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UNIVERSIDADE DE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA PPGH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM HISTÓRIA PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970. FEIRA DE SANTANA/BA 2014

olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

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Page 1: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

UNIVERSIDADE DE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

PPGH – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

MESTRADO EM HISTÓRIA

PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES

OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS

DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970.

FEIRA DE SANTANA/BA

2014

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PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES

OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS

DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970.

Dissertação apresentada como exigência parcial do grau de mestre em História à banca examinadora da Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite.

FEIRA DE SANTANA/BA

2014

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PABLO MICHEL CANDIDO ALVES DE MAGALHÃES

OLHARES DA CIDADE: SENTIDOS E REPRESENTAÇÕES NAS MEMÓRIAS

DAS NAVEGAÇÕES EM JUAZEIRO/BA, DÉCADAS DE 1940-1970.

Dissertação apresentada como exigência parcial do grau de mestre em História à banca examinadora da Universidade Estadual de Feira de Santana, sob orientação do Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite.

Aprovada em 03 de Junho de 2014.

Banca examinadora

Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite (Orientador) Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS Prof. Dr. Aldo José Morais Silva Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS Prof. Dr. Nilton de Almeida Araújo Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF

FEIRA DE SANTANA/BA

2014

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Dedico este trabalho e todos os esforços

em realiza-lo à minha família.

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AGRADECIMENTOS

Enfim, terminado o trabalho árduo de pesquisa, análise, crítica e escrita, é hora de

agradecer a todos que, direta ou indiretamente, foram responsáveis em auxiliar-me

no período de feitura desta dissertação. Olhando todo o período em que me

debrucei sobre a temática e todos os desdobramentos que ela exigiu, noto que, de

fato, não fosse a presença dos queridos amigos, familiares e colegas de trabalho, tal

empreendimento teria sido muito mais difícil de ser realizado.

Agradeço grandemente ao meu orientador, prof. Rinaldo César, pela atenção,

paciência e compreensão, bem como pela grande colaboração que deu em meu

projeto. Pude, neste período de orientações, desenvolver bastante minhas análises

sobre meu objeto, aumentando e muito meu arcabouço teórico. Meu sincero

“obrigado” a este grande professor, pela sua contribuição e pela amizade.

A todos os professores do mestrado em História da UEFS, grandes mestres com

quem pude aprender muito ao longo das disciplinas que cursei, e mesmo nas

conversas informais nos corredores. Todos vocês tem parte importante nesta

dissertação. A acolhida que recebi, a atenção despendida às minhas dificuldades, as

imensas contribuições feitas a este trabalho e à minha formação enquanto

pesquisador/professor, são incomensuráveis. Muito obrigado.

Ao longo destes dois anos de curso, pude conhecer ótimas pessoas, colegas de

turma que, dentro dos debates nas disciplinas, conversas amigas e momentos de

seriedade e diversão, deram significativas contribuições para minha pesquisa. A

estes colegas ilustres de mestrado, devo minha gratidão e a honra de ter

compartilhado tão bons momentos.

Neste processo, nada poderia ser feito sem a participação e o carinho de minha

família. Minha mãe, Cleone Maria, e meus irmãos, Francisco e Bárbara. A amizade e

o apoio neste período foram fundamentais para que eu pudesse dar cabo de todas

as metas a que me propus. Muito obrigado.

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Dedico, neste breve espaço, agradecimento à minha noiva Thuanne Marinho, e toda

a atenção que veio dedicando a mim e à minha carreira. Todos os momentos em

que paciência e carinho foram necessários, ela os praticou. A ela, um afetuoso

agradecimento.

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Há quem busque o saber pelo saber: é uma

torpe curiosidade.

Há quem busque o saber para se exibir: é uma

torpe vaidade.

Há quem busque o saber para vende-lo: é um

torpe tráfico.

Mas há quem busque o saber para edificar, e

isto é caridade.

E há quem busque o saber para se edificar, e

isto é prudência.

(SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, Sobre o

cantar dos cantares, Sermão 36, III).

Page 8: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

RESUMO

O presente estudo visa analisar a relação entre rio e cidade, tendo como espaço a

cidade de Juazeiro/BA, entre as décadas de 1940 e 1970. É objeto de nossas

atenções as relações e práticas de sociabilidades construídas a partir dessa

conexão existente entre o Velho Chico e esta cidade baiana por meio das atividades

fluviais de navegação comercial e de passageiros. Para tal, as percepções,

representações e sensações expressas através dos relatos orais servirão como

peça fundamental dentro das fontes selecionadas para o desenvolvimento de

nossas análises. Além dos depoimentos, realizaremos análise de registros

fotográficos, bem como de fontes jornalísticas, no intuito de construir um panorama

amplo de olhares da cidade sobre as navegações no Rio São Francisco.

Trataremos, também, da questão da memória e da identidade, de que forma o

espaço/tempo aqui delimitado é, também, local de disputas e traumas em torno do

trabalho fluvial e da memória coletiva da cidade de Juazeiro.

Palavras chave: Memória; Identidade; Navegações; Cotidiano.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the relationship between river and city, with the space the

city of Juazeiro / BA, between the 1940s and 1970. It is the object of our attention

relations and sociability practices built from that connection between the Old Chico

and this Bahian city through fluvial activity of commercial shipping and passenger. To

this end, perceptions, representations and feelings expressed through oral reports

will serve as a key player in the sources selected for the development of our analysis.

In addition to the testimony, we will analysis of photographic records, as well as

journalistic sources in order to build a broad panorama of city looks on navigation in

the San Francisco River. We will address also the issue of memory and identity, how

the space / time here delimited is also local disputes and trauma around the river

work and the collective memory of the city of Juazeiro.

Keywords: Memory; Identity; Navigations; Everyday.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – “O tempo voa”: o movimento do salto, a ação do mergulho. Euvaldo

une, numa foto, rio e cidade em uma brincadeira comum aos jovens

juazeirenses.............................................................................................................. 36

Imagem 2 – “Braços que trabalham”: remeiro, carregando a embarcação com

frutas. Cena comum no cotidiano juazeirense.......................................................... 45

Imagem 3 – As ruas de Juazeiro: pavimentação e fachadas imponentes indicavam

uma urbanização sólida em determinados pontos da cidade. A intencionalidade das

áreas retratadas nas imagens visa reforçar essa ideia............................................. 65

Imagem 4 – Rotina dos navegantes: a fumaça que anuncia partidas e chegadas e

a margem do rio repleta de produtos a serem carregados....................................... 71

Imagem 5 – Mapa da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro............................. 93

Imagem 6 – A ponte e a estação ferroviária: o encontro na década de 1950 e o

iminente conflito espacial.......................................................................................... 95

Imagem 7 – O progresso nas rodas dos automóveis: a rodovia segue seu

rumo.......................................................................................................................... 99

Imagem 8 – A vida que agita o cais: os trabalhos das navegações compõem o

quadro cotidiano captado na imagem, antes da construção da ponte.................... 104

Imagem 9 – Praça São Tiago Maior: carros dominam a paisagem onde antes as

atividades fluviais ocupavam espaço...................................................................... 106

Imagem 10 – “Peito de aço”: remeiro, motor a óleo diesel e velas figuram numa

mesma imagem, capturada no cais de Juazeiro/BA............................................... 111

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................

1. À SOMBRA DO JUAZEIRO, O VELHO CHICO DOS NAVEGANTES E

SUA RAINHA........................................................................................................

1.1 Às margens do Velho Chico, o Juazeiro dos navegantes...............................

1.2 A cidade, o rio e os espaços urbanos que os unem.......................................

1.3 Usos e representações das navegações e do São Francisco no imaginário

juazeirense......................................................................................................

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2. NAVEGAR É PRECISO, VIVER TAMBÉM! SUOR, VIDA E AMORES NAS

MEMÓRIAS DE EX-TRABALHADORES DAS NAVEGAÇÕES.........................

51

2.1 O ingresso nas atividades fluviais, para além do amor ao ofício ou a falta

de alternativas.......................................................................................................

57

2.2 Condições de trabalho, remuneração e a alegria do comércio juazeirense!..

2.3 “Nem tudo era permitido!” Paixões, brigas e cabarés nas viagens pelo

Velho Chico...........................................................................................................

3. TRAUMAS PARA UNS, ALEGRIAS PARA OUTROS: AS

TRANFORMAÇÕES NOS TRABALHOS FLUVIAIS.

3.1 De depósitos a casas comerciais: as transformações na orla fluvial de

Juazeiro nas décadas de 1950, 1960...................................................................

3.2 Motores a óleo diesel e a agonia dos vapores................................................

3.3 O porto de Juazeiro e as disputas pela hidrovia.............................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................

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136

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INTRODUÇÃO

Passos que andam lentamente pelas ruas; passos que correm, acelerados, por

sobre as pedras dos calçamentos; passos que esperam quem se foi; passos que

voltam para quem ficou. Ao longe, apitam os vapores, gritam os remeiros; pode-se

ouvir o farfalhar das velas dos barcos; cascos singram as águas do Velho Chico,

nem sempre calmas, nem sempre revoltas, mas sempre local por onde velejam as

embarcações do Juazeiro. Logo, todos os passos se agitam, e até aqueles mais

apressados encontram no cais um local de repouso. Pelas embarcações que

chegam, rio e cidade se encontram, proporcionando uma conexão dos passos do

cais com os passos a bordo. Passageiros, tripulantes, produtos da terra, bens

industrializados e manufaturados, combustível, e uma infinidade de outros produtos;

notícias, fuxicos, informações, boas e más novas; todos estes elementos sobem e

descem as rampas de acesso da cidade, promovendo o barulho, a movimentação, o

comércio, atingindo a atividade humana cotidiana dos juazeirense.

Ao som do apito do vapor, agitação, vozes, sacos, redes, trouxas de roupa e

fumaça. Pessoas descem a rampa da orla em direção às águas do rio, onde os

“gaiolas” aguardam carregamento. Homens sobem e descem das embarcações

atracadas carregando lenha e algodão, sal e feijão, sob o sol a refletir-se no espelho

d’água do Velho Chico. Mulheres, a bordo, armam as redes e observam o ir e vir

enquanto amamentam seus bebês. Mais fumaça, e outro apito: hora de partir. Moços

de convés utilizam varas para empurrar as embarcações, tirando-as da margem,

enquanto os últimos “adeuses” são dispensados por quem fica e por quem parte.

A cena descrita acima (salvaguardando a licença imaginativa) apresenta, ainda

que resumidamente, o cotidiano das navegações na cidade de Juazeiro-BA. O

constante embarcar e desembarcar, as trocas comerciais, as viagens de quem parte

e quem chega, os observadores que acompanham os trabalhos em terra firme - as

navegações se integram ao cotidiano da urbe juazeirense.

Destarte, o presente estudo visa refletir sobre as memórias das navegações e

a relação cidade/hidrovia do ponto de vista do cotidiano urbano, a partir dos relatos

de juazeirenses que ou trabalharam em embarcações, ou utilizaram dos serviços

fluviais de transporte, ou mesmo que puderam observar as atividades na orla, entre

as décadas de 1940 e 1970 (recorte temporal que compreende o advento dos

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motores a óleo diesel, o abandono, na atividade comercial, das embarcações “roda-

popa” movidas à lenha, a construção da ponte Presidente Dutra e o I Seminário da

Bacia do São Francisco), relacionando-as à formação das identidades sociais em

Juazeiro/BA por meio da análise das memórias dos nossos entrevistados.

Faz-se necessário aqui, neste capítulo introdutório, realizar um

questionamento: quais os elementos que constituem a identidade de uma

comunidade? A pergunta, que nada tem de simples, abre um leque enorme de

possibilidades, como o trabalho, as relações interpessoais, a dinâmica entre classes;

dessas, a memória, coletiva e particular, aparece como um dos pilares nesse

processo. Concordando com a reflexão de Michael Pollak, podemos concluir que “a

memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual

como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante

do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo”

(POLLAK, 1992, p. 204), apesar de vivermos um momento em que o imediatismo e

a constante mudança na sociedade coloque o passado e sua memória em um

sentido negativo, como se o ‘antigo’ fosse a extrema antítese do ‘novo’, e entre os

dois não existisse qualquer ligação.

Nesse contexto, a história oral nos permitiu que a presente pesquisa pudesse

analisar os depoimentos dos entrevistados, seus silêncios, revelações e

recordações, como importante ferramenta para a compreensão da construção da

identidade, não de uma maneira pronta e acabada, mas como uma nova

perspectiva, que contribuirá para demais trabalhos engajados na resolução da

problemática da identidade e memória em Juazeiro/BA. Assim, “a história oral pode

resultar não apenas numa mudança de enfoque, mas também na abertura de novas

áreas importantes de investigação” (THOMPSON, 2002, p. 27).

No processo de coleta destas narrativas, utilizamos perguntas temáticas

previamente elaboradas; entretanto, nos demos a liberdade de realizar novos

questionamentos ao longo das entrevistas, de acordo com o caminhar das

rememorações dos depoentes. Servindo de guia para nossas coletas, utilizamos

obras de autores que versam sobre os usos da História Oral, como Antônio Torres

Montenegro, Paul Thompson, Ecléa Bosi e Alistair Thomson. As memórias narradas,

mas, também, os silêncios e hesitações em rememorar, olhares, risos e sorrisos,

vozes embargadas: todos esses elementos, observados pelos autores em suas

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pesquisas, foram fundamentais para a análise e compreensão dos depoimentos

coletados no presente trabalho.

A memória que aqui analisaremos, sobre as navegações, é encarada como

tendo sido um dos pilares constituintes no processo de formação da identidade

social de parte da população idosa de Juazeiro/BA, não o único. Portanto, o

presente estudo, tendo em vista este caráter, buscará realizar uma contribuição

significativa para abertura de um promissor campo de pesquisas acadêmicas na

região, especialmente trabalhos históricos e sociológicos, sobre o fenômeno de

formação da identidade social e cultural no médio São Francisco, onde os demais

elementos desse processo possam tomar novo relevo.

Dentro dos aportes metodológicos elaborados para nosso estudo, buscamos

refletir sobre o binômio identidade social e memória, tendo com base os escritos

de Zygmunt Bauman, Michael Pollak e Mirian Sepúlveda dos Santos. Ao utilizarmos

as fontes orais, temos como premissa básica de que “o ato de recordar é tanto uma

forma de percepção quanto de reconhecimento” (SANTOS, 2003, p. 54). A frequente

resposta para a pergunta “quem sou eu?” requer, daquele que responde, um

autoconhecimento que o permita, dentro de suas rememorações, encontrar a

resposta. Não consideramos, entretanto, que as identidades em questão sejam

todas sólidas e imutáveis, e que não sofram transformações a partir de novos

contatos e novas percepções, por parte do indivíduo, do meio. Dentro de nossas

análises, pudemos ter contato com narrativas que apresentaram estas

possibilidades.

Sabemos que “a memória faz parte de conhecimento e reconhecimento do

mundo e de que este processo se define pela busca de sentido” (SANTOS, 2003, p.

58). Essa busca de sentido é, a priori, parte de um processo íntimo e individual e, ao

mesmo tempo, construído coletivamente na relação com outros indivíduos (POLLAK,

1992, p. 201). Sendo um processo, dificilmente podemos assinalar um início e um

fim que o delimitem, caracterizando-se como um “fazer-se” constante, gradual,

íntimo e, ao mesmo tempo, coletivo, uma vez que o indivíduo não está

desconectado da sociedade. Seguindo este pressuposto, “o que está em jogo na

memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” (POLLAK, 1989, p.

10).

De tal modo, consideramos também que a identidade reconhecida pelo

indivíduo através de suas rememorações faz parte de um conjunto de escolhas, que

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o aproximam do ideal de pertencimento que possui. O modo como se relaciona, as

experiências que desenvolve dentro da sociedade, a forma pela qual apreende e

sente o grupo ao seu redor, são fundamentos importantes nesta construção.

Definimos, assim, que

o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha,

não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e

revogáveis, e [...] as decisões que o próprio indivíduo toma, os

caminhos que percorre, a maneira como age [...] são fatores cruciais

tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’ (BAUMAN,

2005, p. 17).

Mas não apenas perscrutamos as memórias como elementos desconexos das

falas de nossos depoentes. Essas memórias e essas identidades em questão estão

atreladas a um espaço definido, que é a cidade de Juazeiro e mais precisamente o

espaço urbano responsável pela comunicação rio/cidade, palco das práticas de

sociabilização proporcionadas pelas navegações pelo São Francisco. Neste local,

tanto as águas do Velho Chico e as transformações pelas quais a sua hidrovia passa

dentro de nosso recorte temporal, quanto os prédios, calçadas, paralelepípedos e

asfaltos do complexo de ruas que se comunicam com o cais e o rio, e também suas

modificações, são elementos fundamentais para a reflexão, compreensão e

problematização das narrativas fornecidas pelas testemunhas vivas. Assim, dentro

do “fazer-se” das identidades, dentro do rememorar de cada fala coletada, “incluem-

se evidentemente os monumentos, [...] o patrimônio arquitetônico e seu estilo, que

nos acompanham por toda a nossa vida” (POLLAK, 1989, p. 3), e que são

responsáveis por imprimir em cada indivíduo marcas visuais, provocando

sensações. Tais “imagens urbanas trazidas pela arquitetura [...] têm, pois, o

potencial de remeter também, tal como a literatura, a um outro tempo. [...] O espaço

urbano, na sua materialidade imagética, torna-se, assim, um dos suportes da

memória social de uma cidade” (PESAVENTO, 2002, p. 16).

Daremos, ao longo da narrativa, preferência pela utilização do termo

identidades, uma vez que tratar deste tema no singular excluiria diversas

possibilidades de compreensão dos vários sujeitos em questão e suas experiências

particulares. Partindo da ideia de que as identidades não são sólidas e rígidas, e

referem-se à frequente pergunta “quem sou eu?”, buscaremos em nossas pesquisas

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compreender de que maneira os indivíduos, diante das modificações comerciais e

sociais na atividade de navegação, puderam construir e reconstruir suas próprias

identidades na relação com a cidade de Juazeiro. A análise dos seus discursos

proporcionará ao leitor um maior conhecimento acerca das particularidades destes

indivíduos, bem como significará cada ótica utilizada, dando-lhes sua respectiva

importância.

Dentro da relação rio/cidade, das memórias e identidades dos indivíduos

inseridos neste laço de sociabilidades, buscaremos também refletir sobre o cotidiano

urbano juazeirense e o modo como este reflete elementos conectados às

navegações do São Francisco. Aqui, autores como Manuel Castells, José

D’assunção Barros e Michel de Certeau serão fundamentais, principalmente no que

tange à compreensão de termos como lugar e espaço, que serão utilizados em

nossas análises: lugar, enquanto ordem na qual se distribuem os elementos nas

relações de coexistência, e espaço como um lugar praticado, vivido, compartilhado.

As relações fazem de um lugar um espaço. Ao longo das reflexões sobre as

navegações no cotidiano de Juazeiro, utilizaremos esses conceitos em nossas

análises.

Sabemos que a Historiografia da região é ainda muito carente de trabalhos

científicos, prevalecendo livros de cunho biográfico ou literário. Dentro desta esteira,

este estudo apresenta-se como uma nova oportunidade não só para explorar o

campo dos estudos regionais, mas também para contribuir com os estudos sobre a

formação da identidade social e cultural no médio São Francisco nordestino.

Mesmo possuindo uma história e uma memória muito ricas, as navegações

comerciais e de passageiro ainda configuram-se como campo pouco abordado

academicamente. O campo literário local, em contraponto, nos apresenta uma

profusão de obras predominantemente memoriais e/ou biográficas sobre este

assunto, fator que, malgrado a ausência do rigor teórico metodológico da academia,

fornece uma importante contribuição para a construção do conhecimento histórico

da localidade.

Assim, também damos espaço para os cronistas juazeirenses, e através de

análises do discurso por eles impresso através das linhas de suas obras, utilizamos

suas óticas enquanto perspectivas sobre nosso objeto de estudo, salvaguardando

suas intencionalidades.

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Sabedores disto tudo, convidamos vocês, caros leitores, a navegar conosco

por estas águas milenares, aproveitando o balanço leve da barca e observando cada

detalhe da nossa pesquisa. Tão logo, caminhamos pela cidade, e fazemos do nosso

traçado um diálogo entre o rio e a urbe, analisando por meio das fontes as formas de

interação proporcionadas pelas navegações na cidade de Juazeiro.

No primeiro capítulo, teremos como objetivo refletir sobre a atividade de

navegação no São Francisco e sua relação com a cidade de Juazeiro. Deste modo,

será nosso intuito observar a relação entre o espaço urbano e os trabalhos fluviais

em torno das embarcações e seu comércio no São Francisco. Faremos uso de uma

breve explicação acerca das navegações em fins do século XIX, aproveitando os

olhares fornecidos por navegantes técnicos do rio São Francisco, a saber os

engenheiros Halfeld e Teodoro Sampaio, problematizando suas observações e

perspectivas fornecidas em seus relatórios sobre a localidade, e sua relação com o

crescimento econômico e urbano da cidade de Juazeiro, até a década de 1940.

Também comporá nossos objetivos neste capítulo a realização de análises

sobre a disposição urbana juazeirense na região do cais, com a utilização de

registros fotográficos, promovendo um enfoque sobre o espaço de conectividade

entre rio/cidade e de que modo a construção das práticas neste local, dentro do

contexto das atividades de navegação, se interligavam com o cotidiano urbano.

Inserido neste processo, ressaltamos a importância dos depoimentos coletados de

ex-trabalhadores de vapores e barcas e de usuários dessas mesmas embarcações,

além de pessoas que simplesmente conviveram com o dia-a-dia dos trabalhos

fluviais, servirão como aportes a serem utilizados com o intuito de realizar um

diálogo com as fotografias analisadas.

O segundo capítulo se encarregará de tecer uma análise sobre as vidas de ex-

trabalhadores fluviais juazeirenses, ativos entre as décadas de 1940 e 1970,

aproveitando de seus olhares elementos que nos elucidem informações sobre o

sobreviver através da atividade com o rio. Sabemos que este período compreende

um momento de transformações nos trabalhos desenvolvidos no Velho Chico, a

saber: o advento dos motores movidos a óleo diesel, a obsolescência dos navios

roda-popa movidos a vapor, construção da ponte Presidente Dutra, o advento das

rodovias e as disputas em torno dos transportes de produtos da região. Assim,

destacamos este como um momento chave de reordenamento das relações

econômicas e sociais em Juazeiro e região. Assim, refletindo sobre as falas dos

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entrevistados, daremos destaque às suas lembranças, silêncios e sentimentos

contidos em suas narrativas. Além dos registros orais, faremos uso do livro do

cronista juazeirense Ermi F. Magalhães, também ex-navegante do São Francisco, e

que reúne em grande parte suas recordações sobre seu trabalho com o Velho

Chico. As reflexões e observações ao longo deste capítulo comporão uma análise

sobre as identidades em questão, a partir das memórias narradas pelos sujeitos e

dos elementos que estes trazem à tona ao recordar seu trabalho, o convívio familiar

e a vida na cidade de Juazeiro.

Em nosso terceiro capítulo, daremos conta das modificações que perpassaram

pelas décadas de 1950, 1960 e 1970 na atividade de navegação e, principalmente,

de como os entrevistados (ex-trabalhadores e usuários de embarcações)

apreenderam e compreenderam esse processo. Significativas transformações, como

a construção da ponte Presidente Dutra e a nova organização da orla fluvial

juazeirense, juntamente com o advento dos motores a óleo diesel, a diminuição do

tempo das viagens proporcionada pela rodovia e os debates do Seminário da Bacia

do São Francisco, em 1975, que discutia a construção de barragens e o controle dos

níveis do Velho Chico, foram fundamentais no período aqui estudado. Assim, diante

desse quadro, como as pessoas envolvidas com as navegações puderam sentir (se

sentiram) e compreender (se compreenderam) esses novos elementos configura-se

como questionamento principal neste ponto.

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1. À SOMBRA DO JUAZEIRO, O VELHO CHICO DOS NAVEGANTES E SUA

RAINHA.

A curiosidade nasce da observação, e dela, por conseguinte, a inquietação

diante do objeto em evidência. O convite, aqui, é para sentar à sombra do juazeiro,

vislumbrando a cidade na atualidade e toda a atividade humana que a movimenta

diariamente; vamos observar o quadro que nos move a empreender esta pesquisa.

Podemos ver embarcações e pessoas, água e terra, rio e cidade; do seu

encontro, a navegação, a travessia, a pesca, o lazer, o banho. Pessoas debruçadas

no parapeito da orla miram as águas que vão, descansam a vista, ou mesmo

observam se a barca vem de volta, trazendo pessoas, buscando pessoas. Barulhos,

sons, vozes, vida urbana. O comércio funciona a pleno vapor, e os carros singram

as ruas, velozes, apressados. A ponte, elo entre pernambucanos e baianos,

petrolinenses e juazeirenses, assiste ao ir e vir rodoviário, em movimento intenso.

Sobre o balanço das águas, pescadores realizam, pacientemente, seu ofício

centenário, à espera dos cardumes são franciscanos. Num vagar contínuo, passos

são ouvidos, cruzando a orla em sentidos diversos, conduzindo os pés pela vida

ordinária na urbe.

Eis uma imagem do cotidiano de quem vive na cidade ribeirinha de Juazeiro,

na Bahia. Neste município do norte do estado, com população de 214.748, estimada

pelo INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) em 2013,

a cidade mantém com o rio um diálogo diário. Não à toa, sua principal atividade

comercial caracteriza-se pela utilização das águas do São Francisco, a fruticultura

irrigada, o que propicia a este município, apesar de se localizar no polígono das

secas1, manter uma agricultura regular todo o ano.

No tocante às navegações, estas hoje estão focalizadas nas barcas de

travessia e nos passeios turísticos pelas ilhas e vinícolas da região. Porém, navegar

no São Francisco já foi atividade das mais fundamentais e necessárias para a

economia juazeirense, para além do turismo local. Tudo o que era produzido na

cidade, bem como em várias regiões circunvizinhas, e adicionamos neste bojo os

1 O polígono das secas foi criado por lei de 13/09/1946 regulamentada em 11/12/1968 pelo decreto-lei

nº 63.778. A partir de 11/12/1968, por novo decreto-lei, nº 63.778, a SUDENE passa a ser

responsável por declarar quais municípios fazem parte do polígono.

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estados de Pernambuco e Piauí, além de outras várias vilas que se utilizavam da

estrada histórica entre Bahia e Maranhão, partia via vapor, barca de figura,

empurrador ou chata, para Pirapora, em Minas Gerais, e de lá para os Estados do

sul. Através da hidrovia do São Francisco, artigos advindos da Europa, por exemplo,

abasteciam as lojas juazeirenses; em contrapartida, diversos produtos ribeirinhos

eram levados para os comércios sulistas e para o exterior.

A relação constante com o Velho Chico acabou fazendo com que a cidade se

organizasse de maneira a integrar o rio ao seu centro de forma geográfica, sendo o

cais da cidade uma espécie de extensão do comércio da cidade, além de local de

chegadas e partidas de viajantes. Do mesmo modo, a conexão estabelecida neste

local proporciona a utilização deste como espaço de sociabilidades, palco onde se

desenvolvem as práticas do citadino, seja como participante das atividades (fluviário,

usuário das embarcações), ou mesmo como observador ordinário, transeunte

comum, que tinha no cais um local de passagem e que, ainda assim, acabava

praticando este espaço.

Obviamente, tal relação não nasceu num rompante. Dentro de um processo de

séculos, o aglomerado humano que se constituía às margens do rio construiu, por

meio da relação de subsistência, uma conexão de interdependência com as águas.

Em um espaço geográfico dos mais adversos que é o semiárido, com irregulares

períodos de estiagem, viver nas proximidades de um rio era um privilégio, ou uma

estratégia de sobrevivência por parte daqueles que migravam para o seu leito.

Considerando o acima exposto, neste capítulo buscaremos desenvolver

reflexões sobre a atividade de navegação no São Francisco e sua relação com a

cidade de Juazeiro. Assim, abordaremos a relação entre a urbe juazeirense e a

atividade fluvial dos vapores e barcas e seu comércio no São Francisco, recorrendo

a uma explanação sobre as práticas de navegação, desde fins do século XIX, e sua

relação com o crescimento econômico e urbano da cidade de Juazeiro, até o século

XX. Nesse aspecto, será de fundamental relevância analisar os olhares e

perspectivas de viajantes que realizaram estudos sobre o São Francisco e que

tiveram oportunidade de tecer observações sobre Juazeiro e a forma como esta

(ainda como vila, ou mesmo já como cidade) conectava-se ao trabalho de

navegação fluvial, bem como a maneira pela qual estes visitantes traduziram em

palavras suas impressões sobre o local.

Page 21: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

20

Nesta esteira, também daremos vez e voz aos cronistas locais, na busca por

uma reflexão sobre o olhar particular que estes imprimiram em seus escritos à

história da cidade. Obviamente, como todo documento, estas obras serão

analisadas à luz da historiografia, e suas falas serão encaradas como perspectivas

sobre o objeto analisado, visões, olhares, que compõem o prisma da problemática

aqui trabalhada.

Buscaremos, também, desenvolver uma análise da organização urbana de

Juazeiro, através de registros fotográficos, observando como a cidade e as

atividades de navegação se interligavam, enfocando a região da orla fluvial e sua

função comercial (carregamento de embarcações, compra e venda de produtos) e

social (local de partidas e chegadas, de vislumbre das águas e do vai e vem dos

vapores).

E como perscrutar as sensibilidades daqueles que vemos participar desse

processo? É interessante notar que, ao nos comprometermos em analisar o modo

como rio e cidade mantinham um diálogo constante e construíam de fato um espaço

de práticas cotidianas e de sociabilidades, precisamos dar voz a esses indivíduos,

que iam e vinham, andavam, observavam, amavam, sorriam, choravam neste lugar,

e ouvir o que eles e elas têm a dizer (e não dizer). Nessa perspectiva, os

depoimentos coletados de ex-trabalhadores de vapores e barcas e de usuários

dessas mesmas embarcações, além de pessoas que conviveram, entre as décadas

de 1940 e 1970, com o fluxo constante de subida e descida de embarcações no rio,

serão fundamentais na busca por estas sensibilidades.

Além destes, há ainda uma outra contribuição fundamental para a presente

pesquisa: os cadernos de Maria Franca Pires. Esta professora normalista, nascida

em Remanso-BA, juazeirense por escolha (e paixão, assim podemos dizer), foi

responsável por desenvolver uma série de entrevistas com moradores da cidade, na

década de 1970, explorando suas memórias sobre a vida em Juazeiro. Estas

sessões de conversa foram registradas em uma série de cadernos, prontamente

catalogados e arquivados na UNEB de Juazeiro, sob a organização da Prof.ª

Odomaria Macêdo. O material foi doado post mortem pela família da professora

normalista à universidade.

Em mais de 20 cadernos, Franca Pires anotou os relatos proferidos por seus

entrevistados, versando sobre trabalho, festas, família, o rio e a cidade, dentre uma

série de outras informações. Com essa inestimável contribuição, podemos ter

Page 22: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

21

contato com uma série de sujeitos que viveram dentro de nosso recorte temporal, e

que infelizmente não encontraremos vivos devido à inevitável e inexorável ação do

tempo; além disso, a voz mediadora de Franca Pires, envolvida no processo de

análise dos dados coletados, é significativa dentro deste contexto, e pode fornecer-

nos também suas próprias perspectivas sobre nosso objeto de reflexão.

Por fim, as matérias jornalísticas do período aqui analisado, advindas de

periódicos locais, comporão nosso quadro documental, fornecendo destarte mais um

olhar sobre a cidade, o rio e as sociabilidades construídas nesta relação. Tais fontes

jornalísticas, a serem destrinchadas, analisadas e problematizadas, servirão como

aportes importantes dentro da narrativa.

Sob o sol que ilumina estas adustas terras, ao leve balançar de águas do Velho

Chico, conheceremos um pouco mais sobre esta Juazeiro dos navegantes e

viajantes, ouvindo seus sons e seus silêncios, auscultando com atenção e cuidado a

história nos passos, remadas, apitos de vapores, chacoalhar de carroças, deslizar

de barcas, e toda a atividade humana que, de uma forma ou de outra, mesclava a

urbe às águas, fazendo do rio uma parte da cidade, bem como permitindo Juazeiro e

sua urbanidade navegar por sobre o São Francisco sem, contudo, precisar sair do

lugar.

1.1 Às margens do Velho Chico, o Juazeiro dos navegantes

Nossa caminhada começa às margens do rio, com passos firmes, porém

calmos, sem pressa. Nessa beira do São Francisco, onde a espuma das águas irriga

a areia grossa, Juazeiro viu aportar uma série de pessoas. Indo, voltando,

explorando, construindo, destruindo. O esperado “oásis” do semiárido trouxe para

essa região a atenção de muitos, e a possibilidade de utilização destas águas incitou

uma série de transformações, conflitos e disputas.

Nosso intuito neste ponto é refletir e analisar, junto ao leitor, de que maneira

Juazeiro tornou-se, através das atividades fluviais de comércio e transportes, um

dos entrepostos comerciais de maior relevância entre as demais cidades do Médio

São Francisco. Para tal, desenvolveremos um breve histórico da atividade fluvial na

cidade, a partir de fins do século XIX, com a introdução dos vapores no rio São

Page 23: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

22

Francisco, a diminuição de tempo das viagens e o maior volume de produtos,

transportado com embarcações maiores. Nosso objetivo, aqui, é utilizar este recuo

para introduzir o leitor na problemática da relação rio/cidade; de tal maneira,

concordando com a historiadora Fonseca (2011, p. 31), compreendemos que falar

sobre o “município de Juazeiro é também falar do rio São Francisco, de sua

navegação, [...] e sua importância para essa comunidade”.

Deste modo, o histórico de exploração do rio nos parece fundamental para

compreender Juazeiro e a forma como esta se desenvolveu, beneficiando-se da

hidrovia. Nessa perspectiva, serão fundamentais documentos de cunho técnico,

como o relatório sobre a navegabilidade do São Francisco, desenvolvido pelo

engenheiro Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld, de 1860, e o livro O Rio São

Francisco e a Chapada Diamantina, do engenheiro Teodoro Sampaio, publicado em

1906. Ao longo da escrita, buscaremos analisar como estes dois engenheiros

puderam conceber a região do São Francisco, em especial Juazeiro/BA na segunda

metade do século XIX, e de que forma eles, viajando através do rio, puderam

perceber a navegação fluvial neste período.

Sem sombra de dúvidas, a prática indígena, com a utilização dos ajoujos2, foi

primordialmente um dos elementos principais na construção de uma tradição de

navegação fluvial entre os ribeirinhos do Velho Chico. Em larga escala, os índios

Cariris, que povoavam as terras no entorno do rio, conforme relato do Pe. Martinho

de Nantes, missionário católico na aldeia de Aracapá, próximo à atual cidade de

Cabrobó, do lado pernambucano do rio, em sua obra Relação de uma missão no rio

São Francisco, bem como os Tupinambás, Tapuias e Amaupirás, estes últimos

citados pelo Frei Vicente do Salvador, na obra História do Brasil, representavam os

habitantes mais comumente encontrados pelos exploradores europeus. A

dominação portuguesa da região, em especial das famílias D’Ávila e Guedes de

Brito (FONSECA, 2011), formou uma sociedade, em base, miscigenada, com

elementos oriundos da relação exploratória de europeus para com índios e negros

escravizados e utilizados como mão-de-obra nos currais do São Francisco.

Juazeiro, desde o final dos oitocentos, apresentava grande vocação

comercial e de criação de gado, o que trouxe à região grande

2 Embarcação formada pela junção de duas ou três canoas, emparelhadas e unidas por paus

colocados transversalmente e amarrados com tiras couro cru.

Page 24: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

23

população de mestiços, nômades, vaqueiros que formaram famílias

de pequenos lavradores, mulheres e homens negros. (FONSECA,

2011, p. 26).

Podemos observar, a partir do já exposto, que no processo de colonização e

exploração das águas são franciscanas, a formação dos currais, voltados para a

criação de gado para abastecimento de engenhos e aglomerados urbanos

litorâneos, fomentou a formação também de áreas populacionais no Vale do São

Francisco. Dentro desse contexto, a passagem do Juazeiro, local de tráfego intenso

de tropeiros em direção à estrada primitiva por terra dos primeiros exploradores, que

ligava Bahia e Maranhão, serviu como rota principal, por onde produtos e víveres

eram escoados, além de pousio aos viajantes (GONÇALVES, 1997).

Desta forma, beneficiada pela exploração das águas do rio São Francisco, e

estando na encruzilhada de duas rotas (a hidrovia e a estrada dos tropeiros para os

estados ao Norte), a vila de Juazeiro

ergueu-se como um importante centro econômico do interior, dominando a navegação e o comércio pelo rio, que se estendia pela Bahia e Minas Gerais adentro. A economia do interior do Piauí e de Pernambuco tornou-se também dependente de Juazeiro, por onde os produtos agrícolas, os minerais e outros artigos em geral acabavam passando em sua rota para Salvador e outros pontos do litoral. (CHILCOTE, 1991, p. 57).

É importante notar que, a despeito da recomendação feita pela Coroa portuguesa

a Tomé de Souza, no regimento de 17 de dezembro de 15483 (o memorialista

juazeirense Cunha cita este dado em seus escritos, buscando legitimar a dominação

portuguesa sobre a região), para que seus homens adentrassem o São Francisco e

o explorassem, em pleno século XVI, pouco ou nenhum empreendimento estatal foi

dispensado com o intuito de colonizar as terras às margens do rio, sendo esta

atividade praticada por iniciativas particulares, realizadas com ou sem permissão da

Coroa. Porém, isso não indica que o interesse em torno do Opara indígena não

existisse de todo. Aventureiros de todos os tipos invadiram o vale do rio,

massacrando as populações nativas já existentes, valendo-se do princípio de que,

sendo a terra virgem e disponível, não estando produtivas à ocasião da posse,

3 Este documento está disponível digitalmente no endereço

http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom__de_Souza_0.

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teriam eles o direito de nela fincar sua bandeira (COSTA, 1994). Como bem nos

relata Fonseca (2011, p. 24), “era costume entre os homens de poder do período

colonial no sertão a prática de ocupar terras antes de pleiteá-las pelo regime de

sesmarias ou extrapolar os limites” que a lei impunha. Assim, bastava ao postulante

resistir aos índios e à natureza adversa, para poder tornar-se dono de determinado

pedaço de terra, só posteriormente apresentando junto à Corte requerimento de

posse do local. Os D’Ávila e os Guedes de Brito, casos já citados, foram os

representantes destes exploradores na região de Juazeiro: primeiro ocuparam a

região, partindo do litoral, e só então apresentaram suas petições de posse

(CUNHA, 1978).

No entanto, o aproveitamento do São Francisco e dos recursos dele provenientes

não deixariam de ser assunto de alto interesse econômico por parte de grupos locais

e nacionais, fazendo com que várias expedições fossem empreendidas, em especial

a partir do século XIX, com o intuito de realizar observações, análises e relatórios

sobre a geografia, as relações sócio comerciais, as técnicas fluviais e suas

respectivas embarcações, bem como sobre as riquezas minerais produzidas no vale

do rio. Diferentemente do que vinha sendo praticado durante o período colonial

brasileiro, no cerne destes estudos estava a questão da utilização da hidrovia,

através de investimentos imperiais, como canal de tráfego de pessoas e produtos,

tendo com questão principal especular a possibilidade de introdução, por exemplo,

de embarcações maiores, como os vapores roda-popa, gestados eventualmente por

companhias de navegação estatuídas. O esforço girava em torno da sistematização

de uma atividade já há muito empreendida pela população ribeirinha do Vale, e

reportada pelos viajantes dos séculos XVIII e XIX, a navegação fluvial.

Em destaque, trataremos de dois relatos destas expedições científicas ao Vale

do São Francisco: o primeiro, fruto da viagem empreendida pelo engenheiro civil

Henrique Guilherme Fernando Halfeld por ordem do imperador do Brasil, Pedro II,

na década de 1850; o segundo consiste nas anotações do então jovem engenheiro

Teodoro Sampaio, membro integrante da Comissão Hidráulica, criada pelo

conselheiro Cansanção de Sinimbu e capitaneada pelo americano William Milnor

Roberts, entre as décadas de 1870 e 1880. O fato de receberem destaque aqui não

significa que tenham sido as únicas, muito menos as maiores ou melhores

expedições feitas. Explorá-las com mais atenção deriva do fato de que tanto Halfeld,

quanto Sampaio, puderam observar e registrar a relação entre rio e cidade,

Page 26: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

25

registrando percepções acerca das navegações no São Francisco, em momentos

distantes trinta anos entre si, fornecendo impressões valiosas para nossas reflexões.

Compreendendo que a dinâmica entre navegação, comércio, cidade e sociedade

juazeirense é parte de um processo de construção de longo prazo, o recuo é

significativo para a compreensão de como Juazeiro atingiu sua proeminência fluvial,

transformando a navegação no São Francisco sua atividade comercial mais

importante.

A pedido do imperador Pedro II, o engenheiro civil Henrique Guilherme Fernando

Halfeld empreendeu uma viagem pelo Rio São Francisco, com o intuito de explorar a

região, apresentando sondagens, medições e indicações de detalhes sobre as

formações geológicas e a vegetação da área. Entre os anos de 1852 e 1854, Halfeld

relatou, légua por légua, suas observações sobre o rio e seus arredores, deixando a

pena correr um pouco mais além do que a mera descrição das características da

natureza e dos acidentes geográficos do rio. O engenheiro transpôs ao papel seu

olhar sobre os habitantes das vilas, freguesias e demais povoações ribeirinhas,

abordando alguns dos seus aspectos sociais e econômicos. É com esta abordagem,

por exemplo, que ele vai descrever sua passagem pela então “villa do Joazeiro”:

Sobre a margem direita está o povoado de Mourão e a importante

Villa do Joazeiro, actualmente a cabeça e residência do Juiz de

direito da comarca de Sento-Sé, 30 a 35 palmos elevada sobre o

nível das aguas do Rio [...]. A villa do Joazeiro tem uma igreja da

invocação a Nossa Senhora das Grotas, uma casa de câmara e

cadêa anexa, e 334 casas, sendo destas 287 cobertas de telhas, e

sujeitas ao pagamento de decima urbana, com 1,328 habitantes,

sendo destes 1,052 livres, e 276 escravos; porém todo o município,

cujos limites são os mesmos da freguesia da villa, tem 6,000 almas

pelos assentos da igreja; porém pelos mappas dos subdelegados

somente 4,938, sendo destas 4,203 pessoas livres e 732 escravos. A

villa do Joazeiro foi creada por acto da presidência da província da

Bahia datado de 18 de maio de 1833, quando se pôz em execução o

Código de Processo Criminal desanexando-se o Joazeiro do

município de Sento-Sé a que pertencia como freguesia. (HALFELD,

1860, p. 34).

A Villa do Joazeiro encontrada por Halfeld não era mais freguesia de Sento-Sé,

sendo tratada pelo engenheiro como “importante” à época de sua viagem.

Contrariando Edson Ribeiro e Wilson Lins, cronistas que insistiam que na região a

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26

presença de escravos teria sido discreta, quase nula, podemos observar no relato de

Halfeld que havia, sim, uma prática escravagista na localidade (1 escravo para 15

libertos, proporcionalmente, de acordo com os dados levantados por ele na

localidade). Em pesquisas junto a inventários da região, Fonseca (2011), em sua

dissertação, pôde ainda observar relações de escravos que variavam entre 2 e 30,

revelando, inclusive, que havia a posse, por um único senhor, de um número

elevado de cativos.

Halfeld não pôde deixar de observar, também, o movimento entre as margens

pernambucana e baiana do rio. A estrada de tropeiros advindos dos estados ao

norte do país e que rumavam em direção a Salvador e demais paragens baianas,

encontrava no Velho Chico tanto um obstáculo natural, quanto um local de descanso

e ponto de intersecção de sua jornada. O engenheiro anota em seu relatório que a

conexão entre as duas margens é mantida através de

uma barca grande de véla, que dá cada vez passagem de 50 a 60

animaes, cujo rendimento pertence à câmara municipal da Villa da

Boa Vista da província de Pernambuco ; cada pessoa paga 80 rs. de

passagem, por cada animal cavalar ou muar 360 rs. sendo manso,

220 rs. sendo bravo, poldros 100, e 140 rs, cada cabeça de gado

vacum, carga de animal 40 rs.; porém os tropeiros ou proprietarios da

carga nada pagão de passagem. Pelas informações obtidas,

passarão em um anno 7,500 a 8,000 pessoas, 10,500 cabeças de

gado vacum, e 1,300 animaes cavalares e muares, sendo conduzido

o maior numero dos primeiros para a Bahia (HALFELD, 1860, p. 34).

Sem uma estrada de ferro disponível à época da passagem de Halfeld, uma vez

que apenas em 1895 finda-se a última etapa de construção da ferrovia Bahia-São

Francisco, após longos 43 anos de trabalhos (ZORZO, 2001, p. 80), e uma vez

tendo atravessado o rio, os produtos trazidos pelos tropeiros podiam seguir por

caminhos distintos: rumo à “Bahia”, a cidade de Salvador, pela estrada histórica dos

tropeiros, ou em direção à Minas Gerais e, consequentemente, uma série de outras

cidades ribeirinhas, seguindo o curso do São Francisco. Um aspecto a ser

observado é que a barca em questão, citada pelo engenheiro, pertencia não à vila

de Juazeiro, sendo atrelada à “Villa da Boa Vista” (atual município de Santa Maria da

Boa Vista/PE), outra localidade ribeirinha do Vale do São Francisco, da qual fazia

parte o pequeno lugarejo por onde os tropeiros passavam, que sequer era um

povoado à época da passagem de Halfeld (isso só viria acontecer em 1860), sendo

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27

hoje a cidade de Petrolina (CHILCOTE, 1991). A necessidade do tropeiro de

atravessar o rio para Juazeiro, e a disponibilidade, para isso, de uma barca

pertencente à vila pernambucana mais próxima da margem diante da cidade baiana,

pode nos dizer duas coisas: primeiro, que o fluxo de viajantes e comerciantes que

seguia a rota histórica de tropeiros despertava interesse das vilas próximas, tendo a

câmara municipal de Boa Vista aproveitado a rota para cobrar rendimentos sobre a

travessia; segundo, apesar de outras vilas, a própria Boa Vista por exemplo, estarem

à margem do São Francisco, e com possibilidade de explorar suas águas para

empreender viagens, era Juazeiro quem atraía essa demanda, sendo seu porto

bastante movimentado. A propósito disto, inclusive, o engenheiro não deixou de

tomar nota sobre as dimensões encontradas: “No porto do Joazeiro tem o Rio 3,500

palmos de largura, e dá em um segundo 188,517 palmos cubicos de agua.”

(HALFELD, 1860, p. 34).

Dentro dessa perspectiva, a navegação rio acima, em direção às cidades

mineiras, torna-se atividade fundamental para o escoamento dos produtos da região.

Por possuir tal posição privilegiada, Juazeiro vai atuar como o entreposto comercial

mais importante do submédio São Francisco, de forma que tal conjuntura seria

“suficiente para incorporar parte da mão-de-obra dos beiradeiros e das populações

marginalizadas das caatingas que, mesmo de forma precária e descontínua, se

engajava na economia” (GONÇALVES, 1997, p. 80), seja diretamente na produção

de gêneros agricultáveis, seja diretamente na atividade de navegação fluvial.

O engenheiro observa tal característica em suas anotações:

A villa do Joazeiro tem a vantagem de ser situada na linha de uma

das estradas mais commerciaes entre a Bahia e as provincias do

Norte, e particularmente a cidade de Oeiras, que dista daqui 80

leguas, e com a qual a villa do Joazeiro entretem um vivo commercio.

Os habitantes desta villa e do seu município fabricão sal das terras

saliferas, particularmente nas salinas á beira do riacho do Salitre ;

tratão de criação de gado vacum, em escala mui diminuta a creação

de carneiros, cabras, porcos, aves domesticadas e de cavalos ;

plantão mandioca, que é o principal ramo de cultura, arroz, feijão,

mui pouco milho e canna de assucar, muita abobora, melancias,

algodão, mamona e algum fumo (HALFELD, 1860, p. 34).

Ainda que esta produção não satisfizesse as demandas locais da população, a

conexão proporcionada pela hidrovia com Minas Gerais e demais estados ao sul da

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Bahia, era responsável por movimentar uma contrapartida bastante proveitosa para

Juazeiro e região. Assim, aos poucos, 2 polos ribeirinhos se destacaram dentro

dessa lógica de trocas comerciais: além da cidade baiana já citada, a mineira

Pirapora, ambas com portos naturais bastante movimentados. Assim, “os produtos

que subiam e que desciam o rio tinham em Joazeiro e em Pirapora (Alto São

Francisco) seus pontos de embarque e desembarque”. (GONÇALVES, 1997, p. 81).

Halfeld, na década de 1850, dentro de sua pesquisa em solo juazeirense, pôde

constatar tal ocorrência, apresentando um contraponto dentro de sua narrativa:

porém abstrahindo do que tenho observado, e julgando pelas

informações obtidas, é o terreno ao redor do Joazeiro mui agreste e

secco, particularmente em direção para a Bahia, e que a cultura

nesta paragem não satisfaz ás necessidades dos seus habitantes e

dos passageiros, que constantemente transitão pelas estradas, que

nesta villa se cruzão ; e portanto é indispensavel o suprimento de

mantimentos, como farinha de mandioca e milho, feijão, milho, arroz,

toucinho, assucar, rapaduras, caxaça, etc., que vem das regiões

superiores do Rio, até do Paracatú, para esta villa e seus suburbios.

(HALFELD, 1860, p. 34).

O que o engenheiro acaba testemunhando por ocasião de sua passagem pela

vila de Juazeiro é a constante movimentação fluvial em seu porto, a princípio, pela

necessidade decorrente do terreno “mui agreste e secco” do local; do mesmo modo,

Halfeld fornece testemunho da ligação comercial com as “regiões superiores do Rio”,

responsáveis por enviar os produtos complementares para a vila. O quadro

desenhado por suas observações acaba mostrando, ainda que de forma incipiente e

breve, a convergência entre a estrada dos tropeiros e a hidrovia, que fazia da então

vila um local de constantes trocas comerciais, ponto fundamental para caixeiros

viajantes, barqueiros, criadores de gado, agricultores, e toda uma sorte de pessoas

envolvidas com venda e compra de produtos. Aos poucos, esse movimento passa a

se intensificar, e em fins do século XIX e início do XX, Juazeiro, categorizada já

como cidade, passa a figurar como ponto comercial fundamental do norte baiano,

exercendo influência sobre várias cidades da região, e aí inserimos localidades

interioranas nos estados de Pernambuco, Piauí e Maranhão (CHILCOTE, 1991),

além do Ceará (NEVES, 2011) que dependiam, em grande escala, da navegação rio

acima para vender seus produtos no sul do país.

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29

Outro fator que eventualmente pode ter beneficiado Juazeiro, quanto à sua

posição de principal polo comercial da sua região, foi a dificuldade de navegação

rumo à foz do rio, em Alagoas. Encontramos anotações de Halfeld sobre isso.

Podemos imaginar o velho engenheiro, um tanto impaciente com os solavancos da

embarcação, do mesmo modo que as superstições dos remeiros o enfastiavam4,

constatar a dificuldade imposta pela “natureza do leito do Rio, que daqui para baixo

cada vez mais empedrado fica, o que também põe a maior difficuldade á

navegação.” (HALFELD, 1860, p. 34). Basicamente, para além de Juazeiro, o

transporte de mercadorias seguia o curso fluvial em barcas menores, com

capacidade inferior ao que era praticado rio acima (NEVES, 2011), muito em função

da constatada irregularidade da via aquática.

Em fins do século XIX, Teodoro Sampaio, em sua viagem pelo rio São Francisco

e Chapada Diamantina documentada em livro homônimo, passa pela cidade de

Juazeiro (19 de outubro de 1879, população de quase 8 mil pessoas5) e faz a

seguinte descrição da cidade, quanto à sua urbanização:

O Juazeiro [...] tinha então para nós [...] o aspecto de uma corte do sertão. As suas construções, em que se procura observar certo gosto arquitetônico, a sua nova e boa igreja matriz, o teatro, uma grande praça arborizada, ruas extensas, comércio animado, porto profundo e amplo, exibindo uma verdadeira frota fluvial [...] nos levava a mudar o conceito que vínhamos fazendo deste rio e dos seus adustos sertões. (SAMPAIO, 2002, p. 102-103).

Entre os destaques da cidade baiana, Teodoro Sampaio apontava sua linha

férrea e sua localização, numa “encruzilhada de duas grandes artérias de

comunicação interior” (SAMPAIO, 2002, p. 103), ou seja, a estrada histórica entre

Bahia e Maranhão, através do Piauí, e a estrada fluvial e sua navegação por meio

do rio São Francisco. Tais aspectos comporiam um quadro de desenvolvimento que

levaria a cidade a um futuro prodigioso.

4 Por ocasião da passagem pela ilha do Serrote de Santa Rita, Halfeld conta o seguinte caso: “Os

barqueiros informarão-me, que seria perigoso o approximar-se do dito serrote que (como disserão) tem um sulapão debaixo do rochedo onde mora a Mãi d’agua, que já muitas vezes fez desapparecer embarcações e navegantes, vivendo com aquelles delles, que melhor lhe agrada, a quem dava depois riquezas, deixando-o livremente sahir. Contra a vontade dos barqueiros mandei dirigir a embarcação ao dito serrote, que se compõe de quartzo, e nada pude descobrir que pudesse dar motivo para semelhante fabula”. (HALFELD, 1860, p. 33). 5 Estimativa baseada em dados levantados por Francisco Vicente Vianna na obra Memória sobre o

Estado da Bahia, referentes ao ano de 1872.

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30

Nesse contexto, a “Rainha do São Francisco” 6, por vários anos, viveu uma

hegemonia sem sombras no vale do velho Chico, dominando completamente a

atividade de navegação e, como bem relata Teodoro Sampaio, exibindo uma grande

frota de navios em seu porto. Além disso, Juazeiro apresentava uma organização

urbana não encontrada em outra cidade sertaneja banhada pelo São Francisco da

mesma época, fator atestado pelo engenheiro, após longa peregrinação por demais

cidades sanfranciscanas. Podemos lembrar que a cidade já possuía, na década de

1920, uma gama de edifícios públicos e privados que provocavam admiração na

população, frequentemente sendo relembrados pela memória coletiva

(CAVALCANTI, 1999). A exemplo disso, podemos citar a Estação Ferroviária e seu

imponente edifício, que se localizava na orla de Juazeiro, sendo hoje o ponto onde a

ponte Presidente Dutra 7 chega em terras baianas. O prédio, construído com uma

fachada em estilo neoclássico, ficava voltado para o outro lado do rio, uma espécie

de símbolo de poder e hegemonia.

Tendo feito uma estadia de quatro dias na cidade, aguardando a chegada do

vapor Presidente Dantas, que havia solicitado junto ao governo da Bahia para seguir

viagem para Sobradinho, Sampaio e os demais membros da expedição puderam

percorrer Juazeiro e arredores, e as impressões do engenheiro estão registradas em

seu relatório. Em determinado ponto de sua narrativa, ele chega a afirmar que “tudo,

com efeito, aqui concorre para tornar esta cidade um centro de ativas transações.”

(SAMPAIO, 2002, p. 103). Seu olhar já havia se detido sobre a frota de embarcações

no porto, bem como sobre o entroncamento viário propiciado no cruzamento entre

hidrovia e estrada dos tropeiros (valendo notar que ele também cita a via férrea que

se encaminhava para a região). Sendo Juazeiro “comumente denominada a praça

entre os sertanejos, mantendo com o porto da Bahia um grosso trato” (SAMPAIO,

2002, p. 104), título que Teodoro conheceu durante o processo de reconhecimento

do local, interagindo com os citadinos, o engenheiro baiano trouxe um fator que,

dentro de seu julgamento, poderia corroborar com a informação fornecida: “apesar

da distância e dos meios de transporte e das dificuldades vencidas, chegam aqui as

mercadorias européias por preços bem razoáveis, e ainda suportam com vantagem

o frete adicional para lugares mais distantes” (SAMPAIO, 2002, p. 104).

6 Termo de cunho popular, muito utilizado na região, para se referir à cidade de Juazeiro/BA.

7 Ponte sobre o rio São Francisco que integra Bahia e Pernambuco nas cidades de Juazeiro e

Petrolina.

Page 32: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

31

Outro fator analisado por Teodoro, além da organização urbana de Juazeiro e

das transações comerciais locais, está relacionado com o que ele define como

“urbanidade”. Ao longo de suas anotações durante toda a viagem, este aspecto

parece ser um dos mais recorrentes, fazendo com que o engenheiro possa

comparar o trato recebido, em cada localidade, por parte dos moradores locais.

Em Juazeiro, sua impressão sobre este aspecto pode ser observada no trecho

a seguir:

Havíamos assentado acampamento, abaixo da cidade, à sombra dos

frondosos cajueiros de uma chácara situada à margem do rio. Em

poucas horas, porém, toda a população sabia da nossa chegada e o

que nela havia de mais distinto e elevado nos vinha visitar e oferecer

os seus préstimos. [...] Em breve, recebíamos convite para ceias e

jantares, bandejas de frutas e doces cobertos com toalhas de

riquíssimos bordados, e outras provas repetidas de consideração e

de simpatia. (SAMPAIO, 2002, p. 104).

Teodoro dá conta que havia notado “na população do Juazeiro a mais

obsequiosa atenção e urbanidade” (SAMPAIO, 2002, p. 104). Entretanto, a parte da

população que o interpela e o recepciona, classificada pelo engenheiro como “o que

nela havia de mais distinto e elevado” e que o presenteia com os mimos locais

(frutas, doces, ricos bordados, ceias e jantares), representa uma minoria mais

abastada dos citadinos locais. O aspecto da “urbanidade” de Sampaio, em Juazeiro,

negligencia (ou silencia ante), por exemplo, os trabalhadores presentes na frota

fluvial da cidade, que por ele foi citada em seu relato, indivíduos pertencentes a

grupos sociais menos favorecidos na localidade.

As observações fornecidas pelos dois relatos nos apresentam um panorama

sobre Juazeiro, as navegações, comércio e vida urbana na segunda metade do

século XIX, e nos servem como aporte para a compreensão da relação estabelecida

entre rio e cidade. Os relatos dos dois engenheiros forneceram, às suas respectivas

épocas, informações valiosas para que a própria exploração das navegações no

Velho Chico pudesse ser controlada ou mesmo realizada pelos poderes públicos.

Com o tráfego de vapores e o estabelecimento de um fluxo de viagens no rio, o

Estado, ainda que tardiamente, passou a desenvolver mecanismos de fiscalização

destas atividades fluviais. Em fevereiro de 1918, foi criada a Agência Capitania do

São Francisco, pelo decreto nº 12.886. Em 12 de março de 1919, foi mantida na

Page 33: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

32

mesma categoria pelo decreto nº 13.495, passando à jurisdição da Capitania dos

Portos do Estado da Bahia, sendo nomeado seu primeiro titular, Manuel Silvano

Martins. Em 1923, em razão do aumento das atividades relativas ao transporte de

passageiros no rio, a então agência foi elevada a categoria de Delegacia, sendo

nomeado seu representante Leopoldo Torres da Silva. (FIGUEIREDO; SÁ, 1999)

Em 1940, a mudança mais significativa: pelo decreto nº 6.530 de 20 de

novembro, a Delegacia foi extinta, dando lugar à criação da Capitania Fluvial dos

Portos do rio São Francisco, englobando os estados de Minas Gerais e Bahia. No

ano seguinte, o primeiro agente a ser nomeado foi o tenente reformado Benjamin

Vilanova. Nesta mudança, Juazeiro passou a contar com uma agência fluvial, sendo,

ao lado de Pirapora/MG, sede da Marinha Mercante no São Francisco.

1.2 A cidade, o rio e os espaços urbanos que os unem

Um apito ao longe, meio cansado, anuncia que alguém chega. Sobre a ponte,

pessoas tentam buscar o melhor lugar para aguardar a parte levadiça fazer seu

trabalho: sob o comando da força dos encarregados, ela sobe, dando espaço para

que o vapor a atravesse. Lenta, seguindo o balanço das águas, a embarcação

chega ao porto; recebem-na olhares que revelam um misto de sensações. Saudade,

alegria, curiosidade, tristeza. A rampa de acesso à beira do rio se enche de pessoas,

subindo e descendo, num ritmo intenso. Contratos, vendas e compras, e também

encontros, despedidas; o espetáculo da vida social juazeirense em um ambiente

híbrido, água e terra, líquido e sólido.

Mudamos o foco de nosso olhar neste mesmo momento, e podemos

acompanhar, ainda no leve embalar das águas, os pequenos barcos que partem

rumo à cidade vizinha, Petrolina. Estudar, trabalhar, passear, brincar... O paquete

que leva e traz pessoas com tais objetivos compete, ao mesmo tempo, com a ponte

que agora fornece caminho rápido e gratuito entre as cidades.

No contínuo compasso do cotidiano, Juazeiro e o Velho Chico vão criando seus

laços, fincados, sobretudo, na prática diária de seus citadinos.

Aqui, convidamos o leitor atento a uma análise sobre a organização urbana de

Juazeiro a partir da década de 1940 e os espaços que uniam e unem a cidade ao

Page 34: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

33

Velho Chico. Teremos como principal objetivo compreender as práticas de

sociabilidade e as dinâmicas urbanas que interligavam o rio à urbe em seu cotidiano,

utilizando nesta análise registros fotográficos de Juazeiro, bem como as memórias

de ex-trabalhadores das embarcações e pessoas que utilizaram ou puderam

conviver com o transporte fluvial entre as décadas de 1940-1970: chegadas e

partidas de vapores e barcas, transportando passageiros e produtos comerciais; o ir

e vir dos barcos à vela entre Juazeiro e Petrolina/PE; o olhar de pessoas da orla,

que acompanhavam a movimentação das embarcações ou que apenas admiravam

a paisagem do Velho Chico. O uso da fotografia e da memória oral, fontes

problematizadas aqui, fornece um panorama amplo de análise sobre os espaços em

questão, a partir das perspectivas fornecidas em cada ângulo e fala expostos.

Neste tópico, utilizaremos tais aportes para desenvolver uma perspectiva sobre a

relação cidade/navegações, porém evidenciando as reminiscências particulares de

cada entrevistado, atentando para as especificidades e sutilezas de cada olhar

(fotográfico, oral, cronístico) a maneira como estes narram suas lembranças e

reconhecem, no vai e vem cotidiano das embarcações, sua “juazeiro particular”.

A vida dura dos tripulantes das embarcações, sobretudo das chatas8; os

marinheiros que mergulhavam a qualquer hora do dia ou da noite, caso algo

interrompesse o funcionamento da hélice, o que comumente acontecia como no

caso das redes de pesca que ficavam presas ao rotor; as pessoas que, como nos

conta o memorialista Britto (1995), deslocavam-se para o cais ao escutar o apito do

vapor para observar a partida das embarcações; uma série de elementos, a serem

refletidos aqui.

Sobre este último aspecto, inclusive, há uma série de registros nos escritos de

cronistas locais, que reverberam um ideal romântico das navegações no cais da

cidade, como podemos ver no trecho a seguir:

As máquinas gemiam cansadas. Gente comprimida no convés,

subindo e descendo ao sabor dos movimentos da ‘gaiola’. Davam

adeus com as mãos ou agitavam as trouxas de chita encarnada.

Todo um mundo de homens mal vestidos, carregando sacos nas

8 São embarcações planas, sem motor, empurradas por remeiros e vareiros ou rebocadas por demais

barcos motorizados, e que serviam para o transporte de número elevado de produtos. Segundo

Neves (2009), a capacidade de carregamento destas chatas era de até 250 toneladas, em porões e

no convés.

Page 35: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

34

costas e fumo no canto da boca. Mulheres de roupas vistosas, gente

de todas as classes. (CARDOSO apud DUMONT, 1999, p. 24).

O quadro que pintamos no início deste tópico parte de um apanhado de

fragmentos espalhados por todas as fontes coletadas e problematizadas. Os

registros fotográficos do período aqui abordado, por exemplo, nos fornecem parte

destes olhares sobre o panorama geral. Aqui, utilizamos este material tendo em

mente que as fotos “atuam no sentido de relatar, compor narrativas [...]. No entanto,

tanto a fotografia como os relatos orais dela provenientes compõem imagens-

monumentos que selecionam o que deve ser lembrado” (MAUAD apud RABELO,

2012, p. 3). Dessa forma, são os olhares e perspectivas que nos interessarão, uma

vez que “o relato oral, a fotografia e os documentos escritos não são chaves para

nos revelar o passado em sua inteireza, mas para dar acesso à uma interpretação

possível, por parte do historiador” (RABELO, 2012, p. 3).

Sabemos sem sombra de dúvidas que “o estudo da apropriação da imagem é um

desafio ao historiador interessado em mobilizar fontes visuais em suas pesquisas”

(LIMA; CARVALHO, 2009, p. 46), porém, este desafio deve ser encarado e

problematizado, com o intuito de, através do fazer historiográfico, integrá-lo ao corpo

de fontes possíveis para a construção da narrativa histórica.

De fato, quando observamos a imagem congelada de uma foto, devemos ter em

mente a intencionalidade do seu autor, bem como de que forma este imprimiu,

através da lente, sua ótica sobre o momento capturado; além disso, é preciso notar,

claro, as sutilezas, as informações involuntárias, além do intencional.

Podemos destacar com mais propriedade, no tocante às fotografias

selecionadas, a obra do fotógrafo e documentarista juazeirense Euvaldo Macedo

Filho (1952 – 1982). Através de sua lente, cenas do cotidiano urbano das cidades do

Vale do São Francisco foram captadas, sendo seu foco principal o rio e o modo

como as pessoas interagiam com ele. Entre as décadas de 1970 e 1980, Euvaldo

explorou diversas cenas diárias dos ribeirinhos juazeirenses, enfatizando situações

comuns, corriqueiras, que aos olhos dele transmitiam certo significado. Seu acervo,

bem documentado e mantido pela prof.ª Odomaria Rosa Bandeira Macedo, da

UNEB/Juazeiro, representa uma exceção na cidade. Em geral, e este é um grande

problema para a pesquisa histórica da região, boa parte das fotografias produzidas

Page 36: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

35

em Juazeiro não possuem autoria confirmada, e muitas dessas imagens circulam de

forma aleatória entre museus e arquivos particulares.

Rabelo (2012), em pesquisas sobre as imagens e os conflitos da memória em

Juazeiro, ressalta a dificuldade encontrada no tocante à distinção e datação destas

fotografias. Por meio do uso da História oral, ele pôde identificar, a partir das falas

de pessoas ligadas ao campo fotográfico da cidade entre as décadas de 1950 e

1970, a atuação de pelo menos cinco estúdios: Foto Fialho, ArtFoto Paulista, Foto

Oliveira, Arte Foto Santo Antônio e Foto Tavares, responsáveis por grande parte das

imagens que hoje, diante do consumo aleatório, emolduram supermercados,

panificadoras, hotéis, escolas e uma infinidade de locais, de forma anônima e

totalmente desconexa de sua produção9. Algo que contribuiu de forma substancial

para isso foi a digitalização dos acervos fotográficos destes estúdios, sob pedidos do

“Museu Regional de Juazeiro, para uma exposição [...], reunindo fotografias antigas

reimpressas em formato ampliado, mas depois da qual não se devolveu os artefatos

para os familiares dos fotógrafos” (RABELO, 2012, p. 3). Sem o devido controle, tais

imagens passaram a circular, contemporaneamente, de forma livre em formato

digital.

Dentro desse contexto de consumo de massa das fotografias em Juazeiro, é

interessante ressaltar a forma como a apropriação destas imagens, que retratam,

em grande parte, as ruas, as praças, a ponte, as embarcações, telhados e suas

casas, monumentos e construções, se deu de uma forma tão forte, a ponto de

muitas delas figurarem até mesmo em paredes de estabelecimentos em nada

ligados à arte de fotografar, como uma lanchonete, uma panificadora, a nível mesmo

de decoração, a intrigar os observadores e instigar um gostoso exercício aos

moradores da cidade, o de adivinhar quando teriam sido feitas as fotos, que lugar

poderia ser aquele, tão diferente no preto e branco da tela.

De fato, a curiosidade e o prazer da observação estimulam o olhar do

expectador, da mesma forma que instigam a criatividade do fotógrafo. Em análise

das imagens captadas por Euvaldo Macedo Filho, por exemplo, pudemos

compreender bem essa premissa no foco de sua lente: seus olhos estão voltados

9 Este processo, até o presente momento de redação desta dissertação, ainda está em curso. Porém, algumas

iniciativas de identificação, datação e crédito destas fotografias vêm sendo desenvolvidas em Juazeiro e

Petrolina. O trabalho de Rabelo é um desses exemplos.

Page 37: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

36

para o rio, a priori, e toda a atividade humana sobre ele; a posteriori, suas lentes se

deslocam para o espaço urbano, mantendo ainda a atenção para as pessoas e

aquilo que praticam na cidade.

Vamos começar, dentro dessa observação fotográfica, com uma prática das mais

simples em Juazeiro, e provavelmente das mais simples nas cidades ribeirinhas: o

banho. Caminhando pela orla dos anos 1970, podemos observar o ir e vir das

pessoas e toda a atividade humana cotidiana. Num virar de cabeça, podemos ver

um grupo de pessoas se aglomerando próximo à murada que serve de parapeito,

onde outras pessoas se debruçam para observar o rio. São homens e meninos, sem

camisa, calções curtos, e mesmo cuecas. Unem-se e pulam de encontro às águas.

Imagem 1 – “O tempo voa”: o movimento do salto, a ação do mergulho. Euvaldo une, numa foto, rio

e cidade em uma brincadeira comum aos jovens juazeirenses.

(FONTE: ASSIS, A. C. Coelho de; MACEDO, Odomaria R. B.; EGÍDIO, Chico. Euvaldo Macedo

Filho – Fotografias. Petrolina: Gráfica Franciscana, 2004).

O fotógrafo, rápido e atento, busca captar o movimento e, desta forma, dar vida

ao registro feito. Podemos destacar os elementos por ele utilizados: homens e

Page 38: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

37

meninos em ação, no ato do salto; uma outra pessoa, já mergulhada, observando os

demais realizarem o movimento; o barco tranquilo, com dois tripulantes atentos à

diversão; por último, observamos a escolha do ângulo, mostrando as águas (em

período de cheia do Velho Chico) e o cais. Euvaldo, ao captar esse momento

através de suas lentes, nos apresenta um uso desse local, uma prática que, ao ser

desenvolvida pelos saltadores, dá um significado (dentre tantos outros possíveis, a

depender da prática) àquele lugar. Nesse caso específico, cristalizado através das

lentes do fotógrafo juazeirense, é este o local da brincadeira, do salto para o

mergulho. Concordando com Pollak (1992, p. 201-202), “existem lugares da

memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança” que por sua vez é

construída pelos indivíduos por meio do tipo de prática desenvolvida nestes locais.

Porém, é este o local de brincadeira e mergulho para quem? A todos essa

memória é comum e pode servir como elo na teia coletiva de recordações? A

princípio, vamos definir aquilo que conceituamos como memória, e aplicamos nesta

análise:

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em

segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos

por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela

coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos

dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário,

tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível

que ela consiga saber se participou ou não. (POLLAK, 1992, p. 201).

Deste modo, concordando com Pollak e transpondo esta reflexão para o nosso

foco, nem só aqueles que pulam podem eventualmente reconhecer aquele espaço

como o local do salto para o mergulho, mas também o passante, que observa essa

brincadeira diariamente, mas que dela não toma partido; ou ainda, a mãe de um

desses meninos, que chegará molhado em casa e contará suas façanhas

acrobáticas no cais. Sem dúvida, “quando relatamos nossas mais distantes

lembranças, nos referimos, em geral, a fatos que nos foram evocados muitas vezes

pelas suas testemunhas” (BOSI, 1994, p. 406), de modo que fazemos destas

rememorações, vividas por tabela, parte de nossa própria memória. Entretanto, e

deve-se salientar isso, “por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que

recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode

Page 39: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

38

reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro

comum” (BOSI, 1994, p. 411).

Partindo deste pressuposto, nos perguntamos: o que podem nos dizer aqueles

que não pulam? Neste ponto, recorremos a uma conexão entre a imagem e os

relatos orais coletados durante o processo de entrevistas realizado em nossa

pesquisa. Ao longo do depoimento do Entrevistado 710, nascido em 1954, e que nos

trouxe elementos de sua infância na década de 1960, nos deparamos com um outro

tipo de memória sobre o banho de rio. Ele, advindo de uma família de comerciantes

estrangeiros, provenientes dos países da Síria e da Turquia, revela que não podia

mergulhar no rio por impedimento dos pais: “Meus primos tomava banho no rio, e a

gente ficava ‘porra, bicho, seu pai, titio num bate não?’, ‘não, ele bota a gente, dava

uns conselho’, e em casa eu apanhava mesmo”. Observamos em seu relato a

frustração do jovem garoto, à época, diante da impossibilidade de fazer aquilo que

os primos faziam (a exclamação estupefata, o medo de apanhar em casa, caso

mergulhasse). Além disso, ainda rememorando este tema, o entrevistado mais uma

vez deixou transparecer seu desapontamento: “Apesar de eu morar numa casa de

frente pro rio, mas mamãe não deixava”.

Dentro das análises feitas sobre esta narrativa, nos pareceu interessante notar

que o mergulho na orla (ou cais) da cidade poderia ser uma prática mais comum à

determinado grupo social, menos abastado. O Entrevistado 7 vem de uma família

que relativamente possui estabilidade financeira, apesar de já não deter, no período

de infância do nosso depoente, a proeminência econômica das décadas de 1940 e

1950. Outra informação que corrobora com isso é que o impedimento familiar ao

banho é anulado em um caso particular, como conta o próprio Entrevistado 7:

“Acima da capitania dos portos era uma praia, e meu pai abria ali, o povo da cidade

ia de sombrêro, de short, e ia pra praia, botava lá seu negócio e ia tomar banho no

rio, ali a gente podia com a praia”.

Se levarmos em consideração que tratamos aqui de uma cidade ribeirinha,

principalmente do fato de que boa parte de sua população trabalhadora exerce

funções ligadas ao rio, é difícil conceber que esta mesma população frequente uma

praia específica para apenas banhar-se no Velho Chico, tendo as águas disponíveis

por todo o tempo. De todo modo, observamos que o local rememorado pelo

10

Entrevista concedida em 05/12/2013.

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39

Entrevistado 7, onde lhe era permitido mergulhar no rio, situa-se longe da orla e do

salto para as águas registrados por Euvaldo Macedo Filho em sua fotografia. Ou

ainda: para nosso depoente, há um local do permitido e outro do não permitido, uma

divisão que está clara dentro de sua narrativa e que expõe a relação do indivíduo

com estes lugares.

Vamos a mais um olhar: Eurípedes Alves de Lima, entrevistado em 31/12/1984

por Franca Pires, aparece nas anotações do Caderno 6 dizendo ter como principais

brincadeiras na infância tomar banhos de rio e pular dos vapores (Caderno 6, p. 8).

Seu Galo, apelido pelo qual era mais conhecido na cidade, foi cantor e compositor,

além de radialista em Juazeiro; era folião constante nos carnavais e costumava

cantar desde a infância nas casas da cidade (Franca Pires, num esforço por detalhar

as informações captadas, fornece uma série de dados em seus cadernos sobre cada

pessoa entrevistada). Os saltos de Eurípedes, temporalmente situados na década

de 1930, período de sua infância, geograficamente estão próximos do salto dos

“descamisados” que Euvaldo captou em sua foto, uma vez que os vapores

atracavam no cais da cidade e lá ficavam aportados até próxima viagem. Ao

observador contemporâneo mais atento, que se debruça na orla para observar o ir e

vir das barquinhas entre Petrolina e Juazeiro, o salto de embarcações é ainda

brincadeira corriqueira na beira do rio.

Indo mais a fundo nas reminiscências de Eurípedes, poderemos observar que,

longe de ser um local do não permitido, como o é para o Entrevistado 7, o cais e o

rio possuem ainda mais significado para si: é onde ele e alguns amigos faziam

carnaval com o bloco “Pequena do Havai”. Os integrantes tomavam paquetes e

canoas, iam à Ilha do Fogo11, soltavam fogos, dançavam, cantavam, e retornavam

ao cais de Juazeiro, onde mais convivas se reuniam ao bloco (Caderno 6, p. 15-16).

Dentro daquilo que “Seu Galo” rememora, e Franca Pires anota, aquele é o lugar do

divertimento, do banho, do mergulho, dos paquetes, do carnaval.

Porém, é também lugar de trabalho, como bem lembra a Entrevistada 812, viúva

de Eurípedes: “Ele trabalhava era... escrituração mercantil. Isso, era escrituração

mercantil, negócio de contabilidade. Era com isso que ele trabalhava. E era uma

11

Ilha do rio São Francisco, situada entre Petrolina e Juazeiro exatamente na divisa entre os estados

de Pernambuco e Bahia, e por sobre a qual passa a Ponte Presidente Dutra. Devido à sua

localização, próxima aos centros das duas cidades, costuma ser bastante frequentada pelos citadinos

petrolinenses e juazeirenses. 12

Entrevista concedida em 24/03/2013.

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40

porcaria que ganhava, coitado”. Funcionário da Viação Bahiana do São Francisco,

seu cargo exigia que ele realizasse vistorias nas embarcações da companhia, como

bem explica a Entrevistada 8: “Tinha os vapores que vinha, ele tinha que ir lá nos

vapores, via, vê até as rôpa de cama dos vapores, ele tinha que fiscalizar tudo

aquilo, era aquela agonia maior do mundo”.

Durante sua narrativa, não raro, testemunhamos momentos de lamento dela em

relação ao trabalho do esposo. “Não tinha estrutura de marinheiro”, afirma, em

determinado ponto, ao citar os problemas de saúde do marido atribuídos por ela ao

fato de Seu Galo adentrar nos porões dos vapores durante o serviço.

É interessante notar que essa informação, que faz referência ao trabalho na

companhia de navegação, não faz parte daquilo que Eurípedes conta a Maria

Franca Pires em seus cadernos. Ao longo das páginas em que ela realiza suas

anotações sobre a fala dele, vemos histórias de carnaval, festas, futebol, músicas,

mas nenhuma menção ao trabalho que desempenhava nos vapores. É possível

notar que Eurípedes busca, em seu relato, passar, naquele momento, uma imagem

pública condizente com sua condição de comunicador; podemos identificar também

seu distanciamento do trabalho fluvial, algo que evidencia sua negligência no

tocante à atividade que desempenhava na companhia de navegação.

Outro ponto que precisamos destacar é que frequentemente, ao longo das outras

entrevistas, a menção às navegações acaba aparecendo, o que nos permite

considerar que Franca Pires explorava, em suas perguntas aos entrevistados,

temáticas voltadas ao rio e ao trabalho neste (inclusive o próprio Seu Galo).

De fato, vemos aqui que cada indivíduo que rememora escolhe, para si, os

momentos mais significativos e representativos (BOSI, 1994). Eurípedes traz à tona

momentos de alegria, descontração, festa; a Entrevistada 8, por sua vez, saudosa

do marido falecido, grande admiradora do companheiro, porém machucada pelos

anos de luto e pelas saudades, busca nas lembranças a imagem do homem

esforçado, trabalhador, sofrido.

Seguindo a trilha das memórias da Entrevistada 8, podemos encontrar mais uma

experiência com o local, mais um significado dado através da prática cotidiana ao

espaço em questão. Com 88 anos na ocasião de nossa conversa13, ela vive com os

netos em uma pequena casa no centro de Juazeiro; tendo sofrido uma série de

13

A ocasião da entrevista é março de 2013. A entrevistada nasceu em 1925.

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perdas na família (marido, filho e outros parentes), nossa depoente imprime em sua

fala uma carga emocional bastante pesada, expressão possível de memórias

encaradas, no momento da recordação, como traumas. Juntamente à lembrança do

marido, que vai e volta ao longo de sua narrativa, ela resgata a imagem do pai e as

viagens de barco, em família, pelo rio.

Meu pai com minha mãe era assim: ‘eu vou viajar, mas não vou

deixar minha família. Viajo com meus filhos e minha mulher’. [...] Ele

era um apego horrível aos filhos. Aí quando ia pra cidade da Barra,

pra esses lugar por aí su... subindo o rio, ele levava imediatamente

os filhos. Tirava da escola.

Sendo seu pai comandante de embarcações da Viação Bahiana, nossa depoente

costumeiramente seguia-o pela hidrovia, juntamente com a mãe e os irmãos. Ao

acionar essa memória, observamos que a entrevistada foi da tristeza à alegria muito

facilmente: a recordação do pai e sua ausência faziam com que sua voz e seu

semblante ficassem mais pesados, porém, tão logo nos reportasse as suas

impressões de viagem, risos devolviam a leveza de sua expressão facial. Em um

desses momentos, seu relato nos aproxima das sensações da jovem, em ocasião do

embarque em um vapor:

Ah, meu Deus, num sei se é porque era criança. E papai dizia: ‘Nós

vamo pra cidade da Barra, tenho um trabalho na cidade da Barra,

prepare aí’. Arrumava tudo, a gente tudo impindurada nas grade da...

[risos] olhando: ‘Ê, adeus, adeus’, aí ia [risos] pra cidade da Barra.

O regresso à Juazeiro não é menos animado, e a depoente, ao concluir essa

memória, finalizou com um suspiro: “Era bom”. Após a morte do pai, em 1937,

cessaram as viagens nos vapores. No entanto, as lembranças que vão se

desenrolando ao longo da narrativa ainda estabelecem uma conexão com o rio, em

particular com a navegação. Podemos destacar dois pontos mais latentes e mais

expressivos. O primeiro, um olhar do cais para o rio, relacionado às viagens nos

vapores e, especialmente, ao modo como o apito do vapor era recebido por parte

dos citadinos: “Quando o Barão do Cotegipe14 dava um apito lá bem distante, é todo

mundo trocando de roupa e tudo pra vir se dibruçar no cais [...], deles pra receber

14

O navio a vapor Barão de Cotegipe.

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42

parente e deles pra ver o movimento [...] da chegada dos navio”. No segundo,

embarcamos com nossa entrevistada e navegamos sobre o Velho Chico, na

travessia Juazeiro/Petrolina, antes da construção da ponte Presidente Dutra, na

década de 1950. Muito devota, ela frequentava constantemente as missas em

Petrolina/PE, alegando gostar muito do contato com as freiras Salesianas,

responsáveis pela organização e administração do Colégio Nossa Senhora

Auxiliadora, para meninas, local onde a entrevistada queria muito estudar (mas não

pôde, por questões financeiras): “Tinha umas canoinha, e tinha um velho preto,

muito direito e tudo, que era quem levava a meninada que estudava por lá, que

ficava frequentando lá”.

A frustração de não ter conseguido estudar no colégio das freiras é sentimento

presente em sua narrativa. Em determinado ponto, ela chega a afirmar,

pesarosamente, que “todo mundo queria estudar lá”.

Como a Entrevistada 8 se apropria do local e que significado atribuído por ela é

revelado em suas rememorações? A princípio, é este o local de saudades.

Saudades do pai e suas viagens em vapores, além de saudades da família e da

unidade existente entre seus membros, relatada pela depoente. Além disso, é este o

local de partidas e chegadas, de olhar pelas grades e dar adeus para aqueles que

ficam. É também local que ativa, em sua memória, sentimentos desagradáveis: a

tristeza pelo marido e seus constantes problemas de saúde no trabalho com as

embarcações, a frustração de não ter podido continuar seus estudos com as freiras

salesianas de Petrolina. Os sentimentos e apropriações são diversos dentro das

rememorações de nossa depoente. Porém, acima de tudo, o local a que nos

referimos (do mergulho dos descamisados de Euvaldo, do banho proibido do

Entrevistado 7, das festas e cantorias de Eurípedes, o Seu Galo), no depoimento da

Entrevistada 8, é um local de vivências, experiências, sociabilidades.

É também, por consequência disto, um local de disputas, de conflitos.

Na manchete “Cousas erradas” do jornal O Arauto, de 1939, podemos encontrar

um exemplo de choque entre práticas, ligadas ao espaço rio/cidade da orla, e que

ilustra bem essa questão.

Juazeiro é uma cidade que possue afamados foros de cidade rainha,

cumpre, pois que os seus filhos saibam e prôcurem dignificar-lhe

êsse merecimento. Não temos, todos sabem,um serviço de irrigação.

Por isto a agua nos è fornecida por homens e mulheres que fazem

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43

disso a sua profissão. Até aí tudo bem. Acontece, porèm, que êsses

fornecedores de agua não procuram andar pelo meio das ruas, como

seria mas correto, e, quasi sempre com latas furadas, andam por

sobre os passeios, interrompendo, de certo modo os transeuntes.

Vê-se pois que está errado. Acreditamos que a Prefeitura devia

proibir êsse trânsito, principalmente na travessa do Mercado, um dos

pontos mais concorridos, e onde se espalha a fiscalização municipal,

porque si assim continuar, estamos certos que será uma mancha aos

nossos fòros de cidade civilisada. (O ARAUTO, ano I, n. 6, 1939, p.

1).

O grande problema aqui, de acordo com a matéria do jornal, é o fato de os

“fornecedores de água”, enchendo seus baldes no rio, passarem pelas calçadas (e

não pelo meio da rua) fazendo o transporte até seus clientes. Isso seria uma

“mancha aos nossos fòros de cidade civilizada”, como mostra O Arauto. O exemplo

da matéria que trazemos à luz caracteriza-se enquanto contraponto entre práticas

desenvolvidas à beira do rio (encher baldes de água) e a noção do local

permitido/proibido de que vínhamos refletindo anteriormente, em especial nos

relatos do Entrevistado 7. A controvérsia, neste caso, está no fato de que o serviço

em questão, necessário em função da falta de um serviço de encanamento de água,

estaria causando desconforto entre os passantes.

Local e espaço. O espaço é o local praticado. De acordo com Certeau, um local

“é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de

coexistência” (CERTEAU, 2012, p. 184); é uma delimitação geográfica, onde

pessoas praticam suas vivências: transitam, conversam, rumam para seus trabalhos,

para a escola, etc. Este local, quando praticado por meio destas atividades, pode ser

chamado de espaço, sendo este o palco onde se desenrolam as ações dos

indivíduos. Ao caminhar por este espaço, o citadino ordinário realiza “um processo

de apropriação do sistema topográfico” (CERTEAU, 2012, p. 164), assim como

aquele que fala se apropria da linguagem. Desse modo, compreendemos,

concordando com Certeau, que o ato de praticar o local, transformando-o em

espaço, desde uma simples caminhada até o trabalhar diário, é uma ação de

apropriação do lugar.

Este caminhar pela cidade representa “falas” traduzidas em passos, existindo

nisto “uma retórica da caminhada. A arte de ‘moldar’ frases tem como equivalente

uma arte de moldar percursos” (CERTEAU, 2012, p. 166); o percurso desenvolvido

por um indivíduo revela sua experiência com o espaço que pratica. Destarte, tal qual

Page 45: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

44

nossas construções argumentativas, que passam por uma arte de moldar frases, e

mostram ao interlocutor uma série de características próprias, como o estilo de falar,

a linha de pensamento, a opinião sobre o assunto, nossos passos pela cidade

revelam mais sobre quem somos, o que fazemos, de onde falamos. Avançando um

pouco mais no referencial teórico que Certeau nos traz, podemos dizer que o modo

como praticamos o local, transformando-o em espaço, é uma “fala” daquilo que

somos, ou somos induzidos a ser.

Dentro dessa reflexão, é válido ressaltar que este espaço, local praticado pelas

pessoas que por ele transitam e nele exercem suas atividades,

é um produto material em relação com outros elementos materiais –

entre outros, os homens, que entram também em relações sociais

determinadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementos

da combinação) uma forma, uma função, uma significação social.

(CASTELLS, 2009, p. 181).

Constituindo-se como um meio fundamental de tráfego humano e comercial, a

navegação no São Francisco, trabalho cotidiano de grande parte dos homens e

mulheres de classe humilde em idade ativa, e veículo de uso por boa parcela dos

moradores da Juazeiro, configurou-se como elemento integrador entre rio e cidade,

fazendo com que, por meio da prática social, o local comunicador (o cais, a rampa

que sobe para o centro, a faixa de terra à beira do rio) fosse, de fato, significado

pelos citadinos como espaço socializador, bem como espaço de distinções e

hierarquias. Podemos identificar tal elemento nas narrativas de fluviários

aposentados e moradores da cidade que, entre 1940 e 1970, puderam utilizar este

transporte em suas possibilidades.

É preciso compreender que tanto o centro quanto a margem

(encostas do rio) são construções humanas, inseridos, portanto,

obrigatoriamente em um mesmo espaço, o urbano. Os dois

compõem cada um a seu modo, a geografia da cidade. Pois a

cidade, enquanto resultado da ação humana consegue concentrar a

pluralidade e a diferença. Pensada e compreendida através do modo

de viver, morar e sentir, delineando e imprimindo gradualmente a

constituição de espaços configurando, assim, uma cultura do urbano

(MORAIS, 2012, p. 47)

Page 46: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

45

As práticas neste local vão variar de indivíduo para indivíduo: o homem que

carrega sacos para embarca-los nas barcas e vapores desenvolve com o local uma

experiência adversa daquela construída por um usuário, que se prepara para uma

viagem rio acima, em primeira classe. Para o carregador, o espaço entre rio e cidade

significa trabalho, esforço, suor; para o usuário, espaço de partidas e chegadas,

onde poderá ver a cidade gradativamente se distanciar ou se aproximar, ao sabor do

balanço das águas. Estes dois indivíduos praticam o mesmo local, porém as ações

que desenvolvem, e que transformam o lugar em espaço, são distintas. Portanto,

“ele não é uma pura ocasião de desdobramento da estrutura social, mas a

expressão concreta de cada conjunto histórico, no qual uma sociedade se

especifica” (CASTELLS, 2009, p. 181-182).

Imagem 2 – “Braços que trabalham”: remeiro, carregando a embarcação com frutas. Cena comum

no cotidiano juazeirense.

(FONTE: ASSIS, A. C. Coelho de; MACEDO, Odomaria R. B.; EGÍDIO, Chico. Euvaldo Macedo

Filho – Fotografias. Petrolina: Gráfica Franciscana, 2004).

Desta forma, o local que aqui refletimos é o espaço das práticas de trabalho: o

carregamento dos produtos, a navegação comercial, os contratos firmados entre

patrão e empregado; por conseguinte, é também o local da força, da explosão

muscular, do suor. O clic do fotógrafo Euvaldo (imagem 2) capta bem estes últimos

três elementos na imagem acima: o homem sem rosto, personificação do fluviário,

Page 47: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

46

que carrega sua canoa com frutas a serem comercializadas e/ou carregadas em

uma embarcação maior, representa o pequeno trabalhador em sua lide cotidiana.

O cais, a orla, o porto (e as nomenclaturas variam para a faixa entre cidade e

rio sobre a qual nos debruçamos) é o espaço, também, dos sentimentos, das

sensações, como bem pudemos observar nos relatos citados; espaço que

representa despedidas e acolhidas.

1.3 Usos e representações das navegações e do São Francisco no imaginário

juazeirense

Por que o imaginário? Há quem considere, dentro do fazer historiográfico, ser

esse um lugar comum das pesquisas. A recorrência ao fantástico, aquilo que

aparentemente nada mais é do que imaginação, sem um claro link com a realidade,

poderia caracterizar aqui uma ruptura, por exemplo, com a proposta de análise do

aspecto memorial. O imaginário, aquilo que foge ao concreto, não poderia ser

considerado parte das rememorações, já que não trata das experiências cotidianas

dos sujeitos em questão. Durante a construção desta pesquisa, tais reflexões

estiveram presentes, muitas delas fomentadas, inclusive, em debates dos quais

pudemos participar dentro do ambiente acadêmico. Porém, insistimos em contar

com este aporte principalmente por considerarmos que

a memória é uma parte da alma à qual pertence a imaginação, e

todas as coisas imagináveis são, em essência, objetos da memória.

A experiência sensorial imprime na memória uma espécie de

imagem, como um selo que se imprime na cera com um anel

(GEARY, 2006, p. 178).

A atividade de rememorar é também um exercício da mente em resgatar, nos

cantos mais profundos de nossa memória, elementos que de fato signifiquem ser

parte do passado reclamado para si pelo sujeito; dentro deste processo, práticas,

experiências e sensações acabam sendo resgatadas e interpretadas, com os olhos

do presente, por parte daquele que recorda. Pudemos explorar este exercício

exaustivamente no tópico anterior, a partir de experiências concretas, reais,

Page 48: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

47

vivenciadas pelos nossos depoentes. Aqui, buscaremos auscultar para além disso,

captando o aspecto imaginativo das memórias, onde residem as lembranças que

extrapolam o conceito de real, mas que demonstram a relação existente entre sujeito

e rio através das apropriações do real feitas nas recordações ditas “fantasiosas” e

pouco fiáveis. Ora, “o imaginário, como sistema de idéias e imagens de

representação coletiva, teria a capacidade de criar o real” (PESAVENTO, 2002, p.

8), ainda que este real represente as apropriações feitas pelos indivíduos sobre a

realidade.

As relações construídas pelas práticas sociais em Juazeiro, no tocante à

conexão rio e cidade, além das contribuições memoriais já trabalhadas no tópico

anterior, também foram responsáveis pela construção de uma série de “causos” e

lendas urbanas em torno da beira do rio. As leituras feitas dos cadernos de Maria

Franca Pires, uma série de relatos por ela coletados em entrevistas com moradores

de Juazeiro dão uma amostragem disso.

O caráter de nossa análise sobre estes testemunhos vai se pautar na ideia de

que estes fornecem também perspectivas daqueles que falam sobre a cidade e

sobre as navegações no São Francisco, uma vez que englobam estes elementos na

narrativa, revelando também a forma como são apropriados pelos sujeitos. Assim,

queremos evidenciar que “o espaço urbano, na sua materialidade imagética, torna-

se, assim, um dos suportes da memória social da cidade” (PESAVENTO, 2002,

p.16), nesse momento, analisadas através do imaginário construído pelos citadinos.

Considerando o acima exposto, utilizaremos trechos das anotações realizadas

por Maria Franca Pires em suas pesquisas informais com moradores da cidade.

Tendo sido utilizados já anteriormente neste capítulo, os cadernos de Franca Pires

compõem uma fonte importante, ao passo que ela, ainda que de forma autônoma e

desprovida dos métodos acadêmicos, pôde realizar entrevistas, captando as

memórias dos citadinos sobre diversos elementos culturais e sociais de Juazeiro.

Dentre estas anotações, colhemos alguns dos relatos que aliam elementos

inerentes ao imaginado, ao fantástico, ao surreal, juntamente com percepções do

concreto, do dia a dia ribeirinho, relacionado ao rio e às navegações.

Eunice Teixeira dos Santos, uma das pessoas com quem Franca Pires travou

conversação, conta em sua narrativa que “moradores de margem do rio,

costumavam dizer que, viam vapores bem iluminados no rio e [quando] chegavam

perto, não era nada”. (Caderno 6, p. 39). Aqui, a estória contada busca elementos na

Page 49: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

48

realidade: os vapores iluminados são reflexo dos navios reais, já costumeiros na

paisagem juazeirense. O que marca esse conto é justamente a utilização de uma

imagem bastante presente nas memórias aqui trabalhadas, o vapor, embarcação

que podia ser distinguida a partir do seu apito, e que causava alvoroço ao atracar no

cais da cidade. Vemos a conexão entre o aparentemente irreal com o elemento

concreto, elucidando a permanência deste inclusive no imaginário fantástico.

Um outro elemento presente nos casos contados é o religioso. O rio, dentro da

esfera de influência deste elemento, torna-se instrumento de sua manifestação. Na

entrevista com Maria Bárbara Conceição Silva, a Maria de Joaquim Paqueteiro,

dono do paquete Brasil, Franca Pires anota a estória curiosa, contada por ela, de

Domingos, barqueiro da cidade. Passando por Bom Jesus da Lapa, em viagem

“subindo” o rio, ele se negou a parar para que os passageiros pudessem prestar

suas homenagens ao santo. Em decorrência disso, sua embarcação momentos

depois teria começado a balançar e quase virar, perdendo direção. Assustado,

Domingos prometeu ao Bom Jesus que voltaria, caso normalizasse todo esse

problema. Tendo sua prece atendida instantaneamente, o barqueiro deu meia volta

e permitiu que todos fossem ver o santo. (Caderno 6, p. 69-70). Teria o Bom Jesus,

protetor das embarcações e de todos aqueles envolvidos nas navegações do São

Francisco, segundo dona Maria de Joaquim, desgostado da desobediência de

Domingos, punindo-o com o susto? Um conto ao estilo dos Exempla medievais: o

fiel precisa corresponder ao esperado por um bom cristão; a desobediência é punida

com a ira das águas.

O sobrenatural é ainda recorrente em outra narrativa: Valdemira Maria dos

Santos, dona Didi, conta-nos experiências do tempo em que desempenhava funções

de copeira no vapor Cordeiro de Miranda. Segundo conta a Franca Pires, após a

meia-noite, em uma das viagens da embarcação, podia-se ouvir o barulho de pratos

e panelas caindo na copa da embarcação, ao que todos estariam dormindo.

Segundo ela, ao ir até o lugar constatar o que estaria acontecendo, encontrava tudo

na perfeita ordem. Outra história por ela relatada dá conta de uma camareira

fantasma, que sacudia lençóis e toalhas na embarcação (Caderno 6, p. 23-25). Vale

ressaltar, e isso Maria Franca Pires também o faz em suas anotações, que dona Didi

era espírita. As experiências “sobrenaturais” relatadas na entrevista são também

influenciadas pela sua crença religiosa, ainda que consideremos que as referências

ao sobrenatural possam extrapolar a determinação de crença do indivíduo. Porém,

Page 50: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

49

os elementos que permeiam o que é contado (a navegação no Velho Chico, as

manifestações espirituais, sendo o palco o vapor) mostram uma proximidade entre

esta e as entrevistas anteriores.

Este fio condutor nos aproxima da relação estabelecida, nestas estórias, entre

o rio e aquilo que é tido como inexplicável. É ele, o São Francisco, palco flutuante

destes relatos; porém, isso não significa que atue apenas como elemento passivo no

imaginário. No nosso próximo relato, vemos o Velho Chico não mais como mero

palco. É na fala de Maria Isabel Ribeiro Granja, conhecida como Bela, que

observamos tal característica. Sua história remete a um personagem folclórico

conhecido da região, a Mãe d’água. Franca Pires anota o seguinte:

No início da década de 40, a entrevistada diz que, voltando uma

tarde de Petrolina, ao olhar p/ as pedras q. ficam do lado de

Petrolina, viu sentada em uma pedra, uma moça muito bonita com

cabelos longos e qdo chamou a atenção dos outros companheiros de

viagem, a moça jogou-se dentro do rio e todos ouviram o barulho das

águas. Era o paquete Brasil e dirigido por Marciano, empregado do

dono do paquete Sr. Joaquim Paqueteiro (Caderno 6, p. 84).

Dona Bela fazia a travessia entre as cidades, uma atividade bastante

corriqueira no cotidiano de moradores de Juazeiro e Petrolina. A visagem da moça

sobre as pedras a fez associá-la, na entrevista, ao ser fantástico conhecido

popularmente na região como Mãe d’água. Aqui, o rio esconde o mistério, e ainda

que na ocasião, de fato, apenas uma moça estivesse tomando banho nas águas do

rio, a conexão com o sobrenatural aparece de forma clara.

Esta atitude pode ser observada, principalmente, dentre os trabalhadores

fluviários. É possível identificar sinais de proteção espiritual, por exemplo, nos

instrumentos de trabalho com o rio. O cronista Wilson Lins observa que, nos remos

das embarcações “quase sempre tem uma cruz ou um símbolo de Salomão

desenhado na pá” (LINS apud PARDAL, 2006, p. 120). O perigo recorrente dos

seres ocultos pelas águas, como o Nego d’água e o Caboclo d’água, responsáveis

por dificultar a vida nas travessias pelo rio, suscita o desenvolvimento de técnicas de

combate. Em relação ao Caboclo d’água, “conjura-se o seu ataque, levando uma

faca no fundo da canoa” (RIBEIRO apud PARDAL, 2006, p. 120).

As figuras de proa, durante muito tempo utilizadas nas barcas denominadas

Emas, de certo modo representavam uma tentativa de proteção diante destas

Page 51: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

50

manifestações do Velho Chico. As carrancas, nome popular destas esculturas, eram

presença constante nestas embarcações. Pardal (2006) observa a possibilidade de

um uso duplo destas figuras: primeiro, o uso protetivo, em muito baseado nas

crenças em torno dos aspectos místicos do São Francisco; segundo, a ideia de

embelezamento da embarcação por parte dos barqueiros.

É interessante notar que tais elementos permeiam o imaginário juazeirense,

bem como adentram o espaço de trabalho das navegações.

Page 52: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

51

2. NAVEGAR É PRECISO, VIVER TAMBÉM! SUOR, VIDA E AMORES NAS

MEMÓRIAS DE EX-TRABALHADORES DAS NAVEGAÇÕES.

Vamos, neste capítulo, nos debruçar sobre o viver e o sobreviver na cidade de

Juazeiro, entre as décadas de 1940 e 1970, através da ótica dos ex-trabalhadores

das navegações do Velho Chico. Este período, que compreende uma série de

modificações nas atividades desenvolvidas no rio São Francisco, como o advento

dos motores movidos a óleo diesel, introduzidos tanto pela iniciativa privada dos

comerciantes locais, já a partir de 1940; a obsolescência dos navios roda-popa

movidos a vapor em detrimento da nova velocidade das barcas motorizadas, bem

como em decorrência do advento das rodovias e dos automóveis, em meados da

segunda metade da década de 1950, persistindo nas décadas adiante; a construção

da ponte Presidente Dutra e a conexão rodoferroviária entre Juazeiro e Petrolina/PE,

em 1950; configura-se em um momento chave de transformações nas relações

econômicas e sociais em Juazeiro e cidades vizinhas.

Este processo de transformações, identificado a nível local, também pode ser

observado em âmbito nacional. Em três décadas, o cenário político brasileiro assistiu

à queda de Vargas, que esteve 16 anos no poder, no pós-Segunda Guerra Mundial.

Após um período curto de governo interino, com José Linhares ocupando o cargo,

provisoriamente, a retomada das eleições diretas com partidos novamente

disputando um pleito democrático levou ao poder o militar Eurico Gaspar Dutra, em

31 de Janeiro de 1946. A promulgação da constituição, no mesmo ano, que trazia de

volta os direitos amplos dos cidadãos do país, ampliando-os, ventilou novamente

ares democráticos após a Era Vargas. É o próprio Getúlio, dentro deste novo

contexto, que volta à presidência, eleito para o mandato de 1951-1955, interrompido

em 1954 após seu suicídio no Palácio do Catete15. Café Filho, seu vice, o substitui,

dando lugar, após as eleições, a Juscelino Kubitschek, para o mandato de 1956 a

1961. Após JK, Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961 – 1964) dividiram um

15

O atentado na Rua Tonelero contra o jornalista Carlos Lacerda (que saiu ferido, tendo morrido o

major-aviador Rubens Florentino Vaz) incendiou o cenário político nacional. A pressão militar,

juntamente com toda a mídia em torno do caso, veio a tornar a continuação do mandato de Vargas

insustentável.

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52

mandato que acabou suprimido pelo golpe militar de 1964. Humberto Castelo

Branco dá início, ainda no mesmo ano, ao ciclo de militares no poder durante a

ditadura, que vai perdurar por todo o restante do nosso recorte temporal, acabando

apenas em 1985.

Em Juazeiro, tais eventos tiveram repercussão na organização política a nível

local. Entre 1937 e 1945, o coronel Aprígio Duarte Filho, beneficiado com o golpe de

Vargas do dia 10 de novembro de 1937, ficou à frente do município enquanto

prefeito, até a deposição de Getúlio. (CHILCOTE, 1990). Seus principais opositores,

os Viana (ou Vianna), retomariam a posse do governo municipal, primeiramente, de

forma interina, com Edson Ribeiro, aliado político desta família; logo, em 1948, por

meio de eleições realizadas no ano anterior, Alfredo Vianna, pela UDN, assumiu o

cargo, após vitória sobre o mesmo coronel Aprígio Duarte Filho, candidato do PTB,

com uma numeração expressiva (O FAROL, ano 1, n. XXXIII, jan. 1947). A força da

família Viana em Juazeiro, representada por Edson Ribeiro e Alfredo Vianna,

perduraria até 1963, sendo ameaçada entre 1954 – 1958, quando José Padilha de

Souza, do PTB, conseguiu chegar à prefeitura municipal (CHILCOTE, 1990). As

eleições de 1962 trouxeram Américo Tanuri ao posto, representando o PTB e uma

linha política populista. Com o golpe militar, a partir de 1964, os políticos locais

passaram a compor o partido ARENA, dividido em ARENA-1 (grupo Vianna) e

ARENA-2 (grupo de Américo Tanuri).

Neste bojo, identificamos o período 1940 – 1970, seja no campo econômico,

político e técnico, como um período de transformações bastante significativas e que,

dentro da construção das reflexões e análises adiante, receberão o enfoque

necessário, a partir das questões levantadas em relação às memórias que constam

nos relatos dos depoentes. Assim, refletindo sobre as falas dos entrevistados,

daremos destaque às lembranças, silêncios e sentimentos contidos em suas

narrativas.

Além dos registros orais, faremos uso do livro do cronista juazeirense Ermi F.

Magalhães, também ex-navegante do São Francisco, e que reúne em grande parte

suas recordações sobre seu trabalho no Velho Chico. As reflexões e observações ao

longo deste capítulo comporão uma análise sobre as identidades em questão, a

partir das memórias narradas pelos sujeitos e dos elementos que estes trazem à

tona ao recordar seu trabalho, o convívio familiar e a vida na cidade de Juazeiro.

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53

As embarcações movidas por caldeira à lenha, conhecidas como vapores,

reinaram absolutas durante quase um século nas águas do rio São Francisco (1870

– 1960), mas estiveram sempre ladeadas por demais tipos de navegação (em

barcos à vela, canoas, barcas de figura, lanchas, etc.). Nesse tempo, foram todas

estas responsáveis pelo transporte de passageiros e mercadorias, além de fonte de

renda para boa parte da população da cidade de Juazeiro/BA. Viagens entre

cidades, transporte dos produtos da região e de artigos advindos do sudeste do

país, travessia para a cidade vizinha, Petrolina/PE, circulação de notícias, e até

mesmo simples passeios: uma enormidade de atividades sobre as águas do Velho

Chico.

A partir dos anos 1950, com a introdução de barcos motorizados por

“barqueiros do São Francisco, provenientes do Estado de Sergipe, que se instalaram

em Juazeiro e em outras cidades do curso do médio do rio” (NEVES, 2009, pp. 27-

28), os motores abastecidos com óleo diesel imprimiram uma nova dinâmica ao

comércio e às viagens na região. Singrar as águas em menor tempo, com menor

custo e maior possibilidade de lucro ao final do trabalho, foram modificações de

grande relevância. O juazeirense estava ligado ao rio por meio do seu cotidiano de

trabalho, e a cidade de Juazeiro é edificada, assim como as demais comunidades

ribeirinhas, seguindo o ritmo dessas embarcações.

Entretanto, os motores não funcionavam por conta própria; as embarcações

não navegavam ao seu bel prazer, e o carvão não queimava por sua vontade. É

preciso que nos indaguemos sobre as mãos e os braços que conduziram as

atividades nesse processo. Sobre os ombros de quem pesou o remo? Aos dedos de

quem as grandes caldeiras das embarcações infligiram queimaduras e

machucados? Os músculos de quem se contraíram no esforço de movimentar os

remos e varas, impulsionando as barcaças, ou de carregar os pesados sacos cheios

de produtos? Quais práticas, ações, ideias, culturas puderam ser construídas por

tais pessoas? Por entre carrancas, motores, proas e popas, homens suaram o

suficiente para que passageiros e produtos fossem transportados sobre a face, às

vezes tranquila, às vezes raivosa, das águas do Velho Chico.

Faz-se indispensável, assim, ouvir aqueles que puderam viver e atuar nesse

processo. Serão fornecidos ao leitor, ao longo da escrita, trechos de alguns dos

depoimentos coletados entre março e agosto de 2012, em Juazeiro/BA, com

trabalhadores aposentados ligados ao transporte fluvial da cidade entre as décadas

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54

de 1940 e 1970, oriundos de funções variadas dentro do exercício navegante no São

Francisco.

As histórias contadas, as experiências vividas, as tristezas e as angústias

presentes nas falas, representarão mais que meros personagens: serão pessoas de

carne e osso, abrindo a porta da sala de estar de suas casas, para serem ouvidas.

Seus silêncios, suas omissões, as vozes embargadas, serão detalhes que comporão

nossas análises e que podem ser tão reveladores quanto aquilo que foi dito

(POLLAK, 1989). É preciso, destarte, ter bastante cuidado com as análises em torno

deste grupo identitário, no tocante ao perigo de se homogeneizar os elementos

constituintes desta memória coletiva, uma vez que

deve-se ter em mente, ao estudar a construção das identidades

coletivas, que elas são sempre construções fluidas e cambiantes,

nas quais não se pode encontrar algo como um “núcleo duro”, um

“caroço” essencial e imutável, mesmo que muitas vezes o grupo

identitário tenda discursivamente à unificação e ao essencialismo e

busque a construção de uma memória livre de contradições

(BILHÃO, 2006, p. 222).

Antes de mais nada, devemos promover aqui a conceituação de alguns termos

definidores de sujeitos que serão mencionados ao longo deste capítulo. O intuito é

sanar as possíveis dúvidas futuras do leitor atento. Esses termos estão ligados ao

universo do trabalho com embarcações durante o recorte temporal estudado (1940 –

1970), e estiveram em uso praticamente no mesmo período, concomitantemente,

alguns caindo em desuso nas décadas seguintes, outros estando em vigor ainda no

tempo presente, e representavam as categorias de trabalho no transporte de cargas

e passageiros do rio São Francisco (categorias essas nas quais nossos

entrevistados estiveram enquadrados, durante seu tempo de serviço). São eles:

remeiro, moço de barca/moço de convés, fluviário, barqueiro e vaporzeiro.

O termo popular remeiro, que é preferível a “remador”, é muito comum entre as

comunidades ribeirinhas. Define aqueles que trabalhavam com as varas16,

empurravam as embarcações das margens e as faziam navegar pelo rio. Em geral,

16

Vareiros.

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55

desempenhavam suas funções nas barcas de figura17, mas também trabalhavam em

barcos a vela, paquetes e balsas. De acordo com Neves (2011), esses

trabalhadores constituíam uma classe bastante discriminada pela sociedade

ribeirinha, muito provavelmente pelo serviço braçal pesado que desempenhavam, e

pelo fato de, sempre sujos (muitas vezes com o próprio sangue dos ferimentos no

corpo, infligidos pelo manejo das varas, informação encontrada nos relatos

coletados pelo próprio Neves, bem como em escritos de viajantes do São Francisco,

como Burton), serem apelidados frequentemente de “porcos d’água”18. Com o

aumento das embarcações de grande porte, movidas como motores a vapor ou a

óleo diesel, os remeiros, gradativamente, foram perdendo espaço, muito em função

da economia de tempo que as novas tecnologias passaram a proporcionar.

Um dos efeitos da regulamentação do trabalho fluvial, promovida pela

Companhia Fluvial de Navegação, foi a modificação do nome da categoria de

trabalhadores chamados remeiros. Moço de convés19 foi a titulação escolhida, sendo

inclusive assinada nas carteiras de marinheiro pela agência reguladora, muito

embora, popularmente, moço de barca tenha se propagado mais entre a população,

sendo a denominação que (os outrora) remeiros passaram a utilizar, referindo-se ao

trabalho que realizavam. A modificação da nomenclatura pôde ter, também, motivos

culturais: depreciado, o termo remeiro era associado à má fama, pela sociedade

urbana de Juazeiro (entre outras cidades ribeirinhas). “Raparigueiro e mentiroso”

(MAGALHÃES, 2009, p. 87), por exemplo, são os adjetivos utilizados pelo senhor

Ermi ao lembrar-se de um famoso remeiro da cidade, Né da Beirada, que

posteriormente viria a ser dono de uma embarcação própria, a Guaraína.

Fluviário, termo utilizado oficialmente pelos órgãos instituídos legalmente, como

o Ministério do Trabalho, Sindicato de trabalhadores fluviais e a Federação dos

Marítimos, era empregado para designar os trabalhadores que desempenhavam

suas funções a bordo, bem como pelos demais profissionais que permaneciam em

17

Barcas de figura devido a utilização, na proa dessas embarcações, das carrancas, arte ribeirinha

representando cabeças monstruosas que, segundo a tradição, afastavam as assombrações durante a

navegação. 18

Referência claramente negativa, derivada do fato de estes trabalhadores estarem comumente sujos

da lide de seus serviços. Entretanto, é provavelmente também referência ao peixe teleósteo (Myleus

Micans), encontrado na Bacia do São Francisco, popularmente conhecido como Pacu, segundo o

Dicionário Aulete. 19

Em entrevista coletada em 15/08/2012, o Entrevistado 2 utilizou o termo “moço de convés” ao falar

sobre seu trabalho.

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56

terra e que exerciam demais funções (mecânicos, administradores, fiscais, etc.).

Muitos dos funcionários das empresas de navegação preferiam utilizar este termo

para definir seu ofício, pois soava como “algo melhor”, identificando-os enquanto

classe (NEVES, 2009).

Os barqueiros eram os donos de embarcações, chefes dos remeiros e capitães

da própria barca. Em muitos casos, poderiam ser também os “coronéis” de algumas

cidades ribeirinhas. Quando não, costumavam manter relações de compadrio ou

amizade com um coronel. Os barqueiros exerciam um poder patronal sobre seus

moços de barca, que poderiam desenvolver variadas atividades, como caldeiros,

operadores de motor, remadores, e até mesmo cabras e capangas, armados com

fuzis (NEVES, 2011). Até a década de 1930, eram eles que ditavam o ritmo do

serviço, o valor da remuneração e as condições de trabalho, uma vez que os

contratos empregatícios eram firmados através da palavra, regulados pelos

costumes.

A nomenclatura vaporzeiro refere-se a toda a tripulação dos navios a vapor,

também conhecidos como roda-popa ou gaiolas. O memorialista juazeirense (e

proprietário de embarcações) Ermi F. Magalhães relata que

ao longo do Rio São Francisco e seus afluentes navegáveis, a

palavra vaporzeiro identifica os tripulantes de vapores: comandantes,

comissários, pilotos, práticos, maquinistas, carvoeiros, foguistas,

contramestre, taifeiros, zeladores e cozinheiras. (MAGALHÃES,

2009, p. 94).

Esse termo não era oficialmente utilizado pela Companhia Fluvial,

prevalecendo nas carteiras de marinheiro a função específica de cada funcionário.

Entretanto, prevalecia entre a população o nome de vaporzeiro para designar,

indistintamente, aqueles que trabalhavam em vapores.

Eis as principais identificações dos termos relacionados ao trabalho e às

funções desempenhadas nas atividades fluviais em Juazeiro/BA (compartilhadas,

também, entre as demais cidades ribeirinhas). Fluviário e vaporzeiro, termos mais

gerais, englobam várias categorias de trabalho em si: o primeiro abrange os

profissionais relacionados direta e indiretamente ao trabalho com o rio; o segundo,

menos genérico, refere-se àqueles que especificamente desempenhavam funções

em navios a vapor. Em diversos momentos, nos documentos oficiais da marinha,

Page 58: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

57

esses trabalhadores e suas respectivas categorias poderiam ser agrupadas sob a

denominação de fluviários (NEVES, 2009), sendo esta uma categoria genérica,

englobando todas as funções anteriores.

Apesar de ser uma cidade de grande atividade comercial e circulação de

capital, tendo a seu dispor duas vias de grande importância (ferrovia e hidrovia), a

Juazeiro das décadas de 1940-1970 não possuía muitas ofertas de formação técnica

ou superior que proporcionasse o ingresso em demais profissões consideradas, à

época, de nível superior, à exceção da FAMESF, Faculdade de Agronomia do Médio

São Francisco, criada na década de 1960. Segundo alguns entrevistados, ou se

tinha dinheiro pra ir estudar em cidades maiores, como Salvador/BA, ou adequava-

se aos serviços que eram oferecidos na região.

Queremos aqui, através dos depoimentos coletados, refletir sobre as

perspectivas dos nossos sujeitos e a maneira como eles encaravam o ofício nas

embarcações. Estariam estes indivíduos em concordância com a ideia de que

trabalhar com navegação no São Francisco era a única alternativa para ganhar um

salário melhor? Em uma cidade extremamente envolvida com o comércio fluvial, ser

um remeiro/vapozeiro correspondia a uma vocação entre os ribeirinhos, um ideal de

trabalho, ou esta profissão estava estigmatizada como inferior e relegada às classes

mais humildes? De que modo viam as oportunidades de trabalho na cidade e quais

eram seus próprios anseios na vida profissional?

Tais reflexões e indagações vêm servir como guia para as análises das falas

coletadas.

2.1 O ingresso nas atividades fluviais, para além do amor ao ofício ou a falta de

alternativas

Se você visse então nossos barqueiros

Sertanejos bem fortes bem brasileiros

Remando e cantando as mais lindas canções

Estrelas rimando com o olhar de morenas

(D’AVILA apud MAGALHÃES, 2009, p. 21)

Cantados em prosa e verso, os remeiros e vaporzeiros do São Francisco estão

sempre representados como homens fortes, “remando e cantando” sobre as águas

Page 59: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

58

do rio, sob um céu estrelado, uma visão idealizada por artistas que viam nessa

atividade um quê de poesia. Porém, por trás de toda essa pompa imagética, quais

seriam os sentimentos desses trabalhadores fluviais em relação à atividade que

desempenhavam? Realmente amavam o ofício e, de certa forma, faziam jus aos

personagens maravilhosos das canções, ou escolhiam os remos, as velas, os

vapores e os motores por outros motivos? Eis os questionamentos primordiais,

motivadores de tantos outros, nesta pesquisa.

A princípio, precisamos atentar para os perfis dos entrevistados, que terão suas

falas analisadas neste sub tópico. Por intencionalidade, foram escolhidos ex-

trabalhadores ligados ao Velho Chico, mas que desempenhavam funções diferentes.

Dessa maneira, partindo da perspectiva plural de vários olhares particulares sobre o

trabalho com o rio, bem como da relação entre o Velho Chico e a cidade de

Juazeiro, poderemos compreender os motivos e circunstâncias para o processo de

ingresso nas navegações, o sentimento de pertencimento ao ofício, a maneira como

entendiam integrar a sociedade em que viviam, não como algo homogêneo,

fechado, determinado e determinista, mas multifacetado, heterogêneo e,

principalmente (e eis a tônica da nossa pesquisa), particular.

O Entrevistado 1 foi torneiro mecânico, filho de um ex-navegante (fluviário de

vapores e barcas), que nutria um prazer voyeur à beira do rio, observando os

trabalhos e ruídos dos motores das embarcações. Nascido em 1929, em Juazeiro,

pouco estudou, sequer tendo completado o ensino primário. Em 1945, aos 16 anos,

começou a trabalhar como aprendiz. Pude entrevistá-lo em 27 de outubro e 25 de

novembro de 2012.

Nascido em Remanso/BA, em 1937, mas vivendo em Juazeiro desde a

infância, o Entrevistado 2, além de ter sido remeiro, desde os 16 anos, em barco à

vela, onde inclusive teve seu primeiro emprego, em 1953, desempenhou várias

funções em vapores e barcas motorizadas, todas referentes ao trabalho de moço de

convés (taifeiro, maquinista, aprendiz, timoneiro). Tendo aprendido a ler e a

escrever, pouco frequentou a escola na infância. Nos dias 08, 10, 14 e 15 de agosto

e 26 de outubro de 2012, entrevistei-o em sua residência e a bordo da barca Vitória

Régia, onde hoje, apesar de aposentado, ainda trabalha.

O entrevistado 3 iniciou seus trabalhos como carregador de embarcações na

orla da cidade, em 1960, aos 18 anos. Nascido na Ilha do Massangano no ano de

1942, em Petrolina/PE, veio a tornar-se timoneiro poucos anos depois, em Juazeiro,

Page 60: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

59

sendo que tanto esta função quanto a anterior foram desempenhadas sem registro

na FRANAVE (Companhia de Navegação do São Francisco), exercendo-as a partir

de contratos particulares. Não chegou a estudar formalmente, sequer tendo

começado estudos no ensino primário. Nossa entrevista ocorreu em 03 de novembro

de 2012.

O Entrevistado 4, nascido em Juazeiro no ano de 1938, desempenhou funções

administrativas na FRANAVE. Iniciou tardiamente a trabalhar (em relação aos

demais depoentes), em 1960, com 22 anos. Filho de um ex-navegante de barcas e

vapores, ele traçou um caminho bastante diferente dos demais entrevistados, até

chegar ao trabalho com o rio São Francisco. O contato e gravação da entrevista

deram-se nos dias 03 de junho e 24 de novembro de 2012.

Tal qual um prisma, composto por vários fragmentos que dão ao todo sua

complementaridade, os depoimentos destes senhores em idade avançada auxiliarão

na compreensão da vida dos fluviários (vaporzeiros, remeiros, funcionários

administrativos, enfim, todos os ex-trabalhadores ligados ao rio). Afinal, o que

representava o São Francisco para esses juazeirenses de remos, motores e velas?

Único meio de subsistência, um sentimento muito mais profundo de pertencimento,

ou algo mais?

Um dos primeiros elementos a chamar a atenção, dentre a maioria dos

depoimentos coletados, é o início precoce no ofício sobre as águas. Ainda garotos, o

trabalho nas embarcações se fez presente, ora através dos exemplos dos pais, ora

por vontade de trabalhar, ora pela necessidade iminente de prover o próprio

sustento. Ou ainda, todos esses motivos em um exemplo só.

Observemos a fala do nosso Entrevistado 1 (homem de máquinas e motores):

Eu pra começar, xô lhe dizer: tem um, tem um cais lá, eu sentava lá

no cais, eu garoto ainda, novo. Eu sentava e eu via as ma... a zoada

das máquina, né? E eu com aquela vontade de entrar, rapaz. É. Aí,

quando foi um dia, certo dia, surgiu lá umas vaga pra me botá pra

aprendiz lá dentro, eu digo “opa, chegou a minha vez”. Aí eu entrei.

Pronto, aí eu fiquei lá. Foi quarenta e cinco anos, já pensou?

Para este senhor, ver as embarcações e ouvir seus motores era algo

prazeroso, algo que lhe dava “vontade de entrar” e conferir de perto, acompanhar os

trabalhos, tocar, mexer e aprender a manusear os motores. Na oportunidade de

Page 61: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

60

ingresso no trabalho fluvial, como aprendiz, confessou sua alegria (“opa, chegou a

minha vez”). Na época de nossa entrevista, 23 anos passados de sua aposentadoria

(em 1990), ele demonstrou um grande sentimento em relação ao ofício: durante as

falas, fazia questão de apresentar os quadros com fotografias de vapores-gaiola,

expostos em vários pontos de sua casa; bem disposto, convidou-me para conhecer

a oficina que ainda mantém, no quintal de sua casa, onde continua a fazer reparos

em motores de embarcações, apesar dos seus 84 anos (algo como um hobby, como

ele mesmo nos explicou).

Um dos pontos tratados ao longo da entrevista, relacionado ao nível de

instrução que possuía à época em que começou suas atividades na Companhia de

Navegação, nos trouxe a seguinte afirmativa: “Eu pouco estudei, xô20 lhe dizer logo.

Minha... minha, a vida de meu pai era meia fraca, entendeu, na época, e eu resolvi a

ir trabalhar, pra poder ajudar a necessidade de... de casa”. Um dado importante, e

que será novamente utilizado mais adiante.

Óbvio que, mesmo observando a afirmativa de nosso depoente, de que

possuía uma grande vontade de “entrar” naquele trabalho, um outro fator pode ter

pesado muito: o pai era também fluviário de máquinas, um maquinista

(diferentemente do Entrevistado 1, o trabalho com a máquina, o motor,

desempenhado pelo pai dele, estava relacionado com o funcionamento em viagem),

e viajava pelo São Francisco a trabalho.

Eu me lembro muito que ele, ele era... ele era maquinista e viajava a

bordo. E... toda vez que ele viajava, quando voltava, era aquela

alegria, e tal. Passava quinze dia, trinta, viajano, entendeu? E a

gente tinha... aquele prazer de quando ele chegava, a gente era...

aquela alegria, aquela satisfação.

Ver o pai nas embarcações, singrando as águas do rio e, ao voltar, contar

sobre suas viagens e detalhes sobre a lida com as máquinas e motores, poderia ter

influenciado um jovem que estava em busca de um emprego. Porém, surpreendente

foi ver que o próprio Entrevistado 1 negou tal possibilidade em nossa entrevista, ao

dizer “não, não, não. O cargo de embarcação era e... ele memo. Eu num... eu só

fazia manu... a manu... manutenção da, das embarcações”.

20

Correspondente a “Deixe”.

Page 62: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

61

A partir dessa fala, podemos observar que o entrevistado vislumbra uma

divisão que praticamente opõe seu cargo ao cargo paterno, ainda que ambos

tivessem lidado com os motores das embarcações (o pai os operava e fazia-os

funcionar durante a navegação, o filho os consertava e zelava, em terra, para um

bom funcionamento ao longo das viagens).

Ainda que o Entrevistado 1 não consiga ver qualquer ligação com o ofício do

pai, é preciso observar que, dentro dessa família, houve uma influência parental na

escolha pelo ofício. Tanto seu pai, quanto um de seus tios21, eram trabalhadores das

navegações, e ajudaram o jovem Entrevistado 1 a ingressar como aprendiz,

segundo o próprio nos revelou em seu depoimento.

Outro elemento precisa ser lembrado: o costume de ir à orla, ouvir o “ronco”

dos motores e ver os trabalhos nas embarcações. O cotidiano da cidade, ligado ao ir

e vir dos vapores e barcas, aproximava o jovem Entrevistado 1 ao trabalho fluvial,

ainda que ocupasse o espaço de observador, captando os movimentos e os ruídos e

sentindo a tão incontrolável “vontade de entrar”. Tanto este senhor quanto muitos

outros estavam afeitos a esse quadro, ao passar pela orla, seguindo seu caminho

diário para a escola, para as praças, para os bares.

Esse caminhar constitui-se como um processo de significação do lugar,

apropriação do espaço e construção do ideal de pertencimento. É neste processo

que a memória apropria-se dos lugares, conferindo-lhes significações.

Compreendemos que este “espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo

animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram” (CERTEAU, 2012, p.

184). Nele, pessoas vão e vem diariamente, e nele praticam suas atividades mais

comuns, ordinárias. Assim, temos que “o espaço é um lugar praticado. Assim, a rua

geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos

pedestres” (CERTEAU, 2012, p. 184), e por eles recebe significados, sensações e

sentimentos.

O processo que se desenvolve em nosso Entrevistado 1 tem muito disso.

Sentar à orla, no cais, ou debruçar-se sobre o parapeito, vendo, ouvindo e sentindo

o lugar é conferir a ele um sentimento, uma relação de familiaridade e

pertencimento. Aquele ponto, em que cidade e rio se encontram e se comunicam, é

21

O Entrevistado 1 trata sobre esse assunto no seguinte trecho de seu depoimento: “Eu tinha, eu

tinha era meu pai e um tio meu que trabalhava lá também. E, com a ajuda os dois, aí eu consigui

entrá, comecei a trabalhá”.

Page 63: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

62

também o espaço que o jovem Entrevistado 1 frequenta, pra ouvir os sons das

máquinas em ação.

E não somente nosso depoente: este mesmo lugar é praticado por várias

outras pessoas, seja como simples caminho para um destino final diferente, seja

como lugar de partida ou chegada de viagens, seja local de lazer, contemplação,

saudade. As diferentes percepções e apropriações do espaço vão se dar de maneira

individual, a partir dos usos e práticas de cada passante/cidadão: acompanhar o

balanço das águas, despedir-se daqueles que vão embora, pegar um barco à vela e

atravessar o rio, até a cidade vizinha, Petrolina.

Barco à vela este que em 1953, oito anos depois do ingresso do nosso

Entrevistado 1 como aprendiz na Companhia de Navegação, acolhia como mais um

de seus remeiros um jovem de 16 anos incompletos, que também precisava ganhar

dinheiro. Era o nosso Entrevistado 2.

Eu iniciei navegando antes de completar 16 anos por necessidade

financeira. Conclusão do negócio: naveguei em barco à vela, daqui

pra cidade de Remanso. Quando tinha muito vento o marinheiro tinha

uma facilidade enorme, produzia uma boa viagem, mas quando no

dia que não tinha vento se tornava bem difícil a viagem, muito

trabalhosa. Depois então passei a navegar em barco a motor. Aí a

coisa já facilitou. Como foi mais fácil navegando de barco a motor, no

decorrer da história, eu andei navegando de duas e três

embarcações.

A trajetória do Entrevistado 2, dentro das atividades de navegação, é marcada

por diversas funções e habilidades. A princípio, enquanto remeiro de um barco à

vela, também comumente conhecido como paquete na região, ele desempenhava

seu ofício, no início da carreira, em viagens que ligavam Juazeiro à Remanso/BA.

Em seu depoimento, não houve menção ao ato de sentar e observar à beira do rio,

ou o desejo de entrar, como o Entrevistado 1. Começar a trabalhar antes dos 16

anos, em um barco à vela, tendo de conduzir a embarcação com as temidas varas

de madeira (instrumentos utilizados para literalmente empurrar a barca, quando não

havia vento. Em diversos casos, esse instrumento era responsável por uma ferida

Page 64: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

63

profunda à altura do ombro, capaz de inutilizar um remeiro22), correspondia a uma

necessidade urgente em trabalhar. O Entrevistado 2 não teve a oportunidade de

entrar na Companhia de Navegação como aprendiz e receber treinamentos. Sua

inserção na atividade fluvial foi precoce e sem etapas de aprendizagem, começou já

tendo de empurrar contra o peito a vara para garantir uma remuneração.

Assim como o Entrevistado 1, seu tempo dedicado aos estudos foi muito

reduzido. Advindo de Remanso/BA com sua mãe, as adversidades requeriam que

arcasse com as necessidades básicas da casa, e o manejo com o barco a vela foi

seu primeiro emprego. É imperativo questionar: navegar seria sua única alternativa?

Haveria a possibilidade de um outro trabalho, um outro serviço?

A Juazeiro da década de 1950 não oferecia muitas possibilidades a quem não

tinha acesso à escola. Havia três pilares principais, que moviam a economia da

cidade: agricultura, pecuária e comércio, sendo que estes três elementos dependiam

das navegações para sua consolidação, uma vez que a exportação dos víveres e

alimentos produzidos na região requeria a via fluvial para seu escoamento

(paralelamente, porém em menor escala, a estrada de ferro fazia esse papel,

transportando os produtos para a capital baiana, Salvador).

Só o comércio em Petrolina e Juazeiro, segundo Chilcote (1990), representava,

em 1950, 18% de todas as transações comerciais na região circunjacente23, e em

1960, 66%, apresentando um aumento significativo. Além disso, possuía mais de

1.000 pessoas empregadas (as duas cidades, juntas, atingiam uma marca de 1.272

trabalhadores no comércio, além de 620 estabelecimentos comerciais) 24.

No trabalho com a terra (agricultura e pecuária), havia, na década de 1960,

“138 meeiros, 23 arrendatários e 1048 trabalhadores assalariados” (CHILCOTE,

1990, p. 159), distribuídos em várias propriedades minifundiárias e latifundiárias,

22

Sobre esse assunto, vale a pena conferir o capítulo Os remeiros do São Francisco na literatura, do

livro Rio São Francisco – História, navegação e cultura, do cientista social e antropólogo Zanoni

Neves. Retornaremos a esse assunto no próximo tópico do capítulo. 23

Compreendem-se nesta delimitação territorial mais 17 cidades, pernambucanas e baianas. 24

O pesquisador norte-americano Ronald Chilcote, da Universidade da Califórnia, empreendeu uma

série de pesquisas em Juazeiro/BA e Petrolina/PE na década de 1970, que abrangeram aspectos

sociais, culturais e ideológicos da região, correspondentes a fins do século XIX e a primeira metade

do século XX. Os dados referentes ao comércio nas duas cidades foram-lhe cedidos pelo economista

Carlos Alberto Basílio, da CODESF (atual CODEVASF).

Page 65: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

64

envolvidos com, por exemplo, uma produção agrícola que chegava a atingir 27.687

toneladas, entre tomates, milhos, uvas, mandioca, melão, etc 25.

Então, poderia ter nosso Entrevistado 2 optado por um outro ramo de serviço?

Refletir sobre isso faz com que resvalemos na questão educacional. Dificilmente, no

comércio da cidade, ele poderia conseguir algo que lhe desse uma remuneração

suficiente, uma vez que, ao balcão de um estabelecimento, ele deveria ter

habilidades com números, algo complicado para uma pessoa com pouco tempo de

estudo (porém não impossível, visto que não ter escolaridade não significa, via de

regra, ausência de habilidades com as operações matemáticas básicas). Além disso,

boa parte dos estabelecimentos comerciais da cidade era gestada por famílias

(CHILCOTE, 1990), e era comum que seus próprios membros assumissem as

funções nas lojas.

Se vivesse em um sítio ou uma fazenda, muito provavelmente o Entrevistado 2

teria engrossado as fileiras de camponeses, ligado à prática da agricultura ou da

pecuária. Juazeiro possuía, em seu entorno, uma enorme gama de propriedades

agrícolas, que se beneficiavam com a fertilidade proporcionada pelas cheias do rio

São Francisco e abasteciam as embarcações com uma produção considerável. É

provável que muitos de seus contemporâneos, parentes, amigos e conhecidos,

tenham tomado essa direção.

Mas, vivendo na urbe juazeirense, que, apesar de interiorana, já possuía uma

organização urbana que lhe rendia elogios, desde Teodoro Sampaio ainda em fins

do século XIX, e que claramente, na década de 1950, marcava uma diferenciação

entre o que era campo e o que era cidade 26 (ainda que estas duas esferas

estivessem interligadas por meio das produções agrícolas e dos transportes fluviais),

e tendo como algo muito próximo o dia-a-dia das navegações, do embarque e

desembarque de pessoas e mercadorias e o ir e vir de vapores e barcas, a vida a

bordo poderia ter lhe parecido algo mais possível de alcançar.

25

Dados obtidos a partir de Banco do Nordeste do Brasil. Petrolina-Juazeiro: aspectos sócio-

econômicos e área de influência comercial. Fortaleza, setembro de 1968, pp. 11-13 e dos registros

feitos por Ronald Chilcote (1990), sobre a agricultura em Juazeiro na década de 1960. 26

Teodoro Sampaio cita, como argumentos que corroboravam com a alcunha que dera à cidade

(“corte do sertão”), as ruas extensas, comércio animado, praças arborizadas e o porto fluvial profundo

e municiado com grande frota de embarcações.

Page 66: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

65

Imagem 3 – As ruas de Juazeiro: pavimentação e fachadas imponentes indicavam uma

urbanização sólida em determinados pontos da cidade. A intencionalidade das áreas retratadas nas

imagens visa reforçar essa ideia.

(Fonte: Álbum da Bahia, de 1930).

Apesar de não relatar qualquer gosto em observar o trabalho dos homens no

rio, com suas embarcações, tinha como algo comum ao seu cotidiano, à sua vida na

cidade, os sons e a paisagem do trabalho fluvial. Além disso, a oferta de emprego

nas navegações pode ter sido algo determinante para seu ingresso como remeiro,

ao afirmar que “o que tinha desse rio pra sobrar era embarcação. Tanto é que eu

vou lhe re.. dizer, voltá a dizer mais uma coisa: não faltava imprego. De marinheiro a

piloto e maquinista, graças a deus, nunca me faltou imprego”.

O jovem, diante da possibilidade de trafegar pelo rio em um barco à vela,

conhecendo outras cidades em seu percurso, iniciou seus trabalhos em 1953 como

remeiro sem registro junto à marinha.

É possível que, sete anos após seu ingresso como remeiro, em 1960, já

desempenhando funções de moço de convés em uma embarcação motorizada,

nosso Entrevistado 2 tenha trabalhado lado a lado com um jovem que começava a

dar os primeiros passos no emprego, há pouco tempo, como carregador de sacos

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66

nas embarcações. Aos 18 anos, o Entrevistado 3 teria a oportunidade de fazer sua

primeira viagem, sem registro na Marinha, ocupando uma vaga de moço de convés,

sendo responsável por carregar e descarregar os sacos com produtos a serem

transportados.

Reticente, desconfiado, mas sorridente em todo o tempo em que deu seu

depoimento, o então senhor de 71 anos expressava em curtas locuções aspectos de

sua vida. Sobre a escolha que fez, em trabalhar nas embarcações, explicou: “A

minha vontade foi eu mermo, ninguém me obrigou, é. Eu trabalhei muito em [19]60,

a minha primeira viagem, em [19]60 [...], aí eu comecei viajar em [19]60,

daí pra cá parei uns mês, 5 ou 6 mês, por aí.. e... então... aí por aí começou.”

Utilizando-se de silêncios e expressões do tipo “ixi, aí é difícil” e “ah, aí é ruim,

né?” (repetidas em diversos momentos ao longo da entrevista), o Entrevistado 3

buscava sempre se esquivar de assuntos que pudessem ser difíceis de tratar.

Pudemos constatar, ainda assim, que ele até a juventude morava na Ilha do

Rodeadouro, no Massangano, uma das várias ilhas do São Francisco, pertencente à

cidade vizinha de Petrolina/PE. Durante esse período, costumava ir com frequência

à Juazeiro, comprar o que ele denominou como “rango” em armazéns da cidade.

Trabalhar com as navegações pode ter-lhe parecido o único meio de

subsistência possível, ao demonstrar certa resignação sobre a falta de perspectivas

na cidade, chegando a afirmar que “achava bonito porque não tinha outra coisa pra

olhar”. Sendo morador da ilha até a adolescência (em determinado momento, ele

afirma, ao falar sobre onde residia à época: “Minha mudança foi de criança, rapaz,

novo, eu ia lá, minha mãe morava lá, eu ia, sempre eu ia e voltava”), mas

convivendo na cidade de Juazeiro quase que ao mesmo tempo, o Entrevistado 3,

com frequência, utilizava-se de balsas, uma vez que o meio fluvial era o único que

possibilitava a conexão entre cidade e ilha.

Aos 18, ao que parece, já havia fixado residência em Juazeiro, em 1960,

quando vai começar seus trabalhos. Assim como os entrevistados anteriores, sua

baixa escolarização e uma aparente resignação27 fizeram com que o Entrevistado 3

caminhasse para os pesos das cargas das embarcações e fizesse disso seu

primeiro emprego.

27

Esta observação está baseada nos elementos apresentados pelo próprio entrevistado, ao

rememorar seu ingresso nas atividades fluviais como “era só o que tinha”.

Page 68: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

67

Motivos diferenciados e percepções distintas sobre a relação com o rio.

Pudemos observar que a tônica dos depoimentos, sobre as razões em ingressar no

serviço fluvial, mostrou-se bastante plural: o desejo de trabalhar com as

embarcações e a vontade de ajudar nas despesas de casa para o primeiro; a

necessidade financeira para o segundo, impulsionando um adolescente com menos

de 16 anos para seu primeiro emprego; a falta de “outra coisa pra olhar” e a

resignação do terceiro. No entanto, há um aspecto em particular que une esses

homens de barca: a baixa escolaridade. Tanto um quanto os demais pouco ou nada

estudaram, tendo em vista que precisavam ajudar nas despesas de suas famílias.

Assim, o trabalho com as embarcações (quer seja com os motores, como o

entrevistado 1, quer seja com o transporte de cargas e passageiros pelo rio, como é

o caso dos entrevistados 2 e 3) parecia-lhes a oportunidade de ganhar uma

remuneração razoável, apesar do pouco estudo.

Porém, tais elementos parecem não ter sido tão fundamentais para o nosso

Entrevistado 4. Nem necessidade financeira, nem a urgência de ajudar a família,

muito menos o prazer de ver e ouvir as embarcações à beira do rio. Sendo parte de

uma família com relativa tranquilidade financeira (não rica, como o próprio senhor

enfatiza em sua fala), o Entrevistado 4, juntamente com os irmãos, pôde frequentar

a escola, e via no funcionalismo público, como boa parte dos seus contemporâneos,

a oportunidade de melhoria de vida.

Na ocasião, em [19]53, eu entrei no hoje, chamava, chama Edson, lá

naquele tempo era Ginásio de Juazeiro. Eu fiz a primeira série lá,

porque o sistema era diferente, né? Primeira, segunda, terceira e

quarta séries, depois você ia fazer qualquer outra coisa, é, ou

magistério, ou, ou, científico, quando você aspirava a um outro tipo

de, de a, de atividade que não a edu..., é, o magistério, né? E, no

meu caso particular, eu estudei primeiro no [colégio] Edson Ribeiro,

depois eu fui a Salvador, porque eu queria ser marinheiro. Eu fui pra

escola de aprendiz de marinheiro. Só que eu tinha um problema de

visão que não consegui, apesar de ter até a, algumas pessoas lá

influentes, eu tinha um tio, que era capitão da marinha, e ele, e ele,

apesar, ele também num, diga-se de passagem, ele num se esforçou

muito não, né? E acho que também nem tinha como, e eu não, não,

não, não, não pude ingressar, porque tinha uma deficiência ótica,

viu?

Page 69: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

68

Aqui, o entrevistado 4 nos expõe uma série de elementos bastante

significativos. Primeiro, ele possui um grau de instrução maior que os demais

entrevistados: completando o ensino ginasial (atual ensino fundamental) ainda em

Juazeiro, foi para Salvador, dar prosseguimento ao curso científico (atual ensino

médio). Segundo, advindo de uma família com condições financeiras relativamente

boas (o pai funcionário público era o provedor da casa), o entrevistado 4, em sua

juventude, pôde ter acesso à educação com maior facilidade, o que lhe permitiu,

posteriormente, aspirar a empregos com maior remuneração. Por fim, porém não

menos significativo, ele confessa uma frustração: o impedimento em ingressar na

escola de aprendiz de marinheiro, em Salvador, e seguir uma carreira na Marinha,

em decorrência de uma deficiência ótica. A despeito da ajuda que não veio, nosso

entrevistado 4, no entanto, em seu depoimento, não pareceu se importar tanto ao

relatar seu insucesso na Marinha, uma vez que, segundo ele, possuía uma outra

profissão em vista no campo da Agronomia. É interessante notar que à data de

ingresso do nosso Entrevistado 4 no Ginásio de Juazeiro, em 1953, paralelamente, o

Entrevistado 2 estava iniciando suas atividades, com 16 anos incompletos, em

barcos à vela.

Ao longo da análise da narrativa do Entrevistado 4, pudemos notar que, em

nenhum momento, ele apresenta como desejo seu trabalhar nas embarcações do

São Francisco. Tendo pleiteado entrar na Marinha, a princípio, é possível que tenha

se espelhado no próprio pai, que havia sido marinheiro de vapores; por outro lado,

durante sua narrativa, apesar de considerar que havia uma prática comum, por parte

da população, de visita à orla, ao rio, de observação das embarcações, ele não

atribui a si tal prática, e até revela certo distanciamento em relação ao rio,

justificando isso pelo fato de morar afastado do centro da cidade.

Seria por este serviço representar, dentro da perspectiva da sociedade local da

época, um ofício para pessoas com menor grau de instrução? Estariam os trabalhos

relacionados com o rio mais ligados à ideia de que eram exercícios profissionais

para aqueles que advinham de grupos mais humildes? De certo, o entrevistado 4

não teria problematizado tais questões. Para ele, como para boa parte dos seus

colegas de estudos, sair da cidade e ir para Salvador representava um processo

natural na vida daqueles que conseguiam “algo a mais”.

Esta última reflexão foi construída a partir de mais um trecho do depoimento do

entrevistado 4, que diz o seguinte:

Page 70: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

69

Antes de, de entrar na viação, entrar na Franave, eu fui, eu fui em

Salvador, fui fazer o científico lá. Eu estava fazendo o primeiro ano

científico porque eu pensava na ocasião em ser agrônomo. Como

aqui em Juazeiro não tinha, aqui só tinha, o quê? Ou vo... ou você,

ou você era contador ou não era nada. Sabe? Porque você não tinha

opção e num tinha curso científico aqui. Aí então você tinha que sair

de Juazeiro. A grande maioria das pessoas, que tinha algum parente,

al... alguém lá fora ia pra lá, pra esses lugares, pra fazer.

Ou contador ou nada. Eis aí um dos dilemas que parece ter mexido com o

jovem Entrevistado 4. A carreira na contabilidade não lhe parecia nada apetecível, e

recusar esse destino seria optar pelo “nada”: e o que seria esse nada? A expressão

é vaga e, ao mesmo tempo, generalizante, com uma conotação negativa. O trabalho

como fluviário pode estar aí inserido, bem como o trabalho nas fazendas locais,

entre vários outros serviços. O “nada” generalizante do entrevistado pode se referir a

tudo, principalmente ao fato de que uma profissão de gabinete, para ele e seus

pares, seria o alvo a ser atingido, o serviço mais almejado e mais valorizado dentro

do contexto social da época.

Na capital do Estado, o Entrevistado 4 conseguiu um emprego público, porém

temporário, que lhe garantiu meios de sobreviver enquanto estudava.

Fiquei algum tempo, trabalhei um período numa subsidiária da

Cacex, que era Carteira de Exportação do Banco do Brasil, eu

trabalhei lá, e fiquei que era uma espécie de conferente da, do, do,

do, do translado de, de cacau. O cacau vinha de Ilhéus [BA] nas

embarcações e eram, e eram colocada nos armazéns ali do porto e

né... é... essa, esse... esse transbordo da embarcação para os

armazéns eram controlados por, por a gente. Tinha um, uma equipe,

e eu era um desses conferentes.

Como seu trabalho em Salvador dependia das safras (e estas precisavam ser

regulares, para a manutenção dos salários), nosso entrevistado viu-se forçado, em

um período de entressafra, a retornar a Juazeiro. Uma vez de volta à cidade

ribeirinha, por intermédio do seu pai, que possuía contatos na secretaria de Viação e

Obras Públicas do Estado da Bahia, ele conseguiu um cargo administrativo na

FRANAVE.

Page 71: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

70

2.2 Condições de trabalho, remuneração e a alegria do comércio juazeirense!

Apitos, vapores, vozerio. Pessoas sobem e descem a rampa da orla, que liga o

centro da cidade à margem do Velho Chico. Trouxas e malas, bilhetes e lágrimas, e

o balanço das águas do rio, que teima em sacolejar as barcas encostadas. A bordo,

redes estão sendo montadas, e enquanto alguns moços de convés esperam ordem

para desamarrar as cordas que prendem as barcas na areia, outros marujos

carregam sacos e mais sacos com rapadura, feijão, arroz, milho, algodão, sal, dentre

tantos outros produtos, e os depositam nas embarcações. Motores a óleo diesel e a

vapor ladeiam-se, aguardando seus maquinistas os acionarem para que a viagem

possa começar. Mesmo com a presença destas potentes máquinas, paquetes

também se fazem presentes, com suas velas, varas e remos, e esperam ou os

passageiros para a travessia à Petrolina ou os carregamentos de produtos para as

cidades próximas.

Eis um quadro corriqueiro em Juazeiro entre as décadas de 1940 e 1970,

espaço de tempo marcado por grandes transformações, mas também por ser um

período em que as navegações desempenharam papel predominante nos

transportes de mercadoria e de passageiros. Não seria difícil, para nós, imaginar

nossos entrevistados protagonizando o quadro que pintamos, trabalhando na lide

diária e movimentando, com seus braços sob o sol, as embarcações sobre as águas

do São Francisco.

Porém, para além de nossas suposições, como os próprios fluviários

enxergavam o serviço que desempenhavam? Trabalhavam demais ou o suficiente

para o retorno salarial que recebiam? Seria essa remuneração condizente com os

anseios de cada um? Uma vez que refletimos sobre o ingresso de cada entrevistado

no trabalho com as navegações, devemos indagar, através de suas falas, como

estes viam seu ofício e, a partir dessas histórias, encontrar as conexões entre

trabalho, rio e cidade, no âmbito das sociabilidades e construção de uma identidade

social.

A imagem abaixo, que cristaliza o momento de chegada e partida dos vapores,

faz parte da série de fotografias que passou a circular livremente pela comunidade

em formato digital, sem a devida referência, como bem refletimos no capítulo

anterior. Notando a ausência da ponte Presidente Dutra ao fundo da paisagem,

Page 72: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

71

sabemos que esta fotografia é anterior à década de 1950, e capta o período de seca

do rio, haja vista que a porção de terra que geralmente está submersa aparece-nos

em primeiro plano. Carregamentos, embarques, desembarques, transações

comerciais, mesmo o simples observar do trabalho sendo desenvolvido, são

algumas das ações captadas aqui. Com o intuito de gravar as atividades cotidianas

da cidade de Juazeiro, os estúdios de fotografia da região procuravam cenas

comuns, como esta, para fazer seus registros.

Imagem 4 – Rotina dos navegantes: a fumaça que anuncia partidas e chegadas e a margem

do rio repleta de produtos a serem carregados.

(Fonte: acervo particular do Centro Educacional Vivência)

A partir daqui, buscaremos analisar as perspectivas fornecidas pelos ex-

trabalhadores das embarcações sobre as atividades desempenhadas por eles

durante o período em que estiveram no exercício da profissão. Eles realmente

gostavam do que faziam? As condições de trabalho, para eles, eram adequadas?

Como estes trabalhadores representavam uma classe admirada (principalmente nas

produções literárias, canções e poesias) e, ao mesmo tempo, temida e repudiada na

sociedade juazeirense (são estes os “porcos d’água”), será fundamental neste sub

Page 73: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

72

tópico observar o modo como eles mesmos lidavam com essa fama, mesmo aqueles

que levavam uma vida muito adversa aos boatos que circulavam em torno da figura

dos moços de convés. Por um lado, eram os marujos de má fama, briguentos, mal

pagadores, bêbados e “raparigueiros”; por outro, quando recebiam seus salários,

eram os clientes preferidos no comércio de Juazeiro. Até mesmo em alguns

depoimentos, os entrevistados afirmam que o dia de pagamento dos navegantes

correspondia a uma festa nas lojas da cidade, pois indicava pagamento de dívidas e

a contração de muitas outras.

A regulamentação da atividade de navegação por parte do Governo Federal,

nas primeiras décadas do século XX, pode ser um ótimo ponto de partida.

Até meados das décadas de 1920 e 1930, as embarcações que realizavam

viagens entre cidades e estados através da hidrovia do São Francisco circulavam

sem devida fiscalização governamental. Os contratos, firmados “de boca”, entre

barqueiros e remeiros, selados com um aperto de mão simples, definiam o vínculo

empregatício entre patrão e empregado.

Os barqueiros recrutavam os remeiros [...] entre os beiradeiros. Ao

serem contratados, assumiam verbalmente o compromisso de

realizarem uma viagem redonda, ida e volta, e, uma vez completa, o

contrato terminava, Não possuíam nenhum direito a ampará-los,

ficando inteiramente à mercê da vontade dos barqueiros. Estes, por

sua vez, dispensavam aos remeiros o mesmo tratamento dado aos

escravos, utilizando-se com naturalidade do expediente de açoitá-los

e submetê-los a maltratos como resposta a alguma atitude

considerada reprovável (GONÇALVES, 1997, p. 85).

Donos de suas barcas e amparados em um costume de justiça com as próprias

mãos, traço característico da sociedade sertaneja do início do século XX, os

barqueiros possuíam jagunços a bordo, que serviam como seu braço armado, e que

poderiam ser compostos pelos próprios remeiros! (comumente eram chamados de

“remeiros de repetição” 28). Na maioria dos casos, ou se sabe empunhar uma arma e

é contratado como “moço de barca”, ou não é homem suficiente (não é forte,

corajoso, valente o suficiente, reflexo da ideia de virilidade como termômetro da

28

O “remeiro de repetição” é o jagunço armado, à disposição do barqueiro, que deve cuidar da

segurança da embarcação e sua carga. Essa função poderia ser exercida, concomitantemente, com

outras atribuições, daí a necessidade de que o remeiro contratado soubesse empunhar um rifle

(“repetição” é o termo popular para esse tipo de arma) (NEVES, 2011).

Page 74: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

73

masculinidade dos homens, típica nas comunidades ribeirinhas do São Francisco)29.

“Antes de 1930, os barqueiros tinham à sua disposição, nas barcas, um pequeno

exército de remeiros-jagunços que podia servir não apenas ao seu poder de

dissuasão em cada porto, mas às suas alianças com os ‘coronéis’” (NEVES, 2011,

p.145). Daí, a prática punitiva era algo comum e encarado como natural, enquanto o

barqueiro era o “dono” da embarcação e praticava uma ação legítima aos olhos da

sociedade.

Essa lógica trabalhista foi primeiramente abalada pela instituição do rol de

equipagem. Registrar, monitorar, observar: para essas funções é que “a Capitania

dos Portos, de Juazeiro (BA) [...] introduziu o ‘rol de equipagem’, ou seja, a relação

dos tripulantes de cada embarcação” (NEVES, 2011, p. 153), um registro dos

trabalhadores nesse órgão da Marinha de Guerra, durante a gestão de Góis Calmon

(1924 – 1928) no governo do Estado da Bahia. Servia como meio de controlar os

contratos de trabalho e fixar os valores a serem pagos por cada modalidade de

viagem, de acordo com cada serviço. A garantia de cumprimento das normas

estabelecidas era assegurada pela Marinha e seus soldados.

A utilização do rol de equipagem também proporcionou uma melhoria das

condições de trabalho dos “moços de convés” e demais empregados das

embarcações, bem como serviu de segurança contra patrões que, de alguma

maneira, buscavam exceder em sua autoridade. Assim, o Estado passa a mediar as

relações de trabalho. Essa perspectiva pode ser encontrada no depoimento do

Entrevistado 2, maquinista aposentado. Trabalhando como “mascote” 30 em

embarcação, o entrevistado alegou ter alimentado desejo em tirar a carteira de

marinheiro para “melhorar de vida”, fugindo do trabalho pesado e mal remunerado

que até então recebia.

em uma certa feita, eu navegava ni um barco e por não ter a carteira

de marinheiro, eu tinha por obrigação fazer todo aquele serviço mais

grosseiro, porque os colega aproveitava no momento eles sabia que

eu não tinha carteira. Eu era tipo o mascote, aquele menino do

recado. Então aí eu fiz alguns anos, alguns meses de navegação, eu

sendo o marinheiro sem carteira, mas numa certa feita eu cismei que

29

Zanoni Neves colhe, em sua pesquisa, uma série de relatos de ex-remeiros sobre estes jagunços-

fluviários, sua ação e o papel desempenhado durante as viagens pelo rio São Francisco. 30

Denominação utilizada pelo próprio entrevistado, para designar seus serviços enquanto menor de

idade e sem carteira de marinheiro.

Page 75: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

74

queria por queria um documento igual os otro. Peguei um pacote de

documento, tirei fotografia, e cheguei a, cheguei até a cidade da

Barra31 aonde tinha uma agência da Capitania dos Portos.

Uma vez possuindo uma carteira de marinheiro, o trabalhador, ao ser

contratado por um barqueiro, deveria ser inscrito no rol de equipagem. Assim,

garantia-se, a princípio, que o contratado recebesse o valor de remuneração que

equivalia à função desempenhada, e permitia que a Marinha fiscalizasse o

andamento do trabalho na embarcação cadastrada.

Com a Revolução de 1930 e a centralização do poder do Estado, também a

cidade de Juazeiro, um dos entrepostos comerciais mais importantes do Médio São

Francisco, passou por modificações em seu sistema fluvial de transportes. Em 1931,

o Tenente Gentil Homem de Menezes assumiu o cargo de delegado na então

Delegacia da Capitania do São Francisco em Juazeiro, sob a jurisdição da Capitania

dos Portos da Bahia, gestada pela Marinha do Brasil, sendo o primeiro de uma série

de militares a assumir tal posto (FIGUEIREDO; SÁ, 1999).

A ascensão de um militar e a centralização do poder imposta por Vargas e

seus colaboradores foram elementos que atuaram no desarme de boa parte das

milícias particulares de remeiros de repetição, a princípio em Juazeiro, e iniciaram

um processo de intervenção federal nos assuntos relacionados às navegações no

São Francisco que, na década de 1940, culminariam na criação da Comissão do

Vale do São Francisco (CVSF) (GONÇALVES, 1997).

Assim, o que temos é o seguinte: desde o rol de equipagens, instituído na

década de 1920, até a fundação da Comissão do Vale do São Francisco, em 1946,

uma série de medidas, que passaram pela repressão aos grupos armados até a

fiscalização mais acurada da Capitania dos Portos nas relações entre barqueiros e

remeiros, promoveram uma melhoria nas condições de trabalho, desde uma

remuneração maior até a liberdade dos remeiros dos castigos infligidos pelos

patrões durante as viagens.

Em Juazeiro, como pudemos ver na fala do Entrevistado 2, adquirir a carteira

de marinheiro passou a representar um passo adiante na carreira como moço de

31

A cidade de Barra/BA também possuía uma agência da Capitania dos Portos, que estava

submetida à sede em Juazeiro/BA. O Entrevistado 2, por ocasião de uma parada da barca em que

trabalhava em Barra, aproveitou o ensejo para tirar sua carteira de marujo.

Page 76: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

75

convés (agora, denominação utilizada no registro na Capitania dos Portos), a chance

para o jovem “mascote” de não ter de realizar o “serviço mais grosseiro”.

Quando citamos esse caso, temos em mente que o Entrevistado 2, bem como

os demais depoentes nesta pesquisa, começam suas atividades após todo esse

processo de regulamentação das navegações do São Francisco. Porém, ainda

assim, na cidade, muitos barqueiros, que possuíam barcas particulares motorizadas

ou à vela, continuavam contratando novos trabalhadores sem carteira de marinheiro

e sem registrá-los no rol de equipagens.

Nosso entrevistado 4, que foi responsável pelos registros do rol de equipagens

na década de 1960, relata o seguinte:

Eu não sei se, se naquela ocasião a Capitania dos Portos, porque já

existia Capitania dos Portos, eu não sei se ela exigia um rol de

equipagem, mas tinha meio mundo de embarcações que não tinham

nada a ver com a FRANAVE. Eram de... de caráter particular, tinha

umas embarcações, é... integradas é que é na região pelos

sergipano, eles chamavam a barca sergipana, que era um tipo de...

de embarcação dife... diferente da, das embarcações que já existiam

aqui, que a gente chamava de paquete.

Aqui cabe explicar que a FRANAVE era uma empresa estatal, responsável pela

navegação com motores a vapor (embarcações roda-popa, gaiolas) e a óleo diesel

(chatas, empurradores). No entanto, muitas outras embarcações (as sergipanas que

o entrevistado cita em seu depoimento, os demais paquetes e barcas motorizadas

de particulares da cidade) também realizavam navegações de passageiros e cargas

paralelamente. Para o Entrevistado 4, funcionário da FRANAVE e responsável por

registrar o rol de equipagens de cada embarcação oriunda da empresa onde

trabalhava, era uma obrigação rotineira realizar os registros e reportar à Capitania

dos Portos em Juazeiro.

Seu estranhamento em relação às demais embarcações decorre da falta de

contato com os procedimentos adotados pelos barqueiros particulares da cidade.

Mais adiante, em sua fala, o Entrevistado 4, apesar de não ter muito conhecimento

sobre a atividade das barcas particulares, lembrou que o cunhado, dono de barca

em Juazeiro, era obrigado a registrar o rol de equipagens na Capitania dos Portos,

isso em um momento posterior (que o entrevistado não soube precisar muito bem).

Page 77: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

76

Então, o rol de equipagens estaria restrito à FRANAVE, órgão governamental,

e suas embarcações? Seria um erro desconsiderar, entretanto, o depoimento do

Entrevistado 2, que traçou sua carreira em barcas privadas, e nos forneceu o

seguinte relato:

Chegando aqui em Juazeiro, depois de ter feito as obrigações do

término da viagem, aconteceu que nessa rampa aqui ao lado um

piloto de uma barca por nome Aragipe necessitava de um marinheiro,

aí me fez uma pergunta: ‘José, você não sabe quem tem uma...

quem ta precisando de um imbarque não? Eu tenho uma vaga aqui

na barca Aragipe.’ Eu disse ‘bem, a gente... a gente pode chegar por

lá’. [...] Nós almoçamos, depois duas hora da tarde, nós chegamo até

a agência da Capitania dos Portos. Chegando na agência da

Capitania, foi feito um contrato do... dum rol, dum documento chama

rol de equipagem, é onde é contratado o marinheiro.

Logo após adquirir sua carteira de marinheiro, o jovem Entrevistado 2, que

ainda era o “mascote” da embarcação em que trabalhava, teve a oportunidade de

assinar um contrato, na Capitania dos Portos, e ser registrado no rol de equipagens

do novo patrão. Esse exemplo vem preencher a lacuna do depoimento do

Entrevistado 4: as barcas particulares também tinham de realizar o registro no rol de

equipagens, na Capitania dos Portos.

A legislação sobre esse assunto vem corroborar com esta informação. A lei nº

556, de 185032, art. 46633, diz que toda a embarcação brasileira em viagem é

obrigada a ter a bordo o rol de equipagem. De acordo com as Normas da Autoridade

Marítima para Aquaviários, NORMAM-13/DPC de 2003, o Rol de Equipagem

(modelo DPC-2303) é registro hábil e obrigatório de maneira geral para as

embarcações que realizam navegação em mar aberto e interior, servindo para

garantir os direitos decorrentes dos embarques e desembarques de tripulantes

verificados em uma única embarcação.

Ainda há mais um elemento significativo na fala aqui analisada: o Entrevistado

2, enquanto “mascote”, sem carteira de marinheiro, não estava registrado pelo

patrão anterior, e a ele eram relegadas tarefas pesadas e “mais grosseiras” (como o

32

A parte referente ao rol de equipagem não foi revogada, estando ainda em vigor no momento de

sua consulta (maio de 2014). 33

O texto da lei pode ser conferido no endereço http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0556-

1850.htm

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77

próprio entrevistado mencionou). Após conseguir sua carteira (ainda com 16 anos)

foi que ele conseguiu um emprego mediante registro na Capitania dos Portos, e com

um salário superior ao anterior: “eu ganhava 250 mi réis, como mascote. Fiz uma

viagem de vinte e seis dia, quando cheguei aqui no porto de Juazeiro fiquei

impressionado com o que o home me pagou, me deu 960 mi réis”.

Precisamos nos atentar aos elementos desta fala: nosso depoente, diante do

valor que recebia, afirma em sua narrativa ter se “impressionado” com o novo

ordenado, mais que três vezes o saldo anterior. Teria ele compreendido que estava

ganhando bem, o condizente ao que ele achava suficiente? Não, este argumento

inexiste em sua fala. O que podemos distinguir em sua afirmativa é a surpresa do

jovem moço de convés, ao perceber que receberia mais do que vinha ganhando, e

isso após o registro feito na Capitania dos Portos.

Retornando à questão do rol de equipagens, vemos que este era exigência da

Capitania dos Portos tanto para as embarcações governamentais, da FRANAVE,

quanto para as barcas particulares, salvaguardando que o moço de convés, para

entrar no registro, deveria ter sua carteira de marinheiro. Caso contrário, poderia

trabalhar com o barqueiro através de um contrato informal, sem as mesmas

garantias trabalhistas.

Dois elementos importantes foram levantados nesta última análise, e

deveremos nos debruçar com mais afinco nas próximas reflexões. Primeiro, a

questão da remuneração do trabalho nas navegações; segundo, tendo em vista que

nosso Entrevistado 2 só teve um registro no rol de equipagens ao trabalhar com

embarcações motorizadas, teria sido este instrumento de fiscalização da Capitania

dos Portos respeitado, também, em demais embarcações menores, como os barcos

à vela?

Primeiro o dinheiro. A fala do Entrevistado 2 nos chama a atenção para a

remuneração ao trabalho que desempenhava nas embarcações. Ainda segundo ele,

“não faltava imprego. De marinhêro a piloto e maquinista, graças a deus, nunca me

faltou imprego”. No entanto, apesar desta frequência de trabalhos no rio, o valor

recebido à época parecia-lhe insuficiente:

Inda tem mais, agora uma coisa que num tinha igual era salário,

porque a gente trabalhava num era pa impresa, era pa patrão pobre

que mal tinha o barco, comprava mercadoria fiado, pra conduzi,

vender de cidade em cidade, e tinha uns bom de situação, né? Mas

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78

só que o salário num era lá essas coisa, mas era o imprego da

época, né? E todo mundo com aquele salário que ganhava se

mantinha, né?

Seguindo o curso de suas rememorações, notamos que aquela surpresa ao

receber os “960 mi réis”, logo após conseguir sua carteira de marinheiro e ter um

considerável aumento em relação ao que recebia enquanto “mascote” da

embarcação, parece ter desvanecido no decorrer de sua carreira fluviária. Família

para sustentar, patrões mal pagadores, custo de vida, uma série de elementos

podem ter atuado para tornar o ganho obtido em algo insuficiente. Mesmo assim, ao

final do trecho aqui separado, notamos certa resignação em relação a isso: era o

emprego da época, aquele que poderia ter, e ele e os demais colegas se

sustentavam (ou tentavam se sustentar) dele.

O Entrevistado 3 também contemplou este assunto em seu depoimento. A

princípio, do tempo em que trabalhava como carregador, ele expressou certa

insatisfação em relação aos serviços desempenhados: “meu trabalho foi muito

duro, eu carregava saco, sabe o que é carregar saco? Pois é, daquele jeito”. Porém,

não mostrou o mesmo em relação ao salário recebido, o qual não soube fixar

certamente, citando os valores 100 e 200 cruzeiros (a confusão com as moedas,

cruzeiro e real, acabou comprometendo a precisão na fala do entrevistado). Assim

como o Entrevistado 2, demonstrou resignação ao afirmar que “não tinha outra

coisa”.

Em outra parte da entrevista, ele retornou ao assunto, ressaltando que “o

trabalho era muito ruim. Era muito ruim. É brincadeira você dá um duro danado, o

peso esquisito que você pega”, quadro que só viria a melhorar, de acordo com o

próprio entrevistado, a partir da sua promoção a timoneiro; não em relação ao

salário, mas em relação ao serviço desempenhado: “Só pilotar. Chegava nos porto,

ancorava pra lá e quem quiser que se virasse”.

Analisando as rememorações do Entrevistado 3, pudemos constatar que o

ponto central de suas reclamações está na quantidade de serviço, e não

propriamente na remuneração recebida. O salário seria o possível, dentro do que

encarava como normal, comum para si e para os demais colegas fluviários, uma vez

que não havia outra coisa a fazer; a carga de trabalho é que correspondia a um

terrível problema.

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79

Mas há quem tenha uma opinião diferente, em relação à questão da

remuneração aos trabalhadores do rio. O Entrevistado 4, por exemplo, ressalta uma

melhoria do poder aquisitivo dos fluviários após a criação da FRANAVE, em 1955:

As pessoas que ganhavam um salário relativamente pequeno

começou a ter uma fa... a entrar numa faixa salarial bem melhor e

consequentemente um poder aquisitivo bem melhor, e havia até um,

uma certa brincadeira que diziam que o comércio só funcionava a...

havia um divisor de águas entre antes de sair o salário da FRANAVE

e depois que saía, porque havia o incremento do comércio de

Juazeiro nunca antes visto.

Para este depoente, os fluviários haviam conseguido uma melhoria na

remuneração desde que a Companhia de Navegação do São Francisco havia sido

criada pelo Governo Federal. Com salários melhores e pagos com regularidade,

passaram a potenciais clientes no comércio juazeirense, desejados pelos

negociantes da cidade. Representando um “iceberg social” (palavras do Entrevistado

4), o dia de pagamento aos trabalhadores do rio vinculados à FRANAVE fazia a

alegria do comércio juazeirense.

Porém, cabe aqui um esclarecimento. A Companhia de Navegação do São

Francisco, FRANAVE, foi criada pela lei nº 2.599, de 13 de setembro de 1955. Em

seu artigo 12, a lei ressalta que este novo órgão englobaria, mediante

desapropriação, as empresas particulares Companhia Industrial e Viação de

Pirapora S. A. e Empresa Fluvial Ltda (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1955, seção 1,

pp. 2-3); posteriormente, em 1963, as empresas estatais Navegação Mineira do São

Francisco e Viação Baiana do São Francisco, respectivamente pertencentes ao

Governo de Minas Gerais e ao da Bahia, também foram englobadas. Uma vez

unificadas, e sob a nova denominação (Companhia de Navegação do São

Francisco), ficaram sob a tutela do Estado, e todos os seus funcionários passaram a

ficar sujeitos às normas trabalhistas referentes ao funcionalismo público, segundo o

inciso 8 do artigo 12. A melhoria dos salários, citada pelo Entrevistado 4, é fruto

dessa nova organização do trabalho fluvial, por parte do governo.

No entanto, nem todos os trabalhadores fluviais eram funcionários da

FRANAVE! Ainda que possamos considerar que aqueles que eram vinculados ao

órgão governamental tivessem realmente um incremento em sua renda, grande

parte dos demais trabalhadores do rio, e aí encontramos os entrevistados 2 e 3,

Page 81: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

80

desempenhavam suas funções para modestos barqueiros, pequenos empresários

da navegação.

De fato, sendo um dos trabalhos mais populares dentre os cidadãos de

Juazeiro no período em que estudamos (1940-1970), o ofício de fluviário

representava um pequeno mas estratégico número de consumidores citadinos, e

quando possuíam dinheiro, era nos estabelecimentos juazeirenses que iam comprar

gêneros alimentícios, roupas, calçados, além de frequentar bares e casas de lazer

(dentre os quais, os prostíbulos). Porém, como pudemos observar a partir dos

relatos de nossos entrevistados, a remuneração não era a mesma para todos, sendo

os funcionários da FRANAVE melhor pagos do que aqueles que trabalhavam para

patrões de pequeno capital.

Ainda assim, mesmo oferecendo um salário relativamente melhor, haviam

práticas alternativas para garantir a renda, práticas consideradas ilegais por parte da

fiscalização da companhia de navegação, e que eram desenvolvidas pelos próprios

funcionários. É o caso dos “cururu”, revelados pela Entrevistada 8, que nos explicou

o funcionamento deste comércio clandestino:

Por exemplo, o sinhô, trabalhando e viajando nos vapores, chegava

numa numa cidadezinha daquela, aí o sinhô via uma coisa bunita,

comprava, aí comprava, comprava, e ia botando dento de um saco,

botava lá no porão, essa coisa toda que chamavam cururu.

O “cururu” servia como complemento para a renda de Eurípedes, marido da

Entrevistada 8, que vendia os produtos trazidos em Juazeiro. Há que se notar algo

importante: Eurípedes era um dos fiscais da companhia de navegação. Seu trabalho

era justamente impedir tais práticas.

Podemos partir para nosso segundo elemento: o rol de equipagens teria sido

obrigatório, inclusive, em embarcações menores, movidas à vela, e com poucos

trabalhadores envolvidos em sua navegação?

Devemos ficar atentos, para o seguinte: ao tirar sua carteira de marinheiro, o

Entrevistado 2 já era moço de convés em barcas motorizadas (propulsão a óleo

diesel), tendo sido registrado no rol de equipagens também em uma barca movida

por motor a óleo diesel. Então, o que dizer sobre os remeiros remanescentes nas

embarcações a vela? Também eles teriam a oportunidade de possuir uma carteira

de marinheiro e serem registrados no rol de equipagens das barcas em que

Page 82: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

81

trabalhavam? E mais, teriam as barcas sem motor (sergipanas, barcos a vela,

paquetes) a obrigação de fornecer um rol de equipagens à Capitania dos Portos?

Ofício primordial nas navegações do São Francisco, o remeiro por muito tempo

foi o principal motor propulsor de embarcações no São Francisco, principalmente

das Emas ou barcas de figura (que levavam em sua proa uma figura ou carranca) e

persistiu em larga escala até a década de 1940 em Juazeiro, quando a introdução

das barcas sergipanas34 deu uma nova dinâmica para estes profissionais, que

passaram a aproveitar os ventos utilizando duas velas de pano feito de algodão

(LOPES, 1997). O cronista Ermi F. Magalhães conta um pouco sobre essa história:

o proprietário, Manoel Vieira da Rocha, sergipano de Propriá, que

emigrou para Juazeiro, e verificando as possibilidades de navegação

com as barcas que existiam no rio do trecho Piranhas a Penedo,

trouxe carpinteiros e construiu a sergipana, primeira barca de duas

velas que navegou no alto do São Francisco, com sucesso e gerando

lucro. Notícia correu e, muitos sergipanos, que viviam em Propriá, se

deslocaram com suas barcas até Juazeiro. (MAGALHAES, 2009, p.

37).

Ainda assim, o uso da força humana para impulsionar as embarcações não

havia sido descartado completamente. O Entrevistado 2, que navegou nas

sergipanas e em barcos à vela (paquetes, como ele se referiu) explica que ele e os

companheiros de bordo manuseavam “uma vara mais ou menos assim com seis a

seis metro e meio de... de... de comprimento e esse era o motivo da gente conduzir

a embarcação. Levava muito tempo”. Quando não tinha vento suficiente, eram essas

varas que, empurradas contra as margens do rio e bancos de areia no meio do

trajeto, garantiam o prosseguimento da viagem.

Dessa forma, os remeiros continuavam fazendo parte da população

trabalhadora em Juazeiro, sendo contemporâneos dos vapores e barcos

motorizados, inclusive adaptando-se a essas tecnologias de navegação, como é o

caso do nosso Entrevistado 2.

Em seu livro Navegantes da Integração – Os remeiros do Rio São Francisco, o

pesquisador Zanoni Neves já identifica, através de registros orais de ex-remeiros do

34

As barcas sergipanas já eram utilizadas no São Francisco antes, mas a década de 1940 assistiu a

uma utilização em maior escala desse tipo de embarcação, paralelamente aos vapores, que

despontavam como meio mais rápido de navegar.

Page 83: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

82

Velho Chico, que o rol de equipagens era utilizado em barcas de figura desde fins da

década de 1920. Para este autor, o registro de tripulantes e embarcações servia,

inclusive, para coibir eventuais fugas dos remeiros, algo que interessava e muito aos

barqueiros (NEVES, 2011). Obviamente que, além disso, o rol de equipagem

funcionava na fiscalização do trabalho desenvolvido e da atuação dos patrões, bem

como as relações empregatícias e os contratos de serviços.

De acordo com o Regulamento da Capitania dos Portos, em seu artigo 422, as

condições do contrato são lançadas no rol de equipagem, estando subentendidos o

contrato por viagem redonda35 e o direito à alimentação (DIÁRIO OFICIAL DA

UNIÃO, 1948, seção 1, p. 10). Assim, através da Capitania dos Portos, o serviço, a

remuneração e a alimentação do fluviário ficam garantidos, e é este órgão da

Marinha que deve fiscalizar se realmente o acordo firmado foi respeitado

prontamente.

Podemos concluir, após as reflexões apresentadas, e tendo em vista a

legislação sobre o assunto, que também as embarcações sem motor (sergipanas,

barcos à vela, paquetes e demais barcos movidos pela força humana por meio das

varas) também estavam sujeitas ao rol de equipagens, e seus tripulantes deviam

estar inclusos no ato de registro da embarcação por parte do barqueiro. Porém, não

parece ser aconselhável descartar a possibilidade de existirem embarcações

clandestinas, sem qualquer permissão da Capitania dos Portos para navegar e

desenvolver atividades comerciais. Ao longo das entrevistas empreendidas durante

o período de pesquisas, não foi possível localizar e identificar barqueiros e remeiros

que tivessem agido dessa forma.

2.3 “Nem tudo era permitido!” Paixões, brigas e cabarés nas viagens pelo

Velho Chico

De início, silêncio, um sorriso meio forçado, o olhar que se perde de vista,

talvez por acanhamento. Depois, um riso desconfortável e a frase “Aí não pode dizer

não”. A entrevista continua e, quando retomamos a conversa sobre os

35

Ida e volta, do porto de origem para a cidade de destino e o retorno para o local de partida.

Page 84: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

83

“divertimentos” em sua juventude e vida adulta nas viagens pelo rio, a negativa “não,

não, não” alerta para uma zona perigosa e desconfortável nas memórias do senhor

de 71 anos.

As expressões acima citadas, presentes no depoimento do nosso Entrevistado

3, apontam para um assunto caro para alguns dos entrevistados, e que é

responsável por alguns dos silêncios mais significativos nas narrativas coletadas.

Em suas viagens comerciais e de passageiros, a tripulação repetia sempre o

exercício de atracar e desembarcar nos portos das cidades ao longo da hidrovia. Em

muitas vezes, precisavam passar mais de um dia no mesmo local, ora esperando

carregamentos de produtos, ora aguardando a chegada de mais passageiros. Não

havendo qualquer ordem ou orientação da Capitania dos Portos em relação à

obrigatoriedade da permanência dos tripulantes nas embarcações, os trabalhadores,

após cumprir as tarefas a bordo, podiam descer para terra firme.

O que faziam ao adentrar nas cidades? Como passar o tempo até a próxima

viagem? Quais os divertimentos desses marujos durante essas paradas? E, ao

voltar pra casa, o que dizer às suas famílias? Esses questionamentos são os pontos

principais neste tópico.

Os silêncios acusadores ou eloquentes, os sorrisos meio frouxos, e mesmo os

olhares desconfiados compõem elementos a serem observados e refletidos, a

exemplo das percepções sobre o Entrevistado 3 acima citado. A distância de casa, a

relativa liberdade para ir e vir nas cidades em que paravam e o tempo de estadia em

cada porto eram características constantes na vida destes ex-moços de convés,

sempre envolta em histórias e estórias no imaginário popular.

A princípio, sabemos que os contratos de trabalho firmados entre barqueiro e

trabalhador cobriam geralmente uma viagem redonda. Nestas viagens, a depender

da embarcação utilizada e do destino almejado, a duração poderia variar entre 2 e 6

meses. Havia, não raro, a necessidade de atracar a embarcação no porto de uma

das cidades (ou em muitas outras no caminho até o destino final) e lá passar a noite,

a depender, claro, do trajeto a ser percorrido. Uma vez atracados, e com o serviço já

feito, os moços de convés, bem como toda a tripulação presente, poderiam descer

da embarcação e ir à cidade. Segundo o Entrevistado 3, quando “chegava nos porto,

ancorava pra lá e quem quiser que se virasse. [...] Quem quisesse ia, quem não

quisesse podia ficar parado”.

Page 85: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

84

O que faziam, então, nesse meio tempo? Há aí um sem número de

possibilidades: rever amigos, visitar parentes, comprar mantimentos, encontrar

divertimentos e fugir do ócio. O Entrevistado 3 buscou se eximir de detalhar suas

atividades durante o período de parada, respondendo ora com silêncios, ora com as

expressões citadas no início deste tópico, vagamente.

Já o Entrevistado 2 tratou do assunto durante seu depoimento ao falar sobre

aspectos que reprovava no comportamento dos colegas de bordo:

Existia pessoas que só interessava cabaré, mulherismo, e num

interessava ter um alto cunhecimento, entendeu? Por exemplo, você

tá numa cidade num domingo, você é católico, o que custa você

chegar até a um colega da cidade, amigo, uma pessoa de família da

cidade, chegar até lá também na igreja, ter bons custumes. Isso era

importante, já tinha gente que não, num dava essa crença, num

ligava, queria só viver naquela vida anormal.

Ao explicar ter sido um jovem bastante curioso em relação aos assuntos da

embarcação, afirmando sempre estar em contato com os timoneiros e os

maquinistas com os quais trabalhou nas viagens, para aprender mais sobre o ofício,

ele demonstrou certa insatisfação ao falar sobre os companheiros de bordo que

tinham outros interesses (citados no trecho acima). Além disso, pudemos atentar,

em seu depoimento, que havia casos em que os moços de convés tinham de ficar

presos, em decorrência das confusões em que se metiam.

Teve vez de alguns ficá até preso ni alguma cidade por aí, como em

Januária mesmo, né. Umas duas vez chegou o dia da gente navegar

e tê que ficá um, porque tinha feito alguma coisa que com vinte e

quatro hora ele não tava liberado pela justiça, né. Então ele ficava, o

comandante da embarcação, o propietário, se dirigia até o delegado

e ia ver qual era a sentença daquela criatura.

Então, que tipos tão perigosos de conduta praticavam esses marujos durante a

estadia nas cidades ribeirinhas?

Em seu livro de memórias sobre as navegações em Juazeiro, o cronista local

Ermi F. Magalhães, proprietário de embarcações na cidade, conta um pouco sobre

um personagem caricaturado e muito conhecido na região, o Né da Beirada ou Né

Beiradeiro. Segundo o cronista, ele era o “barqueiro mais raparigueiro do seu tempo,

e até nas viagens a sua esposa, D. Sinhazinha viajava com ele fazendo companhia,

Page 86: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

85

Né sempre inventava desculpas quando a barca encostava nos portos para ir até a

cidade, dançar cabaré e raparigar” (MAGALHÃES, 2009, p. 87). O Né da Beirada

desenhado por Ermi acaba incorporando uma ideia de libertinagem e exotismo

caricatural, elementos que permeiam o imaginário social em torno destes moços de

convés.

Porém, é nosso Entrevistado 536, moço de convés durante 27 anos, que nos

conta, sem pudores, boa parte das suas “histórias do rio”, como bem intitula.

Personagem novo em nossa narrativa, necessário é que o apresente, como os

demais. Nascido em 1956, iniciou suas atividades aos 23 anos, em 1979, sendo o

mais jovem dos depoentes, próximo ao limiar final do nosso recorte temporal. Assim

como os entrevistados 2 e 3, estudou pouco e logo ingressou nas atividades fluviais,

apontando necessidade financeira e ajuda nas despesas familiares como principais

motivos. Por contar com conhecidos e parentes na Companhia de Navegação do

São Francisco, conseguiu ser admitido ainda em 1979 no órgão. Foi moço de

convés nos chamados empurradores, barcos motorizados que literalmente

empurravam várias chatas, carregadas com toneladas de produtos da região.

Enquanto o Entrevistado 3 prefere silêncios e sorrisos culpados, e o

Entrevistado 2 prefere atividades muito menos comprometedoras (em seu

depoimento, diz que mantinha amigos nos locais pra onde ia e preferia armar sua

rede e ler os manuais dos motores das embarcações), o Entrevistado 5 preferia

preencher suas horas nas cidades com um pouco mais de emoção.

No depoimento, ele chegou a concluir que, muito pelas punições que recebeu,

entrou marinheiro e se aposentou marinheiro, no sentido de que não conseguiu

ascender profissionalmente. Em um dos casos que contou (e não foram poucos) ele

nos revelou uma de suas primeiras punições: “Quando chegou no porto [de

Juazeiro] pedimos licença para o comandante e aí saímos. ‘Nós volta logo’. Tudo foi

dá nove horas, bebo, tomei uma punição.”

Um de seus argumentos é o de que era solteiro e “banda vuô”, expressão

característica da região para dizer que gostava de diversão, sem se preocupar com

as possíveis consequências. Mesmo punido no caso anterior, por ter voltado bêbado

ao trabalho 9 horas depois do previsto, ele ainda nos relatou nova ocasião em que

desapareceu das vistas do comandante:

36

Entrevista realizada em 25/05/2013.

Page 87: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

86

Tomei uma cana terrível outra vez, tinha pagamento e ele [o dono da

barca] não queria deixar a gente receber, e tinha um colega e aí

‘vamo pra rua rapaz’, ‘não sei não, tamo sem dinheiro’, ‘umbora,

vamo tocá no cabaré da Paratinga’. Eu não morava nem com essa

mulher minha não, em solteiro mesmo, banda vuô, e fomos passear

para Paratinga, tocar nesse cabaré.

Nova escapada furtiva, nova punição: retornando apenas 4 horas da

madrugada, encontrou “motor tudo ligado e me esperando”. Tentou fingir que estava

dormindo, mas foi descoberto pelo maquinista.

Certa feita, num baile em uma das cidades onde a embarcação estava

atracada, e, inclusive, com a presença do comandante da embarcação, um incidente

mais complicado ocorreu.

O comandante [disse] ‘vamos para o forró’, no forró da cega. Já tava

com ela [a esposa] e vi uma neguinha. ‘Vamo dançá’, ‘não, eu não

danço não’, ‘por quê?’, ‘Ah, porque ela é casada e não pode dançar’,

aí o comandante disse ‘pra quê vem pro forró se é casada’, e a

neguinha ‘não’, comandante ‘dance comigo’. A neguinha desdentada

véia, feia do diabo, um fedor de mocó, e eu disse ‘rapaz, não quero

dançar com você não’, e eu disse ‘agora lascou’ e aí agarrei ela e eu

com a barriga ruim e lá vai. ‘Pa, pa’, lá saiu o tiro e ai que ela quis

correr e eu segurei e emprensei, rapaz foi um rebu nessa festa, vi

quase dá briga e ‘vamo embora pra botar o rebocador pro outro lado

do rio’.

Tiros, confusão e o tal rebu. Fugindo para a embarcação (no caso, um

rebocador) tanto o Entrevistado 5 quanto o comandante escaparam de uma possível

prisão na festa.

Vemos, com esse último relato, que os divertimentos em festas e possíveis

confusões não eram privilégio apenas dos moços de convés. A presença do

comandante da embarcação, bem como o caricato Né da Beirada, lembrado por

Ermi F. Magalhães, dono de barca e conhecido frequentador de cabarés, mostra que

havia um costume em comum, entre os fluviários de bordo, de preencher as horas

nos portos com a satisfação dos prazeres.

Na vida urbana portuária do São Francisco, tais divertimentos eram frequentes,

uma vez que

Page 88: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

87

[...] Os cabarés eram espaços em que múltiplas relações eram

vivenciadas. Simultaneamente, eram espaços de lazer, de

sociabilidades, de prazer e de perigo. Foi grande a importância dos

cabarés na vida da cidade. Situados, sobretudo, em áreas

específicas, em geral recebiam o nome de suas proprietárias.

Compunham os cabarés o restaurante, o bar, as mesas e o salão de

danças. (CARDOSO apud MORAIS, 2012, p. 95)

Tratar sobre este tema é, ao mesmo tempo, delicado e esclarecedor. Primeiro,

porque foi possível abordar um assunto que, até o momento, era um tabu (e

continua sendo). Esses senhores puderam falar (ou silenciar) sobre algo que existia,

mas que é tido como “vergonhoso”, que deve ficar “por baixo do tapete”, escondido.

Segundo, porque suas reações, expressões, falas e silêncios foram elementos

responsáveis por mostrar como os próprios entrevistados percebiam e

compreendiam os prazeres e divertimentos dos tempos em que ainda trabalhavam

nas embarcações.

A diversidade de posturas, inclusive, também é um dado interessante, e que

podemos ilustrar aqui. O Entrevistado 2, por exemplo, falou abertamente sobre as

diversões de viagem, enfocando, porém, um ponto de vista distanciado, do convés

da embarcação, um olhar desaprovador, ressaltando sua adversidade em relação

aos companheiros que frequentavam cabarés e arrumavam confusões; a todo

momento, em sua fala, ele buscou demonstrar que não gostava dessa conduta. Isso

pode nos indicar duas coisas: ou realmente desaprovava essa conduta, ou buscou

resguardar suas próprias histórias, preservando-se.

Já com o Entrevistado 3, pareceu mais claro o intuito de se esquivar e

resguardar-se. Relutante, desconfiado, sorridente, ele preferiu relatar mais sobre o

trabalho e a dureza de carregar sacos para abastecer as embarcações ao invés de

continuar falando sobre o assunto. “Nem tudo era permitido” foi sua resposta mais

direta sobre aquilo que buscava durante as paradas nas cidades e sobre seu lazer

em Juazeiro. A presença da esposa em determinados momentos da entrevista

pareceu inibi-lo, reforçando a ideia de que a delicadeza do assunto poderia

corresponder a um tabu familiar, ou sérias sanções no presente.

O mesmo não pode ser aplicado ao Entrevistado 5. Desinibido do início ao fim

de sua narrativa, não teve pudores em contar sobre suas incursões à vida noturna

das cidades por que passou durante as navegações, bem como suas escapadas no

Page 89: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

88

porto de Juazeiro. Durante a fala, ressaltou sempre ter sido um rapaz direito, mas

que gostava dos divertimentos.

Claro que muito ainda ficou sob o véu do esquecimento ou da prudência.

Afinal, “nem tudo era permitido”.

Page 90: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

89

3. TRAUMAS PARA UNS, ALEGRIAS PARA OUTROS: AS TRANFORMAÇÕES

NOS TRABALHOS FLUVIAIS

Em 1950, a ponte Presidente Dutra pôde, enfim, ligar Juazeiro e Petrolina por

meio da linha férrea, a priori, e da rodovia, a posteriori, proporcionando a circulação

de pessoas e produtos sem a necessidade de utilização de embarcações entre as

cidades. Sua construção, ainda que representasse o dito “novo” e privilegiasse o

tráfego de carros e do trem, respeitou a navegação e as embarcações que

continuavam a fazer seu trajeto. Uma de suas partes elevava-se para que os

vapores de maior porte pudessem seguir seu curso. Essa característica nos conecta

com um outro fator: ainda que a ferrovia representasse uma virtual concorrente ao

tráfego pela hidrovia, tanto uma quanto outra desempenhavam funções bem

distintas, no tocante aos serviços prestados, aos produtos comercializados, e

principalmente, aos destinos que possuíam. Essa complementaridade pôde ser

observada ao longo das reflexões desenvolvidas, as quais, neste tópico, iremos

destrinchar com mais acuidade e atenção.

Que modificações os citadinos puderam sentir com a construção da ponte

Presidente Dutra? Ou ainda, houve significativamente diminuição nos transportes

fluviais, a partir do momento em que a ponte passou a conectar as duas cidades por

sobre as águas? Aliado a essas questões, observaremos quais percepções nossos

entrevistados tiveram das transformações na orla fluvial, antes local de embarque e

desembarque de produtos e passageiros nos vapores e demais embarcações, de

escritórios das empresas fluviais e seus respectivos depósitos, e que passou a ser

zona de casas comerciais de varejo. Com essas mudanças, este espaço passou a

significar algo diverso para os sujeitos em questão? Provocou estranhamento ou

estes continuaram reconhecendo a orla como um local de pertencimento?

Continuamos, deste modo, perscrutando as percepções e sensações dos

depoentes, bem como dos cronistas locais. Na busca pela compreensão do modo

pelo qual estes sujeitos compreendiam (ou não) as transformações ao seu redor e

as sentiam (se sentiam), poderemos delinear, nas particularidades das memórias

narradas, representações da relação cidade/citadino, e dentro desse binômio, o

espaço nestas rememorações referente ao rio e às atividades de navegação.

Page 91: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

90

Por compreendermos que Juazeiro organiza-se em torno do Velho Chico (ou

melhor, à sua margem), consideramos que o espaço já identificado aqui como

conector entre rio e cidade também está sensível às modificações advindas das

atividades fluviais, a exemplo de um organismo, ligado de forma interdependente e

refletindo através de suas transformações e reações o elo estabelecido entre as

partes do seu todo. Indo mais fundo nesta assertiva, e levando em consideração a

organicidade da relação rio/cidade aqui tão explicitada, podemos considerar que

Juazeiro é uma “cidade orgânica”, seguindo a concepção definida por Barros (2007,

p. 23-24):

‘Cidades orgânicas’, que são aquelas que vão se formando e

crescendo mais ou menos à maneira dos organismos vivos,

adaptando-se a um terreno em que se viram inseridas de maneira

não planejada, e sobretudo fazendo concessões permanentes à vida

em toda a sua imprevisibilidade. Estas cidades modificam os seus

traçados para se adaptar a um rio que lhes serve de fronteira,

contornam morros ou os absorvem, sobem e descem ladeiras de

variados tamanhos.

Na esteira destas concessões e da imprevisibilidade inerente à vida, Juazeiro

margeia o São Francisco, e constrói seu centro na área próxima à orla do rio, fato

ainda hoje bastante latente ao observador mais descuidado. Seguindo o inverso de

sua cidade-irmã, Petrolina, a orla fluvial juazeirense não impele o passante cotidiano

para outros locais, ou antes, não representa um local à parte daquele que é

praticado com atividades diárias comuns (ir ao banco, comprar roupas, móveis,

trabalhar, e também se divertir, observar, etc.). A orla, ou o cais, como muitos dos

entrevistados aqui costumam dizer, na cidade de Juazeiro está integrada ao fluxo

urbano ordinário.

Podemos atribuir isso, primeiramente, ao rio e às atividades que este propiciou

aos citadinos durante anos a fio. Mas isso só não garante que essa faixa de local

seja integrada às práticas diárias dos juazeirense; precisa-se que haja significação

por parte das pessoas que frequentam o local. Debruçamo-nos sobre isso

anteriormente, no capítulo I, quando buscamos analisar práticas, costumes,

sensações e conexões da vida urbana nas falas dos depoentes que os ligavam ao

Velho Chico. Aqui, um outro tipo de significação nos fará refletir, e que está ligado

Page 92: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

91

aos deslocamentos dos espaços tidos como familiares pelos sujeitos que ora

mostram a voz.

Este último capítulo, desta forma, refletirá sobre as modificações que

perpassaram entre as décadas de 1950 e 1970 na atividade de navegação, nos

espaços de conexão entre rio e cidade e, principalmente, sobre o modo como os

nossos depoentes (ex-trabalhadores e usuários de embarcações, bem como

cronistas e observadores cotidianos) apreenderam e compreenderam esse

processo. Elementos significativos, como a construção da ponte Presidente Dutra e

a nova organização da orla fluvial juazeirense, juntamente com o advento dos

motores a óleo diesel, a diminuição do tempo das viagens proporcionada pela

rodovia e os debates do Seminário da Bacia do São Francisco, em 1975, que

discutia a construção de barragens e o controle dos níveis do Velho Chico, foram

fundamentais no período aqui estudado. Assim, diante desse quadro, como os

citadinos, envolvidos com o cotidiano das navegações, puderam sentir (se sentiram)

e compreender (se compreenderam) esses novos elementos é o que se configura

como questionamento principal neste ponto.

3.1 De depósitos a casas comerciais: as transformações na orla fluvial de

Juazeiro nas décadas de 1950, 1960

Começamos falando sobre os embates entre as vias de transporte em

Juazeiro. Rodovia, ferrovia e hidrovia se entroncam na cidade, e fazem desta um

importante entreposto de trocas comerciais, algo que lhe marca profundamente por

décadas. Complicado é falar em três diferentes vias sem pensar em antagonismos

entre elas. No entanto, necessário é relativizar tal pensamento. Os mais simplistas

podem chegar a afirmar que, por causa da ferrovia, a hidrovia teve seus dias

contados; consequentemente, a rodovia suplantou a via férrea, dando maior

agilidade ao escoamento de produtos. Ainda que este argumento, em parte (e esse

“em parte” é bastante profundo), esteja concordante com uma série de fatores, a

simplicidade que mostra é extremamente frágil. Precisamos falar, a princípio, da

complementaridade existente entre a hidrovia do São Francisco e a ferrovia que

ligava Juazeiro a Salvador.

Page 93: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

92

A Estrada de Ferro da Bahia ao S. Francisco, também denominada

de Bahia and S. Francisco Railway, foi uma estrada de ferro de 578

km de interligação de Salvador com Juazeiro, o ponto onde se

situava o porto fluvial do referido trecho navegável do Rio S.

Francisco no interior da província. [...] Como foi pequeno o

desenvolvimento da sua região tributária do vale do S. Francisco a

montante de Juazeiro, a estrada redundou em gastos exagerados,

pois atingiu apenas um patamar debilitado sem alcançar os

grandiosos alvos a que se propôs. (ZORZO, 2000, p. 101).

De todo modo, a estrada de ferro representou para a região uma importante via

de conexão com a capital e um caminho alternativo e mais rápido para o

escoamento e recebimento de produtos. De acordo com Zorzo (2003), 10.831

habitantes da área urbana de Juazeiro foram beneficiados com os trilhos do trem, a

7ª maior população dentro das cidades que receberam as estradas de ferro na

Bahia.

Além da própria Juazeiro, bem como Petrolina, as demais cidades dentro da

sua zona de influência na Bahia, Pernambuco e Piauí, que mantinham no porto

juazeirense um intenso tráfego comercial, também tiveram suas mercadorias

escoadas pelos trilhos. O caminho das águas e o caminho dos dormentes37 seguiam

destinos então distintos: as embarcações mantinham comércio com as cidades

ribeirinhas do São Francisco, com destino final em Minas Gerais, no porto de

Pirapora; os vagões dos trens da Leste38 seguiam rumo à Salvador, conectando o

norte do estado à sua capital, num caminho que até então era feito por tropeiros e

caixeiros. Podemos observar o caminho dos trilhos e o sentido tomado pelo rio

através da imagem 5. Assim, a coexistência da hidrovia e da ferrovia funcionava em

um regime de complementaridade para a região de Juazeiro/Petrolina e seu

comércio, e não de antagonismo, fornecendo destinos diferentes para a distribuição

dos produtos locais.

37

Madeiras colocadas transversalmente, onde os trilhos de ferro eram colocados. 38

Comumente, os moradores locais abreviavam Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, nomenclatura oficial da estrada de ferro desde 1930, para apenas “Leste”. A expressão foi utilizada diversas vezes nos depoimentos coletados.

Page 94: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

93

Imagem 5 – Mapa da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.

(FONTE: http://vfco.brazilia.jor.br/39

).

Com a pavimentação das estradas, tanto em Pernambuco quanto na Bahia,

entre as décadas de 1950 e 1960, um novo elemento passa a integrar o sistema de

transportes, oferecendo uma terceira via à população. Durante pesquisas realizadas

na região, já em fins da década de 1970, o pesquisador Ronald H. Chilcote (1991)

pôde observar, à época, que além da hidrovia

O comércio depende, porém, de outros meios de transporte,

principalmente rodoviário e ferroviário. Com a pavimentação das

estradas entre Juazeiro e Salvador e entre Recife e Petrolina, o

transporte rodoviário tornou-se particularmente importante, reduzindo

à metade o tempo de viagem entre aquelas cidades. A rodovia

pavimentada para Recife facilitou também a comunicação com Santa

Maria da Boa Vista, Cabrobó e Belém do São Francisco – cidades às

margens do rio e que dependem de Petrolina. Há também uma

estrada entre Petrolina e Remanso. De Juazeiro parte uma estrada

federal não pavimentada para Aracaju, no estado do Sergipe, a qual,

39

Disponível em: <http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/mapas/1965-Viacao-Ferrea-Leste-

Brasileiro.shtml>, acesso em mar. 2014.

Page 95: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

94

em Canudos, encontra-se com a auto-estrada principal que vai de

Fortaleza a Feira de Santana. O sistema ferroviário liga Petrolina a

Paulistana, a oeste, no estado do Piauí. De Juazeiro, passa por

Bonfim e Alagoinhas e segue para Salvador e Sergipe. (CHILCOTE,

1991, p. 173).

Redução do tempo de viagem, redução consequentemente dos gastos;

podemos assinalar, deste modo, que a partir principalmente das décadas de 1950-

1960, a rodovia passou a concorrer no quesito transporte comercial e de

passageiros. Nesse caso, afirmamos a existência de uma concorrência,

principalmente com a via férrea, uma vez que o caminho para Salvador era também

destino da rodovia. Cada vez mais o fluxo de carros aumentava, e o contexto

nacional auxiliava nesse sentido, uma vez que a “União e os Estados rapidamente

concederam prioridade para a expansão das estradas de rodagem e

secundarizaram as ferrovias” (MARTINS, 2011, p. 416), principalmente a partir

governo JK (1956-1961).

Já na década de 1950, por exemplo, a família de imigrantes turcos e sírios

Khoury detinha, em Juazeiro, uma concessionária da Ford (CHILCOTE, 1991). O

entrevistado 7, já citado em nosso primeiro capítulo, membro da família, foi mais

longe em seu relato: “Nós representávamos Ford, Volks, Chevrolet e DKV, eram

quatro marcas, é, naquele tempo eram quatro marcas”. A crescente oferta de

automóveis seguia uma demanda que já existia, embora em estágio inicial, uma vez

que as conexões comerciais ligavam a região a vários “municípios baianos [...] entre

Juazeiro e Salvador, servidos por rodovia e ferrovia. Essa área abastece Juazeiro e

Petrolina de frutas, mandioca, milho, manteiga, algodão, sisal e outros produtos

essenciais. As fibras e óleos são utilizados pela indústria local”. (CHILCOTE, 1991,

p. 173).

Ainda assim, isso não quer dizer que a rodovia e a ferrovia coexistiam de forma

pacífica, sem conflitos. Um caso emblemático é a construção da ponte Presidente

Dutra, ligando Juazeiro a Petrolina, e a consequente destruição da estação

ferroviária da cidade baiana. Demorada e cara, a linha férrea que chegou a Juazeiro

em 1896 recebeu a estação aqui mencionada em 1907. Em pouco mais de 40 anos,

a mesma estação, tida como símbolo de progresso, foi suplantada pela ponte e pela

conexão rodoferroviária com Petrolina, que passou a ligar Bahia, Pernambuco e

também Piauí, já que na cidade pernambucana havia uma estrada de ferro até

Page 96: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

95

Paulistana. A despeito desta ligação de trilhos, a rodovia prevaleceu, muito pelo fato

da crescente pavimentação de novas estradas nestes Estados e no Brasil como um

todo. De fato, a “febre rodoviária” do período beneficiou e muito esta superioridade

das novas estradas, suplantando o discurso anterior de que “as ferrovias seriam

prioritárias no desenvolvimento nacional, necessárias tanto para o processo de

ampliação de fronteira quando para assegurar a presença do Estado no interior”

(MARTINS, 2011, p. 415), muito reproduzido pelas elites e autoridades brasileiras.

Na análise dos depoimentos coletados, pudemos identificar sensibilizações por

parte dos entrevistados em relação às transformações da cidade. Três elementos

que chamam a atenção são a destruição do prédio da estação, a construção da

ponte e a transformação do cais da cidade. Estes eventos estão interligados com

todo o contexto já trabalhado aqui (o desenvolvimento das rodovias, a suplantação

do transporte ferroviário, o desequilíbrio da relação ferrovia/hidrovia/rodovia, a

mudança de mentalidade das elites e dirigentes brasileiros), traduzindo-o em

concreto, em pedras, em tijolos, visíveis aos observadores comuns.

Imagem 6 – A ponte e a estação ferroviária: o encontro na década de 1950 e o iminente conflito

espacial.

(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com40

).

40

Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6020/6204436614_c5df04ff11_z.jpg>, acesso em mar.

2014.

Page 97: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

96

Na imagem 6, abrimos um panorama sobre o local de disputa. Rio, ponte,

estação ferroviária (à esquerda) compõem o quadro; do encontro das três vias em

Juazeiro, é a via férrea quem vai ceder espaço para o asfalto que segue seu rumo

pela nova estrada. Em contrapartida, com uma parte levadiça do lado baiano, a

Presidente Dutra continua cedendo passagem aos vapores e demais embarcações

de grande porte. Nesta nova conjuntura, a cidade se organiza em função deste

reordenamento, evidenciando um novo equilíbrio na questão dos transportes da

região.

Uma das vozes que pudemos analisar sobre o assunto é a do cronista local

João Fernandes da Cunha. Em sua obra memorialística Memória Histórica de

Juazeiro, em que busca dentro de suas limitações de leigo montar uma crônica de

eventos da cidade, ele não esconde o descontentamento com a extinção do prédio

da estação.

Juazeiro ainda hoje lamenta a decisão tomada pela administração da

Rede Ferroviária Federal, quando para fazer a ligação dos trilhos da

estrada à ponte Presidente Dutra, que fez a conexão da antiga

ferrovia da Bahia a Juazeiro à de Petrolina a Terezina, resolveu

demolir a Estação de Juazeiro, festivamente inaugurada a 15 de

novembro de 1907, um edifício em cuja arquitetura se identificava um

verdadeiro primor de arte, no estilo colonial. (CUNHA, 1978, p. 109).

Cunha claramente mostra-se avesso ao rumo levado pela estação ferroviária

da cidade. Obviamente que não podemos deixar de levar em conta seus interesses

particulares neste assunto: foi também pela ação do senador do Império, Joaquim

Jerônimo Fernandes da Cunha41, seu tio-avô, que a ferrovia e a estação foram

viabilizadas até Juazeiro. Em prosseguimento ao protesto tardio, Cunha ainda afirma

que “até hoje a sociedade de Juazeiro deplora a sua demolição e não entende como

administradores e técnicos, em altas funções públicas, são, por vezes, tão

insensíveis às manifestações da cultura” (CUNHA, 1978, p. 110).

Da pena do cronista, passemos às vozes dos depoentes. A insatisfação de

João Fernandes da Cunha encontra eco nas reminiscências de parte de nossos

41

A todo momento, no livro citado, ao referir-se ao seu tio-avô, o autor utiliza letras maiúsculas. O

“senador FERNANDES DA CUNHA” aparece mais algumas vezes ao longo da narrativa sobre a

construção da ferrovia.

Page 98: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

97

entrevistados; porém, os motivos e as sensações se mostram diferentes, e neste

ponto queremos ressaltar a nossa observação sobre a multiplicidade das narrativas.

Como já trabalhado nos capítulos anteriores, os olhares da cidade são encarados

como únicos, particulares, e revelam muito dos sujeitos que observam e ora falam

sobre suas memórias.

Ao longo das entrevistas, deixamos cada sujeito livre para falar sobre a cidade

e quais modificações no ambiente urbano vinham à memória no momento. Tendo

como intuito observar aspectos relevantes à relação rio e cidade e os espaços

urbanos responsáveis por este diálogo, a liberdade dada aos depoentes no quesito

transformações urbanas tinha a finalidade de permitir que os relatos pudessem

elucidar a forma como estes indivíduos, inconscientemente, faziam (ou não) alusão

ao nosso foco de estudo.

Ouçamos a voz do Entrevistado 642. Este depoente, nascido na cidade baiana

de Sento Sé em 1927, mas morando em Juazeiro desde os seus 4 anos de idade, é

conhecido na região por montar réplicas em miniatura dos vapores mais lembrados

pelos citadinos. Tendo iniciado seus trabalhos na Viação Bahiana como carvoeiro

aos 17 anos, posteriormente sendo transferido para a FRANAVE, em 1963, ele

desempenhou suas funções até 1979, quando se aposentou. Com um falar

tranquilo, no início de sua narrativa, após se apresentar, deixou claro que o Vapor

Juracy Magalhães era o vapor de suas paixões.

Seu destino dentro das atividades fluviais tem muito a ver com o fato de sua

família ser composta por navegantes, como o próprio depoente afirma em sua fala:

Meu pai navegava. Meu pai era marinhêro, de marinhêro meu pai

passô a mestre de lancha, de mestre de lancha passou a praticante.

[...] Aí tinha meus irmão também, meus irmão, nós tu... a família toda.

Aí nóis cor... seguimo todo mundo a carreira de meu pai.

Dentro das análises já desenvolvidas no capítulo 2, podemos observar que,

também aqui, a influência parental foi bastante forte para o ingresso nas

navegações; além disso, nosso Entrevistado 6 se enquadra na característica dos

demais ex-funcionários que iniciaram cedo seu trabalho com o rio e, tal como o

42

Entrevista concedida em 26/03/2013

Page 99: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

98

Entrevistado 3, apresentou a falta de opções para justificar a “escolha” do trabalho

fluvial.

Ao adentrar no ponto da narrativa sobre a questão das transformações da

cidade, o Entrevistado 6 utilizou-se de um argumento saudosista: “Juazeiro era um

lugar que tinha tanta coisa bunita, e distruiro tudo, acabaro com tudo”. Em se

tratando de um senhor de idade, com tantos anos de vida, podemos compreender

sua aversão à ação do homem sobre os espaços da cidade, além do sentimento de

que no passado tudo era melhor. Transformações, fim de espaço de sociabilidades,

locais familiares destruídos; tais elementos nem sempre são bem vindos, e nosso

depoente demonstrou, de fato, seguir essa máxima. Sua narrativa nos conduz até a

antiga estação e ao encontro com a ponte:

Você vê a estação que tinha aqui. Porque o trem era pa passar por

dentro, né? Aí pegaro e distruiro, fizero aquilo ali. Agora porque, que

disse que num teve ninguém pa chegá e falá, pa num fazê aquilo.

“Aquilo ali”, para o que tanto apontou o Entrevistado 6 durante sua fala, é a

atual “banca”, elevação feita em concreto, por onde a pista, ao terminar a ponte e

adentrar na cidade, corre até os bairros mais afastados. Diante da estação

destruída, seu olhar percorre o cais (que prefere chamar pelo nome orla), e

novamente encontra motivos para se indignar. Segundo ele, “o cais era uma coisa

fantástica. O cais num num tinha esse negócio de... de... daqueles tubo não. Ali era

um cais que tinha aqueles comungol. E distruíro, acabaro aquilo ali pa fazer aquilo”.

Em sua fala, dois elementos bastante significativos são citados, ambos

pertencentes ao cais/orla. De fato, podemos observar que eles remetem para nosso

depoente conexões memoriais com seu passado, e que compunham o seu ambiente

diário. Entre a estação destruída e o cais com os tubos (barras de metal que

passaram a substituir a murada de tijolos decorados), o Entrevistado 6 nos passa

locais da cidade que lhe eram familiares, e com os quais nutriu (e nutre) uma

sensação de pertencimento. Sua indignação em face do que se perdeu com as

transformações da orla nada mais é do que o sentimento de perda do que lhe era

comum, daquilo que fazia parte da sua noção de posse ou identidade; no caso,

lugares com os quais este senhor firmou um contrato por meio dos passos, do

caminhar cotidiano (CERTEAU, 2012).

Page 100: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

99

Entre a indignação do cronista Cunha e a do nosso depoente, há sensações

particulares, olhares que se encontram em um mesmo ponto, revelando

intencionalidades peculiares. De fato, a busca do cronista, quando intenta defender

através das linhas de seu livro o monumento ora destruído, gira em torno da defesa

da memória de seu ancestral e de uma obra que, para ele, pertence à iniciativa de

sua família, algo quase particular; nosso depoente, fornecendo um olhar daquele

que contempla pelo caminho, revela a frustração do fim daquilo que representava

para si uma conexão com o passado, além da tristeza em constatar que a sua

Juazeiro (que era tão bonita, como ele mesmo afirmou em sua narrativa) estaria

sendo “destruída”. Ambos, contudo, partilham do sentimento de perda ante a

destruição do prédio.

Imagem 7 – O progresso nas rodas dos automóveis: a rodovia segue seu rumo.

(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com43

).

Com a imagem 7, vemos o mesmo panorama da fotografia anterior. Podemos

observar, contudo, que os elementos em disputa desta vez sofreram modificação

significativa. Não há mais a estação ferroviária, substituída pela estrada que segue

adiante; carros agora marcam maior presença; a ponte conecta-se com a orla por

meio da rampa de acesso construída. Fim da ferrovia? Não, ela manterá seu

43

Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6005/6203911341_2a5367e75e_z.jpg>, acesso em

mar. 2014.

Page 101: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

100

funcionamento por todo o período aqui estudado. No entanto, o signo de prestígio

representado pela estação fora destruído, sendo substituído por um outro símbolo,

marco de uma outra via, a rodoviária: a Ponte Presidente Dutra.

Vamos andar mais um pouco pela orla, e observar este panorama com os

olhos de mais um dos nossos depoentes. O Entrevistado 4, ex-funcionário

administrativo da FRANAVE, é quem nos fornece mais esta perspectiva. A princípio,

sua narrativa percorre outros locais, conectados a lembranças da infância e suas

brincadeiras. O assunto relacionado às transformações da cidade provoca um

retorno ao menino, brincando pelas ruas da cidade de Juazeiro.

As reminiscências da gente onde a gente brincou, aonde a gente

passeou, sobretudo onde hoje é... funciona o colégio Edson Ribeiro,

era uma praça muito bonita, uma praça... e... simplesmente, a gente

não sabe como, porque era uma praça pública, dizem que foi

construído com o dinheiro público, porque o prefeito foi que construiu

o Edson, depois de algum tempo o Edson passou, que era ginásio de

Juazeiro, passou a... a ter dono.

Os olhos da criança, que já não veem mais a praça de suas brincadeiras

diárias, percorrem outros espaços, e acabam desembocando na orla da cidade, local

em que nos debruçamos com maior atenção. O Entrevistado 4 já é um adolescente

quando, na década de 1950, a ponte sobrepuja a estação ferroviária do cais.

A destruição do... a destruição da estação ferroviária, que era um

monumento de caráter, inclusive arquitetonicamente falando,

internacional. Podia ser uma das boas maravilhas do Estado da

Bahia e do Brasil, porque a... o... a estação daqui era semelhante

mais ou menos aqueles prédios tombados pelo histórico, que tem em

Amazonas, que tem em Pelourinho, em Salvador.

Na tentativa de explicar o aspecto físico da estação, o depoente recorreu aos

termos “histórico” e “monumento”, construindo paralelo com locais que, para ele,

representavam, tanto quanto a estação, prédios importantes para a história. Na

humildade de sua locução, podemos notar que também sua memória particular se

conecta às demais aqui exploradas, havendo uma teia que interliga, por meio deste

trauma, as rememorações dos nossos entrevistados.

Page 102: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

101

Sigamos adiante, ouvindo nosso depoente. Como dissemos anteriormente, é

ele também ex-fluviário, responsável pelo trabalho administrativo da Companhia de

Navegação, e seu olhar, agora de adulto, observa um outro fator importante dentro

de nossas análises, referente à relação entre a ferrovia e as navegações no São

Francisco. Este fato recordado (a destruição do prédio da ferrovia) é uma memória

ruim, que lhe causa “pesar”, como chega a afirmar em momentos de sua narrativa;

porém, o fim da estação, a chegada da ponte e as transformações ocorridas na

orla/cais da cidade não representam para nosso entrevistado, de fato, um fim do

transporte ferroviário e da interdependência deste com as embarcações do Velho

Chico.

Seguindo os passos de sua narrativa, encontramos este trecho:

Ali era o terminal. É... a Bahia terminava em Juazeiro.

Consequentemente, todos os produtos que eram trazidos de

Salvador praqui, é... eram transportados nas embarcações de

Juazeiro. Daí eu di... eu falar im carga de terceira. Carga de terceira

é justamente isso: tudo que era produzido ao longo aqui do São

Francisco, ou a... aqui ao longo da ferrovia, é... era transportado

pelos navios da Companhia de Navegação do São Francisco.

A tentativa de empregar uma linguagem técnica, por parte do nosso depoente é

característica marcante em praticamente toda a sua narrativa. A conexão

estabelecida com o terminal ferroviário o faz acrescentar uma informação deste

aspecto, acerca do trabalho de transporte fluvial, ao citar a “carga de terceira”, que

nada mais é que todo tipo de produto repassado pelos trilhos para o caminho das

águas em direção às Minas Gerais, e que percorre o caminho inverso, trazida pelo

Velho Chico e levada em direção à Salvador pela ferrovia. Dentro das

rememorações do Entrevistado 4, falar sobre o fim da estação ferroviária estabelece

uma conexão com as navegações e, consequentemente, com seu trabalho na

Companhia de Navegação. Por conseguinte, e aí seguimos o desenrolar de sua

narrativa, estes elementos o levam a falar sobre a orla da cidade:

Eu acho, com pesar inclusive, que houve um descaso com a

estrutura física da cidade, porque Juazeiro era considerada a cidade

mais bonita do São Francisco e uma das mais bonitas da Bahia e do

Nordeste, por conta da orla, que a orla era ao invés de ter aqueles

Page 103: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

102

canos, aqueles... tinha um parapeito, o cais era protegido por um

parapeito tecnicamente bem trabalhado.

Como nas falas anteriores aqui analisadas, a beleza de Juazeiro acaba sendo

atrelada à sua extensão urbana próxima ao rio, ora chamada de cais, ora chamada

de orla. Entre a estação destruída, por sobre a qual a ponte passa soberana, e a

murada ou parapeito, substituídos pelos canos que até hoje servem de apoio a

quem quiser se debruçar, os encantos de Juazeiro, segundo as óticas até aqui

analisadas dos nossos sujeitos, vão se perdendo. É interessante notar que, para

estes citadinos, a parte significativa da urbe, e que reservava sua maior beleza,

localiza-se justamente no ponto de intersecção entre rio e cidade.

Devemos ressaltar que tais percepções sobre as modificações na orla

representam o modo como nossos sujeitos encararam a transformação do espaço

por eles praticado em seu cotidiano. Inserido nesta assertiva, temos o argumento de

que este espaço, de fato, era significativo para nossos depoentes, e que a ruptura

imagética dos elementos da orla/cais (no caso, estação ferroviária e parapeito/muro)

foi sensivelmente absorvida pelas memórias particulares em questão. A ponte, e

com ela a rodovia, juntamente com os carros cada vez mais numerosos, são

responsáveis por induzir a um deslocamento e modificação das práticas urbanas

cotidianas. Ir a Petrolina, por exemplo, poderia ser uma atividade mais rápida por

meio da Presidente Dutra.

Ainda assim, é interessante notar que, ao mesmo tempo que a ponte significa

progresso, também desperta sensações adversas quanto à sua utilização. É da fala

de nossa Entrevistada 8 que coletamos um testemunho relativo a este assunto:

Uma senhora amiga de minha mãe, que trabalhava com minha mãe,

chegou: ‘eu, que vou atravessar nessa ponte, pra essa disgraça caí

no meio e eu morrer? Vô nada, num entro pra isso não’, aí mamãe:

‘Olha, pensa duas vezes, a ponte é bem sucida, é bem forte’, e tem

ainda aquele subir, pra o vapor passar, num tem? Você sabe, e tem

de baixar, agora é tudo baixo mesmo. Aí, mamãe: ‘Olha, você num

diz que num vai porque você vai, Petrolina também tem muita coisa

boa, você vai lá comprar, chega aqui vende, chega daqui vai pra lá

vender, você gosta de niguciar, você vai passar nessa ponte’. E

quando começou a ponte a funcionar, essa amiga de papai, de

mamãe, papai já tinha morrido [a entrevistada canta nesse

momento]: ‘Quebrei, minha jura, quebrei. Ai, ai, ai, meu Deus, pra

Page 104: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

103

que eu jurei. Quebrei minha jura, quebrei’. ‘Que foi que houve,

Maria?’. ‘Quebrei a jura, passei por cima da ponte’.

De onde parte a desconfiança dentro dessa narrativa? Nossa depoente buscou

entre as rememorações de sua mãe este diálogo bastante pitoresco, e que a fez rir

bastante no momento da entrevista. A amiga da mãe, desconfiando da ponte e de

sua segurança, jurou não fazer a travessia para Petrolina por sobre ela. Ao final de

tudo, a jura é quebrada, e finalmente a senhora passa por cima da ponte. A

utilização desta história por parte de nossa entrevistada nos mostrou, durante as

análises de seu discurso, que, ao tentar rememorar as possíveis transformações na

cidade, sua primeira lembrança a reportou, primeiramente, à ponte, e em seguida,

ao estranhamento de sua conhecida, à época, em relação à Presidente Dutra, num

misto de desconfiança e medo do gigante de concreto por sobre o rio. Como já

pudemos observar sobre esta depoente, sabemos que ela partilhava do costume de

ver a chegada dos vapores ao cais, além de frequentar com assiduidade a cidade

vizinha; ao buscar lembranças sobre possíveis transformações sobre a cidade, seu

olhar recai sobre o rio, e é na ponte e na história engraçada que ela busca expressar

sua percepção em face das transformações em Juazeiro.

Como dissemos anteriormente, é a Presidente Dutra quem vai promover a

conexão rodoferroviária entre Juazeiro e Petrolina; mais importante, é através dela

que a rodovia submete a antiga estação, e com ela traz o tráfego de carros entre as

cidades. Neste item, partiremos para um terceiro elemento de transformações, o

próprio cais da cidade. Para além do parapeito citado pelos entrevistados anteriores,

este espaço de sociabilidades até aqui refletidas (trabalho, lazer, e mesmo a

caminhada cotidiana com direções múltiplas) vai também ceder espaço para os

pneus dos automotivos, provocando um desequilíbrio na relação rio/cidade,

construída a partir das navegações do São Francisco.

A imagem 8 reúne elementos até aqui levantados pelos depoentes: vemos

pessoas debruçadas sobre a murada antiga, algumas em tom contemplativo, outras

em diálogo, outras desempenhando suas funções junto às embarcações atracadas.

Carroças de burro, sacos empilhados, o ir e vir dos passantes, a agitação cotidiana

juazeirense a cada barco aportado. Na parte superior, ao fundo, vemos o teto e

parte lateral do primeiro andar da estação ferroviária; consequentemente, a ausência

da ponte é algo notável. Vamos pegar emprestado um olhar que parte do rio para o

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104

cais, mais precisamente, de dentro de uma das embarcações em direção ao casario

que compõe toda a rua que margeia o trecho urbano juazeirense do Velho Chico.

Imagem 8 – A vida que agita o cais: os trabalhos das navegações compõem o quadro cotidiano

captado na imagem, antes da construção da ponte.

(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com44

).

Fornecendo sua perspectiva sobre as modificações da cidade, o Entrevistado

2, moço de convés aposentado, mas que ainda navega a despeito disso, chega até

o local cais/orla, e sua fala dá conta de uma reorganização funcional bastante

importante:

A orla ela era normal, como se encontra ainda hoje, agora a frente da

cidade aqui, toda casa que hoje é uma loja [...], essas empresa muito

alta que tem aí, bem abastecidas de eletrodoméstico, tudo enfim,

essas casa antigamente era depósito de mercadoria, como mamona,

algodão, couro de boi, pele de criação, sal, querosene, gasolina,

álcool, era as mercadoria depositada armazenada nessas

embarcações, nesses depósito, pra ser transportado para as

embarcações.

44

Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6164/6203943683_1a34862854_b.jpg>, acesso em

mar. 2014.

Page 106: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

105

A fala do depoente faz alusão ao seu trabalho: o transporte de produtos nas

embarcações, exercício por ele desempenhado por toda a vida de moço de convés,

serve de suporte à memória das transformações por ele vistas e/ou sentidas (se

sentidas) na cidade. Seu olhar percorre o palco onde ele, até hoje, desempenha

suas atividades fluviais. Ressaltamos este ponto ainda mais um pouco: a mesma

orla em que começou a trabalhar ainda menino, o antigo cais da cidade, é hoje o

local em que ele insiste em praticar o serviço de piloto de barquinhas de travessia

entre Juazeiro e Petrolina. O local por ele praticado, tornado espaço por meio de

suas atividades de sociabilidade (CERTEAU, 2012) passa por uma ressignificação

geográfica, por parte do nosso entrevistado. Em contraponto ao saudosismo e à

indignação dos depoentes anteriores, o Entrevistado 2 demonstra em sua narrativa

otimismo em face às alterações observadas na cidade. Ao apontar a mudança dos

depósitos para as casas comerciais, hoje vistas por ele como “essas empresa muito

alta que tem aí”, ele busca explicitar o quanto melhor teria Juazeiro ficado com o

“desenvolvimento”, palavra recorrente em sua narrativa e utilizada como sinônimo de

“crescimento”, dentro da lógica argumentativa de nosso entrevistado.

Para exemplificar seu elogio, o sujeito do passado encontra o do presente, e

sua justificativa acaba misturando sua percepção de trabalho e as facilidades

proporcionadas na cidade em torno da aquisição dos seus instrumentos de ofício:

olha, nós trabalhamo no rodeador45 cum MWF, os motores da gente

é tudo MWF. não precisa nós pedi pra recife nem pra salvador nada.

se você necessitar do vira-breque você encontra aqui! [...] se cê

chegar numa empresa como a mecânica bahia faz um orçamento e o

cara começa a caminhar de prateleira em prateleira e botano em

cima do balcão.

Os motores evocados pela memória recente são argumento inconsciente de

que, para ele, não havia decerto trauma em torno das transformações sofridas tanto

pela cidade quanto pelas navegações com o advento da rodovia, da ponte, e do

reordenamento urbano pelo qual passou o cais/orla de Juazeiro. Sua fala, pelo

contrário, demonstra sentimentos positivos em torno deste assunto.

A transformação dos depósitos em casas comerciais, observada por nosso

depoente, também se insere neste contexto. Como podemos bem observar na

45

Ilha do Rodeadouro, famosa na região e uma das mais frequentadas pela população local.

Page 107: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

106

imagem 7, o espaço do então cais serve para o desembarque de mercadorias, de

chegada de passageiros, de trânsito de carroças de burro; é um espaço

predominantemente caminhado, numa tentativa de definição mais clara. Com a

crescente demanda rodoviária aqui já citada, que suplantou a “febre ferroviária”

anterior ao período 1950 - 1960 (MARTINS, 2011), também podemos ver em

Juazeiro significativas modificações nas ruas e, em especial, no cais/orla da cidade,

cada vez menos cais (espaço de práticas relativas às navegações do São

Francisco), cada vez mais orla (espaço urbano de margem fluvial, em nosso caso,

desprovido do caráter anterior de zona portuária).

A intervenção feita pela ponte neste sentido, fazendo com que o trânsito de

carros estivesse cada vez mais próximo às ruas que compunham o complexo

urbano conectado ao rio, atua como agente neste processo de transformação.

Voltando a fazer uso dos registros fotográficos disponíveis, convidamos o leitor

atento a uma observação entre a imagem 8 e a imagem 9:

Imagem 9 – Praça São Tiago Maior: carros dominam a paisagem onde antes as atividades fluviais

ocupavam espaço.

(FONTE: Forum on-line Skyscrapercity.com

46).

46

Disponível em: <http://farm7.static.flickr.com/6148/6204032605_8e784caa71_z.jpg >, acesso em

mar. 2014.

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107

Dois ângulos do mesmo espaço em questão é o que temos aqui. A imagem 8,

anterior à construção da ponte, nos dá um panorama rio/cais, explorando toda a

movimentação humana em torno das navegações. A imagem 9, fornecendo uma

perspectiva cidade/orla/rio, captura a Praça São Tiago Maior, construída na década

de 1970 durante a gestão do prefeito Arnaldo Vieira do Nascimento (1976 – 1982), e

são os carros quem tomam conta do plano da imagem. Esta segunda fotografia

corresponde a uma etapa do processo em que o cais já não é palco das atividades

relativas às navegações do Velho Chico, momento em que inclusive o porto de

Juazeiro passa por um processo de disputas, assunto que trataremos no último

tópico deste capítulo.

O que queremos assinalar aqui, após a análise das fontes orais e fotográficas,

é que, entre os elementos responsáveis por uma ruptura na relação atividade

fluvial/cotidiano urbano, o advento da rodovia, atrelado à construção da ponte

Presidente Dutra, e a primazia desta via sobre as demais que compunham o

entroncamento viário em Juazeiro, contribuíram para promover um deslocamento

social do local cais, fazendo com que as práticas fluviais ali fossem realocadas para

dar passagem aos carros. Compreendemos, deste modo, que

Este ‘deslocamento social do espaço’ também acaba por se constituir

em uma forma de escrita que pode ser decifrada. As motivações para

este deslocamento podem ser lidas pelo historiador: a história da

deterioração de um bairro pode revelar a mudança de um eixo

econômico ou cultural, uma reorientação no tecido urbano que tornou

periférico o que foi um dia central ou um ponto de passagem

importante. (BARROS, 2007, p. 42).

Em nosso caso, a mudança do eixo das atividades fluviais, que passaram por

uma reorientação, deslocando-se daquele que até então era considerado o centro

da cidade, em função de uma nova demanda urbana nascida da urgência do asfalto

e dos carros a partir de 1950-1960. Este processo, apreendido por nossos

entrevistados de modo indireto, em suas rememorações e captado pelas lentes dos

registros fotográficos, constitui um dos elementos de um quadro geral de

transformações na relação rio/cidade dentro do nosso período estudado.

Nesse ínterim, é a “imagem urbana” do cais/orla juazeirense que sofrerá

modificações, uma vez que consideramos que

Page 109: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

108

Só existe imagem quando ligada a uma prática social. Não só porque

ela é produzida socialmente, mas porque não pode existir [...] a não

ser dentro das relações sociais, da mesma forma que,

definitivamente, não existe linguagem sem palavra (CASTELLS,

2009, p. 305).

São as práticas que transformam o local em espaço de sociabilidades e que

dão significado a determinado ponto da cidade que delineiam esta “imagem urbana”.

A mudança das práticas é, consequentemente, o redesenhar desta imagem, dando

novas cores, novos contornos e significados ao local. Aos poucos, são nossos

próprios entrevistados que vão fornecendo perspectivas neste sentido, ao identificar

aquilo que já não se conecta com sua noção de pertencimento; os locais que se

modificam, os sentidos que se perdem diante do estranhamento com o novo; e

mesmo a ressignificação do local através de novas práticas. Estes elementos

puderam ser observados nas falas aqui exploradas.

Não podemos afirmar, contudo, que o processo analisado neste tópico foi autor

único do desequilíbrio e reconstrução de uma nova relação rio/cidade para além das

navegações e das sociabilidades por elas proporcionadas; encaramos este como um

elemento dentre outros que aqui buscaremos observar, e que de fato, em conjunto,

promoverão uma modificação nas atividades fluviais em Juazeiro.

3.2 Motores a óleo diesel e a agonia dos vapores

Até que ponto a mudança de motores significou a ruína para uns e a

oportunidade para outros? Com este questionamento, procuraremos neste sub

tópico analisar de que maneira o advento dos motores movidos a óleo diesel, a partir

da década de 1960, impactou nas relações de trabalho existentes. Para alguns dos

entrevistados, a modificação dos motores e a consequente dinamização das

embarcações significou desemprego para boa parte dos colegas que não conseguiu

se adaptar; para outros, foi apenas a inclusão de mais um tipo de motor, e que

requereu uma nova aprendizagem por parte dos “moços de convés” e demais

profissionais relacionados com o funcionamento dos motores. Ao mesmo tempo, a

competição com as rodovias fazia com que as viagens dos vapores se tornassem

Page 110: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

109

obsoletas, pois estes gastavam em dias o mesmo trajeto que os automóveis faziam

em horas.

Antes de qualquer coisa, iniciamos nossa problemática seguindo o rastro

daquilo que refletimos no parágrafo anterior: quais impactos foram causados pelas

transformações no transporte fluvial, enfocando em especial as inovações

mecânicas dos motores das embarcações? Como numa linha de acontecimentos

sucessivos, poderíamos dizer que os remeiros, enquanto força propulsora, foram

superados pelos vapores e suas caldeiras fumegantes, que por sua vez foram

superados pelos motores a óleo diesel e elétricos, de modo linear e prático?

Obviamente que a simplicidade de tais argumentos nos faz responder com uma

negativa. Para chegar ao cerne da problemática, precisamos questionar mais estas

transformações.

As potências propulsoras, de fato, possuíam distinções bem características.

Enquanto os vapores eram impulsionados pela combustão à lenha das caldeiras,

requerendo o emprego de mão-de-obra em sua alimentação, os motores utilizados

nos empurradores/rebocadores, por exemplo, possuíam uma potência de 270 CV47

(NEVES, 2009), dispensando a necessidade de um posto de trabalho apenas para

reabastecimento do tanque.

Devemos levar em consideração alguns fatores importantes do período 1940-

1970: a criação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945, através do

decreto-lei nº 8.031, e da Comissão do Vale do São Francisco, em 1948, pela lei nº

541 (transformada em SUVALE em 1967 e CODEVASF em 1974), caracterizam um

esforço governamental em promover políticas públicas para o desenvolvimento da

região ribeirinha, tendo como foco o Velho Chico e as possibilidades de exploração

de suas águas; a fusão das companhias de navegação existentes em uma única, a

FRANAVE, em 1955 e 1963, com sede em Pirapora/MG e escritório de

representação em Juazeiro (CAMELO FILHO, 2005); além disso, a chegada da

energia elétrica da usina de Paulo Afonso na segunda metade da década de 1960; o

advento das rodovias, conectando Juazeiro e Petrolina às suas respectivas capitais

e demais cidades da região (CHILCOTE, 1991); e ainda, ao final do período aqui

recortado, a construção da Barragem de Sobradinho, com a criação do lago artificial,

eclusa e usina hidrelétrica. Direta ou indiretamente, estas transformações e ações

47

Medida de cavalo-vapor.

Page 111: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

110

influenciaram o cotidiano das cidades ribeirinhas e, principalmente, o dia a dia dos

trabalhos fluviais no São Francisco.

Dentro deste contexto de grandes modificações, situamos o momento de

profusão de novas tecnologias de propulsão para as embarcações em Juazeiro, a

princípio, com a chegada das barcas sergipanas à cidade entre 1950-1960, com

velas duplas e consequentemente maior rapidez, seguidas pela introdução dos

motores bolinder (MAGALHAES, 2009), movidos a óleo diesel, e que passaram,

gradativamente, a trabalhar em várias embarcações particulares, além da própria

FRANAVE.

Voltamos mais uma vez à pergunta inicial deste tópico: até que ponto a

mudança de motores significou a ruína para uns e a oportunidade para outros?

Estendendo a questão, teriam os motores a óleo diesel provocado a agonia da

navegação a vapor no São Francisco? Como havíamos dito anteriormente, a

sucessão linear dos motores não é suficiente para explicar esta questão. Para tal,

exploraremos ainda mais os olhares da cidade.

Vamos recorrer, novamente, à análise histórica de registros fotográficos da

região como ponto de partida de nossas reflexões aqui. Debruçamo-nos sobre mais

uma cena do cotidiano do cais juazeirense, e pegamos emprestado das lentes do

fotógrafo uma visão sobre as águas.

O olhar de Euvaldo Macêdo Filho capta o instante (imagem 10), e serve de

reflexão dentro da nossa problemática. Em primeiro plano, o vareiro na popa de uma

embarcação, utilizando o ombro para fazer força e promover o movimento sobre as

águas; logo atrás, podemos distinguir um motor movido por combustão,

provavelmente um bolinder, motor comum em barcas menores, com potência de

50HP48, muito comum entre as embarcações juazeirenses; ao fundo, numa

complementação do quadro, flutua um pequeno paquete, como popularmente eram

chamados os barcos de vela única que faziam a travessia Juazeiro/Petrolina.

Num único registro, podemos distinguir três tipos de embarcação, convivendo

juntos na década de 1970, momento em que Euvaldo captura o instante, o que

levanta a perspectiva de que, apesar das transformações na tecnologia de

navegação, principalmente no que tange à propulsão dos barcos (saímos do ombro

do vareiro para o ronco dos motores a diesel, passando pelas caldeiras dos vapores,

48

Aproximadamente, 50 CV.

Page 112: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

111

até chegar aos motores elétricos da FRANAVE), estas embarcações, distintas em

seu modo de navegar, coexistiam no porto juazeirense.

Imagem 10 – “Peito de aço”: remeiro, motor a óleo diesel e velas figuram numa mesma imagem,

capturada no cais de Juazeiro/BA.

(FONTE: ASSIS, A. C. Coelho de; MACEDO, Odomaria R. B.; EGÍDIO, Chico. Euvaldo Macedo

Filho – Fotografias. Petrolina: Gráfica Franciscana, 2004).

Este apontamento, obviamente, suscita questionamentos acerca da

intencionalidade do autor da fotografia em registrar este quadro específico. A

observação e análise que viemos realizando da obra de Euvaldo nos dá a

perspectiva de que este fotógrafo, atento às contradições urbanas e às cenas diárias

juazeirenses, escolheu este momento em especial por enxergar nele as variações

de trabalhos desempenhados nas navegações, evidenciando tal contraste.

Isso nos faz indagar se, devido a esta coexistência, conflitos acabaram

acontecendo. Analisando a fala do Entrevistado 1, pudemos identificar o momento

em que ele, torneiro mecânico da FRANAVE, começou a conviver com uma

diversidade de motores na oficina da empresa.

Page 113: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

112

Não, tudo foi... continuou a mesma... a mesma coisa. [...] Só quando

veio a ener... energia de Paulo Afonso, foi em sessenta e três, aí que

foi modificando. Que aqui aí era... era movido a... a vapor, com a

caldeira a vapor. Aí quando veio a energia de Paulo Afonso, aí foi

que botaram todo as máquina tudo elétrica.

A princípio, vemos a afirmativa de que as coisas teriam continuado da mesma

forma, tendo cessado a calmaria com o advento da energia elétrica da usina de

Paulo Afonso, na década de 1960. Sendo funcionário da companhia de navegação

estatal, desempenhando atividades ligadas ao concerto de motores, o Entrevistado 1

esteve em constante contato com o maquinário utilizado na FRANAVE. Ao ser

perguntado se havia trabalhado também com motores a óleo diesel, o entrevistado

demonstrou desconforto e irritação, respondendo: “Isso aí não. [...] Tinha um motor a

diesel lá, mais... era um... tinha um rapaz lá que trabalhava, eu num usei isso não”.

Ficou evidente que ele não se sentia à vontade de falar sobre os demais motores,

haja vista o grande sentimento que tinha demonstrado pelo ofício e a alegria ao

longo da entrevista, até aquele momento. Podemos elencar duas impressões mais

relevantes sobre sua reação. Primeiro, porque não eram aqueles os motores que

estiveram sob sua responsabilidade; segundo, porque representavam aquilo que ele

apenas conseguiu exprimir como “lá”. Sem um outro recurso linguístico mais urgente

no momento, o advérbio de lugar utilizado pelo depoente passa a ideia de

distanciamento, alheamento.

Dentro dessa memória, trazida à tona na narrativa do Entrevistado 1, podemos

encontrar um conflito: recordar aqueles motores com os quais ele, tão orgulhoso das

funções que desempenhava enquanto torneiro mecânico, não tinha tanta

familiaridade desconforta-o. Estampadas na parede de sua casa, várias fotos de

vapores dos quais ele tanto se recorda, e dos quais tantas histórias conta, criam um

ambiente em tudo saudoso das caldeiras em que trabalhou.

A introdução dos motores a óleo diesel, promovidos pela FRANAVE a partir da

década de 1960, foi responsável por uma dinamização das navegações comerciais e

de passageiros. Empurradores, lanchas-ônibus, lanchas-rebocadores, com sistema

de propulsão a hélice utilizando o óleo diesel como combustível aumentaram os

números de passageiros transportados, bem como a quantidade de produtos

comercializados (NEVES, 2009). De acordo com Camelo Filho (2005), entre 1942 e

Page 114: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

113

1948, somadas as médias anuais de carga transportada pelas três principais

empresas de navegação do São Francisco (Viação Baiana, Viação Mineira e

Companhia e Indústria), teríamos o valor de 48.141 toneladas. Já entre 1965 e 1970

a FRANAVE, única empresa a fazer o serviço desde 1963, fazia um transporte de

51.199 toneladas em média anual, já tendo em sua frota as embarcações movidas a

óleo diesel.

Aos poucos (de acordo com Neves [2009], a partir da década de 1960, a

FRANAVE passa a introduzir de forma sistemática os empurradores na atividade

fluvial do rio São Francisco), os empurradores/rebocadores passaram a suplantar os

vapores no quesito capacidade de transporte de carga, haja vista que os

empurradores não carregavam propriamente os produtos, e sim literalmente

“empurravam” chatas, embarcações metálicas sem cobertura, “com capacidade para

transportar até 250 toneladas de carga em seus porões e no convés” (NEVES, 2009,

p. 32). Ainda assim, vapores e empurradores continuavam sendo utilizados pela

FRANAVE, realizando as navegações no trecho Juazeiro-Pirapora.

Ainda seguindo os levantamentos de Camelo Filho (2005), tendo como base os

Relatórios do Ministério dos Transportes, GEIPOT, 1964 a 1990 e o Anuário

Estatístico dos Transportes, GEIPOT, 1965 a 1989, o volume em toneladas

transportadas pela FRANAVE aumentou, de 25.466 em 1964, para 50.490 no ano

seguinte, atingindo a média citada anteriormente de 51.199 entre 1965 e 1970 (este

último ano apresenta o pico de 57.948 toneladas transportadas pelo rio). Notamos,

deste modo, que a década de 1960, a partir de sua segunda metade, observará um

elevado número de carregamentos em tonelada através de suas embarcações.

Dentro deste contexto de modificações, vamos recorrer novamente a um olhar

da cidade. Se para o Entrevistado 1 os motores novos representavam

distanciamento, aquilo hipoteticamente do lado de “lá”, para nosso Entrevistado 8

eles foram ainda mais determinantes de modo negativo para a existência da

navegação no São Francisco. Filho de ex-remeiro (o pai tinha empurrado as barcas

de figura com varas antes de trabalhar nos vapores), lembra das cicatrizes do pai, e

do fato de passarem sebo para curar a ferida que ele carregava no ombro; além

disso, em suas rememorações, o depoente afirma que os remeiros ainda

trabalhavam durante o período em que já era funcionário fluvial. A afirmativa vai de

acordo com as reflexões em torno da fotografia de Euvaldo, sobre a coexistência de

várias embarcações de tipos diferentes realizando os trabalhos fluviais.

Page 115: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

114

Recordando os momentos de trabalho pela companhia de navegação, o

Entrevistado 6 demonstrou orgulho ao falar da frota de navios que faziam parte da

FRANAVE: “Nóis tinha 45 vapôr que fazia, viajava daqui pa Pirapora, Barreira, Santa

Maria da Vitória, Santa Rita Formosa”. Observando esta e outras afirmações da

narrativa deste senhor, ficou claro que as memórias desengatilhadas em torno dos

vapores e do seu trabalho neles faziam parte de suas recordações mais positivas.

Porém, o que mais nos interessará neste ponto é o modo como nosso depoente

encarou a lembrança da chegada nas novas embarcações e o destino que levaram

os vapores a partir daí:

Quando começou os vapôr parado, sem viajá, quando começou e, e,

e... acabar com a viação, com os vapôr, quando começaro a fazer

aqueles rebocadô, que o rebocadô ia pa fazer isso, fazer aquilo, e

risultô no acabô com tudo. Foi cortado, foi cortado aí, pa vender

como chapa, com... com... como ferro velho. Tá vendo como é?

O tom de revolta empregado nesta fala foi bastante destacado, e sua reação de

indignação transparecia a impressão de que aquela ferida ainda não havia

cicatrizado por completo: os vapores tão amados por si, como já havia falado antes,

dos quais ele elaborou réplicas em miniatura que decoram toda a sua casa, haviam

sido suplantados pelos rebocadores. Em um segundo momento, ao falar

espontaneamente sobre notícias de recriação da hidrovia, sua reação não foi menos

acalorada: “Como é que vai fazê? Onde é que eles vão achar mais operário pa fazê

os vapôr? Pa fazê... onde é que eles vai achar mais caldeira, máquina, tudo pa

fazê? O que eles fizero com o que tinha, que vendero tudo como ferro véi”

O trauma presente nas falas adverte para uma transição não tão bem aceita,

muito menos tranquila. No bojo destas reflexões, contudo, há a voz daqueles que se

beneficiaram com tais transformações. Tendo se manifestado anteriormente com

uma opinião adversa daqueles que encaravam com maus olhos as modificações

urbanas da cidade, o Entrevistado 2 expõe aqui, novamente, uma ótica distinta

sobre mais um assunto.

Para ele, os vapores passaram a ser ultrapassados. Claramente, seu discurso

parte de alguém que acompanhou as metamorfoses dos motores e das

embarcações, e pôde constatar as sensíveis alterações proporcionadas pelas

inovações tecnológicas instaladas nas atividades fluviais. Entretanto, ao invés de

Page 116: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

115

nutrir certo ressentimento deste processo, ele busca deixar claro que conseguiu se

adaptar. Ao tocar na questão do maquinário dos vapores, sua reação é bastante

sintomática: “mas aquilo ficou muito antigo, muito arcaico, aí veio umas embarcação

a motor. Essas embarcação a motor surgiu porque era mais econômica, era motor a

óleo diesel, impurrando dez chatas”.

Sua fala, novamente, resvala na palavra que ele usou com bastante

recorrência: “desenvolvimento”. Os vapores aparecem em sua narrativa como

embarcações “antigas”, no sentido de pouco funcionais. Enquanto maquinista,

função que também desempenhou ao longo dos anos em que esteve em atividade

nas navegações, torna-se prático para ele traçar um paralelo entre a caldeira dos

Roda-popa e os motores a óleo diesel das chatas e demais barcos menores, com os

quais ainda hoje mantém contato.

Longe de uma ligação afetiva, seu olhar parte de um distanciamento em muito

baseado pela sua preferência pelas novidades proporcionadas pelos motores. Sua

narrativa segue adiante, e seu foco são os empurradores, principalmente o modo

como estes haviam reduzido os gastos com as viagens pelo rio:

depois então veio os empurradores, cada um tinha um motor de

quinhentos hp, dois motores de quinhentos hp cada um, mas

acontece que ele empurrava uma embarcação de duzentos e oitenta

tonelada ao todo. [...] Aí você calculando isso você vê que se tornou

mais barato o frete com um volume muito maior em cada uma viage,

e o número de tripulante de quarenta e oito reduziu pra sete.

De fato, e pudemos observar a partir de dados levantados anteriormente, o

fluxo de cargas e a dinâmica nas navegações receberam um novo impulso com os

empurradores, principalmente no tocante à redução de gastos com tripulação,

elemento citado por nosso entrevistado neste trecho. Mais adiante, ele vai retornar a

este assunto, dando conta de que “bastava dois motorista pra um barco daquele ser

conduzido. Bastava um piloto e um auxiliar pra um barco daquele ser navegável. Na

cozinha tinha um e dois marinheiro”.

Precisamos ressaltar que sua fala não vem carregada de qualquer

ressentimento quanto a esta modificação. Pelo contrário, ao contar estas

informações, buscando sempre empostar a voz, dando um ar de aula (característica

observada em todos os trechos relativos a aspectos técnicos das embarcações com

Page 117: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

116

as quais ele teve contato), nosso depoente se orgulha de ter sido sempre “curioso”,

tendo aprendido os diversos trabalhos e técnicas referentes ao serviço de moço de

convés.

Entretanto, a sombra de uma ruptura em suas memórias pode ser identificada

a partir do momento que nosso depoente traz ao palco de suas recordações a

lembrança dos companheiros de profissão e a tristeza pelos colegas que não se

adaptaram às modificações nos motores e à nova (e reduzida) oferta de emprego.

Quanto os meus cumpanheros que navegavam, de acordo que foi

diminuindo o número de embarcação, a coisa foi ficando muito triste,

porque o marinhêro do São Francisco num se dislocô pra outra

região. E muitos deles se acanhô naquele lema de navegá e achá

que a única coisa que ele tinha aprendido era trabalhá navegando

em uma imbarcação. [...] Essa foi uma das coisa que mexeu muito

com a cabeça de nóis que continuamo a trabalhá.

Aqui um ponto de convergência com as outras falas. Apesar de este depoente

mostrar otimismo quanto ao processo de modernização dos motores das

embarcações, observamos que mesmo ele não saiu ileso do evento, carregando

consigo não um ressentimento por si do trabalho que se foi, ou qualquer saudosismo

por parte das embarcações que se foram; a ruptura aqui fica a cargo da tristeza em

ver seus companheiros, de uma hora para outra49, desempregados. Seu lamento

quanto ao fato de seus colegas marinheiros serem marinheiros, terem carta para

isso, e não quererem outro rumo também nos conduz a este raciocínio.

Apesar disso, com um sorriso nos lábios, quase ao fim desta seção de

entrevista, ele mais uma vez se orgulhou de continuar desempenhando atividades

fluviais, tendo se adaptado, nunca tendo parado.

Podemos abstrair aqui, após análise destas narrativas, que as disputas em

torno dos motores que propulsionavam as embarcações, longe de representar

homogeneamente um trauma para os fluviários, puderam ser percebidas de formas

diferentes.

49

O entrevistado constrói em sua narrativa a percepção de que o processo de suplantação dos

vapores se deu de forma rápida, impedindo muitos de seus colegas de profissão de se adaptar ao

novo contexto fluvial.

Page 118: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

117

3.3 O porto de Juazeiro e as disputas pela hidrovia

A construção da barragem de Sobradinho compõe mais uma etapa do

processo de transformações sofrido pelo rio São Francisco, e que alterou

significativamente diversos campos do modo de vida da comunidade local; em nosso

caso, damos enfoque às atividades de navegação, afetando diretamente Juazeiro e

sua população ribeirinha, principalmente no aspecto econômico e trabalhista. O país

vivia o período de ditadura civil-militar, e na presidência estava o general Emílio

Garrastasu Médici, dos mais autoritários presidentes do período militar. Na questão

econômica,

o Brasil passava pela fase denominada de internacionalização da

economia e a construção da gigantesca obra estava em total

consonância com os planos elaborados pelo governo militar de criar

obras de infra-estrutura, voltadas para a viabilização do projeto

‘Brasil grande potência’” (ESTRELA, 2008, 116).

Por ocasião da construção, iniciada em 1973, também a posição de destaque

que a cidade de Juazeiro possuía até então corria risco, visto que havia a

possibilidade de interrupção da navegação até o porto local, inviabilizando desta

maneira as transações comerciais e a continuidade do trabalho de barqueiros e

fluviários.

Esta questão foi responsável por uma série de debates acalorados em

Juazeiro. Ainda na década de 1970, apesar de não mais serem o principal trabalho a

absorver a mão-de-obra local, as embarcações particulares do Velho Chico

empregavam muitos dos citadinos juazeirenses do sexo masculino; paralelamente, a

FRANAVE, companhia única de navegação desde a década de 1960, mantinha

ativos vapores e empurradores no trecho Pirapora-Juazeiro, sendo responsável

também pelo emprego de grande parte da população da cidade e da região.

Navegar continuava sendo negócio rentável para os donos de embarcação. Quando

o projeto da Barragem chega, ainda em 1972, até a região, a calmaria cede espaço

ao agito das águas bravas.

Outro momento significativo a ser refletido aqui é a realização do I Seminário

da Bacia do São Francisco, ocorrido nas cidades de Juazeiro e Petrolina/PE, e que

Page 119: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

118

fazia parte de uma iniciativa dos governos estaduais e do governo federal, com o

intuito de instalar, no São Francisco, hidroelétricas. A exemplo do complexo

hidroelétrico de Paulo Afonso, em funcionamento já na década de 1950, o seminário

discutia a construção de uma hidroelétrica também em Sobradinho/BA, justamente

no trecho navegável comumente utilizado (Pirapora/MG – Juazeiro/BA, a hidrovia

responsável pelo intercâmbio de produtos e pessoas entre sul/norte). Até então, o

projeto da barragem em Sobradinho previa apenas a retenção de água, controlando-

a para um melhor aproveitamento do fluxo hidráulico nas demais barragens do São

Francisco (MENDES; GERMANI, 2010).

Amplamente noticiado nos jornais locais Rivale e o Jornal do Juazeiro, o evento

era visto pela imprensa como marco desenvolvimentista do rio São Francisco, o

progresso que tanto Juazeiro precisava. Em contraponto, a instalação de uma

barragem, e posteriormente da hidroelétrica adicionada ao projeto, em Sobradinho

significava, a princípio, a inviabilização das navegações de produtos e passageiros

para as demais cidades ao sul do estado da Bahia e do norte de Minas Gerais, da

forma como até então eram feitas. Por esta ambivalência, a profusão dos artigos

publicados nestes jornais refletiu os anseios de setores da sociedade juazeirense

sobre este assunto.

Além destes elementos já citados, o ponto de desacordo principal dentro das

discussões gira em torno da possibilidade de fim das navegações, sendo estas

limitadas pela barragem, abrindo espaço para a criação de um porto em Santana do

Sobrado, povoado localizado geograficamente antes da barragem. Para uma cidade

acostumada ao epíteto de Rainha do São Francisco, semelhante arranhão em sua

coroa punha em risco uma série de atividades comerciais que ainda eram vitais para

Juazeiro, e que dependiam da via navegável para sua alimentação.

É dentro desse debate, levado a cabo através dos jornais citados, que

buscaremos observar a maneira como os agentes envolvidos no processo

(barqueiros, Companhia de Navegação, imprensa), e que tiveram voz através das

matérias jornalísticas, compreendiam o processo pelo qual o rio São Francisco

estava passando. Na iminência de perderem a via navegável, em função da

barragem, mas, principalmente, de Juazeiro ser eclipsada por um novo porto em

Santana do Sobrado, estas vozes disputavam o lugar que, até então, era tido como

parte da cidade, uma extensão sobre as águas do urbano juazeirense.

Page 120: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

119

Um dos donos destas vozes foi Ermi Ferrari Magalhães, colaborador do jornal

RIVALE e também cronista local. Barqueiro dos mais antigos de Juazeiro e grande

interessado dos assuntos da hidrovia e das atividades fluviais do Velho Chico, é ele

quem assina um artigo na edição nº 43 do jornal, de 1973, sobre a questão do porto

de Juazeiro, logo após o início das obras de construção da barragem de Sobradinho.

Neste momento, como havíamos falado, o projeto propunha a construção

unicamente de uma barragem de águas, para a regulação dos níveis. A execução

das obras foi feita de forma autoritária, sem maiores acertos com os possíveis

prejudicados dentro do processo. Sabemos que

o contexto sociopolítico nacional era de um governo militar autoritário

com sua política desenvolvimentista, que ignorava a possibilidade de

diálogo sério com os cidadãos, aqui os atingidos pelo

empreendimento, expropriados e desterritorializados (MENDES;

GERMANI, 2010, p. 31).

A falta de uma proposta para a navegação, sem uma via que permitisse o

tráfego das embarcações até então utilizadas pelos ribeirinhos, mobilizou Ermi,

principalmente pelo fato deste ser dono de embarcações. A preocupação com seu

negócio fê-lo se pronunciar sobre a questão, utilizando o Rivale como mecanismo de

amplificação de sua opinião. Seu principal foco é a defesa do porto de Juazeiro, e a

permanência deste enquanto principal local de atracação das embarcações que

desciam o rio. Constatando a quantidade de notícias que haviam chegado até à

cidade sobre este assunto, Ermi comenta o seguinte:

Verifica-se que estão fazendo tempestade em copo dágua e em

torno do porto que entrou para a área política e, também estão

procurando sentimentos de bairrismo regional, que já não se

coadunam com o Brasil da atualidade. Deputados sentindo a

aproximação de eleições, estão interessados no assunto que

representa promoção traduzida em possíveis votos. Aqueles que

publicaram notas sensacionalistas sobre o assunto, seguem um

caminho completamente errado, pois não procuram ouvir os

interessados no problema – localização do porto – ou seja, a

Companhia de Navegação do São Francisco, e, a União dos

Barqueiros do Médio S. Francisco. (RIVALE, 1973, n. 42, p. 10)

Page 121: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

120

O barqueiro faz alusão à grande especulação que havia se iniciado em torno

da possibilidade de transferência do porto. A insinuação que Ermi faz aos

deputados, de forma genérica e não identificada, abre margem para especulação

quanto a quais políticos estiveram interessados na possível modificação portuária.

Sabemos que a facção Viana (ou Vianna) era a politicamente mais influente na

cidade. Boa parte da população juazeirense havia dado votos para Prisco Viana,

Lomanto Júnior e Manoel Novais, deputados federais eleitos em 1970 ligados a este

grupo, além da estadual Ana Oliveira; feito repetido em 1974, com a permanência

destes políticos e a entrara de Otoniel Queiroz e Raulino Queiroz, como deputados

estaduais (CHILCOTE, 1991).

Por sua vez, Ermi não tinha destaque na política local. Porém, sua

aproximação com Jorge Khoury e Paganini Nobre Mota, fundadores do jornal Rivale

(onde o próprio Ermi é colunista e eventual diretor anos depois), membros da

Associação dos Estudantes Universitários de Juazeiro e opositores dos Viana, pode

nos dar um sinal sobre sua visão dentro dos jogos de poder da cidade.

Em continuação de seu argumento, o barqueiro tenta desenvolver uma defesa

de sua classe enquanto principal interessada na questão, tendo em vista obterem

suas rendas do trabalho com a navegação. Além dos barqueiros, a própria

FRANAVE deveria ser outra instituição consultada neste processo. Podemos

observar que a crítica do autor do artigo reside no fato de as decisões sobre a

continuação do tráfego de embarcações até Juazeiro estarem sendo especuladas e

supostamente tomadas por agentes externos ao trabalho fluvial. Assim, Ermi reitera

em seu texto que

a Companhia de Navegação, órgão estatal e, os Barqueiros, são

indiscutivelmente os maiores interessados no problema, pois da

atividade da navegação vivem diretamente, mais de cinco mil

pessoas; portanto, esse agrupamento humano o qual depende a sua

subsistência da navegação, é que tem, sem nenhuma dúvida,

elementos e condições através [de] seus Diretores, para informar,

reivindicar e pleitear a solução do momentoso assunto – porto

Juazeiro. E, por mais absurdo que pareça, até o momento, não foram

ouvidos; se o forem, deixarão os atuais “donos do problema”, em

situação difícil, pois a Cia. De Navegação e Barqueiros, são

frontalmente contra a localização do porto neste ou naquele local.

Sim, a Cia. De Navegação e Barqueiros, desejam e lutarão até onde

possam, para que a navegação continue franca até o porto de

Page 122: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

121

Juazeiro-Petrolina, como está atualmente. (RIVALE, 1973, n. 42, p.

10, grifo nosso).

Buscando respaldar seu argumento, Ermi dá conta de que barqueiros e

companhia de navegação já haviam negociado com a Companhia Hidroelétrica do

São Francisco o “derrocamento do Canal do Ingá ou Saco do Meio, onde a CHESF,

conservará, até fevereiro de 1977, um canal de 400 metros de largura” (RIVALE,

1973, n. 42, p. 10), por onde as embarcações poderiam continuar livremente seu

curso até o porto juazeirense, sem maior dolo. Esta solução, ainda segundo Ermi,

satisfaria as necessidades tanto dos barcos particulares quanto dos navios e

empurradores da FRANAVE, mais uma vez ressaltando que a transferência do porto

para outra localidade significaria

o estrangulamento da navegação, pois o atual volume de cargas

embarcadas e desembarcadas em Juazeiro-Petrolina, se

descarregada, ou a ser embarcada em qualquer dos portos acima

citados, não encontrará transporte suficiente para evacuar essas

cargas, seja no porto desta ou daquela localização (RIVALE, 1973, n.

42, p. 10).

Outra preocupação latente em seu artigo é a carestia do transporte rodoviário.

O barqueiro não poupa esforços para explicar que se a “navegação for obrigada a

utilizar caminhões para levar ou trazer mercadorias para um porto em qualquer

distância do seu ponto inicial e, terminal de movimento, não poderá sobreviver”

(RIVALE, 1973, n. 42, p. 10), uma vez que o frete rodoviário poderia onerar os

preços e, consequentemente, diminuir os lucros do empreendimento. Obviamente,

Ermi teme pelo próprio bolso ao tecer este argumento.

A Cia. De Navegação do S. Francisco, talvez tenha condição de

continuar operando, pois conta com a ajuda do Ministério dos

Transportes através da SUNAMAN, que cobre os déficits; porém os

barqueiros, forçosamente paralisarão suas atividades. Então

veremos na região, uma crise sem precedentes atingindo mais de

cinco mil pessoas diretamente ligadas à navegação, afetando

também o comércio, a indústria e as rendas estaduais.” (RIVALE,

1973, n. 42, p. 10).

Page 123: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

122

Ermi ainda critica os “donos do problema” (por ele identificados genericamente

como órgãos de classe, Clube de Serviço), por enviarem um memorial solicitando a

transferência do porto de Juazeiro para outras localidades durante o período de

construção da Barragem de Sobradinho. Para o autor do artigo, também barqueiro

do São Francisco, tal modificação seria absurda, ao passo que acreditava serem os

únicos possíveis responsáveis sobre esta transferência a Companhia de Navegação

(FRANAVE) e a união de barqueiros, muitos deles organizados em assembleia em

Juazeiro. O artigo conclui ainda que os tais “donos do problema” deveriam aceitar

que o melhor meio seria a continuação do tráfego até o porto em Juazeiro-Petrolina,

através da desobstrução de um canal (Canal do Ingá).

O caso do porto na década de 1970 toma uma proporção ainda maior quando

mesmo Juazeiro e Petrolina passam a disputar a primazia em relação às

navegações. A família Coelho, da cidade pernambucana, já desenvolvia articulações

com políticos e empresários nacionais e estrangeiros, com o intuito de captar

recursos para os empreendimentos particulares que pretendiam realizar em

Petrolina e região. Uma emblemática visita a cidade foi a de Rockefeller, empresário

norte-americano de grande vulto à época, que foi recepcionado, hospedado e guiado

pelos Coelho pelos projetos agrícolas por eles gerenciados. A visita, coberta pelo

jornal O Farol na matéria de capa Missão Rockefeller em Petrolina, da edição de 30

de Janeiro de 1972, e posteriormente o andamento do projeto Bebedouro, financiado

pelo norte-americano, noticiado na manchete Rockefeller: “Bebedouro está

transformando humildes agricultores em homens produtivos” da edição de 23 de

Março de 1977, fazia parte do projeto da família em atrair os investimentos privados

às suas iniciativas. No âmbito do investimento público, a atuação à época de

Oswaldo, Geraldo e Nilo Coelho, que alternavam mandatos públicos a nível estadual

e federal, angariou uma série de recursos públicos direcionados à Petrolina,

claramente beneficiando a família dominante e suas propriedades (CHILCOTE,

1991). A influência política dos Coelho ainda irradiava para Juazeiro, através da

parceria firmada com o político baiano Prisco Viana, membro da facção Viana tão

forte politicamente na cidade baiana, mas carente da unidade que os petrolinenses

haviam construído na política em família que praticavam.

Em 1973, as lideranças públicas das duas cidades passam a discutir a

barragem, a reorganização do transporte fluvial e, principalmente, a nova dinâmica

Page 124: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

123

do porto. A manchete “Câmara discute porto”, do jornal Rivale, nos conta sobre esta

questão:

O assunto do pôrto está realmente causando sensações a diversas

camadas da cidade. A Câmara de Vereadores [de Juazeiro] que está

em recesso, realizou uma reunião extraordinária no dia 03 do

corrente, quando na oportunidade, o presidente da Casa fêz leitura

do documento assinado pelos Prefeitos das duas cidades,

presidentes das Associações Comerciais, e CODESF (há inclusive

quem afirme que o presidente da CODESF tenha se negado a

assinar o documento) para o conhecimento dos edis. Depois foi

discutido o assunto com manifestação de quase todos os

vereadores. Alguns acharam o documento muito bem feito, porém

tendencioso, alegando inclusive alguns que o documento foi

elaborado com a finalidade quase que precípua de beneficiar a

cidade vizinha, omitindo certos fatores positivos, deixando

escondidos nas entrelinhas, alguns pontos que também marcam o

desenvolvimento de Juazeiro, provocando assim, maiores vantagens

para Petrolina.

A reunião demorou cerca de três horas, e ficou acertado que aquêle

Colegiado iria estudar e elaborar um documento baseado em dados

técnicos, esclarecendo certos esquecimentos cometidos com

respeito a Juazeiro. O poder legislativo juazeirense toma uma

posição de defesa do nosso povo, procurando através de

elucidações, deixar os munícipes realmente inteirados do que se

passa a respeito do porto provisório de Sobradinho. (RIVALE, 1973,

n. 42, p. 3)

Neste ano, o prefeito petrolinense era Geraldo de Souza Coelho, da Arena, e

que detinha ampla maioria na câmara municipal; em juazeiro, o prefeito era Durval

Barbosa da Cunha, da Arena-2 (facção dissidente do partido), apoiado

discretamente pelos Viana e pelos comerciantes locais, com pouca

representatividade na câmara municipal. Podemos observar que a notícia, não

assinada especificamente, mas dentro da proposta editorial já exposta, desenvolve

seu discurso dentro da ideia de protecionismo em relação à questão portuária,

criticando o documento conjunto das cidades por beneficiar Petrolina em detrimento

de Juazeiro. Como pudemos ver, os Coelho tinham total interesse nas questões

econômicas regionais, e sua conexão com o ramo político hegemônico juazeirense

poderia, a princípio, ter pendido favoravelmente às suas aspirações nas discussões

entre as cidades sobre o novo porto.

Page 125: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

124

Seguindo as discussões levantadas pelo artigo de Ermi Ferrari, a Companhia

de Navegação enviou carta para o jornal Rivale. Nos pontos elencados pelo então

presidente do órgão, José Alonso Sartte, e pelo gerente em Juazeiro, Esmeraldo de

Oliveira Brito, os dois que assinam o texto publicado pelo jornal, podemos observar

uma série de críticas ao texto de Ermi Ferrari Magalhães, bem como uma tentativa

de esclarecer a questão do porto em relação ao período em que estaria sendo

construída a barragem, dando visibilidade à opinião tida como oficial da FRANAVE

ao público leitor do jornal. A todo o momento, sem citar nomes, o texto trata como

“os líderes” aqueles que se opõem à criação de um porto provisório em um ponto

próximo à cidade.

Entre outros argumentos, o artigo tenta esclarecer que tanto a FRANAVE

quanto a União dos Barqueiros haviam sido ouvidas pela CHESF, quanto à liberação

do canal do Ingá, para liberar água e velocidade no rio para a navegação, permitindo

a chegada das embarcações à Juazeiro. Outro ponto dá conta de que também a

Companhia de navegação, ladeada mais uma vez pela União dos Barqueiros,

consideraram a possibilidade e

insistiram pela utilização do pôrto mais próximo possível de Juazeiro,

isto tendo em vista que as Empresas ou os Armadores

independentes só podem sobreviver comercialmente se seus

negócios apresentarem algum lucro (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).

Em um extenso texto explanatório e argumentativo, os autores buscam rebater

as críticas feitas anteriormente por Ermi, mas também oferecer uma resposta às

pressões existentes por parte de políticos, comerciantes e demais indivíduos

interessados nesta realocação (ou na manutenção) do porto fluvial. Em torno disto, o

texto busca deixar claro que

entre gastar somas para construir um pôrto provisório a 68

quilômetros de Juazeiro e nada gastar para utilizar um pôrto já

existente a apenas 42 quilômetros desta Cidade, bastava usar o bom

senso e o equilíbrio, pois qualquer que fosse o local preferido ou

escolhido pelos ‘líderes’, os Armadores só utilizariam o pôrto mais

próximo de Juazeiro (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).

O que se torna claro na carta é a preocupação dos juazeirense no tocante ao

destino das navegações, e a possibilidade que a cidade vizinha saia beneficiada de

Page 126: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

125

todo esse imbróglio provocado por Sobradinho e sua barragem. Para os autores,

isso não passa de “medo da própria sombra”.

São ‘os líderes’, ainda, as pessoas que estão dando a entender que

usando-se agora o pôrto de Sobradinho [Santana do Sobrado]

quando êle não mais tiver função os Armadores [navegantes]

passarão a usar só o pôrto de Petrolina, desaparecendo assim o

pôrto de Juazeiro. Queremos explicar ao povo – e não aos ‘líderes’, -

que qualquer Cidade que tenha um rio navegável pode ter o seu

próprio pôrto e ninguém impedirá êsse direito legal, da mesma forma

qualquer Armador atracará a sua embarcação no pôrto que melhor

lhe convier e nenhuma Lei o impedirá de fazê-lo; acontece que, por

circunstâncias especiais, tanto físicas como geológicas, do lado de

Petrolina o São Francisco corre sôbre um vasto leito de rochas

ligeiramente submersas, que devido a este fator a navegação do lado

de Petrolina torna-se bastante problemática e até mesmo perigosa

[...]; diante destes dados, será que os ‘líderes’ não estão com medo

da própria sombra? (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).

O texto ainda trata do “memorial que criou tanta celeuma” (RIVALE, 1973, n.

44, p. 7). Neste aspecto, os pontos básicos abordados foram: tomadas de água para

irrigação e a infraestrutura de Juazeiro e Petrolina, que dispensaria a criação de

nova cidade na área da Barragem.

as ditas tomadas irrigariam 50 mil hectares no Estado de

Pernambuco e 60 mil no Estado da Bahia, vejamos que a superfície

de Pernambuco é de noventa e oito mil quilômetros quadrados e a da

Bahia é de quinhentos quilômetros quadrados, conclui-se que a

Bahia é cerca de seis maior que o Estado de Pernambuco; porque

será que os ‘líderes’ não reivindicaram uma irrigação proporcional à

área dos dois Estados? Cinquenta mil hectares para Pernambuco e

seis vezes cinquenta mil (trezentos mil) para a Bahia se a Bahia é

seis vezes maior que o Estado de Pernambuco? Os ‘líderes’ não

viram isto? (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7).

Aqui, o discurso se direciona não mais aos “líderes” baianos, mas aos

pernambucanos, diante do argumento de que, na divisão de áreas para irrigação

proposta pelo memorial, o estado da Bahia teria saído prejudicado. Influências

políticas petrolinenses? Discutimos anteriormente a questão do interesse dos

Coelho sobre tais empreendimentos, e diante da proeminência desta família na

Page 127: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

126

política local petrolinense, bem como em âmbito estadual e federal, não seria

impensável constatar tal interferência.

Um elemento dentro da própria carta corrobora com a interferência petrolinense

neste processo: “Pergunta-se: onde está a infra-estrutura de Juazeiro capaz de

receber e alojar esses seis mil novos trabalhadores, isto sem contar no mínimo os

dezoito mil dependentes?” (RIVALE, 1973, n. 44, p. 7). As empresas responsáveis

pelas obras da barragem encontravam-se instaladas em Petrolina, juntamente com

seus funcionários. Diante disso, em tom irônico e crítico, os autores do texto

questionam: “Que fizeram os “líderes” no sentido de, por razões óbvias, trazerem-

nos para a Bahia?” (RIVALE, 1973, n. 44, p. 10). Para exemplificar a crítica e dar

maior vasão à criticidade da carta, o texto cita o caso da Servix, outra empresa

envolvida com a construção da barragem. Com muito esforço, ela conseguiu “alugar

um velho bar e o está remodelando para instalar seus escritórios” (RIVALE, 1973, n.

44, p. 10).

Na mesma edição, novo artigo de Ermi Ferrari vinha publicado. Sob o título de

“Porto de Juazeiro”, o texto é mais informativo que opinativo, mas é possível notar

um tom melancólico na forma como seu autor trata as questões levantadas. Dividido

em 5 tópicos, dá conta da desistência da SUNAMAM50 – Superintendência Nacional

da Marinha Mercante – em realizar a abertura do Canal do Ingá, o que possibilitaria

a navegação para além das obras da barragem, chegando à Juazeiro; da

interrupção da navegação durante a construção da barragem, cabendo unicamente

à CHESF – Companhia Hidroelétrica do São Francisco – a decisão de criar novo

porto; da inexatidão de onde este poderia ser construído, cabendo ao Departamento

Nacional de Portos e Costa e a SUNAMAM a decisão final; do fechamento definitivo

do canal de navegação em Sobradinho, entre setembro e outubro.

O último tópico mais parece uma despedida às embarcações, impedidas de

romper os limites da barragem.

Consequentemente, a partir daquela data, barcas e vapores deixarão

por muito tempo o nosso Porto. A paisagem alegre de Barcas com

velas brancas singrando as águas, Barcas a motor, com seus

motores ligados chegando ou saindo do pôrto. Vapores com suas

50

A Companhia de Navegação do São Francisco, FRANAVE, era submetida à SUNAMAM, criada

pelo Decreto nº 64.125 de 19 de fevereiro de 1969, que por sua vez, era um órgão ligado ao

Ministério de Transportes.

Page 128: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

127

rodas em movimento ou hélices de empurradores, deixarão até 1977

de se constituir uma paisagem alegre para os olhos dos que

frequentam o cais e constituir uma fonte de renda para o comércio e

indústria locais (RIVALE, 1973, n. 44, p. 14).

De todo modo, o lamento de Ermi neste trecho não deixa de ter um quê de

lógico. O temor deste barqueiro é também o temor de um juazeirense acostumado

com os trabalhos fluviais na paisagem de sua cidade. A barragem, posteriormente

hidroelétrica, a princípio, não esboçava alternativas à hidrovia. Filha do pacote de

construções de obras gigantescas, típicas do período ditatorial militar do Brasil, a

barragem serviria para o único fim que interessava aos militares: represamento de

água e geração de energia elétrica.

No projeto original, a Barragem impediria o tráfego de embarcações

pra o Porto de Juazeiro, uma vez que não haviam projetado eclusa.

Só depois de realizadas algumas pressões é que resolveram, as

autoridades, determinar a sua construção com a finalidade de

permitir a continuidade da navegação (GONÇALVES, 1997, p. 168).

Por ocasião do Seminário da Bacia do São Francisco, o Jornal de Juazeiro,

órgão gerenciado pelo médico Paganini Nobre Mota, tendo como diretor Moacyr dos

Santos, vereador da cidade à época, publicou um editorial em que se esforçava no

intuito de fazer com que os leitores (e os líderes locais em especial) de fato

acreditassem que, juntamente com outras iniciativas recentes, este Seminário

poderia ser fundamental para a cidade e a região.

O Governo Federal, através de um de seus poderes, abrirá um

grande Seminário Sobre o São Francisco, aqui na região, numa hora

muito oportuna. Nada mais lógico e sensato do que vir buscar os

problemas na fonte, ouvindo os seus interrogadores, e depois enviar

as soluções dentro PNDS já elaborados. Desta maneira o poder

central está irradiando a sua área física de ação para ouvir de perto

as angustias e os dramas desse imenso país, que por ser grande

apresenta-nos igualmente problemas maiores. Chamamos de

oportuno a este Seminário pois ele vem, no momento dos grandes

deslanches econômicos – vide Projeto Curaçá, Agrovale, Alfanor,

DISF, Sobradinho – que estão a modificar a “costumeira” paisagem

do médio São Francisco. Em pleno campo de atividade as forças

políticas irão de sentir e observar os pontos positivos e as distorções

Page 129: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

128

desse colosso potencial que está a sacudir-se. (JORNAL DE

JUAZEIRO, 1975, n. 82, p. 2).

Na edição seguinte deste mesmo jornal, a matéria “E os barqueiros para onde

vão?”, assinada por Mário Vicente dos Santos, comerciante e um dos mais antigos

barqueiros de Juazeiro, segue na esteira dos debates em torno das navegações no

São Francisco. Dois anos após a querela entre Ermi e a Companhia de Navegação

por meio das publicações no Rivale, é a vez deste outro barqueiro levantar a voz,

aproveitando a organização do Seminário, na tentativa de defender a classe.

Utilizando-se de trechos de trabalho feito pelo economista José Maria Isola, o

artigo buscava, em nome da união dos barqueiros do Médio São Francisco, chamar

a atenção das “autoridades constituídas para a situação em que eles ficarão em

consequência da construção da Barragem de Sobradinho” (JORNAL DE JUAZEIRO,

1975, n. 83, p. 6). A ocasião, neste caso, parecia ser oportuna para tal reivindicação.

O desejo expressado pelo barqueiro em seu texto era o de que as informações

que seriam ora lançadas pudessem ser recebidas e refletidas pelos envolvidos nos

debates.

É do estudo supracitado as seguintes afirmações, às quais damos

total assentimento: ‘A navegação no Rio São Francisco enfrentará

sério desafio em futuro próximo, logo que o projeto Sobradinho for

construído...’ ‘Em vista dos resultados, pode-se concluir que os

barcos atuais, com toda a certeza, não têm condições de enfrentar o

problema da navegação com tempo ventoso’. ‘As previsões

preliminares mostram que a altura das ondas que podem ocorrer ao

longo das vias navegáveis, ou nas zonas de arrebentação, podem

criar condições adversas aos barcos atuais.’

Coerentemente com o Programa Especial para o Vale do São

Francisco – PROVALE – a União dos Barqueiros quer aproveitar a

oportunidade da realização do Simpósio sobre a Bacia do São

Francisco para lembrar às autoridades participantes que o dilema a

que foram lançados os barqueiros não pode deixar de merecer a

atenção devida. (JORNAL DE JUAZEIRO, 1975, n. 83, p. 6).

Mário utiliza em seu texto as principais argumentações sobre a questão da

barragem de Sobradinho, vistas pelos barqueiros como grandes entraves para a

continuação do tráfego fluvial. Neste trecho, e falando em nome da União dos

Barqueiros, ele direciona o apelo aos participantes do Seminário (Simpósio, no

texto), ressaltando o dilema no qual estavam inseridos diante das obras no rio. Em

Page 130: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

129

seguida, o barqueiro enfatiza seu posicionamento, levantando as principais

solicitações da classe.

Reafirmo meu total apoio às reivindicações contidas no Relatório que

a União dos Barqueiros já enviou aos nossos governantes – e que

são as seguintes:

a) financiamento para aquisição de embarcações adequadas à

navegação, após a conclusão da Barragem de Sobradinho;

b) prazo de resgate: 12 anos, com 3 (três) de carência;

c) juros: 10% (dez por cento) ao ano.

Esta situação, pelos profundos reflexos sociais que envolve a classe

dos barqueiros, não pode e nem deve ficar esquecida.

Outro ponto que não pode ser esquecido é o que diz respeito às

indenizações a que têm direito os barqueiros, pois com todo este

tempo parados criaram muitos compromissos que precisam ser

saldados. E que não haja demora para que os problemas em que

nós vivemos não mais se agravem.

Assina um dos mais velhos barqueiros do São Francisco.” (JORNAL

DE JUAZEIRO, 1975, n. 83, p. 6).

As navegações, a despeito de todos estes debates, sofreu profundo golpe ao

fim das obras em Sobradinho. O lago impossibilitou a continuidade das viagens em

embarcações de pequeno e médio porte, as mais utilizadas pelos barqueiros

individuais. A Companhia de Navegação manteve o transporte de cargas com

chatas rebocadas por Empurradores. Os barqueiros, contudo, foram indenizados

pelo governo: “56 barcas do rio São Francisco foram indenizadas em juízo uma vez

que elas não ofereciam a segurança necessária para enfrentar as novas condições

de navegação do lago, que terá eventualmente formações de ondas de até três

metros de altura.” (JORNAL DA BAHIA, 1978, p. 2).

No entanto, o fator Sobradinho não pode ser identificado como único a

corroborar com o fim do tráfego fluvial. Ao longo deste capítulo, pudemos observar

que um conjunto de transformações e suas implicações atuaram de forma a

secundarizar a atividade de navegação tal qual era. A nova lógica dos transportes,

com a introdução das rodovias e a consequente expansão destas; o reordenamento

da orla da cidade, dando então espaço para o tráfego de carros em detrimento do

fluxo de embarque e desembarque neste mesmo local; a questão dos motores e a

disputas em torno das inovações tecnológicas; por fim, as transformações no canal

de navegabilidade em função da construção da barragem e hidrelétrica de

Page 131: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

130

Sobradinho. Todos estes aspectos acabaram competindo na diminuição das

atividades fluviais, no tocante às viagens longas, subindo e descendo o rio, rumo à

Minas Gerais.

De longe, este processo não pode ser definido como pacífico, e os relatos dos

entrevistados, além do embate jornalístico exposto neste último tópico, dão conta de

uma intensa disputa, desde o motor que se transforma, passando pelos espaços

urbanos transformados pela ação do “progresso” (o carro, a rodovia), até a questão

da transferência do porto para outra localidade.

É importante ressaltar que navegar no São Francisco, em Juazeiro, não deixou

de ser exercício praticado pelos citadinos. A despeito das grandes navegações, e

usamos “grandes” no sentido de maiores, mais longas, o rio continuou navegável,

por parte das embarcações menores, no tocante às cidades mais próximas, nas

travessias entre Petrolina e Juazeiro, nos passeios pelas ilhas, na atividade de

pesca.

Page 132: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

131

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um ponto. Para todos os efeitos, de continuação. Assim, chegamos ao espaço

conclusivo de nossas reflexões sobre o objeto. O intuito, e por isso a ideia de

continuidade, é que estas perspectivas e as possibilidades de resolução dos

problemas levantados possam suscitar eventualmente novos trabalhos, novas

abordagens, sobre Juazeiro e região e sua relação com o rio São Francisco no que

tange às práticas construídas dentro desse contato.

Na pesquisa que aqui empreendemos, tomamos como palco das ações a

serem analisadas o cais/porto/orla juazeirense, e dentro deste local pudemos

observar os modos como os citadinos o praticavam, tornando-o espaço de

sociabilidades construídas mediante as ações por eles empreendidas. O trabalhar, o

observar, o despedir-se, o simples caminhar; ações cotidianas, responsáveis por

promover uma significação do local praticado, permitindo que os indivíduos

pudessem senti-lo.

Dentro do que pudemos refletir sobre a construção das sociabilidades na

esfera de influência da intersecção rio/cidade, as atividades de navegação

empreendidas no Velho Chico desempenharam papel preponderante. O seu aspecto

agregador, englobando os indivíduos ribeirinhos em seu exercício, aliado às

condições geográficas da cidade, constituindo-se em local de convergência entre

vias de transporte e viagens, permitiu que Juazeiro pudesse ser edificada enquanto

polo comercial. Neste aspecto, a conexão estabelecida pelo fluxo do rio com estados

ao sul do país, através das cidades ribeirinhas mineiras, possibilitou que a produção

local encontrasse destino para seu escoamento, ao mesmo tempo em que o

comércio local se abastecia com o que era produzido nas indústrias sulinas.

Aproveitando a ótica dos engenheiros Halfeld e Sampaio, observamos como

estes elementos já vinham constituindo-se na segunda metade do século XIX. De

um relato a outro, aspectos da vida urbana e comercial e das atividades de

navegação empreendidas foram evidenciadas em seus relatórios, servindo com

base para nossas análises.

É preciso deixar claro que procuramos observar a todo o momento os sentidos

e representações nas memórias sobre a atividade de navegação, estabelecendo

contato com Juazeiro, buscando problematizar tais olhares. Levando esta assertiva

Page 133: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

132

como diretriz em nossas observações, seguimos adiante em nossa narrativa,

propiciando o encontro e problematização das fontes orais e fotográficas, além de

matérias jornalísticas que de certa forma abordavam o espaço em questão (orla) e

os indivíduos que desempenhavam suas atividades cotidianas neste local.

Neste exercício, o panorama que foi construído através destes olhares pôde

nos mostrar uma série de fatores que, dentro de nossas reflexões, foram

considerados em caráter plural: os olhares mostraram que o espaço conectivo entre

rio e cidade, longe de representar a mesma coisa para todos, pôde ser identificado

como espaço do proibido e do permitido; também é espaço apropriado enquanto

elemento constituinte das memórias agradáveis, ao passo que também figura entre

as rememorações que podemos classificar como traumas (referência a maus

momentos, rupturas dentro daquilo que é lembrado); é ainda espaço de conflitos, de

disputas, palco onde se desenrola, por exemplo, a “querela” dos motores,

responsável por uma modificação significativa nas atividades de navegação,

principalmente no tocante ao trabalho desempenhado pelos moços-de-convés.

Através das narrativas destes ex-fluviários, inclusive, pudemos observar que,

muito além da ideia romântica construída em torno do trabalho com as

embarcações, suas motivações para ingressar neste ofício são muito mais plurais do

que se supunha. Desejo de ter um emprego, admiração em relação às

embarcações, necessidade financeira, falta de oportunidades e perspectivas, ou

mesmo opção, contraponto ao argumento anterior: as vozes que contaram suas

histórias expuseram a diversidade de elementos levantados, apresentando um

panorama diferenciado.

Atrelado a isso, também pudemos observar a maneira como cidade e rio,

Juazeiro e São Francisco mantinham-se interligados através das práticas sociais:

seja o jovem rapaz, sentado à orla, observando o ir e vir de vapores e demais

barcas, seja o transeunte a caminho de sua casa e que tem, como quadro cotidiano,

um pano de fundo diário, os trabalhos fluviais, seja o próprio fluviário, ao rememorar

sua vida e seu trabalho em Juazeiro.

O apito, o ronco dos motores, o vai e vem de passageiros, a despedida dos

viajantes, a movimentação de mercadorias e do comércio juazeirense. A hidrovia

que abastece a cidade acaba integrando-se ao cotidiano citadino, atuando como um

elemento familiar e constituinte das identidades sociais em Juazeiro, além de,

Page 134: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

133

enquanto espaço físico, figurar nas lembranças particulares como um local de

memória e de reconhecimento identitário.

Outro elemento bastante importante relaciona-se a questão em torno das

transformações ocorridas nos transportes fluviais e a consequente diminuição no

fluxo hidroviário pelo São Francisco, algo significativo para a vida urbana de

Juazeiro, uma vez que esta estava bastante envolvida com as atividades de

navegação. A partir das análises realizadas sobre fontes orais, fotográficas e

jornalísticas, pudemos observar este fator para além da explicação simplista de que

a barragem de Sobradinho teria posto um fim às navegações. Obviamente que este

evento foi também fundamental para o processo de enfraquecimento da utilização

da via fluvial enquanto meio de transporte e escoamento de produtos. No entanto,

desde a construção da ponte Presidente Dutra, fazendo consigo uma conexão entre

Juazeiro e Petrolina por meio da estrada férrea, mas, especificamente, pela rodovia,

que passava a desempenhar um papel preponderante já a partir das décadas de

1950 e 1960, a cidade baiana e sua população já assistiam a um deslocamento de

importância, na organização urbana, para o asfalto e os automóveis que chegavam.

Não à toa, as modificações ocorridas na orla da cidade, seguindo a esteira das

percepções fornecidas pelos olhares dos entrevistados, cronistas locais e registros

fotográficos, apresentaram fragmentos da memória coletiva sobre o processo de

transformação em Juazeiro: a estação destruída, onde, por sobre, passou a ponte; a

rampa para automóveis construída logo após; o parapeito da orla, modificado em

sua estrutura; o asfalto que obrigou os passantes, bem como os trabalhadores

fluviais que descarregavam ali suas mercadorias, a ceder espaço aos automóveis.

Até a década de 1970, o cais/porto da cidade já não representa mais o local de

atracação (ou o único local para esta atividade), relacionando-se cada vez menos

com a atividade fluvial de navegação de mercadorias e viagens intermunicipais e

estaduais. Os depósitos que recebiam estas mercadorias deixam de ter

funcionalidade diante do deslocamento de função do local, cedendo espaço para

outras práticas de sociabilidade.

Os reflexos destas transformações não passaram despercebidos, sem

fomentar uma série de questões e disputas dentro da sociedade juazeirense, bem

como da região circunvizinha. Logicamente, isto pôde ser observado já nas falas dos

depoentes, quando estes constatavam as principais modificações na cidade que

mais haviam sido significativas para si. Porém, o deslocamento do porto e suas

Page 135: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

134

funções fluviárias proporcionou uma disputa política bastante profunda, e pudemos

analisar tal questão a partir de uma série de artigos, publicados principalmente nos

jornais Rivale e Jornal de Juazeiro. Os agentes envolvidos, com suas respectivas

intencionalidades, debateram o assunto da localização do porto de Juazeiro durante

o período de construção da barragem de Sobradinho. Diante da grandiosidade da

obra, e das profundas transformações que esta prometia fazer à região e aos

ribeirinhos, as navegações pelo São Francisco, sua situação pré e pós construção

da barragem, tornou-se questão das mais disputadas, principalmente porque mexia

em um elemento que simbolizava uma hegemonia que Juazeiro possuía desde fins

do século XIX (algo refletido no primeiro capítulo). A atividade fluvial representava,

na década de 1970, espaço temporal dos debates refletidos no tópico 3.3 desta

dissertação, uma conexão com um passado tido como “áureo” para os barqueiros

juazeirenses, e que ainda era o diferencial que ostentavam em face à cidade vizinha,

Petrolina, que fazia neste período uma oposição forte à sua cidade-irmã baiana, no

quesito do deslocamento do porto.

Assim, o que concluímos quanto a esta questão é que, para além da simples

construção da barragem, a relação entre rio e cidade vem sofrer uma grande

modificação a partir de elementos diversos, em etapas que permeiam a segunda

metade da década de 1950 até fins da década de 1970. Isso não significa, em

hipótese alguma, que Juazeiro e o Velho Chico perderam a conexão entre si, bem

como as práticas de sociabilidade foram extintas dentre a população local. As

transformações ocorridas concorreram para o abandono de certas práticas em

detrimento de novas, construídas a partir dos novos elementos em questão.

O local orla (mais orla do que cais ou porto, visto que o sentido anterior de

espaço praticado pela chegada e partida de embarcações, carregadas de

passageiros e produtos a serem comercializados, havia caído em desuso) passa a

adquirir um novo sentido a partir das novas práticas estabelecidas pelos citadinos. A

instalação de bares e restaurantes, por exemplo, abre o local para práticas

culinárias; é local também onde se desenrolam práticas de divertimentos em nada

conectados ao rio, como espaço de música e dança nestes estabelecimentos; os

depósitos cedem espaço às lojas de varejo, e em nada se assemelham aos locais

onde se guardavam os produtos comercializados pelo rio.

Alertamos que isso não significa, também, que práticas relacionando rio/cidade

não tenham sido construídas a partir daí, no tocante à atividade de navegação. As

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135

barcas de travessia entre Petrolina e Juazeiro, compondo atividade cotidiana de boa

parte da população empregada nas casas comerciais de ambas as cidades; as

embarcações que realizam viagens às ilhas do São Francisco; o crescimento das

práticas esportivas e de lazer de navegação no trecho do rio inserido no cotidiano

urbano da cidade de Juazeiro. São alguns exemplos que podemos citar brevemente

aqui.

Tais elementos novos, contudo, escapam ao nosso olhar, extrapolando nosso

recorte temporal, mas podem compor uma nova análise, sobre as práticas de

sociabilidade construídas em Juazeiro a partir destas transformações urbanas.

Page 137: olhares da cidade: sentidos e representações nas memórias das

136

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Fontes Orais

Seguindo orientação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UEFS), a identidade

dos entrevistados foi mantida em sigilo, e as citações dos depoimentos ao longo

desta dissertação foram referenciadas em nota de rodapé, identificando a data de

coleta da fala em questão. Os nomes dos depoentes foram substituídos por

numeração (Entrevistado 1, Entrevistado 2, etc.).

Fontes jornalísticas

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Acervos consultados

Acervo particular do Vivência Centro Educacional, Petrolina-PE.

Acervo Maria Franca Pires, da Universidade do Estado da Bahia, Juazeiro-BA.

Biblioteca Municipal Cid Carvalho, Petrolina-PE.

Biblioteca Professor Olavo Balbino, Juazeiro-BA.