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OCUPAÇÃO 340 MAUÁ PATRÍCIA PEREIRA MONTEIRO

Ocupação Mauá, 340

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Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo. PUC-SP, 2012.

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ocupação

340Mauá

patrícia pereira Monteiro

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pontiFícia uniVerSidade catÓLica de São pauLo

traBaLHo de concLuSão de curSo

Curso de Jornalismo

Texto e Fotografia: Patrícia Pereira Monteiro

Orientação de Fotografia: Salomon Cytrynowicz

Orientação de Texto: Rachel Balsalobre

Diagramação: Daniel Pereira Monteiro

DEZEMBRO/2012

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ocupação

340Mauá

A história (ou parte dela) de um prédio ocupado no centro de São Paulo.

Rua Mauá, 340

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“Tem certos dias em que eu penso em minha gente, e sinto assim todo o meu peito se apertar. Porque parece que acontece de repente, como um desejo de eu viver sem me notar. Igual a como quando eu passo no subúrbioEu muito bem, vindo de trem de algum lugarE aí me dá como uma inveja dessa gente, que vai em frenteSem nem ter com quem contarSão casas simples com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima que é um lar. Pela varanda flores tristes e baldias, como a alegria que não tem onde encostar. E aí me dá uma tristeza no meu peito, feito um despeito de eu não ter como lutarE eu que não creio peço a Deus por minha genteÉ gente humilde, que vontade de chorar”

Gente HumildeChico Buarque

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AgrAdecimento

Gostaria de agradecer à Rachel Balsalobre, que me acolheu no meio do ano, perdida sobre como escrever esse trabalho e que soube me ouvir e me ajudar a dar um rumo e um sentido às coisas. Ao Samuca, meu mestre, que soube ver as fotos e que muitas vezes me ajudou a enxergá-las, dando o devido valor à estética, fundamental mesmo quando o foco é social.

Aos meus pais e irmãos, que mesmo com todos os receios e questionamentos, me incentivaram do começo ao fim (em especial ao meu irmão Daniel, responsável pela linda diagramação do livro). Obrigada por estarem sempre ao meu lado. Aos meus amigos que, longe ou perto, aguentaram minhas reclamações, minha ausência e chatice durante esse trabalho e que torceram para que ele desse certo tanto quanto eu.

E por fim, mas não menos importante: este livro não existiria se não tivesse sido tão bem recebida pelos coordenadores e moradores da Mauá. O meu muito obrigada a vocês, pela paciência que tiveram, nesses muitos meses de convivência. Este livro é para vocês.

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apreSentação 11

introdução 13

1.0 contexto 17 1.1 Situação da Moradia eM São pauLo 17 1.2 projeto noVa Luz 21 1.3 BreVe HiStÓrico doS MoViMentoS por Moradia 24

2.0 o prédio 29

3.0 coordenadoreS/LídereS 35

4.0 MoradoreS 137

5.0 concLuSão 183

6.0 BiBLiograFia 187

7.0 MeMoriaL deScritiVo 191

8.0 anexoS 193 8.1 eStudo de ViaBiLidade Mauá 194 8.2 reguLaMento interno 204

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ocuparo.cu.par(lat occupare) vtd 1 Apoderar-se de; tornar-se dono de; tomar posse de. vtd 2 Tomar assen-to em. vtd 3 Assenhorear-se de; dominar. vtd 4 Conquistar, granjear, obter. vtd 5 Estabelecer-se por ocupação militar em (uma praça, um forte ou um país). vtd 6 Cobrir todo o espaço de; en-cher; tomar (lugar no espaço vtd 7 Tomar o lugar de.

comunidadeco.mu.ni.da.desf (lat communitate) 1 Qualidade daquilo que é comum; comunhão. 2 Participação em comum; sociedade. 3 SociolAgremiação de indivíduos que vivem em comum ou têm os mesmos inte-resses e ideais políticos, religiosos etc. 4 Lugar onde residem esses indivíduos. 5 Comuna. 6 Totalidade dos cidadãos de um país, o Estado.

Muitas coisas ocupam a mente das pessoas quando pensam em uma “ocupação urba-na”, poucas delas associadas à família, amor, união, comunidade.

Palavras como tráfico, sujeira, desordem, ba-derna, perigo, drogas e vagabundos são fre-quentemente associadas a ocupações mas, em meses de trabalho, nada disso foi visto na Rua Mauá número 340.

Foram encontradas pessoas vindas de diversas partes do país e mesmo de fora dele. Pessoas que enfrentaram preconceito, que foram expul-sas de casa. Pessoas que decidiram deixar sua

família e sua cidade em busca de uma vida me-lhor, o velho sonho de tentar a vida na “cidade grande”. Famílias inteiras, pessoas sozinhas, mães solteiras. Muitas, mas muitas crianças. Idosos, homossexuais, brancos e negros. Rui-vos. Muita gente diferente, que já passou por coisas diferentes, mas todos com o mesmo so-nho de viver dignamente sob um teto que se possa chamar de seu.

Alguns mais ativos politicamente, outros pouco interessados em política. Jovens ativos, gente que não gosta de barulho e nem de se misturar com os outros. Neste prédio, com mais de mil pessoas, encontra-se vida pulsante, entre brigas, histórias tristes e bonitas e amor, muito amor.

Uma comunidade, onde as pessoas tentam vi-ver dia após dia, trabalhando como podem para sobreviver e trazer comida para casa.

Esse livro é uma tentativa de mostrar quem são essas pessoas, de onde vierem e com o que so-nham. Uma tentativa de mostrar que no centro da cidade, em meio à pobreza e à miséria, em meio às drogas e à violência, ainda há um grito pela vida digna, de famílias que vão contra o senso comum para lutar por um direito que já é delas, mas que lhes é negado todos os dias.

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Em janeiro deste ano, muitos incidentes relacio-nados à questão urbana estiveram presentes na mídia. O combate feito pela Polícia Militar à Cracolândia (no centro no São Paulo onde cen-tenas de viciados se aglomeram à luz do dia) de forma violenta e sem preocupação social com algo que deveria ser tratado como questão de saúde pública, mobilizou muitos estudantes e intelectuais para a gestão desta cidade, feita de forma autoritária e com caráter higienista, em-bora essa não seja a visão de muita gente.

Quase ao mesmo tempo, houve o massacre à comunidade Pinheirinho, em São José dos Campos, onde mais de mil famílias de trabalha-dores haviam construído sua moradia de forma autônoma em relação ao poder público em uma área de 1 milhão e 300 mil metros quadrados. Em uma demonstração de falta de sensibilidade política, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) mandou policiais militares despejarem a popu-lação, que ocupava a área há oito anos, sem que pudessem ao menos retirar seus pertences. Essas pessoas, desabrigadas, foram jogadas em ginásios e igrejas que, sem a infraestrutu-ra mínima necessária, tornaram-se alojamentos provisórios, em uma situação de completa falta de planejamento.

A área ocupada era de propriedade de Naji Nahas, megaespeculador dono da massa fali-in

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da Selecta. A decisão judicial a favor de Nahas, um homem conhecidamente corrupto e contra a função social da propriedade – definida por lei – foi, de fato, um escândalo.

O combate à Cracolândia, também feito sem planejamento e com uso extremo da violência, fez com que os viciados em crack, conhecidos como ‘nóias’, perambulassem sem destino pe-las ruas do centro. Pensada como uma política de higiene, preocupada mais em satisfazer os cidadãos moradores da região, que reclama-vam dos usuários, tais ações não trouxeram resultados positivos – o governo e a prefeitura não estavam (e ainda não estão) preparados para acolher os dependentes químicos. Os lo-cais que deveriam servir de centros de reabili-tação não estavam prontos e, portanto, a úni-ca coisa que conseguiam fazer na época era mobilizar forças policiais para retirar os ‘nóias’ de determinadas ruas, quando conviesse às autoridades. Em outros momentos a polícia só vigiava, mas nada fazia. Algo totalmente de-sordenado e que, permanece até o momento sem solução.¹

Em meio a esses acontecimentos, ainda no mês de janeiro uma manifestação reuniu es-tudantes e militantes políticos justamente na área da Cracolândia, entre as ruas Helvétia e Dino Bueno. Saindo do plantão de final de se-

1 Matérias sobre o tema: Fotos da reitegração da área conhecida como Pinheirinho: http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/6230-reintegracao-no-pinheirinho#foto-118153http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1039239-retirada-de-familias-do-pinheirinho-ignorou-acao-social.shtmlBlog do Nassif: http://www.advivo.com.br/node/7587862 http://www.youtube.com/watch?v=xn2um8xhc4o&feature=youtu.be

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mana, cheguei ao protesto bastante atrasada, o que me deu tempo apenas de cumprimentar os conhecidos no local e voltar ao metrô acompa-nhada de alguns deles. Foi na volta, chegando à Estação da Luz, na Rua Mauá, que avistei um prédio grande, cheio de roupas penduradas na janela, formando um grande quadro colorido. De longe enxerguei no muro as iniciais MTST (com pouca familiaridade com o movimento por moradia, imaginei de cara que o prédio fosse do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, para depois vir a saber que se tratava na verda-de da sigla MSTC – Movimento dos Sem-Teto do Centro).

Aquele prédio e aquelas pautas me fizeram chegar a este projeto, que foi pensado com diversos focos e abordagens antes de se con-cretizar de fato no que é. Depois de buscar pré-dios da Frente de Luta por Moradia (FLM), por ter conseguido contato com uma das líderes da Frente, Maria do Planalto, fui chegar nova-mente ao prédio da Rua Mauá depois de ver o documentário LEVA, feito pela produtora Preta Portê e exibido pelo Canal Futura.²

Por meio deste documentário pude conhecer a história dos principais coordenadores do Edi-fício Mauá, 340, que passou a ser meu objeto de trabalho, junto do problema habitacional em São Paulo.

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1.1 Situação da Moradia eM São pauLo

“Cada homem vale pelo lugar onde está; o seu valor

como produtor, consumidor, cidadão, depende de

sua localização no território, seu valor vai mudando

incessantemente, para melhor ou para pior, em fun-

ção das diferenças de acessibilidade (tempo, frequ-

ência, preço) independentes de sua própria condi-

ção. Pessoas com mesmas virtualidades, a mesma

formação, até o mesmo salário, têm valor diferente

segundo o lugar em que vivem, as oportunidades não

são as mesmas. Por isso, a possibilidade de ser ou

não cidadão está em larga proporção, dependendo

do ponto do território onde se está” (Santos; 1987)

São Paulo possui uma população de 11 mi-lhões trezentos e setenta e seis mil seiscentos e oitenta e cinco habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É o município mais populoso do Brasil e a sexta ci-dade mais populosa do mundo e, ainda hoje, continua atraindo migrantes de outras cidades e Estados em busca de uma vida melhor, pes-soas que vêm em busca de oportunidades.

No entanto, ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU diga que “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, 1

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habitação, cuidados médicos e os serviços so-ciais indispensáveis” (Artigo 25º, parágrafo 1º), em São Paulo essa premissa não é verdadeira.

Além da grande desigualdade social do país, que se reflete em sua maior metrópole, o dé-ficit habitacional, que é o foco deste trabalho, mostra números expressivos não só de falta de habitação como de inadequação das moradias existentes. Há, portanto, um déficit quantitativo e outro qualitativo.

Um relatório sobre o tema, intitulado “Déficit Habitacional no Brasil em 2008”, realizado pelo Ministério das Cidades em parceria com a Fun-dação João Pinheiro – do governo de Minas Ge-rais – define como inadequados os domicílios “com carência de infraestrutura, adensamento excessivo de moradores (em domicílios pró-prios), problemas de natureza fundiária, cober-tura inadequada, sem unidade sanitária domici-liar exclusiva ou em alto grau de depreciação”. Já os domicílios carentes de infraestrutura são todos os que “não dispõem de ao menos um dos seguintes serviços básicos: iluminação elé-trica, rede geral de abastecimento de água com canalização interna, rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta de lixo”.

Só na região metropolitana de São Paulo o dé-ficit habitacional soma 510 mil domicílios, em

um total de aproximadamente 5,546 milhões em todo o país. No Estado de São Paulo, o déficit também é bastante expressivo: 1,060 milhão de unidades.

Apesar disso, há ainda o problema da má uti-lização dos imóveis já existentes. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2008 traz a informação de que o Brasil possui 7,542 milhões de imóveis vagos, 72 por cen-to deles em áreas urbanas e 28 por cento em áreas rurais. Do total, 6,307 milhões estão em condições de serem ocupados, 894 mil estão em construção ou reforma e 340 mil, em ruínas.

Isso significa que, sem contar os imóveis em ru-ínas, são 7,201 milhões de imóveis com poten-cial de serem habitados. O Estado de São Paulo responde por 1,337 milhão dessas unidades e só na região metropolitana de São Paulo, são 640 mil.

Os dados mostram uma situação contraditória, devido ao enorme déficit habitacional que per-siste ainda que haja muitos domicílios vagos. A contradição mostra um problema não só de política urbana, que supera a existência de leis sobre o tema, mas nos remete também, a uma questão de interpretação da sociedade, com o conflito entre o direito à propriedade privada e a lei da função social da propriedade. 1

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O Estatuto da Cidade é a lei que regulamente os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, responsáveis pela política urbana, que definem o direito de usucapião em imóveis particulares e que dizem que, quando há abandono de imó-vel ou má utilização do mesmo, as autoridades têm o direito de recuperá-lo, dando a ele um destino social.

Art. 182. § 2º – É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e ter-ritorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento median-te títulos da dívida pública de emissão previa-mente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parce-las anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.1

O Estatuto, portanto “encarregado pela consti-tuição de definir o que significa cumprir a fun-

ção social da cidade e da propriedade urbana, delega esta tarefa para os municípios, ofere-cendo para as cidades um conjunto inovador de instrumentos de intervenção sobre seus ter-ritórios, além de uma nova concepção de pla-nejamento e gestão urbanos”, na definição da arquiteta e urbanista relatora internacional do Direito à Moradia da Organizações das Nações Unidas (ONU) Raquel Rolnik2.

O Plano Diretor Estratégico (PDE), citado no ar-tigo acima, consta na Constituição como o “ins-trumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, obrigatório para cida-des com mais de vinte mil habitantes.

Decretado apenas em 2002 pela prefeita Marta Suplicy (PT), o PDE de São Paulo regulamentou mecanismos para “garantir a função social da propriedade, combater a especulação imobiliá-ria, regularizar a cidade informal e obter contra-partidas pelo uso mais intenso do solo urbano, como a edificação compulsória, o imposto pro-gressivo para imóveis ociosos, as Zonas Espe-ciais de Interesse Social e a outorga onerosa do direito de construir”, nas palavras do arquiteto Nabil Bonduki3, que coordenou um processo participativo no Plano, como relator e autor do substitutivo, aprovado pelo legislativo. É no ar-tigo 114 do plano que se encontra a função so-cial da propriedade.1

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1 Constituição: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm2 Entrevista de Raquel Rolnik concedida ao Jornal Brasil de Fato: http://www.brasildefato.com.br/node/109613 http://www.nabil.org.br/dez-anos-do-plano-diretor-comemorar/

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Art. 11 – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende, simultanea-mente, segundo critérios e graus de exigên-cia estabelecidos em lei, no mínimo, os se-guintes requisitos:

I - o atendimento das necessidades dos ci-dadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, o acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento econômico;

II - a compatibilidade do uso da propriedade com a infraestrutura, equipamentos e servi-ços públicos disponíveis;

III - a compatibilidade do uso da propriedade com a preservação da qualidade do ambien-te urbano e natural;

IV - a compatibilidade do uso da propriedade com a segurança, bem estar e a saúde de seus usuários e vizinhos.

No entanto, apesar destes dois instrumentos le-gais, em nossa sociedade continua prevalecen-do o direito fundamental à propriedade privada, também estipulado na Constituição. Vem daí muito do preconceito e rejeição em relação aos movimentos que lutam pela moradia por atingi-rem o direito à propriedade, uma vez que, mu-tias vezes, se valem de ocupações de prédios

abandonados – como os movimentos apresen-tados neste trabalho – para chamar a atenção das autoridades para a causa.

O direito à vida e à moradia digna, o uso so-cial da propriedade, são colocados em segundo plano quando se fala em propriedade privada e, no âmbito governamental, as soluções apre-sentadas são muitas vezes insuficientes, pois focam nos números e deixam de lado essa in-terpretação maior, que tem a ver com a efetiva ocupação da cidade por seus habitantes, ga-rantido a eles uma vida digna.

Não importa ao cidadão ter um teto e paredes, se não há infraestrutura adequada no local onde mora, se só há moradias (muitas vezes todas iguais, seguindo um modelo de produção em grande escala) ao redor de sua casa e se sua moradia fica na periferia, longe das oportunida-des e da vida no centro da cidade. A arquiteta Raquel Rolnik, define bem a questão:

“A questão é que o Estatuto da Cidade enun-cia princípios e diretrizes importantes, mas na prática nós não fizemos uma reforma do Es-tado na área do desenvolvimento urbano, que permita inclusive que os entes executem esses princípios e diretrizes do Estatuto. Essa é uma dimensão mais institucional, e a outra é mais política. A economia política das cidades ainda 1

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4 Plano Diretor: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/plano_diretor/index.php

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é conduzida pelos setores que têm na cidade o seu negócio. São interesses econômicos mais ligados ao setor imobiliário e ao setor das em-preiteiras de obras públicas, concessionárias de serviço público. Isso aí manda nas cidades, nas câmaras municipais, e, portanto, nós não conseguimos romper essa lógica da hegemonia desse setor nas cidades.”5

Rolnik aponta o desafio da aplicação da refor-ma urbana no país que foi “anunciada e não foi implementada”.

1.2 o projeto noVa Luz

O Projeto Nova Luz é um longo e inconcluso capítulo da cidade de São Paulo. A proposta surgiu na então gestão de José Serra (PSDB) como prefeito, em 2005, e tinha como propósito revitalizar o centro de São Paulo – que passou por um processo de esvaziamento a partir dos nos 70, quando o centro econômico e financeiro da cidade passou a ser, principalmente, a Ave-nida Paulista e a região da Luís Carlos Berrini. O projeto abarca o polígono formado pelas aveni-das Ipiranga, São João, Duque de Caxias, rua Mauá e avenida Cásper Líbero, região conhe-cida por Cracolândia e a previsão inicial era de estar pronto em abril de 2011.

Para tanto, foram criados incentivos fiscais para empresas se instalarem na região, que deveria se tornar um “polo de inovação tecnológica”, de acordo com as autoridades responsáveis.

Os incentivos previam redução de 50 por cento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e diminuição de até 60 por cento do Imposto So-bre Serviços (ISS) por um período de até 5 anos. No ano seguinte, uma área de 105 mil metros quadrados foi decretada de utilidade pública, ou seja, seus imóveis seriam desapropriados para dar lugar a empresas. Três anos depois, repor-tagens de jornal mostravam que o processo de desapropriação dos imóveis para os fins deseja-dos estava sendo mais lento do que o esperado: de acordo com um advogado entrevistado pela Folha de S. Paulo, Luiz Arthur Caselli Guimarães Filho, quando é o poder público que faz a de-sapropriação, essa dívida das autoridades entra em regime de precatório e o pagamento efetiva-mente pode demorar até 10 anos. Quando quem vai pagar pelo imóvel é uma empresa privada, essa cobrança é mais rápida.

Por conta disso, o prefeito de São Paulo à épo-ca, Gilberto Kassab (DEM), passou a função de desapropriar os imóveis para a iniciativa priva-da por meio da concessão urbanística – meca-nismo que permite que o poder público trans-fira a empresas particulares o poder de realizar 1

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5 Sobre o Estatuto: http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/02/21/passados-10-anos-por-que-o-estatuto-da-cidade-nao-esta-sendo-implementado/

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grandes intervenções. Segundo a reportagem que cita Guimarães Filho, “a empresa que fará as obras será escolhida por licitação e terá o direito de desapropriar os imóveis para viabili-zar o projeto. Depois que a área estiver revitali-zada, a empresa poderá revender os imóveis a preços muito mais altos do que os praticados hoje no mercado”.6

Escolhido em 2010, o consórcio responsável pela execução do projeto é constituído por: Concremat Engenharia, Cia.City, AECOM Te-chnology Corporation e Fundação Getúlio Var-gas (FGV).

Na região, tanto os comerciantes da conheci-da Rua Santa Efigência quanto moradores de ocupações urbanas, como a Mauá, estão preo-cupados com os possíveis resultados do plano.

Justamente pela alta valorização das áreas fu-turamente revitalizadas, comerciantes e mora-dores temem não conseguir mais arcar com o valor dos alugueis ou mesmo de ter o imóvel apropriado para “utilidade pública”.

“Pelo que tenho visto, os projetos têm sido vol-tados para pessoas de alta renda. O correto seria ter também habitações populares”, disse o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis à Folha de S. Paulo.7

Sete anos depois de ser anunciado, o Projeto ainda não saiu do papel. A região continua sendo foco de usuários de drogas, tratados com cas-setetes e esguichos d’água. Pessoas de maior poder aquisitivo continuam se utilizando da área para um lazer “comedido”, se assim podemos chamar: é ir à Pinacoteca e voltar. Ir à Sala São Paulo e voltar. Não há uma integração de fato, não há “vida nova” no bairro. Além disso, as obras de melhorias mais concretas não foram realizadas.

Comerciantes questionam até hoje as formas de atuação do projeto, que quer retirar os que lá estão para colocar outros. Qual a lógica disso?

eSpecuLação

A principal força motriz por trás do projeto Nova Luz é a especulação imobiliária. No bairro, ór-gãos culturais são criados, como a Sala São Paulo, mas não possuem um caráter inclusivo ou abrangente. Destinam-se a um público es-pecífico, que vai ao bairro apenas para usufruir destes espaços, uma vez que o restante do bairro está “tomado” pela população mais po-bre. Verifica-se aqui o fenômeno da gentrifica-tion, estudada por conceituados pesquisadores na Europa e nos Estados Unidos.

No Brasil, quem trouxe o tema à realidade do centro de São Paulo, foi o professor Heitor 1

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6 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2602200916.htm7 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0307200914.htmPágina oficial do projeto: http://www.novaluzsp.com.br/proj_hist.asp?item=projeto

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Frúgoli, do departamento de Sociologia da Uni-versidade de São Paulo (USP), que define o conceito da seguinte maneira:

“Criação de áreas residenciais para classes médias e

altas em bairros de áreas urbanas centrais, articulado

a processos de controle ou expulsão de setores das

classes populares, num processo também assinalado

pelo desempenho de determinados estilos de vida e

de consumo, produzindo mudanças da composição

social de um determinado lugar, bem como tipos pe-

culiares de segregação socioespacial e de controle

da diversidade. (Frúgoli Jr., 2006).

Ainda controverso, o Plano da Nova Luz pode-rá sofrer mudanças em breve. O prefeito recen-temente eleito para o período de 2013 a 2017, Fernando Haddad (PT) prometeu revê-lo e “ouvir moradores e comerciantes da Rua Santa Ifigê-nia, contrários ao projeto, para enviar as modifi-cações para aprovação da Câmara Municipal”.8

rua Mauá

Inicialmente, a intenção do projeto Nova Luz era demolir o prédio da Rua Mauá e, em seu lugar, construir uma área de lazer. Como Ivaneti Araú-jo (MSTC) é uma das representantes dos movi-mentos de luta por moradia dentro do Conselho Gestor das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) número 3, que discute a questão habita-

cional em algumas regiões do centro, essa de-molição foi revertida.

“Levamos para dentro do conselho a ideia de manter o prédio de pé, porque já estávamos ocupando, tínhamos reivindicações e havíamos começado a negociar com o poder público uma solução para nossas famílias”, diz a coordena-dora do MSTC em entrevista dada ao site Rede Brasil Atual. “Argumentamos que o Mauá po-deria ser classificado como Habitação de Inte-resse Social (HIS) e conseguimos excluí-lo do projeto Nova Luz.”

zonaS eSpeciaiS de intereSSe SociaL (zeiS)

As ZEIS surgiram na década de 1980, como ins-trumento urbanístico para garantir a permanência da população de baixa renda nas favelas e lote-amentos. As áreas, ou zonas especiais, são de-marcadas no Plano Diretor, lei instituída em 2002 pela então prefeita Marta Suplicy. O objetivo da demarcação é o de impedir que a população de baixa renda seja removida de áreas centrais, do-tadas de infraestrutura.

Márcia Saeko Hirata e Patricia Samora são pes-quisadoras de pós-doutorado do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade 1

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8 http://exame.abril.com.br/brasil/politica/noticias/haddad-vai-rever-nova-luz-e-congelar-faria-lima Situação atual: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1160794-projeto-nova-luz-ainda-nao-saiu-do-papel.shtmlLinks para se aprofundar no tema: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmhttp://blogs.estadao.com.br/jt-cidades/tag/zeis/

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de São Paulo e, em matéria da Revista Fórum9, definem bem questão: “Situadas em bairros cen-trais, as ZEIS 3 visam ampliar a oferta de habita-ção popular e subsidiada (Habitação de Interes-se Social e Habitação para o Mercado Popular) bem localizada na cidade, com incentivos princi-palmente relacionados ao aumento de potencial construtivo dos imóveis demarcados. Pode-se assim garantir, pelo mercado ou pelo poder pú-blico, este tipo de produção habitacional em boas localizações, tendo em vista que os altos preços dos imóveis dificultam a construção de moradia popular em bairros que não sejam periféricos. Servem, assim, como importante elemento para enfrentar o déficit habitacional municipal e a de-manda por habitação na área central, expressa, por exemplo, em seus inúmeros cortiços e alguns edifícios ocupados por movimentos de moradia.”

1.3 BreVe HiStÓrico do MoViMento por Moradia

A história do movimento por moradia tem ori-gem no final da década de 70, início dos anos 80, oriunda da luta de favelas e de moradores de cortiços ou outras habitações precárias.

É consenso na bibliografia que “suas origens po-dem ser encontradas nas lutas de moradores de

cortiços contra as altas taxas de água, luz e IPTU os abusos dos intermediários, os despejos sem ávido prévio; e pela regulamentação de loteamen-tos no final dos ano 1970 e início dos anos 80 (cf.; Gohn, 1991; Kowarick, 1988)”, como apon-ta o texto “Ocupar, reivindicar, participar: sobre o repertório de ação do movimento de moradia de São Paulo”, de pesquisadores da Unicamp. (TA-TAGIBA, PATERNIANI e TRINDADE; 2012)

A cidade de São Paulo foi crescendo desorde-nadamente, e, com isso, acarretou no inchaço das favelas, cujos moradores com o tempo pas-saram a se articular em busca da melhoria de suas condições.

Surge, no início da década de 80, o Movimento Unificado de Favelas. Em 1991, um esforço de organização vai criar a União das Lutas de Corti-ços (ULC), que visava “aglutinar os movimentos envolvidos na luta melhoria das condições de habitação coletiva na área central e na região les-te/sudeste”. (TATAGIBA e colaboradores; 2012).

Da ULC nascem outros movimentos, como o Fórum de Cortiços, em um processo de seg-mentação relativamente comum no que se refe-re aos movimentos sociais.

Em 1987, surge a União dos Movimentos de Moradia (UMM), em caráter municipal, passan- 1

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9 http://www.revistaforum.net.br/conteudo/detalhe_noticia.php?codNoticia=9537

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do posteriormente, já em 1992, a ter caráter estadual. Começam-se assim os vínculos com a Central dos Movimentos Populares (CMP), or-ganização de caráter nacional.

Percebe-se, portanto, que são inúmeras as ins-tâncias de articulação pela luta da moradia, em diferentes âmbitos e focos distintos.

A Ocupação Mauá, personagem principal deste livro-reportagem, divide-se em três mo-vimentos diferentes. São eles o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), o Movimen-to de Moradia da Região Centro (MMRC) e Associação dos Sem-Teto do Centro de São Paulo (ASTC-SP).

A história do MSTC data do ano 2000. Sendo um “racha” do Fórum de Cortiços o movimen-to é formado por cerca de 20 grupos de base espalhados pela cidade, que têm o objetivo de iniciar a formação política dos cidadãos que de-sejam lutar pelo direito à moradia digna.

Nome importante na formação deste movimen-to é o advogado Manoel Del Rio, que hoje atua como assessor jurídico do movimento e da Ocupação Mauá.

O MMRC é fruto de uma divisão do Movimento de Moradia do Centro (MMC), conhecido pela

atuação do militante Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê. Nelson da Cruz Souza, coordenador do prédio, atuava no MMC (que por sua vez, é oriundo da União das Lutas de Cortiço), mas por “divergências internas” acabou criando, em 2004, o MMRC.

A ASTC-SP nasceu já dentro da Ocupação Mauá, formada por Adriano Alves e Raquel Gui-marães, após estes deixarem o Movimento dos Sem-Teto da Região Central de São Paulo (MS-TRC), coordenado por Hamilton Silvio de Sou-sa. Hamilton chegou a participar da ocupação do edifício, mas divergências internas o levaram a sair ainda no início.

Outro órgão importante é a Frente de Luta por Moradia (FLM), organizada por, entre outros, Ivaneti Araújo (MSTC) e Nelson da Cruz Souza (MMRC). A Frente caracteriza-se por um “cole-tivo de luta por moradia, formado por represen-tantes de movimentos autônomos que somam esforços para conquistar projetos habitacio-nais. Os movimentos que integram a Frente são comprometidos com a implantação de políticas sociais destinadas à população de baixa ren-da”, segundo consta na página da FLM.

Os rachas, as divergências, as semelhanças, existirão sempre dentro dos movimentos sociais, inclusive no movimento pela moradia. Há que se 1

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considerar, no entanto, que todos têm, no fundo, o mesmo objetivo – ainda que por vias diferentes – e que devem se juntar (e o fazem) em muitas circunstâncias, como diante das autoridades e para fazer pressão sobre os governantes.

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No Edifício localizado na Rua Mauá, número 340, existiu um hotel chamado Santos Dumont, que funcionava na década de 50. Seu proprie-tário era Mayer Wolf Sznifer e hoje, quem reivin-dica a posse do prédio são seus filhos, junto do advogado Williamberg de Souza.1

Após o hotel ser desativado, o prédio ficou abandonado por quase vinte anos. Por conta disso, hoje os proprietários somam uma dívida de R$2.772.496,46 (última consulta em 12/11), do não pagamento do Imposto Sobre a Pro-priedade Predial e Territorial (IPTU)2. Segundo informações da própria Prefeitura, desde 1974, foram pagas apenas 13 parcelas anuais com-pletas do IPTU, das 38 transcorridas até ago-ra. Desde o ano de 1994, nenhuma parcela foi paga pelos proprietários.

O prédio foi ocupado pela primeira vez em 25 de março de 2003 pelo Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), com aproximadamente 500 famílias. À época, o prédio já estava abandona-do há 13 anos e foi preciso fazer uma limpeza enorme para que pudesse se tornar habitável.

Alguns meses depois, no entanto, houve a rein-tegração de posse com a exigência, por parte da Justiça, de que o proprietário fizesse uso de seu imóvel abandonado. Quatro anos depois a situação continuava a mesma.2

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1 http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/1093134-racionais-mcs-grava-clipe-em-ocupacao-sem-teto-no-centro-de-sao-paulo--assista.shtml2 http://www3.prefeitura.sp.gov.br/sda/consulta (número de contribuinte: 001-019-0082-1)

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Desde a última reintegração de posse, em 2003, nenhuma parcela do IPTU foi integralmente paga, resultando em dívidas de, em média, 120 mil reais por ano.

Em 2007, muitos militantes do MSTC recebiam da prefeitura um benefício chamado bolsa-aluguel e moravam em um edifício na Rua Santa Rosa, na região do Brás. Com a não renovação do benefí-cio e observando o abandono do prédio na Rua Mauá, Ivaneti Araújo, coordenadora-geral do MSTC, decidiu juntá-los e organizar a ocupação.

Outra parte dos moradores havia sido despejada de cortiços e estava, portanto, em situação de rua.

Por falta de apoio da direção de seu próprio movimento, Ivaneti resolveu se unir ao Movi-mento de Moradia da Região Centro (MMRC), cujo principal representante é o Nelson da Cruz Souza e ao Movimento dos Sem-Teto da Região Central de São Paulo (MSTRC), cujo coordenador-geral se chamava Hamilton Silvio de Sousa.

A relação com o MSTRC, no entanto, durou pou-co. Logo no primeiro ano de ocupação nasceu a Associação dos Sem-Teto da Cidade de São Paulo (ASTC-SP), que passou a ter como coordenadores Adriano Alves, o Sukita – que já ajudava a coor-denar o MSTRC, e Raquel Guimarães, sua mulher.

o início

Como é comum no início de uma ocupação, a “festa” (nome dado entre os militantes ao ato de ocupar um prédio) ocorreu por volta de meia--noite e nos primeiros dias foi organizada uma cozinha coletiva, também algo habitual em se tratando de ocupações. Uma divisão do espaço foi feita e ficaram no prédio aproximadamente 200 famílias, segundo Ivaneti, conhecida no movimento por Neti.

Por conta do abandono, os elevadores não funcionavam mais (e continuam inoperantes) e toda a parte elétrica e de esgoto teve de ser re-feita pelos próprios moradores.

Para a organização do prédio, principalmente para solucionar brigas entre moradores, discus-sões ou problemas do cotidiano, cada um dos 6 coordenadores é responsável por um andar, sendo dois andares por movimento. Segun-do Ivanilda Rodrigues, outra coordenadora do MSTC, essa associação entre três movimentos, apesar de ter dado certo aqui, é algo raro dentro do movimento por moradia.

a aproxiMação

No final de abril, um vídeo³ do dia 23 foi com-partilhado no Facebook. Era Ivaneti Araújo, 2

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³ http://www.youtube.com/watch?v=EbR99IMrRwk&feature=share%27%2C%29

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uma das principais lideranças da Mauá, fa-lando sobre uma liminar recebida em março para reintegração de posse, com despejo das famílias pelo “uso de força e ação poli-cial caso necessário”.

A alguns dias de completar cinco anos de ocu-pação, as 237 famílias moradoras da ocupação poderiam ser despejadas na rua a qualquer mo-mento, sem nenhuma alternativa apresentada pelas autoridades.

Eu já havia tomado a decisão de contar a histó-ria da Ocupação Mauá depois de ter visto o do-cumentário “Leva”4, citado na Introdução deste livro, mas ao ver o vídeo sobre a possível rein-tegração que, nas palavras de Neti, queria evitar um “Pinheirinho II”, senti a urgência da história.

Entrei em contato com a Ivaneti e ela pediu que eu conversasse antes com a coordenadora Iva-nilda Rodrigues. O prédio de seis andares pos-sui câmeras de segurança (uma que dá para a rua e uma para cada andar) e, para entrar, é preciso tocar uma campainha. A primeira ida à ocupação foi num sábado, por volta das 13h, conforme combinado.

Avisei a porteira, Elisete – a qual eu reconhe-ci pelo documentário – que estava lá pra falar com a Ivanilda e, ao ligar pra ela para avisar 2

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4 http://www.youtube.com/watch?v=xn2um8xhc4o&feature=youtu.be

que havia chegado percebo que, na verdade, havia acabado de acordá-la. Rindo, de um jeito muito simpático, disse que iria tomar um banho rápido e que em seguida desceria para falar comigo. Esperei. Me sentei num pequeno sofá improvisado que havia no corredor de entrada e fiquei observando todos os que entravam. Ninguém me conhecia e imaginei que deveria gerar curiosidade. As pessoas me olhavam e, a um pequeno sorriso tímido que lhes dava, recebia um oi e um sorriso de volta. Me senti acolhida, como se dissessem que tudo bem, eu poderia estar ali na casa deles, não impor-tava o motivo. Crianças passavam e me davam oi como se eu já fosse de lá e em pouco tempo o nervosismo de estar em uma ocupação pela primeira vez passou.

Quando Ivanilda desceu e me cumprimentou, imaginei (na verdade desejei), que fosse me chamar para conversar em seu apartamento. Ledo engano. Como alguém que nunca me viu e nem ao menos sabe quais são as mi-nhas intenções poderia me levar pra conhe-cer sua casa? Penso em tudo isso e volto a me colocar no meu lugar. Sentamos no sofá e começo a lhe explicar sobre meu trabalho e a fazer perguntas.

Para que haja uma boa convivência entre os moradores e para que não se esqueçam de

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que no prédio se faz luta e que “nada é de graça”, todos devem respeitar um regula-mento, sob pena de advertência ou mesmo expulsão.

reguLaMento interno (em Anexo)

Três anos após o início da Ocupação, em outu-bro de 2010, um regulamento interno foi desen-volvido, discutido e aprovado em assembleia geral, como “lei da ocupação”, para garantir “condições dignas de convivência coletiva às famílias moradoras”.

A participação é um ponto importante das regras. Uma vez que a luta é diária, toda participação em reunião, mutirão de limpe-za, ato ou manifestação do movimento é de-vidamente registrada por família. “Todas as família moradoras devem participar de todas as atividades visando o bem comum no pré-dio (Comissões de Trabalho e Mutirões), bem como de Atos, Reuniões de Negociações e outras Atividades Gerais do Movimento, para contribuir com o avanço da luta por mora-dia”, diz o regulamento.

É proibido o consumo de bebidas alcoólicas e de drogas dentro do prédio, bem como o uso de armas e a prática de furtos, roubos ou mes-mo guardar objetos roubados.

A limpeza e a higiene das áreas comuns e dos sanitários são tarefas de todos.

“Todos os casos de não-cumprimento de qualquer Artigo ou Incisos desse Regulamento serão anali-sados pela Coordenação. Reconhecido o descum-primento de alguma regra, caberá à Assembleia geral decidir e aplicar a punição necessária.”

Situação atuaL

Após receber a liminar de reintegração de posse já citada, os coordenadores da Mauá passaram por uma situação de medo e incerteza. O antigo advogado não quis entrar com pedido de agravo – recurso destinado a se opor à decisão ante-rior – e, após um desentendimento, optou-se por mudar de representante. A escolhida foi a advo-gada Rosângela Rivelli Cardoso, já conhecida de Benedito Roberto Barbosa, militante conhecido por todos como Dito. Dito tem uma longa traje-tória nos movimentos sociais e em especial no movimento por moradia. Atua principalmente na Central de Movimentos Populares e no Centro Gaspar Garcia de direitos humanos. Intensa-mente envolvido na temática, Dito conhece bem a Ocupação Mauá e suas lideranças.

Ao assumir como advogada responsável pela ocupação, a primeira medida de Rosângela foi entrar com um agravo contra a liminar e com 2

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um mandado de segurança, para garantir que nada acontecesse aos moradores.

Após muitos pedidos indeferidos, apelações da advogada e decisões arbitrárias por parte dos juízes, a liminar foi suspensa e, por enquanto, os moradores não serão despejados. Os proprietá-rios do imóvel podem entrar com recurso contra a decisão e, portanto, esse não é o final da histó-ria, mas, caso o último agravo apresentado pela advogada receba um parecer favorável, os mo-radores poderão ser beneficiados pelo dispositi-vo constitucional de usucapião, em um primeiro passo para a posse definitiva do imóvel.

O objetivo dos coordenadores e moradores da Mauá é de que as autoridades adquiram o prédio para promover uma grande reforma, tornando-o dignamente habitável. Um estudo de viabilidade solicitado pelos coordenadores foi feito por um arquiteto, Waldir Cesar Ribeiro, e apresentado às autoridades em Brasília. De acordo com o estudo, o custo da intervenção necessária para a reabilitação do edifício seria de, aproximada-mente, R$ 11,2 milhões, ou, em média, R$ 70 mil por unidade. A conclusão é que é possível incluir a ocupação nos programas de produção de habitação para a população de baixa renda, já que este valor pode ser viável no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, em São Paulo, com recursos do Governo do Estado.

O estudo mostra, portanto, que é possível dar um final feliz a esses mais de mil moradores que construíram uma parte de suas vidas em cima de um prédio abandonado.

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“Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica,

cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homoge-

neidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político:

o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma

nova cultura, de um novo direito, etc., etc.” (Gramsci, 1979)

Grosso modo, Gramsci diz que os grupos for-mam, de dentro para fora, intelectuais orgânicos. São esses os coordenadores da Mauá: pessoas comuns, de uma determinada classe social que, com formação e principalmente vivência polí-tica, na luta diária por um direito garantido por lei (mas negado na prática), foram se tornando lideranças. São em sua maioria pessoas que aprenderem a fazer uso da palavra e a atrair ou-tras pessoas para a ação, pois reconhecem a im-portância de formar outras consciências, como aconteceu com eles. Ivaneti Araújo, do MSTC, não imaginava se tornar coordenadora-geral de um grande movimento quando começou a parti-cipar de ocupações. O preconceito e a descon-fiança falavam alto e foi preciso muita “aula” de

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política com gente que entende e atua no meio para que ela descobrisse seus próprios direitos e começar a correr atrás deles.

Com Manoel Pedro, o Manoelzinho, a mesma coisa. Um homem tímido, que não acreditava em movimento social e que achava as reuniões chatas, hoje coordena grupos de homem na ocupação dos prédios abandonados, incenti-vando-os em um momento de alta adrenalina e tensão. A tímida Ivanilda, que não gosta de falar em público, sabe tudo sobre a Ocupação. É ela que guarda todos os registros, contas, atas de reuniões sobre moradia. Participa de reuniões importantes e sempre que preciso, toma a fren-te das coisas.

Além da parte “intelectual”, de formação social e política da qual os coordenadores são respon-sáveis, há também as tarefas cotidianas: resol-ver problemas, pendências, enfrentar autorida-des, dialogar com o poder público e apresentar demandas. Sempre sabendo, antes de tudo, quais as regras do jogo. Dentro da Mauá, o que impera é o regulamente interno e o diálogo: assembleias são feitas regularmente e quando há algum problema que deva ser discutido por toda a comunidade, a assembleia também é convocada. No que se refere ao diálogo exter-no, a mesma coisa: os coordenadores sabem

bem quais são seus direitos e o que podem ou não exigir das autoridades.

E assim, diariamente, o movimento é construído por todos os seus membros. Aqui, o intuito é de apresentar esses “intelectuais orgânicos” que sabem tudo de educação e liderança popular. Quem são eles, de onde vieram e como se tor-naram o que são hoje?

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Coordenadora-geral do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), Ivaneti Araújo, a Neti, é uma mulher de atitude, mas “sem perder a ter-nura”, que sabe muito bem do que fala e que demonstra isso em todas as suas ações. Seja no modo como conversa com desconhecidos, seja como conduz uma assembleia, em uma sala lotada, para os moradores da ocupação.

Foi dela a ideia de ocupar o prédio quando este estava abandonado e, mesmo sem a aprovação do movimento do qual faz parte, buscou alianças e apoio e foi à luta. Tem sido assim desde sem-pre, ainda que o processo de conscientização tenha demorado um pouco mais.

“Eu acho que eu já era alguém de luta e eu não imaginava e só foi florir a partir do momento do movimento”, diz ela, ao pensar sobre as influ-ências de sua infância no que se tornou hoje. Ainda criança, no ano de 1984, Ivaneti partici-pou de uma greve de boias-frias em Guariba, região de ruralistas, no interior de São Paulo, onde os grevistas, que reivindicavam melhores salários e melhores condições de vida, saquea-ram um supermercado. Aos 11 anos e sem en-tender bem do que se tratava, Neti entrou no meio e levou, sozinha, dois carrinhos cheios de comida para casa, tendo ainda que se justificar para sua mãe, que por “desobediência” queria lhe dar uns cascudos.

Nascida em Guariba, Ivaneti teve que trabalhar desde cedo com o pai, na roça, não só para aju-dá-lo, mas também para fugir dos tapas de sua mãe, que sofria de um problema de alcoolismo. “Ela me batia muito e meu pai carregava uma tur-ma num caminhão pra ir pra roça e pra evitar que eu apanhasse da minha mãe, ele me levava junto e eu fui tomando gosto e aprendendo...”, conta.

O trabalho prejudicava na hora dos estudos e impediu que ela pudesse aproveitar plenamente sua infância. “As minhas bonecas eram aque-les milhos, com o cabelo do milho, eu enrolava um pano assim, dobrava o pano no meio como cobertor, enrolava como se fosse de neném. Es-sas eram as minhas brincadeiras, eu não tinha tempo de brincar não.”

Apesar disso, não há ressentimento em sua voz ao se lembrar do passado. Sua mãe, a quem chama carinhosamente de “bichinha”, falecida em 2009, foi sua maior influência na vida. “Hoje se eu sou o que eu sou, eu devo muito a ela. Porque ela me botou pra fora de casa cedo, me deu mesmo um chutão assim no traseiro... e às vezes os tapas, os chutes, os empurrões que a mãe dá são só pra empurrar pra frente mesmo, pra tocar pra frente mesmo...”

Com duas irmãs mais novas por parte de pai e mais quatro por parte de mãe, também mais 3

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novas que ela, Neti sentiu o peso da responsa-bilidade desde cedo, julgando ter que sempre tomar a frente das coisas.

“Minha mãe me chamava de macho e fêmea, porque eu era muito moleque, eu era muito ma-chinho mesmo, eu queria tomar as decisões... acho que por eu ter ido pra roça cedo, eu queria decidir as coisas, sabe.”

Talvez por essa vontade de cair cedo na vida e tomar suas próprias decisões, Neti deixou a casa da mãe com 12 para 13 anos, sem emprego, di-nheiro ou lugar para morar. Em busca de uma al-ternativa ao trabalho rural, ela escolheu Ribeirão Preto, onde trabalhou como doméstica, morou na rua, passou fome e muita necessidade. Aos 15, Neti engravidou de seu primeiro filho, Die-go, e como muitas meninas brasileiras, foi mãe solteira. Para poder trabalhar e levar dinheiro de volta à Guariba deixou seu filho com a mãe e vol-tava para vê-lo a cada 15 dias.

Foi em Ribeirão que ela conheceu o pai de suas filhas, Diovana e Niele, que hoje também mo-ram na Ocupação Mauá. Depois de a empresa onde o marido trabalhava ter falido, em Ribei-rão, a família veio para São Paulo.

Foi com eles, morando em baixo do viaduto do Glicério, que Neti conheceu o movimento por

moradia. Sobre o porquê de participar da sigla MSTC, entre tantas outras existentes, ela é ca-tegórica: “não fui eu que escolhi o movimento, o movimento é que me escolheu”.

No início, o desconhecimento e o preconceito sobre o movimento por moradia fizeram com que ela não quisesse se envolver, mas, vendo que não havia alternativas, ela e o marido pas-saram a participar de reuniões.

Como toda pessoa é fruto de suas origens e de sua história, ao entrar no movimento, Neti en-controu uma força da qual não sabia ser capaz e sua vida sofreu grandes alterações, começan-do de casa.

“Eu passei um processo assim, que esse meu ex-marido, qualquer coisa ele batia, qualquer coisa, ele me batia muuito assim”, conta ela. “Chegou um momento que eu comecei a co-nhecer o movimento, que eu fui pra luta e quan-do ele veio me bater eu não admitia mais”, diz ela, que foi adquirindo conhecimento e consci-ência de seus direitos através de assembleias, reuniões e cursos de formação do movimento.

Ao saber de seus direitos, Neti passou a cres-cer. “A partir de hoje se você me bater, eu te bato também. Se você me trair eu te traio tam-bém. Se você virar à esquerda, eu vou à direita, 3

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se você for reto eu viro a curva, mas eu não ad-mito mais. Você tá ouvindo? Eu gritava assim, com muito poder, não vou admitir. Você não me dá nada! Quem é você? Sabe...”, conta.

“Eu participei de formações de gênero, do papel da mulher na sociedade. Isso pra mim foi muito bom, me alimentou e assim, eu não tô aqui pra bater muito menos pra apanhar, eu acho que os direitos são de todos, tá certo. Eu não quero mais nem menos, eu quero o direito digno que é meu, é meu enquanto mulher, enquanto mãe, enquanto militante, enquanto cidadã”, afirma ela, sempre muito convicta.

Ainda nas mãos no ex-marido, Ivaneti, que hoje é casada com um rapaz de 24 anos, sofreu com o machismo, que ainda hoje impera em muitas relações. “Ele tentou me humilhar... ele falava assim pra mim ‘Se eu largar de você, quem é que vai querer você?’ Que assim... a mulher, depois que ela se transforma, principalmente a nossa pele... dá estrias, ‘Quem vai querer você com a perna cheia de estrias, cheia de filho?’.”

Dez anos depois de entrar no movimento, Neti é casada com Robson, com quem tem um fi-lho de um ano, o Caleb. Além dele, Diego e Niele também moram com ela e a filha Diova-na mora na ocupação, em um espaço quase vizinho ao seu.

Por conta da militância, Ivaneti já conseguiu conquistar seu apartamento próprio, um empre-endimento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), mas ainda não deixou seu espaço na Rua Mauá.

“Aqui eu pretendo sair só depois que as famílias forem contempladas. Mas eu pretendo um dia passar o final de semana lá... Ir num sábado à tarde, vir num domingo à noite... quando não tiver nada, sabe, pretendo sim”, diz. Enquan-to isso, vai construindo aos poucos sua casa, comprando os móveis e utensílios domésticos.

“Eu gosto de morar no coletivo, você não tá en-tendendo...”, fala rindo. “É o coletivo... eu gos-to. Pra que também viver isolado? Tá, tem dia que você precisa de paz e tranquilidade, mas o meu tempo é raro... esse prazo que eu preciso é bem pouquinho, é muito raro”, explica ela.

Em função da causa pela moradia, Neti já teve oportunidade de conhecer diversos países do mundo. Acompanhada de Manoel Del Rio, as-sessor jurídico do movimento e uma espécie de “mentor” do MSTC, Neti conheceu Alemanha, Suíça, Áustria, Inglaterra, França, Espanha, Su-écia, entre outros países dos quais nem se lem-bra mais. E reconhece o papel que esse com-panheiro de luta tem, não só para ela. “Ele dá cada formação... eu prestava muito atenção nas 3

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palavras dele, então ele foi uma influência pra mim. Acho muito legal o conteúdo que ele traz para o grupo”, diz sobre “doutor” Manoel.

Luta

A primeira ocupação da qual Neti participou ocorreu em 1998, no antigo Hospital Matarazzo. “Pra mim foi tudo novo, eu não sabia o que eu tava fazendo.” Pelo fato de ser um hospital, ficou apavorada, com medo de pegar doenças, até que seu marido lhe deu um sacoalhão. “Olha, a gente pode voltar pra rua, porque aqui vai pe-gar bactéria, mas eu não vou ficar sossegado, eu vou roubar, eu vou traficar, eu vou fazer tudo de ruim e se eu for preso e você me deixar lá, não vai ficar bom as coisas...”, disse ele.

“E depois eu fui vendo, eu fui tendo meu espa-ço, fui tendo porta, fui tendo janela, fui tendo lo-cal pra tomar banho, local pra lavar roupa, local pra fazer comida... eu comecei a fazer pudim e vender lá dentro do prédio mesmo, eu fazia bolo eu fazia tudo por encomenda assim, sabe, bolo por encomenda pra vender em pedaço, eu comprei bala, salgado e fui vendendo, fui adqui-rindo um dinheiro em casa que já ajudava pras compras, entendeu. Foi muito bom”, conta.

Após nove meses, no entanto, o hospital foi de-socupado e parte das famílias seguiu para um

prédio na Rua Ana Cintra, esquina com a Ave-nida São João, no centro. Com a reintegração de posse da Ana Cintra as famílias fizeram um acampamento na Rua Frederico Steidel, batiza-do “Álcool em Mim”, em uma referência irônica ao nome do então governador Geraldo Alck-min (PSDB). Neti explica: “Só um bêbado pra acreditar nas propostas dele”. O ano era 2004. “Ficamos uns 90 dias na rua, até sair o bolsa--aluguel, aí fomos pra Santa Rosa.”

A ocupação na Rua Santa Rosa, na região do Brás, é recorrente entre as entrevistas de mui-tos coordenadores e moradores da Mauá. Na época, militantes do MSTC que passaram a receber o benefício do bolsa-aluguel consegui-ram “fechar” um prédio, onde as cerca de 40 famílias ficaram morando juntas.

Neste momento, Neti, sempre atenta ao mo-vimento de entra e sai da ocupação, inter-rompe a entrevista. Uma moça aparece no portão perguntando por um suposto morador e Neti é a primeira a responder: “O Ailton não mora aqui não, colega!!!”, grita ela, que não perde uma.

Além das dificuldades que já enfrentou como lí-der de um movimento social que sofre com pre-conceitos e repressão policial, Ivaneti, que hoje é conselheira tutelar da região da Sé, eleita para 3

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o período de 2011 a 2014, também enfrentou questões delicadas no âmbito familiar.

Diego, seu filho mais velho, sofreu dois aciden-tes, aos 20 e aos 22 anos. No primeiro, um aci-dente de moto, perdeu a perna esquerda. No segundo, sofreu traumatismo cranioencefálico.

“Pra mim foi muito difícil, porque veja, eu colo-quei um filho perfeito, o Diego era perfeito... o Diego era um menino assim lindo que o pediatra olhava pra ele e falava esse é o paciente mais lindo que eu tenho”, desabafa ela.

“Com 20 ele me perde a perna, eu não tinha acostumado ainda, confesso a você... foi muito ruim pra mim, está sendo, não é fácil, mas aí eu estava me adaptando, ele estava morando no apartamento dele, vivendo a vida dele, aí ele foi pra um passeio no dia 1º de agosto, dois anos atrás, e teve outro acidente. E eu confesso a você que acabou assim... eu era uma pessoa muito alegre, festiva, sabe, não tinha tempo ruim assim pra mim... não que tenha hoje, mas sei lá, arrancou um pedaço de mim, confesso”, diz, amargurada. Hoje, Diego anda em uma ca-deira de rodas e precisa de alguém cuidando dele 24 horas por dia.

“A vinda do Kaion e do Caleb amenizou a minha dor, que se não tivesse os dois acho que hoje eu 3

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pirava”, diz ela, sobre seus dois filhos mais no-vos. “Por isso que eu falo, Deus escreve certo nas linhas tortas, porque ele me deu essa opor-tunidade de ter dois filhos. Depois do primeiro acidente do Diego veio o Kaion, olha como são as coisas, no segundo veio o Caleb... pra me confortar sabe?”

Kaion é seu filho adotivo, que apareceu em sua vida ainda bebê, no dia 18 de janeiro de 2010. Neti conheceu Vanessa, mãe biológica de Kaion, nas ruas do centro. Ele tinha poucos dias de nascido e Vanessa, que é dependente de crack, vendia biju-terias na busca pela sobrevivência. Neti começou a ajudar na criação do menino e deu um espaço para Vanessa na ocupação, mas o vício falou mais alto. “Chegou um momento em que ela falou ‘Olha, eu não tenho condição de dar pra ele o que vocês dão. Eu quero entregar meu filho pra vocês’. Foi o dia mais feliz da minha vida”, conta Neti.

Hoje, Kaion é registrado como filho dela e de Ro-bson, seu marido, mas sabe que tem duas mães. Vanessa mantém o espaço na Mauá, mas passa longos períodos nas ruas, onde faz uso da droga.

Muito do trabalho atual de Ivaneti, como conse-lheira tutelar, tem a ver com isso.

“Eu peguei experiência do movimento mesmo, né... que a gente atua com todo o tipo de famí-

lia, com crianças, com jovens e a gente foi ven-do a necessidade de ter um conselheiro voltado pra social, voltado pras nossas famílias, aí me candidatei”, conta.

A tarefa, no entanto, é árdua. “Eu ando um pou-co decepcionada. Porque você tem vontade de fazer, mas a máquina não te ajuda. É muito duro uma mãe chegar no balcão e pedir creche, você requisita e a creche não vem.” “Você entra com uma vontade, com fôlego e você é barrado. Vai fazer um ano... um martírio, confesso. E ainda tenho mais dois anos pela frente... Não sei se eu vou conseguir”, desabafa ela.

Mesmo depois de tantos anos de militância, de ter vivido nas ruas, sofrido com preconceito, machismo e falta de oportunidades até chegar onde chegou, Ivaneti Araújo sabe que o cami-nho ainda é longo.

“O que tá faltando na minha vida hoje é aten-der as demandas que estão aqui na minha res-ponsabilidade, que é Prestes Maia e Mauá. Se atender essas demandas, os prédios forem re-gularizados, aí eu posso respirar um pouquinho, pensar o que fazer... qual seria o meu plano pra frente... não consigo pensar agora.”

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pra que outras possam permanecer com os suas vidas,

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Manoelzinho, como todos o chamam, é um homem que mudou muito ao longo do tempo, tanto física quando politicamente e isso pode ser facilmente comprovado com um ou dois do-cumentários sobre movimentos sociais, como o “Dia de Festa”, de Toni Venturi.

De sujeito tímido e mirrado, Manoel virou um homem forte, vaidoso, uma liderança conhecida que trabalha, acompanha o movimento e ainda é vocalista de uma banda de forró, a Explosão Digital, bastante conhecida no centro.

Nascido em Igarassu, em Pernambuco, come-çou a vida muito cedo, tendo se tornado pai aos 14 anos de idade. Foi com essa idade que ele e sua ex-mulher, vieram tentar a vida longe da família dela, que não apoiava o relacionamento. Antes de chegar a São Paulo, no entanto, os dois pré-adolescentes tiveram que passar por diversas cidades brasileiras. “Tanto que meus filhos são tudo nascido em local diferente. Por-que o meu sogro procurava a gente e ele acha-va. Eu fui pra Araripina (PE), aí ele achou a gente aí, depois fui pra Bahia, minha mulher grávida, aí minha filha nasceu e ele achou a gente, aí eu vim pra São Paulo”, conta.

Em São Paulo, cidade que ele descreve como “muito ambiciosa” e “totalmente diferente do Norte, Nordeste” do país, as coisas não foram

fáceis. Por sorte, Manoel encontrou na rodoviária um homem de sua cidade, Josué, que lhe deu casa e comida por seis meses, além de lhe aju-dar a arrumar um emprego. “Esse cara parecia alguém mandado por Deus, porque eu trabalha-va, ele arranjou um emprego pra mim e aí eu ia dar o dinheiro pra ele no final do mês e ele fala-va que não precisava, que eu podia juntar meu dinheiro”, conta. Seu primeiro emprego em São Paulo foi numa fábrica de louças, onde Manoel ficou encarregado do transporte de caminhões. Seis meses depois, com um dinheiro juntado, ele deixou de morar de favor e foi pagar aluguel em um cortiço em Carapicuíba, passando depois para Guarulhos, ao arranjar um emprego de ma-nobrista. “Aí fui trabalhar na Estapar, trabalhei 12 anos lá e meu último emprego com estaciona-mento foi atrás do Fórum da Barra Funda.”

Foi em Guarulhos, antes de chegar ao centro de São Paulo, que Manoelzinho conheceu o movi-mento, apresentado por sua ex-mulher, Beatriz. “Tem aquele ditado que diz que por trás de um grande homem tem que ter uma grande mulher, né, então essa minha ex-mulher ela... até hoje eu tiro o chapéu pra ela. Ela sempre tava atrás de alguma coisa”, diz. Juntos, os dois começa-ram a participar de reuniões de grupo de base.

“A gente começou lá e não entendia muito como que funcionava, e eu falava pra ela ‘isso 3

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aí é mó furada, eles só querem pegar é dinheiro da gente...’, aí com quatro reuniões que a gen-te tava indo toda sexta-feira, aquela chatice de reunião né, e aí do nada ela (a coordenadora) falou ‘nós vamos ter uma festa...’”, conta Ma-noelzinho. “Eu falei ‘Escuta, você fala que vai arranjar moradia amanhã e tá fazendo festa?’.” A festa, no caso, é o código usado dentro do movimento por moradia para a ocupação de prédios abandonados. Aos poucos, Manoel foi entendendo do que se tratava e foi colocado junto com outros homens na linha de frente.

“Quando cheguei lá e vi aquela multidão entran-do nos ônibus, eu lembro que veio 12 ônibus quando a gente veio ocupar o Prestes Maia... era tanta gente... e tinha um cara lá que fez a mesma reunião que eu faço hoje com a linha de frente, encorajando a gente... e eu sei que quando eu desci do ônibus e vi aquela porta lá foi uma adrenalina assim que em dois minutos a gente conseguiu abrir a porta e aí foi onde co-meçou a minha história no movimento”, relem-bra ele.

Assim como a Mauá, o Prestes Maia é uma ocu-pação de longa data no centro de São Paulo, coordenado pelo MSTC.

Manoel admite que tem o coração mole. Em muitos momentos da entrevista, ao lembrar de

sua trajetória e do respeito que ganhou como li-derança do movimento, ficou com a voz embar-gada, mas também é um homem que fala o que pensa e mostra que discorda de muitas coisas atuais do movimento.

Quando começou, antes de virar coordenador, percebeu que muitos jovens saíam à noite da ocupação, sem se preocupar com a violên-cia das ruas do centro. Criticou a situação em uma assembleia e recebeu a seguinte resposta: “Companheiro, em vez de você criticar, você se junte a nós e venha nos ajudar”.

“Aquilo lá pra mim foi um tapa”, diz ele, “e foi onde eu comecei a tomar a frente das coisas, a participar mais, ao invés de só fazer as minhas três horas na portaria, eu procurava saber quem tava fazendo a portaria, quem não tava, aí eu fui começar a participar da coordenação, como coordenador de segurança do prédio.” As três horas na portaria faziam parte de um esquema de revezamento voluntário entre os moradores, coisa que não existe mais e que Manoel faz questão de criticar.

“Tinha aquelas escalas de portaria, que hoje em dia o movimento tá muito mudado, que antiga-mente era tudo voluntário, ninguém era remunera-do pra fazer nada nas ocupações. Hoje em dia se você fica na portaria você é remunerado...”, diz. 3

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Por conta dessa e de outras mudanças que foram acontecendo, ele acredita que muitos moradores não entendem a fundo o motivo e o valor da luta pela moradia e não sabem dar tanto valor ao que têm. “Hoje você vê a es-trutura do movimento... eu fico bobo, eu faço assembleia com o povo e eu falo ‘Vocês não sabem o que é sofrimento. Sofrimento passou quem chegou no movimento em 2002, 1998, 1999... ali era sofrimento. Pra sustentar o pré-dio do Prestes Maia de energia a gente usava frio de 4 mm, 6 mm, então todo o dia o prédio pegava fogo, estourava energia na rua, hoje a gente consegue conversar com os caras da Eletropaulo, conversar com todo mundo, pes-soal entende a nossa luta... antigamente não tinha isso, a Eletropaulo ia lá e cortava, não ti-nha esse negócio...”, diz ele, um pouco angus-tiado com os rumos que o movimento tomou, em sua opinião.

“Outra briga muito grande nossa, do movimen-to social, é fazermos formação social e políti-ca, porque é uma causa muito difícil de entrar na cabeça do povo pobre, é a questão política. Eles não conseguem unir as duas coisas e, na verdade, tudo parte da questão política, né”, afirma ele, que também ele já foi apolítico. “Eu também odiava política. Pra você ter uma ideia a minha primeira eleição foi em 2002. Votei no Lula porque eu conheci o movimento... come- 3

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çou a formação e aí eu comecei a entender que a gente respira política, entendeu.”

Após um tempo na Prestes Maia, sua ex-mulher, que lhe encorajou a entrar no movimento, desis-tiu da luta e os dois se separaram. Quando a de-manda da primeira ocupação do Prestes Maia, de 2002, foi atendida, Beatriz recebeu um empreen-dimento da CDHU, onde foi morar com os filhos. Manoel ficou na ocupação até ocorrer o despejo das famílias, voltando a pagar aluguel em uma ki-tnet na Rua General Osório. Apesar de ajudar nas ocupações e estar sempre presente, Manoelzinho não pretendia mais morar em nenhuma prédio ocupado até Ivaneti lhe pedir ajuda para coorde-nar a Mauá, para onde ele se mudou.

Foi na própria ocupação Mauá que ele conhe-ceu Fernanda, sua atual mulher, mãe de seus três filhos mais novos do total de seis: Caíque, Nicole e Davi. Atualmente, após sua contribui-ção na Mauá, a família foi morar no benefício da CDHU recebido por Fernanda, por seus anos de militância, também no MSTC.

Ele, que hoje é vocalista da Explosão Digital, já foi um homem tímido diante do público. “Eu hoje acho que sou outra pessoa, antigamente até pra falar eu não conseguia falar. Então eu acho que o movimento abriu um leque muito importante pra minha vida.”

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Mesmo já não morando mais na ocupação, Ma-noelzinho criou uma relação de irmandade com Ivaneti Araújo, e é só falar dessa relação que ele se emociona.

“A Neti é uma história a parte. Eu acho que o movimento, enquanto não entrou a Neti o mo-vimento não nasceu. O movimento era aquele feto que tava lá no ventre e tal e aí quando a Neti chegou no movimento, o movimento veio pro mundo. Quando eu comecei a ver a Neti na rua gritando e tal eu falei ‘Meu deus do céu, como é que pode uma mulher fazer tudo isso, né?’ E aí eu me espelhei nela... na verdade me espelhei em todas as mulheres do movimen-to”, fala.

“Porque foi e é uma luta das mulheres. Hoje o movimento ele tem eu acho que uns 50, 40 por cento de homens fazendo parte... antigamente era só mulher. Porque o homem ele não se pre-ocupa com isso, por incrível que pareça”

“Eu chegava a entrar em confronto (com a po-lícia) junto com a Neti, eu e ela de mãos dadas, entendeu. A gente fez um despejo na Avenida 9 de Julho que, sabe... eu fiquei ali na ocupação do quartel, ela era meu anjo da guarda e eu o dela. Sempre foi assim nós dois, tanto que ela 3

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me chama de irmão e eu chamo ela de irmã”, diz, emocionado.

Foi a partir dele, lá atrás, que muita coisa foi sendo questionada dentro do movimento. Ma-noel conta que os coordenadores não queriam deixar de morar na ocupação o que, na visão dele, é um erro estratégico.

“Eu comecei a arrumar briga porque a Neti não queria pegar apartamento, a Ivanilda não que-ria, Jirlânia não queria... eu falei ‘como você vai fazer reunião de grupo de base, você vai falar da luta? Que aspecto você vai falar da luta? Que você vai fazer ocupação, que vai ficar lá dentro, vai fazer isso, vai fazer aquilo... mas o que você tem de concreto pra mostrar pro povo?”, ques-tionou ele. “Isso aí serve pra que as pessoas co-mecem a ver que a luta é verdadeira, começam a procurar o movimento.”

É por isso que hoje ele não mora mais na Mauá e nem volta mais para outra ocupação. “Eu faço a minha parte. Chamo os irmãos, estouro porta, organizo... eu vejo hoje a Mauá, o Prestes Maia, acolhendo tanta gente, tanta gente melhorando de vida... eu fico aqui, eu vou aqui na garagem vejo um monte de carro, moto, as crianças com bicicleta... vejo os pais pegando as crianças, saindo de domingo para passear.. se a gente

for ver há três anos, quatro anos, cinco anos as pessoas tavam aqui mesmo onde a gente tá”, diz referindo-se à área próxima da portaria e da escada do prédio, “isso aqui era nossa co-zinha comunitária, as pessoas comendo mato. A gente ia no Parque Dom Pedro pegava sobra de verdura, aquelas coisas, fazia comida que as pessoas comiam.. e hoje pra mim é uma vitó-ria ver hoje as pessoas poderem ir no mercado, colocar uma televisão dentro de casa, poder pegar seus filhos e levar num parque de diver-sões... andando de moto, isso pra mim é uma vitória”, diz orgulhoso.

E ele sabe que, dentro ou fora do movimento, a luta continua.

“A gente perdeu muito irmão nosso, né, pra que a gente tenha direito de falar, de gritar e poder reivindicar. Então eu acho que isso vai continu-ar sempre... mesmo sem Manoelzinho no mo-vimento, mas muitas pessoas ainda irão sumir, perder suas vidas, pra que outras possam per-manecer com os direitos que são delas.”

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“Já tá gravando? Não né?” É assim que come-çamos, de improviso, no corredor principal que leva à portaria da Ocupação Mauá.

Ivanilda Rodrigues de Souza é uma das coor-denadoras mais tímidas da Ocupação. Apesar de já somar mais de 10 anos de militância e ser visivelmente considerada uma referência no prédio, sua fala mostra uma certa cautela de al-guém que ainda se contém e que pensa muito antes de falar. Assim como Ivaneti e Manoelzi-nho, Ivanilda também faz parte do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC).

Nas assembleias e reuniões, Ivanilda se coloca em segundo plano, passando a palavra para os outros coordenadores, como Ivaneti e Nelson. Juntos, os três são as figuras-chave desse am-biente que luta para se manter vivo, com seus cinco anos de história e muitos opositores.

Nascida em Itapipoca, no Ceará, veio para São Paulo aos 14 anos, para visitar uma tia, em San-tos, onde acabou ficando. A permanência com a tia, no entanto, durou até que Ivanilda conhe-cesse um namorado, o futuro pai de seus dois filhos, com quem passou a morar.

Foi assim que veio parar no centro de São Paulo, seguindo seu companheiro. De movimento social e militância só quis saber por influência de outra

tia, que morava em uma ocupação do MSTC na região da Avenida Paulista, na Rua Itapeva.

“Eu entrei (...) até não foi uma necessidade de moradia, porque eu, graças a deus, quando eu entrei no movimento, eu tinha uma casinha lá em Itapevi, muuito longe”, explica ela. A intenção era, muito mais, ficar mais perto do trabalho, já que em Itapevi era preciso sair de casa mais de três horas antes do início do expediente.

“Eu não gostava do movimento na época”, as-sume Ivanilda, “eu saía de casa pra trabalhar, aí eu achava assim ‘caramba, e se eu chegar em casa e tiverem invadido a minha casa?’. Eu não vou gostar, então, pra mim, ninguém vai gos-tar... pra mim era invadir mesmo, entendeu?”, explica ela. “E eu trabalhava em um hotel aqui no Ipiranga. Eu saía 3h30, 4 horas da manhã de lá pra entrar aqui 7 horas, né”.

Com o tempo, passou a frequentar o espaço onde sua tia morava na ocupação. “Aí tinha dia que eu dormia lá de final de semana, (para ir para o trabalho) segunda-feira... meu, que di-ferença.”

De tanto a tia insistir para que Ivanilda partici-passe das reuniões do MSTC, conversou com o marido, que tomou a dianteira. “Ele falou ‘Se tu não quiser ir, eu vou nas reuniões’, aí ele co- 3

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meçou a ir e depois eu fui e gostei (...) Tudo próximo do centro, né. E aí eu gostei de morar em ocupação.”

Começar a fazer parte do movimento na luta por moradia e conhecer aqueles que antes ela cha-mava de “invasores”, permitiu que entendesse o verdadeiro sentido de uma ocupação. “Depois que eu fiquei sabendo do regulamento, do esta-tuto do movimento, eu acho que a melhor coi-sa do mundo é ocupar prédio vazio”, fala rindo. “Antigamente eu não sabia nada. Nossa, hoje se eu escutar alguém na rua...”, conta Ivanilda, que começa a se exaltar só de pensar no pre-conceito alheio em relação ao movimento. Nas ruas do centro, em todos os lugares, há sempre alguém confundido sem-teto com vagabundo, desocupado.

Dentro de um ônibus, voltando do trabalho às 6 horas da manhã, Ivanilda teve que escutar o cobrador falar mal dos “invasores”, ao passar em frente a uma ocupação. “Olha esse bando de invasor aí, esse bando de sem-teto, não tem o que fazer não, são tudo desempregado.” Me-nina, eu levantei da cadeira... foi automático. Até a Silmara falou ‘Calma!’, eu falei pra ele ‘O que que você tá falando? Eu sou uma sem-teto, passei a noite inteirinha trabalhando e tô aqui e não sou uma desempregada’ Ele olhou pra mim com o olho deste tamanho...”, conta.

Sua primeira ocupação foi na Rua Ana Cintra, em 2001, exclusivamente feita pelo MSTC. Lá ficou por 5 anos, até que houve a reintegração de posse e as famílias passaram a receber o bolsa-aluguel e, através da coordenação do movimento, conseguiram juntar todos em um só prédio na Rua Santa Rosa, no bairro do Brás. Quando acabou o bolsa-aluguel, conce-dido pela prefeita Marta Suplicy (PT) Ivaneti, uma das principais lideranças do MSTC, teve a ideia de ocupar o edifício abandonado da Rua Mauá.

Ao contrário de muitos que estão na luta por moradia, Ivanilda prefere morar em ocupação a ter sua própria casa em um lugar distante. Hoje ela mora com seus filhos, Nicolas e Micaely, em uma kitnet no centro, benefício concedido em 2008 pela Companhia Metropolitana de Habita-ção (Cohab), mas como faz parte da coordena-ção, está sempre pela Mauá.

“Só saio daqui de dentro quando todo mun-do conseguir igual eu consegui, com a luta”, afirma ela.

Foi na Mauá, inclusive, que conheceu seu atual companheiro, depois de mais de dez anos de casamento e três anos sozinha. Mas quando lhe perguntam por que não moram juntos, ela é firme na resposta. “Não quero marido mais, 3

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eu não pretendo morar aqui com um homem, só meus dois filhos.”

Atualmente, Ivanilda vive de bicos e, com a ajuda do atual com companheiro, consegue pagar as prestações de sua kitnet “Não estou trabalhando registrada, mas aí eu faço um bico aqui... meu atual marido também ‘tá’ trabalhando, né, então a gente consegue pagar direitinho”. A prestação que paga mensalmente é de 206 reais, além do valor do condomínio que é de 90 reais “Quando eu pagava aluguel aqui já era 250 reais só um quartinho, de cortiço né, então hoje eu pago sa-bendo que é meu”, diz orgulhosa.

Apesar da aparente timidez, Ivanilda sabe o que faz quando tem algo para resolver... “Eu não gosto de falar, não sei se você percebe que eu fico vermelha, eu fico nervosa. Eu gosto muito de agir.”

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Nelson é um dos coordenadores mais influentes da ocupação Mauá e é também um dos mais carismáticos. Negro, de cabelo e barba grisa-lhos, o baiano Nelson da Cruz Souza é atual-mente coordenador e presidente do Movimento de Moradores da Região Centro, o MMRC, o qual ajudou a fundar em 2004.

A jornada de lutas, no entanto começou anos antes quando, cansado de ter patrão, depois de trabalhar por seis anos como segurança de um hotel da Avenida Paulista e mais seis anos em uma fábrica de roupas ele optou por trabalhar para si, perdendo a condição de pagar aluguel.

“Eu tava indignado mesmo e cheio dessas per-versidades que a gente vê aí, então pedi pro pa-trão da fábrica de roupas me mandar embora”, diz, quase como um desabafo. “Ele não queria me mandar embora porque gostava muito de mim e eu não dava trabalho, mas aí eu inventei que ia vê a família na Bahia, que ia embora...”.

Foi aí que sua trajetória no movimento de mo-radia começou, ajudando a participar de uma ocupação organizada pelo Movimento de Mo-radia do Centro (MMC), da qual ficou sabendo no boca-a-boca nas ruas do centro da cidade. À época, sua companheira não aprovou a deci-são e o término, que poderia ser um trauma foi, na verdade um alívio para esse baiano “difícil”,

como ele próprio se descreve. “Aí nós nos se-paramos. Pra mim foi bom, pra mim foi até uma experiência adorável, porque eu fiquei livre, sem marcação em cima de mim, fiquei livre pra fazer o que eu queria da minha vida”, diz ele, lem-brando da época de solteiro. “Não há coisa me-lhor e não tem valor que pague a sua liberdade, seja ela de que forma que for.”

Vestindo uma camiseta vermelha com o ros-to de Che Guevara, jaqueta jeans e calçando papetes, Nelson se diverte ao se lembrar das coisas pelas quais passou.

A primeira ocupação, em 1992, foi na Rua Lí-bero Badaró, no antigo Banco Nacional. “Eu não fui no dia da ocupação porque eu não soube, fui saber no outro dia... na Praça Ra-mos. Fiquei sabendo ‘ó, ocuparam um prédio lá e tão precisando de gente pra dar apoio, pra ficar lá e tal’ e aí eu digo assim ‘vou cair nessa’”. A ocupação durou seis meses e seu primeiro despejo, 20 anos atrás, foi uma ver-dadeira resistência. Os moradores do prédio, antes da chegada da polícia, buscaram mó-veis, madeira e o que encontrassem pela fren-te para fechar o prédio e dificultar a entrada da polícia.

“Aí eu gostando daquela folia, te juro por deus, eu gostando daquilo, aí a gente fez barrica- 3

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da, de tudo quanto foi material, saímos na rua procurando madeira, procurando tudo quanto fosse coisa pesada pra por atrás da porta pra dificultar a entrada dos policiais”, conta Nelson. O enfrentamento com as autoridades parece ter sido mesmo coisa de filme, com escada, em-purrão e até reféns.

“Um oficial de justiça quis subir no prédio pra ver a situação que tava. E a gente tava numa situação que ninguém tinha tomado café da manhã, a Eletropaulo tinha amanhecido e cor-tado a luz, cortou a água, ficou o prédio uma ‘disgrama’, sabe. O que é que vai fazer? Nin-guém tinha condições de ir no banheiro, por-que não tinha condição de entrar mesmo, aí foi se improvisando latas, baldes que foram encontrando na ocupação, você acredita? E aí deu na cabeça desse oficial de justiça subir no prédio pra ver a situação lá dentro e tal... e aí como não tinha como entrar, que tava tudo fechado mesmo, aí ‘botamo’ uma escada pra ele subir”. Nelson vai contando no maior sus-pense, aumentando a minha curiosidade. “Aí quando nós ‘botamo’ a escada pro oficial de justiça subir, um policial resolveu subir! Quan-do ele chegou no meio da escada a gente em-purrou a escada e ele se estarrachou lá, aí pu-xamos a escada e subiu o promotor.” Ao ver minha reação de surpresa ele emenda, “foi um auê danado, menina!”.

“Deixamos ele subir, aí quando ele subiu lá nós fizemos ele de refém e falamos ‘se ofender um aqui, o que tá aqui em cima vai sofrer...’ Aí de repente, não sei como eles conseguiram, ar-rombar uma porta... e quando os soldados bo-taram a cara dentro do prédio nós estávamos com uma mangueira de jato d’água, mas o jato era fraco, não dava pra fazer muito auê”.

A polícia não deixou barato. Um dos compa-nheiros de Nelson chegou a levar um tiro de borracha, depois que o jato d’água usado pelos manifestantes ficou sem “munição”.

Mesmo depois do bafafá, a resistência conti-nuou e envolveu até o então governador Mário Covas, do PSDB, que foi interrompido em uma reunião por um advogado ligado ao movimento, que exigiu uma solução para o caso. “Ele in-terrompeu a reunião e pediu que o governador tomasse uma providência pra que não aconte-cesse uma desgraça no prédio e o governador então assinou um papel lá pra gente permane-cer no prédio até o outro dia”, conta.

Como resultado desse primeiro despejo, as fa-mílias foram levadas para a Avenida Presidente Wilson. O novo local era, na verdade uma car-caça de prédio em um terreno completamente abandonado, onde antes funcionava um ferro velho. “Fomos jogados igual cachorro... pior do 3

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que um cachorro, porque foi um dia de janeiro, chuva pra caramba... e o mato que tinha lá no terreno?”, diz ele.

Situações assim são um tanto comuns. Os militantes são despejados dos prédios que ocuparam com esforço e dedicação – afinal não é fácil dar vida à um prédio abandona-do – e, em troca, são colocados em áreas distantes, sem infraestrutura necessária para comportar idosos, crianças, homens e mu-lheres que normalmente trabalham na região do centro.

Militando no MMC, Nelson passou a questionar coisas internas do próprio movimento.

“Eu fiquei lá quatro anos coordenando. E era o MMC. E aí depois houve assim... eu fui avan-çando o ponto de maturidade com as coisas, fui adquirindo experiência com o povo e aí eu vi algumas falhas de visão de mundo dos que me coordenavam”, explica Nelson, contando a origem de um racha que foi dar no seu atual movimento. “No terreno também foi se infil-trando pessoas do tráfico, aí as coisas foram perdendo o rumo, que a liderança já não tinha mais voz ativa. Quando a liderança não tinha mais voz ativa que que era que eu ia fazer ali dentro? Não poderia fazer mais nada... então saí”, diz ele.

Conhecido por sua atuação nas ocupações, ele foi chamado foi um grupo de pessoas para co-ordenar outras novas.

Outra ocupação de peso, fortemente marcada por um despejo extremamente violento, ocorreu em 2005 na Rua Plínio Ramos, na região da Sé, que durou dois anos e oito meses. A violência e repressão foram tantas que um dossiê foi or-ganizado pelo coletivo Fórum Centro Vivo como forma de denunciar a violação dos direitos hu-manos1.

“Crianças apanharam da polícia, mulheres apa-nharam nesse despejo e esse aconteceu pra deixar a história registrada, que não poderia acontecer despejos daquela forma, tão violen-ta, tão negligente por parte do Estado”, defende Nelson.

Enquanto ele me conta dos sprays de pimenta jogados na cara de quem defendia os morado-res, minha expressão não pode ser outra que a de choque. Para a qual ele manda um, “ih, você não sabe de nada”. E sinto que não sei da missa a metade.

Após a desocupação do prédio na Plínio Ra-mos, mais de 100 famílias organizaram um acampamento na rua em frente ao prédio la-crado, por três meses. “Até hoje eu me sinto 3

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tomado por essa emoção”, diz ao lembrar deste tempo. “Que eu vi o quanto o povo é solidário quando você é honesto com ele”, desabafa.

Na época, em 2005, o prefeito José Serra (PSDB) prometeu “na televisão” que alugaria um prédio para realocar as famílias sem-teto. A promessa, no entanto, não foi totalmente cum-prida. O prédio foi alugado, mas Serra desistiu de mandar as famílias para lá depois de desco-brir que Nelson era filiado do Partido dos Traba-lhadores (PT), desde 1983.

Após serem levadas para um canteiro de obras do Canindé, muitas famílias se dispersaram e Nelson passou a morar em uma pensão na Rua João Teodoro, perto do Rio Tietê. Começou pa-gando 200 reais e deixou a pensão em 2007, quando Ivaneti o contatou para propor a ocupa-ção, do MSTC junto com o MMRC, na Rua Mauá.

A parceria dos movimentos dentro de uma mes-ma ocupação é algo raro e não teria ocorrido se não fosse pela relação entre os dois militantes, que se conheceram pela ONG Apoio, que pro-move assistência social. “Eu mais a Neti partici-pávamos muito do Apoio também, e depois nós fundamos a Frente de Luta por Moradia (FLM), com 12 ocupações que fizemos aqui no centro numa noite só, com apoio de outros movimen-tos, da zona sul, da zona leste...”, lembra ele.

A Frente é considerada uma “mãe” de diversos movimentos locais, da cidade de São Paulo. O MMRC, fundado por Nelson em 2004, hoje não faz mais parte nem da Frente, nem da Apoio, enquanto o MSTC mantém os dois vínculos. “Eu saí por motivo de ideologia. Ideologia é ide-ologia, né. Princípio é princípio, cada um tem o seu”, defende ele. “Eu gosto de todos os que estão lá na frente, amo eles e elas, mas alguma coisa me direcionou que eu saísse.”

Hoje, o MMRC está só na Central de Movimento Popular, que é a CMP. A CMP é também uma “mãe”, uma “aglutinadora”, mas a nível nacio-nal. Ela reúne diferentes áreas de lutas sociais, como movimento por moradia, movimento pela saúde e muitos outros. “Ela ajuda porque acaba dando um rumo pras coisas”, explica ele.

A essa altura, o telefone de Nelson começa a tocar e ao invés de um toque comum de apare-lho celular, ouço uma música que não consigo identificar, da dupla Zezé di Camargo e Luciano. Digo que não me importo caso ele queira aten-der, mas ele faz cara de que não está mesmo interessado em falar com quem liga.

Apesar de estar na luta há tantos anos e de já ter tido oportunidades de conseguir sua casa própria – que é, afinal, o sonho de todos os que moram ali – Nelson prefere participar do 3

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movimento estando dentro dele. “Eu quero lu-tar mais, eu quero que os outros tenham (a sua casa) e eu tenho pra mim que o último vai ser eu”, diz, com a maior convicção do mundo. “Vou ter a minha casa? E aí tem gente que tá pior que eu aí na sarjeta aí e não tem.”

Hoje, Nelson trabalha fazendo bicos por aí e vai sobrevivendo. Vive com uma companheira há um ano, mas não nega: “Eu sou difícil”. Aman-te da liberdade, não gosta que lhe controlem o horário de chegar e de sair, o que deve ou o que não deve fazer.

Tento entender, com ele, por que é que hoje há tantas mulheres atuando nos movimentos so-ciais – além de estudos sobre tal ‘fenômeno’, basta olhar para uma assembleia ou prédio do movimento. Ele logo diz: “Coitada, é por ser a mais sofredora.”

Ativo militante de esquerda, é em Che Guevara que Nelson tem sua maior referência, a qual foi buscar após ouvir gritos de guerra em manifestações.

“(Comecei a ler essas coisas) Quando eu entrei logo na luta, porque eu tinha que me identifi-car em alguém. O coordenador que eu tinha eu não queria, então eu via muitos gritos de ordem ‘Che! Zumbi! Antonio Conselheiro, na luta por justiça nós somos companheiros’, e aí eu fui e

entrou na minha cabeça, o Ernesto Che Gueva-ra entrou na minha cabeça.”

Religioso, Nelson já ouviu muitas pessoas di-zendo, em ocupações, que viam um ‘vulto’ atrás dele, alguém que não o deixava ficar so-zinho. “Ah, eu já sei quem é”, responde ele, “aí eu penso logo no Che né, porque eu sou fã mesmo do cara e quando eu vou pra luta eu vou muito confiado nele, mesmo que a luta não dê certo”. E não se cansa de homenageá-lo.

“O Che não sentava lá e ficava dando ordem, ele tava no meio dos operários fazendo junto o que eles estavam fazendo. Pra que coisa mais bonita do que essa? Não ter lá um su-perior, ter lá todo mundo igual”, opina ele, que sonha em fazer um pouquinho do que fez seu ídolo.

“Hoje no movimento eu estou porque eu gosto disso... depois que você pega o amor que esse pessoal tem dentro dele, que te retribui, você se sente mais feliz ainda.”

A sensação que tenho é a de que Nelson fala firme como um verdadeiro líder, algo que aprendeu a ser com os anos de experiência e de vivência em ocupações, na rua, nos movi-mentos. Ao mesmo tempo possui a tranquili-dade e uma simpatia próprias de sua persona-3

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lidade, aquelas coisas que não se perdem nem depois de anos.

Mesmo quando, aos 10 anos, começou a traba-lhar como ajudante de pedreiro, ainda em Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Em seu discur-so há uma felicidade pela vida, mais do que um fardo por ter começado cedo.

“Eu peguei um amor pelo trabalho e aí eu to-mei gosto mesmo, menina, fiquei um rapaizão como ajudante de pedreiro.” Como é o caso de muitos que militam, pergunto se ele acha que perdeu a infância por conta da situação finan-ceira da família. Mas ele é direto e reto: “Não vejo como uma coisa ruim, jamais. Olha, eu tive tempo pra estudar, fiz até a 8ª série, não fiz mais porque eu fui burro demais, meus pais queriam que eu fizesse e eu não quis, eu queria malan-dragem... eu saía na sexta e chegava em casa na segunda, na terça”.

Apesar disso, ele sabe que a educação que teve em casa e a trajetória de vida que teve até aqui lhe permitiram ser o “Nelson que é hoje”.

Com a firmeza e a calma próprias de sua pes-soa, ele arremata. “Essa luta é muito árdua. En-tão tem que ter gente que tenha peito e cora-

gem de brigar, seja lá com quem for, pra que alguém seja ouvido.”

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Ruiva, cabelos curtos e aparência jovem, Ra-quel, na faixa de seus 30 anos, é dona de seu próprio negócio. Casada, com duas filhas, duas netas e à espera de um novo bebê. Ainda as-sim, arruma tempo para fazer parte da coorde-nação da ocupação Mauá, junto com seu mari-do Adriano, conhecido por todos como Sukita e a quem conheceu já na Mauá. Os dois são os coordenadores da Associação dos Sem Teto do Centro de São Paulo (ASTCSP), movimento menor que os outros dois, e que foi criado já dentro do prédio.

Nascida em Manaus, mas morando na Bahia, Raquel se mudou para São Paulo aos 21 anos, acompanhada do irmão, cabeleireiro que vinha para trabalhar. Com o tempo, toda a família acom-panhou sua trajetória e hoje, vivem todos (com ex-ceção dos pais) na mesma ocupação, todos “na sobrevivência”, como ela mesma descreve.

Em São Paulo, Raquel morou em uma favela na Vila Prudente e trabalhou em casa de família, mas, quando sua filha mais velha, Carol, adoe-ceu, largou o emprego para cuidar dela e, sem alternativa, buscou um espaço na ocupação, onda já morava sua mãe, dona Francisca. Ou-tro motivo para sair da favela foi o medo. Na Vila Prudente, Raquel passou por um incêndio – relativamente comum em favelas paulistanas devido às más condições da rede elétrica, mas

que também estão relacionados à valorização imobiliária na cidade1. A vontade de morar em um local mais seguro pesou, além de Raquel perceber a vantagem da organização do movi-mento. “É mais fácil você conseguir as coisas em um lugar organizado, porque na favela não tinha organização”, diz ela.

Chegando no centro, foi conversar com o Suki-ta, que ajudava na coordenação do Movimento dos Sem-Teto da Região Central de São Paulo (MSTRC), coordenado por Hamilton Silvio de Sousa. Este, muito ausente, acabava deixando as coisas na responsabilidade de Sukita que, ouvindo a história de Raquel, lhe arranjou um espaço. Os dois se envolveram afetivamente e, quando Hamilton deixou o prédio, após uma di-vergência de visões políticas, Raquel foi quem ficou ao lado do companheiro, ajudando-o nas tarefas internas.

“Como eu me envolvi com o Sukita como na-morada, automaticamente as coisas vinham pra gente, entendeu, e assim, eu acho que eu sem-pre tive a política no sangue... na favela eu tinha vontade, até cheguei a participar, mas só que aí lá tem outras pessoas que não é bom você bater de frente”, explica ela, sobre a diferença da organização entre uma favela e uma ocupa-ção, devido à presença, entre outras coisas, do tráfico de drogas na favela. 3

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1 Projeto sobre incêndio na cidade de São Paulo: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-mapa-dos-incendios-em-favela-e-da-valorizacao- imobiliaria

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“Aí vinha problema pro Sukita resolver e eu dava a minha opinião, ia dando a minha opinião ia dando meu ponto de vista e terminou que eu já tava sendo automaticamente coordenadora junto com ele, e assim foi indo.”

“Até que a Neti falou ‘Olha precisa ter um nome, pra não ser o movimento do Sukita e da Ra-

quel’, aí colocou Associação dos Sem-Teto do Centro de São Paulo, ASTC-SP.”

Ao começar na ocupação, Raquel trabalhou e sofreu muito nas mãos dos Guardas Civis Me-tropolitanos - os GCMs - para construir a “Mer-cearia da Raquel”, comércio que fica hoje no primeiro andar da Ocupação. 3

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Com “sangue de empreendedorismo”, Raquel comprou os instrumentos necessários e come-çou a vender churrasco na Rua Mauá, em frente à ocupação, enquanto dona Francisca, vendia tapioca. Foram diversas as tentativas de fazer o comércio ir para frente.

“Foi tendo muito prejuízo, porque os GCMs não deixavam trabalhar, tomavam mercadoria todo dia. Aí eu peguei e desisti. Quando eu desisti, o restante das coisas que tinha sobrado que eu vendia no carrinho de churrasco, eu vendi em casa mesmo...”, conta.

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Foi assim que seu pequeno comércio ambulan-te virou uma verdadeira mercearia. “Eu morava no segundo andar e ia vendando, as crianças foram espalhando que tinha chiclete, salgadi-nho... aí rapidinho foi aumentando.”

Aumentando tanto, que teve que mudar para um espaço maior, no primeiro andar. Aos pou-cos, foi comprando geladeira, microondas, cha-pa... tudo para atender melhor.

Futuro

Raquel é uma das únicas pessoas de quem eu ouço falar do “benefício para Mauá”. Normal-mente, as pessoas citam que já receberam o benefício da prefeitura ou não, como Ivanil-da. Quando questiono Raquel sobre porque ela ainda mora lá e, depois de tanta militân-cia ainda não conquistou sua casa própria, ela responde: “Quando tiver o atendimento da Mauá, o que tiver pra Mauá, eu quero ser atendida junto.”

Isso porque o objetivo maior da ocupação é que o próprio prédio ocupado seja adquirido pelo poder público e reformado –durante a reforma as famílias deveriam ser devidamente realoca-das temporariamente—transformando-o em uma verdadeira habitação popular.

Para tanto, um arquiteto, seu Waldir Cesar Ri-beiro, fez um estudo de viabilidade do prédio, para mostrar ao poder público que é possível fazer uso do mesmo para cumprir a função so-cial da propriedade.

Mesmo assim, muitos não se referem à ocupa-ção como algo definitivo, mas sim, transitório – muito em função do medo de reintegração de posse.

Por conta de sua militância, Raquel teve a opor-tunidade de receber uma unidade da CDHU, mas optou por passar o benefício para outra moradora de acordo com a lista de ‘prioridades’ – que reune pontos de participação, número de filhos, tempo de militância, etc. – a quem julga-va precisar mais.

“Eu já me familiarizei aqui com as famílias, en-tão eu não acho certo eu seguir a vaga de um atendimento, pegar e sair. Eu não acho correto”, explica ela.

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Jirlânia Sousa Braga é, assim como Ivanilda, uma cearense um tanto tímida, mas que não tem problemas em falar de seu passado, por mais altos e baixos que ele tenha tido. Nasci-da em Itapipoca, a Gê, como todos a conhe-cem, possui o mesmo espírito empreendedor de sua tia, que é a porteira do prédio Elisete. Ainda em Itapipoca, Gê possuía um comércio de roupas, mas após ver sua vida se deses-truturando, com o fim de seu casamento e um roubo que fizeram em sua loja, resolveu juntar o que tinha e ir para Brasília, junto com uma amiga.

Lá, os contatos da amiga permitiram que ela encontrasse um emprego como doméstica. “Passamos dois meses em Brasília, aí trabalhei numa casa de família lá e aí eu vi que não era aquilo que eu queria”, diz. Ao resolver que se mudaria para São Paulo, Jirlânia telefonou para sua avó, para que entrasse em contato com Eli-sete, sua tia que já morava aqui. “Pedi pra ela entrar em contato com ela (a tia) pra deixar eu vim pra cá. Aí a tia relutou um pouquinho, não queria deixar eu vir... acho que devido à esposa dela, né, mas... até que eu insisti, insisti e deu tudo certo”, conta.

Como tantos migrantes, Gê encontrou no cen-tro da cidade um meio de sobreviver, aos tran-cos e barrancos.

“Cheguei aqui dia 12 de maio de 2003. Nesse mesmo dia o pai da ex-mulher da minha tia ti-nha um bar aqui na Cásper Líbero, aí ele tava precisando de uma cozinheira e eu falei que se não fosse assim comidas muito... né, eu saberia fazer. Aí eu nem dormi e ele me chamou e eu fi-quei trabalhando como cozinheira e foi indo...”, diz. Assim, Gê ficou, junto com a amiga, que também deixou Brasília, morando de aluguel junto com a tia e a esposa dela à época.

Jirlânia só se mudou de lá, deixando de ter que dividir um colchão de solteiro com a amiga (já que não havia mais espaço na casa) quando co-nheceu um rapaz, com quem foi morar, também no centro. Gê deixou o emprego de cozinheira e junto com o companheiro, passou a vender vale transporte na rua. As coisas iam bem e os dois conseguiam sobreviver, mas um vício dele acabou com a relação.

“Aí a gente foi trabalhando, trabalhando, mas ele era muito viciado em jogo e aí o que acon-teceu... tava acabando tudo, né. Então quan-do foi um belo dia ele acordou cedo, era 4 e pouco da manhã, aí foi e falou que ia sair, ia na Igreja... ‘Na Igreja uma hora dessa?”, ele dis-se ‘É’, aí não falei nada... ele foi. Quando deu 5h30 eu levantei, tomei banho, me arrumei e fui trabalhar. Aí desse dia ele desapareceu. Não apareceu mais.” 3

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Um mês depois, após muita busca, Gê desco-briu que o companheiro havia se mudado para o Paraná para recomeçar a vida. “Disse que não aguentava mais ver a gente trabalhando, traba-lhando e ele jogando tudo fora.” Ela, sem outra opção, continuou ainda um tempo pagando o aluguel do apartamento.

“Acho que eu fiquei lá uns dois anos, depois disso eu fiquei morando sozinha, aí a minha tia separou dessa mulher dela e foi morar comigo. Aí foi melhorando um pouco as coisas... mas a rua já tava muito ruim, a gente já não conseguia mais pagar o aluguel direito... então a gente fi-cava doida, ou comia ou pagava aluguel né”, conta, sobre a dificuldade de ganhar a vida com o comércio no centro.

Por conta disso, Gê voltou a trabalhar no mes-mo bar onde era cozinheira, dessa vez como cozinheira e balconista, trabalhando de manhã até à noite. “Mas mesmo assim já ficava puxa-do, porque eu pagava 500 reais de aluguel, aí vinha mais cento e poucos de luz e... comer eu comia no bar, mas mesmo assim. O seu Chico me pagava 20 reais por dia então era pouco, não dava.”

Nas condições precárias às quais chegou, sem conseguir arranjar outro tipo de emprego por ali, Jirlânia acabou recorrendo ao mundo das dro-

gas. “A gente que mora aqui conhece todo tipo de gente, né?”, diz ela, sobre o centro de São Paulo. Uma amiga sua, que vendia crack, co-meçou lhe pagando 20 reais por dia para guar-dar as pedras, ao mesmo tempo em que manti-nha seu emprego. Quando este terminou – pois o bar ia fechar – Gê passou a traficar.

Para isso, foi morar em Pirituba. “Você que trabalha com esse tipo de coisa não pode tra-balhar e morar no mesmo local, né, fica muito visado”, diz ela, que vinha todos os dias para o centro vender a droga aos moradores de rua. Em Pirituba, dividia aluguel com a tia, Elisete, que optou por não se envolver e seu atual mari-do, que também trabalhava no ‘ramo’ com ela.

Um dia, ao chegar em casa, o casal foi pego em flagrante. “Quando a gente chegou em casa tinha dois carros que fecharam a gente... aí quando saíram do carro já me algemaram, eu e meu marido. Entraram dentro de casa, pegaram tudo e pediram dinheiro pra assaltar a gente... aí minha tia foi atrás, ela mais o Carlão, o taxista... conseguiram 5 mil, mas mesmo assim eles não liberaram, aí a gente ficou preso.”

Sua família, ainda no Ceará, nem desconfiava do trabalho ilegal de Jirlânia, mas, por meio de um conhecido da família, que também morava no centro de São Paulo, sua mãe descobriu que 3

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a filha estava presa e veio às pressas. “Com dois meses que eu tava presa aí a agente che-gou e gritou meu nome no pátio e eu fui lá. Ela perguntou ‘Como é o nome da sua mãe?’ Aí eu falei, ‘Maria Elisabete’, ‘E quem é Jordânia?’ Eu falei, ‘é minha irmã’. Ela disse ‘Então, a sua mãe e sua irmã estão lá fora...’, aí eu tomei aquele susto, e a vergonha e... um monte de sentimen-tos tudo junto.”

Na visita, pediu perdão à mãe, que lhe disse “Minha filha, o filho do Pelé errou, quem é você pra não errar? Eu só não quero que você per-maneça no erro.”

Com o advogado arranjado pela mãe, Gê e o marido conseguiram mudar a condenação de tráfico de drogas para a de usuário, sendo liber-tos seis meses depois da prisão.

Foi pouco tempo depois de sair da prisão, depois de terem tentado negócio em um bar do centro que deu poucos resultados, que Gê e o marido, conhecido como Cabelo – por já ter tido um ca-belo bem cumprido- foram morar na ocupação. Foi ele que descobriu que o prédio estava sendo ocupado e falou “Gê, invadiram aquele prédio ali... Vai lá ver se tu consegue alguma coisa.”

No prédio estava “Neti Magrinha”, uma conhe-cida de Gê. Através dela, chegou no seu Nel-

son, do MMRC, que a princípio julgou que Jirlâ-nia não tinha necessidade real de estar ali. “Ele olhou pra mim e disse ‘Você não tem cara de quem mora na rua’, eu falei ‘Não, realmente, eu não moro na rua, mas eu tô precisando do es-paço’. Aí ele falou ‘Não, não tem espaço’”.

Ela, no entanto, não hesitou. “Eu nem quis saber do não dele, eu entrei e cheguei lá na cozinha comunitária, que lá onde é a ‘favelinha’ era a co-zinha comunitária, né. Aí eu fui e perguntei pras meninas ‘Vocês tão precisando de ajuda?’, aí já fui, ajudei a cortar os legumes, as coisas... Aí a gente serviu o almoço, aí a gente foi fazer a janta, quando a gente tava servindo a janta ele chegou novamente”, diz, referindo-se ao Nelson. “Aí ele me olhou, chamou a cozinheira que era a Neide e falou ‘Mostra lá um espaço praquela menina que eu acho que ela tá precisando.”

Hoje, Gê vive no terceiro andar, em um dos pou-cos apartamentos com banheiro dentro. A famí-lia aumentou e seus filhos mais velhos, que ti-nham ficado no Ceará com os avós, se juntaram a ela. A tia, Elisete, também passou a morar na ocupação, em um espaço vizinho ao seu.

Além dos dois meninos e de uma filha, todos grandes, hoje Gê também é mãe da pequena Ana Beatriz, que chegou aos seus braços por um acaso do destino, em uma história um pou- 3

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co parecida com a da coordenadora Ivaneti, que é mãe adotiva da Kaion.

Em setembro de 2011, Jirlânia, de férias do tra-balho, estava na ocupação quando uma moça, dependente de crack, que havia conseguido um espaço na ocupação Prestes Maia, lhe pe-diu para tomar conta de sua filha enquanto ela ia trabalhar. Gê não viu problema e começou a cuidar da neném, dando banho, comida, com-prando fralda. Seu marido, conhecido como

Cabelo, vendo a animação da mulher, foi logo dizendo em tom de brincadeira “Tira isso daqui, tu vai entregar pra mãe dela!” “Quando foi de noite, cadê a mulher?”, conta Gê. “Valha meu deus... e agora? Aí pedi uma banheira empres-tada, forrei, botei do lado da minha cama e aí deixei ela lá. Aí foi indo... quando foi no sába-do – que isso ela me entregou na quinta-feira – no sábado as agentes de saúde vieram aqui, eu contei a história e elas e já ligaram pra enfer-meira e eu consegui marcar uma consulta, levei 3

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ela no médico... aí saí pedindo roupa pra todo mundo, né, que eu não tinha, todo mundo me ajudou e aí ela foi, fiz a consulta e comecei a fazer o acompanhamento”.

A mãe da menina desapareceu. Às vezes batia na ocupação para pedir dinheiro, mas não es-tava interessada em pegar a filha de volta. En-quanto isso, Gê cuidava já como se fosse dela, apesar do ciúmes da filha e dos temores de que os pais quisessem pegá-la de volta a qualquer momento. “Sempre tinha consulta e eu chegava lá e não era o mesmo médico, eu tinha que con-tar a história novamente... aí eu fui e o médico falou ‘porque você não tenta ver a guarda dela direitinho?’ Aí eu vim pensando, cheguei em casa, chamei meu marido, que já tava apegado a ela, né, aí chamei e falei ‘Nem, vê se você vê a mãe da neném e conversa com ela pra ver se ela aceita de você registrar como sua filha. Aí ele falou tá bom’.” Para felicidade da família, os pais de Ana Beatriz aceitaram e hoje ela é devidamente registrada como filha de Jirlânia. Uma das mais orgulhosas é sua tia, Elisete, a porteira, que trata Bia como netinha.

reStaurante

Após mudanças de emprego, na luta para man-ter a família, Gê conseguiu, com ajuda de Iva-nilda, abrir um restaurante no primeiro espaço

que há na ocupação, logo depois de passar o portão de entrada. Ali morava Maria de Lourdes, que saiu para morar em sua casa própria, con-seguida após anos de militância. Atualmente, no espaço há uma cozinha e uma pequena sala com mesas e cadeiras de plástico, onde Jirlânia serve almoço todos os dias. No começo, Ivanilda lhe ajudava, mas com o baixo lucro, ambas per-ceberam que era um empreendimento para uma pessoa só, e é Gê quem toma conta do lugar.

“Tem prato de 7 reais, tem de 8 e tem de 10. O prato de 10 é o prato do dia, é quando eu faço rabada, galinha caipira, esses pratos mais caros... aí a gente vende a 10. Aí quando é bife, bife de fígado, aí a gente vende por 7. Quando a pessoa tipo pede o prato de 7, mas quer na marmita a gente cobra um real, então sai por 8”, explica ela, que também faz sucos e tem uma geladeira repleta de refrigerantes.

coordenação

Gê é uma mulher tímida, mas daquelas que faz o que for preciso para se virar – e sua história de vida mostra bem isso. Mas sua trajetória po-lítica não vem do berço e nem é muito extensa. Ela passou a ser coordenadora para ajudar Nel-son, do MMRC, e não parou mais. “Depois que a Neti Magrinha foi embora o seu Nelson ficou sem coordenação. Aí ele foi e me chamou pra 3

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ser a tesoureira, que eu só ia ficar na parte da tesouraria... não precisava sair...”, diz ela, que mal sabia que teria muito mais responsabilidade. “Isso foi no finalzinho de 2007 Só que na época, como só tava ele no movimento, aí precisava de secretária, precisava de tesoureira, precisava do vice... precisava de tudo, então ficou nós dois se dividindo em tudo”, conta.

“Quando tinha duas reuniões a gente se dividia, ele ia em uma, eu ia em outra e tinha dias que a gente saia 8 horas da manhã, chegava 10 horas da noite, e assim foi... Aí eu comecei a gostar, né, que até então eu tinha é raiva de tanta reu-nião. Eu dizia ‘Meu deus, não tem como fazer nada com tanta reunião!’”, desabafa. “Porque na época meu marido já era porteiro da Mauá, posto que ocupou no começo da ocupação e eu só cuidava da casa, então eu tinha um tem-po disponível, né. Então ele (Nelson) dizia... ‘Gê, amanhã vai ter uma reunião na CDHU, você quer ir comigo? E eu digo ‘Tá, vou.’ Aí eu ia. Aí eu co-mecei a ir, comecei a ver as discussões, comecei a gostar... e aí eu entrei mais de cabeça.”

Hoje, Gê segue o exemplo de outros coordena-dores, que já conseguiram uma casa própria, mas que mantém o espaço na ocupação para ajudar os outros. O plano é deixar a casa da CDHU, que adquiriu em 2011, para sua filha e, um dia, voltar para o Ceará.

Ainda que Gê sonhe em voltar para sua terra na-tal, assim que as famílias da Mauá e Prestes Maia tenham suas demandas atendidas, ela deixa claro o orgulho que sente de ter vivido nesta ocupação, que acabou melhorando em muito sua vida.

“Aqui eu consegui resgatar a minha cidadania. Porque eu procurei emprego em todo o lugar não consegui, e aqui eles me deram uma oportunida-de. Então, se você faz por onde você consegue, né. E aqui também eu me sinto protegida. Porque eu conheço todo mundo, todo mundo me conhe-ce, se eu sair na calçada e alguém falar alguma coisa comigo, os próprios moradores defendem a gente e eu acho que essa é a parte boa, que aqui eu me sinto como se eu estivesse no meio da minha família”, diz ela, deixando uma reflexão im-portante: “Quando eu saí da cadeia, as portas da prisão se abriram, mas depois as portas fecharam. Fecharam e eu fiquei perdida.. que que eu vou fa-zer? E eu fiquei relutando, relutando, passei muita dificuldade, sem ter o que comer, mas fiquei, até que o movimento disse ‘não, vamos que a gente vai te ajudar’. Foi quando eu consegui emprego e tudo. E foi a partir desse momento que, o que os governos, ONGs de direitos humanos tinham que fazer, que eu bati em tanta porta e ninguém abriu, o movimento fez. Então pra mim foi tipo resgatar a minha cidadania, que a gente fica como se sei lá... que que eu vim fazer aqui nesse são Paulo, né? É mais ou menos isso.”3

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Willian Santana dos Santos tem 22 anos e res-ponsabilidades de adulto. É ele quem coordena os jovens da ocupação, tendo o dever de mo-bilizá-los para manifestações, atos, reuniões e atividades internas, como a roda de capoeira, tarefa definitivamente nada fácil, mas da qual ele não reclama. Pelo menos não mais.

Coordenador há três anos, Willian não queria exatamente ocupar o cargo. “Antigamente os jovens daqui... (quando tinha alguma ativida-de) desciam 20, hoje são uns 3, 4”, diz ele so-bre a dificuldade de mobilizar a juventude. “Na época eu não queria ganhar, achei que era ‘mó treta’ coordenar a juventude”, explica. Hoje, depois de muito esforço, ele vê a função como algo positivo. “Eu peguei gosto de fazer isso aí... tem dia que sinto até falta quando o tele-fone não toca.”

E de fato posso comprovar um pouco do que ele diz: mesmo tocando diversas atividades diferentes ao mesmo tempo, Willian sempre atende ao telefone e responde mensagens. É daqueles que estão sempre com um sorriso no rosto, pronto pra conversar. E que chegou do trabalho na ocupação e foi direto me procurar para a entrevista marcada.

Apesar da pouca idade, Willian também leva vida de adulto: há um ano e meio mora com

Diovana, sua namorada há oito anos e com quem deve se casar em breve.

Antes de chegar à Rua Mauá, Willian morava com os pais e os irmãos em uma pensão, no bairro da Lapa. A dona da pensão participava de movimentos por moradia e foi através dela que sua mãe passou a acompanhar reuniões de grupo de base.

“Minha mãe ligou pra Neti e aí fomos pro Ana Cintra... eu tinha 12, 13 anos”, ele conta. O pré-dio da Rua Ana Cintra está presente no discur-so de muitos moradores da Mauá, que acom-panham a trajetória dos movimentos há anos, principalmente o Movimento dos Sem-Teto do Centro, o MSTC.

Willian também ficou acampado na Rua Frederi-co Steidel quando houve o despejo da ocupação, por quase 3 meses. Mas o processo de compre-ensão política não foi imediato, ainda mais se tratando de um jovem de 13 anos. “Eu não en-tendia muito, só fui entender quando comecei a participar de reunião da juventude...”, diz.

Depois do acampamento, sua família seguiu para o prédio da Rua Santa Rosa, no Brás, onde as famílias recebiam o bolsa-aluguel e depois fizeram parte da ocupação na Rua Mauá, 340 ao fim do benefício. 3

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“Eu sempre prestava bem atenção nas reuni-ões de juventude e teve um curso de formação para líderes, junto com a Apoio, pro pessoal de ocupações... e eu participei.” A Apoio, Asso-ciação de Auxílio Mútuo, é uma Organização Não-Governamental (ONG) que trabalha com pessoas em situação de extrema vulnerabili-dade, como moradores de rua, e é presidida pelo advogado Manoel Del Rio, que dá apoio jurídico ao MSTC e à Frente de Luta por Mora-dia (FLM), além de realizar cursos de formação política para o movimento.

Hoje, mesmo dizendo que só três ou quatro ‘gatos pingados’ aparecem nas reuniões de ju-ventude, Willian tem orgulho de seu trabalho na ocupação. “Eu acho que fiz algo de bom. O Ce-noura, o Nicolas e o Lucas tão sempre comigo e eu acho que fiz isso de bom... eles podiam estar fazendo besteira.”

“Eu cresci aqui, né... Eu vejo o que eles que-rem”, diz ele, que começou a organizar festas, shows de rock e cultura na Mauá. “Se for só curso enche o saco.”

Como parte de um projeto cultural, há tam-bém na ocupação, há dois anos, um grupo de capoeira chamado Herdeiros da Mauá, cuja ideia vem desde a ocupação na Rua Ana Cintra.

A paixão de Willian pelo esporte, no entanto, é mais antiga ainda. Ainda na Lapa ele frequenta-va uma academia perto da pensão onde mora-va. Ele lembra do nome (apelido usado na capo-eira) de seu mestre até hoje: Buscapé. Porém, o pai, pedreiro, fazia qualquer tipo de serviço e quando se mudaram para a primeira ocupação foi ficando difícil para a família mantê-lo nas au-las, além dos gastos que atrapalhavam no or-çamento.

Hoje Willian pratica capoeira, cuja aulas não troca por reunião de partido nenhuma com um professor convidado, o Beto, que dá as aulas gratuitamente na Mauá. “Quando a pessoa paga ela não cria um vínculo, ela pensa ‘apren-do se quiser’”, opina ele. “Cobrar é só a respon-sabilidade delas, o compromisso de aprender.”

Quando o professor precisa faltar, é Willian quem toca a aula, com “total liberdade” para conduzila. “Aprendi a gostar de capoeira por-que eu vejo as crianças na roda... elas não têm muito o que fazer e aí elas gostam”, esse sorri. “Se não tem aula elas ficam tristes.

Além de coordenador, Willian também participa das reuniões de juventude do Partido dos Tra-balhadores (PT), influenciado pela militância de Davi, também morador da Mauá e de Janaína, do MSTC. “Eles foram me puxando aos poucos...” 3

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“Política tá em tudo, não tem como correr da política... se você tá no movimento você tem que viver a política”, opina ele.

Com seus 22 anos de idade, Willian não fre-qüenta a faculdade e nem pretende. Estudou até o primeiro colegial do ensino médio, mas parou ao começar a trabalhar em uma distribui-dora de bebidas no bairro da Barra Funda. A escola ficava na região da Estação da Luz, na chamada Cracolândia, e ele repetiu por falta.

“Algumas aulas o professor não tá nem aí, aí não dá pra aprender nada”, critica ele. Mesmo assim ele tentou se matricular novamente al-guns anos depois, mas chegava sempre atrasa-do por conta do trabalho e teve que abandonar os estudos novamente.

Como muitos jovens da sua idade, Willian co-meçou a trabalhar cedo, aos 16 anos, carre-gando caixas. A maior parte de seus empregos foram “bicos”, dos mais diversos.

“Não tenho frescura com serviço pra trabalhar. Se tiver disposição tá valendo”, diz ele, que não tem como preocupação ter uma carreira específica.

Atualmente, depois dos bicos, Willian começou a trabalhar com Manoel Del Rio, da ONG Apoio, onde também trabalha Janaína. A dificuldade

agora é ficar preso em escritório o dia todo. “Nunca gostei de ficar parado.”

Mas o cenário está longe de ser definido. “Vou esperar acabar essa campanha (para eleição municipal, na qual Manoel Del Rio saiu como canditado a vereador pelo PT), aí vejo o que eu vou fazer... não me preocupo com isso não”, diz.

O tamanho da transformação política pela qual passou Willian é algo que fica claro ao conver-sar com ele. “Antes do movimento eu só queria saber de jogar bola. Depois que eu entrei, vi que a vida não é só diversão. Você tem que correr atrás não só por você”, diz. “Comecei a pensar não só no meu, mas no coletivo, né. Eu preciso, mas tem muita gente que precisa mais que eu.”

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Janaína Cristina Treze, de 26 anos, é a coorde-nadora mais jovem do Movimento dos Sem-Te-to do Centro (MSTC), o mesmo movimento da Neti. Na realidade, ela nem gosta de ser chama-da de “liderança” ou de “coordenadora”. Como alguém que milita há mais de 10 anos, Janaína vê sua atuação no movimento com certa dose de obrigação. “Eu só faço parte de uma organi-zação, não sou coordenadora de nada.”

De fato, hoje Janaína não é parte do grupo de seis coordenadores do prédio, mas já foi, como Willian, coordenadora da juventude e sua atuação no MSTC é de longa data, por isso, nada mais justo do que inseri-la no capítulo de lideranças.

Apesar de ter nascido em São Paulo, Janaína foi criada em Brasília, lugar que ela não gosta e de cujo período não lembra e nem quer lem-brar. A decisão de partir rumo à capital foi da mãe dela, dona Jacira, mas a falta de perspec-tivas e o estado precário em que viviam, nas ruas, fizeram com que a família optasse por voltar a morar em São Paulo, quando Janaína tinha 15 anos.

A entrada no movimento de luta por moradia começou quando Janaína desenvolveu uma forte rinite alérgica, quando morava em um cortiço do Cambuci, zona sul de São Paulo. O médico que diagnosticou a rinite a aconselhou

a mudar de ambiente, mas, claro, essa não era uma opção fácil e disponível.

A mãe, então, passou a entrar em contato com grupos de base – reuniões que explicam como funciona o movimento e que constituem a pri-meira etapa da formação para a entrada efeti-va em uma sigla – que conheceu no centro, e a participar de reuniões do movimento. Muitas vezes quem ia em seu lugar era Janaína, que logo começou a pegar tarefas e adquirir respon-sabilidades dentro do coletivo.

A pensão em que moravam, no entanto, foi de-socupada pela prefeitura, e Janaína e a mãe fo-ram transferidas pelas autoridades, junto com as outras famílias, para um prédio na Avenida 9 de Julho, por conta de um benefício chamado de Locação Social.

Este programa de moradia foi criado em 2002 pela prefeitura na gestão de Marta Suplicy (PT), voltado para população de até três salários mí-nimos vindas de cortiços e favelas. Com dura-ção de um ano e possibilidade de renovação, as famílias beneficiadas pagam apenas luz e condomínio, economizando o valor do aluguel.

“Acho que dali que tudo começou pra mim”, diz ela, lembrando do local onde mais se aproxi-mou do movimento em que está até hoje. 3

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“Teve um dia que o Dr. Manoel (Manoel Del Rio, advogado da ONG Apoio) chegou lá em casa e pediu pra minha mãe levar ele no cortiço que ela morava antes e eu levantei e falei que podia le-var. (...) No dia seguinte a Neti ligou pra Miriam, que coordenava o Nove de Julho, e disse que queria falar comigo. Aí eu, ‘pois não dona Neti’, aí ela não, é que você ontem levou a gente lá no cortiço, eu gostei do jeito que você tratou a gente lá, e eu queria te chamar pra partici-par mais das coisas do movimento, pra ajudar a gente com o trabalho de base (...).”

Hoje em dia, a amizade entre as duas militantes é visível.

Janaína começou com o trabalho de base, con-vidando as pessoas a participar do movimento e, mais tarde, passou a ajudar Manoel Del Rio em projetos relacionados à juventude.

Foi através do advogado e da Neti que Ja-naína conseguiu um espaço para chamar de seu na Santa Rosa, ocupação no Brás onde viviam cerca de 40 famílias do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC). Sua mãe, deci-dida a voltar a Brasília, não renovou o contra-to com o Locação Social e Janaína, que não queria mais deixar São Paulo, teve que jun-tar uma trouxinha com suas coisas e ir para a Santa Rosa.

Sem os eletrodomésticos de casa, vendidos por sua mãe, Janaína teve que começar do zero. Foi pedindo ajuda de amigos, inclusive da Neti, que lhe emprestou um colchão para dormir. “Eu comia alguma coisa na casa da Neti, e fiquei lá. Aí foi passando o tempo e eu fui comprando minhas coisas. Uma vizinha até me viu dormin-do no chão e falou ‘Janaína, eu tô trocando de cama, você não quer a minha cama não?’ Eu falei quero, pode subir. E engraçado que eu ia comprar uma cama de solteiro pra mim, eu ia comprar uma caminha e um colchãozinho de solteiro, só que a Neti tinha me emprestado um colchão de casal e a menina via e me deu a cama de casal dela. E um dia o Manoel falou que tava trocando de colchão, perguntou se eu não queria o dele, eu falei quero, eu tenho até hoje o colchão que ele me deu...”, diz.

“Tudo o que eu construí foi sozinha, com muita luta e graças ao movimento”, diz ela.

Esse orgulho que sente de ter conquistado uma vida ainda jovem vem do fato de que a relação entre Janaína e a mãe não foi sempre das melho-res. Hoje, ambas vivem juntas na Mauá e se dão bem, mas há alguns anos a relação entre elas chegou a ficar um pouco distante. Em um fim de ano Janaína foi para Brasília visitar a família e, na volta, convidou seu irmão mais novo para morar com ela. “Quando ele veio eu não tinha televisão, 3

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som, porque eu não tinha interesse... eu tinha mi-nhas coisas certinhas, mas quando meu irmão veio morar comigo eu quis comprar televisão pra deixar ele bem em casa, quis comprar um som pra ele tocar a guitarra dele, eu fazia compras de coisas que ele gostava de comer, eu deixava a casa pra ele ficar bem”, diz ela, quase como uma mãe. “Eu não queria que ele trabalhasse, só es-tudasse, fizesse curso e eu dava essa condição pra ele, dentro das minhas condições...”. Depois disso, sua mãe pediu um cantinho em São Paulo.

“Ela me ligou falando que queria vir. Quando ela veio, foi um dia de maior realização... eu mandei o dinheiro pra ela vir, fui buscá-la e quando abri a porta de casa tava tudo limpinho, tudo o que ela tinha vendido mais barato eu tinha melhor em casa, eu só não tinha máquina de lavar, o resto eu tinha tudo...”, conta orgulhosa.

Para a Mauá a família veio com o fim do benefí-cio do bolsa-aluguel, quando Neti decidiu ocu-par o prédio. A princípio, dona Jacira não queria participar, tinha receio de um novo despejo.

“Ela não queria vir... eu falei ‘eu tô indo pra lá, que onde o movimento for eu vou atrás”, con-ta. “Onde o movimento for, se o movimento fa-lar que vai ficar debaixo do viaduto eu vou ficar debaixo do viaduto com o movimento. Eu tô aqui, eu tô segura”, acredita. “Se amanhã for 3

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ter despejo aqui eu vou pra rua com o pessoal, se não for pra rua eu vou pra onde o pessoal for, entendeu.” Hoje, segundo ela, a mãe já participa mais e não tem mais tanto medo de ficar na rua.

Quando questionada sobre o que faria com os bens que tem dentro de casa, como televisão e som, no caso de uma desocupação do prédio, Janaína não titubeia. “O que eu vou me preocu-par em uma situação de rua vai ser com o meu estômago, minha cabeça, com a minha saúde. Eu quero estar bem, lutar pra conseguir minhas coisas de novo. Se eu não tenho onde dormir, as coisas que se danem.”

Preocupação material, Janaína só tem uma, re-lacionada a uma de suas paixões: a dança. “Eu sou preocupada com os meus figurinos, mas aí vou deixar na casa de alguém que dança co-migo, meu sapatos, pronto, pra mim tá bom, a vida segue.” Janaína faz dança de salão e hip hop em uma escola chamada Solum, na Conso-lação. Os treinos, muitas vezes vão madrugada à dentro, mas ela não de importa. Mesmo ter-minando seu Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade e trabalhando, atualmente com Manoel Del Rio, Janaína fazia questão de não faltar nas aulas.

Essa, a faculdade, também é outra realização sua, concluída com sucesso. Depois de não ter

tido uma educação muito boa em São Paulo, Janaína ingressou no curso de Pedagogia em uma faculdade particular.

“Aqui eu só frequentei uns tempo a escola. Lá (em Brasília) eu estudei até a sexta série. Aí quando cheguei aqui tive que fazer supletivo... acabou a escola pra mim na sexta série, es-cola pra mim morreu. Era uma defasagem de professor, defasagem de conteúdo, o que eu já tinha estudado lá em Brasília aqui os caras ta-vam passando coisa de quarta série... eu acho o ensino daqui muito defasado perto do de lá”, opina ela. Ainda assim, no meio deste ano Ja-naína se formou pedagoga na Faculdade Suma-ré, terminando o curso com um trabalho sobre movimentos sociais e educadores populares, tema sobre o qual sabe falar, e muito.

MiLitância

Por sua pouca idade, quando entrou no MSTC, Janaína era apresentada como “coordenadora mirim” e logo ficou responsável pela juventu-de. Em 2004, começou a assumir coisas mais sérias, fazendo parte das reuniões de coorde-nação, ajudando na tomada de decisões. “Eu fui reconhecida mesmo dentro do movimento como “a Janaína” depois da ocupação do quar-tel. A gente ocupou o quartel da Polícia Militar (já desativado, perto da Avenida do Estado) 3

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em 2004, eu tinha acho que 17 anos. Quando eu cheguei pra entrar o portão tava fechado. E a gente ocupou e sabia que o pau ia comer né... e aí eu não tinha conseguido entrar. E o Manoel fa-lou pra mim ‘dá um jeito de colocar a bandeira do movimento lá naquela janela’... eu quase morri pra botar a bandeira lá... tinha um menino pas-sando e eu falei me joga lá dentro”, conta. “Ele fez pezinho e eu consegui subir e no segundo an-dar tinha umas madeiras podres... meu pé afun-dou com tudo, fiquei com uma perna lá embaixo outra em cima, mas eu cheguei com a bandeira lá. E aí na hora que a tropa de choque entrou eu enfrentei a tropa de choque... botei as famílias de um lado e fiquei no meio entre eles. Eu falei ‘senta todo mundo’.” A resposta da polícia não foi leve. “Eles começaram a bater em algumas pessoas e eu falei ‘vou ser a última a sair daqui, eu não vou sair’. Fui uma das últimas... mas os policiais fizeram corredor polonês pra mim, eu apanhei pra caramba lá... mas todo mundo apa-nhou, não foi só eu. Mas aí quando teve reunião da avaliação o Manoelzinho falou ‘eu queria aqui parabenizar uma companheira que tá aqui, é a Janaina, pela coragem... aí todo mundo aplau-diu”, diz com orgulho. “Daquele tempo pra cá eu comecei a pegar mais responsabilidades dentro do movimento. Lembrando que eu só tinha 17 anos... ainda tinha aquelas trancinhas no cabe-lo, com bandana e tudo mais...”, fala, brincando consigo mesma.

Aos 20 anos, Janaína se filiou ao Partido dos Trabalhadores, o PT, e, convencida por alguns colegas de militância, foi ocupando posições de maior destaque dentro do diretório zonal do partido do centro, o DZ Centro. “O Mano-el Del Rio sempre fala da importância de entrar num movimento complexo, porque ele fala que o movimento (social) é importante, mas é uma organização simples”, diz ela, que sempre cita o advogado ao falar de sua formação política.

Ainda que tenha concluído o curso de pedago-gia, Janaína não pretende seguir carreira acadê-mica. O que quer mesmo é continuar militando e ser uma educadora popular, tentando ajudar, à sua maneira, outras pessoas que podem me-lhorar de vida como ela.

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cotidiano

Estar na Mauá é quase sempre estar na portaria. Depois de duas ou três visitas ao prédio, quando ainda tinha certo receio em falar com Elisete, a porteira, consegui quebrar a barreira do desco-nhecido e me aproximar. A primeira coisa que faço é entrar na “salinha” da portaria, onde há uma televisão, uma grande tela com as câmeras de segurança (internas e da entrada), algumas cadeiras, um galão de água e, vez ou outra, uma garrafa térmica com café. E é de onde temos a visão privilegiada de quem entra e sai do edifício.

Lá me sinto protegida, sendo alguém conhecido (ao menos da Elisete) e de onde meu rosto pode ir se tornando, com o tempo, familiar. É ali também que posso me preparar psicologicamente para ‘atuar’. Raramente chego com alguma entrevista marcada: é estando lá que vou saber quem vou conhecer e o quão produtivo poderá ser o dia.

A timidez é e sempre será uma barreira. Levantar da cadeira, de onde observo tudo, para bater na porta das pessoas e “atrapalhar” seu ritmo de vida habitual é algo que incomoda e levo algum tem-po pra tomar coragem, sendo muitas vezes quase empurrada pela Elisete, que me apresenta para al-gum morador e diz: “ela tá fazendo um livro... con-ta aí pra ele” e me obriga a me apresentar e dizer o que afinal eu faço lá. “Conta sua história pra ela, 4

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sua trajetória de vida...eu já contei a minha!” e aí a pessoa topa e as coisas se desenrolam.

No dia 24 de julho era isso que eu fazia. Conver-sava com a porteira enquanto ela jogava vide-

ogame ou acompanhava algum jogo das Olim-píadas de Londres quando passa por ali uma mulher, a quem Elisete chama por “Pretinha”. Elisete lhe pede um prato de macarrão com frango, trazido minutos depois.

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Descubro que maria de Lurdes mora no pri-meiro apartamento – que eles chamam de es-paço- logo na entrada no edifício e é de lá que ela prepara almoços que custam 10 reais o pra-to, como seu ganha-pão. Maria de Lurdes veio do interior do Alagoas, da cidade Ouro Branco, para tentar a sorte em São Paulo, como tantos outros moradores do centro. Maltratada pelo pai de seus filhos, cansou do tipo de vida que levava. “Eu não ia ficar o resto da vida assim. Foi a melhor coisa que eu fiz”, afirma, com a fir-meza da mulher que luta pela sua própria vida.

Em São Paulo, trabalhou como camelô por al-gum tempo, vendendo passe de trem e foi na rua que conheceu a porteira Elisete. Passou também mais de um ano trabalhando em casa de família, onde fazia também sua residência.

Como muitos que fazem parte do movimento por moradia, Maria de Lurdes chegou a morar em um cortiço, o qual foi contemplado por pro-gramas sociais. Maria escolheu a opção que lhe permitia receber uma casa no centro e, após um ano e cinco meses morando na ocupação Mauá, já tem data para sair. “Vou para o meu apartamento na terça-feira. Vou deixar para ou-tras pessoas que não têm onde morar.”

Na ocupação ela chegou depois de morar por 9 anos com um companheiro, dono de um bar

no centro. Trabalhando no bar conheceu Jirlâ-nia, sobrinha da Elisete. Seu companheiro era separado mas, quando ele morreu, tudo passou para sua ex-mulher. “Aí eu fiquei injuriada”, diz ela, que arranjou seu espaço na Mauá através de Jirlânia.

No começo possuía um espaço só, onde dor-mia e cozinhava. Depois de um tempo, seu vizi-nho saiu de lá e ela pode dividir o quarto onde mora do seu “local de trabalho”.

Atualmente, este é o espaço onde Gê trabalha, mas, tendo sido uma das primeiras entrevistas, decidi deixar Maria no livro.

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Maria Elisete Barbosa Sousa, de 46 anos, é a porteira da Mauá desde que a ocupação come-çou, em 2007. Com roupas e trejeitos masculi-nos, essa cearense da mesma terra de Ivanilda, Itapipoca, tem a firmeza necessária para prote-ger a ocupação, seja de quem for. Muitas vezes, moradores que acabaram expulsos do prédio por não cumprirem as regras são proibidos de entrar ou, quando algum morador briga com alguém e não quer que a pessoa invada sua privacidade, cabe à Elisete barrá-la na portaria. Muitas vezes é preciso ser durona.

Por conta disso, à primeira vista, ela pode pare-cer grosseira. Ledo engano. Elisete, conhecida por “Véia”, apelido dado por seu pai, ou “Tia”, é daquelas pessoas que vão se abrindo com o tempo, vão pegando confiança. Daquelas pes-soas que, mesmo sem querer, deixam transpa-recer quando estão tristes ou bravas e que não conseguem esconder quando estão felizes.

Elisete veio para São Paulo quando já tinha quase 30 anos, acompanhando seu irmão Demir, hoje falecido. Para sobreviver, os dois trabalhavam nas ruas do centro, com barraquinhas de camelô. O trabalho, no entanto, exigia jogo de cintura: a briga e concorrência entre os camelôs eram pesadas.

“Os lojistas tinha raiva da gente, entendeu, que a gente vendia mercadoria mais em conta do

que eles, aí houve uma revanche com um lojista e ele passou a vender a mesma mercadoria que meu irmão, aí houve uma revanche deles dois, aí um colocava bem perto assim, pendurado nas lojas, pra provocar meu irmão. Aí meu irmão ia lá conversar com ele e tudo e ele levava aqui-lo como um, né... com cearense não se brinca, tá?”, ela conta.

O conflito, antes da morte do irmão, motivou Elisete a voltar temporariamente para o Ceará. “Eu tomei essa decisão porque ele chegou pra mim e falou ‘mana, eu vou matar ele aí’”, diz referindo-se ao comerciante concorrente.

Apesar de gostar de São Paulo, Elisete, cearen-se cujos pais tiveram 13 filhos, sentiu na pele as dificuldades de tentar a vida nas ruas e, ape-sar de ter morado em várias cidades brasileiras, mantém o amor à terra natal em primeiro lugar. “São Paulo aqui é bom porque a pessoa só pas-sa fome aqui se for um parasita, entendeu? A única vantagem aqui de São Paulo é nisso. Que você consegue juntar dinheiro pra se alimentar, pra essas coisas... fora isso, a gente vive pro trabalho e só, vive pra sobreviver. Gosto de São Paulo, mas não mais que o Ceará.”

A concorrência e a falta de pessoas conheci-das, em quem ela poderia confiar, também atra-palharam seu caminho. Depois de um tempo de

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volta a Itapipoca, Elisete foi morar em Fortaleza. Um mês após de ter saído de São Paulo, Demir, seu irmão, foi assassinado. Depois de ficar fora-gido no Paraná por ter matado o tal comercian-te nas ruas do centro de São Paulo, envolveu--se em uma briga de bar com um integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC. “O Co-rinthians perdeu nesse dia e o cara zuou com ele e ele não gostou, aí ele puxou a arma e deu um tiro no homem. E o cara era do PCC, minha nossa senhora... Aí mataram ele.”

Elisete é daquelas pessoas que convive pacifi-camente com todo mundo. Desde que não pi-sem no seu pé. E de pessoas para te afundar, ela acredita que o mundo já está cheio.

“Quem vive no mundo aí que nem a gente vi-via, aí no mundão aí ó, nessa Rua Mauá, aqui na Cracolândia, aqui tudo tem facilidade fia, só não tem facilidade eu cair aqui e alguém pra me ajudar, pra me dar uma mão amiga, isso é difícil, mas pra me enfiar no fundo do poço isso é fácil aqui, tá”, opina ela. “Foi assim. Aí ‘levamo’ o corpo (do irmão Demir) pro Ceará e eu já tava lá né, em Fortaleza, aí eu montei um comerciozi-nho com o dinheiro que eu tinha economizado daqui, aí pronto.”

Depois disso, sua vida ainda daria muitas vol-tas. Diferente da mentalidade de quem acha 4

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que São Paulo é a maior terra de oportunida-des, Elisete foi atrás das suas pelo Brasil afora. Já morou em Fortaleza, Belém, Manaus, Recife, voltou a Fortaleza e hoje está, há cinco anos, em São Paulo, mas isso sempre voltando para Itapipoca. “Nunca foi definitivo”, diz ela. Hoje mesmo, com família e emprego em São Paulo ela pensa em voltar para o Ceará, uma vontade cuja concretização acaba sendo sempre adiada pelas circunstâncias do presente.

Na ocupação, Elisete chegou através de sua sobrinha, Jirlânia, que hoje é uma das coorde-nadoras do prédio, pelo MMRC.

Antes disso ela já havia morado pagando aluguel e de favor na casa de conhecidos. Durante um pe-ríodo, quando começou a trabalhar em São Paulo também passou por situações muito difíceis.

“Com essa crise desse Kassab aí, desse sapo aí, ele tirou nós tudo da rua... e meu ganha-pão eu tirava da rua, eu era camelô, trabalhava com isso, aí foi ficando ruim e nem o dinheiro pra mim pagar pra dormir eu tinha. Eu não tenho vergonha de fala não, que foi uma verdade, eu pagava a diária, 20 conto pra dormir, aqui no Hotel Federal, tinha dia que eu não conseguia não, tá fia, eu esperava o porteiro vacilá e eu corria. Dormia, no outro dia ele tava me cobran-do. Isso não quer dizer que eu sou pilantra, não

era... era a minha condição, eu não tinha. Mas no outro dia que eu conseguisse, era a primeira coisa eu ia lá e pagava”, conta. “Até que uma amiga da gente, falou, gente, vai haver uma ocupação, o povo vai entrar e citou aqui o pré-dio Mauá, foi aí.”

A crise a qual se refere, na gestão de Gilberto Kassab na prefeitura, tem a ver com a Operação Delegada, que dificulta o comércio ambulante.

Apesar de sentir muita saudade da família e de sempre prometer uma visita à sua mãe, com quem fala todos os dias, Elisete construiu em São Paulo, e na Ocupação, uma família e não tem planos concretos de abandonar o prédio.

“Eu tô há 5 anos de porteira e se o movimento precisar de mim eu fico por mais 5 anos, sabe porque? Porque a gente vai pela dignidade e eu encontrei aqui, encontrei família, encontrei pessoas boas. Vai pela convivência, pela co-municação aí se torna todo mundo uma família. Todo mundo se respeitando, eu respeitando seu espaço, a pessoa respeitando o meu e assim a gente continua vivendo”, diz convicta.

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Armando Colquehuanca Cansaya é um dos pou-cos estrangeiros da ocupação. Peruano, com um portunhol bastante carregado e difícil de entender, ele é, aos quase 60 anos, uma caixa de surpre-sas. A pergunta “por que veio para o Brasil” era algo simples e não esperava a resposta dada com naturalidade por ele. “Sigo dirigente político lá, en-tão sigo perseguido...”, “dirigente político? De que partido?”, pergunto. “Sendero Luminoso.”

O Sendero Luminoso é uma organização de es-querda que propõe a guerrilha como forma de resistência à ditadura e Armando é um refugia-do político perseguido pelo governo de Alberto Fujimori, presidente que exerceu mandato de 28 de julho de 1990 a 17 de novembro de 2000 no Peru. Importante lembrar que, posteriormente, Fujimori foi condenado a 25 anos por mortes e sequestros, além de casos de corrupção ocor-ridos durante sua longa permanência no poder.

Durante esse período, Armando chegou a ficar preso durante seis meses para “investigação”, ao final da qual ele foi solto. No entanto, com a prisão de outros membros da organização seu nome acabou sendo mencionado e voltaram a persegui-lo. Dessa vez, ele já estava esper-to: havia se mudado de Puño para a cidade de Arequipa, também ao sul do Peru, e, quando soube de uma invasão à sua casa antiga de madrugada, resolveu deixar o país. “Não queria

que minha família fosse prejudicada”, diz. “Eu saí sem rumo... o mais perto é a Bolívia e me falaram que lá eu poderia explorar minha profis-são. Sou mestre alfaiate, então, “que sé hacer yo?”, questiona, “outra coisa posso fazer, mas demoraria a aprender e vão permitir que yo pue-da aprender...?”. Armando passou 15 dias na Bolívia, mas não se adaptou bem ao clima de lá.

“Sai de uma altitude de 4 mil metros acima del mar. Baixei a 2 500 metros em Arequipa. Me acostumei a esse clima”, diz ele, que não gostou de voltar para as altitudes elevadas da Bolívia.

Decidiu-se pelo Brasil e, chegando a São Pau-lo, Armando trabalhou por cinco anos em uma oficina de alfaiataria, junto com um coreano. Lá trabalhavam peruanos, bolivianos e brasileiros, que dormiam no local de trabalho, em uma es-pécie de galpão, mas diferente de muitos cená-rios altamente precários vistos em filmes, este possuía divisões internas. Como o trabalho era informal e ocorria no Bom Retiro, o medo de al-guma coisa dar errada e ele ser deportado ao Peru falou mais alto e Armando foi em busca de um trabalho com carteira assinada, onde tam-bém ganhasse um pouco melhor.

Sua maior queixa é a de que, nesta profissão, é preciso ter mais de um trabalho ao mesmo tem-po para que se chegue a um patamar mínimo

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de salário, ou seja, há uma forte exploração. Na primeira oficina, os trabalhadores entravam às 7 horas da manhã e só saíam às 21h30 ganhando, para isso cerca de 600, 700 reais. Já no segun-do emprego que arranjou, com carteira assinada, Armando passou a receber 800 reais.

Além disso, a grande quantidade de trabalha-dores no mercado de trabalho faz com que os donos de oficinas e/ou lojas – segundo Arman-do um negócio dominado 70 por cento por co-reanos – paguem cada vez menos pelo trabalho feito: há sempre alguém disposto, na luta pela sobrevivência, a ganhar menos do que efetiva-mente vale o trabalho.

Três anos depois, no entanto foi demitido deste segundo emprego. “As coisas entre trabalha-dores e a encarregada são um pouquinho cha-tas”, diz ele. Pergunto o motivo da demissão, ao que ele me responde: “Me parece que no teria nada... solo preconceito por ser latinoamerica-no, algo por aí. Mas eu não sou perfecto.... de repente não he feito como elas gostariam.”

Hoje, Armando trabalha como autônomo, e alu-ga um espaço para sua oficina perto da Ocu-pação. Na Mauá ele chegou há três anos, após participar de uma ocupação do MMRC na Rua General Flores. Por ter tido contato com Nel-son, do movimento, ao haver o despejo veio 4

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com ele para a Mauá. No começo, passou um tempo em uma área provisória, onde hoje há um estacionamento dos moradores da Ocupação. Depois passou para um espaço na área conhe-cida como “favelinha”, no térreo do prédio, para então chegar ao terceiro andar.

Apesar de atualmente morar sozinho na ocupa-ção, quando chegou Armando vivia com uma companheira, que também era costureira. O re-lacionamento não deu certo, mas, nem por isso, Armando fica sozinho ou passa tempo em casa sem o que fazer. Ativo, ele é músico e poeta e também participa de um grupo de dança típica peruana, chamada Huaylas.

Vejo algumas medalhas penduradas na parede de seu quarto, além de um número de corredor pregado no espelho. Descubro, no fim da con-versa, que Armando corre em maratonas, como os 10 km percorridos na Maratona de São Paulo e, para isso, pratica uma hora e meia todos os domingos, além de fazer natação no Sesc. Não consigo não ficar surpresa por sua disposição.

Ao final da entrevista, Armando, sempre muito sim-pático, resolve que vai tirar uma fotografia minha, já que tirei o seu retrato. De quebra, ainda ganho um CD do grupo musical do qual ele faz parte, e onde toca o instrumento chamado zamponha. “Depois me fala o que achou”, diz carinhosamente.

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Maria Inês é uma baiana alta e firme. Vestindo shorts e uma regata florida, no dia da entrevis-ta, com a renda do sutiã vermelho à mostra, ela entra no prédio com duas crianças espevita-das, que não conseguem parar quietas. Elisete nos apresenta e Inês me convida para ir ao seu apartamento, no segundo andar. Lá vemos um espaço que é dividido em dois. De um lado, a cama de casal e um beliche, e a televisão. Do outro a área da cozinha e alguns objetos, como bicicleta e uma cadeira.

Inês nasceu em Xiquexique, na Bahia, e veio para São Paulo com 17 anos, em busca de tra-balho. Hoje, aos 40 anos, está desempregada, sobrevivendo com a ajuda do segurodesempre-go, concedido pelo Governo Federal.

Sua maior preocupação na vida são seus fi-lhos. Ela tem um filho na Bahia, de 20 anos, um rapaz de 18 e uma menina de 16 que mo-ram com ela, mais duas crianças: João Lucas e Maria Eloiza. Os menores foram adotados, de-pois de Inês conhecer uma menina de 14 anos, que estava grávida de Eloiza. Naquela época Inês trabalhava em um restaurante e morava em um quartinho no fundo, com os filhos. A menina de 14 anos também morava, sozinha, em um galpão no fundo do restaurante e, se aproximando da filha mais nova de Inês, Nina, passou a morar com eles.

Quando a menina nasceu, Inês passou a cui-dar como se fosse dela. Algum tempo depois, a jovem foi presa por se envolver com drogas. No Carandiru engravidou novamente e, dessa vez, a briga pela guarda do bebê seria mais di-fícil. “O advogado me falou que por eu cuidar da menina desde que ela nasceu, ela já é mi-nha, ninguém pode tirar ela de mim. O menino não.” João Lucas nasceu e ficou até os 10 me-ses na cadeia, quando Inês conseguiu tirá-lo de lá. Agora ela corre atrás dos documentos para obter a guarda do menino.

A família chegou à ocupação Mauá através da fi-lha da dona do restaurante, que morava em uma ocupação na Rua Paula Souza. Foi ela que levou Inês ao movimento. “No começo achei meio estra-nho. Participei da invasão da Mauá. Entrei na folia, na festa”, conta. Mas com o tempo foi dando valor e percebendo a importância da luta pela moradia. “(Hoje) Onde tiver ocupação a gente vai também.”

Para alguns, o lado negativo de morar em um pré-dio ocupado é ter que dividir banheiro. Para Inês, o ruim é não ser uma moradia fixa, definitiva. Per-gunto o que ela faria no caso de um despejo. “Aí a gente vai ver um jeito de pagar aluguel... que é mais difícil com criança pequena”, diz.

Apesar de estar na ocupação desde o início, Inês ainda não foi contemplada com nenhum

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benefício. “A maioria (do meu tempo) já conse-guiu... vai da coordenação”, diz, alegando que as escolhas nem sempre são por mérito. “Um lugar para ser moradia... pode ser em qualquer lugar”, diz ela, que aceitaria um benefício mes-mo que fosse longe do centro.

Antes de morar na Mauá, Inês, que já trabalhou em casa de família e como auxiliar de limpeza, passou por Itaquera, onde morava com o pai de seus filhos. Lá, construiu dois quartos de bloco, na beira de um barranco. Com fortes chuvas, a família viu a casa cair e ser destruída. De lá foi para o restaurante e depois para o centro.

Apesar de viver na mesma ocupação há cinco anos, Maria Inês já participou de outras “fes-tas”, ocupações de prédios junto ao movimen-to, como a ocupação do Prestes Mais. “Quando não tinha eles (os filhos pequenos) aí é que eu ia mesmo”, conta.

Enquanto conversamos, Eloiza e João Lucas brigam feito cão e gato. Eloiza provoca e João chora, faz drama, pede atenção da mãe, que tenta apartá-los enquanto conversa comigo. A impressão que passa é a de ser uma verdadeira guerreira, que tem que lutar para conseguir a guarda dos filhos ao mesmo tempo em que cui-da dos mais velhos e busca um emprego.

Na Bahia, Inês estudou “mais ou menos”, pois tinha que ajudar, desde os 8 anos de idade, na roça de cebola, plantava feijão e até fazia re-queijão, tudo na fazenda da família, que tam-bém tinha uma casa na cidade. Mas enquanto ela conta, não parece haver arrependimento em sua história. “Foi sofrido, mas eu gostava. Tinha de tudo, morava com os meus pais e aprendi muito com eles”, diz. “Agradeço que meu pai, que ele ensinou a gente a trabalhar.”

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Rogério de Souza Ferreira, prestes a comple-tar 40 anos, está em São Paulo há 20, vindo da zona rural de Pernambuco, da cidade de Tim-baúba. Há 12 anos trabalha vendendo doce nas ruas do centro da cidade e há 2 anos mora na ocupação Mauá.

Rogério é conhecido no prédio como “o ho-mem do pudim”, por ser esse seu modo de sobrevivência: vender pudins, seja para a Mercearia da Raquel, seja para restaurantes no centro ou ainda atendendo a encomen-das avulsas.

A escolha de trabalhar no centro, no entanto, não é fácil. Rogério, como tantos outros, en-frenta a política proibicionista do prefeito Gil-berto Kassab (PSD), que deixará o cargo no final do ano.

“Por causa da Lei Delegada, os policiais não deixam vender coisa na rua”, ele me explica. Para solucionar o problema, ele fez cartões para distribuir nos restaurantes. Comerciante responsável, Rogério já tem seus clientes fixos e vez ou outra atende a pedidos novos. Durante a entrevista, uma senhora liga para fazer uma encomenda de alguns pedaços de pudim para o dia seguinte. Cada pudim é vendido a R$15 reais e, quando o cliente deseja pedaços sepa-rados, cada um custa R$2.

Seu dia-a-dia também não é dos mais fáceis. Em média, Rogério vende entre 20 e 25 pudins e os transporta em sua bicicleta cargueira, onde cabem apenas 10. Chega em casa no final da tarde e precisa limpar todos os instrumentos de trabalho para começar uma nova produção para o dia seguinte. Muitas vezes a produção se estende até a uma hora da manhã e ele precisa acordar cedo para fazer todas as encomendas a tempo.

A vinda para a ocupação se deu através de um amigo, com quem Rogério dividiu um espaço até que a Raquel, do ASTC, lhe arranjasse um espaço próprio. O amigo é Genivaldo, o porteiro da Mauá de domingo (quando os outros dois têm folga). Para Rogério, morar no centro é fun-damental para sua sobrevivência.

Apesar de ser mais isolado, seu apartamento é espaçoso e possui o privilégio de ter duas áreas externas laterais, que dão para o pátio do pré-dio. Em uma delas, o comerciante mantém uma geladeira, onde guarda os pudins prontos.

Rogério é casado e tem duas filhas, mas vive longe delas para poder trabalhar. “Eu prefiro que elas fiquem lá, por causa da escola das meninas também...” Além disso, Rogério con-seguiu comprar para a família uma casa no Jardim dos Pimenta, em Guarulhos, onde já

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morava um tio seu antes de se aposentar e voltar para Pernambuco.

Foi através deste tio que Rogério chegou a São Paulo, com um emprego garantido de me-talúrgico, mais especificamente trabalhando como operador de forno. A vida levada junto com o tio durou quatro anos e Rogério voltava sempre a Timbaúba para visitar os pais... até conhecer sua mulher, quando tinha 25 anos. Hoje, faz mais de 10 anos que não volta a sua terra natal.

A casa em Guarulhos é em um sítio, em uma área ocupada, mas que foi comprada por ele. “Mas lá ninguém sabe o que pode acontecer... você não viu lá em Pinheirinho, tinha mais de 20 anos e o executivo foi lá e derrubou as casa de todo mundo...”, ele diz, para explicar o medo e a incerteza que rondam suas duas moradias. Ainda assim, a ocupação Mauá soa como algo mais provisório em sua vida.

“Aqui se fosse seguro eu trazia elas pra cá.” Esse seria, segundo ele, seu maior sonho. “Se eu pudesse comprar uma casa aqui no centro, aí sim minha vida ia estar resolvida.”

Vindo de área rural, Rogério não conseguiu aprender a ler e a escrever, por ter começado cedo a ajudar o pai na roça. “Lá a gente plan-

tava milho, feijão, mandioca, cana... Aí eu co-meçava a estudar, mas era longe, desanimava e desistia.”

De casa até a escola era preciso andar a pé por uma hora. Rogério parou na segunda série do Ensino Fundamental. Foi em função disso, ali-ás, que deixou o emprego de metalúrgico, onde ganhava cerca de 1.300 reais, e isso há dez anos. “Eu não sei ler e as firmas vão crescendo, né... elas querem que os funcionários acompa-nhem aquele nível”, diz ele, que ficou para trás mesmo quando tentou compensar o tempo per-dido na infância. “Fiquei três anos estudando, mas não via resultado... eu não passava da se-gunda série, então meu patrão me demitiu.”

Hoje, Rogério consegue ler coisas mais sim-ples, mas tem dificuldade em escrever o próprio nome. “Tenho vontade (de aprender), mas não tenho tempo... No meu serviço não faz falta, mas se eu parar de fazer pudim...”

O negócio atual ele aprendeu com um amigo, em um momento da vida em que se viu de-sempregado. Atualmente, é só isso que vende, mas no começo da entrevista somos interrom-pidos algumas vezes por crianças que querem saber do “doce de coco” que ele tem em casa. “Esse vende pouco, então eu faço mais pra mim, mas aí as crianças ficam sabendo e vêm

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pedir”, diz, com um jeito tímido, mas de uma genuína simpatia.

Mesmo sendo semi-analfabeto, ao final da en-trevista Rogério pega para ver uma cartilha que está em cima da minha mochila, sobre o Mo-vimento Passe Livre, que participara de uma assembleia mais cedo no prédio, para discutir com os moradores a questão do transporte pú-blico. Digo que ele pode ficar com aquele exem-plar, se achar que consegue ler e lhe explico um pouco do movimento, ao que, para minha sur-presa, ele responde “Eu vou ficar com ele sim, estou vendo aqui e acho que esse consigo ler.”

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A piauiense Maria do Desterro de Souza Silva, moradora do terceiro andar, não gosta muito de fazer festa nem de sair para beber. Mais caseira, prefere ficar no seu canto, com seu filho único, Gabriel. Mãe solteira, Maria chegou na Mauá há três anos, quando, por conta do baixo salário que recebia como auxiliar de limpeza, não tinha condições de pagar aluguel.

A situação é um tanto comum nas grandes cida-des, que, com excesso de mão de obra, explo-ram o trabalhador. Na época, Maria recebia 380 reais, e o aluguel, que era um pouco mais baixo, foi subindo até chegar a 500 por mês. Como óbvia consequência, ela começou a atrasar o pagamento e se viu com essa grande questão a ser enfrentada: a moradia.

“Eu dava metade, mas mesmo assim... não dava, aí eu fui e disse ‘ó, não tenho condi-ção...’.” Um advogado conhecido lhe disse que ela tinha direito de ficar 5 anos no apar-tamento, mesmo sem pagar. “Mesmo assim, minha consciência pesava... eu não dormia direito. Pensei, vou ficar morando num lugar que eu sei que vou ficar devendo... depois podia ser despejada, entendeu. Eu disse não, eu não quero isso pra mim.” Foi quando uma conhecida lhe apresentou a Ocupação e ela conseguiu um espaço para morar com o filho.

Hoje, ela faz o que pode para trabalhar e cuidar de Gabriel. Ultimamente, seu ex-companheiro e pai do menino tem vindo mais à ocupação, tra-zendo comida e acompanhando o crescimento do filho. Mas não foi sempre assim. Depois de sete anos de relacionamento, Maria de separou pois o companheiro não aceitou a gravidez. “Eu me separei dele quando estava grávida de 5 meses, porque ele não queria ter meu filho. Ele veio me dar remédio (abortivo) pra tomar, aí eu falei ‘não, você sai e fica eu e meu filho’, aí eu fiquei me virando”, conta ela, que considera sua história um tanto triste e sofrida.

Depois de deixar sua terra natal, Teresina, Maria foi tentar a sorte na cidade grande. “Eu achei que aqui era melhor, mesmo que seja mais di-fícil, porque o pessoal fala que é fácil... não é fácil, mas é mais fácil que morar lá”, acredita. “Lá você tem que queimar tijolo, trabalhar com cana, trabalha mulher, trabalha homem, sabe. É um serviço mais pesado.”

Em São Paulo, trabalhou por muitos anos como doméstica com uma conhecida de sua irmã, que também havia deixado o Piauí. Enquanto isso, pagava aluguel na Boa Vista e cursava um supletivo, para terminar os estudos de baixa qualidade em Teresina. “Um lugar desse às ve-zes você estuda, às vezes o pai precisava, nós tínhamos que parar porque tinha que fazer ser-

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viço de casa... Os maiores tinham que cuidar dos menores... Aí tinha dia que ia, tinha semana que não ia, aí não dava pra estudar”, conta.

A gravidez no meio do caminho, no entanto, dificul-tou as coisas em São Paulo. Com o nascimento do filho, Maria resolveu abandonar seu sonho de fazer faculdade, onde pretendia estudar turismo.

Sabendo de sua dificuldade com aluguel, uma co-nhecida sua do centro, lhe indicou as reuniões do movimento para que Maria pudesse começar a par-ticipar. Segundo ela, foram 7 anos de reuniões até que conseguisse um espaço para morar.

Após três anos, ela consegue ver os prós e con-tras de morar numa comunidade. “Uma parte é boa e uma parte é ruim, porque ela ajuda quem não tem condição de morar num lugar próprio né, mas o que eu acho ruim é que o banheiro é comunitário, pia não tem dentro de casa, o espaço é muito pequenininho, ai você tem que comprar as coisas, tem que fazer milagre... pra caber”, ri ela, sentada na cadeira da mesa cen-tral, que está quase colada com a parede. “En-quanto isso não vou comprar mais nada, por-que pra caber tem que tirar eu ou ele.”

Com a separação, as coisas ficaram ainda mais complicadas já que era por ela mesma e seu filho. “Eu tinha que dar conta de pagar aluguel, tinha

que dar em dia, tinha vezes que faltava 200 reais, eu trabalhava em lanchonete, barzinho à noite to-dinha pra conseguir pagar o aluguel...”, conta.

Apesar de sonhar com um espaço próprio e dizer que “reza todos os dias pra sair daqui”, Maria também vê um lado bom. Na Mauá, ela começou a praticar capoeira, no grupo Herdei-ros da Mauá – cheio de crianças e com predo-minância masculina, mas ela não se importa. “É gostoso aqui, mas a gente sonha em ter um es-paço maior... queria dar o melhor pro meu filho, mas com o que eu ganho tá difícil...”

Atualmente, Maria ganha 600 reais como au-xiliar de limpeza em uma pequena empresa de informática. Para tirar uma receita extra, costu-ma fazer as unhas de moradoras da ocupação, cobrando 30 reais pela mão e o pé.

Como mãe solteira, Maria leva Gabriel à escola ao sair para o trabalho, outra moça pega ele de volta para almoçar em casa e, depois, Maria o deixa novamente e só vai buscá-lo depois do fim do expediente. Ela é a prova viva de que as mulhe-res são muito mais do que mães: são pais, são as provedoras de casa, cuidam sozinhas de si mes-mas, de casa e estão sempre em busca de algo melhor. É por ela, entre outras mulheres presentes no livro, que tantos definem o movimento por mo-radia como uma luta essencialmente feminina.4

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Roberta é uma jovem de seus 30 anos, muito bonita e muito reservada em um primeiro mo-mento. Irmã da coordenadora Raquel, do AS-TCSP, ela vive na ocupação com seu atual ma-rido, com quem se casou recentemente, com o filho Arthur e a filha Sara. Hoje, ela pode ser facilmente encontrada dando risada na casa de Rúbia, sua irmã, que mora com os filhos e o ma-rido, ou só batendo um papo depois de chegar do trabalho.

Foi assim que a conheci, no dia 29 de agosto, no qual a Polícia Militar havia invadido a ocu-pação, sob o pretexto de uma denúncia de que um assaltante havia entrado lá. Os policiais ba-teram na porta de alguns moradores, inclusive de Rúbia, que mora no primeiro andar e quem estava lá era Roberta e sua mãe, dona Fran-cisca, que passava uns tempos em São Paulo.

A alguns anos atrás, no entanto, a vida parecia não ter mais sentido para Roberta. Arthur, que hoje tem 4 anos, era apenas um bebê quando seu pai, ex-namorado dela, Sidnei, foi até a ocu-pação e em um ato de desespero por conta do fim do relacionamento – que já havia acabado há 8 meses – atirou no próprio filho e depois se matou. Antes, fez a sogra de refém por cerca de três horas, nas quais ameaçou machucar Rober-ta. “Ele ficou me ameaçando, falou que ia cortar meu cabelo, falou que ia arrancar meus dentes

um por um... falou que ia fazer horrores comigo e isso na hora eu sem um pingo de sangue, co-mecei a sentir falta de ar e minha mãe falou ‘Sid-nei, minha filha vai morrer... solta ela’, ele falou ‘Eu não quero você morta, eu quero você viva’”, vai lembrando ela, ajudada pela mãe. Ambas se emocionam ao falar sobre o dia. “Eu não gosto nem de lembrar, porque parece que está aconte-cendo agora”, diz dona Francisca.

O alvoroço foi tanto que um helicóptero do Da-tena, apresentador da Band, acompanhou o caso e o Coronel Telhada, ex-comandante da Rota, fez a mediação com o rapaz, através do celular de Roberta, tentando acalmá-lo e evitar que ele cometesse algo mais grave.

“Eu estava sentada o tempo todo”, lembra Fran-cisca, “quando foi na hora que ele puxou todas as roupas do quarda-roupas, fez um monte assim, foi na mochila dele pegou uma garrafa de álcool, que ele já andava com tudo. Aí eu falei assim ‘Sid-nei, o que você vai fazer meu filho?’ aí ele botou a arma na minha boca, eu pensei ‘meu deus, ele tá preparado pra qualquer coisa’. Eu vi a morte dos olhos dele”, vai contando. “Aí alguma coisa dentro de mim falou ‘deita’. Eu tava sentada do lado do pé da cama, aí eu senti vontade de deitar, fui bem devagarinho, de costas... falei ‘Não que-ro ver, senhor. Senhor, te entrego minha filha nas mãos, não deixa ele maltratar a minha filha...”, diz

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Francisca. “Porque na minha mente ele ia matar ela e depois ia se matar, não imaginava que ele fosse no filho dele ou em mim, de jeito nenhum.”

No entanto, ninguém poderia imaginar o que estava por vir. Talvez com a intenção de deixar Roberta ilesa e atacar aqueles a quem ela mais amava, Sidnei atirou em Francisca, que conti-nuou consciente, mas sem conseguir se mexer e, em seguida, atirou em Arthur, para depois se matar. Roberta entrou em desespero. Todos achavam que sua mãe havia morrido, até perce-berem que ainda havia vida.

Enquanto ouço a história, sem reação diante do absurdo, Rúbia chega com um álbum de foto-grafias de Arthur, uma semana antes da tragé-dia. Uma criança linda, com carinha de moleque espevitado, que hoje não consegue mexer as pernas e nem se comunicar direito.

“Eu agradeço por estar com meu neto, mesmo ele especial, ele tá vivo, ela tá aqui com a gente, o sorriso dele pra nós é tudo, ele é tudo pra nós. Minha filha tá viva aqui, sã e salva, malcriada (ri-sos), mas eu sou feliz com isso. Eu sou feliz por tudo isso, eu agradeço a Deus todos os dias”, desabafa dona Francisca.

O fato de Arthurzinho ter sobrevivido foi qua-se um milagre. “Ele ficou um mês na UTI e um

mês na semi. Aí nesse um mês que a gente fi-cou na UTI os médicos não davam vida pra ele. Falavam ‘se ele viver, ele vai ficar com seque-las’, ‘você tem que ficar preparada, se ele ficar vivo você tem que ficar preparada, porque ele não vai ser como ele era antes, ele não vai ser uma criança como era antes’”, relembra Rober-ta. Hoje os gastos com o tratamento dele são enormes, mas ela faz questão de seguir à ris-ca as orientações do médico. Isso porque, logo depois do ocorrido, para fugir da tristeza e ten-tar recomeçar a vida, Roberta foi morar por três anos com a mãe no Maranhão, onde dona Fran-cisca tem família. “Lá não tem tratamento como tem aqui. Agora vai fazer um ano que eu tô em São Paulo, que eu tô fazendo tratamento com ele. Mas eu tenho muita fé que ele vai voltar a andar, porque ele sente as perninhas... eu tenho muita fé”, diz a mãe orgulhosa.

Além do botox que aplica nas pernas de Ar-thur, ela também o leva para a Equoterapia, que ajuda na recuperação do equilíbrio. “É 500 reais por mês. Aí o patrão do meu esposo vai pagar metade e quem vai pagar a outra parte é a gente”, diz.

Arcar com os gastos do tratamento e mais os da filha mais nova, Sara, de um ano e meio, não é fácil. Roberta parou tudo para cuidar de Ar-thurzinho e só recentemente resolveu voltar a 4

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trabalhar. “Eu fiz um curso agora de vigilante. Eu tinha parado... eu parei minha vida totalmente pra cuidar só dele. Aí agora que eu tô recome-çando, vou trabalhar... porque só o salário do meu marido não dá e eu quero fazer a equote-rapia, que vai ser muito bom pra ele... então eu tô atrás, tô mandando uns currículos pra ver se me chamam...”.

Seu atual marido já é mais difícil de ser encon-trado na ocupação, pois está sempre trabalhan-do, como frentista de um posto de gasolina per-to da Mauá. Os dois já estavam juntos quando o acidente com Sidnei aconteceu, mas a relação só foi oficializada no final deste ano.

“Ele me deu mó força, me ajudou. Até hoje ele me ajuda bastante a cuidar do meu filho, quan-do eu tava no curso mesmo ele que levava o Arthur pra fisioterapia...”, diz Roberta.

Hoje, do lado da família, ela consegue ir tocan-do a vida para frente, fazendo novos planos e sorrindo novamente.

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Monique Mendes é uma mulher quieta, porém simpática, que mora sozinha na Ocupação Mauá, mais precisamente na “favelinha”, nome dado ao conjunto de moradias no térreo do prédio. Natural de São Paulo, nascida no bairro de Santo Amaro, Mendes, como é conhecida, aprendeu a ser sozinha desde nova quando, aos 18 anos foi expulsa de casa ao se assumir homossexual. “Já que você gosta de mulher, então vá cuidar da sua vida”, disse seu pai.

Antes disso, a tímida menina que aos 15 anos já queria ser responsável por si mesma, trabalha-va como balconista em um supermercado. “Eu não era de conversar com ninguém, sempre fui muito fechada”, diz ela, sentada em sua cama, dentro de seu pequeno espaço. Ainda hoje, ela gosta de morar sozinha e de viver em uma casa pequena. Chegou até a pedir para mudar de espaço, por achar o antigo muito grande. “Eu gosto de lugar pequeno”, diz sorrindo. Em sua casa cabe sua cama e uma prateleira onde co-loca alimentos, duas panelas e um fogareiro. Em cima da cama, fica seu varal de roupas.

Hoje, aos quase 40 anos, Monique acredita que traçou bem o seu caminho sem precisar da aju-da de ninguém. “Nunca precisei procurar família. Vou vivendo minha vida, se eles (os pais e seus dois irmãos) quiserem, eles que me procurem”, afirma, com um pouco de rancor em sua voz.

Talvez por seus pais terem virado as coisas para ela, Monique também é uma mulher de poucas amizades, que prefere manter sempre um pé atrás em relação aos outros. “Não gosto de fi-car bebendo nem de fazer amizade. Amigo não existe, amigo é Deus”, acredita.

Antes de chegar na ocupação, ela chegou a morar com uma companheira, de aluguel, mas o relacionamento não deu certo e Monique foi viver em uma pensão no Bom Retiro, também pagando aluguel. Na época estava desempre-gada e a dona da pensão a pressionou para sair, antes que tivesse acesso ao seguro-desempre-go. Através de uma colega da pensão que já tinha ido para o movimento por moradia, Neide, Monique chegou à Mauá, depois de participar de grupos de base do Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC).

“No começo achei estranho, com muito ba-rulho... eu trabalhava de segurança à noite na época, mas fui me acostumando.”

De ruim sobre a ocupação ela pontua as con-dições precárias do prédio. “Tem rato e ba-rata, o esgoto cheira muito mal e às vezes a gente pega umas alergias, micose...”, diz. “Mas o bom é que as pessoas estão sempre unidas. Sempre tem alguém para ajudar entre os coordenadores. Eu dou valor aqui porque

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eu sei que lá fora as pessoas batem a porta na sua cara.”

Hoje, sem precisar pagar aluguel, Monique tem a possibilidade de ir atrás de seus sonhos. Ela faz parte do “Mulheres que Constroem”, proje-to gratuito da Escola de Altos Estudos de São Paulo (Esaesp) em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Pau-lo (Sintracon-SP) e empresas do setor que visa inserir as mulheres no mercado de trabalho.

Seu sonho é arranjar um emprego na área e, caso tenha condições, adquirir uma casa pró-pria. “Eu tô na luta, se eu conseguir tudo bem, mas se eu tiver um emprego bom para ganhar assim uns 2 mil, eu pago uma casa pela caixa, não vou ficar dez anos esperando, vou correr atrás também”, afirma.

Apesar de se dizer satisfeita e gostar de morar na ocupação, Monique também vê algumas di-ficuldades. “Aqui tem muitas regras, não é fácil também. Reuniões, passeatas, mutirão, então você não para... É legal participar do movimen-to, mas mesmo se eu estiver doente, tenho que ir”, opina.

Assim, com um passo de cada vez, Monique vai atrás. Por ter saído cedo de casa parou os es-tudos depois de terminar o segundo grau. Mas é uma mulher que sabe o que quer. “Sempre pensei positivo. Dando certo ou não, eu sei que eu fiz”, diz.

“O que eu quero mesmo é continuar meus cursos, fazer faculdade de engenharia e con-seguir minha casa. Não pretendo casar nem ter filho.”

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Provavelmente, Raimundo não seria um persona-gem deste livro se, em julho, durante as minhas férias eu não tivesse ‘dado plantão’ na Mauá. Fi-cava tanto tempo no prédio que pude presenciar a Elisete deixando a portaria sob a responsabili-dade do coordenador Nelson, do MMRC, para ir almoçar com a Ivanilda em um bar/restaurante na Rua Cásper Líbero, ali do lado. Fui convida-da a “comer uma feijoada” e “tomar uma” junto com elas. O motivo da quebra de rotina era o aniversário da Tia, que fazia 47 anos. Enquanto almoçávamos, chegou Raimundo, cujo ponto de taxi fica em frente ao tal restaurante.

A entrevista de fato só ocorreu dois meses de-pois, quando consegui encontrá-lo no ponto, sem clientes, e rendeu boas surpresas.

Raimundo Sampaio Bezerra, de 56 anos, nas-ceu na cidade de Milagre, no interior do Ceará, e conheceu uma infância marcada por trabalhos na roça, onde levava almoço para os irmãos mais velhos e ajudava nos trabalhos domésti-cos. Aos 19 anos, chegou como uma “criança caipira”, como ele mesmo descreve, na rodoviá-ria de São Paulo. “Todo mundo veio, como todo nordestino veio pensando na cidade grande em arranjar um bom emprego e uma vida melhor... que lá a vida é muito difícil”, explica ele. “Aí eu vim no embalo né, que o pessoal vinha, aí che-gava lá (no Ceará) tudo bem vestido, de relógio,

se esnobando, todo mundo tinha uma visão di-ferente, achava que na cidade grande era uma maravilha... Não foi ruim, né, mas foi meio difícil no começo”, conta.

Ao chegar, junto com seus irmãos, ficou tão as-sustado com a cidade e com o frio de 5 graus, raro no Norte do país, que quis voltar da própria rodoviária, mas a falta de dinheiro o obrigou a ficar e a construir uma vida aqui mesmo.

Raimundo foi então morar com um de seus ir-mãos no Jardim D’Ávila, perto de Osasco, onde os dois pagavam aluguel em um barraco, mas logo se mudou ao arranjar um emprego em uma lanchonete no quilômetro 16 da Rodovia Anhanguera. Fazia lanches e, como o local era grande, com lanchonete, restaurante e posto de gasolina, vivia em um alojamento com cerca de 40 rapazes funcionários do local. “Aí eu não me adaptei porque eu morava com bastante gente e o pessoal, como eu tinha chegado do Nordes-te, caipira mesmo, criança caipira, aí eles co-meçaram com muita brincadeira, muita coisa... eu não me adaptei morando nesse ambiente.” Depois, sobrevivente, passou por diversos em-pregos, como de ajudante a operador de empi-lhadeira, na Coca-Cola.

Nessa época foi morar com outro irmão, que comprara uma casa própria, em Santo Amaro.

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Raimundo só saiu de lá para casar, mas conti-nuou morando na Zona Sul, pagando aluguel.

Lá, teve contato pela primeira vez com um movi-mento social, a Associação Amigos de Bairro. Sua mulher à época se inscreveu na associação plei-teando um empreendimento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Em 1990 o governador Orestes Quércia (PMDB) prometeu, pela eleição de Luiz Antônio Fleury Filho como seu sucessor, que as famílias cadastradas seriam transferidas para moradias do governo no Jardim São Luiz, mas após as eleições as casas não foram entregues. “Quando entrou o governo Mário Covas aí o secretário de habitação dele deve ter achado lá as inscrições e convocou todo mun-do para uma reunião.” A partir daí, apartamentos foram sendo sorteados e Raimundo e a mulher conseguiram um canto para chamar de seu.

Hoje, quinze anos depois e mesmo após o fim do seu casamento de 24 anos, Raimundo ainda paga uma prestação de 278 reais por mês pela casa. O financiamento, que normalmente é de 20 anos, foi acordado e aumentou para 25 no seu caso. Ainda faltam 10 anos de pagamentos, ainda que hoje more na ocupação, longe da ex-mulher e dos filhos.

“Essa foi uma coisa que o Mário Covas fez, agora parece que já não existe mais isso, mas

no tempo que eu fiz, o contrato era no nome da mulher, porque se o marido deixa a mulher, a mulher que fica com o apartamento. Essa foi uma lei que eu achei legal que ele fez, eu sou to-talmente a favor, por isso que eu falo que eu sou fã do homem que morreu...”, diz. A prestação, ao contrário do contrato, está em seu nome e ele paga até hoje para ajudar a ex-mulher e os três filhos, dois deles já formados e a mais nova ainda na faculdade.

Após a separação, depois de 24 anos de ca-samento, e de ter vivido outro relacionamento por dois anos, pagando aluguel, Raimundo foi tentar a vida na ocupação. “Eu ia morar numa pensão, mas aí o pessoal aconselhou que pen-são não dá... aí eu vim pros sem-teto”, explica. A mudança de vida, no entanto, não foi, como a de muitos, por falta de opção. Raimundo, que começou a trabalhar como taxista quando ain-da morava com a família, tem condições de pa-gar aluguel ou de dividir um quarto de pensão.

“Nos sem-teto eu fui mais pra ver como é que era. Porque eu tinha curiosidade de saber como que era, como é que funcionava, como que vive aquele povo que tá lá dentro”, conta. E nesses dois anos aproximadamente em que vive na ocupação Mauá, acredita que já teve muitas li-ções de vida. “Você aprender como descer do seu orgulho, deixar de ser orgulhoso com você 4

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mesmo, achar que você é superior aos outros. Porque as pessoas que moram em ocupação são discriminadas, a sociedade acha que não é justo você entrar numa propriedade... só que ela não sabe o que as pessoas passam”, opina.

Raimundo, nascido no interior do Ceará e filho de um pai conservador, que dava mais impor-tância ao trabalho que ao estudo, é um homem que, ao longo de sua trajetória de vida, cons-truiu uma consciência política e social a respei-to do movimento de moradia, do direito das mu-lheres, do que é viver em comunidade.

“Você ter que lavar um banheiro, você ter que lavar escada, você ter que participar de muti-rão... tudo é diferente. É você ter que levantar num domingo e limpar um banheiro igual eu faço, que eu pagava pra uma mulher lavar e quando a mulher foi embora eu falei ‘Não, EU vou lavar’. Então levantar 8 horas, limpar o ba-nheiro, tirar o lixo... eu era muito acomodado, eu chegava em casa e tinha tudo. Eu não sabia o que uma mulher passa, entendeu? A mulher ela trabalha, quando chega em casa tem que fazer almoço, passar roupa, lavar louça, louça do almoço, louça da janta... o homem chega em casa e ainda chega exigindo.”

Outra mudança ocorrida na vida desse tímido taxista foi a de ter mudado de religião, também

acabando com um preconceito seu. De cató-lico virou espírita, primeira religião com a qual se identificou plenamente, por acreditar que, nela, as coisas acontecem “naturalmente”, sem ninguém ser forçado ou obrigado a nada. “Tudo tem o seu momento”, acredita.

“Eu chegava em casa e eu dormia, mas era como se eu estivesse acordado. Era como se eu estivesse vivendo à noite. Você deita... você nunca teve pesadelo? Só que o meu era cons-tante, eu não dormia bem”. Foi por isso que uma amiga sua o levou a um centro espírita, sem contar onde iam. “Chegando lá eu queria ir embora de todo jeito, mas aí eu fiz 5 semanas de tratamento e comecei a ver que é uma filoso-fia totalmente diferente do que eu imaginava, aí eu comecei a estudar pra ser médium.”

Após estudar a doutrina por 5 anos, Raimundo virou médium e hoje atende pessoas “desequi-libradas mental ou espiritualmente”, duas vezes por semana.

Raimundo, hoje solteiro e com uma renda men-sal média de 5 mil reais, já está realizado. Seu filho mais velho é advogado, o do meio é ad-ministrador de empresas e a filha mais nova está terminando o curso de pedagogia, “mas já trabalha em uma escola”. Vê-los formados, poder ajudá-los por ter conquistado um padrão 4

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de vida que considera bom já o faz feliz. A única coisa da qual se arrepende é a de não participar tão ativamente de seu movimento, o Movimen-to de Moradia da Região Centro (MMRC), mas mesmo sem comparecer às reuniões semanais, Raimundo dá sua contribuição com o taxi, le-vando e trazendo gente para reuniões, plenárias ou atos.

“Eu acho que já fiz tudo o que tinha que ser fei-to. Pra mim, daqui pra frente o que vier é lucro. De tudo... eu já me sinto mais do que realizado, só de olhar e ver meus filhos formados, pra mim eu já cheguei no topo máximo da minha pos-sibilidade. Não precisar trabalhar pra ninguém, ter uma vida independente, entendeu? Então acho que já ultrapassei muito meu limite, por-que uma pessoa que chega semianalfabeto, en-trar na empresa da coca-cola...”, diz orgulhoso, lembrando das coisas pelas quais passou.

Ao pensar no futuro, Raimundo ainda não está decidido sobre o que fazer. Já pensou muitas vezes em deixar a ocupação para alguém que precise mais que ele, mas confessa que hoje está acomodado. “Eu olho pra trás e vejo pes-soas que precisam mais do que eu... tem tanta gente sem moradia aí, que não tem condições nem de pagar um aluguel, que vive com um salário mínimo. Eu fico imaginando como uma pessoa, no Brasil, vive com um salário mínimo.

Eu acho um absurdo, eu acho desumano a pes-soa viver com um salário mínimo e você paga uma faculdade de 1.200 reais”, diz.

Ainda que o futuro esteja incerto, Raimundo é um homem visivelmente feliz consigo mesmo e afirma que, se alguém estiver precisando mais do que ele e a coordenação lhe pedir, cede seu espaço na ocupação e vai procurar um lugar para morar.

“Eu participo (do movimento) porque eu quero, eu me sinto bem... eu gosto de viver em comu-nidade, eu acho legal ver aquelas pessoas lu-tando por um objetivo.”

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A conclusão deste trabalho pode ser óbvia, mas é importante que seja dita. Este livro é um mero retrato de um prédio imenso, com pessoas vin-das de diferentes partes do país e mesmo de fora do Brasil, com histórias diferentes e concep-ções de vida variadas, mas com um único ideal: o de, através de uma luta específica, conquistar uma casa própria, paga com o próprio dinheiro.

São pessoas que, querendo ou não, são obri-gadas a lutar diariamente contra o preconcei-to de parcela grande da sociedade, que ainda valoriza mais a posse da terra, através da pro-priedade privada, do que o direito à vida digna para todos os cidadãos, independentemente de quem seja. Há uma ideia, impregnada na socie-dade, de que quem tem, fez por merecer e de que, portanto, nada mais natural do que as coi-sas continuarem como estão.

Há que se lembrar, no entanto, o efeito per-verso da especulação imobiliária, que valoriza determinadas áreas da cidade e que impossi-bilitam a moradia de uma enorme parcela da população brasileira, cujo salário não passa de três salários mínimos – quando não está abai-xo desse patamar. Essa população é expulsa para áreas mais afastadas – e que, portanto, não interessam ao mercado, por não serem lu-crativas – sem a infraestrutura adequada para quem mais precisa.

O resultado é uma sociedade com valores um tanto distorcidos, já que quem mais precisa do Estado e de seus investimentos - presentes no centro da cidade – não pode contar com ele. São tratados como criminosos que invadem a pro-priedade alheia – ainda que ela esteja abando-nada há anos, com imensas dívidas de impostos.

Foi essa imagem de que quem ocupa estes pré-dios são “vagabundos”, que querem tudo de “mão beijada”, que se tentou desconstruir nes-se livro. São pessoas comuns, que vão ao tra-balho todos os dias, que têm contas para pagar, que levam os filhos na escola, têm obrigações e responsabilidades. Claro que, diante da imensa população que ali vive, o número de retratados não é suficiente. Muitas entrevistas caíram, mui-ta gente ficou de fora. Mas esses são os percal-ços naturais de um trabalho como este: não dá para falar de tudo e nem é essa a proposta.

O contexto sobre o tema da habitação é extre-mamente vasto e foi preciso fazer um recorte, uma “pincelada” sobre a questão.

É importante, apenas, reforçar que, conside-rando uma proposta de cidade mais justa, mais bem utilizada por todos, há muito ainda a ser feito. A sociedade precisa repensar seus meca-nismos legais, seus instrumentos de interven-ção na política urbana.

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O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor comple-taram aniversário de dez anos com muito ainda a ser implementado. Instâncias de participação da sociedade civil na tomada de decisões se fa-zem cada vez mais presentes e urgentes, como o Conselho Gestor das ZEIS. O Projeto Nova Luz precisa ser revisado e rediscutido, levando em conta os movimentos sociais presentes no centro, os moradores e comerciantes que há anos ocupam a região.

Ainda há muito a ser pensado e feito no que se refere ao acesso a moradia a toda a popu-lação, sem esquecer que o direito à moradia é premissa básica para tantos outros direitos que definem uma vida digna. Para citar uma frase bastante utilizada pelos próprios movimentos por moradia e que resume bem o espírito des-sas histórias de vida aqui apresentadas, “quem não luta tá morto”.

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VídeoS

Documentário Dia de Festa: http://vimeo.com/18117373

Reportagem da Record sobre a falta de moradia: http://rederecord.r7.com/video/vidas-sem-lar-documenta-

rio-mostra-o-drama-da-falta-de-moradia-504d3cfefc9b943196da4b4b/

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Fazer esse projeto de livro reportagem sozinha não foi tarefa fácil. Foi, aliás, um grande desa-fio pessoal por um detalhe pouco saudável à prática do jornalismo: a timidez. Entrar em um prédio ocupado por mais de 200 famílias no centro de São Paulo, com portão e câmeras de segurança. Bater na casa de pessoas estranhas e contar suas histórias de maneira fiel e ao mes-mo tempo cativante me gelou a espinha desde o primeiro momento, quando decidi o tema do meu trabalho. Na realidade, a ideia inicial era um pouco mais ousada e seria desenvolvida na cidade de Marabá, no Pará.

A cidade me atraiu por sua enorme desigualdade social. Ao mesmo tempo em que tem riquezas minerais, com a presença da maior minerado-ra do mundo, a Vale, Marabá é a quarta cidade mais perigosa do país, com assassinatos e per-seguições a líderes do Movimento Sem Terra. Lá, a questão agrária ainda é fortemente presente.

A ideia era descobrir algo por trás dessa desi-gualdade, algo que a simbolizasse, que pudesse ser mostrado visualmente. Isso porque a ideia inicial do trabalho era um livro com muito mais fotografia do que texto. Passei uma semana em Marabá e voltei querendo retratar as ocupações urbanas que eu descobrira lá, através de freiras da Diocese de Marabá. Seu Ceará, cujo nome verdadeiro era Manuel Pereira da Rocha, diretor

da associação de moradores do bairro de São Miguel da Conquista me levou para conhecer casas e famílias de lá.

Em um clima que confunde questão agrária e urbana, bairros inteiros são construídos pelos próximos moradores, em uma situação de qua-se abandono do poder público.

Ainda que eu achasse que a cidade de Marabá, por si só, já era um tema interessante, percebi que, por mais que eu quisesse fazer um “tcc viajante”, o medo de voltar sem o material ne-cessário falava mais alto. Trabalhando, só po-deria ficar um mês no Pará e teria que voltar com fotografias e informações suficientes para fazer o livro.

Resolvi que o trabalho então seria feito mesmo em São Paulo, onde a situação de moradia é tão ou mais absurda que as condições vistas no Pará.

Chegar ao prédio ocupado da Rua Mauá, como disse na introdução do livro, demorou e só se deu quando descobri o documentário “Leva”, produzido em 2011.

Pode parecer coisa de praxe elogiar os entrevis-tados, mas não é. Desde o início fui muito bem tratada por todos que me receberam. Desde os

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mais “famosos”, como a Neti, que tem um zi-lhão de coisas com o que se preocupar, até os mais tímidos, como o Sukita, que enrolou até o último momento para me dar a entrevista. Aos poucos, tentando sempre não incomodar nin-guém, fui me aproximando dos coordenadores e dos moradores.

Foram muitas descobertas, muito aprendizado e conhecidos no meio do caminho.

E muitas surpresas boas. Em julho, Elisete me convidou para a festa de aniversário de 1 ano de sua neta, Ana Beatriz. As demonstrações de carinho, os convites, os sorrisos, o reconhe-cimento. Cada uma dessas coisas me fazia ir para casa melhor, sentindo que meu trabalho fazia sentido, tinha algum efeito. Por que de que adianta fazer um livro sobre um prédio cujos moradores não vão ver, não sabem do que se trata. O livro não é para mim, é para eles. É a tentativa de um registro histórico, uma singela homenagem de uma estudante de jornalismo que, de todas as ocupações vistas no centro, escolheu aquela para contar a história.

Que fique claro que o livro não pretender ser um documento. Mesmo porque é um minúsculo re-trato de um universo de mais de mil pessoas. É um olhar, um recorte sobre um prédio que gera controvérsias, gera polêmica, levanta precon-

ceitos, mas que também tem muita vida e muita luta. É preciso tudo isso para existir por 5 anos.

Em pouco tempo me familiarizei tanto com o lugar que, ao contar para as pessoas o tema do meu TCC, me esquecia de explicar as coi-sas. Esquecia o fato de que é estranho ter uma “mercearia” dentro da ocupação, ter câmeras de segurança, controle, normas internas. O imaginário comum sobre uma ocupação é algo caótico, bagunçado, precário e desordenado. O livro tenta quebrar um pouco essa visão.

Claro que o processo não foi simples. O medo de não conseguir ter fotos boas o suficiente para o ensaio me fizeram dar maior ênfase ao texto do que havia imaginado no início do trabalho. Ao final de tudo, posso ver que, se tivesse decidido o tema e a ocupação mais cedo, se tivesse pro-curado a professora Rachel, minha orientadora de texto, mais cedo, poderia ter desenvolvido um livro mais completo, com mais personagens que representassem melhor o prédio. Mas esse trabalho serve, a meu ver, para ensinar os alunos a “caírem no mundo” e a fazerem sozinhos um primeiro trabalho jornalístico completo. Os erros e acertos não são outra coisa que uma lição de vida. Como balanço geral, acredito que fui bem sucedida, mas essa comprovação só se dará de-pois de ir pessoalmente à Ocupação com o livro, pois a história não é minha, é deles. 7

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pSd – Partido Social Democrático

cdHu – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano

iptu – Imposto Predial e Territorial Urbano

iSS – Imposto Sobre Serviços

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1. APRESENTAÇÃO

O presente estudo tem por objetivo verificar, de maneira sucinta, a

viabilidade da revitalização e implantação de um empreendimento habitacional de interesse social (EHIS) no chamado Edifício Mauá, situado no centro da cidade de São Paulo, e abrange os aspectos legais, físicos e econômicos de tal intervenção. Cabe ressaltar que aqui se trata de um estudo numérico, baseado nas determinantes físicas e legais, e poderá haver variações nas quantidades e valores estimados quando da efetiva elaboração dos projetos.

A revitalização do Edifício Mauá reveste-se de especial importância,

em primeiro lugar, devido à necessidade de atendimento de uma significativa demanda, constituída e organizada por movimentos populares de moradia, e com amplo histórico de luta neste mesmo edifício nos últimos 10 anos, pois trata-se de um imóvel inutilizado e abandonado há vários anos pelos proprietários, em progressiva deterioração, descumprindo, dessa forma, a necessária e constitucional função social da propriedade.

Um segundo aspecto, não menos importante, vai ao encontro de uma das

principais e acertadas diretrizes das atuais administrações públicas municipal e estadual, cujo objetivo é a recuperação da qualidade física e ambiental do centro da cidade de São Paulo, principalmente através do incremento do uso habitacional e serviços complementares.

Apresenta excepcional localização, defronte a um dos principais

corredores de tráfego da cidade, norte-sul, a três grandes estações de transportes públicos, as Estações da Luz e Júlio Prestes da CPTM, e a Estação Luz do Metrô, propiciando rápido acesso a todas as regiões da cidade, sem relação com o tráfego de automóveis.

Acreditamos ser esta uma interessante oportunidade de consolidação

de sua destinação, atendendo à crescente demanda que vem se configurando atualmente na região central da cidade de São Paulo.

2. CARACTERIZAÇÃO PRELIMINAR DO IMÓVEL

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O edifício objeto deste estudo localiza-se à Rua Mauá, 342 a 360, na

quadra formada ainda pela Rua General Couto de Magalhães, Rua Washington Luiz e Avenida Cásper Líbero, na região central do município de São Paulo.

Construído para finalidade hoteleira em meados da década de 1960,

com estrutura convencional de concreto armado e alvenaria, o edifício é composto de pavimento térreo onde se localizam o acesso de pedestres, áreas livres cobertas de uso comum, e área de lojas, mais seis pavimentos residenciais, servidos por dois elevadores, e laje de cobertura de uso comum, não apresentando espaço para estacionamento de automóveis.

Encontra-se implantado em bloco único, recuado cerca de 14 metros

em relação ao alinhamento da Rua Mauá, junto aos alinhamentos das divisas laterais, e recuado nos fundos entre 15 e 22 metros, num terreno plano com 2.080,00 m2, com testada de 26 metros para a referida Rua Mauá.

Ocupa a área de terreno em aproximadamente 1.440 m2, sendo 380 m2

com um pavimento, onde se localizam as lojas, 1.060 m2 de projeção com sete pavimentos (T+6) e 640 m2 livres de ocupação, na parte dos fundos, totalizando a área construída de aproximadamente 7.800 m2.

O imóvel encontra-se atualmente cadastrado junto à municipalidade com

o número de contribuinte 001.019.0082-1, com valor venal de R$ 4.718.862,00, onde consta a área construída total de 6.214 m2, constando ainda inscrito na dívida fiscal do município com o montante de R$ 2.285.318,95, relativos a tributos e taxas não pagas pelos proprietários desde 1974.

O edifício é de propriedade de pessoa física única ou herdeiros, e objeto

da transcrição nº20.895 de 1945 junto ao 5º registro imobiliário da capital.

1. ANÁLISE DOS ASPECTOS LEGAIS PERTINENTES

a. Direito Fundamental à Moradia

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O Direito à Moradia, ou como sugere Rolnik(1), o “Direito Fundamental à moradia adequada como condição da dignidade humana", teve o seu reconhecimento formal inicialmente no âmbito internacional em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário, onde, principalmente em seu artigo 25º, expressa que “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis...”

Posteriormente, ainda no campo internacional, dentre as diversas Declarações e Tratados internacionais que versam sobre o Direito à Moradia e das quais o Brasil é signatário, devemos destacar o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), em 1966; as diversas Observações-Gerais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Cdesc), entre 1991 e 2000; a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (Habitat I), em 1976; a Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em 1992 e a Agenda Habitat II de Istambul em 1996. Por exemplo, pelo artigo 11º do Pidesc, o Estado Brasileiro se compromete a "utilizar todos os meios apropriados para promover e defender o direito à moradia e proteger contra os despejos forçados".

No âmbito nacional, a inclusão expressa deste direito no rol dos Direitos Fundamentais elencados pela Constituição Federal de 1988, ocorreu apenas em 2000, com a Emenda Constitucional nº26, quando houve o reconhecimento expresso do Direito à Moradia como um Direito Social, o que importa não apenas dizer se tratar de um Direito Fundamental, mas implicar ao Estado a responsabilidade e a obrigatoriedade jurídica na sua efetivação, e não apenas um compromisso moral. O Direito à Moradia, tem, portanto, natureza constitucional, e compõe, desta forma, o núcleo dos Direitos Sociais Fundamentais garantidores do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um dos princípios fundamentais da República Brasileira.

Um dos maiores obstáculos à efetivação do Direito à Moradia nas grandes cidades brasileiras é a prática da especulação imobiliária, quando um imóvel permanece inutilizado, descumprindo sua Função Social, e em progressivo processo de deterioração, com a única finalidade de agregar valor em função dos investimentos públicos em infra-estrutura urbana realizados ao seu redor, e assim gerar um grande lucro a seus proprietários. A especulação imobiliária é, portanto, uma forma indireta e desigual de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, e fator preponderante na segregação sócio-espacial e periferização das cidades, gerando a necessidade de maiores investimentos públicos.

Por outro lado, visando evitar o desvirtuamento da propriedade em puro benefício particular de poucos, a Constituição Federal, em seus artigos 5º e 170º, determina que seja obrigação do proprietário providenciar para que a propriedade atenda sua Função Social, sem a qual o Direito à Propriedade não pode existir.

Descumprida a Função Social, a propriedade deixa de ser resguardada pelo Direito, tendo em vista que se descaracteriza enquanto Direito Fundamental. O Direito Fundamental à propriedade está condicionado ao exercício da Função Social, de forma que não se pode deixar de exercê-la, sob pena de estar deslegitimada a propriedade, e ser plenamente possível a

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desapropriação.

Dispõe o artigo 182º da Constituição Federal, que a política de desenvolvimento urbano será executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em Lei, e tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Em seu parágrafo 2º define que a propriedade urbana cumpre sua Função Social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor Municipal.

A Lei referida na Constituição foi consolidada e promulgada em 2001, sob nº. 10.257, denominada Estatuto da Cidade, e estabelece como uma das principais diretrizes da Política Urbana Nacional, entre outros importantes instrumentos, o combate à especulação imobiliária. Por outro lado, determina que a Função Social da propriedade seja definida pelos Planos Diretores, cuja atribuição está restrita à esfera municipal.

O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, instituído através da Lei Municipal 13.430 de 2002, em seus artigos 11º, 12º, 200º e 201º, e a Lei 15.234 de 2010, definem, por sua vez, e caracterizam a Função Social da propriedade urbana, e prevêem, no seu descumprimento, a aplicação dos instrumentos urbanísticos preconizados no Estatuto da Cidade, entre eles o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo, e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.

Por sua vez, a Lei Federal 11.124 de 2005,  instituiu  o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, com o objetivo de viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável,  implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda  e  articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos das esferas federal, estadual e municipal que desempenham funções destinadas a implementar políticas habitacionais direcionadas à população de menor renda, através da utilização de recursos do FAT, do FGTS e do FNHIS, entre outros. 

b. Legislação urbanística e edilícia municipal Entretanto, cabe também analisar o empreendimento pretendido

para o imóvel em questão à luz da legislação urbanística que determina sua compatibilidade em termos de uso e ocupação do solo no município de São Paulo, mais precisamente a Lei 13.885/2004, que define o seu Zoneamento, e classifica este imóvel como inserido em Zona de Centralidade Polar, denominada SÉ – ZCPa/02.

A Zona de Centralidade Polar caracteriza as regiões da cidade passíveis

de maior adensamento, em função da existência ou previsão de infra-estrutura urbana adequada à sua expansão em termos construtivos e populacionais.

Tal classificação, tendo em vista novas edificações, implica na imposição

dos seguintes parâmetros de ocupação:a. Coeficiente de aproveitamento máximo : 2,5

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b. Taxa de ocupação máxima : 0,7c. Taxa de permeabilidade mínima : 0,15c. Gabarito de altura máximo : Sem limite Considerando-se, entretanto, a finalidade pretendida para o imóvel em

estudo, deverá esta ser norteada pelo Decreto municipal nº 44.667 de 2004, e suas alterações e complementos, que estabelecem os critérios urbanísticos e de edificação para elaboração e implantação de Empreendimentos Habitacionais de Interesse Social - EHIS, Habitação de Interesse Social - HIS e Habitação do Mercado Popular – HMP, seja pela iniciativa pública, ou privada através de convênio.

O referido decreto e suas alterações, especialmente em seu capítulo

III, normatiza a implantação de EHIS em outras zonas da cidade que não as ZEIS, impondo, por exemplo, a limitação de 300 unidades habitacionais por empreendimento, e a área privativa máxima da unidade habitacional em 50 m2, com apenas um sanitário, permitindo outros usos no empreendimento, compatíveis e complementares ao uso habitacional.

O artigo 50º do referido decreto trata especificamente da reforma e

recuperação de edificação existente, onde expressa que, “nas edificações existentes a serem reformadas e recuperadas para HIS, com ou sem mudança de uso, poderão ser aceitas, a critério da CAEHIS, soluções que não atendam integralmente às disposições previstas neste decreto, desde que não sejam agravadas as condições de salubridade e habitabilidade, e a edificação seja adaptada às condições de segurança previstas na legislação municipal”. O mesmo decreto, em seu artigo 98, define as atribuições e reorganiza o funcionamento da Caehis, Comissão de Avaliação de EHIS, vinculada à Secretaria de Habitação do Município.

2. ANÁLISE DOS ASPECTOS FÍSICOS DO EDIFÍCIO

O edifício objeto deste estudo foi construído por iniciativa particular para fins hoteleiros em meados da década de 1960, apresentando estrutura convencional de concreto armado e vedações internas e externas em alvenaria de tijolos.

Constitui-se num único bloco, ocupando a parte central do terreno,

com um grande pátio interno. Os pavimentos, constituídos de lajes totalmente compartimentadas, sem vãos livres, são compostos basicamente, e em números aproximados, por:

- um pavimento térreo, com 1.440 m2, ocupando a parte central e

frontal do terreno, onde se localiza o acesso à Rua Mauá, com áreas livres cobertas e áreas de lojas;

- seis pavimentos residenciais, com cerca de 1.060m2 cada, totalizando a área de 6.360m2;

- Ático, com cerca de 24m2;- Lajes de cobertura. A edificação possui área total construída de aproximadamente 7.800m2,

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ocupando a área do terreno plano de 2.080m2 em cerca de 1.440m2, com testada de 26,00 metros para a Rua Mauá.

Apresenta bom estado geral com relação à superestrutura e alvenarias,

não indicando qualquer patologia importante neste sentido, visto que não apresenta trincas, fissuras ou corrosão das armações que sugiram qualquer comprometimento estrutural. A maior parte da cobertura do último pavimento não possui laje, apresentando forro de estuque.

Deverão ser desprezadas e totalmente refeitas, em razão de seu estado

de deterioração e adequação ao novo uso, todas as suas instalações hidráulicas e sanitárias, instalações elétricas, equipamentos em geral, como bombas e elevadores, assim como substituídas todas as esquadrias de portas e janelas, e grande parte dos revestimentos de piso e de paredes internas e externas.

Em suma, a reforma necessária à revitalização do edifício e sua

adaptação ao novo uso pretendido, aproveitará apenas a sua estrutura, as alvenarias e parte dos revestimentos.

3. ANÁLISE DOS ASPECTOS ECONÔMICOS

a. Avaliação expedita do imóvel

Tendo em vista o atual aquecimento do mercado imobiliário na região central da cidade, principalmente no aspecto relativo à demanda por habitação popular, em razão da grande oferta de recursos financeiros públicos para essa faixa do mercado, bem como em razão dos grandes investimentos públicos realizados e previstos nessa região da cidade, verifica-se recentemente um significativo aumento na expectativa de preços unitários sendo praticados no mercado imobiliário.

Por este motivo, e em função das razões já expressas neste estudo,

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principalmente quanto à necessária destinação social da propriedade, não será adotado nesta avaliação o método comparativo de dados de mercado, sendo mais adequado neste caso o Método de Custo de Reprodução.

O Método de Custo de Reprodução, previsto nas normas relativas à avaliação de imóveis urbanos, entre estas a NBR 14.653, e a NBR 12.721, bem como atende às Normas para Avaliação de Imóveis Urbanos do IBAPE, consiste na determinação do valor (Cr) para a reedição da edificação em estudo, sendo, neste caso, acrescido do valor do terreno onde se encontra implantada, e deduzido o valor de todas as partes inservíveis e deterioradas, além da aplicação de fator de depreciação, dada a total obsolescência e impossibilidade de utilização do imóvel atualmente.

Assim sendo, adotamos os seguintes paradigmas:

1. Valor unitário do terreno (Vt): R$ 1.620,48/m2 - Planta Genérica de Valores do Mun. de S. Paulo para 2011 (Lei 15.044/09 e Decr. 52.007/10);

2. Área total do terreno (At): 2.080,00 m2

3. Área global da edificação (Sg): 7.800 m2; 4. Custo Unitário Básico de construção (CUB): R$ 934,14/m2 - Padrão Comercial

Normal (CSL-8N) - Maio/2011 - Sinduscon-SP;

5. Dedução (Dd) das partes inservíveis do imóvel: Considera-se nesta avaliação apenas os custos de reprodução da infra-estrutura e fundações (9%), superestrutura (25%) e fechamentos em alvenarias (12%), representando 46% do custo total de reprodução;

6. Fator de depreciação (Dp), em razão da obsolescência do imóvel, estimado

em 0,60 sobre as partes consideradas na avaliação. Desta forma temos que: Cr = (Vt x At) + [{(Sg x CUB) x Dd} . Dp]; Cr = (1.620,48 x 2.080) + [{(7.800 x 934,14) x 0,46} x 0,60]; Cr = 3.370.598 + [{7.286.292 x 0,46} x 0,60]; Cr = 3.370.598 + [3.351.694 x 0,60]; Cr = 3.370.598 + 2.011.016,60;

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Cr = 5.381.614,60. Portanto, O Valor Total do Imóvel determinado nesta avaliação, envolvendo o valor do terreno e o valor das partes servíveis da edificação, para a data de junho de 2011 é, em números aproximados, de: R$ 5.381.000,00 (Cinco milhões, trezentos e oitenta e um mil reais). b. Características básicas da intervenção

O edifício objeto deste estudo apresenta as seguintes áreas, aqui

apresentadas de forma estimativa, pois somente serão definidas com a elaboração do respectivo projeto:

Área total construída : 7.800 m2Área total construída computável : 7.200 m2Área total privativa : 6.000 m2

sendo : área passível de outros usos : 200 m2 área privativa residencial : 5.800 m2

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Parece-nos evidente a implantação do uso residencial na torre existente, envolvendo 5.800m2 de área privativa, bem como apresenta-se como bastante viável e interessante a destinação de parte do pavimento térreo, para outros usos, compatíveis e complementares ao uso habitacional, cujos espaços poderão ser gerenciados pelo futuro condomínio, gerando receita para a cobertura das taxas de manutenção.

Apresenta-se também como superável, ou ao menos tolerável, a

inexistência de vagas de estacionamento, tendo em vista a proximidade com os principais meios de transporte de massa da região metropolitana, proporcionando fácil e rápido acesso a todas as regiões da cidade e municípios vizinhos.

Considerando as suas particularidades físicas, a necessidade de ampla

reforma tendo em vista a adaptação do edifício em estudo para o seu novo uso habitacional, e o atendimento das características sócio-econômicas da demanda a ser absorvida pelo empreendimento, bem como as limitações impostas pela legislação municipal, podemos considerar a possibilidade de implantação de 160 unidades habitacionais com a área média de 36 m2, podendo-se admitir variações nas tipologias cujos extremos não ultrapassem a 30 m2, no mínimo, e 42 m2, no máximo.

As experiências anteriores realizadas na cidade de São Paulo neste tipo

de empreendimento, como os edifícios Rizkallah Jorge, Hotel São Paulo e Avenida Ipiranga, demonstram situações muito próximas à esta, apresentando, portanto, um escopo de serviços similar, e apresentaram em média, à sua conclusão, custos totais de intervenção de R$ 750 por metro quadrado, atualizados para a presente data.

Desta forma, considerando o valor médio do custo unitário de intervenção

em R$ 750,00 e a área global de intervenção em 7.800m2, pode ser estimado, com razoável segurança, que o custo da intervenção necessária para adaptação do edifício ao seu novo uso, excluído o custo da aquisição do imóvel, esteja situado em torno de R$ 5.850.000,00 (cinco milhões, oitocentos e cinquenta mil reais).

4. CONCLUSÕES

O presente estudo teve como escopo a análise dos diversos fatores

determinantes na realização do empreendimento pretendido, e após a verificação dos aspectos físicos, legais e econômicos envolvidos nesta operação, conclui pela sua viabilidade.

O edifício em estudo é fisicamente passível de adaptação para a

finalidade de empreendimento habitacional de interesse social, apresentando-se viável a implantação das unidades habitacionais e todas as instalações e equipamentos necessários que garantam a segurança e o conforto dos futuros moradores, inclusive o imprescindível atendimento às normas de proteção contra incêndio.

Com relação aos aspectos legais, também apresenta viabilidade, pois

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reúne todas as premissas necessárias ao atendimento da atual diretriz das administrações públicas no sentido de revitalização da área central de cidade, atende à preconizada destinação social da propriedade, e é passível de atendimento das legislações urbanística e edilícia municipal.

Cabe aqui ressaltar que, para a viabilização do empreendimento, torna-se

imprescindível que a aquisição do imóvel seja efetivada pelo poder público, por meio de desapropriação, tendo em vista o longo e vasto histórico especulativo envolvendo este edifício.

Quanto aos aspectos econômicos, o empreendimento pretendido, a ser

enquadrado como Empreendimento Habitacional de Interesse Social (EHIS) está previsto para comportar 160 unidades habitacionais.

Considerando, portanto, o custo de aquisição do imóvel estimado em

R$ 5.381.000,00, e o custo total de intervenção estimado em cerca de R$ 5.850.000,00, temos como custo global direto da operação o valor aproximado de R$ 11.231.000,00 (onze milhões e duzentos e trinta mil reais).

Apresenta-se o empreendimento pretendido, portanto, passível de

enquadramento nos atuais programas federal e estadual destinados à produção de habitação para a população de baixa renda, com um custo médio de R$ 70.193,75 por unidade habitacional.

Arq. Waldir Cesar Ribeiro

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