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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA Centro Regional do Porto Escola das Artes CENTRO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO II Jornadas Arte e Ciência 28 e 29 de Maio de 2004 R. Diogo Botelho, 1327 4169-005 Porto - Portugal Tel. 226196240 Fax 226196244 E-mail: [email protected] O restauro dos frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina. A técnica e a pintura de Miguel Ângelo. Gianluigi Colalucci A Capela Sistina, construída por vontade do Papa Sisto IV Della Rovere, sobre um dos flancos da colina do Vaticano, foi erigida aproveitando os alicerces de uma capela medieval demolida, dita Capela Magna. Desafortunadamente, os velhos alicerces revelaram-se inadequados para suster o grande peso do novo edifício – os muros têm três metros de espessura – razão pela qual o assentamento dos alicerces e a instabilidade do terreno produziram, desde cedo, preocupantes danos nas paredes e em redor da capela, que naquele tempo era ainda decorada com um simples céu estrelado, da autoria de Pier Matteo d’Amelia. Depois de vários sinais alarmantes e após o desabamento do muro e da arquitrave do portal de acesso, que na noite de Natal de 1522 ruiu sobre o cortejo papal, causando a morte a um guarda que estava ao lado do Papa Adriano VI, foram feitos os trabalhos de recuperação necessários que consistiram na colocação de doze “cadeias” em cima da abóbada e na zona dos alicerces. Em 1504, quando parecia que a capela se encontrava estabilizada, o Papa Júlio II fez abater o céu estrelado da abóbada e convenceu – ou obrigou – Miguel Ângelo a pintar a obra que conhecemos, a qual foi executada entre 1508 e 1512. Porém, o problema estático não estava ainda resolvido, por isso também após o trabalho de Miguel Ângelo os muros e a pesada abóbada da Capela continuaram a danificar-se seriamente. Mas a abóbada, que é em arco abatido, não era feita de tijolos, mas tinha sido construída com o sistema romano de abóbada de berço ou então mediante a fundição de uma massa de cal e posolana e blocos de tufo

O Restauro dos Frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina

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A Capela Sistina, construída por vontade do Papa Sisto IV Della Rovere, sobre um dos flancos da colina do Vaticano, foi erigida aproveitando os alicerces de uma capela medieval demolida, dita Capela Magna.

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28 e 29 de Maio de 2004

R. Diogo Botelho, 1327 4169-005 Porto - Portugal Tel. 226196240 Fax 226196244 E-mail: [email protected]

O restauro dos frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina.

A técnica e a pintura de Miguel Ângelo.

Gianluigi Colalucci

A Capela Sistina, construída por vontade do Papa Sisto IV Della Rovere, sobre um dos

flancos da colina do Vaticano, foi erigida aproveitando os alicerces de uma capela medieval

demolida, dita Capela Magna. Desafortunadamente, os velhos alicerces revelaram-se

inadequados para suster o grande peso do novo edifício – os muros têm três metros de

espessura – razão pela qual o assentamento dos alicerces e a instabilidade do terreno

produziram, desde cedo, preocupantes danos nas paredes e em redor da capela, que

naquele tempo era ainda decorada com um simples céu estrelado, da autoria de Pier Matteo

d’Amelia.

Depois de vários sinais alarmantes e após o desabamento do muro e da arquitrave do portal

de acesso, que na noite de Natal de 1522 ruiu sobre o cortejo papal, causando a morte a um

guarda que estava ao lado do Papa Adriano VI, foram feitos os trabalhos de recuperação

necessários que consistiram na colocação de doze “cadeias” em cima da abóbada e na zona

dos alicerces.

Em 1504, quando parecia que a capela se encontrava estabilizada, o Papa Júlio II fez abater

o céu estrelado da abóbada e convenceu – ou obrigou – Miguel Ângelo a pintar a obra que

conhecemos, a qual foi executada entre 1508 e 1512. Porém, o problema estático não estava

ainda resolvido, por isso também após o trabalho de Miguel Ângelo os muros e a pesada

abóbada da Capela continuaram a danificar-se seriamente. Mas a abóbada, que é em arco

abatido, não era feita de tijolos, mas tinha sido construída com o sistema romano de abóbada

de berço ou então mediante a fundição de uma massa de cal e posolana e blocos de tufo

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sobre um suporte de madeira provisória, cuja densidade e espessura – 80 centímetros “al

cervello” – impediram o desabamento.

Devido à progressão dos danos, por volta de 1564 e até ao ano de 1569, os arquitectos Pirro

Ligorio e Vignola construíram três robustíssimos contrafortes adossados à Capela, que

finalmente lhe restituíram estabilidade estática.

Devido ao facto dos danos da abóbada terem prejudicado também os frescos de Miguel

Ângelo, foi entregue o encargo do restauro ao pintor Domenico Carnevali, o qual refez, a

fresco, duas figuras que tinham sido perdidas na cena do sacrifício de Noé, uma pequena

parte da mão de Adão, na cena da criação do homem, a mão de Deus Pai na cena da

separação da terra das águas, uma parte da nuca do Profeta Jeremias e a figura do jovem

que se encontra nas suas costas, não só, mas também duas figuras da vela representando a

“Punição de Haman”, e outras partes menores.

Mas os danos mais visíveis, e que se agravariam ao longo do tempo, eram devidos às

infiltrações de águas pluviais provenientes do tecto, que davam logo origem à formação de

grandes eflorescências salinas brancas, e à enorme quantidade de fumo de velas, tochas e

braseiros, que subia continuamente até à abóbada, e ao longo das paredes da Capela. Estes

danos levaram aos muitos restauros com os quais se tentava esconder ou disfarçar as

aborrecidas manchas brancas. A operação acontecia estendendo sobre os frescos várias

demãos de cola animal muito diluída. Com o debilitar das cores e do modelado e com a

contínua formação de eflorescências salinas, tornava-se necessário para os restauradores

repintar as sombras negras dos panejamentos e as sombras nas costas das figuras. Daqui a

progressiva perda da memória das cores originais e a aquisição por parte dos frescos

daquelas carnações castanho-escuras, repletas de manchas que ainda se vêem nas velhas

fotografias.

Também o Juízo Final tinha já muitos danos: alguns causados pelas escadas usadas para

montar o baldaquino sobre o altar, e outros do fumo gorduroso das velas e do pó que tinham

feito as cores escurecerem, tanto até ao ponto de fazer desaparecer quase por completo a

vivaça policromia. Precisamente devido à abundante acumulação de fuligem, o Juízo Final

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tinha sido objecto de muitas tentativas antigas de limpeza que, regularmente não bem

sucedidas, e se concluíam com um previsível “sujar” artificial da secção limpa.

O Juízo Universal, inaugurado a 31 de Outubro de 1542, criou logo nos contemporâneos

sentimentos contrastantes. Ele foi inclusive definido “pintura das mil heresias”, e por isto

inserido pelo Concílio de Trento – terminado em 1564 – entre as 33 pinturas que deviam ser

imediatamente “corrigidas”. Assim que morreu Miguel Ângelo, a 18 de Fevereiro desse

mesmo ano de 1564, Daniele da Volterra foi encarregue de pintar panejamentos que

cobrissem as partes das figuras consideradas obscenas. Pela morte de Daniele, a operação

foi continuada por Girolamo da Fano e depois por Carnevali. O enfurecimento censório foi

retomado também nas centúrias de setecentos e oitocentos. No total, as figuras cobertas

foram quarenta e duas. Os drapejados censórios eram pintados a têmpera, à excepção do

grupo formado por S. Brás e Santa Catarina, que foi refeito a fresco. A cópia do Juízo Final

pintada por Venusti quatro anos mais tarde, antes da intervenção censória, para o Cardeal

Farnese – hoje em Nápoles, no Museu di Capodimonte – mostra-nos como apareciam as

figuras antes de serem censuradas.

Para pôr fim aos problemas de conservação, em 1980 a Direcção dos Museus do Vaticano

decidiu intervir, pelo qual, depois de estudos e investigações científicas preliminares, a equipa

do Laboratório de Restauro de Pinturas dos Museus do Vaticano elaborou uma metodologia

de limpeza para a abóbada e para o Juízo Final e executou o restauro, terminado este a 8 de

Abril de 1994.

As censuras do Juízo Final foram em parte removidas, conservando apenas aquelas do

século XVI, pois são consideradas históricas enquanto legado de um momento

particularmente importante para a Igreja: a Contra Reforma e o Concílio de Trento; por sua

vez, não foram consideradas históricas as censuras das centúrias de setecentos e oitocentos,

razão pela qual foram extraídas.

Para manter os frescos em boas condições, o ambiente interno da Capela foi climatizado, por

isso a temperatura é mantida constantemente entre os 18 e 25º C, a humidade relativa entre

os 50 e 60% e os 10.000 metros cúbicos de volume de ar contidos na Capela são mudados

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com uma regularidade de uma hora e quarenta minutos, com novo ar filtrado, privado de

substâncias ou gases poluentes.

A limpeza dos frescos da Capela Sistina permitiu trazer à luz a verdadeira cor da obra-prima

de Miguel Ângelo e ao mesmo tempo constituiu um momento excepcional do estudo desta

obra, que durante o decorrer dos séculos tinha rápidas modificações graves na singularíssima

policromia.

A redescoberta da cor representa seguramente a mais evidente novidade produzida pela

limpeza dos frescos da Capela Sistina, todavia, existem nestas pinturas outros aspectos

menos óbvios, mais distantes, que se propõem a um estudo atento e reflectido.

Miguel Ângelo exprime-se em pintura com a linguagem própria desta arte que é feita de forma

e cor, mas reúne à sua expressividade também uma estrutura matérica quase imperceptível,

funcional à imagem, obtida através de uma grande variedade de pinceladas e tratamentos de

cor.

A pintura de Miguel Ângelo nasce de um projecto de grande calibre estudado em cada

pormenor, até à escolha das várias qualidades e elaborações de rebocos em função da

opacidade cromática e do aspecto superficial: liso, vidrado ou ligeiramente texturado.

Também o ductus das pinceladas, as quais mencionamos anteriormente, apresenta uma

ampla gama de variadas tensões para alcançar os efeitos espaciais e volumétricos previstos

na composição.

É então a razão pura, unida a um excepcional senso de arte, que caracteriza a obra de

Miguel Ângelo. Ele, de facto, transfere para a pintura a sua sensibilidade volumétrica

tridimensional de escultor e a racionalidade de arquitecto e seria um erro procurar nele algo

de instintivo e alegre que podemos encontrar por exemplo em Rafael ou em Ticiano, para

citar apenas dois nomes de artistas seus contemporâneos, os quais na pintura transferem

aquela forma e aquela carga colorística, fascinante e cativante, própria de quem nasce pintor

e que faz pintura no preciso momento em que toca um pincel.

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Ver a mão do escultor na obra pictórica de Miguel Ângelo, hoje que o descobrimos forte

colorista, pareceria uma insuportável banalidade, mas a proposta nasce não já do velho lugar

comum consequente da artificiosa monocromia da abóbada e do Juízo Final, mas sim da

nova leitura da recuperada policromia original, a qual explica as diversas razões que levam a

uma conclusão igual àquela formulada no passado.

Miguel Ângelo tem em conta os efeitos ópticos ligados tanto à colocação das figuras sozinhas

no espaço em relação à maior ou menor distância hipotética da imagem do olho de quem vê,

quanto ao volume de cada figura.

Quando a abóbada era muito escura e quase privada de policromia, a composição regia-se

exclusivamente pelo desenho e por aquele claro-escuro criado pelos repintes das sombras,

executados nos séculos XVIII e XIX. Hoje descobrimos que, pelo contrário, Miguel Ângelo

confiou estes efeitos principalmente a três procedimentos pictóricos, dois deles baseados no

uso particular da pincelada e a terceira na calibrada justaposição da cor.

Na complexa pintura de Miguel Ângelo, são particularmente interessantes os recursos

práticos adoptados para criar em quem olha a ilusão de ver figuras fortemente

tridimensionais, dispostas em várias distâncias no espaço.

Partindo do princípio que quanto mais um objecto é próximo ao olho, mais se lhe

percepcionam os pormenores, Miguel Ângelo pinta as figuras dos profetas, das sibilas e os

jovens nus com nitidez de imagem, a pinceladas estreitas e esbatidas e com pormenores

trabalhados, de modo a resultarem mais próximos a quem observa, sendo eles colocados no

interior da grande aula, ao contrário das figuras das cenas centrais com a história da criação,

que devendo parecer mais longínquas, pairando mais longe no espaço físico da abóbada,

foram pintadas com uma trama de pinceladas largas, de modo a esfumar os detalhes dos

rostos e dos panejamentos.

Também no Juízo Final Miguel Ângelo adopta o mesmo método mas com variantes e com

alguma novidade absoluta, como no grupo de Cristo Juiz e da Virgem, onde o rosto e todo o

corpo de Cristo são pintados com uma força e uma nitidez de detalhes adequada a uma

figura que está no centro da composição, enquanto a Virgem, que lhe está próxima mas em

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segundo plano, é pintada com menor detalhe e o rosto tem uma espécie de “desfocagem”

devida ao esbatimento das linhas, obtido com golpes de cor dados com a ponta do pincel.

Mas aqui Miguel Ângelo tem uma intuição genial porque não se limita a pintar com a ponta do

pincel: ele cria a carnação da Virgem mediante a justaposição de três cores separadas,

branco, vermelho e rosa, antecipando em três séculos o divisionismo e o pontilhismo.