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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 3 – Ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa no Brasil.
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OBSERVATÓRIO DE LEITURA – LITERATURA E ENSINO
Dinéa Maria Sobral MUNIZ1
Lícia Maria Freire BELTRÃO2
RESUMO: Esta comunicação parte de resultados de pesquisas já realizadas pelas proponentes e de discussões teóricas que se inserem no campo dos estudos sobre o uso e tratamento do texto literário na escola, desde as séries iniciais de ensino até o curso superior de formação do professor. A ideia é propor uma reflexão crítica sobre a práxis pedagógica que toma para si o tratamento da leitura literária, vendo esse tipo de leitura como permanecendo ainda insatisfatório na escola. O objetivo geral do estudo é identificar onde e como podem estar sendo engendradas algumas das dificuldades escolares de tratamento do texto literário e experimentar algumas sugestões de enfrentamento de tais dificuldades. Isso a partir de concepções correntes, no campo das teorias, sobre texto, como a discutida por I. Koch; sobre língua, por W. Geraldi e A. Marcuschi; sobre leitura, por M. Lajolo; sobre literatura, por N. Coelho; sobre dialogismo, aprendizagem e interacionismo, por M. Bakhtin e L. Vigotsky e sobre complexidade, por E. Morin, entre outros conceitos e autores importantes para esse tipo de estudo. Com o objetivo específico de apresentar algumas propostas de operacionalização de práticas pedagógicas, a investigação vem se dando em duas direções. A primeira, com o projeto Salvador lê-Observatório de leitura do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING-, que tem como objetivo preliminar o levantamento do acervo de obras literárias de uma amostra de escolas da rede municipal de Salvador-Ba. A segunda direção da investigação, com um caso exemplar de projeto, como o intitulado de Fernando Pessoa para crianças, tem como objetivo estudar como são recebidas as práticas pedagógicas que têm como base o uso de corpus de textos literários. Isso tanto entre docentes quanto discentes da escola básica e superior. Esse projeto consiste no desenvolvimento de um conjunto de atividades com textos do acervo das escolas do estudo, no caso particular com um primeiro conjunto dos textos disponíveis, os do poeta Fernando Pessoa. Os procedimentos metodológicos da pesquisa incluem, desde a etapa preliminar, a possibilidade de um estudo de natureza qualitativa, com procedimentos de amostragem e com uso de formulários como instrumentos para registro de dados. Considera-se importante utilizar as contribuições da Análise de Discurso Francesa (ADF), teoria que permitirá a interpretação dos eventos discursivos resultantes das investigações. Acreditamos que os resultados poderão subsidiar a prática pedagógica de professores, considerando como envolvidos no processo pedagógico de formação do leitor, desde os alunos da escola básica até os professores dessa escola, passando pelos graduandos, na condição de futuros docentes. A pesquisa poderá resultar, como ganho secundário para reflexão e discussão crítica, na sugestão de um método de investigação que poderá instaurar um discurso pedagógico compatível com o objeto estudado. PALAVRAS-CHAVE: leitura; literatura e ensino; formação do leitor
Docente da 1 Universidade Federal da Bahia (UFBA), Faculdade de Educação (FACED), Departamento de Educação II. Endereço: Rua Tamoios, nº 312, aptº. 504, Rio Vermelho, CEP 41 940-040, Salvador-Ba, Brasil. E-mail: [email protected] 2 Universidade Federal da Bahia (UFBA), Faculdade de Educação (FACED), Departamento de Educação II. Endereço: Av. Cardeal da Silva, nº158, aptº 802, Federação. CEP 40 231-250, Salvador-Ba, Brasil. E-mail: [email protected]
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
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SALVADOR LÊ – OBSERVATÓRIO DE LEITURA
1. Observatório de leitura: história preliminar
O Observatório de Leitura, pesquisa vinculada ao Projeto Salvador Lê, e espaço
concreto de planejamento e operacionalização de ações relativas ao debate sobre
leitura na Educação Básica, está alocado no GELING - Grupo de Estudo e Pesquisa em
Educação e Linguagem - da Linha Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica, vinculado
ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação. Seu objetivo preliminar foi
levantar e, posteriormente, movimentar o acervo de obras literárias, constante nas
bibliotecas e ou salas de leitura de escolas da rede municipal de ensino, considerando
uma amostra da qual fazem parte escolas municipais de bairros urbanos e periféricos,
tais como: Escola Mirante de Periperi, Epaminondas Berbert de Castro, Darcy Ribeiro,
Osvaldo Cruz, Instituto dos Cegos da Bahia, Senhor do Bonfim, Municipal do Pau
Miúdo, nas quais se encontrem docentes Licenciados em Pedagogia- Projeto Salvador,
diplomados pela FACED-UFBA, através de convênio firmado, entre a UFBA e a
SECULT , do ano de 2004 ao ano de 2009.
Na constituição da pesquisa, foram considerados procedimentos que dizem
respeito à apresentação do Observatório de Leitura à comunidade envolvida e
interessada pelo assunto; à construção da memória das atividades do Observatório; à
realização de pesquisa de campo, visando ao levantamento do acervo; ao estudo do
acervo levantado; produção de projetos de leitura concernentes ao acervo e produção de
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(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
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oficinas que viabilizem a implementação dos projetos, cujo princípio deva ser a
mobilização do acervo e a formação do leitor.
Entre os percursos metodológicos definidos na perspectiva de alcançar os
objetivos propostos, principalmente o objetivo que diz respeito ao conhecimento do
acervo constante nas Escolas, foram escolhidos três procedimentos que se interligam:
visitar intencionalmente as Escolas incluídas no Projeto de Formação de Professores
com esse fim, aproveitar visitas ocasionais para cumprir esse mesmo fim, solicitar o
levantamento de dados a professores participantes do Programa de Formação.
Para fins de efeito desta comunicação, prossegue-se, fazendo-se o recorte
necessário na narrativa das experiências, para se dar destaque ao que os nossos olhos
viram e os nossos corações sentiram, quando, indo ocasionalmente à Escola Municipal
do Pau Miúdo contar certas histórias do Ziraldo, o filho de Dona Zizinha e do Senhor
Geraldo, encontramos Atrás da porta3.
2. Atrás da porta
Tomar o livro de Ruth Rocha (1997) - Atrás da Porta - a pretexto de atribuir
título ao que passamos a discorrer sobre a nossa experiência, certamente pode afetar
seus muitos e experientes leitores.
Acionando conhecimentos prévios, alguns decerto dirão: “atrás da porta, havia,
minimamente, livros!” Outros, revelando uma compreensão literal, dirão: “atrás da
porta havia uma biblioteca”. Nós que na escola tivemos, garantimos: Atrás da porta
3 Foi feita apropriação dos títulos dos livros infantis Atrás da porta de Ruth Rocha; História meio ao contrário de Ana Maria Machado e Liberta que serás também de José Bento Teixeira de Sales para nomear os tópicos 2; 3 e 4 da comunicação em questão.
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havia uma Sala de Leitura. A Sala de Leitura Professora Maria Helena Nunes Ferreira,
recentemente inaugurada. E na Sala de Leitura, livros, muitos livros, evidentemente... A
Bolsa Amarela, A casa da Madrinha - Lygia Bojunga Nunes; Do Outro Mundo , Hoje
tem espetáculo: No país dos perequetés - Ana Maria Machado; Varal de Poesia- Cecília
Meireles e outros poetas; Quatro Mitos Brasileiros- Mônica Stahel; O fantástico
mistério do Feiurinha - Pedro Bandeira; Uma história de Futebol - José Roberto
Torero; Histórias que o povo conta, Bazar do Folclore - Ricardo Azevedo; Canções do
Brasil - Álvares de Azevedo, Olavo Bilac e outros poetas; O Pequeno Príncipe -
Antoine de Saint-Exupéry; O Santinho -Luis Fernando Veríssimo; Chapeuzinho
Vermelho - João de Barros (adaptado); Ludi vai à praia - Luciana Sandroni; História de
Lenços e Ventos - Ilo Krugli; Poesia das Crianças - Casimiro de Abreu, João Cabral de
Melo Neto e outros poetas; Os contadores de histórias - Leo Cunha, Marina Colasanti e
outros contistas, Os meninos da Rua da Praia - Sérgio Caparelli; Os Três Mosqueteiros
- Alexandre Dumas; Meninos eu conto - Rachel de Queiroz, Antônio Torres, Zélia
Gattai e outros contistas, Histórias Daqui e Dali': Texto de Tradição Popular - Roger
Mello, Rogério Andrade Barbosa, Terezinha Éboli, entre outros títulos que contabilizam
um total de cinquenta e cinco títulos que se multiplicam em pelo menos dez exemplares,
cada um deles.
Ali, Atrás da porta, estava, pois, um acervo. Um acervo que, segundo os
propósitos do Observatório de Leitura, precisava ser conhecido como ainda ser
movimentado. Essa compreensão foi imediatamente ratificada pela Diretora da
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Instituição Escolar que solicitou o nosso auxílio, justificando não contar com “pessoas
especializadas” no tratamento do acervo.
Recolhidos os cinquenta e cinco títulos, para fins de conhecimento e estudo,
produzimos leituras e fizemos algumas constatações preliminares que merecem ser
consideradas:
O acervo, em quase sua totalidade, pertence à ação empreendida pelo PNBE
“Literatura em minha casa” - 4ª série (para uso pessoal e propriedade do aluno).
“Literatura em minha casa” abarca diferentes coleções que abrangem
significativa diversidade de gêneros literários, como a que escolhemos para
ilustrar: Volume 1- Poesia: Nossos poetas clássicos (Casimiro de Abreu,
Fagundes Varela, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Vicente de Carvalho,e
Machado de Assis; Volume 2- Conto: Contos de Hoje e de Ontem(Lima Barreto,
Lygia Bojunga, Leo Cunha); Volume 3- Novela: Ludi vai à praia (Luciana
Sandroni); Volume 4- Clássico Universal : O Pequeno Príncipe (Antoine de
Saint-Exupéry); Volume 5- Texto de Tradição Popular: Histórias Daqui e Dali
(Roger Mello, Rogério Andrade Barbosa,e Terezinha Éboli).
Há outras coleções que também abrangem significativa diversidade de gêneros
literários: poesia, conto, texto de tradição popular. Não existe referência,
contudo, à seriação dos estudantes para quem as coleções são destinadas.
Há, na primeira capa de todos os livros, informação sobre sua gratuidade, assim
destacada: “distribuição gratuita” e “venda proibida”.
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(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
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Há, pelo menos, dois títulos de livros que pertencem à ação “Palavra da Gente” -
Educação de jovens e adultos (para uso pessoal e propriedade do aluno):
Canções do Brasil - Poesia e Uma pátria que eu tenho - Peça Teatral.
Para conhecimento e apreciação do leitor, seguem três histórias contadas nos
livros, sob forma de resenha.
MEUS PRIMEIROS CONTOS4
A obra abarca seis contos de contistas brasileiros, compondo uma antologia.
Cada conto se mantém integral, na sua singularidade, estabelecendo relação com o
outro exclusivamente pela natureza do gênero, trazendo marcas de estilo.
O sabiá e a girafa, de Leo Cunha, é a história do sabiá, também da girafa, bem como do encontro do sabiá com a girafa. Cada um tinha desejos e limitações: o sabiá da história não sabia voar, mas cantava e acreditava que um dia, conseguiria voar. A girafa era diferente: sonhava poder cantar e tentava imitar o azulão, o rouxinol, a cotovia, “mas a voz não derramava” .Ela, no entanto,jurava que um dia conseguiria cantar. Por acaso, girafa e sabiá se encontraram. Ambos lamentaram suas fragilidades. Do encontro resultou uma união que levou o sabiá às alturas e a girafa ao canto que desejava.
Num pacato vilarejo, de Hebe Coimbra, conto escrito sob forma de versos rimados, narra a história de um vilarejo. Ali tudo se mostrava estável, “na uniformidade dos dias”, a vida transcorria sem surpresas. Até que, uma noite, Manuel, habitante do vilarejo, dono do armazém, fica acordado e vê algo muito estranho. Ninguém sabe o que ele viu, mas desde então a cidadezinha nunca mais foi a mesma. E de tão perturbado, começou a atender os seus diferentes fregueses, errando. Mas foi o erro cometido frente ao que lhe pediu Belinda que contribuiu para renovar esperanças e dinamizar aquele que deixou de ser um pacato vilarejo.
Fita verde no cabelo, de Guimarães Rosa, é um conto no qual se reconhece Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault. Sob forma de paráfrase criativa, marcada pelos neologismos roseanos, o conto, metaforicamente, trata dos movimentos contrários das crianças, velhos e adultos no seu curso de vida, movimentos se fazem diferentes para as crianças que nascem, crescem e, um dia, se defrontam com a morte, como é o caso da menina que usava uma fita verde, símbolo da esperança.
4 CUNHA, Leo; COIMBRA, Hebe; ROSA, Guimarães et al. Meus primeiros contos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001. Resenha produzida por Lícia Beltrão.
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Chifre em cabeça de cavalo, de Luiz Raul Machado, título curioso do conto, é um dito popular, que provoca, à primeira vista, a curiosidade do leitor. O autor, lembrando das histórias contadas por seu tio Pequenino, narra uma série de fatos, sob forma de narrativa ficcional, que se relaciona com histórias já contadas, até chegar ao fato em que introduz a personagem que o intriga, desde as primeiras histórias do tio Pequenino- o unicórnio -, animal fabuloso representado por um cavalo com um chifre na testa, até chegar à produção de Ana Maria Machado, a quem ele chama de fada5.
Um apólogo, de Machado de Assis, é uma alegoria, que aborda a vaidade. Agulha e Linha, personagens, participam de uma acalorada discussão. Cada uma procura mostrar sua superioridade em relação à outra, na função que estão juntas exercendo: costurando um vestido de festa para uma bela dama da nobreza que deverá ir a um baile. Participam, na história, como figurantes, um alfinete e a costureira. O autor conclui com um ensinamento, ou seria uma lição de moral ? "Contei esta história a um professor de melancolia, que então me disse, abanando a cabeça: Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!"
Zoiúdo: o monstrinho que bebia colírio, de Sylvia Orthof, conta a história fantástica de uma personagem que é um olho – Zoiúdo- que se oferece para morar com a escritora e lhe pede para transformá-lo em uma personagem de livros para crianças, adolescentes e adultos.A partir daí , outras personagens se agregam à família, como o Furtacor, um colibri, Igor, mais tarde Guigui, um pastor alemão,
todos, envolvidos com a dinâmica da família vivem diferentes aventuras, até com a vinda da escritora Sylvia Orthof a Salvador, BA. Onde transfigurada em Bruxa UXA, fala de produções literárias em Colégios.
LUDI VAI À PRAIA de Luciana Sandroni6
Ludi, também conhecida como Marquesa dos Bigodes de Nescau, é uma menina de oito anos que mora com seu pai, sua mãe e seus dois irmãos, quase de frente à Praia do Flamengo, que fica na Baía de Guanabara. Apesar disso, seus pais não querem que ela vá à Praia do Flamengo de jeito nenhum porque, como era de conhecimento público, a Baía de Guanabara estava poluída. Ludi adora ir à praia e passar o dia todo fazendo buracos na areia, mas está cada vez mais raro sua família ir à praia porque vira e mexe aparecem notícias nos jornais sobre praias interditadas, poluídas.
Mesmo contra a vontade de seus pais, Ludi vai escondida à Praia do Flamengo ver se o que ouvia dizer era verdade e constata que sim. A praia estava realmente muito suja. Um outro dia, ela volta para ver se as coisas tinham melhorado e resolve fazer um buraco na areia, quando de repente, vem uma onda e a empurra para dentro do buraco, que já estava bem fundo. Ludi vai parar em um
5 Ana Maria Machado escreveu o livro Praga de Unicórnio, publicação da Ed. Nova Fronteira, 1983. 6 SANDRONI, Luciana. Ludi vai à praia. Rio de Janeiro: Agir, 2003. Resenha produzida por Juliana Martins.
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lugar desconhecido... Encontra um Tatuí que fala como se a conhecesse e já esperasse por sua chegada. E muitos “habitantes” a esperavam mesmo. Os habitantes do fundo do mar a esperavam para que ela os ajudasse a resolver a questão da poluição. De início, Ludi toma um susto, mas depois envolve-se na luta e tenta de tudo para ajudá-los. Mandam carta ao governador, ao prefeito, à Iemanjá, ao Lobo do Mar. E só esse acredita que ainda é possível fazer alguma coisa e, por isso, pede ajuda à Baleia Azul para dar um espirro, quando estivesse passando pela entrada da Baía de Guanabara. Assim aconteceu: todo o lixo e Ludi, também, foram jogados para fora das águas.
Ninguém entende o acontecido, só se sabe da despoluição da Baía de Guanabara. A partir de então, Ludi pode ir à praia todos os dias.
O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ de Jorge Amado7
O gato era feio, carrancudo e temido pelos animais do parque. A ele eram atribuídos diversos crimes que ninguém jamais vira, mas não duvidavam porque a sua cara feia não deixava dúvidas. No entanto, uma jovem andorinha destemida, jovem demais, resolve dirigir-lhe a palavra; em verdade, insulta-o chamando-o de feio. Ele se surpreende e, a partir daí, começa um encantamento que põe todo o parque em alvoroço. Ninguém se conforma com o relacionamento de um gato com uma andorinha; uma união que contraria as normas, as leis naturais. Daí em diante o gato passa a ser mais gentil, sociável e menos temido.
Prosseguindo, agora, na expectativa de comentar algumas das constatações feitas
na escola, na perspectiva de responder: o que os achados nos contam, ao gosto de Ana
Maria Machado, perguntamos: seria uma História meio ao contrário?
3. História meio ao contrário
A leitura do acervo, considerando, principalmente, o achado com o qual
relacionamos a sua função predominante - “Literatura em minha casa”, motiva reflexões
que vão apoiadas, inicialmente, no texto “Uma coleção para você”, contido no livro A
Casa da Madrinha de Lygia Bojunga Nunes (2002). Diz o texto: 7 AMADO, Jorge. O gato malhado e a andorinha sinhá. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. Resenha produzida por Regina Gramacho.
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“A literatura é um dos mais valiosos tesouros da humanidade, que vem passando de pais para filhos pelos séculos afora. Em tempos mais recentes, quando os jovens têm mais oportunidades de estudo do que os mais velhos tiveram, essa herança preciosa pode também inverter a mão e passar de filhos para pais. E como quem lê gosta de sair comentando as leituras com a família e os amigos, muitas vezes o livro da biblioteca serve de assunto para muita conversa com as pessoas de quem a gente gosta.
Esta coleção dá chance para mais do que isso, porque já é um presente. Pode se levar para casa e deixar lá, sem precisar devolver nunca. Dá para reler quantas vezes a gente quiser. E está cheia de textos ótimos de grandes autores. Reúne Lygia Bojunga Nunes e Ana Maria Machado, as duas únicas latino-americanas que já ganharam a Medalha Andersen, o mais importante reconhecimento internacional da literatura infanto-juvenil, considerado o Prêmio Nobel dessa área. E tem também outros autores consagradíssimos nesse gênero como: Ziraldo e Sylvia Orthof, ou os irmãos Grimm, alemães que são clássicos universais absolutos. Ao lado deles estão alguns dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, em prosa (como João Guimarães Rosa e Clarice Lispector) e verso (Gonçalves Dias, Castro Alves , Olavo Bilac, Manuel Bandeira[...] . Esses e outros autores brilhantes (como Artur Azevedo, Evaristo da Veiga e Marina Martinez) vão agora fazer parte de seu tesouro pessoal de literatura. Em sua casa, para sempre.” (Coleção Literatura em minha casa.Uma coleção para você. 2002, p.3 s/ assinatura).
Tal como se lê, o texto ratifica duas das ideias que se constituíram pressupostos
para este estudo: a primeira diz respeito à função da maior parte das coleções, segundo
informações que colhemos do PNBE sobre as ações específicas, empreendidas e a
segunda diz respeito à informação contida na 1ª capa, garantindo o acesso ao livro sem
investimento de capital.
Em vista disso, perguntamos o que motiva a contenção dos livros na escola,
constituindo o acervo de uma sala de leitura que demanda movimento?
Muito embora saibamos o quanto é tenso e complexo propor respostas ao que
perguntamos, no espaço-tempo desta comunicação, faremos, a partir daqui, algumas
anotações que nos parecem justas, para superar os entraves constatados, ao contrário de
acentuá-los.
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Lembremos, em primeira instância, que a história tem nos mostrado que, tanto
nas escolas, quanto nas bibliotecas e salas de leitura, há maior número de estratégias
sugestivas de proteção, de guarda do livro do que de sua divulgação, de sua
disseminação, como se esses espaços ainda conservassem princípios de uma antigo
regime de controle sobre a produção livresca.
Nesse sentido, vale a pena considerar preocupações contemporâneas como as
que nos são mostradas por Chartier (1998, p. 126-127), quanto à superprodução de
materiais impressos e seu aproveitamento, em dissonância com a visão escolar sobre a
estocagem de livros destinados aos estudantes, principalmente quando a produção de
leitura poderia se fazer também, em uma outra instância discursiva, no caso, no seu
ambiente familiar, com possibilidades de contagiar outros leitores, com diversidade de
leituras, constituindo rodas de inclusão, redes de amizades seladas pelos fios das
palavras doces, serenas, brincantes, tensivas , literárias.
Vale a pena ainda considerar dois movimentos que se contradizem no ambiente
escolar: aquele dirigido pelo Plano Nacional do Livro Didático que prevê a franquia dos
livros aos estudantes pelo período de um ano, a cada série cursada, e políticas que
demandam a posse do livro, para sempre, como se a motivação se configurasse como o
gesto de alegria provocado pelos contos de fada, ao anunciarem finais felizes,
duradouros, para sempre.
Esses movimentos tão díspares, mas que ocorrem em um mesmo ambiente
escolar, podem afetar as ações de gestores que leem textos diferentes como se fossem
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iguais e, desprezando orientações, agem conforme uma concepção que parece afetar o
coletivo.
Nesse sentido, corre-se o risco de se assistir, na escola, a escrita de uma história
meio ao contrário, cuja transgressão sugere mais uma traição ao leitor - estudante e
menos uma cumplicidade baseada numa outra lógica, numa outra dinâmica
exemplarmente educativa. Vale, como forma de abonar essa concepção, a exposição de
palavras colhidas daquele com quem aprendemos sobre o valor da literatura nas práticas
educativas:
“[...] A literatura é, certamente, um código narrativo metafórico, mas também um local onde se encontra comprometido, por exemplo, um imenso saber político. É por isso que afirmo, paradoxalmente, que só é preciso ensinar a literatura, porque dela se poderiam aproximar todos os saberes. É também preciso responder a um preconceito muito perigoso, ideológico, que consiste em acreditar que a literatura mente e que o saber seria partilhado entre as disciplinas que dizem a verdade e outras que mentem e que são, então, consideradas como disciplinas de ficção, do recreio, da vaidade. A literatura não diz a verdade, mas a verdade não está apenas aí onde não se mente [...]: o contrário de mentir não é forçosamente, dizer a verdade. É preciso deslocar a questão: o importante não é elaborar, difundir um saber sobre a literatura [...] é manifestar a literatura como uma mediadora do saber. [...]” ( BARTHES ,1981, p. 232-233).
Enfim, tomando a iniciativa de ler diferente o que até aqui anotamos, podemos
dizer que, se por um lado a história meio ao contrário pode ser vista como uma traição
ao leitor, por outro, pode ser vista como a que decidimos querer para escrevê-la na
perspectiva da formação do leitor, formação que se faz em um espaço democrático de
encontro com gêneros diferenciados e escritores - poetas, contistas, teatrólogos,
novelistas - disponíveis a partilhar os seus variados cantos.
4. Liberta que Serás Também
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Na continuidade do estudo, constituímos intencionalmente uma amostra
quantitativa de livros - 35 livros -, orientada por um critério principal: a inclusão de
exemplares da coleção “Literatura em minha casa”. Os livros foram examinados,
objetivando à sua identificação geral bem como a identificação do gênero literário que o
especifica e do seu conteúdo. Visando à apropriação do conteúdo tratado e à produção
de cartas com as quais mediaremos os encontros com os professores de uma das escolas
da amostra, campo de pesquisa, todos os livros foram resenhados. Esses procedimentos
vêm dando suporte ao objetivo principal da pesquisa: libertar os livros, aproximá-los
dos leitores para os quais foram destinados, colaborar para que se movimentem. E,
assim, coerentes com essa concepção, retornamos à escola, para partilharmos, com os
professores, as experiências acumuladas, a partir das leituras que fizemos do acervo.
Rompendo com as formas de interação mais formais, construímos um sarau, e com a
diversidade da poética de vários participantes do nosso grupo (GELING), realizamos o
primeiro movimento do acervo em estudo, de maneira viva e efetiva.
Os colegas, professores, acolheram as nossas palavras, apontando para a
continuidade da pesquisa, na expectativa de que lhes apresentemos outras possibilidades
de leitura.
Enquanto isso, pensando nas outras possibilidades de leitura, produzimos cartas,
tomando como base as resenhas de cada livro, agora para lhes tocar mais intimamente...
Elas chegarão a cada um dos nossos colegas, em breve. A que chega para você, como
um exemplo, diz assim:
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Cara Professora,8
A única coisa que acho que sei a seu respeito é que, talvez, como eu, você sofra das mesmas dúvidas, das mesmas angústias e incertezas. Se for verdade, isso nos faz íntimas e me permite lhe confidenciar que aprendi muito com a poesia. Particularmente, com a poesia de Drummond, que, nesse livro sobre o qual quero lhe falar, escreveu o mais curioso poema sobre o professor. Sim, um poema sobre essa figura que cada uma de nós é. Essa persona que, às vezes, pensa que sabe tudo: o professor. O mesmo que, em alguns momentos, também, tem muita dúvida sobre o que sabe. Acho que Drummond, por conhecer um pouco da nossa natureza, recomenda-nos prudência. Veja lá, na página 25, o que diz a voz poética sobre a prática docente. Leia, pense, discuta com os colegas e, depois, de tirar suas dúvidas, chegue às suas próprias conclusões, que poderão ser, sempre, provisórias. Atente para o fato de que foi esse poeta, autor de tantos outros poemas que fazem parte desse livro da coleção Literatura em minha casa, Carlos Drummond de Andrade, que disse, contando um caso: que, diante da verdade, foi preciso optar. Um caso em que, conta ele, “cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia”. Mas isso foi no poema A verdade dividida. Esse livro em que Drummond nos oferece o poema Professor, as suas lições são outras. Veja lá! Você tem essa publicação em sua escola. Ah! O título desse livro de que falo é Simplesmente Drummond. Então, boa leitura!
Um abraço.
Dinéa
No mais, é aguardar. Com o segundo movimento do acervo, envio das cartas,
criamos expectativas de que os colegas, professores, acolham as sugestões, que retirem
os livros das estantes, que leiam as histórias, que leiam os poemas, que discutam suas
impressões com seus pares e conosco também. Nesse intervalo, iniciamos a
construção de oficinas sobre os livros, seus autores, suas obras. Com sua realização,
esperamos gerar leituras que apontarão os caminhos da continuidade da pesquisa.
8 Carta produzida por Dinéa Maria Sobral Muniz.
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
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Quaisquer que sejam eles, ratificamos, tomando as palavras do escritor mineiro José
Bento Teixeira de Salles: Liberta que Serás Também9.
SALVADOR LÊ – “FERNANDO PESSOA PARA CRIANÇAS”
1. “Fernando Pessoa para crianças”: a síntese de mais uma história
Com “Fernando Pessoa para crianças”, estudo vinculado ao projeto de pesquisa
“Salvador lê”, em uma de suas ações, “Observatório de leitura”, buscamos identificar
as possibilidades do uso do texto literário poético em classes de alunos das primeiras
séries do ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal de Salvador –
BA.
A escola, campo de pesquisa, a mesma em que ações do Observatório de Leitura
se realizam, foi escolhida intencionalmente. Como intencionalmente foi escolhida a
turma do segundo ano do ensino fundamental (antiga primeira série), pelo fato de os
estudantes já interagirem com certa familiaridade com a escrita, no sentido da recepção
e da produção, ações importantes para realização das atividades previstas no projeto
pedagógico da pesquisa. O acervo literário do estudo, constituído também
intencionalmente, por inúmeros poemas disponíveis da obra pessoana, se deveu à
expectativa das pesquisadoras de levar a estudantes daquele seriado uma experiência
talvez inédita, já que, de acordo com os currículos oficias e vigentes, os estudos da 9 O título do livro revela a intenção bem-humorada do escritor mineiro, José Bento Teixeira Salles, de fundir textos e tempos de ontem e de hoje. Na sua constituição, o escritor resgata o verso que é atribuído a Virgílio: “Libertas quae sera tamen” (Primeira Écloga), que serviu de lema à Conjuração Mineira (com Tiradentes) e o verso do poema Pátria Minha, de Vinícius de Moraes: “Libertas que serás também!”. (COELHO, 2006, P. 381)
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obra do poeta Fernando Pessoa estão previstos para as séries do ensino médio,
segundo segmento da educação básica, no qual se encerra o ciclo de formação do
estudante. Isso quando não é intencionalmente excluído e ficando resumido aos estudos
do curso de Letras.
Inicialmente, as bolsistas, pesquisadoras responsáveis pela implementação do
projeto pedagógico da pesquisa, receberam orientações, com a intenção de que se
aproximassem de Pessoa, conhecendo sua vida, conhecendo sua obra. Da aproximação,
resultaram conhecimentos importantes que subsidiaram o projeto pedagógico que
constou, entre outras atividades, de exposição de fotos do poeta, quando criança, e de
sua família; apresentação dos livros Fernando Pessoa para crianças, de Alexei Bueno
e Comboio,saudades, caracóis de João Alves das Neves; leitura dos poemas Eros e
Psique, À minha querida mamã, O monstrengo, O guardador de rebanhos (fragmento),
Onda que enroladas torna, Levava um jarrinho, Posso ter defeitos; recitação de
poemas; leitura de textos fílmicos de conteúdos diversos e de curta duração, como o
que mostra o poema Eros e Psique ,a performance da cantora de fado, Ana Moura;
representação de poemas em outras linguagens; produção escrita de poemas .
A realização das atividades se concentrou no mês de abril do ano em curso.
Acompanhando a reação dos estudantes, durante a implementação do projeto
pedagógico, considerando a particularidade de cada atividade, podemos dizer que a
recepção das crianças frente à fortuna literária de Fernando Pessoa foi bastante positiva.
Os fazeres e saberes foram vistos como novidade por todos, inclusive pelos adultos,
professores e funcionários da unidade escolar . Os estudantes revelavam curiosidade
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intelectual diante das narrativas sobre a vida e sobre a obra de Fernando Pessoa com que
os envolvíamos. As atividades que, a pretexto dos estudos, foram ilustradas com
textos imagéticos e ou com textos fílmicos, suscitaram significativo interesse,
resultaram mais produtivas. A atividade, recitação de poemas, foi realizada como
desinibição lingüística. Colaborou para com a experiência de ler o texto escrito .
A representação, ou retextualização do poema em outras linguagens revelou
traduções importantes, quer na perspectiva da leitura parafrástica, quer na perspectiva
da leitura polissêmica, relacionadas com o conteúdo apresentado no texto e o contexto
de vida das crianças.
A leitura do poema “Levava um Jarrinho”, que segue transcrito,
Leavava um Jarrinho Fernando Pessoa
Levava eu um jarrinho
P’ra ir buscar vinho Levava um tostão P’ra comprar pão; E levava uma fita
Para ir bonita. Correu atrás
De mim um rapaz: Foi o jarro p’ro chão,
Perdi o tostão, Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita! Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho, Nem trouxesse uma fita
P’ra ir bonita, Nem corresse atrás De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia, Nada disto acontecia.
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suscitou em uma criança o que ela procurou expressar, através do desenho. Figura
humana representativa dela própria, como personagem; bala e revólver, identificados
pela bolsista - professora - pesquisadora. A despeito do vocabulário (tostão) e das
construções sintáticas diferentes de seu uso corrente (rasgou-se-me a fita...), a criança
atualiza a leitura do texto de acordo com sua realidade social. A experiência segue
reproduzida para conhecimento e apreciação.
Hoje, Fernando Pessoa não é só um poeta conhecido pelas crianças, estudantes
da escola, campo de pesquisa, mas também querido. A expectativa de que continue na
companhia de todos pode resultar positiva, já que a relação afetiva, além da cognitiva,
ocorreu. Por considerarmos que o objetivo da pesquisa foi alcançado bem como que a
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experiência poderá subsidiar propósitos similares, no sentido do estudo da poética de
outros escritores, concluímos, afirmando: “Valeu a pena...” e dizendo, com Cecília
Meireles: “ Um poeta é sempre irmão do vento e da água: deixa seu ritmo por onde passa.”
TRANÇANDO AS DUAS HISTÓRIAS
Na tessitura das narrativas com que reconstituímos aspetos das pesquisas por nós
desenvolvidas, motivação desta comunicação, acreditamos que se evidenciam, de
modo explícito ou não, os fios que as relacionam e as mantêm coesas: a literatura e o
ensino. Nesse sentido, se com a pesquisa, Observatório de Leitura, objetivamos
movimentar o acervo literário localizado na escola, campo de pesquisa, de modo que
seja cumprido o propósito do PNBE, e se, com a pesquisa “Fernando Pessoa para
crianças”, intencionamos identificar as possibilidades do uso do texto literário poético
em classes de alunos das primeiras séries do ensino fundamental, isso se deu, por
compreendermos que os sons, ruídos, cenários, fatos, gentes, enfim as texturas dos
textos literários são muito parecidas com aquelas com que vamos tecendo a nossa
relação com o mundo, logo com aquelas que os estudantes escolhem para ir tecendo a
sua relação com o mundo. Na relação com o mundo, acionamos, com maior freqüência,
a linguagem na função pessoal, na função interativa, na função emotiva, quando não, na
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função poética, mais do que a linguagem na função referencial, função mais
valorizadas na escola. Aquelas funções, não essas, são as que constituem,
predominantemente, o texto literário, motivo por que admitimos que seja
pedagogicamente mais recomendado para quaisquer estudantes no sentido de sua
inclusão na ordem do discurso que se pretende interativo, representação viva de que a
verdadeira substância da língua é a interação verbal, Bakhtin (1999), estimulador da
recuperação de um modo mais adequado de se desenvolver estudos de leitura, objeto
dimensionado na perspectiva da criação e da liberdade, conforme conota a concepção de
Lajolo por nós acolhida e que segue citada:
[...] Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista. [...] (LAJOLO, 1986, p. 59).
E, quando o texto é o de natureza literária, consideramos o que Morin, citado
por Coelho (2000, p.9), diz:
[...] A Literatura é um mundo aberto ao mesmo tempo às múltiplas reflexões sobre a história do mundo, sobre as ciências naturais, sobre as ciências sociológicas, sobre a antropologia cultural, sobre os princípios éticos, sobre política, economia, ecologia...Tudo depende de uma seleção inteligente das obras. [...]
Além disso, compreendemos que a escrita literária, quando cotejada com outras
naturezas de escritura, evidencia a sua condição multivocal, plurissignificativa,
polifônica e polissêmica, permitindo que a tomemos como um “ laboratório do
possível”, um lugar onde se pode experimentar, onde se pode alocar, descolar, simular,
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dissimular, fingir, criar. Fazer a mistura do velho com o novo, do urbano com o rural,
promover encontros da fantasia com o real do inimaginável com o imaginável.
Em “Fernando Pessoa para crianças” essas concepções não somente lhe deram
suporte como foram traduzidas pelas ações pedagógicas realizadas. O mesmo já começa
a acontecer com o Observatório de Leitura. Os demais procedimentos escolhidos para
movimentar o acervo sugerem a continuidade do processo. Inserir os livros de literatura,
os textos literários, nos projetos pedagógicos da escola, campo de pesquisa, nos parece
questão irreversível. Tomar a literatura como “laboratório do possível”, na perspectiva
pedagógica, o texto, considerado seu caráter verbal, social, cognitivo e sócio-cultural,
cujo sentido se vai construindo na relação texto-leitor, Koch (2002), continua sendo
nossa intenção. Assim como continua sendo intenção do GELING debater postulados
teóricos que estejam na rede das relações entre a língua e o ensino, na perspectiva
interacionista, Geraldi (1991 ), Vigotsky (1988), considerados os diferentes objetos -
leitura, escrita, texto, gêneros e tipos - os diferentes contextos, as condições de
produção e os sujeitos da educação. Tudo isso na perspectiva da emancipação daqueles
para quem continuamos sempre disponíveis: os estudantes.
REFERÊNCIAS
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BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas 1962-1980. Tradução de Teresa Meneses e Alexandre Melo. Lisboa: Edições 70, 1981.
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