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7/30/2019 Ontologia Do Ser Social - Trabalho
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Traduo Prof. Ivo Tonet (Universidade Federal de Alagoas), a partir do texto Il Lavoro, primeiro
captulo do segundo tomo de Per una Ontologia dellEssere Sociale. Verso revista por Pablo Polese de
Queiroz, Mestrando em Sociologia pela UNICAMP-SP, a partir da edio em espanhol El Trabajo e
cotejada com o original em alemo DIE ARBEIT - Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins . (Original)
Status, 1971 - Kapitel 1 - Luchterhand, 1986..
Ontologia do ser social
O TRABALHO
G. Lukcs
O Trabalho Como Posio
Teleolgica...............................................................................................................5
O Trabalho Como Modelo da Prxis
Social......................................................................................................................46
A Relao Sujeito-Objeto no Trabalho e suas
Conseqncias.......................................................................................................95
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1. Para expor em termos ontolgicos as categorias especficas do ser social, o seu
surgimento a partir das formas de ser precedentes, de que maneira as categorias se
vinculam a essas formas, como aquelas se fundamentam nestas e se diferenciam destas,
preciso comear pela anlise do trabalho. claro que no se deve esquecer que cada grau
do ser, no seu conjunto e nos seus detalhes, constitui um complexo, isto , que tambm
suas categorias mais centrais e determinantes s podem ser concebidas no interior e a partir
da estrutura global do nvel de ser de que se trata. Um olhar muito superficial ao ser social
mostra a inextricvel imbricao em que se encontram suas categorias decisivas como o
trabalho, a linguagem, a cooperao e a diviso do trabalho; mostra que a surgem novas
relaes da conscincia com a realidade e, portanto, consigo mesma, etc. Nenhuma
categoria pode ser adequadamente compreendida se for considerada isoladamente; pense-
se, por exemplo, na fetichizao da tcnica que, depois de ter sido descoberta pelo
positivismo e de ter influenciado profundamente alguns marxistas (Bukharin), tem ainda
hoje um peso no desprezvel, no apenas entre os cegos apologetas da universalidade da
manipulao, to apreciada nos tempos atuais, mas tambm entre seus antagonistas
dogmticos, aqueles que a combatem partindo de uma tica abstrata.
2. Para desembaraar a questo devemos socorrer-nos do mtodo marxiano das
duas vias, j por ns analisado: primeiro decompor, pela via analtico-abstrativa o novo
complexo de ser, para poder, ento, a partir deste fundamento, retornar (ou seja, avanar
at) o complexo do ser social, no somente enquanto dado e portanto simplesmente
representado, mas agora tambm concebido na sua totalidade real. Neste sentido, as
tendncias de desenvolvimento das diversas espcies do ser, por ns j pesquisados, podem
trazer uma contribuio metodolgica inegvel. A cincia atual j comea a identificar
concretamente a gnese do orgnico a partir do inorgnico e nos mostra que, em
determinadas circunstncias (ar, presso atmosfrica, etc.), podem nascer complexos
extremamente primitivos nos quais j esto contidas em germe as caractersticas
fundamentais do organismo. Estas j no podem existir, por certo, sob as condies
concretas do presente; s podem ser reveladas atravs de sua fabricao experimental.
Alm do mais, a teoria da evoluo dos organismos nos mostra como gradualmente, de
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modo bastante contraditrio, com muitos becos sem sada, as categorias especficas da
reproduo orgnica alcanaram neles a supremacia. caracterstico, por exemplo, das
plantas, que toda a sua reproduo de modo geral, no sendo as excees aqui
relevantesse realize na base de um metabolismo com a natureza inorgnica. Somente no
reino animal esse intercmbio acontece pura, ou ao menos principalmente, na esfera do
orgnico; possvel que, uma vez mais, segundo regras gerais, inclusive as matrias
necessariamente inorgnicas sejam elaboradas pela primeira vez atravs de uma mediao
semelhante. O caminho da evoluo o da supremacia mxima das categorias especficas
de uma esfera vital sobre aquelas que obtm sua existncia e efetividade, de maneira
ineludvel, a partir da esfera inferior.
3. Quanto ao ser social, anlogo o lugar que a assume a vida orgnica (e por seu
intermdio, naturalmente, o mundo inorgnico). J expomos, em outro contexto, uma
orientao evolutiva semelhante no social, aquilo que Marx chamou de recuo das
barreiras naturais.1 Na verdade, aqui interditada, de antemo, qualquer experincia que
nos possa fazer retornar aos momentos de passagem da prevalncia da vida orgnica
socialidade. exatamente a total irreversibilidade do carter histrico do ser social que nos
impede de reconstruir, por meio de experincias, o hic et nunc (aqui e agora) desse estgio
de semelhante transio.
4. Deste modo, no podemos obter um conhecimento imediato e preciso dessa
transformao do ser orgnico em ser social . O mximo que se pode obter um
conhecimento post festum, uma aplicao do mtodo marxiano, segundo o qual a anatomia
do homem fornece a chave para a anatomia do macaco e para o qual, portanto, um estdio
mais primitivo pode ser reconstrudo no pensamentoa partir daquele superior, de sua
direo evolutiva, de suas tendncias de desenvolvimento. A maior aproximao nos
trazida, por exemplo, pelas escavaes, que lanam luz sobre vrias etapas de transio nos
1Nota do tradutor espanhol: Assim, por exemplo, em O capital, Marx observa a propsito das
determinaes naturais: Essa fronteira natural retrocede medida que ganha terreno a indstria I,
p.433.
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planos anatmico-fisiolgico e social (ferramentas, etc.). O salto, no entanto, permanece
um salto e, s pode ser esclarecido conceitualmente, em ltima instncia, atravs do
experimento ideal a que nos referimos.
5. preciso, pois, ter sempre claro que se trata de uma passagem que implica um
salto ontologicamente necessrio de um nvel de ser a outro, qualitativamente
diferente. A esperana da primeira gerao de darwinistas de encontrar o elo perdido
(missing link) entre o macaco e o homem devia falhar at porque as caractersticas
biolgicas s podem iluminar as etapas de passagem, no o salto em si mesmo. J
acentuamos que a descrio, em si muito precisa das diferenas psicofsicas entre o homem
e o animal no apanhar o fato ontolgico do salto (e do processo real no qual este se
realiza) enquanto no puder explicar a gnese destas peculiaridades do homem a partir do
seu ser social. Do mesmo modo como no so capazes de esclarecer a essncia destas
novas conexes as experincias psicolgicas com animais bastante evoludos,
especialmente com os macacos. Esquece-se freqentemente que nestas experincias os
animais so postos em condies de vida artificiais. Em primeiro lugar, fica eliminada a
natural insegurana da sua vida (a busca do alimento, o estado de perigo); em segundo
lugar, eles trabalham com utenslios, etc. no feitos por eles, mas fabricados e reagrupados
por quem realiza a experincia. Ora, a essncia do trabalho humano est no fato de que, em
primeiro lugar, ele nasce em meio luta pela existncia e, em segundo lugar, todos os seus
estdios so produtos da auto-atividade do homem. Por isso, certas semelhanas,
supervalorizadas, devem ser vistas com olhar extremamente crtico. O nico momento
realmente instrutivo a grande elasticidade que encontramos no comportamento dos
animais superiores; Todavia, a espcie na qual se deu o salto para o trabalho deve ter
representado um caso-limite (especial), qualitativamente ainda mais evoludo; com efeito,
as espcies hoje existentes se encontram num grau claramente muito mais baixo; a partir
deles no possvel construir nenhuma ponte at o trabalho genuno, propriamente dito.
6. Considerando que nos ocupamos do complexo concreto da sociabilidade como
forma de ser, poder-se-ia legitimamente perguntar por que, de todo esse complexo,
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colocamos o acento exatamente no trabalho e lhe atribumos um lugar to privilegiado no
processo e no salto da gnese do ser social. A resposta, em termos ontolgicos, mais
simples do que parece ser primeira vista: todas as outras categorias desta forma de ser
tm j, essencialmente, um carter puramente social; suas propriedades e seus modos de
operar somente se desdobram no ser social j constitudo; quaisquer manifestaes delas,
ainda que sejam muito primitivas, pressupem o salto como j consumado. Somente o
trabalho tem, como sua essncia ontolgica, um claro carter intermedirio: ele ,
essencialmente, uma interrelao entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgnica
(utenslio, matria-prima, objeto do trabalho, etc.) como orgnica, interrelao que pode
at estar situada em pontos determinados da srie a que nos referimos, mas antes de mais
nada assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biolgico ao ser
social. Com razo, diz Marx: Como criador de valores de uso, como trabalho til, o
trabalho, por isso, uma condio de existncia do homem, independente de todas as formas
de sociedade, eterna necessidade natural de mediao do metabolismo entre homem e
natureza e, portanto, da vida humana.2 No nos deve escandalizar a utilizao da
expresso valor de uso, considerando-a muito econmica, uma vez que se est falando da
gnese. At que no tenha entrado numa relao reflexiva com o valor de troca, o que
somente pode acontecer num estdio relativamente muito elevado, o valor de uso nada
mais designa do que um produto do trabalho que o homem pode usar apropriadamente para
a reproduo da sua prpria existncia. No trabalho esto gravadas in nuce (em germe)
todas as determinaes que, como veremos, constituem a essncia de tudo que novo no
ser social. Deste modo, o trabalho pode ser considerado o fenmeno originrio, o modelo
do ser social; parece, pois, metodologicamente vantajoso comear com a anlise do
trabalho, uma vez que o aclaramento destas determinaes proporciona j um quadro
preciso dos elementos essenciais do ser social.
7. No entanto, nunca se deve esquecer que ao considerar o trabalho deste modo
isolado, se est realizando um trabalho de abstrao. A sociabilidade, a primeira diviso do
2MARX, K (Os Economistas). O Capital, livro 1, vol. 1, p.50. SP: Abril Cultural.
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trabalho, a linguagem, etc. surgem sem dvida do trabalho, mas no numa sucesso
temporal claramente identificvel, e sim, quanto sua essncia, simultaneamente. O que
fazemos, , pois, uma abstrao sui generis; do ponto de vista metodolgico h uma
semelhana com as abstraes das quais falamos ao analisar o edifcio conceitual do
Capital de Marx. Essa abstrao comear a ser desfeita j no segundo captulo, ao
investigarmos o processo de reproduo do ser social. Esta forma de abstrao, no entanto,
no significa, como tambm em Marx, que aqueles temas tenham sido inteiramente
eliminados mesmo que de maneira provisria mas apenas que permanecem, por
assim dizer, margem, no horizonte, e que uma investigao adequada, concreta e total a
respeito deles adiada para fases mais avanadas da exposio. Para o momento, eles s
aparecem quando esto ligados diretamente ao trabalho, considerado abstratamente,
na medida em que so uma conseqncia ontolgica direta dele.
1. O Trabalho Como Posio Teleolgica
8. mrito de Engels ter colocado o trabalho no centro da humanizao do
homem. Ele investiga as condies biolgicas do novo papel que o trabalho adquire neste
salto do animal ao homem e as encontra na diferenciao de funo vital que a mo
adquire j nos macacos: A mo usada principalmente para pegar o alimento e segur-lo
com firmeza; o que j acontece com os mamferos inferiores atravs das patas dianteiras.
Com as mos, muitos macacos constroem ninhos em cima das rvores ou at, como o
chimpanz, coberturas entre os ramos para proteger-se dos temporais. Com as mos eles
pegam paus para defender-se dos seus inimigos ou pedras e frutas para bombarde-los.
Engels observa, no entanto, com a mesma preciso que, apesar destes fenmenos
preparatrios, aqui [no ser social] se d um salto, por meio do qual j no nos encontramos
dentro da esfera da vida orgnica, mas acontece em relao a esta uma superao de
princpio, qualitativa, ontolgica. Neste sentido, comparando a mo do macaco com aquela
do homem, diz: O nmero das articulaes e dos msculos, sua disposio geral so mais
ou menos os mesmos nos dois casos; mas a mo do selvagem mais atrasado pode realizar
centenas de operaes que nenhum macaco pode imitar. Nenhuma mo de macaco jamais
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produziu a mais rstica faca de pedra (ferramenta).3 Engels chama ateno para a extrema
lentido do processo atravs do qual se d esta passagem e que, no obstante, isso no lhe
retira o carter de salto. Enfrentar os problemas ontolgicos de modo sbrio e correto
significa ter sempre presente que todo salto implica uma mudana qualitativa e estrutural
do ser, onde a fase inicial certamente contm em si determinadas premissas e
possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas no podem desenvolver-se a
partir daquela numa simples e retilnea continuidade. A essncia do salto constituda por
esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e no pelo nascimento, de
forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma de ser. Logo falaremos a respeito da
questo central deste salto a propsito do trabalho. Queremos apenas lembrar que aqui
Engels, com razo, faz derivar imediatamente do trabalho a sociabilidade e a linguagem.
Estes so temas que, de acordo com o nosso programa, s trataremos mais adiante.
Apontaremos aqui apenas um momento, ou seja, o fato de que as assim chamadas
sociedades animais (e tambm, de modo geral, a diviso do trabalho no reino animal) so
diferenciaes fixadas biologicamente, como se pode ver com toda a clareza no Estado
das abelhas. Isso mostra que, qualquer que seja a origem dessa organizao, ela no tem
em si e por si nenhuma possibilidade imanente de um desenvolvimento ulterior; nada mais
que um modo particular de uma espcie animal de adaptar-se ao prprio ambiente. E
tanto menores so estas possibilidades quanto mais perfeito o funcionamento de uma tal
diviso do trabalho, quanto mais slido o seu fundamento biolgico. Ao contrrio, a
diviso gerada pelo trabalho na sociedade humana cria, como veremos, as suas prprias
condies de reproduo, no interior da qual, a simples reproduo do existente s um
caso-limite face reproduo ampliada que, ao invs, tpica. Sem dvida isto no impede
que, no decorrer do processo possam aparecer becos sem sada; suas causas, porm, sempre
sero determinadas pela estrutura da respectiva sociedade e no pela constituio biolgica
dos seus membros.
3 F. Engels, Herrn Eugen Dhring Umwlzung der Wissenschaft -- Dialektik der Natur (MEGA
Sonderausgabe) Moskau-Leningrad, l935, p. 694. (Dialtica da Natureza).
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9. A respeito da essncia do trabalho que j se tornou adequado, diz Marx:
Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma
aranha realiza operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha envergonha mais de um
arquiteto humano com a construo dos favos de suas colmias. Mas o que distingue, de
antemo, o pior arquiteto da melhor abelha que ele construiu o favo em sua cabea, antes
de constru-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no
inicio deste existiu na imaginao do trabalhador, e portanto idealmente. Ele no apenas
efetua uma transformao da forma da matria natural; realiza, ao mesmo tempo, na
matria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espcie e o modo de
sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.4 Deste modo enunciada a
categoria ontolgica central do trabalho: atravs dele realiza-se, no mbito do ser material
uma posio teleolgica que d origem a uma nova objetividade. Assim, o trabalho se torna
o modelo de toda prxis social, na qual, com efeitomesmo que atravs de mediaes s
vezes muito complexas se realizam sempre posies teleolgicas, em ltima instncia
de ordem material. claro, como veremos mais adiante, que no se deve ser esquemtico e
exagerar este carter paradigmtico do trabalho em relao ao agir humano em sociedade;
Precisamente, a considerao das diferenas sumamente importantes mostra a afinidade
essencialmente ontolgica, pois precisamente nessas diferenas se revela que o trabalho
pode servir de modelo para a compreenso das outras posies teleolgicas sociais, j que
o trabalho, de acordo com seu ser, a forma originria (Urform) dessas posies. O fato
simples de que o trabalho a realizao de uma posio teleolgica uma experincia
elementar da vida cotidiana de todos os homens, tornando-se isto um componente
imprescindvel de qualquer pensamento, desde as conversas cotidianas at a economia e a
filosofia. Nesta altura a questo no tomar partido pr ou contra o carter teleolgico do
trabalho; antes, o verdadeiro problema consiste em submeter a um exame ontolgico
autenticamente crtico a generalizao quase ilimitada e novamente: desde a
cotidianidade at o mito, a religio e a filosofiadeste fato elementar.
4K. Marx, O Capital, op.cit., p. l50.
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10. No , pois, de modo nenhum surpreendente que pensadores grandes e com
imenso interesse pela existncia (Dasein) social, como Aristteles e Hegel, tenham
apreendido com toda clareza o carter teleolgico do trabalho, e que suas anlises
estruturais precisam apenas ser ligeiramente completadas e no necessitam de nenhuma
correo de fundo para manter ainda hoje a sua validade. O problema ontolgico, porm,
que o modo de posio teleolgica no aparece como circunscrito ao trabalho nem em
Aristteles e Hegel ou mesmo num sentido mais amplo, mas ainda legtimo, prxis
humana em geral; ao invs disso, ela foi elevada a categoria cosmolgica universal. A
conseqncia disto que toda a histria da filosofia perpassada por uma relao
concorrencial, por uma insolvel antinomia entre causalidade e teleologia. conhecido o
fato de que o finalismo do mundo orgnico fascinou a tal ponto a Aristteles (cujo
pensamento foi sempre e profundamente influenciado pela ateno que ele dedicava
biologia e medicina) que o fez atribuir, no seu sistema, um lugar central teleologia
objetiva da realidade. Tambm sabido que Hegel, que percebeu o carter teleolgico do
trabalho em termos ainda mais concretos e dialticos que Aristteles, converteu, por seu
lado, a teleologia em motor da histria e, a partir disto, de toda sua concepo do mundo.
(J mencionamos alguns destes problemas no captulo sobre Hegel). Deste modo, essa
contraposio est presente ao longo de toda a histria do pensamento e das religies desde
os incios da filosofia at a harmonia preestabelecida de Leibniz.
11. A referncia que fazemos religio se funda no fato da constituio da
teleologia enquanto categoria ontolgica objetiva. Enquanto a causalidade um princpio
de movimento autnomo que repousa sobre si mesmo e que mantm este carter mesmo
quando uma srie causal tenha o seu ponto de partida num ato da conscincia, a teleologia
, por sua prpria natureza, uma categoria posta: todo processo teleolgico implica numa
finalidade e, portanto, numa conscincia que estabelece fins. Pr, neste caso, no significa
simplesmente tomar conscincia, como acontece com outras categorias especialmente
com a causalidade ao contrrio, aqui, com o ato de pr, a conscincia d incio a um
processo real, exatamente ao processo teleolgico. Assim, o pr tem, neste caso, um
ineliminvel carter ontolgico. Em conseqncia, conceber teleologicamente a natureza e
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a histria implica no somente que estas tm um fim, esto voltadas para um objetivo, mas
tambm que a sua existncia e o seu movimento no conjunto e nos detalhes devem ter um
autor consciente. O que faz nascer tais concepes de mundo, no s nos filisteus criadores
de teodicias do sculo XVIII, mas tambm em pensadores profundos e realistas como
Aristteles e Hegel, uma necessidade humana elementar e primordial: a necessidade de
dar sentido existncia, ao movimento do mundo e at aos fatos da vida individual estes
em primeiro lugar. Mesmo depois que o desenvolvimento das cincias demoliu aquela
ontologia religiosa que permitia ao princpio teleolgico tomar conta, livremente, de todo o
universo, esta necessidade primordial e elementar continuou a viver no pensamento e nos
sentimentos da vida cotidiana. E no nos referimos somente, por exemplo, a Niels Lyhne
que, sendo ateu, diante do leito do filho que morria tenta mudar, com oraes, o processo
teleolgico dirigido por Deus, mas ao fato de que esta atitude um dos mais fundamentais
motores psicolgicos da vida cotidiana em geral. N. Hartmann faz uma formulao muito
adequada deste fenmeno na sua anlise do pensamento teleolgico: Sempre h uma
tendncia a perguntarcom que finalidade isso teve que acontecer exatamente assim. Ou
ento: Qual a finalidade de eu ter que sofrer dessa maneira?, Com que finalidade tinha
que morrer to jovem?. Diante de qualquer fato que nos agride, normal fazer estas
perguntas, mesmo que exprimam apenas preocupao e desespero. Pressupe-se,
tacitamente que, por algum motivo, as coisas devam ir bem; procura-se encontrar um
sentido, uma justificativa. Como se estivesse determinado que tudo que acontece deveria
ter um sentido. E Hartmann mostra tambm como, em termos verbais e na expresso
imediata do pensamento, muitas vezes a formulao com que finalidade se transforma
em por que, sem eliminar de modo algum, em essncia, o interesse finalstico, que
continua a predominar substancialmente.5 Compreende-se facilmente que, estando estas
idias e estes sentimentos profundamente radicados na vida cotidiana, muito rara uma
ruptura decisiva com o domnio da teleologia na natureza, na vida, etc. Esta necessidade 6
5N. Hartmann, Teleologisches Denken, Berlin, l95l, p. l3
6(N. do Revisor): Existe alguma discordncia em relao traduo de Bedurfnis (necessidade) e
Notwendigkeit (carncia). Uso aqui a verso conforme a usada por Mario Duayer na verso
preliminar do capitulo A Filosofia Contempornea e a Necessidade Religiosa que compe a
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(Bedrfnis) religiosa, que se mostra to tenazmente operante na cotidianidade, tambm
marca espontaneamente setores mais amplos da vida pessoal imediata.
12. Esta uma contradio que se evidencia fortemente em Kant. Ele caracteriza
genialmente a essncia ontolgica da esfera orgnica do ser definindo a vida como uma
finalidade sem fim. Ele demole, com a sua crtica correta, a teleologia superficial das
teodicias dos seus predecessores, para os quais bastava que uma coisa propiciasse a outra
para ter como realizada uma teleologia transcendente. Deste modo, ele abre o caminho para
o conhecimento correto desta esfera do ser, uma vez que se admite que conexes
necessrias meramente causais (e portanto ao mesmo tempo acidentais) originem estruturas
do ser em cujo movimento interno (adaptao, reproduo do indivduo e da espcie)
operem legalidades que, com razo, podem ser chamadas de objetivamente finalsticas com
respeito aos complexos em questo. O prprio Kant, assim, bloqueia o caminho que o
levaria daqui at o verdadeiro problema. O faz de maneira imediatamente metodolgica
pelo fato de que, tal como costuma acontecer com ele, procura resolver
epistemologicamente problemas ontolgicos. E dado que sua teoria do conhecimento
objetivo vlido est orientada apenas para a matemtica e a fsica, ele obrigado a concluir
que sua prpria idia genial no pode ter conseqncias cognitivas para a cincia do
orgnico. Com efeito, numa passagem que ficou clebre, ele diz: humanamente absurdo
at o simples conceber um tal empreendimento, ou esperar que um dia surja um Newton,
que faa compreender at mesmo a produo de um pedacinho de grama por meio de leis
primeira parte da Ontologia do ser social. Penso que talvez a traduo menos problemtica seria o
inverso, pois dada a tradio existente na histria da filosofia em que necessidade uma categoria
que expressa algo que no se pode evitar, sendo inclusive contraposta categoria liberdade, talvez
evitaria algum tipo de confuso no sentido de que Lukcs (e por suposto, Marx) teria dito que o
homemprecisa, tem necessidade da religio para viver, e que portanto a religio persistiria existindo
mesmo numa sociedade emancipada, o que um absurdo. Pra evitar problemas, o importante aqui
ressaltar que Bedurfnis a necessidade historicamente criada e portanto supervel, enquanto
Notwendigkeit a necessidade eterna, insuprimvel, como p. ex. comer, respirar, dormir. Ao longo
da obra esse termo, bem como diversos outros, usados por Lukcs no manuscrito original em
alemo, foram colocados entre parnteses para permitir esclarecimentos.
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das atividades da vida (da sociedade), mas que se encontram numa substancial e
insuprimvel contraposio a essas atividades. Deste modo, tambm neste caso, o problema
verdadeiramente ontolgico no recebe soluo.
14. Tambm aqui, como no caso de qualquer questo ontolgica genuna, a
resposta correta tem, primeira vista, um aparente carter de banalidade, parecendo tratar-
se de um ovo de Colombo. Basta, porm, considerar mais atentamente as determinaes
contidas na soluo marxiana da teleologia do trabalho para perceber a grande capacidade
que elas tm de produzir conseqncias bastante relevantes e de liquidar definitivamente
grupos de falsos problemas. Diante da posio adotada no confronto com Darwin, fica
claro, para qualquer um que conhea o pensamento de Marx que, para ele, fora do trabalho
(da prxis humana), no h qualquer teleologia. Deste modo, a afirmao da teleologia no
trabalho algo que, para Marx, vai muito alm das tentativas de soluo propostas pelos
seus predecessores mesmo grandes como Aristteles e Hegel, uma vez que, para Marx, o
trabalho no uma das muitas formas fenomnicas da teleologia em geral, mas o nico
lugar onde se pode demonstrar ontologicamente a presena de um verdadeiro pr
teleolgico como momento efetivo da realidade material. Este reconhecimento correto da
realidade lana luz, em termos ontolgicos, sobre todo um conjunto de questes. Antes de
mais nada, a caracterstica real decisiva da teleologia, isto , o fato de que ela s pode
adquirir realidade quando for posta, recebe um fundamento simples, bvio, real: nem
preciso repetir Marx para entender que qualquer trabalho seria impossvel se ele no fosse
precedido de um tal pr, que determina o processo em todas as suas fases. Esta
caracterstica do trabalho sem dvida tambm foi bem compreendida por Aristteles e
Hegel; tanto assim que, quando tentaram interpretar teleologicamente tambm o mundo
orgnico e o curso da histria, se viram obrigados a imaginar a presena, neles, de um
sujeito responsvel por este pr necessrio (em Hegel o Esprito do mundo), resultando
disso que a realidade acabava por transformar-se inevitavelmente num mito. No entanto, o
fato de que Marx limite, com exatido e rigor, a teleologia ao trabalho ( prxis humana),
eliminando-a de todos os outros modos do ser, de modo nenhum restringe o seu
significado; pelo contrrio, a sua importncia se torna tanto maior quanto mais se toma
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conscincia de que o mais alto grau do ser que conhecemos, o social, se constitui como
grau especfico, se eleva a partir do grau em que est baseada a sua existncia, o da vida
orgnica, e se torna uma nova espcie autnoma de ser, somente porque h nele este operar
real do ato teleolgico. S lcito falar do ser social quando se compreende que a sua
gnese, o seu distinguir-se da sua prpria base, o processo de tornar-se algo autnomo, se
baseiam no trabalho, isto , na contnua realizao de posies teleolgicas.
15. Este primeiro momento, porm, tem conseqncias filosficas bastante
amplas. A histria da filosofia nos mostra que lutas intelectuais se travaram entre
causalidade e teleologia como bases categoriais da realidade e sua dinmica. Toda filosofia
de carter teleolgico, para poder operar um acordo entre o seu deus e o universo e com o
mundo do homem, era obrigada a proclamar a superioridade da teleologia sobre a
causalidade. Mesmo quando o deus dava simplesmente corda ao mecanismo do relgio,
pondo assim em movimento o sistema causal, era inevitvel uma hierarquia entre criador e
criatura e, deste modo, a prioridade da posio teleolgica. Em contraposio, todo o
materialismo pr-marxista, que negava a constituio transcendente do mundo, tambm
rejeitava a possibilidade de uma teleologia realmente efetiva. Vimos que at Kant
embora ele o faa na sua terminologia de carter epistemolgico afirmou uma
inconciliabilidade entre causalidade e teleologia. Quando, ao contrrio, como em Marx, a
teleologia tomada como categoria realmente operante apenas no trabalho, tem-se
inevitavelmente uma existncia concreta, real e necessria, entre causalidade e teleologia.
Sem dvida, estas permanecem contrapostas, mas apenas no interior de um processo real
unitrio, cuja mobilidade fundada na interao destes opostos e que, para produzir essa
interao enquanto realidade, deve transformar a causalidade, sem alterar a sua essncia,
em uma causalidade igualmente posta (pelo sujeito).
16. Para compreender com clareza como isto acontece podemos tambm cotejar as
anlises do trabalho realizadas por Aristteles e Hegel. Aristteles distingue, no trabalho,
dois componentes: o pensar (nesis) e o produzir (poisis). Atravs do primeiro posto o
fim e se buscam os meios para sua realizao, atravs do segundo o fim desse modo posto
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importncia para compreender o processo do trabalho, especialmente quanto ao seu
significado na ontologia do ser social. E exatamente aqui se revela a inseparvel ligao
daquelas categorias, causalidade e teleologia, que em si mesmas so opostas e que, quando
tomadas abstratamente, parecem excluir-se mutuamente. Com efeito, a busca dos meios
para realizar o fim no pode deixar de implicar um conhecimento objetivo acerca da
criao daquelas objetividades e dos processos cujo pr em movimento pode levar a
alcanar o fim posto. A posio do fim e a busca dos meios nada podem produzir de novo
na medida em que a realidade natural, enquanto tal, deve permanecer sendo o que em si
mesma: um sistema de complexos cuja legalidade continua a operar com total indiferena
ante a todas as aspiraes e esforos do homem. Aqui a busca tem uma dupla funo: de
um lado evidencia aquilo que se faz presente em si nos objetos em questo,
independentemente de toda conscincia; de outro lado, descobre neles aquelas novas
conexes, novas possveis funes que, quando postas em movimento, tornam efetivvel o
fim teleologicamente posto. No ser-em-si da pedra no h nenhuma inteno, e at nem
sequer um indcio da possibilidade de ser usada como faca ou como machado; mas s pode
adquirir uma tal funo de instrumento quando suas propriedades objetivamente presentes,
existentes em si sejam adequadas para entrar numa combinao tal que torne isto possvel.
E isto, no plano ontolgico, pode ser encontrado claramente j no estgio mais primitivo.
Quando o homem primitivo escolhe uma pedra para us-la , por exemplo, como machado,
deve reconhecer corretamente este nexo entre as propriedades da pedra que nas mais das
vezes tiveram uma origem casual e a possibilidade do seu uso concreto. Somente assim
ele efetua aquele ato de conscincia analisado por Aristteles e por Hartmann; e quanto
mais o trabalho se desenvolve, tanto mais evidente se torna esta situao. Embora tendo
provocado muita confuso com a ampliao do conceito de teleologia, Hegel, apesar disso,
compreendeu corretamente, desde o incio, esse carter do trabalho. Nas suas aulas de Jena
de l8O5 diz ele: Se emprega a atividade prpria da natureza elasticidade da mola, gua,
vento, com o fim de realizar, na sua existncia sensvel, algo inteiramente diverso
daquilo que ela quereria fazer, (de tal modo que) a sua ao cega transformada numa
ao orientada a um fim, colocado em contraposio com a prpria natureza [...], o
homem deixa que a natureza se desgaste, fica olhando tranqilamente, e se limita a regir o
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todo, com um leve esforo....12 Vale a pena notar que o conceito de astcia da razo, que
viria a ser to importante na filosofia da histria de Hegel, aparece aqui, na anlise do
trabalho, talvez pela primeira vez. Hegel v com preciso a dualidade deste processo: por
um lado, que a posio teleolgica meramente faz uso (aproveita) da atividade que
prpria da natureza; por outro lado, que a transformao desta atividade coloca-a em
contraposio consigo mesma. Esta atividade natural se transforma, pois, numa atividade
posta, sem que mudem, em termos ontolgico-naturais, os seus fundamentos. Deste modo,
Hegel descreveu o aspecto ontologicamente decisivo do papel da causalidade natural no
processo de trabalho: algo inteiramente novo surge dos objetos naturais, das foras da
natureza, sem que haja nenhuma transformao interna; o homem que trabalha pode inserir
as propriedades da natureza, as leis do seu movimento, em combinaes completamente
novas e atribuir-lhes funes e modos de operar completamente novos. Considerando,
porm, que isto s pode se consumar em acordo com o carter ontolgico insuprimvel das
leis da natureza, a nica transformao das categorias naturais s pode consistir no fato de
que estas em sentido ontolgico sejam postas; o seu carter de ser-posto a
mediao de sua subordinao determinante posio teleolgica, mediante a qual, ao
mesmo tempo, a partir de um entrelaamento entre causalidade e teleologia, surge um
objeto, um processo, etc. unitariamente homogneo.
18. Natureza e trabalho, meio e fim, produzem, pois, algo em si homogneo: o
processo de trabalho e, ao final, o produto do trabalho. No entanto, a superao dos
elementos heterogneos mediante o carter unitrio e homogneo do prtem limites bem
precisos. No nos referimos, porm, quela situao bvia, j esclarecida, na qual a
homogeneizao pressupe o conhecimento correto dos nexos causais no homogneos da
realidade. Se houver erro a respeito deles no processo de busca, sequer podem chegar a ser
em sentido ontolgico postos; eles continuam a operar de modo natural, e a posio
teleolgica se cancela, uma vez que, no sendo realizvel, se v reduzida a um fato de
conscincia necessariamente impotente diante da natureza. Aqui se pode apreender de
12G.F.W. Hegel, Jenenser Realphilosophie, Leipzig, l93l, II, pp. l98-l99.
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maneira palpvel a diferena entre o pr em sentido ontolgico e em sentido
epistemolgico. Epistemologicamente, uma posio que falha e erra o objeto permanece
sendo uma posio, ainda que tenha que expressar o juzo valorativo acerca do carter falso
ou eventualmente apenas incompleto de dita posio. J o pr ontolgico da causalidade no
complexo constitudo por uma posio teleolgica deve apanhar corretamente o seu objeto,
seno no nesse contextouma posio. preciso, porm, delimitar dialeticamente
isto que afirmamos para que, dada a exagerao, no se converta numa inverdade. Uma vez
que cada objeto natural, cada processo natural representa uma infinidade intensiva de
propriedades, de interrelaes com o mundo que o circunda, etc., o que dissemos se refere
apenas queles momentos da infinidade intensiva que, para a posio teleolgica, tm uma
importncia positiva ou negativa. Se para trabalhar fosse necessrio um conhecimento
mesmo que somente aproximado (para no falar de um conhecimento em um sentido
consciente) desta infinidade intensiva enquanto tal, o trabalho jamais poderia ter surgido
nas fases iniciais da observao da natureza. Este fato est sendo realado no apenas
porque a est presente a possibilidade objetiva de um desenvolvimento ilimitado do
trabalho, mas tambm porque dessa problemtica emerge com clareza que um pr correto,
um pr que apanhe com aquela adequao requerida pela finalidade concreta os fatores
causais necessrios para o fim em questo, tem a possibilidade de ser realizado com
sucesso tambm nos casos em que as representaes gerais acerca dos objetos, processos,
conexes, etc. da natureza ainda so completamente inadequados enquanto conhecimentos
da natureza em sua totalidade. Esta dialtica entre correo rigorosa no campo restrito da
posio teleolgica e um possvel erro, at bastante amplo, quanto compreenso integral
do ser-em-si da natureza, tem uma significao de vasto alcance, da qual falaremos
detalhadamente mais adiante.
19. A homogeneizao entre fim e meio, da qual falamos acima, deve ser ainda
melhor delimitada e dessa maneira concretizada dialeticamente de uma outra perspectiva.
J a dupla socializao da posio do fim que se origina em uma necessidade social e,
assim, est chamada a satisfazer tal necessidade, enquanto o carter natural dos substratos
dos meios que a realizam conduz a prxis at um mbito e uma atividade constitudos de
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outra forma cria uma heterogeneidade de princpio entre fim e meios. Sua superao,
mediante a homogeneizao do pr esconde, como acabamos de ver, uma problemtica
importante, que demonstra que a simples subordinao dos meios ao fim no to simples
como parece imediatamente, primeira vista. No se deve perder de vista o simples fato de
que a realizabilidade ou fracasso da posio da finalidade depende absolutamente de at
que ponto se tenha conseguido, atravs da busca dos meios, transformar a causalidade
natural em uma causalidade posta dito em termos ontolgicos. A posio da finalidade
tem origem em uma necessidade sociohumana; mas, para que ela se torne uma autntica
posio de um fim, necessrio que a busca dos meios (isto , o conhecimento da
natureza) tenha chegado a um certo nvel, adequado a esses meios; e quando tal nvel ainda
no foi alcanado, a finalidade permanece um mero projeto utpico, uma espcie de sonho,
como, por exemplo, o vo foi um sonho desde caro at Leonardo e at um bom tempo
depois. Em suma, o ponto no qual o trabalho se liga ao pensamento cientfico e ao seu
desenvolvimento , do ponto de vista da ontologia do ser social, exatamente aquele campo
por ns designado como busca dos meios. J fizemos aluso ao princpio do novo que se
encontra at na mais primitiva teleologia do trabalho. Agora podemos agregar que a
ininterrupta produo do novo, mediante a qual aparece no trabalho, poderia dizer-se, a
categoria regional13 do social sua primeira clara distino e elevao acima da mera
condio natural est contida neste modo de surgimento e evoluo. A conseqncia
disto que em cada processo de trabalho concreto e singular o fim regula e domina os
meios. Mas quando consideramos os processos de trabalho na sua continuidade e evoluo
histrica no interior dos complexos reais do ser social, surge uma certa inverso nesta
relao hierrquica, a qual, embora no sendo certamente absoluta e total de extrema
importncia para o desenvolvimento da sociedade e da humanidade. Uma vez que a
pesquisa da natureza, indispensvel ao trabalho, est, antes de mais nada, concentrada na
preparao dos meios, so estes os principais portadores da garantia social de que os
resultados dos processos de trabalho permaneam fixados, que haver tanto uma
continuidade como, especialmente, um aperfeioamento na experincia laboral. por isso
13N. do R: Gebietskategorie. No manuscrito tambm se poderia ler Geburtskategorie (categoria
nativa ou genticade nascimento).
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que o conhecimento mais adequado que fundamenta os meios (utenslios, etc.) , muitas
vezes, para o ser social, mais importante do que a satisfao daquela necessidade
(finalidade). J Hegel tinha reconhecido corretamente essa conexo. A propsito dela ele
escreve na sua Lgica: O meio pois o termo mdio exterior do silogismo que a
realizao do fim; Por conseguinte a racionalidade se manifesta nele como o que se
conserva nesse outro exterior, e se conserva precisamente por intermdio dessa
exterioridade. Portanto o meio algo superioraos fins finitos da finalidade externa; o
arado mais nobre que os usos e benefcios que se pode atingir por seu intermdio e que
representam os fins. O instrumento de trabalho se conserva, enquanto as satisfaes
imediatas perecem e so esquecidas. Em seus utenslios o homem possui seu poder sobre a
natureza exterior, ainda que permanea submetido a elapara os seus objetivos14.
20. J falamos disso no captulo sobre Hegel, no entanto no nos parece suprfluo
mencion-lo de novo aqui porque a esto expressos com clareza alguns momentos muito
importantes deste nexo. Em primeiro lugar, Hegel sublinha de modo geral corretamente
a durao mais longa dos meios relativamente aos fins imediatos. claro que tal anttese
no se apresenta, na efetividade, to rispidamente (schroff) como Hegel coloca. As
satisfaes imediatas perecem, sem dvida, e so esquecidas, mas a satisfao das
necessidades, considerada na sociedade como um todo, tem tambm persistncia e
continuidade. Se recordamos a relao recproca entre produo e consumo delineada no
captulo sobre Marx, podemos ver que o consumo no apenas mantm e reproduz a
produo mas tambm exerce, por sua vez, um certo influxo (Einflu) sobre a produo.
claro que nessa interao, como vimos, a produo (aqui: os meios na posio teleolgica)
o momento predominante (bergreifende Moment), mas a contraposio hegeliana, com a
sua confrontao excessivamente rude, deixa na sombra parte da sua real significao
social. Em segundo lugar, realado, nos meios, e de novo corretamente, o momento do
predomnio sobre a natureza exterior, com o esclarecimento dialtico, tambm correto,
de que ainda quando executa a posio do fim, o homem lhe permanece submetido. Aqui a
14G.F.W. Hegel, Wissenschaftt der Logik, III, 2, 3, C. (Ciencia de la Lgica; trad. Para o espaol
de A. e R. Mondolfo, l993, Solar; II, p.461).
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exposio hegeliana deve ser concretizada (precisada), uma vez que a sujeio certamente
se refere, no imediato, natureza, como j vimos, o homem s pode por aqueles fins
cujos meios adequados sua efetivao realmente domina ainda que, em ltima anlise,
se trate de fato de um desenvolvimento social, de um complexo, que Marx chama de
intercmbio orgnico do homem, da sociedade, com a natureza, no qual no h dvida que
o momento da sociedade (gesellschaftliche Moment) muitas vezes (vielfach) deve ser o
fator predominante. E com isto, de fato, a superioridade do meio sublinhada ainda com
maior fora do que no prprio Hegel. Em terceiro lugar, como conseqncia desse estado
de coisas, o meio, o utenslio, a chave mais importante para conhecer aquelas etapas do
desenvolvimento da humanidade a respeito das quais no temos nenhum outro documento.
Por trs deste problema gnosiolgico se oculta, como sempre, um problema ontolgico. A
partir das ferramentas (que as escavaes descobrem, muitas vezes como documentos
quase nicos de um perodo completamente desaparecido) podemos obter, a respeito da
vida concreta das pessoas que os utilizaram, conhecimentos muito maiores do que os que
imediatamente parecem esconder-se neles. A razo disso reside em que um utenslio pode,
com uma anlise correta, no s revelar a histria do prprio utenslio, mas tambm abrir
perspectivas amplas sobre os modos de viver, e at sobre a viso de mundo, etc., daqueles
que os usaram. Mais adiante tambm abordaremos este problema; aqui nos detemos apenas
na questo social, muitssimo geral, do afastamento das barreiras naturais do modo como
foi descrito com preciso por Gordon Childe quando fala da fabricao dos vasos no
perodo por ele chamado de revoluo neoltica. Antes de mais nada, Childe acentua o
ponto central, a diferena de princpio entre o processo de trabalho ligado fabricao dos
vasos e aquele utilizado na feitura de instrumentos de pedra ou de osso. O homem, escreve
ele, quando fazia um instrumento de pedra ou de osso, era sempre limitado pela forma e
pela proporo do material originrio: s podia tirar fragmentos. Nenhuma destas
limitaes freava a atividade do oleiro, que podia modelar a argila a seu gosto e desejo e
trabalhar na sua obra sem nenhum medo quanto solidez das junes. Deste modo,
partindo de um ponto importante tornada clara a diferena entre as duas pocas, vale
dizer, iluminada a direo do desenvolvimento humano, que se livra da limitao do
material originrio da natureza e confere aos objetos de uso exatamente aquele carter que
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corresponde s necessidades sociais humanas. Childe tambm percebe o carter gradual
deste processo de afastamento das barreiras naturais. A nova forma j no est limitada
pelo material utilizado, mas mesmo assim tem uma origem a partir de condies bastante
semelhantes: Deste modo, os vasos mais antigos eram produzidos como imitaes bvias
de recipientes j conhecidos antes produzidos com outros materiais: cabaa, membrana,
bexiga, pele ou vime, ou que eram, inclusive, tirados de crnios humanos. 15
21. Em quarto lugar preciso ainda sublinhar que a busca dos objetos e processos
na natureza, que precede a posio da causalidade na criao dos meios, consiste (ainda
quando durante muito tempo no seja reconhecida conscientemente) em atos cognitivos
reais, e por isso traz em essncia, objetivamente, o incio, a gnese da cincia. Tambm
neste caso vale a afirmao de Marx: No o sabem, mas o fazem (Sie wissen das nicht,
aber sie tun es). Discutiremos mais adiante, neste mesmo captulo, as conseqncias de
vasto alcance das conexes que surgem desta maneira. Aqui s podemos observar
provisoriamente que qualquer conhecimento e utilizao dos nexos causais vale dizer,
qualquer posio de uma causalidade real sempre se insere no trabalho como meio para
um nico fim, mas tem objetivamente a propriedade de ser aplicvel a outro distinto, e at
a algo que primeira vista parea completamente heterogneo. Ainda que isso, desde
muito tempo, se tenha tornado consciente de maneira puramente prtica, em cada
utilizao que teve xito em um novo campo se consumam de fato abstraes corretas que,
em suas estruturas internas, j possuem algumas importantes caractersticas do pensamento
cientfico. A prpria histria precedente das cincias (embora aborde muito raramente este
problema com plena conscincia) faz referncia a numerosos casos nos quais leis gerais,
extremamente abstratas, se originaram da busca referente a necessidades prticas e ao
melhor modo de satisfaz-las, ou seja, a partir da tentativa de encontrar os meios mais
adequados para trabalhar. Mas mesmo sem levar isto em conta, a histria mostra exemplos
nos quais as aquisies do trabalho, elevadas a um nvel maior de abstrao, e j vimos
como tais generalizaes se verificam obrigatoriamente no processo de trabalho podem
15V. Gordon Childe, Man Makes Himself, London, l937, p. lO5 (O homem cria a si mesmo).
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desenvolver-se e tornar-se fundamento de uma abordagem j puramente cientfica da
natureza. Uma tal gnese da geometria , por exemplo, universalmente conhecida. Aqui
no lugar para entrar em detalhes acerca deste complexo de problemas; ser suficiente
citar um caso interessante relativo astronomia da China antiga, a que Bernal se refere
baseado em estudos efetuados por Needham. Somente depois da inveno da roda, diz
Bernal, foi possvel imitar com exatido os movimentos rotatrios do cu ao redor dos
plos. Parece que a astronomia chinesa se originou desta idia de rotao. At aquele
momento o mundo celestial tinha sido tratado semelhana do nosso 16. , portanto, a partir
da tendncia intrnseca busca dos meios durante a preparao e execuo do processo de
trabalho que se desenvolve o pensamento cientificamente orientado e logo se originam as
diferentes cincias naturais. Naturalmente no se trata de uma gnese nica de um novo
campo de atividade a partir do anterior; na realidade, esta gnese continuou a repetir-se,
ainda que de formas muito diversas, atravs de toda a histria da cincia at hoje. As
representaes ideais que esto na base das hipteses csmicas, fsicas, etc. esto em
geral inconscientemente codeterminadas pelas representaes ontolgicas da respectiva
cotidianidade, que, por sua vez, se ligam estreitamente s experincias, aos mtodos, aos
resultados do trabalho naquele momento. Algumas grandes mudanas cientficas tiveram
suas razes em vises de mundo que pertenciam vida cotidiana (do trabalho), as quais,
tendo surgido pouco a pouco, num determinado momento apareceram como radical e
qualitativamente novas. A disposio hoje dominante, onde o trabalho preparatrio para a
indstria fornecido por cincias j diferenciadas e amplamente organizadas, faz que
muitos no percebam esta situao, mas no altera, essencialmente, sua evidncia no plano
ontolgico; seria inclusive interessante considerar mais de perto, em termos de crtica
ontolgica, as influncias deste mecanismo preparatrio sobre a cincia.
22. A descrio do trabalho, tal como a apresentamos at aqui, embora ainda
incompleta, j indica que com ele surge na ontologia do ser social uma categoria
qualitativamente nova com relao s precedentes formas de ser tanto do inorgnico como
16J.D. Bernal, Science in History, London, l957, p. 84, (Histria da Cincia).
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do orgnico. Esta novidade consiste na realizao da posio teleolgica como um produto
adequado, ideado e desejado. Na natureza existem apenas realidades e uma ininterrupta
transformao das formas materiais, um contnuo tornar-se-outro (Anderssein).
Precisamente a teoria marxiana do trabalho como a nica forma existente de um ser
teleologicamente produzido funda, nesses termos, pela primeira vez a especificidade do ser
social. Com efeito, se fossem justas as diversas teorias idealistas ou religiosas que afirmam
o domnio universal do finalismo (da teleologia), ento tal diferena, em ltima instncia,
no existiria. Toda pedra, toda mosca seriam uma realizao do trabalho de deus, do
esprito universal, etc., do mesmo modo como as realizaes, que acabamos de descrever,
prprias das posies teleolgicas do homem. Conseqentemente, deveria desaparecer a
diferena ontologicamente decisiva entre sociedade e natureza. Todavia, se as filosofias
idealistas pretendem estabelecer um dualismo, elas colocam em confronto,
preferencialmente as funes da conscincia em aparncia puramente espirituais, que
se encontram (tambm em aparncia) inteiramente separadas da realidade material, com o
mundo do ser meramente material. No surpreendente, ento, que se desvalorize o
terreno da autntica atividade do homem, ou seja, o seu intercmbio orgnico com a
natureza, no qual ele se origina, mas que domina cada vez mais mediante sua prxis e, em
especial, mediante o seu trabalho; No deve surpreender que a nica atividade considerada
autenticamente humana caia ontologicamente do cu como algo pronto e acabado, e seja
representada como supra-histrica, atemporal, como mundo do dever-ser (Sollen)
contraposto ao ser. (Falaremos em breve da gnese real do dever-ser a partir da teleologia
do trabalho). As contradies entre essa concepo e os resultados ontolgicos da cincia
moderna so to evidentes que no merecem um exame mais detalhado. Tente-se, por
exemplo, colocar ontologicamente em harmonia o ser-lanado no mundo (Geworfenheit)
do qual fala o existencialismo com aquilo que a cincia diz a respeito da gnese do homem.
Pelo contrrio, a realizao de finalidades produz tanto a vinculao gentica quanto a
diferena e a anttese ontologicamente essenciais: a atividade do ser natural Homem,
baseado no ser inorgnico e orgnico deles originado, permite que surja um nvel
particularmente novo do ser, mais complicado e mais complexo, precisamente o ser social.
(O fato de que importantes pensadores tenham refletido, j na antigidade, acerca do
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carter especfico da prxis e da realizao de algo novo consumada dentro dela, e que
tenham reconhecido com grande perspiccia algumas das suas determinaes, no altera
essencialmente em nada essa situao geral).
23. A realizao como categoria da nova forma de ser mostra, ao mesmo tempo,
uma importante conseqncia: a conscincia humana, com o trabalho, deixa de ser, em
sentido ontolgico, um epifenmeno. verdade que a conscincia dos animais,
especialmente dos mais evoludos, parece um fato inegvel, todavia, ela um momento
parcial de carter dbil e auxiliarde seu processo de reproduo, no qual se encontra
biologicamente fundado e que se desenvolve segundo as leis da biologia. E, sem dvida,
no apenas na reproduo filogentica, onde mais do que evidente que tal reproduo se
desenvolve (de acordo com leis que at hoje ainda no compreendemos cientificamente e
que devemos acolher apenas como fatos ontolgicos) sem nenhum tipo de interveno da
conscincia; mas tambm no processo de reproduo ontogentica. Com efeito, s
comeamos a compreender plenamente este ltimo quando comeamos a conceber que a
conscincia animal um produto das diferenciaes biolgicas, da crescente complexidade
dos organismos. As interrelaes dos organismos primitivos com o seu ambiente
desenvolvem-se de modo preponderante sobre a base de legalidades biofsicas e
bioqumicas. Quanto mais um organismo animal evolui e se complexifica, tanto mais tem
necessidade de rgos refinados e diferenciados a fim de manter-se em interrelao com o
seu ambiente, para poder reproduzir-se. No aqui o local para expor, mesmo
aproximativamente, esse desenvolvimento (nem o autor se julga competente para isso);
cabe apenas assinalar que a gradual evoluo da conscincia animal, a partir de reaes
biofsicas e bioqumicas, passando pelos estmulos e reflexos transmitidos pelos nervos, at
o mais alto nvel a que chegou, permanece sempre limitada ao mbito da reproduo
biolgica. Decerto, esse desenvolvimento mostra uma elasticidade cada vez maior nas
reaes com o ambiente externo e com suas eventuais modificaes e isto pode ser visto
claramente em certos animais domsticos ou em experimentos com macacos. Todavia, no
se deve esquecercomo j dissemos que, nesses casos, de um lado os animais dispem
de um ambiente de segurana que no existe normalmente e, por outro lado, que aqui a
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iniciativa, a direo, o fornecimento dos instrumentos, etc. partem sempre do homem e
jamais dos prprios animais. Na natureza, a conscincia animal jamais vai alm de um
melhor servio prestado existncia biolgica e reproduo e por isso, considerada
ontologicamente, um epifenmeno do ser orgnico.
24. Somente no trabalho, na posio dos fins e dos meios de sua realizao,
consegue a conscincia com um ato dirigido por ela mesma, mediante a posio
teleolgica, ir alm da mera adaptao ao ambiente na qual se inclui tambm aquelas
atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza, de modo involuntrio
e executa na prpria natureza modificaes que, para ela, seriam impossveis e at mesmo
inconcebveis. Na medida em que a realizao de uma finalidade torna-se um princpio
transformador e inovador da natureza, a conscincia (que impulsionou e orientou tal
processo) pode ser, no plano ontolgico, algo mais que um epifenmeno. Mediante essa
constatao se distingue o materialismo dialtico do materialismo mecanicista. Com efeito,
este ltimo reconhece como realidade objetiva to somente a natureza em sua legalidade.
Marx, nas suas famosas Teses sobre Feuerbach, distingue com grande preciso o novo
materialismo daquele antigo: A lacuna principal de todo materialismo at agora (incluso o
de Feuerbach) que o concreto, a efetividade, o sensvel, s apreendido sob a forma de
objeto ou da intuio; mas no como atividade humana sensvel, como prxis; no
subjetivamente. Da o lado ativo ter sido desenvolvido abstratamente, em oposio ao
materialismo, pelo idealismo que, naturalmente, no conhece a atividade real, sensvel,
enquanto tal Feuerbach quer objetos sensveis efetivamente distintos dos objetos do
pensamento, mas ele no apreende a prpria atividade humana como atividade objetiva. E
Marx acrescenta, claramente, mais adiante, que a realidade do pensamento, o carter no
mais epifenomnico da conscincia s pode ser apreendido e demonstrado na prxis: A
discusso acerca da realidade ou no-realidade do pensamento que da prxis isolado,
uma questo puramente escolstica.17 A nossa afirmao de que o trabalho constitui a
forma originria da prxis corresponde inteiramente ao esprito destas afirmaes de Marx;
17MEGA, I, 5, pp. 533-534 (N. do Revisor: traduo feita a partir da edio da Ideologia Alem da
Boitempo, 2009, com modificaes prprias feitas a partir de sugestes de J. Chasin).
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tambm Engels, muitos anos mais tarde, viu no trabalho o motor decisivo do processo de
humanizao do homem. Decerto a nossa tese no foi at agora muito mais do que uma
simples declarao, ainda que a sua simples formulao correta j contenha e at esclarea
muitas determinaes decisivas deste complexo objetivo. evidente, contudo, que essa
verdade s pode ser revelada e demonstrar sua validade enquanto tal quando for explicitada
da maneira mais completa possvel. De qualquer modo, o simples fato de que realizaes
de uma finalidade (ou seja, produtos da prxis humana no trabalho) ingressem no mundo
da realidade, como formas novas de objetividade no derivadas da natureza, mas que
precisamente enquanto tais constituem realidades tanto quanto os produtos da natureza,
este simples fato j suficiente, nesse estgio inicial, para comprovar a veracidade da
nossa tese.
25. Neste captulo e nos sucessivos, voltaremos mais vezes a referir-nos aos modos
concretos de manifestar-se e de se exprimir da conscincia, bem como ao concreto modo
de ser de sua constituio j no mais epifenomnica. Aqui s podemos fazer aluso e
neste momento de modo inteiramente abstrato ao problema fundamental. Temos aqui a
indissocivel interdependncia de dois atos que so, em si, mutuamente heterogneos, os
quais, porm, nesta nova vinculao ontolgica, constituem o verdadeiro complexo real do
trabalho e, como veremos, perfazem o fundamento ontolgico da prxis social, e at do ser
social em geral. Os dois atos heterogneos a que nos referimos so: de um lado, o reflexo
mais exato possvel da realidade considerada e, de outro lado, a posio, com isso
vinculada, daquelas cadeias causais que, como sabemos, so indispensveis para realizar a
posio teleolgica. (Esta primeira descrio do fenmeno ir mostrar que dois modos de
considerar a realidade que so heterogneos entre si formam a base da especificidade
ontolgica do ser social, cada um sua maneira e em sua inevitvel vinculao. Se
iniciarmos agora a nossa anlise com o reflexo, isto imediatamente mostra uma
demarcao precisa entre objetos que existem independentemente do sujeito, e sujeitos que
refletem estes objetos com um grau maior ou menor de aproximao, por meio de atos de
conscincia, para apropriar-se deles intelectualmente). Essa separao tornada consciente
entre sujeito e objeto um produto necessrio do processo de trabalho e, ao mesmo tempo,
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26. Mais adiante, falaremos extensamente sobre as conseqncias desta linha de
desenvolvimento do homem mediante o trabalho. Aqui nos limitaremos, para aclarar bem
essa estrutura fundamental que surge a partir do trabalho, a indicar que no reflexo da
realidade19 enquanto condio para o fim e os meios do trabalho, se consuma uma
separao, um afastamento do homem do seu ambiente, um distanciamento que se
manifesta claramente no confrontamento entre sujeito e objeto. No reflexo da realidade a
reproduo se separa da realidade reproduzida, coagulando-se numa realidade prpria
dentro da conscincia. Pusemos entre aspas a palavra realidade, porque, na conscincia, ela
apenas reproduzida; nasce uma nova forma de objetividade, mas no uma realidade, e
exatamente em sentido ontolgico no possvel que a reproduo seja da mesma
natureza daquilo que ela reproduz e muito menos idntica a ela. Pelo contrrio. No plano
ontolgico o ser social se subdivide em dois momentos heterogneos, que no s se
contrapem entre si enquanto heterogneos, do ponto de vista do ser, mas so at mesmo
opostos: o ser e seu reflexo na conscincia.
27. Essa dualidade um fato fundamental do ser social. Em comparao com este,
os graus de ser precedentes so rigidamente unitrios. O referimento ininterrupto e
inevitvel ao ser que estabelece o reflexo, os efeitos que este tem sobre aquele j no
trabalho, e ainda mais marcantemente em mediaes mais amplas (as quais s poderemos
expor mais adiante), o fato de que o reflexo determinado pelo seu objeto, etc. tudo isto
jamais supera aquela dualidade de fundo. por meio desta dualidade que o homem sai do
mundo animal. Quando Pavlov descreve o segundo sistema de sinais, que prprio
somente do homem, afirma corretamente que somente este sistema pode afastar-se da
realidade, podendo reproduzi-la de forma errnea. Isto apenas possvel porque o reflexo
se dirige totalidade do objeto (que independente da conscincia e que sempre
intensivamente infinito), procurando capt-lo no seu ser-em-si e, exatamente por causa da
distncia imposta pelo prprio reflexo e necessria para realizar essa tentativa, pode errar.
E isto obviamente vlido no apenas para os estgios iniciais do reflexo. Mesmo quando
19N. do R: A palavra usada em todo esse trecho Wirklichkeit, talvez melhor traduzida por
efetividade.
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j surgiram construes auxiliares para apreender a realidade atravs do reflexo, que
possuem um carter mais complexo e que se encontram homogeneamente fechadas em si,
como a matemtica, a geometria, a lgica, etc., permanece intacta a possibilidade de errar
por causa do distanciamento; certo que algumas possibilidades iniciais de erro esto
relativamente excludas, no entanto, comparecem outras mais complexas, trazidas
exatamente pela distncia maior criada pelos sistemas de mediao. De outra parte, este
processo de objetivao e de distanciamento tem como resultado que as reprodues jamais
possam ser cpias fotogrficas mecanicamente fiis realidade. Esto sempre
determinadas pelas posies de finalidades, vale dizer, em termos genticos, pela
reproduo social da vida, na sua origem pelo trabalho. Na minha Esttica, ao analisar o
pensamento cotidiano, realcei esta orientao concretamente teleolgica do reflexo. Poder-
se-ia dizer que aqui se deve buscar a fonte da sua fecundidade, da sua contnua tendncia a
descobrir coisas novas, enquanto a objetivao a que nos referimos age como um corretivo
no sentido oposto. O resultado, ento, como acontece sempre nos complexos, fruto de
uma interao entre opostos. At aqui, no entanto, ainda no demos o passo decisivo para
entender a relao ontolgica entre reflexo e realidade. O reflexo aqui tem uma natureza
peculiar contraditria: por um lado, ele o exato oposto de qualquer ser, precisamente
porque pelo fato de ser reflexo no um ser; por outro lado e ao mesmo tempo, o meio
atravs do qual se constituem novas objetividades no ser social, para a reproduo deste no
mesmo nvel ou em um nvel mais alto. Atravs do ser social a conscincia que reflete a
realidade adquire um certo carter de possibilidade (Mglichkeit). Como sabemos,
Aristteles afirmava que um arquiteto, mesmo quando no constri, permanece um
arquiteto por causa da possibilidade (dynamis),enquanto Hartmann citava o desempregado,
no qual esta possibilidade revela o seu carter de no-realidade, uma vez que ele no est
em condies de trabalhar. O exemplo de Hartmann muito instrutivo j que mostra como
ele, baseado em idias unilaterais e restritas, no se d conta do problema real que surge
neste momento. Com efeito, no h dvida que, durante uma crise econmica, muitos
trabalhadores no tm nenhuma possibilidade fatdica de obter trabalho; mas tambm
fora de dvida e aqui est a profunda intuio da verdade contida na concepo
aristotlica da dynamis que esses trabalhadores tem a capacidade de, a qualquer
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momento, dependendo de uma conjuntura favorvel, retomar o seu anterior trabalho. De
que outra maneira, pois, pode ser caracterizada, do ponto de vista de uma ontologia do ser
social, essa sua qualidade a no ser dizendo que ele, por causa de sua educao, da vida
passada, das suas experincias, etc., mesmo estando desocupado, permanece devido sua
dynamis um trabalhador? Com isso no temos, como teme Hartmann, uma existncia
espectral da possibilidade, uma vez que o desempregado (dada a impossibilidade real de
encontrar trabalho) um trabalhador to real e potencial, como quando realiza a sua
aspirao a encontrar trabalho. O que importa compreender que Aristteles, no seu vasto,
profundo, universal e multilateral esforo em compreender filosoficamente a realidade em
seu conjunto, percebe fenmenos perante os quais Hartmann, enredado em preconceitos
lgico-epistemolgicos, embora compreenda corretamente determinados problemas, fica
confuso. O fato de que em Aristteles, devido s suas falsas idias sobre o carter
teleolgico da realidade no social e da sociedade no seu conjunto, essa categoria da
possibilidade muitas vezes produza confuses, no muda a essncia da questo, desde que
se saiba distinguir aquilo que ontologicamente real das meras projees em forma de ser
que no foram adequadamente postas teleologicamente. Com certeza se poderia afirmar
que as capacidades adquiridas de trabalhar permanecem propriedades do trabalhador
desempregado do mesmo modo que outras propriedades de qualquer ser, por exemplo na
natureza inorgnica, muitas vezes no se tornam efetivamente operativas durante grandes
lapsos de tempo, e no entanto continuam sendo propriedades do ser em questo. J nos
referimos antes, muitas vezes, conexo entre propriedade e possibilidade. Isso seria,
possivelmente, suficiente para rebater as posies de Hartmann, no porm para
compreender a peculiaridade especfica da possibilidade como ela se revela neste caso e
que era o objetivo da concepo aristotlica da dynamis. O mais interessante que se pode
encontrar um bom ponto de apoio no prprio Hartmann. Como j recordamos, ao analisar o
ser biolgico ele afirmava que a capacidade de adaptao de um organismo depende da sua
labilidade, como ele chama esta propriedade. O fato de que Hartmann, ao discutir tais
questes, no toque no problema da possibilidade no tem nenhuma importncia. claro
que tambm poderamos dizer que essa caracterstica dos organismos uma propriedade
deles e desta maneira encerrar aqui o problema da possibilidade. Mas deste modo
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estaremos rodeando o cerne da questo que nos interessa. Aqui no se trata de dizer que tal
labilidade no seja cognoscvel por antecipao e, pelo contrrio, somente possa ser
conhecida post festum. De fato, indagar se alguma coisa seja ou no cognoscvel em
sentido ontolgico indiferente no que diz respeito pergunta sobre se se trata de algo
que existe. A realidade ontolgica da simultaneidade de dois acontecimentos nada tem a
ver com a questo de se ns podemos medir tal simultaneidade.
28. A nossa resposta a esse problema ontolgico que o reflexo, considerado
precisamente no sentido ontolgico, em si mesmo no um ser, e portanto, sequer uma
existncia espectral, simplesmente porque no ser. E no entanto ele a condio
decisiva para a colocao de sries causais e isto em sentido ontolgico e no
epistemolgico. Ora, a concepo aristotlica da dynamis procura iluminar, na sua
racionalidade dialtica, exatamente este paradoxo ontolgico. Aristteles identifica muito
bem a estrutura ontolgica da posio teleolgica quando, amarrando indissociavelmente a
essncia desta com o conceito de dynamis, diz que a potncia (dynamis) a faculdade de
levar a bom termo determinada coisa e de execut-la de acordo com a prpria inteno e
logo depois concretiza assim esta determinao: Com efeito, precisamente em virtude
deste princpio, efetivamente est o poder, para um paciente, de sofrer alguma alterao,
assim, rapidamente dizemos que ele tem a potncia de sofr-la, tanto no caso em que ele
possa sofrer alguma alterao qualquer, mas apenas aquela que tende para o melhor;
(Potncia tambm se chama) a faculdade de levar a bom termo determinada coisa ou de
execut-la de acordo com aquilo que se pretende, livremente: com efeito, s vezes, quando
vemos que certas pessoas caminham ou falam, mas no realizam bem estas aes nem
como elas mesmas quereriam, dizemos que elas no tm a potncia ou a capacidade de
falar ou de andar 20. Aristteles v com clareza o carter ontolgico paradoxal desta
situao; ele afirma que, relativamente substncia, o ato anterior potncia no
sentido fundamental pleno; e indica resolutamente o problema modal que est a contido:
Toda potncia , ao mesmo tempo, potncia de contrrios, aquilo que no tem a potncia
20Aristteles, Metaphysik, cit, l2, pp. l22-l23. Livro D, cap.12.
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de existir no pode ser propriedade de coisa alguma, mas tudo o que potncia tambm
pode no se transformar em ato. Conseqentemente, aquilo que tem a potncia de ser pode
ser e tambm no ser; da que seja potncia de ser e de no ser, e possvel que o que no
tm a potncia de ser, o seja 21.
29. A partir daqui, nos perderamos no labirinto de uma escolstica estril se
pedssemos a Aristteles para deduzir com uma lgica implacvel a necessidade
(Notwendigkeit)dessa constelao que ele to bem descreveu. Tratando-se de uma questo
eminente e puramente ontolgica, isto se mostra, por princpio, impossvel. Tais confuses
e, em conseqncia, pseudo-dedues, esto continuamente presentes em Aristteles,
quando ele quer ampliar para alm da prxis humana aquilo que ele desvendou, nela, de
forma to correta. Assim como Aristteles tinha diante de si, tambm ns temos em nossa
frente, de forma claramente analisvel, o fenmeno do trabalho, na sua originalidade de
categoria central, dinmico-complexa, de um novo grau do ser; preciso trazer luz, com
uma anlise ontolgica adequada, esta estrutura dinmica enquanto complexo, tornando
assim compreensvelde acordo com o modelo marxiano que v na anatomia do homem a
chave para a anatomia do macaco pelo menos o caminho categorial-abstrato que levou
at a. Uma certa base para esta operao poder ser, provavelmente, fornecida pela
labilidade presente no ser biolgico dos animais mais evoludos, cuja importncia
Hartmann tambm reconheceu. A evoluo dos animais domsticos que esto em ntimo e
contnuo contato com os homens nos informam sobre as grandes possibilidades contidas
nesta labilidade. Devemos, no entanto, precisar imediatamente que ela constitui apenas
uma base geral; que a forma mais desenvolvida deste fenmeno s pode tornar-se o
fundamento do autntico ser-homem mediante um salto, que tem incio com a atividade
humana de pr fins, desde os seus primrdios, ainda na transio desde a animalidade. O
salto, ento, s pode ser entendido post festum, ainda que importantes avanos, como essa
nova forma de possibilidade que aparece no conceito de dynamis em Aristteles, lancem
luz sobre o caminho a percorrer.
21Idem, 8, pp. 2l7.2l8. Livro Q, captulo 8.
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30. A passagem do reflexo, como forma particular do no-ser, at o ser ativo e
produtivo da posio (o pr) de conexes, apresenta uma forma desenvolvida da dynamis
aristotlica, que pode ser considerada como o carter alternativo de qualquer ato de pr no
processo de trabalho. Esse carter aparece pela primeira vez na posio de finalidades do
trabalho, e pode ser constatado com a mxima evidncia na observao dos atos de
trabalho mais primitivos. Quando o homem primitivo escolhe, de um conjunto de pedras,
uma que lhe parece mais apropriada aos seus fins e deixa outras de lado, bvio que se
trata de uma escolha, uma alternativa. E no exato sentido de que a pedra, enquanto objeto
em-si-existente da natureza inorgnica, no foi de modo nenhum formada de antemo a fim
de converter-se em instrumento deste pr. Tambm a grama no cresce para ser comida
pelos bezerros e estes no engordam para fornecer a carne que alimenta os animais ferozes.
H porm em ambos os casos, da perspectiva do animal que come, uma vinculao
biolgica ao respectivo tipo de alimento que determina a sua conduta de forma
biologicamente necessria. Por isso mesmo, a conscincia animal que ali se manifesta est
determinada num sentido unvoco: um epifenmeno, jamais uma alternativa. Ao
contrrio, a escolha da pedra como instrumento um ato de conscincia que no tem mais
um carter biolgico. Mediante a observao e a experincia, isto , mediante o reflexo e a
sua elaborao em conformidade com a conscincia, devem ser identificadas certas
propriedades da pedra que a tornam adequada ou inadequada para a finalidade pretendida.
Quando olhado do exterior, este ato extremamente simples e unitrio que a escolha de
uma pedra , na sua estrutura interna, bastante complexo e cheio de contradies. Com
efeito, temos duas alternativas que tm uma relao de heterogeneidade entre si. Primeira:
a pedra, foi correta ou incorretamente escolhida para o fim posto? Segunda: o fim, foi posto
correta ou incorretamente? Vale dizer: uma pedra realmente um instrumento adequado
para esta finalidade? fcil ver que ambas alternativas s podem desenvolver-se partindo
de um sistema de reflexos da realidade (quer dizer, um sistema de atos em-si no
existentes) que funciona dinamicamente e que foi dinamicamente elaborado. Mas pode ver-
se com igual facilidade que em um comeo, quando os resultados do reflexo no-existente
se cristalizam numa prxis estruturada em termos de alternativa, a partir daquilo que existe
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apenas de maneira natural, pode surgir algo existente no quadro do ser social (por exemplo
uma faca ou um machado), isto , surge uma forma de objetividade desse ser existente total
e radicalmente nova. Com efeito, a pedra, em sua existncia e no seu ser-assim natural
nada tem a ver com a faca ou o machado.
31. Esse trao peculiar da alternativa aparece ainda mais plasticamente num nvel
um pouco mais evoludo, isto , no s quando a pedra escolhida e usada como
instrumento de trabalho, mas quando submetida a um processo de elaborao a fim de
convert-la num meio de trabalho mais adequado. Neste caso, quando o trabalho
realizado num sentido ainda mais estrito, a alternativa revela ainda mais claramente sua
verdadeira essncia: no se trata apenas de um nico ato de deciso, mas de um processo,
uma ininterrupta cadeia temporal de alternativas sempre novas. No se pode deixar de
perceber, quando se pensa, ainda que rapidamente sobre qualquer processo de trabalho
mesmo o mais primitivoque nunca se trata simplesmente da execuo mecnica de uma
finalidade posta. A cadeia causal na natureza se realiza por si (espontaneamente), de
acordo com a sua prpria necessidade natural interna, do tipo se ... ento. No trabalho, ao
contrrio, como j vimos, no s o fim teleologicamente posto, mas tambm a cadeia
causal que esse fim realiza deve transformar-se em uma causalidade posta. Pois tanto o
meio como o objeto de trabalho, em si mesmos, so coisas naturais sujeitas causalidade
natural e somente na posio teleolgica, somente atravs desta, alcanam no processo de
trabalho a possibilidade de ser postos no sentido prprio do ser social, embora permaneam
ainda objetos naturais. Por isso essa alternativa continuamente repetida nos detalhes do
processo de trabalho: cada movimento individual no processo de afiar, triturar, etc. deve ser
considerado corretamente (isto , deve ser baseado em um reflexo correto da realidade), ser
corretamente orientado ao objetivo posto, corretamente levado a cabo pela mo, etc. Se
isso no ocorrer, a causalidade posta deixar de operar a cada momento e a pedra voltar
sua condio de simples ser natural, sujeito a causalidades naturais, nada mais tendo em
comum com os objetos e os instrumentos de trabalho. Deste modo, a alternativa se amplia
at ser a alternativa de uma atividade certa ou errada, de modo a dar origem a categorias
que somente no processo de trabalho se convertem em formas de ser efetivas.
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32. claro que as falhas podem ser de tipos muito diferentes; podem ser
corrigveis com o ato ou os atos sucessivos, introduzindo novas alternativas na cadeia de
decises descritae aqui tambm variam as correes possveis, das fceis s difceis, das
que podem ser feitas com um s ato s que requerem vrios atos ou ento o erro
cometido pode inviabilizar todo o trabalho. Deste modo, as alternativas no processo de
trabalho no so todas do mesmo tipo e nem tm todas a mesma importncia. Aquilo que
Churchill afirmou inteligentemente a respeito de casos muito mais complicados da prxis
social, isto , que ao tomar uma deciso, se pode entrar num perodo de conseqncias,
aparece como uma caracterstica da estrutura de toda prxis social j no trabalho mais
primitivo. Essa estrutura ontolgica do processo de trabalho como uma cadeia de
alternativas, no deve parecer menos correta pelo fato de que, ao longo do
desenvolvimento e mesmo em fases relativamente iniciais, as alternativas singulares dentro
do processo de trabalho se tornem, atravs do exerccio e do hbito, reflexos condicionados
e, deste modo, possam ser consumados de acordo com a conscincia, mas
inconscientemente. Sem poder abordar aqui a constituio e a funo dos reflexos
condicionados que tm diversos nveis de complexidade, tanto no prprio trabalho como
em qualquer outro campo da prxis social, por exemplo como contraditoriedade da rotina,
etc observemos apenas que, na sua origem, todo reflexo condicionado foi objeto de uma
deciso alternativa, e isto tanto vlido para o desenvolvimento da humanidade como de
cada indivduo, que s pode formar estes reflexos condicionados aprendendo, exercitando,
etc, e no incio de tal processo esto, precisamente, as cadeias de alternativas.
33. A alternativa, que tambm um ato da conscincia, , pois, a categoria
mediadora por meio da qual o reflexo da realidade se torna veculo do ato de pr algo
existente. Deve-se sublinhar ainda, aqui, que este ente, no trabalho, sempre algo natural e
que esta sua constituio natural jamais pode ser inteiramente suprimida. Por mais
relevantes que sejam os efeitos transformadores do pr teleolgico das causalidades no
processo de trabalho, a barreira natural s pode retroceder, jamais desaparecer
inteiramente; e isto vlido tanto para o machado quanto para o reator nuclear. Com
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efeito, para lembrar apenas uma das possibilidades, que aqui surgem, sem dvida as
causalidades naturais so submetidas, quelas postas, de acordo com o trabalho, mas uma
vez que cada objeto natural tem em si, como possibilidades, uma infinidade intensiva de
propriedades, as causalidades naturais jamais deixam inteiramente de operar. E, dado que
sua efetividade completamente heterognea em relao posio teleolgica, em muitos
casos h conseqncias que se contrapem posio teleolgica e que s vezes a
perturbam (corroso do ferro, etc.). A conseqncia disto que a alternativa continua a
funcionar como superviso, controle, reparo, etc., mesmo depois que terminou o processo
de trabalho em questo e tais atividades de preveno multiplicam necessariamente as
alternativas na posio do fim e na sua realizao. Por isso, o desenvolvimento do trabalho
contribui para que o carter de alternativa da prxis humana, do comportamento do homem
para com o prprio ambiente e para consigo mesmo, se baseie sempre mais em decises
alternativas. A superao da animalidade atravs do salto at a humanizao no trabalho, a
superao do carter epifenomnico da determinao meramente biolgica da conscincia,
ganham assim, com o desenvolvimento do trabalho, uma tendncia a reforar-se
permanentemente, a tornarem-se universais. Aqui tambm fica demonstrado que as novas
formas do ser, atravs do seu lento desenvolvimento, podem se tornar determinaes
universais autenticamente dominantes de sua prpria esfera. Durante o salto e ainda por
muito tempo depois dele, as novas formas esto em constante competio com as formas
de ser inferiores das quais se originaram e que ineliminavelmente constituem sua base
material, mesmo quando o processo de transformao j chegou a um patamar bastante
elevado.
34. Somente olhando para trs a partir deste ponto que podemos valorizar em
toda sua extenso a dynamis descoberta por Aristteles, enquanto uma nova forma da
possibilidade. A posio que funda tanto o fim quanto os meios para torn-lo realidade
assume, ao longo do desenvolvimento, de modo cada vez mais acentuado, uma forma fixa
especfica; forma que pode gerar a iluso de que j , em-si, algo socialmente existente.22
22No originalgesellschaftlich Seiendes. Lukcs se refere a uma prvia-ideao ainda no objetivada
e que, portanto, apenas existe na abstratividade.
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35. Se examinarmos, pois, em termos ontolgicos tal projeto, veremos com
clareza que ele possui os traos caractersticos da possibilidade aristotlica, da
potencialidade: Aquilo que tem a potncia de ser pode ser e tambm no ser. Marx diz,
exatamente no sentido de Aristteles, que no curso do processo de trabalho o instrumento
de trabalho passa igualmente da mera possibilidade realidade 23. Um projeto, mesmo
que complexo e delineado com base em reflexos corretos, que seja rejeitado, permanece
um no-existente, ainda que encerre em si a possibilidade de tornar-se um existente. Em
resumo, pois, s a alternativa daquela pessoa (ou daquele coletivo de pessoas) que pe em
movimento o processo da execuo material atravs do trabalho, pode efetivar essa
transformao da potncia em um ser. E isto indica no somente o limite superior desse
tipo de possibilidade se tornar real, mas tambm aquele inferior, que estabelece quando e
em que medida pode converter-se em possibilidade neste sentido um reflexo da realidade
que orientado pela conscincia para a efetivao. Este limite da possibilidade no
depende do nvel intelectual, da exatido, da originalidade, etc, da racionalidade imediata.
Naturalmente, os momentos intelectuais do projeto de uma posio de finalidade no
trabalho so importantes, em ltima anlise, na escolha da alternativa; seria, porm,
fetichizar a racionalidade econmica ver a o motor nico do salto da possibilidade
realidade no campo do trabalho. Esse tipo de racionalidade um mito, do mesmo modo
que a suposio de que as alternativas que ns descrevemos se realizariam num plano de
pura liberdade abstrata. A estas duas alegaes deve-se objetar que as alternativas
orientadas para o trabalho sempre so decididas em circunstncias concretas, quer se trate
do problema de fazer um machado de pedra ou do modelo de um automvel para ser
produzido s centenas. Isto implica, em primeiro lugar, que a racionalidade se apia na
necessidade (Bedrfnis) concreta que aquele produto singular deve satisfazer. Os
componentes que determinam esta satisfa