O Tempo Das Tribos

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  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    1/124

    COLEO ENSAIO TEORIA

    Dirigida por Luiz Felipe Bata Neves

    O Jogo e a Constituio do Suje ito na Dialtica Social (Circe Vital

    Brasil

    Memrias do Social (Henri Pierre Jeudy

    Comportamento e Contracontrole Social crnica do behaviorism o radical

    de Skinner (Celso

    Pereira

    de

    S

    s Mscaras de Deus e a Totalidade Totalitria (Luiz Felipe Bata

    Neves)

    ichel affesoli

    O

    empo

    das

    ribos

    O declnio do

    individualismo

    nas sociedades

    de

    massa

    Apresentao de Luiz Felipe Bata Neves

    Traduo de

    Maria de Lourdes Menezes

    Reviso tcnica de

    mo Vogel

    OR NS

    UNIVERSITRIA

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    2/124

    2

    1

    edio - 1998

    opyright

    Michel Maffesoli

    Traduzido de:

    LI Tempstks Trtbus

    Capa:

    Ampersa d Comunicao Grfica

    CIP-Bnosil. Catalogao-na-fonte

    Sindicato Nacional dos Editores

    de

    Livros, RJ

    Ml62t Maffesoli, Michel,

    1944-

    2 ed

    O

    tempo

    dos tribos: o decfinio

    do

    individualismo nas sociedades de

    masso/

    Michel Maffesoli;

    apresentao de Luiz Felipe ata Neves; 1Illduo

    de

    Maria

    de

    Lourdes Menezes; reviso

    tcnica de

    Amo

    Vogel.- 2 ed.- Rio

    de

    Janeiro: Forense Univ=itria, 1998.

    (Ensaio teoria)

    Traduo de:

    Le

    temps des tribus: le dcfin

    de

    l individualisme dans les socits

    de

    masse

    Inclui bibliografia

    ISBN

    85-21 -m26-9

    I. Grupos sociais. 2 Sociologia

    I.

    Titulo.

    D.

    Srie.

    CDD305

    CDU323 .3

    Proibida a reproduo total

    ou

    parcial,

    bem como

    a reproduo de apostilas a

    pOIIir

    deste

    livro,

    de

    qualquer forma u por qualquer

    meio

    eletrnico ou

    mecnico.

    inclusive atravs de

    processos xerogrficos

    de fotocpia e

    de

    gravaio, sem permisso expresso

    do

    Editor Lei n 5.988 de 14.12.

    73).

    Reservados os direitos de propriedade desta edio pela

    EDITOR FORENSE UNIVERSITRI

    Rio de Janeiro:

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    Impresso

    no

    Brasil

    Printedin

    rmil

    Para

    Raphaele

    Sarah-Marie

    Emmanuelle

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

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    I

    _

    #

    PREFCIO

    SEGUNDA

    EDIO

    Tribos e Ps-modemidade

    J

    mencionei anteriormente

    que o

    que

    melhor poderia

    carac

    terizar

    a

    ps-modernidade

    era o vnculo que estava

    sendo

    estabe

    lecido

    entre

    a tica e a esttica.

    O que

    pretendia dizer

    com isso

    que eu via o novo vnculo social ethos) surgindo a partir da emoo

    compartilhada ou do sentimento coletivo. Portanto, em vez de

    ver

    a

    uma

    frivolidade qualquer disposio

    de

    alguns, vanguarda,

    bomia artstica,

    talvez estivssemos

    mais

    inspirados se

    desco

    brssemos nesta coletivizao dos sentimentos

    um

    dos fatores

    essenciais da vida social que est

    em

    vias de re)nascer

    nas

    sociedades

    contemporneas.

    No nos esqueamos que tal perspectiva se

    insere, h

    muito

    tempo,

    na

    tradio intelectual francesa: os

    surrealistas,

    certa

    mente, mas tambm G. Bataille e, mais recentemente, Michel

    Foucault.

    Em cada um

    desses

    casos, com nuanas

    de

    real

    impor

    tncia, o

    destaque

    dado

    a uma perspectiva global, holstica, que

    integra a vivncia , a paixo e o sentimento comum. Reconhecemos

    l

    uma

    mudana

    importante

    de paradigma: em vez de dominar o

    mundo, em

    vez

    de

    querer

    transform-lo

    ou mud-lo- trs atitudes

    prometeanas - ns nos dedicamos a

    nos unirmos

    a ele atravs da

    contemplao . A prevalncia da

    esttica,

    a

    perspectiva

    ecolgi

    ca, a no-atividade poltica, as diferentes formas do souci de soi e

    os diversos cultos do corpo so, na realidade, no importa o que

    possam parecer,

    formas

    desta contemplao .

    Em

    cada um

    de todos

    esses

    casos, ser a

    ambientao

    do

    tempo e do lugar

    que

    ir determinar a

    atividade,

    a criao: quer

    seja a crao

    maiscula

    das

    obras

    de

    cultura,

    ou a criao

    microscpica

    da

    vida do cotidiano.

    Mas,

    no nos esqueamos, o

    1

    Cf ux

    Creux des Apparences

    (1990), trad. portugus Ed. Vozes, 1996.

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    que

    va de soi

    faz comunidade.

    nesse

    sentido que o que eu chamei

    de orgiasmo

    matricial.

    verdade, so

    momentos

    em

    que

    obcecados pelo fazer , o aspecto

    racional

    das coisas, o

    ativismo

    social ns vamos minorizar esta abordagem

    ambiental .

    Da

    em

    d i n t ~

    tudo

    o que no podemos

    contar,

    que no conseguimos

    medir,'

    tudo

    o que de ordem do evanescente e do

    imaterial

    considerado

    como

    quantidade

    desprezvel.

    (So muito

    diferentes

    as pocas em

    que

    renascem a preocu

    pao com o estar juntos e a estranha

    presso

    que nos impulsiona

    para

    o outro)

    Historicamente,

    o barroco da quantidade, e em

    nossos dias os diversos agrupamentos

    de

    vida

    corrente repetem

    a

    mesma coisa. Trata-se

    a

    de

    um

    verdadeiro uso dos

    prazeres

    sobre

    o qual Michel Foucault

    soube

    to bem mostrar a

    importn

    cia societal.

    Assim, vemos

    que

    o

    ambiente tem uma

    funo: a

    de

    criar um corpo coletivo, de

    modelar um ethos.

    E o

    que

    nos

    ensina

    a histria da arte

    no

    deixa

    de encontrar repercusso

    em outras

    situaes

    mais

    profanas, onde se exprime

    uma

    ligao

    menos importante. Quanto a isso, basta

    pensar

    nas

    reumoes

    musicais, esportivas ou

    de consumo para medir esta

    funo

    con

    tempornea.

    Mudana

    de

    cultura,

    no se

    dir mais o

    Stimmung

    de

    uma

    paisagem, ou

    de

    uma catedral, mas

    se falar de

    feeling

    de

    uma

    relao, do sentimento

    induzido por

    um lugar, _de o ~ t r ~ s

    categorias no

    menos

    vaporosas

    para

    descrever um

    suacwms

    mo amoroso, profissional

    ou

    cotidiano

    de conseqncias

    no

    desprezveis dentro da criao , ~ sua aceitao a mais extensa

    de

    um

    perodo

    predeterminado.

    E

    assim que

    podemos

    compreen

    der

    e analisar

    esse

    fenmeno

    espantoso que

    a

    moda, que

    nasce

    da

    necessidade de se

    singularizar, mas

    que no pode

    existir

    a no

    ser secretando a

    imitao

    mais banal. A moda, no trajar, na

    ideologia ou no linguajar etc.,

    traduz

    bem esta inflao do senti

    mento

    (G.

    Simmel)

    suscitada

    pela

    atmosfera

    ambiente.

    O indivduo

    no

    , ou

    no

    mais, mestre de si. C que

    quer dizer

    que ele

    no seja ator. Ele

    o , na

    verdade,

    mas a maneira

    daquele

    que

    recita um texto escrito por outra pessoa. Ele pode

    acrescentar a entonao, com mais ou menos calor,

    e v ~ ~ t u a ~ m e n -

    te

    introduzir uma rplica, no entanto, ele continua

    pnswneiro de

    ' Cf. O Uso dos Prazeres Michel Foucault,

    Paris,

    1984.

    uma forma que

    ele

    no

    pode,

    em

    nenhuma

    hiptese,

    modificar

    por

    vontade

    prpria.

    Nesses

    tempos

    em

    que

    de bom-tom falar

    sobre

    individualismo,

    quando difcil questionar esse pensamento con

    vencional,

    no

    intil lembrar a evidncia emprica da

    imitao

    furiosa,

    desse

    instinto animal que nos

    impulsiona

    em geral a

    fazer como os outros . Simmel via nisto

    um

    fenme no sociolgico

    dos

    mais instrutivos:

    o indivduo

    se sente

    conduzido pelo

    ambi

    ente

    palpitante das

    massas

    como

    que por

    uma fora

    exterior,

    indiferente ao seu ser ou sua vontade individuais. Mesmo

    que,

    contudo, esta massa

    seja

    constituda

    exclusivamente de tais indi

    vduos 3.

    Ao elaborar a sua tica da simpatia, M. Scheler se dedica a

    mostrar que

    ela no

    nem

    essencialmente,

    nem

    exclusivamente

    social.

    Ela seria uma

    forma englobante, matricial, de certo modo.

    esta hiptese que eu formularei por

    minha

    vez. Seguindo a

    comparao

    das histrias humanas,

    depois de terem

    sido

    minori

    zadas,

    esta

    forma

    estaria novamente

    presente.

    Ela

    privilegiaria

    a

    funo emocional

    e os

    mecanismos

    de identificao e de

    partici

    pao que vm a seguir. O que ele ch:;tma de teoria de identifica

    o da simpatia permite explicar

    as

    situaes de fuso, esses

    momentos

    de

    xtase que podem ser

    regulares,

    mas

    que

    podem

    igualmente caracterizar o clima de uma poca.

    4

    Esta teoria

    da

    identificao, esta

    sada

    esttica

    de si

    est

    em

    perfeita

    congruncia

    com o desenvolvimento da

    imagem,

    com

    aquele do espetculo (do espetculo stricto sensu nas paradas

    polticas) e,

    naturalmente,

    com

    aquele

    das

    multides esportivas,

    das multides de turistas ou simplesmente com as

    multides

    de

    desocupados.

    Em

    todos

    esses

    casos,

    assistimos

    superao

    do

    principium

    individuationis

    que era o nome de ouro de toda

    organizao e teorizao sociais.

    Ser

    mesmo

    necessrio, como sugereM. Scheler, uma grada

    o

    entre

    fuso , r ~ p r o d u o e participao afetivas. Seria

    melhor,

    a meu

    ver,

    e apenas a

    ttulo heurstico, estabelecer

    uma

    nebulosa afetual de

    uma

    tendncia orgistica ou dionisaca. As

    exploses orgisticas, os cultos

    da

    possesso, as situaes fusio

    nais

    sempre existiram. Mas, s vezes, eles

    tomam

    um

    ar

    endmico

    .J Simmel, George, Sociologie et .1f:pistmologie

    Paris,

    1981,

    p.

    116.

    'Scheler,

    M.,

    Nature

    et Forme de la

    Sympathie Paris, Payot,

    1928, p. 113 e seg. e p. 149-1 52.

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    e se tornam preeminentes na conscincia coletiva. Sobre alguns

    assuntos ns

    vibramos em

    unssono. Halbwachs

    fala

    sobre isso

    como

    interferncia

    coletiva .

    5

    Esta

    nebulosa

    afetual nos permite

    compreender

    a forma

    especfica que toma a sociabilidade em nossos dias: o vaivm

    de

    nossas tribos. De fato, diferentemente do que prevaleceu nos anos

    70, se

    trata

    menos de se agregar a um grupo, a uma famlia ou a

    uma comunidade

    do que o

    ir

    e vir

    de um grupo

    a

    outro.

    o

    que

    pode

    dar

    a

    impresso de uma atomizao,

    e o

    que

    pode fazer

    falar

    erroneamente em narcisismo.

    De

    fato, contraria

    mente estabilidade induzida pelo

    tribalismo

    clssico, o

    neotri

    balismo

    caracterizado

    pela fluidez, as

    reunies pontuais

    e a

    disperso. assim

    que

    podemos

    descrever

    o

    espetculo

    das ruas

    das megalpoles

    modernas.

    O

    adepto

    do

    jogging

    o punk o

    look

    retr

    o

    bom

    moo

    elegante,

    os

    apresentadores de

    televiso

    nos

    convidam

    a

    uma viagem incessante.

    Atravs

    de sedimentaes

    sucessivas, se forma um ambiente

    esttico. E no

    interior desses

    ambientes que regularmente

    podem

    ocorrer

    estas

    condensaes

    instantneas , frgeis, mas

    que naquele momento so

    objeto

    de

    um grande

    investimento

    emocional.

    esse aspecto seqencia l que

    permite falar de

    superao

    do princpio de individualizao.

    Eis a

    constatao

    que O

    Tempo

    das

    Tribos pretende

    propor.

    Como podemos ver, trata-se

    de

    uma

    proposta importante

    cujas

    conseqncias,

    epistemolgicas e sociais,

    ainda devem ser

    explo-

    radas. Mas a

    compreenso

    que as cincias

    humanas

    sabero

    ter

    desta proposta que lhes permitir, ou no, responder aos inme

    ros desafios

    lanados

    pela ps-modernidade

    neste

    fim de sculo.

    O

    Autor

    5

    Halbwachs,

    Maurice,

    a

    Mmoire Collective

    Paris PUF,

    1968,

    p.

    28.

    APRESENTAO

    uiz

    elipe

    Bata Neva

    A publicao de um novo livro de Michel Maffesoll no

    Brasil suscita algumas reflexes sobre

    sua

    obra e. . . sobre ns

    prprios. Quais os efeitos que o trabalho de Michel Maffesoli

    pode acarretar ; o que ele revela de ns enquanto povo ; o

    que exibe, por contraste, de nossas maneiras intelectuais de

    fazer cinc;a ?

    Fico, nesta Apresentao, especialmente voltado

    para

    os

    efeitos que o tempo

    das

    tribos pode ter

    p r

    a teoria social

    tal

    como (por muitos) praticada entre ns.

    Minha primeira observao sobre a crtica

    a.

    prt1ca)

    maffesoliniana. ao carter normativo e judicativo que as cin-

    cias sociais tendem a assumir. Julgamentos de valor que,

    fin -

    listas, se voltam para a implantao do Futuro e que, por

    ndole, menosprezam o presente

    (a

    vida) e o conjuntural. Como

    se a Histria, que tanto louvam, se desse fora do presente e

    .

    da

    conjuntura; e como se essa Deusa precisasse de arautos.

    Arautos que,

    r v s t i ~ o s

    do

    manto do Saber (e de seu Poderes) ,

    no querem falar apenas em seus prprios nomes, mas que

    teimam em falar em nome do Povo,

    da

    Justia, da MDral.

    No lugar dessa paixo pelo ventriloquismo dos Demiurgos

    Cientistas, to conhecida quanto pouco estudada entre ns,

    M.

    Maffesoli prope

    uma

    outra: a paixo pelo social t l como

    ele tal como ele se d e no como deveria

    er.

    Esse respeito

    pelo objeto (vivido e) analisado no sinnimo de apologia

    pelo estabelecido ou elogio

    da

    iniqidade. o

    movimento

    est

    patente

    em

    todo o esforo de compreenso feito; apenas ele

    escapa aos teleologismos e aos moralismos.

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

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    Esta escrita sobre o social de M. Maffesoli permite um

    (doloroso) confronto com o tesismo quE se abateu sobre o pais,

    nosso

    pais

    intelectual . Podemos, com este e outros de seus

    livros, ver at que ponto a criatividade cientfica entre ns

    continua fortemente manietada. E no por nenhuma fora auto

    ritria e externa academia, mas s:m pelos compromissos

    internos que

    acabaram

    por

    se

    estabelecer

    to

    rigidamente

    entre

    desempenho intelectual e tradicionalismo terico. Perdemos

    muito da capacidade de errar, de avanar conhecimentos no

    estabelecidos (pelo estabelecimento universi trio ) , de

    arriscar, de lanar conhecimentos no acabados . Perdemos

    a capacidade de

    ensaiar

    - palavra, alis, cheia de sentidos. No

    que a teoria social

    no

    Brasil no tivesse conhecido o ensaio;

    pelo contrrio, ela foi fundada por ele, com Gilberto Freyre,

    Srgio

    Buarque

    de Hollanda, Caio Prado Jr. O magnfico ensaiS

    mo brasileiro destes fundadores tem que ser recuperado em

    sua

    ousadia,

    em sua

    erudio,

    em sua

    elegncia de estilo -

    no com o sentido de venerao passadista, mas pela fertilidade

    que pode trazer, pelo antdoto que pode representar sensa

    boria e platitude.

    A ousadia intelectual, aqui, em M. Maffesoli, no - como

    os appa ratchik poderiam esperar -

    no

    , repetimos, sinnimo

    de inconseqncia ou falta de conhecimento terico. O

    que

    vemos uma constante re-apropr iao. . . dos c l ~ s

    c o s

    Man,

    Weber, Durkheim -

    t o

    que no falta a nenhum dos cursos

    de

    Metodologia de nossas universidades. . . - esto citados

    e so vistos de forma inteligente e inovadora, concorde-se

    ou

    no com

    as

    posies de Maffe::oli quanto a eles. A.ss

    1

    m sendo,

    a seriedade do trabalho no se confunde com a sisudez dos que

    querem nos convencer

    pela

    mesmice e pela invocao ecto

    plsmica de figuras

    institucionalmente

    entronizadas.

    Ao lado de uma (re-)visita aos clssicos, o

    trabalho

    que

    se segue

    apresenta vantagens substantivas

    adicionais. Per

    mite

    ao

    leitor brasileiro tomar (ou rever)

    contato

    com

    autores

    pertencentes a

    outras

    tradies intelectuais,

    m u ~ t o

    pouco vistos

    na prpria

    Europa

    (e, portanto, aqui. . . ) por muito tempo.

    Como Simmel,

    Schutz

    e tantos

    autores de linhagens

    fenomeno

    lgicas rigorosamente desconhecidas pelos -controladores/produ

    tores de bibliografias do j-consagrado . . . Some-se a essas

    qualidades a de apresentar - o que j

    uma

    saudvel tradi

    o de Maffesoli - recentes teses universitrias de colegas

    seus de diversos pases, alm de artigos e livros publicados em

    pases com que, infelizmente, temos pouco contato em cincia

    social (como a Itlia) .

    O 'tema' principal do livro o das armas grupais que

    surgem nas

    sociedades contemporneas. O grupalismo -

    sur

    presa

    de muitos - ou o neotribalismo recente das sociedades

    complexas, , na verdade, uma tela para

    onde

    converge uma

    rica discusso conceitual

    suscitada por

    Maffesoli. Discusso que

    toca fundo temas recorrentes nas discusses acadmicas

    no

    Brasil, como o que distingue e confronta as noes de indiv

    duo

    e sociedade . Aqui, como

    em

    diversos

    outros

    momentos,

    a soluo terica proposta inovadora e uma srie de revises

    conceituais lanada mesa dos debates. Srie que

    passa

    pelo

    prpr:o o n e ~ t o de Histria;

    por

    uma viso holstlca no tot -

    l itria pelo re-exame da

    importncia

    do poltico e do econmico;

    por uma re-considerao das diferenas

    entre

    os conceitos de

    cultura

    e civilizao ;

    por

    uma

    nova

    valorizao do fluido.

    do simples, do polimorfo, do cambiante, do parcial; por uma

    fascinante proposio relativa ao papel

    da

    afetividade, da pro

    ximidade, do calor

    humano

    na

    constituio social;

    por

    uma

    srie de

    chibatadas

    dirigidas ao institucional, ao burguesismc

    e ao produtivismo; pela s;gnlficao corajosa atribuida aos

    aspectos culturais das sociedades humanas; pela reiterada dife

    rena constatada entre noes

    habitualmente

    fundidas, como

    as de poder e potncia - ou de algumas mal-vistas , como

    a

    de forma .

    Toda essa srie de exemplos - meramente indicat

    1

    vo:s d

    riqueza do livro que apresentamos - no deve, obviamente

    ser tomada como signo de

    pertencimento

    a mais uma mod::;

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    7/124

    vind d

    Europa . So, pelo contrrio, um convite

    leitura

    elegante, instigante,

    que

    o

    tempo

    d s

    tri os

    pode proporcionar.

    O fato de haver - ou no - coincidncia de posies importa

    pouco; o que conta

    o exerccio de inteligncia que pode ser

    feito e o prazer que se pode usufruir destas ousadas pginas

    maffesolin anas to prximas - pela errncia, coragem e des

    temor - daquilo que Freud um dia, falando amorosamente de

    um "selvagem" texto seu, chamou de "fantasia cientffica".

    SUMRIO

    Maneira de Introduo .

    . . . . 1

    Captulo I A Comunidade

    Emocional

    (Argumentos

    de

    uma

    pesquisa) . . . . . . . 13

    1. A

    Aura esttica

    .

    2. A experincia tica .

    3. O costume . . . . .

    Captulo

    A

    Potncia Subterrnea

    1. Aspectos do vitalismo . . .

    2. O

    divino

    social . . . . . . .

    3. A auto-referncia

    popular

    Captulo

    -

    A Socialidade

    contra

    o

    Social

    1. Para alm do polti co . . .

    2.

    Um

    familialismo natural

    Captulo

    IV

    - O Tribalismo

    1. A nebulosa afetual

    2. O estar-junto

    toa

    3. O modelo religioso

    4. A

    socialidade

    eletiva .

    5. A lei do segredo

    6.

    Massas

    e estilos de vida

    Captulo V O Policulturalismo

    1. Da triplicidade . . . . .

    2.

    Presena

    e

    afastamento

    13

    . 22

    . 30

    . 45

    . 45

    . 56

    . 67

    . 79

    . 79

    . 91

    101

    101

    111

    115

    121

    128

    136

    143

    143

    146

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    8/124

    3. O

    politesmo

    popular

    ou

    a

    diversidade

    do deus

    4. O

    equilbrio

    orgnico .

    Captulo VI

    Da

    Proxemia . .

    1

    2

    3

    4

    Notas

    A comunidade de destino

    enius oei

    . . . .

    Tribos e redes . .

    A Rede

    das

    redes .

    152

    159

    169

    169

    179

    193

    203

    209

    A

    MANEIRA

    DE

    INTRODUO

    1.

    Algumas precaues quanto ao uso

    Ambincia, eis

    um

    termo que freqentemente reaparecer

    no .decorrer deste livro; pois talvez seja til explicar, em

    poucas palavras, que foi ele que presidiu

    sua elaborao.

    Eu tinha

    comeado uma obra precedente colocando-me sob

    a patronagem de Savonarola. Hoje invocarei a de Maquiavel,

    fazendo referncia ao que ele chama de "o pensamento

    da

    praa

    pbl ca". Para aqueles que lem, para os que sabem ler, segue

    -se uma reflexo de flego que, atravs das noes de potncia,

    de socialidade, de quotidiano, de imaginrio, pretenda

    estar

    atenta

    ao que constitui, em profundidade, a vida corrente de

    nossas sociedades, neste momento em que

    se

    conclui a era

    Moderna. As balizas agora colocadas permitem rumar com fir

    meza, na direo

    da

    cUltura que deve ser entendida no sentido

    forte do termo, e que

    est

    prevalecendo sobre o processo eco

    nmico-poltico. A tnica colocada nos diversos rituais, na vida

    comum,

    na

    duplicidade, no jogo das aparncias,

    na

    sensibHi

    dade coletiva, no destino, em suma,

    na

    temtica dionisaca,

    ainda que possa ter provocado sorrisos, no deixa de ser utili

    zada de diversas maneiras, em inmeras anlises contempor

    neas. Isso normal. A histria do pensamento demonstra muito

    bem que, ao lado dos mimetismos intelectuais ou das autolegiti

    maes a

    priori

    existem legitimidades que se constroem com o

    uso. Algumas geram um saber capitalizado, outras, no sentido

    etimolgico do termo, "inventam", isto

    fazem ressaltar o

    que est presente mas que temos alguma dificuldade em dis

    cernir.

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    9/124

    0 TEMPO

    DAS

    TRI OS

    Entretanto, no se

    trata

    de ser triunfalista. Este d i ~ c e r n i

    mento no coisa fcil. A sensatez que impera em nossas disci

    plinas, , certamente, expresso de

    uma

    prudncia necessria,

    porm, muitas vezes mortfera. interessante notar, alm di :SO,

    que ele combina muito bem com a desenvoltura a mais pre

    tenciosa. Ser que existe

    uma

    grande diferena entre o que

    M.

    Weber chamou a "pequena engrenagem de

    um

    pensamento

    tecnocrtico e o "no-me-importismo" que resgata, com lucro,

    o que ele (ou outros) semearam h muito tempo? De fato,

    um vale bem o outro, e o incensamento comum de ambos por

    parte de um pblico beato merece ateno. Ser necessrio,

    ento, como fazem alguns, vilipendiar

    uma

    poca pouco vigo

    rosa e um tanto ignara? Eu no ~ e r i a to leviano. natural

    que alguns tomem os bobos da corte por jornalistas apressa

    dos. Afinal de contas isto tambm faz parte do dado social.

    .Mas podemos, igualmente, imaginar que alguns tenham outras

    ambies, como por exemplo,

    d i r i g i r - ~ e

    a

    eS'Ses

    happy

    t w

    que

    desejam pensar por

    si

    mesmos e que encontram

    em

    tal livrp,

    ou qual anlise, uma ajuda,

    um

    trampolim que lhes permita

    epifanizar seu prprio pensamento. Ingenuidade, pretenso? O

    tempo ser o tuiz. E apenas alguns espritos avisados sabero

    antecip-lo,

    um

    pouco.

    Espero ter feito compreender que a ambio desta obra

    dirigir-se misteriosamente, sem falsa simplicidade nem compli

    cao i n t ~ l

    comunidade de espritos que, fora das igrejinhas,

    das associaes e dos sistemas, pretende pensar

    esta

    homme-

    rie , de que falava o sbio Montaigne, e que tambm o seu

    destino. Espritos livres, certamente, pois, ver-se- que, nas de

    rivas que vm a seguir, ser necessrio

    ter

    o pleno domnio

    dos prprios movimentos

    para

    a aventurosa navegao do pen

    samento. Freischwebende Intelligentzia. Talvez essa seja uma

    perspectiva inquietante mas que no deixa de ser interessante

    para os que conferem a esta aventura a importncia que lhe

    devida. Em resumo, no tenho nenhuma vontade de fazer um

    desses livros que, como dizia G. Bataille, "prendem com facili

    dade aqueles que os

    lem...

    (desses livros que)

    agradam

    o

    A

    MANEIRA

    DE

    INTRODUO

    J

    mais das vezes aos espritos vagos e impotentes que querem

    fugir e dormir"' (Oeuvres Completes, t. VIII, p. 583).

    til informar que no se trata, no caso, de

    um

    estado

    d'alma, mas de esclarecimentos

    de

    bastante valia, pois a tradi

    cional compartimentao disciplinar

    no

    ~ r respeitada, o que,

    naturalmente, no favorece a seguridade intelectual que ela

    costuma trazer comigo.

    o prprio objeto abordado que exige

    esta transgresso.

    Na

    verdade, agora aceita-se cada vez mais

    que a existncia social, da qual nos ocupamos, se presta com

    muita dificuldade ao recorte conceitual. Deixemos isso para os

    burocratas do saber, que acreditam fazer cincia, presidindo

    repartio classificada daquilo que, supostamente, cabe a cada

    um. Que a partilha seja feita em funo das classes, das cate

    gorias scio-proflssionais, das opinies polticas ou de outras

    determinaes a priori tanto faz. Para usar

    um

    termo meio

    brbaro, que nos esforaremos continuamente

    para

    ex-plicitar,

    esclarecer, o que tentaremos

    manter

    uma

    perspectiva "holls

    tica": noo que, numa constante reversibilidade, une a globa

    lidade (social e natural com os diversos elementos meio e

    pessoas) que a constituem. Isso, no rastro da temtica que

    reivindico, volta a reunir os dois extremos da cadeia,

    0

    de

    uma

    ontologia exis tenc ial e o da mais simples das trivialidades.

    1

    A prime;ra,

    tal

    como

    um

    raio lazer, iluminando as diversas ma

    nifestaes da segunda.

    evidente que, na perspectiva

    da

    diviso, que ainda tem

    um papel dominante, esse procedlmento inquietante, e se

    tender a preferir as abordagens monogrficas, ou del berada

    mente tericas. Vou desconsiderar, entretanto, as delicias

    inte

    lectuais de cada uma dessas atitudes, confiando no fato de

    que certas comideraes "inatuais" podem ser perfeitamente

    adequadas ao seu tempo. Para o que nos ocupa agora, vou citar

    Lvi-Strauss que demonstrou, com a repercusso conhecida,

    que no

    era

    o caso de exacerbar a separao clssica entre

    magia e cincia, e que, pela

    sua

    enfatizao dos "dados sens

    veis, a primeira no

    tinha

    sido, de modo algum, intil para o

    desenvolvimento desta ltima.

    2

    Por

    minha parte

    tentarei levar

    at as ltimas conseqncias a lgica dessa comparao, ou,

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    10/124

    O TEMPo

    D S

    TRIBOS

    pelo menos, aplic-la a outros tipos de polaridades prximas.

    Darei explicaes mais detalhadas, a respeito, no captulo

    final

    Entretanto, quer me parecer que existe a um paradoxo fecundo,

    e, seguramente, dos mais teis para observar as configuraes

    sociais, apoiadas cada

    vez

    mais na sinergia, daquilo que, at

    agora, se tinha tendncia a separar.

    A antinomia

    do

    pensamento erudito e do bom senso parece

    bvia E naturalmente para o primeiro o ltimo , antes de

    tudo, doente. Quando

    no

    classicado de "falsa conscincia",

    o bom senso , no mnimo, dbil. O desprezo pelas anima

    candida

    a pedra de toque da

    atitude

    intelectual. J falei a

    respeito desse fenmeno. Gostaria, agora, de

    mostrar

    que isto

    no

    deixa de ter conseqncias para explicar a incapacidade

    de compreender o que, na falta de melhor denominao, cha

    maremos a vida. Referir-se vida

    em

    geral algo que no se

    faz sem risco. Isso pode conduzir, em particular, a

    um

    devaneio

    sem horizontes, mas, na medida em que podemos lastrear esta

    perspectivao com os "dados sensveis", evocados acima, no

    deixaremos de alcanar a margem dessa existncia concreta,

    to estranha s elucubraes desencarnadas.

    Ao

    mesmo tempo,

    importante preservar a possibilidade

    da

    navegao de longo

    curw. 1: assim que se "inventam" novas terras. E isto, a cate

    goria geral o permite. Eis a em questo o problema da siner

    gia: propor

    uma

    sociOlogia vadia que no seja ao mesmo tempo

    uma

    sociologia s m objeto

    O movimento reversvel que vai

    do

    formismo empatia

    pode, tambm,

    mostrar

    o deslocamento' de importncia

    ~

    est ocorrendo, de uma ordem social essencialmente

    mecanista

    para uma

    estrutura

    complexa a dominante

    orgnica

    Assisti

    mos

    substituio da Histria linear pelo mito redundante.

    Trata-se de um retorno do vitalismo do qual pretendemos

    mostrar as diversas modulaes. Os diferentes termos evocados,

    entretanto, encadeiam-se uns aos outros. A organicidade remete

    ao impulso vital ou vida universal to c.ara a Bergson. No

    esqueamos, no

    entanto,

    que ele propunha

    uma

    intuio

    direta

    (lar

    conta dela. M. Scheler e G. Simmel partilhavam igual-

    A MANEffiA DI : Nl'llODUO

    5

    mente

    esta viso

    da

    unidade

    da

    vida.

    3

    Voltarei freqentemente

    a essa perspectiva pois, alm de

    permitir

    a compreenso do

    panvitalismo oriental, que se encontra

    na prtica

    de muitos

    pequenos grupos contemporneos,

    ela

    esclarece tambm a

    emoo e a dimenso "afetual" que os estruturam ~ n q u n t o t ~ i s

    Vemos, ento, o interesse do

    alerta

    enunciado acima.

    o

    fato de o dinamismo social no

    estar

    mais

    trilhando

    os ca

    minhos da Modernidade, no significa que esse dinamismo no

    exista mais. dentro dela. E, ao seguir o trajeto antropolgico,

    que apontei, a melhor maneira de dizer a mesma coisa de

    monstrar que

    uma

    vida quase animal percorre, em profundi

    dade, as diversas manifestaes da socialidade. Dai a insistncia

    na "reliana",

    na

    religiosidade que

    uma

    parte essencial do

    tribalismo de que vamos nos ocupar.

    Sem

    qualquer

    contedo doutrinai, podemos falar, de

    uma

    verdadei ra sacralizao das relaes sociais, que o pos tivista

    Durkheim chamou,

    sua

    maneira, o "divino social".

    assim

    que, por minha parte, compreendo a Potncia da socialidade

    que atravs da a}?steno, do silncio, e da astcia se ope ao

    Poder do econmico-poltico. Encerrarei este primeiro alerta

    com uma elucidao tirada da kabala. Para esta as "potncias"

    (Zefirot) CDnstituem a divindade. Segundo G. Scholem essas

    potncias so os elementos primordiais em que toda realidade

    se apia. Por conseguinte "a vida se espalha no exterior e vivi

    fica a criao, permanecendo, ao

    m e s ~ o

    tempo, no fnterior,

    de maneira profunda, e o ritmo fecreto do seu movimento do

    seu pulso, a lei da dinmica da natureza". 4 Este peqdeno

    ~ p l o g o permite resumir o que me parece ser o papel

    da

    socia

    hdade: para aqum e para alm das formas institudas, que

    sempre existem e que, s vezes, so dominantes, existe uma

    centralidade subterrnea

    informal

    que s ~ e g u r a perdurncia

    da vida em sociedade.

    para esta realidade que convm vol

    tarmos os nossos olhares. No estamos habituados a ela, nossos

    instrumentos de anlise e ~ t o um pouco antiquados, mas in

    meros indcios, que

    tento

    formalizar neste livro, nos

    apontam

    que este o CDntinente que nos convm explorar. Este

    um

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    11/124

    6

    O

    TEMPO

    DAS TRIBOS

    empreendimento para as prxim.as dcadas. Sabemos, que

    sempre

    post

    festum que se comea a reconheer a q U J l ~ .que .

    E

    n e c e s ~ r i o , ainda, que sejamos suficientemen.te luc1dos, _e

    sem excessivas prevenes intelectuais, para que este prazo nao

    seja longo demais.

    2.

    Quomodo

    Na verdade necessrio harmonizar, tanto

    quanto

    posshel,

    nossas maneiras de pensar e os objetos (re)nascentes de que

    queremos nos aprox:mar. Ser preciso, a esse respeito, falar

    de revoluo coperniciana? Talvez. De qualquer modo

    neces

    srio

    armar-se de uma boa dose de relativismo ainda

    que

    seja

    apenas para

    nos

    tomarmos

    receptivos para um novo estado

    de coisas.

    6

    Num primeiro momento, e no contra-p de uma

    atitude

    multo

    difundida

    na

    Modern;dade, talvez seja

    neCf ...ssftrio

    ser

    deliberadamente intil; no devemos permitir qualquer inter

    ferncia com a prtica,

    recusar

    a participao num con}leci

    mento instrumental. Lembro, a propsito, o exemplo, curiosa

    mente esquecido, dos fundadores da sociologia, que,

    na

    palavra

    desse bom hi:::toriador da disciplina que R. Nisbet, nunca

    deixaram de ser artistas . E bom

    no

    esquecer, tambm, que

    as idias, que podm v'r a se estruturar como teorias, surgem.

    antes de tud-o, do domnio da imaginao, da vis-o, d l. intui

    o .

    6

    o conselho oportuno, pois foi dessa maneira que,

    na

    virada do sculo p a ~ s a d o , os pensadores referidos, hoje autores

    cann

    cos,

    puderam

    propor pertinentes e variadas anlises do

    social. Ainda que pela fora das circunstncias, quer dizer,

    quando nos confrontamos com qualquer (re)novao social,

    necessrio praticar um certo laisser-aUer terico, sem que

    para tanto seja precim abdicar do engenho ou favorecer a

    preguia e fatuidade intelectual. Na tradio compreensiva,

    que fao

    minha,

    procedemos sempre atravs de verdades apro

    ximativas. Isto

    ainda

    mais

    importante

    quando se

    trata

    da

    vida quotidiana.

    A,

    mais

    do que

    em

    qualquer

    outra

    parte,

    no

    A

    M NEIR

    DE

    lJmtOJ)UO

    7

    temos

    por

    que nos preocupar com o que possa ser a verdade

    ltima. No caso, a verdade relativa, tributria da situao.

    Trata-:e de um situacion ismo complexo, pois o observador

    est, ao mesmo tempo, ainda que parcialmente, integrado em

    tal ou

    qual

    das situaes descritas por ele. Competncia e ape

    tncia caminham lado a lado. A hermenutica supe

    ser

    quem

    descreve

    da mesma

    substnc'a

    que aquilo que descreve.

    Ela

    requer uma

    certa

    comunidade de perspectiva .

    Os

    etnlogos

    e os antroplogos can aram-sw de insis tir nesse fenmeno.

    Creio que hora de aceit-lo tambm

    para

    as realid'ades que.

    nos so prximas.

    Mas como tudo aquilo

    que

    est nascendo frgil, incerto,

    cheio de imperfeles, nossa aborlagem tem

    as

    mesmas quali

    dades. Da a

    aparncia de

    frivolidade. Um

    terreno

    movedio

    neces ita de um tratamento adequado e no vergonha fazer

    surf sobre as ondas

    da

    socialidade. , inclusive,

    uma

    questo

    de

    prudncia que

    no

    deixa de se

    mostrar

    e f i c a ~ .

    Desse ponto

    de v:sta, a utiliza&o da metfora perfeitamente r e l e v ~ n t e

    Alm do fato de ter ela os seus tt.;;_los de nobreza e de

    utilizada

    na

    produo intelectual de todos os

    p e r o d ~ s

    de

    efer

    v e s c ~ c i a ela permite tambm essas cristalizaes especficas

    que sao

    as

    verdades aproximativas e momentneas. Disseram de

    Beethoven que ele encontrava

    na

    rua os temas de suas mais

    belas p ~ s s a g e n s o resultado no desprezvel.

    Por que

    no

    escrever1amos nos as nossas partituras a partir do mesmo cho?

    . . Assim c o ~ o . a p e r s ~ n a e

    suas

    mscaras, na

    teatralidade

    quo

    tidiana,

    a

    s o ~ 1 a l l d a d e

    e

    estruturalmente

    ardilosa, inapreensvel,

    dai a confusao dos universitrios, dos polticos, dos jornal;stas

    que a descobrem

    alhures, quando acreditam

    t-la apreendido

    Nu

    ma cornda desvairada, os mais h o n e ~ t o s vo subrepticia-

    mente, mudar de teoria, e produzir um outro s;stema, explica

    tivo e completo, para aprend-la de novo. No seria melhor

    como

    d'

    . h ,

    , eu IZia a pouco, estar nela e praticar tambm a

    a tucia? A d b

    o mves e a ord -la de frente, positivando

    ou

    criti-

    cando um dado social fugidio, utilizar uma

    ttica

    de matizes

    e _atacar de vis.

    a prtica

    da

    teologia apoftica:

    de

    D e ~

    nao

    se fala s - t -

    nao

    por

    ev1

    aoes. Desse modo, ao invs

    de

    querer,

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    12/124

    8

    0 TEMPO DAS TRIBos

    de maneira ilusria, apreender firmemente um obJeto, explic-lo

    e esgot-lo, contentar-se em descrever os seus contamos,

    seus movimentos,

    suas

    hesitaes, seus xitos e seus diversos

    sobressaltos. Mas como tudo tem a ver com tudo, e ~ s astcia,

    tambm, poder ser aplicada aos diversos

    instrumentos

    que

    tradicionalmente utilizamos em nossas disciplinas. Tanto

    para

    reter

    o que eles

    tm

    de til,

    quanto para

    ultrapassar

    sua

    rigi

    dez.

    A

    e3Se respeito gostaria de fazer como este outro

    outsider;

    que Goffman. Ele foi um dos que inventou conceitos, mesmo

    que

    tenha

    preferido, s vezes,

    utilizar

    palavras antigas,

    dan-

    do-lhes um novo sentido ou fazendo-as entrar

    em

    combinaes

    originais que rompem com o p e ~ o dos neologismos .

    8

    Preferir

    os minir.::onceitos

    ou

    as noes s certezas estabelecidas,

    mesmo que isso possa chocar, parece-me o penhor de

    uma

    atitude mental que pretende permanecer o mais perto possvel

    dos solavancos que ~ o prprios dos caminhos de

    toda

    vida

    social.

    3. Ouverture

    Eis ai, em grandes pinceladas, e quadro geral em que vo

    se mover as diversas consideraes sociolgicas que seguem. A

    ambincia de

    uma

    poca, e por conseguinte, a ambincia de

    uma pesquisa, que desenrola ao longo de muitos anos. Os

    seus resultados parciais foram regularmente testados com

    diversos colegas, com jovens pesquisadores,

    na

    Frana e em

    numerosas universidades no estrangeiro. E ela

    se

    apia

    num

    paradoxo essencial:

    O vaivm constante que s estabelece

    entre

    a mas-

    sificao crescente e o desenvolvimento dos

    microgrupos

    que chamarei tribos''.

    Trata-se d tenso fundadora que

    me

    parece caracterizar

    a socialidade deste fim de sculo. A massa, ou o povo, diferen

    temente

    de proletariado ou de outras classes, no se apiam

    numa

    lgica

    da

    identidade. Sem um fim preciso, elas

    no

    so

    os sujeitos de uma histria em marcha. A metfora da tribo,

    A MANEIRA DE INTRODUO

    9

    por sua vez, permite dar conta do processo de desindivlduali

    zao, da

    saturao

    da funo que

    lhe

    inerente, e da valori

    zao do papel que

    cada

    pessoa persona) chamada a repre

    sentar

    dentro

    dela. Claro est que, como as massas

    em

    permanente agitao,

    as

    tribos, que nelas se cristalizam

    tam-

    pouco so estveis. As pessoas que compem e s ~ s tribos ~ d e m

    evoluir de uma para a outra.

    Podemos dar conta do deslocamento que est ocorrend:> e

    da tenso que ele suscita atravs do seguinte esquema:

    Social

    Estrutura mecnica

    (Modernidade)

    organizao econmico-pol.

    1

    Indivduos

    (funo)

    1

    grupos

    contratuais

    versus)

    Socialidade

    Estrutura complexa ou

    orgnica

    (Ps-Modernidade)

    massas

    t

    1

    Pessoas

    (papel)

    1

    tribos afetuais

    (domnios culturais, produtivo, cultuai, sexual, ideolgico)

    li: em funo dessa dupla hiptese (deslocamento e tenso)

    que, ao

    meu

    feitio, farei intervir diversas leituras tericas ou

    pesquisas empricas que me parecem teis nossa reflexo

    *

    . ExisU

    um

    aspecto exotrico e

    um

    aspecto esotrico em qualquer

    Procedimento. O

    aparato

    crtico a sua expresso.

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    13/124

    10

    0

    TEMPO

    DAS

    TRm OS

    Como

    j

    disse, no se trata de fazer discriminaes, e alm das

    obras

    sociolgicas, filosficas

    ou

    antropolgicas, o romance, a

    poesia

    ou

    o caso quotidiano

    tero

    nela sua parte. O essenc al

    fazer sobressair

    algumas formas

    talvez 'irreais", mas

    que

    possam permitir a compreenso,

    no

    sentido forte do termo, desta

    multiplicidade de situaes, de experincias, de aes lgicas e

    no-lgicas

    que constituem

    a socialidade.

    Entre as formas

    analisadas, est,

    evidentemente, a do tri-

    balismo que se encontra no

    centro

    do trabalho.

    Ela

    p r e c e d i ~ a

    pelas noes de comunidade emocional,

    de

    potncia e

    de

    socia

    lidade que a

    fundamentam.

    E seguida pelas de policultura

    lismo e de proxemia

    que

    so

    suas

    conseqncias. Proponho,

    in fine.

    e a quem

    interessar

    possa, um

    mtodo

    terico

    que

    Firva de bssola

    atravs

    da selva

    induzida

    pelo tribali.smo.

    Existe,

    certamente,

    alguma

    monotonia nos assuntos

    abordados,

    e tambm certa

    redundncia,

    em funo do objeto estudado.

    Como as imagens obsessivas" que existem em toda obra lite

    rria,

    potica, cinematogrfica etc., cada poca repete, de

    ma

    neira aguda,

    mltiplas variaes

    em

    torno de alguns

    temas

    notrios.

    Por

    isso

    em

    cada uma das formas

    abordadas

    encon

    tramcs

    as mesmas preocupaes. Apenas o

    ngulo

    de aborda

    gem

    muda. Espero, asrim, dar conta do aspecto p o l i c r o m : i ~ o

    do todo social.

    Num

    ataque notvel

    contra

    a parafernalla

    causal, G

    Durand

    fala

    da teoria

    do recital", que seria a

    ma

    neira mais adequada

    de

    traduzir

    a redundncia do relato m

    tico de

    suas

    reduplicaes e

    das variantes

    que

    ele difunde.

    9

    s t ~ teoria convm, perfeitamente,

    ao

    conhecimento

    ordinrio

    que

    elaboramos e

    que

    se

    contenta em

    assinalar

    e

    re-citar

    a

    eflorescncia e a miscelnea

    repetitiva

    de um vitalismo que, de

    maneira

    cclica,

    luta contra

    a

    angstia da

    morte, repetindo

    sempre

    a

    mesma

    coisa.

    Mas essa teoria do recital, um

    tanto

    arrumadinha, no

    feita para aqueles que

    acreditam

    ser possvel esclarecer com

    ;

    Para

    no tornar pesado

    o corpo

    do texto, este

    aparato que ap:> a

    as

    minhas

    consideraes, foi remetido

    ao

    fim do l

    1

    vro. Alm da ilustra

    o

    que

    essas referncias

    pretendem

    fornecer,

    podem tambm permi

    tir a

    cada um

    avanar

    em suas prprias

    pesquisas.

    (Nota

    do

    Autor)

    A

    MANEIRA

    E

    INTRonuAo

    11

    ela a ao dos homens,

    muito

    menos para aqueles que, confun

    dindo o

    erudito

    e o poltico, pensam

    que

    p o s ~ v e l us-la como

    instrumento.

    Ela antes uma forma

    de

    quietismo

    que

    se con

    tenta

    em

    re-conhecer aquilo que , aquilo

    que

    ocorre. De certa

    forma, uma valorlzao do primus vivere . Como disse antes,

    seguramente para

    os

    h ppy

    few

    que

    estas pginas esto

    reservadas. Re-conhecer a nobreza

    das

    m a ~ s a s

    e

    das

    tribos exige

    uma certa

    aristocracia

    de esprito. Mas quero esclarecer

    que

    essa aristocracia

    no

    apangio de uma camada

    social, de um

    grupo profissional e menos

    ainda

    dos especialistas. Debates,

    colquios,

    entrevistas me ensinaram

    que podemos

    encontr-la

    equitativamente distribuda entre

    numerosos

    estudantes, traba

    lhadores

    s o ~ i a i s

    executivos,

    jornalistas, sem

    esquecer, logica

    m ~ n t e

    aqueles

    que

    so simplesmente

    homens de cultura.

    a

    estes que me dirijo e digo que

    este

    livro

    se pretende

    uma simples

    iniciao

    para

    penetrar

    naquilo

    que

    .

    Se

    ele

    fico, isto ,

    se leva

    s ltimas

    conseqncias

    uma certa

    lgica, ele

    no

    inventa

    seno

    o que ex;ste, e isso,

    certamente, lhe

    veda propor

    qualquer

    soluo

    ainda que

    para o

    futuro. Em

    contrapartida,

    tentando colocar questes

    supostamente

    essenciais, prope um

    debate

    que no se presta s tergiversaes, s aprovaes me

    docres, sem falar,

    naturalmente,

    dos silncios dissimulados.

    pocas efervescentes necessitam de impertinncias confir

    matrias. Espero ter c o l a b o ~ a d o com algumas.

    Da

    mesma

    forma

    os perodos em que as utopias se banalizam, se realizam, e em

    que

    pululam

    os

    devaneios. Algum disse

    que

    esses

    momentos

    sonham

    os seguintes?

    Sonham

    sim,

    mas

    menos

    enquanto

    pro

    jees do

    que

    enquanto fices feitas, de

    migalhas

    esparsas, de

    construes inacabadas, de

    tentativas mais ou

    menos bem suce

    didas. Na verdade

    preciso fazer uma

    nova interpretao

    desses

    SOnhos

    quotidianos. Essa

    a ambio deste livro. Sociologia

    SOnhadora

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    14/124

    C PiTULO

    A

    COMUNID DE EMOCION L

    rgumentos

    de

    uma

    Pesquisa

    1 ura esttica

    Ainda que isto assuma uma forma aguda, ser necessrio

    voltar, regularmente, ao problema o individualismo, que mais

    no seja porque ele obsessiona alis, com uma certa pertinncia,

    toda a reflexo contemp-ornea. Como tal,

    ou

    sob uma forma

    derivada, quando se fala o narcisismo, ele est no cerne de

    numerosos livros, artigos, teses, que o abordam do ponto de vista

    psicolgico, claro,

    mas

    tambm histrico, sociolgico

    ou

    poli

    tico. de certa forma

    um trajeto

    obrigatrio para quem pre

    tende contribuir com seu tijolo para a edificao de um saber

    sobre a Modernidade. Isso, certamente,

    no

    intil. Mas cria

    problemas quando esse individualismo se torna, por fora das

    circunstncias, o ssamo explicativo de numerosos artigos jor

    nalsticos, de discursos polticos

    ou

    de proposies moral;stas.

    Todos eles, sem dar a mnima importncia

    prudncia

    ou

    aos

    matizes eruditos, difundem um

    conjunto e pensamentos con

    vencionais, e um tanto catastrofistas, sobre o ensimesmamento,

    sobre o fim dos grandes ideais coletivos ou, compreendido

    no

    seu

    sentido mais amplo, sobre o fim o espao pblico. A partir

    da temos

    um

    confronto com uma espcie de doxa, que talvez

    no dure muito tempo, mas que amplamente admitida e que

    pode vir a

    mascarar

    ou denegar as novas formas sociais elabo

    radas hoje em dia, j que estas podem apresentar algumas

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    15/124

    14

    expresses bastante visiveis e outras perfeitamente subterrA.neaa.

    O aspecto espetacular das primeiras serve, alm disso, para si

    tu-las sob a rubrica das extravagncias inconseqentes que

    aparecem regularmente nos perodos conturbados. O que esti

    mula a propenso preguia que todo doxa possui.

    No tenho a inteno de abordar frontalmente o problema

    do individualismo. Vou falar dele, regularmente,

    a contrario.

    Sendo o essenc al apontar, descrever e analisar as configura

    es mciais que parecem ultrapass-lo. A saber, a massa inde

    finida, o povo sem ident idade ou o tribalismo enquanto nebulosa

    de pequenas entidades locais. Trata-se,

    claro, de metforas

    que pretendem acentuar, sobretudo, o aspecto confusional da

    socialidade. Sempre a figura emblemtica de Dionsio. A titulo

    de fico. proponho fazer "como se" a categoria, que nos servlu

    durante mais de dois sculos para analisar a sociedade, esti

    vesse completamente saturada. Costuma dizer-se que,

    muitas

    veZs

    a realidade supera a fico. Tentemos, pois,

    estar

    altura

    daquela. Talvez seja necessrio mostrar, como o fizeram certos

    romancista

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    16/124

    16

    0

    TEMPO

    D S amos

    Essa anlise pode ser aplicada aos nosss propsitos: h

    momentos em que o "divino" mcial toma corp3 atravs de umh

    emoo coletiva que se reconhece em ,;al_ q u ~ l : i ~ l f i ~ ~ o .

    O

    ro

    letariado

    0

    burgus podiam ser suJeitos h1stncos que

    p ~ t

    t

    tinham

    uma tarefa a realizar.

    Tal

    ou qual geno e?nco,

    ar_ s-

    tico ou poltico podia articular uma mensagem, CUJO _conteudo

    indicasse a direo a seguir. Uns e

    outros

    p e r m a n e c 1 ~ m

    enti-

    dades abstratas e inacessveis, que propunham um f'm a ser

    realizado. Em contrapartida, o tipo mtico tem uma s l m ~ l e s

    funo de agregao. Ele um

    puro continente .

    Expnme

    0

    gnio coletivo

    num

    momento determinado. ~ i s a

    d i f ~ r e n ? a

    que se pode estabelecer

    entre

    os perodos abstrat Vos, rac1onats,

    e os perodos "empticos".(Aqueles se apiam no principio de

    individuao, de

    ~ e p a r a o

    estes, pelo contrrio, so dominados

    pela indiferenciao, pelo "perder-se" em um

    s u j e ~ t o

    coletivo,

    o

    que

    chamarei

    de

    neotribalismo)

    Inmeros exemplos da nossa vida quotidiana podem ilus

    trar

    a ambincia ~ m o c i o n a l que emana do desenvolvimento

    tribal. Alm disso, podemos notar que esses exemplos no es

    pantam

    mais, j fazem parte da paisagem

    urbana.

    (As diversas

    aparncias punk , kik , paninari , que

    exprimem

    muito

    bem a uniformidade e a conformidade dos grupos. so como

    outras

    tantas pontuaes do espetculo permanente que as me

    galpoles contemporneas oferecem. A

    tendncia

    orientali-

    z o

    da existncia, que se observa nas cidades ocidentais.

    apresenta

    semelhanas com a anlise que fez Augustln Berque

    das relaes de

    simpatia

    entre o eu e o outro, no Japo.

    Fragilidade da distino,

    s

    vezea mesmo indistino entre o

    eu

    e

    0

    outro, entre o sujeito e o objeto, eis algo que se presta

    reflexo. A idia

    da

    extensibilidade do eu

    ( um

    ego relativo e

    extensvel") pode E:er

    uma

    alavanca

    metodolgica das mais per

    tinentes para a compreenso do mundo contemporneo.

    3

    No

    vale a

    pena

    lembrar a fascinao que o

    Japo

    exerce

    hoje

    em

    dia nem mesmo fazer referncia

    sua pedormatividade

    eco-

    nmica

    ou t e c n o l g ~ c a para

    sublinhar o fato de que, se a dis-

    tino

    , talvez,

    uma

    noo

    que

    se aplica

    Modernidade,

    por

    A COI\' UNIDADE

    EMOCIONAL

    17

    outro

    lado ela

    totalmente

    inadequada para descrever as

    formas de agregao social

    que

    vm

    luz.

    Estas

    tm contornos

    indefinidos. O sexo, a aparncia, os modos de vida, at mesmo

    a ideologia so

    cada

    vez mais qual ficados em termos ( trans .. ",

    meta ") que ultrapassam a lgica identitria e/ou binria.

    Em

    resumo, e dando a esses termos a sua acepo mais estrita,

    pode-se

    dizer'

    que

    assistimos

    tendencialmente

    substitu

    1

    o

    de um um social racionalizado por uma socialidade com domi-

    nante emptica.

    Essa vai exprim

    1

    r-se numa suce"so de ambincias, de sen

    timentos, de emoes.

    interessante notar, por exemplo, que

    aquilo a que se refere a noo de

    Stimmung

    (atmosfera)

    prpria do

    romantismo

    alemo, serve cada vez mais, ora

    para

    descrever

    as

    relaes que imperam no interior dos microgrupos

    soc;ais, ora

    para

    especificar como esses

    gru JOs

    se situam nos

    seus contornos espaciais (ecologia, habitat, bairro). Da mesma

    forma, a utlUzao

    constante

    do

    termo

    ingls

    rteelinff'

    no

    quadro das relaes interpessoais merece ateno. Servir de

    critrio

    para medir

    a qualidade das trocas, para decidir sobre

    o seu prosseguimento ou sobre seu

    grau

    de aprofundamento.

    Ora,

    c e

    nos referimos a um modelo d organizao racional,

    o que existe de mais instvel do que o sentimento?

    De fato, parece necessrio mudar .as nossas

    maneiras

    de

    avaliar os

    reagrupamentos

    sociais. Deste ponto de vista pode

    mos utilizar, vantajosamente, a anlife scio-histrica que M.

    Weber faz da comunidade emocional" Gemeinde). Ele escla

    rece que se trata de

    uma

    "categoria",

    quer

    dizer, algo que nunca

    existiu de verdade,

    mas que

    pode servir como revelador de situa

    es presentes. As grandes caractersticas atribudas a essas

    comunidades emocionais so: o aspecto efmero, a "composio

    camb:ante", a inscrio local,

    a

    ausncia de

    uma

    organizao"

    e a

    estrutura

    quotidiana

    V e r a U t i i g l ~ c h u n g ) .

    Weber mostra

    tambm como, sob ttulos diferentes_ esses reagrupamentos

    encontram-se em todas as religies, e, geralmente,

    parte dof

    enrijecimentos instituconais.

    4

    A eterna histria do ovo e dr

    galinha.

    difcil estabelecer

    uma

    anterioridade,

    mas

    ressalta

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    17/124

    18

    O TEMPO

    DAS

    TtUBos

    de sua anlise que a ligao entre a emoo partilhada e

    a-

    comunalizao aberta que suscita essa multiplicidade de

    grupos, que chegam a constituir

    uma

    forma de lao c i a l ,

    no

    fim das contas, bem slido. Trata-se de uma modulaao perma

    nente, que,

    tal

    como fio conduto:, percor:e ~ d o o corpo social.

    Permannc a e instabilidade serao os dms polos em torno dos

    quais se articular o emocional.

    J :

    conveniente esclarecer, desde o inicio, que a emoo da

    qual se trata no pode ser assimilada a um " p a t ~ o ~ ' _qualquer.

    Parece-me equivocado interpretar os valores dioms1acos, aos

    quais esta temtica remete, como sendo manifestaes Wmas

    do ativismo coletivo prprio

    d-o

    burguesismo. Primeiro foi

    marcha

    comum

    para

    o esprito, depois o dominio orquestrado

    da natureza e d-o d e s e n v o l v ~ m e n t o tecnolgico, finalmente, a

    instrumenho coordenada dos afetos sociais. Esta perspectiva

    e x c e ~ s i v m e n t e teleolgica ou dialtica. Certamente algumas

    realizaes, como este paradigma

    q u ~

    o

    lub

    Mditerranne

    militam neste sentido. Mas nossa anlise deve estar

    atenta

    ao

    fatJ de que aquilo que predomina, maciamente, na atitude

    grupal, o dispndio, o acaso, a desindividualizao, o que no

    permite ver na comunidade emocional uma etapa nova da pa

    ttica e linear marcha histrica da humanidade. Vrias con

    versas com o filsofo italiano Mario Perniola chamaram minha

    ateno para este ponto.

    5

    E prolongando seus trabalhos, sob

    um ponto de vista sociolgico, direi que a esttica do "ns"

    um

    misto de indiferena e de energia pontual. Paradoxalmente

    encontra-se

    a

    um

    singular desprezo por toda atitude projetiva

    e uma inegvel intensidade

    na

    prpria ao. isso que caracte

    riza a p o t n c ~ impessoal

    da

    proxemia.

    , A sua maneira, Durkheim no deixou de sublinhar e ~ s e

    fato. E se, como de hbito, permanece prudente,

    nem

    por isso

    deixa de falar da natureza social dos sentimentos" e enfatizar

    sua eficcia. "Indignamo-nos em comum" escreve, e sua des

    crio remete

    proximidade do bairro e sua misteriosa "fora

    de atrao" que faz com que alguma coisa tome corpo. neste

    quadro que se exprime a paixo, que as crenas comuns so

    A COMUNIDADE EMOCIONAL

    lf'

    elaboradas, ou, simplesmente, que

    :e

    procura a companhia

    "daqueles que pensam e que

    sentem

    como ns . ) Estas notas,

    bastante banais, dir-se-ia, podem apl;car-se a mltiplos objetos.

    Elas sublinham, principalmente, o aspecto imupervel do subs

    trato quqtidiano. Ele

    ser:e de

    matriz, a partir da qual se cris

    talizam todas

    as

    representaes. Trocas de sentimentos dis.

    cusses de botequim, crenas populares,

    v i ~ e s

    de mundo e

    outras

    t ~ g a r e l i c e s

    sem consistncia

    que

    constituem a solidez

    da comunidade do destino. Pois, ao contrrio do que,

    at

    hoje,

    era

    de bom tom admWr, podemos concordar que a razo

    tem

    muito pouco a ver com a elaborao e a divulgao das opinies.

    A difuso destas, tanto entre os primeiros cristos quanto entre

    os socialishs do sculo. XIX, se deve muito mais a.as m e c ~ m s -

    mos de contg

    1

    o do sentimento,

    ou

    da emoo, vividos em

    comum. Seja no quadro das redes das pequenas clulas con

    viviais ou pela tica do cabar, ao gosto das freqentadores,

    a emoo coletiva algo encarnado, algo que joga com o con

    junto das facetas daquilo que o sbio Montaigne chamou

    l'hommerie : esse mito de grandezas e de infmias, de idias

    generosas e de pensamentos mesqu;nhos, de idealis ll{) e de

    arra

    1

    gamento mundano, em Euma, o homem.

    Podemos deduzir que isso que assegura uma (forma de

    solidariedade, de continuidade atravs

    das

    hist6rias humanas)

    Falei acima em comunidade de destino. Esta pode, s vezes,

    exprimir-se atravs do quadro de

    um

    projeto racional

    e/ou

    po

    ltico.

    s

    vezes, pode tomar, ao contrrio, o caminho mais

    delicado e menos definido

    da

    sensibilidade coletiva. Neste caso

    a tnica recai sobre o aspecto confus onal do pequeno grupo.

    Este, concatenando-se com outros grupos, assegura a perdu

    rncia da espcie.

    No

    primeiro caso, produz-se o que Halbwachs

    chama de "viso de fora" que a histria; no segundo caso,

    pelo contrrio, se elabora, "vista de dentro", uma memria co

    letiva

    Prosseguindo com o paradoxo, esta memria coletiva; por

    um

    lado, est ligada ao espao prximo, por

    outro

    lado,

    trans-

    cende o prprio grupo e o

    situa numa

    "linhagem" que se pode

    compreender, seja

    stricto

    sensu, seja numa. perspectiva imagi-

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    18/124

    20

    0 TEMPO

    DAS

    TRIBOS

    nria.

    e

    toda maneira, sob qualquer denominao que se lhe

    d ( emoo, sentimento, mitologia, ideologia) a sensibilidade

    coletiva, ultrapassando a atomizao individual, suscita as con

    dies de possibiPdade

    para uma

    espcie de

    aura

    que vai

    particularizar

    tal

    ou qual poca: como a aura teolgica na I d ~ d e

    Mdia, a aura poltica no sculo XVIII, ou a aura progressts:a

    no sculo XIX.

    possvel que se assista agora,

    elaboraao

    de

    um

    3

    aura

    esttica

    onde

    se

    reencontraro, em propores

    d i v e r s a ~ os

    elementos que remetem pulso comunitria,

    propenso mstica ou perspectiva ecolgica. O que quer que

    possa parecer, existe uma ligao slida entre esses diversos

    termos. Cada um, sua maneira, d -conta da organicidade das

    coisas, deste glutinum mundi que faz com que apeE ar da (ou

    por causa da) diversidade

    um

    conjunto constitua um corpo.

    Essa solidariedade orgnica se expressa de mil. maneiras

    e, certamente, neste sentido que devemos interpretar o res

    surgiment do ocultismo, dos cultos sincretistas e, mais parti

    cularmente, a importncia conferida ao espiritualismo ou

    astrologia. ~ t a ltima, em particular, no pode mais ser con

    siderada um assunto de mocinhas sonhadoras. E algumas pes

    quisas em curso fazem ressaltar

    sua

    dupla inscrio cultural

    e natural. A propsito, Gilbert

    Durand

    demonstra muito bem

    que a astrologia, centrada no indivduo, de origem recente,

    e que a astrologia clssica teve como objetivo primeiro o s-

    tino

    do grupo, da

    cidade terrestre .

    8

    A astrologia se inscreve

    numa

    perspectiva ecolgica representada pelas casas que

    predispem cada um a viver

    num

    ambiente

    natural

    e social.

    sem entrar a fundo nessa questo, podemos enfatizar que ela

    participa

    da

    aura esttica

    aistheSiSQ

    que se apia na unio,

    ainda que pontilhada do macrocosmo e dos microcofmos, e dos

    microcosmos entre si. O que se pode e x t r a ~ r desse exemplo, bem

    como dos que lhe so prximos, que servem de reveladores

    d.a clima holista que

    sustenta

    o ressurgimento do ~ o l i d a r i s m o

    ou da organicidade de todas as coisas.

    Desfa maneira, ao contrrio da conotao que se lhe atribui

    freqE:ntemente, a emoo

    ou

    a sensibilidade devem, de algum

    modo, ser consideradas como

    um

    misto de objetividade e de sub-

    COMUNIDADE

    EMOCIONAL

    21

    jetividade. Na minha reflexo sobre

    a

    questo da proxemia (cf.

    cap. VI), propus cham-la de espiritualidade materialista. Ex

    presso meio gtica que se confunde com aquilo que A. Berque,

    a propsito da eficcia do meio, chama de relao trajetiva

    (subjetiva e objetiva). Com efeito, est

    na

    hora de observar que

    a lgica binria da separao que prevaleceu

    em

    todos os

    d.a-

    minios no pode mais ser aplicada de maneha estrita. Alma

    e corpo, esprito e matria, o imaginrio e a ecouomia, a ideo

    logia e a produo - a lista poderia ser muito longa - no

    se opem de maneira radical. Na verdade, essas entidades, e as

    minsculas situaes concretas que elas representam; se con

    jugam

    para

    produzir

    uma

    vida quotidiana que, cada

    vez

    mais,

    escapa

    taxinomia simplificadora

    qual havamos sido habi

    tuados por um certo positivismo reducionista. Sua sinergia

    produz esta sociedade complexa que, por sua vez, merece uma

    anli se complexa. O multidimensional e o i n s ~ p a r v e l , para

    retomar

    uma

    expresso de Morin,

    9

    nos introduz

    numa

    espiral

    sem fim que trnar obsoleta a tranqila e bastante enjoada

    contabilidade dos burocratas do saber.

    Em funo de precaues e de elucidaes, podemos atribuir

    metfora

    da

    sensibilidade

    ou da

    emoo coletiva,

    uma

    funo

    de conhecimento. Trata-se de tima alavanca metodolgica que

    nos introduz no cerne

    da

    organicidade caracterstica das cida

    des contemporneas. Dai este aplogo: Imaginai, por um ins

    tante, que o Padre Eterno queira levar com ele para o cu uma

    casa de Npoles.

    Para

    seu deslumbramento ele perceberia, pouco

    a pouco, que todas as casas de Npoles,

    com.a uma

    grande

    gambiarra, viriam

    atrs da

    primeira,

    uma

    aps

    outra,

    casas,

    varais de roupa, canes de mulheres e gritos de crianas.

    10

    essa a emoo que cimenta

    um

    conjunto. Este pode ser com-

    posto por uma pluralidade de elementos, mas tem sempre uma

    ambincia especfica que os torna solidrios

    uns

    com os outros.

    E s ~ a experincia vivida, inicialmente, como tal, e conve

    niente que o erudito saiba dar conta disto. Resum;ndo, pode

    mos dizer que aquilo que caracteriza a esttica do sentimento

    no

    de modo

    algum

    uma

    experincia individualista ou inte-

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    19/124

    22

    TEMPO DAS amos

    ror", antes pelo contrrio,

    uma outra

    coisa que,

    na

    sua

    essncia, abertura para os outros, para o Outro. Essa abertura

    conota o espao, o local, a proxemia onde se representa o des

    tino comum.

    o que permite estabelecer

    um

    lao estreito entre

    a matriz ou aura esttica e a experincia tica.

    2.

    experincia tica

    J

    disse, falando de imoralismo tico, que esse termo nada

    tem

    a ver com um moralismo qualquer, to em voga nos tempos

    que correm. Depois voltarei a essa questo. Entretanto,

    numa

    palavra, quero esclarecer que, a

    uma

    moral imposta e abstrata

    pretendo opor

    uma

    tica que se origina num grupo determi

    nado, que , fundamentalmente, emptica (Einfhlung), pro

    xmica. A histria pode dignificar uma moral uma poltica);

    o espao, por sua

    vez

    vai favorecer uma esttica e produzir

    uma

    t1ca.

    Vimos que a comunidade emocional instvel, aberta, o

    que pode torn-la, sob muitos aspectos, anmica com relao

    moral estabelecida. Ao mesmo tempo ela no deixa de suscitar

    um

    conformismo estrito entre seus membros. Existe uma "lel do

    meio",

    qual muito difcil escapar. Conhecemos os aspectos

    extremos dela: a mfia, as associaes de ladres. Mas, com

    freqncia, esquecemos que no meio dos negcios impera uma

    conformidade femelhante.

    Da

    mesma forma no meio intelectual,

    e poderamos multiplicar os exemplos

    vontade.

    verdade que,

    sendo diferenciado o grau de vinculao, nesses diferentes meios,

    a fidelidade s regras do grupo, freqentemente no-ditas, est

    sujeita a mltiplas variaes.

    ,

    no entanto, difcil ignor-la

    por completo. Seja como for, de maneira no normativa,

    importante avaliar seus efeitos, Eeu carter marcante e, talvez,

    sua

    dimenso prospectiva. Com efeito, a partir da doxa indi

    vidualista, de que j falei, a persistncia de um ethos de grupo

    ,

    muitas vezes, considerada um arcasmo

    em

    vias de ext1no.

    Mas parece que,

    na

    verdade, est ocorrendo

    uma

    evoluo.

    Assim,

    tanto

    no que diz respeito aos pequenos grupos produ-

    A COMUNID DE

    EMOCION L

    23

    tivos, dos quais permanece como simbolo a Silicon Valley, at

    ao que se chama "grupismo" dentro

    da

    empresa nipnica, per

    cebemos que a tendncia comunitria pode

    caminhar

    lado a

    lado com o desempenho tecnolgico ou econmico. Fazendo o

    balano dos diversos estudos a esse respeito, A. Berque

    constata

    que "o grupismo difere

    do

    gregarismo no fato de que cada

    membro do grupo, conscientemente

    ou

    no, se esfora, sobre

    tudo,

    para

    servir ao interesse do grupo ao invs de,

    s i m o l e ~ -

    m e n t e ~ procurar refgio nele".

    1

    1.

    O termo "grupismo",

    aluda

    que nao seja especialmente eufnico,

    tem

    o mrito de sublinhar

    a fora desse processo de identificao, que possibilita o devota;.

    mento graas ao qual se refora aquilo que comum a todos.

    Talvez seja prematuro extrapolar o

    ~ i g n i f l c a d o

    de alguns

    exemplos ainda

    isolados, ou de uma situao particular, como

    lil do Japo. Se estes exemplos

    no

    valem mais, tampouco valem

    menos do que os que privilegiam o narcisismo contemporneo.

    Que mais no seja, eles se referem

    esfera econmica, .fetiche

    por excelncia da ideologia dominante, ao menos agora. Vejo

    ai

    uma ilustrao a mais do holismo que se esboa sob nossos

    .olhos. Forando as portas da privacy , o sentimento

    ganha

    s-

    p ~ o

    ou em certos pa1ses, refora sua presena no espao p

    bhco e produz uma forma de solidariedade que no se pode ma s

    ignorar. necessrio notar que alm do desenvolvimento tec

    nolg'co, essa wlidar:edade reinvestiu a forma comunitria que

    acreditvamos haver ultrapassado.

    Podemos nos interrogar sobre a comunidade, sobre a nostal

    gia que lhe serve de fundamento, ou sobre as utilizaes polticas

    que dela foram feitas. De minha parte, r.epito, trata-se de

    uma

    "forma" no sentido que dei a este termo,

    12

    que ela tenha exis

    tido ou no, tanto faz. Basta que essa id;a, como um pano de

    fundo, permita ressaltar

    tal

    ou qual realizao social, que pode

    ser imperfeita,

    at

    mesmo pontual, mas que nem por isso deixa

    de

    exprimir a cristalizao particular de s e n t ; m ~ n t o s comuns.

    Nessa perspectiva "formista", a comunidade vai se caracterizar

    menos por um projeto (pro-jectum), voltado para o futuro do

    que pela efetuao

    in

    actu

    da pulso de estar-junto. Obser-

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    20/124

    24

    T MPO DAS TRIBos

    vando expresses da vida quotidiana, tais como

    dar

    calor hu

    mano, cerrar fileiras, fazer uma corrente pra frente, podemos

    pensar que talvez esteja ai o fundamel}.to mais simples

    da

    tica

    comunitria. Alguns psiclogos destacaram que existe uma

    ten

    dncia gliScromorta

    nas

    relaes humanas Sem entrar

    no

    mrito

    da questo, parece-me que esta a viscosidade que se

    exprime

    no estar-junto

    comunitrio. Assim sendo, insisto,

    para

    evitar qualquer desvio moralizante, que, por fora das circuns

    tncias, porque existe proximidade (promiscuidade), porque

    existe a

    partilha

    de um mesmo territrio (seja ele real ou sim

    blico),

    que

    vemos nascer a idia comunitria e a tica que

    o seu corolrio.

    Para invalidar esses termos, dando-lhes

    uma

    conotao

    passadis ta, chegou-se a falar de tica de aldeia ou de bairro.

    Podemos

    lembrar

    ainda, que este ideal

    o m u n ~ t r i o

    encon

    trado tambm na ideologia populista e,

    mais

    tarde, no anar

    quismo,

    cuja

    bafe

    exatamente

    o

    ajuntamento

    proxmico.

    Para os anarquistas, em particular os russos Baknin e Herzen,

    a comunidade alde (obrotchina ou mir) a

    prpria

    base do

    socialismo em marcha. Complementada pelas associaes de

    artesos

    (artels), ela prepara uma civilizao fundamentada no

    solidarismo. 1s o interesse dessa viso romntica ultrapassa a

    habitual

    dicotomia

    prpria

    do burguesismo

    da

    poca, tanto na

    sua verso capitalista, quanto na sua verso marxista. Com

    efeito, o devir humano considerado como um todo. isto

    que

    d obrotchina

    seu aspecto prospectivo. Notamos ainda que

    esta forma social pde, com razo,

    seF comparada

    com o fou

    rierismo e, em particular, com o falanstrio. F. Venturi, em seu

    livro, agora clssico, sobre o populismo russo no sculo XIX,

    faz essa aproximao. E, o

    que

    serve muito

    bem

    .ao nosso pro

    psito, repara

    na

    ligao que existe

    entre

    essas formas sociais

    e a busca "de uma moralidade diferente". Ele o faz com algu

    ma reticncia. Para ele, sobretudo no que concerne ao falans

    trio, essa busca faz

    parte

    do reino das "extravagncias".

    14

    o

    que

    o digno historiador italiano no viu, que, para alm

    de

    sua

    aparente

    funciDnaEdade, todo

    conjunto

    social possui

    um

    A COMUNIDADE EMOCIONAL

    25

    forte

    componente

    de ~ e n t i m e n t o s vividos em comum. So esses

    que suscitam essa procura de uma moralidade diferente", que

    prefiro chamar de

    uma

    experincia tica.

    Para retomar a oposio clssica, pode-se dizer que a socie

    dade est voltada para a histria futura. A comunidade, por

    sua vez, esgota

    sua

    energia

    na

    prpria criao (ou, eventual

    mente,

    recreao).*

    Isso o

    que

    permite

    estabelecer

    um

    lao

    entre a tica comunitria e a solidar edade. Um dos aspectos

    particularmente marcante dessa ligao o desenvolvimento do

    ritual. Como sabemos, este no ,

    propriamente,

    teleolgico, isto

    , orientado para um f;m, pelo contr rio, ele ' repetitivo e,

    por

    isso mesmo, d

    segurana. Sua

    nica funo

    reafirmar

    o sen

    timento que um dado grupo

    tem

    de si mesmo. O exemplo das

    festas corrobori , mencionado

    por Durkheim,

    muito esclare

    cedor neste sentido. O

    ritual

    exprime o

    retorno

    do mesmo. No

    caso atravs da multipl:cidade dos gestos rotineiros ou quoti

    dianos, o

    ritual

    lembra

    comunidade que

    ela

    "

    um

    corpo".

    Sem

    a necessidade de verbalizar isto, o ritual serve de anamne.se

    solid'3.riedade e, como indica L.

    V.

    Thomas, "implica na m o b ~ l i -

    zao

    da

    comunidade". Como dizia h pouco, a comunidade

    "esgota" sua

    energia

    na sua prpria criao. O ritual, na sua

    repet;tividade o indcio

    m3.is

    seguro desse esgotamento. Mas,

    fazendo isto, assegura a perdurncia do grupo. Foi e5 te para

    doxo que o antroplogo

    da

    morte viu muito bem a propsito do

    ritual funerrio

    que

    restaura "o ideal

    comunitrio

    que reconci

    lia(ria) o homem com a morte, e com a vida".

    15

    Como vou

    explicar

    adiante,

    h

    momentos

    em

    que

    a comunidade de des

    tino sentida com

    maior

    acuidade. Nessas ocasies,

    por

    con

    densao progressiva, a ateno se volta para aquilo que une.

    Unio de certo modo

    pura.

    Sem contedo preciso. un:o para

    enfrentar

    em conjunto,

    de maneira q u ~ e

    animal,

    a presena

    da morte. a

    presena em

    face da

    morte.

    A histria, a poltica e

    a moral

    superam-na no drama

    (dramein) que evolui

    em

    funo

    dos problemas que se colocam e os resolve, ou tenta faz-lo.

    O autor faz

    um

    jogo de palavras:

    cratton;recration,

    quer di

    zer, criao-re-criao/recreao.

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    21/124

    26

    0 TEMPO

    DAS

    TRIBOS

    o

    Destino, a esttica e a tica, pelo contrrio,

    esgotam-na

    num

    trgico que se apia sobre o instante eterno e faz brotar, graas

    a isso, uma solidariedade que lhe prpria.

    Viver ma morte quotidiana poder ser o resultado de

    um

    sentimento

    coletivo que

    ocupa

    um

    lugar

    privilegiado

    na

    vida

    social. essa sensibilidade comum que favorece um

    ethos

    cen

    trado

    na

    proximidade. Isso significa, singelamente,

    uma

    manei

    ra

    de ser- alternativa, tanto no que diz respeito

    produo,

    quanto repartio dos bens (econmicos ou simblicos). Em

    sua

    anlire

    das

    multides,

    por

    vezes sumria, mas

    sempre

    rica

    em lampejos de lucidez, G.

    e Bon

    observa que as regras

    dP.ri

    vadas da eqidade terica pura no poderiam conduzir as

    muWdes". E que, em geral a impresso desempenha neste

    processo

    um

    papel importante.

    16

    Isto significa

    que

    a

    prpria

    justia

    est mbordinada experincia prxima, que a

    justia

    abstrata e terna relativizada pelo

    sentimento

    (seja ele de dio

    ou

    de amor) vivido

    num

    territrio

    dado. Numerosos relatos,

    quer falem de carnificinas ou de atos de generosidade, ilustram

    esta afirmao geral. O comerciante doutrinariamente racista

    proteger o rabe da esquina , a.ssim como o pequeno _burgus

    ~ e c u r i t r i o no denunciar o pequeno vigarista do bairro, e

    assim

    por

    diante. No s a mfia que

    tem

    a lei

    -do

    silncio.

    Os policiais que fazem investigaes

    numa

    aldeia, ou

    num

    bairro,

    sabem muilto bem

    disso.

    Ora,

    o

    denominador

    comum dessas

    atitudes (que mereceriam

    um

    tratamento especfico) a soli

    dariedade

    oriunda

    de

    um

    sentimento

    partilhado.

    Ampliando um pouco o territrio, encontramos,

    ajudados

    pela mdia, reaes similares a nvel da

    aldeia

    global". No

    uma

    lei de justia

    abstrata

    que favorece o desenvolvimento dos

    resto

    du coeur ,

    dos grupos de amigos que se encarregam de

    desempregados, ou

    outras

    manifestaes caritativas.

    Podemo >

    mesmo dizer que, numa perspectiva linear e

    racional

    de

    justia,

    estas manifestaes so

    um

    pouco anacrnicas, para no dizer

    reacionrias. Artesanais e pontuais, elas no se prendem ao

    cerne

    de

    tal

    ou

    qual problema.

    Podem

    na verdade

    servir

    de

    .Ubi

    e

    representar

    o

    papel

    de curativo

    numa

    perna

    de pau.

    E devemos ad1mtlr

    que

    isto funciona e mobiliza as emoes

    coletivas. Podemos interrogar-nos sobre o significado, ou sobre

    a recuperao poltica, dessas manifestaes. Podemos, igual

    mente, e

    este

    o objetivo dessas notas, sublinhar, pnr

    um

    lado

    que no se spera mais, apenas, do Estado avassalador que se

    encarregue de certos problemas, cujos efeitos so visveis c pr

    ximos, e por

    outro

    lado indicar que a sinergia dessas aes, pelo

    vis

    da

    imagem

    televisiva, pode

    ter

    um

    resultado no negli

    genc vcl.

    Num

    e noutro caso. aquilo que est

    mais

    p-erta,

    ou

    a realidade longnqua, aproximada pela imagem, repercutem

    fortemente em

    cada

    um, constituindo assim,

    uma

    emao cole

    tiva.

    Trata-se

    de um mecanismo que est longe de ser secun

    drio. Reencontra-se aqui a idia

    holista

    (global) qu2

    or:enta

    nossas afirmaes: a sensibilidade

    comum

    que fundamenta os

    exemplos dados, vem do fato de se participar de, ou corres

    ponder a, no sentido estrito ou talvez mstico destes termos,

    um ethos comum.

    Para

    formular

    uma

    lei sociolgica, direi,

    como

    um

    Zeitmotiv,

    que se privilegia menos aquilo a que

    cada

    um vai aderir voluntariamente (perspectiva contratual e me

    cnica) do que aquilo que

    emocionalmente

    comum

    a todos

    (perspectiva sensvel e

    orgnica).

    Essa a experincia tica que a racionalizao

    da

    ex1stn

    cia

    havia

    ban;do. isto, tambm, que a renovao

    da

    ordem

    moral traduz de modo bastante equivocado, pois pretende ra

    cionalizar e universalizar as reaes ou situaes pontuais,

    apresentando-as como novos

    a

    priori, quando sua fora pravm

    do fato de estarem ligadas a

    uma

    sensibilidade local. E

    no

    seno a

    posteriori

    que elas se encadeiam num efeito de estru

    tura global. O ideal comunitrio de

    bairro ou

    aldeia age

    mais

    J:Or cont:tminao do

    imag'nrio

    coletivo do que por persuaso

    de uma razo social.

    Para retomar um

    termo que foi empre

    gado por

    W.

    Benjamin em ma reflexo sobre a obra de arte,

    direi que estamos

    na

    presena de

    uma aura

    especifica, que

    num

    mov;mento de

    feed-back

    provm do corpo social e, de re

    torno o determina. O que resumirei da seguinte maneira:

    a sensibilidade coletiva, originria da forma esttica acaba

    por consti'tuir uma

    relao tica.

    A

    COMUNIDADE EMOCIONAL

  • 7/26/2019 O Tempo Das Tribos

    22/124

    28

    0 T IPo DAS TuBos

    S conveniente insistir nesse ponto, mesmo que seja

    apenas

    para

    relativizar os ukasses positivistas que s querem ver no

    imag nrio coletivo um

    figurante

    suprfluo que se pode dis

    pensar

    em

    tempos de crise. Com efeito, podemos dizer que ele

    toma as formas mais diversas.

    As

    vezes se manesta de maneira

    macroscpica e informa os

    grandes

    movimentos de massa, as

    diversas cruzadas. revoltas pontuais,

    ou

    revolues politicas e

    econmlcas.

    As

    vezes, pelo contrr io, ele se crist aliza de

    maneira

    microscplca e vai

    irrigar

    em profundidade a vida de uma mul

    tiplicidade de grupos sociais. As vezes, finalmente, ocorre uma

    continuidade entre este ltimo processo (esotrico) e as mani

    festaes g e r a i ~ (exotricas) antes indicadas.

    Seja

    como for,

    trata-se realmente de

    uma

    aura de rbita mais ou menos

    extensa, que serve de matriz a esta realidade, sempre e nova

    mente admirvel, que a socialidade.

    ~ d e s s a perspectiva que devemos apreciar o ethos da comu

    n ~ d a d e Aquilo que chamo "aura" evita que nos pronunciemos

    sobre a sua existncia ou no-existncia-. Parece que tudo fun

    ciona "como se"

    ela

    existisse. Nesse sentido podemos compre

    ender o tipo-ideal da "comunidade emocional"

    M.

    Weber), a

    categoria "orgistico-exttica" (K.

    Mannheim),

    ou aquilo que

    chamei

    de forma dionisaca.

    Cada

    um desses exemplos uma

    caricatura, no sentido simples do termo, do

    sair

    de si, ex-stase

    que

    est na lgica do ato socialP

    Parece

    que esse

    "xtase"

    muito mais eficaz na medida

    em

    que diz respeito aos pequenos

    grupos, e por isso se toma

    mais

    perceptvel para o observador

    social.

    S

    para dar

    conta

    desse

    conjunto

    complexo que proponho

    usar,

    como metfora, os termos de

    "tribo"

    ou de "tribalismo".

    Sem adorn-los, cada vez,

    de

    aspas, pretendo insistir

    no

    aspecto

    "coesivo" da partilha

    sentimental

    de valores, de lugares

    ou

    de

    ideais que esto, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos

    (localismo) e que so encontrados, sob diversas modulaes, em

    numerosas experincias ~ o c i a i s S esse vaivm

    constante

    entre

    o esttico (espacial) e o dinmico (devir), o anedtico e o

    ontolgico, o ordinrio e o antropolgico, que faz

    da

    anlise da

    sensibilld.de coletiva um insrumento de

    primeira

    ordem. Para

    9

    ilustrar essa observao epistemolgica darei apenas um exem

    plo, o do povo judeu.

    Sem poder,

    nem

    querer fazer dele um anlise especifica, e

    contentando-nos com indic-lo como uma d reo de pe"quisa,

    podemos