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Uma das mais impressionantes características do império colonial português é a relativahomogeneidade de sua organização administrativa e institucional, a despeito das dificuldadesimpostas pelas dimensões espetaculares de suas conquistas ultramarinas. A importância dessaquestão foi destacada, de forma pioneira, por Charles R. Boxer em 1969, quando chamava aatenção para o papel-chave desempenhado pela Câmara e a Misericórdia, “pilares gêmeos dasociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau”. Este é um dos assuntos que são tratados neste livro sobre a Amazônia.
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ISSN 1517-252 X
AmãOiMô niólem cadernos Manaus-n. 7/8 - 2001/2@ 2
NarrativaArte e Cultura
EDUAEDITORA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO AMAZONAS
Museu 111:1 •.Amazônico__ ~FedonIÕl"""""""
1
Publicado em Amazônia em Cadernos, Revista do Museu Amazônico, Manaus/AM,
v. 7/8, p. 263-379, 2007.
Olhos e Ouvidos do Rei
Ouvidor Pestana da Silva e os Índios do Grão-Pará, século XVIII
Patrícia Melo Sampaio*
Uma das mais impressionantes características do império colonial português é a relativa
homogeneidade de sua organização administrativa e institucional, a despeito das dificuldades
impostas pelas dimensões espetaculares de suas conquistas ultramarinas. A importância dessa
questão foi destacada, de forma pioneira, por Charles R. Boxer em 1969, quando chamava a
atenção para o papel-chave desempenhado pela Câmara e a Misericórdia, “pilares gêmeos da
sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau”.1
Reconhecendo o alcance do componente internacional na compreensão da dinâmica
imperial portuguesa, ao mesmo tempo em que redimensionou o uso de conceitos clássicos, a
historiografia mais recente relativa à história colonial no Brasil vem colocando em xeque a
rigidez de noções que insistiam em analisar as relações colônia-metrópole a partir de um
dualismo cristalizado e inflexível. 2
Usando o conceito de “autoridades negociadas”, esses estudos refletem as dinâmicas
coloniais a partir da percepção de um jogo permanente no qual as relações entre metrópole e
colônia são formuladas e reformuladas, abrindo-se um espaço possível para a negociação entre
os diferentes agentes coloniais; é dentro desse campo diferenciado que é possível reavaliar o
papel desempenhado pelas instituições metropolitanas instaladas nas colônias.
Tal como as câmaras, a ouvidoria é uma instituição colonial longeva e também
atravessou os mares. O cargo de ouvidor de comarca [capitania] foi criado em 1534. Na
condição de executores da justiça real cabia-lhes, entre outras atribuições, tirar devassas e
proceder judicialmente em tudo que fosse necessário, mandar abrir correições, realizar revistas
das aferições de pesos e medidas, prover inventários de órfãos, acompanhando os rendimentos
* A autora é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas, Mestre e
Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense/RJ. 1 Boxer, Charles R. O Império Colonial Português (1415-1825). 2 ª ed. Lisboa: Ed. 70, 1981, p. 263.
2 Para uma leitura mais recente, ver Fragoso, João; Bicalho, M.ª Fernanda e Gouvêa, M.ª de Fátima
(Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI –XVIII). RJ:
Civilização Brasileira, 2001.
2
de suas legítimas, tomar contas aos testamenteiros, proceder - na alçada de sua jurisdição -
contra capitães-mores e demais oficiais de ordenanças que achasse culpados de alguma
transgressão, dando apelação e agravo ao governador geral.3
A Capitania de São José do Rio Negro, implantada em 1757, não fugiria à regra das
áreas de ultramar e também contava com a figura do ouvidor para atender às justiças do Rei.
Pelo que foi possível inventariar até aqui, a Capitania teve 10 ouvidores, entre 1759 e 1823.
Ouvidores da Capitania do Rio Negro (1759-1823)
Nome Período
Lourenço Pereira da Costa 1759-1767
Antônio José Pestana da Silva 1767-1773
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio 1773-1779
Ouvidorias Interinas (Bento José do Rego, José Antônio Freire Évora) 1779-1799
Luís Pinto de Cerqueira 1799-1801
Caetano Pereira Pontes 1803?
João Antônio da Silva Bacelar Alvares das Astúrias 1807?
Antônio Feliciano d’Albuquerque Bittencourt 1817?-1821
Domingos Nunes Ramos Ferreira 1821-1823
Fonte: Cronologia provisória elaborada pela autora.
A descrição feita pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira da estrutura político-
administrativa da Capitania não deixa dúvidas quanto ao lugar do ouvidor real no Rio Negro, no
último quartel do século XVIII:
“Quanto ao expediente ordinário das justiças, depois que de missões (...), passaram às
vilas e lugares, tanto os índios, como os moradores brancos adjuntos às vilas,
principiaram a ser governados no temporal pelos seus juizes ordinários, vereadores e
mais oficiais de justiça; pertencendo ao doutor ouvidor conhecer dos agravos e
apelações.”4
Lourenço Pereira da Costa foi o primeiro ouvidor da Capitania de S. José do Rio Negro,
mas ainda trata-se de um desconhecido. Exerceu suas funções entre os anos de 1759 a 1767,
3 Salgado, Graça (Coord.) Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 357 ss.
3
tendo sido nomeado durante a administração do Governador da Capitania, Gabriel de Souza
Filgueiras, passando pelas administrações interinas de Nuno Verona e Valério Botelho, até à de
Joaquim Tinoco Valente (1763-1779).5
Antônio José Pestana da Silva também é conhecido de poucos. Raríssimas são as
menções às suas ações em trabalhos sobre a Amazônia colonial que, usualmente, reproduzem
a sua avaliação acerca do Diretório Pombalino, tal como foi recuperada por Perdigão Malheiro.
O resto é silêncio.6
Como se pode observar no quadro, o ouvidor Pestana assumiu a ouvidoria da Capitania
do Rio Negro por provisão régia de 30 de maio de 1767, substituindo a Lourenço Pereira da
Costa. Permaneceu na região até meados de 1774, quando Francisco Xavier Ribeiro de
Sampaio foi provido no referido cargo. No período de seu exercício era governador do Rio Negro
o Coronel Joaquim Tinoco Valente (1763-1779). Pestana, além de ouvidor, era “intendente-geral
dos Índios na Capitania do Rio Negro, subordinada à do Pará, sendo da minha inspeção a
agricultura, e manufaturas do território, e provedoria da fazenda”.7
Não obstante a existência de várias referências a seu respeito na documentação
microfilmada do Museu Amazônico, a atuação de Pestana no Rio Negro ainda permanece
obscura e, a este respeito, só se pode assegurar a realização da primeira correição na Capitania
do Rio Negro, em meados de 1768, tal como registrou seu sucessor, Ribeiro de Sampaio, no
preâmbulo de seu Diário8.
No volumoso texto da Viagem Filosófica, Pestana mereceu apenas três modestas
citações contra 47 do ouvidor Sampaio; a mais significativa trata de uma devassa por ele
promovida por conta de uma sublevação de soldados da guarnição da Fortaleza de Marabitanas
ocorrida em 1769 9.
Muito diferente da notoriedade de Ribeiro de Sampaio, ao ouvidor Pestana restaram
raríssimas notas de rodapé. E foi assim que o encontramos; em uma discreta nota de rodapé de
4 Ferreira, Alexandre R. Viagem Filosófica ao Rio Negro. MPEG CNPq/Fundação Roberto Marinho,
1983, p. 645 5 Cf. Pinheiro, Geraldo S. P. “Documentos Inéditos de Lourenço Pereira da Costa, Provedor da Fazenda
Real e Intendente do Comércio, Agricultura e Manufatura da Capitania de S. José do Rio Negro (1760-
1767)”. Boletim de Pesquisa da CEDEAM, Manaus, v.2, n.º 3, jul-dez.1983. pp. 58-61. 6 Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil. SP: Edições Cultura, 1944.
7 A acumulação de cargos era possível; na Capitania do Rio Negro, os ouvidores também poderiam ser
provedores da fazenda real e intendentes da agricultura. Nesta mesma situação encontramos Lourenço
Pereira da Costa e Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. 8 Sampaio, Francisco Xavier Ribeiro de. As viagens do Ouvidor Sampaio (1774-1775) (1825:Lisboa)
Manaus: Associação Comercial do Amazonas/Fundo Editorial, 1985. 9 Ferreira, Alexandre Rodrigues. Op. cit.
4
Arthur César Ferreira Reis que, em seu enorme esforço de erudição no resgate de documentos
para a história colonial da Amazônia, faz menção a um texto praticamente desconhecido
produzido pelo ouvidor em data incerta10.
Este texto é o que apresentamos aos leitores agora. Graças à pista fornecida por Arthur
Reis, foi possível recuperar o texto de Pestana e prepará-lo para a reentrada na historiografia
colonial. Trata-se de um longo e surpreendente texto; se lhe falta a capacidade descritiva do
famoso Diário do ouvidor Sampaio, sobeja-lhe a capacidade de argumentação comparativa e
esforço de pesquisa para buscar estabelecer um novo método para a civilização dos índios do
Grão-Pará.
Sua bibliografia de referência é variada e vai buscar inspiração nas experiências
desenvolvidas pela Espanha no trato com os índios, sem furtar-se à inspiração dos evangelhos,
das teorias do Direito Natural, de filósofos, determinações dos Concílios e bulas papais, entre
outras a mencionar. Até mesmo o Padre Bartolomeu de Las Casas não lhe era desconhecido e
aparece em suas referências.
Meios de dirigir o Governo Temporal dos Índios foi produzido após a sua saída da
ouvidoria do Rio Negro, possivelmente entre 1775 e 1776.11 Como já mencionamos, não é
possível comparar formalmente os textos dos dois ouvidores porque produzidos com objetivos
diametralmente opostos. A comparação só é possível naquilo que os distingue e separa;
enquanto Sampaio produz um levantamento minucioso da situação da Capitania, em Pestana o
que encontramos é um esforço intelectual de levantar, cotejar e analisar a situação da
civilização dos índios do Grão Pará, com destaque especial para a aplicação prática do Diretório
pombalino, ao qual dedica as mais severas críticas.
A novidade do texto é a justificativa apresentada pelo próprio autor para sua elaboração.
Segundo Pestana, tratava-se de uma incumbência recebida do próprio Pombal que o
encarregou de realizar “os apontamentos que pudessem conduzir a uma reforma, segundo os
erros, descaminhos, as distrações e preocupações que tinha observado” durante o exercício de
seu cargo na Capitania. Esta tarefa foi posteriormente ampliada, por solicitação de D. Pedro III,
para que se incluísse em suas observações outras tentativas e planos para a civilização dos
10
Reis, Arthur César Ferreira. História do Amazonas. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Manaus:
Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. 11
Esta conclusão baseia-se em referências fornecidas pelo próprio ouvidor em representação encaminhada
ao Príncipe D. João em 1800. Cf. Museu Amazônico - AHU 049, p. 6-17.
5
índios; com esta última intervenção, aparentemente, consolidou-se o texto final produzido pelo
Ouvidor. 12
Na famosa frase divulgada por Perdigão Malheiro, o ouvidor Pestana assegura que o
Diretório “é um labirinto ou mistura de determinações que dá causa a muitas ilusões e
desacertos que hoje se praticam no Estado” e chega mesmo a reconhecer que a principal causa
dessa situação é a absoluta incompatibilidade entre as leis de liberdade e a distribuição forçada
dos índios estabelecida no Diretório.
O Diretório é um “labirinto” porque nele existem questões e áreas de jurisdição mal
definidas e destaca, particularmente, o problema da distribuição dos índios. Em um de seus
parágrafos, o Diretório prevê que cabe aos Principais apresentar os índios para distribuição, mas
em outro, que determina as atribuições dos Diretores, estabelece que este deve manter listas
dos índios passíveis de distribuição e obedecer os critérios de atendimento.
“ A prática porém introduzida, veio a constituir novo meio entre essas dúvidas e vem a
ser: os diretores não fazem listas, não há distribuição, não se dão operários aos
moradores, por que são poucos os Índios para o negócio do sertão; e se algum se dá, é
por empenho e particular determinação dos governadores, que se pretextam nos
despachos, que seja na conformidade das ordens de Sua Majestade.”
Como se não bastassem as ambigüidades legais, que a prática se encarregou de
resolver de forma favorável aos diretores e governadores, Pestana argumenta que a
distribuição, além de não ser justa, é violenta e descreve os maus tratos dos moradores, a
privação da liberdade e as expedições de caça aos fugitivos por tropas militares, enfim, toda a
sorte de abusos a que são submetidos os índios.
“ Se esta formalidade de procedimentos não é cativeiro, não pode haver coisa que mais
destrua pela raiz a liberdade. (...) Por este título de distribuição, bem se pode dizer que
são os Índios vendidos muitas vezes; por que os moradores, para os conseguirem,
necessitam de premiar com regalos e donativos aos intercessores da concessão; e isto
além dos salários que devem contribuir aos Índios, e tudo se deve recuperar à custa do
suor, e do sangue do mesmo Índio: eis aqui o que sucede na Capitania do Rio Negro.”
12
Cf. Museu Amazônico - AHU 049, p. 6-17.
6
A conclusão de Pestana é radical. Pede que seja abolido o “confuso Diretório” e
respeitada a liberdade dos índios para que enfim possa o Estado se desenvolver de maneira
adequada. O seu texto tem um fim preciso: apresentar à coroa um novo plano para acelerar o
processo de civilização dos índios. Para produzi-lo, o ouvidor se serve das experiências que
conhece no trato com populações indígenas, sejam aquelas tentadas nas colônias de Espanha,
sejam as tentativas anteriores à laicização das missões produzida pela administração
pombalina.
Dedica grande atenção às intervenções do Padre Antônio Vieira nesse particular e, em
mais de uma ocasião, formula críticas duras ao regime que lhe é contemporâneo recorrendo aos
escritos de Vieira, valendo-se da autoridade do jesuíta para respaldar suas próprias
observações e comentários.
O resultado é a proposta de criação de uma junta de propagação da fé que reúne várias
atribuições da extinta junta das missões e que deveria ser composta por homens de
reconhecida probidade, responsáveis pela condução do processo de civilização dos índios. Os
detalhes do funcionamento da junta, sua composição e modus operandi, o leitor encontrará no
próprio texto, eximindo maiores comentários nessa breve apresentação.
Outros aspectos do texto também merecem destaque: os comentários mais específicos
de Pestana a respeito dos militares e do governador da Capitania do Rio Negro são um
indicador significativo da tensão que os cercava. Embora reconhecendo que as tropas tem uma
certa utilidade, afirma, de forma audaciosa: “não me desculparia de erro grande, se me
lembrasse de sua total extinção”. O governador Tinoco Valente mereceu um irônico comentário:
ao propor que o Comum plantasse cacau e café para reduzir a dependência das expedições aos
sertões, assegura que Tinoco Valente não concordou com seu projeto, “talvez por melhores
luzes de inteligência ou por zelo da glória alheia”
Aparentemente, Pestana da Silva logo percebeu os limites do seu relacionamento
administrativo com os governadores-militares: a questão da distribuição dos índios. Preocupado
com as ações dos Diretores, reconhece que de nada adianta denunciá-las porque, nomeados
pelos governadores, são por eles resguardados e nada acontece. E ainda que faltem índios
para os serviços do comum e para a maior parte dos moradores existem certos privilégios na
distribuição dos trabalhadores. Diz nosso ouvidor que aqueles que mais precisam de índios, são
os que menos conseguem. Porém, isso não é válido para todos:
7
“ O governador, os ministros, os cabos da tropa militar, os eclesiásticos, e moradores de
consideração, ou pelos seus cargos, ou pelo seu melhor estabelecimento, todos tem
índios assiduamente para os seus serviços, além dos que se empregam em obras reais;
os salários tênues, os serviços indispensáveis.”
Depois do fim de seu mandato na Capitania, Pestana retornou à Corte, mas é difícil
acompanhar sua trajetória, em especial, depois da elaboração de seu texto. Alguns fragmentos
indicam que formou sociedade com um irmão para encaminhar seus projetos de
estabelecimento da Junta das Missões, na qual comprometeu a maior parte de seu pecúlio,
buscando também alcançar isenções e benefícios para sua incipiente empresa.
Além dos indícios que apontam para sua presença freqüente nas proximidades da
Corte, em busca de proteção nas esferas do poder, aparentemente a elaboração do seu
trabalho fez com que acreditasse que podia realizar muito mais. Não perdeu tempo. Em 1800, o
ex-ouvidor solicitaria ao Príncipe assento no Conselho Ultramarino para ocupar o emprego de
“Procurador Fiscal de tudo o que dissesse respeito aos Índios e as Religiões nos domínios de
Ultramar”, cargo para o qual acreditava que ninguém melhor que ele estava capacitado a ocupar
“se não o enganava o seu amor próprio.” Estava enganado. Sua pretensão foi redondamente
frustrada. 13
Representantes da justiça real, mas subordinados aos governadores, os ouvidores no
Rio Negro encontraram sérios limites ao cumprimento de suas determinações, em especial,
àquelas que para sua implementação, alterassem ou interferissem nos padrões de distribuição
de mão-de-obra que, quase sempre, não estavam de acordo com os princípios indicados no
Diretório. Responsáveis ainda pelo desenvolvimento do comércio e da manufatura e,
especialmente, pela arrecadação e fiscalização da Fazenda Real, defrontam-se com abusos e
malversações, inclusive com a aquiescência velada das outras autoridades coloniais.
Não são presas fáceis nesses sertões, mas também eles ajudam a tornar ainda mais
intricadas as malhas do poder no Rio Negro, porque representam, de algum modo, um limite
interno aos próprios quadros coloniais, no esforço de implementar os projetos da Coroa.
Também não escapam das acusações de enriquecimento ilícito, dos negócios escusos e abusos
de poder. Homens de sua época, nesta complexa tapeçaria, são a um só tempo, tecelões e
tecido.
13
Cf. Museu Amazônico - AHU 049, p. 2, 5 e pp. 6-17.
8
O objetivo dessa brevíssima intervenção é, antes de tudo, estimular a curiosidade para
um texto que, por si mesmo, já vale o esforço de leitura. Se não bastasse, ainda ajuda a colocar
novas questões para melhor avaliar a complexidade da região amazônica de meados do século
XVIII14.
14
Um último comentário de natureza técnica. O texto de Pestana foi publicado por A.J. Mello Morais em
meados do Oitocentos e, para essa edição, foi atualizado na ortografia com o objetivo de facilitar o fluxo
da leitura. Não sofreram alterações nem a pontuação e nem a construção gramatical que aquela publicação
registrou. Do mesmo modo, as notas de rodapé aí registradas acompanham a publicação de Mello Morais.
9
Governadores da Capitania de São José do Rio Negro - (1755-1823)
Nome Período Capital Observação
Joaquim de Mello e Póvoas 1758-1760 Barcelos
Gabriel de Souza Filgueiras 1760-1761
Nuno da Cunha de Ataíde Verona 1761 Interino
Valério Correia Botelho de Andrade 1761-1763 Barcelos Interino
Joaquim Tinoco Valente 1763-1772 Barcelos Interino
Joaquim Tinoco Valente 1772-1779 Barcelos Titular
1ª Junta Governativa: Francisco Xavier Ribeiro
de Sampaio, Domingos Franco de Carvalho e
Antônio Nunes
1779 Barcelos
2ª Junta: Domingos Franco de Carvalho, Simão
José Pereira de Ribeiro e Felipe Serrão de
Castro
1780 Barcelos
3ª Junta : Felipe Serrão de Castro, João Nobre e
Bento José do Rego
1781 Barcelos
4ª Junta: Bento José do Rego, Francisco Taveira
Velho e Antônio Francisco Mendes
1782 Barcelos
5ª Junta: Bento José do Rego (substituído por
João Batista Mardel), João Manuel Rodrigues e
José Gomes da Silva
1783 Barcelos
6ª Junta: João Batista Mardel (substituído por
Severino Eusébio de Matos e, depois, por
Domingos Franco de Carvalho), Bento José do
Rego e Antônio Francisco Mendes.
1784 Barcelos
7ª Junta: Antônio Francisco Mendes, João
Manuel Rodrigues e José Gomes da Silva
1785 Barcelos
8ª Junta: José Gomes da Silva, João Manuel
Rodrigues (substituído por José Antônio Freire
Évora) e Francisco Xavier de Morais
1786 Barcelos
Manuel da Gama Lobo d’Almada 1788-1799 Barcelos/ lugar
da Barra/
Barcelos
Titular
9ª Junta Governativa 1799-1801 Barcelos
José Antônio Salgado 1801-1804 Barcelos
José Joaquim Vitório da Costa 1806-1818 Barcelos/ lugar
da Barra
Titular
Manuel Joaquim do Paço 1818-1822 Lugar da Barra Titular
10ª Junta: José de Brito Inglês, Domingos Nunes
Ramos Ferreira e José da Silva Cavalcante
1822 Barra
11ª Junta: Joaquim José Gusmão, Domingos
Nunes Ramos Ferreira e João da Silva Cunha
1823 Barra
Fonte: Francisco Jorge dos Santos. Além da Conquista. Op. cit. pp. 219-220.
10
74. 5, 21 - B.N. (OR) - Morais, Alexandre José de Melo. Corografia Historica, Chronographica,
Genealogica, Nobiliarquica e Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia
Americana, 1858 - 1860, v. IV, pp. 122 - 183.
Meios de Dirigir o Governo Temporal dos Índios
Em uma representação o Dr. Antônio José Pestana da Silva, rico de experiências, e mais que
muito conhecedor dos costumes e viver dos Índios, propôs a el-rei de Portugal em uma luminosa
memória os meios mais convenientes para dirigir o governo dos Índios do Pará. Esta
representação manuscrita inédita que temos à vista principia nestes termos:
Não é o interesse, Senhor, que move o meu espírito; o zelo de bom patriota, que se
deve empenhar pela glória da nação; o ardor de fiel, e de cristão, que me obriga lastimar-me dos
insultos, e danos da igreja na América Setentrional: esses são os estímulos, que arrancam do
meu coração, as vozes e proposições da pura verdade, que com a maior submissão vou expor a
V. Majestade para que pelas benignas e reais mãos de V. Majestade, cheguem ao trono da
soberania. A causa é de Deus; o seu objeto é a propagação da fé ortodoxa, naquelas terras que
estão no domínio português, e de que dependem os estabelecimentos dos incultos sertões da
América para vantagens dos interesses desta coroa.
Pela própria experiência adquiri conhecimentos de um e outro Estado, quando tive a
honra de servir a coroa deste reino nos empregos de ouvidor e intendente-geral dos Índios na
Capitania do Rio Negro, subordinada à do Pará, sendo da minha inspeção a agricultura, e
manufaturas do território, e provedoria da fazenda. Eu vi a meu pesar as justificadas razões com
que muitos (1) gênios zelosos do serviço de Deus, da glória portuguesa e dos interesses da
coroa, fizeram chegar as suas vozes, e as suas queixas ao pé do trono dos predecessores de V.
Majestade, para se remediarem os danos do Estado, que ainda não estão atalhados.
Depois que no fim do século XV, os descobridores molharam as âncoras nas costas da
América, logo com eles entrou a cobiça e a ambição a fermentar muitas tiranias à custa do
sangue daqueles miseráveis habitadores e senhores do país. Sendo a luz do Evangelho um
importante e digno objeto da piedade dos senhores reis, e capaz de empenhar os maiores
1 Basta que se vejam as muitas representações e cartas do zeloso Padre Antônio Vieira, que consta
estarem na biblioteca real; e da vida do mesmo escrita pelo Padre de Barros in fol. da impressão Olisipon
em 1746.
11
sacrifícios, e despesas quase que a igreja foi pretexto para os primeiros europeus que muito de
perto viram aquele continente. Eles com imensas riquezas fartaram a sua ambição, com o
sangue dos Índios saciaram a sede cruel da impiedade, e atrás destes ídolos da depravação se
entranharam nos maiores perigos, algumas vezes à custa do próprio castigo. Portugal foi mais
bem livrado, mas não de tudo defendido. Espanha é incomparavelmente muito mais infamada
nessa conquista (2) pelos Cortezes, Almagros e Pizarros.
Desde o Pontífice Alexandre VI e seus sucessores, se encarregaram os príncipes por
uma delegação apostólica e gloriosa, de fazerem plantar na América a verdadeira vinha do
Senhor; e à proporção do régio zelo, empenharam o seu poder, riquezas e forças, mandando
operários satisfazer a santa comissão de dilatar o grêmio da igreja, e propagar a fé, como de
direito divino é incumbido e intimado aos ministros da religião(3).
Por todos os lados a ambição tem feito ataques perniciosíssimos, e de que a tirania tem
sido resulta funesta; por cuja razão naquele continente, não tem sido maiores, progressivos os
triunfos do Evangelho. Não tem concorrido menos a falta de desvelos: a inação, e desmazelo
dos gênios; as intrigas de oposição, e contestações dos governadores, dos capitães-mores, dos
ministros e dos missionários; sendo causa da desordem a necessidade de uns e a cobiça dos
outros; oprimindo-se os Índios com injustiças e vexações que tem escandalizado a
humanidade(4).
Por este princípio se diminuiu a população, depois de se conhecerem naquelas terras os
estandartes da nação portuguesa, e o domínio dos senhores reis fidelíssimos. Os Índios se
retiraram para mais longe, e para os vastos e embrenhados bosques do sertão, afugentados dos
cruéis exemplos de que tinham notícia, que sofriam os seus parentes e nacionais. Os que se
tinham reduzido, e agregado ao grêmio da igreja, ou acabavam e morriam debaixo do peso de
enormes trabalhos, ou apostatavam fugindo para os seus antigos ritos, e comércios,
amparando-se da distância (5) e dos seus compatriotas.
2 Veja-se a história eclesiástica da América, por Mr. Juron, seguindo a Bartolomeu de Las Casas; outros
muitos, e assim o sente, e persuade expressamente a bula de Benedito XIV de 20 de dezembro de 1741,
expedida para as igrejas da nossa América no reinado do Sr. D. João V. 3 Juan. Cap.10 e 12 AA. Apost.10, e 13 S. Pau. L. 1ª ad corinthi 9º Tertulian. Liv. 4º adversus Marcion.
Cap.43. Marc. Et Math. Cap. Ult. S. Bern. Ad Eug. Lib. 3º de consider. 4 Assim lamenta o Padre Vieira na sua carta de 6 de abril de 1654 ao Sr. Rei D. João V, e noutra de 4 de
abril do mesmo ano e na de 6 de dezembro de 1655 e na de 20 de maio de 1653: todas se acham na
biblioteca real. 5 O sobredito Mr. Turon em muitos lugares e o referido Vieira na carta de 6 de abril de 1654 e
terminantemente no § 3º e o alvará de 10 de novembro de 1647, no seu preâmbulo e a lei de 4 de março
de 1697.
12
Os fugidos levavam consigo as notícias do seu mau trato, das fomes, das opressões,
dos trabalhos e da escravidão a que eram reduzidos: estas notícias enchiam de terror os mais
Gentios, que inspirados pelos sentimentos da natureza, aborreciam a comunicação de nós
outros que os buscávamos (6). Por este modo se dificultou a grande facilidade com que se podia
dilatar a igreja, pois havendo muitos milhares de Índios, e muito fáceis de se persuadirem, e
muito dóceis para abraçarem a crença ortodoxa, sendo afligidos e irritados com perseguições,
não tiveram constância para sofrerem, e para se entregarem ao incômodo vendo quebrada a
boa fé das promessas, e das convenções que lhe haviam sido feitas (7).
No meio de semelhantes contradições não quis Deus desamparar o pequeno rebanho
daquela igreja nascente, bem como a não desamparou nos primeiros séculos apesar das
perseguições dos Calígulas, dos Neros, e Deoclecianos, até a paz universal, no tempo de
Constantino e princípios do século IV.
A Providência reservou alguns missionários, cuja probidade, bons costumes, doutrina, e
exemplo seguravam a todo custo o amparo do Gentio convertido, de quem granjeavam o amor
com afinco, e preferência aos trabalhos, e as injustas vexações de serviços, tendo por eles igual
e muito maior respeito ao nome de Sua Majestade(8).
Por estas e outras desolações ficaram as terras sem permanentes lavouras, sem
agricultura, sem meios de remir a fome, e sem adiantados, e firmes estabelecimentos (9). Os
que governavam, antes queriam aproveitar-se de cinqüenta Índios nos seus serviços, do que
disporem e prevenir lavouras e roças para quinhentos, que houvessem de vir, e descer dos
sertões. Eles se não embaraçavam com a ruína espiritual dos que morriam nas trevas, e com
que prejudicavam ao estado político, porque se interessavam com o lucro dos poucos que
vexavam: assim clamou o discreto e zeloso Padre Antônio Vieira, escrevendo à Majestade do
Senhor rei D. João IV (10).
Estas são sem controvérsia, as razões porque não criaram raízes os primeiros
estabelecimentos do país. A falta de moderação e caridade, fez extinguir os meios de
subsistência dos vindouros; como se Deus quisesse punir a ingratidão de uns possuidores que
abusavam da sua primeira intrusão, sendo aliás abraçada e querida. Os piratas e as
6 O mesmo Padre Vieira no seu voto sobre as dúvidas dos moradores de S. Paulo, acerca da administração
dos índios, com a data de julho de 1694: que está na biblioteca régia. 7 O dito Vieira na carta de 8 de dezembro de 1655, § 9 e seguinte, e na de 6 de abril de 1654 no § 24; e o
dito Padre Barros lib. 3, § 72, pag. 306. 8 A sobredita carta de 4 de abril de 1654 § 8, e na de 20 de maio de 1653 § 15, prope tinem, e a de 8 de
dezembro de 1655, no § 6 e 14. 9 Assim pensa no seu preâmbulo a lei de 6 de junho de 1755.
13
tempestades foram os instrumentos da vingança justa, ficando muitas riquezas no golfo dos
mares (11).
Eis aqui a terrível situação em que se puseram os descobrimentos do Grão-Pará e
Maranhão, sem se adiantar, e estabelecer a polícia do Estado (12). Os reis predecessores de V.
Majestade não perderam de vista o amparar e proteger aquela região, e à proporção dos casos,
mudando de sistemas, lhe aplicaram os remédios, que pela experiência julgavam competentes e
necessários.
Os mesmos príncipes com a autoridade da soberania, quiseram satisfazer aos ofícios da
piedade, e aos diversos direitos que são essenciais à natureza, e caráter de imperantes. A
conservação, a tranqüilidade, a felicidade do Estado, que são fins daquela suma preeminência,
e da intrínseca índole da sua constituição, não lhes eram desconhecidos; buscaram saber as
raízes do mal que impediam aquele bem, acharam a cobiça e tirania eram companheiras na
desolação. Só por meio de poder legislativo (como persuadem os direitos das gentes e da
natureza) se podiam ordenar os verdadeiros usos da liberdade, segurar o repouso comum, unir
em harmonia, a prodigiosa diversidade de sentimentos, e de inclinações a bem da sociedade
civil, e dos interesses públicos, intervindo também as regras da execução. Eis aqui as principais
funções do dever natural da soberania, e do império da jurisdição suprema (13).
Os meios e fins com que se fomentava aquela cobiça, e com que se nutriam as
esperanças das riquezas, eram estabelecerem-se fábricas de prédios rústicos, com engenhos
de fazer açúcar, aguardente, feitorias de tabacos, extrações de drogas do sertão com outros
tráficos e negociações.
Para estas manobras eram necessários os trabalhos, e quanto mais operários haviam,
maiores interesses se amontoavam. Os miseráveis Índios, foram os sacrificados instrumentos
daquelas diligências, e por fatos sinistros, e violências incríveis se cativaram (14) os Gentios
contra os direitos da sociedade natural e primitiva, e postergando-se as condições da sociedade
civil e política. Até que se denominou o cativeiro administração; e os senhores se chamaram
administradores.
10
Carta escrita em 4 de abril de 1654 e no § 5. 11
Consta das histórias, e o lamenta o dito Vieira no seu voto dado á junta, e que se acha na régia
biblioteca. 12
A lei de 6 de junho dita, o assevera no referido preâmbulo. 13
Burlamaq. Tom. 6, cap. 8 Puffendorf lib. 7, cap. 4. Watel lib. 1, cap. 4. Locke gov. Civ. Cap. 10 et seg.
Mr. Professeur de Felice, tom. 3, lição 5. 14
Assim o testemunha o Padre Vieira e se nota na sua vida pelo Padre Barros lib. 2. § 56.
14
Para se coibirem estes males se expediram os reais decretos e alvarás (15) que se
referem no preâmbulo da lei novíssima, ou sanção de 6 de junho de 1755, apropriada somente
aos países do território americano, e liberdades dos Índios. Ainda assim vencia a iniquidade e a
malícia. No reinado do Senhor rei D. João IV, e da feliz restauração deste reino, continuavam os
abusos da humanidade, por cuja causa se destruiu a chamada administração pelo alvará de 10
de novembro de 1647.
Toda a legislação não foi bastante porque no ano de 1655 ainda duravam os cativeiros
com infâmia cruel dos possuidores. Nas cartas (16) que o Padre Vieira escreveu a Sua
Majestade se demonstra esta verdade; na primeira que é de 6 de dezembro do dito ano se
explica assim. “Com esta remeto a Vossa Majestade sobre a liberdade dos Índios. Muitos
ficaram sentenciados ao cativeiro por prevalecer o número de votos, mais que o peso das
razões. Vossa Majestade sendo servido as poderá mandar pesar em balanças mais fiéis, que as
deste Estado, onde tudo nadou em sangue dos pobres Índios, e ainda folgam de afogar nele
aos que desejam tirar do perigo aos mais: contudo se puseram em liberdade muitos, cuja notícia
por notória escapou das ondas aos julgadores”. Estas palavras parecem dignas de se
transcreverem.
Na segunda que é datada em 8 do referido mês e ano, se lastima o dito zeloso Padre da
duração do cativeiro dos Índios não obstante haverem novas leis (17) que franqueavam e
repetiam a sua liberdade. Reuniram-se alguns, e dos resgatados se serviram os missionários
para as embaixadas e justas aliciações dos Gentios. Os da ilha, chamada Joanes, não
admitiram as práticas da paz, pelas notícias das injustiças dos Portugueses; assim não tinham
procedido os da nação Guajajarás que retrocederam para os matos (18); bem como não se
aliciaram muitos dos Tupinambás, que habitavam o Rio das Amazonas 300 léguas de distância,
escandalizados do mau trato.
Era tão difícil o evitar-se aquele abuso, que tendo o dito Vieira adquirido muitos Índios,
pela missão que fez ao Rio dos Tocantins, eles se repartiram, e despedaçaram, por onde quis a
cobiça de quem então governava (palavras suas), e ao depois os achou vendidos por
cativos.(19)
15
As leis do ano de 1570, de 1587, de 1609, de 1611, de 1617, de 1655, além das de 1652 e de 1653, que
se refere na do 1º de abril de 168... 16
Acham-se na biblioteca real. 17
Assim o diz no § 4. As leis são de 1652 e de 1653. 18
Assim continua a carta no § 5 e 6. 19
Assim o confessa na dita carta, dito § 5.
15
Tantas e tão paternais providências se inutilizaram com os pretextos, que excogitou a
malícia. A título de administração se oprimiam os Índios. Eles se repartiam pelas pessoas
poderosas, sendo violentados para os serviços penosos, sem sustento, sem abrigos, sem
vestidos, sem doutrina, sem amparo e sem caridade.
Separados de suas mulheres; eles tinham, e elas mau estado, e os filhos sem terem
quem os alimentassem, porque os pais não tinham tempo para fazerem as suas roças: estando
as aldeias por isso em grandíssima fome, e miséria: vinham a morrer os Índios sem lembrança
da fé, e da religião, que haviam professado, e sem os Sacramentos, por culpa dos ambiciosos
administradores que os traziam ausentes e só aplicados aos seus interesses (20).
Naquelas distribuições ou administrações dos Índios, só tinham cabimento os ricos; por
isso os que não podiam agradecer a partilha, morriam de fome, de miséria e desamparo (21).
Para se atalhar este dano, e desordem das administrações, fez o Senhor rei D. Afonso
VI publicar a lei de 12 de setembro de 1663, tirando também a jurisdição temporal do arbítrio
dos religiosos; para serem os Índios governados pelos seus principais da mesma nação.
Na regência e reinado do Sr. Rei D. Pedro II se pretendeu atalhar, e coibir as simuladas
cavilações, com que se tinha deturpado, a observância das leis anteriores: como vou a dizer. As
primeiras do (22) Sr. Rei D. João IV, só em quatro casos permitiam os cativeiros, que de direito
se faziam lícitos por evitar maior mal; isto é, 1º, quando em justa guerra eram apreendidos os
Índios ; 2º, quando os mesmos deviam ser invadidos por impedirem a pregação evangélica; 3º,
quando estavam presos à corda, para serem comidos desumana e barbaramente, em sustento
de outros; 4º, quando justamente por outros Índios eram cativados em guerra perpetrada com
justiça, a que não dessem ocasião, ou intrigassem, ou fingissem os que necessitavam dos
escravos.
Porém pela sábia e providente lei de 1º de abril de 1680, para de uma vez se fechar a
porta às fraudes e simulações, se proibiu todo e qualquer cativeiro; ainda derivado daquelas
exceções, sem valer algum título ou pretexto, que se houve por indigno, e reprovado com penas
gravíssimas, atendendo às razões contrárias e conseqüências funestas.
Para o mesmo fim deu o Senhor rei D. Pedro, um regimento para as missões (23) e no §
2 dele cometeu aos missionários a jurisdição espiritual, e governo temporal, e político das
aldeias; pois lhe havia mostrado a experiência, que as leis e ordens eram infrutíferas pelos
20
O Padre Vieira no § 3 da carta de 4 de abril de 1654 e no § 4,5 e 8. 21
No § 1 da dita carta intin. 22
O alvará de 3 de abril de 1655. 23
Em 21 de dezembro de 1686 (Vd. adiante).
16
novos intentos da malícia, que os moradores opunham com prejuízo grave de todo o Estado (24).
Eu me atrevera a dizer mais, que a desordem e o dano nascia da má economia na observância
e execução das ditas leis, pelo nenhum desvelo, ou pelo muito interesse dos executores a quem
se cometiam: assim pensa o Padre Vieira, dizendo que a Majestade era nomeada, mas não
obedecida (25).
O mesmo regimento no § 16 considera que a aldeia de Pinaré se achava de menos
população por se terem retirado os Índios acossados do laborioso serviço dos moradores; e
para se evitarem os incômodos ocorrentes, se providenciaram paternalmente os meios de se
estabelecerem os convertidos com todo o amor e caridade, até nas mesmas terras, que eles
não quisessem deixar, para se não perder a sua boa disposição, e serem socorridos na forma
de pactos e convenções firmadas com o selo da boa fé.
Sem controvérsia alguma se fez prudente juízo naquele sábio governo, que os cativeiros
eram a causa do atrasamento do Estado; e que eram perniciosas as conseqüências dos maus
executores das leis; por isso por uma extravagante (26) se confirmaram várias adições que numa
junta feita em Maranhão, se suscitaram, e se uniram àquele regimento; e também se declarou
que os filhos dos Índios casados com escravas, jamais servissem aos senhores destas, ou a
seus conjuntos, e que também os governadores não deliberassem sobre os contratos dos Índios
sem intervir o parecer do ouvidor geral em casos tocantes à justiça (27).
Deste modo se quis temperar a prepotência, que até aquele tempo se não pudera
extinguir, estando o poder num só governador.
Em todo o tempo sempre vagaram as contradições, pois a elas correspondem os fracos
da natureza para se dificultarem os acertos. Por isso apareceu outra extravagante (28) que
revogava a sobredita lei de 1º de abril de 1680, admitindo-se os cativeiros só em dois casos, a
saber: quando os Índios em guerra entre si, se cativavam para serem vendidos a outras nações,
ou estavam à corda para serem desumanamente devorados, contanto que não fossem
apreendidos para serem vendidos aos moradores de quem se presumisse o influxo para os
cativeiros. Para se impedir a fraude e o dolo, se determinaram os resgates à custa da real
fazenda, que era ressarcida pelos compradores, intervindo a autoridade das câmaras,
governador, e ouvidor geral.
24
Consta do preâmbulo ao § 1 do dito regimento. 25
Na carta de 4 de abril de 1654 § 2 in fin. e § 3, § 9 en fin. § penult. e ultimo. 26
Alvará de 22 de março de 1688. 27
Assim o torna a decretar o alvará de 28 de abril de 1688. 28
O alvará de 28 de abril de 1688 e carta régia de 20 de novembro de 1699.
17
Não bastaram porém as medidas e cautelas, que tomou a lei debaixo de graves penas
para prevenir a iniquidade e mau hábito (29), que se tinha grassado no país, porque em menos
de três anos, estavam quase todos os moradores do Estado incursos na gravidade dos penas
por terem abusado da providência da lei, e cativado os miseráveis Índios, contra as
determinações régias, e contra os interesses públicos.
A piedade do Sr. rei D. Pedro II, se forçou para perdoar os delinqüentes por ser a culpa
universal, e dever o castigo ser geral, e transcendente aos mesmos estabelecimentos das
terras, e para isso publicou outra extravagante com (30) perdão e modificação de penas. Este
movimento faz ver com evidência, quanto seria justo sustentar-se a primeira lei; pois os resgates
só se fizeram precisos, por neles se interessarem os moradores, que os fizeram valer com as
compras.
Foram incansáveis os cuidados e bem notório o zelo e piedade do Sr. rei D. Pedro II,
afim de melhorar as circunstâncias daquele Estado, a que dirigiu muitas e repetidas leis, para
cuja observância, e pelo que pertence a felicitar as condições dos Índios, se faziam sessões ou
juntas sobre as missões para que concorriam sujeitos de maior probidade, e prudência, os quais
reciprocamente vigiavam com zelo pelos interesses daquela causa comum. Bem se mostra que
a referida corporação com autoridade régia, segundo as direções das repetidas leis, (31) posto
que agora só se acham vestígios da mesma por tradição e lembrança que há naquele país, da
sua boa conduta e administração. A mesma junta em todo o tempo, tinha a seu cargo os
negócios interessantes dos Índios: e pela junta destes reinos, dirigia as representações à Sua
Majestade que faziam necessitar de remédio, e providência os casos ocorrentes do mesmo
Estado.
29
Já em 20 de maio de 1653, se queixava o Padre Vieira de semelhantes extorsões, e impiedades com
título de resgates, e assim escreveu o Sr. D. João IV, e se vê do § 4 do seu voto dado, é escrito com mais
liberdade, sobre o que se ponderou em junta. Está na biblioteca real. 30
Alvará de 6 de fevereiro de 1691 31
No tempo do Sr. Rei D. João IV, chegou a haver junta estável em S. Roque, como diz o sobredito
Barros, liv. 2, § 99 e seguinte pag. 71. Que havia a junta das missões, se vê pelo § 3 do regimento das
missões, de 21 de dezembro de 1686, e no § 23 se promete regimento a junta e desta trata a lei do 1º de
abril de 1689; o alvará de 20 de novembro de 1699, comete os resgates a arbítrio da junta das missões, o
mesmo se demonstra pela carta régia de 15 de março de 1669, e pela carta régia de 1º de fevereiro de
1701 e expedida ao governador do Estado Antônio de Albuquerque Coelho, como consta do liv. 2 do
registro da secretaria do Estado a fls. 72, n. 288, a fls. 168 v., se acha outra com a data de 3 de fevereiro
do dito ano, dirigida à junta das missões do Maranhão em resulta da representação feita pela deste reino: o
mesmo confirma outra de 11 de abril de 1702 a fls. 207 e fls. 213 v., se acham mais duas tratando da
referida inspeção a 1ª datada em 21, a 2ª em 22 de abril de 1702. Além das sobreditas resoluções houve
outra carta régia, com data de 6 de dezembro de 1705, pela qual se rejeitou a proposta de quererem os
vereadores do Pará assistir às juntas das missões.
18
Nesta mesma formalidade se conduzia o governo temporal e espiritual, econômico e civil
daquele continente, quando no felicíssimo reinado do Sr. Rei D. João V de gloriosa memória, se
estavam prometendo outras muitas vantagens, já a benefício da igreja, já em utilidade da coroa.
Logo nos anos seguintes entrou a reverdecer a malícia para as opressões e para abuso das leis,
a que se ocorreu pela provisão de 5 de julho de 1715, afim de ser repreendido o capitão-mor
José da Cunha de Eça, que tinha feito prender ao procurador dos Índios, e contra os seus
privilégios, requerendo o mesmo a favor daqueles miseráveis a respeito de quem, iam passando
para o esquecimento as providências régias e paternais.
Em 9 de março de 1718 se repetiram as determinações, que deviam ser observadas
com exatidão, não só em favor da liberdade dos Índios, mas também para que fossem com
tranqüilidade e mansidão persuadidos a descerem para as nossas povoações sem violência e
sem constrangimento, por se contemplarem de uma diversa jurisdição, enquanto os mesmos
viviam debaixo de certos preceitos, e seguindo os políticos ditames do seu chefe, (32) aos quais
se devia pregar o evangelho, afim de receberem aquela nova luz de aliança, ainda nos mesmos
sertões, onde estivessem congregados em república, e se unissem a este império português,
para firmeza e conservação da religião que abraçaram.
E para se conseguirem aqueles fins espirituais, fez aquele augusto monarca dividir o
bispado do Maranhão e a sua instância, criar-se a do Pará em 1720, no tempo de Clemente XI,
para que vigiasse um pastor próprio sobre as obrigações daquela igreja nascente.
Mandam-se missionários com escoltas em sua guarda, para se empreenderem e
aperfeiçoarem aquela grande obra; ainda que se dão diversas regras, para se proceder contra
aqueles Gentios, (33 ) que vivendo em bandos, sem vínculo de leis, contra os direitos naturais
das gentes e estabelecem por ditames o viverem sem ordem com horror da humanidade, e
contra os honestos sentimentos do próprio pejo, e com escândalo até dos primeiros impulsos e
obrigações da natureza; pois se fartam de carne humana, para o que em dura guerra atacam
aos conaturais do país, e se nutrem a sua lascívia impiamente, sem diferença das próprias
mães, e das próprias filhas.
32
Assim pensam Burlamaq. Tom. 6, cap. I. Grot. Disc. prolim., e lib. 1, cap. 1, § 14, Puffendorf. Lib 2,
cap. 3. De Felice tom.3, parte 2ª do direito das gentes. Liç. 1ª. 33
Mr. De Felice no dito tom., e nas cinco primeiras lições do direito natural, citando e seguindo a muitos
jurisconsultos de direito público e natural.
19
O nunca assaz compreendido zelo, e a exímia piedade (34) daquele grande e solícito rei,
se fez ver em muitas providências a favor da propagação da fé católica, e segurança daquele
Estado, tanto pela contínua promoção de missionários, e ministros da igreja, como pela
recomendação, que sucessivamente recebiam, os que tinham a seu cargo as interessantes
obrigações da jurisdição, já para se firmarem os estabelecimentos, já para se civilizarem os
Índios. Por continuarem as transgressões e contravenções das leis, no reinado do augusto rei D.
José de saudosa veneração, se publicaram as sanções de 6 e 7 de junho do ano de 1755, nas
quais se suscitaram outras dos Srs. Reis D. João IV e D. Pedro II, afim de se libertarem os bens,
o comércio, e as pessoas dos Índios, inibindo-se as repartições e administrações daqueles
miseráveis, cujos direitos simuladamente se tinham turpado com prejuízo público: e juntamente
na conformidade dos cânones, e constituições apostólicas, foram inibidos os missionários a ter
intendência no governo temporal, pois somente era da sua obrigação espiritual.
Por uma incontestável lembrança, consta que no ano de 1753, passaram para o Pará
dois regimentos militares pagos; esta foi a primeira vez que naquele continente se viu tanta
cópia de tropa habitando o país. Nunca a propagação da fé, necessitou de tantos instrumentos
para a sua conquista, e para a plantação da boa doutrina. No tempo do Padre Vieira, somente
seis soldados eram escolta de sobejo nas ações de maior empresa, e conversão; porque os
Índios se cobriam de grande desconfiança, parecendo-lhes ser atacados por invasão (35); e
muitas vezes aquele zeloso missionário se deixou ficar entre eles sem perigo, e só com seu
companheiro. O mesmo Padre clama na sua carta de 4 de abril de 1654, dirigida ao Sr. Rei D.
João IV, que aquele país pela figuração do terreno e disposição da costa, se não defende com
fortalezas e com exércitos, combinando as regras com a experiência dos sucessos.
Porém como se tinha repetido muitas leis, a favor da liberdade dos Índios e este pecado
original não tinha sido arrancado pelas raízes, parece que a introdução daqueles regimentos
militares, se encaminhara a servir de respeitoso freio à execução das mesmas leis, e para que
de longe se impedisse algum tumulto do povo, ou absurdo contra as mesmas providências da
liberdade, como já houvera em Maranhão nos anos de 1661, no reinado do Sr. D. Afonso VI (36).
Também parece que já desse tempo se lançavam as linhas para o estabelecimento da
Companhia do Grão-Pará e Maranhão; o qual comércio em união da sociedade particular
34
Assim se explica o santíssimo Padre Benedito XIV, na sua encíclica aos Bispos e Arcebispos das Índias
Ocidentais da América , datada em Roma aos 20 de Dezembro de 1741. 35
O Padre André de Barros na vida do Vieira, liv. 3, § 24, pag. 280, e § 29, pag. 283 e liv. 5 § 111, pag.
574. 36
O sobredito Barros, Liv. 3, § 85, pag. 312.
20
poderia enfurecer os ânimos dos habitantes, reduzidos à dependência daquela corporação, com
que se atrasavam seus interesses. Por isso se pode dizer que as milícias serviram de apoio à
observância daquelas leis, e a introdução da referida Companhia verificada no ano de 1755.
Como já não se temia argüição alguma contra a observância das leis; e como se não
contestava o comércio da Companhia, ficou sendo quase desnecessária a tropa, de maneira
que os seus oficiais e cabos, eram aplicados em ministérios civis e políticos, e com improporção
de suas vidas, costumes e talentos; esta verdade se começa a demonstrar pela aplicação dos
ofícios que o capitão general Francisco Xavier de Mendonça Furtado estabeleceu, erigiu, e
determinou naquele continente, sendo os militares os que satisfaziam aquelas funções em
distantes territórios, deixados os principais sítios de suas praças, e sem ser por destacamento
de guarnições: o que tudo se fez da forma seguinte.
Abolida a administração temporal que os resgates exercitavam nos Índios do Estado: se
formalizou pelo dito general uma instrução legislativa para o estabelecimento da vila de Borba, a
nova, no rio Madeira em 6 de janeiro de 1756, cuja execução se cometeu ao tenente Diogo
Antônio de Castro, e foi confirmada por carta de Sua Majestade de 7 de julho de 1757, que
ordenava se praticasse as mesmas medidas a respeito das mais vilas. Naquela instrução se via
em ponto breve o regimento ou Diretório, que ao depois apareceu composto de 95 parágrafos, e
com a data de 3 de maio de 1757, cuja publicação e observância foi imediata, sem dependência
de régia aprovação, contra o que pediam os direitos de sumo imperante, na suprema função de
legislar: Sua Majestade se dignou dar-lhe o seu régio beneplácito posteriormente pelo Alvará de
17 de agosto de 1758 enquanto não mandasse o contrário.
Aquele regimento deu uma diversa figura à particular economia das povoações, e
estabelecimentos do Estado; não só pelo que pertence à civilidade e governo político dos Índios,
mas também pelo que toca aos interesses particulares das famílias; e com esta resolução se
perverteram muitos fins saudáveis das leis, cujas regras eram certas e invariáveis. Mostrou a
experiência que era necessária a reforma de alguns abusos, e precisas outras introduções: mas
nesse crítico tempo não podia haver espírito, ou gênio algum zeloso do bem público, que se
atrevesse a clamar contra aqueles meios que impediam as utilidades da igreja, e da coroa.
Com aquela idéia escrita, e denominada por Diretório, também nasceram outros apoios
que patrocinaram tudo quanto se quer obrar, e vem a ser ora a prática, ora a autoridade
particular, e desta forma como se fará evidente, se transfiguraram os interesses do Estado e
postergaram a execução e a observância das leis anteriores.
21
Que importa que o Diretório justamente cometa aos juízes ordinários, e mais oficiais de
justiça o governo temporal de suas vilas; e que os Principais sejam nas suas povoações
independentes dos diretores (37) se estes têm estirado a sua jurisdição até os limites do
excesso? Os diretores são os que absolutamente determinam tudo: eles não advertem aos
juizes e principais as suas obrigações, mas se fazem superintendentes, e odiosos senhores de
todo o governo e de todos os interesses.
Sendo da intendência das câmaras e dos principais a expedição de canoas, e comércio
dos Índios até de nomear cabos de fidelidade, e Índios extranumerários para irem ao sertão (38),
acontece pelo contrário, porque os juizes, câmaras e principais, só tem o nome de seus ofícios
sem jurisdição, nem exercício. Os diretores os mandam chamar às suas casas com demasiada
ousadia, e abatimento (39), são acompanhados por eles à missa, no ar de superiores,
determinam a seu arbítrio, e fazem as petições ao governador, para se expedirem as canoas de
comércio de suas próprias casas, fazem cárceres (40) privados para prenderem os miseráveis
Índios em troncos, onde os maltratam com penosos castigos e surras, palmatoadas, até com um
pau, pelo que muitos Índios desaparecem, sem se saber do seu destino.
Com esta ímpia execução se pervertem muitas leis (41), e os fins dos estabelecimentos
dos Índios, mas os diretores são apoiados, e se protestam, ora com a prática, ora com a
autoridade dos governadores: pois estes na conformidade da sobredita instrução com força de
lei cometem aos diretores uma extensão de jurisdição sem que se possa salvar a contradição, e
entre eles sem a menor intervenção das justiças se fabricam as ordens, e se executam, nem as
câmaras ou principais tem refúgios, ou meios para de outra sorte procederem, e são
desautorizados os Índios do governo (42).
Os diretores por própria autoridade, fazem meirinhos, a que chamam bariquaras, para
executores das suas determinações. Se o ouvidor geral quer conhecer destes fatos, pelo que
pertence às justiças, logo é eminente a desordem porque fazendo os diretores um corpo
impenetrável com os governadores, não conhecem outras ordens; e por serem nomeados por
eles, e militares sustentam o partido da separação, sem obediência, nem execução das ordens
37
Desde o § 1 até o 5. Assim pensa Solorz. de jur. Indiar. Liv.1, tom. 2, cap. 26. fere pertatum et signater
n. 1. 18 e 38. 38
Os §§ 51 e seg. do Diretório. 39
Contra o que dispõe o § 9 do Diretório. 40
Contra a ord. in 5. lib. 96. 41
O mesmo Diretório no § 2 in fin. Solorz. De gubern. Indiar. Lib 1. Cap. 27 exn. 44 usq. 48, uma carta
régia dirigida ao governador do Maranhão, datada de 1º de fevereiro de 1701, e registrada a fls. 172 do
liv. 2 das missões, que se acha na secretaria do Estado. 42
Contra o que dispõe o referido § 9 do Diretório.
22
da justiça. Ainda achando-se culpados alguns diretores, remetidas as devassas para se
conhecer delas na junta da justiça, tudo fica na mesma situação: porque ou o governador os
conserva na mesma diretoria, ou os remove para outras como aconteceu ao cabo de esquadra
Thomé Francisco Pantoja, ao tenente Francisco da Fonseca Ferreira e a Paulino da Silva Rego,
todos da Capitania do Rio Negro.
Isso também aconteceu com os prelados eclesiásticos e diocesanos, porque não
podendo sofrer, que os diretores sejam instrumentos de muitos danos espirituais; se os querem
remediar, são repelidos e desgostados (43) como se trabalhassem em seara alheia. Eis aqui
pugnando entre si a instrução sobredita, as leis, o Diretório, a execução, a prática e a autoridade
dos que governam.
Determina-se sábia e justamente, que seja educada a mocidade dos Índios, em escolas
da própria língua portuguesa (44) para concorrer a polícia e o amor da nação; mas como em
algumas povoações tem sido os mestres ordinariamente soldados, e estes por uma licenciosa
liberdade, não são capazes de instruir exemplarmente, por isso servem de grande perigo na
verdura dos anos aos mesmos discípulos, além de não haverem meios em todas as vilas e
povoações para escolas.
Como naquela direção se recomenda muito amplamente o uso da língua portuguesa,
até para se aprender a doutrina cristã nas escolas; daqui se servem os diretores pela sua ampla
e arrogada jurisdição, para disputarem aos párocos, que não ensinem a doutrina cristã na língua
do país: por cujo motivo falta àqueles nacionais a verdadeira e necessária união da doutrina
para saberem bem pedir, bem crer, e bem obrar, segundo a religião. Que seja necessário o uso
da língua própria para se civilizarem os povos, é sem controvérsia; porém se não pode
absolutamente desterrar o uso da língua do país, quando por meio dela devem ser instruídos e
catequizados os novamente convertidos; pois só a língua vulgar tem forças para dar o
conhecimento da verdade, e dos mistérios da nossa religião, não só pelo que recomenda o
Concílio de Trento (45) mas também pela prática dos primeiros apóstolos (46), que se cingiam às
línguas e capacidades dos que os ouviam. Ainda fora da ocasião de catequizar, também na de
instruir a mocidade me parece que se deve deixar ao arbítrio dos doutrinadores, ou explicar-se a
doutrina cristã, ou em um, ou em outro idioma, conforme a capacidade e inteligência dos
43
Contra do que determina o § do Diretório. 44
Desde o § 6 até o 8 do Diretório. 45
Na ses. 24, cap. 7 de reform. 46
More, cap. 16 AA.Apost. cap. 2.
23
ouvintes, para que não fiquem inúteis e sem frutos as sementes da divina palavra, e muito
principalmente assistindo-se aos moribundos.
Por ocasião do referido, se disputou com um religioso seu pároco o diretor de Souzel,
Eugênio Martins Câmara, que resolveu a questão, dando muitas bofetadas no mesmo, de cujo
sacrilégio não houve conhecimento, nem se absolveu o sacrílego. Sobre a origem das
desordens, deu algumas providências o general do Estado por carta circular, determinado que
os párocos instruíssem na doutrina, as raparigas que passassem de nove anos, nas igrejas com
assistência dos diretores, e das pessoas a quem por parentesco chegado pertencessem; posto
que alguns diretores as ensinam em suas casas com escândalo, até a idade de 29 anos.
Outra contradição mais parece, que se nota no mesmo Diretório, pois determinando o §
2º referindo-se ao alvará de 7 de junho de 1755, que os juizes ordinários, vereadores e mais
oficiais da justiça, tratem do governo temporal; se acha no progresso dos mais parágrafos toda a
execução do dito governo, cometida aos diretores, pelo que têm ança (sic) para cometerem a
sua jurisdição diretiva, e promotória, em coativa e quase ilimitada, excedem os meios de
suavidade e brandura, com que devem ser extirpados os vícios, segundo se lhes recomenda.
(47)
Dependendo o Estado de sólido estabelecimento, só por meio da cultura, e do comércio,
comunicáveis entre os Índios e os moradores, se podia verificar aquele importante fim, e no
Diretório (48) se regularam os meios daquele proveitoso plano para que os diretores obrigassem,
e persuadissem os Índios a fazer plantações, cujos lucros sustentassem suas famílias, e os
fizesse aborrecer a ociosidade. Determina-se mais, que os diretores atendam à acomodação
dos Índios, distribuindo-se-lhes as terras para suas lavouras, e que vigiem não sejam os
mesmos deteriorados em seus direitos pelos moradores, abusando estes da indolência
daqueles; e se não perca o meio deles se utilizarem do virtuoso trabalho da agricultura, e para
que se não retirem aos matos, sem continuarem na ilustração da fé, de que muito necessitam; e
tenham estabelecimentos estáveis para o fornecimento de canoas que forem ao sertão colher
drogas em benefício do interessante comércio.
Todo este projeto de estabelecimentos de agricultura, de plantações, de distribuição de
terras, de percepção de frutos, de fornecimento de canoas, de colheitas de drogas do sertão, de
interessante lucro do comércio; tudo pressupõe que o Estado é cheio de população e sem falta
47
É o § 2º e 14 do Diretório e sente Solorz. De gub. Indiar. Lib 1, cap. 24, ex n. 14, e assim o recomenda
S. Greg. Mag. Liv. 10. Epist. 71. 48
Desde o § 16 usq. ad. 26.
24
de Índios, que se possam repartir por uma e outra manobra, e sem que se hajam de prejudicar
as lavouras cessando o trabalho. A situação presente inabilita toda aquela execução, porque
não se trata do descimento dos Índios, como logo se dirá mais claramente; por cuja falta cessam
os interesses do Estado, e se não aumentam os fiéis daquela igreja, ficando o Gentio nas trevas
da barbaridade.
Demais disso, apesar daquela recomendação, é sem controvérsia inegável, que hoje se
não fazem pelos Índios distribuições de terras, cujo limites sirvam de barreiras ao cuidado e
manobras de suas lavouras. Eles vagam por estas e aquelas roças, tendo ocasião de se
entranharem nos matos em ranchos a que chamam amocambados, segundo a frase do país, e
em razão das distâncias, e sem estabelecimentos estáveis, se retiram os Gentios donde
derivaram.
A nenhuma subsistência dos Índios tem destruído aquele sistema, que prometa a
felicidade do Estado. Como os Índios vivem errantes, segundo a aplicação dos trabalhos que se
lhes destinam os diretores, não tomam amor aos domicílios, porque os não tem; não se lembram
das lavouras, porque as não cultivaram; e este desarrancho lhe produz o desapego ao país.
Ainda que as leis os tenham libertado do antigo cativeiro, é certo que as ordenanças do
Diretório, e sua execução lhes não tem adoçado o peso com aquela reforma e novo governo.
Pouco importa que o terreno seja fecundo: se os diretores aplicam os Índios a toda a
força para a extração de drogas do sertão, donde tem interesses certos os mesmos diretores.
As viagens são de longo tempo, os trabalhos de muita fadiga, os lucros proporcionalmente
pouco interessantes; os Índios ausentes de suas mulheres e famílias, e sem tratarem da
propagação, e havendo motivos para divórcios, com as culpas que fomenta o inimigo comum; as
povoações sem estabelecimentos, e sem cultivarem nas terras vizinhas, fazendas próprias com
manibas, pacoveiras, cacau, café, anil, algodão, e sem haverem feitorias de manteiga, de óleo,
de azeite, e outras muitas drogas, que produz o país, e interessa o comércio do Estado.
Os diretores tudo determinam, pela medida dos seus interesses, sem se aterrarem com
as desordens, desculpando-se com as ordens e com a prática; como se a pudesse haver
contrária á razão em um país moderno e ainda não estabelecido em muitas paragens. Aqui
temos outra contradição, e vem a ser, persuadirem-se os estabelecimentos por meio das
lavouras, e agriculturas nas terras adjacentes e vizinhas, e serem mandados os Índios para a
extração de drogas de remotos sertões, no qual trabalho além de penoso, gastam mais de dez
meses, e apenas se recolhem as povoações, são logo necessitados a tornarem a deixar os seus
domicílios, suas mulheres e famílias, misturando com lágrimas de puro sentimento, o dissabor
25
de se verem desterrados sem agasalho, sem lucro e sem liberdade: tudo na verdade faz horror,
e faz lástima, apesar das censuras que fulminou o santíssimo Padre Benedito XIV na bula (49)
sobredita, suscitando-se outros decretos de Paulo, e Urbano, seus antecessores, e com reserva
da absolvição a si mesmo. E como há de desta forma felicitar-se e propagar o Estado, coberto
de negras manchas, em que tem incorrido, e atualmente incorrem!
Os diretores não perdem de vista à custa de toda a violência e tortura de obrigarem os
Índios a extrair as drogas do distante sertão, e isto por dois princípios inegáveis e simultâneos:
1º, o terem e lucrarem a sexta parte (50) de todos os interesses daquela negociação; 2º, de
obedecerem às ordens dos governadores, que tem sido ativas, e muito recomendáveis, afim de
fornecerem gêneros, e especiarias para o negócio, e interesse da Companhia. Bem entendido,
que no dito Diretório (51) se recomenda que haja alternativa de Índios; se determina mais que
depois de concluída a cultura das terras (52) se faça a expedição das canoas, que se estabeleça
o ramo do comércio nas respectivas povoações e terras adjacentes (53) para assim crescer a
utilidade com diminuição das despesas que além dos Índios das equipações das canoas ( que
não são mais de vinte), vão mais dez, ou doze de sobressalente (54).
Tudo porém se altera, 1º, não há tal alternativa, porque fazem ir os Índios, como já se
disse, por não haver população para menos: 2º, não se espera, nem se trata de agricultura;
porque não se faz comércio nas terras vizinhas, e são mandados os Índios a sertões muito
remotos, onde se acham mais abundantes drogas, e com despesa de longo tempo; 3º, não só
vão Índios, que devem equipar as canoas, e os sobressalentes, mas todos os que os diretores
podem empurrar, para crescer o empenho naquela negociação, ainda que fiquem as povoações
em penúria: esta é a lastimosa verdade do que sucede.
Outra consideração mais, vem a propósito de se expor a respeito dos lucros, que
percebem os enganados e miseráveis Índios: faz-se a expedição das canoas, que montam por
penosos rios, até a vizinhança dos sertões, donde se hão de extrair as drogas e especiarias: ali
se estabelece a feitoria, ou assento donde todos os dias faz o cabo partir os Índios em
pequenas canoas, a dois para cada parte, a colher aqueles frutos, conforme o seu destino, e de
que dão conta à noite, quando se recolhem , ou passados alguns dias à proporção da colheita;
49
Esta bula foi publicada em 29 de maio de 1757, pelo prelado do Pará D. Frei Miguel de Bulhões, e com
beneplácito régio, para que não haja dúvida a opinião dos publicistas e realistas. 50
É o § 34 e o § 36 do Diretório. 51
É o § 49. 52
O mesmo § 49. 53
Os §§ 46 e seg. 54
O § 52.
26
extraem-se as drogas à custa do trabalho, das fomes, de perigos de vida, de ataques dos
Muras, que são inimigos de corso, de nenhuma reconciliação, e neste tempo tem os Índios
sofrido muitas violências e mau trato dos cabos, que sendo de ordinário soldados, e tendo de
interesses o quinto, costumam corresponder com um pau aos Índios que trazem ou colhem
poucos gêneros, por não quererem dissipar suas esperanças e sua cobiça.
Passados muitos meses, e feita a carga da canoa principal com mais ou menos
abundância, à proporção da fertilidade dos anos, se restitui a canoa ao sítio da povoação a fazer
os manifestos que recomenda o Diretório (55) e concluída a diligência se partem para a cidade
capital, sem haver o menor descanso (56) a entregar os gêneros ao tesoureiro geral, que os
trafica com a Companhia, recebendo fazendas em pagamento.
Na mesma capital se tira o dízimo, a despesa, o quinto para o cabo de canoa (57) a 6ª
parte que pertence aos diretores (58), 3 por cento para o tesoureiro (59) 2$000 de novos direitos,
além do viático para a igreja. Feita a conta de todo este abatimento, se reparte o resto pelos
Índios interessados, e muitas vezes lhes tem tocado pouco mais de 1$600 na importância dos
efeitos, que lhes distribuem, e lhes dão em pagamento.
Não é pouco sensível em toda esta viagem, e negociação, a grande irregularidade, que
há em dano, e desconto dos miseráveis Índios: 1º já ponderei, o seu mau trato pelos cabos, o
trabalho, e risco das vidas; 2º, vindo as canoas fazer os manifestos às povoações, se atrasam
na viagem, podendo ir em menos tempo à capital, onde poderiam satisfazer àquele requisito,
sem haver o menor desvio; 3º, sendo os contratos dependentes da liberdade, do consentimento,
da vontade, da escolha, e da igualdade entre os contraentes; tudo sucede pelo contrário nesta
negociação Indiana. Os Índios simulada, e dolosamente são coactos em aceitar (60) o que lhes
dão; eles nada escolhem, nem se lhes dão os gêneros, de que necessitam. O que é mais astuto,
não se atreve a contradir; porque sendo sempre acossado de pancadas, teme desafiar outras de
novo, e se acomoda. Na partilha das fazendas, cabe por exemplo: um espadim a quem não tem,
nem casaca, nem vestidos; umas meias, a quem não traz sapatos, e nunca usou desse abrigo;
várias fitas, que só pelas cores enganam; partidas de cetim a quem em suas palhoças, apenas
terá uma corda, onde pendurem e guardem semelhantes alfaias; numa palavra o melhor modo
de se dar consumo àqueles gêneros, que no negócio se chamam alcaides, é introduzi-los aos
55
No § 55. 56
O mesmo § sobredito 57
O § 56. 58
O § 34 e 56. 59
O § 51.
27
Índios na permutação das sobreditas drogas, que a Companhia logo recebe, e bem reputa,
segundo o estado do país.
Já o zeloso, e discreto Vieira em outro tempo advogou esta mesma causa,
recomendando que aos Índios somente se lhes deviam dar panos de algodão (61) para cobrirem
a desnudez em abono da honestidade, e do pejo; 4º, enquanto as canoas se demoram na
capital, se não deixam os Índios em o menor descanso, porque são obrigados a outros trabalhos
e muitas vezes a irem ao Mato Grosso e a outras muitas distantes e demoradas jornadas, de
sorte que se passam anos sem voltarem aos domicílios de suas povoações; 5º os cabos das
canoas são pagos e satisfeitos de seus interesses pelo suor e trabalho dos Índios; porém estes
são recompensados com desumanidade no mau tratamento de pancadas, e sem algum
agasalho; o mesmo é aplicável aos diretores; 6º, quando os Índios partem para o sertão, e para
aquela negociação das drogas, levam de suas pobres casas, tudo quanto podem colher de
mantimento, e tudo quanto lhes podem administrar para o viático, suas mulheres e família,
ficando estas em desamparo, e compensando-se os lucros com as despesas, o tempo e o
trabalho com os avanços do interesse, vai uma grande improporção de abatimento.
Com este breve desenho bem claro fica, que de nada serviram as leis aos Índios para
serem amparados na sua liberdade. Que maior pode ser a opressão e cativeiro destes
miseráveis? Que amor podem ter à nação portuguesa; que obrigações ao governo? Como se
pode desta forma aliciar o Gentio dos matos para se unirem ao nosso império, se eles são
informados de todas, e das menores circunstâncias do seu destino? Como se há de por esta
maneira aumentar o número dos fiéis para o grêmio da igreja? Não é por este trilho que se hão
de satisfazer as ordens régias, e que se há de cumprir com os ardentes desejos e providências
de piedade que tem dado os augustos monarcas fidelíssimos, enfim segundo a frase do discreto
Padre Vieira, que teve a experiência de quatorze anos daqueles países, me atrevo a dizer, que
por semelhante ditame são os Índios cativos nas pessoas, cativos nas ações, cativos nos bens
(62), e por falta de doutrina, e de pregação até cativos na alma. Por este modo se vê iludida a
definição de liberdade natural.
É sem dúvida que os diretores não fazem nem concorrem para as roças das povoações,
não só pelas razões já ponderadas, e falta de população, mas também porque das ditas roças,
não tem interesses tão evidentes como do negócio do sertão; e podendo ser removidos da sua
60
Contra o espírito dos §§ 37, 39 e 58. 61
No seu voto dado na Bahia aos 12 de julho de 1691, no § antepenúltimo: acha-se na biblioteca régia. 62
O sobredito voto do § 15, e na carta de 4 de abril de 1654 § ult.
28
diretoria, perdem os lucros que lhes poderiam caber; bem entendido, que na forma do Diretório,
só percebem a 6ª parte daqueles frutos, que se cultivarem, não sendo comestíveis, por isso a
própria cobiça conspira para os mesmos desmanchos.
Por ocasião do exposto, parece digno de se notar, que as terras adjacentes às
povoações, são muito capazes de serem industrialmente lavradas, e de produzirem com usura
as mesmas drogas, que se vão buscar aos sertões; e em abono desta verdade, seja-me lícito
produzir que na vila de Santarém, antigamente chamada de Tapajós, houve um morador branco
por nome o Picanço ali assistente, o qual plantou um cacoal, de que colheu passados poucos
anos de cultura, mil e duzentas arrobas de cacau, e fez lavrar outro que deu em dote a uma
filha, de que colheu oitocentas arrobas; e hoje alguns moradores lavram sítios desta espécie
que por falta de trabalhadores, não tem grandes adiantamentos; e a mesma utilidade teriam os
Índios se o praticassem, e o Estado floresceria com outra segurança.
Por causa de dar exercício ao meu zelo, e a minha natural paixão pelo desamparo do
Estado, algumas vezes tratei com o governador atual do Rio negro, para que houvesse uma
roça do comum, de cacoal, e café, e mais drogas, afim de se poupar com este estabelecimento,
a dependência do sertão: mas o governador, ou por melhores luzes de inteligência, ou por zelo
da glória alheia, não quis anuir ao projeto.
Depende tanto o Estado e a sua felicidade do estabelecimento das culturas, que o
Diretório as prefere ao sobredito negócio do sertão, pois se explica com os diretores (63),
recomendando-lhes que esse comércio terá lugar concluídas as lavouras, que devem ser o
primeiro objeto de seus cuidados. Da mesma forma se dirige em outro lugar (64) que se salve
sempre o prejuízo do povo, que por meio da distribuição, deve ter Índios para os ajudar nas
agriculturas, porém nada importa, negócio e mais negócio, sertão e mais sertão, contra o
espírito da lei novíssima (65).
Por este importante objeto dos estabelecimentos, se mandam distribuir (66) e repartir os
Índios, pelos moradores para operários e coadjuvadores nas fábricas das lavouras, em benefício
da conservação e aumento do Estado, e também se estabelece a ordem, para a solução dos
salários. Seja-me lícito refletir aqui, que o Diretório é um labirinto, ou mistura de determinações
que dá causa a muitas ilusões, e aos desacertos que hoje se//[ ] praticam no Estado.
Primeiramente se vêm confundidas as ações, as coisas, e as pessoas, contra o verdadeiro
63
O § 49 64
O § 52 in fin. 65
O alvará de 6 de junho de 1755, no §. E porque. 66
Desde o § 59 usq. 67 e 73.
29
sistema, e clareza de legislar na boa e sã opinião dos jurisconsultos, e segundo a ordem natural,
determina-se a observância das leis, a que o Diretório é contrário, como por exemplo:
encarecer-se o comércio do sertão, e observar-se este indistintamente, quando alvará de 6 de
junho de 1755, no § - E porque - determina que as drogas dos distantes sertões, sejam
extraídas pelos Índios remotos que os habitam; afim de que se conservem os outros Índios
vizinhos, dentro das suas aldeias sem consumirem largo tempo, e despesas naquelas viagens,
para o útil e proveitoso serviço, e obras de suas lavouras.
Recomenda o Diretório que se faça a dita distribuição, mas não se pode entender com
certeza, quem a deva fazer, porque no § 61 diz, que deixando os diretores de observar a lei da
distribuição, se constituem réus de escandaloso delito. No § 62, já se houve outro tom, e vem a
ser, que os diretores apliquem o seu cuidado, a que os principais a quem compete
privativamente a distribuição dos Índios, não faltem com eles aos moradores que lhes
apresentarem portarias do governador do Estado. No § 66, recomenda que os diretores façam
listas dos Índios para se regular a distribuição. A prática porém introduzida, veio a constituir novo
meio entre essas dúvidas e vem a ser: os diretores não fazem listas, não há distribuições, não
se dão operários aos moradores, porque são poucos os Índios para o negócio do sertão; e se
algum se dá, é por empenho, e particular determinação dos governadores, que se pretextam
nos despachos, que seja na conformidade das ordens de Sua Majestade.
Com efeito, o Diretório se refere às leis anteriores, para as distribuições dos Índios;
porém refletindo-se com madureza nesse ponto, se acha que contra a mesma distribuição clama
a razão da bem entendida, e católica piedade, e clama a paternal providência expressamente
dada na extravagante de 6 de junho de 1755, e clamou em outro tempo o pio e incansável
Padre Vieira, condoído das violências que sofriam os Índios, debaixo dos pretextos da
administração.
1º Sendo obrigados os Índios pela particular lei da distribuição a servirem a qualquer
morador, contra o próprio arbítrio e vontade, ambos são descontentes; um porque serve mal e
contrafeito; o outro, porque é mal servido, e com desordem nas suas determinações. //[ ] O
mesmo preceito sobre umas ações que s se julgam livres, se faz mais pesado, e exige pelos
fracos da natureza a sua transgressão. A experiência mostra que, quando há aquele vínculo de
obrigação, os que servem pelo seu desgosto não satisfazem bem; e como os salários não são
ordenados pela liberdade de sua convenção, ou os consideram diminutos, ou infalíveis, quer os
sirvam bem, quer sirvam mal; e os que são servidos não tratam com toda a humanidade, e amor
aos seus servidores, porque julgam desnecessária a aliciação, havendo outra razão que os
30
obrigue ao serviço, de uma e outra parte há violência; porque ofendida a liberdade natural, e o
direito, que tem cada um sobre as suas obras, já se esquecem dos doces efeitos da justiça
cumulativa, entendendo-se, que a distribuição é cativeiro, e o salário prêmio em lugar da
solução.
2º. A lei citada não se explica por palavras equívocas, e de custosa inteligência. A sua
literal exposição é sobeja para realizar o conceito. Ela se dirigiu para franquear toda a liberdade
dos Índios, oprimida com pretextos de repartição e administração. Eis aqui um dos parágrafos
da lei.
“ Por obviar mais eficazmente as calamidades, que se tem seguido da escravidão e para
cortar de uma vez todas as raízes e aparências dela; ordeno que nos Índios que a tempo da
publicação desta se acharem dados por repartição, ou ainda por administração, se observem as
disposições do alvará de 10 de novembro de 1647.”
O dito alvará do Sr. Rei D. João IV, que se recapitula, manda francamente libertar aos
Índios das administrações, porque nelas eram maltratados, e morriam de fome, e porque
essencialmente eles eram livres, como o tinham considerado os reis predecessores, e os
pontífices romanos, e que os Índios (são palavras da lei) possam livremente servir e trabalhar
com quem bem lhes estiver, e melhor lhes pagar o seu trabalho. Continuando a mesma
extravagante, começa outro parágrafo assim: declarando-se por editais postos nos lugares
públicos das cidades de S. Luís do Maranhão e de Belém do Grão-Pará, que os sobreditos
Índios, como livres e isentos de toda a escravidão, podem dispor de suas pessoas, e bens como
melhor lhes parecer....
Nestes expostos trechos, e não estando derrogadas as piíssimas e santas
determinações da //[ ] referida lei novíssima, se acha o Diretório determinando e autorizando as
distribuições dos Índios, cuja prática os conduz contra as luzes da caridade, contra a bula de
Benedito XIV, para se repartirem pelos serviços que não querem, e cujas violências abaixo se
demonstram.
3º. O sobredito Vieira em carta de 20 de maio de 1653, escrita ao Sr. Rei D. João IV
exclamou no § 15 que os Índios livres que assistiam nas aldeias, eram muito mais cativos, do
que os escravos; só com a única diferença, que cada três anos tinham um novo senhor, que era
ou o governador ou o capitão-mor, os quais se serviam deles como seus, e os tratavam como
alheios; por cuja causa era pior a sua condição, que a dos cativos, pois eles eram forçados a
serviços violentos e cruéis, e contra a vontade pelo que morriam de puro sentimento: e no § 17
continuou a exclamar contra as repartições coactas, implorando no § 20 por único remédio, que
31
os Índios mal cativos se libertassem; que os das aldeias vivessem verdadeiramente livres,
fazendo suas lavouras e servindo somente por suas vontades e por estipêndios que se
convencionassem; em tudo para o bem espiritual e temporal do Estado.
Em outra carta de 4 de abril de 1654, dirigida ao mesmo augusto rei, diz no § 2 que a
repartição dos Índios era um modo curado de os cativar, e vender sem mais diferença, que
chamar-se a venda repartição, e ao preço agradecimento. Os efeitos desta opressão, eram mais
lastimosos que a causa; porque para se evitarem semelhantes ruínas, os mesmos Índios livres,
se cativavam, indo casar-se com escravas, e entrando na conta do rigoroso cativeiro (67), ou se
retiravam para as brenhas, perdendo a sociedade civil, aqueles indivíduos, o reino esses
vassalos, e a igreja esses, e outros fiéis.
Os danos de semelhantes distribuições, eram comuns, e transcendentes aos interesses
temporais e espirituais; pelo que se não pode ouvir sem transporte, os fatos e sucessos
lastimáveis, que se originavam daquela perniciosa causa. Muitas vezes os Índios estavam
destinados para os disposórios, dispostos para se confessarem; os catecúmenos instruídos para
o batismo, tudo se punha em desordem porque de repente chegavam comissários das ordens
dos governadores, e imediata e efetivamente arrancavam das mãos dos operários, e da vinha,
todos aqueles frutos da graça. Os Índios para uma, e as Índias para outra parte, com muita
pancada, sendo consumida em fábricas, por muitos tempos e anos (68), hoje é o mesmo.
É certo que o mesmo Vieira admite algumas vezes a distribuição dos Índios pelos
moradores, que além de deverem ser tratados com suma moderação e brandura, ele tomou
esse partido, como quem tolera um mal, por evitar outro maior; isto é antes a distribuição dos
que os cativeiros. Esse é o juízo que me predomina, pensando originária e cronologicamente
nos sucessos e obstáculos, e combinando tudo com a experiência que tenho daquele Estado.
Os moradores necessitavam de Índios, que os auxiliassem nos trabalhos e lavouras, porém
como os tratavam cruelmente, já no cativeiro dos resgates, já por meio da administração e
distribuição, passou o mesmo zeloso Padre, a clamar contra aquelas tiranias, que atrasavam os
interesses espirituais e temporais do país. Nenhum freio bastou para coibir a malícia dos
homens, por isso se expediram muitas extravagantes a favor dos Índios, que já se recopilaram.
Por aperto da necessidade e dos tumultos dos moradores se permitiu a distribuição dos Índios
pelo tempo de dois meses (69); como enunciativamente refere o § 14 do regimento das missões,
67
Assim pensa o Padre Barros na dita vida do Vieira, liv. 2, § 57, pag. 147. 68
Assim produz o dito Padre Barros, no dito liv. 2, § 56. 69
Assim determinou a lei de 1 de abril de 1630
32
e se ampliou o dito tempo, até seis meses nas aldeias do Pará, e nas do Maranhão, até quatro
pelo mesmo regimento.
Deve-se agora notar que os regulares que influíam muito naqueles Estados sofrendo
tumultuariamente as invasões do povo, se viram necessitados a condescender com a
distribuição e o Padre Vieira, que era superior de um colégio das missões, respondeu a uma
proposta do povo, dizendo que eles tinham vindo àquele país com grandíssima vontade de
servirem ao público, e como fiéis ministros de Deus, e que as razões que eles produziam, eram
as últimas até onde se podiam alargar as consciências com justiça, e que na concessão do
menos, se poderia considerar aperto; como também seria relaxação o conceder-se mais, e que
para o povo se não queixar, eles seguiram as menos acertadas opiniões, declarando o seu
sentimento, por serem obrigados pelo mesmo povo (70).
A ponderada exposição também se comprova pela provisão em forma de lei, expedida
aos 12 de setembro de 1663 no reinado de D. Afonso VI, a qual fez tirar dos regulares Jesuítas
a intendência temporal, que eles tinham sobre a administração dos Índios, em razão dos
tumultos e populares desordens que tinham acontecido. Isto assim se conduziu até que pelo
sobredito regimento das missões, expedido em 24 de dezembro de 1686 se restituiu aos ditos
regulares também o governo temporal.
Resta-me agora ponderar a situação presente das distribuições e violências, que se
praticam com desacerto sensível, como prometi de mostrar. Eu não posso negar por ser
incontroverso que a felicidade, conservação e aumento do Estado, consiste na boa união de
todos aqueles membros, que constituem a sociedade, e que a benefício da mesma, devem
todos conspirar reciprocamente, auxiliando-se as partes que compõem aquele todo político,
como estão ditando as leis da natureza. Ainda que por este princípio ou regra inalterável, devam
os Índios concorrer e auxiliar os moradores no trabalho das suas agriculturas, deve também ser
indubitável que este justíssimo fim, se não deve buscar por meios iníquos, violentos, perniciosos
e impraticáveis, pois em semelhante caso, era mais terrível o remédio que a enfermidade.
A essência de um corpo político não perde as qualidades morais, e por isso para ser
abraçável por meio daquela conservação é preciso que lhe não resistam os ditames da justiça:
bonum ex integra causa, malum ex quacumque de fectu. Non sunt facienda mala, a quibus
proveniant bona. Esta é a são teologia da nossa religião.
70
Tudo consta do Padre Barros, liv. 1 do § 212 e seg.
33
Os meios de distribuição, que o Diretório recomenda (71) e a prática altera, não são
justos, antes são violentos; não é violência, que estando um Índio tratando da sua lavoura, seja
obrigado a deixá-la para ir servir a um morador contra a sua vontade, e a quem o governador
concedeu uma portaria? Não é violência que o Índio deixe o abrigo da sua pobre casa, o
agasalho de sua mulher e filhos, o amparo de sua família, para ir navegar penosos rios, pescar,
fazer feitorias, ir ao sertão em benefício de um morador, a quem se concede uma portaria? Não
é violência que alcançando um morador portaria para ter dois, três ou mais Índios, creia que tem
a tuitiva para abusar da humanidade, para os espancar cruelmente, para os deixar sofrer fome
sem socorro, para os carregar de sumo trabalho, em todo o espaço do dia e muita parte da
noite; e tendo a certeza que o Índio se não pode retirar, porque está preso pelo grilhão da
portaria.
Não é violência, que os Índios pelo tempo do semestre, segundo diz o Diretório, e por
muito mais tempo, segundo a prática, estejam adstritos a servir a um morador fora da povoação,
conforme o seu destino, sem poder ver seus lares, sua mulher, e seus filhos neste tempo, e sem
poder usar de sua liberdade, numa pequena parte, e isto porque há uma portaria? Não é
violência vender o Índio o seu trabalho pela medida, e modo que dele quer dispor o morador, e o
salário não há de ser a arbítrio do Índio que aluga as suas obras, e que pode achar quem mais
lhe contribua, e isto porque há uma portaria?
Não é violência, ter o morador sentimentos de piedade, de amor e de caridade, tratar a
um Índio com muitos agasalhos, fartar-lhe a fome, conservar-lhe a subsistência, pagar-lhe
prontamente, e querendo o Índio conservar-se com este seu benfeitor, não é impiedade vir uma
portaria, e coactamente tirar a este Índio, por mais que clame que quer ali estar, e mandá-lo
para outro serviço, para outro morador, e para melhor dizer, para um degredo?
Se aquelas terras primariamente são daqueles miseráveis, porque não poderão eles
livremente ajudarem-se a si próprios com os serviços, e hão de haver portarias para ajudar aos
estranhos, que muito mal lho merecem, e isto não é violência?
Na Europa os trabalhos findam com o dia, exceto os domésticos que se podem
continuar com moderação em parte da noite; porém naquele país todo o dia e quase toda a
noite por tempos sucessivos, em um morador tendo a sua portaria, não quer que o Índio durma
nem sossegue, dão-lhe cruéis pancadas, e até lhe deitam pimenta nos olhos para os despertar
do sono, como já aconteceu, e isto não é violência?
71
Desde o § 59 em diante
34
Acossados os Índios deste, e de tão cruel tratamento, eis que fogem, eis que entram no
número de amocambados, no retiro do mato; logo o morador avisa ao diretor, e este em
execução da portaria do governador, ou pela amizade que tem com o dito morador, faz um
indizível estrépito na povoação, e nas suas vizinhanças, mandando aos meirinhos, ou
bariquaras, acossar e perseguir ao miserável Índio, que fugiu ao seu dano, e usou da sua
liberdade. Não surtindo efeito esta diligência, se participa ao governador, o qual por tropa de
soldados, faz expedições pelos rios a buscar aos fugidos, e se são achados sofrem castigos,
calcetas e trabalhos de obras reais, sem prêmios, nem salários, e não é violência.
Se o morador teve meios para conseguir portarias e ter Índios, nunca foi punido, se os
maltratou, já porque os Índios não se queixam, e se se queixam, são duramente contestados, já
porque o mesmo patrocínio, e meio que serviu para o conseguimento da graça da portaria, lhe
serve para o indenizar de maior conhecimento: e isto não é violência?
Se esta formalidade de procedimentos não é cativeiro, não pode haver coisa que mais
destrua pela raiz a liberdade. Eis aqui inúteis as sábias e santas providências das leis em favor
das pessoas, dos bens, das ações dos tristes Índios.
Todos estes fatos são tão verdadeiramente sucedidos que provera ao Onipotente Deus,
que o não fora. Eu o sei por notícia da minha experiência, e a meu pesar; e já o Padre Vieira
clamou contra eles no seu voto sobredito dado aos Paulistas pelo abuso das suas consciências;
e se acha o mesmo estímulo no fim da carta de 6 de abril de 1654, asseverando que só o dizer-
se aos Índios do sertão que não hão de ser sujeitos aos governadores, bastará para que todos
desçam com grande facilidade e se venham fazer cristãos, porque só a fama e o medo dos
trabalhos, e opressões dos que governam, os detém nos seus matos, o que é coisa tão notória,
como digna de se lhe por remédio.
Por este título de distribuição, bem se pode dizer que são os Índios vendidos muitas
vezes; porque os moradores, para os conseguirem, necessitam de premiar com regalos e
donativos aos intercessores da concessão; e isto além dos salários que devem contribuir ao
Índio, e tudo se deve recuperar à custa do suor, e do sangue do mesmo Índio: eis aqui o que
sucede na Capitania do Rio Negro.
A distribuição dos Índios serve para manter as sobreditas violências, e para estabelecer
os graus da dependência, e da regalia entre aqueles que tem a seu cargo concederem Índios
para os trabalhos, e para os moradores que necessitam daquele auxílio. Sendo tão odiosa a
distribuição, como tenho representado por uma pequena sombra, ainda se faz mais iníqua;
porque os Índios não se concedem aos moradores à proporção da sua família, da disposição da
35
sua agricultura, dos meios com que tem disposto as suas feitorias, e da probidade com que
tratam aos Índios naquelas suas granjearias, mas sim segundo os empenhos que há para se
alcançarem as portarias de concessão.
Ainda no meio deste tropel de desordens, se vai encontrar com outro absurdo, e vem a
ser: quando qualquer morador necessita de auxílios dos Índios, não os consegue senão depois
de cansados rogos, e requerimentos, e depois de dispor os meios das intercessões, quais são
os interesses que deste modo se respeitam, os públicos ou os particulares? Dos moradores, dos
Índios, ou do Estado?
O governador, os ministros, os cabos da tropa militar, os eclesiásticos, e moradores de
consideração, ou pelos seus cargos, ou pelo seu melhor estabelecimento, todos tem Índios
assiduamente para seus serviços, além dos que se empregam em obras reais: os salários
tênues, os serviços indispensáveis. E serão estes os meios para se conseguir o
estabelecimento, e conservação daquele Estado? E será este o modo com que devem as partes
convergir para a subsistência do seu todo?
São de tal maneira mal ordenados os meios, que pela distribuição se dispõe para o
estabelecimento, e felicidade do Estado, que hoje em dia toda a Capitania do Rio Negro não
vale quinze mil cruzados; como em outro tempo se lastimou o Padre Vieira, a respeito da
Capitania do Pará, dizendo que não valia dez (72); porém que o capitão-mor Inácio do Rego,
tirava por sua indústria, mais de cem mil cruzados, do sangue e suor dos Índios. Por uma parte
a caridade, por outra a justiça da causa, me ensina a dizer somente, que pode ser que na dita
Capitania do Rio Negro, se achem os mesmos argumentos, reservando-se para os Índios tudo o
que é oneroso, e removendo-se deles tudo o que é útil.
Contra estas ponderações se dirá: 1º que os Índios por sua natural constituição são
indolentes, rústicos, preguiçosos, inclinados a viverem ociosos; com inconstância de caráter, e
por isso necessitados a serem domados por algum freio, que os contenha em sujeição, e os
obrigue a acudir ao útil, ao necessário, ao honesto; 2º, que por seu próprio bem, e para se
civilizarem, e se desterrarem fundamentalmente de sua rusticidade, e dos seus antigos ritos, se
faz necessária aquela espécie de constrangimento, para os conter nos limites da justiça, e não
apostatarem para a idolatria; 3º, que de necessidade deve haver aquela distribuição dos Índios
para os moradores, porque muitos necessitam de criado, pelas suas graduações, para se
servirem, segundo a constituição da sociedade civil, que não pode subsistir sem hierarquias, e
porque de outra forma se não podem estabelecer as casas, as famílias, sem auxílio para as
36
lavouras, e sem socorro para o giro do comércio e que esse é o direito, porque cada um é
responsável, para a conservação de qualquer comunidade política.
Eu vou porém responder a essas aparentes dúvidas, que no Diretório se produzem
incontroversas, e com aparato de empoladas palavras para persuadir os projetos. Em quanto a
primeira, os Índios não são tão rústicos e bárbaros, a exceção dos Muras, que não vivam em
comunidade, respeitando a um chefe a quem obedecem, e cujas ordens executam, sem perder
de vista a sua união, e a conservação da sua civil sociedade, eles tem regras, tem preceitos,
tem religião, ainda que no meio das trevas da idolatria, e se conduzem pela força destas
obrigações, tirados daquela independência e igualdade em que a natureza primitiva havia posto
a todos os homens, e se fizeram dependentes, e sujeitos pelo direito natural das gentes (73).
A única diferença que há entre eles, e nós, é que eles trabalham por conservar as suas
palhoças e cabanas; assim como nós defendemos os nossos edifícios, ou ordinários, ou
suntuosos. Eles vêem a sua liberdade amparada pelos seus principais, que cingem as testas de
penas; como nós vemos a nossa protegida pelos príncipes, que sobre os tronos cingem coroas.
Eles não conhecem os cetros, que nós distinguimos nos imperantes, mas distinguem as
diferenças dos arcos, com que manejam as flechas. Enfim eles têm regras de política, e se é
rústica a respeito da nossa, nem por isso se devem chamar bárbaros. Eles dão uso à razão, e
são hábeis para aquelas vantagens que se tiram do comércio dos estranhos. A inconstância de
que são acusados, nasce da sua sincera flexibilidade, de que os maliciosos Europeus abusam.
Eles de boa fé estão prontos para crer tudo que se lhe diz, e quem é assim não necessita de
rigor para ser insuportavelmente domado. O exemplo é mais suave para se imitar do que são
fáceis as regras para se obedecerem. Sejam bons os Europeus, que será supérfluo o
constrangimento para os Índios seguirem o útil, o honesto e o bem.
Alguns há que dizem serem os Índios imbecis, e ignorantes na sua mesma rusticidade,
eles certamente se enganam nessa generalidade, se é que não a fingem, para melhor poderem
senhorear de todos os seus interesses. Em abono da verdade devo dizer que vi Índios muito
astuciosos, muito hábeis, e com talentos para encherem todas as funções da vida civil. Na vila
de Barcelos há uma Índia casada com um morador Europeu, chamado por alcunha o Gancho:
este não tem lição, posto que seja muito hábil para traficar, e ela sabe ler, escrever, contar, e
tem a seu cargo o giro do comércio em uma loja de negociação, em que vende muitos gêneros
de secos e molhados, além de outros efeitos que se acham nas lojas de capela desta corte.
72
É a carta de 1 de abril de 1654 no § 1 73
Burlamaq. Tom.6, cap. 1. Grot. Disc. proelim, e liv. 1, cap. 1, § 14/ Bettendorf, liv. 2, cap. 3.
37
Produzirei mais outro fato de que fui testemunha ocular: entre as expedições que fiz em
razão do meu ofício no Rio Amazonas, estando entre as povoações de Alvarães e Fonte Boa,
me apareceram duas canoas com vinte Índios, conduzidos do Rio Japurá, que tem imensas
nações, e muitas riquezas de drogas e especiarias; eles vinham da sua aldeia , que estava e
está nas trevas do gentilismo, e encontrando-se no rio com uma canoa pequena dos nossos,
estes lhe deram parte, que eu e o visitador da igreja, andávamos por aqueles sítio em diligência
de ofícios, e que os poderíamos apreender; eles apesar desta notícia nos buscaram animados,
dizendo que como eles, e seus parentes nunca haviam feito mal aos brancos, que não havia
razão para não terem toda a confiança e buscarem-nos.
No encontro os tratei com tanto agasalho, que fazendo toda a distinção do seu principal
chamado Manacapury, o festejei com dádivas, e até o recolhi comigo na mesma rede. Por fim o
quis persuadir, a que descesse com a sua aldeia e vassalos, e com os de sua aliança para as
nossas povoações, para se cristianizarem, e se estabelecerem com as leis de nossa sociedade;
ele me fez responder com toda a prontidão, e bom discurso, que eles não deviam deixar as suas
terras, onde se regiam havendo subalternos e superiores. Que eles não repugnavam a nossa
amizade, mas antes a aceitavam, e prometiam dar-nos tudo, o que necessitássemos deles: que
assim como nós íamos aos Javaris, e ao Mato-Grosso, que eram paragens sumamente remotas,
que da mesma podíamos ir às suas povoações, donde os velhos e velhas não se queriam
apartar: que eles estimavam a nossa aliança, e amizade, porque à sombra dela se fariam mais
temidos, e respeitados dos seus inimigos, assim não pensa um imbecil, um rústico, um
indolente, um ignorante.
Não devo escusar de referir aqui um tocante e sensível fato que expõe o autor (74) da
vida do Padre Vieira: partindo este zeloso missionário para a redução dos Nheengaíbas e
Mamayanazes, mas temidos de todos pela sua fereza; conseguiu deles o sujeitarem-se à luz do
Evangelho, e ao domínio português, e dispondo-os a jurarem pelos seus principais, o juramento
de fidelidade aos reis fidelíssimos, quando o Padre lhes propôs as circunstâncias, e as cláusulas
do dito juramento, todos anuíram; mas dentre eles respondeu o principal chamado Peijé, que ele
não queria prometer, o que se lhe propunha, e continuou a dizer, que aquela promessa só a
deviam fazer os Portugueses, e não eles; porque a sua fidelidade a el-rei, o reconhecimento de
vassalos, e a aliança com os Portugueses, fora neles uma virtude tão robusta, que nunca
quebrava da sua parte, que sendo os Portugueses, os que tantas vezes faltavam às leis do rei,
74 O Padre Barros, liv. 3 § 23, e expressamente § 86 e seg. pag.286.
38
e às do mesmo Deus que adoravam; eles deviam ser os que prometessem e jurassem. E quem
dá uma tal resposta é imbecil, é rústico, indolente e ignorante?
Na história eclesiástica da América Espanhola (75) onde se vê o grande zelo do famoso
Bartolomeu de Las Casas, se refere um caso, que até nutre a curiosidade, que foi mais ou
menos séria: chegou um Índio a possuir uma cavalgadura, e sendo encontrado por um Espanhol
em jornada, este o quis enganar, permutando, e dando em troca outra, que era de muito menos
valor, e mancava. Resistia o Índio ao contrato, mas não pode resistir à violência, com que o
Espanhol lhe tomou o seu bom cavalo, e lhe deu outro arruinado; como pode, foi o Índio em seu
seguimento, e no primeiro povoado, chamou o Espanhol a juízo, e perante o magistral da terra.
Defendeu-se o Espanhol, dizendo que o Índio era um embusteiro, rústico, e falsário, que com
impostura queira possuir o cavalo que nunca fora dele. O Índio não tinha com quem provar o
seu domínio, a posse e a violência do esbulho; porém incontinente passou para junto do cavalo
litigioso, e com a ponta da capa lhe cobriu toda a cabeça, e propôs aos Espanhol, que visto ele
dizer, que o cavalo era seu, devia plenamente saber de todas as suas circunstâncias, e que
assim dissesse, e respondesse, de qual dos olhos não via o dito cavalo: hesitou o Espanhol,
mas respondeu com animosidade, que era do esquerdo. Logo o Índio tirou a capa, e mostrou ao
juiz a falsidade, e a calúnia do Espanhol, fazendo crer que o cavalo via bem de ambos os olhos,
e que não tinha gota serena em qualquer deles.
O Índio obteve felizmente por esta astuciosa demonstração da verdade, e advogou a
sua causa melhor, do que lhe advogaria um jurisconsulto das universidades de Alemanha, com
todos os códigos abertos de direito; isto fez o Índio, e se dirá que é imbecil, rústico e ignorante?
São imensos os fatos , que se podem produzir em prova das astuciosas idéias dos
Índios e da sua habilidade, e ainda que nesta parte me vou remeter ao silêncio, não posso
deixar de referir, o que procederam os Índios habitadores da Ilha de Joanes, que está situada na
boca do grande Rio das Amazonas, os quais expondo-se à guerra pela cobiça dos Portugueses,
deram clara idéia de seu valor, da sua destreza, e de saberem tomar as justas medidas para
sua defesa, segundo a arte da guerra. Eles aproveitando-se dos inacessíveis bosques do
terreno e dos muitos e cruzados rios, se espalharam por toda a extensão da ilha, dividindo as
suas povoações, e pondo os seus domicílios em largas distâncias, para não serem
surpreendidos por uma só invasão, e terem tempo de avisar no primeiro ataque que qualquer
75
Mr. Taron, se rite recordor, tom. 7
39
tivesse (76): se este procedimento é efeito de uma idéia clara e militar só o podem dizer os que
bem sabem de tática, que a mim só me pertence admirar a astúcia da defessa.
Estando eu em Barcelos, foram angariados pelo morador Peixoto, a instâncias minhas,
uns Índios que fizeram admiração a todos, por nunca ter havido notícia de sua nação. Eles eram
muito reforçados de construtura, bem feitos, e com umas barbas crescidas até os peitos;
novidade estranha em todos os Índios, que ordinariamente tem a barba limpa. Habitavam no rio
Branco, defronte da povoação de Barreiro, e publicamente disseram que havia entre eles a
tradição de se não terem avistado com os portugueses: e que tendo notícia das crueldades e
cativeiros que sobre eles obraram, se tinham espalhado e alongado suas habitações umas das
outras, para evitarem surpresa de quaisquer atacantes, isto ouvi por testemunho de fato próprio.
Por fim se confederaram, e prometeram vir para nós, aproveitadas as suas lavouras, e antes
disso nos buscaram, trazendo um seu enfermo, para o curarmos, o qual chegado ao porto da
vila de Barcelos, foi batizado, e se aproveitou da vida. Eis aqui o bom uso que eles dão aos seus
conhecimentos.
Os romanos se não reputaram inábeis e ignorantes, suposto que Numa, com política e
indústria, os persuadisse que se comunicava com Júpiter, por meio de uma águia acostumada a
comer sua orelha. Sertório praticou o mesmo com a corça, que fez embaixadora dos deuses
Faunos; e os habitantes do território, não foram tidos por ignorantes, ainda que se persuadiram
da impostura; assim são os Índios flexíveis, mas astuciosos.
Pelo que contém a segunda dúvida, devo dizer em poucas palavras, e com evidência
dos sucessos, que o rigor e o constrangimento, tão longe de está de obrigar os Índios a se
civilizarem ao nosso modo, e ao nosso gesto, que por isso de nós fogem e se retiram para os
matos, e ritos da idolatria. Uns após dos outros, tem buscado as brenhas para fugirem das
tiranias, perdendo-se o bem temporal e espiritual, de que haviam grandes esperanças. O amor,
a ternura, a piedade e o agasalho da caridade, produz muitos diversos efeitos de sorte, que nos
agradecidos corações dos pobres flexíveis Índios, faz com que seja doce o mesmo cativeiro, a
que se ligam como liberdade mais livre na frase do Vieira (77). Tem pois sido infinitas as
deserções por aquele princípio: não só pelo que consta das repetidas leis, que se tem
promulgado para atalhar aquele dano, mas também pelo que continua, e sucessivamente está
acontecendo.
76
O sobredito Padre Barros, no liv. 2 §§ 1 e 2. 77
No voto sobredito § 34.
40
A respeito da terceira e última dúvida, também direi que é inegável deverem as partes
concorrer para a conservação e aumento do todo; mas deve ser por modo, que se não destruam
a si mesmas; porque em breve tempo virão recair no todo, os efeitos da ruína respectiva. É justo
e muito necessário que os governadores, os ministros e mais pessoas de graduação, tenham
Índios que os sirvam, pois segundo a física do país, e costume dos povos, não podem ter outros
criados, e por estarem interessados a bem do Estado, é como causa comum, o serem providos
daquele auxílio, que não só convém ao cômodo natural da conservação e sustentação da vida;
mas também ao civil e político de que todo os mais dependem para a geral subsistência. Par
mim, e para todos, ainda os semi-políticos, é verdade inescusável que o comércio, e a
agricultura, são as bases em que o Estado pode melhor segurar a sua conservação, e aumento;
porém não por meio da distribuição, pelos inconvenientes que tenho ponderado.
Desempenhem-se as leis, seja completa a liberdade dos Índios, sejam livres suas
pessoas, suas ações, e os seus bens, que haverão lavouras, domicílios estabelecidos, e o
comércio se exercitará, sem o descômodo, e a violência das distribuições; sem opressão, e
constrangimento dos miseráveis. Por meio das distribuições, não há Índios para existirem nas
povoações, e fabricarem as lavouras, que deve ser um objeto importantíssimo do Estado. Se os
Índios são livres como dizem as leis, e recomendam os pontífices romanos, para que hão de ser
obrigados a servir a título de distribuição? Sirvam embora, mas seja a título de convenção, e a
título de alugarem as suas obras, por meio da brandura, e suavidade. Sirvam os Índios a quem
quiserem, e a quem melhor lhes pagar, e melhor lhes merecer. Possam eles estipular o tempo, e
acabado passarem para outro serviço, que melhor conta lhes fizer. Haja mútua correspondência,
e dependência entre os Índios, e os moradores, estes para serem bem servidos, e aqueles para
serem bem pagos, e satisfeitos nos seus salários, as justiças podem e devem conhecer das
injustiças dos casos, das lesões, das obrigações, dos contratos.
Assim como os moradores podem fazer os seus estabelecimentos com o socorro dos
Índios, porque estes também o não farão, sendo auxiliados com os seus nacionais? Se aquelas
terras primariamente são suas, e eles se podem render muitos serviços, porque não terão essa
liberdade franca para enriquecerem os seus domicílios, sem o temor das portarias dos
governadores, execuções dos diretores, dependências do secretário do governo, e sujeição dos
validos? Todos estes naquele Estado são reputados por outros tantos régulos, ou tiranos da
flexibilidade, e sujeição dos tristes Índios. Franqueando-se tudo, pagando-se exatamente,
havendo amor e caridade, haverão agriculturas bem fornecidas, haverá comércio de
interessante negociação; os Índios servirão aos moradores, e estes a aqueles, e tudo se dirigirá
41
pelas regras da igualdade, e sem sombra de violência e cativeiro que a natureza aborrece. Eu
vou dizer a razão e o modo.
Os Índios por índole própria, são muito domáveis e flexíveis, de sorte que lhes custa
dizer que não querem. São muito agradecidos, e estão prontos e prontíssimos para gratificarem
e servirem a quem lhes faz bem, e lhes paga. Havendo franca liberdade neste procedimento, e
soltos dos ferros da distribuição, ficará também o comércio livre, e cada um pela própria
indústria praticará aqueles ramos de negócio, que mais fizer conta aos seus lucros.
Removida aquela espécie de tirania e de escravidão, os Índios que temerosamente
vivem nos matos, e nas brenhas, soltarão o receio; uns descerão para nós pelo seu mesmo
interesse, outros nos conduzirão aqueles gêneros e drogas, de que abundam os seus vizinhos
sertões, para se fazer girar o comércio; nós conseguimos as especiarias, sem tanto dispêndio,
sem tanto trabalho e sem viagens tão arriscadas: o Estado se fornecerá de população, e de
indivíduos, para suprirem a todos os socorros ou dos serviços particulares, ou das lavouras.
Girando a correspondência por todos e sem nenhum custo, e com maravilha indizível, se verá
brilhando a luz da fé, e a verdade do evangelho por todo o país, e se dilatará não só o grêmio da
igreja, mas também se estenderão os limites do império português, por nós nunca dantes
presenciados.
Muitas e muitas leis (78) se têm promulgado, afim de que os Índios não sejam
constrangidos a deixar as suas terras; quando eles não querem descer para as nossas
povoações, mas estão aptos para receberem instruções, e doutrinas da cristandade, nas suas
aldeias, e dizem as leis, para que se não haja de perder a sua disposição, e entrem para o
número de fiéis. Outra razão de política mais persuade aquela execução, e vem a ser que eles
não desconfiam da nossa amizade, conservando-se nos seus lares paternos, abrem-se os
melhores canais para eles nos conduzirem às imensas riquezas, drogas, e especiarias dos seus
sertões, de que eles não conhecem nem o valor, nem o merecimento; e estabelecendo-se
pouco a pouco na boa fé de nossas promessas e amizade, eles serão os mesmos que queiram
vir para mais perto, e para nós. Além disso o Estado não só necessita de segurar e dilatar os
limites do seu domínio, mas também precisa de quem lhe comunique aquelas sobreditas drogas
e especiarias, que a natureza produz nos sertões; enquanto as mais povoações se ocupam em
outras feitorias de manteigas, óleos de copaíba, azeites de andirobas, salgas de peixes, e
muitos outros ramos de comércio, e tratos da vida humana. Para esse fim, o melhor meio é
78
Além de outras extravagantes, a provisão régia de 21 de outubro de 1652, e o que determina a lei
novíssima de 6 de junho de 1755.
42
franquear aos mesmos Gentios que comerciem conosco, porque assim se domesticam,
conhecem o bem que lhes falta, e Deus permita que a sua palavra, e o seu evangelho produza
os sagrados efeitos da nova aliança, por meio dos maravilhosos prodígios, que comunica aos
Sacramentos, e o merecimento da redenção: em uma palavra, todo o gentilismo é fácil de se
reduzir à fé, não havendo a menor sombra de opressão, e de violência. Eu me atrevo a dizer,
que assim como os cativeiros, e as opressões têm sido a causa transcendente de se não
adiantar o Estado: assim também as distribuições de hoje, fazem continuar o mesmo dano;
enquanto as mesmas durarem, ainda resultará outro prejuízo que logo exporei, e de gravíssima
importância. Faz-se tão necessária a relaxação de semelhantes distribuições, quanto se julgou
importante, a abolição das encomendas, ou administrações, que vagavam em todo o resto da
América Espanhola; porque a sombra daquelas introduções, se franquearam os abusos contra a
liberdade. Isto deu ocasião para que em Espanha por lei, que refere o grande Solorzano(79)
tratando do governo das Índias Ocidentais, se determinasse , que jamais se taxassem os
serviços pessoais dos Índios, nem que fossem eles obrigados e violentados a servir em
satisfação, ou dos sujeitos, ou dos cargos, ou de tributos, ou devidas contribuições. A mesma lei
pondera, que suposto ser de algum descômodo para os Espanhóis, aquela restrita
determinação, contudo que é de maior peso a liberdade e a conservação dos Índios.
As distribuições o que podem ser senão taxar serviços, ou ir contra a vontade, dos que
podem alugar as suas obras, quando quiserem, ou como quiserem? Vão os diretores para uma
povoação, põe-se em ar absoluto de pequenos senhores, dão pancadas, maltratam os Índios a
seu arbítrio, e sem causa; não zelam os interesses comuns dos miseráveis, são uns
transgressores autorizados com o disfarce de seu cargo, para fazerem galhardia de serem
prepotentes, e obedecidos: trazem com abatimento [a poz] de si, e ao mando das suas ordens,
aos juízes e principais; fazem-se independentes, coonestando-se com as ordens de Sua
Majestade e do governador; disputam forças com os párocos por conta das suas obrigações;
nem mesmos os párocos se atrevem a ir celebrar, sem vênia, e permissão dos diretores; eles
não tem outro trabalho, que estar no meio de seu comando tirano e prejudicial, e no fim se
pagam com os serviços dos Índios, mandando-os violentamente, e de montão para o negócio
dos remotos sertões; e para ter a sexta parte de todos os gêneros, que os mesmos Índios
colhem à custa do sangue, das vidas e do suor. Que será isto se não pagar-se o mal com o bem
do maior custo? Que será senão pagar com serviços pessoais, e taxados a uns ofícios que lhes
são mais que inúteis?
79
Lib. 1 de Ind. Gub. Cap. 1 n.12 e 14, e cap. 2, n. 4, 8 e 9.
43
Espanha é uma nação civilizada , e tem na América muitas colônias, ou conquistas;
porém já há muito tempo que detestou o uso das encomendas e administrações, que pela
uniformidade de razão, valem quase o mesmo, que as distribuições que hoje em dia se querem
autorizar naquele continente.
Já o Padre Vieira cansado e zelosamente clamou (80) contra o número dos
governadores ou dos que governavam, trazendo a seu propósito exemplos bem tocantes, como
de se propor a Catão dois Romanos para presidirem em duas praças, e ambos lhe
descontentarem; um porque nada tinha, o outro porque nada lhe bastava. Aquele missionário se
afrontava com dois capitães-mores, ou governadores, que fará agora havendo tantos? Em cada
povoação um diretor, faz um governo de pequena província, e à custa da própria experiência,
tenho lido com admiração a verdade, com que aquele religioso gênio falava de umas desordens,
que lhes eram contemporâneas, e hoje se conhecem.
Debaixo daquelas jurisdições também estavam as pregações dos missionários, fazendo-
as Deus tão livres, pelo que a salvação dos Índios era tão cativa como eles; e eram os Padres
afrontados e desobedecidos: isto dizia aquele Padre naquele tempo (81) e hoje em dia se notam
os mesmos desacertos. E como há de o Estado felicitar-se?
Vou a satisfazer a promessa que acima fiz de expor o outro prejuízo de gravíssima
conseqüência, que se segue das distribuições. Já se disse que pela falta dos descimentos de
Índios, para as nossas povoações, se calculava a diminuição da população, e que disto tem sido
a causa a opressão do corado cativeiro debaixo do véu da distribuição, mas supúnhamos que
apesar de todos esses obstáculos, que há meio de se fazerem descer alguns Índios, como
cheguei a promover à custa da minha diligência, da minha fazenda, e de um ânimo todo católico
e cristão; quando servi o emprego de magistrado na dita Capitania: eis que a desordem e o
desamparo, e o custo é grande, porque não há roças do comum, donde se tirem mantimentos
para se sustentarem os novamente descidos, e próximos a se converterem; e apesar de
grandes despesas da fazenda real, que se podiam evitar, é muito pouco o aproveitamento que
há, porque morrem muitos Índios, já por estarem fora do seu clima, já por não terem todo o
amparo. Se os Índios não estivessem repartidos, e entranhados no negócio do sertão, haveriam
lavouras chamadas do comum e de prevenção, em que eles tivessem trabalhado, e se
aproveitariam todos os descimentos.
80
A carta de 4 de Abril de 1654, in princip. 81
A carta de 4 de Abril de 1654, § penult e ult e a outra de 8 de Dezembro de 1655, § 14.
44
Que são numerosas roças e aldeias de prevenção para os Índios que descerem, bem
claramente diz o Padre Vieira (82) e o mostra a experiência, por cuja necessidade fiz propor a
todas as povoações, que tivessem roças do comum, para delas se acudirem àquelas urgências.
Esta minha proposta mereceu que o general do Estado, Fernando da Costa de Ataíde, por carta
circular, e instrutiva de 3 de outubro de 1769, fizesse dizer aos diretores que as roças do comum
não tivessem menos de duzentas braças em quadro. Não posso escusar-me de dizer em abono
da verdade, que aquele governador era muito profícuo e conhecedor do bem, e dos públicos
interesses do Estado, atingindo tudo por força das suas luzes, e das suas pias intenções.
Uma das partes da distribuição é dirigida, como tenho muitas vezes dito, para o negócio
do sertão, e recomenda o Diretório que sejam conduzidas as canoas, por cabos de conhecida
fidelidade, inteireza, honra e verdade (83), e que a sua nomeação se faça pelas câmaras e
principais, a contento dos Índios, e que o diretor tire exata informação (84) da chegada das
canoas; se os ditos cabos foram transgressores em se utilizar dolosamente daquele negócio.
Toda esta determinação é de aparato, porque pelo modo, com que aos diretores se lhes amplia
a jurisdição, nem as câmaras, nem os principais nem os Índios, têm o menor voto. Os diretores e
os governadores são os arbítrios [sic] daquelas nomeações e os cabos ordinariamente, ou são
soldados, ou têm sido; e por vida, e por costume, excessivos no mau trato dos Índios.
Antigamente no tempo dos regulares, este ofício sempre foi exercitado pelos mesmos Índios
sem se admitir, estranho ou morador, e eles, não só davam conta daquelas comissões, mas até
achavam abundâncias, a cujo respeito se estranham as diminuições deste tempo, como é
notório; e com este argumento também se qualifica de caminho a sua capacidade e diligência do
comércio.
As informações que os diretores tiram, é em virtude da determinação referida, e em sua
execução se lhes permite a prisão contra os delinqüentes: daqui se reconhece mais que o
Diretório lhes concede jurisdição coativa, ficando de parte todos os ofícios da justiça, a quem
deveria caber por a ação de direito. Pouco importa que no preâmbulo do mesmo Diretório, se
considere que a jurisdição dos diretores é acessória, procuratória, diretiva e econômica (85), se
efetivamente se lhes manda proceder com coação em muitos lugares, e assim o faz entender a
instrução (86) sobredita ( que faz um dos ângulos da prática), a respeito dos moradores brancos,
82
A carta de 4 de Abril de 1654, §13. 83
O § 53. 84
O § 54. 85
O § 2 do Diretório se diz que os diretores não têm jurisdição coativa. 86
No § 7 da mesma instrução, a qual foi aprovada por carta régia de 7 de julho de 1757.
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que casados com Índias as tratarem mal, e nesse caso se permite aos diretores castigarem a
seu arbítrio pela primeira vez, e pela segunda, que os remeterá seguros ao governo.
Estas contradições e misturas de jurisdição, produziram nada menos que outro
fenômeno, que vou expor. Na vila de Javary, sendo diretor um alferes, fez este muitas
insolências com o destino ( o que comumente acontece) de ficarem impunes, e entre elas por
motivos muito particulares, sem culpa formada, sem conhecimento de causa, sem suspensão de
ofício, e sem ordem superior, foi a de fazer prender ao juiz e capitão dos descimentos João
Francisco da Fonseca, e juntamente lhes prendeu a mulher e filhos, dos quais alguns morreram
ao desamparo na cadeia; e juntamente maltratou com um pau ao dito juiz, que por não sofrer o
incômodo e a injúria, pendurada no pelourinho a vara e insígnias da jurisdição, fugiu e
desamparou o sítio.
Prenote[sic] que aquele injuriado era e tinha servido de importante auxílio ao país, por
ser muito hábil, por ter concorrido para muitas reduções, e saber mais de oito línguas
particulares de diversos idiomas de nações, por cujos serviços foi criado em capitão pelo general
do Estado.
Estas e semelhantes desordens não fazem demasiado espanto, porque são muito
triviais nas vilas e povoações, onde alguns têm sido régulos e prepotentes, atropelando e
espancando os juízes e principais, sem lhe fazer o menor remorso, nem na civilidade, nem na
consciência.
Não são só estes, são outros muitos os abusos. Como por meio das distribuições iam os
Índios servir, de necessidade deviam ser pagos de seus competentes salários. A isto havia dado
providências, a lei novíssima de 6 de junho de 1755 no § - E para que os moradores -
determinando que o governador e capitão-general do Pará, convocando em junta aos ministros
e letrados daquela capital, ouvindo ao governador e ministros da cidade do Maranhão, com
acordo das duas respectivas câmaras, se estabelecessem os jornais e salários, que deveriam
receber os Índios operários, conforme as circunstâncias das terras. Tal junta, e tal acordo nunca
se praticou. A primeira determinação que houve foi feita pelo arbítrio de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, que se fez independente de adjuntos, e esta mesma prática tem seguido os
mais generais, com igual independência no particular dos Índios. Daqui se seguiu pagarem-se
aos Índios operários, pelo tempo de trabalhar um mês, com duas varas de algodão, que ambas
importam em 300 réis, e às vezes menos. Sempre conheci grande improporção nesta
pagamento, e o general Fernando da Costa de Ataíde, passou a alterá-lo por ordem que
mandou à Capitania do Rio Negro, e nisso o general atual; e seria justo que tanto a respeito dos
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operários, como dos artífices, se observasse o que tão sabiamente recomenda a lei para os
arbitramentos, proporcionando-se com as situações e circunstâncias das terras.
Enquanto a espécie dos mesmos salários, parece que o Diretório não oferece pequena
dúvida, porque no § 40 diz, que fique na liberdade dos Índios, o venderem os seus frutos ou por
dinheiro, ou permutá-los com fazendas; e só nos §§ anteriores recomenda (87) aos diretores que
assistam às suas e semelhantes negociações para que os contratantes não abusem da
ignorância dos Índios, e estes não fiquem lesados. No § 72 deixa ao arbítrio dos moradores a
dita espécie explicando-se pela vontade deles quererem, ou não fazer os pagamentos em
fazendas; donde se infere que podem fazer os ditos pagamentos em dinheiro.
No § 58 é muito diverso o trilho, porque encarecendo-se muito a rusticidade, e
ignorância dos Índios, se diz que o tesoureiro geral, não entregue dinheiro aos Índios, o que lhes
couber dos lucros do negócio do sertão por não o saberem administrar, mas sim em fazendas
de que eles necessitarem.
Esta providência de se pagarem os gêneros com fazendas, parece dirigida a interessar
ao tesoureiro, que declaradamente nomeia, e abona o § 55, e a Companhia ( que já se
destinava) a qual havia de perceber lucros nos gêneros que comprasse, e nas fazendas que em
pagamento vendesse; e isso se mostra por ser tal a providência muito restrita, e contra o
verdadeiro espírito das leis, porque bem se conhece , que só na capital do Pará, há tesoureiro
para aquela exibição: e custa a crer, que no Pará tenham os Índios inabilidade para pegar em
dinheiro, e que fora de lá esteja removido o impedimento, ou que a referida determinação
também compreenda os mais territórios, resistindo-lhes as espécies dos casos, e das
determinações do mesmo Diretório.
É verdade, o que sei por experiência, que alguns Índios são muito desinteressados; mas
outros são de tal governo, que são curtos em demasia nas suas despesas; de maneira que
sendo regularmente amigos da aguardente alguns vi, e tratei tão prevenidos, que só usavam
dela em casos precisos, guardando-a com muita cautela, para a dar nos casos ocorrentes, e de
maior necessidade; assim também a respeito do dinheiro, que com sumo zelo entesouravam.
Mas como todas as dúvidas têm fácil interpretação na prática, e esta se forma de
repente pela vontade dos que governam, tudo se põe de plano em execução. Não obstante isso
o Diretório (88) determina que tomados os Índios na distribuição, se depositem os seus
competentes salários em um cofre, que haverá em cada povoação; porque se os Índios faltarem
87
Nos §§ 37 e 39. 88
Desde o § 68 até o 72.
47
aos serviços, sejam restituídos aos moradores, aliás que eles sejam pagos daquela caução;
porém como o mesmo Diretório dá causa a todas as quebras, e os executores dele não se
embaraçam muito com aquela lei privativa, sucede que tal depósito se não faz. Os Índios são
entregues para o trabalho dos serviços por meio das portarias, e abandonados à descrição dos
moradores, não se sabe se estes excederam o semestre que o Diretório prescreve; não se sabe
se os Índios foram satisfeitos de todo ou somente em parte dos salários para se acudir à sua
lesão: e há na Capitania do Rio negro, um sabido axioma que como os Índios se não queixam é
sinal de estarem bem satisfeitos; bem entendido que eles por gênio sofrem tudo, e de nada se
queixam; e os diretores, são os que se descuidam de tudo à exceção do negócio do sertão, de
que tenham utilidade, e do que pode ser descômodo dos mesmos Índios.
Se os ministros intendentes dos Índios querem saber da justiça ou injustiça daqueles
casos, eis que os governadores se estimulam, e não querem aquela execução, dizendo que se
dirige a conhecer das suas portarias.
Consistindo a formosura das leis na igualdade, se averigua que a respeito dos Índios
são taxados com muita modicidade os seus salários, e tomam-se-lhes os gêneros que vão
buscar ao sertão com muito trabalho, sempre pelo mesmo preço, e a Companhia que os toma,
lhes altera o das suas fazendas, à proporção de seu custo, contanto que ganhem quarenta e
cinco por cento, na conformidade do seu regimento. É bem certo que também à proporção da
esterilidade dos anos, e da abundância de frutos, da bondade deles, ou da sua deterioração, e
do trabalho, se deviam aumentar ou diminuir os seus preços, como é regra geral dos
comerciantes para a boa reputação do comércio; mas como nem há lei que determine, nem no
Diretório se prescreve, tudo cede em detrimento dos mesmos Índios , e contra o que em outro
tempo tinha prevenido o regimento das missões (89) que se aboliu.
Dir-se-á que faltando aquele negócio do sertão, e não se extraindo as suas especiarias
haveriam dois prejuízos consideráveis: 1º, o não terem os Índios aqueles lucros; 2º o não
haverem aqueles gêneros para se abastar e fornecer o comércio da Companhia, e passar a
mesma abundância para a Europa. Enquanto à primeira parte já se acha deduzida a resposta de
todo o plano desta mesma exposição; pois não pode ser sensível nem saudosa uma perda de
lucros que custaram maiores trabalhos, do que são os interesses, perdendo-se ao mesmo
tempo outras vantagens de muito maior consideração.
Enquanto à segunda parte, devo dizer que se não houvesse aquela coação, e se não
fossem obrigados e violentados os Índios a riem aos sertão, é sem dúvida e sem contestação
48
que muito menos especiarias teriam os da Companhia para seu comércio de Portugal; mas essa
penúria só aconteceria no primeiro e segundo ano, enquanto se fizessem as lavouras industriais
nas terras adjacentes, de que resultariam abundância e profusões.
Além disso, quanto não é mais importante, a liberdade e a conservação dos Índios, que
os interesses da Companhia? Quanto não é mais interessante, o estabelecimento firme do
Estado, do que os lucros da Companhia? Quanto não é mais atendível, a causa pública de
todos aqueles miseráveis, o benefício de todo o país, a sua felicidade, a sua conservação e
aumento; do que os particulares avanços do comércio da Companhia? Quanto não pesa mais
na balança da consciência e da religião, a redução de muitas almas para o grêmio da igreja, que
está prejudicada irresarsivelmente enquanto durarem as opressões por amor do negócio da
Companhia? Embora que se extraiam as drogas do sertão, mas sim por aqueles que lhe
estiverem próximos e imediatos, ou por aqueles Índios e moradores, que se estabelecerem nos
mesmo cacoais, e sua vizinhança. Seja-me lícito agora refletir em uma determinação expressa,
que traz o Diretório no § 62, a qual é oposta a todas as luzes da razão, aos artigos de direito
público, e as mesmas leis que se publicaram a benefício dos Índios, e da sua liberdade política,
e cristã. Quer o referido § que se faça a distribuição dos Índios pelos moradores, a todo o risco,
e ainda à custa do detrimento (são palavras do Diretório), da maior utilidade dos mesmos Índios,
dizendo que a causa ou necessidade comum, constitui lei superior a todos os incômodos e
prejuízos particulares.
Ainda qualquer mediano discurso alcança a força daquela regra exposta; mas não se
poderá acomodar com a aplicação da espécie; pois prefere-se, naquele Diretório, a utilidade dos
moradores a todo o risco, e detrimento dos Índios. Os Índios são os primários e naturais
senhores daquelas terras, o Estado depende deles para seu aumento e conservação, eles se
sujeitaram ao domínio e império português com os pactos e promessas da sua indenidade (?) e
dos recíprocos interesses. Eles com independência dos moradores, podem cultivar as suas
terras, e subsistirem, não assim os moradores. São considerados como miseráveis; a igreja os
patrocina e protege, para se facilitar a sua redução. Agora pense-se: qual deles tem mais
cabimento nas causas públicas? A quem favorecem mais a razão e o direito, ao que trata de
lucro captando, ou ao que trabalha de damno vitando.
A expressa lei de 6 de junho de 1755 do § - E para que os ditos Gentios - manda a todo
o custo salvar o prejuízo dos Índios, que se lhes não tomem suas terras, nem tenham moléstias,
até a respeito das que houveram sido dadas a pessoas particulares em sesmarias, porque na
89
O § 10 do regimento dado aos regulares, sobre as missões.
49
concessão delas se reserva sempre o prejuízo do terceiro, e que muito mais se entende, como a
lei quer, e determina, a respeito do direito dos Índios primários, e naturais senhores, assim se
explica aquela extravagante.
O mesmo Diretório o reconhece no fim do § 80 e nos seguintes, precavendo-se com
regras a introdução dos moradores entre os Índios ( que em outro tempo era vedada e
defendida), afim de que os Índios não sejam prejudicados, nem tenham detrimentos, e por
palavras expressivas se explica o § 81, que os moradores haviam reposto em má fé aos Índios
pelas violências (90) repetidas, com que os tinham tratado, até aquele tempo, e se manda dar
toda a preferência aos Índios, até para serem desapossados os moradores.
Combinadas todas estas idéias, que contrariedades se não descobrem? Por isso o
Diretório dá ança a que se não faça caso das opressões, e detrimento dos Índios; por isso hoje
em dia concorrem as mesmas evidências que confessa aquela lei privativa. Por isso se diz
naquele Estado que para os Índios pano, pão e pau: bem entendido que é mais pau do que
pano e pão. As leis, a razão, as bulas e constituições apostólicas, dizem que a causa dos
Índios, é a mais pública e comum ao Estado civil e eclesiástico; o diretório porém no dito § 62, e
contradizendo-se a si mesmo em alguns lugares, diz que a necessidade dos lucros dos
moradores, constitui artigo público, sobre os estragos dos Índios. É muito boa jurisprudência!
Pois asseveram que no Estado, nem se sabe, nem se pratica outra legislação, abonando-se
todas as extorsões, e ruínas dos Índios, com o sagrado nome de Sua Majestade pelo que se
tem feito odioso contra as pias intenções dos senhores reis fidelíssimos.
Já acima propus, que em Espanha se havia considerado por lei expressa, que era mais
atendível por causa pública, a conservação e a liberdade dos Índios, contra os interesses e
necessidades dos outros moradores, ou ministros, ou governadores: a experiência mostra que
os seus domínios se tem felicitado. Solorzano (91) de Indiarum gubern transcreve a lei como
ponderei, e este tratadista, tratando das preferências dos Índios aos moradores traz sempre em
razão de decidir o salvar-se o seu prejuízo.
Um dos objetos da polícia que se propõe no Diretório, para reforma do governo, e para
ser bem administrada a justiça naqueles países, e serem obedecidas as leis, e civilizados os
Índios com perfeito estabelecimento, é, e vem a ser: recomendar-se aos diretores, que apenas
chegarem às suas povoações apliquem logo todas as providências, para que se estabeleçam
casas de câmaras, e cadeias públicas. São passados mais de vinte anos, que por aquele
90
E o diz também em outros semelhantes lugares, e no § 75. 91
Lib. 1 cap. 23 ex n. 60
50
Diretório se esperava a beleza, e civilidade daqueles povos; a conservação daquelas casas
públicas, que são dependências dos juízes, dos vereadores e principais: mas até hoje se não
tem executado tais estabelecimentos, nem se deu a providência dos meios para se construírem
tais obras. Ainda que se fizessem, tudo seria inútil pelo nenhum exercício dos juízes, principais,
e camaristas; e porque os diretores têm arrogado toda a ampla jurisdição coativa, e fazem das
suas casas, o cárcere, e o patíbulo dos Índios, como já ponderei.
Todas e as mais felizes esperanças das utilidades, e interesses do Estado e da igreja,
estavam dependentes daquelas regras, que mais facilmente promovessem as povoações dos
Índios, os descimentos de seus matos, e sertões, se eles quisessem livremente descer, e
juntamente o aumentar-se o número das mesmas povoações, pelo vasto continente das
Capitanias, e daquele Estado. Com este mesmo golpe de política diligência, procedendo-se
licita, e honestamente se viriam a bandeiras despregadas aquelas igrejas com muitas e muitas
mil almas reduzidas ao seu grêmio e seio. Isto reconheceram as leis, e o reconheceu o Diretório
(92), mas a sua prática tem sido tão ineficaz, quanto se depreende, pela falta de população.
Em outro tempo, para a aldeia de Mariuá, onde se acham a vila de Barcelos, e capital da
Capitania de S. José do rio Negro, fez conduzir, e remover o Padre Mathias, carmelita, mais de
vinte mil almas. O mesmo Padre, descendo acaso pelo Rio Negro, se encontrou com um
principal daquela nação, que o levou para sua povoação, e lhe deu muito bom trato; e por
tempos conseguiu o religioso, persuadi-los àquela remoção, e novo estabelecimento da aldeia.
Que se podia querer de tantos Índios, senão que se conservasse a população e que se
propagassem? Pelo contrário; pois quando fui servir a Sua Majestade, na dita vila se acharam
somente quatrocentas e cinqüenta e quatro pessoas; se bem que no ano de 1751 com os
descimentos, e com a restituição de fugidos se aumentaram ao número de quinhentas e setenta
e quatro: tudo consta das relações que conservo. A causa do abatimento, e da diminuição se
depreende, do que se acha exposto. E se a capital está nesta decadência, qual não será a das
mais vilas e povoações?
O Padre Vieira no seu tempo, não contentava reduzir na missão dos Nheengaíbas, que
povoavam a ilha Joanes, com cem mil almas (93), e por este argumento se conhece a multidão
dos que necessitam de socorro espiritual, e que podem aumentar a população. Apesar das
notícias, que correm pelo país, e que levam os desertores, no tempo que servi a coroa na dita
Capitania, desceram mais de três mil Índios, com os quais se forneceram algumas povoações
92
Desde o § 75, e é o § 2 do regimento das missões, e a carta régia de 1º de fevereiro de 1701. 93
O Padre Barros, liv. 5 § 53, pag. 541.
51
antigas, e se estabeleceram outras de novo, como foram S. Francisco Xavier de Tabatinga,
Santa Isabel, Içá, Japurá, Manacaperu, Adavá, Caravina, Messerabi, Abecú, Rué, Iparaná,
Azamene, nomes todos derivados das nações e principais daqueles ranchos; o que tudo contas
das pias certidões, que acompanharam um requerimento meu, entregue às pias e benéficas
mãos de Vossa Majestade, bem entendido, que depois da criação da dita Capitania, até o ano
de minha posse, apenas desceu o pequeno número que consta da mesma certidão, e de só me
lembro, como meio e argumento, para a facilidade da redução ao grêmio da igreja.
Pela boa fé, que diz derramar pelos matos, se fariam mais reduções e descimentos, se
houvessem os meios, e as disposições; isto é lavouras, mantimentos, casas, e juntamente s se
não temesse a grande despesa, que a real fazenda vem a fazer com os prêmios, para serem
aliciados os Gentios.
Já ponderei os meios que fazem mais difíceis aqueles descimentos, e que por isso seria
muito útil, e conveniente ao Estado, e à igreja, que os Índios se estabelecessem nas suas
primeiras povoações, para conseguirmos as grandes utilidades que nos provém. Além disso é
muito para notar-se, que um dos impedimentos da redução, é o mesmo descimento, porque
persuadidos alguns Índios, famílias ou nações para aquele fim, eles aparecem na capital, para
se segurarem dos pactos, das convenções, e promessas, que lhes fizeram os primeiros
persuasores: recebem os prêmios e sustento à custa da real fazenda, prometendo descerem;
mas ou descontentes do trato (94) dos compatriotas, ou iludidos com os da sua nação, que não
querem deixar o seu terreno, vem a faltar; ficam com os prêmios recebidos, e a despesa se fez
inutilmente.
Quanto não seria conveniente permitir-se, que houvessem persuasores de probidade, e
consentir-se que eles se introduzam com aquelas nações, para as reduzir à nossa união e
aliança da igreja: e podem entrar nessa feliz conquista quaisquer dos moradores, ou seja Índio
de capacidade, ou branco, ou mestiço; porque há muitos que têm parentes no meio do
gentilismo, ou se tem ligado por casamentos, e podem com muita suavidade estudar o gênio, o
caráter, o costume, e inclinações dos Índios, para serem, ou conservados nas suas ditas
povoações, e se lhes fazerem os bons ofícios da nossa religião, mandando-se catequistas
sacerdotes; ou para descerem para as nossas, conforme as suas disposições, conforme os
nossos interesses, e conforme os que podemos extrair licitamente dos seus vizinhos sertões;
sem que juntamente eles tenham detrimento nas vidas pela mudança dos climas. Ainda quando
eles fiquem nos seus antigos domicílios, unindo-se e domesticando-se com o nosso trato, e
52
recíproco comércio, nenhuma dificuldade haverá para descerem, ou em parte, ou em todo, ou a
título de se estabelecerem, ou a título de nos auxiliarem nas nossas lavouras; dependendo tudo
do nosso agasalho, agrado, e boa fé das nossas promessas.
Para se introduzirem aqueles persuasores com aquelas nações, pelos referidos fins,
também parece que seria muito importante, que se não franqueasse essa liberdade amplamente
aos que quisessem empreendê-la; senão àqueles que conseguissem licença, e permissão, à
vista da sua probidade, e conhecido desempenho de zelo: contando-se por serviços as suas
boas diligências, para serem premiados na forma da real grandeza de Sua Majestade; e para
que de outra sorte se não introduzam indignos exemplares da corrupção, da cobiça, da
ambição, e de outros fraudulentos comércios, mas sim aqueles que com boa notícia não
fizessem promessas lesivas a uma, ou outra parte, e dessem boa conta dos prêmios, que deles
se confiassem, e das instruções que recebessem.
Este era o verdadeiro modo para se desempenhar as justíssimas e qualificadas determinações
da lei novíssima de 6 de junho de 1755, afim de se propagar a fé ortodoxa; dilatar-se o domínio,
desterrarem-se os bárbaros costumes, e introduzir-se a política cristã, e civil; amparar-se a
economia necessária para a sustentação da vida, e para estabelecimento do útil comércio, e
plantar-se eficazmente a boa moral.
Quando tratei de mostrar as funestas conseqüências da distribuição, e a necessidade
da população; também considerei, que os descimentos não se podiam efetuar, por uma regra
tão absoluta, como se premeditava no Diretório; e propus pelo que determinam as leis que o
Gentio se educasse, se amparasse e se regulasse naquelas suas mesmas povoações, e
remontados sertões, que eles tenazmente não quisessem deixar (95).
Este arbítrio não é meu: é sim regulado pelas providências das leis, e por experiências e
fato próprio: conheço serem dignas de se executarem, abolida e removida, toda e qualquer
prática contrária e ordem circular (96). A natureza por uma oculta força, persuade interiormente
aos homens, a terem amor aquela sociedade: no meio da qual nasceram, e a olharem com
preferência para os lares paternos, e daqui vem, que os parentes são mais apreciados que os
estranhos, porque estes se apartam da comunicação das famílias, onde não pugna o vínculo do
sangue e do trato.
94
O dito Barros, liv. 13. § 72, pag. 306. 95
Para este fim se deixou a escolha ao Padre Vieira, pela provisão régia, que refere o sobredito Barros,
liv. 1 post.§ 104, pag. 62. 96
Consta de uma carta instrutiva circular do general do Estado de 3 de Outubro de 1769.
53
O nome da pátria é suave e doce, ainda que seja rústica a assistência que parece dar
um segundo ser, ou uma segunda natureza.
Estes sentimentos naturais também são poderosos para se insinuarem no coração dos
Índios, e para os arreigar nos seus sertões. Juntamente estabelecendo-se uma povoação, se
toda ela não é composta, e feita de Índios da mesma nação, há muitas diversidades que vencer.
Naquela multidão do paganismo se acham diversas nações, diversas linguagens, diversos
costumes diversas paixões e humores, à proporção dos diversos climas e territórios; e esta
diferença de constituições, é muito dificultosa de reconciliar-se e de unir-se.
Este argumento parece atendível para os Índios, se conservarem nas terras, que não
quiserem deixar; aliás ajuntando-se de diversas nações, há outros tantos principais no mesmo
povo, e confunde a economia do governo e das preferências. Por conta da sua natural
desconfiança, os redutores se cansam muito mais, persuadindo-os a descerem, do que
cristianizando-os, e civilizando-os nas suas primárias terras, e por isso de ordinário são bem
sucedidos os emissários destas diligências, quando são parentes e amigos de quem muito
confiam.
Em todo o Estado há povoações, que na sua vizinhança tem muitas manadas de
Gentios, que vivem em ranchos dependentes de redução. O lugar do Carvoeiro, que dista da
vila capital de Barcelos, pouco mais de um dia de viagem, tem muitos Gentios incultos na
circunferência de seus vizinhos matos, e por todas as campanhas banhadas pelo Rio Branco,
em distância de poucos dias de viagem. Grande utilidade seria ampararem-se aqueles Índios,
porque além de serem fertilíssimas, e vastas as margens do dito rio, e também o mesmo muito
cheio de preciosidades, e riquezas por uma tradição certa. Da mesma sorte se acham muitos
rios, cujas margens são habitadas por Índios reduzíveis, e são cômodas às suas mesmas
povoações para serem nelas instruídos.
Aquele Rio Branco, é de tanta expectação, que por força do meu natural zelo, fiz
participar os seus interesses por uma conta, que dei ao general do Estado Fernando da Costa
de Ataíde, o qual recomendou o seu estabelecimento, havendo moradores, que o quisessem
fazer verificar, e não havendo contrárias ordens de Sua Majestade.
Antigamente quando os regulares tinham debaixo da sua inspeção as temporalidades e
espiritualidades dos Índios, praticavam o particular e genuíno método de se introduzirem nos
ranchos, e habitações dos Gentios; e depois de estudar e sondar os gênios e os costumes, lhe
facilitavam todo o uso da liberdade lícita e natural, dando-lhe uma idéia toda contrária à violência
e à coação, e suavemente firmavam os seus projetos, não lhes multiplicando preceitos para lhes
54
evitar o desgosto, e o desenho de os quebrantar. Pouco a pouco insinuavam o útil e o honesto,
e com semelhante prudência fez grandes progressos o sobredito frei Mathias, nas redução dos
Gentios em Mariuá, e todos os mais missionários nos seus respectivos destinos.
Na conformidade deste plano, isto é de conservar os Índios nas suas (97)povoações, fez
o grande Vieira muitos serviços úteis a um e outro Estado, tendo e havendo ordens régias para
sua execução, a qual positiva e diretamente, faz um dos importantes benefícios do público, além
de se evitar a ruína, e mortes dos Índios, sendo conduzidos a sítios estranhos, como tenho
exatamente ponderado, e consta de muitas relações do continente.
Em conseqüência da conservação dos mesmos Índios, haviam os regulares conseguido
pelo regimento (98) das missões, que não houvessem nas suas aldeias moradores diversos, ou
fossem brancos ou mamelucos, que vem a ser os nascidos de Índios e brancos. Esta odiosa
separação foi abolida pelo Diretório (99), por lhe ser repugnante o princípio da civilidade, do
comércio, e da boa sociedade; pois pela comunicação, e alianças, não só se exercitariam os
usos bons e lícitos, reformadores da rusticidade, mas também com os exemplos de vida civil, e
concertada, se desprezariam os costumes dos matos, opostos á doutrina política, e se
aprenderiam todas aquelas industrias que dependem da agilidade para o mesmo comércio: é
verdade que aquela lei privativa, recomenda muito a preferencia dos Índios.
Tão justa e necessária determinação se faz digna de todo o apoio; porém como pode
acontecer que os moradores destruam os fins, porque são admitidos, se eles forem perniciosos
àquela conservação, já com a corrupção da sua moral, da sua cobiça, e ambição, já com
opressões, violências, e descaminhos; nesse caso por ser tão oposto à liberdade e
aproveitamento dos Índios, aprece que seria justo, que o morador compreendido nesse delito
fosse expulso da povoação por ser prejudicial ao Estado, perdendo o direito que tiver adquirido
às lavouras, e plantações que houvesse feito, como expressamente intima o mesmo Diretório
(100) em pena dos transgressores, e só desse modo se pode observar as determinações das leis
(101) municipais, e da constituição apostólica (102). O mesmo Moisés, aquele legislador inspirado,
também proibiu ao seu povo a comunicação com os idólatras, rebeldes e cismáticos; posto que
97
O dito Barros, liv. 4, § 194, pag. 465. Greg. Lop assim o persuade falando dos Índios, verb - Vivir - O
Padre José da Costa, Liv. 3 de procuranda Indiarum Salute cap. 8. 98
É o § 5 do regimento 99
No § 89. 100
O § 86. 101
É a lei de 4 de Março de 1696 e a de 6 de Junho de 1755. 102
É a sobredita bula já citada de benedito XIV, além de outras muitas de seus antecessores.
55
debaixo da política, e véu das usuras, afim de evitar os grandes danos e prejuízos, que se lhe
seguia da sua alta união.
À vista do expendido, parece que bem manifesta fica a pouca execução que pode ter e
tem tido o diretório, por meio das contravenções, e não posso deixar de ponderar outro
inconveniente que prejudica os Índios.
Por ser o uso da aguardente muito nocivo se houver excesso, assim como o de
qualquer bebida forte, se proibiu (103) a sua introdução, exceto nos casos de remédio, e de ser
justa a sua aplicação. Por mais que se acha defendido aquele gênero, nem por isso está de
todo vedado, porque a sua necessidade tem feito fácil a transgressão. Tem havido licenças dos
governadores para se introduzir o dito gênero, já para os Índios quando enfermam, já pelas
frialdades que participam, nadando e puxando canoas pelos rios à sirga, em cujo trabalho não
tem abrigo algum de vestidos, e para se evitar que eles usem de bebidas espirituosas, extraídas
das manibas que arruinam a saúde. Pelo que seria justo relaxar a proibição, e só se refreasse a
abundância pelas mesmas razões que o Diretório (104) permite.
Por última conclusão do Diretório se determina (105), que todas as leis e ordens se
executem com muita suavidade e moderação, como são os ditames da prudência; porém não
falando da prática, que toda tem sido abusiva, parece que o mesmo Diretório tem dado ança
pela extensa e ilimitada jurisdição dos diretores, e para a efetiva deterioração, em que se põe
aos mesmos Índios, como tenho demonstrado. Determina mais aquela lei privativa, que com
muito maior razão se tratem com brandura aos Índios, que novamente descerem dos sertões, os
quais por dois anos não poderão sair das suas povoações para algum serviço, na forma do
regimento das missões. (106)
Aquela suavidade e brandura logo desaparece, passados poucos dias, da mesma forma
não dura a isenção dos serviços, porque se não observa o privilégio, antes são mandados para
os serviços, e para as viagens do sertão, sem faltarem pretextos para aquelas opressões. Ora
se diz que é muito oneroso à fazenda real, concorrer com despesas para aqueles novamente
descidos; ora que eles mesmo querem ir ao sertão, por conta do seu comércio. Nestes termos,
que roças, que lavouras, que casas podem ter feito os seus respectivos cômodos? Que doutrina
cristã, que luzes do catecismo podem ter aprendido? Que amor podem eles tomar à nova vida,
se os alicerces destes grandes bens, são os estímulos mais fortes do desgosto e da separação?
103
O § 40 e seg. 104
Nos §§ 41 e 42. 105
O § 94 e seg. 106
O § 13
56
Por esta desordem, nada conclui o Diretório no seu último parágrafo, pretendendo que
com exemplo de bom trato, dos novamente descidos, serão atraídos os que habitam as incultas
e indomésticas habitações. Por isso os Índios vivem famintos, e necessitados, sem estarem
abastecidos e fartos, por andarem sempre vagando, e sem os casados poderem sustentar os
encargos de seus matrimônios, e os solteiros sem terem estabelecimento e destino para o
mesmo fim.
Deste erro nasce a falta de propagação, e outro mais que faz horror, e vem a ser: as
casadas e solteiras, se concebem, tomam beberagens de frutas irritantes para abortarem; estas
para encobrir a sua leviandade, aquelas a gravidade de seu crime na ausência dos maridos, e
nestes excessos também sacrificam as vidas; e nem lá se conhecem as penas civis e
eclesiásticas deste execrando delito; porque lá não se conhece, nem se admite mais leis, que o
Diretório, e a prática da sobredita instrução. Numa palavra, algum dos meios úteis, que o
Diretório propõe, e as sábias ilustrações, que produz a lei de 6 de junho de 1755, tudo se acha
cavilado.
Sou obrigado a prenotar: 1º, que sendo aquelas terras fertilíssimas, e capazes de
produzir industrialmente todas as especiarias, e drogas de que é fecundo o país, e outros mais
gêneros com incomparável interesse e abundância, com efeito, tem havido grande descuido na
plantação do algodão, de maneira, que o Pará, e as Capitanias subordinadas, são fornecidas
pelos tecidos do Maranhão.
Na Capitania do Rio Negro, há um capitão engenheiro chamado Felipe Sturm, que se
ofereceu a estabelecer uma fábrica de panos de algodão, dos quais se dariam aos Índios a
preço de 160 rs. por vara, ou em retalho, e a 150 rs. sendo em rolo, o que seria em benefício
dos ditos Índios por ser muito caro, o que se lhes introduz do Maranhão.
Também se oferecia a fazer dar à provedoria toda a farinha necessária a preço de 200
rs. por alqueire, posta nos armazéns reais, ao mesmo passo que a fazenda real a pagava a 320
rs. Isto prova que com facilidade se podiam dispor às lavouras destes frutos, e daqueles
materiais, havendo desvelo e zelo nas plantações.
Quando dependendo os estabelecimentos particulares das povoações, de tranqüilidade,
e paz para sua interior conservação, se destrói ordinariamente aquele fim, franqueando-se aos
militares a sua introdução nas mesmas, quando dispersamente vagam pela capital, vilas e
lugares. Eles são uns homens ociosos, e por uma liberdade repreensiva, e licenciosa, servem de
muito mau exemplo aqueles povos, que começam a estabelecer-se, e necessitam de doutrina.
57
Aos Índios por uma natural e positiva aversão, não podem haver homens mais odiosos
que os militares; eles são reputados por uns corpos danosos ao público, pelas violências que
tem praticado. Mas como os militares são necessários para muitos fins políticos, como a defesa
do Estado, execução das ordens, segurança dos superiores, e para outros efeitos, eu não me
desculparia de erro grande, se me lembrasse de sua total extinção.
Lembra-me porém o modo de conciliar aquelas oposições, e primeiramente produzirei
os sentimentos do zeloso, e discreto Padre Vieira, que propôs muitas idéias abonadas com a
sua experiência, e com a autoridade real. O mesmo Padre escrevendo (107) a el-rei D. João IV,
que lhe havia pedido o seu parecer se explica assim:
“Assim que, Senhor, consciência e mais consciência é o principal e único talento que se
há de buscar nos que vierem governar este Estado. Se houverem dois homens de consciência,
e outros que lhes sucedessem, não haveria inconvenientes em estar o governo dividido; mas se
não houver mais que um, venha um que governe tudo, e trate do serviço de Deus e de Vossa
Majestade; e se não houver nenhum, como até agora parece que não houve, não venha
nenhum que melhor se governará o Estado, sem ele, que com ele. Se para a justiça, houver
letrado reto para o político, basta a câmara; e para a guerra, um sargento-mor, e esse dos da
terra, não de Elvas, nem de Flandres, porque neste Estado, tendo tantas léguas de costa, e de
ilhas, e de rios abertos, não se há de defender, nem pode com fortalezas, nem com exércitos,
senão com assaltos, com canoas, e principalmente, com Índios, e muitos Índios, e esta guerra
só a sabem fazer os moradores, que conquistaram isto, e não os que vêm de Portugal, e bem se
viu por experiência, que um governador veio de Portugal, Bento Maciel, perdeu o Maranhão; e
um capitão-mor Antônio Teixeira, que cá se elegeu, o restaurou, e isto sem socorro do reino.
Aqui há homens de boa qualidade, que podem governar com mais notícia, e mais temor; ainda
que tratem do seu interesse, sempre será com muito maior moderação, e tudo que granjearem
ficará na terra, com que ela se irá aumentando, e se desfrutarem de herdade, será como donos
e não como rendeiros....uma vez que os Índios estiverem independentes dos governadores,
arrancada esta raiz, que é o pecado capital, e original deste Estado, cessarão todos os outros, e
Deus terá mais motivos de nos fazer mercê.”
Assim se conduziu o zelo daquele missionário, querendo persuadir que os
governadores, e a tropa militar não eram convenientes; e em outra (108) carta anterior, já havia
deliberado por igual conceito desta forma:
107
Na segunda carta de 4 de Abril de 1654 no § 4. 108
A de 2 de Maio de 1653, no § 16.
58
“ As causas deste dano, bem se vê que não são outras mais que a cobiça dos que
governam; muitos dos quais costumam dizer que Vossa Majestade os manda cá para que se
venham remediar, e pagar de seus serviços, e que eles não têm outro meio de o poder fazer
senão este.”
Talvez que por se engravecerem (sic) as mesmas causas, com o progresso do tempo,
se expedisse a lei extravagante de 31 de Março de 1680, afim dos governadores não terem
culturas, nem fábricas, nem comércio, nem cobrar dívidas alheias, nem seus criados, nem
serem procuradores,; providências estas que lhe cortaram todos os vínculos da interessante e
particular dependência que eles podiam ter no país.
Espalhados os militares, ou junta a tropa em qualquer vila, uns com a licenciosa conduta
de costumes, outros com pequenas administrações de governos, todos a se utilizarem, todos a
oprimirem e a tiranizarem, não formam nada menos que os horrores, que têm sido pouco
decifrados.
Porém como os Índios, e até as nossas mesmas povoações são invadidas e roubadas
pelos Muras, Gentio de corso, arranchados em bandos, bárbaros por constituição e de nenhuma
reconciliação; por isso parece que absolutamente se não pode repelir toda a tropa, ainda que
quaisquer militares com Índios auxiliares, ou moradores, fariam um corpo de sobejo, para se
repelirem aquelas invasões, segurarem a defesa, escoltarem os rios, ampararem os redutores
dos Índios, e seus missionários, sem haver a grande despesa dos soldos, e evitar-se aquele
excesso das violências e temores dos mesmos Índios.
Este meu juízo não se encaminha a que na cidade capital, não deixe de haver mais
alguma tropa, donde se tirem as escoltas por destacamentos, porém pelas mais povoações
mostra a experiências que se faz desnecessária e prejudicial num país, cujos estabelecimentos
modernos dependem de outra física, e de outra ordem. Por todas as razões me persuado, que
tenho ponderado com exatidão a situação, que teve o Estado, e a quem tem presentemente
com as desordens e obstáculos, que hão impedido a felicidade progressiva daqueles domínios
do império português.
Ainda posso asseverar, que se não temesse ser fastidioso com a extensão, e
transportar excessivamente o pio e católico coração de Vossa Majestade; seria muito mais
extenso em descrever os desmanchos, e as funestas conseqüências que sofrem, e têm sofrido
uns miseráveis que mudamente clamam, e pedem a Vossa Majestade socorro e amparo. A
mesma igreja defensora entra nesta conta, porque sendo os príncipes soberanos, os protetores
dela, e os defensores dos cânones, e constituições apostólicas, só por meio do zelo de Vossa
59
Majestade, do poder da coroa, e a exemplo do régio fervor, e da régia proteção, se poderão
concluir, e esperar os importantes, e saudáveis fins de umas e outras utilidades.
O meu respeito me está impondo e recomendando o silêncio; porém, me estou
juntamente persuadindo, que não encheria em todas as funções da minha oficiosa promessa, se
não delineasse um projeto para remediar aqueles males na dependência de Vossa Majestade,
ou desatender por inútil, ou dar-lhe algum valor e merecimento, se as sábias luzes de Vossa
Majestade o aprovarem, e vem a ser:
Sendo a agricultura e o comércio, os braços mais seguros em que descansa qualquer
Estado, nenhum promete mais vantagens, que o do Pará e Maranhão, pelas fertilíssimas
produções, com que a natureza paga, com muito excesso, aos trabalhos dos lavradores, e pelos
muitos interesses que se acham nos incultos sertões, de especiarias, de drogas, e de outros
muitos gêneros, e espécies, em que útil e curiosamente se poderia entreter e fornecer-se a
história natural, a matéria médica, a botânica, e a química; cujos descobertos não são
desconhecidos, não só para o lícito regalo, e conservação da vida, mas também para reparo da
saúde dos povos.
Descrever todo o plano daquelas fecundidades é aumentar o fastio; mas sempre direi,
que tive a ventura de pôr na soberana presença de Vossa Majestade, uma descrição das
viagens que se podem fazer pelo grande Rio das Amazonas, e pelos mais que lhe são
aderentes e juntamente se relatavam as muitas preciosidades de que abundam os rios,. Todos
esses interesses, em benefício do público, do particular, e da coroa, se não promovem pela
inação do continente e pelos óbices que tenho relatado.
Tudo louvavelmente se poderia conseguir e promover, dignando-se Sua Majestade
suscitar alguns arbítrios, que em outro tempo se praticaram, com muita felicidade, e que agora
se fazem conhecidamente necessários, pela presente decadência do mesmo Estado. O modo
mais oportuno é fazer praticar, literal e expressamente, as muitas leis, que desde el-rei D. João
IV até ao tempo do augusto rei o Sr. D. José, se promulgaram a benefício dos miseráveis Índios,
e dos imensos principados que contém aquelas terras da América; abolir-se inteiramente o
confuso Diretório, o seu sistema, e a sua prática, dar-se um novo tom ao regime de todas as
Capitanias, por meio de uma junta estável e permanente, a quem Sua Majestade se digne
conceder a jurisdição necessária, para a boa administração temporal e espiritual daquele
continente.
Desde que aquele Estado se pôs debaixo do império português, só por meio de juntas e
conferências se puderam remediar os grandes males, e promover os maiores bens. Por meio
60
dos votos, e em congresso concorrendo sujeitos de probidade, consciência e letras se deliberam
as dependências sem despotismo, com grande averiguação, com maiores conhecimentos, e
sem risco de afeição a esta ou aquela parte.
No tempo em que este reino esteve no domínio espanhol, se mandaram decidir vários e
importantes casos do Estado da América portuguesa, por junta, ou congregação de sábios e
zelosos ministros.
E no governo de el-rei D. João IV, se praticou a mesma inspeção, menos por exemplo,
que por se atender ao acerto e gravidade dos interesses do Estado. Concorreram para uma
junta sobre a liberdade dos Índios (109) muitos lentes da universidade, e o presidente do
conselho geral da inquisição, sendo a mesma presidida pelo duque de Aveiro, presidente que
era então do paço. O Padre Vieira, em duas sessões advogou e propôs os argumentos da
deliberação, e porque conhecia quanto era importante, que se reduzisse a subsistente aquele
tribunal, representou o príncipe, que se na corte haviam tantos conselhos, onde se tratava da
polícia e conveniências da vida; seria muito justo que também erigisse uma junta atual, a quem
privativamente pertencesse o conhecimento de todos os interesses das missões, e para quem
recorressem e apelassem os missionários. Aquele tribunal se fez estável em S. Roque (110),
posto que se alterasse a sua permanência.
No ano de 1686, se deu o regimento às missões, e no § 23 se prometeu dar outro à
junta, donde claramente se mostra a sua existência (111). El-rei D. Pedro, não só fez comunicar
as suas determinações à dita junta por cartas régias, mas também nelas declara que a junta
deste reino lhe tinha proposto os requerimentos, que necessitavam da sua providência. Quando
no princípio tratei do tempo deste príncipe, recopilei marginalmente os seus comandos a este
respeito, que julgo não dever renovar, mas não deixarei de dizer que o autor que escreveu a
vida do Padre Vieira refere (112) que até para a reposição do vigário geral do Maranhão, se fez
necessária uma junta: tal é a sua dependência e necessidade, que por meio de votos se
deliberaram muitos outros embaraços (113) no Pará, Maranhão e Bahia.
Não se podem negar os talentos daquele religioso gênio do Padre Vieira, que mereceu
pela sua reputação, e pela boa conta do seu emprego, o nome do zeloso e experimentado
109
O Padre Barros, liv. 2, § 93 e seg pag. 169 110
O Padre Barros, loc cit § 99. 111
Existia a junta, posto que o regimento do conselho ultramarino datado em 14 de Julho de 1612,
contenha no § 13, e medio (?) que o conselho haja de prover o governo a bem da religião e promulgação
do santo Evangelho. 112
O Padre Barros, liv. 1, § 190, pag. 104. 113
O sobredito Barros, liv. 2, § 18, pag 125 e liv. 5, § 110, pag. 574.
61
missionário dos Índios, e conseguiu da régia aprovação, muitos louvores nos seus arbítrios, e
como se nota, além de outras, na carta régia de 12 de Maio de 1659, assinada pela rainha
regente. Este missionário pois sempre pugnou pela jurisdição, e intendência da junta, como
muito importante conselho para o Estado.
No felicíssimo reinado do augusto rei D. João V, também se conservou nesta corte a
mesma junta para conhecer de todos os negócio, e dependências das conquistas, e missões, e
para imediatamente as propor à régia e soberana pessoa de Sua Majestade.
Deste tribunal sempre foram ministros, sujeitos de muita autoridade, ou seculares ou
eclesiásticos, ornados de virtudes, e letras, servindo alguns a coroa nos tribunais, e em
negócios forenses, de que foi presidente Gregório Pereira Fidalgo da Silveira, sendo também
desembargador do paço.
Como as cidades, capitais do país americano, se acham em grande distância desta
corte, muito mais remotos ficam os sertões, as vilas, e povoações, que estão estabelecidas e se
estabelecerem nas vastíssimas terras do seu centro; por cuja razão, faz a distância crescer os
danos, e os leva a crítico ponto, a maldade por não se poderem remediar, sem que da coroa
régia, vão determinadas as providências, havendo grande demora na execução.
Este é o mesmo sentimento, esta é a mesma queixa do incansável Padre Vieira, pois
em uma carta (114) escrita á Majestade de el-rei D. João IV, se explica por termos bem
significantes, rogando que as ordens, que fossem deste reino, não se dirigissem com a cláusula
de que se desse nova conta, fazendo-se o contrário, porque os recursos estavam muito
distantes, e que nesse meio tempo, se perdiam muitas almas, e conclui desta forma:
“ Assim que, Senhor, não há senão isentar Vossa majestade as missões de toda a
intervenção, e jurisdição dos que irão tão mal, da que não tem, e libertar Vossa Majestade aos
ministros da pregação do Evangelho, pois Deus a fez tão absoluta e livre...”
A respeito das mesmas distâncias, e dificuldade de recursos já havia ponderado(115) o
mesmo Vieira, que os Índios estavam consolados e animados com acarta de Sua Majestade,
que ele vertera na sua língua; e que se haviam desenganado, que a não serem remediados logo
nas suas opressões, era por não chegarem aos reais ouvidos os seus clamores: e que
esperavam os efeitos das promessas, tendo por certo que lhes não sucederia com elas o
mesmo, que com as mais: pois as viam firmadas pela real mão. Continuou o mesmo Padre
assim:
114
A primeira carta de 4 de Abril de 1654 no penult e ult. 115
O § 1 e 2 da referida carta de 4 de Abril.
62
“ Vossa Majestade me faz mercê dizer, que mandou se confirmassem os dispostos,
contudo que de cá apontei; mas temo que aconteça ao Maranhão, o mesmo que nas
enfermidades agudas, que entre as receitas e os remédios piore o enfermo que, quando se lhe
vem a aplicar, é necessário que sejam outros mais eficazes.”
Por isso estes inconvenientes se remediavam felizmente, estabelecendo-se nas
Capitanias, juntas ou conselhos permanentes, com ampla jurisdição para dirigirem todo o bem
do Estado, e estabelecimento dos Índios, pela maneira e ordem que me lembra expor; e esta foi
a prática que produziu as melhores esperanças, como se colhe do regimento das missões, e
pela experiência, e bons sucessos de outras vantagens do governo.
O Padre Vieira, pede e roga que nas aldeias, não se ponham capitães (116), e só pelos
seus principais sejam os Índios governados; e que os vice-reis e governadores se não
intrometam com os Índios, que devem ser somente visitados no espiritual, pelos Padres
religiosos, que os tinham a seu cargo.
El-rei D. João IV, e os seus sucessores não consentiram, nem quiseram nas aldeias
administradores, bem como por Castela se havia abolido semelhante administração; assim o
assevera o Padre Vieira no voto dado aos Paulistas (117), e escrito na Bahia aos 2 de Julho de
1694, clamando que há naquelas administrações perigo, e ocasião moral de muitas injustiças.
Os diretores, mudado o nome, são os administradores com mais ampla jurisdição, e tirado este
perigo do mal, podem muito bem as juntas prevenir e acudir a todos os casos.
Porque estabelecidas aquelas corporações com diárias conferências, tem remédio todos
os casos ocorrentes, ou respeitem ao sacerdócio, ou o império; a mesma junta deve ser
composta do prelado diocesano, do governador ou general da capital, do ministro ouvidor que
também deve servir de intendente geral dos Índios, como abaixo ponderei; do juiz de fora, como
presidente da câmara, do provisor, ou vigário geral do bispado, e dos prelados mores das
religiões, cujos súditos tiverem a seu cargo a administração espiritual de aldeias, e Índios; bem
entendido que só por moléstia, ou impedimentos naturais, poderão deixar de concorrer às
conferências, e nesses termos serão admitidos os seus lugares tenentes, para que sempre
concorram os pareceres para o acerto dos casos, e não haver motivo para menor prevenção.
Como os párocos que vigiam, e prestam o pasto espiritual aos Índios, são, ou
presbíteros seculares, ou regulares; estes devem informar, e dar contas particulares aos seus
116
No voto e parecer dado nesta corte, conformando-se com o voto do duque no § 7 e posto que não tem
data, assim se acha na biblioteca real. 117
No § 32.
63
prelados por cujas mãos, ou canais, pode a junta instruir-se dos negócios, para sua decisiva e
providencial deliberação: de maneira que nos casos espirituais, e de direitos da igreja, terá o
bispo, ou prelado diocesano, o voto decisivo no caso de empate, e o general nos casos
temporais, e da sua jurisdição. E para que não faça dúvida pelo concurso da junta não se
estenderão, tiradas as jurisdições do governador, do prelado, porque este livremente poderá
usar da sua jurisdição, necessária e voluntária na forma dos cânones, e só dependerá da junta,
no que for do interesse comum dos Índios; e aquele também procederá na mesma
independência, no que pertencer à milícia, moradores, e cidade, não havendo, nem dizendo o
menor respeito aos Índios, porque no figurado caso de haver ou direta, ou indiretamente
respeito aos Índios, e ao estabelecimento do Estado, só em junta se poderão tomar as medidas
para as deliberações, e haverá um secretário, que pode ser ou do governo, ou do bispo.
Como pelo direito dos mesmos Índios, deve haver quem advogue, ou procure; por isso
parece indispensável, que os Índios tenham um procurador geral em cada Capitania, o qual seja
de muita probidade, literatura, e mais autorizada em razão do sangue, e pelo dito ofício será
isento da jurisdição dos governadores, e só dependente da junta, em tudo o que for pertencente
aos mesmos Índios; e o mesmo procurador, será sempre presente na junta, como membro da
corporação, com igual assento aos mais deputados, e com voto consultivo naquelas propostas,
que forem feitas a requerimento seu, e decisivo nos que ocorrerem a bem do Estado.
Aquele procurador porém deve ser eleito pela câmara, concorrendo os votos dos
melhores do povo, sendo nomeado três, para ajunta deliberar as circunstâncias de cada um, e
ser provido, o que deve ser confirmado. Todos os anos se fará nova eleição para aquele ofício,
no caso da junta não confirmar ao que havia servido, sendo constante e muito notória sua
probidade, e préstimo, contanto que não possa ser reconduzido por mais de três anos, sem
autoridade superior de Sua Majestade.
Por meio das providências que devem emanar da junta, quase que ficam cessando os
ofícios da jurisdição de um intendente geral dos Índios, que separadamente há na cidade do
Pará; pois reformando-se o governo, e abolindo-se o Diretório, de necessidade se dá nova
forma àquela inspeção, e se faz escusado o intendente, que serviria para se disputarem as
jurisdições. O mesmo ouvidor que nos correções conhece dos casos criminais, pode ser
incumbido de algumas diligências, que a junta lhes cometa; e tudo concorre para que a
multiplicidade de ministros, não visitem as terras com perturbações nos povos, dependentes de
se estabelecerem. Ainda presentemente na Capitania do Rio Negro, se acha unida a
intendência dos Índios à ouvidoria geral.
64
Para se poderem executar as determinações da junta, pelos ramos da sua jurisdição
extensiva, e compreensiva do território respectivo; nenhum outro meio há mais proporcionado do
que estabelecerem-se mesas, ou sociedades em cada uma das vilas, e das povoações para que
destas saírem as representações, que a junta deve providenciar. Essas pequenas mesas devem
constar, nas Capitanias subalternas, ou vilas maiores, do vigário geral ou da vara, do que tiver a
seu cargo o governo político, do ministro letrado, de um principal dos Índios, do vigário que for
pároco (118) na igreja respectiva, de um secretário, e de um procurador dos Índios, sendo estes
três últimos eleitos e aprovados pela junta municipal.
Nas vilas pequenas, ou povoações, constarão as ditas mesas do pároco, de um
principal e de um secretário, e de um procurador dos Índios, nomeados estes pelas câmaras do
termo, com dependência de igual aprovação da junta da Capitania respectiva.
Como estas mesas são destinadas para melhor se empregarem naqueles ofícios, que
os diretores haviam deturpado, parece que se deveriam chamar mesas de direção útil,
econômica e civil.
Elas devem ter a seu cargo, o vigiar em tudo quanto houver nas vilas, e povoações sem
ação alguma para mandar, apenas para aconselharem; e logo darem parte as mesas das
Capitanias, para estas prontamente determinarem a bem do público e conforme seu regimento
que deve haver.
Por conta das distâncias, e se poderem remediar os acasos; as mesas de pequena
direção das vilas, e povoações serão sujeitas às corporações ditas das Capitanias, e umas e
outras à Junta da capital do Estado. As ordens que se expedirem serão dirigidas às justiças, e
câmaras para a sua execução, para se tirar às mesmas mesas, a ocasião de adulterarem a sua
inspeção; e as mesas superiores darão providencia na falta, ou no excesso da execução.
Umas e outras corporações terão porteiros, isto é a junta principal e as mesas das
Capitanias, e também um contínuo, e um meirinho para executores das ordens particulares, ou
gerais das mesmas juntas; e as mesas de pequena direção, serão só providas de um contínuo
para o seu expediente: terão conferências todos os dias, e entre si fiscalizarão o necessário, e o
honesto a respeito das agriculturas, do comércio, e de outros estabelecimentos, e assim
também da polícia.
118
Para a doutrina ser bem produzida, e os párocos obedecidos no espiritual, se faz necessário de que os
mesmos párocos tenham intendência em algumas ações temporais para que as palavras e as obras
concorram ao fim de serem obedecidas e imitadas: assim recomenda o conc. Trid. Ses 6 de reform. Cap.
2 e ses. 22 de reform. Cap. 2 e o diz S. João nas palavras “Filioli nom diligamus verbo et lingua; sed opere
et veritate.”
65
Assim como deve haver uma regular correspondência entre aquelas corporações e uma
gradual dependência das menores, para as superiores; parece indispensável, que neste reino,
como em outro tempo, haja uma junta permanente, por meio da qual se comuniquem a Sua
Majestade, as instantes providências, de que necessitar todo o Estado. Em outro tempo, como
disse, foram deputados dela muitos religiosos (119) de autoridade, como foram Frei Manoel
Leitão, provincial de S. Domingos, o venerável Padre Bartolomeu do Quintal, fundador da
congregação do oratório; Frei Manoel Mascarenhas, que também havia sido provincial da
sobredita ordem, e outros mais ministros autorizados.
A dita junta por ter na sua inspeção o cuidado de fazer espalhar a luz do evangelho, e
agregar fiéis à igreja, se deve denominar da propagação da fé, e para a conservação de tão
louvável conquista, deve ter intendência, em toda a conquista política das missões, e do Estado,
que disser respeito aos Índios; por isso parece que deve também ser composta de eclesiásticos
ilustrados em virtudes, e letras, além de outros ministros seculares, que tenham iguais atributos
e zelo. O número deles deve ser de pleno arbítrio de Vossa Majestade, assim como designar -
lhe procurador com voto na junta, secretário, e os mais oficiais dependentes.
O lugar para a junta, nenhum parece mais próprio que o convento de S. Francisco de
Paula, tomando-se a este santo patriarca, para protetor da mesma corporação, e de toda a sua
intendência, por serem as suas principais obrigações, dirigidas pela caridade cristã, na qual
virtude floresceu muito aquele santo, juntamente por ser o patrono especial da feliz sucessão, e
dos gloriosos progressos de Portugal, na presença de Deus Onipotente.
Não pareça fora de propósito, o ser aquele mosteiro o lugar das sessões e do
congresso, porque além de muitas razões de congruências, já em outro tempo, se estabeleceu a
dita junta em S. Roque (120) desta corte, e se tomou para protetor a S. Francisco Xavier, e
aquele patriarca, já tem sido tomado por intercessor, para proteger as direções, agriculturas, e
fábricas da comarca de Aveiro, e terras adjacentes, onde se promove a caridade política, e
cristã. Vou agora tratar das providências, que podem fazer a felicidade do Estado, por termos
concisos, porque só os direitos da soberania pertence aprovar qualquer zeloso arbítrio, e
compete estabelecer regimentos.
A junta deve fazer promover as agriculturas, e estabelecimentos das lavouras, e casas
dos Índios, e das povoações. Deve permitir a comunicação dos moradores, a conveniência, e a
119
Assim o atesta o padre Fr. Pedro Monteiro, da Ordem de S. Domingos, consultor do santo ofício, e
pregador de sua alteza, acadêmico da academia real, e examinador Sinodal do arcebispado, e do priorado
do Crato, na sua obra intitulada Claustro Dominicano in liv. da impress de Lisboa no ano de 1729. 120
Assim o assevera o Padre Barros, já cit. Liv.2,§ 99.
66
sua união com os mesmos Índios, e fazer repelir o que for danoso, e prejudicial àqueles
miseráveis. Estabelecer as povoações, e fazer conduzir descimentos de Índios para as mesmas,
se eles muito por sua livre vontade, quiserem estabelecer-se nelas. Pelo contrário, não
querendo descer, se lhes regularão as aldeias, e povoações, e habitações nas mesmas terras
onde eles se quiserem cristianizar, unir-se a nós, e civilizarem-se com a nossa amizade, e união
dos Europeus.
Em semelhantes reduções novas exatamente não permitirá, que se introduzam com os
Índios, ou quaisquer Europeus, ou moradores brancos, ou mestiços, ou mamelucos, que não
tiverem bons costumes, e de boa moral. Logo fará tratar de suas igrejas, provê-las de Padres, e
dos mais socorros espirituais, e temporais. Fará desempenhar todos os pactos, e promessas
que deverem manter a boa fé, sem lesão excessiva, e contribuição desproporcionada dos
prêmios com que se devem aliciar os Índios.
Terá mais a junta na sua mais séria consideração, que as aldeias, e freguesias, e
povoações de Índios, sejam providas de párocos prudentes, e que lhes não falte coadjutores,
sendo necessário, e se vigiará que as instruções sejam de são doutrina, e pura religião. Da
mesma forma serão os missionários redutores, que houverem de se entranhar pelos sertões, a
tratarem da redução do gentilismo.
Pela mesma razão se examinará se quaisquer moradores quiserem persuadir Gentios à
nossa união, e amizade, se eles são dignos de tão importante empresa, para se lhes dar
socorro, e licença, de maneira que os ditos moradores, não desacreditem as esperanças, e
sejam capazes de se conduzirem com suavidade, moderação, e brandura: de outra forma não
se lhes permitirá o subirem aos remontados sertões, só compelidos pela sua cobiça, e ambição.
Os missionários redutores, quando estabelecerem os tratados de paz, farão prestar juramentos
de fidelidade como dantes se praticava.
Introduzidos os missionários (121) nas povoações, e dos que se pretenderem reduzir,
estudarão o gênio e a inclinação dos Índios, averiguarão o seu cômodo, a figura do terreno, as
utilidades dele, e dos seus vizinhos sertões, para de tudo participarem à junta, e achando que é
rude o descômodo da mesma assistência, sem interesse ao comércio, e a agricultura, para a
subsistência dos mesmos, com permissão da junta os persuadirão suavemente, a descer para
as outras nossas povoações, fazendo-lhes ver o prejuízo de umas, e as utilidades das outras.
121
O evangelho se introduzirá com toda a brandura, e mansidão, como recomendam os Padres da igreja, a
respeito dos Gentios, que tem vida política, admitem razão, e guardam boa fé: assim diz Santo Ambrósio
in 2 ad. Corinth.; psalm.33, vers.11. S. August. In serm, de puer. Centurionis Soloz. De jur. Indiar. Tom.1,
liv. 2, cap.17, n. 1.
67
Para este fim a junta lhes mandará fazer roças, para serem providos de mantimentos, e
domicílios para se recolherem nas descidas; e assim tudo será prevenido, para que os Índios
não sofram necessidades, e moram de miséria.
Para se conseguirem os felizes intentos deste plano, se faz muito importante, que para
cada um dos rios naveguem duas canoas continuadamente, trazendo suficiente escolta para
defesa dos Padres (122), e das pessoas de probidade, que houverem de se introduzir com os
Gentios nas suas povoações, e nos interiores dos rios; e as ditas canoas navegarão até os
últimos confins que puderem alcançar, introduzindo e participando a todos a segurança de
nossa boa fé, por meio de embaixadas, e declarando os pactos, e promessas que da junta hão
de receber por escrito, para não excederem o método. Aceitada a introdução, e confederada a
povoação, poderá nela ficar um dos Padres, com algum soldado, ou Índios da sua escolta que
escolher, e as canoas continuarão a sua viagem, com o mesmo destino a buscar mais reduções
adoçando, e doutrinando aos que se forem confederando, como em outro tempo se praticava;
os cabos, as escoltas, e esquipação de canoas, tratarão os Padres com todo o respeito, e
atenção devida a seu ministério, e com eles, consultarão as viagens, derrotas, e determinações.
Aqueles a quem se confiarem as canoas, ou como melhor parecer à junta, farão roteiros
por diários, declarando tudo quanto se for vendo mais notável, descobrindo, e alcançando, e até
examinando aqueles descobertos, que se propuserem de riquezas, minerais, de pedras
preciosas, e de drogas, e especiarias, para de tudo ser instruída a junta, e se comunicar a Sua
Majestade. Juntamente na mesma ocasião, em que se confederarem as nações, se irão
persuadindo as plantações, e colheitas, que por meio do comércio nos podem ser úteis, e de
tudo se farão assentos, bem como da receita, e despesas que se fizerem com os prêmios, ou
convites dados aos reduzidos.
Para se concluírem os referidos fins, se poderão as canoas demorar em qualquer
paragem, e nesse meio tempo poderão aproveitar as produções úteis da natureza, que se
acharem, e poderão comutar os que fizerem conta ao nosso comercio, e os Gentios quiserem
vender, pois a experiência tem mostrado, que o sistema contrário de não comunicar os Gentios,
não os reduz á necessidade, e a buscar o cristianismo, e pelo meio da suavidade, e da paz, será
122
Para que não haja discórdia nos missionários e Padres, concorrendo muitos, e sendo de diversas
religiões, parece justo que para os distritos determinados, vão missionários da mesma Ordem, sem que uns
se intrometam na divisão dos outros, como se acautela por direito canônico no capítulo pastoralis de his
que fiunt. a Prelat. Para esse fim deve haver um só catecismo para não haver diversidade de partidos, à
proporção dos padres, e das religiões, como na Grécia aconteceu a S. Paulo : 1 ad corinth. Cap 1 - por
cuja razão Inocêncio III reescrevendo ao bispo Livouiense a esse propósito recomenda que os catequistas
68
infalível a sua união, pois eles também desejam ter amigos poderosos, para bem se livrarem dos
Muras, que são de corso, e inimigos comuns.
Enquanto os Padres, e aqueles introdutores, se demoram na conversão dos Gentios,
darão parte às juntas respectivas dos seus progressos, em canoas mais pequenas, que
conduzirão os gêneros, as fazendas, e frutos, que tiverem adquirido, ou pela colheita, ou pela
negociação, de cuja remessa virá uma guia feita pelo cabo da canoa, e assinada por qualquer
um dos Padres.
Quando subirem as canoas pelos rios, se farão em distâncias proporcionadas algumas
sementeiras de legumes, para no regresso se colherem os frutos, ou para a esquipação das
canoas, ou para os Índios, se alguns descerem, para que estes vejam a caridade, e prevenção
com que nos conduzimos.
Que para se fornecerem as ditas canoas, e escoltas, são desnecessários militares, é
sem controvérsia, porém como demonstramos, que havendo muitos, há também muitas
desordens; por isso com o parecer do Padre Vieira (123) me parece também, que são suficientes
três companhias, que se denominarão de propagação da fé; sendo os seus cabos e capitães de
conhecido zelo, cristandade as quais estarão sujeitas às disposições da junta, sendo da sua
ativa obrigação concorrer para defender a pregação do evangelho, e só serão sujeitas ao
governador, no caso de guerra, e de ataque inimigo, ficando porém por conta dos rendimentos
da junta, o pagamento dos seus soldos, e ter atenção ao seu serviço.
As escoltas em justa defesa poderão atacar aos Muras, posto que se praticaram
antecipadamente todos os meios de os reduzir, e feitos os prisioneiros se remeterão para a
capital, para a junta proceder com eles, como pede a humanidade, e recomendam as leis. E não
se perderá de vista o desinfestarem-se os mesmos rios, daqueles inimigos (124), que
barbaramente se nutrem, e comem os humanos; furtam as mulheres, e filhos das outras nações
para engrossarem as suas bandeiras, e vivem em ranchos dispersos, como se não tivessem
chefe, ou república ao modo dos mais. Para este fim se armarão as canoas necessárias com
tragam o mesmo hábito, ainda sendo de diversas ordens, ut no cap. Deus qui .. de vit. de honest. der. e o
concil. limense 2 deu providências a esse respeito na 2ª parte, can. 2. 123
Na carta de 6 de Abril de 1654, § 15. 124
O gentio que vive barbaramente, deve ser compelido por força a receber pregadores da lei evangélica,
os quais devem ser escoltados para terem defendidas as vidas, enquanto produzem a luz da verdade cristã:
assim discorre Soloz. De jur. Indiar. Tom. 1, liv. 7, cap. 18, n. 1 e 2. A costa liv. 2 de procuranda
Indiarum Salute, cap. 8, pag. 238. Posevino in bibliotheca tom. 1, liv. 9, cap. 24, pag. 402. Torquemada,
3ª parte, liv. 18, cap. 4 é a parábola de S. Lucas, no cap 14 verb - Compelle intrare - S Augusto na 1ª carta
de Bonifácio assim pensa.
69
escolta suficiente, para se obrigarem por força aos ditos Índios bárbaros, na forma que
prescreve a sábia lei do augusto rei D. João V, de 9 de março de 1718.
Não obstante se abolir a distribuição dos Índios, mostra a experiência que não faltarão
os que forem precisos para a esquipação das canoas, se eles forem tratar da redução dos
outros; porque eles se oferecem voluntariamente, a ir buscar seus parentes , segundo a
vizinhança dos rios donde são oriundos, e juntamente o mesmo Gentio, que se reduz, logo está
pronto para dar remeiros, e outros socorros em prova de sua boa fé e amizade. Nesta forma, em
muito pouco tempo se fará uma grande conversão, e por isso se tratará de lhes aplicar a
instrução necessária para a política cristã, e civil, como se vai expor.
O principal sistema será a suavidade, e brandura (125), e os Padres se não descuidarão
de fazer todos os domingos, e dias santos as práticas doutrinais, e muito principalmente aos
pequenos, já usando da língua geral, já da nossa, para que pouco a pouco fiquem bem
instruídos na portuguesa; de maneira, que sabendo-a todos bem, será a dominante da nação
para todas as práticas.
Haverão escolas públicas para a mocidade ser instruída em ler, escreve, e contar; e as
meninas se separarão dos rapazes paras as mestras, apenas tiverem nove anos. Para os
mestres serão escolhidas pessoas de probidade, que também saibam doutrinar nas orações do
catecismo, e não soldados que tivessem vida licenciosa, e livre; e dependerão da aprovação da
junta da sua Capitania respectiva; e preferirão os párocos, querendo incumbir-se desse louvável
exercício; se algum dos Padres for tão zeloso, que descobrindo talentos (126), e agilidade em
algum Índio de poucos anos, o quiser ensinar as latinidades, e outras ciências, o poderá fazer, e
a junta lhes louvará muito, lembrando-se desses efeitos do zelo, para o premiar.
Como o modo mais evidente, e imediato que há para estabelecer a união daqueles
Gentios, é fazer-lhes ver a nossa caridade, e que até eles são habilitados para os empregos
civis, e eclesiásticos das mesmas povoações; se haverá muito cuidado em se prevenir, e educar
desde logo aqueles Índios que tiverem boa índole, e propensão para servir a igreja. Para o que
eles se entregarão às comunidades religiosas, para serem instruídos em forma de seminários, a
125
A suavidade é recomendada a respeito dos infiéis ainda quando cometem delitos gravíssimo, como se
explica S. Paulo, 1ª ad corinth. Cap. 5 e S. Anselmo a este lugar. Muito principalmente a respeito das
convertidas, posto que tenham afinco aos seus ritos, os quais se devem permitir não sendo oposta
diametralmente a nossa religião: assim pensa Beda, liv. De temperat., cap. 10, Baron no Martirolog. Aos 2
de Agosto, onde se permitiu aos Romanos os anfiteatros, que se consagravam ao nascimento de Cláudio, e
ao templo de Marte, batizando-se solenemente em honra do apóstolo S. Pedro nas prisões; o mesmo se
praticou a respeito dos Biturecenses, como refere Mornacio in. Fin. Cod. De paganis. 126
Assim pondera Torquemada no liv. 2 da Monarquia Indiana, cap. 19. Por ser o arbítrio de ensinar o
vínculo mais forte para ligar a união entre os mestres que ensinam, e os discípulos e os pais destes.
70
expensas da junta, e como recomenda a assembléia dos Padres em Trento (127), e encarrega
muito aos prelados. Desta forma nascerá uma santa emulação naqueles fiéis para a geral
conversão, se houverem sacerdotes (128) da sua mesma nação que promovam a redução, já
pela obrigação da profissão, já pelo maior conhecimento que tem adquirido para salvarem do
abismo aos seus conaturais.
Já na cidade do Pará chegou a ser sacerdote, e cura, um Índio, filho da Índia Mariana
Pinta, a quem os Jesuítas instruíram, e insinuaram até o chegarem ao altar, e não só se
aproveitaram os seus talentos, mas aqueles Padres beneficiaram aquela tenra planta, em
gratidão dos muitos socorros, e alimentos da vida que o Padre Vieira deveu para Índia sua mãe,
acima referida, quando os povos se puseram em sítio o dito Padre, e aterravam a mesma Índia
para que o não socorresse, o que praticou com fidelidade rara apesar de todos os ameaços
(129); daqui a conclusão de que eles são hábeis e fiéis.
Nas casas religiosas donde houverem de sair os missionários, para conversão dos
Gentios, haverão todos os dias conferências, e práticas da língua geral dos Índios; pois sem
este socorro preliminar, se não pode empreender aquela agregação de fiéis; e ás mesmas
louváveis palestras, poderão ir os sacerdotes seculares, que forem inspirados do mesmo
espírito, a prenderem aquele idioma, de que se necessita para a administração dos
Sacramentos, e para a redução do Gentio(130).
Para haverem operários nesta grande vinha do Senhor, comunicará a junta da capital, à
deste reino, a situação, e dependência deles, para que se haja de representar a Sua Majestade,
o meio tão interessante daquele provimento, ou mandando-se missionários zelosos das muitas
ordens monásticas deste reino, para desse modo serem úteis ao Estado e à igreja, ou
mandando-se vir da Itália, ou qualquer outro país, sacerdotes dignos, como têm ido à China, ao
Japão e à Índia.
127
O con. Trident. Sessão 23 de reformat. cap. 18 128
Para o fim de serem os Índios promovidos a sacerdócio, lhes não pode obstar razão alguma como
Solorz. Liv. 4, cap. 20 da sua política; e para serem dispensados na ilegitimidade têm os Bispos todo o
poder contra o direito comum na forma da bula de Greg. XIII, e de Pio V que refer D. Afonso
Montenegro, Bispo de Quito, no seu itinerário para os párocos de Índios, liv. 3, tract. 7. Ses. 1, n. 10 e ses.
2, n. 1. 129
O Padre Barros, liv. 3, § 117 e seg. , pag. 327. Que os Índios não devem ser excluídos dos curatos,
benefícios e dignidades, assim o refer o conc. Provinc. Mexican., como refere o sobredito Montenegro,
liv. 5, tract. 1, ses. 10, n. 8 por não serem os Índios reputados neófitos: Solorz. Polit. Ind. Liv. 2, cap. 29,
pag 242, colum. 1 e o persuade o direito canônico, no cap. fin. de cleric. peregrin. 130
Os curas e missionários devem saber a língua do país para bem exercitar os seus ofícios. Conc. Limens.
Celebrado em 1583, ses. 2, Cap. 13.
71
As mesmas juntas escolherão os missionários mais aptos, para os encarregar do
exercício da missão, havendo as informações, e votos dos seus prelados.
Porque sucederá muitas vezes que para se extraírem as drogas do sertão, se
entranhem nele alguns moradores, Índios, ou como auxiliadores, ou como salariados, e
demorando-se nestas viagens muitos meses, vivem desamparados de todo o pasto espiritual,
incumbirá a junta aos Padres, que viajarem pelos rios nas canoas de defesa, e de redução, que
apascentem as sobreditas ovelhas, ainda que seja à custa de demora de poucos dias, afim de
as doutrinar, e lhes dizer missa nos dias de guarda, e de lhes participar os verdadeiros princípios
para o temor de Deus.
Para que os Índios, e moradores que caírem na indigência, por excesso de anos,
possam ter algum socorro nas esmolas de seus párocos, segundo os ofícios da caridade, e da
hospitalidade, a junta lhes fará assinar papéis [papáes] as suas igrejas, e freguesias para
logradouro e beneficio dos mesmos párocos; atendendo-se à tenuidade de suas côngruas e
para que os cultivem, e tenham da mesma igreja o sustento para a vida, já que trabalham nos
interesses da alma dos seus fregueses e paroquianos.
Os mesmos párocos serão incumbidos de zelarem e promoverem o bom curativo dos
Índios nas suas enfermidades, e se eles não tiverem com que se curem, já pelo que lhes
incumbem os cânones, e constituições apostólicas, e já pelas providências, que dará a junta a
semelhantes desamparos; serão os mediatos enfermeiros de suas moléstias angariando, e
mandando servi-los em tão urgente necessidade, e se os enfermos não tiverem famílias, isto
afim de se evitar que os Índios pereçam á necessidade, como sucede continuamente, só
assistidos de algum lume debaixo de uma rede, sem sustento, sem remédio, e sem medicina:
que lastimosa situação!
Como os párocos não tenham ordinariamente naquele país e pelas povoações do
sertão, esmolas, ou honorários das missas, e as que dizem nos domingos e dias santos, devem
ser pro Populo, na conformidade de uma constituição apostólica; por isso a junta terá cuidado de
regular a competente côngrua dos mesmos, conforme as circunstâncias do tempo, e do lugar;
para que hajam operários, e eles se animem a encher as funções do ofício paroquial sem
indigência ou necessidade.
Além do referido, as juntas farão prover aos missionários de todo o viático necessário, e
juntamente de todas as providências para a celebração dos divinos ofícios, tanto nas viagens,
como nas novas introduções, e povoações que se estabelecerem; e assim também do que for
necessário para as igrejas das freguesias estabelecidas.
72
As igrejas que se erigirem, devem ser entre tantos,, e tais números de moradores, que
os sacerdotes possam acudir a todos, para administração dos Sacramentos, e os mesmos
Índios possam assistir-lhes à missa conventual, sem a menor escusa, e nunca será antes da
hora certa, e muito competente.
Vigiará a junta que os Índios sejam permanentes nas ladeias, e povoações, e que não
sejam tirados delas, e das suas lavouras contra a vontade. Sendo abolida a lei de distribuição,
por ser oposta à liberdade, poderão os moradores, ou quaisquer outros aliciar, ajustar, e
concertar-se com os Índios, para pagar-lhes os serviços, que lhes fizerem, ou sejam domésticos,
ou braçais de lavouras, e obras artificiais, e mecânica; contanto que as povoações fiquem
sempre amparadas, e os casados não poderão deixar as suas agriculturas por mais de dois
meses sucessivos, salvo a benefício das reduções.
No caso de haverem alguns Índios que por largo tempo, e por módicas gratificações,
queiram estar com algumas famílias, em remuneração de outros bons ofícios, que tenham
recebido, e muito por sua livre vontade, sem constrangimento, nem sedução: nesses termos
poderão os Índios dispor de suas obras, e muito principalmente se uns e outros forem parentes
entre si, e tiverem amor recíproco, e lícito por se esse um cativeiro doce (131), e liberdade muito
livre; nesse caso poderão tratar-se com mútua dependência: os moradores tratando bem aos
Índios, e estes podendo deixar os amos, todas as vezes que lhes parecerem ingratos.
Se alguns dos Índios forem tão arreigados na ociosidade, que nem à vista do próprio
interesse queiram tratar de suas lavouras, e estabelecimentos, serão obrigados os principais a
destiná-los para o exercício de servirem aos moradores, ou quaisquer outras famílias por salário;
bem entendido que o Índio escolherá a quem deva servir. E os que não tiverem tais estímulos
de fazerem roças, e industriarem os seus prédios rústicos, serão os primeiros que devam ser
destinados para os trabalhos do conselho, e do público; isto afim de se evitarem vadios.
As juntas, ouvidas as câmaras, farão taxar os salários que devem ter os serviços
pessoais, e braçais, domésticos, e artificiais, segundo a situação e física doas terras, pelo modo,
e forma, que determinam as leis que se promulgaram com esse objeto; atendendo-se aqueles
serviços que se aumentam, quando se trabalha de dia e de noite.
O pagamento dos sobreditos salários deve ser, ou em dinheiro, sendo o Índio capaz de
o administrar, ou em pano de algodão, ou em linho, ou em droguete, ou em baetas, ou em
camelões,; e todos os mais gêneros tecidos de algodão, linho, lã, que se fabricarem neste reino;
131
Assim pensou o padre Vieira no voto sobredito aos paulistas no § 36.
73
e não menos em instrumento de ferro, e aço para aplicação das lavouras, e manobras dos
operários artífices.
Parece justo, e importante que se ratifique a extravagante de 28 de Setembro de 1688 e
a de 9 de Agosto de 1686, esta proibindo os panos, e aquela os droguetes, forasteiros (132),
porque por esse meio, se fará grosso o ramo do comércio de algodões, e lãs, que pode produzir
o continente da América, para fornecer as fábricas deste reino; e crescerá a abundância à
proporção do consumo, e extração daquele material nas manufaturas.
Por esta razão deve a junta fazer promover com todo o cuidado, a agricultura do
algodão, e a propagação do gado lanígero, nas campanhas que tiverem para isso capacidade;
afim de haverem aqueles gêneros para o tráfico da negociação. E como a mesma junta deverá
ter um almoxarife, como abaixo se dirá, este se encarregará daqueles materiais, como lhe for
mais cômodo, e fácil para neste reino mandar fazer os tecidos, que se necessitarem para as
despesas, prêmios, convites, e outras mais providências, destinadas pela mesma junta.
Para melhor se firmarem os interesses do comércio, não só poder-se-á livremente ir aos
sertões vizinhos extrair drogas, e especiarias; mas também a mesma junta patrocinará aquele
negócio, que o Gentio quiser fazer girar, com as nações já civilizadas nas povoações; pois além
do interesse do dito comércio se facilitam os meios de se avizinhar o Gentio, e de se reduzir á
fé, sem maior despesa e trabalho. Contanto porém, que aquela comunicação, e comutação de
gêneros, e comestíveis, se fará debaixo da inspeção do principal da aldeia civilizada, e de
qualquer deputado das mesas pequenas da direção. Nessa ocasião serão tratados os Índios
com toda afeição, e socorros da hospitalidade, sem a menor quebra dos direitos da boa fé, e
assim se apagará o temor, e horror, que tinham feito grassar as violências antigas, permitindo-se
a comunicação franca.
O melhor método de fazer girar o comércio, não obstante as distâncias, e de se
socorrerem mutuamente os povos, é o uso das feiras; por isso a junta as estabelecerá de
mantimentos, e gêneros de que se puderem fornecer os Índios, não só para o necessário da
vida, mas também para os vestidos do seu uso, e instrumentos dos seus trabalhos, e a dita junta
determinará os lugares, e os intervalos dos tempos a propósito do que julgar atendível. Nas
feiras poderão os Índios traficar por meio de compras, de vendas, e de permutações e para não
serem danificados, sob pena de nulidade de contrato, lhes assistirá a eles o seu procurador
respectivo.
132
Estas leis foram remetidas pelo tratado, feito entre a rainha da Grã-Bretanha e este reino em Dezembro
de 1763.
74
Assim como pela lei pátria se obriga a haverem regatões para a corte; também a dita
junta poderá obrigar a mercadores comerciantes, a fazerem girar o negócio pelas mesmas
feiras. E por conta do comum, isto é, dos gêneros que a junta se tem fornecido; haverão
também lojas, de que se há de encarregar um almoxarife da junta, não só para as feiras, e
mercados sobreditos, mas também para estarem divididas pelas povoações, conforme as
medidas que se tomarem para franqueza do negócio, atração do Gentio, e melhor se
desempenhar a boa fé, e a justiça nas comutações.
Nas mesmas feiras, ou praças públicas se poderão alugar(133) os Índios, e ajustarem-se
as convenções sobre as obras dos mesmos para os trabalhos, e artifícios, assistindo-lhes o seu
procurador respectivo, sendo todas as medidas do tempo, e lugar arbitradas pela junta da
capital. Como das povoações sairão muitos redutores, e nelas se fará comércio com os Gentios,
por estes canais muito facilmente se saberá quando estarão Índios presos a corda, para serem
desumanamente comidos por outros, que barbaramente conservam entre os cruéis costumes
aquele abuso. Nesse caso a junta fará expedir o remédio pela providência seguinte:
Mandará missionários bem escoltados a persuadirem aqueles miseráveis, e a desabusá-
los de semelhante desumanidade, para que por meio da razão, e da doutrina os convença a
ceder das presas, e da tirania, e se brandamente a força de rogos não quiserem, poderão
persuadi-los, dando-lhe alguns prêmios de muito pouca consideração daqueles que pela cor, ou
pelo luzimento, são capazes de lhes alucinar a imaginação, para permutarem com os ditos
Índios prisionados. Se porém esta contribuição os atrair a continuarem no tráfico, serão por força
obrigados a evacuar o terreno, e serem trazidos para as nossas povoações, de modo que a lei
determina e manda proceder com estes bárbaros. Com as presas se procederá com toda a
caridade, afim de se unirem à nossa crença.
Estes e outros sucessos notáveis serão escritos em um livro, que terão a seu cargo, as
mesas pequenas da direção respectiva; e juntamente lançarão os movimentos, e proveitos, que
se houverem feito, para de tudo se dar cópia a junta, com uma lista dos indivíduos que
houverem na povoação.
Pelo relatório dos sucessos do Estado, se alcança de plano que as justiças, e principais
das aldeias, câmaras, e juízes, é que devem ter a seu cargo, o governo subalterno das suas
povoações; e a mesa pequena da direção servir-lhe-á de assessores para os acertos, e
promotores para insinuar o bem, e fiscalizar o mal; sendo o pároco, e deputados uns olheiros de
tudo o que se obrar, para informar como já disse, aos superiores.
75
Se algum Índio se achar criminoso, e for grande, e capital a sua culpa, que não deve
ficar impune, se lhe fará o processo pelos juízes, e havida a informação do principal, e da mesa
pequena da direção, se remeterá o instrumento com o réu, á junta das justiças que se forma na
cidade capital; no caso porém de correção, ou de qualquer grave advertência, ou castigos,
nunca os Portugueses, serão os executores, para não serem odiosos ao resto dos Índios,
ignorantes da força das leis; mas sim os principais serão os juízes da execução, e em todo o
caso haverá toda a comiseração, que permitir a justiça; e assim o deve ficar entendendo o
ouvidor geral que na razão de intendente dos Índios é seu juiz privativo.
Se falecer algum principal sem sucessores da sua geração que possam pretender
aquele ofício, e que tenham direito a ele; se fará eleição por votos, a que presidirão os juízes,
com os vereadores da câmara, e a mesa de direção, e todos informarão com a resulta á junta
principal, para provimento, e investidura do cargo. No caso porém de vagar algum principal,
havendo na povoação outros de outras nações, se agregarão os dependentes ao principal mais
antigo; bem entendido que assim sucederá, não havendo, ou acabando a geração do principal
falecido, como acima se expôs.
Desde as primeiras linhas com que me dirigi na fiel demonstração dos fatos, dos
sucessos e das providências das leis; fiz uma exata prova de que o concurso dos militares era
pernicioso ao Estado; pelo que tirando-se de todas as guarnições das capitais, as companhias
que devem ser da propagação da fé, pareceria justo, que só na cidade capital residissem os
restos dos regimentos, para se fazerem deles os destacamentos precisos, e os provimentos
para algumas fortificações; isto na conformidade que aprovar a junta das missões, porque todas
as vezes que à mesma junta parecer, que se devem licenciar os soldados, serão com efeito
relaxados da sua praça, conservando-se somente aquele número de companhias, que forem
muito necessárias para a cidade capital e para os limites confinantes.
Neste termos em conseqüência, que nos governos subalternos se faz muito
desnecessária a tropa, com quem consome inutilmente uma grande despesa à real fazenda e
da mesma sorte os governadores, que vão deste reino.; porque sendo o primeiro objeto, a
felicidade do Estado, este mais se arruina por aquelas mãos, do que se adianta, como
claramente demonstrei. Seria muito conveniente que os ditos governos os entregassem aos
mestres de campo, ou a quaisquer outros de patentes maiores, que residem no Estado e com
amor ao terreno: bem entendido, que só se poderá servir o dito governador de auxiliares em
casos que ocorrerem.
133
É o conselho de Solorz. de Indiar. guber. Liv. 1, cap. 2, n.8.
76
E como os ditos oficiais são subalternos, e sujeitos ao general, se encarreguem dos
governos para os exercitar, não como de antes, mas conforme as determinações do mesmo
general, e da junta nas circunstâncias das inspeções. Em resulta de tudo, nenhum militar poderá
residir, e estar no ofício da milícia em qualquer das aldeias, à exceção de viajarem escoltando
as canoas, e Padres missionários, que passarem para as reduções.
A capital da Capitania de S. José do rio Negro é a vila de Barcelos, a qual está situada
muito acima do Rio Amazonas, dependendo de socorros para sustento da vida, que os Índios
em canoas vão buscar, com a despesa de um mês, por cuja causa há uma feitoria atual de
pesqueiro, para a tropa no dito Rio Amazonas, por ser do dito Rio Negro muito estéril, e as suas
terras de menos produção cujas despesas não fazem luzir os trabalhos.
A capitania se erigiu por lei de 3 de março de 1755, que destinava diverso
estabelecimento no Rio Javary; porém mudou-se o projeto pelo general que então era Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, o qual mal persuadido da abundância da aldeia, chamada Mariuá,
voltou para ela aquele destino da lei, fazendo-se continuar até agora o descômodo de se povoar
o Rio Negro, menos importante que o Amazonas, e sem abundância para fornecer os
estabelecimentos, que se podiam fazer com melhores vantagens neste Rio. Se for do agrado de
Sua Majestade, parece que seria justo cometer-se à junta, o conhecimento dessa utilidade, para
haver de se executar a referida lei, ou conservar-se a dita Capitania em Barcelos, como for mais
interessante ao Estado.
Se para executarem as sobreditas providências, e outras muitas adições, são
necessárias as referidas corporações das juntas, uma em Pará, outra em Maranhão, outra
superior neste reino; é bem certo que não podem subsistir sem fundo, e rendas para as muitas e
muitas despesas, que pedem os sobreditos desenhos, para a felicidade do Estado, e para se
encherem todos os expedientes e juntamente para as côngruas ordinárias dos mesmos
deputados afim de que não trabalhem somente sem prêmio, e se podem derivar da forma
seguinte:
Cessando o Diretório, cessam por conseqüência os diretores, e cabos das canoas do
comércio, e tesoureiro geral dos Índios, que reside no Pará, e conseguintemente (sic), acrescem
os lucros, que os mesmos percebiam, que importam em quatorze por cento, como acima
ponderei, de todos os gêneros, que os Índios colhem, e negociam, exceto dos comestíveis que
percebem das suas lavouras, e estes ditos quatorze por cento devem ser aplicados para as
despesas da junta. E por ser esta contribuição muito praticada, não pode parecer inovação, nem
77
tributo(134), muito principalmente quando se dirige para dar um novo balanço às evidentes
utilidades do Estado, aumento, e conservação dos interesses públicos e particulares.
Esta mesma imposição deve ser inalterável a respeito de todos os frutos, e gêneros, que
perceberem, ou traficarem os moradores brancos, pois sendo-lhes recíprocas, e comunicáveis
as mesmas utilidades por terem Índios apara as suas agriculturas: franquear-se-lhes o comércio,
desinfestar-se-lhes os rios, e oferecer-se-lhes muitos outros meios para os seus interesses que
lucram, e tiram de umas terras que originariamente não lhes são próprias, por isso devem ter a
mesma contribuição, e as que forem desta qualidade se devem recolher em um cofre.
Como a junta tem na sua inspeção a propagação da fé, a redução do gentilismo, e outro
socorros àqueles miseráveis, segundo pede a caridade cristã, por isso se faz muito atendível, e
natural, que por conta desta corporação, fique o perceber as esmolas das bulas da cruzada,
para se aplicar o seu produto aos santos, e louváveis fins, que a mesma concessão da
indulgência considera, e destina, para o que deve haver outro cofre para guarda daquela
importância, e a mesma junta, com as mesas de direção, conspirarão para que efetivamente
não deixem todos de tomar as ditas bulas, cujas resultas se remeterão para a capital, por conta
das ditas mesas de direção.
Sendo a dita junta inspetora sobre a educação da mocidade Indiana, e devendo
proteger a mesma, já em seminários próprios, já em agregação às comunidades, para que são
indispensáveis as despesas com mestres, e seminaristas; parece muito atendível, e justo que se
lhe agregue a inspeção de todas as escolas; pois também as deve fazer praticar nas povoações,
por isso se lhe deve fazer união do rendimento do subsídio literário, para ser pela mesma junta
administrada a sua importância, que também se guardará em cofre diverso.
A junta pela geral inspeção dos Índios, e de seus interesses comuns, e particulares, há
de precisamente ter o cuidado de fazer pagar as côngruas dos párocos, fornecer o viático, ou
guisamentos das igrejas, e prontificar-lhes os ornamentos, que devem fazer o decente, e
decoroso culto divino dos templos, e da religião; por isso pela sua mesma inspeção, se deve
fazer cobrar, e arrecadar os dízimos eclesiásticos, por serem destinados em todo o direito para
aqueles socorros, e unidos à coroa pela ordem de Cristo, sem perderem a constituição de sua
índole, muito principalmente tendo, e devendo ter a junta a seu cuidado, o prover as fábricas
das ditas igrejas, ministros coadjutores para as mesmas, a acudir aos doentes, e peregrinos,
como pedem as leis da caridade, e hospitalidade, na forma da verdadeira, e sempre usada
134
Assim praticou Espanha por I. que refere Solorz. de Indiar. guber. Liv. 1, cap. 1, n. 12.
78
disciplina da igreja, nos primeiros séculos, e determinações de concílios: toda esta importância
se deve recolher a outro cofre.
E como se mostra que devem haver quatro cofres: o 1º se chamará da contribuição; o 2º
se denominará do rendimento da bula; o 3º o título do subsídio literário; e o 4º dos dízimos.
Cada um destes cofres terá três chaves, a respeito das quais se guardará a mesma ordem que
se observa nos da fazenda real e para a arrecadação, receita e despesa, se contemplarão os
mesmos oficiais.
Nem pelas determinações consideradas, se entenderá que a provedoria não deve ter
cofre, para a sua respectiva arrecadação dos direitos, que lhes pertencem, e para aplicação do
seu produto, na forma das ordens reais; porque com efeito deve continuar a sua inspeção, bem
como se dirigia até agora pela junta da fazenda, e dela somente se tiram os dízimos, que devem
ser aplicados pela junta da propagação da fé.
Pelo que no caso das despesas da provedoria, excederam a receita da importância, e
rendimentos que tem em outros direitos,; poderá o provedor representar a junta por escrito,
aquela falta, e a necessidade da despesa, para se deliberar o pagamento, por conta dos
dízimos; bem entendido, que como a junta toma a seu cargo todas as despesas, que a
provedoria em outro tempo fazia com os Índios; lhe pertence zelar a aplicação do dito cofre,
cabendo na razão do rendimento da dita provedoria a distribuição das outras despesas, que lhe
eram dantes respectivas.
Todos os anos se remeterão mapas, e listas, com receita, e despesa separadamente de
cada um dos cofres, para serem apresentadas a Sua Majestade pela junta deste reino: e serão
remetidas outras ao real erário para Sua Majestade conhecer da situação em que se acharem
os interesses daquele Estado.
Já acima se ponderou que as canoas que vagarem pelos rios, nas derrotas da redução,
poderiam fazer colheitas, e aproveitar as drogas e especiarias dos sertões, a que se
avizinharem; e que os ditos gêneros devem ser remetidos à junta que há de determinar a sua
extração, por lhe pertencer em razão das grandes despesa, que a mesma fará com aquelas
expedições, e por dever pagar aquelas companhias, e tropa de soldados, que se hão de
denominar da propagação da fé, na diligência de escoltar as mesmas canoas, para a introdução
dos Padres.
Nesta conformidade deve ter a junta um almoxarife, para recebedor dos gêneros
daquela importância; dando a junta todas as providências e por conta do mesmo se farão
providenciar as introduções daqueles gêneros que hão de ser negociados nas feiras, ou
79
mercados sobreditos, e nas lojas, que se hão de distribuir pelas povoações: bem entendido que
os procuradores hão de conspirar para o zelo, e benefício de tudo, e juntamente tratarem de
vigiar pela boa economia e boa aplicação das aguardentes que se introduzirem nas povoações;
tudo como a junta determinar e prescrever.
A junta não poderá conduzir seus premeditados meios, para se chegar aos fins de suas
bem fundadas esperanças, sem fornecer um armazém de fazendas, e gêneros necessários,
segundo os sortimentos, que forem conducentes, já para o pagamento dos salários, já para os
prêmios, e convites aliciadores dos Índios reduzíveis. E para se facilitar esta despesa se
poderão mandar buscar a este reino, por via do procurador geral, que receberá os avisos e
insinuações das juntas daquele Estado para fazer as remessas ao dito almoxarife.
O dito procurador geral, que deve ser membro da junta deste reino, poderá receber
todos os gêneros, que se remeterem daquele Estado, para os mandar beneficiar nas fábricas, e
fazê-los negociar, como for conveniente; escolhendo com a provisão da junta superior um
negociante de probidade, para ser o comissário de todo o tráfico, ou para fazer vender em laços,
com assistência do procurador geral, ou para s fazer comutar, ou para as fazer manufaturar, na
forma dos avisos; e de tudo será ciente a junta superior, para aprovar aquelas diligências, e dar
os arbítrios necessários.
Para se animar toda esta produção, e não haver a menor falta no giro deste
abastecimento pareceria justo que Sua Majestade por sua real grandeza, lhes privilegiasse nas
alfândegas os gêneros, que fossem mandados pelas juntas do Estado, e remetidos pela deste
reino.
Sendo presente a Sua Majestade a situação da receita, e despesa, que hão de ter as
juntas, e não menos a resultância, e lucros que hão de tirar daquela comutação, e negócio, será
muito mais fácil compreender-se quais sejam os remanescentes de todos os cofres, e da dita
negociação. E à proporção dos estabelecimentos, das reduções, das lavouras, e do comércio,
se irá sensivelmente adiantando os interesses do Estado, e diminuindo-se as despesas. Por
cuja razão, certificando-se Sua Majestade do cálculo daquelas aplicações, poderá mandar
recolher para seu régio erário o remanescente, e dar-lhe aquela aplicação que bem parecer á
sua real soberania.
Aos deputados das juntas das capitais do Estado, se lhe devem conferir ordenados,
pela medida do arbítrio de Sua Majestade, atendendo-se á graduação do general, e do bispo,
que parece não devem exceder, a quantia de cinqüenta moedas por ano; aos ministros porém, e
vigário geral, com mais modificação; e aos prelados religiosos, por terem casas das suas
80
comunidades, e serem considerados os ditos ordenados como esmolas, em razão de seus
institutos monásticos, se lhes deve contribuir com outra modificação. Enquanto porém ao
secretário, procurador, e almoxarife em razão de terem mais trabalho, e não terem emolumentos
( que os não devem haver nos dispostos dos Índios) parece que os ordenados se devem alterar.
No que respeita aos deputados da junta deste reino, terão maiores ordenados,
considerando-se porém aos que receberem por outros empregos, para haver uma justa
modificação; e da mesma forma acerca dos deputados religiosos, procurador, secretário, e
comissário acima ponderado.
E como para este reino hão de ser remetidos os gêneros para se traficarem: por conta
deles se tirarão as importâncias que forem calculadas para o efetivo pagamento daqueles
ordenados, e côngruas sobreditas, além das despesas concorrentes, e indefectíveis.
Para se guardarem as ditas importâncias de dinheiro, haverá um cofre na casa, ou
convento, onde estiver a junta, com três chaves, das quais uma terá o prelado da comunidade,
se for deputado, e a outra o procurador geral, e a outra o comissário, que servirá de tesoureiro.
Desta maneira se poderá promover a felicidade do Estado, e uma grande vantagem à
coroa deste reino: porque despendendo o erário régio uma grande soma pela contadoria
respectiva com aquele Estado todos os anos, sem adiantarem os progressos temporais, e
espirituais, se faz ver sensível, e demonstrativamente quanto é útil o plano, que se há
ponderado; pois certamente a coroa não fará despesa alguma, nem para ela concorrerá o erário
deste reino, e se promoverão pelos tempos vindouros muitos interesses ao patrimônio real, os
vassalos terão outros estabelecimentos, a monarquia se fará mais rica, e opulenta; os
estrangeiros ficarão dependentes dos muitos materiais, e gêneros de que necessitam e de que
abundamos naqueles países; e sobre tudo se verá a igreja tão dilatada que Vossa Majestade
nos seus felizes dias, que o Onipotente Deus prospere para a vossa ventura, conhecerá os
graus de glória, que previamente farão a Vossa majestade um notável merecimento na presença
do Todo Poderoso. Até a consciência de Vossa Majestade ficará bem livrada de todos os
remorso, descansando sobre os ombros de ministros inteligentes, escolhidos e ilustrados.
Ainda que a junta ponha todos os esforços para persuadir, e promover os grandes
interesses do Estado, nada poderá incitar mais, e fazer bem proveitosos os seus meios, do que
se Sua Majestade se dignar conceder a mesma corporação, a autoridade de poder prometer em
nome de Sua Majestade, aqueles prêmios que animam licitamente aos corações, gênios
honrados, a empreenderem ações grandes, e a desprezarem os riscos e as demoras, só para
81
merecerem, e conseguirem vantagens extraordinárias para a nação, para a coroa e para a
pátria.
Naquele continente se oferecem objetos grandes a esses empreendedores aliciados,
somente com a esperança segura de serem bem premiados com aqueles graus de nobreza civil,
que no concerto do mundo político é autorizada pelos príncipes soberanos: com a autoridade de
criar fidalgos, de dar hábitos de Cristo, passou D. Francisco de Souza, senhor de Bringel, ao
Estado da América Meridional, com a graduação de marquês de Minas e trinta mil cruzados de
renda no ano de 1608 e animou os povos de S. Vicente, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro,
a fazerem muitos descobertos, e se adiantarem os interesses do Estado, abrindo-se caminhos,
e minas pelos vastos sertões de S. Paulo, além de muitos serviços, que se promoveram.
Já a essa imitação, se Sua Majestade se dignasse autorizar a junta, ao menos para
segurar, e prometer aqueles foros, e hábitos, informando a dita junta sobre os serviços, e os
varões, que se fizerem dignos deles; sem dúvida seria muito mais profícua essa providência
porque: 1ª se contaria em abono de bons serviços, se se fizessem branda, e suavemente descer
Índios para as nossas povoações; 2º se se reduzirem nas suas mesmas terras, à nossa união
com tranqüilidade e sujeição à igreja; 3º se animarem aos mesmo Índios a fazerem grande
comércio, a conduzirem drogas, e especiarias dos seus vizinhos sertões, e estabelecerem
industrialmente lavouras, e a agriculturas, além de outros ramos de negociação, e de feitorias
pelos rios a que estão próximos, e têm a propensão para granjearias; 4º se se descobrirem os
rios e minas de muito ouro e pedras preciosas que há naquele continente com esperanças de
notáveis interesses.
Por ocasião das ditas minas, e pedras preciosas, d evo dizer que no centro das
vertentes do rio Capury, se acham os Índios da nação Tariana, os quais a troco de alguns
penachos, compram a outros muitas folhetas de ouro, de que fazem pendentes para as orelhas,
e há suspeita que aqueles sítios são abundantes daquele preciso metal, assim como as
cabeceiras de outro rios, e que tem diversíssimas pedras de preciosidade e valor.
Os descobridores destas e de outras imensas riquezas, poderiam tentá-las para
utilidade pública, e juntamente poderiam desta forma estabelecer povoações nos confins, para
impedir as nações estrangeiras que preocupem sobre nós as terras que se acham indiferentes
para o primeiro ocupante.
Pois há notícia que os Holandeses tem engenhos de fabricar açúcar, seis dias de
viagem acima do Rio Rupumary, o qual consta que está meio dia de viagem, acima do Rio
Tacutu, além do tráfico, e negociações que fazem com os Índios de um e outro rio, como
82
asseverou o principal da vila de Barcelos, Theodosio da Gaya; e o praticou o Frei Jerônimo
Coelho, religioso carmelitano, e missionário da antiga aldeia de Tarumã.
Outra lembrança mais se propõe para beneficiar a todo o Estado com interesse
recíproco aos Índios, aos moradores daquelas terras, e a mais negociantes deste cidade, como
vou a dizer, e a expor.
Os interessados da Companhia do Grão-Pará, e Maranhão, são credores a mais
moradores daquele continente; porque tendo afiançado os gêneros da sua negociação, pode
muito bem ser, que pela revolução dos tempos, mudança da fortuna, não pudessem pagar as
suas dívidas, que se hão de ter aumentado, à proporção da primeira impossibilidade dos juros
que tem acrescido.
Para remediar este dano, cujas resultas recaem sobre a praça desta cidade, no caso de
falirem de todo aquelas dívidas, nenhum meio se propõe mais útil, e evidente, que ajudarem os
mesmo credores aos devedores, para suavemente se pagarem as ações, ainda que com
alguma mora de tempo.
Permitindo-se a mesma Companhia um novo ramo de comércio, isto é, determinar-se-
lhe que introduza em todo aquele Estado, escravos de Angola, e costa de Guiné; os quais sejam
consignados ou dados a lucro dos mesmos moradores gratuitamente para trabalharem e
fazerem as roças, as lavouras, e agriculturas industriais, com a condição de serem repartidos os
interesses, colheitas, e frutos pela metade, uma parte para a Companhia, e a outra para os
moradores deduzidos os dízimos.
Se porém os ditos moradores abusarem daquelas consignações, ou tratando mal aos
pretos, ou carregando-os de enormes trabalhos, com que não podem, ou aplicando-os para
outros serviços da sua única e particular utilidade; nesse caso, por ser contravenção, poderão
ser tirados os pretos para outros com ação aos danos, e muito mais se morrerem por culpa dos
ditos moradores.
Como os ditos pretos hão de ser sustentados, e vestidos pelos consignatários, ou
moradores, sem concurso dos consignantes, seja por conta destes o risco, e o perigo de suas
vidas; bem como serão do seu cômodo, se os mesmos pretos casarem e tiverem filhos, porque
sendo todos os escravos de sua propriedade, devem também ser suas as produções, já que tem
o descômodo daquele risco, não perdendo neles o usufrutuário; e este contrato durará, pelo
tempo, que for do arbítrio de Sua Majestade, findo o qual se poderão alienar, e vender os ditos
escravos.
83
Por meio da dita introdução de escravos, serão mais repentinos, e rápidos os
estabelecimentos do Estado, em benefício comum do moradores, e dos que estiverem oprimidos
com dívidas; porque se põem hábeis para as pagar dos lucros, que não esperavam ter. Daqui
vem outra resulta, que é não caírem todos os trabalhos, e penosos serviços sobre os Índios, que
devem interessar-se por si, e para haver melhor lugar na suavidade e brandura de os tratar, e
também por este modo se dá um grande balanço a tranqüilidade de se reduzirem com facilidade
as nações infiéis. Juntamente os mesmos pretos se agregarão ao cristianismo, saindo de sua
barbaridade, por cuja causa são permitidos semelhantes cativeiros.
Em outro tempo só pelos avanços das lavouras, e extração das drogas do sertão, se
davam até quatro Índios ao procurador deles em S. Luís do Maranhão, e até seis ao do Pará
(135), para se pagar com estas taxas aos serviços pessoais, e se compensarem os ofícios
daquelas procuradorias, donde legitimamente se infere, que se os ganhos de quatro, ou seis
Índios, eram bastantes para satisfazer os trabalhos dos procuradores, também se faz evidente
que os lucros dos pretos serão muito interessantes à Companhia.
Este juízo ou arbítrio é apoiado pela prudência, zelo e conselho do Padre Vieira, que
instantemente persuadia aquela consignação, ou distribuição de escravos gratuitos pelos
moradores do Estado, a ganho, ou com divisão dos frutos, como acima pondero; porém a custa
da fazenda real (136) e intima mais aquele experimentado, e religioso gênio, que a condição, e o
partido do contrato seja, que o morador lucre metade dos frutos, e que a outra metade se divida
em duas partes, uma para o governador, e provedor, superintendentes de tudo; e a outra para a
fazenda real satisfazer, e acudir as obrigações das folhas eclesiásticas e seculares, a que não
abrangerem os dízimos, e se pagar do empenho primeiro que será de sessenta mil cruzados,;
tais serão os avanços que se prometem daquele comércio.
Diz mais aquele experimentado e religioso gênio, que não havendo naquele Estado
moradores com cabedais, para comprar os ditos escravos, e não havendo por isso mercadores,
que os hajam de fazer conduzir àquele continente, que o único e proveitoso recurso é o da
sobredita ponderação em que se utilizam todos. Na presente conjuntura não há trabalhadores,
ou sejam pretos, ou sejam Índios, e por isso o Estado se tem deteriorado, havendo faltas de
estabelecimentos, pelo que os moradores se têm gravado com dívidas contraídas com os da
Companhia atual, e só por aquele meio, uns e outros se podem restabelecer. Ainda no caso de
135
É o § 3 das missões. 136
Assim pondera o Padre Vieira no voto e parecer que deu nesta corte, concorrendo o do duque como ele
declara e está na biblioteca régia.
84
haverem Índios, segundo o plano que hei proposto, também se faz necessário, que se
modifiquem os seus trabalhos, havendo cooperadores, e para os mesmos poderem trabalhar em
utilidade própria.
A razão dos significantes interesses, que se devem esperar do dito comércio dos
escravos, produz autoridade intrínseca por ser admissível; porém por ser advertência do referido
Vieira, que foi feliz noutros projetos, traz intrínseca autoridade. Ele aconselhou utilissimamente
no seu tempo uma Companhia ocidental, com cujos interesses restaurou Pernambuco (137), e
Angola no ano de 1641.
Será indizível o proveniente interesse que resultará daquele meio à proporção que
crescerem, e se aumentarem por indústria, e arte, as agriculturas de cacau, café, baunilha,
quina, anil, cravo, arroz, salsa, canela, e outras muitas drogas de grandes utilidades, e
granjearias; e muito mais se se introduzir a plantação de amoreiras, e criação de bicos de seda;
porque nos países americanos, por cálidos, multiplicam muito mais nas sementes, verificam-se
sem perigo, e sem trabalho, e com maior utilidade que nos países da Europa. Sendo excelente a
seda, como a da Itália, pelo que propôs com experiências certas João Opman, da cidade do Rio
de Janeiro, ao governo passado; e avultados lucros que terá a Companhia, lhe será preciso um
juiz conservador, que pode muito bem ser o juiz de fora da capital, por nunca sair dela para
correições, e poder dar provimento em todos os casos ocorrentes.
A mesma Companhia atual reconheceu quanto lhe era conveniente a prática daquele
auxílio, para seus devedores se habilitarem a pagar-lhes suas dívidas, e ao mesmo passo se
pensou, quanto era útil a todo o Estado, a mesma introdução dos escravos; que há bem poucos
anos se fez público nas capitais do mesmo Estado, que a mesma Companhia seria obrigada a
introduzir os ditos escravos, para serem vendidos sem lucro, e somente rateada a despesa,
segundo os seus lotes; para isso se afixaram editais, que enunciavam a autoridade e
determinação real. [1773/ p.170, AVH]
Com efeito se tem introduzido alguns escravos, porém como os moradores são poucos,
os que podem pagá-los; ou os mineiros os compram à mesma Companhia, ou aos mesmos
moradores, que os revendem com avanços, por não terem cabedais para menos, e aos mineiros
faz conta, ainda que seja maior o preço para a condução das canoas, e suas cargas para o
Mato Grosso, Cuiabá, e outras remotas minas. Nesta formalidade o Estado não se interessa,
porque ou há poucos escravos, ou os mineiros os reassumem; e a Companhia não quererá fiar
137
O sobredito padre Barros, liv. 1, § 19, pag. 48 e liv. 5, § 236, pag. 640.
85
tantos aos moradores, por não aumentar o risco de suas dívidas, e de falirem seus devedores,
pelo que nesta parte não é bastante a providência que se pratica.
Estas são, Senhor, as ponderações, que o meu zelo representa, na soberana presença
de Vossa Majestade, e estes os meios que podem dirigir o governo dos Índios, e a felicidade de
todo o Estado. Só assim poderão cessar os inconvenientes gravíssimos, que terão dado com
razão grande cuidado à católica piedade de Vossa Majestade, e muito principalmente depois
que este meu papel merecer, que Vossa Majestade lhe ponha as suas vistas, e por ele se
informar das funestas resultas, que acontecem ao Estado, e à igreja.
Para prova de meu zelo, do desinteresse, e da verdade com que vão demonstradas as
referidas minhas ponderações, eu não quero outra justificação, que as mesmas reflexões, á
vista dos sucessos, e das funestas conseqüências, que resultam da prática atual. Se por falta de
suficiente digestão, não forem bem demonstradas, eu responderei fielmente a qualquer dúvida,
e me justificarei com muitos documentos autênticos, que me qualificam a tenho em reserva.
Neste reino também se acham pessoas autorizadas, que podem responder pelos fatos
que tenho ponderado, consultando a experiência, que tem do país; e ajuizando pela ciência e
virtudes de que são ornadas, sobre as providências e planos que tenho recopilado. O virtuoso e
sábio prelado do Maranhão, que se acha no seu convento de Graça, impelido da sua diocese
por destino; o Dr. Giraldo de Abranches, ministro circunspecto e de muita literatura, da santa
inquisição de Évora, que serviu de vigário capitular e governador da diocese do Pará; Frei José
de Santa Úrsula, religioso capucho da província de Santo Antônio desta cidade, que foi zeloso
vigário de várias aldeias dos Índios daquele Estado; Frei João de Santo Elias, carmelita calçado
que também exercitou louvavelmente aquele ofício espiritual.
Os mesmos generais, e ministros que pelo Diretório se viam obrigados a seguir aquela
lei privativa do Estado, não deixaram pelas suas luzes, espírito de retidão, e virtudes políticas de
dizer livremente, o que é mais útil e interessante ao Estado, e o que é mais conveniente à igreja.
No caso de descobrirem outros meios mais proporcionados, para se remediarem os
danos, eu me darei por muito bem pago, contanto que se realce a glória do Onipotente, se
aumentem os interesses do reino, e se firmem os sólidos fundamentos da grandeza e gloria da
coroa de Vossa Majestade. Em execução da fiel promessa, e por obediência as pias, retas, e
reais intenções de Vossa Majestade, se sujeita com o maior acatamento, Antônio José Pestana
e Silva.