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O sociólogo e o historiador

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o sociologo e o historiador

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Pierre BourdieuRoger Chartier

TraduçãoGuilherme João de Freitas Teixeira

com a colaboração de Jaime A. Clasen

O sociólogo e o historiador

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Copyright © 2010 Éditions Agone, Marseille, & Raisons d’Agir, Paris, France

Copyright desta edição @ 2011 Autêntica Editora

TíTulo oRiginAl

Le sociologue et l’historien

PRojETo gRáFiCo DE CAPA

Diogo Droschi

EDiToRAção ElETRôniCA

Conrado Esteves

REvisão DA TRADução

Eliane Marta

REvisão

Juliana Pereira Cecília Martins

EDiToRA REsPonsávEl

Rejane Dias

AutênticA editorA

Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários30140-071 . Belo Horizonte . MgTel.: (55 31) 3222 68 19 Televendas: 0800 283 13 22www.autenticaeditora.com.br

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

Bourdieu, Pierre, 1930-2002o sociólogo e o historiador / Pierre Bourdieu, Roger Chartier; tradução

guilherme joão de Freitas Teixeira, com a colaboração de jaime A. Clasen. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2011. – (Ensaio geral ; 3).

Título original: le sociologue et l’historienBibliografiaisBn 978-85-7526-484-3

1. Bourdieu, Pierre, 1903-2002 - Entrevistas 2. Chartier, Roger, 1945 - Entrevistas 3. Historiadores - França - Entrevistas 4. sociólogos - França - Entrevistas i. Chartier, Roger. ii. Título. iii. série.

11-02904 CDD- 907.092 - 301.092

dados internacionais de catalogação na Publicação (ciP)(câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

índices para catálogo sistemático:1. Historiadores : Entrevistas : 907.092 2. sociólogos : Entrevistas : 301.092

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7 Prefácio: À voix nue – Roger Chartier

15 Capítulo I: O ofício de sociólogo

31 Capítulo II: Ilusões e conhecimento

45 Capítulo III: Estruturas e indivíduo

57 Capítulo IV: Habitus e campo

69 Capítulo VI: Manet, Flaubert e Michelet

81 Referências

87 Posfácio: Pierre Bourdieu e a história – Roger Chartier Debate com José Sérgio Leite Lopes

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Prefácio

À voix nue1

Roger Chartier

Ao ler o texto com as entrevistas que, em 1988, eu havia feito a Pierre Bourdieu, minha primeira impressão foi a de reconhecê-lo tal como ele havia permanecido na minha lem-brança desses cinco programas radiofônicos: enérgico, diver-tido e entusiasta. O mérito deste livrinho, creio eu, consiste em captar – a partir da vivacidade da interlocução – sua ma-neira de pensar, liberando-a dos rótulos que, às vezes, a enco-brem, seja a autoridade magistral conferida pela cátedra do Collège de France,2 sejam os combates polêmicos do sociólo-go envolvido nos conflitos de seu tempo. Sem terem ocultado, no entanto, a continuidade e a coerência de um trabalho que, desde o início, se apoiou nas mesmas categorias de análise e na mesma exigência de lucidez crítica, estas cinco entrevistas levam a reencontrar um Bourdieu um tanto diferente, menos confinado nos papéis que, mais tarde, veio a assumir por es-colha ou por imposição: um Bourdieu jovial, bem-humorado, irônico em relação aos outros e, também, a si mesmo; um Bourdieu defensor convicto das rupturas científicas operadas por seu trabalho, mas igualmente sempre disposto ao diálogo com outras disciplinas e abordagens.

Na leitura destas conversações, convém ter presente o que era diferente no contexto intelectual e histórico da época em que elas ocorreram. Em 1988, o diretor da estação de rádio

1 Título de programa radiofônico que poderia ser traduzido por: Sem meias pa-lavras. (N.T.).

2 Pierre Bourdieu proferiu a aula inaugural de sua cátedra de sociologia, no Collège de France, em 23 de abril de 1982. Esse texto foi publicado por Éditions de Minuit com o título Leçon sur la leçon (1982b).

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France Culture, Jean-Marie Borzeix – que permaneceu no car-go entre 1984 e 1997 –, desejava incluir Bourdieu no progra-ma “À voix nue”. Se a escolha de seu interlocutor orientou-se para um historiador – de maneira alguma principiante, mas tampouco entre os mais conhecidos – é, sem dúvida, porque minha admiração e amizade intelectuais por ele já se tinham traduzido por sua presença em vários programas que eu pro-duzia – e continuo produzindo – uma segunda-feira por mês para “Les lundis de l’histoire”.3 O programa dedicado a seus dois livros, publicados com pouco intervalo – La Distinction. Criti-que sociale du jugement (1979) e Le Sens pratique (1980) –, di-fundido no dia 25 de fevereiro de 1980, levou-o a dialogar com Patrick Fridenson e com Georges Duby, a quem estava liga-do por uma estima recíproca. Conservo, ainda, uma das mais importantes lembranças desse programa. Na época em que La Distinction havia sido o alvo de críticas ferozes por parte de alguns historiadores que, por sua deficiente – ou, melhor, sua perfeita – compreensão do livro, essa interlocução mostrava, ao contrário, que o historiador, assim como o sociólogo, deve-riam entender as lutas relativamente às classificações tão reais quanto as lutas de classes (se é que elas poderiam ser separadas) e que as representações abordadas do mundo social, além de produzi-lo, acabavam por ser sua expressão.

Para um grande número de críticos, o Bourdieu de 1988 era o homem desse livro, La Distinction; com a ajuda de polêmicas e da mídia, essa obra é que projetou o sociólogo para a dianteira da cena, tanto na área intelectual quanto do público em geral.4 Mas, antes de sua publicação, Bourdieu

3 Assim, em 24 de outubro de 1983, para um programa dedicado à história e à sociologia da arte na companhia de Carlo Ginzburg e de Louis Marin; ou, então, em 8 de julho de 1985, a propósito do livro de Alain Viala, Naissance de l’écrivain. Sociologie de la littérature à l’âge classique, com a intervenção de Christian Jouhaud e do próprio Alain Viala.

4 Em 21 de dezembro de 1979, Bourdieu já tinha apresentado o livro na televisão, por ocasião do programa literário semanal “Apostrophes”, para o qual havia sido con-vidado por seu animador, Bernard Pivot, em companhia do historiador Fernand Braudel e do romancista Max Gallo; aliás, o título do programa era “L’historien, le sociologue et le romancier” [O historiador, o sociólogo e o romancista].

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já contava com um longo passado como investigador e com um conjunto de textos sólidos e densos,5 balizado por seus trabalhos de etnografia na Cabília (1972), suas análises do sistema escolar francês (Bourdieu; Passeron, 1964; 1970; Bourdieu; M. de Saint-Martin, 1975; 1981),6 suas pesqui-sas coletivas sobre os usos sociais da fotografia (Bourdieu; Boltanski; Castel; Chamboredon, 1965) ou a visitação de museus (Bourdieu; Darbel; Schnapper, 1966), além de sua reflexão teórica sobre as lógicas das práticas. Essas linhas de força não esgotam em nada a impressionante vitalidade de uma investigação sempre vigilante, interessada também por outros temas: as sondagens de opinião (1971), as estratégias matrimoniais (1972, 1985), a alta-costura (1974; Bourdieu; Delsaut, 1975), as práticas esportivas (1978b), a sociologia do patronato (Bourdieu; M. de Saint-Martin, 1978) e do episcopado francês (Bourdieu; M. de Saint-Martin, 1982). Algumas dessas análises – apresentadas, muitas vezes, em forma de entrevistas ou de conferências – tinham sido reunidas em um livrinho: Questions de sociologie (1980b). Na década de 1980, três livros marcaram a trajetória intelectual do sociólogo que se tornou professor no Collège de France: em 1982, Ce que parler veut dire;7 em 1984, a obra, sem dúvi-da, mais difícil para ele, Homo academicus;8 e, alguns meses antes de nossas entrevistas, uma coletânea de intervenções orais, Choses dites (1987a).

5 Aspecto que pode ser avaliado graças ao trabalho, bastante notável, de Delsaut e Rivière, 2002.

6 Essas duas pesquisas são evocadas por Pierre Bourdieu no decorrer de nossas entrevistas.

7 Esta obra proporcionou-lhe uma segunda passagem em “Apostrophes”, em 20 de outubro de 1982, em companhia de Jacques Cellard, Auguste Lebreton, Joel Houssin e Pierre Perret, por ocasião de um programa intitulado “En jacter des vertes e des pas mûres” [Jogar verde em vez de maduro].

8 Por este livro e, mais ainda, pelo relatório apresentado ao Collège de France, Neuf propositions pour l’enseignement de l’avenir [Nove proposições para o ensino do futuro], é que Bourdieu apareceu uma terceira vez em “Apostrophes”, por ocasião de um programa intitulado “De l’école à l’université” [Da escola à universidade], que reunia Jean-Pierre Chevènement, Henri Tézenas du Montcel e Paul Guth.

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Na época de “À voix nue”, Bourdieu preparava Les Règles de l’art (1992), como é demonstrado pela paixão com que evoca seu trabalho em curso sobre Manet e Flaubert. Vários ensaios, publicados em inglês, tinham acompanhado sua reflexão sobre as propriedades específicas dos campos inte-lectuais e artísticos (Bourdieu, 1983; 1987b),9 exatamente como ocorrera com as conferências proferidas em 1986, em Princeton, na série de Christian Gauss Seminars in Criticism ou, de certa maneira, com seu estudo sobre Heidegger (1975) que foi publicado sob a forma de livro no mesmo ano destas entrevistas (1988). Convém, portanto, tentar entender esse Bourdieu como se ignorássemos que, mais tarde, ele publica-ria La Noblesse d’État (1989), Méditations pascaliennes (1997), La Domination masculine (1998a) ou Les Structures sociales de l’économie (2000a), além dos textos de intervenção, mais diretamente políticos, editados por Raison d’Agir.10

Para os historiadores, em relação ao ano de 1988, três fatos devem ser lembrados para a compreensão de alguns temas de nossas entrevistas. Em primeiro lugar, a história continuava sendo a disciplina com maior apelo público, a mais bem visí-vel de todas as ciências sociais, não somente graças aos livros de seus mestres – alguns chegaram a tornar-se best-sellers –, mas também com o sucesso dos empreendimentos de enver-gadura comportando um grande número de volumes que, além de não terem assustado os editores franceses, encon-travam compradores e eram traduzidos em outros idiomas. Assim, a Histoire de la vie privée em cinco volumes, dirigida por Philippe Ariès e Georges Duby, publicada pela editora Le Seuil, entre 1985 e 1987; do mesmo modo, em escala mais modesta, a Histoire de l’édition française, que tive o prazer de dirigir com Henri-Jean Martin e cujos quatro volumes foram publicados por Promodis, entre 1982 e 1986.

Por outro lado, os historiadores franceses tinham come-çado a distanciar-se dos princípios de análise que haviam

9 Estes dois textos, com outros oito, serão retomados em Bourdieu, 1993.10 Nesta editora inaugurada, em 1996, com o texto Sur la télévision, Pierre Bour-

dieu publicou, em seguida, outros dois livros (1998b; 2001a).

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servido de base à dominação – no mínimo, intelectual – dos Annales, a saber: a preferência pelas fontes maciças, seu tra-tamento quantitativo e a constituição de séries. Questionado a partir do exterior – por exemplo, com as propostas da mi-cro-história italiana –, assim como do interior até mesmo da tradição dos Annales, esse modelo de inteligibilidade cindira-se em proveito de outras abordagens que privilegiavam mais as representações coletivas que as classificações objetivas, as apropriações singulares mais que as distribuições estatísticas, as estratégias conscientes mais que as determinações não co-nhecidas. Daí, os debates – sem dúvida, um tanto fúteis para Bourdieu –, sejam entre o antigo primado atribuído às séries e às estruturas, por um lado, e, por outro, a atenção mais re-cente prestada aos atores, sejam sobre as diferenças ou os pa-rentescos entre as categorias manipuladas pelo historiador e a linguagem dos próprios atores históricos.

Enfim, mas ainda bastante timidamente, a história havia começado a interrogar a si mesma. Muito distantes das ma-neiras de pensar de Bourdieu, alguns textos importantes – por exemplo, os de Paul Veyne (1971), Michel de Certeau (1975) ou Paul Ricœur (1983-1985) – haviam designado a tensão existente entre a intenção de conhecimento da disciplina e a forma necessariamente narrativa de sua escrita; tal diagnóstico foi considerado por alguns historiadores – para não dizer pela totalidade da corporação – como outra razão do descrédito re-lativamente às certezas herdadas e um robusto incentivo para refletir não somente sobre as condições de cientificidade de sua disciplina, mas também – e inversamente, à semelhança do que Bourdieu fazia em relação a Flaubert – sobre a capacidade cog-nitiva da ficção.11

Portanto, estas entrevistas permitem situar um momen-to da relação de Bourdieu com a história e com os historia-dores: ele vai criticá-los, de forma perspicaz, por universa-lizarem indevidamente suas categorias de análise e por se interrogarem insuficientemente sobre a construção social e

11 Nesta perspectiva é que se situa meu trabalho sobre George Dandin (1994), de Molière, evocado nas entrevistas.

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histórica das divisões e das classificações, consideradas por eles, com grande frequência, como objetos naturais. Mas, ao mesmo tempo, Bourdieu respeitava os trabalhos de deter-minados historiadores, franceses ou estrangeiros, acolhidos generosamente nas páginas de Actes de la recherche en sciences sociales12 ou publicados na coleção “Le sens commun”, dirigi-da por ele na editora Éditions de Minuit.13 Antes de nossas entrevistas, eu mesmo havia publicado um artigo em Actes (Chartier, 1980) e, em duas outras ocasiões, dialogado com ele a propósito da leitura e da história cultural (Bourdieu; Chartier, 1985).14

A violência das polêmicas, cada vez mais ásperas, o retor-no a um primado do político e do indivíduo, afirmado por al-guns no decorrer de controvérsias a respeito do Bicentenário da Revolução Francesa, além da moda pela história nacional, levaram Bourdieu a uma crítica mais brutal contra a história e os historiadores, tal como é manifestado em sua entrevista de 1995 com o historiador alemão Lutz Raphael (Bourdieu, 1995). Modifica-se o tom de 1988, e o libelo acusatório – que se limita a poupar alguns nomes – é sem apelo: a história (pelo menos, a francesa) é denunciada, em conjunto, por re-cusar a reflexibilidade crítica, por manifestar seu gosto pelas falsas oposições, sua atração pela má filosofia e sua ignorância dos clássicos das ciências sociais, além de preferir a futilidade

12 Assim, antes de 1988, para os historiadores estrangeiros: os historiadores da arte Svetlana Alpers, Michael Baxandall, Francis Haskell, Dario Gamboni e Enrico Castelnuovo, além de Carlo Ginzburg, Edward Thompson, Eric Hobsbawm, Robert Darnton, Carl Schorske ou David Sabean. E, em relação aos historiado-res franceses, Maurice Agulhon, Christophe Charle, Dominique Julia, Lucette Le Van-Lemesle e Gérard Noiriel.

13 É o caso das obras de Erwin Panofski (1967), François Furet e Jacques Ozouf (1977), François de Dainville (1978) e Alain Viala (1985). Convém ainda acres-centar dois livros que, apesar de não terem sido escritos por historiadores, não deixaram de ter uma importância decisiva para a disciplina: Richard Hoggart (1970) e Jack Goody (1978).

14 Este diálogo ocorreu em 18 de setembro de 1982 no Collège d’échanges con-temporains de Saint-Maximin e foi difundido no programa “Dialogues”, em 7 de dezembro de 1982, da France Culture. Em relação ao outro diálogo, cf. Bourdieu, Chartier e Darnton (1985).

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de discussões epistemológicas à custa das práticas de pesquisa que são, de fato, o verdadeiro lugar da reflexão teórica. Que se considere pertinente ou injusto, bem focalizado ou dema-siado indistinto, esse julgamento impiedoso tinha se afasta-do um tanto do tom crítico, mas amigável, das entrevistas de 1988. Eis a razão pela qual acho de bom alvitre ter a possibi-lidade de reencontrar este momento precioso de um diálogo prejudicado, durante um período de tempo, por ofensas e in-compreensões, mas em seguida reatado. Permanecem, para mim, como lembranças luminosas, as várias conversações com Bourdieu no programa “Les lundis de l’histoire”, anima-das – como havia ocorrido dez anos antes – pelo calor de uma discussão exigente, mas aprazível: por exemplo, uma entre-vista acerca do livro Méditations pascaliennes – habitada pela memória de Louis Marin, que tinha sido seu amigo, desde os anos da “École normale supérieure” (programa difundido em 12 de maio de 1997) –, ou a propósito de La Domination masculine, um diálogo com Arlette Farge sobre o maravilhoso mistério que, às vezes, rompe as leis implacáveis do mundo social e autoriza o encantamento de encontros inesperados (programa difundido em 19 de outubro de 1998).

O júbilo prodigalizado por estas cinco conversações não deve, contudo, levar a esquecer que elas são também perme-adas pela ansiedade de Bourdieu quando ele se esforça por compreender as violentas resistências a suas análises – e não somente as de seus adversários – e as tensões próprias a um trabalho sobre espaços sociais, sejam eles o mundo universi-tário, sejam a sociedade inteira, dos quais o sociólogo é parte integrante – “enquanto indígena”, de acordo com suas pró-prias palavras. Daí, em seu entender, a tarefa difícil – embora indispensável – de uma disciplina que, dissipando as ignorân-cias tranquilizadoras, permite uma compreensão mais lúcida dos mecanismos que orientam dominações e subjugações, mas pagando o preço da desilusão. “O sociólogo é insupor-tável”, afirma ele, e não somente para os outros, mas também para si mesmo, por estar situado no campo social, cuja análise é elaborada por ele. Nas palavras de Bourdieu, encontraremos a dolorosa “esquizofrenia” (palavra utilizada por ele) que re-sulta dessa posição – sem dúvida, única nas ciências sociais

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– em que o sujeito que produz o conhecimento está implica-do, ao mesmo tempo, no objeto a conhecer.

Esta divisão de si mesmo exigida pelo trabalho socioló-gico – difícil de ser vivida e assumida – é, igualmente, o fun-damento do “utopismo racional” que o funda. Com efeito, somente a evidência dos determinismos que se impõem aos atores do mundo social (incluindo, o sociólogo) pode garan-tir a crítica das aparências ilusórias e das evidências enga-nosas, o afrouxamento das condicionantes e a possibilidade reconhecida a cada um – mesmo que nem todos possam apropriar-se de tal procedimento – de “tornar-se o sujeito de seus próprios pensamentos”. Com a condição de não se enredar em falsas oposições (por exemplo, entre indivíduo e sociedade, entre consenso e conflito, entre objetividade das estruturas e subjetividade dos atores), o trabalho do sociólo-go propõe mecanismos de autodefesa contra o que parece ser imposto, inexoravelmente, pela ordem natural das coisas – e das dominações.

Pierre Bourdieu andava assombrado pela própria res-ponsabilidade. Esse sentimento explica seus compromissos, assim como seus tormentos e – como poderemos ler nestas entrevistas que restituem, o melhor possível, sua fala apaixo-nada – sua confiança no saber: o único capaz de tornar menos inexorável e menos desesperante o mundo tal como é.

Paris, 24 de novembro de 2009.

Os capítulos seguintes são extraídos de cinco programas “À voix nue”, gravados em 7 e 8 de dezembro de 1987 e di-fundidos pela estação de rádio France Culture, entre 1º e 5 de fevereiro de 1988; a assistente de produção foi Marie-Andrée Armynot du Châtelet. Esses programas voltaram a ser trans-mitidos na mesma estação entre 28 de janeiro e 1º de fevereiro de 2002, após o falecimento de Pierre Bourdieu, que ocorreu em 23 de janeiro de 2002.

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O ofício de sociólogoCapítulo I

Roger Chartier: O ofício de sociólogo não deve ser algo fácil de exercer, porque, ao observarmos a maneira como seu trabalho é comentado, ficamos impressionados com as for-midáveis contradições que se manifestam nos escritos e nos espíritos. Com efeito, afinal de contas, em relação ao objetivo da sociologia, temos de escolher entre estas duas possibilida-des: ele consistiria em mobilizar as massas ou, então, em “pro-vocar o desespero de Billancourt”15? Como é que a sociologia pode ser essa escrita ilegível – de tal maneira complexa que seu sentido se torna impenetrável – e, ao mesmo tempo, servir de suporte a uma mensagem particularmente clara a ponto de vir a ser, para alguns, radicalmente subversiva? E será que a sociologia pode alimentar a pretensão – essa é, às vezes, nos-sa impressão – de ser uma ciência dominante, um saber dos saberes, quando, ao levar em conta seus escritos, você acaba por desconstruí-la enquanto disciplina? A partir de todas es-sas contradições é que, talvez, seja possível iniciar a primeira destas entrevistas, considerando que o desafio deste progra-ma consiste em abordar uma série de questões fundamentais: O que é a sociologia? O que é exercer o ofício de sociólogo? Como pensar a relação da sociologia com outras disciplinas que, à semelhança da história (que é a minha área), devem en-frentar esse monstro proteiforme e, em parte, inquietante?

Pierre Bourdieu: Exatamente, penso que a sociologia desestabilize, mas o sentimento um tanto obsedante que eu

15 Expressão corrente para dizer que os diagnósticos científicos não devem pro-vocar o desespero dos assalariados, considerando que Billancourt – o municí-pio de Boulogne-Billancourt, no subúrbio leste de Paris – era o lugar da im-plantação das usinas Renault, símbolo da classe operária. (N.T.).

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poderia experimentar como sociólogo é, apesar de tudo, neu-tralizado pelas próprias contradições entre os ataques. Penso, em particular, que as acusações de cunho político dirigidas contra a sociologia têm, no mínimo, a virtude de serem con-traditórias; e, por isso, elas permitem viver. Bom, é verdade que nem sempre é fácil dedicar-se à sociologia.

Roger Chartier: Isso mesmo, porque se tem a impressão de que é uma disciplina que, por seu esforço de reflexibilidade sobre o mundo social, vai inscrever, ao mesmo tempo, quem a produz no próprio campo que ele está em via de descrever. Nesse sentido, não é fácil vivê-la, não apenas por devolver aos outros uma imagem de si mesmos que, muitas vezes, eles não suportam, mas também por implicar aquele que a produz na própria análise.

Pierre Bourdieu: É isso, e tenho a experiência de uma situação: quando, por exemplo, vou falar de sociologia a não sociólogos, a não profissionais, estou sempre dividido entre duas estratégias possíveis. A primeira consiste em apresentar a sociologia como uma disciplina acadêmica, como se estives-se abordando a história ou a filosofia; nesse caso, acabo susci-tando o interesse, mas precisamente de natureza acadêmica. Ou, então, procuro exercer o efeito específico da sociologia, isto é, tento colocar meus ouvintes em situação de autoanálise e, nesse momento, sei que me exponho a tornar-me o bode expiatório da assistência. Por exemplo, tive uma experiência, faz dois anos, quando fui à Filarmônica de Bruxelas,16 convi-dado por um integrante da diretoria de uma associação – Les Amis de la Philharmonique de Bruxelles [Os Amigos da Fi-larmônica de Bruxelas] – que, de forma bastante gentil, mas um tanto ingênua, tinha feito o pedido para que eu expusesse minhas concepções, minhas representações da arte, da socio-logia da música, etc. E, até o último momento – lembro-me muito bem deste comentário –, no carro que nos levava para o evento, naquela noite, etc., eu lhe dizia: “O senhor não se

16 Não conseguimos detectar a data e o tema da conferência feita em Bruxelas. Pode-se pensar que ela teria retomado os temas da entrevista publicada em Le Monde de la musique, 1978b (reproduzida em 1980b).

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dá conta de que está me solicitando algo de arriscado que vai suscitar reações; haverá incidentes, e vou ser insultado”. Ele pensava que eu estava com o nervosismo habitual do con-ferencista. E, em seguida, aconteceu o que eu tinha receado: foi um verdadeiro happening, e, durante oito dias, no meio intelectual, em Bruxelas, não se falou de outro assunto. Um dos meus amigos ouviu um dos participantes dizer que, des-de os surrealistas, ele nunca tinha assistido a um debate tão movimentado e extraordinário como nessa ocasião. Ora, eu tinha proferido afirmações totalmente inofensivas, eufemiza-das, neutralizadas. Eu havia tomado precauções: meu ponto de mira na assistência era uma senhora idosa, muito bem ves-tida, com sua bolsa sobre os joelhos, um pouco à maneira do que ocorre no Collège de France; assim, tive todo o cuida-do para não ser chocante, nem sequer um instante. Por isso, utilizei o maior número possível de eufemismos. Apesar disso, penso que a “verdade” sociológica – enfim, coloco verdade en-tre aspas – é dotada de tal violência, que acaba machucando; ela faz sofrer e, ao mesmo tempo, as pessoas se libertam desse so-frimento, devolvendo-o para quem aparentemente o provoca.

Roger Chartier: Essa é a diferença, sem dúvida, em re-lação à história, que fala de mortos e, talvez, à etnologia e à antropologia, que, por sua vez, descrevem assuntos que, ape-nas raramente e em circunstâncias excepcionais, são confron-tados com os discursos que falam deles.

Pierre Bourdieu: Exatamente, neste caso, também, pos-so responder com um exemplo. Trata-se de um episódio que acho bastante divertido. Um de meus colegas no Collège de France, membro eminente do Institut,17 dizia-me que meus trabalhos tinham suscitado algumas resistências entre deter-minados membros dessa instituição, inclusive, verdadeiras resistências. E, entre meus trabalhos, o mais chocante era um artigo que eu tinha publicado sob o título “Les catégories de

17 Referência ao “Institut de France”, instituição cultural francesa formada por cinco Academias: Académie Française, Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, Académie des Sciences, Académie des Beaux-Arts, além da Académie des Sciences Morales et Politiques. (N.T.).

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l’entendement professoral” (Bourdieu; Saint-Martin, 1975) usando muita ironia – isto é um parêntese: muitas vezes, há textos que escrevo sorrindo; infelizmente, não há um sinal para exprimir o riso por escrito, essa é uma das grandes lacu-nas da simbologia gráfica. Portanto, eu tinha encontrado este título – “Les catégories de l’entendement professoral” – e, nes-se artigo, eu analisava, por um lado, as apreciações anotadas por um professor do liceu Fénelon, nas classes preparatórias para a École Normale Supérieure, a propósito das dissertações de seus alunos e, por outro lado, os necrológios de ex-alunos dessa mesma École. E esse eminente colega, aliás, egiptólogo, dizia-me o seguinte: “Veja só, o senhor acabou servindo-se de necrologias como tema”. Então, repliquei: “Mas, afinal, meu caro colega, como é que o senhor pode dizer isso? Seu obje-to de estudo não se limita às necrologias?”. Eis o que, no meu entender, faz sentir muito bem a diferença entre a sociologia e a história. Muitas coisas são aceitas como evidentes pelo his-toriador e, até mesmo, são consideradas como proezas: se, por exemplo, um historiador descobre relações ocultas – ligações, como dizemos – entre tal personagem histórico e um outro, ele é elogiado, e esse episódio é visto como uma descoberta. Ao passo que, se eu viesse a publicar, por exemplo, o décimo do que se impunha dizer para compreender o funcionamento do universo universitário – os campos acadêmicos –, eu seria con-siderado como um delator monstruoso. Por outro lado, penso que a distância temporal tem uma virtude de neutralização – aliás, conhecida por todo o mundo. Mas, no caso da sociologia, estamos sempre em terrenos candentes; além disso, as coisas que debatemos estão vivas, e não mortas, nem enterradas.

Roger Chartier: Por isso mesmo é que pensei que esta primeira entrevista poderia concentrar-se em torno dos efei-tos políticos do trabalho intelectual e, referindo-nos ao caso da sociologia, mostrar como se deslocou, no cenário intelectual francês, a figura do intelectual: de modo geral, partindo de uma figura profética, messiânica, denunciadora, em um nível macroscópico da sociedade – talvez o nome de Sartre pudesse ser emblemático desse tipo de discurso, ou seja, o Sartre do pós-guerra – em direção a um trabalho de outra ordem. Há uma fórmula de Foucault que acho muito impressionante: ele

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dizia que seu trabalho consistia, afinal de contas, em descamar algumas evidências, alguns lugares comuns. Nesse aspecto, pa-rece-me que há uma afinidade bastante grande entre ele e você. Não será uma fórmula que você poderia adotar como sua?

Pierre Bourdieu: Perfeitamente. Penso que se trata de um dos pontos de acordo total: o repúdio da grande figura do “intelectual total”, de acordo com a expressão que utilizo para defini-lo, cuja encarnação por excelência é Sartre, ou seja, o intelectual que desempenha um papel profético. Max Weber afirma que profeta é quem responde totalmente a questões totais, a questões de vida ou de morte, etc. E o filósofo, em sua encarnação sartriana, é uma figura profética, no sentido rigoroso do termo, isto é, responde globalmente a problemas existenciais, vitais, políticos, etc. Para nossa geração – em parte, porque estávamos um tanto oprimidos e fatigados por exercer esse papel de totalidade –, é inconcebível estar na pele de Sartre; para parodiar a fórmula de Malraux, não preten-demos desafiar o absoluto. Ou seja, é impossível responder a tudo; deve-se responder a perguntas parciais, deliberada-mente constituídas como parciais, mas dar-lhes uma resposta completa, enfim, de forma tão completa quanto possível de acordo com o estado dos instrumentos de conhecimento; e essa espécie de redefinição minimizante do procedimento in-telectual é, creio eu, muito importante, por ser um progresso no sentido de alcançar a maior seriedade, ao mesmo tempo, científica e política.

Em relação a Foucault,18 eu acrescentaria, talvez, que tenho uma concepção bastante militante da ciência, o que não signi-fica absolutamente “engajada”. Enfim, penso que a ciência so-cial, advertidamente ou não, deliberadamente ou não, respon-de a perguntas muitíssimo importantes; de qualquer modo, ela vai formulá-las e tem o dever de fazê-lo em melhores con-dições do que elas são formuladas no mundo social comum.

18 Sobre Michel Foucault, cf. da Autêntica Editora, os títulos da coleção Estudos Foucaultianos: Passos, 2007; Veiga-Neto, 2007; Albuquerque Júnior, Veiga-Ne-to e Souza Filho (orgs.), 2009; Rago e Veiga-Neto, 2009, 2010; Candiotto, 2010; além de Castro, 2009; Gadelha, 2010. (N.T.).

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20 O sociólogo e o historiador

Uma melhor formulação feita, por exemplo, no círculo dos jornalistas, ou dos ensaístas, ou na esfera da falsa ciência.

Roger Chartier: Ao mobilizar a noção de ciência, você não se situa em um terreno um tanto arriscado? Li em algum lugar que, a propósito de você, se falava de jdanovismo19 new-look. Como será possível constituir a definição do que se en-tende por ciência sem voltar a cair nos procedimenos nefastos que estabeleciam a distinção, do ponto de vista “científico” e “institucional” – pelo fato de que uma autoridade estava encar-regada de impor tal distinção –, entre a ciência e a não ciência?

Pierre Bourdieu: Justamente, penso que se trata de um dos principais mal-entendidos entre mim mesmo – enfim, entre o que tento fazer – e um grande número de meus con-temporâneos, digamos, pessoas de minha geração que nas-ceram, de alguma maneira, para a vida intelectual e política exatamente na época do jdanovismo; ora, nessa época, elas eram jdanovianas, ao passo que eu era antijdanoviano – creio que se trata de um interrupção importante –, e acreditam re-conhecer no trabalho elaborado pela sociologia aquilo que se praticava sob o nome de ciência no tempo do stalinismo, em particular, esse corte entre ciência e ideologia que nunca cheguei a assumir, que contesto radicalmente, que é um corte de natu-reza mística e foi retomado – e não por acaso – pelos filósofos, e nunca pelos cientistas, ou seja, os profissionais [praticiens] da pesquisa. Esse corte tinha uma função totalmente análoga àquela que se encontra nos discursos religiosos e proféticos; ele permi-tia estabelecer uma separação entre o sagrado e o profano; ou seja, os consagrados e os profanos, o profeta (consagrado) e os profanos. Acho que se trata de uma separação detestável, penso que temos motivo para falar de ciência mesmo que nossa ciên-cia seja incoativa, incipiente, balbuciante, etc. Apesar de tudo, há uma separação de natureza entre o esforço científico que

19 Do nome de Andrei Jdanov (1896-1948), um dos principais dirigentes soviéticos da década de 1940, o jdanovismo é a doutrina que, na época de Stalin, subor-dinava as artes e as ciências aos objetivos ideológicos e políticos dos partidos comunistas; ela incluía, especialmente, a ideia de que os saberes científicos es-tavam permeados pela luta de classes, além de opor a “ciência proletária” (pro-gressista) à “ciência burguesa” (reacionária).