Observabilidade dos fatos naturais e Objetividade: muito além da percepção e da instrumentação

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XVI ENCONTRO NACIONAL DA ANPOF Campos do Jordo (SP) 27 a 31 de outubro de 2014

XVI ENCONTRO NACIONAL DA ANPOFCampos do Jordo (SP)27 a 31 de outubro de 2014Observabilidade dos fatos naturais e Objetividade: muito alm da percepo e da instrumentaoOswaldo Melo Souza FilhoAcademia da Fora [email protected]

As ideias de um observador isento, de uma proposio observacional segura, de uma evidncia observacional objetiva etc., so mitos do senso comum ou de um positivismo recalcitrante?Pode-se falar em objetividade cientfica mesmo se a observao est impregnada de teoria?O tratamento puramente epistemolgico-lingustico, em detrimento do ontolgico, criou as condies para que a noo de realidade se tornasse cada vez mais fugidia e problemtica, dando a impresso de que o nosso conhecimento no tanto sobre o mundo, mas sobre os conceitos sobre o mundo. Esta questo relevante?Ir alm dos fenmenos, postulando-se teoricamente coisas e entidades existentes externamente nossa conscincia, um inflacionismo metafsico desnecessrio ao trabalho cientfico?

Algumas questes que me proponho tratar neste trabalhoA tese da impregnao terica da observao;A neutralidade da observao com relao a teorias;A natureza do que observado;A observabilidade dos fatos naturais;A distino sensao/percepo;A distino percepo/observao;A distino observao/experincia;A objetividade da observao dos fatos naturais;A objetividade da experimentao com as coisas/entidades naturais Nicholas Rescher no seu idealismo conceitual, no berkeleyano, diz em uma entrevista (2004) que quase trivial o seguinte ponto de vista:the only access way we have to coming to grips with the worlds realities is via the intellectual resources that we create for handling these things, and that while the realm of the ideal is not coordinate with the realm of the existent, nevertheless the way in which we grasp the existent and the way in which we can form our views about the nature of reality, has to proceed via cognitive, mental, ideational, conceptual resources that we create for handling that material so that it isnt that thought is about things that are mentalistic in nature, but rather that the way in which thought proceeds is through the utilization of mind-provided materials. a nica via de acesso que temos para chegar a lidar com as realidades do mundo atravs dos recursos intelectuais que criamos para manusear estas coisas, e que embora o domnio do ideal no coordenar com o domnio do existente, no entanto, o modo como agarramos o existente e o modo no qual formamos nossas vises sobre a natureza da realidade, tem que passar pela via dos recursos conceituais, cognitivos, mentais, ideacionais que criamos para lidar com este material, de forma que no que o pensamento seja sobre coisas que so mentais por natureza, mas sim que o caminho no qual o pensamento procede atravs da utilizao de materiais fornecidos pela mente.

Mario Bunge no Chasing Reality: Strife over Realism (2006, p. 6) diz:Embora as aparncias estejam apenas na superfcie, elas constituem parte da realidade ao invs do seu oposto, porqu ocorrem no crebro do sujeito, que parte do mundo como um todo. Experincias interiores (qualia), tais como sentir frio, ver o azul, ouvir um rangido ou cheirar hortel no so bsicas, mas derivadas: so processos do sistema nervoso central e no do mundo externo. No entanto, elas no devem ser descartadas, uma vez que so reais e, alm do mais, indispensveis vida animal.

(i) Alguns pressupostosParto de uma perspectiva realista de carter ontolgico, de que existe um mundo independente de nossa conscincia, ou do que possamos pensar ou dizer dele. Assim, h uma realidade subjacente ao que pode ser percebido e observado enquanto evidncia emprica, independente de nossa conscincia, e qual podemos nos referir enquanto construo terica. Admito que este mundo povoado por coisas, entidades e relaes que no se apresentam diretamente em nossas observaes e experincias, mas que podem ser conhecidas parcialmente (realismo epistemolgico), de modo que uma aproximao da verdade significa uma aproximao do pensamento realidade (realismo semntico). Parto da ideia de que o sujeito senciente e cognoscitivo faz parte deste mundo e, como um organismo vivo que conhece e que, por sua vez, pode ser objeto de conhecimento, reage a circunstncias internas e externas a ele. (i) Alguns pressupostosAceito a considerao do senso comum de que a experincia perceptiva o nosso mais imediato e fundamental acesso realidade objetiva.Parto do pressuposto de que a percepo (c.f. Dretske 1969, 1981) e a observao (c.f. Bunge 1972, Cap. 12; Radder 2006; Kosso 1989) so processos ou atividades. Portanto, temos na prpria definio dos termos percepo e observao, respectivamente, a acepo do ato de perceber (processo perceptivo) e do ato de observar (processo observacional) vinculado ao sujeito senciente e cognoscitivo.Perceber e observar so aes que guardam uma continuidade (cf. Torretti 1986, p. 1; Bunge 1972, p. 727; Bunge 1998b, p. 181), i.e., a observao uma forma de percepo.

(i) Alguns pressupostosH um sentido no qual a percepo (Dretske, 1969, 1981) e a observao (Fodor 1984) podem no ser mediadas por conceitos ou teorias. Podemos dizer, ento, que no processo de observao h um ncleo emprico invariante, ou seja, um elemento comum partilhado por diferentes observadores e que est mais prximo da percepo sensorial pr-epistmica, puramente descritiva. Nesse sentido, aceitamos a distino de van Fraassen entre observar algo, um fato emprico, livre de teorias, e observar que algo o caso, sempre dependente de teorias. Partindo da distino de dicto/de re passo a falar sobre as coisas e entidades e no sobre termos e proposies.

(ii) ObservaoUm processo de observao um processo complexo no qual interagem o sujeito investigador e o objeto a ser investigado. Grosso modo, seguiria dois esquemas: um representando o ato de observao e o outro o produto da observao. (c.f. Mario Bunge, 1972)Ato de observaoFatosinobservveisFatos observveisAto de observao: percepo e interpretao preliminar do objeto SujeitoObjetoProduto da observaoFatosinobservveisFatos observveisProduto da observao: descrio do objeto (proposies)SujeitoObjetoDados (conjunto de proposies de contedo emprico)(iii) Relao da Teoria com a RealidadeRealidadeFatos observveisCoisas, EntidadesFatos inobser vveisFenmenoEvidncia: dados empricosModeloReferncia: representao tericaTeoria(iv) RealidadeCoisas, EntidadesFatos inobservveisFatos observveisFatos observadosRefernciaEvidncia(iv) RealidadeCoisas, EntidadesFatos inobservveisCausaFatos observveisFatos observados(v) Observao e ExperinciaExperinciaObservao+ interveno do sujeito+ recepo do sujeito Objeto(vi) Sensao, Percepo, Observao e ExperinciaExperinciaObservaoPercepoSensaoNcleo emprico invariante(vii) A distino teoria/observao e a neutralidade observacional no sculo XVIIA concepo de cincia que se seguiu revoluo cientfica do sculo XVII e perdurou de forma hegemnica (c.f. Popper 2002, p. 88) at a primeira metade do sculo XX colocou, direta ou indiretamente, o compromisso com a observao cuidadosa e a experimentao projetada como marcas distintivas da objetividade do conhecimento cientfico. Seguiu-se uma concepo indutivista do mtodo cientfico que garantiria a objetividade da teoria a partir da transmisso dos dados colhidos pelas observaes e experimentos. Na base desta concepo de cincia e de mtodo cientfico, comumente atribudo a Francis Bacon, est o ideal baconiano da observao neutra-de-teorias. (vii) A distino teoria/observao e a neutralidade observacional no sculo XVIIA busca da objetividade e universalidade do conhecimento cientfico no mtodo de Bacon estaria vinculada diretamente progressiva eliminao das ingerncias do sujeito no processo observacional de aquisio de evidncias provenientes de um objeto externo e independente da conscincia do sujeito. Na sua busca da objetividade dos fatos naturais, Galileu restringiu o escopo da Fsica s chamadas qualidades primrias que estariam vinculadas s propriedades objetivas dos corpos, tais como, figura, posio, velocidade e quantidade de movimento. As qualidades segundas como cor, sabor, cheiro e som, estariam vinculadas percepo do sujeito, existindo apenas na sua mente. Para Galileu, o entendimento das qualidades primeiras significava a busca de um objeto externo, representativo do mundo real e cognoscvel, e que se revelar, direta ou indiretamente, na observao cuidadosa e isenta, na ao experimental planejada e nas relaes matemticas que da advir. Assim, a objetividade da cincia, devidamente ancorada nas comprovaes experimentais de suas leis, vai apresentar um forte sentido cumulativo do conhecimento, a partir da ampliao gradual da base emprica.

(vii) A distino teoria/observao e a neutralidade observacional no sculo XVIINo cerne do ponto de vista metodolgico que guiou a ao dos principais protagonistas da revoluo cientfica tais como Galileu, Kepler, Descartes, Boyle e Newton est a distino ontolgica fundamental entre essncia e fenmeno (ou realidade e aparncia) expressa como a distino entre qualidades primrias e qualidades secundrias. Embora a distino entre teoria e observao no esteja a explicitamente formulada, pode-se assegurar que a clara ciso entre o domnio da teoria, vinculado s referncias do sujeito ao objeto, e o domnio da observao, vinculado s evidncias provenientes daquilo que observado, os fatos naturais, est solidamente assentada em bases ontolgicas.

(viii) Observao e observabilidadeO conceito de observabilidade nos remete dicotomia observvel/inobservvel referente a coisas e entidades. O conceito de observao insere-se no conceito mais amplo de observabilidade, pois a observao diz respeito ao que h de se observar (uma questo da natureza da observao) e, uma vez observado (fenmeno), o que pode ser observvel, uma questo de modalidade. Assim, observabilidade dependente de teoria no implica em observao dependente de teoria. (c.f. Kosso, 1989)

(ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoMichael Heidelberg (2003):A impregnao terica da observao vem em pelo menos duas formas: ou como uma lei psicolgica pertencente percepo humana (seja cientfica ou no) ou como um discernimento conceitual sobre a natureza e funcionamento da linguagem cientfica e seu significado. Na forma psicolgica, percepes dos cientistas, como percepes humanas em geral, so guiadas por crenas e expectativas prvias, e a percepo tem um carter holstico peculiar.

(ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoNa sua forma conceitual, a tese da impregnao terica da observao sustenta que a observao dos cientistas repousa em teorias aceitas por eles e que o significado dos termos observacionais envolvidos dependem do contexto terico na qual eles ocorrem.Samuel Schindler:Impregnao terica perceptiva da observao : as teorias defendidas pelo investigador, no mais baixo nvel cognitivo, invadem as percepes do investigador.Impregnao terica semntica da observao: o significado dos termos observacionais est parcialmente determinado pelos pressupostos tericos. (ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoPeter Kosso (1989):R.Carnap (1936, 1956): Permanece no mbito da linguagem (terica e observacional) e na questo da observabilidade no trata da natureza da observao e s do que pode ser observvel.G. Maxwell (1962)H. Putnam (1962)N. R. Hanson (1958) e T. Kuhn (1962)P. Achinstein (1968)B. van Fraassen (1980) D. Shapere (1982)I. Hacking (1983)J. Fodor (1984)(ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoPierre Duhem em 1892 , no artigo Algumas Reflexes sobre as teorias Fsicas estabelece como ponto de partida o domnio dos fatos observados, uma tese empirista. As noes fsicas da advindas, como, por exemplo, as noes de quente e frio, antes de se constiturem em definies experimentalmente precisas e representadas de forma simblica, guardam inicialmente uma proximidade com nossa experincia perceptiva pura. Entretanto, no que diz respeito experincia fsica Duhem em 1894 no artigo Algumas Reflexes acerca da Fsica Experimental assume a perspectiva da impregnao terica:Uma experincia da fsica a observao precisa de um grupo de fenmenos, acompanhada da INTERPRETAO desses fenmenos. Essa interpretao substitui os dados concretos realmente recolhidos pela observao por representaes abstratas e simblicas que lhes correspondem em virtude das teorias fsicas admitidas pelo observador. (ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoEm 1893, no artigo Fsica e Metafsica, Duhem desenvolve vrias teses filosficas que recolocam a questo ontolgica no primeiro plano. Antes disso, Duhem estabelece uma tese epistemolgica sobre a limitao do entendimento humano na qual ele afirma que o conhecimento do mundo exterior s possvel partindo dos fenmenos, a cujo acesso nos proporcionado pelos dados sensveis.Duas so as implicaes que Duhem extrai diretamente dessa tese: a primeira uma concepo de fsica como o estudo dos fenmenos, cuja fonte a matria bruta, e das leis que os regem; a segunda, uma concepo da cosmologia como o ramo do saber que procura conhecer a natureza da matria bruta, considerada como causa dos fenmenos e como razo de ser das leis fsicas.

(ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoA segunda implicao necessita de uma tese adicional para justificar a possibilidade de seu estudo, uma vez que no h acesso direto essncia das coisas. Esta tese adicional uma tese ontolgica sobre causalidade.Esta tese ontolgica estabelece dois nveis de realidade. O primeiro nvel o da essncia das coisas materiais, causas eficientes dos fenmenos; o segundo o dos fenmenos, observveis diretamente. Para Duhem, os fenmenos so to reais quanto sua essncia e encontram nela seu fundamento ontolgico mais fundamental. Portanto, a causalidade duhemiana estabelece um fundamento ontolgico aos dados sensveis que legitima o estudo das causas dos fenmenos. (ix) Diferentes perspectivas da impregnao terica da observaoKarl Popper famosa a ordenao que fez Popper (1975) aos estudantes de Fsica de Viena para que observassem tudo com muito cuidado. Naturalmente, viria a indagao (ingnua?): observar o que?. Tanto a instruo quanto a indagao de Popper implicam a impregnao terica, pois o ato de observar , por definio, examinar minuciosamente, olhar com ateno, em outras palavras, pressupe a seletividade de um objeto ou de uma situao, carregada de expectativas, de intencionalidade e de conhecimento prvio.