhecido como dono. Almir Vaqueiro e
Chico França exemplificam o funcionamento dessas normas. En 2: Se você saísse, saia e dexava seu pedaço:178 _“Ó eu vô sair moço! Vocês que planta a roça aí!” En 1: _ “Xx planta aí pra tu!” 179. En 2:_ “Fica óiano minha roça aí, se você quiser plantar, planta...”, En 1: [...] ali é minha, se eu fiz ali a capuêra era minha! _“Capuêra de fulano!”, era. En 2: _ Vendia pra ôto. En 1: Ou vendia! Você ia fazer a sua lá onde você quisesse, mas essa daqui foi eu que fiz, é minha! [...] Se achasse o compradô você pudia vender que foi você que fez!
A fala dos entrevistados demonstra que a aquisição do direito sob certa área era uma
noção socialmente referendada e respeitada, ainda que o seu dono não se fizesse presente. Ao
que tudo indica esse direito de uso, ainda que adquirido via apossamento primário, tinha
caráter hereditário. Assim como no caso da aquisição dos direitos de uso sobre a fonte de
água, relatado acima, o direito de uso sobre a terra não impedia sua apropriação comunitária.
Desta forma os animais da localidade podiam livremente pastar sobre áreas de copoeira ou
roças em pousio. As capoeiras eram “antigas roças” ou áreas queimadas, geralmente
pequenas, cobertas por vegetação renovada em estado arbustivo e de pequeno porte. Era, pois,
uma área portadora de “benefício”, uma vez que já havia sido desmatada, e pertencente a um
dono.
178 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de nov/2010. (En 2). 179 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. (En 1).
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A poliagropecuária foi a base econômica das comunidades do Sertão de Irecê. Sobre a
consorciação entre agricultura e a criação de animais relata Almir Vaqueiro: “eu lembro
moço, que meu pai era vaquêro, toda vida criava o rebanho de ovelha, criava o gado, era vaca
dos ôtos mais... a roça era no Angico (área próxima ao Morro do Angico, a 8 Km da sede do
município de Jussara), dava o feijão de corda, dava milho, dava mamona, dava tudo”.180 O
senhor Hermes José da Silva, nos detalha a forma de abertura das roças e a presença do
sistema de queimadas ou coivaras: às vez quando estava já roçando, brocando a terra, a caatinga pra fazer a roça, já ia tirando a madêra daqueles pau né, cortando e tirando a madêra e juntando, depois que roçava todo ia tirar a madêra nas costa de dentro da... e botar nos acêro, quando queimava aquela roçage, agora ia, com aquela madêra ia levantando a cerca, fazendo a cerca.181
Os trabalhadores do Sertão de Irecê derrubavam a caatinga para formação das roças por
meio de ferramentas básicas como machados e foices, ou mesmo do uso do fogo. Os detritos
das queimadas forneciam matéria orgânica para as culturas e aos primeiros sinais de
enfraquecimento do solo novas áreas eram abertas. As dimensões das roças impediam,
contudo, que esse sistema produzisse consequências graves para o meio ambiente. Ainda
segundo Almir Vaqueiro “os melhor de vida às vez fazia 8 ou 10 tarefa182 de roça ali, mas o
pobre começava com 1 tarefa, 2, 3.”183
A criação de animais estava presente na maior parte das propriedades e nas mais
diversas proporções. Os bovinos, ovinos, caprinos, muares, suínos e eqüinos eram criados
livremente em meio às caatingas. Esse sistema não excluía a existência de pequenos currais e
cercados onde os animais eram presos temporariamente, por outro lado, a prática de criação
dos rebanhos à solta obrigava os pequenos agricultores a cercarem suas propriedades com
madeira nos períodos produtivos. Sobre esse assunto Almir ainda afirma: “Era tudo aberto,
qual é cerca tinha nada aí! Só tinha um curral e um quintal nessas vereda aí ó! Aqui tudo era
aberto, abandonado, gado cumia aí onde quisesse, era abandonado”184. Nos explica o senhor
Guilhermino, morador do município de João Dourado e antigo vaqueiro: o bicho naquele tempo era solto, o criatóro era sôto no município aí de todo canto, né, nesse tempo aí num existia quase roça, tudo era catinga, tudo, o bicho vivia solto
180 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista, (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 181 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 182 1 tarefa = 66m². 183 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 184 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010.
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aí, você lutava daqui pra lá, vinha pegar gado aqui, no município de América, vinha pegar gado aqui, o mesmo gado vivia solto comum no mundo185
Como afirma Sinobilino Francisco Nunes, a caatinga servia de pastagem natural para
os animais:
o gado come verde e sêco, quando caía as folha o gado cumia ne’ra, tudo cumia, aquelas folha que ia no chão, quando mucha chega o tempo cai tudo, cai no chão o gado come toda, né, do jeito que come verde come sêca, passado tempo, num emagrecia não, só se aduecesse, que é acustumado186
As pequenas unidades policulturas associadas à pecuária, garantiam as condições
básicas de sobrevivência e a acumulação de pequenos excedentes que alimentavam o
comércio circunvizinho nas comunidades do Sertão de Irecê. Nesse contexto predominou
sempre a mão-de-obra familiar, sendo esta acrescida, por vezes, da troca de serviços e
produtos ou mesmo, da contratação de mão-de-obra para realização de atividades rápidas.
Os transportes mais comuns e acessíveis às populações do Sertão de Irecê até a década
de 1950 eram as tropas e carros-de-boi. Estes emitiram seus cantados por várias estradas do
Platô Norte Diamantino e áreas próximas, até pelo menos o final da década de 1970. Como
era comum em diversas áreas do interior baiano, aí também eram as moradias, as ferramentas,
os utensílios produzidos geralmente dos materiais mais acessíveis como o barro, a madeira, o
couro, o algodão. Os produtos manufaturados, ou não gerados pelas pequenas comunidades,
eram adquiridos nas feiras onde se comercializavam alimentos, ferramentas de ferro, farinha,
tecidos e produtos vindos de outras áreas do interior baiano. Ainda na década de 1950 o
sociólogo norte-americano Dolnald Pierson, em viagem pelo Vale do São Francisco, registrou
diversos momentos da vida do Sertão de Irecê e da cidade de Irecê, 9 anos depois, a pedido do
Ministério do Interior e da Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE) retorna ao
vale para realização de um “inquérito ecológico e sociológico” levando a público suas
primeiras anotações. Na sua primeira visita ao Vale (do São Francisco), o autor encontrou à venda na praça de Irecê, cidade situada a 100 quilômetros do rio, peixe seco do São Francisco, incluindo o surubim, a Curimatá e a corvina. O preço do surubim alcançava, nessa ocasião, 10 cruzeiros o quilo e, a Curimatá e a corvina, 8 cruzeiros.187
185 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino), 81 anos, antigo lavrador e vaqueiro, Sede/João Dourado-Ba, momento único, 18 de ago/2011. 186 Entrevista do senhor Sinobilino Francisco Nunes (Sinó)..., momento único, 26 de ago/2011. 187 PIERSON, Donald. O homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: SUVALE, 1972; Tomo II, p. 382.
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O comércio rompia as barreiras da distância e possibilitava às comunidades do Platô
Norte Diamantino e vizinhanças, o atendimento de suas necessidades. Embora o relato seja
recente, não nos é difícil imaginar que o viajante observara um momento corriqueiro da vida
comercial do Sertão de Irecê. Nos povoados e vilas, no entanto, predominava o sistema de
trocas de produtos. Roxinho Vaqueiro afirma que “de primêro” “dinhêro quase num existia!
Dinhêro, era algum que tinha um dinhêrim, aquelas coisa né, mixaria, quando vendia um bode
por 5 mil réis, [...] é o dinhêro que fazia é isso, é, dinhêro era difícil, era difícil”188.
Como é comum nas áreas semi-áridas, a seca foi sempre uma ameaça constante no
Sertão de Irecê. Daiane Dantas Martins, analisando a seca de 1932 na Vila de Canabrava do
Gonçalo, demonstra que, diante da instalação das calamidades no Sertão de Irecê muitas
pessoas se deslocavam para a cidade de Xique-Xique, às margens do rio São Francisco, em
busca de emprego e comida. Os que permaneciam ficavam sujeitos a fome, sendo obrigados a
se alimentarem de raízes, cactos como o xique-xique, de “batatas” como a cuca do umbuzeiro,
sementes como a mucunã ou mesmo de couro cru.
A desnutrição e a subnutrição expunham tais pessoas a diversas moléstias, muitas
vezes lhes causando a morte. Contudo, era nesse trágico contexto que se reforçavam e se
recriavam formas de solidariedade familiar189. É importante lembrarmos as observações de
Elisangela Oliveira Ferreira, ao afirmar que, a vida no sertão tinha para a maior parte das
populações a marca central da pobreza, que a dependência direta dos fatores naturais ou
mesmo a “técnica relativamente pouco elástica” de produção impôs aos sertanejos um
constante sentimento de “incerteza quanto ao futuro”190.
Guilhermino, no alto dos seus 81 anos, relembra:
Quantas e quantas pessoa eu via torrar milho assim, num caco véi pra cumê que num tinha ôta coisa pra cumê!? [...] Naquele tempo era pior, porque o mundo era a catinga e tudo mais, muitas hora o cara tinha vontade de fazer a rocinha e num pudia, porque num pudia cercar, porque o gado era solto [...] ficava pedino aos ôto uma coisinha pra cumê. [...] Em (19)44, eu tinha 14 ano, nasci em (19)30! Nessas catinga tudo, você iscutava no mato, xxx iscutava: “pêêê!”, o povão no mato juntano mucunã! [...] Juntano mucunã pra cumê, pra num morrer de fome, (19)44!191
188 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 189 MARTINS, Daiane Dantas. Um flagelo no sertão baiano: cotidiano, migração e sobrevivência na seca de 1932 (Vila de Canabrava do Gonçalo/Xique-xique). Santo Antônio de Jesus – BA: UNEB, 2010 [Dissertação de Mestrado em História Regional e Local]. 190 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 140, 169. 191 Entrevista Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
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O entrevistado afirma ainda que muitas pessoas se sentiam mal após ingerirem raízes e
sementes. Diante da estiagem, conseguir água era sempre um desafio. Relata ainda o senhor
Guilhermino:
Água, óia, aqui dentro de João Dourado tinha um lajedo, tinha um buraco aí, o povo dessa região de 3, 4 légua que morava pra dento desses mocotozim, dessa catinga aí tudo, vinha pegar água c’uns carotinho em riba de um jegue, os caçoá véi com uma lata véa dento e umas cabaça, né. [...] num tomava banho, nem home, nem muié, nem nada! [...] Só os carrêro na catinga, num tinha istrada!192
Reinaldo Lôro, nos conta como ainda criança, lidava com os rebanhos de sua família
diante da escassez de água.
chegava lá tirava água na lata [da cacimba], na corda, corda bem cumprida na lata! Soltava naquela cacimba! E aí panhava água, inxia a lata, puxava botar no côxo! Pra dá água a criação. Aí quando as criação bibia a gente voltava com essa criação pra cá pra mesma manga [área cercada de criar], deve dá uns 9 km, 9 a 10 km mais ou menos, e olhe lá se não dá mais! Aí bibia hoje, amanhã não, dia sim e dia não, e nessa batalha a gente vincia! Murria muita criação, até de sêde!193
Os mais velhos possuem rico repertório de lembranças sobre as dificuldades vividas
em momentos de estiagem. No entanto, nem só de crises viveu o Sertão de Irecê. Os
momentos de fartura em que havia chuva regular, permitiam o retorno das atividades das
roças e a recomposição, ainda que parcial, dos rebanhos. Zizinho discorre:
Mais a gente vivia vida boa! Era vida boa! Que tinha fartura de leite, tinha o bode, o porco, num faltava pra se matar pra cumer! E a farinha, essa ai era da lavôra. [...] Produzia muito fejão, [...] era tudo plantado na mão, era só mesmo pra cumer, num tinha coisa pra dizer assim: _“Vendi tantos saco de fejão, vendi tantos saco de milho!” Num tinha isso não!194
A realização de trabalhos coletivos amenizava as dificuldades vividas e facilitavam a
produção das condições de sobrevivência. Os vaqueiros entrevistados relatam a existência de
práticas como o adjunto ou trocas de serviços, comuns em diversas partes do interior baiano,
deixando transparecer a predominância de formas comunitárias de convivência, sociabilidade,
lazer e trabalho entre as populações do Sertão de Irecê. Roxinho e Almir exemplificam essas
práticas:
192 Idem, Ibidem, loc. cit. 193 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)...momento único, 07 de jan/2012. 194 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho), 66 anos, matador de boi, lavrador e antigo vaqueiro, Tanquinho/Lapão, 1º momento, 13 de set/2011.
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É, dá o nome de adjunto![...] Fazer o adjunto pra ajuntar o pessoal, 10 ou 15 ou 20 home pra ir fazê aquele trabalho né, pra fazê cerca! Ou capinar, fazia muito pra ir capinar, às vez a pessoa se achava doente: _“Vamo capinar a roça de fulano hoje? Vamo todo mundo!” Reunia nós... cansemo de ir, capinar, cercar, às vez plantar, quando alguém adoecia: _“Vamo plantar a roça de fulano que tá doente moço!” Aí o povo ia. (...)! Era de graça, ninguém pagava nada. Só dava a despesa, a comida lá e pronto.195 Ali é o siguinte, naquele tempo, os vizinho era tudo unido! Se eu... aqui tinha 5 vizinho ou 10, se eu matasse um bode, cada quem ganhava um taco (um pedaço). Quando você matava era a mesma coisa, era repartido. Você arrancava uma mandioca, todo mundo ia ajudar! Num tinha esse negóço de pagar não né. O fornêro ia mexer! Só tinha o bêjú (beiju): _“O bêjú é do fornêro!” Bêjú de tapioca, e aí pronto, quando fizesse ôto a mesma coisa fazia! Era tudo desse jeito.196
A troca de serviços poderia se estender à diversas atividades: construir uma casa, fazer
uma cerca, capinar a roça de algum conhecido, capturar animais na caatinga ou simplesmente
fazer farinha. Para os grupos rurais, a possibilidade de trocar serviços sempre teve grande
importância na cobertura de suas necessidades cotidianas. Poder contar com uma mão-de-obra
a mais durante o plantio, a colheita, diante da iminência de uma chuva que ameaçasse a safra
ou mesmo em condições de impossibilidade física do dono da roça em realizar a tarefa, era
fator da maior relevância. Por outro lado, a troca de produtos facilitava o acesso a alimentos
básicos ou utensílios desejados. É importante notarmos que essas formas de trabalho tinham
ao mesmo tempo um grande caráter simbólico e sócio-econômico que terminava por
fundamentar “redes domésticas” de relações que se estendiam além da consanguinidade e
eram constantemente reconstruídas e reforçadas pelos laços de dependência e pertencimento.
Exemplo dessa perspectiva nos é fornecido por Ana Ferreira Rocha ao analisar a
“freguesia” no município de São Gabriel. A “freguesia” consistia em uma prática centenária
de ajuda mútua, caracterizada pelo auxilio voluntário de um dado grupo de mulheres a outras,
geralmente vizinhas ou parentes, que se encontravam gestantes ou em “resguardo”197. A ajuda
fornecida tinha como foco central as atividades domésticas como lavar roupa e cuidar das
crianças, incluindo-se também o trabalho das parteiras. Rocha aponta para a “freguesia” como
uma prática fortemente marcada por trocas simbólicas em torno da maternidade e do
“resguardo”, que produziam sentimentos de pertença entre o grupo e amenizava as condições
de sobrevivência na pequena comunidade de São Gabriel. Ainda essa autora, aponta para
195 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 196 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 197 Período pós-parto, no qual a mulher ficava impossibilitada de realizar tarefas durante cerca de 20 a 30 dias.
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existência de outras formas comunitárias de trabalho no espaço por ela estudado como a
“espinhaçada” (mutirão para matança de porcos), a “derruba de milho” e os “trabalhos da casa
de farinha”198.
A realização de atividades laborais no Sertão de Irecê não se antagonizava aos
momentos de divertimento. Para além da realização de festejos religiosos e de folguedos, um
simples adjunto ou qualquer outro trabalho coletivo intercalava de modo flexível as tarefas do
cotidiano e os momentos de sociabilidade. Nos fala Luiz Vaqueiro:
[...] você tinha 10, 12, 15 boi pra pegar, aí reunia a vaquerama pra pegar [...] E aí a festa ia cumeçano, e a aligria [...], quando pensava que não chegava uma bibidinha por o mei, (risos) um lito de cachaça, e lá vai, nêgo tomava uma dose ali já ficava mais alegre... [...] Aí, quando era de noite, tomava o pé de um bar daquele e a farra cumia!199
Como afirma E. P. Thompson, nas comunidades em que o controle do tempo se dá
atravéz da orientação das tarefas cotidianas a serem realizadas, quase não existe diferenças
entre o ‘trabalho’ e a ‘vida’. Nesses espaços não há conflito entre o trabalho e o passar do dia,
aliás, a própria noção de dia tem como referência o tempo gasto para realização das tarefas,
podendo assim se alongar ou contrair200.
A dinâmica cotidiana da vivência dos habitantes do Sertão de Irecê era produzida a
partir da integração de diversos espaços.
En: [...] de manhã cedo levantava ali, quatro horas, três horas, [ia] pra o curral né, pra lutar com... tirar leite, ajeitar bezerro nas mães pra mamar e tudo, quando era a base de seis horas era soltar eles do curral, ai ia pegar cavalo, dar banho e arriar, quando era sete pra oito horas ia pra o campo. Então quando desce certo, você entrava pra o campo, [...] Achava uma vaca parida ou pra parir, pra trazer para o curral, trazia, outras vezes não achava cedo [...] Passava o dia, por lá pelo campo! Lutando, em procura daquela rês que você está com mais preferência pra não perder o bezerro! [...] E ai, XXX não achava, quando era a base de cinco horas ia voltando pra casa, quando vinha chegar era seis horas, sete horas em casa, com XXX, com a rês ou sem nada, mas o horário era esse! [...] E quando chegava, [...] se era de jantar, não, ia pra o curral! (risos) E: Tem um trabalho no mato e tem um trabalho em casa. En: Acho que já estava em casa, no curral! [...] Quando vinha pra casa, já era de sete pra XXX, era que você ia jantar.201
198 ROCHA, Ana Ferreira. Gênero, reciprocidade e reprodução social: o circuito da dádiva na prática da “freguesia” entre mulheres de São Gabriel-Ba. Viçosa: UFV, 2008 [Dissertação de Mestrado em Economia Doméstica]. 199 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 200 THOMPSON, E. P. Costumes em Comum..., p. 271-272. 201 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010.
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Ao narrar o seu cotidiano de trabalho o velho vaqueiro nos descortina uma “união de
lugares”, marcados por um “ir e vir”, que, em última instância, possibilitava o próprio
“existir” para os sertanejos do Sertão de Irecê. A esse conjunto de espaços (o campo, a casa, o
curral) unia-se a roça, como espaço central de produção de alimentos, como demonstra Luiz
Vaqueiro: “fazia sua rocinha pra você ter sua dispesa, o milho... ninguém vendia milho
naquela época! Cada qual todo mundo tinha, criar seu porco, criar seu bode, dar ração a uma
vaca fraca, um cavalo... pronto, era esse... e comer, o milho.202 Por fim, as feiras completavam
a rede espacial como lugar de lazer, comunicação e comércio.
O campo era o mais extenso dos espaços de produção da sobrevivência das
comunidades do Sertão de Irecê e compunha o fundo sócio-ambiental sobre o qual se
desenvolviam as demais atividades. O campo marcava o “estar dentro” ou o “estar fora” dos
seus espaços de pertencimento. A definição mais corriqueira do termo campo, remete a uma
área extensa, sem mata, geralmente cultivada, um tanto quanto afastada das áreas urbanas, a
qual se atribui representações e sentimentos bucólicos de paz e calma. Para as populações do
Sertão de Irecê, a expressão tinha um sentido oposto e era utilizado para definir uma área
pastoril, coberta com caatinga virgem ou renovada203. Esclarece Viana Vaqueiro: O campo é o vasto aí né, você selar o cavalo e caçar o bicho no mato, nas capôera, queimada...o campo é esse aí. Quando uma pessoa viu outra dizia: _“Vai pro campo?!” Já sabe que eu vou caçar o trem (o boi) no campo né, que num tinha circo! (área fechada com cercas para criar os animais). Hoje diz assim: _“Eu vô ali na manga, eu vô no circo juntar o gado” Porque o trem é preso! Aí...: _ “Vô pro campo!” Merguiava no campo.204
Roxinho Vaqueiro também explica:
O campo é... é o campo mesmo, era a terra solta aí pra todo mundo! Era um campo! Vamo dizer: o campo é a terra solta pra todo mundo. Quando tem dono é um sítio, né: _“No sítio de fulano!” né, fulano... _“Lá no sítio de fulano tem uma rês!”, ou “Na fazenda de fulano tem uma rês sua!”, Diz: _“Tá no campo!” _“Qual é o campo?”
202 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 203 Aparentemente o termo é comum a toda a área do semi-árido nordestino onde houve a prática da pecuária “solta”. 204 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro), 75 anos, lavrador e antigo vaqueiro, Sede/Jussara, momento único, 10 de nov/2011.
94
_“Campo fulano, naquela lagoa, lagoa do Juá, lagoa do Urubu, ou Três Lagoa, lá tem uns gado de vocês pastano lá!” Era assim: “No campo!”. É por que era todo mundo.205
O “campo pastoril” sertanejo não é necessariamente uma área plana, podendo incluir
morros, declives, lagoas e diversos outros acidentes geográficos, não é, pois, uma área aberta
e sim fechada, no sentido da manutenção da natureza primária. Outro fator que diferencia os
sentidos apontados para o termo é o fato de que, enquanto o “campo agrícola” aceita cercas e
delimitações materiais exatas, o “campo pastoril” sertanejo se delimitava por fronteiras
sociais e comunitárias. Nessa direção, as noções de propriedade que acompanham os sentidos
apresentados podem ser radicalmente opostas.
Enquanto o “campo agrícola” pode ser definido muitas vezes como uma propriedade
privada de acesso restrito- uma “área usada por um dono”, o “campo pastoril” pertence à
comunidade por costume, por direito consuetudinário, embora juridicamente possa ter um
dono (geralmente desconhecido). O “campo” do qual nos fala os vaqueiros é a união de áreas
de uso comum e do uso comum de áreas privadas, no sentido apontado por Nazareno José
Campos. Ainda hoje existem no Platô Norte Diamantino e/ou áreas marginais, pequenas
áreas usadas comunalmente para pastoreio definidas como campo.
Quanto a propriedade, alguns dos informantes classificam o campo como um terreno
“absoluto” “sem dono”, “terra solta”, ou “terra da nação”. Guilhermino informa: Bom, o campo é... a região, né, porque é o gerais, né! Tudo era catinga a gente trabaiava campo, campiano a criação, né, o criatóro, a gente chamava campiano: _“Eu vô hoje pro campo!” Pegar o criatóro pra trazer pro curral, trazia pra casa e tudo mais, era isso aí.206
A noção de campo orientava espacialmente e disciplinava a vida das populações do
Sertão de Irecê. A sua constante relação com as atividades pecuárias esconde uma série de
outras tarefas que nele eram realizadas. Era sobre o campo que se efetivava o sistema de
apossamento primário da terra, nele se encontrava a madeira, a caça, nele se realizava a coleta
de mel, de plantas medicinais, de fibras, frutas, tintas, nele se encontravam os reservatórios de
água. Em tempos de seca estavam nele os alimentos: raízes e “batatas”, a mucunã. Sobre o
campo se estabeleciam os “carreiros207” e caminhos, as roças e espaços de moradia.
o campo era aí abandonado! Quem que chegasse...:
205 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 206 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 207 Caminhos feitos em meio as caatingas, geralmente pelo gado e as criações.
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_“Eu vou fazer uma casa aqui...” É só chegar e cortar (desmatar) e fazer, não tinha negócio: _“Eu vou comprar um terreno”, não.208. E: O povo, naquela época que existia campo Seu Luiz, o pessoal usava o campo mesmo pra criar o gado e mais pra que assim? [...]
En: Só era mesmo só pra criar! Fazia sua rocinha pra você ter sua dispesa... 209 O garrancho era, acabava, a gente renovava, todo ano, todo ano a gente consertava a cerca, depois que acabou o campo, não tinha onde se tirar nem a madeira nem o garrancho pra renovar a cerca de novo, passô a gente fazer de arame.210
O campo guardava também os seus perigos: a onça, a cobra, o buraco, o graveto que
feria os vaqueiros e seus cavalos, os mistérios e ciênças211. Embora “vasto”, o campo era
habitado, embora perigoso, era fonte de sobrevivência, embora “solto”, o campo tinha limites.
Juarez informa: tudo isso aí era campo que a gente andava, ia por aí, por isso tudo. Agora quando você ia pro Variante, outras vezes você ia pras Cem Tarefa, por Angical... a gente ia buscar (o gado) pra ficar no campo aqui, lá já era campo forasteiro, não era mais... de lá ia rompendo mais pra frente, ia buscar o gado, pra ficar no campo nosso aqui, a gente ia panhar o gado lá212.
O mecanismo definidor do “campo nosso” e do “campo forasteiro” eram as relações
de vizinhaça e amizade as quais, além de possibilitarem o aceso a notícias sobre o paradeiro
dos animais, produziam também noções de pertencimento espacial a partir da formalização de
relações de confiança com outros moradores.
Então, os bicho ficava só na região, na região daí do município e tudo mais. Você tinha uns criatóro solto naquele município, fugia um, aparicia, acumpanhava os ôto..., eu fui saber que minha rês, porque os trem tudo era ferrado, né: _“Apareceu uma rês!” Eu tinha cunhecimento com ôto fazendêro do ôto canto, ôto n’ôto canto e tudo mais e isso aí, explorava isso aí, né. É como você tinha um cunhecido num canto, é mesma coisa que você ter uma rês em um canto e fulano dá notícia: _“Eu, eu vi uma rês sua, de seu fulano de tal!” Quando dizia assim aí você, ia buscar aquilo.213
Criados à “solta” os animais se espalhavam pelas caatingas e, a medida em que se
deslocavam, obrigando seus donos ou cuidadores a andarem maiores distâncias e
estabelecerem novas relações de conhecimento, também alargavam as dimensões do campo. 208 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 209 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 210 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 211 Popularmente essa expressão se refere a ocorrência de um “saber sobrenatural” que não foi ainda descoberto ou que é controlado por poucos. Ver trecho sobre saberes dos vaqueiros na parte seguinte do capítulo. 212 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 213 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
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O meu cumia lá, inté lá em sua casa, o seu cumia de lá pra cá, cumia daqui prá’culá... ia atrás de gado com 3 légua, com 4 légua... [...] tinha vez de aí o gado de Gabriel (São Gabriel) ia batê em Jussara (aproximadamente 20Km de distância)! [...] Você hoje incontrava, [...] vaquêro “fulano de tal”, [...] eu digo: _[...] “Rapaz, você me dá nutiça (notícia) de gado fulano, de gado da gente por lá não?” _“Rapaz, lá tem gado de vocês lá. _ [...] “O ferro era esse aqui!” _ “É?” _“É!” _ “Tem tantos bicho lá” _ “Tal dia eu tô lá pra pegá!” [...] era como eu dizer: _“Moço, lá tem do teu lá também!” Aí, eu pegava os teu cá, prindia, mandava te avisar, e tu pegava os meu lá e mandava me avisar, era assim. Era coisa boa demais.214
Essas redes de solidariedade, confiança e vizinhança poderiam se estender por muitos
quilômetros e ainda assim funcionarem de forma eficaz. Samuel, agricultor, morador do
município de São Gabriel, afirma que por muitas vezes foi buscar o rebanho da família a uma
distância de 10 léguas, aproximadamente 60 Km. Como nos explica o senhor José Estevão
dos Santos, vaqueiro, morador da cidade de Jussara, o campo abarcava referências espaciais
que permitiam o deslocamento e o fortalecimento dessa rede de relações e vizinhança.
Aí num tem mais o campo nosso! Os de antigamente, num era? E cumeçava daqui dos Morrinho o campo, ói, daqui saía do Recife, na Toca! Sítio Novo, nos Morro, ali tudo era campo de catinga! Você entrava e só via catinga! [...] Nosso campo é esse aqui... _ “Vai pra onde hoje?” _ “Nós vamo aqui pra baxo.” _ “Vai pra onde amanhã?” _ “Vamo pra Lagoa do Pinhão.” Tudo tem nome os lugar... [...] o campo é um só! Pra um canto e pra ôto, mas cada qual tem os ponto de ir!215
Circundando as roças, as vilas, os caminhos, abarcando as referências espaciais que
fundamentavam a Geografia Social das comunidades - o morro, o carrasco, a aguada, a
umburana torta, o tanque de fulano, a cacimba, o caminho tal, o tabuleiro (área de vegetação
arbustiva, formada essencialmente por cipós, para onde os trabalhadores deslocavam os
rebanhos em períodos de estiagem) -, proporcionando pasto, alimentos e madeiras, o campo
se firmava como o pano de fundo da vivência dos sertanejos. O que não era mais campo, com
214 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 215 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos), 67 anos, vaqueiro e lavrador, Sede/Jussara-Ba, 2º momento, 24 de jan/2012.
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certeza fora. A roça, a moradia, o curral, a vila, correspondiam a subespaços dentro do espaço
do campo, que se diferenciavam e se complementavam ao mesmo tempo.
O campo não era, portanto, a caatinga (esta é seu véu). O campo era o que acontecia
entre a caatinga. O campo firmava-se assim como lugar de trabalho e vivência, determinado
pelas regras do costume e estendido pelas relações de vizinhaça. O campo unificava e
espacializava o Sertão de Irecê, permitindo formas sociais e simbólicas de produção
semelhantes entre as diversas comunidades espalhadas pelo Platô Norte da Chapada
Diamantina e áreas circunvizinhas. Era a síntese entre a natureza e o trabalho, nesse sentido,
também um espaço social.
Durante cerca de 100 anos (meados do século XIX até década de 1970) as populações
do Sertão de Irecê nortearam suas vidas através de formas próprias de vivência e
sociabilidade, do uso comum dos bens naturais, especialmente da terra e da água, do
mecanismo social de trocas de serviços e produtos; da convivência com a seca, do
desenvolvimento de estratégias de resistência a esta e da manutenção da atividade
poliagropecuária de base familiar como elemento central de sobrevivência. Cotidianamente,
no campo, na roça, na casa, no curral, no trajeto do tropeiro, no trabalho das mulheres, do
agricultor, dos vaqueiros, na bodega, no casamento, na fuga dos retirantes, na conversa no
açude, na lida em busca de água, nas relações de parentesco, as comunidades do Sertão de
Irecê produziam suas relações sociais, simbologias e valores, sanções, noções de ordem e
desordem, nascidos do labor, da diversão, da religião, do sofrimento que permitiram a
produção de concepções de mundo consolidadas no decorrer do tempo através das gerações.
Nesse sentido, entendemos o modo de vida do Sertão de Irecê como um modo de vida
costumeiro, na perspectiva proposta por Thompson216.
Como afirma esse autor o costume é o produto da práxis cotidiana dos trabalhadores
pobres, o conjunto de normas e regras sociais, que determina as formas de apropriação dos
bens e recursos naturais e sociais, legitimado localmente no uso em comum e nos tempos
imemoriais. Por isso o autor afirma que o costume é a interface entre a práxis agrária e a lei.
Para Thompsom o próprio costume assume a posição de uma propriedade repassada às
gerações futuras. O costume atravessa as crenças, a oralidade e as formas de uso prático e
comportamento sem, contudo, gozar de registros escritos nem de regulamentos. Na medida
216 THOMPSON, E. P. Costumes em Comum..., p. 13-25, 86-149.
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em que disciplina os membros de uma comunidade, o costume pode, por exemplo, servir de
instrumento punitivo contra os indivíduos que transcridem as normas morais217.
No Sertão de Irecê o costume delineava e fundamentava a forma de funcionamento
das relações sociais, os modos de uso dos recursos naturais e os limites de ação dos grupos
sobre a realidade. Cultivar pequenos pedaços de terra, por exemplo, era ao mesmo tempo uma
prática produzida pela realidade técnica que impossibilitava o plantio de grandes áreas e um
mecanismo de inserção nas regras morais da comunidade. A realização de um adjunto em
uma propriedade, inseria o morador desta na rede de serviços e solidariedade, incubindo-o de
um compromisso em participar dos adjuntos vindouros. O direito de apossamento primário ou
a compra dos direitos de uso, como vimos, não impedia a apropriação comunitária das
propriedades ou recursos ali existentes. Criar animais à solta era uma prática comum a todos
e, portanto, moralmente correta. Como em diversas partes dos sertões baianos, a família era
também no Sertão de Irecê a base social e a principal força de trabalho. A vida nas vilas e
povoações não se diferenciava muito, eram nelas desenvolvidas as atrativas feiras semanais e
de algum modo, todos os habitantes tinham relações com o meio rural. Eram vilas e cidades
rurais.
A reprodução desses valores fundamentava o costume e definia formas específicas de
relação entre o homem e o meio. O Sertão de Irecê era, pois, produto espacial e simbólico de
um modo de vida costumeiro. A roça, a vila, o curral, o campo, a feira, o rancho se
articulavam nas estratégias de sobrevivência se constituindo como territórios do vivido,
espaços produtores de sentido, e é nesse contexto que viviam nossos sujeitos de pesquisa: os
vaqueiros.
Em meados do século XX diversas dessas regras sociais (muitas delas associadas
ainda ao processo de ocupação primário) ainda podiam ser encontradas entre as populações do
Sertão de Irecê, especialmente as rurais, como por exemplo, o apossamento, a negociação de
“benefícios”, a realização de práticas comunitárias como os adjuntos, freguesias, a prática da
pecuária “solta” e o uso comum das terras.
217 Idem, Ibidem, loc. cit.
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CAPÍTULO II
Campear no espaço do costume
Quantas vez nós ia pegar gado ali naquelas queimada véa! [...] Ave Maria! Diversão boa danada!
(Almir Vaqueiro)
“O que é bom já nasce (por ser) feito!”218
Embora não pudesse ser considerado como área de grande porte pecuário, os animais
compuseram parte essencial da economia de aprovisionamento das comunidades do Sertão de
Irecê. Mesmo os bovinos, animais de maior valor, eram comuns nas pequenas propriedades,
geralmente, em lotes reduzidos. O trato com os animais exigia do grupo familiar vigilância
constante: era preciso saber se retornaram ao xiqueiro ou curral, se estão sadios, dessedenta-
los quando necessário ou mesmo se existia alguma matriz prenhe. Diante da ausência de
algum animal não havia outra solução a não ser embrenhar-se nas caatingas à sua procura.
Até a década de 1970, em diversas partes do Platô Norte Diamantino e nas áreas
circunvizinhas, buscar cabras, ovelhas ou porcos em meio ao mato era tarefa cotidiana das
famílias rurais. Não nos é difícil imaginar aqui (embora muitos afirmem não ser essa a função
do historiador) mulheres, crianças, homens e idosos em busca de seus patrimônios
quadrúpedes, entoando entre à caatinga a repetitiva cantiga “xiqueiro-xiqueiro” que tão bem
funciona na condução do “gado miúdo” (animais de menor porte), enquanto badalavam
pequenos chocalhos anunciando a chegada de retardatários ao rebanho.
Quando a busca se estendia por trechos mais distantes ou se tratava da procura de
animais de maior porte como os bovinos e eqüinos, a atividade se tornava mais masculina e
exigia conhecimentos detalhados do trabalho na caatinga. Usava-se aí o cavalo e as
indumentárias de couro para proteção contra os espinhos e garranchos. Acrescentemos, pois, à
nossa cena o emergir de gritos de algum cavaleiro em sua ânsia de captura da rês219 em
218 Adaptação do ditado popular “O que é bom já nasce feito!”, ressaltado em entrevista pelo senhor Antônio Corrêia Araújo (Licuri), 61 anos, vaqueiro e lavrador, Vila Amaniú/Sento-Sé, momento único, 03 de nov/2010. 219 Usamos o termo aqui segundo a definição dos entrevistados, como sinônimo de animal bovino.
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disparada, orquestrando um estalar de galhos e gravetos, ou mesmo a chegada sonora de um
aboio condutor. Seria esse cavaleiro um vaqueiro?
Samuel afirma que sempre dividiu o seu tempo entre o trato com o gado da família e o
trabalho na roça, destacando:
Eu fui, eu...eu trabaiei muito tempo, trabaiei muito tempo, e depois dexei de mão, fui pra roça. Toda vida eu fui pra roça, agora qu’eu lutava... se tivesse precisão, eu ia e pegava a rês, mas minha vida foi na roça, toda vida. [...] Então nós criava umas 4 vaquinha, quando precisava de pegar eu mesmo ia pegar não pagava ninguém. É. Era coisinha pouca. [...] Então, num posso dizer qu’eu fui vaquêro, (risos) acustumado viu, qu’eu só pegava quando tinha precisão de dinhêro, dinhêro faltava, a gente ia e pegava. [...] Eu arriava o cavalo..., eu tinha! Tinha os côro, tinha tudo! [...] Porque naquele tempo, em pano, não se podia entrar no mato. Como é que entrava?! Porque se entrasse voltava nú! (risos)
Afirma ainda que ajudava os colegas na captura de animais e relata não possuir as
destrezas dos amigos, pois, era “mole” e “deixava quase todo dia” as rêses escaparem.
Samuel diz que apenas “campeava”, vestia os “côro”, mas não era vaqueiro, pois, ser vaqueiro
exige coragem “num é pra todo mundo não!”220.
O uso da indumentária de couro sempre foi uma das marcas centrais do vaqueiro desde
os primeiros relatos de viajantes e memorialistas. Samuel parece contrariar essa perspectiva.
Esse entrevistado nos demonstra que o uso do gibão e das demais peças de couro era,
primeiramente, uma necessidade para o trabalho no campo, muito longe de uma peça de uso
exclusivo de um dado grupo. Embora seja produto de uma arte especializada, as
indumentárias de couro eram relativamente acessíveis para os trabalhadores do Sertão de
Irecê. Todos os entrevistados possuíram suas próprias peças, mesmo Samuel que nega ter sido
vaqueiro. Juarez afirma que em 1964 possuia “dois terno de côro”221. É possível que com
desenvolvimento técnico e de transporte, as indumentárias tenham sofrido um barateamento
na primeira metade do século XX. Observando as imagens apresentadas durante a entrevista
nos explica Hermes: O terno de couro que nós trabalha aqui é de uma forma e o de lá (da beira do rio São Francisco) é de ôtra, que nós chama “matêro” né, que é feito em Feira e Ipirá, que é lugar que vai xxx de couro xxx. Sempre o desenho é ôtro. E aí (Caderno de Fontes Complementares – Imagem 2) de Curaçá é ôtro ó, tá aqui esse desenho aqui (Caderno de Fontes Complementares – Imagem 1) é diferente desse aqui [...] O daqui (Imagem 1) é o mais comum daqui era esse! E esse ôto (Imagem 2) era de
220 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Samuel), 85 anos, antigo lavrador, Sede/São Gabriel-Ba, momento único, 20 de out/2010. 221 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
101
Curaçá, aqui pra bêra do rio trabaia muito com ele, aí de Sento Sé pra cá, ali na Ponta D’água, com esse terno aqui e (esse) chapéu e aqui, é o chapéu diferente222.
Segundo as observações desse entrevistado, o gibão feito em Curaçá recebia o nome de
“curaçazêro” e tinha formato mais arredondado, mais justo, como a imitar uma roupa, e era
pouco usa do no Sertão de Irecê.
Euclides da Cunha define as peças de couro que recobrem o cavaleiro como “fosca e
poenta”, afirmando que ela cravava sobre o homem a mesma feição do meio e acrescenta: Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor — o pardo avermelhado do couro curtido — sem uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana, com o pelo mosqueado virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu de couro223.
Câmara Cascudo, como vimos, a define como “armadura côr de tijolo”224. No Sertão
de Irecê, usar a indumentária de couro não era sinônimo de ser vaqueiro, não deixava, porém,
de demonstrar a afinidade do indivíduo para com o trato com o gado e os serviços do campo.
É corrente entre as narrativas colhidas a afirmação de que “nem todo mundo era vaqueiro”.
Segundo Zé dos Morrinhos “todo mundo pode se incorar, e sair pro mato incorado e dizer que
é vaquêro, mas na hora de pegar um bicho num pega!”225. Roxinho Vaqueiro afirma que “era
pôcos que era vaquêro naquele tempo tomém, porque era pôcos que tinha corage”226. É ele
ainda que melhor nos explica a importância e a singularidade do trabalho do vaqueiro em
relação aos outros trabalhadores que, assim como Samuel, apenas “campeavam”. E: E nesse caso aí, como é que sabia quem era vaquêro e quem num era, se todo mundo [campeava]...? En: É por causo que..., o siguinte: à vez você tinha uns animal mêi brabo e você lutava e num pudia pegar: _“Vamo chamar fulano!” Chamava um pra... aí você já vê o trabaio dele! Qu’era diferente do seu, à vez o sirviço era diferente, você vê como é qu’ele lutava, né, diz: _“Ah! É por aqui que se faz o sirviço, né!” Jogar um corte no bicho (desviar o animal) ou botar pra pegar logo tombém, né, aí você ia aprendeno227.
222 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 223 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 123. 224 CASCUDO, L da C.Vaqueiros e Cantadores..., p. 80. Este autor apresenta várias descrições sobre a roupa do vaqueiro em CASCUDO, L. da C. Tradições Populares da pecuária..., p. 63-67. 225 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 226 Entrevista Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 227 Idem, Ibidem, loc. cit.
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O “dono do animal”, após ter campeado sem obter êxito na captura, resolveu chamar
“fulano”. É importante observarmos como o narrador define a diferença entre o trabalho do
dono e o da pessoa convocada para resolver a situação. Em sua narrativa o “dono do animal”,
assume o papel de observador e até aprendiz, chegando a conclusão de que “o trabalho de
fulano era diferente do seu” e aprendendo como “se faz o sirviço”. O “fulano” chamado
domina as artes do trato com o gado de uma forma polida e objetiva, sabe “jogar um corte”,
sabe “botar pra pegar logo”. Outro fator narrativo importante inda emerge da fala do vaqueiro
Roxinho: quem seria esse “fulano”? A expressão “fulano” funciona aqui como um
delimitador. Não se objetiva chamar qualquer pessoa, mas, uma pessoa específica que pudesse
resolver o problema, era, pois, uma pessoa cujo nome e habilidades na captura do gado eram
reconhecidos comunitariamente. A construção da diferenciação laboral do vaqueiro no Sertão
de Irecê era, contudo, um processo lento que a princípio pouco se diferenciava do modo de
iniciação dos demais jovens ao mundo do trabalho. À medida que firmavam suas afinidades
no trato com o gado, suas destrezas eram postas à prova e o trabalho no campo lhe permitia o
acesso às dinâmicas próprias do grupo e o convívio com os vaqueiros mais experientes.
A lida com o gado, as criações228 e a roça, esteve presente desde a infância de todos os
entrevistados, se combinando de várias formas e variando segundo a idade. Como nos afirma
o vaqueiro Licuri: “ninguém diga também que já nasceu na profissão de vaquêro e já nasce na
profissão, mas, primeramente, ele tem que pegar na inchada, pegar em tudo!”229. Nosso
informante é um exemplo de suas próprias palavras. Iniciara-se no mundo do trabalho, ainda
na infância, pelo trato com a roça, aos 12 anos de idade tornou-se “carregador de leite” e
“fazedor de requeijão”. Roxinho Vaqueiro, em meados da década de 1940, ainda “mulecote”,
trabalhou como postador230 na tropa de um compadre de seu pai, transportando farinha do
Sertão de Irecê para Jacobina e outras cidades. Zizinho e Gilson, quando crianças, cuidavam
das criações de seus familiares ganhando 1 em cada 4 ou 5 animais nascidos.
A maior parte dos entrevistados afirma que se tornaram vaqueiros entre 12 e 15 anos
de idade. Jairo, vaqueiro desde os 13 anos, nos explica: Peguei (comecei a) tirar leite mais meus irmão no curral, lutar com a vaca, amansar uma, amansar ôta. E no dia que resolvi a fazer o sirviço, muntei no cavalo fui pro
228 Termo usado pelos entrevistados para definir as cabras e ovelhas. 229 Entrevista do senhor Antônio Cerreia Araújo (Licuri)..., momento único, 03 de nov/2010. 230 A pessoa que monta para guiar o animal durante o trajeto.
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mato e truxe. E ai continuei a trabalhar, tomaro fé neu, eu continuei, me dero uns côro, ai eu continuei a lutar!231
O “dia” em que conseguiu capturar o boi funcionou como um ritual de passagem para
Jairo, pois, a partir de então “tomaro fé” em seu trabalho. Nem sempre a iniciação se dava de
forma tão tranqüila, Juarez afirma ter sofrido uma surra do seu tio por não conseguir capturar
um cavalo, o mesmo tio, que já era vaqueiro, no entanto, lhe fizera a seguinte proposta no dia
posterior: “Vai me acumpanhá hoje?!”. A resposta do então garoto de 14 anos de idade não
tardou: “Você quereno nós vai!”. Após o fim da empreitada do dia e tendo Juarez capturado
uma vaca, reconhece o seu iniciador: “Muito bem cabra! É pra pegá é desse jeito mermo!”232.
Das mais diversas formas os vaqueiros iniciavam sua função, ora com maior e ora com menor
dificuldade.
A narrativa de Jairo e Juarez nos demonstra, ao mesmo tempo, o momento de
reconhecimento familiar e social da afinidade do jovem na lida com o gado e a existência de
situações preparatórias. Jairo já realizava os trabalhos do curral sob a supervisão dos irmãos
mais velhos, enquanto Juarez era “disciplinado” pelas normas de trabalho do seu tio. É
comum aos vaqueiros lembrarem o momento em que vestiram seus primeiros “couros” como
um marco de iniciação na profissão. O próprio Juarez afirma que, ainda nessa época, comprou
seu primeiro “ternim de côro”; Almir Vaqueiro relata: “pai mandô fazer umas pernêra do côro
de uma onça [...] [e] comprô um gibãozinho, eu dobrava aqui a manga... me criei seno
vaquêro”. O acesso ao primeiro gibão era o acesso ao campo e a inserção do indivíduo na
condição de aprendiz de vaqueiro.
De modo geral, ser vaqueiro no Sertão de Irecê era uma função de família. A tabela
abaixo sintetiza as informações colhidas entre nossos entrevistados quanto a participação de
familiares em seus processos de iniciação.
231 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho), 71 anos, vaqueiro, Sede/São Gabriel-Ba, momento único, 07 de out/2010. 232 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
104
Font
e: N
arra
tivas
ora
is.
Tabela 1: Iniciação profissional dos entrevistados Iniciação Qua
nt. Pai 4 Pai/irmão 1 Pai/Avô 1 Irmão 2 Tio 1 Tio/Primos 1 Família criava 4 Conhecido 1 Não respondeu 1 Não se considera vaqueiro 1 Total 17
Entre a observação do trabalho dos mais velhos e a realização de pequenas tarefas,
como dessedentar as criações ou conduzir alguma vaca ao curral, os mais jovens
desenvolviam interesse em trabalhar com o gado. Nesse processo, não podemos descartar
ainda a importância das brincadeiras na construção dessa afinidade entre as crianças e os
animais, a exemplo do “cavalo de pau” e das “disputas de argolinhas” que se davam entre
garotos montados sobre varetas de madeira a imaginar ações de vaqueiro, práticas essas muito
comuns entre as crianças do meio rural sertanejo. Embora não tenhamos obtido relatos dessa
prática nas entrevistas, por experiência própria, vimos e vivenciamos essas brincadeiras.
Roxinho Vaqueiro assim descreve o nascer do seu gosto pelo ofício: E: E como é que o sinhô aprendeu essa profissão de vaquêro? En: É por causa que eu via, lá em casa eu via o povo correr e eu saia no rasto olhano, quando eu tinha tempo, digo: _“Ô mais é bonito! Ainda vô ser vaquêro!” E uma vez eu vi 2 primo meu lutano com um garrote e bateno num garrote, né, e via, quando eles curria assim, via só o mato virar e ... digo: _“Eu vô ser vaquêro ainda!” _“Dexa de cunversa minino! Tu cunversa...”, digo: _“Vô ser vaquêro ainda!”233
Dos 16 entrevistados que se afirmaram “ser” ou “terem sido” vaqueiros234, 82% tiveram sua
iniciação por meio de algum parente ou a partir do trabalho com os animais da família. Cabe
destaque para o vaqueiro Zizinho, 3º representante de uma família de vaqueiros: avô – pai –
filho.
233 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 234 Exclui-se aqui Seu Samuel que nos informou que “campeava”, mas afirmou não ter sido vaqueiro.
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A iniciação dos indivíduos ao mundo da “vaquerama”235 é justificada pelos
entrevistados como uma questão de “coragem” e “dom”. A análise do trecho abaixo é
representativo para o entendimento da questão posta:
E: [...] o sinhô acha que qualquer pessoa pode ser vaquêro? En 1: Não! Não!236 En 2: O quê?!! É nada!!”237. En 1: Num é todo mundo que vai não. [...] Tem que ter a dispusição moço, e a corage! En 2: A profissão de vaquêro é pra quem já nasceu com o dote (o dom)! En 1: Porque tem muito vaquêro, mas tem muitos que de vaquêro só tem o nome!238
O trecho em negrito pertence a um dos amigos de Chico França que observava a
entrevista e que até o momento se encontrava em silêncio. O susto do visitante diante da
pergunta é um comportamento denunciador da existência de uma “forma específica” de ver o
trabalho do vaqueiro e diferenciá-lo dos demais trabalhadores que campeavam, atribuindo-
lhes características únicas, no caso acima, a “corage”, o “dom” e a “dispusição”.239 Zé dos
Morrinhos e o vaqueiro Licuri também partem do mesmo princípio. En 1: E aquele [menino] que tem o signo pr’aquilo, tem o distino daquilo ele... o cavalo tá amarrado, ele pede logo pra dar uma volta! [...] isso é o que? O distino que já tem! Que o vaquêro num é feito a natureza dele depois! É pelo qu’ele nasce com aquele distino que tem! [...] En 2: Já nasce feito! Já nasce com aquele isprito (espírito)...!240 En 1: Quer dizer: ‘o que é bom já nasce feito!’, então, é o home que tem o distino de vaquêro! [...] Quando tem o distino! Você vê ele [criança] muntar, já pega, já istira logo a mão pra pegar na réde! [...] Ali, a força do vaquêro é essa241.
Luiz Vaqueiro afirma: “você tem vontade de fazer o sirviço, o dom chega. [...] tudo é
aquele dom que Deus dá. Deus vê que você tem vontade de fazer aquele sirviço, tudo pra você
é fáci, se torna fáci”242. O “dom” presume aqui a ação de uma força sobrehumana que
permitiria ao indivíduo habilidades e disposições próprias ao trabalho com o gado. Como é
possível percebemos nas falas acima, para alguns entrevistados, o “dom” seria um elemento já
presente desde o nascimento, outros afirmam que o “dom” chega com o exercício da função.
235 Termo usado pelos entrevistados para definir um grupo de vaqueiros. 236 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)... 2º momento, 01 de dez/2010. 237 Fala de uma dos amigos de Seu França que observava a entrevista, conhecido por Firmino. 238 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)... 2º momento, 01 de dez/2010. 239 Buscamos expressar essa intensidade na fala do narrador, por meio da repetição do sinal de pontuação. 240 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 1º momento, 03 de nov/2010 (En 2). 241 Entrevista do senhor Antônio Corrêia Araújo (Licuri)..., momento único, 03 de nov/2010 (En 1). 242 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.
106
De qualquer forma, afirmar um “dom” é um meio de anunciar uma diferenciação social pra o
trabalho do vaqueiro e delimitar uma fronteira social para o grupo, alegando a existência de
uma maior proximidade deste com “Deus”. Essa idéia será retomada um pouco mais adiante.
O mundo social dos vaqueiros do Sertão de Irecê se ancorava em uma dimensão
laboral, a partir do tipo de relações de trabalho que estabeleciam, da possibilidade de
formação de micropatrimônios, do controle do seu saber, do direito ao lazer e ao uso do seu
tempo. A união desses elementos permitia a esses trabalhadores a construção de um poder
simbólico243 que lhes garantia um domínio relativo sobre o seu trabalho e a fundamentação de
suas representações sociais244 a partir de perspectivas ligadas a autonomia individual e
coletiva e ao uso de determinados espaços, diferenciando-os assim de outras categorias de
trabalhadores.
Mundo laboral: relações de trabalho e saberes no campo
A forma costumeira de trabalho dos vaqueiros era localmente definida como “sistema
de sorte”, ou “sorte”, também conhecida como “quarta”. De cada 4 animais nascidos sob sua
responsabilidade, 1 pertencia ao vaqueiro. Esse sistema não se restringia ao trato com os
bovinos estendendo-se também às criações, nesse caso, a proporção da divisão poderia ser
alterada, 3/1, por exemplo. Assim a define José Norberto de Macêdo se referindo às fazendas
de gado do Vale do São Francisco: “Consiste a ‘partilha’ na conbinação e execução de um
contrato verbal entre fazendeiro e o vaqueiro e pelo qual este recebe um animal em cada 4 ou
5 que nascem”245.
No Sertão de Irecê, o sistema de sorte poderia ainda receber alguns adendos e
variações. Gilson Vaqueiro destacou que, no início dos anos 1980, levou o rebanho do seu
patrão para o Riacho do Ferreira, nas margens do Rio São Francisco, e lá trabalhou por cerca
de 20 anos como vaqueiro, a partir do seguinte acordo: “gado fêmea era de minha sorte, boi
de compra eu tinha uma arroba”246. De acordo com relato observa-se que os animais machos
estavam fora da contabilidade da sorte. O senhor Reinaldo Pedro de Souza, conhecido como
Reinaldo de Zé Pedro, trabalhou 10 anos cuidando do rebanho de um criador, entre o final da 243 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 14-15. 244 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1998, p. 17-28. 245 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 33. 246 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro), 65 anos, vaqueiro, Sede/Jussara-Ba, momento único, 15 de jan/2011.
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década de 1950 e de 1960, e lembra ter feito o seguinte acordo sobre obtenção da renda dos
animais machos: “depois que o bizerro... que o mamote247 tava com 2 ano, avaloava
(avaliava) o bizerro, e daqueles 2 ano em diante aí, o que aumentava era meu mais dele
(criador)”248.
Ainda no que diz respeito às relações de trabalho entre vaqueiros e criadores, Zizinho
nos esclarece que o sistema de sorte garantia ao vaqueiro o “direito” de receber o “quarto do
bizerro” caso o criador vendesse uma vaca prenhe: “Tinha esse direito, se vender vaca pra
parir, tem que pagar o quarto do bizerro.”249. É certo que em meados do século XX o
costumeiro sistema de sorte já sofria influências da expansão das relações capitalistas, por
outro lado, a existência de variantes desse sistema, mesmo hoje, nos possibilita questionar a
leitura genérica com que foi descrito essa forma de pagamento.
Ainda segundo José Norberto, a divisão dos animais nas fazendas do Vale do São
Francisco se dava por meio do uso de um dado ou através de pedaços de papel onde se
encrevia o nome da vaca mãe do bezerro em disputa e, muitas vezes, os patrões exigiam a
venda imediata do animal250. No Sertão de Irecê a partilha se dava de forma diferente. Os
animais a serem divididos eram organizados em lotes de 4, e seguia-se a escolha alternada
entre vaqueiro e criador de acordo com suas preferências. Essa alternância era contínua e
poderia se estender às partilhas vindouras. Após a partilha realizava-se a ferragem, por isso,
os entrevistados atribuem também a esse momento o nome de “ferra”. O comum entre os
criadores era o uso do ferro na anca dos animais. Euclides da Cunha assim descreve essa
prática: A primeira coisa que fazem é aprender o abc e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os "ferros" das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na "solta" primitiva251.
Viana Vaqueiro nos explica o procedimento para o caso em que o animal fosse
vendido após ferrado: “Se você me comprar, você contra-ferrava inriba na anca ou inriba do
247 Animal jovem com cerca de 1 ano e meio a 2 anos de idade. 248 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro), 72 anos, vaqueiro, Povoado de Lagoa Velha/Canarana-Ba, momento único, 07 de jan/2012. 249 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011. 250 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 33. 251 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 127. Ver também MACÊDO, J. N. Fazendas de Gado no Vale..., p. 35
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meu ferro. Ali foi eu que já lhe vendi. Num tinha quebra-cabeça. E o que aparecesse no mei
do gado da gente sem sinal, sem ferro, pudia morrê de véi!”252. É ainda ele que relata o modo
como eram marcados os animais de menor porte:
Cada um fazia sua divisa (um corte) na orêa, né, uma “furquia” (forquilha) ou um “dente de portêra”, ou quarquer coisa... aí já sabia que aquele sinal é o ferro, o carimbo na orêa, ou um “S”, ou um “Z”, quarquer tipo de letra pra... que num incontrasse com ôto! Que, por exempo, se você tivesse, por exempo fizesse o carimbo de “O” pra carimbar na orêa, eu nem ninguém pudia fazê, que já sabia que era o seu!253
O “sinal”, assim como o formato do “ferro”, não podia se repetir e servia de prova
inconteste de propriedade. A manutenção de parte dos animais recebidos em partilha permitia
aos vaqueiros a formação de pequenos rebanhos. Estes permaneciam junto com o gado do
criador e pastavam igualmente pelo campo. Nos explica Hermes: dá pra juntar dessa parte, você vai ter precisão, vende 1 ou 2 [bezerros], mais ainda fica, com 4 ou 5, e aquele, uma novilha dá cria (se reproduz), que você vende mais só os macho, aquela bizêrra cresce, com dois anos... [...] é difícil uma novilha passar de 2 anos, 3 anos sem dar cria, [...] com 3 anos já era uma vaca! Já era adulto. [...] A bizêrra que eu tirar de sorte, quando ela produzir, aquele era meu, já não tinha mais... patrão não tinha conta mais com o meu não, só com os dele mesmo (riso). 254
Acrescenta Juarez: “quando você fazer a ferra mais o patrão você tira a que você... tira
sua parte de bizêrro. Você faz pagamento o patrão e sobra, toda vida sobrô. Todos vaquêro
que trabaiava assim, nenhum saiu sem nada! Eu sempre reparava os vaquêro que trabaiava
assim. E o que trabaiava ganhano dinhêro só sai limpo! Sem nada!”255. A possibilidade de
acumular alguns animais sempre atraiu a atenção dos vaqueiros, como relata Gilson Vaqueiro:
“E se eu estô aqui (trabalhando de sorte), [...] pode ser o entrar do sol, tem uma vaca parida
aculá e o bizêrro num mamô, eu tenho que tomar o pé dela, pois, se eu não for eu perco o
quarto do bizêrro! Aí o interesse é ôto!”256.
O vaqueiro, em sua atividade diária, cuidava ao mesmo tempo dos seus animais e dos
animais do criador e buscava se esforçar para garantir a reprodução, a saúde, a segurança e a
alimentação do rebanho uma vez que, entre os do patrão, estavam também os seus possíveis
animais. Dessa forma, atrelava o seu horário de trabalho às necessidades da rotina, muitas
vezes retornando para casa em meio à noite.
252 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 253 Idem, Ibidem, loc. cit. 254 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 255 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 256 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011.
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O sistema se sorte valia desde os primeiros momentos de trabalho. Quando o acordo
de trabalho envolvia rebanhos maiores, cabia ao criador abastecer o vaqueiro com alimentos
até a realização da primeira ferra (geralmente um ano após o início do trabalho), quando eram
quitadas as dívidas. Explica Hermes:
Se ele me dava uma fêra, mais na ferra eu pagava aquela fêra né, que eles ajudava né, ele ajuda o vaquêro [...] depois de 2 anos que lutar lá ele já tem o bizêrro dele vender, tem tudo, o boi, tudo, não precisa nem de patrão estar ajudando né, mas, na entrada ele dá os saco de açúcar, saco de feijão, saco de farinha, de arroz, não é? [...] quando era tempo da ferra (maio, junho, julho), [...] a gente vendia 4 ou 5 bizêrro pra ele, pra descontar na conta257.
Além de alimentos, ao criador cabia disponibilizar as ferramentas de trabalho do
vaqueiro: o cavalo, a sela, o gibão. Os entrevistados utilizam o termo “fornece” para designar
esses adiantamentos realizados pelos criadores aos vaqueiros. Gilson nos informou que,
quando iniciou o trabalho com o seu atual patrão, ainda em meados dos anos 1960, era ele
“quem fornecia” a vestimenta de couro e o “cavalo arriado”.258 Esse primeiro momento de
trabalho era de fundamental importância para o vaqueiro, uma vez que nele se tornavam
claras as personalidades dos sujeitos envolvidos na relação e as possibilidades de
continuidade da mesma.
o patrão bom, (é) aquele que dá de sorte, ele lhe ajuda! Que ele lhe furnece! E num fica lhe pisano! Quando você ferra os bizerro, que tira os seus e você pagô aquela dispesa, ele faz ôta dispesa com você, pra você num acabar com aqueles que você ficô! (lhe fornece alimentos por mais um ano) [...] Ai no ano que vem aqueles que você ficô que era bizerro, já tão uns garrote, umas nuvia! Ai você vai multiplicano pra frente! O patrão bom é assim! [...] Por que o patrão ruim, quando você tira os bizerro de sorte, que paga os débito, as dispesa, ele quer que você fique vendeno aqueles que você tem pra fazer dispesa, pra você num precisar mais dele! [...] Assim o vaquêro fica toda vida de ismola! Nunca passa a ser dono de nada, nunca!259
Para Jairo, conviver com um “patrão bom” ou um “patrão ruim” fazia toda a diferença.
A forma como se dava a relação entre as partes envolvidas, explicava a possibilidade de o
vaqueiro acumular, ou não, certo nível de patrimônio. A fala de Jairo descortina aqui uma
relação nem sempre harmônica, onde fica clara a perspectiva de classe que se estabelece: o
patrão ruim é aquele que impede o vaqueiro de formar seu próprio rebanho, como meio de
mantê-lo em uma condição subalterna.
257 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 258 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 259 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010.
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Essa tensão concentrava-se no momento da realização da ferra, onde se dividiam os
animais entre criador e o vaqueiro. É possível inferirmos aqui que os animais mais
desenvolvidos e saudáveis atraíssem a atenção de ambas as partes. Joana Medrado
Nascimento também pontua a existência dessa tensão entre os vaqueiros do Barão de
Jeremoabo durante os momentos de partilha, afirmando que nem todos entendiam esse
momento como uma cancessão do proprietário do rebanho, mas, como uma obrigação deste,
um pagamento pelos serviços prestados260. A superação do momento inicial do trabalho
representava a consolidação da relação e, para o vaqueiro, o início da construção de
autonomia sobre sua vida e o seu saber. Mas, quem era o patrão?
Os dados apresentados nas entrevistas quanto ao perfil dos criadores, nos permitiram a
elaboração do quadro abaixo:
Tabela 2: Perfil dos criadores e rebanhos do Sertão de Irecê
Frequência Número de cabeças por rebanho Porte do criador
22 10 - 50 Pequeno
10 50 - 200 Médio Pequeno
8 200 - 300 Médio
4 + 300 Grande Fonte: Narrativas orais.
A partir da tabela observamos que os rebanhos do Sertão de Irecê tinham proporções
módicas e predominavam os pequenos rebanhos com menos de 50 animais. Isso significa que
o patrão ao qual se referem os vaqueiros, poderia ser, muitas vezes, um pequeno criador. Era
comum ainda que um vaqueiro cuidasse do gado de vários criadores ao mesmo tempo.
Reinaldo de Zé Pedro nos informa que o rebanho do qual cuidou, entre o final da década de
1950 e 1960, era composto por animais de um criador local, do seu pai, do seu tio e do seu
irmão, mas que só “tirava sorte” do gado do primeiro, os demais, “de vez em quando me dava
uma ajuda, assim na roça!”261. Gilson Vaqueiro trabalha com o mesmo rebanho a 45 anos e
destaca que por vezes também cuidou dos animais de outros proprietários.
260 NASCIMENTO, J. M. “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho e cultura..., p. 93-94. 261 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro)..., momento único, 07 de jan/2012.
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E: E lá no Riacho Ferreira o sinhô trabalhava para quem? En: Era para Rafael, para Miguel Machado... e só vinha para aqui, na rua, quando vinha fazer feira, fazer uma compra, uma coisa262.
O termo “patrão” deve ser aqui relativizado. Muitas vezes os entrevistados utilizam o
vocábulo para se referir a criadores que solicitam realização de trabalhos rápidos de captura.
Jairo afirma que: En: [...] trabalhei mais foi pra família e pra patrão tamém, pra ganhar dinhêro! E: Como era que funcionava o trabalho? En: Funcionava que você impleitava um gado pra carregar 8, 10 légua, você impleitava, achava um cumpanhêro ou dois e fazia a jornada, pra intregar ao dono lá na frente, onde ele marcô o lugar263.
As falas acima demonstram que para os entrevistados o termo “patrão” não está
diretamente ligado uma relação de trabalho exclusiva e estável com um criador de grandes
rebanhos. “Patrão” é sinônimo de criador contratante, o que não significa necessariamente,
“fazendeiro”. O criador, como vimos, poderia ser o possuidor de poucos animais.
No caso em estudo essa relativização deve recair também sobre o termo “fazenda”.
Analisemos algumas narrativas. Juarez levou o seu gado de São Gabriel para a Vila de Recife
e afirma: “Lá nós demo sorte, [...] que ainda tinha campo tombém, [...], lá eu dei sorte pra
cumpade Belo tirar lá”264. Gilson Vaqueiro relata seu deslocamento com o rebanho: “E é
nesse rojão, é trabalhano direto, agora que eu... depois do Brejão, eu vim do Brejão fui para...
tirei um ano na Lagoa Grande nesse mesmo rojão, depois da Lagoa Grande vim e fui para o
Riacho Ferreira, tirei uns 20 anos...”, sobre esta última localidade afirma: “lá eu tinha
campo”265. Roxinho relata que, com o cercamento das terras do Platô Norte Diamantino em
meados do século XX, tinha que levar os rebanhos para a “Vereda e na Vereda (do Romão
Gramacho) tem muita rama né, tinha ispaço pro gado, a gente tirava pra lá”266. Hermes narra: como eu tô dizendo, que era solto, ainda sem ter roça, e tinha os morador cunhicido né, que era amigo, então, o de lá dizia: _“Moço, aqui ainda cria solto!” Então o ôtro de cá dizia: _“Então eu vô lhe intregar meu gado pra você oiar lá pra nós” Entregava e ele levava né267.
262 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 263 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo)..., momento único, 07 de out/2010. 264 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 265 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 266 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 267 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.
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Em nenhuma das narrativas acima o cuidado ou deslocamento do rebanho tem como
referência uma fazenda. Bem distante das concepções clássicas que permeiam a imagem e os
discursos sobre o mundo da pecuária, no Sertão de Irecê, a referência espacial para o trabalho
do vaqueiro não era a fazenda e sim o campo, ainda que tivesse como ponto de apoio alguma
casa fornecida pelo criador. Ainda Gilson Vaqueiro relata:
naquele tempo, [...] o vaquêro tinha liberdade! Vivia por conta própria! [...] eu morava aqui no meu lugazim, você chegava e me intregava 100, cento e tantos gado, toda hora que você quisesse tirar seu gado você tirava e eu tinha meus, ficava com meus bicho, mas, hoje num tem mais isso não.268
Observamos na fala acima uma situação em que o vaqueiro recebe o gado para cuidar
sem que necessite da presença de uma “fazenda”. A fala de Gilson é exemplar para
analisarmos a relação de trabalho estabelecida. O narrador deixa clara sua autonomia em
relação ao criador que lhe procura, justamente por ser ele também um pequeno criador. O
movimento inverso se estabelece: não é o vaqueiro que busca o fazendeiro, mas o fazendeiro
que busca o vaqueiro e lhe entrega “100, cento e tantos gado”. A possibilidade de ter um
“lugazim”, de ter seu pequeno rebanho e o acesso livre ao campo, lhe garante o poder de dizer
que “toda hora que você quisesse tirar seu gado você tirava”, produz uma autonomia que
permite ao vaqueiro se impor, muitas vezes, sobre indivíduos com melhores condições
econômicas. Tem destaque ainda na narrativa, a forma como esse poder torna-se sinônimo de
“liberdade”.
O fator central que estrutura essa relação era o campo e suas formas de uso comum.
Mesmo os animais considerados “de uma fazenda” espalhavam-se pelo campo e cabia ao
vaqueiro conduzi-los quando necessário para novas pastagens. Como veremos o termo
“vaqueiro da fazenda” é utilizado pelos entrevistados para definir os vaqueiros atuais que
trabalham em sistema intensivo e assalariado em propriedades cercadas.
Reinaldo de Zé Pedro, lembrando-se do período em que cuidava do rebanho de um
criador afirma:
Ele (o dono do rebanho) nem vinha cá olhar! Só vinha no tempo de ferrar! De partir os bizêrro! Só vinha nesse tempo! Eu tirava leite! Vindia leite! Fazia requejão! Fazia tudo! Tudo era por minha conta aí! [...] Ele intregava, intregô o gado e eu tomava conta! O que precisasse também era meu! O remédio tudo, tudo o que precisasse!269
268 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010. 269 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro)..., momento único, 07 de jan/2012.
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O campo possibilitava aos vaqueiros do Sertão de Irecê grande mobilidade em seu
trabalho e um distanciamento do criador. Nesse sentido afirma Zé dos Morrinhos que “quem
manda é o vaquêro! [...] O dono do gado, é... seno o vaquêro o dono é eu, o dono só manda...
ele mermo só manda no dia que chega! Num tano aí quem manda é o vaquêro”270. Roxinho
Vaqueiro explica como negociava com o patrão o deslocamento do rebanho: Ali ordenava com o patrão: _“O gado tá precisano mudar!” Ele dizia: _“Você muda pra tal canto, pra tal lugar assim-assim! Traz pra tal campo ou pra tal roça! Pode mudar o gado.” [...] falava com o patrão, ele mandava a gente procurar. Então, se ele num tivesse mandava a gente procurar, mandava mudar o gado. Aí você ia (ao patrão): _ “Eu achei o lugar!” _ “Pode mudar o gado! Depois eu vô lá olhar!” Depois ele vinha olhar e diz: _“Tá certo!” Era assim271.
Observemos que mesmo na narrativa de Roxinho, marcada pela presença do seu
patrão, o vaqueiro ainda detém o poder de procurar e definir o local do rebanho, ainda que
fosse preciso uma confirmação posterior por parte do proprietário. As narrativas nos
informam que a autonomia do vaqueiro sobre o rebanho variava de acordo com a maior ou
menor proximidade com o criador, existia assim, duas unidades de decisão sobre o destino
dos animais que se hierarquizavam à medida em que se aproximavam e se horizontalizavam à
medida em que se afastavam. Era, contudo, função do vaqueiro direcionar o rebanho para as
áreas do campo que possuíam melhor pastagem. Esse fato impõe uma característica móvel ao
seu trabalho que ultrapassava referências fixas diretas, como é o caso de uma fazenda. Essa
possível flexibilidade em suas relações laborais permitia a esses trabalhadores, por exemplo, a
realização de pequenos serviços para amigos e conhecidos que poderiam ou não lhes render
alguns ganhos, bastando para tanto que dispusesse de tempo. Hermes afirma que
mesmo o (vaqueiro) que tivesse um patrão, [...] [e] ôtra pessoa chegasse lá, qu’ele (o vaqueiro) era o mais cunhicido no campo, chegava: _“Moço, meu boi tá aí nesse campo aí, quer pegar? Eu lhe pago tanto pra você pegar ele, qu’eu tô precisando!” Mesmo o vaquêro da fazenda ia pegar272
270 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 271 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 272 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010.
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Os vaqueiros do Sertão de Irecê, diante do uso comum do campo, viviam relações de
trabalho relativamente frouxas e gozavam de grande controle sobre os rebanhos. É nesse
sentido que Gilson afirma: “Porque ele sendo vaquêro, tirano sorte, ele não é empregado, ele é
sócio!”273. Isso explica o fato de, geralmente, os vaqueiros não definirem o sistema de sorte
como uma forma de “pagamento”, mas como uma “renda” ou “produção”, forma essa que se
antagoniza ao modo assalariado de trabalho existente atualmente.
É, pra receber a renda, a sorte! A gente chamava sorte, né: _“Vô tirar a sorte, tanto!”, “Deu sorte, tanto!” [...] Aqueles qu’era dinhêro no fim num tinha nada, porque o dinhêro era bagaço! Agora, quem labutava pra receber a renda acustumava, quando você fosse intregar aquele gado, de tantos ano que você trabalhô ali, você já saía tamém com, calçado com o gado, né274
É uma escravidão! Eu num acho vantage hoje no vaquêro trabaiar alugado não. Num tira mais bizêrro de sorte, só ganha o saláro, aí todo mês, quando ele recebe já vai pagar o supermercado, toda vida o vaquêro hoje é atrasado.275
Jairo nos explica que “o vaquêro que luta com gado, luta por produção”276. As
relações de trabalho que emergem das entrevistas colhidas, em muito flexibilizam o
tradicional binômio fazendeiro/fazenda-vaqueiro que predomina na historiografia e nas obras
literário-memorialistas. A análise dessas narrativas nos permitiu mesmo duvidar desse
binômio uma vez que nem todos os vaqueiros por nós entrevistados vivenciaram a experiência
de cuidar diretamente de rebanhos de terceiros pelo sistema costumeiro de sorte. Entre os
entrevistados identificamos alguns se dedicaram ao cuidado com os rebanhos familiares, dos
quais nem sempre obtinham renda, ou optaram pela realização trabalhos esporádicos de trato
e condução de animais.
Juarez sempre trabalhou com o gado da família e afirma: “nunca tive patrão, o patrão
meu foi eu e meu pai, o gadim era meu e do Véi meu pai, agora, eu carreguei muita boiada
dos ôto pra ganhar dinhêro!”277. Almir se lembra que durante cerca de 30 anos foi “vaquero da
família”, cuidando do rebanho do seu pai e dos seus irmãos pelo sistema de sorte, no final da
década de 1980, diante do fim do campo e da fragmentação do rebanho familiar, o vaqueiro
passou a cuidar das suas poucas unidades de gado e realizar captura e deslocamento de
rebanhos para os criadores que solicitavam seus serviços. Reinaldo de Lôro vai além, e
273 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 274 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 275 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 276 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 277 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
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destaca que no período de 1970 à 1978, cuidou do seu rebanho e ainda do gado do seu sogro e
de seus cunhados, sem que houvesse nenhum tipo de pagamento.
a família unida, eu num tinha a sorte do gado deles não! Era misturado. Aí, a gente, no caso de considerar cunhado como irmão e sogro como pai278... de qualquer manêra foi levano a vida assim, mas eu nunca tirei sorte de gado deles ninhum! E nem eles me pagava meus dia! Aí ficava naquela compensação das minha, mas eu mesmo nunca trabaiei pra ninguém tirano sorte não, de gado não279.
Complementa ainda o entrevistado que o mais comum nessa época, nos arredores do
povoado onde mora até hoje, era existir o vaqueiro “dono do seu próprio gado, à vez do gado
do pai, de um irmão ou mesmo de sogro” que associava esse trabalho às tarefas da roça, e
destaca: “eu lembro só de Tião de Vito (vaqueiro) que saiu assim de cima do que é seu pra ir
morar lá mais seu fulano”280. Guilhermino nos relata também que “num era vaquêro dos ôto”,
e que “campiava o gado da gente”, referindo-se ao rebanho do seu pai e do seu cunhado.
Quando questionado se de fato foi um vaqueiro responde: E: Mas o sinhô acha que já foi vaquêro ou também [...]? En: Não! Eu fui vaquêro que eu trabaiei 17 ano nessa profissão, né.
As narrativas e experiências desses trabalhadores distanciam-se da concepção que
define o vaqueiro como produto de uma relação de trabalho. A situação apresentada nos põe,
pois, diante de especificidades sociais, laborais e identitárias dos sujeitos do Sertão de Irecê,
que escapam aos autores que registraram o mundo do trabalho do vaqueiro. O que permite aos
entrevistados se classificarem como vaqueiros não é, necessariamente, sua relação com o
criador, mas a proximidade que possuiam com o gado. Estamos diante de trabalhadores que
buscavam se manter como vaqueiros dos rebanhos familiares como forma de evitar a
fragmentação do patrimônio, muitos não conheceram o trabalho em uma “fazenda”, lidaram
com os rebanhos diretamente no campo, deslocando-os quando necessário; seu “patrão” não
foi necessariamente um fazendeiro no sentido clássico abordado em obras como por exemplo
Euclides da Cunha e Eurico Alves, podendo ser mesmo um pequeno criador ou vários
pequenos criadores. Apenas um dos entrevistados afirmou que o vaqueiro é aquele que
278 Percebe-se aqui que a noção de “família” para os entrevistados inclui as relações matrimoniais e estende-se aos indivíduos que, por meio dela, se aproximam de alguma forma. 279 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012. 280 Idem, Ibidem, loc. cit.
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trabalha para o criador em uma fazenda: “você tem a fazenda e me bota como vaquêro, ai
chama! Ai é o seu vaquêro!”281
Os vaqueiros do Sertão de Irecê viveram assim, uma diversidade de relações de
trabalho: podiam associar-se a algum criador por anos seguidos; podiam implantar adaptações
ao sistema de sorte; alguns dedicaram-se aos rebanhos familiares, estendendo esse cuidado
inclusive a “familiares” não consaguíneos como sogros e cunhados; os que viviam mais
próximos dos donos dos rebanhos tinham seu poder de decisão diminuído; outros mantinham
relações esporádicas com os criadores, possuindo autonomia quase completa sobre os
animais. Há ainda os vaqueiros que realizaram durante parte de suas vidas laborais, apenas
atividades rápidas de captura e condução de rebanhos enquanto cuidavam de suas roças e
outros que, cuidaram dos rebanhos de diversos criadores ao mesmo tempo, via sistema de
sorte. Essas possibilidades se combinavam de várias formas, uma vez que cuidar de um
rebanho próprio não excluía atender uma solicitação para captura de algum boi fujão e ainda
assim, cuidar do rebanho de outro criador.
Mas as fontes de renda dos vaqueiros não estavam restritas ao trato com o gado. Na
construção de suas formas laborais, as atividades agrícolas, embora muitas vezes vistas como
subordinadas à atividade pecuária, estiveram sempre associadas ao trabalho no campo. O
quadro abaixo sintetiza essa relação.
Tabela 3: Vaqueiros: associação entre o trato com o gado e a agricultura
Entrevistado/Ano de nasc.
Relação com a agricultura/terra
Almir/ (1941) Cultivou nas terras da família. A partir de 1982 adquiriu terras próprias por herança.
Chico França/ (1933)
“eu nunca fiquei sem minha roça não!”
Gilson/ (1947/1948)
Cultivou nas terras da família até o início da juventude, a partir dos 15-18 anos dedicou-se somente ao trabalho de vaqueiro. Possui propriedade, mas afirma não cultivá-la.
Guilhermino/ (1930)
Associou a atividade de vaqueiro à roça até 1952 nas terras da família. Trabalhou 9 anos com lavoura fora do Estado da Bahia (1952-1961). Já cultivava terras em América Dourada antes de 1968. No início da década de 80, após deixar a “profissão de gado”, foi “fazê roça por minha conta”.
Hermes/ (1938) Associou o trabalho com gado ao cultivo nas terras da família até a juventude, no final da década de 60 adquiriu terras próprias na Vila de Recife. Dedicou-se exclusivamente à função de vaqueiro entre os anos de 1988-1998.
Jairo/ (1939) Sempre associou o trabalho com gado ao cultivo nas terras da família e em terras próprias.
281 Entrevista Sinobilino Francisco Nunes (Sinó)..., momento único, 26 de ago/2011.
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Juarez/ (1937) Sempre associou o trabalho com gado ao cultivo nas terras da família e em terras próprias adquiridas por herança.
Licuri/ (1949) Cultivou as terras da família durante a infância e adolescência282. Adquiriu terras próprias no final da primeira década do século XXI.
Luiz Vaqueiro/ (1948)
Sempre se dedicou à atividade de vaqueiro, por diversas vezes associando-a às atividades da roça, com destaque para os períodos de 1968-1969, 1974-1978.
Reinaldo de Lôro/ (1945)
Sempre associou às atividades de vaqueiro ao cultivo nas terras da família e terras próprias (adquiridas a partir de 1969). Dedicou-se com maior destaque às atividades agrícolas a partir do final da década de 1970.
Reinaldo de Zé Pedro/ (1940)
Em 1969 já cultivava terra própria associada ao cuido do seu rebanho, permanecendo assim até os dias atuais.
Roxinho/ (1935) Trabalhou na roça no início da década de 1950, tornou-se funcionário de fazendeiro entre 1950-1961. Adquiriu terras próprias no início da década de 1960 trabalhando nas mesmas até 1966. A partir desse período foi vaqueiro de fazenda até 1982, associando essa atividade ao cultivo da sua terra. A partir da década de 1980 voltou-se ao cultivo da terra própria e à realização de serviços rápidos de condução e captura de animais.
Samuel “Toda vida eu fui pra roça” Sinobilino/ (1925) Trabalhou nas terras da família até a juventude, associou, a partir dos 18 anos, a atividade
de vaqueiro ao cultivo da terra. Na década de 1950 já possuía terra própria. Dedicou-se exclusivamente ao trabalho na roça a partir de 1975.
Viana (1936) “Fazia todo sirviço de roça, pra todo mundo” Sempre associou o trabalho na roça ao cuido dos animais, por vezes, dedicando-se unicamente ao trabalho de vaqueiro. Dedicou-se com maior destaque ao trabalho na roça a partir de 1981-1982.
Zé dos Morrinhos/ (1943)
Associou o trabalho da roça ao cuido do gado entre 1953 e meados da década de 1960, passando então a dedicar-se à função de vaqueiro. Adquiriu terras próprias na segunda metade da década de 1990.
Zizinho/ (1945) Associou trabalho na roça à função de carreiro até os 18 anos. Entre os anos de 1963 e 1983 associou o trabalho de vaqueiro às atividades da roça, com ênfase no primeiro. A partir do início da década de 1980 dedicou-se ao trabalho agrícola e realizou conjuntamente serviços rápidos de captura e condução de animais.
Fonte: Narrativas orais.
O trabalho com fontes orais não nos permite recortes cronológicos exatos, além disso,
a variedade de formas e períodos em que o trabalho de vaqueiro se associava ao cultivo das
roças, ou vive-versa, não nos garante a produção de esquemas mais sintéticos, com risco de
perdermos a leitura da dinâmica de ligação e re-ligação dessas atividades. O importante aí é
notarmos que os indivíduos aqui estudados sempre estiveram, de algum modo, ligados à
agricultura durante a suas vidas laborais. O vaqueiro, nesse sentido, foi por muitas vezes
também um agricultor, assim como o agricultor necessitou, ou optou, por tornar-se vaqueiro
em alguns momentos, sem que a realização de uma atividade implicasse necessariamente na
exclusão da outra.
A análise dessa relação reforça a afirmação da característica poli-agropecuária das
pequenas unidades familiares do Sertão de Irecê. Por outro lado, evita-nos a leitura errônea,
282 Dados posteriores incompletos.
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dicotômica, de que o vaqueiro, em sua vida de trabalho, “foi só vaqueiro”, ou que o agricultor
“foi só agricultor”, possibilitando-nos ver os sujeitos sertanejos localizados na intersecção de
formas de trabalho e sobrevivência disponíveis no seu contexto. Exemplos para reforço desse
argumento não nos faltam. Reinaldo de Lôro, em meados da década de 1970, associava o
trabalho de vaqueiro e agricultor à função de tratorista. Hermes na década de 1980, tendo
deixado temporariamente o trabalho como vaqueiro, associou à roça a função de açougueiro.
Sinobilino, tornou-se tropeiro por cerca de 4 anos no início da década de 1960, ainda quando
trabalhava ativamente com gado. Chico França explica as atividades que desenvolveu durante
a década de 1970, enquanto encerrava sua função de vaqueiro: “Já matei boi 10 ano! Depois
eu ispichiva o côro (no curtume), eu mesmo riscava as bruaca, fazia! Pegava no dinhêro pra
puder me manter!”283.
Essa variedade de funções atendia às necessidades de sobrevivência em uma sociedade
localizada em pleno semi-árido baiano e que sentia os primeiros impactos do processo de
modernização rural sobre o seu modo costumeiro de vida, a partir do fim do campo e da
redução dos rebanhos (bovinos, caprinos, ovinos, eqüinos). Isso, contudo, não impediu que
certos indivíduos exercessem, durante décadas, somente a atividade de vaqueiro. Gilson,
como já foi relatado, cuida do mesmo rebanho há pelo menos 45 anos! Reinaldo de Lôro
dedicou-se de forma exclusiva ao trabalho com o gado entre 1970 e 1978, mas afirma que
antes desse período já ajudava o pai com o gado da família. Luiz Vaqueiro teve poucas
relações com o trabalho agrícola e ainda hoje se dedica ao trato com gado. Durante sua
narrativa relata Roxinho Vaqueiro:
E: Os amigo do sinhô que na época eram vaquêro também. O sinhô sabe o quê qu’eles fizero nessa época que o campo foi acabano? En: Moço, eu sei que aí, é o siguinte: esses colega meu, tudo tinha suas rocinha né, tinha a rocinha, que’nem cumpade Jairo, Verneul faliceu, mas, tinha sua rocinha, Juarez né, Valdomiro nunca teve roça! Ele era home que trabaiava direto tamém no campo.284
Assim como os acima citados, Valdomiro parece ter optado também pelo trabalho constante
com o gado, infelizmente não foi possível conhecê-lo já que ele “morreu cedo tomém, já tem
uns 10 ano”285. Levando-se em consideração os casos de trabalho com rebanho próprio ou
familiar, nenhum dos nossos entrevistados dedicou-se menos de 17 anos no trato com o gado.
283 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 284 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 285 Idem, Ibidem, loc. cit.
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Quando questionados sobre a relação vaqueiro-roça, é comum a ocorrência de
narrativas que, sem negá-la, afirmam uma superioridade do primeiro sobre o segundo.
Segundo Jairo:
En: Vaquêro num trabalhava em lavôra não! Vaquêro ninhum num gosta de roça! [...] E: Mas o sinhô num tinha uma rocinha?! En: Mas, vaquêro ninhum, num gosta de roça!286
Outros ainda reforçam a idéia. Almir Vaqueiro afirma: “criei a família pegano boi! [...]
A roça toda a vida eu não gostei, até hoje eu vô nela, mas eu nunca gostei da roça não, estão
lá os terreno (risos), terra boa! [...] mas eu nunca gostei da roça, sempre mais o trabalho era no
campo.”287 Gilson destaca que seguiu os passos do pai, também vaqueiro: “toda vida fui
chegado a gado, não era chegado a roça, quando peguei de 18 anos acima já cumecei a vida
(de vaqueiro) também”, no entanto, não deixa de reconhecer que possui sua propriedade: “eu
comprei um pedacinho de roça, agora só para fazer um ponto de prender um animal, não
gosto de ir para roça não”288. Zé dos Morrinhos relata que seu pai queria que ele “fosse
trabaiar na roça”: “minha vontade num dava pra roça, era pro campo, até quando tomei conta
de si”289. A recorrência do discurso de “negação” da afinidade do vaqueiro com a roça,
demonstra o esforço dos entrevistados em manipular suas lembranças de forma a destacar a
sua proximidade com o gado. Aqui eles escolheram as memórias pelas quais querem ser
reconhecidos. É nesse sentido, que, como nos diz Ecléa Bosi, a memória se torna trabalho,
ação intencional de produzir versões e imagens através do uso das lembranças290.
A constante afirmativa de que não possuem afinidade com a roça rendeu aos vaqueiros
a fama “priguiçoso”. Segundo Hermes, “tem muitos (vaqueiros) priguiçoso pro lado de roça!
Pro lado do campo trabalhador, pega o sirviço pesado e no ôto, já se botasse pra roça era
fraco! (risos) Por isso aquele que teve corage de trabaiar roça hoje se deu bem, tá trabaiando
em suas roças e o que num teve tá parado!”291. A negação por fim, termina por denunciar o
que se objetiva silenciar: a proximidade entre o trabalho do campo e a roça em diversos
momentos da vida dos trabalhadores. Outras narrativas destacam:
286 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 287 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 288 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 289 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 1º momento, 03 de nov/2010. 290 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade..., p. 17. 291 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.
120
De qualquer manêra, a gente fazia os dois que tinha necessidade, né. Você trabaiava no campo, você criava tamém, era obrigado você rebanhar aquele bicho, né, e a roça tinha, a roça você trabalhava pra adquirir as coisa, pra botar dentro de casa, né, quando chegô a época de, que deu pra entrar carro (na região) e tudo mais, aí você vindia as coisa que sobrava, né, você culhia pra ter dentro de casa e vindia tamém pra fora.292
E de premêro (antigamente) o vaquêro... era bom qu’ele tirava sorte, ele ferrava o bizêrro e tinha vez qu’ele plantava fejão na roça dele, o fejão dava, ele num comprava fejão... mas o vaquêro de hoje não, o vaquêro de hoje compra tudo!293
As atividades relacionadas à roça foram, pois, de alguma forma, associadas ou
intercaladas às atividades do campo. Para Reinaldo de Lôro, adquirir suas primeiras tarefas de
terra em meados da década de 1970, foi uma verdadeira “independência”: “Aí eu já tinha um
gadim, vindi uma parte de gado, vindi uns porco, vindi uma safra, e comprei 60 tarefa. Pra
mim foi o negoço milhor no mundo, foi o maior prazer que eu tive foi quando eu comprei essa
área de terra”.294
A ocorrência de momentos de trabalho dedicados exclusivamente à função de
vaqueiro poderia repercutir, ou não, no abandono temporário das terras de cultivo. Quando do
deslocamento do rebanho familiar de São Gabriel para a Vila de Recife (Jussara), em busca de
campo no final dos anos 1960, Hermes afirma que comprou
um pedaço pequeno, 16 tarefas, depois fui arrumando condições comprei mais ôtras área, certo que comprei umas cento e poucas tarefa ainda e sai, deixei, cheguei, voltei ôtra vez e tô trabalhando nela. [...] porque terra você pode largar e deixar aí, com 10 ou 20 anos ou 30 que você chegar está. (risos)295
Em uma situação diferente, Chico França nos informa que, quando exercia a função de
vaqueiro, aproximadamente entre os anos 1950 e 1970, já tinha “os minino de ir trabaiano na
roça e eu ia pro campo!”296. Gilson, recordando seu período de juventude, relembra que seu
pai também era vaqueiro e que sua mãe era a responsável pelo cultivavo as terras: “mãe
plantava! Ele tinha terra, mas só quem tocava a roça era mãe, ele era encima do cavalo para
cima e para baixo.”297
As falas de Chico França e Gilson nos remetem a uma dimensão à qual as fontes orais
não esclarecem apropriadamente: as dinâmicas familiares que possibilitavam o exercício da
292 Entrevista do senhor Gulhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 293 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 294 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Louro)..., momento único, 07 de jan/2012. 295 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Hermes)..., 1º momento, 11 de out/2010. 296 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 297 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011.
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função de vaqueiro. Nesse sentido, os rápidos relatos enfocam a importância dos outros
membros, como mulheres e filhos, na manutenção da associação roça-campo e na
sobrevivência do núcleo familiar. Em outro trecho da entrevista, Chico França lembra-se que,
ao final do dia de trabalho no campo era necessário retornar ao curral para cuidar dos bezerros
recém-nascidos “se a muié num subesse botar (o bezerro) pra mamar!”298. Deduz-se daí que o
espaço do curral e as atividades com o gado bovino não eram estritamente masculinas. Por
fim, recordamos aqui as sábias palavras de D. Janice, esposa de Juarez, que rapidamente nos
encaminharam a essa reflexão: “Só sabe quem é vaqueiro, quem é mulher de vaqueiro!”.
A roça e a terra, dessa forma, sempre foram presença marcante na vida dos vaqueiros
do Sertão de Irecê, uma espécie de pilar a partir do qual os indivíduos se iniciavam no mundo
do trabalho. A fonte básica de sobrevivência que dava suporte, via mão-de-obra familiar ou
diarista, ao exercício exclusivo da “profissão de gado”, facilitando e diversificando assim os
meios de produção da sobrevivência. Almir afirma que, quando não podia ou não “aguentava”
o trabalho da roça “vendia um mamote, um garrote ou uma vaca véa ou uma rês gorda,
pagava o trabalhador pra ir roçar, dessa maneira toda vida!”299.
Ao lado da roça e do pequeno rebanho que cabia ao vaqueiro pelo sistema de sorte,
uniam-se também outras pequenas fontes de renda que garantiam à família o suprimento das
necessidades básicas. Alegam os entrevistados que a sorte sozinha era insuficiente para a
manutenção, especialmente quando o rebanho era pequeno e o grupo familiar numeroso. Esse
fato se ressalta ainda mais quando se destaca que os animais conseguidos durante a partilha
cumpriam também o papel de “semente”300 de rebanho, não podendo, portanto, serem
consumidos totalmente. Informa o vaqueiro Luiz:
quando é um cara experiente, que à vez, você chega lá, cria uma galinha, cria um bode, cria um porco... ali já ajudano na dispesa né, mas, pra dispois você tirar esses bizerro, pra dispois pagar a dispesa... você fica nú de novo! [...] porque ele tirava a sorte né, e ali ele prantava um pedacinho de roça, as dispêsa ali, e ele ficava com seu garrotinho ali pra vendê para uma hora de uma pricisão.301
De posse de algum rebanho, familiar ou não, punha-se o vaqueiro ao desafio do
campo e à sua rotina diária: 298 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 299 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 300 Termo usado pelos entrevistados para designar os primeiros animais conseguidos pelos vaqueiros ou a porção restante do rebanho destinada à reprodução, ou ainda relações sanguíneas, neste caso afirma-se: “este animal é semente daquele!”. 301 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010.
122
vaquêro num tem horáro! O horáro do vaquêro é quando termina o sirviço! É, de 4 hora, 3 hora, tirar leite, quando termina o leite, solta aquela vacaria, quando solta a vacaria, se incora, vai pru campo, às vez atrás de mais parida ou vê se tem algum cu’ma bichêra, uma coisa... vaquêro é desse tipo. Chega em casa 7, 8 hora da noite, ôtas vez 10 hora, da noite!302
A função do vaqueiro era cuidar do rebanho entre o curral e o campo, este, porém, não
transmitia a segurança do primeiro, trazendo-lhe grandes obstáculos e exigindo o domínio dos
saberes sobre a natureza e os animais. A busca por um animal desaparecido poderia durar
dias. A estratégia de trabalho central dos vaqueiros era a construção de uma rede social de
“amizades”, sociabilidades e troca de experiências que possibilitasse o acesso a notícias. A
feira livre semanal era um espaço especial para obtenção dessas informações.
Sai sem saber onde é que a criação, o boi tá, por exemplo. Anda o dia interinho até de noite nem nutícia! [...] Quando num tem nutícia ele vai pras fêra, eles ia pras fêra! [...]. Lá na fêra do Salobro (Vila de Canarana), por exemplo, tinha gente da Baixa do Vigário, [...] Bunina, [...] Gameleira, [...] Lagedinho, aí procurava aqueles vaquêro: _“Ah! Moço! Esse boi tá em tal lugar!” Aí agora ele já ia no rotêro certo! Com aquele cuidado, procura a um, procura a ôto, até: _“Tá no gado de fulano.” [...] E aí agora quanto mais ele já tá com 2, ou 3, ou 4 dia perdido, mais a hora que ele (o vaqueiro) ver é obrigado pegar, que ele não pode mais perder tempo com esse boi! Por isso que os vaquêro tinha hora que era, fazia das tripa coração! Criava corage.303
O reconhecimento do ferro ou do sinal nas orelhas dos animais, permitia aos
moradores seber sua origem e propriedade e informar ao vaqueiro o seu paradeiro. Juarez
afirma: “nós cunhecia pelo ferro. E quando vinha gado deles pra’qui tomém nós sabia, nós
dava nutícia a eles lá, é, que tinha gado deles aqui no campo nosso”304. A habilidade de
reconhecer a simbologia dos sinais e ferros impressionou Euclides da Cunha, que assim
relata:
Porque o vaqueiro não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes por extraordinário esforço de memória, a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto305.
302 Idem...,1º momento, 07 de nov/2010. 303 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012. 304 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 305 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 127.
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As dificuldades no trabalho do campo, todavia, não paravam por aí. Hermes nos
explica que nem sempre era possível para o vaqueiro levar comida para sua jornada. você amarra, pega uma mochila de comida e bota de baxo do braço ou na garupa do cavalo, com duas tarefa ele achava uma rês de pegar, corria no mato, daí um pau arrancava, jogava no mato e aí?! (risos) [...] Perdia tudo! (risos) [...] Vaquêro só come em casa quando chega, ou então se o cara, no campo, ele encostar na casa de um amigo, [...] e lá ele lhe oferecesse o café ou a comida você aproveitava logo, era a hora de (risos) abastecer, se não (risos) ia chegar em casa tarde da noite, né.306
O trabalho com o gado em meio à caatinga sem cercas exigia esforços físicos e
resistência orgânica dos trabalhadores, além do domínio de certos saberes e estratégias. José
Norberto de Macêdo relata:
Em serviço, vaquejando o rebanho ou, como de costume, vagando em busca de um animal qualquer, exercita os olhos e a prende a enxergar, adquirindo pelo treino excelente golpe de vista. Muitos praticam a proeza de contar sem erro, um lote de animais que passe a todo galope pelo vão de uma porteira. A vastidão do horizonte conserva-lhe e acomoda-lhe a vista; o vaqueiro tem, por isso, bons olhos e boa visão até alta velhice307.
Exageros à parte, a citação do autor nos encaminha diretamente para a restrita relação
entre a prática de trabalho do vaqueiro e a aquisição de habilidades. É o vaqueiro Hermes que
nos explica de forma pormenorizada a dinâmica da lida com o gado no campo.
o gado faz uns carrêro dentro do mato e você vai nos carrêro, que eles faz aquelas estrada no mato, deles andar, mas, madêra é tudo trançada por cima, eles andando por baixo, bem assim você baixava no pescoço do cavalo e ia direto, aqui e acolá, quando você saia em um aberto, às vez numa lagoa, um vagiado308, você tomava um tempo ali escutando chucai e coisa, pra ver se não tinha gado ali por perto, sentava na sela, [...] e ai marcava no giro da pancada daquele chucai até quando chegava lá né, naquele gado. Se dava certo ser um gado manso ia raiar (tanger) e oiar e ficar arrodiado, e se for um gado brabo, você vê a carreira, ai agora era obrigado correr pra acompanhar309.
Roxinho pontua que, um vaqueiro acostumado com o gado conhece o seu rastro:
tem uma que tem a unha maior, ôta menor, tem uma que arrasta à vez a unha: _ “Ó, vaca fulana passô aqui!” Muitas vez o marruá310, tomém, você diz: _“Moço, aquele marruá tá faltano!” Você vê o rasto do marruá é redondo, da vaca é cumprido (a pata)!”311
306 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 307 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 50. 308 Equivale a uma área rebaixada onde acumula água e onde os rebanhos que concentram. 309 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 310 Novilho ou boi jovem, pouco ou nada domesticado. 311 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011.
124
O trabalho rotineiro no campo tornou os vaqueiros grandes conhecedores dos hábitos
dos animais. Segundo Almir Vaqueiro, o gado “cumia tudo no campo, misturava mas, eles
procurava, cada qual procura os seus, que nem a gente procura o amigo (risos)”312. Juarez
relembra que seu rito de iniciação como vaqueiro se deu quando, em meio à procura de uma
vaca, ocorrera uma “garoinha” e seu tio o alertara para passarem “naqueles lajedo, que
quando chove assim gado vai procurar água” 313. A empreitada foi certeira e desta vez a vaca
fujona foi ao chão! O conhecimento do som do chocalho, já citada pelo vaqueiro Hermes,
ganha contornos detalhados na explicação de Zé dos Morrinhos:
Aí você escuta o chucaio: “tam, tam, tam!”. Ela tá dano mamar o bizerro. [...] ela vai na frente e você vai divagazinho amuntado no cavalo: “pam, pam, pam” (som do cavalo andando), esperano, ela vai doida (rápido), o chucaio: “pô, pô, pô, pô”, quando o chucaio quetar, aí você vê a bizerrinha: “béééé!”. Ela fica em pé, aí a bizerra berra, mode o chucaio, aí dá de mamar. Aí o cara chega e traz314.
Era comum que as vacas prenhes ou recém-paridas usassem chocalho para facilitar sua
localização. O velho vaqueiro produz uma leitura sonora a partir da qual identifica, mesmo a
distância, a condição e o comportamento do animal. Afirma este entrevistado: “se ele (o
vaqueiro) num conhecer a pancada do chucai num é vaquêro! É obrigado ele ir atrás de todo
chucai que tocar no campo [...] pra olhar se é a dele!”315. Esse mesmo depoente ainda nos
revela outro conhecimento sobre o trato com o gado na caatinga.
Tem as árvore da catinga que o gado maia debaxo! Imbuzero, é um! Imburana, é ôto! O Pau-de-Colher é ôto! [...] Deu uma hora dessa (meio dia) em diante eles tão maiado! [...] Então aí você só acha de tarde! [...] E o cara que é acustumado a tabaiá [...] o sol isquentô, ele se deita de baxo de uma sombra de pau no mato, [...] quando for de tardezinha, que o vento pegar a correr, o gado levanta pra cumê! Iscuta o chucaio: _‘Vaca fulana, vou pegar ai!’ A gente vai e pega!316
Nas entranhas das caatingas os animais afinavam também os seus instintos e muitos se
tornavam selvagens. Quando ocorria a necessidade de capturar algum deles para venda,
condução, para realizar algum procedimento veterinário ou mesmo quando os mais arredios
“davam a testa”317, homem e animal travavam uma disputa. A “pré-dominância” do primeiro,
312 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 313 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 314 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 315 Idem, Ibidem, loc. cit. 316 Idem, Ibidem, loc. cit. 317 Expressão usada pelos entrevistados para definir o momento em que o boi desafia o vaqueiro.
125
contudo, nem sempre significava êxito. Almir Vaqueiro não nega: “Nós cansamo de dar duas,
três carreiras em boi aí e boi ficar.”318. Juarez assim explica o processo de perseguição à rês:
En: [...] pra ir incostado nele direto, o boi soltano pau e você... antes do pau acabar de levantar você já tá passano!Uma catinga quanto mais fechada é melhor pra se pegar boi! [...] Por que quando o boi pega a catinga ele sai arrastano a catinga pesada [...] num guenta arrastá aquela catinga! [...] logo você joga o peito do cavalo na cabeça dele, pra o cavalo impurrar ele, tem vez que ele cai, vai cansado ele cai e se num cair ele briga muito, é obrigado você defender! [...]319
Mesmo a perseguição dentro da caatinga tinha suas leis, suas estratégias. A grande arte
do vaqueiro na captura do gado estava em saber usar a vegetação a seu favor, cabia a ele
correr o mais próximo possível da rês, aproveitando-se da brecha que esta fizera na caatinga,
pressionando-a contra a vegetação para que se cansasse. Em sua viagem pelo interior do
Nordeste ainda no início do século XIX, inglês Henry Koster assim registrou esse momento:
Quando o homem se aproxima, o boi foge para o mato vizinho, e é perseguido o mais próximo possível, a fim de aproveitar a vantagem de os ramos se entreabrirem na passagem do animal, fechando-se logo após, retomando sua primeira posição. Num certo tempo o boi passa por baixo de um galho pouco elevado duma grande árvore, e o vaqueiro, às vezes, passa também, e para conseguir, pende para o lado direito tão completamente que pode segurar a cilha da sela com a mão esquerda ao mesmo tempo que o calcanhar esquerdo se prende na orla da sela. E com a vara na mão direita, quase arrastado pelo solo, galopa sem diminuir o passo, voltando a sua posição logo que o obstáculo foi transposto. Quando atinge o boi, fere-o com a vara e, se o golpe foi certo, atira-o ao chão. Desmonta, prende as pernas do animal ou passa uma delas pelos chifres, e o tem rendido completamente. Muitas pancadas são recebidas pelo vaqueiro, mas é raro ocasionar-lhe a morte320
Correr na caatinga, não era pra qualquer um, era preciso, primeiro, saber deitar no
cavalo, saber guiá-lo e desviar-se da vegetação. Luiz Vaqueiro afirma:
Então, o vaquêro, ele tem que aprendê trabaiar, tem que sabê se defendê da madêra. Você se abraça no pescoço d’um cavalo [...] correno com boi aqui, ele vai pra lhe rumar aqui, mas, você carregô o corpo todo pra cá, o cavalo sai do pau! Você carregô pra riba do pau você..., a pancada é grande! Você tem que carregar o contráro, com força! E se arrastá!321
Reconhecer aqueles que dominavam essa técnica não era tão difícil assim, Juarez
atesta: “É obrigado saber trabalhar campo. [...] você vê aqui que todo vaquêro bom ele tem...
o chapéu é sujo de suor d’um lado onde ele deita, porque ele tem que colar a cabeça no
318 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 319 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 320 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 209. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/viagens-ao-nordeste-do-brasil>. Acesso em: 15 de fev/2012. 321 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.
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pescoço do cavalo”.322 Para os nossos entrevistados, não só o “quebrado” do chapéu
anunciava um saber, como a sujeira nas suas abas era marca cabal do exercício de campo.
Hermes nos esclarece que durante a captura é preciso ainda “dar o grito”.
A vantagem é dar o grito! (risos) [...] ali é um desabafo, vai desabafar o vaquêro, o vaquêro vai ali, quando ele joga usura (vontade de pegar; o momento que se configura a oportunidade da captura do boi) que vai perto, que conhece que vai arrastar aquele trem (risos), ai grita! Ai grita animado! Grita animado. O ôtro, o ôtro amigo [...] vai no giro que eu (estou) gritando, ele vai certo, chega, e se correr calado não sabe pra onde deu, e ôtras vez também quando a gente vai sozinho grita também [...]. Quando vai chegando pra perto é que anima gritando! (risos) Porque sabe que pega!323
Tal como o grito do vaqueiro, a ênfase do velho narrador ao contar sua história era
também um “desabafo”. Gritar era uma estratégia de orientação entre os vaqueiros para que os
“amigos” soubessem o “giro” para onde corria a rês e fossem ao seu encontro. Era também
uma forma de deixar o boi mais agitado para que com isso cometesse erros em sua fuga,
errasse um pulo, errasse o caminho; era um “desabafo” para o vaqueiro, mas era ainda um
sinal de que ele se adiantara aos “amigos” e estava próximo ao êxito. Juarez se lembra do dia
em que, após a tentativa frustrada de captura de um boi, “a vaquerada” lhe provocou,
acusando-o de ter corrido “disputano” e de não ter gritado “pra ninguém acumpanhar”.
Restava a captura em si. Almir afirma que quando era “novo” “cansou” de descer do
cavalo pra pegar “o boi de mão”: _“Dexa vir!” E eu: “Vapo!” dentro da cabeça dele aqui (entre as pontas), embolava com ele aqui, depois que chegava no bagaço (o boi cansava), botava no chão”324
Reinaldo de Lôro ao derrubar algum boi “sentava na barriga dele, pegava a mão dele e
botava aqui na cabeça, aí já facilitava muito, aí agora tirava a corda amarrava, botava careta e
chucalho, aí agora pronto!”325 A captura poderia ainda se dar de outra forma. Zé dos
Morrinhos conta que, quando possível, usava armadilhas para pegar alguns animais, subia em
uma árvore, “tirava o gibão e sacudia”, quando o animal se aproximava ele o laçava pelo
chifre. Nos casos em que a disputa se acirrava restava ao vaqueiro o uso de suas ferramentas:
322 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 323 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 324 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 325 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012.
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se você tiver ferro (faca, ferrão ou até facão), você vai pro ferro frio, se num tiver você abre o cavalo um pôco (afasta o cavalo) e dêxa ele queto, na hora qu’ele (o boi) calmô você tira a corda da garupa e laça ele e passa logo num pau. [...] E: Se remeter fura onde no boi? En: A gente só fura da, dali da amarra do chucai pra cabeça por que se você furar da amarra do chucai pra trás pega os vão (os órgãos internos) dele e aí morre!326
Os entrevistados denominam ferrão uma estaca de madeira na qual se encaixa em uma
das extremidades uma base de ferro ponteaguda, utilizada para furar os animais. O objetivo do
seu uso não é causar a morte do animal, mas, apenas amedrontá-lo, o que não exclui a
possibilidade de que os ferimentos provocados ocasionem a morte da rês. Almir Vaqueiro, no
momento em que nos demonstrava o ferrão com o qual trabalha, comenta: “tem deles (os
bois) que na hora que cai no prego, que aí é que a carreira é segura, caiu no ferro frio, aí é que
corre bunito! Agora, tem deles também, que morre de baxo do prego, tem deles que são
malcriado, morre no ferrão!”.327 Nos momentos de risco, um simples pedaço de madeira pode
também servir de arma de defesa para os vaqueiros. Hermes nos explica que muitos animais
não resistiam a captura e morriam, ainda que sem ferimentos: Sempre a gente quando botava assim, corria que pegava, peava, porque naquela hora ele não presta pra viajar né, quando tem um pau assim mais perto a gente amarra, mais o comum mais é pear pra ele ficar andando, pra não agitar muito, ele ir desenvolvendo (caminhando). Então, quando nós fomo acabando de pear (riso) foi acabando de morrer, de raiva. Aconteceu muitas vez isto328.
Como vimos na introdução deste trabalho, o discurso sobre as destrezas e valentias dos
vaqueiros, compõe parte significativa de suas representações sociais e muito devem a autores
como Euclides da Cunha e Eurico Alves e as artes populares como repentes e cordéis. Porém,
o encontro tantas vezes versado pelos literatos, cantado pelos poetas e cordelistas, o qual o
cancioneiro sabiamente definiu como os “mistero da hora in qui num pode havê erro”329, não
era em si um ato de heroísmo. Não importando a modalidade de captura, a necessidade de
dominar era o fator determinante do momento e o choque entre homem e animal era sempre
uma situação desafiadora, tanto para os que apenas “campeavam” como para os vaqueiros
experientes.
Em períodos de seca, os vaqueiros costumavam reunir-se nas margens das fontes de
água mais resistentes para a captura do gado.
326 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 327 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 328 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 329 MELLO, Elomar Figueira de. História de Vaqueiros. In: Xangai canta: cantigas, incelenças, puluxias e tiranas de Elomar. Rio de Janeiro: Kuarup Discos, 1998.
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En: [...] nas água (período de chuva) nós pegava era na catinga aqui, e no tempo sêco o gado cumia nessa região toda e ia beber lá com 4 légua, nós isperava o gado no bêiço da vereda (de América Dourada). E: [...] E aquela Vereda num secava? En: Não. Vez em quando secava um poço, mas o ôto num secava, né, o gado puxava pr’aquele lugar que tinha água, aí ia 20, 30 vaquêro esperar o gado lá.330
Segundo Guilhermino, muitos vaqueiros aproveitavam o momento em que o animal
bebia para laçá-lo, outros animais, de tão selvagens, sentiam a presença dos seus caçadores e
corriam ou desenvolviam o hábito de beberem durante a noite. Nesse caso cabia ao vaqueiro
adequar suas estratégias de acordo com as necessidades. Nas palavras do entrevistado: “muito
gado imbradicia aí e ficava, só ia beber de noite! Quantas e quantas vez nós ficava no bêiço da
vereda de noite, o gado chegava nós metia o cavalo inriba?! Pegava de noite na catinga aí,
pegar.”331 A captura a noite ocorria, geralmente, em fases de “lua clara”.
O retorno à casa era precedido ainda pelas atividades do curral: cuidar dos bezerros
recém nascidos, conferir a saúde dos animais, amarrar, amansar, separar as vacas dos bezerros
para, na manhã seguinte, realizar a ordenha, se necessário, e conferir as demais criações, caso
houvessem. O cuidado com a saúde e a integridade dos animais é uma dimensão de
conhecimentos a parte. Na concepção do vaqueiro, aboiador e poeta Licuri: “o vaquêro que é
vaquêro tem que saber aplicar uma injeção [...]. Ele tem que fazer operação, ele tem que fazer
parto de vaca, ele tem que fazer tudo pra ele ser um vaquêro!”332. Zé dos Morrinhos destaca
que o vaqueiro deve saber usar a força no momento certo e ser uma “pessoa paciente! Trabaia
com o bicho sem xingar! Sem bater! Porque tem deles que ruma uma pedra! Fura um olho!
Ôto joga um pedaço de pau, bate, arranca uma ponta de uma vaca!”333. Ainda esse
entrevistado sentencia que os “vaqueiros de hoje” não dominam mais o “saber” necessário à
lida correta com o gado: “num sabe fazer um parto d’uma vaca! Num sabe botar uma luva
numa mão pra tirar um bizerro! Num sabe cortar a junta d’um bizerro dento do paridor da
vaca, pra tirar!334 Então, não é vaquêro, um cabrunco desse! Num é não!335.
O cuidado com os animais ia além do trato físico, poder-se-ia estender ao mundo
sobrenatural por meio do uso de rezas e benzeções. Roxinho Vaqueiro nos explica a oração
para combate às parasitas. 330 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 331 Idem, Ibidem, loc. cit. 332 Entrevista do senhor Antônio Corrêia Araújo (Licuri)..., momento único, 03 de nov/2010. 333 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)...2° momento, 24 de jan/2012. 334 Quando ocorre a morte do bezerro ainda dentro do útero da vaca. 335 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)...2º momento, 24 de jan/2012.
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Pra curar, o bicho tá daqui à 3 légua, até conforme 5, você reza. Se tiver um rio, você pega um copo d’água e bota na frente, é, porque se tiver água a reza num passa e com o copo d’água passa. [...] Você pega de 9 até 1 ou pega de 7 até 1! [...]É: _“De 9 a 9, de 8 a 8, de 7 a 7, de 6 a 6, de 5 a 5, de 4 a 4, de 3 a 3, de 1 a 1, num fique bicho ninhum!” Até chegar no 1! Você reza 3 vez, pega 3 ramo né, e vai jogano, você circula a base do que o gado come (anda em torno de um círculo imaginário direcionado ao campo onde pasta o gado), aí você vai dano as palavra e jogano pr’um lado e pra ôto, assim ó (forma de cruz), você tendo fé, pronto! [...] Daqui você reza onde o gado tiver! No giro qu’ele come [...] inlarguesse mais um pôco né, faz o circo (círculo) grande, faz de conta que você tá caçano uma rês, você faz um campo grande e reza. [...] Pode rezar parado. Você só abre o braço e faz o sinal assim.336
Em Histórias de Vaqueiros: vivências e mitologias, Washington Queiroz registrou a
diversas fórmulas de benzenção de animais entre os vaqueiros da Bahia, inclusive a presença
da referência a números, a água, além de fórmulas e técnicas veterinárias fitoterápicas337. O
trato com a saúde animal poderia mesmo garantir destaque ao vaqueiro, Luiz Vaqueiro é um
exemplo disso e nos narra um episódio ocorrido em Goiás entre os anos de 1990 e 1992,
enquanto trabalhava em uma fazenda. Tendo ele avistado uma vaca aparentemente doente e
iniciado uma avaliação juntamente com um veterinário, relata: meti a mão, digo: _“O bizerro já tá de lino” (ou limo, no sentido de ‘em decomposição’) Tirei ele todo os taco (pedaços) de dento e o dotô (o veterinário que estava presente) oiano aí, o dotô disse: _“É, um home desse aí sabe fazer o sirviço” Dispachei (retirou os restos do bezerro e a placenta), aí [...] ele disse: _“E aí Luiz?” Eu digo: _“Dotô é o siguinte, aqui tem que cortá!” Ele disse: _“Cortá?!” Eu digo: _“É! Pra iscapar a vaca aqui tem que cortá” Ele disse: _“Você sabe cortá?” _ “Dô um jeito!” _ “Então faça o sirviço!”. Botei pra fora (útero da vaca), puxei, cortei, mandei botar um cavadô no fogo, o bicho tava vermei, no fogo! Aí eu cortei ele aqui ligêro e puxei ele (útero da vaca) pra fora e queimei “tchi, tchi, tchi!”, queimei ele todim, quando acabar bati o remédio, apliquei as injeção nela, soltei pro pasto...Aí ele disse: _“Se a vaca iscapar é minha e sua!” Eu digo: _“Apois já sabe que é de nós 2” Aí quando foi, a vaca sarô. [...] O dotô disse: _ “Óia, eu mermo num sabia queimar fazer, queimar, queimar o úto [útero] dessa vaca aí, eu num sabia fazer! E sô veterinaro e nunca vi nem fazer isso!”
336 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 337 BAHIA. I. do P. A. e C. Histórias de vaqueiros..., vol 2, p. 123-146.
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Aí disse: _“Você, você tem nota 10 da minha parte!”, aí falô com patrão, disse: _“O home sabe fazer o sirviço” Disse: _“Esse aí nasce pra isso mermo”338.
Luiz Vaqueiro acabou assumindo o papel de “dotô” na situação e seu saber tradicional
desafiou a medicina veterinária institucional, mesmo que por um momento. Esse prestígio
inicialmente conseguido e o domínio das demais artes de trato com o gado, garantiu ao
vaqueiro a função de “gerente” da fazenda por 1 ano e 8 meses.
Os saberes necessários ao trabalho no campo e ao cuidado com o gado eram assim das
mais diversas naturezas. Era preciso conhecer o relevo, os morros, as aguadas, os lajedos, as
queimadas339, as capoeiras, observar os rastros dos animais, ouvir o chocalho, saber onde
nascia certo tipo de planta, o horário de circulação dos animais, seus “carrêros”, conhecer o
ferro ou a marca, sua anatomia, sua preferência alimentar e suas variações no decorrer do ano,
seus comportamentos diante da chegada das chuvas. Um vaqueiro experiente sabe que “vaca
(recém)-parida come sempre separada das ôtas”340; que em vaca parida não se bate, a menos
que seja realmente necessário; que, durante uma captura, o “bizêrro (quando) vê o cachorro ia
pra perto da mãe”341. Reinaldo de Lôro sabia que “no fim das água” o gado buscava a “Lagoa
Vermêa”, de trás do “Morro dos Calango”, por ser ela a mais resistente das fontes
circunvizinhas. O cuidado direto com a saúde dos animais exigia ainda outras práticas e
saberes dos vaqueiros: era preciso conhecer os ciclos reprodutivos dos animais, os remédios,
as rezas, os procedimentos veterinários e até cirúrgicos.
O controle dos saberes de captura, condução e cuidado garantia aos vaqueiros do
Sertão de Irecê o poder de barganha, afirmação pessoal e diferenciação social suficiente para
disputar espaços com outros trabalhadores do campo, com criadores ou pessoas de maior
poder aquisitivo.
Quando eu vivia panhano boiada de um e de ôto, de um e de ôto, mais vivia ni minha, no meu cantinho sussegado, não! Você chegava e dizia: _“Luiz eu quiria que você fizesse um sirviço pra mim amanhã!” Digo: _“Amanhã num dá! Só dá pra ir adepois, se você achar...”
338 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 339 Refere-se a áreas que sofreram ação do fogo por indução humana ou natural, cujo solo ainda possuem as marcas do incêndio, coberta por pequenos arbustos. Uma queimada pode, por exemplo, se tornar uma capoeira com o passar dos anos, na medida em que sua vegetação avança. 340 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 341 Idem, Ibidem, loc. cit.
131
Tinha que me isperá! E se eu fosse impregado dele eu tinha que ir, de quarquer jeito, né! Você tem que ir: _“Bôra!” Não! Eu vivo por conta de, por minha conta: _“Não, hoje num dá pr’eu ir não, só dá pr’eu ir amanhã, se você achar que dá pra ir...” _“Não! Então é o jeito! É o jeito isperar você, eu... você é quem sabe fazer o sirviço!”342
O relato acima exposto por Luiz Vaqueiro demonstra bem o peso que o domínio das
artes com o gado no campo atribuia ao vaqueiro. O requisitante reconhece a existência de um
portador do “conhecimento”, cabendo-lhe, portanto, esperar. À medida que aumentavam as
dificuldades de captura, condução ou os riscos à vida dos animais, no caso de um parto mal
sucedido ou de um ferimento grave, por exemplo, o seu trabalho se tornava mais valioso,
requisitado e fora das condições de execução dos que apenas “campeavam”. Nesse sentido o
trabalho do vaqueiro assumia um caráter especializado. Esse fator era essencial para
constituição de um processo de diferenciação laboral dos vaqueiros, em um contexto onde era
comum a muitos outros trabalhadores o acesso ao campo e a posse de pequenos rebanhos
(mesmo que algumas unidades), portanto, certo nível de contato com a dimensão dos saberes
que envolviam a pecuária.
Em meio ao campo do Sertão de Irecê a experiência era o grande orientador do
vaqueiro, mesmo assim, não escapavam eles aos riscos de sua função. Todos os nossos
entrevistados têm histórias diversas de acidentes que durariam horas para serem narradas e
muitas páginas para serem descritas, vamos aqui apenas exemplificá-las. Nos termos do
vaqueiro Zé dos Morrinhos: “o comum do vaquêro é sempre alejado”. Esse mesmo
entrevistado nos narra um episódio representativo durante uma perseguição dentro da
caatinga: “Panhei o sedém (rabo do animal) dobrei na mão, aí rancô esse pedaço do estrivo da
sela, eu istirei, aí arrastei ela (a vaca) assim, arrastei. Lá na frente o cavalo meteu a mão num
buraco de mamão-brabo, [...] torô (quebrou) a mão e eu torei aqui (o pulso), rancô os arreio,
tudo perdeu.”343.
Licuri acumula uma clavícula e 4 costelas quebradas; Roxinho não conseguiu se
desviar de uma árvore que o derrubou do cavalo deixando-o no chão “sem fôlego”; Reinaldo
de Zé Pedro necessitou de procedimento cirúrgico, após sofrer uma queda com seu cavalo
sobre as pedras que lhe “qualhô o sangue por dento”; Luiz Vaqueiro e Jairo quebraram a
342 Entrevista do senhor Luiz Mendes Batista (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 343 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2° momento, 24 de jan/2012.
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perna na lida com o gado; Viana perdeu a visão de um olho, após ser atingido por um graveto;
Guilhermino nos contou que o boi furou um dos seus cavalos: “nunca mais pude derrubar
gado com ele, assombrô, né. O bicho tamém entende e tem medo, né.”344
O campo não desafiava só o homem, muitos são os relatos em que os próprios animais
(cavalos e até o próprio boi) se machucavam nas árvores, nas armadilhas naturais e nas
irregularidades do terreno. Por essas e tantas outras ocorrências predominam nas narrativas
dos entrevistados a certeza de que o trabalho de vaqueiro era “perigoso”, “pesado” e “difícil”.
Na visão de Jairo: “num tem sirviço de campo que num seja pirigoso, todo sirviço de campo é
pirigoso dimais! E o nêgo tem que defender a vida! E pronto!”. Ainda segundo ele “quem
trabalha no campo é sabeno que ele vai trocano a vida por morte!345. Gilson Vaqueiro não tem
dúvidas de que a vida do vaqueiro é sofrida, “passa fome, passa precisão, passa de hora de
cumer, passa de hora de dormir, dependeno da luta dele”.346 O vaqueiro Luiz não discorda,
segundo ele, o trabalho de campo é “o sirviço mais pesado do mundo”, pois, não é qualquer
trabalho que faz “o suor traspassar (atravessar) gibão, traspassar côro” e conclui: “num é
brincadêra não!”347. Para Chico França, o vaqueiro “só pega o boi se num tiver medo de
morrer!”348.
A ênfase nas dificuldades do trabalho, latentes em suas narrativas, dão vazão aos
discursos de coragem, “macheza” e “proteção divina”. Almir afirma: “Nunca tive medo de
correr com boi e nem de brigar com boi também, toda vida fui cabra macho!”349 e completa:
“o trem mais abençoado do mundo é vaquêro!”350. Reinaldo de Lôro explica
Sempre o povo tem um dizer: _“Eu boto pra isbagaçar!” Mas é a nação que Deus mais guarda! Já guardô, foi o vaquêro! Naquele tempo! Por que, olhe na hora que você tá, na luta! [...] As vez acuntece até de você cair, levanta e torna pular em cima do cavalo! [...] ou que ôto vaquêro, passa, você passa atrás devagar as vez num lugar onde você já passô. Admira como é que passô naquelas ponta de pau! E debaxo de pau e saiu, em paz. E já hoje, num é todo mundo que tem essa corage351.
344 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., 1° momento, momento único, 18 de ago/2011. 345 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)...., momento único, 07 de out/2010. 346 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 347 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 348 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 349 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 350 Idem. 2º momento, 13 de nov/2010. 351 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012.
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Chico França afirma: “vaquêro é querido de Deus moço, se não num tinha um aí com
os 2 olhos na cara! Era tudo cego!”352. Como vimos, a afirmação entre o vaqueiro e a proteção
divina é um fator corrente nas narrativas. Ele foi usado para explicar a origem do interesse
pela profissão, agora emerge como justificativa para proteção durante o trabalho. Como nos
afirma Júlio Pimentel Pinto, a memória une de forma linear elementos que na vida concreta
foram desconexos353. Do ponto de vista da memória, os narradores selecionam o discurso da
proteção divina como mecanismo de diferenciação social. Ele se une às constantes afirmativas
de coragem, para as quais os acidentes e suas sequelas funcionam como provas do ato
heróico, o discurso dos saberes, e a afirmativa de uma autonomia laboral baseada no acesso ao
campo, produzindo uma imagem requisitada pelos próprios entrevistados.
Sociabilidades da vaquerama: habilidades, poder simbólico e representação social
Mas, nem só de sacrifícios viviam os vaqueiros do Sertão de Irecê. O trabalho árduo e
cansativo era também marcado por momentos de lazer, descanso e momentos coletivos que
possibilitavam a construção de relações de solidariedade/sociabilidade, a delimitação das
fronteiras sociais do grupo e a afirmação de uma identidade própria. Sinobilino afirma:
E tinha muito gado, era muito vaquêro, uns conhecia os outros, e aquilo era uma farra, gado mudava muito, você era vaquêro eu também era, eu, e uma novilha minha, gado meu, passava lá por sua fazenda, e eu ia você me ajudava pegá, eram tudo unido, me ajudava pegar, encurralar, depois durmia em sua casa, me recebia bem, se fosse você, eu lhe recebia bem. E eu lhe ajudava, um ajudava os ôto, amanhâ você pegava sua novilha, seu garrote, sua vaca, e conduzia pra sua fazenda, carregava.354
A realização de trabalhos conjuntos rendeu aos vaqueiros a imagem de “união”.
Reunir os colegas para captura de animais era uma das práticas comunitárias corriqueiras no
Sertão de Irecê, bastando para tanto um simples convite durante uma conversa na feira, um
recado encaminhado ao vizinho ou mesmo o encontro inesperado em meio ao campo. De
acordo com Guilhermino: “inté um estranho chegava e lhe ajudava porque tava veno você
naquele sacrifício, naquele serviço e tudo mais, todo mundo era colega! No mato, todo mundo
352 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico Franca)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 353 PINTO, J. P. Os muitos tempos da memória..., p. 206. 354 Entrevista do senhor Sinobilino Francisco Nunes (Sinó)..., momento único, 26 de ago/2011.
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era colega!”355. Para Zizinho os vaqueiros eram “a mesma coisa de ser irmão!”356. Hermes
afirma:
ali era nós amigo, vaquêro, então, se tivesse uns 5 ou 6 vaquêro naquela região, ou 10, tinha vez de nós incontrar e tá todo mundo trabalhando junto, eu procurando o da minha intrega, o ôto procurando o gado da entrega dele, o ôto..., então, nós incontrasse... o que incontrasse premêro juntava tudo pra pegar aquele! [...] num tinha separação não, o que incontrasse primêro é que ia pra corda! [...] Era uma comunidade assim, o vaquêro xx trabaiava lá, nenhum cobrava dos ôtos não357.
Viana relata que os vaqueiros que trabalhavam com ele eram “tudo camarada, tudo
criado junto![...] É, tudo. Daqui desse rebalde (arredores) tudo, todo mundo se cunhece. O
longe a gente num ia por que num... 10 légua, 12 légua pra ir, ninguém... né. Daqui de perto,
dos município da gente aqui de perto”358. O fato de “ser de perto” ou de ter sido “criado
junto” inseria os indivíduos nas relações de confiança, troca de serviços e momentos
coletivos. É significativo nesse sentido a opinião de Zizinho, para quem o trabalho de
vaqueiro só faz sentido ao lado dos “colega que a gente gostava”. E: E se fosse dizer assim, seu Zizinho: ‘o sinhô vai nascer de novo!’. Toparia ser vaquêro de novo? En:(risos) Pelo ao menos umas vez, umas hora, (risos) se aparicesse todo mundo, daqueles colega que a gente gostava, a gente ajuntava todo mundo travez, quem é que num queria moço!? Eu mesmo quiria!359
O discurso da coletividade é um dos traços marcantes das narrativas dos vaqueiros do
Sertão de Irecê. Os entrevistados evocam constantemente em suas falas a presença de colegas
com os quais compartilhavam o mundo do campo. As referências a afetividade e a
fraternidade agem como elementos de demarcação das fronteiras do grupo. Nos termos de
Halbwachs a memória coletiva emerge aí como “fundamento comum”. O vaqueiro que se
lembra, se lembra do ponto de vista de um grupo, insere os demais nos espaços e ações
lembradas como forma de fundamentar suas próprias reminiscências360. Henry Rousso destaca
também nesse sentido que o passado nunca é do indivíduo somente, mas de um indivíduo em
um contexto familiar, social ou nacional361.
355 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 356 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011. 357 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 358 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 359 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 360 HALBWACHS, M. A Memória Coletiva..., p. 34. 361 AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos & abusos da história oral..., p. 95.
135
Um momento coletivo era sempre especial para demonstração de destrezas, ora por
vontade própria, ora por situações inesperadas. Juarez afirma que durante uma “pega de boi”
junto com outros colegas deu-se o seguinte fato: “quando o boi atrevessô a picada eu já
atrevessei na frente de todos os vaquêro! No saltar da vereda eu botei ele no chão! [...] quando
eles chegaro eu tava sentado em cima!”362. Sentar sobre o animal capturado foi a forma que
encontrou o vaqueiro para anunciar sua agilidade e êxito total da investida. Observemos aqui
a importância do público como testemunha da habilidade exercida. Questionemos: teria sido a
pura habilidade que permitiu Juarez se adiantar aos demais colegas? Quem eram esses
colegas? Passemos a outros exemplos. Durante a produção das narrativas, muitos vaqueiros
iniciaram suas falas relatando situações de ação nas quais tiveram suas habilidades testadas
diante de outras pessoas.
os vaquero quando via eu chegar lá dizia assim: _“O terno de côro desse home aí parece uma rôpa!” Um terno de madêra, a coisa mais linda do mundo, bem vistido, muntado numa mula preta! (...) disse: _“Vaquêro do sertão aqui num dá não... num dá (pega) nada!”, a jurema, um fechado da peste! Entremo pro campo (...), tirei o boi preto e, fui marrar, sozinho! (...) Aí quando eu cheguei (junto aos outros vaqueiros) tá ôto boi brigano, inrabano neles, lá vai, eu cheguei falei com boi, o boi partiu enriba da mula, sentei a faca nele! (...) ele (o patrão) disse: _“Esse... e esse, esse cara, esse sertanejo é dóido!” O boi fastô pra lá, eu lacei, tirei a corda, eu era bom pra laçar mermo, (...) aí o patrão incostô aí disse: _“Mas rapaz! Quer dizer que você num viu a carrêra do boi?”, Eu digo: _“Não, vi não! Vocês corrêro com esse aí, 3 home... e eu corri com um só.”, (...) _“Tá amarrado?” _“Tá!” (...) Aí disse: “Moço esse sertanejo é brabo!” _ Aí ajuntei... eles fizero a base que 8 dia nós ajuntava os 40 boi, com 3 dia eu marrei os 40 boi! Aí no ôto dia eles me dero um cavalo bom! (...) aí meu patrão disse: _“Moço! Home vaquêro igual a esse aqui no mundo, só se nascê, porque esse minino é bom!” Eu nesse tempo eu tinha 18 ano, agora, eu pegava ligêro demais moço!363
Decorre-se algum dia de 1966, Luiz Vaqueiro, então com 18 anos de idade, tem suas
habilidades testadas em meio às caatingas piauienses durante uma pega de boi, terras
estrangeiras. Diante dele, seu “patrão” e outros vaqueiros. O desafiado, no entanto, não teme,
afinal seu pai era vaqueiro e desde os 7 anos de idade Luís já lidava com gado, aos 12 já
trabalhava para um fazendeiro local. Sua habilidade, por tanto tempo gestada e melhorada, era
362 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 363 Entrevista do senhor Luís Batista de Oliveira (Luís Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.
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agora posta em dúvida pela voz de alguém: “Vaquêro do sertão aqui num dá não... num dá
(pega) nada!”. A resposta veio rápida. O vaqueiro Luiz pegou o “boi preto” e ainda enfrentou
“na faca” o boi que “inrabava” (desafiava) os demais vaqueiros. O reconhecimento ao final
eliminou qualquer dúvida sobre sua prática: “aí meu patrão disse: “Moço! Home vaquêro
igual a esse aqui no mundo, só se nascê, porque esse minino é bom!”. Aos demais presentes
restava a certeza de que sua habilidade fazia jus ao seu “terno de madêra” e a sua “mula
preta”.
Entre tantas outras, essa lembrança é especial, entre várias o vaqueiro Luiz a escolheu
para nos contar, mas, não em qualquer momento, quis que soubéssemos dela logo no início da
entrevista. Por quê? Novas questões superam a aparente linearidade da narrativa: teriam os
demais vaqueiros assumido realmente a condição única de observadores oculares? Qual o
sentido da ênfase dada ao elogio do “patrão”? Teria sido esse o único elogio recebido? Qual a
importância de um ato eficaz de destreza nas terras alheias, diante de seus iguais?
Roxinho também tem estórias para contar. Se lembra ele que na década de 1960 foi
convocado, juntamente um dos seus colegas de campo, Verneul, para capturar uma vaca
“corrida” de um criador local e que nesse momento foram ambos desacreditados pelos demais
vaqueiros presentes:
Aí tinha um (vaqueiro) lá e disse: _“Ô! Qual Agnelo (o criador), esse aí não! Cavalo magro! O que cavalo gordo num pega ele vai pegar?!” [...] Aí nós... aí eu disse: “Ó a vaca!” E eu sentei o cavalo (botou o cavalo na perseguição) e lá vai, lá vai, aí soltei o cavalo e ele (Verneul) dizia: _“Mata a vaca Nêgo!” Nessa hora ele vinha pertinho: _“Mata a vaca Nêgo!” _ “Dexa (eu) achar uma brecha!” _ Aí como daqui... a base de quase 1 quilômeto, aí incontrei uma imburana e um angico bem assim ó (cruzado em forma de X), aí a vaca passô, fez “truco!” [...]. Eu digo: _ “É aqui agora!” Aí quando eu baxei, com a perna em cima da sela (o vaquêro deitado no pescoço do cavalo) o cavalo sentiu o peso baxô! Passei! Aí o ôto aí ficô, Verneul, disse: _“É! O Nêgo morreu!” Aí levô, levô, lá adiante achei uma brecha, o cavalo meteu os peito nela ela virô! Quando ela já ia mêa cansada aí eu tive ação, aí saltei em cima! Aí nisso Verneul chegô, nós cabemo de amarrar aí dexemo no curral. Mas foi uma festa!
Ao fim da jornada a habilidade de Roxinho também lhe rendeu elogios dos que tinham
lhe desacreditado: “Mas rapaz! O Nêgo pegô a vaca mesmo! Mas rapaz! O Nêgo pegô a
137
vaca!”364. Analisemos a narrativa de forma mais detalhada. Quando da ocorrência do fato
narrado, o vaqueiro Roxinho tinha chegado ao município de São Gabriel a apenas 10 anos e
iniciava sua “profissão de gado”. O colega que o acompanhava era ninguém menos que
Verneul, o tio e iniciador de Juarez, vaqueiro experiente e de habilidades reconhecidas. Um
olhar atento para esse persongem nos demonstra a tensão e responsabilidade que recaíra sobre
os visitantes diante da ofensa dos demais vaqueiros. Verneul incentiva Roxinho à captura da
vaca como se o instigasse a um acerto de contas: “Mata a vaca Nêgo!”, diz ele. O termo
“mata” aqui não se refere a eliminar a vida do animal, para o seu emissor era importante
instigar Roxinho a um ato eficaz, ao nível da desfeita. Roxinho, em sua narrativa, tenta se
mostrar cauteloso, afirma ele ter tido o tempo pra pensar como se livraria das árvores caídas.
Ao testar a sorte, impressionou até ao velho vaqueiro Verneul que, metros a frente, já o
encontrara agarrado à vaca fujona. É novamente Juarez que nos narra outro exemplo.
[...] o boi entrô entre a casa e um tanque de cimento e eu fiquei com medo dele me jogar. O tanque de cimento num era cuberto por riba, era aberto! [...] Aí eu fiquei fastano e aí ele ( dono do boi) botô a cara assim lá na janela véa e disse: _“Ê Verneul! Você invés de trazer um vaquêro traz um ‘imbrulho de côro’! Tá com medo do boi!” Aí, o que ele falô assim eu bati a mão a faca e caminhei pra riba, quando o boi vêi eu bati a faca nele, a faca entrô, ele chega ele iscorô! [...], digo: _“Ó Seu Xxxx pode mandar buscar açoguêro no Gabriel (São Gabriel) se num querer perder o boi, q’ele daqui pra 2 hora da tarde ele morre!”365
A narrativa demonstra um vaqueiro que, embora com medo, não resistiu ao ter sua
habilidade questionada e reagiu imediatamente. Presente à cena estava ninguém menos do que
nosso conhecido amigo Verneul. Em uma clara referência de tutelamento, a ele foi dirigida a
acusação do dono do boi de que Juarez não era vaqueiro e sim, um “imbrulho de côro”. A
reclamação pôs em questão não só a habilidade do aprendiz, mas a capacidade do instrutor em
orientá-lo no mundo da vaquerama. A situação exigiu de Juarez uma medida enérgica que lhe
garantisse a segurança, o respeito para com Verneul, que comprovasse sua habilidade e
coragem e silenciasse as indagações do proprietário. Em um golpe o vaqueiro ceifou a vida do
animal.
As circunstâncias descritas estão envoltas em um contexto de desafio, adequado para
comprovação e exercício de valores como coragem, masculinidade e habilidade, e
compunham momentos especiais para a integração do cavaleiro ao grupo dos vaqueiros. A
364 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 365 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
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presença de um público que compartilhava com Luiz, Roxinho e Juarez os saberes e
afinidades do trato com o gado, especialmente dos “patrões” e “instrutores”, impôs sobre estes
critérios rígidos de avaliação, obrigando-os a executar medidas eficazes rodeadas por um
certo nível de sorte.
A partir da narrativa encontramos a lembrança ancorada em um meio, localizada em
um contexto coletivo de códigos compartilhados que situam e comprovam os fatores em
disputa. É importante observarmos como os narradores quem ser vistos, querem ser
lembrados, como define os outros, que experiências querem levar a público, como se situam
no espaço e no tempo: Luiz se lembra que tinha só 18 anos, Roxinho deixa transparecer que
romper as árvores caídas foi uma medida calculada, Juarez, ao descrever o tanque, anuncia o
perigo pelo qual passou, sacralizando seu ato. Todos eles destacam o questionamento de suas
habilidades como fator impulsionador dos seus atos e a presença das hierarquias como
elemento comprovante do fato.
Os episódios são tratados em clima de horna e em júbilo a esta os vaqueiros recebem
os elogios finais. Não menos estridente que os elogios recebidos por Luiz e Roxinho, foi o
silêncio do dono do boi ao ver seu animal agonizando diante da ação de Juarez. As formas das
narrações apontam para o “saber” como o objeto de uma disputa pacífica entre homens, em
uma arena onde hierarquias se encontram presentes. Na voz dos entrevistados os papéis
sociais quase se invertem, o criador parabeniza e admira seu vaqueiro, quase querendo ser um
deles!
O destacar desses elementos ressalta o trabalho da consciência, a construção de um
processo de visão e a produção de uma forma verdadeira de narrar (que não se confunde com
uma verdade do fato). Estamos aqui diante do escorregadio e rico espaço das possibilidades
trazidas pelas narrativas orais de que nos fala Alessandro Portelli. Como destaca o autor é a
fala, a voz, a subjetividade que nos encaminha às possibilidades narradas, elas nos permitem
alcançar o “horizonte de expectativa social dos indivíduos”, não só o que aconteceu, mas o
que queriam que acontecesse, os desejos, a teia de poder em jogo no momento das
experiências, as possibilidades potenciais que se entrelaçavam, as que podiam ser alcançadas
e os reflexos dessas leituras sobre o presente366. A subjetividade individual nos permite aqui
pensar numa subjetividade coletiva. O que pensavam os demais vaqueiros ao verem um
366 PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. In: Tempo. Rio de Janeiro. EDUFF, vol. 1, nº 2, 1996, p. 59-72.
139
“estrangeiro” exibir suas habilidades e conquistar o respeito? O que pensou Verneul ao ver
Juarez e Roxinho responderem as afrontas à altura? Sigamos...
Viana Vaqueiro teve uma de suas capturas versada em cordel. Esta foi realizada em
1970 e ganhou o seguinte enredo:
[...] No passar de um apertado O “cara preta” virou Viana tirou o cavalo O touro se acampou Esperava os companheiros Mais ninguém lhe acompanhou O vaqueiro aboiava Mas o touro acampava O novio dava cada turro E depois se amoderava Porém ninguém chegava Nos versos do aboiador Ele aboiando dizia: “Na estrada em que eu viajo Também viaja Maria Deus menino e São José Santo Antônio é o meu guia” Entonce ficou pensando Tá na hora de matar Mas eu me acho sozinho Não convém me arriscar Deixo para outra vez Quando agente te encontrar Viana afastou o cavalo E ficou pensando ali: Eu não sei quem é que teve Com Osvaldo e Valmir367 Se não fosse uma atrapalha Estava comigo aqui Assim tirou o cavalo A procura de um carreiro Quando caminhou um pouco Entrou com os vaqueiros Que disseram: atrapalhamos Por que perdemos o aceiro368 [...]
367 Provavelmente Almir, o mesmo “Almir Vaqueiro” que por nós foi entrevistado. 368 SILVA, Luis Alves da. (Romance) Cara Preta Alvaçam e o Novilho da Serra. (Cordel) 30 de agosto de 1970, 23 págs. (digitado).
140
Tendo saído com mais 7 “companheiros” em busca do “cara preta”, boi cuja valentia
já era conhecida dos vaqueiros, Viana deparou-se sozinho com o animal em plena caatinga. A
presença da reza é simbólica para pensarmos o momento de tensão em que o vaqueiro se vê
em desvantagem. Explica o velho vaqueiro:
a hora que eu dexei ele (o boi) brigano, qu’eu tomei medo de lutar que os homi num apariceu, o sol já tava pra se pô, de (desde) manhãzinha e num apariceu ninguém! Gritei dimais e esse tôro brigô o dia todo cumigo e num apariceu um vaquêro! Caia daqui pra’í, isbagaçaro, num sei o que foi que ficaro surdo e eu gritei que tava rôco!369
Sendo vaqueiros experientes, Viana não compreendeu por que teriam seus
“companheiros” se perdido no meio da caatinga. A narrativa expõe o jogo no qual se inserem
seus personagens e requer análise. O narrador apresenta uma série de argumentos que
estruturam um ambiente justificador para o fracasso ou desistência da empreitada: o sol estava
para se pôr, Viana lutara com o boi desde a manhã, estava cansado de gritar e estava só.
Contudo, para o narrador, o fator principal que justifica a fuga do animal foi a ação de uma
força superior que “atrapalhou” os vaqueiros desnorteando-os. Segundo o entrevistado “esse
povo mais véi fazia ‘mendraca’ pro cara num (pegar)... cair, levar ramada”. “Mendraca” é,
segundo o relato, uma espécie de feitiço que tinha por objetivo impedir a captura do boi.
Quanto à autoria do suposto feitiço afirma:
Daqui não, os daqui, os nosso daqui num fazia esse tipo de coisa não, que num sabe! Os home aqui trabaiava na corage que Deus deu! [...] trabaiava porque tinha vontade de trabaiar com o bicho né. Nasceu pra’quilo! Porquêra não, porquêra não370.
As justificativas do narrador protegem não somente a sua imagem dos
questionamentos, mas, também, a imagem e a integridade de seus “companheiros”. Afirmar a
existência de uma “mendraca” e condições improváveis de continuação da disputa, serviu
como estratégia para encobrir o infortúnio da busca e desigualdade numerica (8 x 1) que
compunha o momento, evitando assim as dúvidas em relação as habilidades e reconhecimento
social dos participantes. É importante notarmos que Viana Vaqueiro atrelou diretamente a
ausência dos seus companheiros à impossibilidade de capturar o boi. Vemos aqui que a
ausência do público permitiu ao vaqueiro uma maior cautela. Não foi ele obrigado, como
Roxinho, a fazer uso da sorte. Não precisou ele ariscar suas habilidades, optando assim por
encerrar a disputa da forma mais segura possível. 369 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 370 Idem, Ibidem, loc. cit.
141
O uso do discurso mágico entre os vaqueiros também foi identificado e estudado por
Joana Medrado Nascimento a partir dos cordéis, entrevistas e folcloristas que registravam
histórias de “bois misteriosos”. Afirma a autora que, atribuir um poder mágico aos animais foi
recurso usado pelos vaqueiros para não exporem socialmente situações que pusessem sua
capacidade profissional em questão.371 Pelos exemplos acima, constatamos que a exposição
pública das habilidades tinha a função de referendar ou deslegitimar a prática do vaqueiro
diante do grupo. Nesse sentido remontamos aqui ao vaqueiro como um “título honorífico” de
que nos fala Capistrano de Abreu ao lembrar do Roteiro do Maranhão a Goiás372.
No tocante ao uso de referências mágicas no trato com o gado, Washington Queiroz
coletou diversas narrativas de bois misteriosos e formas de “ideamento” entre os vaqueiros da
Bahia. “Idear” é um termo usado pelos trabalhadores para definir animais portadores de
habilidades sobrenaturais, que escapam aos seus caçadores de forma súbita. O “ideamento” é
um produto de uma ação humana sobre os animais e teria a função de dificultar ou até
questionar as habilidades dos vaqueiros, uma vez que estes teriam suas investidas frustradas.
No mesmo estudo, Queiroz registrou relatos sobre o uso de elementos materiais também
considerados mágicos entre os vaqueiros como “maçãs” e “costelinhas”. Os vaqueiros
denominam “maçãs”, um certo nódulo encontrado no organismo dos animais. As
“costelinhas” seriam pequenos pedaços de ossos em forma de costela, encontradas entre a
carne. Esses instrumentos garantiriam, segundo os vaqueiros entrevistados pelo autor, a
incorporação de novas habilidades aos seus portadores, contudo, acrescentam os
entrevistados, raros são os animais que as possuem373.
Alguns desses elementos foram identificados entre as narrativas por nós produzidas.
Guilhermino afirma que em todas as espécies de animais existem certos indivíduos que
portam em seu organismo esses nódulos. Esse entrevistado as denomina de “pedra” e ‘massa’
e afirma que a pessoa que conseguir ganha domínio sobre aquela espécie. Para Guilhermino,
“tem uma época de você possuir aquela pedra, diz o povo que só é até os 7 ano, passô de 7
ano aquela pedra num serve mais pra nada! [...] você tem que jogar pro bicho panhar de novo,
qualquer bicho do mato, quando ele panhá de novo, você tornava a matar e ia... panhar ali a
371 NASCIMENTO, J. M. “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho..., p. 139-153. 372 ABREU, C. de. Capítulos de História Colonial..., p. 73. 373 BAHIA. I. do P. A. e C. Histórias de vaqueiros..., vol. 1, p. 147 – 150, passim; vol. 2, p. 101-123.
142
mesma pedra! [...] porque tinha a ‘pedra’ e tinha a ‘massa’.[...] A massa é cabiluda e a pedra é
lisa”374.
Quanto às “costelinhas”, Samuel relata que ouviu de um vaqueiro a seguinte história: _“Uma custela (costela)! Eu tratano de um boi, achei uma custela numa manta trazêra e tirei!”. E pegô e colocô no chapéu, aí foi trabaiar campo. Disse que uma ‘custelinha’ na manta de carne! Foi trabaiar campo, diz ele que num perdia campo, [...] o trem que ele ia atrás achava na hora! Muitas vez diz que tinha vaquêro brigano com boi aí, boi valente que só o cão, ele chegava entrava no mêi, batia o chapéu inriba, boi saltava fora e aí viajava e ia imbora, mas o povo disconfiaro. Ele disse que num sabe como foi, qu’ele discuidô e um cara achô, e disse: _“Desse dia pra cá num valeu mais nada!”375
Observamos no trecho acima a relação direta entre o instrumento mágico e o sigilo,
característica essa também relatada pelos vaqueiros entrevistados por Queiroz. Zé dos
Morrinhos nos narra um caso significativo para compreensão do modo como os dizeres sobre
os poderes sobrenaturais possibilitavam ao vaqueiro ser visto com destaque pelos colegas.
Estando ele montado em um jegue certo dia e tendo encontrado o “famoso” boi Amarelo, o
qual já teria escapado de várias investidas dos vaqueiros, Zé dos Morrinhos preparou uma
armadilha com o laço e o prendeu sem necessidade de enfrentá-lo. No momento em que fora
informar ao dono do animal sobre a sua captura, deu-se o seguinte diálogo:
_“Peguei muntado no jegue!”. Ele (o dono do boi) disse: _“Não!” Eu digo: _“Foi! O boi num corre não, o boi deu pra brigar eu botei a corda na cabeça!” Eles (os vaqueiros presentes e o dono do boi) ficaro acreditano! Mas eles ficaro acreditano dizeno que era reza qu’eu fiz. Eu num contei que tinha armado o laço, eu digo: _“Ele... eu falei com ele, ele virô e eu tirei a corda, lacei, marrei no pau.” E até hoje eles acredita que foi isso mermo, mas num foi não, ele (o boi) caiu no laço! [...] Aí eles diz: _“Não, foi reza que o veão fez, o veão né gente não!”376
O entrevistado se diverte ao afirmar que seus amigos, até hoje, ainda o consideram um
conhecedor de rezas. O importante é refletirmos aqui por que o narrador optou por não
esclarecer para o público o real fato, ou seja, a construção da armadilha. Sem dúvida, o
atributo de “rezador” o referendava como grande conhecedor do campo e do gado. Zé dos
Morrinhos usou a interpretação do público sobre o fato para ganhar destaque dentro do grupo
374 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 375 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Samuel)..., momento único, 20 de outubrode 2010. 376 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012.
143
e essa estratégia, ainda hoje, divide opiniões e gera boas gargalhadas. Não podemos, todavia,
imaginar o uso do “mágico” apenas como estratégia de não exposição dos infortúnios dos
vaqueiros, uma vez que era uma dimensão realmente vivida e considerada cotidianamente,
determinadora de comportamentos e perspectivas. O caso narrado por Viana é um exemplo
disso, afirma o mesmo que só retornou ao campo para buscar o “cara preta”, após ter sido
benzido, junto com seu cavalo e os arreios, por um conhecido seu que lhe confirmou a
existência da “mendraca”.
Momentos como os exemplificados acima eram rotineiros na vida dos vaqueiros do
Sertão de Irecê. Em todos os casos o público, ou melhor a vaquerama, era sempre o alvo e o
elemento de referência para práticas e discursos. A realização de momentos coletivos ou,
como no caso de Zé dos Morrinhos, momentos coletivizados, permitia o referendamento das
ações e definia a posição do indivíduo no grupo. Não podemos confundir aqui a exposição
pública da habilidade com a competição nos termos capitalistas. Para os vaqueiros, a
exposição pública das destrezas era um fator de união que produzia destaques individuais
dentro do grupo, ao mesmo tempo em que ajudava a delimitar o grupo social em relação a
outras funções laborais do Sertão de Irecê. As descrenças das quais foram alvo Roxinho e
Verneul, terminaram com elogios e, assume o narrador, ao fim da captura “foi uma festa”.
A exposição pública não produzia vencedores e sim, “afamados”. Relata Guilhermino: cada um quer fazer milhor do que os ôto, quer disafiar o ôto, né (risos) e por aí num isquece, né. Uma hora um faz bunito, ôta hora o ôto passa por ruim ou por fraqueza daquilo que num acunteceu, os ôto tá ali fazeno farra e surrino, arriliano daquela pessoa e tudo mais [...]. Então, o cara num quiria ser mole, quiria ser bom pra puder (risos) ter fama, né.377
O título de vaqueiro “afamado” era cativado nos círculos internos dos grupos que
compartilhavam afinidades em torno da pecuária e direcionado a indivíduos considerados
como corajosos, possuidores das técnicas de trabalho com o gado e com o campo. Zé dos
Morrinhos afirma que hoje, devido a sua idade e os acidentes que já sofreu, “num é mais
vaquêro afamado cuma era”378, ainda ele destaca: a pessoa, é famoso pelo trabaio que você trabaia e o saber. [...], aí corre a nutíça!: _ “Fulano é bom vaquêro! Fulano trabaia bem!” [...], até hoje, pra laçar, moço, num tem esse home que laça do jeito d’eu! Dos que tem aí ainda”379.
377 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 378 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 1º momento, 03 de nov/2010. 379 Idem. 2º momento, 24 de jan/2012.
144
A produção da “nutíça” de que alguém é um “bom vaqueiro” era o primeiro passo pra
construção da “fama”. O discurso de Zé dos Morrinhos, transita, mesmo que
imaginariamente, por um desafio em torno do uso do laço (saber e trabalho), no qual afirma
ser o melhor. O reconhecimento social e a “fama” necessitavam, contudo, serem mantidos e
estavam diretamente ligados à honra do seu portador. Jairo nos esclarece que:
se um cabra chegar aqui e mandar você ir pegar um boi brabo, você tem que ir e trazer [...]. Porque, pra você ir hoje, corre com o boi, num pega, você vai amanhã num pega. Ai vai indo, o companhêro vai e perde a fé sua, diz: _“Não! Vou botar um aqui, fulano num trabaia! Quer trabaiar, mas ele num pega o trem pra ganhar o dinhêro!” E a luta sempre é assim.380
A não execução dos serviços solicitados punha em cheque a “fama” e a honra do
vaqueiro ou impossibilitava a sua construção. “Perder a fé” é sinônimo de que “fulano” não
sabe trabalhar campo, não tem a experiência e destreza suficiente. É nesse sentido que o
vaqueiro Luiz destaca: Vaquêro é aquele que diz assim: _“Eu faço e faço mermo! Vô buscá? Vô!”, _“Rapaz, num vêi não!”, _“Por quê?”, _“Morreu!” ou “Matei!” Era assim!381
As práticas coletivas e as exposições públicas de habilidade eram assim o suporte de
manutenção das imagens sociais dos sujeitos vaqueiros. Essa aparente disputa não impedia,
porém, que momentos coletivos de trabalho se constituíssem também em momentos de lazer.
Felizes com a captura de dois bois, sendo um deles o “cara-preta” envolvido no epísódio da
“mendraca”, Viana afirma aos seus colegas: “É de nós 4 o tôro! E o ôto aí nós vamo cumê de
água (beber) aí, São Gonçalo e dançar a noite todinha, virar corcodilo (crocodilo) aí!”382.
Retomemos aqui uma das narrativas de Luiz Vaqueiro que bem ilustra a associação entre
trabalho coletivo e lazer:
você tinha 10, 12, 15 boi pra pegar, aí reunia a vaquerama pra pegar [...] E aí a festa ia cumeçano, e a aligria [...], quando pensava que não chegava uma bibidinha por o mei, (risos) um lito de cachaça, e lá vai, nêgo tomava uma dose ali já ficava mais alegre... [...] Aí, quando era de noite, tomava o pé de um bar daquele e a farra cumia! [...] Aí, no fim da semana eu ia tirar um gado, ajuntar os ôtos mermo vaquêro e ia
380 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 381 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 382 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011.
145
tudo prun’tá eu! Aí, quando era ôto, nós ajuntava e ia... o ôto quiria pegar um gado, nós ia lá ajudava ele tamém! Num tinha negóço de, de pagar ninguém não, era um ajudano o ôto! A vaquerada unida né, era bom moço!383
A beira das aguadas eram espaços especiais para reunião dos vaqueiros e a ocorrência
de brincadeiras e “arrilias”. Relata Guilhermino que nas margens da Vereda de América
Dourada,
quando tava o bataião junto, tava aquela festa, né, zuadano e tudo mais, fazeno festa uns aos ôto, contano história! (risos) [...] tinha muito era gracista, contadô de mintira, contadô de lorota, os ôto iscutava, né (risos)... [...] uns arrilia uns aos ôto... [...] Tinha cabra bom que curria com a rês e pegava daqui pra aí e ôtos dexava ir embora, né, quando dexava ir imbora pegava metia a farra em cima.384
Muitas outras aguadas eram também palco de demonstrações das habilidades de
captura dos animais. As “zuadas” e “arrilias” eram os sinais da existência de “apresentações
públicas” entre os vaqueiros. Guilhermino afirma ainda que o momento da “ferra” poderia se
transformar em uma “farra”: “É, ‘a ferra e a farra’!(risos) Muitas hora tinha a bizerrada braba
e tudo mais, nêgo pegava de mão, pegar de todo o jeito! Ôtos, pegava e num guentava, caía,
bizêrro arrastava, relava tudo, mas todo mundo tomano cachaça, fazia isso tudo! Sem sentir
nada!”385. A realização os momentos de doma dos animais impressionou José Norberto de
Macêdo quando da sua visita às fazendas de gado do Vale do São Francisco, deixando
transparecer seu espanto e sua visão urbanocêntrica. Afirma o observador: “Tais foram seus
atos de audácia que mereceu daqueles homens (que assistiam), um a um, caloroso apêrto de
mãos. Até então, nunca tínhamos visto este gesto tão citadino ser praticado por vaqueiros”386.
As práticas de coletividade e demonstração das destrezas não se restringiam, porém,
aos espaços de trabalho. A feira era sempre um momento especial para encontrar os amigos e
se demonstrar publicamente. Chico França lembra que “na fêra, na hora que incontrava... é
difícil um vaquêro incontrar ôto moço pra num beber umas duas! (cachaça)”387. Luiz
Vaqueiro nos dá uma clara descrição do uso social desse espaço.
se incontrava um dia de fêra, era aquela reunião, [...], cada qual queria tá bem mais vistido, né, bem incorado, seu cavalo bem arriado, e XX você chegava, oiava pr’um cavalo... sua careta tá de um lado, a corda tá do ôto, a polaquinha marrada na capa
383 Entrevista Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 384 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 385 Idem, Ibidem, loc. cit. 386 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 38. 387 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010.
146
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012.
da sela... e, a vida do vaquêro é essa, quando se incontrava era aquela aligria, é como o, a merma coisa do cara hoje diz: _“Ah! Vai ter um famoso cantô, que vem pra’qui oi!” A merma coisa do vaquêro, quando dizia: _“Vaquêro fulano vai pegar o boi de fulano!” Você via a vaquerada dizer: _“Eu vô oiá!” O ôto dizia: _“Eu vô vê a carrêra!” O ôto dizia: _“Eu vô vê home pegá!” E era naquele, dento da catinga aí, pau quebrano aí, cachorro ganino, inté nego sentava em cima naquela aligria.388
A narrativa desenha: havia uma reunião de homens “bem incorado[s]” e de cavalos
“bem arriado[s]”, vestidos em peças de couro necessárias ao trabalho no campo, porém, não
estavam no campo e sim, na feira. O entrevistado Luiz associa a imagem do vaqueiro à de um
“cantor famoso” anunciando (ou reivindicando!) a sua popularidade e distinção. Nas
indumentárias, segundo ele, estava o “quilate do vaqueiro” e a reunião com os colegas trazia
notícias dos desafios que eferveciam o grupo. Não era incomum a um vaqueiro sair do seu
trabalho diretamente para os espaços públicos, ora pra convidar alguns amigos, ora pra contar
as proezas do dia. As marcas da luta nas peças de couro, o pó da terra, o suor do cavalo, eram
provas da prática no campo e instrumentos de definição do sujeito. Em meio à feira, os
vaqueiros buscavam construir seus territórios, demarcar certos espaços como próprios do
grupo. Os bares eram locais especiais, mas, uma simples árvore já servia como mecanismo
anunciador das suas presenças.
Foto 1: Amendoeiras localizadas no centro da cidade de Jussara, usadas pelos vaqueiros para amarrarem seus cavalos
388 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.
147
As amendoeiras representadas na foto acima, localizadas no centro da cidade de
Jussara, eram, até início dos anos 1990, ponto de encontro de cavaleiros nos dias de feira
livre, entre eles, vaqueiros. Aí ficavam os cavalos amarrados exibindo peças de couro ornadas
como a anunciar seus próprios donos. Dos bares emergiam sons de vaquejadas que
possibilitavam um ambiente propício para realização de aboios e toadas por parte de algum
indivíduo mais exaltado. Entre as doses de cachaça, a música, as conversas, algum “rôlo”
(troca de produtos), piadas e os constantes ir e vir de cavalos, produziam os sujeitos seus
próprios momentos de lazer, ressaltando suas presenças, instituindo e exibindo símbolos e
definindo suas identidades. Quanto ao uso do jaleco relata Guilhermino: “Usei muito! (pausa)
Aquilo eu climatei (se acostumou) o jaleco de côro no corpo e até a roupa se vestia pra cidade,
quanto mais... era com aquilo nas costa, acostumô, né (Risos, risos)”389. Samuel relembra:
“eu num dava... como diz a história, a pessoa me chamava pra ir aculá de carro: _“Vô nada, se
quiser vô a cavalo!”390. Luiz afirma que é possível conhecermos um vaqueiro até pela forma
como monta o cavalo. Tem vaquêro que sabe muntar, sabe se arrumar, sabe sair, vê o cara muntar e você inté sente pelo corpo do cara que o cara é firme inriba do animal... o vaquêro tem, ele tem que tê, sê domesticado, igualmente se domestica o bicho!391 [...] Eu mermo fui um cara que, [...] só gostava de coisa boa, minhas coisa era... onde, onde eu chegava todo mundo parava pra oiar, porque eu só andava arrumado! Terno de côro arrumado, bem muntado, bem arrumado mermo!392
Para Zé dos Morrinhos “o vaquêro que num tiver prazer numa sela nova, num cavalo
zelado! Ele num é vaquêro! É um morto! O cavalo tem que ser zelado! Banhar e ficar lumiano
pro sol!393. Quando questionado sobre as indumentárias necessárias a um vaqueiro, responde
Roxinho: “ter um cavalo bom, ter os côro, uma sela boa, ter a careta, o chucalho, um laço
bom, um facão, pra ele cortar rama se inganchar uma hora né”. A todos esses instrumentos o
entrevistado ainda acrescenta “um cachorro bom”394. Os entrevistados reivindicam como fator
definidor do “ser vaqueiro” uma dimensão estética que funciona como medidor da sua
proximidade com o gado e com os saberes do trabalho no campo. Estamos aqui diante da
instituição de um poder simbólico, nos termos propostos por Pierre Bourbieu.
389 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 390 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Samuel)..., momento único, 20 de out/2010. 391 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 392 Idem. 2º momento, 14 de nov/2010. 393 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 394 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011.
148
Segundo Bourdieu o poder simbólico é um poder que emerge da manipulação
intencional e compartilhada de símbolos com o intuito de produzir formas de fazer ver e fazer
crer. O poder simbólico possibilita a aquisição de um poder equivalente àquele que se
consegue por meio do exercício da força ou do fator econômico395. No caso dos vaqueiros, o
uso público dos espaços, especialmente da feira, a exibição de belos cavalos, de jalecos,
chapéus ou arreios novos, a demarcação de locais de encontro, a música da vaquejada, a
cachaça, as demonstrações de destreza em momentos coletivos e as farras, produziam formas
de ver e de crer nas habilidades dos sujeitos para com a “profissão de gado”. A maior ou
menor proximidade do grupo indicava a afinidade do indivíduo com as práticas e os símbolos
defendidos pelo grupo e terminava por identificá-lo com certas práticas, hábitos, lugares.
Associados à possibilidade de formação de pequenos rebanhos e outros patrimônios e
ao exercício flexivo de suas atividades laborais em meio ao campo, das quais não se excluiam
momentos de diversão ou mesmo de um sono sob as árvores, o poder simbólico que
estruturavam os vaqueiros do Sertão de Irecê lhes garantia grande prestígio social. Almir
Vaqueiro relata que:
na região aqui, onde a gente botar os pés no chão, todo mundo cunhece a gente. Por que? Por causa do home-vaquêro! Você sabe, quando o home ganha o nome de vaquêro [...] todo mundo cunhece aquele home! É que nem eu, ganhei aquele nome de ‘vaquêro’, então todo mundo me cunhece por ‘Almir Vaquêro’, até as criança.396
O narrador busca demonstrar sua popularidade recorrendo à imagem das crianças,
afirmando que até elas os conhecem como “Almir Vaqueiro”. O termo “home-vaqueiro” pode
aqui ser problematizado. Novamente o “ser vaqueiro” extrapola a relação de trabalho e se
torna a identificação do “homem”. Além de Almir, 4 outros entrevistados carregam seus
nomes sociais o termo “vaqueiro”, o que é relevante para entendermos como o mundo da
pecuária fundamentava mais que relações de trabalho, fundamentando formas de
autodefinição dos sujeitos. O caso do entrevistado Almir, é significativo nesse sentido, uma
vez que ele nunca trabalhou de forma estável para um fazendeiro ou patrão, seu “título”
provém dos conhecimentos que adquiriu no cuidado com o rebanho da família e da realização
e serviços rápidos para os criadores locais.
Retornando ao prestígio social, Zizinho narra uma situação tensa, envolvendo
vaqueiros e policiais em torno do uso da faca que muito nos esclarece:
395 BOURDIEU, P. O poder simbólico..., p. 14-15. 396 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1° momento, 11 de nov/2010.
149
Vaquêro xxxx era rêspeitado! [...], porque todo vaquêro daquela região usava [Jussara] sua faquinha assim na pernêra! Teve uma vez lá que, um pulicial chegô e barrô eu mais Almir: _“Não amigo...!” Mas, eles fôro reclamado na hora: _ “Êpa meu chefe! Aqui vaquêro tem direito!” Porque todo mundo tinha que usar sua faquinha na pernêra! Ali é a precisão de maior a gente tinha, aquela faquinha.397
Como se não bastasse as divergências quanto à utilidade do instrumento, a situação
ainda se torna mais agitada pela diferença numérica dos grupos envolvidos, pelo espaço e
pelas relações de poder em pauta. O espaço onde ocorre o fato descrito por Zizinho é a
sombra do “pé de amêndoa” às margens do Tanque Velho, um reservatório natural localizado
no centro da cidade de Jussara, antigo local de reunião dos vaqueiros que esperavam o gado
“descer pra bibida”. Do outro lado, a autoridade policial respaldada pelo manto ditatorial da
década de 1970, que, mesmo nas cidades pequenas do interior baiano, fazia suas vítimas e
impunha suas disciplinas.
Zizinho nos diz que “um pulicial chegô e barrô”, a confusão, no entanto, foi
imediatamente resolvida, bastando para tal que o policial fosse “lembrado” pelos demais
presentes sobre o tipo de indivíduo com o qual estava lidando: “Êpa meu chefe! Aqui vaquêro
tem direito!”. A autoridade militar sofreu, segundo o narrador, uma “reclamação” da
autoridade popular. O reconhecimento social do vaqueiro, que lhe garantia o uso da faca fora,
pelo menos por um momento, foi superior a autoridade do Estado.
***
O vaqueiro era apenas uma das categorias de trabalho e identidade do Sertão de Irecê.
Era também por meio do costume que eles instituíam suas relações de trabalho e formas de
percepção do mundo. O sistema de sorte nunca passou de um acordo verbal formalizado pelo
comprometimento de ambas as partes para com a tarefa a ser executada. Suas práticas nunca
estiveram dissociadas das demais formas coletivas. No campo ou roça viviam as relações
comunitárias às quais nos referimos no capítulo anterior, que amenizavam as condições de
sobrevivência em um contexto marcado pela apropriação direta da natureza. A terra, as
397 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011.
150
pequenas economias domésticas e a mão de obra familiar compuseram também para os
vaqueiros a base de sua sustentação.
O tipo de relação de trabalho que estabeleciam, a partir do sistema costumeiro de
sorte, permitia aos vaqueiros formarem pequenos rebanhos próprios e gozar de autonomia
sobre os rebanhos de terceiros, cuidando dos mesmos conjuntamente. Ao cuidarem de
rebanhos de mais de um criador e ainda sim atender solicitações de terceiros para captura de
animais, aumentavam suas chances de permanência na função e suas rendas. Por outro lado, o
controle do saber sobre o campo e sobre a lida com os animais, o tornava um trabalhador
especializado e diferenciava-o dos que apenas campeavam.
Trabalhando em meio ao campo o domínio sobre o seu tempo e trabalho era quase
absoluto, o que lhes garantia o acesso ao lazer, a prática coletiva, a construção da fama, a
presença nos espaços públicos e a ostentação de um poder simbólico que produzia formas de
se “fazer ver e fazer crer” no meio comunitário e tornavam a função almejada e respeitada por
muitos. O prestígio social do qual desfrutavam os vaqueiros no Sertão de Irecê emergia da
dinâmica das suas relações de trabalho e das formas como eles representavam essas relações e
si representavam. O conjunto desses fatores fundamentava suas representações socias. Como
no afirma Roger Chartier, as representações sociais são classificações e categorias de
percepção do real, formas de pensar, ver e ler a realidade, instituídas pelos grupos sociais. As
representações sociais, afirma ainda Chartier, não são neutras, elas estão em restrita
interrelação com as práticas, denunciam interesses, exigem comportamentos e confrontam
outras representações advindas de outros grupos sociais398.
Os vaqueiros no Sertão de Irecê possuíam uma representação social diretamente
relacionada ao domínio dos saberes do campo, a afirmação de uma especificidade laboral, a
um distanciamento das atividades agrícolas, e a valores como coragem, autonomia, lazer,
união, proteção divina, popularidade, liberdade, honra, masculinidade e disposição para o
trabalho. Esses fatores instituíam as formas com que eram vistos e delineavam suas próprias
identidades individuais e coletivas.
Articulando de diversas formas esses elementos os vaqueiros não se consideravam
meros empregados, mas “sócios” do criador, na medida em que tornavam-se donos de uma
parte da produção e do rebanho do qual cuidavam. Pelo menos para o contexto do Sertão de
Irecê, marcado pela predominância de pequenos criadores e do uso comum do campo,
398 CHARTIER, R. A História Cultural..., p. 17-28.
151
buscamos relativizar categorias como patrão e fazenda, sem, no entanto, deixarmos de criticar
a forma esteriotipada que circunda essas categorias no meio historiográfico. Como vimos,
mesmo o contratante de um serviço rápido como a captura de um animal poderia ser
denominado como um patrão, por outro lado, o termo fazenda assume um caráter genérico e
pode ser definido como um lugar onde há presença de gado, independente da sua dimensão.
Para os entrevistados esse termo tem um sentido maior para a compreensão do contexto atual,
marcado pela chegada de grandes propriedades cercadas, onde predomina as relações
assalariadas e a criação intensiva dos animais. O lugar do vaqueiro, segundo nossos relatantes,
é o campo.
Eram os vaqueiros que mais intensamente viviam as formas comuns de uso do campo.
Ele era seu espaço de trabalho e nele estavam constantemente, experimentavam por isso, com
maior freqüência os riscos, os prazeres, as relações fronteiças, o sentimento de pertencimento
e o estranhamento trazido pelo “campo forasteiro”. Era ele o fator central que lhe permitia
destaque social e condições laborais específicas. A extensão do campo e a concepção de
propriedade na qual se firmava (terra de uso comum e terras comunitariamente usadas)
disponibilizava ao vaqueiro um exercício livre do seu trabalho e dos seus saberes, distante dos
olhares dos criadores ao mesmo tempo em que cuidavam dos seus próprios rebanhos,
organizavam seus horários e formas de trabalho, desfrutavam de momentos coletivos de lazer
e descanso. O campo era a liberdade do vaqueiro sobre si mesmo. Bem nos fala Hermes:
Eu queria o campo! O campo é como eu tô dizendo, rende mais pro vaquêro e ele sempre num é muito mandado de patrão! Que ele lá (no campo onde o gado pasta) é como um gerente né, ele é quem é dono do trabalho. Se ele toma conta do gado no campo ele quem é dono de todo trabalho, o patrão num indica ele em nada, num insina como é qu’ele fazer, nada! Ele é quem resolve tudo, o vaquêro. Num é mandado por patrão não399.
Não por acaso, foram os vaqueiros os sujeitos mais atingidos quando da extinção das
terras de campo no Platô Norte Diamantino e nas áreas próximas em meados do século XX. A
partir da década de 1940 o Sertão de Irecê passou por transformações em suas bases
produtivas, relações de produção, em sua estrutura agrária e organização espacial que se
chocaram com o modo costumeiro de vida, especialmente com prática da pecuária à solta, as
formas de trabalho e as sociabilidades que a circundavam. Tais mudanças foram resultado da
sedimentação das demandas de industrialização e expansão mundial das relações capitalistas
que marcaram o pós-guerra sobre o solo brasileiro. Busquemos, pois, entender essa dinâmica 399 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010.
152
caitalista em suas diversas instâncias (regional e nacional) para então compreendermos seus
reflexos sobre o Sertão de Irecê e os vaqueiros.
153
CAPÍTULO III
Região, nação, sertão: rastros da modernização agrária capitalista no caminho da “grande empresa nacional”
Consolidando-se o projeto econômico, definiu-se, mais nitidamente, o môdelo social. (...) O retardamento da Agricultura e da infra-estrutura é assim evitado, para resguardo do crescimento industrial e a expansão do Produto Interno Bruto. Impactos deliberados se devem produzir, ora na Indústria ora na Agricultura, para que estes setores liderem o processo e levem o sistema a garantir infra-estrutura conveniente. O planejamento é o instrumento que permite evitar capacidade ociosa nos setores de infra-estrutura e redução da eficiência e rentabilidade nos setores diretamente produtivos. (...) 5) Desenvolvimento da emprêsa agrícola, para criar agricultura organizada à base de métodos modernos de produção e comercialização.
(I Plano Nacional de Desenvolvimento 1972/1974)
Debates sobre o agrário brasileiro e a reversão do Nordeste rural como modelo para o planejamento nacional
A compreensão das alterações ocorridas no modo de vida dos vaqueiros do Sertão de
Irecê e do processo que ocasionou a extinção das áreas de campo, a partir de meados do
século XX, requer o entendimento das relações de poder e das mudanças agrárias que se
desenvolviam em nível nacional e regional nesse período. Na interface dessas instâncias, as
relações agrárias brasileiras foram abordadas por intelectuais, movimentos populares e
instituições ora como um problema a ser resolvido, ora como um arranjo próprio e funcional
do capitalismo. O estudo desses conflitos revela não só a existência de diferentes projetos para
o meio rural e a nação brasileira, como também deixa transparecer as estratégias de
sufocamento desses debates como forma de construção de um modelo político-econômico
capitalista hegemônico que afirmava a necessidade de transformar o Brasil em uma moderna
“empresa nacional” capitalista.
Embora já fosse alvo de intensas críticas, a tese que afirmava a existência de um
“feudalismo” ou “traços feudais” na economia agrária nacional, mantida pelo Partido
154
Comunista do Brasil (PCB) e seus intelectuais, ainda encontrava defensores em meados do
século XX, a exemplo de Alberto Passos Guimarães (Quatro Séculos de Latifúndio- 1963) e
Nelson Wernek Sodré (Formação Histórica do Brasil - 1962). Nesse mesmo período, seu
principal opositor, Caio Prado Júnior, sistematizou suas ideias e críticas à tese pecebista,
esboçadas inicialmente no início da década de 1940, reforçando a afirmação sobre a
existência de uma gênese capitalista da formação social e econômica brasileira que se
explicaria pelo sentido mercantil original que moveu a empresa colonial400.
A partir de textos como Contribuição para Análise da Questão Agrária no Brasil
(1960), Nova Contribuição à Questão Agrária no Brasil (1962) e A Revolução Brasileira
(1966), Caio Prado uniu a defesa da gênese capitalista a debates estritamente sócio-políticos.
Nesse caminho, o autor analisou a manutenção histórica da grande exploração rural,
afirmando que a sua permanência como produtora de gêneros para o mercado externo,
condicionava o acesso dos trabalhadores à terra e explicava as formas precárias de
sobrevivência das massas rurais. Esse autor ainda acentuou a necessidade primária do
rompimento com o monopólio fundiário a partir da sua fragmentação física e as diferenças
entre a elevação do nível tecnológico do setor rural e a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores. As proposições pradianas tornaram-se hegemônicas entre os intelectuais do
período e marcaram o declínio definitivo das ideias pecebistas no pensamento social
brasileiro.
Ainda sob uma perspectiva marxista, e também se apropriando da leitura sócio-política
sobre o agrário brasileiro, Inácio Rangel enfocou em Questão Agrária Brasileira (1961) a
importância da expansão das atividades secundárias e terciárias do setor rural e afirmou a
necessidade de reorganização da estrutura fundiária, de forma que permitisse o aumento do
número de famílias nos espaços agrários, o equilíbrio da oferta de alimentos e elevasse o nível
de vida dos trabalhadores. Esse mesmo autor ainda destacou em seu estudo a importância do
mercado externo e da demanda de mão-de-obra urbana como forma de absorver a produção e
a população rural excedente401.
No meio popular o período entre 1950 e 1960 comportou movimentos como as Ligas
Camponesas, que integrou o debate nacional por meio da movimentação das massas rurais em 400 Exposta em inicialmente em PRADO JR, Caio. Formação Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961, publicado pela primeira vez em 1942. 401 DELGADO, Guilherme C. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra: um estudo da reflexão agrária. In: Estudos Avançados, São Paulo, SP, v. 15, n. 43, set/dez 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v15n43/v15n43a13.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011, p.159.
155
torno do lema “Reforma Agrária na lei ou na marra”, produzindo assim reivindicações e
concepções próprias sobre o sentido do espaço agrário a partir da ação popular (não se
confundindo com os grupos intelectuais). Por outro lado, as alas progressistas da Igreja
Católica ainda “disputaram” com o PCB as formas de organização e luta dos trabalhadores
rurais em diversas partes do País, buscando produzir uma funcionalidade para à “Doutrina
Social da Igreja”402.
Em meio a esse debate intelectual e ideológico -“feudalismo-capitalismo”- acalorado e
a ação dos grupos populares, a CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe - e os intelectuais a ela ligados, cujo nome mais expressivo é Celso Furtado, afirmou
uma nova perspectiva sobre o espaço agrário brasileiro, mais voltada para as possibilidades e
necessidades do seu desenvolvimento tecnológico do que para a polêmica em torno da
natureza das suas relações e da necessidade imediata de uma reforma agrária. Essa
perspectiva resultou da adequação das leituras sobre as disparidades econômicas entre as
diferentes áreas do mundo no pós-guerra, ao contexto dos países subdesenvolvidos, como
forma de entender a sua posição na divisão internacional do trabalho e sua forma interna de
desenvolvimento. A partir dessa adequação a CEPAL fundamentou a tese que afirmava a
existência de uma forma desigual de desenvolvimento - uma “dualidade conjuntural” - nos
espaços dos países mais pobres do globo, composta pela presença de um “centro” econômico
desenvolvido e de uma periferia “atrasada” que limitava o dinamismo do primeiro.
Nesse sentido a industrialização foi defendida pela CEPAL como ferramenta corretiva
das disparidades espaciais, produtivas, sociais, políticas e econômicas dos países
subdesenvolvidos, cabendo ao Estado o papel especial na produção de suas condições403.
Essas proposições expandiram o debate em torno do desenvolvimento do País e das suas
condições agrárias, do meio político-ideológico para as esferas econômico-políticas e
administrativas nacionais, sendo aí predominantes até finais da década de 1960. A partir das
idéias cepalinas os Governos Brasileiros afirmaram a necessidade de uma reorganização
sócio-espacial do Brasil, baseada no incentivo à industrialização, na implantação de novas
tecnologias e no incentivo à monetarização das relações de produção, como forma de eliminar 402 DELGADO G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p.160. 403 A obra síntese das ideias furtadianas sobre o desenvolvimento econômico do Brasil é Formação Econômica do Brasil, publicado em 1959, editada e reeditada diversas vezes e traduzida para várias línguas estrangeiras. É hoje considerada um clássico da nossa História Econômica. Ver síntese das ideias cepalinas, das teses estrangeiras que as influenciaram e da perspectiva de “revolução pelos efeitos do desenvolvimento” de Furtado em CASTRO, Iná Elias de. O mito da necessidade: discurso e prática do regionalismo nordestino. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1992, p. 61-62.
156
os setores “atrasados” que bloqueavam o desenvolvimento e dinamizar os “centros” urbanos.
A experiência mais acabada dessas iniciativas deu-se sobre o Nordeste rural, o ponto crítico
do “arcaísmo” produtivo brasileiro segundo a CEPAL, e serviu de base na década seguinte
para a fundamentação de uma política de modernização nacional das relações agrárias.
As ideias cepalinas recaíram sobre o Nordeste a partir da criação, na década de 1950,
de novas instituições públicas voltadas diretamente para as dinâmicas econômicas, reforçando
uma tendência já apontada desde o decênio anterior. Sob o argumento do “desenvolvimento
do Nordeste” foram implantadas a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf)404 em
1945 e a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF)405 em 1948, ambas voltadas para o
controle e estudos dos recursos hídricos, a partir do aproveitamento do potencial hidroelétrico
do rio São Francisco e da expansão da irrigação como nova tecnologia; o Banco do Nordeste
do Brasil (BNB)406, em julho de 1952, instituição financeira diretamente ligada ao
investimento e ao desenvolvimento econômico e a Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE)407, criada em 1959, autarquia símbolo dessas novas políticas,
responsável por articular os demais órgãos (antigos e novos) e desenvolver medidas que
diminuíssem as disparidades sócio-econômicas do Nordeste em relação às outras áreas do
Brasil.
De acordo com Iná Elias de Castro, os estudos que tomaram como tema a “questão
Nordeste” até a década de 1940 se destacaram principalmente pela abordagem da seca como
um problema “natural”, do fenômeno dos retirantes, da violência, do coronelismo e do açúcar
nas áreas úmidas. Até esse momento, o Nordeste, tal qual o conhecemos, ainda não existia,
falava-se apenas das genéricas “Províncias do Norte” e os discursos enfocavam os problemas
aí vivenciados como pendências nacionais.408 Essa primeira linha discursiva pode ser
exemplificada a partir das obras Nordeste, de Gilberto Freyre, e O outro Nordeste, de Djacir
Menezes, ambos publicados em 1937. Enquanto o primeiro “inventou” o Nordeste canavieiro
como raiz da cultura nacional, espaço doce e referenciado no passado e no “massapé
404 Criada pelo Decreto-Lei nº 8.031, de 3 de outubro de 1945. 405 Instituída pela lei 541/48, de 15 de dezembro de 1948. Foi substituída pela Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), a partir do decreto-lei 292/67. Esta, por sua vez, deu lugar a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF) via lei 6.088/74. 406 Criado pela Lei Federal nº 1.649, de 19 de julho de 1952. 407 Criada pela Lei Federal nº 3.692, de 15 de dezembro de 1959. 408 CASTRO. I. E. de. O mito da necessidade..., p.59-60.
157
acomodatício”409, o segundo focou a etnogênese da sociedade livre e pastoril que se
desenvolvia nas caatingas entre uma agricultura irregular e uma “aristocracia feudalóide”,
com o intuito de descortinar as causas do cangaceirismo e do fanatismo410.
No plano político e governamental do Nordeste, o período que se estende até 1950 foi
marcado por ações de caráter institucional atomizado, voltado para o combate à seca por meio
de uma política hidráulica. Esta ação foi representada especialmente pelo Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS)411 e efetivada a partir da abertura de poços,
açudagem, criação de rodovias, irrigação e instalação de rede elétrica412. De forma geral, essas
ações reduziram-se a iniciativas isoladas de caráter imediato contra as estiagens, tanto devido
a ausência de articulação entre os órgãos responsáveis e a separação espacial de suas áreas de
atuação, quanto pelas influências das elites locais e regionais sobre os órgãos, as quais que se
beneficiaram com grande parte dos recursos e obras, acirrando ainda mais as relações de
dominação e dependência.
A atuação de órgãos como o BNB, a Chesf e a SUDENE sintetizou uma nova proposta
econômica para o Nordeste que se intensificou nas décadas seguintes. Baseada em novos
estudos de cunho técnico e científico essas instituições objetivaram romper a abordagem
discursiva espacial da determinística da seca e apontaram para o potencial tecnológico e
produtivo do Nordeste, ressaltando ainda a necessidade de medidas sistemáticas e amplas que
ultrapassassem a política hídrica. Nesse sentido, o Nordeste passou, em meados do século
XX, a ser definido nas instâncias governamentais como um recanto nacional
conjunturalmente condicionado pelo baixo nível de suas forças produtivas, sobre o qual
deveriam ser aplicadas novas técnicas e novas políticas que modificassem suas estruturas
409 MARTINS, André Luiz de Miranda. “Visões da insuficiência”: o nordeste e o desenvolvimento regional no pensamento social brasileiro. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (Ieb). São Paulo: USP. nº 52, set/mar 2011, p. 76. 410 MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste: ensaio sobre a evolução social e política do Nordeste da “civilização do couro” e suas implicações históricas nos problemas gerais. 3ª Ed. Fortaleza: UFC. Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 1995. 411 A instituição fora criada em 1909 pelo decreto 7.619 com o nome de IOCS – Inspetoria de Obras Contra as Secas. Em 1919 passou a se chamar IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas pelo decreto 13.687, somente em 1945 recebe o nome de DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Decreto-Lei 8.846), tornando-se uma autarquia federal em 1963 (lei 4.229). 412 Em 1959 já existiam no Polígono das Secas, 190 açudes públicos e 470 particulares, totalizando uma capacidade de 7,6 bilhões de metros cúbicos. 53 novos açudes públicos e 152 particulares estavam em construção, 3.893 poços estavam aptos para uso e 12 mil quilômetros de estradas já haviam sido abertas. Ver: SAMPAIO, Yony; FERREIRA IRMÃO, José; GOMES, Gustavo Maia. Política Agrícola no Nordeste. Brasília: BINAGRI, 1979, (Estudos sobre o desenvolvimento agrícola, 11) p. 36-37.
158
econômicas e as dinamizassem no ritmo das relações de mercado e do crescimento urbano e
industrial que se expandia pelo País413.
Uma das maiores contribuições ao desenvolvimento econômico do Nordeste entre os
anos de 1950 e 1960, partiu do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
(GTDN), o qual, influenciado diretamente pelas ideias de Celso Furtado, publicou em 1959 o
relatório intitulado Uma política de desenvolvimento para o Nordeste, apontando para a
necessidade da atuação governamental em três direções, sendo a primeira delas, a construção
da autonomia industrial. Nesse ponto o texto argumenta que “se para o Centro-Sul do Brasil a
industrialização é uma forma racional de abrir o caminho ao desenvolvimento, para o
Nordeste ela é, em certa medida, a única forma de abrir esse caminho”414.
A indústria, contudo, destaca ainda o relatório, não conseguiria sobreviver sozinha,
cabendo assim à agricultura gerar emprego, diminuir o preço dos alimentos e o custo da mão-
de-obra, especialmente por meio da política de irrigação nas áreas secas. Nesse sentido, o
GTDN afirma como segunda estratégia de desenvolvimento para o Nordeste, elevar a
produtividade da agricultura da faixa úmida e tornar resistente às secas a agricultura do semi-
árido, pois, “o ponto mais fraco das indústrias do Nordeste reside na própria agricultura da
região”415.
Por fim, o grupo de trabalho ressaltou a necessidade de deslocar parte da população do
semi-árido para a faixa úmida maranhense de forma controlada, evitando a escassez de mão-
de-obra nas áreas emissoras e expandindo sobre as áreas recém-ocupadas um setor agrícola
formado por propriedades de médio porte, voltado para o mercado e a oferta de alimentos nos
centros urbanos. Em síntese, o relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho para o
Desenvolvimento do Nordeste parte das críticas às ações hidráulicas do Estado para propor
ações interligadas de grandes dimensões, onde a elevação da produtividade agrícola facilitaria
a consolidação dos setores industriais nordestinos sem, todavia, questionar a estrutura
fundiária.
Mantendo os temas centrais ressaltados pelo GTDN, a SUDENE lançou entre os anos
de 1961 e 1972 quatro Planos Diretores (PD’s). O I Plano Diretor (1961-1963) afirma que “o
atraso relativo da economia nordestina vem sendo reconhecido e proclamado como um dos 413 CASTRO. I. E. de. O mito da necessidade..., p.60-63. Como reflexo da emergência desses novos estudos foi criado, juntamente com o Banco do Nordeste, o Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene), ver: MARTINS, André Luiz de Miranda. “Visões da insuficiência”..., p. 83. 414 GTDN. Uma política de desenvolvimento para o Nordeste. Rio de Janeiro, 1959, p. 52. 415 Idem, Ibidem, p. 61.
159
mais graves problemas a (se) enfrentar nesta quadra do desenvolvimento nacional”. Seu
objetivo é “apresentar um conjunto orgânico de diretrizes de política econômica, que possam
servir de base a um esforço progressivo de ordenação dos investimentos do Govêrno Federal
no Nordeste”, afirmando ainda o Poder Público como agente central “no processo de
formação de capital, cabendo-lhe a liderança do desenvolvimento econômico regional”416. O
documento em destaque diagnostica que no Nordeste existiam duas economias dispares
uma agricultura de cunho predominantemente capitalista, nas zonas úmidas (Mata de Pernambuco, Alagoas e Paraíba, Recôncavo e Sul da Bahia) e um complexo de criação pecuária, produção de xerófilas e culturas de subsistência na zona semi-árida. Na primeira, convergem produtividade relativamente alta e elevada concentração de renda, ao passo que, na segunda, vigora um regime de produtividade inferior, sendo a renda, no entanto, menos concentrada417.
Ao contrário da zona semi-árida, as zonas úmidas, às quais se refere o texto, áreas de
tradicional produção de cana-de-açúcar e de cacau, embora não dispusessem de políticas
agrárias sistemáticas e articuladas, eram alvo da maior parte das ações e recursos do Estado
nos setores fiscais e financeiros. Nessas áreas o Estado agiu reduzindo tarifas, possibilitando
medidas aduaneiras, disponibilizando empréstimos e formando órgãos, institutos e comissões
voltados para a execução de políticas regionais específicas por produtos418.
O I PD foi organizado em torno dos seguintes eixos temáticos: a) “Criação de uma
infra-estrutura econômica”, especialmente de transportes e energia; b) “Aproveitamento
racional dos recursos de água”, c) “Reestruturação da economia agrícola”, d) “Política de
industrialização”; e) “Racionalização do abastecimento”; f) “Aproveitamento dos recursos
minerais” e g) “Recursos de mão-de-obra e sua redistribuição regional”, na qual se incluía
uma “Política de Colonização”. A essas linhas de ação uniram-se iniciativas em torno da
saúde pública e da educação de base.
O II Plano Diretor (1963-1965) revisou e expandiu as temáticas e propostas
apresentadas na edição anterior, ressaltando a necessidade de investimentos na qualificação de
mão-de-obra, saneamento e habitações populares. O III Plano Diretor (1966-1968),
reforçando ainda as temáticas já apresentadas nas duas primeiras edições, emerge sobre a
certeza de que “o Nordeste está acordado”, e almeja “diminuir a desigualdade de renda entre o 416 SUDENE. I Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1961/1963). Recife: Div. Documentação, 1966a. Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/site/extra.php?idioma=ptbr&cod=167> Acesso em: 06 de jun/2011, p. 11-18 (grifo nosso). 417 Idem, Ibidem, p. 118 (grifo nosso). 418 A exemplo da COMDECAR – Comissão de Defesa da Produção de Açúcar –, que passou a ser chamada, a partir de 1933, de IAA – Instituto do Açúcar e do Alcóol.
160
homem do Polígono e o brasileiro do Centro-Sul”419. Seu foco é a elevação dos padrões de
vida da população e a valorização da mão-de-obra, para tanto, reveste-se de um discurso
social que reivindica das comunidades o papel ativo nos processos de desenvolvimento. Por
fim, o IV Plano Diretor (1969/1973), cuja vigência foi estendida para cinco anos, garante a
“continuidade do processo” de desenvolvimento e reconhece a existência de algumas
“distorções” nas ações até então aplicadas sem, no entanto, propor soluções efetivamente
novas.
No que se refere às distorções apresentadas pelo desenvolvimento, o IV Plano demonstra uma tríplice preocupação: aumentar o conteúdo social do processo de desenvolvimento através de uma mais justa distribuição de renda (...); atenuar o desnível de aumento de produtividade entre os setores agrícola e industrial, sobretudo através da implantação de 100 mil hectares de terras irrigadas; e finalmente, uma melhor distribuição entre os Estados nordestinos dos diversos incentivos econômicos administrados pela SUDENE420
As propostas cepalinas encarnadas na SUDENE não deixaram de ter opositores.
Segundo Guilherme Delgado, ainda no decorrer da década de 1960, na Universidade de São
Paulo (USP), os economistas liderados por Delfim Neto, buscaram descaracterizar o debate
sobre a questão agrária e a “inelasticidade do setor agrícola” brasileiro, afirmando a tese de
que a estrutura produtiva então vigente responderia “funcionalmente” à pressão crescente da
demanda por alimentos, sem que fossem necessárias mudanças significativas em suas bases.
Ao mesmo tempo em que desviaram-se da polêmica em torno do “agrário arcaico” a ser
superado pelo investimento e tecnologia, Delfim Neto e seus seguidores desconsideraram
também o peso social da estrutura fundiária sobre relações de trabalho no meio rural, tal qual
emergiam das ideias pradianas421.
No final da década de 1960, diversas iniciativas da SUDENE já denunciavam a
existência disparidades entre as metas propostas e os objetivos alcançados, especialmente os
direcionados à modernização do Nordeste rural, intensificando assim ainda mais as críticas.
Administrativamente, a atuação da SUDENE e de seus planos diretores nunca resultou em
uma ação coesa. Além da recorrência das temáticas apontadas pelo GTDN (ainda que sobre
outra roupagem) e das oscilações constantes do volume de recursos disponibilizados, a 419 SUDENE. III Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1966/1968). Recife: Div. Documentação, 1966. Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/site/extra.php?idioma=ptbr&cod=167> Acesso em: 06 de jun/2011, apresentação, p. 7-8. 420 SUDENE. IV Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1969/1973). Recife: Div. Documentação, 1968. Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/site/extra.php?idioma=ptbr&cod=167> Acesso em: 06 de jun/2011, p. 10 (grifo nosso). 421 DELGADO, G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p.161.
161
SUDENE nunca exercera de fato, o controle sobre os diversos órgãos governamentais
envolvidos no processo (BNB, DNOCS, INCRA, etc.), por outro lado, a ocorrência de
divergências entre as ações planejadas para o nível “regional” e as ações estabelecidas em
nível nacional, puseram em questão o papel da instituição422.
O sociólogo Francisco de Oliveira, resgatando a partir de uma nova abordagem o
debate em torno da funcionalidade dos arranjos espaciais no desenvolvimento econômico do
Brasil, iniciado pela CEPAL, afirmou que a “dualidade” (centro moderno e periferia atrasada)
da economia brasileira, destacada por esta instituição e encarnada pelos governos como um
problema conjuntural a ser resolvido, não se tratava de uma anomalia, mas, de uma relação
“desigual e combinada” de apropriação dos espaços e das relações de produção no Brasil,
própria e necessária ao modelo de capitalismo adotado pelas elites. Para o autor, a relação
“desenvolvido-subdesenvolvido” não é, pois, um problema a ser solucionado pela alocação
eficaz e eficiente de recursos sobre os espaços “atrasados”, mas, uma dinâmica própria do
capitalismo que produzia espaços de “extração” e espaços de “acumulação”, tanto na relação
inter-países quanto nas relações internas de cada país423.
As disparidades entre metas e resultados e as críticas das quais foi alvo, todavia, não
impediram que a SUDENE se constituísse em um eficaz e eficiente projeto político para o
capital, pelo contrário, a primeira condição justifica a segunda. Como nos afirma Iná de
Castro, esse órgão, ao delimitar um espaço de ação, findou por dar visibilidade ao Nordeste
sem romper ou inovar sua realidade econômica, especialmente a agrária, já que suas atuações
reacenderam a influência das oligarquias açucareira, algodoeira e pecuária e mantiveram as
estruturas vigentes.424 Segundo Francisco de Oliveira, a SUDENE exerceu o papel de “correia
transportadora” da hegemonia burguesa do Centro-Sul para o Nordeste ao por em ação uma
nova estratégia governamental: o padrão planejado regional de condução e orientação das
atividades econômicas. Essa técnica visou amenizar a disparidade econômica entre essas duas
áreas do País por meio do estabelecimento do Estado como o agente produtor das novas
condições produtivas e controlar a efervescência social do Nordeste, marcado pela luta das
422 SAMPAIO Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste..., p. 48. 423 OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica a razão dualista. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1987. 424 CASTRO, I. E. de. O mito da necessidade..., p.62-63.
162
Ligas Camponesas, do movimento de alfabetização pelo método Paulo Freire e da ação de
alguns setores da Igreja Católica em prol da reforma agrária.425
Como nos explica ainda esse autor, enquanto “forma técnica de divisão do trabalho”, o
planejamento reforçou o controle do trabalho improdutivo sobre o produtivo, radicalizou a
expropriação e a separação entre trabalhadores e meios de produção, impôs novos ritmos às
relações de produção, gerou infra-estruturas e regras, agências e sistemas, calculou resultados
e distribuiu créditos. Essas medidas garantiram a atualização dos mecanismos geradores da
mais-valia, elevando suas taxas por meio da difusão do capital como relação social
predominante, e articulou os setores econômicos nordestinos às engrenagens de reprodução
ampliada do próprio capital que se expandiam em nível nacional. Nesse sentido, afirma
Oliveira que o planejamento permitiu que às elites modernizassem os setores produtivos,
mantendo a ordem, ampliando os lucros, suprimindo as expectativas populares e integrando o
Nordeste ao processo estrutural de expansão do capital no Brasil426.
Em nível administrativo o planejamento consistiu em uma racionalização das ações e
dos recursos o Estado a partir do estabelecimento de metas, do acompanhamento de índices e
taxas, da delimitação de áreas prioritárias de investimento e da ação coordenada de
instituições públicas e privadas. Em um dos relatórios sobre o desenvolvimento econômico na
Bahia, a Fundação de Planejamento (uma coincidência vocabular?!) do Governo Estadual,
afirma em finais dos anos 1960 que o “progresso” do litoral era visível no grande número de
indústrias, enquanto no interior os habitantes iniciavam a quebra de “velhos padrões” “na
ânsia de acompanhar o ritmo de uma nova civilização”427. A diminuição dos desníveis
econômicos ainda existentes na Bahia, completa o documento, só poderia ser efetivada
“através de rígida racionalização dos passos a serem empreendidos pelos setores público e
privado. A resposta a isso: planejamento.”428.
Ainda segundo Francisco de Oliveira, a SUDENE, ao implantar suas políticas
planejadas sobre o semi-árido “algodoeiro-pecuário”, inclusive o norte de Minas Gerais,
425 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 138-139, 144, 163, 175, 236-263. Outros autores utilizam o termo “planejamento” como sinônimo de racionalização administrativa ver: SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G, M. Política Agrícola no Nordeste... 1979, passim. 426 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 129, 198-275. 427 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Estado da Bahia: micro-regiões programa. Salvador: CPE, 1969, p. 1. 428 Idem, Ibidem, loc. cit.
163
redefiniu o Nordeste como uma região econômica429. A região, de acordo com o autor, é um
espaço especial de produção do capital dentro do modo de produção capitalista, uma fração do
espaço apropriado pelo capital, onde o político e o econômico incorporam uma de suas formas
(comercial, industrial, financeiro) subordinando as demais, submetendo e coordenando as
formas de geração de valor e as relações de produção (ou seja, as próprias relações sociais),
mantendo e direcionando o movimento interno de reprodução acumulada do próprio capital e
interligando a fração espacial à escalas nacionais e internacionais.
Para Oliveira, a ação do capital sobre a dimensão sócio-espacial tende sempre a
produzir uma homogeneização interna das dinâmicas de produção, em outras palavras, o
capital e seus mecanismos de reprodução acumulada se elevam como referências sócio-
espaciais ao redor dos quais gravitam e se definem as demais dinâmicas. O espaço
produtivamente homogeneizado marca as fronteiras da região econômica. A região, ainda
segundo esse autor, enquanto espaço do capital, incorpora uma estrutura de classes peculiar às
formas que o processo de acumulação assume em um dado lugar, estruturada de acordo com o
nível de proximidade dos grupos sociais em relação aos fatores determinantes desse próprio
processo e se articula complementarmente com outras regiões pelo seu papel funcional na
divisão regional, nacional e internacional do trabalho430.
A modernização conservadora: a face agrária nacional do capital planejado
O debate em torno do agrário brasileiro, latentes no meio social, intelectual e
institucional de 1950 e 1960, foi silenciado pela emergência do golpe militar e o
estabelecimento da censura. Esse silenciamento abriu espaço para estruturação de um modelo
político econômico conservador por parte dos Governos Brasileiros, baseado na
429 Segundo Oliveira, o Nordeste já fora espaço de outras “regiões” desde o período colonial como o “Nordeste do açúcar” e o “nordeste algodoeiro-pecuário”, este, “intocado praticamente até a década de 1950”. OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 153, 161. 430 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 145-152. Oliveira defende a ideia de que a “região” “tende a desaparecer” à medida que o capital se consolida sobre o sócio-espacial macro homogeneizando-o e adquirindo formas “fundidas” (capital industrial – capital financeiro [fusão entre capital bancário e capital industrial] – etapa monopolista do capital [fusão entre Estado e capital]), afirma, contudo, que essa tendência “quase nunca” se materializa de forma completa devido a própria natureza “desigual e combinada” que rege o processo de reprodução do capital. Sobre as diversas conceituações de “região” ver: FONSECA, Antonio Ângelo Martins da. Em torno do conceito de região. In: Sitientibus. Feira de Santana: UEFS Editora, nº 21, jul/dez 1999, p. 89-100; Sobre “região” como “espaço vivido” ver: CASTRO, I. E. O mito da necessidade..., p. 29-34; Sobre “região” como produto da representação social ver: ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª Ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009.
164
sistematização e dilatação das ações de desenvolvimento e na elevação do modelo econômico
planejado adotado no Nordeste à condição de modelo econômico nacional. No final da década
de 1960 outras superintendências baseadas na SUDENE foram criadas, a saber: SUDAM -
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Lei 5.173/66); SUDECO -
Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste (Lei nº 5.365/67); SUFRAMA
- Superintendência da Zona Franca de Manaus (Decreto-lei nº 288/67) e SUDESUL -
Superintendência do Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste (Decreto-lei nº 301/67).
Paralelamente à estruturação desses órgãos, o então Ministro do Interior, Afonso
Augusto de Albuquerque Lima, quando da promulgação do IV Plano Diretor da SUDENE
(1969-1973), afirmou:
Os resultados do planejamento regional no Nordeste credenciam o Ministério do Interior na execução de sua estratégia de integração levando-o a estender às macro-regiões do Norte, Centro-Oeste e Sul, a implantação de políticas regionais de desenvolvimento. Com base na criação de um processo auto-sustentável de desenvolvimento em cada grande região, apoiado nas características de diferenciação econômica que lhe são inerentes, e na inserção desse processo numa linha de integração econômica, visando a formação de um mercado integrado, o Ministério do Interior conta em atender às exigências de tôdas as áreas problemas, sejam elas o preenchimento de claros populacionais, a adaptação do homem ao meio ou a dinamização de setôres capazes de impulsiona-las.431
Essa dilatação do modelo de intervenção e desenvolvimento econômico
experimentado no Nordeste, alcançou seu auge no dia 4 de novembro de 1971, em Brasília. O
texto oficial em exposição nesse momento destaca: “A revolução foi feita para construir”432.
Nas páginas que antecedem a afirmativa lê-se: “LEI Nº 5727/71 Dispõe sobre o Primeiro
Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para o período de 1972 a 1974”433. A
promulgação do I Plano Nacional de Desenvolvimento fez ressoar nos quatro cantos do País
as novas “diretrizes e prioridades” para a política econômica brasileira anunciando, a partir
delas, a chegada de um novo tempo: o tempo do desenvolvimento, da integração econômica e
sócio-espacial e do progresso. Ao fim do texto, assina (paradoxalmente?) sob o título de
Presidente da República, um dos protagonistas dos momentos mais complexos da história
brasileira: Emílio G. Médici.
431 SUDENE IV Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste... 1968, p. 6. 432 BRASIL. Presidência da República. I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), 1972/74. [s.l.:s.n.], 1971, p. 13. 433 BRASIL. Lei nº 5.727, de 4 de novembro de 1971. Dispõe sôbre Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para o período de 1972 a 1974. Parte complementar de BRASIL. P. da R.. I Plano Nacional de Desenvolvimento...
165
O I PND elevou a política de planejamento ao nível nacional e o definiu como um
“instrumento que permite evitar a capacidade ociosa nos setores de infra-estrutura e a redução
da eficiência e rentabilidade nos setores diretamente produtivos”434 do País. Entre os objetivos
do documento lê-se:
criar mercado interno, capaz de manter crescimento acelerado e auto-sustentável, e, do ponto de vista da produção, a permitir a progressiva descentralização econômica. Isso se fará pelo estabelecimento de pólos regionais no Sul e no Nordeste, de sentido integrado agro-industrial, assim como no Planalto Central e na Amazônia, notadamente agrícola-mineral, complementando-se dessa forma o grande pólo do núcleo São Paulo-Rio-Belo Horizonte435.
A citação descortina a estratégia político-econômica oficial baseada na composição de
uma malha econômica nacional que possibilitasse a transferência de grandes somas de riqueza
para o núcleo São Paulo - Rio - Belo Horizonte, a partir da “progressiva descentralização
econômica” e da criação de pólos interligados de alta produtividade – ou regiões econômicas -
espalhados pelas diferentes áreas do País. Em suma, os Governos Brasileiros objetivaram a
partir do I PND, descentralizar a economia para centralizar o poder sobre a mesma no “grande
pólo”.
No tocante à dimensão agrária nacional, esse modelo político conservador já se
anunciava desde 1967, quando da ascensão de Delfim Neto ao cargo de Ministro da Fazenda.
Afirmando, como vimos, a tese de que a estrutura agrária brasileira responderia
funcionalmente à demanda crescente de alimentos sem a necessidade de alterações
significativas, Delfim Neto oficializou uma “modernização sem reforma”, na qual buscou
ofuscar as questões sociais e fundiárias e expandir a indústria por meio da elevação da
produção agrícola436. Para tanto, expandiu as relações capitalistas no meio rural, por meio do
uso extensivo do crédito rural e da adoção irrestrita dos pacotes tecnológicos da Revolução
Verde. Mais tarde, quando da promulgação do I PND, essas iniciativas se intensificaram,
agora, sob a égide do planejamento. Esse processo ficou mais conhecido no meio intelectual
pelo conceito de modernização conservadora, o seu uso, contudo, requer alguns
esclarecimentos.
De acordo com as pesquisas de Murilo José de Souza Pires e Pedro Ramos, o termo
modernização conservadora foi elaborado por Barrington Moore Júnior para demonstrar o
434 Idem, Ibidem, p. 19. 435 Idem, Ibidem, p. 25. 436 DELGADO, G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p.160-163.
166
caso específico de desenvolvimento capitalista na Alemanha e Japão. Foi incorporado ao
pensamento brasileiro inicialmente por Alberto Passos Guimarães, reaparecendo em seguida
em diversos outros trabalhos, ora enfatizando fatores políticos, ora fatores econômicos sem a
devida crítica histórica437. Uma rápida comparação pode esclarecer sobre a diversidade de
abordagens e temporalidades no uso do termo/conceito: José Murilo de Carvalho, por
exemplo, utiliza a expressão para designar como os barões do café do século XIX, no Rio de
Janeiro e São Paulo, buscaram implantar a política de colonização imigrante de forma que
impedisse o seu acesso imediato a lotes e livrasse os latifundiários das limitações e taxações
que traziam as primeiras propostas da Lei de Terras de 1850438.
Os autores que se voltam ao entendimento das dinâmicas econômico-agrárias recentes,
utilizam o conceito como instrumento analítico da forma como se deu o avanço capitalista
sobre o meio rural no pós-guerra, tendo como base a mecanização das relações de produção, a
monetarização das relações de trabalho, a expansão do crédito público, a produção de
infraestrutura por parte do Estado e a manutenção da estrutura fundiária. Outras “roupagens”
terminológicas ainda foram dadas ao conceito, José Graziano a define como “modernização
dolorosa”439. É na perspectiva destes que o conceito é aqui apropriado. Cabe-nos, todavia,
destacarmos novamente as observações de Pires e Ramos, os quais afirmam como traço
comum às diferentes abordagens do conceito/termo, o registro do desenvolvimento das forças
capitalistas na agropecuária e a manutenção de uma estrutura fundiária concentrada440.
A modernização conservadora, enquanto face radicalizada do processo de
capitalização das relações agrárias brasileiras, recaiu sobre o Nordeste articulando e
expandindo as iniciativas modernizadoras já postas, por meio da aplicação de “programas” ou
“projetos” idealizados pelos órgãos federais. Essa nova abordagem administrativa pôs fim a
política de ação via órgãos e instituições regionais e reduziu significativamente o poder destas
quanto a produção e coordenação de ações políticas, atribuindo-lhes a função de meros
executores. Esse fator foi visível especialmente quando da substituição emergencial do IV
Plano Diretor da SUDENE pelo Plano de Desenvolvimento do Nordeste (1972-1974), em
437 PIRES, Murilo José de; RAMOS, Pedro. O termo modernização conservadora: sua origem e utilização no Brasil. Revista Econômica do Nordeste. Fortaleza – CE, v. 40, n. 03, p. 411-424, jul/set 2009. 438 CARVALHO, José Murilo de. A política de terras: o veto dos barões. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro nas sombras: a política imperial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.338. 439 SILVA, José Graziano. A Modernização Dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1981. 440 PIRES, M. J. de; RAMOS, P. O termo modernização conservadora..., p. 411, 421.
167
Imagem 6: Figura estampada na capa de um dos informes da SUDENE
virtude de disparidades entre as propostas do órgão regional e dos órgãos federais que no
momento se organizavam.441 Devidamente alinhada às expectativas federais, em 1976 a
SUDENE estampou na capa de um dos seus informes a imagem abaixo:
Fonte: SUDENE. Sudene Informa. Recife – PE: Indústria Gráfica de Recife, v. 14, n. 1, jan/mar, 1976 (capa).
Nas páginas seguintes lê-se:
A partir de 1956, começou a reversão daquela tendência secular de distanciamento da posição relativa do Nordeste, em função da nova política econômica e de outros fatores reconhecidamente favoráveis, tais como mudança de mentalidade e de atitudes na região, tanto da parte do empresariado, lideranças e Governo, como do povo em geral, quando se disseminou a idéia do desenvolvimento planejado e de empreendimentos fundamentados em projetos, passando-se a apresentar o Nordeste como uma região de oportunidade e não apenas como área-problema.442
A imagem e o texto expressos no informe do órgão sintetizam os elementos presentes
nos discursos governamentais, nacionais e regionais, sobre os rumos do agrário nordestino na
segunda metade do século XX. A disseminação da “idéia do desenvolvimento planejado”, a
mão-de-obra familiar, a pequena lavoura, o governo, o capital, a máquina e a afirmação de um
novo tempo produtivo passaram a ser destacadas como unidades de um conjunto em
441 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste...; p. 48. 442 SUDENE. Sudene Informa...,p. 4 (grifo nosso).
168
movimento, pautadas na execução de grandes projetos agrários e integradas às diversas
esferas econômico-políticas (municipais, regionais, nacionais e internacionais). Segundo seus
idealizadores, esse “conjunto dinâmico” garantiria ao Nordeste rural a “reversão” e a ruptura
com “passado secular de isolamento” e atraso, especialmente as áreas semi-áridas.
Sob o discurso de um “novo Nordeste” foram implantados projetos como o Programa
de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste
(PROTERRA), o Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste
(POLONORDESTE) e posteriormente, o PROJETO SERTANEJO. O PROTERRA objetivou
a redistribuição de terra aos pequenos produtores por meio de desapropriações e vendas de
áreas - via crédito fundiário a longo prazo -, implantação de subprojetos agrícolas voltados
para produção em larga escala e concessão de financiamentos para elevação da produtividade
e viabilização da comercialização.
As metas estabelecidas para o Nordeste não foram cumpridas e os projetos esbarraram
na burocratização, devido a participação de muitas instituições e no consequente descompasso
de execução das etapas. A ausência de estrutura dos órgãos impedia o acompanhamento das
atividades e muitas das propostas ficaram inacabadas ou faliram. O crédito foi priorizado aos
grandes produtores, alimentando a concentração fundiária e a modernização dos latifúndios e
inviabilizando a redistribuição de terras443.
O POLONORDESTE ficou a cargo do II PND (1975/79) e objetivou desenvolver os
setores agropecuário e agroindustrial do Nordeste, tendo como base uma reorganização
produtiva de grande escala que integrava os domínios sociais, econômicos, científicos e
políticos. Do ponto de vista agrário, o programa enfocou as pequenas áreas produtivas e
destacou medidas especiais para as áreas semi-áridas.
O programa (POLONORDESTE) se caracteriza por uma abordagem integrada do desenvolvimento agropecuário e agroindustrial, contemplando desde a identificação de culturas e a indicação de sistemas de produção, até a reorganização agrária, a complementação da infra-estrutura, a pesquisa e a assistência técnica, o crédito e a comercialização. Dentro desse programa, incluir-se-á componente relativo à transformação da agricultura das regiões semi-áridas, de modo a tornar a atividade produtiva adaptada às condições climáticas, através do desenvolvimento da tecnologia de cultivo e o manejo racional do solo e da água. (...) considerando-se, além da implantação de
443 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste..., p.174-187, 207.
169
sistemas de irrigação e das lavouras irrigadas, esforço harmonizado de desenvolvimento e de elevação do padrão de vida do homem do campo444.
Desfrutava o POLONORDESTE de recursos totais no valor de 5 bilhões de cruzeiros
(inclusive créditos especiais à produção) para atuação em “áreas integradas selecionadas” no
período de 1975-1979445. Uma de suas novidades foi a apresentação de um novo mapeamento
produtivo do Nordeste, focado em cinco áreas principais que se articulavam como pólos-
integrados, “ilhas de desenvolvimento”: Vales Úmidos446, Serras Úmidas447, Áreas de
lavouras xerófilas (agricultura seca ), Tabuleiros Costeiros448 e Áreas de Colonização do
Maranhão e Piauí (Pré-Amazônia). Este novo mapeamento rompeu com as visões polarizadas
e generalizantes sobre os espaços econômicos do Nordeste (Semi-árido/Mata Úmida ou Semi-
árido/Agreste/Mata Úmida)449. Administrativamente, o POLONORDESTE baseou-se na
composição de unidades denominadas PDRI’s - Projetos de Desenvolvimento Rural Integrado
- que abrangiam as áreas de ação direta, e no apoio a diversos outros projetos, totalizando um
conjunto de 69 áreas, espalhadas por todos os estados do Nordeste450.
Os PDRI’s funcionavam como “micro-pólos” e correspondiam de fato aos projetos
foco das ações do programa. Seus recursos eram divididos no atendimento das unidades de
produção (crédito, assistência técnica, comercialização), na geração de infraestrutura
(estradas, eletrificação, armazéns) e no setor social (educação e saúde). É a partir do
POLONORDESTE que o minifúndio passa a ser visto como setor produtivo451, rompendo a
lógica predominante até a década de 1960, a qual, baseada nas observações do GTDN,
afirmava a necessidade de formação de uma “classe média rural” no espaço agrário nordestino
como forma de impulsionar a produtividade e a comercialização.
Para fins de concessão de crédito agropecuário, o POLONORDESTE definiu como
“pequena unidade de produção” as áreas de até 50ha para a agricultura e 100 ha para pecuária,
trabalhadas pela mão-de-obra familiar, com renda total (não somente agrícola) até dois
444 BRASIL. Presidência da República. II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 1975/1979. [s.l.]: [s.n.], 1974. Disponível em: <http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/5bd/2br/3plans/1974II-PND/pdf/II-PND.pdf>. Acesso em: 15 de dez. de 2010, p. 63. 445 SUDENE. Sudene Informa...,p.13. 446 Rios Gurguéia, Fidalgo e Parnaíba (Piauí), Jaguaribe (Ceará), Apodi (Rio Grande do Norte), Piranhas-Açu (Rio Grande do Norte e Paraíba), Moxotó (Pernambuco) e São Francisco (Bahia). 447 Ibiapaba, Baturité, Araripe e outras. 448 Do Rio Grande do Norte à Bahia. 449WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986, p. 13 450 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste..., p. 225 ou SUDENE. Sudene Informa..., p. 18. 451 WILKINSON, J. O Estado, a agroindústria e a pequena produção..., p. 17, 30.
170
salários mínimos regionais, auto-suficientes, mas que não geravam excedente452. O volume de
recursos disponibilizados para o período de 1975/1977 foi de Cr$ 3 bilhões453. A tabela
abaixo sintetiza a distribuição desses recursos no referido triênio pelos estados nordestinos.
Imagem 7: Distribuição dos recursos do POLONORDESTE pelos estados da região Nordeste (1975/1976)
Fonte: SUDENE. SUDENE. Sudene Informa. Recife – PE: Indústria Gráfica de Recife, v. 14, n. 1, jan/mar, 1976, p. 25.
Enquanto produto de uma política de planejamento ordenada pelo capital, os discursos
sobre o POLONORDESTE visaram a subtração das leituras classistas sobre a realidade
agrária do Nordeste. O conceito de “pequeno produtor”, por exemplo, buscou definir de forma
“positiva” o proletariado rural, enquanto a questão agrária foi tida (novamente!) como uma
“questão de produtividade”, excluindo assim qualquer crítica a estrutura fundiária. Nesse
sentido, o programa propunha dinamizar o trabalho do minifundista por meio do fornecimento
de crédito oficial, afirmando que essa estratégia resultaria na utilização da mão-de-obra
abundante e na elevação da produção454. Assim como para as demais políticas governamentais
do setor agrário, a propriedade (e não a posse) foi o critério central para o acesso a crédito e
aos “benefícios” do POLONORDESTE, o que excluiu centenas de trabalhadores sem terra do
raio de ação do programa. A execução do POLONORDESTE, assim como ocorrera com o
452 Idem, Ibidem, p. 15-16. 453 SUDENE. Sudene Informa..., p. 23. 454 WILKINSON, J. O Estado, a agroindústria e a pequena produção..., p. 16-17.
171
PROTERRA, deixou clara redução ou subtração das demandas sociais em detrimento da
elevação da produtividade.
Do ponto de vista operativo, afirma Yony Sampaio que o distanciamento entre as
agências executoras (empresas de assistência técnica e extensão rural, cooperativas, grupos de
avaliação) e as forças político-governamentais regionais e nacionais que em última instância
determinavam o orçamento POLONORDESTE, produziu diferenças significativas entre as
demandas sociais e os recursos disponíveis, obrigando os técnicos a realizarem cortes ou
limitações de custeio, precarizando o seu trabalho, comprometendo os objetivos sociais do
programa e reforçando assim a estrutura vigente. Sintetiza esse autor que, assim como houve
uma indústria da seca, houve também uma indústria do POLONORDESTE, ligada ao capital
financeiro e a indústria de construções455.
O último dos grandes programas agrários aplicados sobre o Nordeste foi o Projeto
Sertanejo, em 1976 e seu surgimento teve relação direta com a luta “regional” pela
reabilitação do papel criador da SUDENE enquanto órgão representante da região. Dispondo
de recursos no valor de Cr$ 1,2 bilhão para o período de 1976/79, o Projeto Sertanejo visou a
criação de 20 núcleos de trabalho no Nordeste, que deveriam ficar sob responsabilidade do
DNOCS, da CODEVASF e dos Governos Estaduais. Cada núcleo deveria possuir uma
“patrulha mecanizada” (composta por caminhões e tratores, entre outros equipamentos) para
construção de açudes, abertura de poços e sistematização dos solos e compor equipes técnicas
formadas por “engenheiros civis, engenheiros agrônomos, assistentes sociais, econmistas,
zootecnistas, técnicos agrícolas, topógrafos, desenhistas, fiscais de açude, comunicador,
administrador, técnico em contabilidade”456, para a elaboração de projetos e assistência com o
objetivo básico de
tornar a economia da região semi-árida do Nordeste mais resistente aos efeitos das secas, mediante, principalmente, a associação da agricultura irrigada como a agricultura seca. A estratégia do Projeto Sertanejo dá ênfase à organização e reorganização das unidades produtivas da região, de modo a, de um lado normalizar, ao máximo, o processo de produção; e, de outro, a assegurar o nível de emprego, reduzindo as repercussões de natureza social provocadas pelo fenômeno das secas.457
455 SAMPAIO, Yony. Estrutura e Burocracia no Polonordeste: de como os técnicos ajudam o poder. Recife: Curso de Mestrado em Economia - PIMES-UFPE, 1981, p. 1-9 (Série Textos para Discussão, 109). 456 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III - Projeto Sertanejo – Implantação dos Núcleos. 457 O SERTANEJO é, antes de tudo, um forte. Planejamento & Desenvolvimento. Rio de Janeiro: [s.n.], v. 4, n. 41, out. 1976, p. 20-21.
172
Muitos núcleos não foram implantados ou entraram em funcionamento com estrutura
precária, por outro lado a composição das equipes de trabalho da forma prevista, se tornou
inviável devido a qualificação e a quantidade de profissionais exigida. Embora a “estrutura
fundiária inadequada” seja pontuada entre os principais problemas da área de atuação do
programa (por gerar uma subutilização das terras, o subemprego e uma massa de
trabalhadores sem terra) e tenha o Projeto Sertanejo entre suas metas possibilitar o acesso à
terra a “pelo menos” 20% dos beneficiários (cerca de 48.000 pessoas), as referências
direcionadas ao problema diluem-se na genérica afirmação de que serão usados, “sempre que
necessário”, “meios adequados à correção das distorções da estrutura fundiária”458.
Uma análise crítica dos objetivos traçados para o Projeto Sertanejo, demonstra ainda
que a questão da renda familiar reduziu-se ao enfoque sobre necessidade de melhoramento
das técnicas usadas e do aumento da produtividade. Nesse sentido, o projeto prevê “preparar
os agricultores através de assistência direta e contínua para a utilização mais racional de suas
propriedades e recursos de modo a incrementar e regularizar seus níveis de renda e eliminar
ou reduzir suas dificuldades durante as estiagens prolongadas”459.
A implantação de propostas, órgãos e projetos voltados para a modernização das
relações produtivas do Nordeste, entre as décadas de 1950 e 1970, não gerou a melhoria das
condições de vidas dos trabalhadores pobres e nem alterou a estrutura fundiária concentrada.
A distância entre os objetivos propostos e os resultados alcançados anulou as perspectivas
mais populares. As causas desse distanciamento são das mais diversas naturezas, como por
exemplo: a presença de ações e objetivos iguais provindos de projetos diferentes na mesma
área; a ação isolada de alguns órgãos oficiais; a desarticulação entre a extensão rural e a
iniciativa social (educação/saúde); a política indiscriminada de crédito e a disparidade dos
valores financiados entre grandes e pequenos produtores. Além desses, destacaram-se a
dificuldade de integração entre as instâncias estaduais e federais dos programas, a
incorporação de diversos projetos existentes anteriormente ao POLONORDESTE e ao Projeto
Sertanejo, tornando-os meros repassadores de recursos, e a influência das elites agrárias
regionais sobre as ações460.
458 SUDENE. Projeto Sertanejo: características, programa de trabalho, etapa e implantação. Recife, 1977, p. 15 459 Idem, Ibidem, p. 13. 460 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste... especialmente PARTE VI e trechos dedicados a avaliação de cada projeto.
173
Do ponto de vista da expansão das relações capitalistas no Nordeste, todavia, as
iniciativas modernizadoras foram eficientes. Tendo o uso do crédito oficial como ferramenta
principal, essas iniciativas garantiram a monetarização das relações de produção (por meio da
disponibilização de fartos volumes de recursos), a formação de um mercado de terras e o
incentivo a aquisição de máquinas e implementos agrícolas que refletiu diretamente nos
setores industriais. Por outro lado, elevaram a produtividade, racionalizaram as estratégias, o
uso dos espaços, dos recursos naturais e da capacidade de mão-de-obra; incluiram novas
técnicas de produção agropecuária, implantaram a infra-estrutura básica que facilitou o
escoamento da produção, incentivaram o comércio, integraram o “pequeno produtor” na
engrenagem do crédito oficial e produziram o “regional”, enquanto ferramenta de integração
de uma fração espacial à dinâmica nacional da economia de mercado.
O Nordeste foi, pois, na segunda metade do século XX, uma região econômica nos
termos definidos por Francisco de Oliveira, um espaço planejado pelo e para o capital,
interligado ao projeto de “integração” e “desenvolvimento” afirmado pelos Governos
Nacionais. Como demonstra Iná Elias de Castro, a construção desse espaço foi também
produto da ação das elites internas ao Nordeste461. No jogo político junto aos grupos
dominantes nacionais, essas elites regionais alimentaram-se da produção de “condições de
subdesenvolvimento perene”, adequando suas abordagens discursivas às representações
espaciais correntes por meio da fundação de um discurso regionalista que ora anunciava o
Nordeste seco, ora o Nordeste atrasado e dependente da modernização como forma de
barganhar atenção e recursos. Na medida em que instituiram esse discurso político, as elites
regionais produziram ferramentas de identificação e coesão dos seus grupos e produziram
formas de manutenção da hegemonia local. Visaram elas defender os padrões ou vantagens
que lhes garantiam o prestígio462. Os resultados dos programas implantados no Nordeste,
assim, em nada se antagonizaram à expansão do capital, foi antes, uma estratégia de equilíbrio
ou modelo de articulação seguro para os interesses dos grupos regionais e nacionais.
Diante dessas observações, passamos a enxergar um pano de fundo na bela imagem
estampada na capa do informe da SUDENE de jan/mar de 1976 apresentada acima. Por trás
da representação de uma família laboriosa “pequeno produtora”, cujos braços familiares desde
461 Ver críticas à reflexão de Francisco de Oliveira em CASTRO, I. E. de. O mito da necessidade..., p. 63-68, as principais gravitam em torno da ênfase excessiva nas estruturas (que impedem a observação da ação dos sujeitos), da presença de um determinismo econômico e da omissão da dinâmica intra-espacial das classes. 462 CASTRO, I. E. O mito da necessidade..., p. 49.
174
cedo rompem a terra anunciando, na presença de novas tecnologias, um novo ritmo e sentido
de produzir no Brasil, está o planejamento, a ideia “mestra”463 que garantiu o erguimento de
uma região econômica de extração para o capital, a partir da atualização segura (sem alterar a
estrutura fundiária vigente) dos mecanismos de reprodução ampliada, do condicionamento
dos recursos usados e da repartição dos benefícios entre as elites agrárias nacionais e
regionais.
A compreensão do processo de expansão da modernização agrária sobre o Nordeste é,
portanto, complexa. Tendo iniciado ainda em 1940 ela aprofundou-se como parte integrante
de um projeto de modernização nacional – a modernização conservadora- durante os
Governos Militares. Esse processo envolveu sujeitos diversos (os locutores e os silenciados),
classes e frações de classe, órgãos, interesses e escalas diversas de poder e requer revisões.
Assim como no Nordeste, a modernização conservadora atingiu outros espaços rurais,
incentivando a mecanização e a monetarização das relações de produção, distribuindo crédito,
expropriando a terra ou sua renda, elevando as condições de proletarização das populações
rurais, subordinando, alterando e até eliminando diversas outras formas não capitalistas de
“ser” do agrário brasileiro.
O entendimento desse processo perpassa a análise dos condicionamentos impostos
pelo capital ao trabalho, à terra, ao espaço agrário agrário e à produção. Após o esboço do
quadro ideológico, político e econômico vigente no Brasil em meados do século XX,
busquemos entender a partir de uma abordagem teórico-metodológicas, os impactos da
modernização conservadora sobre as relações agrárias e urbanas e a vida dos trabalhadores.
Modernizando a roça: impactos do capital planejado na dinâmica produtiva dos trabalhadores rurais
Os principais estudos que tiveram o processo de modernização do espaço agrário
brasileiro como objeto de análise pertencem às áreas da Economia, Sociologia, Geografia e
Antropologia. Nesse ponto a História ainda é uma grande devedora. Quanto a abordagem
predominam nas pesquisas o enfoque sobre as mudanças ocorridas no setor agrícola, nas
relações de trabalho, a formação do “bóia-fria”, o êxodo rural, aspectos técnico-políticos
voltados para o crédito, os índices de mecanização, a ação do Estado como produtor de infra-
463 SUDENE. Sudene Informa..., p. 12.
175
estrutura e o papel das relações de produção não-capitalistas para o desenvolvimento
capitalista brasileiro.
As categorias sociais mais abordadas nesses estudos são os posseiros, rendeiros,
pequenos proprietários e trabalhadores sem terra, analisados geralmente a partir de suas
relações com as dinâmicas agrícolas. Esse recorte analítico, além de restringir o entendimento
da dinâmica econômica poli-agro-pecuária comum às pequenas unidades produtivas, fonte de
resistência e sobrevivência da maioria das comunidades rurais do Brasil, ignora outras
categorias de trabalhadores que povoam os “rurais” brasileiros e que, mesmo possuindo
vínculos com a agricultura, não dependiam dela exclusivamente, como é o caso dos vaqueiros
do Nordeste, dos peões do centro oeste e dos diversos tipos de trabalhadores extrativistas que
também foram atingidos pela modernização conservadora.
Há, pois, que se entender o processo de modernização do campo a partir da pluralidade
do próprio rural. A predominância de uma abordagem dos impactos da modernização
conservadora, emoldurada sob o ângulo do setor agrícola, dá-se por centrar-se aí o maior
contingente de trabalhadores. Outra hipótese que pode ser destacada nesse sentido diz respeito
a cristalização de um “modelo interpretativo”, baseado na forma e na precocidade como se
deu o processo de modernização no Sudeste, que passou a ser apropriado para realização de
estudos em outras áreas do País.
Do ponto de vista de suas características principais, como já visto quando da análise
do exemplo nordestino, a modernização rural brasileira pautou-se nas necessidades de
industrialização e urbanização do pós-guerra e visou elevar a produção sem realizar alterações
na estrutura agrária vigente. Segundo Guilherme Delgado, a modernização conservadora
subordinou o campo aos centros urbanos de poder, especialmente São Paulo, e construiu um
grande sistema financeiro e fiscal regulador de distribuição de renda e riqueza intra-elites
agrárias e destas para com os empresários industriais464. Por outro lado, realizou a
expropriação da terra, diretamente ou por meio da ocupação de novas áreas, o controle da
renda dos pequenos agricultores e criadores, a expansão dos latifúndios, a expansão das
relações assalariadas, a acentuação do êxodo rural, a mecanização das relações de produção e
a formação do mercado agroindustrial.
464 DELGADO, G. C. Capital e Política no Brasil. In: SZMRECSANYI, Tamás (org.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: HUCITEC, ABPHF, 1997, p. 226.
176
Nesse meio o Estado teve sempre o papel central, a partir da construção de uma
infraestrutura (estradas, eletrificação, indústrias, armazéns), da concessão de incentivos
fiscais, da reorganização e criação de entidades de pesquisa e extensão rural e da criação de
políticas de desoneração de riscos produtivos como o Programa de Garantia da Atividade
Agropecuária (PROAGRO) e a política de garantia de preços. O elemento central que
articulou essas iniciativas foi o crédito público rural, expandido após a criação do Sistema
Nacional de Crédito Rural em 1965 (SNCR)465. Até esse período, somente o Banco do Brasil,
através de sua Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai), podia conceder créditos para
agricultores. O SNCR compôs-se de uma articulação entre diversas instituições, entre elas o
Banco do Brasil, o Banco Central, o Banco do Nordeste e o Banco da Amazônia. Outras
instituições ainda ocuparam o lugar de “órgãos vinculados” (BNDES, bancos privados,
estaduais, associações e cooperativas) e “órgãos articulados” (agências de assistência técnica).
O resultado dessa ação conjunta foi a estruturação de uma política nacional de incentivo a
agricultura que se difundiu rapidamente. Especifica a norma legal:
Art. 2º - Considera-se crédito rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor. Art. 3º - São objetivos específicos do crédito rural: I - estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais, inclusive para armazenamento, beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários, quando efetuado por cooperativas ou pelo produtor na sua propriedade rural; II - favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização de produtos agropecuários; III - possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios;
Em seu artigo 11º a lei 4.829/65, que fundou o SNCR, apresenta cinco modalidades de
operações de crédito rural, duas delas nos interessam: I - Crédito Rural Corrente, destinado a
produtores rurais de capacidade técnica e substância econômica reconhecidas; II - Crédito
Rural Orientado, definido como “crédito tecnificado, com assistência técnica prestada pelo
financiador, diretamente ou através de entidade especializada em extensão rural, com o
objetivo de elevar os níveis de produtividade e melhorar o padrão de vida do produtor e sua
família”466.
465 Criado pela lei 4.829/65. 466 BRASIL. Lei nº 4.829, de 05 de novembro de 1965. Institucionaliza o crédito rural. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4829.htm>. Acesso em: 15 de fev/2012.
177
Como podemos observar o Crédito Rural Orientado voltava-se para os médios e
pequenos produtores e pressupunha a ação de agências de extensão rural. De acordo com
Hildegardo R. Nogueira, as primeiras experiências de extensão rural no Brasil foram
realizadas em 1948 em São Paulo, com o apoio de agricultores, empresas, governo estadual e
da Associação Internacional Americana (AIA). Nesse mesmo ano foi criada a Associação de
Crédito e Assistência Rural (ACAR), uma sociedade civil sem fins lucrativos que passou a
atuar a partir de 1949 em Minas Gerais. Em 1954, criou-se a Associação Nordestina de
Crédito e Assistência Rural (ANCAR), com sede em Recife, produto de um convênio entre o
Banco do Nordeste, o Banco do Brasil e a AIA. Na Bahia as primeiras áreas de ação da
ANCAR foram os municípios de Serrinha, Tucano, Itapicurú, Inhambupe e Irará. No início da
década de 1960 as agências estaduais da ANCAR passaram a se tornar Associações Estaduais
Autônomas e em 1963 formou-se a ANCARBA, com sede em Salvador e unidades regionais
espalhadas pelo interior baiano467.
Os dados apontam para a intensidade com que se consolidaram essas ações. De acordo
com as observações de Tamás Szmrecsany e Pedro Ramos, entre 1950 e 1965 o número de
contratos de crédito rural no Brasil passou de 19 mil para 410 mil e a quantidade de
empréstimos a juros subsidiados para aquisição de tratores e outros equipamentos mais que
quadruplicou entre 1953 e 1966468. Guilherme Delgado também destaca que na década de
1970 houve a implantação do sub-setor industrial de insumos e bens de capital e que nesse
período o número de tratores na agricultura brasileira triplicou. Ainda segundo o autor, em
1976 o valor dos créditos concedidos já alcançava 20 bilhões de dólares, aproximadamente o
Produto Interno Bruto da Agricultura na época469.
Os custos sociais desse processo se reproduziram no mesmo ritmo das ações
governamentais e da expansão do crédito. O exemplo clássico do processo de controle do
acesso e da forma de uso da terra imposto pela modernização conservadora aos trabalhadores
rurais é a emergência do “trabalho volante” ou “bóia-fria”470 nas grandes cidades. Essa
relação de produção se caracteriza pela presença de um trabalhador expropriado dos meios de 467 NOGUEIRA, Hildegardo R. Extensão Rural no Estado da Bahia: antecedentes, evolução e influência no desempenho da agricultura baiana. Salvador: EMATER-BA, 1984, p. 2-3. 468 SZMRECSANYI, Tamás; RAMOS, Pedro. O papel das políticas governamentais na modernização da agricultura brasileira. In: SZMRECSANYI, Tamás (org.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: HUCITEC, ABPHF, 1997, p. 237. 469 DELGADO, G. C. Capital e Política no Brasil..., p. 222. 470 Ver: D’INCAO, Maria Conceição. O “bóia-fria”: acumulação e miséria. 3ª Ed. Pretrópolis: Vozes, 1976 e GONZALES, Elbio N.; BASTOS, Maria Inês. Trabalho volante na agricultura brasileira. In: PINSKY, Jaime. Capital e Trabalho no Campo. São Paulo: HUCITEC, 1979 (Coleção Estudos Brasileiros, 7), p. 25-47.
178
produção, residente nas periferias das cidades, ao qual resta apenas a venda da sua mão-de-
obra nas lavouras, por um rígido e intenso sistema de trabalho, pelo condicionamento da
renda familiar às oscilações do mercado e pelo caráter sazonal do trabalho. A existência dessa
“relação” de trabalho encontra respaldo no Estatuto do Trabalhador Rural, na medida em que
esse não reconhece a “empreitada” como relação de emprego (condicionada pela
permanência, individualidade, subordinação, dependência hierárquica, salário), restando
assim os critérios da “lei comum”, que a classifica como “contrato agrário”.
José Vicente Tavares Santos afirma que as mudanças agrárias impostas pela
modernização conservadora aos trabalhadores rurais, produziram condições desiguais de
acesso a terra e formas controladas de reprodução sócio-laboral dos grupos camponeses diante
dos diversos outros agentes (instituições, classes, frações), resultando assim, em condições
desiguais de ocupação e produção do espaço agrário471. Se, desde os anos 1930, o Estado
brasileiro empenhou-se em estabelecer um processo de disciplinarização da força-de trabalho,
por meio das políticas de colonização, de migração, de clientelismo e de recursos a violência
como condição para reprodução dos fatores sociais necessários à modernização rural472, no
período ditatorial, essa disciplinarização alcançou status de “sistema”.
Em nível das pequenas unidades agrárias, a modernização conservadora materializou-
se por meio da recriação de formas não capitalistas de produção, da extração da renda da
terra, via mecanismo de controle de preços e da subtração autonomia produtiva dos
camponeses. Como afirma José de Souza Martins, o modo como se deu o desenvolvimento do
capitalismo brasileiro não só redefiniu antigas relações de produção, condicionando-as à
reprodução do capital, como também gerou relações não capitalistas, contraditoriamente
necessárias à reprodução do próprio capital. Na base dessa dinâmica, o capital agiu
controlando o trabalho (e não mais o trabalhador como era o caso da escravidão) e a renda da
terra. Para Martins esse foi o modo que a elite brasileira buscou para acumular e se
modernizar mais depressa473.
Nesse sentido destaca Ariovaldo Umbelino de Oliveira que a expansão do trabalho
assalariado tem produzido também a expansão do trabalho familiar, uma vez que o aumento
da concentração fundiária impulsiona também a luta pela recuperação das terras expropriadas.
471 SANTOS, José Vicente Tavares. Efeitos sociais da modernização da agricultura. In: SZMRECSANYI, Tamás (org.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: HUCITEC, ABPHF, 1997, p. 252-253. 472 Idem, Ibidem, p. 252. 473 MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra..., p. 36, 10.
179
Para esse autor esse fato pode ser constado pelo crescente número de posseiros474. Esse
crescimento do trabalho familiar, contudo, não deixa de estar condicionado pelo capital uma
vez que este determina os níveis de valorização da produção dos trabalhadores e a oscilação
dos seus níveis de expansão.
Como destaca ainda Ariovaldo Umbelino, que o sistema de mercado imposto a
arrendatários, posseiros, rendeiros e pequenos proprietários retirou-lhes a autonomia sobre o
meio de produção (à terra e as ferramentas) à medida em que as relações externas (relações
comerciais, financeiras, industriais) passaram a determinar as condições, formas e tipos de
produção. Essas mudanças resultaram em alterações substanciais nas relações produtivas das
pequenas unidades rompendo a “forma simples” de produção/reprodução (M-D-M),
característica do trabalho familiar. Esse sistema é tratado como “simples” porque não visa a
reprodução acumulada, as mercadorias geradas pela família são transformadas em dinheiro
para aquisição de outra mercadoria, cuja função baseia-se no valor de uso, saindo esta da
circulação para consumo. Por exemplo: abastecida as condições básicas de sobrevivência
familiar, os produtos restantes são vendidos no mercado local para aquisição de alimentos ou
para contratação de mão-de-obra, não gerando, desta forma, uma acumulação.
Diante da valorização de determinados produtos em virtude das demandas do
mercado, os trabalhadores rurais viram-se incentivados ao cultivo dos mesmos, gerando por
vezes superprodução local e rebaixamento dos preços de venda. Além das oscilações do
mercado, como destaca Ariovaldo Umbelino, as baixas condições financeiras dos
trabalhadores os obrigaram a vender seus produtos (nos quais se encontram materializado
todo o trabalho familiar) in natura nos mercados locais e regionais, o que reduziu ainda mais
os níveis de renda adquiridos.
Esclarece o autor que os valores recebidos pelos trabalhadores em troca de suas
mercadorias desta forma, mal garantiram sua subsistência familiar, isso significa que parte do
trabalho investido foi (e é) repassado aos intermediários de forma gratuita uma vez que, nesse
sistema guiado pelas demandas do mercado, a mercadoria não se valoriza pela força de
trabalho investida, mas, pelo “nível do preço” que garante sua entrada na circulação. Diante
da necessidade de aumento da renda familiar os trabalhadores rurais viram-se obrigados a
adquirir empréstimos (a bancos, quando possível, ou a agentes privados), aumentar a jornada
474 OLIVEIRA, Ariobaldo Umbelino de. A agricultura camponesa no Brasil. 4ª Ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 25, 70-139.
180
de trabalho, comprar ou alugar máquinas, adquirir insumos e incrementar a mão-de-obra
familiar por meio do assalariamento de terceiros.
Destaca ainda Ariovaldo Umbelino de Oliveira que essas estratégias, no entanto,
agravaram as condições de sobrevivência, aumentando as relações de dependência financeira
e a fragmentação das rendas adquiridas, já que, não havendo as condições de manutenção de
reservas de valor e diante das necessidades de dinamização do trabalho familiar em momentos
específicos da produção (uma colheita, por exemplo) os recursos direcionados a novas
aquisições (o salário dos trabalhadores contratados, por exemplo) foram retirados da renda
que garantia subsistência familiar. A família, por sua vez, foi obrigada a rebaixar suas
condições de sobrevivência na crença de que a produção vindoura restabelecesse as condições
mínimas. Tais esperanças, todavia, esbarraram-se novamente no mecanismo de preços
exercido pelo mercado475. Em síntese, o capital controlou a produção da terra sem
necessariamente expropriar seus possuidores.
José de Souza Martins, resgatando as observações de Marx, explica que a terra em si,
enquanto fator natural, não deveria ter valor, uma vez que não é fruto do trabalho humano, sua
absorção pelo capital, contudo, metamorfosea sua renda em renda territorial capitalizada476.
Desta forma, a emergência do mecanismo de controle da renda da terra, incentivado pelas
políticas de modernização agrária instaladas no Brasil em meados do século XX,
especialmente sob a vigilância do Governo Militar, interligou as pequenas unidades
produtoras aos mercados nacionais garantindo o encaminhamento de grandes volumes de
capitais do setor agropecuário para os setores industriais e comerciais via atravessadores,
juros bancários, monetarização das relações de produção e aquisição de maquinário. Sua
continuidade, contudo, impôs uma condição: a manutenção de parte significativa dos
trabalhadores pobres sobre altas taxas de exploração, a partir da manutenção condicionada das
relações pré-capitalistas no meio rural477.
Neste sentido, destaca Sérgio Silva que a contribuição da agricultura para o processo
de acumulação do capital no Brasil via políticas de modernização da agropecuária, foi
baseada na exposição de uma massa de trabalhadores à altas taxas de exploração, o que
amenizou os custos para a produção industrial (baixos custos de bens necessários à 475 Idem, Ibidem, p. 48-65. 476 MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra..., p. 22, 36. 477 Sobre o mecanismo de controle de renda da terra ver também SILVA, Sérgio. Formas de acumulação e desenvolvimento do capitalismo no campo. In: PINSKY, Jaime (org.). Capital e Trabalho no Campo. 2ª Ed. São Paulo: HUCITEC, 1979, p. 10.
181
reprodução da força-de-trabalho e baixos custos das matérias primas de origem agrícola)478.
Para José Graziano, embora de posse do meio de produção os trabalhadores rurais terminaram
por se “proletarizar”479, uma vez que o trabalho perdeu sua autonomia para o capital.
A “modernização sem reforma” estruturada a partir da década de 1960, ao atingir as
relações de produção sem se opor à estrutura fundiária posta na segunda metade do século
XX, garantiu a coexistência de um setor agropecuário “tradicional” condicionado por um
setor “moderno”, mecanizado, com altas taxas de produtividade. Como pontua Francisco de
Oliveira, o processo de modernização e industrialização do Brasil reservou para o espaço rural
duas funções específicas: 1) de abastecer o setor produtivo industrial com bens de capital por
meio da exportação de produtos primários e garantir o consumo interno sem elevar os custos
da alimentação, a partir da manutenção de um conjunto de relações de trabalho em “padrão
primitivo” (alta taxa de exploração da força de trabalho) via mecanismo de controle da renda
da terra; 2) fornecer mão-de-obra para os centros urbanos – “exército de reserva” – através do
deslocamento de massas rurais para as cidades em virtude da “expansão horizontal” das terras
e da mecanização da lavoura, como forma de controlar a elevação dos salários. Para o autor, o
sacrifício das massas rurais empobrecidas e da ação centralizadora do Estado, garantiu ao
meio urbano-industrial o posto de “unidade-chave” do processo de expansão das relações
capitalistas no Brasil480.
Na década de 1970 todas as áreas do País foram alvos de projetos e políticas voltadas
para o aumento da produtividade agrícola e da expansão das relações de mercado. No
Nordeste essas iniciativas se destacaram especialmente pela instituição do
POLONORDESTE, tanto pela sua abrangência e diversidade de setores de ação, quanto pelo
volume de recursos aplicados. Como discorre Guilherme Delgado, é importante sempre
destacarmos que a consolidação da modernização conservadora resultou do apagamento de
diversas propostas e convicções sobre o espaço agrário brasileiro e da eliminação física dos
movimentos em prol da reforma agrária481.
Como determinava o I PND, “A revolução foi feita para construir”482 e produzia a
“grande empresa nacional”, uma “sociedade de mercado” produtivamente compatível com as
478 SILVA, S. Formas de acumulação e desenvolvimento..., p.12. 479 SILVA, José Graziano da apud WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986, p. 27. 480 OLIVEIRA, F. de. A economia brasileira..., p. 16-25. 481 DELGADO, G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p. 164. 482 BRASIL. P. da R. I Plano Nacional de Desenvolvimento..., p. 13.
182
nações desenvolvidas, cuja face agrária correspondeu à modernização conservadora. A
pequena frase, todavia, chama a atenção por aquilo que oculta. A “revolução” esconde um
projeto de controle social baseado no autoritarismo e na repressão às classes trabalhadoras e
intelectuais; o “construir”, indica os rumos econômicos e políticos sem tocar nos custos, nas
formas de tais mudanças, no condicionamento dos espaços e nos demais projetos de nação e
de agrário que silencia. Paralelamente ao processo político econômico capitalista-tecnológico
que embasou o modelo conservador de modernização agrária e urbana dos Governos
Brasileiros (regionais e nacionais) no pós-guerra, deu-se a chegada das primeiras iniciativas
de modernização rural sobre o nosso espaço de estudo, o Sertão de Irecê.
“Aquí, govêrno e povo irmanados, plantam a semente do progresso”: mudanças agrárias desfazendo o Sertão de Irecê
O aperfeiçoamento e a chegada de novos equipamentos para preparo do solo, como os
arados, em meados do século XX, foram as primeiras mudanças mecânico-agrárias a
possibilitarem a elevação dos níveis de produção das pequenas unidades poli-agropecuárias
do Sertão de Irecê, além das necessidades de aprovisionamento. Narra Zizinho:
já peguei muito foi no cabo de um arado pra arrar cuns boi, o dia todo, todo, todo, de Jesus, eu c’um aradim dessa largurinha aqui assim, pra tirar 1 tarefa no dia era obrigado a gente pegar cedo e num parar ora nenhuma. [...] depois disso ai vêi a grade de boi. Trabaiei muito com grade de boi também! Gradano terra. [...] Essa ai já é de disco, quase que nem assim, a grade de trator mesmo, mais era..., é a mesma coisa, agora tem a trava dele, a gente travava ela e agora ela já, rendia mais que era larga, já tirava 4, 5 tarefa por dia, ai já nessa grade de boi o arado era muito difíci! [...] Era pocas pessoa que tinha a grade e os boi, era pôcas pessoa! [...] Era a mesma coisa de hoje, um ter um trator, era difíci!483
A partir da narrativa podemos observar que a inclusão dessas novas tecnologias na
agricultura, possibilitou a preparação de uma maior porção de terra em menor tempo.
Consequentemente, esses fatores ajudaram a elevar a quantidade produzida e permitiram a
geração de excedentes. Os viajantes que cruzaram o Sertão de Irecê nesse período registraram
a chegada dessas novas dinâmicas. O sociólogo norte-americano Donald Pierson, quando da
sua viagem pelo vale do São Francisco em 1950, informa que nesse ano, em Irecê, foi
instalada “uma pequena usina de descaroçamento de algodão e descascamento de arroz, que
funcionava apenas por ocasião da colheita”484. Em outro trecho destaca o informante:
483 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 484 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 545.
183
anos antes da visita do autor a Irecê, na parte inferior da zona Média do Vale (do São Francisco), o governo federal plantou na localidade um campo de palma, um cacto [...] que se considerava também “excelente” alimento para a engorda do gado. Por essa ocasião, diversos campos de palma estavam sendo cultivados na área.485
As observações relatadas por Zizinho e Pierson apontam para a presença de iniciativas
particulares e públicas de uso e aquisição dessas novas tecnologias, as quais, podemos
imaginar, apesar de limitadas a certas localidades, possibilitavam mudanças significativas
para a vida dos que delas desfrutavam. Arar 1 ou 5 tarefas de terra por dia ou aumentar a
quantidade de algodão descaroçado, por exemplo, correspondia a uma mudança relevante na
vida produtiva e comercial das unidades rurais. No meio urbano a chegada da energia elétrica
mobilizava as comunidades sertanejas, interferia no seu cotidiano e fora sempre motivo de
grande festa. A presença desses novos equipamentos denuncia a penetração no Sertão de Irecê
da lógica produtiva baseada no desenvolvimento tecnológico e no incentivo às relações de
mercado que, como vimos, se espalhava pelo Brasil a partir de meados do século XX. No
espaço em estudo, a incorporação dessas tecnologias manteve ritmo crescente por mais de
cinco décadas.
A participação governamental no processo de modernização das relações agrárias do
Platô Norte Diamantino remonta a 1943. Neste ano a Secretaria de Agricultura do Estado da
Bahia disponibilizou tratores para que pudessem ser alugados pelos produtores. Junto a essa
iniciativa, surgiram também as primeiras concessões de crédito para aquisição de
implementos. Imagem 8: Primeiros tratores do Sertão de Irecê, década de 1940
Fonte: RUBEM, Jackson. Irecê: história, casos e lendas. 2ª Ed. Irecê: Print Fox Editora, 2001, p. 194.
485 Idem, Ibidem, p. 458.
184
A imagem acima demonstra os tratores recém-chegados ao município de Irecê. Dois
deles são do tipo agrícola e dois do tipo “esteira”, usado no desmatamento de áreas e abertura
de estradas. Em ato solene, acompanhado pelo hasteamento da bandeira, esses equipamentos
foram fotografados como protagonistas de um momento. O local escolhido para produção da
imagem não é menos importante: o Colégio Faustiniano Lopes Ribeiro. Assim como os
tratores, o colégio surge aí como símbolo de civilidade, de um novo tempo, lugar da presença
do Estado. Ao fundo, crianças e adultos bem vestidos se aglomeram em busca de um espaço
entre as modernas máquinas.
Na contrapartida às iniciativas dos Governos Estaduais, as autoridades da cidade de
Irecê, percebendo a chegada das novas dinâmicas agrícolas, buscaram reforçar o controle
fiscal intra e inter município e divulgar as potencialidades produtivas locais. Desde 1940 já
haviam questionamentos sobre a desproporção entre o pequeno volume de impostos
arrecadados e a capacidade fiscal da cidade. Em 1948 um requerimento reforçava o prélio
destacando a urgência em “aumentar as rendas do Município; nomeando para os povoados de
Prevenido e Ipanema, agentes arrecadadores por se tratar de povoados que têm grande
escoadores [...] (havendo) grande contrabando”486.
Nesse mesmo ano propunha-se a criação de cargos para “fiscaes gerais”, eficientes,
que zelassem pelo serviço de fiscalização uma vez que “a maioria dos fiscaes em atividade
são negligentes [...] estando a renda atual do nosso Município muito aquém das suas
possibilidades”487. Além de um maior controle sobre os impostos, essas mesmas autoridades
realizaram a padronização dos pesos e medidas locais como forma de facilitar as transações
comerciais. Em debate realizado no ano de 1949, o poder legislativo de Irecê aprovou por
unanimidade e em “regime de urgência” a “arroba de 15 kilos” como padrão no município488.
Em 1953 o então prefeito da cidade de Irecê, em correspondência ao presidente da
Câmara Municipal de Vereadores, destacou que “a necessidade de reaparelhar os tratores que
aí estão para serviços agrícolas no Município é imediata afim de que se possa ganhar tempo
para atender ao maior número possível de agricultores”489. A despesa para a manutenção dos
equipamentos naquele momento, ainda segundo o prefeito, era de Cr$ 15.000,00 acrescida de
486 CMI. Arquivo da Secretaria – Ofícios 1955. Requerimento sem identificação. 7 de maio de 1948. Irecê. 487 Idem. Requerimento do vereador Antônio Cambuí Primo. 28 de maio de 1948. Irecê. 488 CMI, Matéria Aprovada em discursão final (documentos diversos). Ata nº 14. 29 de setembro de 1949. Irecê. 489 CMI, Ofícios e comunicações da Prefeitura Municipal. Correspondência do Prefeito ao presidente da Câmara Municipal de Irecê. 3 de julho de 1953. Irecê.
185
Cr$ 25.000,00 pendentes do ano anterior. Tal valor pesava nos cofres públicos, superando a
maior parte das receitas arrecadadas no período e correspondendo a 71,8% do valor total
reservado ao fomento (à produção agrícola e animal) do ano referido490. A preocupação com
os recursos municipais levou o prefeito anos depois a sentenciar: “a verdade que todos
precisam saber e compreender é que nenhum administrador pode fazer milagres, pode
executar obras sem dispor de recursos para tanto”491.
Zizinho conta que, quando jovem, no exercício de sua função de carreiro, por diversas
vezes foi obrigado a buscar estratégias para burlar a fiscalização na cidade de Irecê:
En: Eu passei muito dento de Irecê, já quando..., lá do Alto da Jurema de Gabriel, com 60 arroba de porco, passar em Irecê, chegava ali onde hoje é o mercadão, passava remédio no carro (de boi) pra num cantar, pra passar a boca da noite pros guarda num me pegar, nesse tempo já tinha guarda, a gente já passava trancano [...] passava sabão no eixo do carro pra num cantar, passar na rua de Irecê, passava bem dento do cabaré de Irecê naquela época. [...]. E: Mais ou menos quando, que época? En: (19)57, (19)58 era mais ou menos. [...] Fiscal, já tinha que pagar multa, imposto! Tinha que pagar imposto já492.
Um novo órgão de incentivo a produção agrícola chegou em Irecê ainda em 1953: a
Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), que atuou incentivando o uso de máquinas
agrícolas e prestando assistência técnica aos produtores através de sua Residência Agrícola.
Em correspondência direcionada a esta instituição, as autoridades legislativas de Irecê
relataram a esperança de que a instalação do “serviço de mecanização da lavoura” gerasse o
“levantamento para dias melhores” e de que “este serviço” preparasse “os filhos desta terra
para a batalha da produção que muito está a carecer a nossa querida Pátria”493. Nesse mesmo
ano o Banco do Brasil iniciou a concessão de financiamentos para as propriedades rurais via
Carteira Agrícola494, atendendo a alguns produtores do Sertão de Irecê nas agências das
cidades vizinhas, especialmente Jacobina e Barra do Rio Grande.
490 CMI, Matéria Aprovada em discursão final (documentos diversos). Projeto de Lei nº 52 de 1952 – Orça a Receita e fixa a Despêsa do Município de Irecê, para o exercício de 1953, Despesas [s.p.], 1952. O valor total reservado ao fomento agrícola e pecuário para 1953 foi de Cr$ 48.700,00. 491 CMI. Secretaria da Câmara Municipal – Correspondência Expedida 1961.Correspondência do Prefeito Deraldo da Silva Dourado encaminhada à Câmara de Vereadores. 15 de outubro de 1957. Irecê. 492 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011. 493 CMI, Câmara Municipal Arquivo da Secretaria – Ofícios 1955. Correspondência do Presidente da Câmara de Vereadores de Irecê, Renério J. Dourado, ao Agrônomo da Residência Agrícola de Irecê, Ivan Chagas. [1955]. Irecê. 494 DUARTE, Aluizio Capdeville. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano. In: Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, out/dez. 1963, p. 55.
186
Imagem 9: Produção agrícola das principais culturas da “região agrícola” de Irecê (1950-1956)
Em 1956 foi também instalada na cidade de Irecê a agência do Banco da Bahia S/A, e
ainda nesse decênio teve início a chamada “Operação Irecê”, que unia a ação da Secretaria de
Agricultura do Estado da Bahia e da CVSF no sentido de financiar a compra de tratores,
arados, inseticidas, implementos agrícolas e garantir o serviço técnico de manutenção495. Ao
lado dessas ações as autoridades da cidade buscaram alertar constantemente o Governo
Estadual sobre a insuficiência do número de máquinas e recursos diante da crescente demanda
dos lavradores e dos “incessantes” apelos “no sentido (de) lhes ser concedida sementes (de)
feijão (e) milho dado custo elevado destes cereais nesta região tornando sua aquisição
inacessível (aos) agricultores pobres desejosos (de) semeiar (sic) suas pequenas roças”496.
O geógrafo Aluízio Capdeville Duarte, que visitou o Sertão de Irecê em 1963,
apresenta os seguintes dados relativos à produção agrícola no Platô Norte Diamantino e áreas
próximas, por ele denominada “região agrícola de Irecê”, no período de 1950 à 1956.
Fonte: DUARTE, Aluizio Capdeville. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano. In: Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, out/dez. 1963, p. 54.
A partir dos registros do autor observamos uma elevação significativa das quantidades
de grãos produzidas a partir de 1952. Como vimos, esse momento condiz com o período de
chegada dos primeiros órgãos e ações de desenvolvimento agrícola à cidade de Irecê. Embora
importantes para uma mensuração das mudanças ocorridas nos níveis e condições de
produção do Platô durante a década de 1950, os dados apresentados por Aluízio Capdeville
495 Idem, Ibidem, p.54. 496 CMI, Secretaria da Câmara Municipal Correspondência Expedida 1961. Solicitação do Presidente e secretário da Câmara Municipal de Irecê ao Governador da Bahia Dr. Régis Pacheco. [1951 à1955]. Irecê. (grifo nosso).
187
Duarte se tornam passíveis de questionamento, na medida em que o autor não apresenta a
fonte de onde os extraiu. A ação governamental de maior peso no Sertão de Irecê até a década
de 1950 foi, contudo, a criação da estrada de rodagem ligando o município de Feira de
Santana a Xique-Xique, concluída em 1959.
Essa via tornou-se fator central para expansão e consolidação das políticas
governamentais no Platô Norte Diamantino e roximidades e pode ser entendida como parte
integrante da política de incentivo dos Governos Baianos ao uso do automóvel, que se
estendia desde a década de 1920, definida por Antônio Fernando Guerreiro de Freitas como
“febre de construir estradas”497. Ao possibilitar o acesso e a realização de investimentos em
áreas ainda pouco conhecidas pelos poderes públicos estaduais e federais, essa rodovia, que
passou a ser denominada BA-052, alterou a hierarquia dos centros urbanos do interior baiano.
Cidades como Jacobina e Xique-Xique, pólos comerciais da parte central da Bahia até meados
do século XX, passaram a competir com outros núcleos urbanos e a partir da década de
1970/1980 perderam importância econômica e populacional para cidade de Irecê.
Embora já circulasse pelo Platô Norte Diamantino desde a década de 1940, foi a partir
da abertura da BA-052 que o caminhão se popularizou nesta área. A maior frequência desses
veículos permitiu o aumento dos fluxos comerciais e de transporte por meio da diminuição do
tempo gasto para deslocamento, da elevação da capacidade de carga e da integração das
comunidades sertanejas mais distantes à esfera estadual e nacional de circulação de produtos.
No Sertão de Irecê os caminhões chegavam trazendo mercadorias vindas de outras áreas do
Estado e retornavam com produtos agrícolas como feijão, milho, mandioca e mamona e sua
presença causava admiração aos habitantes dos lugarejos. Guilhermino diz que: [...] o primêro carro que entrô aqui (América Dourada – João Dourado) dento, o povo chamava Asa Branca, era um caminhão Chevrolet, um GMC cara branca, a pele (pintura) dele era branca, né, e ele entrava aqui cantano Asa Branca, o povão saía tudo das casa pra ver! Muié, home e tudo, saía tudo pra ver! [...] esse carro vinha desse mundo aí, de Feira de Santana e tudo mais, entrava aqui e foi trazeno mercadoria [...]498
Em 1960 já estavam implantados sobre o Sertão de Irecê os principais elementos de
desenvolvimento rural: o representante financeiro, o órgão do Governo Estadual voltado para
o incentivo agrícola, o crédito, a máquina (caminhão, trator), a assistência técnica e a estrada.
497 FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro de. “Eu vou para a Bahia”: a construção da regionalidade contemporânea. Bahia Análise & Dados. Salvador-Ba: SEI, vol. 9, nº 4, mar/2000, p. 32-34. 498 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
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Todavia, com exceção da BA-052, de natureza diversa, o acesso às demais tecnologias e
serviços deu-se de forma restrita, limitada aos grandes produtores devido ao número reduzido
de equipamentos, aos elevados custos de manutenção e aluguel de implementos e ao
distanciamento entre órgãos de assistência e pequenos produtores. Zizinho esclarece: En: Foi o primêro trator que a gente cunheceu foi o da CODEVASF. E: E como era assim, o pessoal usava ele como? [...]Ah! aquilo ali era difíci,[...] só trabalhava pra, era pra gentão, num era pra gentinha piquena, que fazia alguma coisa com ele não. Xxxxx, tratozão azul, ele vêi de xx, tinha o de istêra, tinha ôto xxx, abria tanque! 52 (1952) abriu tanque aqui na região aqui499.
É porque nessa época (final dos anos 1950 e início dos anos 1960) quem fazia contrato no banco (do Brasil), tinha o banco do Brasil em Jacobina, e a coperativa, era pôcas pessoas que fazia contrato, que tinha condições de sair daqui pra ir fazer um contrato em Jacobina, tinha gente de ficar 30 dia lá em Jacobina. [...] Era, aqueles que tinha aquelas área grande, num sabe, tava bem estruturado, hoje em dia todo mundo faz um contrato no banco, vai no Banco do Nordeste, vai no Banco do Brasil, faz xxx, faz contrato com qualquer um documento, aquele tempo num fazia não! Num era!?500.
Sendo limitadas, pouco interferiram essas primeiras diligências de modernização na
vida dos trabalhadores rurais do Sertão de Irecê, em nada amenizando as penúrias que se
alastravam diante da ocorrência de estiagens e pragas. Donald Pierson destaca que “durante
sua primeira visita ao vale [...] uma área muito extensa em volta de Irecê havia sido devastada
pelos gafanhotos em janeiro e fevereiro daquele ano (1950). O prefeito local considerava isto
um ‘fato quase perene’. Até mesmo o ‘matapasto’ havia sido devorado”501. Esse quadro
permaneceu ainda por certo tempo. Cerca de dez anos depois a Câmara de Vereadores de
Irecê alertou às autoridades federais sobre a ocorrência de uma nova seca que causou “efeitos
DESASTROSOS”, e solicitou verbas para a realização de obras que atenuassem as “enormes
dificuldades” ocorridas “devido (a) falta (de) chuvas”, o “prejuízo quase total (da) safra” e o
“exodo”502. Nesses momentos, para parte relevante da população pobre do Sertão de Irecê,
desassistida pelas recentes iniciativas de modernização rural, a fuga para outras áreas em
busca de melhores condições de vida foi uma das poucas, se não a única, solução.
499 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. O entrevistado se refere a CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco - por ser essa a referência onomástica mais recente para o órgão, que em 1952 ainda se chamava CVSF – Comissão do Vale do São Francisco. 500 Idem, Ibidem, loc. cit 501 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 474. 502 CMI, Secretaria da Câmara Municipal Correspondência Expedida 1961. Solicitação dos Vereadores da Câmara Municipal de Irecê destinada ao Presidente da República. [1957 à1961]. Irecê.
189
Em Irecê, na Bahia, [...] um vaqueiro [...] estava de partida com para Goiás com nove companheiros porque, como disse “ouvimos dizer que chove lá, enquanto que aqui faz uma seca danada o ano inteiro”. [...] Duas outras famílias, num total de dez pessoas, estavam também de partida na mesma ocasião, por caminhão, a caminho de Montes Claros, de onde esperavam continuar até Anápolis, em Goiás.503
Apesar do aspecto restrito, as primeiras iniciativas de modernização rural implantadas
no Sertão de Irecê até 1960, elevaram a produção em anos agrícolas normais e ajudaram a
tornar o Platô Norte Diamantino e as áreas próximas um espaço atraente aos fluxos
migratórios. Entre 1950 e 1960, o conjunto de municípios que atualmente compõe a Região
Administrativa de Irecê (de acordo com a regionalização da SEI: América Dourada, Barra do
Mendes, Barro Alto, Cafarnaum, Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê,
Itaguaçu da Bahia, João Dourado, Jussara, Lapão, Mulungu do Morro, Presidente Dutra, São
Gabriel, Uibaí e Xique-Xique) apresentou crescimento médio populacional de 3,47%a.a.(ao
ano), enquanto a taxa estadual era de apenas 2,04%a.a.504. Em 1950 habitavam nesses
municípios pouco mais de 97.800 pessoas, em 1960 esse número se elevou para
aproximadamente 129.800 indivíduos. Nesse conjunto, os municípios que apresentaram maior
elevação populacional nesse período foram Irecê, cuja população cresceu 128%; Presidente
Dutra, com acréscimo de quase 88% e Xique-Xique, com cerca de 44%505.
Os grupos migrantes que chegaram ao Sertão de Irecê provieram especialmente de
outros estados do Nordeste atingidos por estiagens. Nesse sentido, comum foi assistir os
caminhões “paus-de-arara” adentrarem o Sertão e suas poeirentas estradas conduzindo
“carradas” de “nortistas” em busca de trabalho nas lavouras, apoio técnico-financeiro e terras
para cultivo. Muitos deles adquiriram terras próprias aí se fixando. Guilhermino demonstra
bem como se intercalavam esses fatores:
[...] aqui em João Dourado aqui, você vê, esse mundo aqui tudo é imatado [...] Quando o banco financiô nêgo meteu o braço pra dento aí de nêgo dismatar aí 200, 300 tarefa de mato aí era rápido, né, com trator, com gente trabaiano, aparicia gente de todo o lado, o norte nesse tempo soltô povo muito de Pernambuco, de Ceará, o povo ia passano necessidade, chegava era a carrada e mais carrada (de pessoas), né, de gente, aí destampô (destampar, abrir) o mundo foi ligêro, né506.
A busca crescente por terra moveu também os trabalhadores locais. Relata Juarez:
503 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 51. 504SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes: Região de Irecê. Salvador: SEI, 2000. (Série Estudos e Pesquisas, nº 48), p. 21. 505 CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos regionais: VIII região de planejamento Irecê. Salvador: CEI, 1985, p. 13-16. Exclui-se aqui os dados referentes ao município de Cafarnaum, os quais não foram identificados. 506 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
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Nós mesmo, quando nós vimo que o campo ia acabar, eu mais o véi meu pai ainda cerquemo uns pedaço de mato que tinha incostado a nossa roça, a nossas rocinha, que fiquemo, que nós coloquemo esse móizim de gado, e quem num fez isto, os ôtos chegantes que vinha de fora ia apusseano (apossando)507
A fala do entrevistado nos remete às observações de Nazareno José de Campos. Este
autor afirma que diante das pressões de valorização fundiária impostas pelo capitalismo, os
próprios beneficiários das terras de uso comum terminam por colaborar com sua extinção
pensando agir contra os grandes usurpadores508. No ritmo em que se elevou a demanda e a
ocupação dos terrenos do Platô Norte Diamantino ou de áreas próximas a este, o apossamento
foi sendo substituído pela compra, dando início a um mercado de terras que se alargou nas
décadas seguintes, como informa o vaqueiro Juarez:
Esse povo do norte que chegô aqui no Gabriel (São Gabriel) [...] e aqui uns comprô e ôtos só apussiô (apossô)! Apussiô terra, depois, os derradêro foi que compraro terra, os premêro que chegô ainda tinha terra solta aí, tinha campo, apussearo terra aí. [...] Tem gente aqui que ficô sem nada, vendeu tudo! Filho da terra!509
Aluízio Capdeville Duarte registrou em 1963, como testemunha ocular, os
direcionamentos iniciais da ocupação e desmatamento das áreas de campo:
os principais trechos cultivados se estendem de modo particular da cidade de Irecê para leste, oeste e sudeste, nas áreas de Lapão (então, distrito de Irecê) e do povoado de Gameleira. Os outros trechos e a parte leste do município de Central não apresentam a mesma intensidade quanto a ocupação agrícola. Na área setentrional de Irecê, isto é, no distrito de Gabriel, a caatinga é ainda abundante510
Hoje, a caatinga está bem reduzida, pois foi derrubada para instalação das lavouras. As capoeiras em diversos estágios, isto é, ora mais fechada e ora mais alta, aparecem por toda a área. Na parte setentrional do município (de Irecê) é que encontramos um trecho mais contínuo daquela vegetação que ainda não foi devastada, pois, como está mais distante das principais vias de comunicação, o povoamento, aí, ainda não se processou de maneira efetiva. [...] no distrito de Gabriel, a caatinga é ainda abundante e aí, a criação miúda representa papel digno de nota, enquanto a lavoura ocupa menor superfície. [...]511
A partir das observações de Capdeville observamos que o processo de derrubada da
caatinga e expansão das lavouras teve como centro as áreas circunvizinhas à cidade de Irecê, e
daí, se expandiram em direção às bordas do Platô Norte Diamantino. A análise dos dados
relativos ao número de estabelecimentos rurais e a área ocupada no município de Irecê512, é
507 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 508 CAMPOS, N. J. de. Terras de uso comum no Brasil..., p. 268-272. 509 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 510 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p.43. (grifo nosso). 511 Idem, Ibidem, loc. cit. 512 Segundo divisão administrativa anterior a 1985.
191
significativa para entendermos a velocidade das mudanças fundiárias que se processaram no
Sertão de Irecê nas décadas iniciais da segunda metade do século XX.
Tabela 4: Área cultivada x número de estabelecimentos no município de Irecê (1950-1970)
Estrato de área (ha)
Área Cultivada (ha) Número de Estabelecimentos
1950(ha) 1960(ha) 1970(ha) 1950(nº) 1960(nº) 1970(nº) 1 3 32 1 3 47
1-2 1 13 164 1 9 108 2-5 556 493 3.205 135 131 901 5-10 1.985 2.663 7.041 263 332 982
10-20 4.859 6.117 11.425 341 421 798 20-50 8.454 22.589 37.858 285 686 1.169
Subtotal A 15.855 31.878 59.725 1.026 1.582 4.005 50-100 5.752 26.111 40.232 81 347 559
100-200 6.113 32.679 50.694 44 230 368 200-500 10.914 61.197 59.711 33 207 200 500-1000 3.788 20.207 21.011 5 31 30
1000 e mais 5.139 17.687 14.023 2 14 8 Subtotal B 31.706 157.881 185.671 165 829 1.165 Total Geral 47.561 189.759 245.396 1.191 2.411 5.170
.
Gráfico 1
192
Gráfico 2
Fonte: WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986 p. 168 (adaptado).
Os dados demonstram uma elevação de aproximadamente 334% no número total de
estabelecimentos rurais e um acréscimo de 416% na área total cultivada entre 1950 e 1970 no
município em destaque. O primeiro índice demonstra o ritmo de apossamento das áreas de
campo, enquanto o segundo aponta diretamente para o intenso processo de desmatamento,
uma vez que, nem sempre a criação dos estabelecimentos vinha acompanhada imediatamente
da derrubada da caatinga. A tabela acima ainda nos permite compreender a participação das
pequenas e grandes propriedades nesse processo. O número de estabelecimentos acima de
50ha foi elevado em 606%, enquanto o número de estabelecimentos com até 50ha cresceu
apenas 290,3% no período analisado. Esses dados demonstram que a intensa horizontalização
das terras no contexto referido deu-se por meio de uma relação combinada entre
latifundização e avanço dos pequenos produtores sobre as áreas ainda não apossadas.
Esse ritmo intenso de derrubada da caatinga e apossamento das áreas, extendeu-se
pelo Platô Norte Diamantino e logo ultrapassou suas fronteiras. Recorrendo novamente às
observações de Aluízio Capdeville Duarte destaquemos um pouco mais sobre esse processo.
[...] nos últimos dez anos tem sido grande o devastamento das matas para a abertura de novas parcelas, ampliando muito o tamanho dos estabelecimentos. [...] Após alguns anos de cultivo essas terras são abandonadas, pois, há trechos ainda utilizados pelo livre pastoreio, que podem ser anexados sem grandes preocupações e com bons rendimentos513
513 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p. 57.
193
A criação do Sistema Nacional de Crédito Rural em 1965 difundiu o crédito entre os
trabalhadores, elevou os recursos aplicados e intensificou a ocupação das áreas do Platô. Um
dos relatórios do Governo Baiano destaca:
Até o presente (1969-1970) já foram financiados 593 projetos (de custeio para as lavouras de feijão e milho) num montante de Cr$ 2.030.050,00 [...] As perspectivas para 1971 são bastante favoráveis pois a região será beneficiada pelo Plano Estadual para aplicação de crédito rural, onde foram alocados recursos da ordem de Cr$ 5.170.000,00 para inversões a curto, médio e longo prazos, além de ampliar consideràvelmente (sic) o quadro de pessoal técnico de nível superior514
Guilhermino afirma que
quando o banco deu pra financiar, aí o povo, muita gente de fora comprô terreno, muitos daqui que num tinha terreno meteu o peito e apussiô das terra, fez documento, que o banco só dava dinhêro a quem tinha documento, moço, tinha terreno muito, muito terreno aí do Estado que num tinha nem dono né515.
Zizinho explica que o banco “soltava aquele dinhêro, soltava um pôco pra distoca,
depois o ôto já pra planta, aração e planta ôta parcela, ôta parcela pra capina, dava 2 parcela
pra capina, e a colhêta. Tudo eles dava dinhêro!”516. Em que pese essa crescente difusão do
crédito oficial, as fontes privadas de financiamento da agricultura continuavam ativas na
década de 1960. O mesmo relatório destaca que paralelamente às suas atividades de compra e
venda de produtos o “agente comercial primário” continuava realizando “adiantamento(s) em
dinheiro” aos produtores, vendendo “ferramentas de trabalho, sacarias, e outras utilidades”517.
O primeiro sinal de apossamento dos terrenos era a derrubada da mata e a abertura de
trechos estreitos que marcavam as fronteiras da área, chamadas localmente de “picadas” ou
“variantes”. Em seguida realizava-se a derrubada da vegetação por meio do uso do fogo, de
ferramentas e, posteriormente, do uso de tratores. Por fim, efetuava-se a coleta do restolho.
Guilhermino informa que a caatinga era derrubada “a braço de home! [...] No machado, na
chibanca, nêgo metia chibanca aí em catinga, arrancaro o pau por tudo que era sêpa, queimar
e meter o arado, né, ôtos mitia gradão, trator, gradão e arrancava tudo, né, ôtos rancava com
trator. [...] esse ‘trator de istêra’ desmatô muita terra aqui”518. Zizinho afirma que: “Aqui era
roçado era na foice! Cortar aquele mato todim, rivirar pra depois queimar, fazer roçado,
depois voltar rancar o toco, pra dêxar a terra que nem isso aqui. Limpa! Pra depois o trator
514 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., p. 14. 515 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 516 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 517 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., p. 21. 518 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
194
arar, pra depois a gente plantar. É sofrido!”519. A irreversível ação sacrificava plantas e
animais, deixando a terra exposta e revolvida. Paralelo ao desmatamento e ao preparo do solo
dava-se o cercamento das áreas.
Segundo Aluízio Capdeville Duarte no início de 1960 “as parcelas (eram) separadas
por cerca viva utilizando o “quiabento” que é vegetal do tipo de trepadeira com grande
número de espinhos, que desempenha no sertão baiano o mesmo papel do “avelós” na zona do
agreste”520. A chegada do arame farpado substituiu essa forma de construção das cercas.
Juarez se lembra que o uso do arame iniciou-se em São Gabriel “de 60 pra cá, ô de 70 pra
cá!”521. Destaca ainda o entrevistado que, durante a década de 1960, ele e seu pai adquiriram
bolas de arame em Irecê para construção das primeiras cercas com esse material nas
propriedades da família. O termo “bola” é utilizado comumente entre os trabalhadores para
definir a forma de rolo sob a qual é vendido ou guardado o arame. Hermes, irmão de Juarez,
afirma que, quando da sua chegada à Vila de Recife de Jussara em 1968 já haviam
propriedades cercadas. Ressalta ainda que “tudo que fôro dismatando as catinga, fôro
cercando com essas cercas de arame, que primêro era de madêra! De garrancho! [...] quando
chegô... pássaro a comprar o arame, que apareceu o arame cerca o... ligêro né! Faz umas
cercas ligêras e fica bem cercado”522.
A difusão das cercas de arame farpado foi fator essencial para expansão da agricultura
e apropriação das áreas de campo do Sertão de Irecê, uma vez protegia as lavouras do ataque
dos animais que ainda eram criados à solta, ao mesmo tempo em que os expulsava para áreas
mais distantes. Deixando transparecer essa importância, em 1971, o Governo Baiano garantiu,
por meio do relatório Documento de Irecê, o encaminhamento para o Sertão de Irecê de
“arame farpado” da marca “Moto San Martin”, “grampo” e “prego” durante “todo o ano”523.
O arame farpado foi inventado nos Estados Unidos em 1873 (patenteado em 1874) e
aceito rapidamente entre os pecuaristas norte-americanos. Luiz Antônio Ferraro Júnior
registra a produção de 270 toneladas de arame em 1875 e 135 mil em 1901, destaca ainda esse
autor que sua implantação nas planícies do Texas (EUA) teve impacto direto na vida dos
indígenas e na migração natural dos animais. Em meados do século XX, o arame farpado
519 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, p. 42, 24 de set/2011. 520 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p. 51. 521 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 522 Idem, 3º momento, 16 de out/2010. 523 BAHIA. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Documento de Irecê. Salvador: SEPLANTEC, 1971a, p. 6.
195
passou a ser implantado em todas as áreas rurais do Brasil524, instituindo uma forma rígida,
material, privada e exclusiva de fronteiramento e apropriação das áreas, bem diferente das
formas sociais usadas pelas comunidades tradicionais, como no caso das populações do Sertão
de Irecê.
Além da disponibilidade de terras, da difusão do crédito rural e do cercamento, outro
fator de destaque no processo de modernização rural do Sertão de Irecê entre as décadas de
1960 e 1970 foi o crescimento da frota de tratores. Nesse período, o sistema de aluguel de
máquinas implantado pelo Estado, passou conviver com a presença cada vez maior de
equipamentos adquiridos por produtores locais. Em 1961 o então Governador da Bahia,
Juracy Magalhães, informou as autoridades de Irecê que o “maquinário agrícola” iria
“retornar”, atendendo o “apêlo (dos) lavradores”525, nove anos depois, um dos documentos
oficias relatou que os municípios que compartilhavam o Platô Norte Diamantino se
destacavam “pela extensão da área cultivada, pelo valor da produção e pela utilização da
máquina nos trabalhos agrícolas”526. Em 1970, a Fundação de Planejamento do Estado da
Bahia atestou a existência de “aproximadamente 600 tratores agrícolas” em operação na área
e “mais de 130 pedidos de financiamento para aquisição de novos tratores” “nas agências
bancárias locais” 527.
Os dados relativos às taxas de tratorização no Sertão de Irecê, porém, apresentam
grande oscilação e requerem cuidados. Outro órgão oficial, destacou para o mesmo período
(início de 1970) a existência de apenas 352 tratores no Platô, tendo esse número, ainda
segundo o documento, sido elevado para 901 máquinas em 1975528. A disparidade dos dados
sobre a tratorização no Sertão de Irecê demonstra a dificuldade que essa rápida difusão
impunha à geração de registros coerentes com a realidade e aponta para o uso desses índices
como recurso de propaganda política por parte das autoridades. As elevadas cifras, por outro
lado, destacam a intensidade com que o trator assumiu o posto de novo símbolo do meio rural.
A elevação do número de tratores esteve diretamente ligada ao crescimento do desmatamento
das áreas de campo e a dilatação das áreas cultivadas. 524 FERRARO JÚNIOR, Luíz Antônio. Entre a invenção da tradição e a imaginação da sociedade sustentável: um estudo de caso dos fundos de pasto na Bahia. Brasília – DF: UNB, 2008 [Tese de doutorado], p. 45. 525 CMI, Câmara de Vereadores Correspondências Recebidas, telegramas, etc, 1959. Telegrama do governador Juracy Magalhães à Câmara Municipal de Irecê. 25 de abril de 1961. Irecê. 526 IBGE. Divisão do Brasil em micro-regiões homogêneas 1968. Rio de Janeiro, 1970. p. 233. 527 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., [de 1969 a 1972], p. 10-11. 528 BAHIA. Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração; SEBRAE. Diagnóstico de Municípios - Região de Irecê: Central. Salvador: SICM, 1995 (Série: Desenvolvimento regional, 23), p. 91.
196
O aprofundamento das medidas de modernização da agricultura do Sertão de Irecê
atraíu ainda mais os grupos migrantes. Entre 1960 e 1970 a taxa de crescimento populacional
do conjunto de municípios da atual Região Administrativa de Irecê (de acordo com a
regionalização da SEI) passou para 4,1%a.a, enquanto a média estadual foi de apenas
2,39%a.a529. O resultado da união entre a disponibilidade de terras, a mecanização, o
cercamento, o crédito e a oferta de mão-de-obra foi a construção de uma relação recíproca na
qual a elevação de um dos fatores ocasionava efeitos de crescimento nos demais.
Como reflexo dessa dinâmica, a produção agrícola não só cresceu como também
desenvolveu um ritmo galopante de ascensão (exceto nos momentos marcados pela ocorrência
de estiagens) que se estendeu até a década de 1980. Entre 1966 e 1968 o conjunto de
municípios formado por Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes,
Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí
apresentou os seguintes índices de produção para as três principais lavouras temporárias:
529 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes: Região de Irecê..., p. 21.
Font
e: Z
ando
naid
e G
. dos
Rei
s, 20
11.
Foto 2: Zadruga, um dos primeiros modelos de tratores agrícolas a chegarem no Sertão de Irecê, ainda na década de 1950
197
Tabela 5: Relação total da Quantidade produzida (t) X Área Cultivada/Colhida (ha) X Valor (Cr$) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí entre 1966-1968.
Gráfico 3
Fonte: FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê. Salvador: [s.n.], [de 1969 a 1972], Síntese das tabelas 3.2-I, 3.2-II, 3.2-III-32.
Em 1966 a quantidade de feijão produzida nos municípios acima analisados equivaleu
respectivamente a 8,6% da produção total do Estado da Bahia, em 1968 essa cifra foi elevada
para 19,4%. Isso significou um crescimento de 147% (20.943 toneladas) em apenas dois anos.
Os principais produtores de feijão no contexto abordado foram Irecê, Central e Uibaí, que
centralizaram 74,4% da produção. O milho representou entre os anos de 1966 e 1968 a
segunda cultura mais importante, tendo sua produção sido elevada em 228%, correspondendo
Discriminação Quantidade (t) Área Cultivada (ha) Valor (Cr$)
1966 1967 1968 1966 1967 1968 1966 1967 1968 Feijão 14.176 25.902 35.119 9.855 34.400 40.885 5.781.280 9.734.910 10.187.240 Milho 20.381 48.360 66.856 18.185 49.150 54.690 1.869.098 6.673.350 6.467.160
Mamona 28.330 - 4.446 23.830 - 10.130 5.020.617 - 945.440
TOTAL 62.887 74.262 106.421 51.870 83.550 105.705 12.670.995 16.408.260 17.599.840
198
respectivamente a 8,5% e 23,2% da produção estadual e centrando-se principalmente nos
municípios de Irecê, Central, Presidente Dutra e Uibaí530.
Embora apresente taxas negativas de produção e redução da área cultivada no período
observado, a mamona se destaca como terceiro produto mais importante do referido conjunto
de municípios entre 1966 e 1968. Esse produto ganhou maior destaque a partir de meados da
década de 1970, quando da ocorrência de estiagens que afetaram as culturas de menor
resistência. Ainda de acordo com os dados apresentados, observamos que o volume total de
recursos aplicados na produção dessas três culturas no período observado foi acrescido de
apenas 38,8%. A diferença entre os níveis de elevação da quantidade total de grãos colhida e
os níveis de elevação dos investimentos, aponta para um acréscimo produtivo de baixo custo,
garantido especialmente pela dilatação das áreas de cultivo.
A chegada de novos órgãos e iniciativas governamentais na década de 1970 dilatou os
processos de desenvolvimento agrícola gestados nos decênios anteriores e expandiu a
modernização conservadora sobre Sertão de Irecê. Nesse ano (1970) foi instalada em Irecê
uma das unidades regionais da ANCARBA (Associação Nordestina de Crédito e Assistência
Rural da Bahia)531, o que resultou na difusão ainda maior da assistência técnica e da extensão
rural e na elevação dos níveis de produção. Em 1974 uma nova ação governamental
intensificou o processo de modernização do Sertão de Irecê: o asfaltamento da BA-052, que
nessa época já era conhecida como Estrada do Feijão. Seguindo o processo que se decorria
desde a sua criação, o Governo Baiano reforçou nesse momento a idéia de que essa via
possuía a “missão” de despertar o interior. Em um dos documentos analisados encontramos a
seguinte imagem:
530 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê ..., [de 1969 a 1972], p. 15-17. 531 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola da Região de Irecê. Irecê: EMATERBA, 1980a, p. 26.
199
Imagem 10: Asfaltamento da BA-052, Estrada do Feijão
Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, (capa final).
O texto que acompanha a imagem destaca:
Estradas... mais integração A Estrada do Feijão interligará dezenas de municípios em área de maior importância para a Economia e o abastecimento do Estado da Bahia. Os 462 Km desta rodovia podem demonstrar que a disposição inicial deste Governo, no sentido de integrar todo o interior baiano, já se transformou em realidade palpável. A este exemplo aliam-se muitos outros, ratificando a total integração do Estado, promovida nestes 3 anos de Governo532.
A foto demonstra uma bela C10 vermelha sobre o recente asfalto da Estada do Feijão.
As letras garrafais estampadas em sua carroceria expõem: “Chevrolet”. Esse automóvel por
muito tempo foi considerado nos sertões baianos como um objeto de luxo e trabalho. Era ao
mesmo tempo um carro urbano e rural, e nele se associaram o conforto interno e a grande
capacidade de carga, a robustez e o aspecto moderno (pelo menos para o período), fatores que
532 Idem, Ibidem, (capa final), (grifo do texto).
200
tornaram a máquina um objeto desejado. É importante observarmos que os dois elementos da
imagem estão diretamente ligados a uma nova forma de marcar o tempo, de agilizar a
circulação, as tarefas e a comunicação, a adoção de novos caminhos sob novas formas. A
imagem reproduz, pois, o avanço da estratégia do governo baiano de afirmação da tecnologia
como mecanismo para um novo futuro, desenvolvido e produtivo, linear e rápido, sob o
interior baiano. Ainda hoje diversos desses carros circulam nas cidades e zonas rurais do Platô
Norte Diamantino e do seu entorno.
Segundo os órgãos oficiais, a Estrada do Feijão, quando do seu asfaltamento, era “a
melhor rodovia que corta(va) o solo baiano, obedecendo à mais avançada tecnologia” e junto
a ela desenvolver-se-ia uma “rede de rodovias” que seria conectada aos municípios e serviria
de artérias para implantação de serviços de eletrificação, educação, abastecimento, saúde,
comunicação e exploração dos potenciais turísticos. Sua função maior, porém, era servir de
escoadouro produtivo entre o interior e os grandes centros urbanos.
A estrada veio beneficiar cerca de 22 municípios e se constituirá no principal escoadouro da extraordinária produção cerealífera da micro-região de Irecê, bem como da produção bovina de Rui Barbosa e Mundo Novo. Os acessos serão permitidos a todas as cidade da sua zona de influência (8 por cento do território estadual) através de rede de rodovias alimentadoras construídas pelo Governo do Estado, Consórcio Rodoviário e Prefeituras. Cabe salientar, ainda, que todos os acessos às cidade mais próximas da BA-052 estão sendo asfaltados533.
A chegada dessa nova ação atraiu ainda mais a atenção para os potenciais produtivos do Platô
Norte Diamantino e de suas áreas marginais, uma vez que resolveu uma das principais
queixas das autoridades e comerciantes: as difíceis condições de tráfego dos caminhões pelo
interior.
Intensificando ainda mais o processo de expansão das áreas de lavoura, ainda na
década de 1970 deu-se a expansão de novas técnicas de desmatamento no Sertão de Irecê: o
“correntão”. Essa técnica consistia no uso de dois tratores do tipo esteira, distanciados em
torno de 20 metros um do outro, que seguiam paralelos, unidos por uma espessa corrente que
arrastava mesmo as árvores mais resistentes. A figura abaixo, baseada em um dos mapas da
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, representa o avanço das áreas de
lavoura sobre à caatinga no ano de 1975.
533 Idem, Ibidem, p. 6, (grifo nosso).
201
Imagem 11: Expansão das áreas agrícolas no Platô Norte Diamantino e proximidades (1975)
Áreas agrícolas Vegetação nativa
Jussara
São Gabriel
Lapão
Presidente Dutra
Irecê
Font
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BA – 052 (Estrada do Feijão)
Principais Povoações e BA-052 (Estrada do Feijão)
202
Os espaços em destaque na figura correspondem a áreas agrícolas. Estas se
concentram próximas à BA-052 e em torno dos municípios de Irecê e Presidente Dutra
(Lapão e São Gabriel eram povoados de Irecê), onde já se mostram escassas as manchas de
vegetação nativa. O fechamento desta área na segunda metade da década de 1970 incentivou a
busca por novas terras em espaços mais distantes, como na parte superior da figura, onde se
localiza o município de Jussara.
A chegada de novas agências de desenvolvimento, o asfaltamento da Estrada do Feijão
e as novas técnicas de desmatamento, ajudaram a manter a continuidade do crescimento da
produção agrícola até a década de 1980, como demonstra a tabela abaixo.
Tabela 6: Relação total da Área Cultivada/Colhida (ha) x Quantidade produzida (t) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, (1970-1982).
Produção das principais culturas 1970-1982 Feijão
Ano 1970 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982
Quantidade (t) 32.715 59.468 90.183 10.164 29.489 37.300
60.635
134.763
74.127
29.060 Área
Cultivada/Colhida 39.530 85.574 139.496 65.974 75.654 119.564
87.587
192.049
264.416
302.325 Milho
Quantidade (t) 35.536 78.862 67.189 62.093 34.242 66.690
117.166
154.492
35.491
78.936 Área
Cultivada/Colhida 48.400 90.186 85.710 81.232 55.810 89.463
130.597
195.212
250.015
301.318 Mamona
Quantidade (t) 6.672 49.049 32.529 17.003 27.310 75.001 83.313 68.050 80.807 47.259 Área
Cultivada/Colhida 13.880 86.803 50.850 23.897 31.278 71.873 105.672 154.856 179.668
187.173
203
Gráfico 4
Fonte: BAHIA, Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1973; Idem, Ibidem, 1974a; Idem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem, 78/79; Idem, Ibidem, 1983.
Os dados demonstram que na primeira metade da década de 1970, os níveis de
produção e o número de estabelecimentos rurais do decênio anterior já haviam sido
superados, alcançando taxas ainda maiores a partir de 1979. Essa elevação produtiva
ocasionou também a latifundização e valorização das terras, especialmente dos solos da parte
central do Platô Norte Diamantino. Observemos os dados referentes ao número de
estabelecimentos do município de Irecê entre 1970 e 1975.
204
Tabela 7: Número de estabelecimentos no município de Irecê (1970-1975)
Estrato de área (ha)
Número de Estabelecimentos
1970(nº) 1975(nº) 1 47 9
1-2 108 27 2-5 901 506 5-10 982 649
10-20 798 653 20-50 1.169 930
Subtotal A 4.005 2.774 50-100 559 479
100-200 368 347 200-500 200 251
500-1000 30 38 1000 e mais 8 12 Subtotal B 1.165 1.127 Total Geral 5.170 3.901
Fonte: WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986 p. 168 (adaptado).
No contexto analisado, o número de estabelecimentos com área inferior a 50ha no
município de Irecê caiu 30,7%, o que equivaleu ao desaparecimento ou a exclusão de 1.231
pequenas propriedades. Paralelo a esse movimento, o número de estabelecimentos com mais
de 200ha manteve-se em expansão, reforçando a concentração de terras (via incorporação das
pequenas propriedades) e denunciando o esgotamento das reservas de terra livre no
município. A exclusão dos pequenos produtores das áreas centrais, acelerou a dilatação das
fronteiras do projeto de modernização rural do Sertão de Irecê, uma vez que posseiros,
arrendatários e criadores passavam a buscar novas áreas às margens do Platô Norte
Diamantino.
É importante observarmos no gráfico 4 que a ocorrência de períodos de baixa
produção, como os anos de 1981 e 1982, nem sempre significou a redução da área trabalhada,
pelo contrário, nesses momentos os agricultores buscaram reparar as perdas estendendo suas
áreas de cultivo. De forma geral, os números apontam para um constante e intenso avanço das
lavouras sobre as áreas de campo.
Os registros da tabela 6 e do gráfico 4 ainda denunciam uma das principais queixas
das autoridades no decorrer do processo de expansão da modernização conservadora sobre o
território do Sertão de Irecê: a inconstância das chuvas, que expunha a produção ao risco,
gerando quedas produtivas e consumindo os recursos, desorganizando a estrutura social e
diminuindo a mão-de-obra disponível. Exemplifiquemos essa ocorrência a partir da
205
observação dos dados pluviométricos do Sertão de Irecê entre novembro de 1975 e março de
1978, um dos momentos de estiagem mais grave que ficou conhecido como “seca de 76”.
Tabela 8: Dados pluviométricos do período 1975/1978, dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí
Ano
agrícola Nov Dez Jan Fev Mar
1975/76 1975 1976
18,4 39,5 8,3 229,4 0,3
1976/77 1976 1977
143,2 20,9 293,2 32,1 5,5
1977/78 1977 1978
122,9 393,0 145,5 318,3 79,6 Fonte: BAHIA. Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração; SEBRAE. Diagnóstico de Municípios - Região de Irecê: Central. Salvador: SICM, 1995, p. 39 (Série: Desenvolvimento regional, 23).
Entre os meses de novembro e março caem a maior parte das chuvas na parte norte da
Chapada Diamantina, momento no qual se realizam as etapas de preparo e plantio da terra. O
período agrícola de 1975/1976 e 1976/1977 foi marcado por baixa e irregular pluviosidade na
área, o que configurou uma situação de estiagem suficiente para acarretar quedas drásticas na
produção das três principais culturas do Platô e interromper o processo de crescimento
produtivo da primeira metade da década de 1970, como demonstra o gráfico 4. Do ponto de
vista social, “seca de 76” provocou o agravamento das condições de vida das populações
sertanejas pobres, obrigando-as, muitas vezes, a repetir o penoso ritual de deslocamento para
outras áreas do estado ou do País.
O jornal Folha do Norte, na sua edição de 22/01/1976, apresentou informativo
registrando a chegada de 300 migrantes à cidade de Feira de Santana, provindos de Irecê,
“onde a seca vem assolando”534. Na edição de 27/01/1976 esse número de migrantes foi
questionado pelo Serviço de Integração do Migrante (SIM), o qual afirmou em nota ter feito
“levantamento em toda a cidade” e que “apenas 14 pessoas procuraram o SIM e foram
atendidas”. A nota também acrescenta que: “Pelo que se sabe, os órgãos governamentais,
principalmente a Sudene, Setrabes e Derba estão prestando socorros de emergência à 534 Jornal Folha do Norte, nº 560, 22/01/1976, p. 03.
206
população para evitar o êxodo desordenado”. Por fim, afirma o órgão que, “caso ocorra o
deslocamento da população atingida para Feira, o SIM está equipado para prestar a
colaboração possível e necessária”535.
Entre os anos de 1977 e 1978 ocorreu um maior volume e uma maior regularidade de
chuvas na parte norte da Chapada Diamantina, permitindo a recomposição produtiva, a
reocupação das áreas de cultivo que haviam sido dispensadas e a diminuição do êxodo, nesse
sentido, o Platô retomou a condição de espaço de atração populacional. Nos anos iniciais da
década de 1980, uma nova estiagem voltou a ocorrer reduzindo novamente a produção.
Preocupados com o retorno econômico dos recursos aplicados, as autoridades governamentais
afirmaram que “a irregularidade das precipitações pluviométricas nos períodos de cultivo
apresenta-se como principal fator a limitar o crescimento da produção agrícola”536 da área.
A segunda metade da década de 1970 marca a chegada dos grandes programas de
modernização rural organizados pelos Governos Militares ao Sertão de Irecê: o
POLONORDESTE e o Projeto Sertanejo. O Programa de Desenvolvimento Rural Integrado
de Irecê (PDRI-Irecê), unidade administrativa do POLONORDESTE, foi o primeiro de 5
“pólos de desenvolvimento” implantados na Bahia. Foi instituído em 1976 e iniciou suas
atividades em 1977, abrangendo 12 municípios, divididos entre 3 áreas agrícolas: 1) área
agrícola de Irecê, a mais povoada, composta por Barra do Mendes, Cafarnaum, Canarana,
Ibititá, Jussara, Central, Presidente Dutra, Uibaí, Ibipeba e Irecê; 2) área agrícola de Xique-
Xique, pouco povoada; 3) área agrícola de Sento Sé, pouco povoada e considerada de baixa
fertilidade537. Segundo informações da SUDENE o PDRI-Irecê visava:
o fortalecimento da infra-estrutura sócio-econômica da região, principalmente nas áreas de eletrificação rural, estradas vicinais, abastecimento de água, armazenagem, educação e saúde, além do apoio direto aos agricultores, através do crédito rural, da assistência técnica e da pesquisa agrícola. Serão investidos, em 1976, Cr$ 40 milhões, através da CODEVASF, Ministério da Agricultura e Governo do Estado da Bahia538.
535 Idem, nº 562, 27/01/1976, p. 03. Sobre migração para Feira de Santana ver: FREITAS, Necelice Barbosa. Urbanização em Feira de Santana: influência da industrialização (1970-1996). Salvador: UFBA, 1998 [Dissertação de Mestrado]. Sobre a ação do SIM em Feira de Santana ver: SILVA, Elizete da. Protestantismo ecumênico e realidade brasileira: evangélicos progressistas em Feira de Santana. Feira de Santana, Ba: Editora da UEFS, 2010, p. 174-176. 536 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê: resumo do diagnóstico e estratégia e programação indicativa. Salvador: CPE, 1974, [s.p.] ver: 1.3.1.4 Produção Agrícola. 537 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política governamental na Bahia e em Irecê. Salvador: CEPLAB, 1980, Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê. 538 SUDENE. Sudene informa..., p. 33.
207
Até julho de 1977 haviam sido aplicados apenas Cr$ 21.735.201, distribuído em 12
sub-projetos dos quais “Estradas Vicinais” e “Assistência Técnica e Extensão Rural” foram os
maiores beneficiados539. O Governo Federal estimou para o PDRI-Irecê no agrícola
1980/1981 um crédito para investimento de Cr$ 500 milhões, a maior parte “destinada ao
desmatamento para fins de aumento da área cultivada”, para o plantio esperava-se mais 400
milhões como crédito de custeio no mesmo período540. O volume de recursos estabelecido
pelo Programa para investimento na área agrícola (Cr$ 900 milhões) no de 1980/81 foi 22,5
vezes maior que o recurso anunciado pela SUDENE para aplicação em todo o projeto do
PDRI- Irecê no ano de 1976, que foi de Cr$ 40 milhões541. Embora não se possa cobrar
exatidão desses dados, a análise comparativa revela o ritmo de crescimento do volume de
recursos financeiros destinados a atuação do PDRI-Irecê.
Como se repetia em diversas áreas do Nordeste, numerosos foram os problemas
vivenciados durante a execução do POLONORDESTE no Sertão de Irecê. Embora o
programa anunciasse uma proposta especial de atendimento das unidades produtivas
inferiores a 50ha, os valores não foram distribuídos proporcionalmente.
Fonte: CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política governamental na Bahia e em Irecê. Salvador: CEPLAB, 1980. [s. p.], ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê – O Apoio à atividade produtiva – O Sistema de Crédito.
539 COMISSÃO ESTADUAL DE PLANEJAMENTO AGRÍCOLA (BA). Plano de desenvolvimento rural integrado da região de Irecê: Plano Operativo. Salvador: CEPA, 1977, [s.p.] Resumo das operações, tabela “Fontes de recursos liberados e aplicados na Área do PDRI-Irecê”. 540 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s.p] ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê – O Apoio à Atividade Produtiva – O Sistema de Crédito. 541 SUDENE. Sudene informa..., p. 33. 542 Esse relatório baseia-se nos dados trimestrais da EMATERBA, reconhece, porém, que existem “informações desencontradas”, mas, é um dos poucos a apresentar uma estimativa da dimensão do número de estabelecimentos beneficiados. Ele mesmo representa essa divergência de dados ao informar, páginas antes, que o número de beneficiados com crédito para o ano agrícola 1979/80 era de 5.492.
Estratos Nº de estabelecimentos Beneficiados % 0-10 13.494 2.211 16,3 10-20 2.418 1.341 55,4 20-50 2.822 1.245 44,1 50 e mais 2.128 172 8,0 TOTAL 20.862 4.969542 23,8
Tabela 9: Relação entre os beneficiados com crédito do POLONORDESTE e o total de produtores na região de Irecê, abril/79 a mar/80
208
De acordo com os dados apresentados pela Fundação de Planejamento da Bahia,
apenas 23,8% do número de estabelecimentos do PDRI-Irecê com até 50ha foram
beneficiados com o crédito rural do POLONORDESTE. É importante notarmos que apenas
16,3% das áreas menores de 10ha tiveram acesso ao crédito, embora esse estrato fundiário
correspondesse a 64,6% do total de estabelecimentos até 50ha situados no Platô Norte da
Chapada Diamantina no período. Isso significa que os menores produtores, ainda que mais
numerosos, tiveram pouco espaço no programa, em outras palavras, “o POLONORDESTE,
na medida em que seleciona os pequenos produtores, escolhe aqueles que mostram a
capacidade de corresponder às iniciativas creditícias, conforme lógica do sistema
capitalista”543.
A abertura das estradas vicinais proporcionadas pelo Programa, gerou a valorização
das terras impedindo o acesso dos mais pobres a esse meio de produção. O controle dos
grandes produtores sobre as cooperativas mais estruturadas tornou “praticamente impossível”
a ação destas como órgãos “comercializador(es) da produção agrícola do público do
POLONORDESTE”, por outro lado, o Programa não interferiu na dinâmica comercial local,
como havia sido previsto. Nos termos do Centro de Planejamento da Bahia, a ausência de
recursos para este setor já podia ser notado quando da exclusão do quesito “armazenagem” do
Plano Operativo de 1980, “sinal evidente de que a comercialização foi entregue às correntes
de mercado, conforme a lei da demanda e oferta. Deste modo, em Irecê, um kg de feijão foi
vendido a Cr$ 20,00, em março de 1980, e chegou, seis meses mais tarde, a custar Cr$
120,00”544.
O Projeto Sertanejo chegou ao Platô Norte Diamantino por meio do núcleo de trabalho
instalado na cidade de Irecê em 1977, tendo um público local de aproximadamente 12,4 mil
“beneficiários potenciais”545. Para o ano de 1980 orçou-se um recurso de 12 milhões a ser
aplicado nos subprojetos de responsabilidade desse núcleo. Atesta a Fundação de
Planejamento da Bahia que “a irrigação foi excluída do programa do Sertanejo na Bahia, pelo
fato de que o teto de crédito para investimentos não permite a implantação de infra-estrutura.
Faltaria também a experiência indispensável, tanto da parte dos técnicos quanto da
543 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê - O Apoio à atividade produtiva – O Sistema de Crédito. 544 Idem, Ibidem, ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê - O Apoio à atividade produtiva – Apoio à comercialização. 545 SUDENE. Projeto Sertanejo: características, programa de trabalho, etapa e implantação. Recife, 1977, p. 31-37.
209
população”546. Esse fato demonstrou o descompasso das ações do Projeto Sertanejo neste
estado, uma vez que a irrigação era uma das bandeiras do programa. A tabela abaixo
exemplifica o acesso dos produtores do município de Irecê às linhas de crédito.
Fonte: CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política governamental na Bahia e em Irecê. Salvador: CEPLAB, 1980. [s. p.], ver: Cap. III - Projeto Sertanejo – Recursos e Créditos
Os dados chamam a atenção pela inexistência de trabalhadores “não proprietários”
(posseiros, sem terra, parceiros, arrendatários) atendidos pelo programa, além disso, somente
48,9% dos agricultores inscritos foram “pré-selecionados”, menor ainda é o número de
propriedades visitadas pelos técnicos. Esse fato agravou-se pelos constantes atrasos nos
recursos, pelas contradições entre os objetivos e as práticas executadas e pela dificuldade dos
pequenos produtores em atenderem os critérios para conceção do crédito, entre os quais
estava a presença de um açude nas propriedades. No período de 1978 a 1980, apenas 24
operações (19 projetos de investimento e 5 planos de custeio) tinham sido concluídas e
existiam 101 em andamento (45 projetos e 56 planos), aguardava-se, contudo, em 1980, a
liberação de mais verbas uma vez que 78,4% dos recursos já haviam sido gastos547.
Paralelo a execução desses programas, a CODEVASF também desenvolvia na área em
estudo o Projeto Baixio de Irecê, objetivando irrigar 185 mil hectares, através de
“bombeamento do Rio São Francisco” para fins de colonização e uso de empresas, e o Projeto
Mirorós (próximo ao município de gentio do Ouro), que previa a irrigação de mais 6 mil
hectares para colonização548. A ação conjunta dessas iniciativas no Platô Norte Diamantino e
nas áreas próximas, gerou dificuldades de execução das metas devido a sobreposição de
projetos, ao mesmo tempo em que explicitou a intensa participação do Estado na área.
546 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III - Projeto Sertanejo – Implantação dos Núcleos. 547 Idem, Ibidem, loc. cit. 548 Idem, Ibidem, ver: Atuação na Bahia – A CODEVASF.
Não proprietários
até 100ha
de 100 a 500ha
mais de 500 Total
Agricultores inscritos 198 169 2 369 Agricultores pré-selecionados 97 80 177 Levantamento técnico em propriedades 61 39 100
Tabela 10: Acesso dos produtores às linhas de crédito do Projeto Sertanejo “fase preliminar” para o período de 1978/1980 no município de Irecê
210
Os projetos ainda foram alvo de barganhas por parte das autoridades municipais, que
buscaram constantemente incorporar novas solicitações e obter novos recursos, interferindo
na execução das propostas e no direcionamento dos investimentos. A abertura e manutenção
das estradas vicinais, por exemplo, embora correspondessem a uma das ações mais
incentivadas pelos Governos Federais e Estaduais durante a década de 1970 e 1980, era
também pauta corrente das demandas políticas locais. Em 1978 as autoridades da cidade de
Irecê solicitaram a inclusão no POLONORDESTE de “16 Kms de estrada” entre os povoados
de Fazenda Nova, Itapicuru e Umbuzeiro para o exercício do ano seguinte549, dias depois, as
mesmas autoridades solicitaram ao Diretor Regional do Polonordeste a inclusão “(d)a estrada
que liga Prevenido a Aguada Nova, com uma extensão de 32 Km” “no programa de estradas
de rodagem”550. Para além das solicitações de novos trechos, as reclamações sobre o descaso
com as estradas compuseram a tônica de diversas manifestações de autoridades até pelo
menos meados de 1980551.
A chegada do POLONORDESTE e do Projeto Sertanejo ao Sertão de Irecê garantiu a
recuperação produtiva na segunda metade da década de 1970 (ver tabela 6, gráfico 4),
gerando uma safra recorde em 1980 que ajudou a difundir o Platô Norte da Chapada
Diamantina como uma das áreas de maior produção cerealífera do Brasil. Investiu um volume
de recursos ainda não utilizado na área, expandiu o mecanismo do crédito por meio de
estratégias voltadas para os pequenos produtores, intensificou a horizontalização das terras,
reconfigurou os espaços urbanos e manteve o incentivo à mecanização. Em 1980 já existiam
no Platô 1.912 tratores agrícolas552. Nesse mesmo ano a produção de feijão dos municípios de
Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do
Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, correspondeu a 50,84%, a
produção de milho a 54,69% e a de mamona a 52,51% da quantidade total de cada cultura
colhida no Estado da Bahia553.
Os grandes projetos geraram uma ocupação desenfreada das áreas de campo (ver
tabela 6, gráfico 4), permitindo a ação de grileiros e ocasionando momentos de tensão e
conflitos entre trabalhadores e latifundiários. No início da década de 1960, Aluízio Capdeville 549 CMI. Ata nº 181 da Câmara Municipal de Irecê, de 23 de maio de 1978. p.8 (verso). 550 CMI. Ata nº 182 da Câmara Municipal de Irecê, de 30 de maio de 1978, p. 9. 551 CMI. Atas nº 199/79; 321/84; 327/84; 334/84; 335/84; 340/84 da Câmara Municipal de Irecê, de 08 de maio de 1979 à 29 de outubro de 1984. 552BAHIA. Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração; SEBRAE. Diagnóstico de Municípios - Região de Irecê: Central. Salvador: SICM, 1995 (Série: Desenvolvimento regional, 23), p. 91. 553 BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1983.
211
já afirmava que, no Sertão de Irecê, “apesar do grande aumento da superfície dos
estabelecimentos, a área em lavoura não vem crescendo na mesma proporção, pois, se
consultarmos os censos das últimas duas décadas, veremos que foi mínimo o crescimento da
porcentagem das terras em lavoura”554. Sua informação aponta para o uso não agrícola das
novas terras incorporadas, que passaram integrar as fazendas de gado e/ou servirem como
reserva de valor.
Essas suspeitas foram facilmente confirmadas na década de 1970. Relatório da
Fundação de Planejamento do Estado da Bahia datado de 1974, anuncia que “na localidade
denominada Vila Pioneira, distante cerca de 56 Km da sede municipal de Jussara, (existe) um
projeto de plantio extensivo de mamona numa área de 37.000ha, com 3.000ha já plantados,
com emprego de técnicas agrícolas modernas e racionais, assegurando o aproveitamento de
toda a produção em indústria de óleos vegetais instalada em Feira de Santana”555. A ênfase
dada a chegada do grande empreendimento ao Platô, não disfarça a disparidade entre a área
apossada e as áreas cultivadas.
Em 1980, o Centro de Planejamento da Bahia constata que “nos municípios de
Jussara, Barra do Mendes e Sento Sé ocorrem disputas de terra. Sobretudo no município de
Sento Sé são freqüentes os casos de grilagem, com fatos amplamente divulgados na imprensa
baiana. Nada prova que o mesmo não pode ocorrer no resto da região, bastando para isso
apenas o surgimento de maiores perspectivas de lucro”556. Nesse mesmo ano, a EMATERBA
– Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia - afirma que no conjunto
formado pelos municípios de Irecê, Ibititá, Ibipeba, Presidente Dutra, Uibaí, Canarana, Barra
do Mendes, Central, Jussara e Xique-Xique
o fenômeno da concentração de terra em mãos de poucos produtores está presente [...]. Tanto assim que, dos 1.863 pequenos produtores correspondentes a 80,9% da população entrevistada, detêm tão somente 23% da terra; os médios produtores, que são 13,4% da população, detêm 20,3% da terra e os grandes produtores, que representam apenas 5,7% da população, têm a posse sobre 56,7% da área total das propriedades557
554 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p. 57. 555 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.3.1.4.3 Mamona. 556 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI – Irecê – A posse da terra. 557 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola da Região de Irecê. Irecê: EMATERBA, 1980a, p. 43.
212
A memória oral também guarda diversos exemplos da prática de grilagem, Hermes
narra um desses fatos:
comprei essa terra (em 1968) e tinha muita terra pra frente, ai eu reuni uns 4 cumpanhêro e fomo cortar uma área maior adiante. De certo que nós cortemo essa área de terra, mais ou menos ela ia ficar com umas 2.000 tarefa né. [...] Aí vêi ôto cumpanhêro (um conhecido fazendeiro local) rico e chegô e cortô ôta área maior, laçando a nossa e nós perdemo, fiquemo sem nada, dexemo pra lá (risos). [...] Que nós num xxx por hora... (não tinham registro), só fez cortar e num tinha o documento né, e as condições pouca, e ele era rico! Ele fez a área dele laçando a nossa e fez o documento dele e nós num tinha documento, nós só tava cumeçando ainda.[...] até hoje ele tem a fazenda aí. [...] nós tinha uma área grande ali dento [...] quando nós cumeçasse a roçar aí era a hora de Xxxx reclamar né. E aí nós ficava como se nós que tava com invasão na terra, que nós num tinha documento! [...] Depois cunhecemo, passemo acunhecer uns aos ôto, aí num tive dúvida nenhuma: nós num tinha condições de bulir com ele pra questão (disputa jurídica) 558.
Hermes e seus amigos resolveram se calar diante do fato de perderem suas posses,
especialmente, após terem buscado sem êxito a intermediação de terceiros. A forma como o
narrador busca primeiramente entender quem é o fazendeiro, para chegar a conclusão, tempos
depois, que não “tinha condições de bulir com ele” em uma disputa judicial, representa a
existência de um nível significativo de tensão no acontecimento e nos demonstra que, mesmo
temporariamente, essa disputa chegou a ser cogitada por parte dos trabalhadores. Um caso de
conflito por terra com dimensões mais trágicas, nos foi narrado informalmente por D. Maria
Gama dos Reis, lavradora e moradora da cidade de Jussara, município onde se deu a
ocorrência entre os anos de 1983 e 1985.
A disputa envolveu grupos familiares provindos da cidade de Mairi, apossados em um
terreno próximo à fazenda Pioneira, e o grileiro Ailton Moura, conhecido popularmente como
“Ailton Ruim”. Este era originário da cidade Feira de Santana e reivindicou a propriedade de
extensa área entre o norte do Platô e o rio São Francisco, no interior da qual se encontravam
localizados os posseiros recém chegados. Após sofrerem diversas ameaças, os trabalhadores
tiveram suas casas incendiadas e seus animais mortos, até mesmo as galinhas e cães, sendo
obrigados a fugirem pela caatinga em direção à cidade de Jussara, onde chegaram em farrapos
e famintos.
Paralelo a intensificação da ocupação das terras de campo, os grandes projetos de
modernização rural também incentivaram e reforçaram o cercamento das terras com arame
farpado, facilitando, via crédito rural, o acesso dos trabalhadores a esse instrumento.
Analisando os impactos do POLONORDESTE sobre a produção agrícola familiar no Platô 558 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.
213
Norte Diamantino, John Wilkinson afirma que “desmatamento” e “cercas” correspondiam aos
itens financiados mais comuns entre os produtores inscritos no programa de assistência
técnica na área, no período 1980/1981559. Segundo Hermes, a cerca de arame farpado estava
presente na Vila de Recife desde 1968, contudo, sua real expansão deu-se “de 1980 pra cá,
que foi quando foi financiado pelo banco, o banco financiava o arame”560. Destaca o
entrevistado
E: O senhor lembra mais ou menos quando foi que o pessoal começou a chegar e cercar aqui, na região aqui (em Jussara)? En:Moço, foi na época de... deixa eu ver moço, de (19)68..., foi na base de (19)81, quando existiu a EMATERBA, um negócio do banco né, que apareceu um dinhêro mais fácil pra o povo. Aqueles e os donos mesmos faziam contrato e crescendo às área deles, quem tinha fio assituado cercano as que já tinha, e outro, que não queria, vendeno para os outro de fora, iam comprano e botano no banco e fechando as terras.561
Almir Vaqueiro e Chico França reforçam a fala de Hermes, também destacando a
possibilidade de aquisição do arame via crédito oficial.
En 1: Foi, foi começano a fazer cerca de arame, o banco dava o dinhêro pra gente fazer. [...] No contrato vinha moço.562 En 2: Vinha. Você só quer o arame pra fazer sua cerca: _“Moço mais nós não temo cerca, gerente, eu preciso do arame pra eu fazer a cerca”. É. Aí eles dava algum dinhêro pra você comprar o arame, pra cercar a fazenda, o terreno.563
Acompanhando o processo que deu origem a chamada “Lei dos 4 fios” ou “Lei do pé
alto”, entre o final da década de 1970 e início de 1980, o município de Irecê e circunvizinhos
buscaram atualizar as suas legislações locais, afirmando, sob novo respaldo jurídico, a
obrigatoriedade do cercamento das terras e a proibição da prática da pecuária à solta. Essa
reformulação legal baseou-se na reafirmação e releitura do artigo 588 do Código Civil de
1916, o qual destaca: a “obrigação de cercar as propriedades para deter nos seus limites aves
domésticas e animais, tais como cabritos, porcos e carneiros, que exigem tapumes especiais,
cabe exclusivamente aos proprietários e detentores”. (Redação dada pelo Decreto do Poder
Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919). A expansão do cercamento obrigatório em todo o Brasil,
559 WILKINSON, J. O Estado, a agroindústria e a pequena produção..., p. 185. 560 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010. 561 Idem, 1º momento, 11 de out/2010. 562 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de nov/2010. 563 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010.
214
firmou-se como uma medida voltada aos interesses dos latifundiários e grandes comerciantes,
uma vez que ignorou as formas costumeiras de sobrevivência das comunidades rurais e
defendeu o uso privado e exclusivo da terra564. Nesse sentido Chico França afirma: “Aqui é
proibido criar solto.”565
A expansão da cultura da mamona no Platô Norte Diamantino e áreas próximas, a
partir da década de 1970, acelerou ainda mais o cercamento das terras devido ao fato dessa
oleaginosa possuir substâncias tóxicas que causam a morte dos animais quando ingerida em
quantidades elevadas566. Guilhermino esclarece os problemas vivenciados nas comunidades
rurais do Sertão de Irecê diante da expansão dessa cultura: “tinha que cercar a roça, aliás,
acabar com o criatóro, criar o criatóro preso pra poder plantar momona! Foi a derrota da
nossa região foi essa, né! Porque se dexasse aberto o gado cumia e morria, né.”567 A
comparação entre a estrutura do arame disponibilizado aos produtores entre 1950/1970 e os
arames atualmente utilizados no Platô, fornece algumas reflexões sobre a intensidade, a
irreversibilidade e as consequências do processo de cercamento das terras.
Foto 4: Arame atualmente usado
Foto: Acervo do autor, 2011
564 FERRARO JÚNIOR, L. A. Entre a invenção da tradição..., p. 57 e SANTOS, Cirlene Jeane Santos e. O pastoreio comunitário nos fundos de pasto de Oliveira dos Brejinhos – Bahia. UFAL, [2005 à 2008], p. 5. Disponível em : <http://www.uff.br/vsinga/trabalhos/Trabalhos%20Completos/Cirlene%20Jeane%20Santos%20e%20Santos.pdf>. Acesso em: 10 jan/2012. 565 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de nov/2010. 566 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL (BA) Diagnóstico parâmetro para avaliação do PDRI - Irecê: 1ª etapa. Salvador: CAR, 1984, vol 3. Sistema de Produção I (Maciço do Feijão), p. 67. 567 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
Foto 3: Arame usado para os cercamentos entre 1950-1970
215
O arame usado para a construção das cercas no Sertão de Irecê até a década de 1970
era de espessura e resistência superior aos atuais e só se degradava mais rapidamente quando
exposto ao fogo. Isso explica o fato de, ainda hoje, os trabalhadores possuírem partes desse
arame nas cercas de suas propriedades e quintais. Além dessa característica, chama a atenção
o posicionamento e a quantidade de farpas que possuía em relação ao arame recente, o que,
em última análise correspondia à intensidade dos interesses do capital sobre o Sertão de Irecê
e seus trabalhadores. A expansão do processo de modernização permitiu o uso de um
instrumento mais leve e menos custoso, na medida em que passou a obstaculizar e reduzir a
prática da pecuária à solta.
A corrida pela dominação de novas áreas (para cultivo ou para especulação fundiária)
e a facilidade de aquisição de crédito, permitiu o desvio de grandes volumes de dinheiro dos
seus fins inicialmente propostos. Explica Guilhermino:
Soltô dinhêro! Muitos cara vêi de fora, desse mundo aí arrumava uma iscritura aqui com os ôtos aí fazia impréstimo, plantava, aliás, fazia impréstimo e sigurava o dinhêro, pegava o dinhêro e num vinha mais nunca! Dero um calote retado no banco! [...] Nem plantava! De Brasília vinha tudo fazê roça aqui, chegô tudo levano num sei quantos milhão e sumia! [...] Os daqui num saiu, os que vinha de fora é que fazia isso, pegava o dinhêro, procurava onde era a roça dele, num achava568.
Zizinho confirma que
todo mundo comprava trator pelo banco comprava e guardava, e depois ninguém pagava, só era anistia, anistia. Ôtos pegava as roça, pegava mei mundo de denhêro e riscava a roça dizeno que plantô, mostava o fiscal, o fiscal ia e ele dizia: _“Num nasceu, o bicho cumeu!” Só tava o risco que plantô, mais o dinhêro ele cumeu! Farriô! Ai foi ino, foi ino, o banco trancô!569
A especulação fundiária, os conflitos e o desvio de dinheiro presentes no processo de
modernização rural do Sertão de Irecê, foram raramente abordados nos relatórios do Estado.
Os que fazem menção ao tema tratam-o de forma genérica, anunciando apenas a sua
existência. A memória local, no entanto, denuncia esses fatos como ocorrências comuns. Do
outro lado, a elevação da produtividade e as constantes afirmativas das autoridades sobre a
chegada do “progresso”, do “desenvolvimento” e do “futuro” atraíram ainda mais os fluxos
migratórios, intensificando os índices de elevação populacional que já se destacavam desde
568 Idem, Ibidem, loc. cit. 569 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011.
216
1950. Em 1980 a população total dos municípios quem compõem a Região Administrativa de
Irecê (de acordo com a regionalização da SEI) atingiu 264.696 habitantes570.
A elevação da produção agrícola do Platô Norte Diamantino e dos municípios vizinhos
foi acompanhada ainda da formação de um sistema de escoamento composto por uma
hierarquia de agentes comerciais. Esses agentes atuavam como atravessadores e interligavam
as unidades agrícolas aos centros locais de comércio, e estes, aos mercados externos. Destaca
um dos relatórios oficiais:
Os produtores [...], realizam suas vendas principalmente de fevereiro a maio [...]. Como principais agentes de comercialização do milho e feijão [...], identificam-se os camioneiros [sic], comerciantes itinerantes, em sua grande maioria pernambucanos e paraibanos, que fluem às zonas produtoras, nos períodos de colheitas, estabelecendo, com frequência, relações diretas com os produtores; os agentes comerciais primários, que atuam diretamente junto aos produtores , incumbindo-se de aglomerar pequenos excedentes comercializáveis; e, ainda, os comerciantes estabelecidos nos centros de comercialização das áreas produtoras, que possuem firmas instaladas em núcleos urbanos, sedes de municípios e distritos, para eles afluindo parte dos excedentes comercializáveis. Em período mais recente, constatou-se maior participação dos mercados de Salvador, Feira de Santana, Zona Cacaueira e da própria Micro-Região no consumo dos cereais produzidos [...], em detrimento do mercado nordestino, fenômeno atribuído à frustração de safras e à influência da recém-construída “estrada do feijão” 571.
Acrescenta o documento ainda que a mamona produzida no Platô destinava-se a
industrias localizadas em Feira de Santana (INCOVEG S/A), Salvador (CIA Industrial da
Bahia), Pernambuco (Ind. Coelho e Sanbra) e, a partir da década de 1970, Minas Gerais
(VALSA) e que a produção dessa oleaginosa era comercializada pelos mesmos revendedores
dos demais produtos, “todos eles intermediários entre o produtor e o agente comprador da
indústria, que tanto pode ser uma representação das firmas de beneficiamento e exportação
como também um entreposto, com escritório regional e depósitos localizados nas zonas
produtoras”572.
A presença acentuada de atravessadores no sistema produtivo-comercial implantado
pela modernização conservadora no Platô Norte Diamantino e nas áreas próximas é sinal da
vigência do mecanismo de controle da renda da terra e da transferência de capitais dos
pequenos produtores aos grandes centros e grupos empresariais a baixos custos. Em 1980,
período considerado avançado no processo de modernização rural do Platô, a empresa pública
570 CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos..., p. 13-16. Exclui-se aqui os dados referentes ao município de Cafarnaum, os quais não foram identificados. 571 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.3.1.5 – Comercialização Agrícola. 572 Idem, Ibidem, loc. cit.
217
de assistência técnica e extensão rural atuante na área diagnosticou que “os pequenos
produtores em sua grande maioria desconhecem as condições de mercado além da sua região,
o que contribui para um maior poder de barganha dos intermediários, desde quando são estes
quem determinam os preços dos produtos agrícolas regionais”573.
A maior parte da produção dos municípios do Platô terminava por chegar à cidade de
Irecê. Respondendo a rápida elevação demográfica, à chegada das agências financeiras e de
assistência técnica, dos órgãos privados e a expansão das relações produtivas e mercantis, esta
cidade passou a se destacar como centro comercial de máquinas, de produtos agropecuários e
“praça regional” de recepção e venda da produção agrícola dos municípios vizinhos para
outras áreas da Bahia e do Brasil. Aí se encontravam os maiores negociantes, compradores e
as representações regionais das grandes empresas.
Essa condição centralizadora, tanto no sentido administrativo quanto comercial,
exercida pela cidade de Irecê rendeu-lhe o título de “Capital do Feijão”, uma expressão
síntese que deixa claro o interesse das elites locais e estaduais em anexar urbanidade e
produtividade agrícola sob um símbolo único. A importância dessa cidade para o projeto de
modernização rural do Platô Norte Diamantino, exigiu do Governo Estadual, em alinhamento
com as determinações federais, a elaboração de iniciativas modernizadoras especificamente
voltadas para o meio urbano. A partir da segunda metade da década de 1970 a cidade de Irecê
sofreu modificações estruturais e sistemáticas que visaram prepará-la para expansão das
relações comerciais. Em menor proporção, essas ações urbanísticas recaíram também sobre as
demais cidades do Platô.
A urbanidade articulada: Irecê - uma Capital
A chegada das primeiras mudanças e tecnologias urbanas na cidade de Irecê remonta a
década de 1950. Nesse ano, o já referido Donald Pierson registrou: “em Irecê, esperava-se a
luz elétrica até o fim do ano. Um motor já fôra comprado a ser alimentado à lenha”574, além
disso,
ocasionalmente, o viajante encontra um refrigerador, quase sempre a querosene nas bodegas ou bases das cidades e mesmo nos maiores vilarejos. Por ocasião de nossa
573 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola..., p. 29. 574 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 122.
218
primeira visita ao vale (1950), o proprietário do bar em Central, por exemplo, possuía um refrigerador a querosene trazido de caminhão de Salvador. Em um bar em Irecê havia também um refrigerador e outro numa bodega em Sertão Novo575.
Seguindo o padrão dos demais sertões nordestinos até a interferência governamental,
em meados do século XX, as cidades e povoações do Sertão de Irecê também se destacavam
por serem nelas sediadas as feiras livres. Era a partir destas que se tornava possível às
comunidades a troca de mercadorias e a aquisição de produtos não gerados nas pequenas
unidades rurais locais. A importância desses pequenos mercados para os sertanejos do espaço
estudado, pode ser ilustrada pelo embate que se travou no município de Irecê em torno do dia
oficial de realização da feira livre. De encontro à solicitação de alguns moradores que haviam
reivindicado do prefeito municipal o retorno da feira livre da cidade aos dias de sábado, o
intitulado “representante” da “população da Vila de Lapão”, afirmou: Irecê em peso conheceu e deve lembrar que o povo desta cidade em sua (trecho danificado) fazia feira no Lapão em virtude da minguada feira que realizava nesta cidade. Com a transferência para o dia de 2ª feira, notamos um aumento de (trecho danificado) 50% para mais, e, esta vem aumentando dia a dia dado a afluência dos moradores da Vila de Lapão e outros povoados circunvizinhos [...] pois, o que não puder resolver os seus (trecho danificado) (palavra ilegível) pela manhã, poderão resolver a tarde. O que devemos considerar na causa em tela, e justamente aquilo que venha de encontro a bem estar do povo, este é o aumento de cereais, que não são produzidos na cidade e sim nos povoados onde também tem feiras. Ora Srº Prefeito, se os povoados mais importantes do Município como sejam Lapão e Gabriel, deixarem de (palavra ilegível) para a feira da cidade por motivo de coincidência do dia, qual será o resultado desta feira (?)576
O autor do texto relata ainda que a proposição para mudança do dia de realização da
feira de Irecê ameaçava os “interesses da coletividade”, que os elaboradores da solicitação
não refletiram sobre as conseqüências do ato e que, caso houvesse dúvidas das suas queixas, o
“povo” iria “evocar” a presença do prefeito na Vila de Lapão. A feira livre emerge do
documento acima como um elemento suficientemente importante para mover as forças
públicas, e as linhas acima deixam transparecer o peso social, econômico e até espacial que
envolvia a disputa.
A redação do autor demonstra muito mais do que uma preocupação com o
abastecimento da população. Ela faz emergir uma preocupação com a funcionalidade do local
urbano, uma vez que a alteração do dia oficial para promoção da feira poderia abrir
precedentes para um novo desenvolvimento das feiras dos povoados e junto com ele, a
575 Idem, Ibidem, p. 120. 576 CMI. Arquivo da Secretaria – Ofícios – 1955 (principiado em 7 de abril). Correspondência não assinada ao Prefeito de Irecê. [1950 à 1970]. Irecê.
219
reorientação do fluxo de pessoas, ficando a cidade abandonada. Em síntese, até meados do
século XX nos sertões nordestinos, a feira livre justificava em grande parte a função de ser
das povoações e até das cidades.
Em 1963, Aluízio Capdeville Duarte e sua equipe registraram momento corriqueiro da
vida da pequena cidade de Irecê.
Imagem 12: Carro-de-boi nas ruas de Irecê, 1963
Fonte: DUARTE, Aluizio Capdeville. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano. In: Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, out/dez. 1963, p. 58.
Acrescentam os visitantes:
A cidade de Irecê é um centro urbano que se vem desenvolvendo, mas ainda não apresenta condições de serviços condignos com a sua importância econômica. As ruas em geral não são calçadas e, como podemos notar, são de terra batida. Só uma artéria se apresenta pavimentada com pedras irregulares. O casario é baixo, apesar de haver construções novas, reflexo de sua expansão577.
O templo da Igreja Católica ao fundo da imagem não deixa dúvida: estamos em uma
das principais vias de circulação da cidade e a vivência que hora se processa tem o ritmo
cantado do carro-de-boi, da circulação livre dos animais (sabiam eles que nenhum carro iria
lhes atropelar!), da caminhada “proseada” dos passantes. Rua de poucas pessoas e de terra
batida - “como podemos notar”. A imagem nos induz a pensar que apesar da expansão das
577 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p.58.
220
iniciativas de modernização agrícola no Platô Norte Diamantino e nos espaços vizinhos, que
ocorria na década de 1960, prevalecia ainda nas cidades sertanejas uma forma não
cronológica ou ruralizada de viver e sentir o urbano.
No texto acima Aluízio Capdeville deixou transparecer seu espanto diante da
disparidade entre a importância econômica da área em visita e as condições “primárias” da
cidade de Irecê, entre o que “ouvia dizer” e o que “via acontecer”. Não deixa, porém, de
registrar a chegada de construções novas como resultado da expansão da dinâmica produtiva.
Sendo esta a realidade avistada em Irecê, com certeza não era diferente a vida nos povoados e
cidades circunvizinhas.
A política de interiorização do País e o crescimento da importância das cidades a nível
nacional na segunda metade do século XX, puxada pelo avanço da industrialização, cujo ápice
é a construção de Brasília, ressoou no interior baiano por meio da criação de municípios e da
utilização econômica das áreas. Nesse roteiro, não por acaso, a expansão numérica e física das
cidades do Platô Norte Diamantino e das áreas próximas, ocorreu paralela a implantação dos
processos de modernização rural. O quadro abaixo sintetiza a emergência das municipalidades
no espaço em estudo.
Tabela 11: Ano da criação dos municípios do Platô Norte Diamantino e áreas próximas, e municípios de origem
Município Data Município de Origem
Irecê 02/08/1926 Morro do Chapéu Central 12/08/1958 Xique-xique Barra do Mendes 14/08/1958 Brotas de Macaúbas Uibaí 22/09/1961 Central Ibipeba 17/10/1961 Irecê Ibititá 17/10/1961 Irecê Presidente Dutra 12/04/1962 Central Cafarnaum 16/07/1962 Morro do Chapéu Canarana 16/07/1962 Morro do Chapéu Jussara 27/07/1962 Central América Dourada 25/02/1985 Irecê São Gabriel 25/02/1985 Irecê Barro Alto 09/05/1985 Canarana João Dourado 09/05/1985 Irecê Lapão 09/05/1985 Irecê Itaguaçu da Bahia 24/02/1989 Xique-xique Mulungu do Morro 13/06/1989 Cafarnaum e Morro do
Chapéu
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221
De acordo com os dados acima, 12 dos 17 municípios surgiram no período auge da
ação do Estado no Platô Norte Diamantino e nas suas proximidades, ou seja, de 1960 à 1985.
A tabela 13 demonstra a distribuição populacional em alguns municípios localizados no Platô
Norte Diamantino, ou próximos a este.
Tabela 12: Divisão espaço-populacional nos municípios de Barra do Mendes, Canarana, Central, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Presidente Dutra e Uibaí
Período População urbana População rural População Total
1950 9.383 56.028
65.411
1980 73.871 129.312
203.183 Fonte: CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos regionais: VIII região de planejamento Irecê. Salvador: CEI, 1985, p. 13-16 (adaptado)
As cifras acima indicam que apesar do surgimento de novas cidades, a partir do final
de 1950, a população rural predominou na área durante a segunda metade do século XX,
situação que só se inverteu na década de 1990. Esse fato, contudo, não impediu que a partir de
1950 a população urbana apresentasse altos índices de crescimento. Entre os municípios
destacados o número de habitantes citadinos cresceu 687,2% entre 1950 e 1980, enquanto a
população rural foi elevada em apenas 130,7%.
Diante desse crescimento, o Governo Baiano sintetizou em seu Documento de Irecê
(1971) algumas medidas que visaram atender as cidades e distritos do Platô Setentrional
Diamantino e dos seus arredores, foram elas: a “construção de sistemas de abastecimento de
água nas 13 sedes municipais”, implantação de rede de telecomunicações, ampliação do
serviço de energia elétrica por meio da construção ou substituição de redes de distribuição e
da implantação de geradores. O documento ainda destacou a ampliação do número de salas de
aula, a instalação de um ginásio em Irecê, a recuperação de escolas e a distribuição de
material didático, a realização de orientações para aplicação de recursos orçamentários e
prestação de assistência técnica e contábil às prefeituras, apoio técnico-legislativo às
autoridades, no sentido da “divulgação e interpretação dos textos legais”, a criação de setor
fiscal móvel e implantação de arrecadação fiscal através de rede bancária578. A grandeza das
medidas planejadas pelo Governo Baiano se antagoniza às restritas 17 páginas do referido
documento e pouco se sabe das formas como esses objetivos seriam alcançados, restando
apenas um resumido conjunto de intenções ou propostas. 578 BAHIA. S. do P., C. e T. Documento de Irecê..., p. 9, passim.
222
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) oficializou uma política para as
cidades em nível nacional, que impôs o desenvolvimento econômico local como critério para
realização de modificações urbanísticas. Nessas condições, afirmou que para cada cidade
dever-se-ia esclarecer prioritariamente o seu papel dentro do “planejamento do pólo
econômico em que se encontra, definindo-se a sua função econômica e social e, só então,
passando a definir-se sua configuração físico-urbanística”579. Para o contexto nordestino, o
Governo Federal destacou a necessidade de “reforço das atividades produtivas e dos
equipamentos sociais dos pólos urbanos interiorizados”580. O POLONORDESTE é um
grande exemplo dessas determinações “articuladas” (econômico-urbano), uma vez que suas
ações recaíam também sobre as cidades através de propostas de modificação de suas infra-
estruturas sociais e urbanas.
A partir de meados da década de 1970 as dimensões urbano-administrativas das
cidades do Platô Diamantino Setentrional e proximidades, foram alvo de diversos
diagnósticos oficiais e propostas. Destaca um dos relatórios:
Das 13 prefeituras581 da Micro-Região, 10 não possuem Lei de Estrutura e 8 não dispõe de Regimento Interno, carecendo, assim, de legislação específica que defina as competências de seus órgãos e discipline as atribuições e responsabilidades [...]. Embora 10 Prefeituras tenham Códigos Tributários e de Posturas, estes quase não são utilizados. Apenas 1 Prefeitura tem Código de Obras. Em nenhum município existe Lei de Loteamento e Zoneamento ou Plano Urbanístico. As Leis do Quadro de Pessoal ou de reestruturação foram encontradas em 8 municípios, mas, em vários casos, são anteriores a 1964582.
Acrescenta o texto acima que a ausência ou o papel obsoleto das normas legais
administrativas, concentrava sobre o Chefe do Executivo “toda a orientação das atividades
públicas”, destacando que em 12 municípios os Gabinetes funcionavam apenas como “local
de despachos”, sendo que apenas 3 possuíam Secretarias, sem que houvesse entre elas real
divisão de funções e que seus “titulares são os substitutos eventuais dos Prefeitos”. O
documento cita ainda que os raros serviços de contadoria eram ainda realizados de forma
ilegal e ultrapassada, que em muitos municípios os recursos eram geridos por tesourarias
“informais”, ressalta os precários serviços de tributação (presentes em apenas 4 prefeituras), a
579 BRASIL. P. R. da. II Plano Nacional de Desenvolvimento..., p. 87. 580 Idem, Ibidem, loc. cit. 581 Refere-se a Morro do Chapéu, Gentio do Ouro, Irecê, Ibipeba, Canarana, Barra do Mendes, Cafarnaum, Souto Soares, Ibititá, Jussara, Central, Uibaí e Presidente Dutra. 582 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.8 – Aspectos institucionais.
223
“difícil identificação” do regime jurídico dos servidores e expõe que “quase todas as
Prefeituras estão em dívida com o INPS”583 (Instituto Nacional de Previdência Social).
Os problemas não pararam por aí. O relatório afirma também que as prefeituras “não
realizam licitações nem fazem inventários dos bens existentes, o que impossibilita o
conhecimento do patrimônio municipal”, destaca ainda que não existem arquivos, que, devido
às condições climáticas, “a poeira penetra nos locais de trabalho, causando transtornos” e que
as “Prefeituras sobrevivem, quase que exclusivamente, graças às transferências feitas pelos
poderes públicos estadual e federal”. Por fim, para além das críticas feitas a ausência de
planos urbanísticos, às condições precárias de abastecimento de água, de limpeza pública e do
serviço médico-sanitário, o documento conclui que até mesmo os prefeitos “desconhecem as
disponibilidades financeiras e orçamentárias para a execução de projetos ou desenvolvimento
de serviços” em seus municípios e que nem se quer existe, “formalmente estruturado, o
partido oposicionista”584.
O diagnóstico acima aponta para uma questão substancial no caminho da
modernização rural do Sertão de Irecê: as cidades podiam ser ameaçadoras e obstanculizar os
projetos oficiais, convinha, portanto, a realização de mudanças emergenciais para resolução
ou minimização do grave quadro urbanístico, fiscal, social e administrativo urbano do Platô.
Os problemas ressaltados, todavia, se faziam mais amenos na cidade de Irecê. Esse fato não a
excluiu de um contexto de precariedade pública, pelo contrário, a sua importância como
centro funcional, comercial e financeiro do projeto de modernização rural e área urbana mais
populosa, definiu a urgência da correção dos seus entraves público-administrativos.
Analisemos, pois, as condições e ações oficiais projetadas para esse espaço.
A escolha de Irecê como centro urbano regional, referencial e irradiador das ações
governamentais sobre o Sertão de Irecê baseou-se: 1) no fato de ser esta a única cidade do
Platô Norte Diamantino até 1958; 2) na presença de grupos familiares de influência política,
destacando-se a família Dourado, possuidora de grande patrimônio; 3) pela sua localização
centralizada no Platô, sobre as terras comprovadamente mais férteis. Lembrando os momentos
anteriores a estruturação de Irecê como epicentro do projeto de modernização lembra
Reinaldo de Lôro: “Uma verdade que eu digo, que Irecê não tinha, quando eu era minino até
583 Idem, Ibidem, loc. cit. 584 Idem, Ibidem, loc. cit.
224
rapizim novo, ninguém se falava em Irecê! Quem tinha nome aqui era Jacobina e Miguel
Calmon!”585. Os dados apontam para o seu rápido crescimento populacional.
Tabela 13: Crescimento populacional da cidade de Irecê
Fonte: CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos regionais: VIII região de planejamento Irecê. Salvador: CEI, 1985, p. 14-16.
De acordo com os números acima, o total de habitantes da cidade de Irecê cresceu
mais de 93% a cada década entre 1950 e 1980, com destaque para o período entre 1950 e
1960, quando o acréscimo populacional atingiu quase 400%. Em 1980 Irecê ultrapassou em
população cidades como Jacobina e Xique-xique, tornando-se a área urbana mais povoada da
parte norte da Chapada Diamantina.
O Plano de Ação Municipal de Irecê, elaborado em 1974, revisou as temáticas
abordadas pelo Governo Estadual no Documento de Irecê, apontando os “problemas locais” e
estabelecendo “métodos” de resolução para o “melhor aproveitamento” dos espaços da
cidade. Nele lê-se:
A grande feira semanal realiza-se às segundas-feiras e se ramifica pelas ruas adjacentes [...] tomando como centro a Praça Justiniano Lopes Ribeiro. O seu funcionamento causa obstrução de ruas, congestionando o tráfego, precariedade das condições higiênicas dos produtos comercializados e acúmulo de detritos por toda área ocupada. Em decorrência desses problemas, impõe-se o seu remanejamento para local que propicie melhor funcionamento (?)586.
A não existência de um matadouro faz com que o abate se processe em locais não apropriados, geralmente desprovidos de condições higiênicas. Por outro lado, a dispersão de locais dificulta a fiscalização sanitária e arrecadadora [...]587.
Além da feira, o documento também discrimina e diagnostica as moradias, afirmando
que a casa “tipo B”
585 Entrevista Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de janeiro 2012. 586 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal de Irecê-Ba. Salvador: IURAM, 1974a, p. 49. 587 Idem, Ibidem, p. 87, (grifo nosso).
Ano População
1950 1.930
1960 9.629
1970 19.248
1980 37.413
225
predomina na cidade e cobre quase toda a área urbanizada completamente desprovida de infra-estrutura urbana e comunitária. [...] em adobe sem revestimento [...] desprovida de serviços urbanos, [...] algumas com luz, possuem área construída bastante reduzida, conjugadas a fachada média de 4m sem recuo frontal ou lateral.[...] constata-se a carência de normas urbanísticas que disciplinem o “habitat” urbano588.
O relatório citado aponta para urgência de disciplinarização dos espaços, tanto
públicos como privados, ocupados “indevidamente”589 pelos populares. A feira livre, ainda
segundo as determinações do Plano de Ação, deveria agora ser implantada em local
delimitado (7.900 m²), possuindo apenas “barracas desmontáveis” e dividida por tipos de
produtos590. O abate de animais deveria ser realizado em local único, 1.500m afastado da zona
urbana, como forma de “promover o controle sanitário do gado abatido e facilitar a cobrança
de impostos”591. Outro documento destinado às reformulações urbanas na cidade de Irecê,
define que as casas deveriam seguir medidas e até mesmo os pisos das residências haveriam
de possuir espessuras pré-determinadas oficialmente. Segundo a “tabela de multas” “habitar
sala, residência ou compartimento por pavimento sem o respectivo ‘habite-se”, custaria uma
taxa de “100 à 150% do salário mínimo”. Muitas outras eram as sanções estabelecidas para o
descumprimento das “normas”592.
Entre as ações propostas nesses relatórios, ainda se encontrava a criação de
estacionamentos, a abertura de novas linhas de circulação, com o objetivo de “proporcionar
melhor escoamento e facilidade de trânsito através da hierarquização das vias, ao mesmo
tempo contribuir para o maior conforto da população”593, e a pavimentação de ruas e avenidas
como forma de “oferecer melhores condições de acesso e tráfego aos veículos,
principalmente àqueles em demanda ao centro urbano”594. A organização da estrutura urbana
de Irecê ainda incluia a construção de um terminal rodoviário, com o intuito de facilitar a
588 Idem, Ibidem, p. 82, (grifo nosso). 589 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO E ARTICULAÇAO MUNICIPAL (BA). Plano de Ação Integrada- PAI: Irecê. Salvador: INTERURB, 1984, [s.p.] 10.1 Programa Prioritário de Investimentos. 590 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal..., p. 89. 591 Idem, Ibidem, p. 87. 592 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA). Anteprojeto institui o código de urbanismo de Irecê. Salvador: IURAM, 1974b, Tabela de Multas, artigo 8º. 593 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal..., p. 99. (grifo nosso). 594 Idem, Ibidem, p. 108. (grifo nosso).
226
chegada e saída de pessoas (leia-se migrantes) e “sistematizar a ocupação das áreas livres
existentes”595.
O setor educacional não escapou a essas mudanças e restou às escolas incluírem no
currículo pedagógico a “prática agrícola”, como meio de incentivo à freqüência dos alunos596.
Em 1976 foi instalada nas proximidades da cidade a Escola Agrícola de Irecê (ESAGRI), que
passou a formar técnicos agrícolas para atuar em todo o Platô. Outros “equipamentos
urbanos” foram ainda propostos como praças, sinalizações, serviços de turismo, arborização,
complexo policial, quadras poliesportivas, asilo para idosos e até um “parque zoobotânico”597.
Como resultado dessas novas demandas urbano-administrativas, foi realizada em
novembro de 1978 na Câmara Municipal de Irecê uma longa reunião que aprovou o projeto de
lei número 225 (de 21/11/1978). Esse projeto esclareceu os princípios gerais e hierárquicos da
gestão municipal e reformou a organização administrativa local por meio da delimitação
objetiva da responsabilidade e função cabível a cada órgão público598. As determinações
legais, todavia, não resolveram os problemas e a efetivação das normas foi barrada, muitas
vezes, por uma estrutura social em intensa mudança.
A chegada constante dos migrantes impôs dificuldades às autoridades locais em
“ordenar” a conduta social e a ocupação dos espaços na cidade, deixando transparecer certo
nível de insegurança. No início dos anos 1980 o poder legislativo (assustado) denunciava que
na cidade de Irecê “a população está intranquila, pois os crimes não muito freqüentes”599, que
o pequeno número de policiais torna o “crime” “coisa comum” e que a falta de realização de
júris na cidade deixa “claro e patente, que os ladrões e assassinos, são soltos e não fugidos, e
cabe ao poder judiciário a (palavra ilegível) destas solturas”600.
Além da preocupação com a disciplina social, o projeto de modernização da cidade de
Irecê, tanto estrutural como administrativa, pôs em pauta a necessidade de adequar a cidade
aos novos ritmos comerciais/produtivos e às novas formas de transporte, efetivando assim a
sua condição de centro urbano regional. A cidade de Irecê precisava ser redesenhada, tornar-
se uma “Capital”, “fixar e controlar os usos dos terrenos, o volume das edificações e seus usos
específicos, orientar e/ou disciplinar a densidade populacional líquida e bruta, a fim de que os 595 Idem, Ibidem, p. 113. 596 Idem, Ibidem, p. 116. 597 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO E ARTICULAÇAO MUNICIPAL (BA). Plano de Ação Integrada..., [s. p] X. Proposta de Ação Integrada. 598 CMI, Ata nº 191 da Câmara Municipal de Irecê, de 21 de novembro de 1978, p. 16-20. 599 CMI. Ata nº 269 da Câmara Municipal de Irecê, de 17 de novembro de 1981, p. 62. 600 CMI. Ata nº 270 da Câmara Municipal de Irecê, de 24 de novembro de 1981, p.64.
227
vários setores venham corresponder com aqueles de conformidade com os indicados,
assegurando condições favoráveis de habitação, recreação e trabalho”601. Precisava
transformar o poder público em um setor ativo e racional que garantisse a segurança e as
rendas fiscais adequadas ao seu porte econômico.
É certo que a maior parte dessas medidas nunca foi efetivada, contudo, as ações
implantadas não deixaram de atingir a forma de vida das populações locais, especialmente a
dos empobrecidos. Estes passaram a ser removidos do centro (agora um espaço comercial)
juntamente com as “casas tipo B”, tiveram suas condições de trabalho ameaçadas pelas
possibilidades de mudança do lugar da feira livre e tornaram-se alvos a atuação dos fiscais
públicos.
Analisando os processos de modernização urbana, Clóvis Frederico Ramaina Moraes
Oliveira afirma que após os embates que culminaram na destruição de Canudos (a “tapera
colossal” protagonizada pelos pobres), o Estado brasileiro passou a assumir o papel de agente
urbanizador, na tentativa de bloquear o surgimento de formas não racionalizadas do “urbano”.
Essa estratégia atingiu o seu ápice com a construção de Brasília, a cidade planejada de ruas
retas. Brasília, ainda segundo Moraes Oliveira, foi produzida a partir de uma lógica
sincronizada, funcionalista e racionalista que sintetizou os anseios de “civilidade”, “ordem”,
“novas formas de sociabilidade”, “trabalho” e “trabalhador” em uma perspectiva
desenvolvimentista, transformando-se em um modelo para a interiorização das práticas
urbanizadoras no País602.
Focando as mudanças ocorridas na cidade de Feira de Santana, Oliveira demonstra
como o processo de modernização capitalista dos meios urbanos do interior baiano já se
processava desde o início do período republicano603 e se afunilou entre as décadas de 1920 e
1960. Nesse período, destaca o autor, esta cidade foi alvo de uma reconfiguração sócio-
urbanística e memorial organizada por representantes da imprensa, intelectuais e o poder
público. Conclui Moraes Oliveira que a implantação de formas ditas “civilizadas” em Feira de
Santana objetivou a disciplinarização do uso dos espaços, a partir da produção de um aparato
discursivo criminalizante e ordenador. Esse discurso associou as práticas, sentidos e 601 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal..., p. 130. 602 OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. Canudos/Brasília: anotações de uma viagem sertanizadora. In: KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (Org.). Semeando cidades e sertões: Brasília e o Centro-Oeste. Goiânia (GO): Ed. da PUC, 2010. 603 Idem, De Empório à princesa do Sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893-1937). Salvador: UFBA, 2000. [Dissertação de Mestrado].
228
ambientes populares (como os festejos e manifestações religiosas de matriz africana, o
comércio e a circulação do gado nas vias centrais, a presença de vaqueiros nas ruas, o trabalho
dos aguadeiros, os saberes médicos populares, os casebres e moradias) à imagens negativas,
divulgadas como indesejáveis e incompatíveis como o nível de urbanização da cidade604.
Esse processo, ao tempo em que excluiu formas de ser e lugares do estar baseados na
prática cotidiana do trabalho dos empobrecidos, buscou introduzir novas sociabilidades e
novos espaços ditos “modernos” como o futebol, o cinema, as avenidas retas de fluxo
legalmente determinado, os carros, casas feitas com novos materiais e novos estilos. Na base
dessas mudanças, nos ensina ainda Oliveira, estava o conflito entre o direito dos trabalhadores
de anunciarem o seu espaço da forma como o vivenciavam e as concepções urbanísticas
modernas, que produziam um discurso de cunho civilizatório605.
No contexto traçado por Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira, compreendemos
as mudanças realizadas na cidade de Irecê a partir da década de 1970, sem perder de vista as
especificidades agrárias as fundamentaram. Como tentaremos demonstrar tais mudanças, não
impediram a continuidade das vivências rurais e até a ruralização de certos espaços, mas
exigiram a sua adequação sobre novas bases. As alterações operadas em Irecê se
reproduziram de diversas formas, tempos e intensidades nas demais cidades do Platô Norte
Diamantino e proximidades; refletiram e se articularam às mudanças ocorridas no meio
agrário, transformando o Sertão de Irecê em um arranjo urbano-rural de intensa mudança.
Enquanto se expandia o uso das máquinas e as relações assalariadas, enquanto a
caatinga tombava pela ação do “correntão”/fogo, os arames recortavam a terra e a produção se
elevava, as avenidas eram abertas, calçadas, os serviços públicos eram repensados e
racionalizados, o comércio se expandia, possibilitando um fluxo maior das relações mercantis
e o deslocamento dos caminhões carregados de grãos aos grandes centros urbanos. Esses
novos ritmos alteraram de modo irreversível o modo de vida costumeiro do Sertão de Irecê e
atingiram diretamente a prática laboral dos vaqueiros.
604 OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. “Canções da Cidade amanhecente”: urbanização, memórias urbanas e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. Brasília: UNB, 2011 [Tese de Doutorado], p.17-122. 605 Idem, Ibidem, loc. cit.
229
CAPÍTULO IV
Ser vaqueiro na Região
Diga você me conhece, eu já fui boiadeiro Conheço estas trilhas quilômetros, milhas Quem vem e que vão, pelo alto sertão Que agora se chama não mais se sertão Mas de terra vendida, civilização [...] Andando ligeiro, um abraço apertado Suspiro dobrado, não tem mais sertão
(Almir Sater/Renato Teixeira) Peão
Região de Irecê: uma “especificidade regional”
O projeto de modernização rural e urbana que foi implantado sobre o Sertão de Irecê,
representou, em escala reduzida, o arranjo econômico-sócio-espacial que se processava desde
os anos 1930, e com maior ênfase no pós-guerra, em diversas partes do Brasil. Como foi
demonstrado no capítulo anterior, esse processo baseou-se no controle das relações rurais de
produção pelo capital e garantiu a expansão das relações capitalistas no País a partir da
transferência de grande volume de riqueza para os setores urbano-industriais.
Dentro da dinâmica de modernização do Sertão de Irecê, coube ao espaço agrário a
elevação da produtividade de alimentos e matérias-primas a baixo custo, para atender a
demanda de crescimento das grandes cidades. Na prática, a produção agrícola gerada no Platô
Norte Diamantino e nas áreas próximas, foi incorporada aos mercados dos centros urbanos
maiores como fator limitador dos custos da mão-de-obra (salários), na medida em que os
produtos disponibilizados geravam o equilíbrio da oferta de alimentos primários e matérias-
primas nesses centros, evitando assim o encarecimento das condições de sobrevivência e a
elevação das despesas nos setores de geração de mercadorias.
No caso do feijão esse mecanismo se torna mais claro, tanto por sua importância
alimentar para a população brasileira como devido ao fato da produção nordestina dessa
leguminosa provir principalmente na chamada “safra da seca” (realizada entre janeiro e
julho), período de baixa produtividade em outras áreas como o Paraná e Minas Gerais, e de
230
riscos de elevação dos custos de vida. A entrada do feijão do Sertão de Irecê nos grandes
centros, pois, reduzia esses riscos e estabilizava o mercado de alimentos.
Para a garantia desse esquema comercial (alimento, matéria-prima, área produtora e
área consumidora) na Bahia, muito contribuiu a elevação das taxas de produção no Platô
Norte Diamantino e nas áreas circunvizinhas. Como vimos, essa elevação deu-se através do
uso intensivo de máquinas e outras tecnologias (como sementes selecionadas e cercas de
arame farpado para proteção das lavouras), do uso do sistema de crédito público, da oferta
elástica de terras e da presença marcante do sistema de controle da renda da terra, incorporado
nos diversos níveis interligados de atravessadores (na vila, na cidade, no centro regional) que
rebaixavam o preço das mercadorias dos trabalhadores rurais, obrigando-os a precarizar suas
condições sociais de produção.
Paralelo às dinâmicas operadas no espaço rural, as cidades do Platô tornaram-se
centros receptores e direcionadores de capitais. Irecê, em especial, a Capital do Feijão,
destacou-se por meio da construção de um sistema de serviços financeiros e agropecuários
especializados, da reestruturação urbanística e administrativa e da composição da principal
praça agrícola-comercial do Platô, centro intermediador entre o mercado local e o nacional.
Em Irecê encontravam-se os maiores compradores e revendedores da produção agrícola dos
municípios vizinhos, e daí partiam os caminhões carregados em direção a cidades como Feira
de Santana e Salvador. Por fim, a elevação populacional, fortemente marcada pela chegada de
migrantes, manteve os salários rebaixados, tanto no meio rural como urbano, enquanto o
Estado promovia o “encontro desses fatores” via produção de infraestrutura606, com destaque
para a expansão do crédito público e a criação de uma via central de escoamento, a Estrada do
Feijão.
Assim articulados, impossível é explicar os processos que se desenvolviam nas
dimensões rurais do Sertão de Irecê sem observar suas interrelações com as demandas e
determinações provindas das cidades, especialmente de Irecê. Essa articulação urbano-rural
resultou na estruturação de um pólo agromercantil de alta produtividade nacionalmente
interligado. Esse pólo agromercantil correspondeu a uma “região econômica” - nos termos
abordados por Francisco de Oliveira – erguida sobre o Platô Setentrional Diamantino e áreas
circunvizinhas. Na verdade, sendo este território interno a “Região Econômica do Nordeste”,
606 OLIVEIRA. F. de. A Economia Brasileira..., p. 21-25.
231
o entendemos como uma “especificidade regional”, um espaço especial de produção do
capital dentro de uma região econômica, noção proposta por esse mesmo autor607.
Apesar das primeiras iniciativas de modernização rural nessa área remontarem à
década de 1940, essa “especificidade regional” só foi consolidada na década de 1960 a partir
de dois fatores: 1) da adoção do planejamento pelo Governo Baiano, fator que produziu a
fixação de todos os elementos governamentais, tecnológicos, financeiros, políticos,
econômicos e agrários sobre o Platô Norte Diamantino e proximidades, e possibilitou nas
décadas seguintes a expansão do capital como relação social predominante; 2) da reprodução
desse espaço econômico em termos administrativos a partir da Nova Regionalização
Econômica do Brasil de 1969.
Esta regionalização se baseou no conceito de “espaço homogêneo” como “forma de
organização em tôrno da produção”608 e gerou um novo mapeamento econômico das áreas do
País com o propósito de reorganizar a política agrícola nacional. A partir dessa oficialização o
termo Região de Irecê, “Micro-região” ou ainda “Micro Região Programa 12” passou a
designar oficialmente o conjunto e municípios formados por Barra do Mendes, Cafarnaum,
Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu,
Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí609. Nesse sentido, os limites econômicos e políticos
foram associados aos limites territoriais dos municípios com vistas na produção de uma nova
dimensão administrativa. Como lembra Francisco de Oliveira, no Nordeste, os limites
territoriais-administrativos estão carregados da própria história da formação econômico-
política nacional e de suas diferenciações610.
O período entre 1970 e 1983 pode ser entendido como momento de expansão da
“especificidade regional”, que a partir de agora chamaremos apenas de Região de Irecê. Essa
etapa foi marcada pela difusão efetiva do crédito rural público e subsidiado e dos serviços de
apoio agropecuário, pela chegada dos grandes projetos como o POLONORDESTE, pela
quase extinção das áreas de campo, pelo cercamento maciço das terras, pela elevação ímpar
das taxas de produção, pela concretização de uma malha comercial que pôs em
funcionamento o controle amplo da renda fundiária, pelo asfaltamento da via central de
607 Idem, Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 145-164, 228. 608 IBGE. Divisão do Brasil em micro-regiões homogêneas 1968. Rio de Janeiro, 1970. p. VIII. 609 Segundo as divisões político-administrativas da época. 610 OLIVEIRA, F. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 152.
232
escoamento da produção - concretizando a interligação da Região de Irecê com os mercados
externo - e pela produção articulada de um centro urbano referencial, a Capital do Feijão.
O período pós-1983, embora ainda apresente taxas significativas de produção, marca a
crise e a desmontagem da Região de Irecê, devido a extinção do subsídio ao crédito rural, ao
endividamento em massa dos trabalhadores - fortemente agravado pela ocorrência de
estiagens e baixas produções (1981-1982) – e ao surgimento de novas “regiões” com maior
produtividade no interior baiano – o oeste baiano e o pólo irrigado Juazeiro-Petrolina. Atesta
a agência de apoio agropecuário e de extensão rural já em 1980 que
O elevado percentual de produtores não usuários do Crédito [...] é decorrente da condição de frustração da safra do ano agrícola anterior [...], situação esta que determinou um nível de endividamento do produtor junto ao agente financeiro, impossibilitando uma grande parcela da população trabalhada pela EMATERBA, de obter o financiamento necessário ao custeio da lavoura no período agrícola subsequente ao da frustração611.
Enquanto “especificidade regional”, a Região de Irecê se estruturou sobre o domínio
do capital comercial sobre as outras formas de capital, como o industrial e o financeiro. Foi
ele que passou a determinar as relações de produção do espaço, tendo como agentes o Estado
e um grupo estratificado de atravessadores que concentrou os maiores volumes de capital, a
partir do controle sobre as condições de inserção dos produtos na esfera da circulação. Esses
agentes direcionaram os recursos no sentido de reproduzir os mecanismos de geração das
mercadorias a baixo custo por meio do rebaixamento dos preços. O controle do capital
comercial sobre as demais formas de capital na Região de Irecê compõe natureza ontológica
da sua própria condição enquanto região, uma vez que, como defende Francisco de Oliveira, a
região é o espaço onde um determinado tipo de capital domina os demais612.
Um melhor entendimento da Região de Irecê como “especificidade” da “Região
Econômica do Nordeste”, pode ser alcançado a partir da noção de “monopolização do
território”, abordada por Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Segundo este autor o capital
“monopoliza o território” quando produz suas condições de reprodução ampliada sem efetivar
a exproriação da terra dos trabalhadores rurais, podendo mesmo criar, recriar, redefinir e até
expandir as relações camponesas (de base familiar). A difusão das relações capitalistas de
trabalho, metamorfosea os trabalhadores rurais em consumidores de produtos industrializados,
611 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola..., p. 55. 612 OLIVEIRA, F. de. Noiva da revolução; Elegia para uma re(li)gião..., p. 148-149.
233
ao mesmo tempo em que age controlando em baixos níveis o preço dos produtos gerados nas
pequenas unidades, metamorfoseando assim a renda da terra em capital e determinando ao
mesmo tempo os custos sociais em que a produção se realiza613.
Acreditamos ter sido este o processo que fundamentou a modernização rural do Sertão
de Irecê na segunda metade do século XX, uma vez que a expansão das relações capitalistas
nesse espaço trouxe consigo a ênfase no trabalho agrícola familiar, especialmente a partir da
implantação do POLONORDESTE, e agiu controlando o uso da terra e sua renda, embora
tenham sido comuns os casos de expropriação direta.
Em síntese defendemos a emergência de uma “especificidade regional” sobre o Sertão
de Irecê a partir de três pressupostos centrais: 1) do modelo desenvolvimento capitalista
brasileiro, capaz de garantir sua expansão a partir da produção capitalista de relações não-
capitalistas no meio rural, - o que José de Souza Martins define como “capitalismo de origem
colonial”614 - e se apropriar de forma desigual e combinada das condições humanas e
materiais do espaço; 2) da defesa do protagonismo do Estado como agente racionalizador
desse modelo, a partir do uso do planejamento como estratégia de atualização das condições
de reprodução ampliada do capital e produção de uma divisão regional do trabalho no País; 3)
do “lugar” como dimensão sócio-espacial central para as dinâmicas históricas recentes do
mundo, pois, como ensina Milton Santos, compreender os processos humanos que se
desenvolvem no “lugar” é hoje um pressuposto para compreendermos os processos históricos
do nosso tempo615.
Nesse sentido, a concepção aqui defendida - da produção de uma “especificidade
regional” dentro da “região de planejamento Nordeste”, localizada sobre o Platô Norte da
Chapada Diamantina - firma-se na tese de que o condicionamento das forças produtivas do
Sertão de Irecê pelo capital desempenhou papel importante no processo maior de
desenvolvimento capitalista urbano-industrial no Brasil pós-guerra, uma vez que viabilizou o
fornecimento de alimentos e matérias-primas a baixo custo.
No âmbito cotidiano, a “regionalização” deu-se pelo controle do capital sobre a
técnica. Como esclarece Milton Santos, a técnica é uma categoria totalizadora que explica o
meio pelo qual o homem se relaciona com a natureza, fator definidor e produtor do espaço. 613 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs.). O Campo no Século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Editora Casa Amarela e Editora Paz e Terra, 2004, p. 42-43. 614 MARTINS, José de Souza. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1993, p. 144. 615 SANTOS, M. A natureza do espaço..., p. 212-220.
234
Santos destaca que as técnicas tem referência direta com o seu tempo e a emergência de novas
técnicas impõe novas formas de percepção do tempo e do espaço, um novo uso, um novo
ritmo. A técnica é, pois, para Santos, a referência comum entre o espaço e o tempo. Afirma
ele que é por intermédio da técnica que o homem, no processo de trabalho, une essas duas
dimensões. A técnica, enquanto, forma de fazer, envolve objetos e ações e produz as
diferenciações de cada época e de cada lugar. O seu estudo revela o encontro, em cada lugar,
dos fatores (sociais, culturais, econômicos, políticos e geográficos) que permitiram o acesso
ou a produção dos objetos e o seu uso lógico em um dado meio social. Nesse sentido, o autor
entende a técnica como um fator historico e espacialmente determinado e seu “estado” se
define pela relação direta com as características sociais e espaciais do contexto no qual se
insere616.
O avanço do capital sobre o Sertão de Irecê não reconfigurou apenas as técnicas de
produção existentes, ele alterou as técnicas de viver, as técnicas de uso da terra e dos recursos
naturais, as técnicas de comercialização, as técnicas de moradia, as técnicas de criação de
animais, as experiências urbanas, o espaço urbano, as técnicas de transporte, as formas de
sentir o espaço e vivenciar os lazeres. A ação “regionalizadora” do capital construiu um novo
sentido para as técnicas dos habitantes do Platô Norte Diamantino e das áreas próximas,
alterou suas bases, as selecionou, inseriu novas técnicas e às interligou ao sistema mercantil
moderno. Essa ação deslegitimou o costume como fator organizador das formas de produção,
de reprodução social e de sociabilidades até então vigentes.
Nesse sentido, entendemos que o processo de modernização rural do Sertão de Irecê,
implantado sob a égide do capital e o protagonismo do Estado e cujas fronteiras foram dadas
pelo planejamento de uma “especificidade regional”, gestou novas formas de viver, usar e
produzir os espaços, reconfigurando o próprio espaço e as suas condições de reprodução. Em
outras palavras, o processo de erguimento da Região de Irecê des-sertanejou o espaço,
eliminando o Sertão de Irecê.
A pequena unidade agrária de natureza poliagropecuária que predominava na parte
norte da Chapada Diamantina, e que até meados do século XX estava voltada para o
provimento das necessidades familiares, se condicionou, nas décadas seguintes, às demandas
externas do mercado por meio da ênfase em culturas mais valorizadas, tornando-se cada vez
mais dependente do crédito, dos serviços e das máquinas que chegaram a reboque das
616 SANTOS, M. A natureza do espaço..., p. 16-37, 111, 115, 121.
235
iniciativas governamentais ou privadas. As áreas de uso comum, o campo, foram inseridas em
um mercado de terras, cercadas, desmatadas e usadas para fins agrícolas e a própria prática de
uso comum das áreas deu lugar à propriedade privada de uso exclusivo. As moradias
passaram a ser produzidas de outras formas e por meio de outros materiais, enquanto as
formas comunitárias de trabalho foram substituídas pelo assalariamento.
O centro urbano ganhou dinâmicas comerciais complexas, muito além da feira livre
semanal. Os transportes motores reduziram o tempo de deslocamento e elevaram a capacidade
de produção e escoamento, alcançando áreas distantes, antes, remotamente visitadas,
desenhando um emaranhado fluxo de caminhões e tratores pelas estradas do Platô. Enfim, a
região des-sertanejou o espaço ao excluir as práticas, os sentidos, a materialidade, as formas
laborais e os modos de vivência que garantiam a reprodução do costume, ao substituir a
técnica que permitia aos sertanejos a relação com o seu meio e a produção do seu espaço por
outra, portadora de outros sentidos, voltada para dinâmicas urbanas e comerciais e
condicionada por instâncias de poder, alheias à dinâmica do lugar.
O processo de erguimento da Região de Irecê e o consequente des-sertanejamento do
Platô Norte Diamantino e circunvizinhança, não se deu, contudo, de forma linear, tendo sido
marcado por diversas disputas, conflitos e resistências, no geral, silenciosas e cotidianas. Em
momento nenhum se comportaram as comunidades sertanejas como sujeitos passivos.
Agentes do governo, “projetos”, órgãos, reuniões, medições de terra, visita de autoridades, as
diferenças entre o preço das dívidas contraídas no banco e o preço de venda dos seus
produtos... nada disso deixou de ser visto com desconfiança.
Não desconheciam os sertanejos do Sertão de Irecê a característica autoritária das
mudanças que operavam em seus espaços de vivência, desconsiderando seus conhecimentos e
lhes atribuindo um papel de mero executor. A dureza do cotidiano, de que nos fala James C.
Scott, todavia, por muitas vezes, os obrigou a se ajustar às possibilidades diárias e a entender
as propostas oficiais como oportunidades de sobrevivência617. Diante desse papel ativo das
massas trabalhadoras, o erguimento da Região de Irecê exigiu do Estado uma produção
discursiva e imagética que afirmou uma “vocação agrícola” para o Platô Norte Diamantino,
suas áreas marginais e suas populações, e legitimou as novas ações, os novos agentes, os
novos objetos, ritmos e sentidos expandidos pelo capital. Nesse passo, o discurso vocacional
617 SCOTT, J. C. Formas cotidianas da resistência camponesa..., p. 18.
236
agrícola agiu também censurando, apagando e silenciando as referências culturais e
simbólicas do Sertão de Irecê.
Como nos afirma Eni Puccineli, a censura, em sua materialidade histórica e
linguística, portanto, discursiva (e, acrescentemos, memorial!), corresponde a uma das
dimensões do “por em silêncio” – silenciamento – que garante a interdição da fala do “outro”
por meio de um poder de palavra regulado e regulador. A censura impede a circulação do
sujeito na rede dialógica de discursos - identidade-alteridade - a partir da qual ele próprio se
define enquanto sujeito. Esse impedimento não visa excluir o sujeito, mas disciplinar
localmente o seu discurso, evitando que o mesmo ocupe espaços diferentes nessa rede e
assim, pluralize suas possibilidades de fala. A censura restringe o indivíduo à certos lugares,
certas posições, define o que “do dizível” não deve ou não pode ser dito, quando da
construção de sua fala618. Ao anunciar a modernidade e a agricultura comercial, o Estado,
posto na condição de “salvador” da terra e das comunidades, produziu uma forma dominante
e homogênea de se contar a história das mudanças sócio-econômicas e espaciais recentes do
Platô Norte Diamantino e áreas vizinhas, censurando a diversidade do rural e as falas de seus
trabalhadores, como meio de dizer novas representações sobre o homem, o espaço, o tempo e
o trabalho.
A “vocação agrícola”: um chamado da ciência para o “tempo da integração”
Em um dos documentos consultados encontramos a seguinte declaração:
A combinação desses dois fatores (sistema viário e crédito agrícola subsidiado) possibilitou a viabilização de potencialidades produtivas até então represadas. Conforme salientam diversos estudos sobre a região, a boa qualidade do solo daquela área (sobre tudo da fatia do território pertencente ao planalto cárstico) mantinha-se à margem da agricultura comercial, em virtude, principalmente, da precariedade – senão da absoluta ausência – de uma rede viária capaz de tornar possível a integração produtiva da Região de Irecê com o resto do estado ou do país. Por outro lado, a fragilidade econômica dos agricultores locais (fruto, entre outras coisas do próprio isolamento físico a que estavam submetidos), impedia-os, nas condições normais de mercado, de ter acesso a crédito bancário [...] Em resumo, a boa qualidade do solo da Região de Irecê, associada a políticas, a um só tempo, desbloquearam física e financeiramente as suas potencialidades agrícolas, tornaram possíveis movimentos expansivos, tanto da economia quando da população619.
618 ORLANDI, Eni Pucinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª Ed. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1997, p. 75-81. 619 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes..., p. 22-23 (grifo nosso).
237
A partir do texto o leitor tem conhecimento de um “espaço-ermo”, opaco, isolado,
precário, cujas forças produtivas se encontravam bloqueadas e represadas, condicionando os
frágeis agricultores a uma vida de trabalho e privações. Esse lugar não tem nome, não tem
cheiro, é potencialmente rico e miserável. É importante observarmos como o relato evita
definir esse espaço “outro”, ao tempo em que toma a noção de Região de Irecê como uma
referência espacial sempre existente, portanto, atemporal.
O emergir da condição letárgica desse território dá-se, ainda segundo o texto, a partir
de um agente externo: o Estado, que percebendo suas possibilidades produtivas e o descaso
em que viviam os trabalhadores, o despertou por meio da implantação de uma linha viária e
do uso racional de seus recursos naturais. O Estado se define como elemento salvador, que
arrebenta as correntes de um espaço oprimido – submetido -, mostrando-lhe o mundo. A sua
ação produz uma nova lógica temporal marcada pela chegada do tempo da tecnologia, da
política e da economia de mercado. Ao fim do relato, é possível até imaginarmos os risos dos
agricultores, agora fartos e felizes por terem acesso às redes comerciais e ao crédito.
O texto acima não mereceria maior destaque que os demais por nós analisados se não
fosse o seu ano de publicação: 2000. Por que e como essas imagens perduram por tanto
tempo? A quem serviu e serve essa abordagem discursiva? Que silêncios a fundamentam?
Que silenciamentos impôs? Responder a essas questões requer uma análise dos elementos que
compuseram o discurso oficial anunciador da Região de Irecê, de forma que possibilite o
entendimento das dizibilidades e censuras sobre o “outro”.
Até meados do século XX, poucos eram os relatórios e pesquisas científicas realizadas
sobre as potencialidades produtivas das áreas semi-áridas nordestinas. Esses estudos se
tornam numerosos, específicos e diversificados a partir criação dos órgãos de
desenvolvimento do Nordeste, principalmente da SUDENE, e contou com a participação de
diversas instituições e centros de pesquisa, de técnicos e/ou estudiosos acadêmicos.
Metodologicamente, essas análises se baseram em abordagens experimentais e quantitativas.
O Platô Norte da Chapada Diamantina e suas cercanias se tornaram alvo dessas
pesquisas especialmente a partir da década de 1970. Aí, nada escapou aos olhares dos técnicos
e agentes: recursos naturais e humanos foram diagnosticados, medidos, cronometrados,
selecionados e pesados, os diversos estudos sobre a terra apontaram suas composições
químicas, físicas e geológicas, potencialidades e deficiências agrícolas, hídricas e minerais.
As culturas, o tempo de vida de cada planta, os insetos, o número de grãos por vagem, o peso
238
e a genética das sementes, os métodos de cultivo, a profundidade e a velocidade adequada ao
plantio de cada espécie, a raça dos animais e as formas de manejo, as áreas de campo, o clima,
a pluviosidade, a mão-de-obra familiar, o número de horas/família de trabalho, as máquinas
usadas, o calendário agrícola, as estradas, o transporte, as taxas de crescimento populacional,
os poderes públicos, o alinhamento das ruas, a função de cada avenida...
Essas ações diagnósticas visaram responder uma pergunta: como produzir o
convencimento social em torno das ações implantadas pela modernização rural sobre o Sertão
de Irecê? A resposta a essa questão deu-se por meio de um elaborado discurso oficial de base
agromercantil, que afirmou, por um lado, a existência de uma “vocação agrícola”, uma
ontologia “natural” para o solo e os homens do Platô Norte Diamantino e proximidades, e a
existência de um novo tempo: “o tempo da integração”, sinônimo do progresso, da ciência, do
desenvolvimento e da civilização, do Estado e do capital; e por outro, estigmatizou as formas
costumeiras de vida e trabalho do Sertão de Irecê, classificando-as como “rudimentares” e
“primitivas”, situadas no “tempo da estagnação”, assim chamado o período anterior a
presença das ações de modernização rural na área.
Esse discurso bilateral (negação-exaltação) se fundamentou na narrativa científica e
tecnológica como mecanismos de geração de legitimação social e de imposição de uma
“verdade”: a verdade agrícola comercial. À medida que as iniciativas de modernização
apontaram para a elevação da produção e garantiram a chegada de novas técnicas e recursos,
especialmente a partir da década de 1970, esse discurso se tornou mais intenso e sistemático.
Por sua vez, essa intensificação possibilitou justificar a integração das relações de produção
do Platô Norte Diamantino e arredores na engrenagem da divisão regional do trabalho em
nível nacional.
Ao afirmar a existência de um discurso como instrumento de perpetuação das relações
de dominação econômico-políticas e sócio-espaciais sobre o Platô Norte Diamantino e áreas
próximas, nos convém as observações de Foucault. Segundo o “filósofo-historiador”, um
discurso não é apenas uma expressão verbal, é um produto do desejo e do poder, não só o que
define os sistemas de dominação, mas aquilo “com o qual e pelo qual” se luta, o poder que
desejamos ter. Enquanto prática, o discurso age constrangendo outros discursos, disputando o
poder da palavra para si e buscando bloquear o poder da palavra para os outros620. Nesse
620 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 10; ver também: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
239
sentido, o discurso científico-tecnológico-oficial que fundamentou a construção da Região de
Irecê, deve ser entendido como uma estratégia intencional de produção de uma verdade que se
autoafirma única como forma de acionar um poder.
O exercício desse poder deu-se já na construção de novas nomeclaturas para o espaço
alvo. Aproveitando a Nova Regionalização do Brasil, os agentes de desenvolvimento
passaram a exaltar o termo Região de Irecê, anunciando-o como “novo lugar”. O termo foi
incorporado aos contratos bancários, aos discursos públicos, às orientações técnicas, às
reuniões, palestras, cartilhas, cursos, escolas, aos meios de comunicação, à memória local, ao
cotidiano dos trabalhadores. Na medida em que a Região de Irecê se tornou elemento
comunicativo comum, as formas tradicionais de referência espacial usadas pelas comunidades
sertanejas caíram em desuso, como a expressão “Caatingas de Xique-Xique” ou “sertão”, que
definiam extensa área entre Morro do Chapéu e Xique-Xique. Roxinho, narrando a chegada
de sua família ao Sertão de Irecê, afirma: “meu pai incutiu pra vim pro sertão né, aí no ano de
(19)50 ele andava pr’aqui, [...]. Ele trouxe lote de burro e achô bom aqui e disse: _“Vamo pro
sertão!”621. Até meados do século XX, as populações do Sertão de Irecê não usavam uma
categoria discursiva espacial para definir o conjunto de povoações e áreas de produção do
Platô Norte Diamantino, ou próximas a este.
No final da década de 1960, a Região de Irecê surgiu dos registros oficiais classificada
pela seguinte declaração: “o que caracteriza, [...], o sistema agrícola desta micro-região são os
métodos rudimentares de cultivo. A lavoura é consorciada mas não há adubação”622, nos
períodos seguintes afirmou-se que essa área vivia em “estado de estagnação produtiva”623.
Diagnósticos dessa natureza se tornaram cada vez mais comuns, se expandindo também sobre
as condições de vida das comunidades sertanejas do Platô Diamantino Setentrional e áreas
próximas. Acusa um dos relatórios oficiais: “A MRP – 12 Irecê ressente-se dos problemas
comuns a todas as áreas subdesenvolvidas: baixa renda ‘per capta’, alto índice de
analfabetismo, padrão deficiente de nutrição, elevadas taxas de mortalidade infantil, precárias
condições sanitárias, carência de capital social básico”624.
Em uma rápida associação, os documentos acima citados destacam a sociedade e as
condições laborais do Sertão de Irecê a partir de uma abordagem inferiorizadora. Nesse 621 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 622 IBGE. Divisão do Brasil em micro-regiões... p. 233. 623 BAHIA. Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado de Irecê – Pró – Irecê. Vol II – Plano Operativo 1978. Salvador: SEPLAN/M. A./M.I./SUDENE/Gov. Estado BA., 1977, p. 14. 624 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., p. 1, (grifo nosso).
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sentido, o discurso sócio-espacial da Região de Irecê nasceu apoiado na negação do modo de
vida vigente, ou seja, do modo de vida costumeiro do Sertão de Irecê. A esse foi atribuído o
sentido de “não moderno”, de atrasado, precário, portador de valores, práticas e sentidos
rudimentares. Mas a anunciação da precariedade social e econômica, contudo, não deixou de
vir acompanhada de proposições para sua correção:
Todavia, tendo em vista o dinamismo e as notáveis possibilidades de sua agricultura a micro-região, mediante uma ação eficaz que limite gradualmente os problemas mencionados, terá condições de consolidar sua posição de grande abastecedora dos centros urbanos da Bahia e do Nordeste, conquistando, ademais, meios para competir no mercado nacional625.
O trecho do relatório acima aponta a solução para os problemas identificados no Platô
Norte Diamantino e em sua circunvizinhança sem disfarçar: as condições precárias de
trabalho e vida não deveriam ser amenizadas por representarem em si necessidades das
populações, mas, por possuir a área grandes possibilidades de atendimento das necessidades
do mercado nacional de produtos agrícolas. Afirma-se resolver os problemas sociais locais a
reboque das demandas mercantis dos grandes centros. Nesse caminho, negar o Sertão foi o
primeiro passo para exaltar a Região.
Em meio a esse processo foi de fundamental importância a realização de estudos que
comprovassem as potencialidades naturais e as qualidades agrícolas da área, e
fundamentassem as mudanças agrárias que se processavam. O solo da região corresponde a um bacia calcária, assentada em terrenos algonquianos referido ao período siluriano com composição uniforme. Justifica-se a intensa utilização da terra na região dois elementos naturais se apresentam como responsáveis pela ocorrência: o solo e a água subterrânea. Os solos são de grande fertilidade, pois além de permeáveis apresentam predominância de argila coagulada fina, rica em carbonato de cálcio. Quanto a água, considera-se o lençol freático formado pela infiltração das águas pluviais através das fissuras do solo, de maior ou menor profundidade, determinando no segundo caso melhores condições para as lavouras e, de um modo geral, responsável pela mais ou menos constante umidade do mesmo. A topografia é suave, mantendo-se quase uniformimente em tôrno da cota de 700 metros para quase todos os municípios que compõem a MRP – 12 - Irecê626
Ainda podemos ler, nas linhas seguintes desse mesmo relatório menção à “exuberante
fertilidade daquêles solos”627. Esses diagnósticos se repetiram maciçamente e em 1971 afima
o Governo Baiano: “prosseguindo no seu programa micro-regional, instala-se o Govêrno na
625 Idem, Ibidem, p. 1, (grifo nosso). 626 Idem, Ibidem, p. 2. 627 Idem, Ibidem, p. 13.
241
Cidade de Irecê, sede da MRP-12, dando estímulo assim, à ação desenvolvimentista que,
calcada na comprovada vocação agrícola da área, aqui se realizará”628. Anos depois, o mesmo
governo destaca: “considerando a localização geográfica de Irecê (no Noroeste Baiano), de
excelente vocação agrícola, verificou-se a sua extraordinária importância no que concerne a
uma política destinada a incrementar o desenvolvimento de toda a região”629. Acrescenta
ainda o documento que Irecê possuía uma “extraordinária produção cerealífera”630.
A afirmação da existência de uma “vocação agrícola” para o Platô Norte Diamantino e
áreas próximas, durante a década de 1970, se fazia em consonância com as políticas de
modernização rural em nível nacional. O II PND definiu de forma clara a necessidade de
“efetivar a vocação do Brasil como supridor mundial de alimentos, matérias-primas agrícolas
e produtos agrícolas industrializados”, a partir do empenho em “consolidar a diversificação e
especialização regional do desenvolvimento agropecuário, tendo em vista as diferentes
vocações naturais das diversas regiões e a diversidade na dotação de fatores de produção”631.
A presença do termo “vocação”, ou de expressões semelhantes nos documentos de todas as
esferas políticas (locais, estaduais, federais), demonstram o alinhamento discursivo e político-
econômico das elites nacionais.
Quanto ao uso do termo, sabemos que no final do século XIX e início do século XX,
ele já era constantemente relatado pelos políticos e barões no Sudeste, como argumento de
defesa e afirmação da importância do café em relação à expansão industrial, para o
desenvolvimento do Brasil. Durante o Estado Novo falou-se do Brasil como “celeiro do
mundo”, uma espécie de equivalente semântico. O termo vocação é de origem cristã e remete
a um chamado de origem “extraterreno” ou “divino”, do qual não se pode fugir. Essa
expressão se tornou um conceito bastante difundido a partir das análises do sociólogo alemão
Max Weber (1864-1920).
Argumentando sobre os recursos naturais do Platô Norte Diamantino e de suas áreas
marginais, como símbolos irrefutáveis de uma vocação agrícola, o Estado elaborou uma
forma narrativa que associa diretamente as qualidades físicas desses recursos aos potenciais
de uso e elevação da produtividade. Preocupa-se em afirmar que “o planalto de Irecê tem
628 BAHIA. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Documento de Irecê..., p. 1. 629 ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros..., p. 11. 630 Idem, Ibidem, p. 06. 631 BRASIL. P. R. da. II Plano Nacional de Desenvolvimento..., p. 41- 42 (grifo nosso).
242
700.000 ha de muito bom solo, rigorosamente planos e apto, portanto, para a agricultura
mecanizada”632. Em outro documento podemos ler:
A fertilidade dos solos, a topografia natural que facilita a mecanização agrícola, o índice elevado de aceitação das novas práticas agrícolas e a disponibilidade de crédito, principalmente para os grandes e médios produtores, firmam-se como fatores favoráveis ao crescimento e rendimento físico das lavouras e à expansão das fronteiras agrícolas, na Micro-região633.
Além dessa associação, o discurso científico-tecnológico-oficial da vocação agrícola
fundou representações sociais que foram exaltadas e difundidas, com destaque para o técnico
agrícola e o trabalhador rural. O boletim comemorativo dos 10 anos da Empresa de Pesquisa
Agropecuária da Bahia S. A., nos informa em meados dos anos 1980 que “há desafios em que
um pesquisador se lança, com a coragem de um desbravador, mas tem a íntima certeza de que
somente um outro ou outros, companheiros, muito tempo depois, poderão completar o seu
trabalho. E isto talvez seja o que de maior existe na alma de um verdadeiro pesquisador”634.
A partir do texto, observamos que o técnico agrícola foi representado como um
“cientista paciente” e a tecnologia como sua ferramenta. Os discursos dos relatórios oficiais
sobre o trabalhador rural se apresentavam um pouco mais complexos, ora surgem como
vítimas anacrônicas, ora como sujeito idealizado, empreendedor e familiarizado com a
tecnologia. Um dos subprojetos locais do POLONORDESTE define seu público alvo como
“constituído de produtores de baixa-renda, com níveis insuficientes de educação, saúde e
nutrição. [...] Face exigências do sistema, não tem acesso a crédito, nem são assistidos com
novas técnicas de produção”635. Afirmou-se ainda que a mão-de-obra rural se destacava por
um “quase total despreparo profissional”636. Em um texto de abordagem geral, intitulado
Extensão Rural e Objetivos, e encontrado na biblioteca regional da EBDA, em Irecê, datado
de 1979, podemos ler:
Agora, recebendo informações técnicas, possuidor de necessidades, da essência de condicionamentos do ambiente sócio-histórico e econômico em relação a ele, como indivíduo, e em relação a totalidade do universo em que vive ou percebe, o homem
632 BRASIL. Secretaria de Planejamento. Planos de identificação e aproveitamento de projetos - fase III: zona Pólo de Irecê - texto. Recife: IPEA, 1975a. v. 5 (Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste), p. 14. 633 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p] ver: 1.3.1.4 – Produção Agrícola. 634 EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. EPABA 10 anos: mais pesquisa, mais alimento. Salvador: EPABA, ano I, n. 2, p. 2, 4-6, mar/ago. 1986b (Boletim informativo EPABA), p. 2. 635 BAHIA. Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado de Irecê – Pró – Irecê..., p. 14. 636 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.3.1.2 Mão-de-obra rural.
243
processa as informações e situações e gera resultado, que pode ser o esperado pela Extensão Rural: adoção dos conteúdos técnicos na sua prática diária637.
Sob a rápida ontologia laboral do homem rural podemos captar a síntese discursiva do
autor do texto: o produtor age no seu meio a partir da absorção dos conteúdos técnicos que
lhes são externos e o encontro desses elementos deve ser provido pela Extensão Rural. Em
outras palavras, o autor do texto anuncia o trabalhador rural como um sujeito que necessita
das novas técnicas para se realizar e se tornar efetivamente um produtor638. Na análise dos
folhetos e panfletos das empresas de extensão rural, que atuaram no processo de instauração
da Região de Irecê, salta aos olhos a informação:
Este sistema destina-se a produtores que cultivam feijão e milho consorciados, que tem acesso ao Crédito rural e se mostram receptíveis à adoção de novas tecnologias. Apresentam razoável conhecimento sobre a exploração e são proprietários de terra [...] Utilizam tração mecânica para preparo do solo com o uso do arado e grade [...]. Para contrôle das pragas, empregam inseticidas [...] A colheita é realizada manualmente e o beneficiamento é feito com o uso de trilhadeiras mecânicas. Comercializam a produção imediatamente após a colheita, não efetuando o armazenamento à nível de propriedade639.
Muito além de uma mera descrição, o texto acima descortina um “modelo” de ser
produtor, estabelecendo patamares comportamentais, sociais (e por que não psicológicos!) e
de trabalho para os indivíduos. O trabalhador rural emerge dos documentos analisados como
uma imagem em trânsito vertical: ora tem destaque por sua pobreza, em outro momento se
torna relevante pela sua potencial assimilação de novas tecnologias, é lembrado pela sua
carência, mas, só tem importância real se acender ao de modelo produtor.
A transformação do “trabalhador anacrônico” e pobre no “trabalhador tecnológico”
requeria estratégias, a mais difundida delas parece ter sido a realização de “campanhas”,
entendidas como ações diretas de divulgação e convencimento junto aos trabalhadores. As
reuniões e cursos coordenados pelos agentes da modernização rural, especialmente técnicos
agropecuários, nas diversas comunidades norte diamantinas, enfatizavam as vantagens do uso
de sementes selecionadas, orientavam a introdução de novas técnicas, justificavam a
importância da ampliação dos serviços extensionistas e da elevação da produtividade. Essas
637 BARBOSA, Astrogildo Regis. Extensão Rural e Objetivos. Salvador: EMATERBA, 1979, p. 15 (grifo nosso). 638 Idem, Ibidem, passim. 639EMPRESA BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL/EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA. Sistema de produção para Feijão e Milho. Irecê: EMATER-BA, 1980a (Série Sistema de Produção. Circular, 225), p. 9 (grifo nosso).
244
atividades não se restringiram aos trabalhadores rurais, em um dos documentos propõe-se:
“Estabelecer um processo de mentalização regional sobre o uso da energia elétrica de forma
generalizada e promoção de Encontros das lideranças locais, a fim de despertá-los para as
iniciativas” agro-industriais640.
O contato entre agentes e trabalhadores, ao contrário do que nos induzem a pensar as
afirmativas e propostas acima, nem sempre se deram de forma pacífica e harmônica. Esses
agentes nunca deixaram de ser recebidos com certa desconfiança pelas comunidades rurais do
Sertão de Irecê, na medida em que eles representavam, localmente, órgãos como “o banco” ou
“o governo”. Uma pequena crônica intitulada Jeito de agricultor, exposta em um dos boletins
informativos da EPABA, é ilustrativo para entendermos o grau de tensão que envolvia essa
relação: Imagem 13: Crônica “Jeito de Agricultor”
Fonte: EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. EPABA 10 anos: desempenho e perspectiva. Salvador – BA: 1986a (EPABA. Documentos, 12), p. 2.
Para além da abordagem ambiental, o texto demonstra um conflito entre formas de
conhecimento, um conflito entre sujeitos situados em pontos opostos do sistema produtivo,
marcados por diferenças culturais e sociais, envolvidos em uma relação hierárquica e 640 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 3.2 Programa – Agropecuária (grifo nosso).
245
discursiva desigual. O ponto alto da narrativa dá-se no momento em que o conhecimento do
“Doutor” passa a ser questionado pelos saberes tradicionais do agricultor. Outro texto,
publicado pela mesma empresa, denuncia, de forma geral, a existência de uma ação diretiva e
verticalizada do órgão de apoio e extensão agropecuária, a ocorrência de práticas
assistencialistas voltadas para os trabalhadores rurais, a incompatibilidade entre os pacotes
tecnológicos e a “filosofia de vida” policultora das comunidades, a falta de “integração entre
os órgãos”, a precarização dos serviços do órgão de extensão rural e a necessidade da ATER
agir de forma positiva junto aos órgãos classistas rurais641.
A existência dessas vozes distoantes dentro dos órgãos de extensão rural, também
responsáveis pelo contato direto com as populações, a “inculcação” dos novos valores e
técnicas e a inclusão dos indivíduos no sistema de crédito rural, nos permite visualizar
dissensos quanto ao papel dos agentes ténicos no processo de difusão das novas tecnologias e
quanto as formas e poderes que determinavam o contato entre esses dois grupos. A tabela
abaixo nos ajuda a entender as proximidades e distâncias dos entrevistados em relação ao
crédito agrícola rural, e consequetemente, aos agentes de modernização.
Tabela 15: Aquisição de empréstimos agrícolas entre os vaqueiros
Entrevistado Relação com empréstimos agrícola
Sinobilino Nunca adquiriu empréstimo agrícola: “minha roça era só aquela que eu pudia fazer, que pudia trabalhar, nunca tirei dinhêro de banco pra tocar roça não”.
Zé dos Morrinhos Nunca adquiriu empréstimo agrícola: Não, nunca mixi em banco. Foi só na foice mermo, roçano. [...] Nunca fui não! Nunca gostei de dever. [...] Esse negoço de tá chegano carta e chegano...”
Almir Vaqueiro Nunca adquiriu empréstimo agrícola: “Até hoje eu nunca fui num banco! [...] nunca gostei! Nunca gostei daquilo”.
Gilson Nunca adquiriu empréstimo agrícola
Juarez Nunca adquiriu empréstimo agrícola: “Eu nunca fui no banco, foi minha bestaje! (risos) Foi. Porque quem pegô hoje tá rico”.
Licuri Nunca adquiriu empréstimo agrícola Luis Vaqueiro Nunca adquiriu empréstimo agrícola
Roxinho Adquiriu empréstimo a partir de 1993. Afirma que anterior a esse período “já [existia empréstimo], mas eu num tinha cunhicimento não”.
Zizinho Adquiriu 2 contratos de empréstimo agrícola no início dos anos 1980
Jairo “Ainda cumecei fazer uns negóço (plantar via aquisição de empréstimo), mas, depois num deu certo, parei.”
Hermes Adquiriu alguns empréstimos entre 1980 e 1988. Chico França Adquiriu empréstimos agrícola na década de 1980
Viana Vaqueiro Adquiriu empréstimos comerciais (aquisição de gado) na década de 1970: “eu tirava era a letra do banco pra 90 dia, aí ia mexê com boi, vendê aos assoguêro, tirar pra Jacobina, né”. Adquiriu empréstimos agrícolas a partir da década de 1980
641 CÂMARA, Jorge da Silva. Reflexões sobre a presença da Extensão Rural no Nordeste. Salvador: EMATERBA, 1979, p. 1-13.
246
Reinaldo de Lôro Adquiriu empréstimo agrícola a partir do final da década de 1970. Samuel Não identificado Reinaldo de Zé Pedro
Não identificado
Fonte: Narrativas orais.
Observando os dados percebemos que 8 dos depoentes nunca adquiriram empréstimos
agrícolas junto aos bancos, até pelo menos 1990642, momento de crise do projeto Região de
Irecê, mesmo possuindo terras. As explicações dadas por eles para esse comportamento são as
mais diversas, entre elas evitar dívidas, evitar cartas de cobrança ou o “desconhecimento”.
Dois (Zizinho e Jairo), trabalharam com empréstimos agrícolas por curtos períodos e apenas 3
usaram os financiamentos com maior frequência, todos eles, no entanto, na década de 1980,
momento auge do processo de devastação das caatingas e rompimento de suas antigas
relações de trabalho.
A conclusão que nos induz a análise dos dados é a de que os vaqueiros, de forma
geral, evitaram sempre que possível o uso do crédito agrícola oficial. Os que não puderam
manter-se afastados totalmente tardaram ao máximo a elaboração de contratos. Essa atitude
demonstra a criação de outras estratégias de produção da sobrevivência e um nível
significativo de desconfiança para com as iniciativas de modernização implantadas pelo
Estado.
Explica Hermes que “pra trás (antigamente) (as pessoas) tinha o medo de dever (se
endividar)! Achava que ia pegar esse dinhêro e num ia pagar! Ia atrasar e ia o banco todo
tomar a área... que tudo a gente pensava, num tinha o custume de trabalhar (usando crédito
bancário)!”643 . Almir Vaqueiro destaca: “Até hoje eu nunca fui num banco! Nunca abri xxx
em banco, Graças a Deus! [...] E se eu lhe devo alguma coisa eu quero pagar (risos). E o
dinhêro do banco hoje não produz mais nada pra você pagar!”644. Luiz Vaqueiro não nega:
o que acabô a região todinha foi banco! Porque o banco invistiu dinhêro pro cara trabalhar, muitos trabaiaro e muitos tem a terra, e muitos num tem mais, tem muitas terra aí que é tudo do banco né, que o banco tomô [...]. Chegava uma firma grande como a Pioneira, invadia o mundo todo sem comprar nada! [...] pegava o dinhêro no banco, pra dismatar 3 mil tarefa, aí prantava um ano, num tirava quais nada, largava de mão645.
642 A década de 1990 marca a entrada de novos tipos de financiamento rural, de menor porte e revestidos de uma perspectiva mais social, voltados para o convívio com o semi-árido, as ações cooperativistas e as temáticas em torno da sustentabilidade do homem rural. 643 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 644 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 645 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010.
247
A constatação de certo nível de distanciamento entre os trabalhadores e os agentes de
modernização rural, todavia, não impede que alguns dos nossos entrevistados tenham, por
vezes, uma imagem positiva de muitas das ações do governo. Hermes, que usou por oito anos
o crédito agrícola, afirma:
pra mim mesmo, me ajudô muito [...]. Porque um coitado que não podia, que vinha ganhando “macaco” (diarista), [...] e então pegar uma área de terra e escriturar ela, “incrar” ela e botar no banco e ai trabalhar por conta própria e se beneficiar como muitos que fez assim, hoje tem as coisa dele, foi bom, foi ajudado, foi uma ajuda boa. [...] Primêro de Deus e segundo é dinhêro do governo646.
Chico França acha que “o governo tem ajudado muito os pobre, o negócio é que todo
órgão de governo [...] vem de lá com o dinhêro, vem de lá pra cá e os ladrão vai passano a
mão aí, quando chega em sua mão, já viu!”647. Mesmo Juarez, que nunca obteve empréstimos
agrícolas, afirma com certa lamentação que, caso tivesse recorrido aos financiamentos,
poderia hoje possuir seu próprio “maquináro pra trabalhar, num pagava maquináro
dos’ôto!”648. É comum aos entrevistados explicarem a suspensão do crédito agrícola, na
segunda metade da década de 1980, como resultado do não pagamento da dívida por parte de
agricultores mal intencionados. Essa visão chega mesmo a ser personalizada e, por vezes,
representa o “banco” na condição de vítima da situação. Zizinho diz que: “o banco disgostô
também, mais eles num são besta de ficar só soltano dinhêro pra gente num fazer nada. Uns
tirava dinhêro lá e num fazia nada!”649.
A relação entre a positivação narrativa das iniciativas governamentais e a existência de
um certo padrão de comportamento baseado na cautela e na desconfiança das intenções dos
órgãos governamentais denunciam o trabalho da memória dos vaqueiros do Sertão de Irecê. A
positivação da imagem do “banco” no momento atual fundamenta-se no contexto sócio-
econômico no qual vivem os entrevistados, marcado pela crise financeira e agropecuária do
Platô, pela impossibilidade da continuação das práticas costumeiras de trato com o gado e
pela presença marcante do Estado na vida cotidiana das populações, via programas
assistenciais de cunho social, econômico e previdenciário (Ex: Bolsa Família, serviços
646 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Hermes)..., 1º momento, 11 de out/2010. 647 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de out/2010. 648 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 649 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011.
248
médico-sanitários de atendimento domiciliar, pequenos projetos de produção rural,
aposentadoria).
Como ensina Alistair Thomson, a manipulação das lembranças passadas visa elaborar
explicações mais significativas para com as demandas do presente em que se vive por meio do
processo de composição das reminiscências650. Verena Alberti também destaca que a vida não
é composta por uma “trajetória progressiva” e isso nos exige o entendimento de que as falas
sobre ações e escolhas do passado são determinadas pelo sentido existente no momento de em
que foram narradas651. Voltemos ao discurso científico-tecnológico-oficial da vocação
agrícola e suas representações.
Censurando as vozes divergentes, os relatórios oficiais afirmaram uma genérica
“operosidade” da população local, ou mesmo, como viso, um suspeito “índice elevado de
aceitação” das novas tecnologias entre as comunidades rurais do Platô Norte Diamantino e
das áreas vizinhas. Sendo bem vistos ou não, os técnicos representavam a dimensão científica
sobre a qual se sentou o projeto Região de Irecê, cabendo a eles a produção, incorporação,
difusão e acompanhamento das novas experiências, técnicas e produtos entre os trabalhadores.
O material analisado demonstra a dimensão e a especificidade com que a ciência, enquanto
prática sistemática de análise, foi incluída nos sistemas de produção e usada para justificar o
potencial produtivo do Planalto Norte Diamantino. Um dos relatórios destaca:
No ano agrícola 1978/1979 a EPABA (UEP/Irecê) através de seus pesquisadores procurou realizar trabalhos de consórcio na fazenda do agricultor, usando todas as técnicas e informações disponíveis, obtidas através da pesquisa básica, para uma melhor distribuição das culturas em consórcio. [...] Em síntese, as vantagens deste método de plantio consorciado são tantas, que permitem à pesquisa recomendá-lo como um sistema viável economicamente para os agricultores da Micro-Região de Irecê652
Diversos experimentos voltados para o cultivo de mamona, milho, feijão, sorgo, soja e
fruticultura, foram realizados e descritos de forma detalhada. Em pesquisa comparativa sobre
o processo de adaptação de cultivares de feijão aos sistemas consorciados e exclusivos
conclui-se:
650 THOMSON, A. Recompondo a memória..., p. 57-58. 651 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 70-71. 652 BERGER, Paulo Geraldo. Consorciação - um sistema de plantio muito usado pelos agricultores da Micro-região de Irecê. Irecê: Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S.A. [s.p.], [entre 1980 e 1985] (UEP Irecê Informa) (grifo nosso).
249
Em todos os parâmetros avaliados houve um decréscimo significativo entre as médias do sistema exclusivo e consorciado. O rendimento de grãos foi o caráter que mais sofreu esse decréscimo (26%). Para número de vagens/planta, número de sementes/vagem e rendimento de grãos, as cultivares se comportaram de forma diferente nos sistemas estudados, em relação ao peso de 100 sementes porém, as cultivares mantiveram o mesmo padrão de comportamento653.
Por meio dos experimentos, os técnicos agropecuários descobriram e registraram o
“comportamento” das plantas, o peso das sementes, o número de vagens por planta. Os
resultados desses estudos passaram a ser ‘receitados’ em suas particularidades e ‘metragens’.
Deve-se proceder uma aração mecanizada 30 a 60 dias antes do plantio, com arado de disco a uma profundidade de 15 a 20 cm. Deve ser realizada uma gradagem no sentido transversal ao da aração as vésperas do plantio com a finalidade de destorroar o solo e eliminar as plantas invasoras germinadas654.
Diversos métodos de irrigação (canalizada, por inundação com sulcos, por infiltração)
foram também testados e registrados detalhadamente. As doenças das plantas e as pragas não
deixaram de ser estudadas e entre uma série de panfletos e informações sobre os agrotóxicos
recomendados, lê-se sobre o gorgulho das vagens (chaldocermus angulicollis Fahreeus,
1873): “O adulto mede de 5 a 6mm de comprimento por 3mm de largura, é de cor preta-
brilhante, com pontilhações finas na parte anterior do tórax e patas, sendo mais grossas nos
élitros (asas endurecidas) e na parte ventral do abdome”655.
A presença de grande quantidade de relatórios e documentos de outras unidades de
pesquisa nos arquivos da biblioteca regional da empresa de assistência técnica e extensão
rural responsável pelo atendimento ao município de Irecê e circunvizinhos, demonstra uma
intensa circulação de informações e a realização de esforços dos agentes locais em construir
sistemas de referenciamento para os seus estudos. Os técnicos agrícolas incorporaram a
imagem da ciência, como os governantes à do capital. O intitulado “operário rural” simboliza
bem essa associação em um poema reproduzido entre os boletins informativos da EPABA.
Quando não houver mais floresta? Quando não houver Mais floresta O que será desta nação
653 OLIVEIRA FILHO, Elias. Adaptação de cultivares de feijão (P. vulgaris, L.) ao sistema de cultivo consorciado. Salvador: Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S/A, 1982 (EPABA, Boletim de Pesquisa, 1), p. 17. 654 EMPRESA BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL/EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA. Sistema de produção para Feijão e Milho..., p. 11. 655 COSTA, Jonas Machado da. Pragas do feijoeiro na Bahia e meios de combate. Salvador: Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S.A., 1986 (EPABA. Circular Técnica, 13), p. 13.
250
Quando o solo rico e fértil Transformar-se erosão Quando não houver mais caatinga E secarem as cacimbas O que será do meu sertão É a vez da agronomia Lutar com muita bravura E com tecnologia Defender a agricultura É hora de se lutar Vamos todos semear E colher muita fartura656.
A construção artística do autor, cujo nome real é Eufrásio F. de Farias, anuncia a
possibilidade de continuar produzindo mesmo que nas mais adversas condições, bastando
para isso, o acionamento da ciência e da tecnologia, especialmente da Agronomia. O trecho de
outro documento da mesma natureza anuncia também a relação agricultura-tecnologia:
“Lembramos ao leitor que o processo de geração de tecnologia agropecuária é moroso porque
deve ser criterioso e abarca uma soma considerável de variáveis que devem ser analisadas em
todos os seus aspectos, até que a tecnologia esteja pronta para ser “semeada”657. Aqui, a
tecnologia chega mesmo a nascer, como uma planta, a qual, para que produza bons frutos,
deveria ser cultivada pela cautela e a análise.
O processo de construção da estrutura discursiva científico-tecnológico-oficial
reservou também uma imagem especial ao Estado. Este é constantemente afirmado como o
agente provedor, responsável pela chegada de novos tempos e pelo fim do isolamento dos
homens e dos territórios do Platô Norte Diamantino e circunvizinhanças. Muitas vezes, essa
imagem chegou a ser personificada pelos seus governantes como exemplifica um dos textos
analisados ao afirmar que: “o Governador Antônio Carlos Magalhães desperta a vocação
econômica de regiões antes esquecidas que agora ressurgem como celeiros agrícolas e
pastoris”658. O governo assume o lugar de interlocutor da natureza e do trabalho, concedendo
ao homem as condições materiais para realizar o chamado da “vocação agrícola”.
Como temos acompanhado, as ações oficiais se interligaram diretamente com a
chegada das novas tecnologias, dentre estas, o trator é o maior representante.
656 EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. SEMEAR: Boletim informativo da UEP/Irecê. Irecê, ano 2, n. 1, [de 1980-1990]b, p. 7. 657 Idem, SEMEAR: Boletim informativo da UEP/Irecê. Irecê, ano 1, n. 2, [de 1980-1990]a, p. 1 658 ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros..., p. 6.
251
Imagem14: Instalação do Governo do Estado da Bahia em Irecê
Datada de 1971, a foto acima nos foi doada e representa um momento símbolo da
instalação de novas agências de desenvolvimento do Governo Baiano na cidade de Irecê. A
imagem impressiona tanto pela quantidade de máquinas, quanto pela multidão que as
acompanha. A imagem aponta para o protagonismo da tecnologia ao mesmo tempo em que
demonstra como o trator consubstanciou-se no próprio Estado, ambos apresentados à
multidão como “modernos” e “modernizantes”. No decorrer do evento, a praça pública foi
territorializada como lugar do discurso oficial, palco de união entre o campo, a cidade e o
governo. Fato de destaque relativo aos tratores foi narrado por Guilhermino:
En: [...] todo mundo quis porque daí pra frente aumentô as coisa, foi como avoluir o lugar, né. Aqui teve gente de pissuir 10, 12, 15 trator, né! E: Foi mesmo?! Pr’aqui?! O sinhô cunhece assim alguém? En: Conheço! Aqui teve gente aqui em João Dourado que tinha 10 trator, tinha 15 trator! Ali em Canarana, aí na América mesmo tinha um que tinha 12 trator [...]659
Busquemos outra imagem para refoçarmos a importância dessa máquina para as
propostas de modernização rural do Platô Diamantino Setentrional e do seu entorno.
659 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., 2º momento, 18 de ago/2011.
252
Imagem 15: Governo inicia plantio do feijão em Irecê, 1980 (SECOM).
Fonte: <http://www.institutoacm.com.br/geral/fotos-historicas.html> Acesso em 07 de fevereiro 2010.
Não é preciso muito esforço para entendermos a união dos elementos da foto. O
Governador Antônio Carlos Magalhães, em pessoa, se põe à direção de um trator Massey
Ferguson MF – 265, fabricado no final da década de 1970 (portanto, uma das máquinas mais
modernas para a época em que foi registrada a imagem) e entre aplausos e risos dos
populares, anuncia a chegada de uma nova etapa agrícola. Momento síntese da união desses
elementos (Estado, máquina e vocação agrícola) pode ser analisado também a partir do trecho
narrado por um dos memorialistas da cidade de Irecê:
A primeira festa nacional da mamona foi realizada em Irecê em dia 29 de junho de 1985, dia de “São Pedro”. Houve um desfile de tratores agrícolas, com máquinas enfeitadas com galhos de mamona, desfilavam em frente ao palanque, onde estavam autoridades federais, estaduais e municipais. O objetivo do prefeito, Hildebrando Seixas, era mostrar as potencialidades agropecuárias da microrregião de Irecê660.
A citação demonstra como o discurso científico-técnológico-oficial da “vocação
agrícola” da Região de Irecê encarnava práticas e produzia formas legitimadoras para os
novos elementos simbólicos trazidos pelo processo de modernização rural. No texto, as
máquinas, a política, o capital e a agricultura comercial se encontraram em ato solene em que
se faziam presentes os trabalhadores e suas instâncias político-representativas. Até mesmo o
dia escolhido tem uma função e um peso na narrativa: até São Pedro parece referendar o ato!
660 RUBEM, J. Irecê: história..., p. 197.
253
Como vimos no caso da imagem 13, as praças e ruas das cidades e povoações do
Planalto Norte Diamantino, serviram de meio para produção de estratégias de difusão e
convencimento social da “vocação agrícola” da Região de Irecê, assim como das mudanças
urbanas que se processaram no trajeto da modernização agrícola.
Imagem 16: Desfile cívico na cidade de Irecê (1970-1980)
Fonte: Arquivo do Colégio Polivalente Governador Antônio Carlos Magalhães.
A foto acima demonstra a realização de um desfile cívico na cidade de Irecê entre as
décadas de 1970 e 1980, enfocando a participação de estudantes. Para além da estampada
temática que representava a comitiva de discentes, chama atenção os trajes escolhidos para
representação do ato. Os macacões são roupas associadas ao exercício de trabalhos manuais,
especialmente os voltados para o trato com a terra. Completa a indumentária o clássico
chapéu de palha tão comum entre os trabalhadores rurais locais. Embora não disponhamos de
outras imagens relativas aos desfiles e festejos, a deduzir pela presença das escolas e seu
caráter cívico, supomos serem esses momentos anualmente esperados no contexto da pequena
cidade. Aí, os sujeitos populares não apenas aplaudiam as autoridades, tornam-se eles mesmos
veículos de difusão do discurso da “vocação agrícola”.
A cidade ainda foi palco de uma nova forma de produção discursiva que legitimava
essa “vocação”, dessa vez, não mais formas em movimento, mas, sim formas estáticas.
Complementando as intensas mudanças urbanísticas que ocorriam na cidade de Irecê, o
Governo Estadual implantou monumentos de referência ao potencial agrícola da região.
254
Font
e: A
cerv
o do
aut
or, 2
010.
Foto 6-7: Monumento dedicado a agricultura em frente ao Banco do Brasil (coincidência?). Data desconhecida. Lê-se em um dos lados: “O Brasil cresce e Irecê abastece”, no outro: “Nesta terra em se plantando tudo da”.
Font
e: A
cerv
o do
aut
or, 2
010.
Foto 5: Arado de tração animal, monumento dedicado a agricultura na “Praça do Feijão” em Irecê. Em sua placa de inauguração (outubro de 1971) lê-se: “Aquí, governo e povo irmanados, plantam a semente do progresso”.
255
Font
e: A
cerv
o do
aut
or, 2
010.
Certas áreas da cidade também foram denominadas com nomeclaturas relacionadas à
prática agrícola, como a “Praça do Feijão”, local de concentração dos comércios de grãos, por
onde geralmente passava a produção dos municípios vizinhos e de onde partiam os caminhões
para os grandes centros. Em uma das calçadas desta praça está cravada em ladrilhos a
expressão “Capital do Feijão”. Na década de 1990, um dos governos municipais implantou na
cidade de Irecê lixeiras em formato de grãos de feijão e espigas de milho, o que demonstra
uma clara tentativa de alimentação e uso das representações agrícolas produzidas nas décadas
anteriores.
Vê-se que a produção do discurso de “vocação agrícola” moveu um grande aparato
formado por instituições e agentes (agências financeiras e de desenvolvimento agrícola,
poderes governamentais, escolas, técnicos agropecuários), envolveu variados espaços (a rua, a
praça, a roça, o laboratório) e recursos (pesquisas, máquinas, roupas, eventos festivos,
discursos públicos, a mídia), atingiu e incorporou diversos grupos populares como estudantes
e trabalhadores. Todos esses fatores articulados em um discurso agrícola homogeneizador de
base científica-tecnológica-oficial, tinha como foco maior a geração de formas de aceitação e
reprodução social dos interesses do capital incorporados pelos governos. Ao tempo em que
produzia um “dizer”, esse discurso gerava também o silenciamento das formas costumeiras de
vivência e trabalho do Sertão de Irecê.
256
O discurso de uma “vocação agrícola” para os homens, a terra e as cidades do Platô
Norte Diamantino e das áreas vizinhas, destacou ainda um recorte temporal que antagonizou o
tempo das modernidades, afirmado como o “tempo da integração”, à forma costumeira de
sobrevivência dos trabalhadores do Sertão de Irecê, esta agora definida como “tempo da
estagnação”. Na base dessa estratégia, esteve a apropriação política dos tão persistentes
binômios explicativos (atrasado x moderno; civilizado x bárbaro), que por muito tempo
marcaram as versões históricas no pensamento social brasileiro, gerando interpretações
reducionistas e polarizadas.
A “vocação agrícola” tornou-se a forma de se narrar e cantar a história dos territórios e
das populações alvo das ações modernizadoras. O hino da cidade de Irecê, criado em 1968,
ainda hoje exalta: Irecê dos meus amores Terra boa do sertão [...] Tuas terras dilaceradas Pelo arado benfeitor São orgulho e a esperança Desse povo trabalhador Os verdes das tuas roças Lindas flores de algodão Lembram garças revoando Os campos do meu sertão Campos verdes florejantes [...]661
Um dos mais destacados memorialistas dessa cidade, Jackson Rubem, narra na voz
ritmada do cordel.
[...] Vila de Irecê cresceu muito Para orgulho da nação Seu povo trabalhador Sustentado no feijão Plantava outra cultura Dentro da agricultura Para libertar o seu chão [...] O seu povo calejado Queria se dominar Com uma mão no arado E a outra a bradar [...] 662
661 IRECÊ, Prefeitura Municipal de. Hino de Irecê (autoria: Carmosina Lopes), 1968. Disponível em <http://irece.ba.gov.br/simbolos>. Acesso 10 de mar/2012.
257
Novamente a terra, o homem trabalhador, o arado, a roça são invocados em uma fala
uníssona, que busca definir o passado de uma forma alinhada e agrícola. A esses, alguns
outros símbolos se juntaram no sentido de ampliar e positivar as novas referências imagéticas
que serviram de base para a afirmação da chegada de um “novo tempo” e que permitiram a
internalização social dos interesses do Estado. Em tempos de Ditadura Militar, exaltou um
dos vereadores do município de Irecê em documento datado de 09 de abril de 1979 e
direcionado ao então Ministro da Agricultura, Delfim Neto:
Prontos como soldados, para lutar no campo da produção! Temos a terra fértil, alguns tratores e outros instrumentos rudimentares, queremo (sic) em primeiro lugar o Vosso Comando, queremos crédito a juros baixos, preços compensadores para nossa produção. Machamos pois unidos, confiante nas Palavras do nosso SUPLEMO (sic). COMANDANTE! O PRESIDENTE JOÃO BATISTA DE FIGUEIREDO, que: ‘Enquanto o Nordeste for pobre o Brasil não será rico663
A agricultura torna-se aí uma missão, para qual o exército já se encontra posto,
faltando-lhes as “armas agrícolas” para alimentar o Brasil. Novamente aqui, à terra fértil e a
mão-de-obra (“soldados da produção”) unem-se em uma narrativa onde o Estado é enfatizado
como portador do poder de produção das condições do “novo tempo”.
A face mais dura do processo de estruturação da Região de Irecê para os trabalhadores
rurais, tanto em sua dimensão discursiva quanto em suas dimensões materiais, se delineava
silenciosamente, ou melhor, no silenciamento. O enfoque agrícola da política oficial buscou
eliminar outras formas rurais de ser, homogeneizando formas de trabalho e uso da terra nas
comunidades rurais, noções de espaço e de cultivo relacionadas ao mundo poli-agropecuário
do Sertão de Irecê, censurando dizeres, ações e sociabilidades. Se aos agricultores restou a
possibilidade de continuarem suas atividades apesar do cruel sistema de controle da renda da
terra, da precarização de suas condições de vida, da dependência de novas tecnologias, da
perda da autonomia sobre sua própria terra - agora usada segundo os critérios dos agentes de
modernização, fiscalizada e controlada -, da constante tensão diante das dívidas adquiridas, do
medo da perca da propriedade e da dificuldade de compreensão dos processos burocráticos
nos quais se viram imersos, aos vaqueiros menos ainda sobrou.
662 RUBEM, Jackson. Aniversário de Irecê: “a história de nossa independência”. Irecê - Ba: Print Fox, 2007, p. 30-31. 663 CMI. Documentos Diversos 1978 – Biografias, abaixo-assinado – Decretos Legislativo de 1977. Carta direcionada ao Ministro da Agricultura Delfin Neto informando as potencialidades agrícolas da região e as condições precárias do ano corrente. 1979, p. 3.
258
Ao enfocar a agricultura comercial, o Estado excluiu o vaqueiro física e
discursivamente como categoria de trabalhador rural. O discurso homogeneizador da
“vocação agrícola” omitiu o fato de que, muitas vezes, o agricultor e o vaqueiro eram a
mesma pessoa, e processou um corte entre eles como forma de incorporar e divulgar apenas
as características laborais que lhes era de interesse no Sertão de Irecê.
“A mode qui isso tudo qué dizê então, que de agora por diente, pelas terra do sertão, nóis num vai mais campiá”?664
Em nenhum dos relatórios analisados, mesmo entre aqueles que fazem menção às
categorias laborais do Sertão de Irecê, encontra-se o termo “vaqueiro”. Refletindo ainda nos
termos de Eni Orlandi, enxergamos nesse fato a ação da política do silenciamento e uma
pergunta nos induz a religar os pontos entre a alteridade e a identidade, rompidos pela
censura665: Por quê? Como é possível que o vaqueiro, em uma sociedade que tinha na
pecuária uma de suas formas matriciais de sobrevivência, não tenha sido visto e registrado?
Esse questionamento nos leva a entender a prática da pecuária à solta e seus trabalhadores
como um entrave aos interesses da modernização rural do Sertão de Irecê e à consequente
construção da “especificidade regional” Região de Irecê.
Outro fator reforça a nossa hipótese: a forma negativizada pela qual o Estado buscou
demonstrar a prática da pecuária à solta nos documentos oficiais. Um dos relatórios afirma no
final da década de 1960, que a pecuária do, até então Sertão de Irecê, não tinha “nenhuma
conceituação de raças, os rebanhos (eram) constituídos na sua maioria de animais do tipo
chamado ‘pé-duro’ e ‘mestiços azebuados’ [...] de baixa rentabilidade [...] produzindo
carcaças de inferior qualidade e carnes fibrosas de baixa digestibilidade”666. Outro documento
destaca que aí “a atividade exclusivamente pecuária apresenta-se com expressividade
mínima”667. De forma geral, entre os relatos oficiais analisados, a prática da pecuária à solta é
sempre classificada como atividade complementar à agricultura, secundária, insignificante ou
em vias de extinção. Essa concepção se reforça à medida em que ganha corpo o discurso
científico-técnológico-oficial da “vocação agrícola”.
664 MELLO, Elomar Figueira de. A terra qui nóis pissui, In: Árias Sertânicas. (CD), 1992. 665 ORLANDI, E. P. As formas do silêncio..., p. 75-81. 666 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., [de 1969 a 1972]. p. 12. 667 Idem. Micro-região programa 12 Irecê... [s.p.] ver: 1.3.1.1. Estrutura Agrária (grifo nosso).
259
A pecuária em si, como atividade produtiva, todavia, possuía uma forma de sobreviver
dentro do processo de modernização rural, bastando para tanto a adoção de um “elenco de
tecnologias que asseguram ao agropecuarista, mesmo do semi-árido, [...] (a) utilização mais
racional dos seus rebanhos bovinos, ovinos e caprinos, oferta de um crescente aumento de
material genético de melhor qualidade, melhores condições sócio-econômicas, além da
prestação de uma gama de serviços diretos ao produtos rural”668. Em boletim de 1983 a
unidade regional da Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S. A. (EPABA), responsável
pelo serviço de assistência técnica e extensão rural local, informa que “foram implantados dez
trabalhos direcionados para a produção animal (pecuária leiteira, corte e manejo extensivo),
na fazenda ‘Baixa Grande’, localizada no município de Ibititá, no km 25 da rodovia Irecê-
Ibititá669”.
A forma proposta para a continuidade da atividade pecuária dentro do projeto de
modernização rural, exigia a sua inclusão nas dinâmicas mercantis e tecnológicas que se
instalavam. Com excessão do uso do sistema intensivo de criação, essas iniciativas
modernizantes ficaram restritas aos grandes criadores, que tinham acesso a informação e
influência nos meios políticos e institucionais. Na verdade, ideias como a de melhoramento
genético, adoção de técnicas intensivas e novas formas de manejo, soavam estranhas entre
comunidades rurais. A modernização das atividades pecuárias do Sertão de Irecê, não passou
de um experimento limitado.
Avaliando o impacto dos recursos do Projeto Sertanejo destinado aos criadores do
Platô Diamantino, o Centro de Planejamento da Bahia reconhece que “o Projeto Sertanejo
orienta-se principalmente para a pecuária, com rendimentos mais seguros, e cujos
investimentos tem maior segurança de retorno. É claro que, deste modo, serão os estratos
maiores os principais beneficiados”670. A continuidade das práticas tradicionais de criação e
cuidado com os animais no campo, foi afirmada como inviável e rudimentar e seus
diagnósticos não pouparam críticas: 3.7 Perfil Tecnológico Pecuário Aspectos positivos: nenhum Aspectos negativos: Não existe um mínimo manejo para bovinos, ovinos e caprinos
668 EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. Relatório 1979-1983: versão resumida. Salvador, 1983b (EPABA. Documentos, 3), apresentação. 669 Idem. UEP Irecê Informa: Irecê: EPABA, 04 de maio de 1983c, [s.p.]. Mais uma forrageira para a região de Irecê. Primeira página. 670 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III - O Projeto Sertanejo – Recursos e Créditos.
260
Grande parte não vacina. Não realizam castração. Não fazem tratamento do umbigo. Não realizam concentração de nascimentos671.
Como vimos, a pecuária era uma das fontes de sobrevivência essenciais à vida das
comunidades do Sertão de Irecê e exigia delas razoável mão de obra e tempo de trabalho. Não
era apenas a empreitada em busca da captura de um boi que se iniciava sem a previsão de fim.
Dessedentar os animais de qualquer porte, a depender da distância das fontes de água,
poderia, por exemplo, levar quase o dia inteiro. A emergência de qualquer imprevisto, como a
presença de um animal ferido, a ausência de um deles ou a necessidade de realização de um
parto, tardava ainda mais a atividade e exigia maior atenção do seu executor. Como apontado
páginas atrás, estamos diante de uma sociedade cujo tempo é marcado pela tarefa a ser
executada, minutos e segundos tinham aí pouca importância.
Em virtude da própria natureza dos animais, o cuidado com os bovinos exigia maior
atenção e fiscalização de seus zeladores, uma vez que esses animais se deslocavam por
distâncias maiores, exigindo muitas vezes trabalho diário e integral. Mais intensa ainda ficava
a atividade quando se tratava do cuidado com rebanhos alheios. Chico França nos explica
como costumava revezar com seu irmão as tarefas do campo e da roça.
eu dava água ao gado uma semana e ele ôta, agora, em minha semana eu ia relar mandioca e dava água ao gado. Eu dava água ao gado até mêi dia e de tarde eu ia relar mandioca, na ôta semana, eu ia pra roça e ele (Arlindo, seu irmão, também vaqueiro) ficava pra relar mandioca de tarde e dar água ao gado de manhã até mêi dia. Ele dava ao de minha intrega (o gado pelo qual ele era responsável) e da dele!672
Como demonstrado, a “profissão de gado” era função almejada no Sertão de Irecê (na
verdade, em todo o Nordeste) e atraia muitos jovens, os quais, mesmo não se “especializando”
terminavam por possuir uma afinidade maior com essa atividade. Essa afinidade, ou
especialização laboral, fazia com que esses sujeitos dedicassem grande parte do seu tempo ao
cuidado com o gado bovino em detrimento das atividades agrícolas. Guilhermino relata um
caso exemplar para entendermos a atração que a função de vaqueiro exercia sobre os jovens.
En: Nós tem uma turminha aí que era muito farrista, nós ia muito pra festa, às vez nós dexava os cavalo e ia de à pé, pra festa, né, as moça tudo cunhecia qu’era... tinha o gadím, tinha coisa, tudo... todo mundo quiria a gente, né.
671 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL. Projeto de Pesquisa PDRI – Irecê – resumo de resultados, conclusões e sugestões. Salvador, CAR/EMATER-BA, 1985, p. 16, (grifo nosso). 672 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010.
261
E: Namorava muito. En: Levava pra longe! (risos) E: É um tempo bom, né? En: É bom. Você só namorava com moça feia e vagabundinha se você quisesse, né, você esculhia as que você queria né, qu’era as que dava em riba mesmo!(risos)673
De acordo com a narrativa, a conhecida proximidade entre o indivíduo, o cavalo e o “gadím”,
ou seja, o mundo da pecuária bovina, o permitia ser visto como possuidor de certo status
social entre seus amigos e até mesmo servir de “ferramenta” para concretização de objetivos
amorosos.
A ocupação dessa mão-de-obra em torno do trato com os animais, de forma
especializada ou não, foi um dos grandes obstáculos enfrentados pelos construtores da
economia agrícola regional mercantil que sustentava a Região de Irecê. Ao mesmo tempo em
que absorvia uma força de trabalho preciosa – o capital também faz escolhas etárias, nesse
sentido o jovem corresponde a força de trabalho mais ativa e mais cobiçada – à expansão das
relações agrícolas, o trabalho com o gado representava também uma ameaça disciplinar, uma
vez que e as relações laborais que aí se processavam tinham caracter mais flexível, permitia
grande controle do trabalhador sobre a sua ação, seu saber e seu tempo. Poderíamos mesmo
dizer que, como tendência, a maior especialização do indivíduo quanto às atividades pecuárias
tradicionais, correspondia a uma possibilidade de ascensão social – via formação de micro-
patrimônios - distante do controle do Estado.
Para além da ocupação da mão-de-obra, a prática da pecuária à solta ocupava também
as tão desejadas terras do Platô Norte Diamantino e outras áreas férteis que se localizam à
suas margens. É coerente pensarmos que sobre as terras mais férteis também nasciam as
melhores pastagens, portanto, o Estado, os pequenos criadores e os vaqueiros compuseram
uma arena de disputa em torno das mesmas áreas. Do ponto de vista oficial da produtividade,
a presença dos animais ameaçava os potenciais agrícolas, pois, além de comer as plantações e
arrebentar as cercas, a sua inquietude alimentícia cotidiana terminava por prejudicar ou retirar
a cobertura vegetal de certas áreas, expondo a terra aos efeitos da erosão e à perda de sua
fertilidade. Por outro lado, seu deslocamento constante atingia novas áreas, fator agravado
pelo rápido crescimento dos rebanhos. Embora acreditemos que a pequena proporção dos
rebanhos do Sertão de Irecê permitisse a recomposição natural da maior parte das áreas, aos
olhos do Estado, os prejuízos à fertilidade do solo eram possibilidades sempre ativas devido à
constante reprodução dos animais. 673 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.
262
Entre os documentos oficiais encontrarmos a seguinte afirmativa: “A pecuária de corte
extensiva constitui a única valorização possível das zonas desfavorecidas do Norte (área
localizada fora do Platô, considerada mais árida) [...] As fracas potencialidades das áreas
cobertas não merecem propor um sistema mais intensivo e de melhor renda”674. A afirmativa
demonstra a pecuária à solta como a solução para as áreas de menor interesse agrícola por
parte dos agentes de modernização rural, o que significa que os poderes governamentais
atuantes sobre o Sertão de Irecê, não visavam combater a prática da pecuária à solta em si,
mas, evitar que ela continuasse existindo sobre o Platô Norte Diamantino e as áreas
circunvizinhas que apresentassem qualidades agrícolas. Para as áreas menos produtivas, a
pecuária tradicional poderia mesmo significar formas de valorização e uso.
A introdução da cerca de arame farpado, o desmatamento acelerado e as proibições
legais quanto ao sistema de cria dos animais à solta impuseram mudanças rápidas no modo de
vida dos trabalhadores rurais. Hermes relata que a entrada de animais nas roças alheias era
comum mesmo antes da implantação das cercas de arame farpado e da expansão da lavoura,
no entanto, ...
Entrava! Mas, o campo tinha mais direito porque era mais era campo né, a roça já era menos, mas depois a roça passô ser mais e o campo menos e o próprio agricultor, dono da roça, dizia: _“Não o fazendêro tá errado, que nossa roça tá mais! Num tem mais onde eles crie! Eles tá tentando a criar sem puder mais, porque num tem mais campo!” E então, o cabra ia compreendendo e saia mesmo, né! É onde a roça, a lavôra, ganhô do gado! (risos)675
A fala acima nos remete a um contexto de rompimento, ou, no mínimo alteração, das
regras morais que regiam a convivência das atividades pecuárias e agrícolas no Sertão de
Irecê, devido a ocorrência de alterações em suas dimensões. A predominância do campo
obrigava o agricultor a providenciar cercas para suas propriedades e, em ocasiões que estas
viessem a apresentar defeitos, até tolerar invasões de animais à sua roça. A expansão da
agricultura comercial inverteu o “lado da razão”, obrigando o criador a aceitar sua própria
expulsão em virtude de não mais existir campo. Bem fora dessa linearidade se davam as
relações cotidianas e não difícil foi ocorrer problemas de convivência entre vizinhos.
Guilhermino exemplifica a situação:
674 BRASIL. Secretaria de Planejamento. Planos de identificação e aproveitamento de projetos - fase III: zona Pólo de Irecê - texto. Recife: IPEA, 1975a. v. 5 (Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste), p. 19 e 24. 675 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.
263
se você tinha um rebanho de criação, você tava com ela aqui, aí quando pensar que num diz: _“Ah! A criação tava na roça de fulano!” Ôtas hora fulano chegava: _“Moço, sua criação tá acabano minha roça lá” Né?! Era, ou você acabava ou brigava, ficava inimigo uns dos ôto, né. Portanto, então o povo foi disgostano, foi acabano, acabano, até acabô tudo676.
Roxinho explica como a redução e até eliminação dos rebanhos atingiu as formas de
sobrevivência das populações pobres do Sertão de Irecê.
Acabô ovelha, acabô bode, tudo, acabô mais o sertão, né! E aí, quem tinha a capacidade de comprar o arame, cercava, quem num tinha num pudia nem criar uma vaca! Como é que criava? É pra criar preso e você tinha só uma vaca, num pudia comprar 2 bola de arame pra fazer a cerca, né! Acabô com o mais fraco, né.677
De acordo com Jairo, “antigamente” “todo mundo tinha criação miúda e por causa da
cerca de arame foi obrigado acabar tudo! Fraquiô o povo, porque acabô as coisa!”678. As falas
apresentadas nos demonstram como o processo de avanço da modernização rural sobre o
Platô Norte Diamantino e cercanias, condicionou a forma de vida dos trabalhadores. Uma
observação atenta às narrativas mostra mesmo que o arame funcionou como critério de
decisão entre quem continuava e que não continuava criando.679
O cercamento, contudo, nem sempre funcionava para os animais de menor porte e de
dentro de uma caixa de papelão velha, nos surge um texto manuscrito datado de 1978,
redigido por alguns “proprietários” do povoado de Gameleira, município de Irecê, e enviado à
Câmara de Vereadores esclarecendo os embates em torno da continuidade da presença de
cabras e porcos dentro das lavouras e solicitando providências.
Os infra assinados, maiores, proprietários, residentes e domiciliados em Gameleira do Distrito [...] Município de Irecê Estado da Bahia, vem pela presente representação solicitar dessa Egrégia Câmara de Vereadores de Irecê o cumprimento por quem de direito, da Lei Municipal, amparada no Código de Postura deste Município, na parte que controla e regulamenta a criação de animais de pequeno porte soltos nas ruas fora dos cercados ou pastos dos seus legítimos donos. Os que firmam este documento se sentem prejudicado com a invasão de cabras e porcos, em suas lavouras nos quintais que circulam esta vizinhança nesta Localidade, cujas cercas são construídas para animais de grande porte
676 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 677 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 678 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 679 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
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Apelamos pois, para o espírito de comprieção (sic) de Vossas Exelencias, no sentido de solucionar o problema solicitado680.
A persistência da presença dos rebanhos “miúdos”, contudo, não impediram a sua
quase extinção. Na essência desse combate à prática da pecuária à solta, estava a instituição
da forma privada e exclusiva de uso e propriedade da terra. Como temos acompanhado, essa
nova forma de uso no Sertão de Irecê iniciou-se pela abertura de um mercado de terras, pela
obrigatoriedade dos cercamentos e pela inclusão das áreas no sistema de crédito, fato que
requeria a emissão de títulos de propriedade. Por esse se instituía a figura do “dono” da terra,
categoria de posse bem diferente das “terras da nação” de que nos falam os vaqueiros ao se
referirem ao campo. Não é de se estranhar que entre as “campanhas” previstas pelos órgãos
oficiais para instruir os trabalhadores rurais sobre as novas “mentalizações regionais”, se
encontrassem também planos de assistência para legalização fundiária681.
A produção da propriedade privada de uso exclusivo é mesmo umas das dimensões
genéticas da existência do capitalismo. Suas gêneses já foram demonstradas por Marx e
retomadas por E. P. Thompson a partir da análise dos cercamentos das florestas na Inglaterra
do século XVIII. Como demonstrado, a origem desse processo no Brasil dá-se com a lei de
terras de 1850 e continua até hoje. Dessa forma o processo de construção da propriedade
privada exclusiva no Sertão de Irecê em meados do século XX, era apenas a ponta de um
processo extenso que já se estendia pelo mundo desde a Revolução Industrial, não deixava
contudo, de ser vista como um “estranho” pelas comunidades sertanejas atingidas.
Embora atingisse a população no geral, o cercamento e o desmatamento das terras
recaíram com maior intensidade sobre os vaqueiros, uma vez que a pecuária bovina à solta
precisava de grandes áreas de pastagens e que a adoção do sistema intensivo de cria exigia
recursos nem sempre acessíveis aos trabalhadores rurais. Por outro lado, a exclusão dos bois
correspondia também à exclusão da principal fonte de renda dos vaqueiros do Sertão de Irecê.
Esse fato exigiu desses homens estratégias de sobrevivência que visassem a continuidade das
suas atividades com os rebanhos. Hermes explica que muitos criadores passaram a retirar o
gado para áreas mais distantes do Sertão de Irecê: “tiraro uma parte pra o Riacho do Ferreira,
ôtros tiraro pra essa Vereda (do Jacaré) aqui da Manga, ôtro pro lado do Brejão, pro bêiço de
680 CMI. Documentos Diversos 1978 – biografias, abaixo-assinado, decretos legislativo d 1977. Abaixo assinado dos produtores do povoado de Gameleira encaminhado à Câmara de Vereadores de Irecê. 28 de novembro de 1978. Irecê. 681 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 3.2 Programa – Agropecuária.
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vereda aí que sempre, toda vida foi solto, tiraro pra aí.”682 Aos que assim não procederam
restou, enquanto possível, a tentativa de continuar cuidando o gado nas áreas de intermeio
entre as roças.
Soltava naqueles campo pequeno, aquela área mais pequena, porque cada um cercava uma área aqui, nesse meio, mas pra cá ficava solto e prá cá né, então o trem pastava aqui de um lado e de ôtro, depois vinha o ôtro fechava ôtra coisa, foi fechando, foi, até encostar tudo, e acabô, mas dá pra perceber que o campo ia acabar mesmo683.
A fala do vaqueiro não nega: continuar usando o “campo pequeno” era uma medida
temporária. Sobraram ainda opções como alugar pastos cercados, medida essa nem sempre
possível para as comunidades do Sertão de Irecê. Guilhermino afirma mesmo que muitos
trabalhadores buscaram empréstimos no banco para cercamento de áreas de cria “e no fim
num guentô, né, desfez, acabô”684. O caso mais corriqueiro, porém, foi a venda dos animais.
Luiz Vaqueiro resume bem as condições impostas pelo dia-a-dia aos que se ariscavam a
continuar possuindo rebanhos em áreas cercadas: “foi ficô sem pudê criar, foi acabano, foi
vendeno... ôtos [...] ficô com seu bichinho preso, [...] passano fome, era o jeito disfazer!685 A impossibilidade do uso costumeiro da terra em sua localidade de moradia impunha
ao vaqueiros uma constante peregrinação conduzindo os rebanhos em busca de pastagens.
Gilson afirma que “quando os tempo fôro apertano a gente cumeçô tirar para fora. Ai eu
fiquei trabalhano por fora. [...] De um lugar para ôto, [...] trabalhei no Brejão da Gruta,
trabalhei na Lagoa Grande”686. Afirma ainda que em 1981 levou o rebanho do seu patrão para
as margens do rio São Francisco, em uma localidade denominada Riacho do Ferreira, distante
cerca de 90 km da cidade de Jussara. Em 2001, retirou esse mesmo rebanho para a Fazenda
Pioneira, a cerca de 50km do ponto anterior. A análise mais detalhada da trajetória de um dos
entrevistados, exemplifica bem o ir e vir desses homens.
Em virtude do fim do campo em São Gabriel, Juarez, juntamente com seu irmão
Hermes, deslocou o gado da família para o povoado de Recife de Jussara em 1961, área que,
no período, ainda não estava integrada ao processo de horizontalização agrícola das terras. Os
animais ficaram aí sob a guarda de um dos seus conhecidos pelo sistema de sorte. O intenso
desmatamento não tardou a chegar ao povoado de Recife e em 1967, Juarez e seu irmão
682 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 683 Idem, 1º momento, 11 de out/2010. 684 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 685 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 686 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011.
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receberam o rebanho de volta sob a alegação da ausência de pastagens. Em parceria com seu
pai, Juarez resolveu cercar “uns pedaço de mato que tinha incostado” às terras da família para
por o “moizim de gado”, o qual necessitou ser reduzido de “cento e pôcas cabeça” para 30,
como forma de se adequar às condições financeiras e espaciais disponíveis no momento. Os
animais aí permaneceram por mais 9 anos sendo criados entre as pequenas áreas de campo e a
área cercada da família. Em 1976, como ele mesmo afirma, “a sêca pegô nós”, e junto com
outros companheiros, entre eles mais um dos entrevistados, Jairo, fizeram uma longa e
aventureira jornada em um fusca, com o intuito de descobrir, a partir da observação da direção
dos relâmpagos da noite anterior, “onde é que tá chuveno, pra nós levar o gado”.
Tendo saído da cidade de São Gabriel ainda de madrugada, os viajantes
encaminharam-se também para o Riacho do Ferreira, chegando aí no final da tarde. Um dos
chegantes questionou ao morador local: “Onde é que aquele relâmpo tá relampiano aqui?” e
ouviu em seguida a dura resposta: “Daqui a muitas légua!”. A viagem, contudo, não foi
frustrada e dias depois Juarez e seus companheiros deslocaram seus rebanhos para o Riacho
do Ferreira por ter ali boas pastagens e campo. Juarez permaneceu fazendo o trajeto entre São
Gabriel e o Riacho do Ferreira constantemente por mais 7 anos, só que, desta vez, a cavalo.
Em virtude da ocorrência de roubos, resolveu retornar o gado novamente para São Gabriel em
1983. O rebanho de 22 cabeças que encaminhara à beira do rio, tinha agora se reduzido a 15
animais. Quatro anos depois, esse mesmo rebanho realizaria outra viagem ao Riacho do
Ferreira, agora sob a guarda de Hermes, que para lá havia se deslocado a trabalho como
vaqueiro de um criador local. Em finais dos anos 1990, em decorrência do cercamento das
terras do Riacho, Juarez recebeu novamente o seu gado em São Gabriel. Conclui ele: “E aí tô
teimano até hoje nessa vida, agora quando... quando não achei mais pra onde tirar eu pago o
alugué, eu tiro pro Imbuzerão, ôtas vez tiro pro Cruel, pagano pasto! Compro... vez eu compro
o pasto ôta vez alugo, é, agora mesmo nós truxemo, eu mais esse irmão truxemo de lá do
Imbuzerão”687
O rápido intinerário da vida do entrevistado nos mostra o esforço de um homem em
manter sua opção de vida, apesar das adversidades. A cerca de 50 anos Juarez enfrenta as
consequências provindas do cercamento das terras e do fim do campo do Platô Norte
Diamantino e áreas circunvizinhas. As estratégias que o possibilitaram manter-se
687 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010; e 2º momento, 15 de out/2010.
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criador/vaqueiro, contudo, não impediram o processo de decomposição do patrimônio
familiar no decorrer dos anos. Juarez afirma que mantém o seu pequeno rebanho por uma
“teimosia”, em termos teóricos diríamos: uma resistência.
Como demonstrado no caso acima, o interesse em manter-se ligado às atividades com
o gado está na base motivadora desses deslocamentos. O próprio Hermes, que passou a residir
na Vila de Recife a partir de 1968, quando convidado a explicar os motivos da sua saída de
São Gabriel nos fala:
Sobre o interesse da luta de gado mermo! Trabalhar de vaqueiro e criar, porque lá (São Gabriel) é bom para lavoura, para se trabalhar com lavoura, mas foi indo e fechou que não deu mais para criar os animal solto e aqui dava. Tiramo o gado para aqui e eu mudei para aqui para lutar com o gado e criar uma criação, umas coisa, no interesse de criar, que tinha vasto né, para se criar.688
A fala de Hermes descortina mais do que uma mudança de ambiente de vida e
trabalho, em suas linhas podemos perceber a sua busca por uma dada forma de trabalho que
estava diretamente ligada a existência do campo, e alimentada por uma convicção de como
deve ser a atividade pecuária. Para esses trabalhadores, criar o gado queria dizer “criar à
solta”, segundo a prática costumeira. A constante migração tinha impactos sobre as dinâmicas
familiares dos vaqueiros, explica Roxinho Vaqueiro:
À vez era pôcos tempo, a família num ficava, mas, se fosse de ano a frente a família ia! Vamo dizer, esse povo mudava daqui pro Rio Verde, lá tinha capacidade de passar um ano e tanto, a família ia! Agora, se fosse só 6 mês ou 3 mês, ficava por aqui a família. De vez em quando você vinha cá ou ela (a esposa) ia lá visitar e pronto!689
Lugares mais distantes buscaram outros vaqueiros no afã de manterem-se ativos em
suas funções. Juarez, lembrando-se dos companheiros de trabalho afirma:
O primêro vaquêro de Minelvino chamava Arlindo, este, o campo foi acabano, antes do campo acabar ele intregô o gado e foi imbora, [...] e aí botô esse José, esse José, quando o campo acabô aqui o José tomém foi imbora. E tem foi muitos aqui que foram imbora! [...] teve muito vaquêro que foi imbora daqui do Gabriel porquê o campo acabô! Eles foi pr’essas terra onde tinha gado, aí pra Goiás, pra esse mundo aí, Minas! Foram imbora690.
O deslocamento para terras distantes tornava mais difícil a defesa de suas convicções
sobre a “forma adequada de ser vaqueiro”, uma vez que nesses lugares as formas de manejo
dos animais e as relações de trabalho possuíam dinâmicas diferentes. Diante do fim do campo 688 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 689 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 690 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010.
268
e da retirada do gado do seu patrão para áreas à margem do Platô Norte Diamantino em 1961,
Roxinho optou por ir para Minas Gerais e aí trabalhou em duas fazendas e retornando em
1963. Explica ele que nesse tempo “era infuluído (influenciado) a trabaiar com gado”. O
velho vaqueiro, vestido em seu inseparável jaleco e chapéu de couro na cabeça, contou em
uma tarde de domingo, o seu susto diante da forma de trabalho com o gado nas fazendas de
Minas.
O trabai danado, num perde 1 minuto! Trabaia demais rapaz! [...] É. Eu era gerente lá, (o dono da fazenda) disse: _“Ó Amado! Tem que fazer o cigarro, aqui ó! Lá, 30 pião, 10 minuto, vai quanto, né? Ó o tanto!” (o entrevistado se refere a possibilidade de cada peão parar o serviço por 10 minutos para fazer e fumar um cigarro) Tinha que fazer o cigarro e levar feito aqui ó: _“Num pode demorar lá... no máximo 1 minuto!” _ “Tá certo!” Digo: _“Ó, rapaz, faz o cigarro de vocês aqui, se não lá num fume não! Tem que fumar o cigarro e levar feito!” Era assim! [...] Pra num perder tempo! Lá num perde tempo não! Lá trabaia! Lá trabaia! [...]
Ocupando a função de coordenador do grupo de trabalhadores, Roxinho fora obrigado
a dar ordens, ordens essas que assustavam a ele próprio. A matemática temporal envolvendo
a feitura dos cigarros não possuía adeptos no campo do Sertão de Irecê e não poderia ser
menos assustadora para quem dormia à sombra das árvores em pleno trabalho, esperando o
vento bater para ouvir o som dos badalos dos chocalhos. Luiz, após trabalhar em várias
fazendas do Platô, foi para Goiás em 1990, e afirma: “eu só num tive um saláro alto lá, dento,
porquê eu num sabia a leitura, porque se eu subesse a leitura! Ave Maria! Eu tinha tomado de
conta de tudo!”691. A estadia em terras alheias cobrou tachas elevadas dos entrevistados. Se o
uso do tempo cronológico como parâmetro para o trabalho assustava Roxinho, Luiz sabia bem
que seus conhecimentos práticos, baseados na experiência cotidiana de vida adquirida no
Sertão de Irecê, sempre seriam subvalorizados em um ambiente letrado e formal, composto
por veterinários e fazendeiros.
Diante da impossibilidade de realização desses deslocamentos, os vaqueiros
recorreram a outras possibilidades de manutenção da função. Esclarece Hermes que muitos
vaqueiros “ficaro trabalhando mais o mesmo patrão, ele com o gado preso nas roça, nos circo,
que nós chamava era ‘circo’ e ele trabaiando ali dento com o gado também”.692. A chegada de
691 Entrevista do senhor do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 692 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.
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grandes fazendas cercadas no Platô Norte Diamantino e nas áreas próximas, representou por
um momento fonte de trabalho para os vaqueiros. Ainda Hermes explica que “quem era
vaquêro, era pôcos que tinha trabalho deles [...] o emprego era de vaquêro mesmo, já ia
trabalhar nas fazenda”693. Ele próprio afirma ter recebido convite para trabalhar em fazendas,
mas explica:
En: Fui, fui chamado. Não aceitei não. E: Por quê? En: Porque eu tinha minha condiçãozinha de trabalhar no meu, minha roça, e ôtra, que eu nunca gostei de trabalhar assim por mensalidade (salário), não é, que hoje o vaquêro de fazenda só ganha por mês, não é, aquela quantia, e no tempo do campo era solto, você ganhava o quarto do bizêrro694.
Novamente aqui presenciamos o conflito entre as noções de “criar”, “trabalhar” e “ser
vaqueiro” dos trabalhadores do Sertão de Irecê e as novas dinâmicas laborais impostas pelo
projeto de modernização rural. O entrevistado deixa claro em sua narrativa que não bastava
trabalhar com o gado, era preciso trabalhar nas condições por ele consideradas corretas. Outra
estratégia dos vaqueiros do Sertão de Irecê se manterem em suas funções foi a realização de
atividades rápidas de condução, manejo ou captura de animais para os fazendeiros e criadores
que conseguiram manter seus rebanhos presos, função geralmente conhecida como “vaqueiro
de ganho”. Essa possibilidade, todavia, incluiu os vaqueiros em um paradoxo: ao mesmo
tempo em que a “função de ganho” lhes garantia trabalho e até certo nível de valorização, o
encaminhamento dos rebanhos para áreas distantes do Platô, ou mesmo o trabalho dentro das
fazendas, anunciava o fim da trajetória como “vaqueiros de campo”.
Aí tem que tirar pra Vereda e na vereda tem muita rama né, tinha ispaço pro gado, a gente tirava pra lá, aí cumeçava aqui. Aí, cada vez complicano mais, botano mais roça e acabano o campo, até acabô![...] Muito dismatamento, foi, muito dismatamento! Até 60 ainda tinha um gadinho por lá (São Gabriel) [...]. É por que eu fiquei... você sabe que a pessoa que tem aquela arte sempre vai procurado! Nuns lugar tinha, me chamava pra ir: _“Vai buscar um gado pra mim ou vai levar né!” Aí eu fiquei nessa vida, nunca faltava pra mim né. Um ia tirar um gado pra um canto, me chamava aí eu ia, era assim, num faltava695.
Zizinho, que muito peregrinou com o rebanho do seu tio em busca de campo, também
compartilhou dessa forma de trabalho após a extinção do rebanho em 1983. Afirma que
existiu um “período de compra daqueles grande, comprano gado e pagano a gente pra tirar de
693 Idem, 2º momento, 14 de out/2010. 694 Idem, Ibidem, loc. cit. 695 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.
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um canto pra ôto, de ôto pra ôto, e ficô assim nessa vida, agente viveno daquilo, eu mesmo
tava de terça-fêra até domingo [...] É, depois foi ino, foi ino, até isso acabô, e pronto”696.
Quase todos os vaqueiros entrevistados realizaram essa atividade em algum momento. Luiz
Vaqueiro relembra que
trabaiava direto! Panhano gado de Jussara, panhava daqui (Irecê) pra Jussara, panhava daqui de Lapão, panhava daqui de, de Canal (atual João Dourado), panhava, panhava daqui, do povo daqui pra levar pras roça lá, panhava de lá pra trazê pra cá, desse povo todo[...] tudo era, só quem puxava era eu, todo mundo diz: _“Não, vai atrás de Luiz!” Era.697
A fala acima demonstra o ir e vir de rebanhos, conseqüência do sistema intensivo de
cria. Em áreas cercadas as pastagens se degastavam com maior rapidez, necessitando assim o
deslocamento dos animais para outras áreas. Nesse sentido, a fala de Luiz nos induz a ver um
falso “sucesso” do vaqueiro em tempos de mudanças acentuadas de suas relações de trabalho,
na medida em que sua mão-de-obra se tornava necessária à realização dessa condução. Nesse
contexto, a fama e o controle do saber se tornaram para os trabalhadores ferramentas
importantes de sobrevivência. É ainda Luiz que exemplifica. Em tempos recentes, relata o
vaqueiro, fora procurado por um fazendeiro conhecido que lhe solicitou a realização de
captura e transporte de um rebanho entre duas fazendas. Prossegue-se o diálogo:
[o fazendeiro]: “Ê rapaz! Eu vim aqui lhe buscar pra ajuntar um gado na Quixaba (fazenda pertencente ao município de São Gabriel), que os vaquêro lá disse que num vai... disse que num, num dá conta de ajuntar o gado!” [Luiz]: “Quantos gado é Seu ‘fulano’?” [o fazendeiro]: “É 320 gado! E eu só quero tirar o gado de lá todo junto, tirar pra Pioneira (fazenda no município de Jussara)” (...) [Luiz]: “Eu vô!”, eu digo: “É eu vô!” [o fazendeiro]: “Lá já tem animal!” [Luiz]: “Já?” [o fazendeiro]: “Já! A cuma é que você vai o dia?” [Luiz]: “Eu só vô a 10 conto!” (...) [o fazendeiro]: “Só vai a 10 conto?” [Luiz]: “Só!” [o fazendeiro]: “Ê moço! Vaquêro caro, Ave Maria! É dinhêro de pagar 3 vaquêro moço!” [Luiz]:“É, então, então tá bom!”
Não tendo aceitado a proposta do vaqueiro a princípio, retorna o fazendeiro horas depois:
[o fazendeiro]: “Êi moço! Se ajeite que amanhã 6 hora eu tô aqui pra lhe panhá!” [Luiz]: “Pode vim 4! Qu’eu tô pronto!”
696 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Seu Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 697 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.
271
Após a realização do serviço reconhece o fazendeiro:
[o fazendeiro]: “Êi moço! É por isso que o home é caro! Que o home sabe trabaiar e o home é vaquêro! (...) Você trabaiô 2 dia rapaz! Agora foi 2 dia bom! Eu vô lhe pagar 3! Vô lhe pagá 3 dia, que eu fiquei sastifeito demais!” [Luiz]: “É por isso que o sinhô diz que eu sô caro.” [o fazendeiro]: “Por que sabe fazer o sirviço! Sabe trabaiá”.
Ser conhecido e respeitado nos tempos em que a modernização rural do Sertão de
Irecê impunha suas conseqüências, garantia condições de continuidade da atividade laboral e
poder de barganha aos vaqueiros. É importante observarmos como o vaqueiro usa o seu saber
como ferramenta de negociação, do outro lado, o fazendeiro, na condição de cliente, termina
por se sujeitar ao acordo uma vez que só Luiz era capaz de resolver seu problema. Sem
dúvida o elogio final valeu a Luiz muito mais do que o dinheiro recebido, foi o símbolo de
que se mantinha na ativa e de que sua fama e habilidade continuavam prestigiadas.
Os vaqueiros tinham consciência das mudanças que o avanço do capital impunha à
seus modos de vida e buscavam usar as ferramentas disponíveis como forma de ressitência.
Roxinho relembra de suas conversas com companheiros de campo:
Eles falava, diz: _“É mano véi! Nós vamo ispindurá as pernêra, porque o campo vai acabar, num tem pra onde né, pra ir pra Minas nós num pode com tanto filho né e aqui, quem tem um circo vai criar seu gado preso, quarquer um pode carregar o gado dele! Campo pra nós acabô, num tem mais campo! Nós vamo viver quando achar um pra pegar um boi de um fora e carregar, pra nós pegar mais por aqui nos campo num tem mais, já acabô! Acabô os campo, né!” Sentiu foi isso, cunversava isso, sentava tudo, cunversava: _“É moço! Acabô! Tristeza né moço?! Fazer o quê né!”.698
A narrativa desenha um sentimento de tristeza que nos remete às certezas pessoais de
que “vive-se momentos de fim”. Imaginamos esses homens em sua conversa ao fim do
trabalho, em meio à qual alguns “batem o pó” de seus “ternos de couro” como se pela última
vez. A fala de Roxinho demonstra uma tensão entre o grupo de trabalhadores ao perceberem a
vulgarização de sua função. Estando o gado do fazendeiro preso, afirmam, “quarquer um pode
carregar o gado dele!”. O maior dos valores laborais dos vaqueiros, a sua “especialidade” no
trato com o gado, passava a ser questionado e desmoronava-se no ritmo da queda das árvores,
do arrastão das correntes, da expansão das lavouras e do esticar dos arames.
Um dos relatórios analisados afirma categoricamente que
698 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.
272
Tabela 15: Rebanho bovino total (1964/1981), referente aos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí
a pecuária, enquanto atividade capaz de contribuir na forma da criação de renda para a região, vem desde os anos 50 perdendo posição para a agricultura que, cada vez mais, ocupa espaço na economia regional. A pecuária vai, aos poucos, sendo empurrada, tornando-se mais localizada (fazendas?) na medida em que aqueles terrenos favoráveis ao plantio vão sendo ocupados, ampliando, portanto, a área agrícola. Entre 1950 e 1960, por exemplo, a área destinada à lavoura no município de Irecê apresentou um incremento de mais de 300%, o que constitui um indicador de que a agricultura vem ocupando terras antes destinadas ao pastoreio699.
As narrativas expostas e a análise dos documentos oficiais nos induzem a pensar em
um processo de esvaziamento dos rebanhos bovinos do Platô Norte Diamantino e das áreas
próximas, uma vez que o avanço dos cercamentos, o desmatamento e a ênfase agrícola que
norteou o projeto de modernização rural do Sertão de Irecê, dificultava a prática da criação de
animais por parte das populações empobrecidas exigindo-lhes a eliminação ou o
deslocamento dos animais para áreas distantes. Busquemos, pois, analisar essa hipótese a
partir dos dados quantitativos oficiais.
699 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL. Diagnóstico parâmetro para avaliação do PDRI Irecê: 1ª etapa. Salvador: CAR, 1984. Vol. 2: O Sertão da Bahia: (Aproximações para análise de sua formação histórica), p. 152 (grifo nosso).
Ano Número total de
cabeças 1964 123.000 1965 221.000 1966 177.000 1967 187.000 1968 209.513 1969 222.083 1970 238.070 1973 162.880 1974 169.281 1975 144.159 1977 144.363 1978 156.045 1979 165.965 1980 169.713 1981 174.032
273
Gráfico 5: Rebanho bovino total (1964/1981) dos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí.
Fontes: FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê. Salvador: [s.n.], p. 2-32 [de 1969 a 1972], tabela 3.1.3.3-I (dados de 1964 à 1967); Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1972; Idem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem. 78/79 e Idem, Ibidem, 1983, (dados de 1968 à 1981).700
Os dados acima demonstram que o período entre 1970 e 1975, interrompeu o
crescimento do tamanho dos rebanhos, acumulando perdas de 75.190 animais (31,5%).
Analisemos de forma específica as variações apresentadas por cada município nesse período
quanto ao número de bovinos em seus territórios.
700 Em virtude da impossibilidade do acesso às informações em um único documento, optamos pelo uso das fontes que apresentavam menor diferença numérica entre os dados.
274
Tabela 16: Número de bovinos por município (1968/1981), referente a B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e
Uibaí.
Gráfico 6: Número total de bovinos por município (1968/1975), referente a B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí.
Fonte: BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1972; Idem, Ibidem, 1973; Idem, Ibidem, 1975; Ibidem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem, 78/79; Idem, Ibidem, 1980 e Idem, Ibidem, 1983.
Embora não possamos buscar exatidão das quantificações oficiais, o gráfico acima
aponta para a existência de particularidades internas ao território de cada município quanto a
presença dos animais bovinos. São aí apresentadas 3 realidades diferentes; 1) o conjunto
1968 1969
1970 1973 1974 1975 1977 1978 1979 1980
1981 B. do Mendes 7.720 7.447
7.241 12.530 13.211 7.238 6.631 7.700 8.085 8.522
8.765
Cafarnaum 13.120 14.707 16.090 6.265 6.205 5.156 5.011 4.746 4.983 6.392 6.645
Canarana 12.720 14.512 15.631 11.903 12.311 8.417 8.060 9.828 10.319 11.000 10.850
Central 17.844 19.471 22.181 5.638 5.966 4.830 4.784 5.200 6.516 3.749 3.719
G. do Ouro 18.370 20.808 22.723 8.771 8.967 8.539 8.638 9.194 9.654 11.119 12.230
Ibipeba 6.932 6.710 8.904 10.024 10.224 11.776 11.330 11.896 12.490 12.850 13.240
Ibititá 10.900 11.849 12.324 10.640 10.870 7.536 7.237 7.644 8.026 6.554 6.880
Irecê 46.376 43.800 48.431 51.374 53.022 39.559 38.549 42.000 43.260 39.971 43.968
Jussara 13.942 16.680 18.219 1.253 1.196 2.688 3.455 3.617 3.798 1.637 1.800 M. do Chapéu 18.280 17.833
14.807 33.832 36.280 38.024 39.980 42.000 46.000 55.320
52.703
P. Dutra 19.759 22.266 24.236 3.132 3.197 2.467 2.420 3.151 3.308 2.140 2.252 Souto Soares 5.615 6.296
5.818 2.506 2.892 3.726 4.042 4.244 4.460 5.239
5.500
Uibaí 17.935 19.704 21.465 5.012 4.940 4.203 4.226 4.825 5.066 5.220 5.480
Total 209.513 222.083 238.070 162.880 169.281 144.159 144.363 156.045 165.965 169.713 174.032
275
formado pelos municípios de Cafarnaum, Central, Gentio do Ouro, Jussara, Uibaí, Presidente
Dutra, Canarana, Ibititá, Souto Soares e Irecê. Estes sofreram redução de seus rebanhos,
alguns drasticamente, após 1975; 2) os municípios de Barra do Mendes e Ibipeba, que
apresentaram pequenas oscilações em seus rebanhos no período analisado, não se
apresentando como fator relevante para vias de entendimento da dinâmica interna de
circulação dos rebanhos na área estudada. É importante notarmos sobre esses dois grupos que,
a partir de 1975, com exceção do município de Irecê, que apresenta uma elevação mais
significativa do número de animais bovinos em seu território, os demais municípios
mantiveram pequenas variações em seus rebanhos até 1981, ora crescendo, ora diminuindo.
O fator de destaque nos dados apresentados fica por conta do município de Morro do
Chapéu, a 3ª das realidades apontadas. Situado quase que totalmente fora do Platô, esse
município, a partir dos anos 1970, passou a apresentar um exponencial crescimento dos seus
rebanhos bovinos que se estendeu até 1980. O acompanhamento comparativo mais detido de
suas particularidades nos ajuda a entender o fato.
Gráfico 7: Número de bovinos por município (1968/1980), referente a Irecê e Morro do Chapéu.
Fonte: BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1972; Idem, Ibidem, 1973; Idem, Ibidem, 1975; Ibidem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem, 78/79; Idem, Ibidem, 1980 e Idem, Ibidem, 1983.
O gráfico acima contrapõe as variações do rebanho bovino nos municípios de Irecê e
Morro do Chapéu entre os anos de 1968 e 1980. Nota-se de antemão o rápido crescimento dos
rebanhos nesse segundo município entre os anos de 1970 e 1973, período marcado por
276
grandes perdas numéricas na maior parte dos demais municípios apresentados, e sua constante
dilatação até 1980. Os dados catalogados demonstram que entre os anos de 1973 e 1974 os
municípios de Irecê e Morro do Chapéu absorveram grande parte dos rebanhos dos demais
municípios. O triênio seguinte (1975/1977), marcado pela estiagem e pela chegada dos
grandes projetos de modernização agrária no Platô, obrigou o deslocamento dos rebanhos para
áreas como Morro do Chapéu, elevando assim o número de animais nesse território. Outra
área de possível escoamento dos rebanhos doertão de Irecê foram às áreas próximas a beira do
rio São Francisco. O Riacho do Ferreira, defluente desse grande rio, por exemplo, é uma área
citada e reconhecida pela maioria dos trabalhadores entrevistados.
Esses dados se assemelham às informações das entrevistas colhidas, na medida em que
os vaqueiros fazem referência à década de 1970 como o momento em que se tornararam mais
intensas as peregrinações como os rebanhos em busca de áreas de campo. Muitos vaqueiros e
criadores, no entanto, buscaram se antecipar ao projeto de modernização rural e a
horizontalização agrícola das terras, buscando áreas distantes assim que perceberam os
primeiros sinais de finalização do campo em seus locais de vivência. É nesse sentido que
devemos entender a preocupação aparentemente “precoce” de Juarez e Hermes em
encaminhar, ainda em 1961, os rebanhos da família para a Vila de Recife, no município de
Jussara, ou mesmo a migração de Roxinho para as fazendas mineiras.
Além das idas e vindas, o erguimento da Região de Irecê sobre o Sertão de Irecê,
impôs outra dificuldade ao exercício dos vaqueiros: as mudanças operadas nas relações de
trabalho. Juarez explica pormenorizadamente as condições atuais do trabalho dos vaqueiros
nas fazendas.
E o vaquêro hoje trabaia mais do que aquele daquele tempo! Porque fica com o gado preso, porque aquele tempo o gado criava no campo, o vaquêro num dava cumida a gado! [...] e hoje o vaquêro que trabaia em fazenda vai cortar palma, dar ração a gado toda tarde. O vaquêro num trabaia em campo, é dento da propriedade, mas, é mais pesado de que o vaquêro... que era de primêro, porque o vaquêro de primêro soltava o gado no campo, num tinha negóço de desleitar gado pra vender leite! Naquele tempo tirava leite, fazia era quejo, requejão... essas coisa, num era... agora hoje é pra vender leite. O vaquêro sofre muito701.
O narrador descreve o processo de sobreposição de funções e obrigações que foram
atribuídas aos vaqueiros no decorrer do processo de modernização rural do Platô. Se no
campo bastava a eles serem responsáveis pela manutenção da saúde e segurança dos animais,
701 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010.
277
nas fazendas cercadas, os vaqueiros foram obrigados a realizar a ordenha, cumprir prazos para
entrega do leite aos revendedores na cidade e a alimentar o gado diariamente. “Presos” na
fazenda, os trabalhadores passaram a estar acessíveis aos olhos dos criadores e expostos à
fiscalização e cobranças. Destaca ainda o entrevistado:
o vaquêro hoje trabaia sozinho dento da propriedade, é difici até o colega ir lá fazer uma visita! É tudo diferente hoje. Aquele tempo era uma coisa boa, aqui ajuntava seu grupozinho de 8, 10 vaquêro e ia pegar boi brabo no mato, e hoje não! Hoje o vaquêro trabaia lá sozinho, na propriedade do patrão. Nem visita o ôto vaquêro num faz, que à vez o patrão... ele num tem tempo de receber o colega702.
A narrativa demonstra como o trabalho nas fazendas controlou até mesmo as
sociabilidades dos vaqueiros, rompendo a prática da atividade coletiva que era marca do
trabalho no campo. Outra dimensão das relações de trabalho drasticamente alterada foi a
forma de pagamento pelos serviços prestados, devido a difusão das relações assalariadas.
Como vimos, o uso do assalariamento não era estranho às dimensões laborais do Sertão de
Irecê, embora não fosse predominante.
No caso dos vaqueiros, o uso do dinheiro dava-se geralmente como forma de
pagamento pela execução de tarefas rápidas como captura ou condução de animais,
poderíamos dizer: em sistema de empreita. Corriqueiramente, o sistema de sorte regia
relações de trabalho mais duradouras. A modernização rural, contudo, inverteu esse quadro ao
impor a adoção do assalariamento como critério de seleção dos grupos alvo das iniciativas
modernizadoras e difundir o dinheiro como mecanismo mediador das relações de trabalho e
de troca.
A chegada do assalariamento impôs a extinção do antigo sistema de sorte, o que
dificultou o acesso aos pequenos rebanhos por parte dos vaqueiros, precarizou as condições
de vida e trabalho e até o seu sistema de produção de representações sociais. Juarez explica:
todo mês você recebe aquele ordenado quando você for pagar seus débito você volta pra casa puro, aí já vai trabaiá deveno. E você trabaiano [...] pra tirar bizêrro, quando você fazer a ferra mais o patrão você [...] tira sua parte de bizêrro. Você faz pagamento o patrão e sobra, toda vida sobrô. Todos vaquêro que trabaiava assim nenhum saiu sem nada! Eu sempre reparava os vaquêro que trabaiava assim. E o que trabaiava ganhano dinhêro só sai limpo! Sem nada!703
Jairo afirma que “você trabalhano por mês, no dia que você sair o dinhêro que você
tinha era aquele que você recebeu, cabô! Você ali só leva a mulher e os filho, mais nada!
702 Idem, Ibidem, loc. cit. 703 Idem, 1º momento, 09 de out/2010.
278
Talvez nem o cavalo da fazenda num leva!704. Segundo Gilson, “hoje ninguém quer dar mais
na sorte não, porque pegaro uma sabedoria que não quer que o vaquêro vá para frente só quer
ganhar... pagar aquele total”705. Essa situação se agravou ainda mais diante do controle da
terra e da diminuição dos rebanhos.
Mesmo recebido com ressalvas entre os vaqueiros, o assalariamento se consolidou
como realidade dominante das relações de trabalho e tornou-se fator decisivo entre continuar
ou não continuar na “profissão de gado”. Ainda Gilson explica que, tendo trabalhado por
cerca de 40 anos pelo sistema de sorte, “aderiu” ao pagamento por mês em 2001, quando
deslocou o rebanho que se encontrava na beira do rio São Francisco, novamente para as
proximidades do Platô:
depois que eu vim para a Pioneira (fazenda) que eu ganho de porcentagem, aí eu olho a dois reais por cabeça. [...] eu mesmo quis, os ôtos todos (vaqueiros) era assim, então eu disse a ele (patrão): _“Moço aqui é pagano aluguel, você vai pagar do mesmo jeito dos ôtos se não aí lhe aperta mais”. Aí nós ficamo lutano, e tô lutano706.
O texto acima não relata um mero acordo entre amigos. Gilson, vaqueiro experiente,
sabia que, caso não aceitasse a forma assalariada de pagamento não teria muitas chances de
continuar na função, obrigou-se, pois, a abrir mão de uma de suas principais fontes de renda a
décadas como forma de manter-se no trato com o gado, rebaixando assim suas condições de
sobrevivência. Luiz problematiza bem a situação apresentada quando questiona: “quem vai
vivê pr’um saláro, trabaiano pr’us ôto, com a família grande....?”707 A chegada de grandes fazendas, ao mesmo tempo em que representava o controle da
terra e o fim do campo, tornou-se também fonte de emprego para muitos vaqueiros como nos
explica Almir:
de qualquer manêra, se botar o gado na fazenda tem que ir o vaquêro sempre, num tem jeito! É a mesma coisa! Tem que botar o vaquêro junto. Se é obrigado a tar com o gado lá onde ele... o gado pode ter um xxx ali, lá tem o vaquêro, se botô lá em Alemão (referência a uma fazenda localizada nas bordas do platô, distante cerca de 55 km da sede do município de Jussara), tem o vaquêro! Todo canto tem, os vaquêro tá aí.708
704 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 705 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 706 Idem, Ibidem, loc. cit. 707 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 708 Entrevista do senhor (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010.
279
A presença dos rebanhos exigia a presença do vaqueiro. Seu exercício profissional,
todavia, agora se dava sob outras relações de trabalho como o assalariamento e o sistema
intensivo de cria. Nesse sentido conclui o entrevistado: “Num tem aquele trabalho que’nem
tinha de primêro, pra ir pegar o boi no mato, que’nem era né, mas tem os vaquêro”709.
A permanência no Platô nem sempre foi acompanhada de possibilidades de trabalho
com o gado, o que obrigou os vaqueiros a buscarem diversas outras formas de produção de
renda, a principal delas foi o trabalho nas roças. Jairo conta que quando não havia mais
trabalho com o gado “ia quetano! Ia caçar um taquim de roça também pra plantar!”710.
Hermes afirma que a partir de 1980
ninguém pode criar mais solto [...] ai fui trabalhar de açôguêro de porco, matar porco (risos). Matei porco um bocado de ano, trabalhando na fêra [...] Então eu gostava muito de lutar com o gado, foi quando o finado Miguel me chamô ôtra vez para eu ir trabalhar com um gado lá no Riacho do Ferreira, para tirar sorte ôtra vez com o gado, que lá tinha campo solto ôtra vez pra criar solto e ai eu deixei a fêra e fui [...] lá passei 10 anos, lá no Riacho do Ferreira711.
Permanecendo por 8 anos como açougueiro e lavrador, Hermes sentiu-se tentado a
voltar ao mundo da “vaquerama”, uma vez que a proposta que lhe fora feita envolvia o
trabalho no campo e o sistema de sorte, da forma como mais gostava. Diante da ausência de
áreas de campo, Reinaldo de Lôro encontrou na aquisição consorciada de um trator em 1977,
uma fonte segura de sobrevivência. Embora tenha entregado o gado do seu sogro, pelo qual
era responsável, nunca deixou de criar os seus animais.
A estratégia de Reinaldo de Lôro em manter-se criador, mesmo de pequenos rebanhos
ou de apenas algumas unidades, foi uma forma de conservação patrimonial e identitária
generalizada entre os vaqueiros entrevistados. Alguns vaqueiros ainda permanecem criando
seus animais até hoje. Zé dos Morrinhos explica: “hoje tô com 66 ano assim mesmo na luta do
campo, eu pego uma vaca no campo, bota numa roça, vaca pari e ingancha um bizêrro, a
gente vai tirar, qu’é o que vaquêro véi sabe fazer.”712. Ainda são criadores como Zé dos
Morrinhos e Reinaldo de Lôro: Juarez, Jairo, Hermes, Licuri, Luiz Vaqueiro, Zizinho,
Reinaldo de Zé Pedro e Roxinho Vaqueiro. Almir vendeu o gado recentemente, mas ainda
realiza trabalhos de condução e captura. Sinobilino, Samuel e Guilhermino afirmam também
ter vendido seus animais, justificando falta de condições físicas para realização das tarefas de
709 Idem, Ibidem, loc. cit. 710 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 711 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 712 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012.
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cuidado com gado. Viana continua criando ovelhas. Gilson não possui gado, mas permanece
trabalhando em uma fazenda.
Esse levantamento demonstra que os vaqueiros buscaram cuidar dos seus pequenos
rebanhos, mantendo-os da maneira possível, ou permanecendo no cuidado de rebanhos de
terceiros, como forma de se manterem ativos em suas funções, ainda que de forma mais
simbólica do que prática. A proximidade com o gado permitiu a esses trabalhadores a
atualização constante de suas memórias e de seus saberes, fator essencial no seu exercício de
afirmação laboral-identitária. Analisemos de forma mais específica alguns dos casos, na
tentativa de melhor exemplificar o debate acima: Foto 8: Luiz Vaqueiro ordenha diariamente suas vacas
É só mais um dia de trabalho e logo cedo Luiz já está presente no curral (200m²) ao
lado da sua residência, realizando a ordenha de suas poucas vacas. Cada uma tem seu próprio
nome: Laranjinha, Craúna, Fortaleza, Princesa, Preguiça, Estrelinha, Cardeal.... De algumas
delas o velho vaqueiro chega a discorrer uma “biografia”: de onde vieram, quantos bezerros já
pariu, por onde andou. Esse curral, segundo Luiz, já comportou 60 animais, atualmente
existem apenas 20, que são diariamente deslocados para as roças próximas, retornando no fim
da tarde. Nada de diferente há nesse caso, a não ser o fato de que o curral de Luiz está situado
dentro do perímetro urbano da cidade de Irecê. O entrevistao afirma ter adquirido o terreno no
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Foto 9: Zizinho alimenta seus animais diariamenete no quintal da sua casa.
início em 1992, na época, pouco habitado. Com a expansão da cidade o vaqueiro passou a
sofrer pressões dos órgãos públicos de vigilância sanitária e de parte da população local,
contudo, mantém-se aí ainda hoje.
Zizinho também possui um pequeno curral nos fundos da sua residência, no povoado
de Tanquinho de Lapão. Pôr alimento, ordenhar os animais, retira-los para as roças próximas,
são tarefas diárias que até hoje regulam as formas temporais próprias do entrevistado viver o
seu cotidiano.
Os casos analisados descortinam novas estratégias de vida, formas possíveis pelas
quais esses homens tentaram e têm tentado defender o seu direito de viver sua ruralidade,
construir seus micro-territórios e reproduzir os referenciais simbólicos, materiais e identitários
do seu mundo. Vista pelos órgãos públicos como uma anomalia ou um “costume”
incompatível como o modo de vida urbano, essas estratégias existem em arenas de conflitos,
são combatidas, reprimidas, porém, presentes e possuidoras de grande capacidade de
adaptação.
Márcia de Melo Martins Kuyumjian demonstra em seu artigo intitulado O
espaço/mundo do Sertão Moderno, como o processo de urbanização da parte central do País
que culminou na construção racionalizada de Brasília, foi incapaz de eliminar formas
ruralizadas de viver. Segundo a autora, o sertão continua a emergir e circular entre os
monumentos da capital planejada a partir do linguajar, das práticas de trabalho, dos hábitos,
282
da aparência, dos improvisos dos migrantes de todas as partes que a ela chegam. A
modernidade, destaca ainda Kuyumjian, terminou por produzir um “sertão moderno”713.
Refletindo nesse sentido, entendemos que as mudanças urbanas e agrárias implantadas
sobre o Sertão de Irecê, ao almejarem o fim do modo costumeiro de vida do Sertão de Irecê,
induziram esse a adquirir formas adaptadas de sobrevivência, presentes na oralidade, na lida
constante dos vaqueiros por manterem seus pequenos rebanhos, na pequena policultura, nos
povoados, nas ferramentas de trabalho, nos pequenos currais. O uso dos quintais, como nos
casos de Luiz e Zizinho, é representativo para compreendermos o poder de adaptação desse
modo de vida e a defesa dos sentidos por ele gestados.
Como vimos, os vaqueiros tem usado as áreas de quintais em espaços urbanos ou
urbanizados como espaços de criação de seus pequenos rebanhos, “lugar de defesa” de sua
prática. Essa atitude expõe o poder público a uma contradição, na medida em que este busca
disciplinar a forma de uso de uma área considerada por ele mesmo como “residencial”,
portanto, privada, de uso exclusivo e livre, inviolável pelas normas jurídicas. Claro está que
os vaqueiros tem reconstruído seus pequenos “Sertões de Irecê” nas brechas contraditórias do
próprio aparato legal que lhes reprime.
Outros exemplos que ilustram a convivência de modos ruralizados de vida nos espaços
racionalizados da área em estudo, emergem de uma rápida observação sobre a dinâmica de
vida recente da cidade de Irecê. A polêmica feira-livre de Irecê, por exemplo, criticada desde
a década de 1970, só foi retirada do centro da cidade em 1999714. Em diversos locais da
cidade podemos encontrar os tradicionais carroceiros, que trabalham carregando produtos e
materiais em troca de pequenos pagamentos, fazendo de espaços “totalmente urbanos”, como
as praças, seus locais de trabalho. Por ocasião das pesquisas nos arquivos da Câmara
Municipal de Irecê, no primeiro semestre de 2011, presenciamos uma sessão legislativa em 713 KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins. O espaço/mundo do sertão moderno. In: KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (Org.). Semeando cidades e sertões: Brasília e o Centro-Oeste. Goiânia (GO): Ed. da PUC, 2010, passim. 714 Sobre os conflitos entre a reorganização urbana e as experiências de trabalhadores feirantes ver PACHECO, Larissa Penelu B. Trabalho e costume de feirantes de alimentos: pequenos comerciantes e regulamentações do mercado em Feira de Santana (1960/1990). Feira de Santana: UEFS, 2009 [Dissertação de Mestrado]. Citamos aqui apenas algumas referências cujo recorte temporal mais se aproxima do nosso, é importante, porém, destacar que o processo de urbanização capitalista, expansão dos ideais “civilizatórios” e seus conflitos com as práticas populares de vida já foi tema de diversos estudos que abordaram tanto o contexto imperial quanto as primeiras décadas do regime republicano no Brasil, a exemplo de CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. Para o contexto baiano ver: OLIVEIRA, C. F. R. M. De Empório à princesa do Sertão..., e LEITE. Rinaldo César Nascimento. E a Bahia civiliza-se... ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização urbana. Salvador 1912/1916. Salvador: UFBA. [Dissertação de Mestrado em História], 1996.
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que se debateu o incômodo hábito de soltar animais nas áreas baldias e nas ruas da cidade o
que, segundo alguns vereadores, correspondia a uma situação incompatível com o nível de
urbanização de Irecê.
A resistência dos trabalhadores vaqueiros às imposições da modernização rural do
Sertão de Irecê pode ainda ser encontrada nas artes. Embora não se defina mais como criador,
Almir, além realizar serviços de empreita, desenvolveu outras práticas que o garante
permanecer e continuar compartilhando do mundo da vaquerama: o artesanato em couro.
Fotos 10-11: Instrumentos de couro produzidos por Almir Vaqueiro
Para além das artes, a casa de Almir é um ponto de encontro semanal para seus
sobrinhos e amigos, os quais se reunem para ouvir vaquejadas e contar histórias de bois,
sempre irrigadas com alguma cachaça. Os modos pelos quais os vaqueiros buscaram, e
buscam, se manter próximos às atividades do trato com o gado são, pois, os mais diversos.
O traço comum que une essas formas de resistência é a instabilidade. Diante do
avanço das relações capitalistas sobre o Sertão de Irecê, os vaqueiros foram obrigados a fazer
escolhas: permanecer ou sair do Platô, ir para longe ou para perto, aceitar o trabalho nas
fazendas, abrir mão do sistema de sorte, abandonar a função para dedicar-se à agricultura,
adaptar seus quintais como lugares de criação, obter empréstimos para cercamento de áreas,
deslocar seus rebanhos constantemente. Cada uma dessas opções tinha suas consequências e
estas foram vividas de forma intensa cotidianamente como disputas pelas condições de vida e
por formas de trabalho consideradas coerentes por eles, pela manutenção de suas identidades
284
laborais e representações sociais, pelo direito ao seu saber e seu tempo, em um palco agrário
de ressonância urbana em franca mudança.
Segundo Agnes Heller, a vida cotidiana é a dimensão a partir da qual os homens
experimentam o mundo. É nela que, convivendo com seu grupo, os sujeitos produzem
concepções de normalidade da produção, reprodução e intercâmbio social que lhes garante a
participação no compartilhamento de normas, na assimilação das relações sociais e a
consciência do “eu” e do “nós” de forma socialmente referendada. Enquanto dimensão maior
da existência, a vida cotidiana se produz a partir da unidade imediata do pensamento e da ação
e nela os indivíduos produzem suas vivências como sujeitos “inteiros”, compostos por todos
os aspectos de sua individualidade e personalidade, seus sentidos e capacidades, seus
sentimentos, paixões, ideias e ideologias.
A vida cotidiana, ainda segundo Heller, está diretamente relacionada à vivência
pragmática dos homens, a escolha de ideias concretas, a construção de finalidades, a
necessidade de resolução dos problemas concretos, ao cumprimento do papel social, ao uso de
alternativas concretas determinadas pelas condições previamente dadas, pela tendência
espontânea (voltada para o mundo prático, medida pela fé e a confiança) e pelo pensamento
ultrageneralizador (juízos de natureza pragmática). Enquanto categoria da sobrevivência a
vida cotidiana é heterogênea - composta pelas dimensões da organização do trabalho, da vida
privada, das sociabilidades, das atividades sistemáticas e do intercâmbio - e hierárquica, na
medida em que organiza essas dimensões pelo critério da importância.
Enquanto categoria da existência, a vida cotidiana é composta ao mesmo tempo pela
individualidade produzida, pelas possibilidades de liberdade disponíveis aos sujeitos e pela
dimensão “humano-genérica” inerente a todos os humanos (acessível pela realização dos
valores do trabalho – objetivação – a socialidade, a universalidade, a consciência e a
liberdade). Nesse sentido, dialeticamente, toda ação do homem deve ser entendida como ação
individual e manifestação axiológica do ser humano. No meio cotidiano, porém, essa
dimensão humano-genérica se manifesta apenas como tendência, sua realização universal só é
possível, diz Heller, mediante a superação da alienação715.
Embora concordemos com as noções de “vida cotidiana” e “cotidianidade” produzidas
por essa autora, evitamos nos apropriar de suas reflexões no tocante às possíveis formas de
715 Sobre as idéias de Agnes Heller aqui expostas ver: HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. 4ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 2-45.
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elevação da cotidianidade, ou seja, dos meios pelos quais os indivíduos tem acesso aos
valores humano-genéricos. Parece-nos aqui que Heller atribui papel excessivo à ciência, à
teoria e, subliminarmente, ao “letramento” (o contato com o mundo via formas escritas e
códigos comunicativos modernos, compartilhados pelos indivíduos em espaços formais e
informais ainda que involuntariamente) como meio de acesso ao conhecimento sistemático
das essências humanas apontadas por Marx e a intensificação consciente de suas tendências
de realização, em suma, o acesso a práxis. Heller afirma que a maior parte da humanidade
permanece como “muda unidade vital de particularidade e genericidade”, uma vez que a vida
cotidiana é a esfera que “mais se presta à alienação”, o que não quer dizer que seja
necessariamente alienada. Nesse sentido, continua a autora, a possibilidade de elevação da
cotidianidade senta-se sobre “personalidades representativas”716.
No nosso entendimento, a luta dos vaqueiros pela manutenção da sua função, pelo uso
coletivo da terra e por condições de trabalho menos alienadas, não pode ser entendida senão
como uma luta clara, consciente e até duradoura pelos valores “genérico-humanos”, portanto,
uma práxis, sem que, para tanto, necessitem esses indivíduos de conhecimentos letrados sobre
“consciência”, “valor”, “particularidade-genericidade”, “alienação”, “teoria”, “ciência”.
Thompson já demonstrou, a partir do conceito de experiência humana, como o
comportamento dos homens comuns está diretamente ligado à consciência sobre as condições
de exploração em que vivem. Para o autor, em meio às circunstâncias diárias de vida, os
sujeitos experimentam suas situações e relações produtivas como necessidades e interesses e
como antagonismos, a partir de suas referências e padrões culturais, voltando a agir sobre as
realidades vividas717. O sujeito thompisiano vivencia a experiência humana quando, diante da
faina rotineira de provimento da sobrevivência, vivencia condições conflituosas concretas que
o permite reconhecer a sua posição nas relações de produção estabelecidas, os mecanismos de
exploração que lhes atinge, suas formas e possibilidades de ação e defesa de seus interesses
diante de outros grupos em um dado tempo e espaço. A experiência é assim o exercício da
práxis, dentro da dimensão pragmática do cotidiano, acessível a todos os homens. Dessa
perspectiva, emergem sujeitos da história, pensantes e ativos, que arquitetam suas vidas na
relação com os projetos hegemônicos e não sob eles.
716 Idem, Ibidem, p. 22-39. 717 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria..., p. 182.
286
Foi, pois, a partir do trabalho diário no campo, da leitura das mudanças impostas às
suas relações de trabalho, do entendimento do seu lugar nas relações de produção, de suas
concepções de mundo, do sentir os mecanismos de exploração que se instalavam e das suas
condições e possibilidades concretas de atuação que agiram os vaqueiros na busca pela
manutenção de suas condições materiais e identitárias de sobrevivência. Se o cotidiano é a
dimensão a partir da qual o homem experimenta o mundo, são os desafios nele existentes que
compõem “o real”.
Lembra James Scott que a “dureza do cotidiano” – a dependência do trabalho como
forma de sobrevivência – obriga uma adaptação pragmática dos trabalhadores à realidade
vivida. Para o autor, compreender esse pressuposto requer dois posicionamentos: 1) a certeza
de que essa “adaptação”, embora imponha limites à atuação dos trabalhadores diante de
condições de exploração, não excluem formas de resistência; 2) que o seu compartilhamento
não significa um consentimento normativo das realidades impostas, uma vez que a adaptação
tem em si um caráter pragmático718.
Imaginar a passividade dos vaqueiros diante do avanço de um projeto de
modernização excludente, que lhes tirava práticas, sentidos, formas de vida e recursos
materiais de sobrevivência é um pensamento superficial. Os estudos de Thompson sobre os
camponeses ingleses do século XVIII, já demonstrou que é equivocado acharmos que os
pobres sempre perderam suas disputas719. Por outro lado, esperar grandes revoltas e
composição de formas institucionais de luta por parte dos trabalhadores em destaque é
deslocá-los de suas condições e possibilidades reais de vivência. Como pontua James Scott, as
ações políticas formais devem ser pensadas como padrões de conduta das elites, dos
intelectuais e da classe média. Negar, porém, a possibilidade dos sujeitos comuns, como os
vaqueiros, produzirem formas de “resistência” e defenderem seus próprios interesses diante
do processo de modernização agrícola é pautar-se nas categorias dominantes sobre o que vem
a ser “resistir”720.
Ainda segundo Scott, a abordagem da resistência como ato institucional silenciou e
desconsiderou formas cotidianas de luta usadas pelos camponeses, muitas vezes, as únicas
disponíveis aos sujeitos. Scott define como resistência cotidiana qualquer ato provindo dos
oprimidos, fundamentado em um “padrão coletivo” de ação – ainda que sem uma
718 SCOTT, J. C. Formas cotidianas da resistência..., p. 18. 719 THOMPSON, E. P. Costumes em comum...; THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... 720 SCOTT, J. C. Formas cotidianas da resistência..., p. 28-29.
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coordenação definida -, que tenha por intenção corromper, aumentar seu poder de
reivindicação, negar obrigações e práticas que sobre eles recaem advindo das classes
opressoras. As resistências cotidianas geralmente assumem formas anônimas, flexíveis e
persistentes, silenciosas, podem assumir caracteres simbólicos, podem ou não elevar-se a
situações mais “abertas” de confronto e estão diretamente relacionadas com a produção das
condições de sobrevivência dos trabalhadores721. Estão nesse conjunto: a fofoca, a sabotagem,
o roubo de grãos, a ameaça, a fuga, o não pagamento de impostos, o silêncio...
A resistência cotidiana, diz ainda James Scott, não visa romper o sistema, mas testa
constantemente as normatizações das relações de produção, compõem a arena mais durável
dos conflitos de classe e expõe os trabalhadores como sujeitos políticos. Esse autor nos
desafia a pensar as formas cotidianas de resistência como uma regra - e não como uma
exceção – advinda da necessidade de resistir722. Também no contexto das relações agrárias,
José de Souza Martins já demonstrou como as comunidades camponesas e indígenas
brasileiras tem imposto limitações ao processo de expansão capitalista, por meio da
constituição de mediações, pela sua capacidade de recriação e até mesmo pela sua presença
política na sociedade723.
Nesse sentido, os sujeitos de nossa pesquisa acompanhavam, refletiam e resistiam
diariamente às realidades vividas, no contexto do avanço das relações capitalistas que lhes
tiraram os espaços de trabalho e vivência. Sobre esse contexto conflituoso, agiram (e agem)
na defesa de suas convicções de mundo e de trabalho, de sua identidade laboral, de seu direito
de permanência sobre o Platô ou áreas circunvizinhas, da manutenção da sua relação com o
gado. O campo se fez espaço de experiência e a partir do trabalho os vaqueiros produziram
suas próprias formas de entendimento dos processos que se decorriam, do modo que ele os
atingia e das suas possibilidades de ação e resistência.
Luiz sabe muito bem explicar o processo de controle que o Estado impôs sobre as
práticas da pecuária.
O Estado num aceita mais criar solto, você tem que criar preso! Você tem que... hoje você tem, você tem o seu rebainho de gado, tá todo na EBDA (Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, agência de Extensão Rural e Assistência Técnica que atua na Região de Irecê) pra sabê quandos bizêrro nasce, saber quantos você tem,
721 Idem, Ibidem, 24-29. 722 Idem, Ibidem, p. 18-25. 723 MARTINS, J. de S. A chegada do estranho..., p. 64-65; 71.
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saber pr’onde você vai tirar, [...]... e você antigamente não! Você vindia, você dava, você... (tosse), você ia pr’onde quiria! E hoje é difici o negóço724.
Este entrevistado também define as mudanças espaciais e paisagísticas pelas quais
passou o antigo território do Sertão de Irecê: “Cunheci na catinga, cunheci dismatada e
cunheci só por terra agora! (riso) Só tem a terra”725. Hermes relata bem o processo de
deslegitimação do costume que o capital produziu a partir do controle da terra, das práticas e
do trabalho quando afirma: “A terra está, mas não o campo solto!”726. Roxinho sintetiza os
impactos desse processo: “Acabô ovelha, acabô bode, tudo, acabô mais o sertão, né!”727 Juarez também analisa as consequências espaciais e sócio-econômicas das iniciativas
modernizantes: Milhorô muito pra cidade porque tinha renda, deu renda! O pessoal cercô tudo [...], naquela época produzia muito fejão e aí milhorô pro lugar, mas pra o vaquêro não! Pro vaquêro fez foi arruinar. E o coitado do vaquêro que tinha, que trabaiava pra tirar sorte, quando acabô o campo ele vendeu as 4 vaquinha que tinha e foi imbora e ôtos ficô, foi plantar roça. [...] Tinha que disistir, o patrão vendia o gado, como era que ficava?!728
Luiz tem claro conhecimento das mudanças operadas nos ritmos de vida quando afirma que
o muvimento de gado acabô né, mas, o muvimento de ôtas, de ôtas parte de coisa aumentô né, o muvimento de gente, o muvimento de carro, o muvimento de uma obra, o muvimento de casa e aí... a gente vê que o negóço tá aumentano né, gente aumentano dimais, você contava as pessoa, hoje você num tem condições de contá mais nem de uma rua!
E completa: “a civilidade mudô né, passô tudo, tudo a sê civilizado. Hoje, quem tinha
vontade de tê uma rês, tem um carro novo”729. As mudanças ambientais não passam
despercebidas pelos vaqueiros. Roxinho lamenta: “Em são Gabriel foi, foi um disastre [...] a
catinga era da altura dessa casa, hoje você chega lá, você num diz que lá tinha catinga! Acabô
tudo!730. Guilhermino produz suas próprias análises sobre o impacto ecológico e climático
resultante do processo de modernização rural:
Dismatô esse mundo todo aí, hoje, você vê, a chuva retirô, afastô tudo, num chuveu mais e aí acabô a agricultura, você vê, hoje aqui tá a região nossa todinha tá um fracasso, né! Virô um sertãozão gerais aí! [...] Todo mundo danô a furar poço nessa região todinha, então, isso aí é o fracasso da chuva, porque, se puxa essas água
724 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 725 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010. 726 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010. 727 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 728 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 729 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010. 730 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.
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debaxo da terra todinha, como é que faz a temperatura, puxar a chuva e chover?! Hoje num tem mais porque as água debaixo do chão o povo tá puxano tudo e soltano inriba do pó da terra, aí acaba! 731
Guilhermino sabe que as modernidades tem seu preço e afirma: “Nós hoje come é
veneno e a verdura é o veneno todo! A criação é o veneno! Tudo, tudo é invenenado!”732.
Almir Vaqueiro, mesmo afirmando não gostar do trabalho na roça, se preocupa com a
fertilidade dos solos e destaca: “a terra adoeceu”733. Roxinho conhece bem o resultado do
processo de modernização rural e seus impactos sobre os diferentes grupos sociais: “Do mêi
pro fim acabô a chuva e nem fejão e nem catinga! Aí ficô tudo na mão! E nem gado! Hoje,
quem criava 200, cria 5, 10! E o pobre de jeito nenhum, porque num tem onde prender né”734.
O poeta, vaqueiro e repentista Licuri delineia sua reflexão sobre o futuro alimentício do
Brasil, e quicá, do mundo:
Os probrizim que num tem nada, [...] aluga um barraco na cidade, leva a família pra lá e fica vendeno o dia, se lascano, passano até fome [...] E os filho? _ “Ah! Meus filho tem que istudar, que tem que se formar!” _ Tudo bem! Concordo plenamente com o istudo, que vale tudo na vida o istudo! Agora, por que naqueles tempo num ixistia um certos tipo de fome?! [...] Porque tá faltano quem plante! Todo mundo tá na cidade, quereno se formar. Agora eu lhe digo assim a você [...]: A cidade já é completa de gente de dento da cidade, não tem imprego pra todo mundo, vai ter pra todos que vem da roça?! [...] Então, vai fazer o que esse povo formado?
Das falas acima emerge a vivência e a consciência de quem compreende bem os
processos econômicos recentes que recaíram sobre seus espaços de vida, afinal, como defende
Walter Benjamin, é a experiência a fonte da narração, e esta é uma forma comunicativa
artesanal, móvel, forjada pelo traço da vida e no acervo de vivências. A narração exige uma
interpretação dos seus ouvintes. O que significa para um vaqueiro afirmar que o campo
acabou? Quantos sentimentos e lembranças estão aí guardados? É a experiência que afirma:
“cunheci”.
A experiência é um processo da práxis e como, tal possibilita a transformação
consciente da circunstância vivida através da interferência dialética sobre a relação contextual
firmada entre os fins buscados e as limitações postas pela cotidianidade. Diariamente em meio
às caatingas, à medida que a finalização do campo se tornou mais evidente e suas relações de
trabalho e sociabilidades alteradas e deslegitimadas, os vaqueiros foram forçados a buscar
731 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 732 Idem, Ibidem, loc. cit. 733 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 734 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.
290
suas condições de sobrevivência e leituras de mundo nas brechas do projeto de modernização
rural e ainda hoje recriam essas estratégias em seus quintais, nas zonas afastadas, nas
capoeiras que crescem nas áreas abandonadas pela agricultura. Os matos se refazem, mas as
estruturas sociais, simbólicas e econômicas sobre as quais se sentavam a reprodução social do
costume no Platô Norte Diamantino e áreas circunvizinhas, já não existem.
A vivência em tempos de mudança deixou consequências e organizou formas de narrar
na consciência dos vaqueiros. Comumente os vaqueiros usam os verbos “fechar” ou “prender”
para indicar o processo de finalização do campo. Juarez nos diz que hoje “tá tudo fechado!
Num tá mais aberto não”735, para Jairo “o campo aqui fechô, aqui o povo priziô dimais! Foi
obrigado sair pra criá fora!”736. Hermes diz que “a terra tá toda presa”737. As expressões
usadas para indicar o cercamento das terras remetem diretamente a um processo de
“disciplinarização” do uso, impedimento das práticas comuns e a presença de um poder
normatizador. Fechar ou prender simboliza reter algo para si e se antagoniza a expressões
como “solto”, “vasto”, “aberto”, corriqueiramente usadas para classificar o campo ou expor a
existência de um tempo diferente do presente.
Os relatos dos vaqueiros são temporalmente recortados em dois momentos: “o tempo
do campo”, também chamado de “naquele tempo”, “antigamente”, “de primêro”, “tempo
nosso”, “o tempo véi”, “naquele tempão antigo”, símbolo de valorização profissional,
associado a liberdade, ao domínio dos saberes do manejo, às formas coletivas de trabalho, às
pequenas roças, tempo devagar, no passo do cavalo, tempo rápido no grito do vaqueiro em
meio à caatinga, tempo da honestidade, do respeito aos bens alheios, tempo da terra solta,
tempo da aprendizagem pelo exercício prático, tempo da coragem, da macheza, da honra, da
destreza de laçar, do gibão, do boi bravo, da saudade, da reunião da vaquerada na feira. É o
tempo em que uma viagem poderia durar “3 dia c’umas parte de noite!”738, que a sombra e os
cantados das aves funcionavam como marcadores temporais. Em outra dimensão das narrativas dos entrevistados encontramos o “tempo de hoje”
ou “tempo do banco”. Este é associado à chegada das novas tecnologias, do desenvolvimento,
da agricultura comercial, da presença do banco, do governo, do crédito, do desmatamento, da
escola, da abertura das estradas, do trator, tempo dos ladrões, da falta de respeito, da solidão
735 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 736 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo)..., momento único, 07 de out/2010. 737 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Hermes)..., 3º momento, 16 de out/2010. 738 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
291
das fazendas, do arame, dos benefícios da modernidade, do crescimento da cidade, da
aposentadoria, da proteção contra a fome, dos vaqueiros de bicicleta e de moto. Como afirma
Tânia Risério Gandon, a memória de uma comunidade tradicional se expõe por meio de
discursos multitemporalizados que transitam entre o mítico, o vivido e o mitificado, sendo
cada uma dessas dimensões portadora de uma “qualidade” própria739.
A reflexão multitemporal dos vaqueiros os permite o exercício da alteridade
(ontem/hoje) e a produção de estruturas narrativas que buscam reforçar a sua importância no
contexto atual a partir da diferenciação entre o “eu” e o “outro”. A narrativa dos vaqueiros
deixa transparecer a existência de três grupos de trabalhadores. O primeiro grupo é formado
pelos “vaqueiros de campo”, considerados os reais vaqueiros, geralmente homens com mais
de 50 anos, que lidaram por algum tempo com o gado à solta. São os detentores dos saberes,
das artes do trabalho no campo e vistos como símbolo de coragem. Almir afirma: “O vaquêro
é aquele homem como eu fui vaquêro, (...) o vaquêro é aquele que pega o boi no mato”740.
O segundo grupo é formado por trabalhadores mais jovens, homens entre 35 e 50 anos.
Estes, geralmente, vivenciaram por pouco tempo o campo e o sistema de sorte, estão ainda na
ativa e trabalham nas fazendas cercadas dentro e fora do Platô. Muitas dessas fazendas ainda
possuem áreas de caatinga, o que os permite, ainda que parcialmente, contato as formas e
saberes tradicionais de trabalho com o gado. Os entrevistados se referem a eles como
“vaqueiro de fazenda”, “empregado”, “zeladô” ou “pião”. Lembrando-se de dois dos seus
conhecidos que trabalham nas fazendas próximas ao Platô fala Samuel: “Ele é menino, é
muderno! Amilton! E Almir também trabaia no campo, é muderno também. É sobrinho de
Juarêz, mas num é na idade dele não, é novo, 30 e tantos ano. [...] eles trabaia e sabe trabaiar,
e sabe quem trabaia!”741. Nos repassando informações sobre um dos seus sobrinhos, também
“vaqueiro de fazenda”, diz Juarez: “ele mora aqui tomém, é vaquêro”742.
Embora reconheçam no “vaqueiro de fazenda” aptidão e conhecimento no trato com o
gado, os “vaqueiros de campo” os tratam com certa ressalva. Hermes nos diz que; “Hoje a
gente chama de vaquêro porque tá lutando com o gado, não é? É lutador de gado, é vaquêro,
mas já é um vaquêro que não é de confiança que nem era de primêro (antigamente)! De
739 GANDON, T. R. D’A. Entre história e memória..., p. 139-155. 740 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 741 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Seu Samuel)..., momento único, 20 de out/2010. 742 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Seu Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.
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primêro você lutava no campo, era obrigado ser cabra bom, não era todo mundo não!”743.
Almir completa: “todo mundo é vaquêro hoje né. Todo mundo tange o gado que é tudo
corredô né! Num é que’nem aquele tempo que só era carrêro (caminho estreito que corta a
mata, normalmente feito pelos animais)! Aí era mais difici né. [...]744.
Um dos fatores decisivos dessa diferenciação é o uso do sistema assalariado e o local
de trabalho. Viana explica: “O vaquêro é quem óia pra tirar sorte! [...] Esse vaquêro que é
impregado, ele só botô a vaca no cocho de tardinha, ou a hora, tirô leite bem cedo, soltô, mais
tarde, da de’cumê... isso né vaquêro, esse é impregado né! [...] Que’le ganha seu saláro, ele é
um... num veste côro pra ir em canto ninhum, né!”745. O “côro” é aqui sinônimo do campo,
sua ausência remete ao trabalho na fazenda e serve de fator determinante para o narrador
definir a diferença entre ser vaqueiro e ser empregado.
O terceiro grupo é formado pela “mudernage”, são os sujeitos mais jovens que não
tiveram acesso ao trabalho no campo, mas que, mesmo realizando apenas serviços
esporádicos com o gado, ou mesmo não realizando, se identificam com as práticas das
cavalgadas, festas de vaquejada, toadas e aboios. Nesse conjunto, as representações da
pecuária local se misturam à influência da cultura country norte-americana. Luiz diz: “hoje
todo vaquêro quer sê vaquêro, nas capoêra, dento dos pasto, correno em pista de vaquejada e
dizeno que é vaquêro, mas o vaquêro antigamente era incorado!”746. Guilhermino explica:
“muita hora o cara bota a sela no cavalo e tudo mais, muito vai fazê riscote no mundo intêro e
tudo mais, como vaquêro, mas num é vaquêro!”747. Esse grupo é visto pelos “vaqueiros de
campo” com ressalvas ainda maiores que às direcionadas aos “vaqueiros de fazenda”:
Essas porra quer mais nada moço! Num sabe fazer nada moço! Quer é beber cachaça e vagabundar xxx! Muitos tem a influênça de muntar no cavalo, mas, vai mandar laçar uma rês num sabe, quando é botar uma careta, numa sabe! Então num sabe fazer nada!748
Os integrantes dessa categoria são geralmente denominados de “vaqueiros de hoje”,
outros nomes, porém, lhes são atribuídos de forma irônica ou inferiorizante: “imbrulha côro”,
“imprenha sela”, “tiradô de leite”. O uso de símbolos e instrumentos estranhos ao trabalho
743 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Hermes)..., 1º momento, 11 de out/2010. 744 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 745 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 746 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 747 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Seu Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 748 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010.
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tradicional, aumenta ainda mais o distanciamento entre este grupo e os “vaqueiros de campo”.
Reinaldo de Lôro explica:
Hoje a coisa tá tão mudada, que eu vejo gente ai tangeno gado de moto! E não tem mais aqueles gado brabo! E nem que o gado for brabo não tem pra onde o gado correr, as vez corre num corredor, o cara bota a moto atrás rebate logo! [...] Ôtos de bicicleta! E os vaquêro não usa mais nem jaleco, nem chapéu de côro! Pra gende dizer: _“Ó lá um vaquêro.” [...] E o cavalo também num sabe fazer o serviço, num sabe pra que é que vai correr atrás d’um boi749.
A falta do saber, o uso da moto ou da bicicleta, a falta do gado bravo, do jaleco, do
chapéu... torna o “vaqueiro de hoje” o sujeito negado. É pensando nos elementos simbólicos e
representativos que caracterizam o “vaqueiro de campo”, ou melhor, na falta deles, que
exclama Reinaldo de Zé Pedro:
Hoje num tem mais vaquêro, não! O povo ver assim: _“Lá vem um aculá muntado num cavalo.” De primêro quando vinha um vaquêro: _“Oh, um vaquêro aculá.”750
Intercalando o perfil dos três grupos observamos que as diferenças que os marcam, são
explicadas pela posição que ocupam em relação ao trabalho no campo. Sendo os “vaqueiros
de campo” o ponto de referência a partir dos quais de julga o que é “saber” ou “não saber”, os
grupos mais distantes do seu padrão de trabalho são definidos de forma inferiorizada. Isso,
contudo, não simboliza um conflito de grupos, o jogo que se coloca é o da disputa
representativa pelo direito e o poder de dizer e classificar os outros. A presença de um
“vaqueiro de campo” nas cavalgadas ou eventos organizados pelos “vaqueiros de hoje”, por
exemplo, é visto como um fato marcante e apreciada por todos os participantes.
Estamos aqui diante de uma memória que delineia um modelo de ser vaqueiro baseada
na rotina de trabalho e nos ensinamentos que foram repassados aos entrevistados pelos seus
antecedentes e que não encontra mais subsídios no tempo presente. As mudanças ocorridas no
mundo simbólico e laboral dos vaqueiros, como a expansão do assalariamento e uso das
motos na condução do gado, possibilitam aos “vaqueiros de campo” auto-atribuir-se uma
originalidade.
Michel Pollak já demostrou como uma memória herdada fundamenta um sentimento
de identidade tendo por base a unidade física dos indivíduos, (no caso dos entrevistados, as 749 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012. 750 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro)..., momento único, 07 de jan/2012.
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fronteiras grupais), o sentimento de continuidade dentro de um tempo e um sentimento de
coerência, ou seja, de um compartilhamento real dos diferentes elementos que compõem o
sujeito no meio do grupo. Esses elementos, acrescenta Pollak, são sempre testados em relação
ao “outro”, por meio dos critérios de aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade, como
forma de se produzir uma auto-imagem. Nesse sentido, a memória deixa de ser vista como
essência dos grupos para se tornar “um fenômeno seletivo e construído” a partir de disputas e
conflitos sociais intergrupais751.
Por se tratar de uma representação social em risco, dialeticamente, o “vaqueiro de
campo” necessita do “vaqueiro de hoje” para afirmar seu próprio lugar de emissor do discurso
do “modo de ser vaqueiro”. Novamente recorremos a Pierre Nora quando destaca que a
necessidade de memória é um sinal do fim dos meios de memória752. Nesse caminho os
entrevistados evitam negar aos “vaqueiros de hoje” uma vez que, sem eles, seu exercício de
alteridade não se completa. Essa estratégia narrativa demonstra que os entrevistados têm
consciência de que, ainda que vistos como incompletos, os “vaqueiros de hoje” correspondem
concretamente a uma das poucas formas de manutenção de algumas das simbologias e
práticas por eles referendadas, principalmente o trato com o gado, o uso dos cavalos, das
indumentárias de couro ou das músicas de vaquejada.
O fim de uma região...
Bem distante dos vaqueiros e de sua lida pela sobrevivência, as autoridades regionais
debateram acaloradamente em meados dos anos 1980 a crise que ameaçava a Região de Irecê.
A ocorrência de estiagens no início desse decênio interrompeu o crescimento produtivo
novamente, reforçando as queixas sobre os prejuízos causados pela irregularidade das chuvas
e anunciando os limites do processo de expansão das relações capitalistas no antigo território
do Sertão de Irecê. Nesse momento, as agências financeiras reforçaram o argumento da
impossibilidade de manutenção das altas taxas de crédito.
Tal ideia assustou os políticos locais, que buscaram contatos e explicações viáveis
para contornar a situação. A sessão legislativa da Câmara de Vereadores de Irecê, datada de
04 de abril de 1979, dá conta da presença de uma comitiva política formada pelo Ministro do
751 POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, vol. 5, nº 10, 1992, p. 203-204. 752 NORA, P. Entre memória e história..., p. 7.
295
Interior, Ministro da Agricultura, Governador do Estado, Secretários de Estado, Senadores,
Deputados, Prefeitos e Vereadores de outros municípios, de passagem pela cidade. Nessa
ocasião foram entregues documentos relatando a crise agrícola vivenciada na Região de Irecê
e solicitando medidas para que a “produção seja mais valorizada”753.
A partir de 1983, com o fim do subsídio agrícola, a situação tornou-se menos cordial.
Em outubro desse ano um dos vereadores “condena a decisão dos agentes financeiros em não
financiar [...] os agricultores da região de Irecê no período agrícola 82/83”, afirma ainda que
tal decisão foi “um crime”754. Uma nova sessão realizada nesse mesmo mês exigiu “a vinda
do representante do Banco do Brasil S/A, para esclarecer as dúvidas com referência ao custeio
agrícola” em caráter de urgência755. A referida solicitação não tardou a ser atendida e no
início de novembro o superintendente do Banco do Brasil fez-se presente. Após longo
discurso sobre os critérios adotados pela instituição e o papel social que ela representa na
região sentencia o visitante: “não é possível se reinvestir em qualquer região sem que tenha
retorno”. A fala do discursista parece ter pesado aos ouvidos do público e, buscando amenizar
o contexto afirma: “Irecê tem potencial”, “não faltará recursos para a Bahia”756.
Após a declaração do representante financeiro, assiste-se a uma avalanche de críticas
dos representantes legislativos de Irecê ao Banco do Brasil, questionando sua estrutura
burocrática e o descaso com os agricultores. Tais críticas podem ser sintetizadas na sessão de
21 de novembro, onde um dos vereadores desabafa, ao afirmar que os representantes do
Banco do Brasil “não estão levando a sério o atendimento”, solicitando em seguida o “apoio
do Legislativo para ajudar os agricultores de Irecê resolverem seus problemas com os agentes
financeiros”. O edil ainda destaca que o referido banco, embora público, “se transformou em
uma instituição comercial”. Outro vereador, conclui ainda nessa sessão que “isto é
consequência de uma Política Agrícola desastrosa vigente no Brasil”, acrescentando: “Irecê
não tem nenhum Deputado Federal que o represente”757.
A inércia dos representantes políticos dos níveis federal e estadual diante da crise
agrícola, foi motivo de diversas outras críticas nas sessões seguintes. A ata 314, de março de
1984, registra uma nova denuncia: “Volta a falar sobre a transferência da Gerência Regional
753 CMI. Ata nº 195 da Câmara Municipal de Irecê, 10 de abril de 1979 (datilografada). 754 CMI. Ata nº 303 da Câmara Municipal de Irecê, 04 de outubro de 1983, p. 106. 755 CMI. Ata nº 306 da Câmara Municipal de Irecê, outubro de 1983, p. 112. 756 CMI. Ata nº 307 da Câmara Municipal de Irecê, 01 de novembro de 1983, p. 112. 757 CMI. Ata nº 310 da Câmara Municipal de Irecê, 21 de novembro de 1983, p. 119.
296
do PDRI – Irecê para Jacobina e pede que seja encaminhado documento ao Deputado Manoel
Novaes para que esta Gerência seja transferida para Irecê”758.
Um dos debates travados em outubro de 1984 afirma que “a Agricultura de Irecê está
condenada a extinção pois além dos tratamentos injustos já conhecidos agora recebemos a
notícia de que a partir de hoje o Agricultor vai pagar Correção Monetária”. A sessão não se
encerra antes que o mesmo representante relate: “o Banco do Brasil quer escurecer a
produtividade de Irecê e classificar em faixas inferiores” a de outros municípios759 menores.
Em reunião posterior, conclui os representantes legislativos de Irecê: “nossa agricultura está
falindo por falta de vozes representativas no Congresso Nacional”760.
O outrora “celeiro do Nordeste”761 era agora uma estrutura em ruínas e suas
autoridades tentaram dar voz às pressões sociais, descortinando um processo de abandono
político da Região de Irecê. As instituições públicas de desenvolvimento rural passaram a ser
retiradas, deslocadas ou caíram no puro abandono e tentou-se até mesmo, produzir chuva
artificial em meados de 1980 através de uma frustrada iniciativa de bombardeamento de
cloreto de sódio sobre as nuvens. A crise foi agravada pela recuperação produtiva do feijão
em outros estados como o Paraná, e os debates seguintes enfocaram a importância da mamona
como nova cultura comercial para o Platô. Tentativa de curto sucesso.
Muito fácil era comprar tratores no Planalto Norte Diamantino no início da década de
1990. Sem recursos para manter o cultivo, muitos agricultores e proprietários puseram suas
máquinas à venda a preços baixos. Como marcas de outro tempo, até recentemente,
amontoados de ferros e peças de equipamentos agrícolas se encontravam abandonados em
alguns pontos da cidade de Irecê. Pelas áreas rurais, muitas delas ainda se erguem como
monumentos de silêncios e ferrugem.
O ponto crucial de finalização da Região de Irecê foi a fragmentação do território do
município de Irecê, dando origem aos municípios de São Gabriel, João Dourado, Lapão e
América Dourada em 1985, após caloroso debate entre os representantes políticos locais.
Diante da pressão social decorrente da crise agrícola, as instâncias políticas estaduais e
federais consentiram a citada divisão como forma de contenção das críticas e negação do
abandono político, e presenteou as populações com cidades que nasceram da noite para o dia,
758 CMI. Ata nº 314 da Câmara Municipal de Irecê, 20 de março de 1984, p. 129. 759 CMI. Ata nº 336 da Câmara Municipal de Irecê, 01 de outubro de 1984, p. 184 (grifo nosso). 760 CMI. Ata nº 340 da Câmara Municipal de Irecê, 29 de outubro de 1984, p. 191. 761 CMI. Ata nº 323 da Câmara Municipal de Irecê, de 23 de maio de 1984, p. 147.
297
sem que nenhum investimento ou equipamento público fosse instalado, além dos que já
possuiam.
A Região de Irecê, uma “especificidade regional” dentro da Região Econômica do
Nordeste, forjada pelo planejamento, entrou em ruínas na segunda metade de 1980. Claro
ficou que o Platô e as áreas vizinhas não correspondia mais ao interesse do capital. As
estruturas de uma nova “região econômica” passaram a ser erguidas, agora no oeste baiano, a
“região da soja”. Nos anos 1990, assistiu-se a uma migração em massa dos jovens de todas as
cidades do Platô em direção aos grandes centros, especialmente São Paulo, e o migrar sazonal
frenético de trabalhadores para o oeste baiano e para as zonas produtivas de outros estados da
federação em busca de trabalho.
O Sertão de Irecê já não existe mais como espaço-vivência, lugar de produção das
relações sociais de produção, lugar de sociabilidades, de trabalho. O Sertão de Irecê sobrevive
nos lugares de memória de que nos fala Pierre Nora: nos quintais, no jaleco que Roxinho se
orgulha em usar até hoje, na teimosia de Juarez em continuar criando gado, nos aboios de
Almir Vaqueiro, no chapéu de couro que emerge na feira, no gibão e peças de trabalho
guardadas com carinho sob a poeira, na conversa despreocupada ainda presente nas pequenas
cidades, nas poucas casas de enchimento que resistem, nos gestos, nos hábitos, no
comportamento dos velhos vaqueiros, nas carroças que circulam, nos animais que pastam nos
terrenos baldios...
No mundo atual, onde a lembrança e a História foram dessacralizadas, nos diz Nora,
os lugares de memória são sinais de outro tempo, funcionais, simbólicos e materiais,
cristalizam uma lembrança passada permitindo sua transmissão no hoje. São produtos da
experiência vivida por remanescentes impelidos por uma vontade de memória. São espaços
híbridos e mutantes que visam parar o tempo, bloquear o esquecimento, manter sentidos. No
caso dos entrevistados, são lugares dos dominados, lugares de refúgio, mas também, lugares
de resistência. Lugares de memória são restos, onde se unem a morte e o presente762.
Se a região se desfez, permanecem ainda os seus impactos: um modo “regionalizado”
de viver, urbanizante e capitalizado. A imagem da pujança agrícola, hoje falida, ainda é
exaltada pelas elites locais enquanto os pequenos trechos de caatinga ainda tombam.
Dialeticamente, o passado reaparece consubstanciado na retomada de práticas policultoras,
762 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
298
danças, festejos, na ação de certos grupos artístico-culturais, na manutenção das velhas casas
de farinha, no emergir de vozes autodenominadas sertanejas, como a apontar para um
“ressertanejamento”. Reconstrução em novas bases, de natureza bem diferente, movida pela
vontade de lembrar e não mais pela ação do existir. Sabiamente exemplifica Guilhermino:
“muitos aí que representa como vaquêro por negócio de festa, mas vem tudo naquela
influênça do que era o passado”763.
Em meio ao processo de estruturação e ruína de uma região estava uma prática secular
das populações sertanejas: criar animais à solta em áreas de uso comum, e um sujeito: o
vaqueiro. Considerados pelo Estado e pelas elites locais como entraves rudimentares ao
processo de modernização rural, passaram eles a ser eliminados, disciplinados, coagidos,
“regionalizados”, decompostos de sua natureza rural, mas, das artes de viver dos
trabalhadores emergiram outras formas de reexperimentar o Sertão de Irecê. As
consequências sociais desse processo de desconstrução e tentativas de reconstrução, no
entanto, são inegáveis e a saudade emerge da fala do velho vaqueiro, legitimada que está pela
experiência vivida, como alma de um tempo e de um lugar que não mais existe quando
exclama: “Quantas vez nós ia pegar gado ali naquelas queimada véa! [...] Ave Maria!
Diversão boa danada!”764
Almir fala da saudade dos seus amigos: “Naquele tempo meu! Queta moço! Às vez
tinha um boi brabo aí, pra reunir a vaquerada pra gente ir pegar... é, queta moço, é uma
diversão boa!”765. Hermes tem saudade do lugar de trabalho e assume:
Uma saudade de, (risos) desse trabalho do campo e tenho saudade lá do Riacho (do Ferreira)... quando eu vejo um relâmpo ou uma chuva pra lá eu digo: _“Ó! tá chovendo lá em casa!” É o mesmo que eu ver eu lá de dentro de casa e a vacada na malhada766.
São os lugares também que trazem lembranças a Luiz, lugares de memória:
A soudade é grande! Inté hoje... você já cumeça tê soudade de quando você chega num canto e diz: _“Aqui eu já trabaiei muito de vaquêro aqui nesse canto, e hoje tá tudo no limpo aí!” (voz com entonação sentimental) [...] chega dá aquele choque na gente!767
763 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 764 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010 765 Idem, Ibidem, loc. cit. 766 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 767 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.
299
Olhando a caatinga devastada Guillhermino se questiona:_“Quem foi eu? [...] Fiz
tudo, hoje, acabô tudo, num deu pra fazer mais nada. E tamém acabô aquele tempo, né”768.
Refletindo sobre o duro e solitário trabalho nas fazendas destaca Juarez: “vaquêro hoje num
tem mais aligria”769. A saudade, por fim, brota das lágrimas de Jairo enquanto a mente busca
no hoje os sentidos possíveis para a vida. Afirma ele: “Tem dia que chega choro! [...] O
trabalho que a gente faz é bom demais! [...] eu num vendo (ver) o gado, fico apaxonado a vida
toda!”770. Quando as lembranças doem o esquecimento alia seu peso, Viana afirma: “Larguei
isso de mão, tirei do juízo que num... tem dia, quando eu vejo vaquêro aboiar, se eu pudesse
eu num via nem ele raiar um bicho! Acredita?!”771
768 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., 2º momento único, 18 de ago/2011. 769 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 770 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 771 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011.
300
Considerando o dito e o não dito...
Era só mais um dia no campo e Almir Vaqueiro repetia a peleja entre a caatinga: A vaca era braba, [...]... espantei o cavalão nela! Ôh! Meu irmão! [...] na quebração de trator, a madêra deitada, o cavalão caiu e caiu por cima de mim e me pegô a perna aqui debaixo, debaixo do pescoço, ficô eu agora fungano para tirar esse musuê de cavalo (refere-se ao tamanho do cavalo) de cima de mim772.
A prática tantas vezes certeira desta vez não funcionou, restando ao vaqueiro mais um
acidente. O obstáculo encontrado nesse dia, contudo, era diferente dos anteriores. Não era
uma armadilha natural, não estava inscrito na experiência como um dos perigos do campo. O
saber do cavaleiro foi traído pelo imprevisível: a quebração do trator. A narrativa acima situa-
se muito além da aventura, dos percalços e da necessidade que movia o vaqueiro dia-a-dia por
entre as caatingas. Ela sintetiza o processo amplo e complexo de encontro entre o modo de
vida costumeiro do Sertão de Irecê e modernização rural que se espalhou pelo Brasil na
segunda metade do século XX.
O estudo desse encontro permite entender como o modelo político brasileiro do pós-
guerra, orientado pela difusão da pauta do “desenvolvimento nacional”, reconfigurou os
espaços e as relações de produção com vista na difusão do capital no Brasil. Esse modelo se
expandiu durante os governos militares e consolidou numa política econômica autoritária,
elitista e tecnológica, que subordinou as relações agrárias aos setores urbano-industriais por
meio da imposição das relações de mercado sobre as formas/funções de produção e modos de
vida das populações rurais. Esse processo ficou conhecido como modernização conservadora.
A modernização conservadora baseou-se na expansão do crédito oficial, no incentivo a
mecanização das relações de produção, na difusão do assalariamento, na horizontalização e
cercamento das terras, na estruturação de serviços e estudos votados para elevação da
produtividade agrícola e na construção, por parte do Estado, da infra-estrutura básica
(estradas, eletrificação, armazéns, órgãos de desenvolvimento). Essas medidas, porém, não
ficaram restritas ao meio rural e tiveram impacto direto sobre as cidades, alterando sua
estrutura e estabelecendo nossos usos para seus espaços. Paralelo a essas dinâmicas, os
governos militares brasileiros impuseram o silenciamento aos movimentos sociais rurais e
772 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010.
301
intelectuais que debatiam propostas para o espaço agrário brasileiro e afirmavam a reforma
agrária como uma necessidade.
As primeiras iniciativas de modernização agrária e urbana do Sertão de Irecê deram-se
ainda nas décadas de 1940 e 1950 e se aprofundaram até a segunda metade da década de
1980. Nesse espaço do interior baiano o capital fez emergir, a partir da década de 1970, um
pólo agrário-urbano e agromercantil de alta produtividade, (baseado na produção de feijão,
milho e mamona) voltado para o abastecimento interno e centralizado na “Capital do Feijão”,
como passou a ser denominada a cidade de Irecê. Da perspectiva da divisão regional do
trabalho, a emersão desse complexo produtivo correspondeu a estruturação de uma
“especificidade regional”, um espaço especial de produção do capital dentro da Região
Econômica do Nordeste, da qual nos fala Francisco de Oliveira, e ficou conhecida como
Região de Irecê.
Como vimos, o Sertão de Irecê era um espaço de povoamento tardio (meados do
século XIX até 1970) localizado sobre o Platô Norte da Chapada Diamantina e suas áreas
próximas. O modo de vida aí desenvolvido se referenciava no costume, na prática imemorial
do trabalho direto com a natureza, no convívio comunitário, na mão-de-obra familiar e no uso
comum da terra. Sua base econômica era essencialmente poliagropecuária de
aprovisionamento e tinha no campo a sua dimensão espacializadora. O campo marcava a
fronteira do Sertão de Irecê. Esse termo, apresentado pelos entrevistados, é carregado de
significado e define para os narradores o estar dentro ou o estar fora de seus espaços de
pertencimento e dos sentidos neles gestados. O campo era resultado da união entre terras de
uso comum e prática comum de uso da terra. Era espaço de vivência e experiência do qual os
sertanejos retiravam parte dos recursos que garantiam o seu sustento e sobre o qual ser
erguiam a roça, as vilas, o curral, a moradia, as pastagens. Era o espaço de trabalho dos
vaqueiros.
Os estudos historiográficos sobre esse tipo de trabalhador têm, ainda hoje, reproduzido
as representações literárias, memorialísticas e folclóricas advindas especialmente do século
XIX e primeira metade do século XX. Nessa abordagem os vaqueiros são definidos como
sujeitos do passado, atrelados ao processo de colonização e expansão das fazendas de gado
pelo interior do Brasil, sujeitos rudes, inexistentes no presente. Predomina sobre sua imagem
a abordagem polarizada do herói miserável. Ora é visto como um desbravador, luso-indígena,
corajoso, livre e conhecedor do mato. Ora emerge como um homem resignado e ignorante,
302
pobre, atrasado, subserviente, produto de uma relação de trabalho centralizada pelo “patrão”
ou “fazendeiro”, sem o qual não existe. Atravessamos aqui alguns estudos historiográficos
recentes que criticam essas representações, sem, contudo, superá-las em seu conjunto.
Buscando entender as especificidades desses sujeitos no contexto em destaque,
propusemos a relativização de algumas noções, entre elas, a própria categoria de vaqueiro. A
diversidade laboral dos entrevistados nos conduziu a defender o vaqueiro como uma categoria
social, laboral e identitária. Nesse sentido, muito além de um produto da relação empregado-
empregador, vaqueiro é um “querer ser” dos indivíduos. É uma opção de vida
contextualmente definida, diretamente ligada às relações de trabalho, mas que nunca se reduz
a elas. O estudo sobre as especificidades da pecuária e de seus trabalhadores no Sertão de
Irecê nos permitiu também questionar as categorias de patrão e fazenda.
Acreditamos que essas noções estão ainda hoje impregnadas do discurso euclidiano.
Como vimos, patrão é um termo usado pelos entrevistados para se referir a qualquer criador
contratante, não estando o vocábulo relacionado à existência de um acordo de trabalho fixo.
Entrevistamos vaqueiros que passaram a maior parte da vida cuidando dos rebanhos da
família sem conhecerem um “patrão” – um fazendeiro empregador – no sentido comumente
abordado na bibliografia consultada, outros trabalharam para diversos criadores ao mesmo
tempo.
Por outro lado, os vaqueiros do Sertão de Irecê só passaram a vivenciar efetivamente o
trabalho nas fazendas, vista aqui como espaço particular de criação, a partir da expansão da
modernização rural sobre o Platô. Anterior a esse período era normal que assumissem a
responsabilidade de um rebanho e cuidassem dele de forma quase autônoma em meio ao
campo. Era o campo, e não a fazenda, a referência espacial de trabalho para os vaqueiros do
Sertão de Irecê.
Como na maior parte dos sertões nordestinos, os vaqueiros do Sertão de Irecê eram
sujeitos de grande destaque social. Sua relação costumeira de trabalho, conhecida localmente
como ‘sorte’, permitia-lhes formar significativo patrimônio, por outro lado, o trabalho no
campo lhe garantia autonomia sobre o seu saber, seu tempo, suas sociabilidades e
representações sociais. Esses dois fatores fundamentam o “ser vaqueiro” apresentado pelos
entrevistados. Se o primeiro lhe garantia o acesso às ‘sementes’ de gado, o segundo garantia
sua reprodução. Do ponto de vista do trabalho, as caatingas legitimavam a necessidade da sua
mão-de-obra e a sua natureza especializada, expondo ao mesmo tempo a importância do seu
303
saber. Era o campo que permitia o desenvolvimento da habilidade e até os acidentes que
comprovavam a prática.
Esses fatores garantiam a sobrevivência dos vaqueiros e ajudavam a delimitar o grupo,
na medida em que permitiam as condições rituais de teste e julgamento público das
habilidades necessárias ao trabalho. Mas, os vaqueiros não sobreviviam unicamente do trato
com o gado. O trabalho no campo era uma das fontes de sobrevivência desses trabalhadores e
deve sempre ser entendido como parte integrante de uma renda familiar que se constituía
também por meio do trabalho nas roças e das pequenas economias domésticas, como a criação
de cabras, porcos, aves e ovelhas.
Por outro lado, os vaqueiros do Sertão de Irecê não eram sujeitos unicamente rurais. O
uso dos espaços urbanos, especialmente a feira livre, era parte essencial do processo de
composição de suas representações sociais. Era aí que firmavam suas amizades,
demonstravam suas habilidades, trocavam notícias, ostentavam suas simbologias (cavalos
bem arrumados, arreios novos, a música, a cachaça) e permitiam ser vistos.
A chegada das novas tecnologias ao Sertão de Irecê, em meados do século XX,
alterouo modo de vida e trabalho vigente, especialmente dos vaqueiros. Os tratores e
caminhões, técnicas de cultivo, a expansão do crédito público agrícola e as relações de
mercado; as agências financeiras e de desenvolvimento agrícola, a abertura e asfaltamento da
Estrada do Feijão, a dilatação das áreas de cultivo e as mudanças urbanas operadas na cidade
de Irecê, elevaram a produção e dinamizaram o escoamento da produção em uma rapidez
ainda não conhecida pelos habitantes locais.
Buscando legitimar essas ações, os governos produziram um discurso científico-
tecnológico-oficial que afirmou a existência de uma “vocação agrícola” para terra e os
homens do Sertão e exaltou a chegada de um novo tempo: o “tempo da integração”, sinônimo
de progresso e produtividade. Esse discurso difundiu novos símbolos (o caminhão, o trator, o
banco, a ciência, o agricultor, o feijão, o técnico agrícola) e anunciou um futuro moderno,
marcado pela presença do Estado e o interligamento com os mercados externos, como forma
de classificar o passado como atrasado e retrógrado.
Essas mudanças atingiram diretamente o modo de vida costumeiro das populações do
Sertão de Irecê, na medida em que obstaculizaram as práticas tradicionais de trabalho,
impedindo também a reprodução de seus sentidos. A forma autoritária com que foram
implantadas essas mudanças desconsiderou seus saberes e suas noções de propriedade,
304
subtraiu-lhes a autonomia sobre a terra e muitas vezes a própria terra, esquadrinhou e
mercantilizou antigas áreas de uso comum, impôs-lhe novas referências de tempo, posse e
propriedade. Os custos desse processo foram mais elevados para os vaqueiros, uma vez que
esses trabalhadores possuíam uma especificidade laboral e de relação com a terra que os
distanciavam da ênfase agrícola afirmada nas políticas do Estado.
O surgimento de um mercado de terras, a derrubada da caatinga para expansão das
lavouras e o cercamento eliminou o campo, seu espaço de trabalho, causou a redução dos
rebanhos ou o deslocamento dos animais para áreas mais distantes do Platô e impôs a fazenda
cercada como uma das poucas opções de emprego, diminuindo assim as possibilidades de
renda e sustento dos vaqueiros. Ainda nessa linha, o assalariamento substituiu o antigo
sistema de ‘sorte’ dificultando a formação de patrimônio. Os vaqueiros do Sertão de Irecê
passaram a conviver com novas formas de trabalho, agora marcadas pela restrição da
liberdade, pelo controle sobre sua mão-de-obra, seu saber, seu tempo e seu lazer. Essas
alterações proletarizaram o vaqueiro e romperam a engrenagem que dava sustentação às
representações sociais desses trabalhadores.
Dividir a terra e transformá-la em mercadoria foi a estratégia principal que garantiu ao
capital a disciplinarização da mão-de-obra e a elevação da produção, em síntese, o erguimento
da Região de Irecê sobre o Platô Norte Diamantino e espaços vizinhos. Essa estratégia
representou a inclusão da natureza nas instâncias burocráticas do Estado e a
institucionalização de uma forma única de propriedade para o solo e demais recursos: a forma
privada exclusiva. O arame farpado garantiu esse processo e consolidou sobre a estrutura
fundiária a separação de classes que se estruturava no meio social e produtivo. Ele garantiu a
proteção das lavouras e efetivou a separação entre trabalhadores e meio de produção.
Completando esse contexto, a ênfase sobre a agricultura comercial excluiu outras
formas econômicas de sobrevivência rural e deslegitimou outras formas de trabalho que não a
exploração direta do solo. Por meio desses mecanismos, o capital limitou e/ou eliminou a
prática da pecuária à solta, reduziu os rebanhos e condicionou a mão-de-obra das famílias ao
trabalho agrícola. Esses processos impuseram aos vaqueiros a necessidade de elaborar
estratégias que garantissem a continuidade do seu ofício.
Conhecemos trabalhadores que buscaram essa continuidade por meio do deslocamento
constante com os rebanhos em busca de novas áreas de campo. Alguns desistiram da função
temporariamente, por não aceitarem o trabalho em áreas cercadas, outros migraram para áreas
305
pecuárias distantes, como Goiás ou Minas Gerais, vivendo aí experiências diferenciadas de
trabalho. Existiram ainda aqueles que tentaram se manter realizando trabalhos esporádicos de
condução dos rebanhos para fora do Platô, ou cuidando dos pequenos rebanhos que
permaneciam em áreas cercadas.
Entre os entrevistados identificamos ainda alguns que organizaram em seus quintais
pequenos currais e até hoje cuidam de suas poucas vacas. Um deles se dedica a produzir
artesanato em couro como cordas e peças de trabalho para os vaqueiros de fazenda, outro
ainda hoje mantém um curral em plena área urbana. Há ainda os que aceitaram o
assalariamento e buscaram trabalho nas fazendas cercadas. O traço que une a história de vida
desses homens é o esforço contra o processo de marginalização social ao qual foram
submetidos, a partir da luta por se manterem próximos à prática que lhes dá sentido à vida: a
lida com o gado.
Em nosso exercício de ouvir esses trabalhadores, encontramos a vida cotidiana
como a dimensão da existência a partir da qual o homem sente e experimenta o mundo,
determinada por fatores internos e externos aos indivíduos. As experiências vivenciadas no
momento conflituoso de expansão das relações capitalistas sobre o Sertão de Irecê,
descortinam outras versões históricas que tanto negociam como questionam o texto oficial. As
versões históricas dos trabalhadores se fundamentam em outros modos de trabalho e de
tempo, outras relações de vizinhança, em sentidos diferentes para a terra, para as plantas, para
os animais, para o homem.
As narrativas orais não apresentam heróis, não se situam entre o bem e o mal,
apenas relatam o vivido entre o real e o desejo, entre o que foi e o que deveria ter sido. São
elas que nos mostram a importância do “saber” as artes do trato com o gado, de um terno de
couro bem vestido, de reconhecer um rastro, de laçar ou mesmo, a importância do grito do
vaqueiro. Suas referências espaciais estão ancoradas na lida diária do trabalho nos quintais, no
campo, nos currais, nas fazendas cercadas, nas roças, na feira livre, nas pequenas casas de
enchimento, no “o Morro do Calango”, “no Riacho do Ferreira”, “na capuêra”, “na
queimada”, “no Tanque Velho”. Lugares de lembranças que emergem sob formas narradoras
de outra história, com outros protagonistas, sem, contudo, deixar de reconhecer os benefícios
trazidos pela modernidade.
Delas não deixou de emergir a saudade da beira da aguada, dos amigos falecidos ou
dispersos pelo mundo devido ao cruel processo de cercamento das terras. Mas, também elas
306
nos mostraram as elaboradas “formas de suportar” o “estranho” no presente, as artes de
significar a memória por meio dos objetos e lugares. Dessa incursão orientada pela voz,
enquanto veículo da história do vivido, surgiram sujeitos de história, homens que buscaram
silenciosamente defender (e continuam defendendo) suas práticas e convicções de mundo a
partir das condições de sobrevivência que lhes estão disponíveis, em um momento de grandes
mudanças em suas relações de trabalho. O trato com essas narrativas e o os sentidos por elas
gestados, demonstram uma memória essencialmente coletiva e laboral, autônoma e resistente,
produto de uma manipulação intencional das lembranças. Nela se fazem presentes o hoje e o
ontem.
A memória dos vaqueiros do Sertão de Irecê ancora-se no trabalho com o gado no
campo como referência de liberdade, de autonomia, de coletividade e lazer, de saber e de
originalidade grupal. Ao se definirem, negam para si as condições atuais do “ser vaqueiro”
como o salário, o tempo cronológico, a ausência do lazer, a fazenda, a super exploração e a
ausência de prestígio social. Esse exercício de alteridade está em consonância com a produção
de uma leitura temporal recortada entre o “antigamente”, ou “de primêro”, e o “hoje em dia”.
O tempo passado é visto pelos entrevistados como momento original, moral e laboralmente
positivo. O “de premêro” é o tempo do respeito e da união entre os colegas e vizinhos, tempo
das relações comunitárias, tempo do campo, da ausência do medo e da violência, tempo da
juventude, tempo em que a natureza não tinha preço. É o tempo em que o viver no Sertão
oscila entre a fartura e a fome.
O tempo presente dos vaqueiros entrevistados se define como tempo das facilidades
materiais e de sobrevivência, da presença das máquinas, da aposentadoria, das facilidades de
transporte, da falta de respeito e da violência. É também o tempo deslegitimador (mas não
eliminador) do ser vaqueiro, devido a presença das fazendas cercadas e o fim do campo. O
trabalho nas fazendas não exige dos trabalhadores atuais o saber e a coragem de outrora,
facilitou a lida com os animais ao mesmo tempo em que sobrecarregou o trabalhador de
funções. O tempo presente é marcado pela saudade e pela chegada das limitações físicas,
embora não possamos atribuir às narrativas uma característica saudosista. Para a maior parte
dos vaqueiros, a expansão da agricultura comercial trouxe benefícios para a vida das
comunidades, como a abertura das estradas, o crescimento das cidades, a chegada dos
serviços médicos e educacionais.
307
O avanço da modernização conservadora eliminou o Sertão de Irecê como realidade
espacial vivenciada. A chegada das relações capitalistas substituiu o costume como referência
social de uso dos espaços por novas dinâmicas de base urbana e redefiniu o próprio espaço. O
Sertão, no entanto, teimosamente resiste nos fragmentos materiais e memoriais e seus antigos
habitantes, lugares de memória a partir dos quais ele se recria e se redesenha. O Sertão de
Irecê é hoje um resto material, simbólico e funcional, que explica o passado na medida em
que representa um fragmento dele, que bloqueia o trabalho natural do esquecimento,
construindo uma lembrança que remonta a um sentido não mais vivido em sua totalidade.
Esse sentido, como que lutando contra o tempo, marca presença nos pequenos espaços, nas
práticas, nos quintais, no artesanato, na oralidade, no uso comum das pequenas áreas ainda
não desmatadas, no zelo pelas antigas ferramentas de trabalho, no jaleco ou mesmo no chapéu
que teima em não sair do corpo.
308
Lista de Fontes
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Guilhermino Pereira da Silva – “Guilhermino” – Morador da cidade de João Dourado. 81 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência no dia 18 de agosto de 2011, totalizando 2h, 58min, 05seg.
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Jairo José Benício – “Benício” ou “Jairo Finim” – Morador da cidade de São Gabriel. 71 anos, vaqueiro. Entrevista concedida em sua residência no dia 07 de outubro de 2010, totalizando 1h, 29min, 56seg.
José da Silva Neto – “Zizinho” – Morador do povoado de Tanquinho, município de Lapão. 66 anos, vaqueiro, matador de boi, agricultor. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado em 13 de setembro de 2011; 2º momento realizado em 24 de setembro de 2011, totalizando 3h, 52min, 01seg.
José Estevão dos Santos – “Zé dos Morrinhos” – Morador da cidade de Jussara. 67 anos, vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado em 03 de novembro de 2010; 2º momento realizado em 24 de janeiro de 2012, totalizando 2h, 43min, 57seg.
Juarez José de Brito – “Véi Juarez” – Morador da cidade de São Gabriel. 73 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado em 09 de outubro de 2010; 2º momento realizado em 15 de outubro de 2010, totalizando 2h, 43min, 55seg.
Luiz Batista de Oliveira – “Luiz Vaqueiro” – Morador da cidade de Irecê. 61 anos, vaqueiro. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado em 07 de novembro de 2010; 2º momento realizado em 14 de novembro de 2010, totalizando 3h, 08min, 47seg.
Reinaldo Oliveira Santos – “Reinaldo de Lôro” – Morador do povoado de Lagoinha, município de Canarana. 67 anos, vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência no dia 07 de janeiro de 2012, totalizando 1h, 41min, 07seg.
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Samuel Juvêncio Rocha – “Samuel” – Morador da cidade de São Gabriel. 85 anos, aposentado. Entrevista concedida em sua residência no dia 20 de outubro de 2010, totalizando 49min, 50seg.
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Sinobilino Francisco Nunes – “Sinó” – Morador do povoado de Poço, município de Uibaí. 86 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência no dia 26 de agosto de 2011, totalizando 1h, 53min, 27seg.
Viana Batista de Oliveira – “Viana Vaqueiro” – Morador da cidade de Jussara. 75 anos, agricultor e criador, antigo vaqueiro. Entrevista concedida em sua residência no dia 10 de novembro de 2011, totalizando 1h, 19min, 35seg.
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VILLA, Marco Antônio. Vida e morte no sertão: história das secas no nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, Instituto Teotônio Vilela, 2000.
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Caderno de Fontes e Documentos Complementares
Romance Cara Preta Alvaçam e o Novilho da Serra773
Leitores leiam este caso E prestem bastante atenção É o caso de um touro bravo “Cara preta alvação” Que venderam para Viana Mas serviu de confusão No céu não tinha luar A noite era muito escura Foi quando apareceu Osvaldo Querendo pegar uma mula Que só pegava na bebida Ou então vaqueiro azula Então o dia amanhecendo Os vaqueiro se ajudaram Foram atrás de mulinha Logo perto entraram Mas correram o dia todo Por muita sorte pegaram Luis ficou na fazenda E os outro juntos viajaram Quando chegaram na manga Os vaqueiros combinaram Para pegar o “cara preta” Mas a ele não avisaram Quando o outro dia chegou Se ajudaram os vaqueiros Arrearam seus cavalos Tomaram pinga primeiro No arrojo da altiva 773 Escrito por: Luis Alves dos Santos. “O original deste romance foi escrito no dia 30 de Agosto de 1970, em Manga (povoado) de Irecê”. Reproduz-se aqui a versão digitada deste nome à qual tivemos acesso, acreditamos, no entanto, que exista uma cópia escrita original que pode apresentar alterações em alguns termos.
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Cavalo ficou ligeiro Seguiu o vaqueiro Adalberto Mais Manoel de Maria Osvaldo foi mais Almir Bem cheio de cana fria Silvério foi mais Viana Anízínho também ia Chegaram em Lagoa Nova Procuraram logo saber Então disseram :Vaqueiros, Tá duro de resolver Já tem mais de quinze dias Que ele aqui não vem beber Depois falou aos vaqueiros Vou dar minha opinião Vocês procuram os carreiros Da lagoa do João Se não passou por ali Tá bebendo é no grotão Seguiu toda a vaqueirama Com esta nova noticia Procuraram os carreiros Logo encontraram a pista Puxaram pelos cavalos Até que puseram a vista Almir botou o senteiro Com vontade de pegar Mas levou uma romada Que não pode enxergar Tirou o cavalo fora Deixou Viana passar Viana entrou calado Caboclo sem coração Deixando pau arrancado Entendido o touro de vista Montado em seu alazão
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Desceram de serra abaixo Em procura do baixo O cavalo encostado Empurrando o novio Passaram em lugares quentes E depois em outros frios No passar de um apertado O “cara preta” virou Viana tirou o cavalo O touro se acampou Esperava os companheiros Mais ninguém lhe acompanhou O vaqueiro aboiava Mas o touro acampava O novio dava cada tudo turro E depois se amoderava Porém ninguém chegava Nos versos do aboiador Ele aboiando dizia: “Na estrada em que eu viajo Também viaja Maria Deus menino e São José Santo Antônio é o meu guia” Entonce ficou pensando Tá na hora de matar Mas eu me acho sozinho Não convém me arriscar Deixo para outra vez Quando agente te encontrar Viana afastou o cavalo E ficou pensando ali: Eu não sei quem é que teve Com Osvaldo e Valmir Se não fosse uma atrapalha Estava comigo aqui
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Assim tirou o cavalo A procura de um carreiro Quando caminhou um pouco Entrou com os vaqueiros Que disseram: atrapalhamos Por que perdemos o aceiro E ficou assim combinado Deixando um dia no meio Vamos fazer outro campo Daqui até o riacho feio A gente entre entra pelo Recife Com os cachorros no reio Quando foi no dia marcado Entraram pelo Batista Procurando os carreiros Para fazer uma revista Rastejaram o dia todo Mais nunca botaram as vista Chegaram em Riacho feio Encontraram ali com Ramilo Com vinte e cinco cachorros Uma coisa sem estilo Ficando quinze no mato Que os vaqueiros não viram Ramilo mora sozinho Criação por lá na berra Mora dentro de uns cafundó Em um buquerão de serra Está com as pernas finas De cavar e não tirar terra E pode ficar lá mesmo Que ninguém vai por reparo Morando nos cafundó Sozinho este canáro No meio da cachorrada Galo lá nunca cântaro
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Ele estava zangado Com a cara da barra funda Disse: aqui hoje chegou Uma turma de vagabunda Eu não gosto de vaqueiro Que tem cantiga imunda Entramos em conversação Para o índio amassar Demos uma tora de fumo Que ele adora fumar Então ele veio as boas Fez café para nos tomar Depois disse: o “cara preta” Esta noite andou aqui Turrando pela malhada Turro igual eu nunca vi Eu pensei que era o cão Tive medo até de sair Almir disse a Viana: Amanhã nós vamos embora Deixa este marruá Que a gente pega outra hora Já tem muito gado preso Nós estamos com demora Viana disse: isso ai ta certo A gente não pode demorar Vamos arrumar a viagem Até amanhã não da pra ficar Vamos deixar, outra hora Nós pegamos o marruá Disseram vamos embora Enquanto os cavalos sara Vai ficando uns em Recife Viana vai pra Jussara Cuidar lá dos seus trabalhos Que hoje a vida é cara
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Almir mora em Recife E os outros moram por perto Tem um que chamam negão Mas o nome é Adalberto Osvaldo mora na Toca E o nego é no deserto Anizinho mora na ilha Silvério mora na manga Luís no pé de tábua Manoel Rocho na pandanga Por que no tange dos versos Meus colegas não se zanga Viana chegando em Jussara Convidou Luís, seu irmão Para lhe ajudar a pegar O “cara preta” alvaçam E Luís logo lhe respondeu: Não me falta imaginação Já na hora da viajem Viana tornou convidar Então Luís respondeu: Resolvi, não vou mais lá Quem pega peso é balança É quem pega marruá Viana seguiu sozinho Mas tem seu colegas certo Quando chegou no recife Convidou logo Adalberto Que mora no outro lado Na fazenda do deserto Adalberto disse a Viana: Eu já estava esperando Para mim já demorava Eu já estava avechado Arriou o seu cavalo E foram logo viajando
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Quando chegaram na Manga Convidaram então Silvério Mandaram chamar Luís Montado no amarelo Luís mandou lhe dizer: Lá na Salina eu espero Seguiu este pessoal Viana e os companheiros Uma turma de homens sério Somente quatro vaqueiros Todos eles bem montados Vestido em coro mateiro Chegaram num carrasco velho De umburana rasteira O “cara preta” espantou Que eles viram a poeira Botaram logo os cavalos Ficou só a bagaceira Correram no giro norte Depois deram pro nascente O “cara preta” alvançam Tá ficando diferente Todo pintado de sangue Da rabada até os dentes Deram uma volta por baixo Subiram para o poente O navio se vendo apertado Foi quebrando pau pela frente Os vaqueiros todos sãos Não tinha ninguém doente A farra tava era boa A gente até admirava Esperando correr bem mais Já o “cara preta” virava Dirigiu pro lado de Viana E com o punhal se encontrava
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Levou muitas punhaladas E ferido se retirou Viana falou pros outros: “Cara preta” admirou Tornou dizer: venha cá E o novio valente voltou Foi pro lado de Silvério Como onça verdadeira Baixou para pegar o cavalo Encontrou uma juremeira O boi saiu se torcendo Pra cima da catingueira “Cara preta” quando viu Os vaqueiros reunidos Reparou bem reparado Se Daniel tinha vindo Eu não estou vendo ele Mas pode estar escondido Os vaqueiros combinaram Não é bom a gente matar No meio desta montanha Fica ruim carregar Saltaram todos de vez E resolveram pegar Pegaram o “cara preta” Uns nos pés, outros nas mãos Uns na venta, outros no chifre Botaram o boi no chão Amarraram pelo pescoço E chegaram no mourão Cara preta amarrado Começou a lastimar Não tenho raiva de ninguém Por que não posso matar O culpado foi meu dono Que não soube me criar
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Estava um dia amarrado Lá pelas vargem do me Quando passou um gordão Disseram: é Danié! Se eu soubesse disso agora Tinha passado e pé Eu vivia as minhas mensagens Sem dever nada a ninguém Comendo no pé da serra Bebendo e passando bem E até mesmo a Daniel Eu não devo um vintém No meio da vacaria Quando eu saía por lá Ele vinha com silada Com jeito pra me pegar Como nunca dava certo, ele disse: Vou deixar meu marruá Nunca me tirou vingança Mais agora ele vinga Me tirando lá da serra Pra eu morrer lá na caatinga Sem ter feito malvadeza Até mesmo mulher me xinga Deve estar bem satisfeito Não precisa trabalhar Já vendeu o “cara preta” Vai acabar de enricar Por quem tem muito negócio Dinheiro pouco não dá Deixamos ele amarrado E fomos pro Riacho Feio Pegar outro touro bravo Que tinha naquele meio Que nunca viu um curral E nem conhecia reio
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Morava em cima da serra Sem conhecer benefício Confiado em ser valente Aí na lei de Maurício Vivendo na liberdade Sem toca e sem serviço Chegamos em Riacho Feio Dormimos para o outro dia Quando foi na madrugada O touro bravo bebia Nós ficamos avechados Que amanhecesse o dia Arriamos os cavalos Logo de manhã bem cedo Falando tudo baixinho No sistema de segredo Pro novio não espantar Se tivesse nos rochedo Seguimos acima, reunidos Nos carreiros procuramos Luís foi mais Adalberto Silvério e Viana andando No meio dum baixado O touro ia passando Viana correu na frente E nós corremos atrás Ele disse: Adalberto, Segue o pode rapaz! A caatinga aqui é dura. E o touro corre demais Botamos os cavalos neles Como botaram em Alfredo Os vaqueiros tudo animado Não ia ninguém com medo Quando o touro acampou Nós desmanchemos o enredo
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Deu pro lado de Viana Querendo fazer injustiça Mais encontrou um punhal Naquelas carnes maciça Do pescoço para o mamilo Que logo entrou sem preguiça Viana disse aos outros Cuida, pega o marruá As palavras nem foram ditas Já via a turma fechar Botaram ele no chão Trataram de amarrar Deixamos ele ali E fomos pro alvação Quando nós chegamos lá Estava feito um leão Andou lá uns vaqueirinhos Futucaram de ferro Mas nós dissemos nada Atendendo a educação Considerando aos pais E a alguns dos irmãos E onde tem homem sério Deve ter mais atenção Assim mesmo arriamos De carreta e cambão Tiramos o laço dele Com as guiada na mão Cara preta foi a manga Rebocado no ferrão Passamos ali um dia Demos lá pro pé da serra Buscar outro barbatão Para acabar com a guerra Enquanto não aparece Outro bravo na terra
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Quando nós chegamos lá O novilho estava deitado Nós todos opiniamos O bicho está enfezado Mais não senhor, foi engano Ele estava acomodado Arriamos o novilho De careta e chocalho E ficamos preparados Para ver o desbandalho Os vaqueiros todos alegres Como jandaia no galho Soltamos o barbatão E botamos no aceiro Ele fez uma furinha Mais depois saiu ligeiro Só nos deu muito trabalho Nas entradas dos carreiro O romance é popular Por favor ninguém reclama O novilho derradeiro Era do se André Gama Assim trata quem conhece E é dever, ninguém reclama Resolvemos este campo Com poderes de Jesus Cristo O homem quando resolve Acostuma fazer isto Fizeram muita anarquia Que eu mesmo não tinha visto Demos por resolvido Viana e os companheiros Com os poderes de Jesus Cristo O bom Jesus verdadeiro Saimos todos em paz Esta turma de vaqueiros
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Leitores vão desculpando Se algum erro encontrar Que eu sou muito ocupado Não tenho tempo de estudar Mais conheço bem assim E agora vou terminar Deixando aqui o meu nome De falar ninguém me priva Por que no tanger dos versos A minha memória é viva Mais embaixo está assentado É Luis Alves da Silva.
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Toada Casa Velha774 Êê êi! Ôôô Ôôô! Ôôô Ôôô! (vocalização) Saudade! Abraço o gado! Ôô boi! Êêê! Ô gado! Ôôô! E, já! Voltei pra rever uma casa Que fui nascido e criado Nada vi do que dexei Tava tudo transformado Chorei buscando a lembrança E as emoções do passado Ôô vida de gado! Ôô! Também chorei maguado Vendo a casinha singela Nem meu pai, nem meus irmão Moravam mais dento dela É triste entrar ne’uma casa Sem ninguém morando nela Ôô vida de gado! Ôôi! Senti um chêro de vela Quando eu cruzei o batente Vi um oratório sem santo E as flores mucha na frente Às vez querendo dizer Que aqui não mora mais gente Ôô vida de gado! Ôôi! Achei o taco (pedaço) do pente Que mamãe se pentiava Vi o rusário e a santa E altar qu’ela rezava Chorei perguntando a santa Se mamãe inda voltava 774 Recitado pelo vaqueiro Antônio Correia Araújo, popular Licuri, durante a entrevista.
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Ôô vida de gado! Ôôi! Na parede ainda estava A marca do paio (paiol) do milho E o lugar do pote velho E o forno de assar setilho E o papêro que mãe Fazia o mingau do filho Ôô vida de gado! Ôôi! Vi um ispêio (espelho) sem brilho E os pano velho na mala E um retrato disbotado Fui oiar (olhar) perdi a fala Gritei ninguém respondeu Voltei chorando pra sala Ôô vida de gado! Ôôi! Ôôô! Ôô Ôô! Ainda vi a bengala E um pedaço do sapato E o cupim rueno o resto Da muldura de um retrato Parei pra pensar comigo O quanto o tempo é ingrado Parei pra pensar comigo O quanto o tempo é ingrado Vida de gado! Ôô Ôôêê! Uh! Chá!
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Propaganda produzida pela SUDENE
Fonte: SUDENE. Sudene informa. Recife – PE: Indústria Gráfica de Recife, v. 14, n. 1, jan/mar., 1976, p. 17.
344
Revista ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros
Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, p. 11.
345
Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, p. 5.
346
Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, p. 7.
347
Maciço do Feijão
Fonte: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONOMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Evolução territorial e administrativa do Estado da Bahia: um breve histórico. Salvador: SEI, 2003, p. 15 (Série Estudos e Pesquisas, nº 56).
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Imagens utilizadas durante a realização das entrevistas
IMAGEM 1
Seu Grande, vaqueiro, s/d. Uibaí, Ba. Fonte: ROCHA, Osvaldo de Alencar; MACHADO, Edimário Oliveira. Canabrava do Gonçalo: uma vila do Baixo Médio São Francisco. Brasília: Ed. do Autor, 1988.
349
IMAGEM 2
Fonte: Revista Brasileira de Geografia, Abril-Junho 1941, v. 3 n.2 p. 433.
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Ficha de dados básicos dos entrevistados
Entrevistado: ___________________________________________________
Nome popular do entrevistado:_____________________________________
Idade:_____________________Estado Civil: _________________________
Números de filhos: ________________________________
Quantos residem com ele? __________________________
Início da profissão de vaqueiro:______________________
Ainda trabalha como vaqueiro? _____________________
Rendas atuais:___________________________________
Outras profissões:
________________________ano___________
________________________ano___________
Escolaridade: _____________________________________________________________
Local de origem: __________________________________________________________
Endereço atual: ___________________________________________________________
Telefone: ________________________________________________________________
A quanto tempo mora nesse endereço?: _________________________________________
Já morou em outros lugares (cidades, povoados, fazendas)?
_______________________________________________de __________até __________
________________________________________________de__________até___________
Participação social do entrevistado com a comunidade: (trabalhos realizados com a comunidade, festejos, eventos, etc.)
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
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Roteiro de entrevistas
MOMENTO 1
Ser vaqueiro
1 – O senhor pode me falar um pouco sobre sua profissão?
Como assim? Importância dada a profissão
2 – Para o senhor o que significa ser um vaqueiro?
Trajetória
3- Como o senhor começou o trabalho de vaqueiro?
Quando? Onde?
4 – O senhor já trabalhou em outros “serviços” além de vaqueiro?
Quais? Quando? Onde? Já possuiu (possui) ou cultivou (cultiva) terra? O que acha do trabalho na roça?
Procedimento inicial: Esclarecimento e assinatura do TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Objetivo – Compreender os elementos (simbólicos, temáticos e materiais) significadores do cotidiano dos trabalhadores vaqueiros.
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Espaço e Costume
5- Como era a vida das pessoas antigamente aqui na Região de Irecê? (Caso necessário usar referência local)
Formas de vida e trabalho (trabalhos comuns, relações de vizinhança e parentesco) Uso das terras e da caatinga Criação do gado e geografia social Importância do campo para o vaqueiro Até onde ia o campo?
Trabalho, campo e cotidiano
6- E sobre o trabalho do vaqueiro?
Ferramentas de trabalho (o gibão, o cavalo, o ferrão, o cachorro, etc) Horários de trabalho Formas de trabalho (funcionário, aluguel de mão de obra, trabalho “por conta”, etc) Patrões x empregados: autonomias e obrigações Serviços realizados e obstáculos do dia-a-dia Migração com rebanhos (novos locais de moradia, montagem do curral, da casa,
alimentação) As “ciências” do vaqueiro na “pega do boi” Bois valentes (biografia de vaqueiros e bois) As ferras: o momento do trabalho Doenças nos animais (práticas de cura) Alimentação “Seres” do mato (imaginário) Exemplos ou histórias de “pegas de boi” ou transporte de boiadas Trabalhos individuais e coletivos dos vaqueiros: relações de solidariedade As farras
7 – E o pagamento?
Formas de pagamento (a “sorte”, o salário): diferenças e vantagens As ferras: o processo de “pagamento” Registros dos animais nascidos Mudanças nas formas de pagamento
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Tempo da memória
8 - O que o senhor sente quando lembra do tempo em que trabalhava no campo ?
Saudades Lembranças marcantes
MOMENTO 2
“Campos”: sinais do fim
Sinais do fim do campo
1 - O senhor pode me falar um pouco mais sobre o campo? (retomar características centrais do tema “campo” para aprofundamento no decorrer da conversa)
Existem campos hoje?
2 – Por que o campo acabou/diminuiu?
3- Como o senhor sabia que o campo estava acabando?
Estratégias de permanência: como os vaqueiros faziam para continuar trabalhando no campo?
Os primeiros sinais de instalação de uma fazenda ou área de cultivo Exemplos de fazendas instaladas em antigas áreas de pastoreio na região O acesso a água para os rebanhos com a chegada das fazendas ou áreas de cultivo Quem se beneficiava com o fim dos campos? As cercas de arame farpado e o trabalho do vaqueiro
O território dos campos: práticas da sobrevivência
4- Como ficou o vaqueiro sem o campo?
Formas de sobrevivência e outros trabalhos
Objetivo: Compreender as formas de uso dos campos pelos trabalhadores, as relações de disputa entre os vaqueiros e os agentes da modernização rural em torno dos territórios dos campos e os reflexos dessas disputas sobre as formas “costumeiras” de vida e trabalho em torno da pecuária.
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Como permanecer como vaqueiro apesar do fim dos campos? O fim dos campos trouxe algum benefício para os vaqueiros? Anos finais do campo
5 - Como os vaqueiros faziam para continuar cuidando do gado mesmo com a diminuição dos campos?
Estratégias
6 - E o gado foi levado pra onde?
Locais e formas de deslocamento dos rebanhos e dos trabalhadores Levavam as famílias?
7- Como o senhor sabia que era hora de mudar o rebanho?
Como o senhor fazia para sair de um lugar para outro? Como sabia os melhores lugares para onde levar o gado?
Os “novos agentes”
8 - O que o senhor lembra sobre os gaúchos775?
9- E o banco?
Os empréstimos O senhor pegou empréstimo? Tinha empréstimo para criação de gado? O que o senhor plantou? Como pagou? Contato do Banco com as comunidades (reuniões, informações sobre a venda ou
necessidade de registrar as propriedades, etc) A EBDA – Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola: função e controle técnico O “incramento” e a prática de registro das propriedades: processo e sentido Fim dos empréstimos. Por que? Tipos de produção
10- E depois do “incramento” das terras, como é que se fazia para poder botar uma roça?
775 Se refere a grupos familiares e empresariais, especialmente, das regiões Sul e Sudeste do Brasil, que migraram para Região de Irecê no período de modernização do campo, adquiriram terras, geralmente grandes áreas, ou integraram a malha comercial. Algumas famílias permaneceram na região após o auge do feijão, outras retornaram para seus lugares de origem ou migraram para outras regiões.
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Posse x propriedade Quem ficou com as grandes áreas ? Quem ficou com as pequenas áreas?
11- Os “gaúchos” conversavam com as pessoas para saber se alguém trabalhava numa área antes de comprar as terras?
O convívio entre as comunidades locais e os “gaúchos” Exemplo de algum conflito sobre desocupação de terra
12- O que mudou na região de Irecê depois dos empréstimos do banco?
Na vida dos agricultores locais e das comunidades. Sobreviver na/da roça hoje. Endividamento
13- O que o senhor fez depois que acabou os campos?
Ser vaqueiro hoje
14- O que o senhor acha de ser um vaqueiro hoje em dia?
15 - Existe diferença entre vaqueiros de campo e os vaqueiros de hoje em dia (vaqueiro de fazenda cercada)? Qual?
16- O senhor acha que os vaqueiros “vão se acabar” um dia?
O vaqueiro está sendo esquecido? Como assim? O que é preciso fazer para que o vaqueiro não seja esquecido?
17- O que o senhor sente hoje sabendo que trabalhou tantos anos como vaqueiro?
Finalização da entrevista Esclarecimentos sobre o processo pós-transcrição – Termo de Doação Agradecimentos
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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezado Senhor ______________________________________________________
O senhor está sendo convidado a participar, como entrevistado, do projeto O que farpa
o boi, farpa o homem: campo das memórias dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985),
coordenado pelo pesquisador Alécio Gama dos Reis e desenvolvido no Programa de Pós-
Graduação em História Mestrado do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da UEFS
– Universidade Estadual de Feira de Santana.
O projeto tem a intenção de entrevistar 20 (vinte) vaqueiros da Região de Irecê, com
idade superior a 50 (cinqüenta) anos. A partir dessas entrevistas buscaremos estudar as
experiências vividas por esses vaqueiros durante o processo de finalização do campo
(derrubada da caatinga para plantio), entre os anos de 1943 e 1985, período de grandes
mudanças na forma “antiga” de lida com o gado. Acreditamos que ao fim da pesquisa
poderemos ajudar a esclarecer as práticas, estratégias e sentidos produzidos por esses
trabalhadores na luta diária pela manutenção do seu modo de trabalho, assim como as
memórias desse grupo social sobre esse momento histórico.
A participação nesse projeto é voluntária e não está condicionada a nenhuma espécie
de retorno financeiro ou material. O objetivo maior dele é valorizar as formas de vida e
trabalho, experiências e práticas dos vaqueiros da Região de Irecê e registrá-las em uma obra
(dissertação) para que possam ser conhecidas por outras pessoas. Caso sinta-se a vontade
para conosco, o senhor poderá marcar os dias, locais e horários para a realização da entrevista,
podendo estes ser alterados a qualquer momento de acordo com as suas necessidades. A
entrevista é desenvolvida em forma de conversa, com questões abertas baseadas em temas
que tenham a ver com a forma de trabalho e de vida dos vaqueiros, com a pecuária e os
campos. Desta forma, é importante destacarmos que a entrevista não tem o objetivo de
357
analisar se existem respostas “verdadeiras” ou “não verdadeiras”, buscamos apenas ouvir
do senhor o que tem a nos dizer sobre os temas acima. Caso necessário a conversa pode ser
realizada em um ou mais momentos. Caso o senhor nos autorize, por meio da assinatura da
Autorização para gravação de entrevista, o seu relato será gravado e transcrito (escrito no
papel da forma como foi gravada), em seguida, o texto (transcrição) e a gravação serão
apresentados ao senhor para que verifique se o documento escrito está de acordo com a
gravação.
Em todo e qualquer momento da pesquisa poderá o senhor:
1) solicitar esclarecimentos sobre a forma como serão feitas as entrevistas, usos e
paradeiros de depoimentos, objetivos, período de desenvolvimento da pesquisa ou quaisquer
outros fatores não tenha dúvidas.
2) recusar-se a participar, retirar ou incluir partes, dados ou informações; solicitar
correções, refazer trechos ou retirar seu consentimento de uso dos depoimentos; proibir ou
autorizar a publicação de todo o texto ou partes dele.
Para que isso aconteça basta sua manifestação, sem penalização ou prejuízo algum
para o senhor. Somente após a sua permissão, a partir da assinatura do Termo de Doação, os
depoimentos ou trechos dos depoimentos, poderão ser colocados em publicações, artigos, no
texto parcial ou final da dissertação.
As entrevistas gravadas, as transcrições, termos, autorizações e fichas produzidas no
decorrer dos trabalhos e análise de seu depoimento, serão guardados conosco pelo período de
10 (dez) anos (contados a partir da dada da realização da entrevista) e considerados de caráter
sigiloso. A partir desse período essa documentação poderá, desde que autorizada pelo senhor,
ser transferidas ou doada para alguma instituição cultural ou de pesquisa
(museu/arquivo/fundação) que se interesse, aceite e se responsabilize pela conservação dos
registros. Caso isso não ocorra, os documentos referidos permanecerão sobre a nossa guarda
por tempo indeterminado. Enquanto estiverem sobre nossa responsabilidade, o acesso às
gravações, transcrições, termos, relatos, autorizações e fichas, assim como seu uso (exposição
de trechos, citações, referências de qualquer natureza) em ensaios, textos, artigos, folhetos,
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TCCs – Trabalhos de Conclusão de Curso – ou monografias, será restrito a pesquisadores
acadêmicos, devidamente identificados. Para esse acesso estes pesquisadores deverão nos
apresentar por escrito seus interesses, objetivos e formas de trabalho com a documentação
acima citada.
Em todos os casos, garantimos que em nenhum momento (durante ou após a
pesquisa), texto ou produção serão expostos seus dados pessoais ou nomes, a menos que seja
da sua vontade. Quando necessário, optaremos por usar nomes inventados nos textos e artigos
produzidos. Desta forma, acreditamos estar reforçando a segurança dos dados e das
informações prestadas pelo senhor.
No entanto, apesar destes cuidados, não excluímos o risco de que pessoas, entidades
ou instituições, por meio de roubo, furto, fraude de informações ou invasão dos espaços
privados alheios, se apossem integralmente ou de partes das entrevistas gravadas ou
transcritas, das fichas, termos ou autorizações e tentem usá-los de forma indevida com a
finalidade de causar danos de diferentes naturezas, retaliações, acusações, calúnias ou outros
prejuízos contra pessoas ou instituições mencionadas nos seus depoimentos, inclusive o
senhor. Vindo a ocorrer qualquer das situações acima, nos comprometemos e nos colocamos
a disposição para fornecer todas as informações (escritas ou orais) e/ou documentos que
ajudem no esclarecimento dos fatos e na preservação da privacidade, honra e imagem do
senhor e de seus familiares, inclusive judicialmente, caso necessário.
É possível ainda que durante a realização da (s) entrevista (s) algumas questões ou
temas venham a produzir situações como constrangimento ou lembranças ruins, ou ainda que
sensações como saudade, choro, tristeza ou recordações surjam involuntariamente, ou seja,
sem que tenham sido planejadas. De qualquer forma, nos comprometemos em usar o bom
senso e o respeito às decisões e solicitações do senhor, ouvir/registrar o que o senhor se sentir
a vontade para nos falar. Os temas ou questões não adequadas, ou que vierem a produzir
sensações desagradáveis, poderão ser retirados a qualquer momento.
Tendo apresentado todas essas esclarecimentos, acreditamos que o projeto O que farpa
o boi farpa o homem ajuda a valorizar a história e o trabalho dos vaqueiros, não só da região
de Irecê, mas de todo o Nordeste. É por isso que convidamos o senhor para participar desse
projeto na condição de entrevistado. Seu depoimento nos ajudará a registrar, a conhecer e a
359
escrever uma obra histórica (dissertação) sobre um momento da vida e o trabalho dos
vaqueiros, que servirá de base para outras pesquisas e para o próprio uso por parte de sua
comunidade. Sua participação permitirá que as memórias e experiências desses trabalhadores
não sejam esquecidas e que possam ser conhecidas por outras pessoas futuramente, gerando,
por fim, um reconhecimento da importância dos vaqueiros para a Região de Irecê.
Se o senhor se sente esclarecido quanto aos procedimentos, objetivos, riscos e
benefícios que podem trazer sua participação nessa pesquisa, e concorda em participar a partir
do fornecimento do seu relato, por favor, se identifique no local abaixo reservado. Para maior
segurança este documento será assinado em duas vias, uma das quais ficará sob sua posse.
Por fim, nos comprometemos em dar ao senhor um exemplar da dissertação em versão final.
_________________________ ______/______/_______
____________________________ ______________________________
Identificação do entrevistado Identificação do pesquisador responsável
Informações para contato com o pesquisador:
Pesquisador responsável: _____________________________________________
Endereço Residencial: ________________________________________________
Endereço no campo de pesquisa: _______________________________________
Telefones para contato: _________________________________________________
E-mail: ______________________________________________________________
360
TERMO DE DOAÇÃO DE GRAVAÇÃO (ÕES)
Pelo presente termo eu, ___________________________________________________, dôo
ao pesquisador Alécio Gama dos Reis, responsável pelo projeto de pesquisa O que farpa o
boi, farpa o homem: campo das memórias dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985),
estudante do curso de mestrado História do Programa de Pós-Graduação da UEFS, do
Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, a(s) gravação(ões) produzida(s) a partir
do(s) depoimento(s) feito(s) por mim no(s) dia(s)
_______________________________________em ________________________________
com duração de ________________________________________________, para que possa
ser transcrito e utilizado pelo pesquisador acima referido na elaboração da sua dissertação
de mestrado. Tenho ciência de que as informações por mim prestadas poderão ser incluídas,
excluídas, usadas integralmente ou em partes em produções escritas (textos, artigos,
dissertação) publicadas ou não, ou citadas oralmente em congressos, seminários ou quaisquer
outros eventos que o referido pesquisador venha a participar, resguardadas identificações
(nomes) e dados pessoais. Estou ciente ainda de que todos os documentos produzidos serão
arquivados sobre a responsabilidade do pesquisador Alécio Gama dos Reis e mantido à
disposição de outros estudiosos acadêmicos interessados no estudo da pecuária, da vida e do
trabalho dos vaqueiros dos sertões nordestinos, desde que devidamente identificados seus
interesses, objetivos e formas de trabalho com a documentação. Conheço o conteúdo do
referido documento e confirmo sua fidelidade ao depoimento que concedi.
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Identificação do entrevistado.
361
AUTORIZAÇÃO PARA GRAVAÇÃO DE ENTREVISTA(S)
Pelo presente documento, eu, _______________________________________________
autorizo o pesquisador Alécio Gama dos Reis, a gravar a(s) entrevista(s) que por mim
será(ão) concedida(s) e integrá-la(s) ao projeto O que farpa o boi farpa o homem: campo das
memórias dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985), do qual participo na condição de
depoente voluntário.
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Identificação
362
AUTORIZAÇÃO DE IDENTIFICAÇÃO
Pelo presente documento, eu, _______________________________________________,
participante voluntário do projeto O que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias
dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985), de responsabilidade do pesquisador Alécio
Gama dos Reis, autorizo o mesmo a IDENTIFICAR a(s) entrevista(s) por mim concedida(s),
ou trechos desta(s) com meus dados, inclusive nome jurídico, social ou apelido e a
PUBLICA-LOS, sempre que necessário, em sua dissertação, artigos, seminários ou
congêneres. Estou ciente de que estes dados serão de acesso e reprodução livre, desde que
citada a fonte.
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Identificação
363
Alguns dos vaqueiros entrevistados
Almir Vaqueiro Guilhermino
Jairo Fininho Luiz Vaqueiro
Reinaldo de Lôro Véi Juarez
364
Reinaldo de Zé Pedro Roxinho Vaqueiro
Zé dos Morrinhos Zizinho