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OO RROOCCKK DDAASS
EESSTTRREELLAASS
CCaarrllooss QQuueeiirroozz TTeelllleess
Capa e ilustrações de
Fernando Gonzáles
Coleção Veredas
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
COORDENAÇÃO EDITORIAL Maristela Petríli de Almeida Leite
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Lucila Barreiros Facchini
COORDENAÇÃO DE PREPARAÇÃO
Luiz Vicente Vieira Filho PREPARAÇÃO DE TEXTOS
Vera Regina Alves Masetli
EDIÇÃO DE ARTE Wanduir Durant
CHEFIA DE ARTE Valdir Oliveira
CAPA E ILUSTRAÇÕES Fernando Gonzáles
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Eduardo Camargo do Amaral
DlAGRAM AÇÃO Wilson Bekesas
COORDENAÇÃO DE REVISÃO
Lisabeth Bansi Giatti
IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica e Editora Hamburg Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Telles, Carlos Queiroz O rock das estrelas / Carlos Queiroz Telles; capa e ilustrações de Fernando Gonzales.
- São Paulo : Moderna, 1993. - - (Coleção veredas) Suplementado por ficha de orientação de leitura, (atividades)
1. Literatura infanto-juvenil 2. Livros de leitura I. Gonzales, Fernando. II. Título. III. Série. 92-3302 CDD-372.412
Índices para catálogo sistemático: 1. Leitura : Livros-texto : Ensino de 1
a grau 372.412 2. Livros de leitura : Ensino de I
a grau
372.412
ISBN 85-16-00783-9
Todos os direitos reservados EDITORA MODERNA LTDA.
1996 Impresso no Brasil
Este livro é dedicado,
com muito carinho,
para a Mariana Ferraz.
SUMÁRIO
Segunda brava.......................................................................... 7
Terça leve................................................................................. 19
Quarta legal..............................................................................33
Quinta enrolada........................................................................47
Sexta quente.............................................................................59
Sábado de glória......................................................................69
OOllhhoouu!! PPaarroouu!! SSoorrrriiuu!!
"Socorro!" Meu coração disparou no peito. "Socorro!" Minha garganta
ficou tão seca que as palavras morreram de sede. "Socorro! Ela vem vindo aí,
ela vem vindo... e agora?" Meu Deus! Vontade de ter um ataque, de me fingir
de louco e de me jogar no chão com os olhos virados, bem na sua frente...
Vontade doida de agarrar suas mãos... Que horror! As minhas
estavam tremendo e molhadas de suor. Melhor escondê-las nos bolsos...
Não! Nos bolsos, não. Eu poderia ser mal-interpretado. Melhor atrás das
costas, como quem se perfila em parada, peito pra cima, barriga pra dentro.
Ridículo. Parecia que eu tinha engolido uma vassoura ou entrado
para o Exército. Agora só faltava bater continência para a Bandeira: "Salve
lindo pendão da esperança..." Esperança... Mas que esperança! Ela nem ia
me olhar. Quem sabe uma brincadeira...? Ia ser preciso muita coragem.
— Salve lindo olhar da esperança... Olhou! Parou! Sorriu! Era now or
neverl
— Oi... Eu preciso muito falar com você. Não sei se você sabe...
— Sei.
"Ela sabe! Ela disse que sabe! O que é que eu falo agora?"
— Você está querendo me namorar?
Foi ela quem perguntou primeiro! Santa Maria, Mãe de Deus! Que
menina corajosa!
— Eu... pois é... há muito tempo...
— Como é que é? Quer ou não quer?
Valente e decidida! Eu não podia dar uma de covarde:
— Quero sim! Quero muito! É tudo o que eu mais quero!
— Pois vai ficar querendo.
— Como é que é? Será que eu ouvi direito?
— Eu já tenho um namorado firme. Vê se me esquece...
Cretina! Estúpida! Idiota! Imbecil! Canalha! Lá ia a miserável
rebolando pela calçada... E eu... Cretino! Estúpido! Um perfeito idiota! Um
completo imbecil! Gozado e humilhado na frente de toda a turma. Droga de
vida! Ainda não foi dessa vez!
FFoorrrróó nnoo ggaalliinnhheeiirroo
Voltar para casa chutando pedra. Droga de vida! Salve lindo olhar da
esperança! Droga de cantada! Droga de esperança! E o pior é que todo
mundo viu a minha vergonha! Também... quem mandou eu me arriscar bem
na saída da escola? Devia ter telefonado para ela. Devia ter procurado por
ela em outro lugar. Devia...
Ai que dor no peito. Respiração presa.Vontade de chorar. Será que é
isso que chamam de dor-de-cotovelo? Se for, dói pacas! Com tanta menina
dando sopa, por que eu fui me apaixonar logo por ela? E agora ainda vou ter
de disfarçar em casa. Se é que já não contaram para a minha querida
maninha...
— E aí, malandro? Levou um fora daqueles, não é?
Contaram. Era só o que me faltava: agüentar as piadas da sacaninha.
Ela ia tripudiar em cima do meu cadáver. Desgraça pouca é bobagem.
—- Quem se mete com galinha...
O quê? Galinha! Quem? A minha paixão! É hoje que vai acontecer um
crime na família!
— Se você tivesse falado comigo antes...
Pronto! E ainda eu ia ter de agüentar os conselhos da sábia
senhorita. Mania de bancar a mãe do mundo! Já não bastava ser a primeira
da classe todos os meses e desgraçar a minha imagem em casa? Ela pensa
que sabe tudo!
— Aquela menina...
— Chega! Eu não quero ouvir mais nada!
— Pergunte para os seus amigos...
— Pare! Pare senão eu mato você!
— Tonto! Parece que só você não sabia...
— O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI?
Era só o que faltava: chegou a mãe! Agora a santinha da Mariângela
ia querer transformar o caso em comício. Era melhor pedir arrego:
— Não conte nada para a mãe...
— Conto sim! Você envergonhou o nome da família na escola!
— Como é que é? Repita se for capaz!
— Minhas amigas morreram de rir do seu ridículo...
— Ridícula vai ficar a sua cara quando eu pegar você! Está querendo
briga, vai ter briga. Ou pensa que vai ficar me humilhando de graça? É hoje!
Era... Mamãe percebeu que estava na hora de entrar no meio da
briga:
— CADA UM PARA O SEU QUARTO!
— Mas foi ela quem me ofendeu!
— Eu não quero mais ser sua irmã! Daqui para a frente faça o favor
de fingir que não me conhece!
— Com muito prazer!
— Principalmente quando resolver namorar as galinhas da escola!
— Melhor ser uma galinha magra e bonita do que uma pata gorda e
feia como você!
Essa pegou no queixo! Bem feito! Mas aí foi ela quem avançou. E
avançou em silêncio — o que é sinal certo de ataque bravo. Só pelo ódio que
brilhava nos olhos da pata enfurecida eu já me sentia vingado.
- CHEGA! CHEGA! CADA UM PARA O SEU LADO!
Dessa vez o tom da mamãe não permitia desobediências. Mais um
pouco e a mesada estaria seriamente comprometida. Esse risco a palmípede
ofendida não queria correr. Nessa hora, é claro, a artista da Mariângela
começou a soluçar. Truque velho e infalível. Assim a culpa final acabava
sendo minha...
— Fingida...
— CALE A BOCA E VÁ TAMBÉM PARA O SEU QUARTO!
Agora só faltava a última e definitiva ameaça:
— QUANDO SEU PAI CHEGAR, A GENTE CONVERSA. Pronto. Não
faltava mais... Merda de casa! Merda de irmã!
Merda de família! Ai que vontade de chorar! Chorar de raiva da
escola, dos colegas, do mundo! Chorar de raiva do fora! Chorar de raiva
daquela...
— Calma, meu filho.
Depois de tamanha humilhação, ainda ia ter de ficar de castigo! Não
era justo! Mamãe percebeu que dessa vez a fungada não era de fingimento.
O tapinha nas costas foi a gota que faltava para o soluço virar choradeira.
— Não esquente, Mané. Vá descansar no quarto.
O que restava de raiva virou tristeza. Nem deu para bater a porta com
força (sempre um bom final para uma grande cena).
AA ddoonnaa ddoo mmuunnddoo
Quando eu era menor cansei de ouvir papai dizer: "Vá chorar na
cama, que é lugar quente!"
Não é que papai tinha razão? Com a cabeça enfiada no travesseiro e a
humilhação atravessada na garganta, eu funguei, solucei, berrei, gemi,
babei, entortei a boca de raiva... e me acalmei. E depois ainda dizem que
homem não deve chorar...
— Norminha! Norminha!
A memória da gente é muito sem-vergonha. Fica sempre reprisando
na cabeça as horas de maior sofrimento. Tudo o que eu queria era mudar de
pensamento, de emissora, de programação... e nada!
— Salve lindo olhar da esperança!
Nada podia ser mais ridículo! E agora eu ainda conseguia ver a cena
de fora. Com todos os detalhes. Primeiro o fim das aulas e eu, o grande
idiota, plantado feito um bobo perto do portão da escola, fazendo hora, à
espera da boneca, a imaginação girando a mil por hora: "É hoje, tem de ser
hoje, tem de ser hoje!"
Ai, que sonho mais doido! Tudo o que eu queria era chegar mais
perto dela, sentir o cheiro dela, sentir a aura dela, sentir os pelinhos do
braço dela. Falar parecia uma missão impossível. Me declarar... suicídio! E
aí... ela veio vindo. Bonita! Gostosa! Nariz empinado, segurança de dona do
mundo...
— Ai, que pernas! Ai, que cabelos! Ai, que olhar!
Para falar a verdade a Norminha era demais. Demais! Demais no jeito
de andar. No jeito de sentar. No jeito de cruzar as pernas. Demais no
perfuminho gostoso. Demais nas piscadelas... pestaninhas negras viradas
para cima. Não havia um único menino da classe que já não tivesse se
apaixonado por ela.
"Uma fresca!", era tudo o que as meninas do colégio diziam.
"Pura inveja...", os garotos pensavam e não diziam.
E, ainda por cima, aquele sotaque de artista da Globo, cheio de
essesss e sussurrosss de promessasss. Tinha de ser carioca... Desde a sua
chegada, a Norminha fez um estrago! Torpedo moreno no coração dos pobres
coitados da Vila Clementino, que não entendiam nada de mar nem de
ondasss, nem de curvasss tão perigosasss...
— Ai, que tentaççção!
Um a um, foram todos derrapando no visgo dos olhos verdes da
Norminha. Por causa dela irmãos brigaram com irmãos e amigos se
atracaram com amigos. Os melhores alunos da escola se envolveram em
deprimentes e inexplicáveis recuperações. Notas e prestígios desabaram da
noite para o dia. Pais, mães e mestres arrancaram cabelos. A Norminha não
perdoava. Eu sabia... um dia chegaria a minha vez.
"Salve lindo olhar da esperança..." Eu achei que a carioca iria gostar
da brincadeirinha. Ai de mim! Tanta encucação de frases bonitas, convites
amáveis, pensamentos inteligentes... pra quê? Tinha até decorado uns
versos do Vinicius para causar boa impressão:
"De tudo ao meu amor serei atento..."
Mas que atento nem meio atento! Treino inútil em frente ao espelho
do banheiro, ensaio de boas Manéiras... e até dente escovado no capricho!
Pra quê? Na hora do pega-pra-capar tratei a menina como se fosse uma
bandeira! Droga de criatividade fora de hora!
"Salve lindo olhar da esperança..." Quem deu bandeira fui eu.
Resultado: caí do mastro... e me enrolei na cordinha! E a tropa inteira
perfilada na calçada da escola ficou batendo continência para a minha
queda. Também... quem é que não embarcaria naquela provocação: "Você
está querendo me namorar? Quer ou não quer?"
O que mais eu podia fazer? Abanei o rabo e cheguei rastejando como
um cachorrinho à espera de agrado: "Au! Auuu! Auuuuuu!"
E agora estou aqui, deitado na cama e uivando como um lobo velho
abandonado. E o pior é que nem consigo ter raiva da Norminha. Ela me
humilhou em público, pisou no meu moral e eu ainda continuo pensando no
seu beicinho... Maldita! Maldita, nada! Maldito sou eu, que me apaixonei por
ela...
"De tudo ao meu amor serei atento, antes e com tal zelo e sempre e
tanto..."
Será que poesia serve para alguma coisa? Hino à bandeira eu já vi
que é porcaria. E se eu...? Bobagem... Depois do fora de hoje é muita
humilhação insistir no caso. Melhor arranjar outra.
Quem sabe a Vera, a Simone ou a Lenita... essas eu acho que topam
me namorar.
Eu podia dar um belo troco para a bandida. Seria uma espécie de
vingança, um atestado público de que eu não sou um pobre coitado. Um
qualquer que pode ser chutado por aí sem mais essa nem aquela. É...
pensando bem, quem sabe a Lenita?
Quem sabe nada! Eu estou é com medo de tomar outro fora. Mas
ainda deve haver algum jeito, alguma forma de mostrar para ela... E se eu
tentasse escrever uma poesia? A professora de Português garante que eu
tenho jeito para a coisa.
Bela Norma, linda Norminha...
Droga! Não é que o nome dela rima... com galinha? Assim não vai sair
poesia nenhuma. Mas desistir, não! Eu não desisto! Minha irmã que se dane!
A turma que se ferre! O mundo que se estrepe!
Galinha ou não-galinha,
eu adoro a Norminha!
E vamos à luta! Que bruta fome! Acho que eu chorei por mais de uma
hora sem parar. Mamãe já deve ter preparado a janta. Só espero que a besta
da Mariângela não me encha a paciência de novo.
EErr ccoomm eerr,, ããoo ccoomm ããoo
Graças a Deus terminou o jantar! Mamãe foi superlegal e não
comentou a briga da tarde com papai. Ele, como sempre naquela hora
sagrada, estava mais preocupado com o Jornal Nacional e nem percebeu os
olhares irônicos e furiosos que eu troquei com a Mariângela por cima da
travessa de sopa.
Também mamãe não precisava ter servido canja! Justo hoje? A santa
irmãzinha passou o tempo todo me gozando:
— Experimente uma asinha, Mané...
Para quem ainda não sabe, o Mané sou eu. Manoel Otávio Leme da
Fonseca, para ser mais preciso. Não é um lindo nome? Foi do meu avô, é
claro. Muito prazer. Meu único defeito é ter uma irmã...
— Eu adoro caldo de galinha...
Por mais que ela me provocasse, tratei de ficar na minha. O máximo
que eu me permiti foi um contra-ataque gastronômico:
— Pois eu prefiro pato à Califórnia... dos bem gordos e com bastante
farofa!
Quando o telejornal começou eu aproveitei para dar o fora.
— Com licença, vou fazer a lição para amanhã. A Mariângela ainda
ensaiou uma alfinetada:
— A minha eu já terminei à tarde... O que é que você ficou fazendo o
tempo todo no quarto?
Delicadamente respondi que não era da sua conta e me arranquei
escada acima. Não sei bem por que, mas ninguém pergunta nada quando
você diz que vai estudar... Acho que os pais têm medo de checar a
informação.
Antes de trancar a porta (coisa que mamãe não gostava) ainda virei
para a maninha e, lá do bem-defendido último degrau, bati as asas com
força:
— QUACK... QUACK... QUACK!
A pata gorda nem chiou. Foi assistir televisão com papai. Agora eu
estou aqui, papel branco na frente, cara de bobo olhando para o espaço,
lápis rolando no dedo...
Droga! Como é que a gente começa a escrever um poema? Quando
você lê ou escuta, a coisa até que parece fácil. Os versos e as rimas
encaixados nos seus lugares, tudo muito certinho. Agora, na hora de
escrever... por onde será que anda a tal da inspiração? Começo pelo começo
ou pelo fim? Sei lá!
Acho que o único jeito é ir escrevendo tudo o que vier à cabeça.
Concentrar a idéia no que eu gostaria de dizer para a Norminha. Depois a
gente conta as sílabas e vê se tem métrica. Vamos ver...
Você é a minha bandeira...
Maldita idéia fixa! Preciso esquecer de vez esse raio de bandeira!
Vamos tentar outro caminho...
O que eu quero lhe dizer .. .
do fundo do coração...
Legal! Parece até que tem métrica. Vamos ver: uma, duas, três,
quatro, cinco, seis, sete sílabas!
Os dois versos certinhos! Acho que eu tenho ouvido bom. Deve ser
isso. Agora vai ser preciso combinar as rimas. Vou precisar de um verso
terminado em er e outro em ao!
Ler, ver, ter, rever, prazer... Prazer é bom!
Vamos voltar para o começo e ver se o som combina com a idéia:
O que eu quero lhe dizer
do fundo do coração ...
é que o meu maior prazer...
Está dando certo! Sete sílabas em cima! E agora...
... é que o meu maior prazer...
... é que o meu maior prazer...
é... pegar na sua mão!
Acho que bateu! Coisa de doido! Até que enfim eu descobri minha
vocação! Vamos copiar certinho:
O que eu quero lhe dizer
do fundo do coração,
é que o meu maior prazer
é pegar na sua mão!
Saí girando pelo quarto, cantando os versos, pulando de felicidade.
Está certo que não eram tão bons quanto os do Vinícius ... mas eram meus!
Os primeiros versos do poeta brasileiro Mané da Fonseca!
Coisa engraçada. O prazer de ter escrito a poesia foi tão grande que
eu até me esqueci da Norminha. Só fui me lembrar dela na hora de pegar no
sono, agarrado ao travesseiro...
— Ai, que pernas... Ai, que cabelos... Ai, que beicinho...
MMaallddiittoo ddeessppeerrttaaddoorr!!
A cabeça da gente é muito traidora. Eu dormi embalado, pensando
nas mil e uma maravilhas da Norminha e sonhei com o raio da cena do
portão. Pesadelo mais sem-vergonha...
Eu estava peladão no meio do mundo, bem em frente à escola,
morrendo de vergonha, quando um engraçadinho me jogou uma bandeira do
Brasil. Aí eu tratei de me embrulhar com ela. Fiz uma tanga verde e amarela
e ia cair fora quando tocou o sinal de saída, abriram o portão e a manada
desembestou para a rua.
— Olha o Mané! Olha a bandeira! Olha ele!
Começou a juntar gente à minha volta como se eu fosse um cadáver
de pedestre atropelado. Então apareceu o professor de Educação Física e
resolveu que era hora de cantar o hino. Todos se perfilaram e abriram a voz
no mais retumbante salve lindo pendão... No meio do coro, uma vozinha
aguda enchia de esses a cantoria.
Era ela. Só podia ser ela. A minha amada! A minha musa! A minha
deusa! Eu resolvi enfrentar todos os riscos e corri para abraçá-la. Aí, é claro,
as mãos se esqueceram de segurar a tanga patriótica e todos acabaram
morrendo de rir da minha nobre presença ali... Situação miserável!
Ainda bem que eu acordei logo, antes que a minha cabeça aprontasse
outra. Depois, para pegar no sono de novo foi uma luta. E dessa vez nem
adiantou ficar fantasiando em cima dos encantos da Norminha. O sonho
tinha me posto em dia com a realidade. Tentei pensar em futebol, na final do
campeonato entre as escolas do bairro... o jogo deveria ser na quarta.
Quatro e meia da manhã! Droga de despertador! Eu precisava dormir
mais um pouco. Às seis em ponto teria de pular da cama, engolir o café e
sair correndo para pegar o ônibus. Junto com a pata, é claro. Sempre bem
disposta, sempre pontual, sempre pronta antes de mim!
Vira que vira na cama... nada! E para piorar a situação a cabeça
resolveu que eu devia me lembrar do poema da véspera. Er com er, ão com
ão. Será que estava bãol O orgulho de ter escrito os versos se misturava com
o medo de cair noutro ridículo.
Pensa que pensa... resolvi que ia mostrá-los para dona Helena, a
professora de Português. Ela gostava dos meus trabalhos e podia me ajudar.
Tem muita gente que acha que gostar de poesia é coisa de bicha... Escrever,
então! Sei lá... Por via das dúvidas, era melhor manter a coisa em segredo.
Trimmmmmm!
Não é que pensando na minha poesia o tempo passou mais depressa?
Agora... bem, vamos para a luta. Pernas para fora... ai, que frio! Droga!
Como sempre, é claro que ela chegou no banheiro na minha frente!
— Sai logo que eu estou apertado!
E estava mesmo. Depois de uns cinco minutos de briga, empurros e
atropelos, conseguimos chegar juntos à mesa do café. O velho relógio da
família, com seus algarismos romanos, traçava uma reta fatídica entre o XII
e o VI. A meia hora de aquecimento estava terminando. E toca o ritual! Beijo
apressado com gosto de margarina e a despedida de todos os dias:
— Vão com Deus, meus filhos. Cuidado no ônibus. Seu pai disse que,
se der, ele pega vocês na saída.
TTrréégguuaa ffaammiilliiaarr
Às vezes Deus tem piedade de mim e reserva para os irmão-zinhos
Fonseca dois lugares bem distantes dentro do ônibus. Infelizmente esse não
era um dos tais dias de misericórdia divina. Um único banco vazio me
obrigou a sentar ao lado da querida maninha.
— Desculpe...
— Parece que eu não ouvi bem? O que foi que você disse?
— Desculpe, Mané. Eu ontem estava furiosa com você. Não devia ter
dito o que eu disse na frente da mamãe.
Milagre matutino! Eu nem acreditava no que estava ouvindo. A pata
arrependida pedia perdão pelas suas ofensas da véspera. Meio sem graça
com a súbita e comovente confissão, eu engoli em seco e tratei de arranjar
alguma palavra amiga.
— Deixe pra lá... — foi o máximo que saiu.
Depois de uma pausa e mais duas paradas, Mariângela continuou
seus esforços na árdua tarefa de aproximação:
— Você está gostando mesmo dela?
Ih! Eu sabia! A conversa já ia entrar por um mau caminho. Cala-te,
boca! Eu me lembrei na hora daquela frase que os policiais americanos
usam quando prendem um suspeito: "Tudo o que você disser poderá ser
usado contra você".
O único jeito era disfarçar:
— Ela é muito bonita... Todo mundo da turma... Pois é... Eu achei
que também...
— Está gostando! Eu já entendi.
Nova pausa constrangedora. Mais uma parada. E eu torcendo para
que a gente chegasse logo no colégio.
— Desculpe por ter chamado ela de galinha.
Coitada da Mariângela. Ela até que estava tentando ser legal comigo.
Mas o que é que eu podia dizer? Que estava vidrado na Norminha? Que
tinha escrito um poema para ela? Que tinha passado a noite em claro? Que
estava planejando atacar a Lenita só para fazer picuinha? Deus me livre! Ia
ser muito pior.
— Eu podia ter falado namoradeira ou assanhada. Ofendia menos,
não é?
Pronto! Ela pensava que mudava muito promover a outra de galinha
para namoradeira ou assanhada! Ia começar tudo de novo! Vontade de
sussurrar bem pausadamente nos ouvidos da querida irmãzinha: "Nem
galinha, nem assanhada, nem namoradeira. O que acontece é que você e
suas queridas coleguinhas morrem de inveja da beleza, do charme e da
classe da Norminha. É isso!".
Vontade só... Melhor não mexer em assunto que pode feder mais. Fiz
cara de quem estava comovidamente grato com as satisfações prestadas e
logo depois, graças a Deus, o ônibus chegou à escola.
— Na volta a gente conversa.
A promessa de um futuro papo sobre o assunto teve uma resposta
inacreditável. Fui beijado publicamente pela minha própria irmã! Caso
espantoso, inédito na história da escola. Todos olharam com ar de
reprovação para tamanha demonstração de amizade fraterna. Eu estava
ficando definitivamente marcado. Por sorte o sinal tocou e cada um tratou de
correr para sua classe.
OOppeerraaççããoo PPiiccuuiinnhhaa
Aula de História. Não é o meu forte, nem é o meu fraco. Matéria que
só depende de estudo e...
— MANOEL OTÁVIO... ATENÇÃO NA AULA!
O professor Ildefonso (onde já se viu um nome como esse?) era um
bamba. Sabia tudo e dava uma aula cheia de casos engraçados e explicações
sobre as coisas que estavam acontecendo no mundo. Era quase impossível
não prestar atenção no que ele dizia. Por isso eu fiquei meio envergonhado
com a bronca merecida.
Eu podia dizer que estava com sono... mas ia ser pior.
A classe riu da minha cara de susto e eu tratei de me concentrar na
explicação do mestre:
— Quando os piratas franceses ocuparam o Rio de Janeiro, quiseram
transformar o Pão de Açúcar em baguette ou croissant, mas a aventura não
deu certo...
Foi só falar em Rio de Janeiro e a cabeça, como se fosse um
videogame, pulou para a Fase Norminha. A última e mais difícil, é claro.
Com o rabo dos olhos eu olhei para ela, uma fila à frente e três carteiras ao
lado.
Imóvel, bela, olhar fixo no professor! Para falar a verdade, em matéria
de estudo, a Norminha não era lá grande coisa. Regulava comigo, o que não
recomenda ninguém. Vontade de suspirar fundo e de mandar um bilhete
para ela:
O que eu quero lhe dizer
do fundo do coração...
Eu, hein? Ih! Ela percebeu que eu estava olhando para ela e ficou se
ajeitando na carteira. Ai, que pernas! O melhor era voltar a prestar atenção
nos piratas franceses, antes que o professor Ildefonso pegasse de novo no
meu pé.
— Para combater os tupinambás, os índios tamoios se aliaram aos
invasores... Foi uma comilança danada! Mocotó de bugre com tempero de
champignon, patê de corsário com mandioca...
A turma caiu na risada. Sem querer, meu olhar parou no pescocinho
bonito da menina que se sentava na carteira da frente. Cabelinhos
amarrados para cima, orelhinhas bem-feitas, uma pelugem leve... Até que a
Lenita tinha sido uma alternativa bem-pensada.
Rapidinho eu me concentrei na Operação Picuinha! Além de útil,
podia não ser assim tão desagradável... A Lenita era muito jeitosinha: olho
brilhante, narizinho um pouco empinado, arzinho atrevido, lábios finos,
sempre sorridente... Só tinha um defeito grave: era amiga da minha irmã.
Se a Mariângela desconfiasse que eu estava dando em cima da Lenita
só por causa da Norminha... isso podia atrapalhar todo o projeto. Era melhor
pensar bem no caso, antes de fazer uma besteira. Nesse ponto das
especulações a aula terminou.
Uma rápida espiada para o lado... a Norminha estava olhando firme
para mim! O coração disparou mais do que coração de piloto de Fórmula 1
antes da largada. Aí... eu me portei como sou: um autêntico e orgulhoso
Leme da Fonseca!
"Meu filho! Somos pobres, porém nobres!", papai costumava dizer nas
horas em que o orgulho devia compensar alguma carência de ordem prática,
especialmente financeira.
Engoli a ansiedade, fingi que a coisa não era comigo e muito
gentilmente segurei de leve o braço da Lenita e saí da classe na maior
conversa com ela. Agora, pelo menos, a iniciativa da ação era minha. Estava
começando o contra-ataque!
NNoovvaass eessppeerraannççaass
No pátio eu fiquei sabendo de duas notícias muito interessantes para
os meus interesses românticos. Primeira: a final do campeonato de futebol
de salão tinha sido confirmada para o dia seguinte. Segunda: no sábado, o
Tiago Maior daria uma festinha na casa dele para toda a classe.
O professor de Educação Física tinha acabado de fixar no quadro de
avisos a escalação do time da escola. Eu estava no gol e ia começar jogando.
Apesar de previsível (eu era um bom goleiro), o fato me abria uma súbita
possibilidade de brilhar diante dos olhos da turma e da bem-amada.
"Amanhã não passa nada...", pensei.
O jogo fazia parte de um torneio entre as escolas públicas do bairro,
promovido por uma emissora de rádio, e valia taça. Além de definir a
escalação oficial do time, o animado mestre-treinador avisou que as aulas
seriam suspensas mais cedo, com a condição de que todos fossem torcer
pela equipe da escola.
— E tem mais... — ele disse. — O jogo vai ser transmitido ao vivo pelo
rádio.
Nessa hora as minhas pernas quase tremeram. Que
responsabilidade, meu Deus! A turma chegou mais perto.
— E aí, Mané? Vai lá e segura tudo! Já pensou na emoção? Seu
nome vai sair no rádio, hein?
Pouco depois eu fiquei sabendo da tal festa. O Tiago Maior (na minha
classe, como na Bíblia, também havia dois Tiagos: o Maior e o Menor) ia
reunir a classe inteira para comemorar o seu aniversário. Ele era meu
amigão; um dos melhores da turma.
O convite tinha vindo na semana certa. A festa podia ser uma ótima
oportunidade para eu tentar outra vez chegar mais perto da Norminha e dar
a volta por cima do fora vexaminoso da segunda-feira.
Agora, bem... agora estava tudo nas minhas mãos. Principalmente no
dia seguinte, é claro. As minhas mãos não iriam me trair. Eu precisaria
defender tudo, tudo! Os canalhas da Vila Mariana que se preparassem!
— Amanhã não passa nada! — grunhi, firmando pensamento
positivo.
Uma atuação gloriosa com certeza facilitaria muito as coisas para o
fim de semana. Enquanto a cabeça e a imaginação giravam adoidadas com
as minhas possíveis proezas futebolísticas, tocou o sinal. Era hora de voltar
para as aulas seguintes..
— Vamos, Mané?
Uma vozinha amiga, muito, muito perto, acompanhou um leve roçar
de mão... do tipo ponta de unha na palma do próximo. Tudo quase sem
querer. Quase tive uma parada cardíaca. Sem olhar para o lado retribuí
rapidinho o encosto de mão. Arrepio gostoso... Pois é. Só aí eu olhei:
— Vamos, Lenita.
BBrroonnccaa pprroommiissssoorraa
O resto da manhã passou rapidinho. Por maior que fosse a vontade,
não olhei para o lado da Norminha. Tratei de me concentrar no raio do
desenho geométrico... o que não era nada fácil. Bem na minha frente,
indócil, a Lenita não parava quieta na carteira. Parecia que tinha sentado
num formigueiro.
Um pouco antes de a aula terminar, senti que a mãozinha macia
atacava de novo. E dessa vez trazia um bilhete muito bem dobradinho. Com
cara de quem não quer nada, apanhei a mensagem e, entre um semicírculo e
uma tangente, li o recado: "Vamos juntos à festinha do Tiago?".
Pela agitação demonstrada, a Lenita exigia resposta imediata. As tais
formigas estavam atacando! Confesso que comecei a ficar com medo. A
Operação Picuinha estava indo bem demais para o meu gosto... Era preciso
arranjar uma forma de moderar o ritmo da conquista. Pensei um pouco e
mandei a resposta:
— Combinado. Só que esse vai ser um segredo só nosso. Não quero
que a Mariângela desconfie de nada.
O pescocinho na minha frente deu uma leve sacudida e um polegar
virado para cima confirmou que a proposta tinha sido aceita. Bom. Pelo
menos eu tinha adiado o problema mais imediato que seria a saída das
aulas. Depois... Bendito sinal!
— Amanhã a gente conversa, tá?
Dessa vez fui eu que respondi com uma piscadinha positiva, evitando
espichar a conversa. Tratei de juntar as minhas coisas e dar o fora. Quando
estava saindo da classe (ó, destino!) esbarrei com a Norminha.
Com a maior e mais séria das gentilezas recuei e abri espaço para ela
passar na minha frente. Foi uma linda mesura! A Norminha me encarou
firme. Foi rapidinho, rapidinho, mas deu para perceber um brilho de raiva
faiscando.
— Seu bobo!
Eu não acreditei no que ouvi. Ela estava furiosa comigo! Saiu pisando
firme e nem olhou para trás. Será que... ?
— Sai da porta! Desatravanca, idiota!
Dessa vez, a bronca era da turma que estava atrás de mim e que
também queria sair. Mais do que depressa (meu negócio não era chamar a
atenção) grunhi uma desculpa e saí a mil pelo corredor. Se ela estava brava
daquele jeito... quem sabe?
OO AAmmaarreelliinnhhoo
A Mariângela era quase dois anos mais velha do que eu. Por conta
dessa diferença, desde pequena ela vivia se metendo a tomar conta da minha
vida. Quando ela tinha quatro e eu dois, vá lá!
Era o dobro da minha idade! Mas agora... que raio de autoridade os
seus dezesseis podiam ter sobre os meus quatorze?
— Como é que foi o dia, malandro?
— Fui escalado para jogar amanhã na seleção da escola. Vê lá se eu
ia entrar na conversa da maninha! Eu sabia muito
bem o que ela estava querendo saber.
— E vão transmitir o jogo ao vivo pelo rádio! Preciso avisar papai e
mamãe. Será que o velho vem buscar a gente?
A Mariângela sacou que eu não ia abrir o bico sobre o assunto de seu
interesse.
— Coitado do pai...
— Se ele não pintar em dez minutos a gente pega o ônibus. O trato
era esse. Quando achava um tempo para almoçar em
casa, papai nos apanhava antes na escola. Se o carro não
quebrasse..., o que vivia acontecendo. Ele tinha um fusca amarelo sessenta e
nada... um espanto!
Eu confesso que tinha até vergonha de entrar no carro. A turma da
classe dava risada quando o Amarelinho aparecia peidando na esquina:
— Brobrobrobrumrnmmm!
Lá vinha ele! A Mariângela ficava uma fera com as gozações. Eu já
tinha acostumado com a nossa eterna e orgulhosa pindura familiar.
Situação danada a do pai! A família entrou pelo cano com uma tal de crise
do café. Empresas, fazendas... foi tudo para o brejo. Das antigas glórias
sobrou a casa em que nós moramos. Grande e caindo aos pedaços.
Depois que meu avô morreu papai acabou deixando os estudos e
tornou-se funcionário público. Atraso de vida. Como ele não sabe se
promover e é doente de honesto, empacou na carreira. Trabalha como um
condenado e no fim do mês... quase nada. Ah... tem horas que o meu maior
sonho é ser filho de marajá!
— Pipipipipipipipi!
Depois do pum, o pipi! Mas que buzina encardida!
— Olá, meus filhos!
Papai adorava a gente. Pulei para o banco de trás e deixei o lugar da
frente para a "princesa". No caminho, fui contando o caso do futebol e da
transmissão da partida pelo rádio. Papai ficou entusiasmado.
— Amanhã vou levar um radinho para a repartição. Quero
acompanhar tudo. O pessoal vai torcer comigo, garoto!
"Tomara que eu corresponda...", foi só o que eu pensei. Agora além de
impressionar a Norminha eu também tinha de defender a honra familiar.
Mais do que nunca eu precisava jogar bem. Essa era uma alegria que eu
queria dar ao velho.
— Tomara que eu corresponda... — murmurei.
O caso do futebol ainda rendeu conversa bastante para atravessar o
almoço e escapar do interrogatório da maninha. Sob a alegação de que eu
precisava descansar para estar em forma no dia seguinte, passei a tarde
trancado no meu quarto.
SSeessssããoo ddaa ttaarrddee
A solidão é uma coisa muito legal para a gente pôr a cabeça em dia. O
mundo parece que não entende isso... todo mundo adora andar em bando.
Não que eu não goste da minha turma. Eu adoro sair com eles, jogar futebol,
ir ao cinema, passear no shopping, barbarizar num videogame, paquerar as
meninas e descolar uma festinha de fim de semana.
Bem, para falar a verdade, eu nunca tinha namorado para valer uma
garota. Só umas paquerinhas, coisa mais de falar e olhar do que amarração
pra valer, com beijo, abraço, amasso... e sei lá mais o quê! Paixão brava (ai,
meu Deus, que sofrimento e que emoção!), a primeira era mesmo a
Norminha. Será que o plano ia dar certo? Mulher é um bicho tão estranho...
Sono à tarde é coisa que eu nunca curti, mas depois de uma
madrugada com a cabeça quente, até que seria gostoso dar uma
descansada. Esticadão, barriga para cima, fiquei pensando no de sempre:
"Ai, que pernas, que beicinho, que jeito mais gostoso de andar!"
Quando os olhos estavam fecha-não-fecha, o telefone tocou lá na
sala. Uma, duas, três, mil vezes.
— Droga! Será que não tem ninguém para atender? Tinha. Dois
minutos depois a querida pata choca bateu na porta do meu quarto:
— Mané, Mané! A Lenita quer falar com você!
"Traidora!", foi tudo o que eu pensei, antes de enfiar a cabeça
embaixo do travesseiro e embarcar num sono gostoso, com a imaginação
solta, voando, voando...
O que eu quero lhe dizer
do fundo do coração
é que o meu maior prazer
é pegar na sua mão.
"Acho que ainda dá para melhorar este poe...”
1
1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao
conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
AAqquueecciimmeennttoo mmaattiinnaall
Jogo de taça é jogo de taça. Acordei assustado, com medo de ter
perdido a hora. Bobagem. A família inteira estava ligadona com a história de
o jogo ser transmitido pelo rádio. Até a maninha, que detesta esportes em
geral e futebol em particular, amanheceu com uma inusitada crise de
amabilidade:
— E aí? Dormiu bem, goleirão? Goleirão! Quem diria!
O espírito olímpico comandou o café da manhã. Mamãe estava
preocupada:
— Não coma pão demais... para não pesar no estômago na hora da
partida.
Papai, orgulhosíssimo com o querido filho, não se cansava de me
fazer recomendações:
— Não fique nervoso. Faça de conta que o jogo não está sendo
transmitido mas, se for entrevistado, lembre-se de que todo mundo na
repartição vai estar ouvindo comigo e torcendo para você.
Coitado do papai... Nervoso estava ele. Tão nervoso que resolveu levar
a gente para a escola no Amarelinho. O que, pensando bem, era um risco
maior do que pegar o ônibus.
— Mesmo que eu chegue atrasado, não tem importância. Hoje quem
não pode se atrasar é você.
Mamãe, pela décima vez, deu uma "última" revisada na minha sacola:
tênis, meias, sunga, joelheiras e o calção acolchoado dos lados... tudo muito
bem lavado e passado. Como não podia deixar de ser, a bênção final foi
reforçada:
— Vou acender uma vela para Santa Gema antes de o jogo começar.
Vá com Deus, meu filho.
Santa Gema! Era uma santa da devoção da mamãe, só invocada para
grandes causas, tipo saúde em perigo, medo de drogas, prova de
recuperação e aumento de salário para o funcionalismo. Mamãe estava
demais! Para completar o serviço, ainda me enfiou um raminho de arruda na
mão.
— Em todo caso, para ajudar, leve isto com você.
— Mãe! Desde quando você deu para macumbeira? Papai,
excitadíssimo, já estava no carro. O fusqueta peidava e arrotava
furiosamente no seu aquecimento matutino.
— Vamos embora, Mané! — berrou a Mariângela.
Catei minhas coisas, beijei a mamãe e... sentei no banco da frente! A
maninha já estava acomodada atrás! Esse, sim, era um verdadeiro milagre! A
Mariângela jamais abria mão do honroso posto de co-pilota do Amarelinho. A
arruda já estava fazendo efeito.
— Brruumm... Cofcofcof... Prammmm... Pipipipi!
Lá fomos nós! No caminho, aproveitando uma trégua nas
recomendações paternas, eu me dei conta do tamanho da responsabilidade
que estava assumindo. Que Deus me ajudasse! Eu precisava jogar bem de
qualquer Manéira. Além de defender a honra da escola, eu tinha acumulado
um inacreditável bando de torcedores especiais: mamãe e Santa Gema,
papai e a repartição inteira, Lenita... para manter a picuinha do namoro
paralelo e... ELA!, a idolatrada Norminha!
Essa idéia me fez engolir em seco. Será que eu não ia tremer? Como
acontece sempre nas horas de sufoco, a irmãzinha captou no ar os meus
pensamentos...
— O que será que a Lenita queria com você?
— Sei lá...
— Ela é uma garota muito legal...
__ É...
— Bonita, educada...
— É...
— Bem melhor do que aquela...
Pronto! Era o que me faltava! Agora sim é que eu ia ficar nervoso!
Papai percebeu que a conversa ia tomar rumos desaconselháveis para um
momento de tão angustiante expectativa esportiva e sacou o cartão amarelo:
— Agora não! Vamos mudar de assunto que hoje não é dia para
briga.
Logo em seguida, chegamos à escola. Papai me deu um tapinha nas
costas:
— Boa sorte, garotão!
Para a maninha ainda sobrou uma advertência:
— Torça para o seu irmão...
SSeerr oouu nnããoo sseerr ggoolleeiirroo
A escola estava num agito só. Em frente ao portão, uma perua para
levar o time e três ônibus para transportar a torcida. Tio Euclides, o
professor de Educação Física, que também era monitor dos escoteiros, ia
anotando num caderninho a chegada dos jogadores:
— Assim que o time estiver completo, a gente vai para o ginásio.
Só estava faltando o Gabriel. Esse vivia atrasado e atrasando os
outros, mas como era o melhor atacante do time, ninguém reclamava muito.
Enquanto o artilheiro não chegava, eu resolvi dar uma sapeada no clima da
torcida.
A primeira coisa que eu vi não me deixou nada tranqüilo. Num canto
do pátio, perto do banheiro das meninas, a Mariângela e a Lenita levavam o
maior papo. Conversa animada, com muitos gestos e risinhos.
Aquele lugar era uma espécie de área reservada para as fofocas
femininas. Quando o bando se juntava ali, o assunto era quente! Com
certeza a Lenita estava combinando com a amiguinha a melhor forma de me
salvar das garras da terrível Norminha.
Nessa hora... nessa hora... nessa hora... uma vozinha cheia de
essesss passou rente aos meus ouvidos:
— Estou torcendo por você..., seu bobo!
A paralisia foi instantânea! Nem deu tempo para me virar. Quando
olhei para trás, ela já estava indo para os lados do portão com um bando de
colegas. A vontade era gritar, berrar, pular, sair correndo e corcoveando pelo
pátio feito um burro bravo de rodeio...
—luuuuuuuuuuuu!
Com o coração disparado, percebi que o tio Euclides me acenava
perto da perua. O Gabriel já devia ter chegado. Agora... ia ser pra valer. Com
o inesperado e empolgante estímulo da minha torcedora número um, eu ia
pegar tudo, fechar o gol, defender até pensamento!
No caminho para o ginásio, o professor-técnico confirmou a
escalação: Mané (eu), Pedrão, Maurício, Silney, Gabriel e Nando. No vestiário
ele ia dar as instruções para o jogo. Queria que todos ficassem calmos e
sentados nos seus lugares:
— Vamos poupar energia!
O meu reserva no gol era o Mário Japinha, um amigão. Ele sentou-se
ao meu lado e ficamos conversando sobre o raio da nossa posição no time:
— Meu único medo é tomar um gol de cara... — confessei.
— Bobagem. Você sabe que pega bem — ele me animou.
— É... mas o nervoso e a raiva tiram a concentração... Isso já me
aconteceu umas três vezes...
— Então faz de conta que a bola não entrou e que o jogo ainda está
zero a zero! — aconselhou o Japinha, rindo.
Boa gente esse moleque. Se fosse outro, podia até estar torcendo para
eu quebrar a cara e ele ter uma chance de ser titular... Ao contrário, estava
me incentivando. E olhe que ele jogava bem... acho que só perdia para mim
nas bolas altas e isso era só por causa da diferença de estatura.
O esporte é uma coisa legal. A gente aprende a respeitar os outros
numa boa. O cara é melhor, ninguém discute. No fim, o que interessa é o
time. Mesmo no banco de reservas, o coração bate como se a gente estivesse
na quadra. Agora, essa história de ser goleiro...
Posição desgraçada! Se o time perde, a culpa é nossa. Se ganha, a
glória é de quem marcou o gol. Mas, para falar a verdade, desde pequeno eu
adorava jogar como goleiro. A emoção do pulo e a alegria de sentir a bola
presa nas mãos... Isso sem falar no grande momento: o pênalti!
O pênalti parece coisa de tourada! Só que em vez de sair da frente do
inimigo, você tem de pegar o inimigo a unha. Olho no olho do chutador.
Adivinhômetro ligado. Para onde vai a bola? E depois, um segundinho de
nada para cair do lado certo. Coisa difícil de acontecer... mas, quando
acontece, felicidade maior não pode existir.
— Pronto! Chegamos! Ninguém esqueça nada e vamos direto para o
vestiário.
A voz do tio Euclides me tirou do reino da fantasia e eu caí na real. O
melhor da imaginação é que ajuda a passar o tempo. Mas bom mesmo seria
eu pegar um pênalti hoje! Ia ser a glória! Ia...
NNooccaauuttee ttééccnniiccoo
— Aiiiii! Me ajudem!
Como é que aquilo foi acontecer? A turma me ajudou a levantar.
— Eu acho que escorreguei...
— Alguém vá correndo arranjar gelo! — gritou tio Euclides. "Gelo? Pra
quê?", pensei.
A dor no supercílio e o sangue escorrendo pela mão responderam à
minha pergunta no ato.
— Você bateu com a cabeça na quina da calçada — grunhiu o
Gabriel.
— Vamos levá-lo para dentro — ordenou o técnico.
O pessoal da escola, que estava chegando nos ônibus, percebeu que
alguma coisa de errado tinha acontecido comigo. As caras amontoadas nas
janelinhas e um silêncio danado substituindo a algazarra e a barulheira de
sempre...
"Quebrei a cara...", foi tudo o que eu pensei.
E tinha quebrado mesmo. Sabe Deus como, eu havia conseguido
pisar em falso na hora de descer da perua e me esparramado no chão.
Deitado no banco do vestiário, com uma toalha cheia de gelo encostada no
ferimento, eu não sabia se ria ou se chorava.
Tio Euclides me examinou com cuidado:
— Vai levar uns quatro pontos.
— Não! — eu berrei.
O professor fez uma pausa, olhou nos meus olhos e cumpriu o
doloroso dever:
— Você não vai poder jogar com esse corte aberto.
— Fechem isso com bandeide, cola-tudo, esparadrapo, grampeador...
fita isolante... — implorei.
— Negativo, Mané. O Mário vai para o gol.
— Eu não vou sair daqui nem amarrado!
— Se você quiser, a gente faz um curativo agora e espera para dar os
pontos depois do jogo. É tudo o que eu posso fazer.
— Tá... mas pelo menos eu quero ficar na reserva.
Tio Euclides percebeu que era melhor concordar, antes que eu
tumultuasse de vez o vestiário e acabasse com a já abalada moral do time.
Aperta daqui, aperta dali, desinfetaram o ferimento e cobriram o corte com
gaze e esparadrapo.
"Ridículo...", foi tudo o que eu pensei.
Nessa hora, bateram à porta do vestiário. Eram a Mariângela e a
Lenita, que queriam saber o que tinha acontecido. Eu pedi para elas
telefonarem para a mamãe avisando que estava tudo bem comigo. E que ela
não esquecesse de dar um toque para o velho, para ele não ficar
decepcionado na hora da escalação.
A Lenita ainda achou um jeito de me enfiar na mão um bilhete de
caridosa solidariedade: "Que pena, querido!"
Querido! Era só o que me faltava! Fechei a porta na cara das duas e
fui me trocar. Droga de vida! Mesmo que não fosse para jogar eu queria
entrar na quadra uniformizado. Tio Euclides atirou a camisa número 1 para
o Mário.
— Pegue essa, Japinha! A gente confia em você.
Eu fiquei com a de número 6, que era a do goleiro reserva. Antes de o
time entrar, tio Euclides reforçou as instruções para que todo mundo ficasse
calmo.
— Vamos ganhar essa partida em homenagem ao Mané! — ele
terminou.
Todo mundo aplaudiu, se abraçou e lá fomos nós para a quadra.
Quando eu apareci com a testa rachada a torcida berrou:
— Mané! Mané! Mané!
Só depois eles perceberam que quem ia jogar era o Mário Japinha. Aí,
infelizmente, a coisa esfriou um pouco. Na condição de ídolo acidentado fui
logo chamado para dar uma entrevista para a tal rádio:
— E então, Manoel, o que foi que aconteceu?
— Foi um acidente bobo... eu caí na hora em que o time estava
chegando no ginásio e cortei a testa. O pai e a mãe podem ficar tranqüilos
que eu estou bem...
— E vai dar para jogar?
— Não, o técnico disse que não. Eu só estou na reserva para animar
os companheiros. É isso aí.
— Muito bem! Um belo exemplo! Obrigado Manoel, e boa sorte para o
seu time! — berrou o locutor.
ÉÉ ccaannjjaa,, éé ccaannjjaa......
Coitado do Mário Japinha. Cair numa fogueira dessas não é mole. O
time inseguro, a torcida desconfiada e os adversários loucos para pegar o
infeliz do reserva ainda frio ou nervoso. E tome chute de tudo quanto era
canto da quadra!
— Vai, Mário! Boa, Japa!
Por sorte, as primeiras bolas vieram fracas ou foram para fora. Isso
ajudou o Mário e o time a ganhar confiança. Devagar os jogadores
começaram a se preocupar menos com a defesa e partiram para cima dos
adversários.
— Vai, Gabriel! Chuta, Nando!
A nossa torcida estava na arquibancada em frente ao banco de
reservas. De vez em quando eu achava um jeito de dar uma espiada na
turma. Uma olhada para a Norma, outra para a Lenita. De repente alguém
teve a idéia de puxar o corinho:
É canja!
E canja!
É canja de galinha!
Bota
outro time
pra jogar com a nossa linha!
Não sei por que, logo me passou pela cabeça que aquela história de
canja de galinha devia ser invenção da Mariângela. Olhei para ela e não deu
outra. Estava morrendo de rir. O diabo é que o raio do coro parece que deu
azar.
O Silney perdeu uma bola no meio da quadra e o centroavante dos
inimigos acertou um bico indefensável no ângulo. Aquela nem eu pegava! O
Mário se esparramou todo, mas não teve jeito. Um a zero contra. Logo
depois, graças a Deus, terminou o primeiro tempo.
No intervalo tio Euclides fez o que pôde para animar a turma e ainda
deu umas dicas extras. O caminho era pela esquerda. A defesa deles não era
grande coisa e o Gabriel precisava cair por aquele lado.
— Vamos lá! Calma que a gente ganha essa!
Pois não é que o nosso técnico entendia das coisas? Logo no começo
do segundo tempo, na jogada ensaiada, o Gabriel escapou pela esquerda e
soltou a bomba. GOL!!! A torcida berrou. A gente se abraçou no banco. Agora
eles tinham de atacar também e a coisa ficava mais fácil.
É canja,
é canja...
A nossa torcida recomeçou o maldito corinho galináceo e foi a conta.
O adversário é que partiu para cima da gente! Vinha bola de tudo quanto era
lado. Um sufoco! Aí começou a brilhar a estrela do Mário.
— Boa, goleiro! Grande Mário!
O Japinha parecia um louco dentro do gol. Pulava de um lado para o
outro e não soltava uma! Quanto mais aumentava o perigo, mais ele
agarrava. Pegou bola alta, pegou chute cara a cara... um demônio! Nosso
time estava completamente perdido em campo, mas a bola não entrava de
jeito nenhum. Os adversários começaram a ficar nervosos. E isso era bom
para nós. O locutor da rádio gritava:
— A bola não entrou por milagre! Esse goleiro está demais! Se a
partida terminasse empatada, a decisão seria por pênaltis, e do jeito que o
Mário estava jogando... a taça já era nossa. Foi aí que aconteceu o pior.
Menos de um minuto antes de terminar a partida, o atacante avançou
sozinho... dessa vez ele ia marcar.
— Vai, Mário! — eu berrei.
O maluco do Japinha não hesitou. Pulou para a frente e abafou a
bola na hora do chute. Foi uma pancada muito feia. O adversário não teve
culpa mas o braço do Mário fez um barulho muito esquisito. O jogo parou na
hora.
— Quebrou, não quebrou... — todo mundo estava preocupado. O
Mário saiu da quadra gemendo e o juiz achou melhor terminar a partida.
Resultado: empate de um a um. Aí ficou o problema da taça. Regulamento é
regulamento... e o locutor da rádio avisou que a decisão tinha de ser nos
pênaltis. O patrocinador estava presente e queria entregar o troféu para o
vencedor.
"Sobrou pra mim...", pensei.
AA hhoorraa ddaa vveerrddaaddee
Tio Euclides grunhiu:
— Não tem outro jeito. Vá lá e veja o que você consegue fazer. Só não
ponha a cabeça na frente da bola.
Eu nem sei bem o que senti naquela hora. Mistura de medo com
emoção. Que coisa doida! De repente, a bomba estava na minha mão e tudo
aquilo que eu tinha imaginado estava acontecendo. O juiz apitou chamando
os goleiros e os batedores.
— Mané! Mané! Mané! — a torcida começou a berrar para me
incentivar. O Mário, meio branco de dor, fez questão de ficar até o fim da
decisão e veio me dar uma força:
— Vai firme que eles estão com medo de matar mais um goleiro...
Eu firmei o pensamento, pensei no papai, na mamãe, pedi a proteção
da milagrosa Santa Gema, abaixei a cabeça e fui para a luta. O nervoso era
tamanho que dessa vez eu nem quis olhar para o lado da Norminha. A voz
do locutor parecia vir de muito longe:
— E lá vai Manoel, o goleiro reserva, também contundido, defender
sua equipe na decisão por pênaltis.
O juiz avisou que seriam três cobranças para cada lado. No cara ou
coroa, nós resolvemos chutar primeiro. O Nando, o Silney e o Gabriel seriam
nossos batedores. Eu só grunhi para eles:
— Eu estou gelado. Não errem, pelo amor de Deus!
O Nando bateu primeiro. Uma cacetada no meio do gol. Por sorte, o
goleiro deles pulou para um lado. Um a zero para nós. A torcida berrou.
Menos mal. Um pouco mais tranqüilo, eu fui para o cadafalso.
— Onde será que esse infeliz vai chutar?
Rasteira, no canto esquerdo. Nem consegui me mexer. Um a um. Foi
a vez do Silney. Eu nem queria olhar. Ele bateu com raiva. Outra cacetada.
Gol. Dois a um para nós. E lá fui eu de novo para o sacrifício. Com aquela
pressão toda, a cabeça estava doendo muito.
— Chuta em cima de mim, idiota! — grunhi baixinho. Rasteira, no
canto esquerdo. Igualzinha à primeira. Dois a dois!
Aí me deu uma luz. Cheguei para o Gabriel e garanti: . — Marca esse
que o terceiro eu pego.
Ele fuzilou. Gol! Três a dois! Agora sim, era a minha vez. Se o meu
palpite estivesse certo, os adversários tinham ordem do técnico para bater
sempre no mesmo lugar. Com muita calma, fui para o centro do gol. Abaixei,
preparei o pulo e firmei o pensamento: "Rasteira, no canto esquerdo!"
Nessas horas, o tempo parece que passa em câmera lenta. O juiz
apitou. Muito devagar, o cobrador veio se aproximando da bola. Num
relance, ele olhou para o lugar onde iria chutar.
"Vai ser lá mesmo!", pensei.
Chute e salto foram quase simultâneos. O corpo e a bola no ar
entraram em rota de colisão. Perfeito!
"Vou pegar!", pressenti.
O impacto nas mãos espalmadas e o berro da torcida trouxeram a
vida de volta ao seu ritmo normal! Quando o corpo tocou o chão, a bola já
estava longe. O primeiro que chegou para me abraçar foi o Mário.
— Mané! Mané! Mané! O ginásio berrava! O mundo berrava! No bolo
dos abraços, eu não sabia o que fazer com tanta emoção. E tome choradeira!
Depois, com o troféu, a gente foi comemorar na frente da torcida. Aí sim,
com muito orgulho e alegria, eu firmei os olhos na Norminha. Ela também
estava emocionada. "Olha o bobo aqui...", pensei.
Quase ergui a taça para ela, mas seria dar muita bandeira. Quando
percebi que a Mariângela e a Lenita vinham correndo me abraçar, corri para
o vestiário.
Duas horas depois, estávamos saindo do pronto-socorro. O Mário
com o braço engessado e eu com quatro pontos na testa. Na porta do
hospital (como é que papai tinha adivinhado?), o Amarelinho já estava à
minha espera.
— Olá, garotão!
Eu abracei o velho quase chorando. Acho que nunca tinha visto meu
pai tão feliz. Quando chegamos em casa, descobri que o almoço familiar
tinha virado quase uma festinha. Com convidados, é claro...
— Você foi maravilhoso!
Adivinhem quem a Mariângela tinha levado para passar a tarde lá em
casa... Bem, já que o ataque era inevitável, eu achei melhor relaxar e
aproveitar. Afinal de contas aquele era o meu dia de herói e eu merecia todas
as homenagens do mundo!
Depois do almoço, fomos ouvir música no quarto da ma-ninha,
conversar sobre o jogo, sobre nada, sobre tudo, sobre a vida. Como não
poderia deixar de ser, eu caí na gostosa besteira de ficar namorando
descaradamente a Lenita. Mãozinha, agradinho... e quando a querida e
compreensiva irmã foi preparar um lanche, o beijo e o abraço mais
demorados da minha vida.
Ufa! Que dia!
DDeecciissõõeess nnoottuurrnnaass
Só à noite, na cama, eu avaliei com mais cuidado o que tinha
acontecido. A Lenita era uma graça; a tarde tinha sido uma delícia; o beijo e
os abraços, uma glória! O problema é que eu não conseguia deixar de pensar
na Norminha.
"Acho que a Operação Picuinha foi longe demais...", pensei.
Seriamente decidido a não deixar o caso ir adiante, eu me lembrei de
que a aula de Português seria no dia seguinte. Depois das glórias esportivas,
precisava cuidar da minha carreira literária. Apanhei o caderno e comecei a
trabalhar no poema:
O que eu quero lhe dizer
do fundo do coração
é que o meu maior prazer
é pegar na sua mão...
Li, reli e achei que estava muito bom. Só que uma quadrinha era
pouco para um amor tão grande. Com a mesma decidida emoção com que
tinha defendido o pênalti, resolvi espichar o poema. E entrei pela noite
mergulhado em suspiros, métrica, rimas e invenções!
SSoonnnnoo uunn ppooeettaa......
Uma das manias do papai é ouvir ópera. Antigamente, quando
começava a sessão (quase sempre depois da novela), a Mariângela e eu
corríamos para os nossos quartos. Mas, com o tempo, a gente foi se
acostumando com as árias mais bonitas. Papai explicava as histórias,
traduzia as letras e nós até decoramos alguns pedaços da cantoria.
Acho que a ópera foi inventada por alguém que gostava de cantarolar
no banheiro. Naquela manhã, assim que entrei embaixo do chuveiro, eu me
lembrei de uma ária da La Bohéme, que papai gostava muito de ouvir. Lá
pelas tantas o cantor soltava o vozeirão:
"Sonno un poeta, che cosafaccio?"
Muito animado com as minhas poetizações da véspera, eu agitei o
café da manhã familiar com o meu solo interminável. Até papai, inicialmente
encantado pela súbita prova de amor ao canto lírico, acabou dando um
berro:
— Já sabemos que o poeta não sabe o que fazer! Troque 0 disco!
Eu desci a escada, feliz, dando risada. A Mariângela me olhou com
um certo ar de apreensão:
— Além de goleiro, agora também é poeta...
Café engolido, mãe beijada, bênção recebida, lá fomos nós para a fila
do ônibus. Decididamente eu estava em paz com a vida. O meu esforço
poético noturno tinha sido muito proveitoso. Agora eu só pensava no efeito
que os versos causariam no coração da bem-amada...
— Olhe o ônibus, palerma! Está dormindo acordado? Dormindo, não.
Sonhando! A quadrinha inicial tinha ficado
boa. Penso que já era verdadeira poesia! Copiada com capricho no
caderno de Português ela ia esperar também o julgamento literário de dona
Helena. De uma certa Manéira, o poema também era dedicado a ela.
AA SSeerrrraa ddoo RRoollaa--NNeeuussaa
Dona Helena era nossa professora há dois anos. No começo a turma
tinha ficado grilada com o seu jeito de dar aula.
— Vamos fazer de conta que cada um aqui é um escritor e a classe é
uma Academia de Letras!
— Academia do quê? — a galera chiou.
— Academia de Letras. Cada um de vocês vai ter um escritor como
patrono e o primeiro trabalho será estudar muito bem a obra desse escritor.
Vamos começar sorteando os patronos!
Ninguém estava entendendo nada, mas sorteio é coisa que sempre
anima o ambiente. Dona Helena pegou uma sacola cheia de papeizinhos
dobrados; cada um foi tirando o seu e lendo o nome do tal patrono.
Castro Alves! Chico Buarque! Machado de Assis! Jorge Amado!
Oswald de Andrade! Jorge de Lima! Monteiro Lobato! Geir Campos! Luís de
Camões! Mário de Andrade! Viriato Correia! Alguns nomes a gente conhecia.
De outros nunca tinha ouvido falar. Aí chegou a minha vez.
— Vinicius de Morais! — eu gritei.
— Um grande poeta — comentou dona Helena. Terminada a aula,
fomos todos para a biblioteca da escola procurar os livros escritos pelos
nossos patronos. Na aula seguinte cada um deveria trazer copiado um trecho
ou um poema escrito pelo seu patrono. Até que a coisa parecia divertida!
Foi assim que eu peguei gosto pela poesia. Uma descoberta! Para
falar a verdade eu, como todos os garotos da minha turma, também achava
que essa história de poesia era coisa de menina ou, pior ainda, de bicha.
Depois da primeira aula de dona Helena, meio envergonhado,
apanhei o Livro dos sonetos do Vinicius de Morais e o levei para ler em casa.
Depois do jantar, enquanto papai atacava de Rigoletto, eu me tranquei no
quarto para escolher uma das poesias.
"La donna é mobilei", berrava o Pavarotti.
"De repente, não mais que de repente...", ensinava baixinho o
Vinicius.
Que coisa mais bonita! Escolhi o "Soneto de separação" para
apresentar na aula seguinte. Com a invenção da Academia de Letras dona
Helena conseguiu o milagre de desinibir os alunos.
A aula foi um grande barato. Cada um tinha de ir à frente, subir
numa cadeira (cadeira mesmo!) e ler o trecho escolhido. Todos foram muito
aplaudidos. O mais engraçado aconteceu com a Neusa. O patrono dela era o
Mário de Andrade e a "acadêmica" tinha decorado um poema chamado "A
Serra do Rola-Moça". Muito animada, ela começou:
"A Serra do Rola-Moça
não tinha esse nome não..."
E foi contando o tal caso de amor, cada vez mais entusiasmada.
Quando estava quase terminando... Desastre! Uma perna da cadeira se
quebrou e a pobre declamadora quase se arrebentou no chão. Foi uma
gozação só.
— Cuidado com a Serra do Rola-Neusa! — os colegas brincaram.
Depois do susto, a coitada ainda teve ânimo para terminar a sua
leitura, num tom dramático muito bem ensaiado:
"E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou!"
Os aplausos foram tantos que até o Diretor foi ver o que estava
acontecendo. Daí para a frente dona Helena virou o ídolo da classe. Se não
fosse a sua bendita academia eu nunca teria conseguido escrever o meu
poema.
CCrrííttiiccaa ffaammiilliiaarr
Sem perceber que a enxerida maninha estava me espiando com o
rabo dos olhos, abri o caderno para dar uma última revisada na obra-prima.
Eu tinha mudado aquela história de pegar na mão... achei que era meio
vulgar. Agora tinha ficado assim:
Toda vez que eu a vejo
se agita meu coração
com um impossível desejo
de sonho e de paixão!
Legal! Estava mil vezes melhor! Vejo e desejo são muito mais poéticos
do que dizer e prazer.
Eu sinto sua presença
sempre tão perto de mim
como o perfume da rosa
no perfume do jardim!
Mesmo faltando uma rima, acho que ficou jóia. E agora o final... um
achado! Uma mensagem cifrada para a minha musa.
Seu amor é minha lei,
minha norma, minha linha!
Tudo o que eu quero e que sei
é que um dia há de ser minha!
Será que ela vai entender? Tem norma e tem minha na mesma
estrofe. Norma... Minha... Norminha! Deu um trabalho danado fazer essa
encaixação...
— Não gostei do final. Está um porcaria comparado com o começo...
Pronto! Eu estava tão enfiado na minha própria inspiração que nem
percebi que a querida companheira de banco estava de olho no meu
caderno. Tratei de cortar o assunto na primeira:
— Ninguém pediu a sua opinião! Metida!
Como sempre acontece nessas horas, a Mariângela se fez de
desentendida e continuou a sua crítica literária:
— Se eu fosse você, trocava a palavra norma por outra coisa
qualquer. É o único porém que está estragando o verso... Fora isso, garanto
que a Lenita vai adorar...
A pata tinha percebido tudo! Eu achei melhor não dar corda e ver se
o assunto morria por ali mesmo. Não era hora de falar da Lenita... e de tudo
o mais. Por sorte o colégio estava perto.
Dei uma de ofendido, me levantei e fui para perto da porta do ônibus.
Pelo espelho do motorista eu saquei que a sonsa da Mariângela estava
morrendo de vontade de rir atrás de mim.
"Aqui tem coisa!", pensei. "Ela está com cara de quem vai me
aprontar alguma... mas eu vou descobrir o que é."
MMiissss MMeeggeerraa ee oo VViinnggaaddoorr
A chegada na escola foi triunfal. O curativo na testa era uma
lembrança perManénte dos meus feitos heróicos do dia anterior. Mais
sucesso do que os meus pontos só o gesso no braço do Mário Japinha, a
essa altura já coberto de mensagens, desenhos e assinaturas.
Rapidinho, dei uma olhada pelo pátio à procura da Norminha. Nem
sinal dela. Só faltava ela não aparecer hoje! Em compensação, flagrei mais
um rápido e sorridente encontro da dupla Mariângela e Lenita.
"Tanto tititi deve estar escondendo coisa...", pensei.
A Lenita percebeu que eu estava olhando para o lado delas e, na mais
pública demonstração de intimidade, mandou-me um beijo voador.
Prudentemente achei melhor ir logo para a classe. No corredor, que ainda
estava vazio, quase trombei com dona Helena.
— Bom dia, Mané. Entrando antes do sinal? O que é que aconteceu?
Eu não podia dizer que estava fugindo da Lenita. Então aproveitei a
oportunidade para fazer um pouco de média. Puxei o caderno e destaquei a
folha com a obra-prima. Não sei por que, mas o coração disparou mais do
que antes daquele bendito pênalti.
— Eu queria lhe entregar antes da aula um texto que eu escrevi. É
um poema. Não sei se está bom e queria a sua opinião.
Dona Helena percebeu que eu estava ficando meio envergonhado
(como custam a passar essas frescuras!) e não falhou:
— Deixe comigo que eu vou ler com calma. E parabéns pelo jogo de
ontem! Soube que você salvou a honra da escola!
Nessa hora tocou o sinal e a turma começou a entrar. A idolatrada
mestra foi para a Sala dos Professores e eu me mandei para a classe. Sentei
na minha carteira, abri o caderno de Inglês e fiz a maior cara de
concentração possível. Na cabeça, a imaginação corria solta: "Pensando bem,
eu também gosto muito da dona Helena. Não é a mesma coisa que eu sinto
pela Norminha. É um outro tipo de atração... uma vontade de estar perto, de
saber da vida dela.
Atenção! A professora de Inglês entrou na classe com o seu
tradicional mau humor.
— Silêncio!
Ninguém brincava com a fera. Respirei fundo e me preparei para
atravessar os próximos quarenta e cinco minutos prestando a maior atenção
possível na aula. O que... não ia ser fácil.
— Ih... Lá vem ela!
A Norminha entrou esbaforida, tropeçando na bolsa e nos livros.
Como era previsível, não escapou da bronca tradicional:
— Sente-se, dona Norma! A senhora sabe que eu não gosto que
ninguém entre na classe depois de mim.
Esse papo de chamar os alunos de senhor ou senhora era um
péssimo sinal. O pescocinho da Lenita se agitou na minha frente. A sacana
estava se divertindo com o aperto da outra. A Norminha nem respondeu. Era
inútil discutir com Miss Megera. Quando ela marcava alguém...
— Dona Norma, vamos ver a sua lição! Apanhe o livro e leia o texto
que eu assinalei na última aula.
Pronto! Tinha carimbado a coitada! Aquele dia a Norminha ia sofrer.
Ela se levantou meio verde de medo. Não era um texto fácil: Shakespeare.
Por sorte eu tinha estudado com atenção, procurando inspiração para as
minhas próprias poetagens. Se sobrasse para mim...
"Canst thou, O cruel, say I love thee not
When I against myselfwith thee partake?
Do I not think on thee when Iforgot
Am ofmyself, all-ty..."
No all-tyrant a coitada, que já vinha gaguejando, empacou. O
pescocinho da Lenita tremia de prazer. Miss Megera, triunfan-te, sapateou
sobre o cadáver da infeliz:
— Na próxima aula a senhora me trará esse soneto copiado vinte
vezes.
Depois, com o olhar esfomeado de sempre, a querida professora
olhou para a classe à procura da próxima vítima. Um pouco mais
democrática, ela perguntou:
— Alguém poderia traduzir esses versos?
Essa bola era para mim. Levantei a mão instintivamente. Mais uma
vez a classe, pasma, se rendeu ao heroísmo do seu goleiro. Miss Megera
sorriu e chutou:
— O senhor tem certeza de que sabe?
— É... eu estudei... acho que sei.
— Então vamos ver o tamanho e a competência do seu... acho. Pode
traduzir, senhor Manoel.
Eu tinha me metido numa muito pior do que a do pênalti. A turma,
gelada de medo, esperava em suspense. Um suorzinho frio apontou no alto
da minha testa, mas agora o jogo estava feito. Firmando as mãos no livro
para não tremer, comecei:
Como podes, ó cruel, dizer que... não te amo, se fico... contra mim
mesmo... para ser teu aliado?
Pronto. O silêncio total de Miss Megera e da platéia mostrava que
pelo menos eu tinha pulado para o lado certo. Mais calmo eu enfrentei os
dois últimos versos:
Não é pensar em ti... se de mim me esqueço preso ao amor... tão
tirano... que me causas?
Como no dia anterior, eu senti nitidamente a bola batendo na minha
mão espalmada e sendo desviada para longe do gol. O corpo relaxou. Eu
abaixei o livro e fiquei olhando para a cara da professora. Ela estava mais
abismada do que eu.
— Parabéns, senhor Manoel. Uma bela tradução. Pode se sentar.
A bunda bateu com força na carteira. Eu olhei para o lado da
Norminha e vi que ela estava muito emocionada. Eu tinha vingado a honra
ofendida da minha amada. Vontade de puxar a espada, gravar a marca do
Zorro na barriga de Miss Megera e sair gritando pelo mundo: "Aiôôôô, Silver!"
FFrraannggoo àà vviissttaa!!
A aula seguinte era da querida dona Helena. Eu estava em plena
maré de glória. A Norma me mandava os olhares mais comovidos e
espichados, enquanto a Lenita jogava o delicado pezinho para trás da
carteira à procura de algum contato mais íntimo. Essa eu driblava... Não
escapei porém do bilhetinho.
"Te amo, te quero, te adoro! Você é lindo demais!
Vou te agarrar no intervalo!"
Terrível ameaça! Justo agora que a Norminha estava dando aquela
bandeira toda para o meu lado? Senti que ia entrar em pane. O corte na
cabeça começou a latejar. Depois de defender o pênalti e a tradução eu
saquei que essa bola (a mais ameaçadora de todas) ia passar embaixo das
minhas pernas. Frango à vista! Sufoco de situação!
"Tenho que dar um jeito de escapar dessa garota!"
Graças a Deus, Miss Megera passou o bastão direto para dona
Helena. Sem intervalo entre as aulas, o perigo mais imediato foi
provisoriamente afastado. Mas, como sempre acontece quando o professor é
bom, a aula de Português passou rápido. Um pouco antes de tocar o sinal, a
professora olhou firme para o meu lado.
"Lá vem chumbo!", pensei.
— Para terminar nossa aula eu gostaria de chamar à frente o nosso
acadêmico Manoel Otávio Leme da Fonseca. Hoje, antes da aula, ele me
entregou um poema de sua autoria.
Zoeira na classe! Decididamente aquele era o meu dia. Dona Helena
pediu calma e continuou:
— Eu gostaria que ele mesmo lesse o trabalho para vocês. Por favor,
Mané.
Sarava! Santa Gema! Jesus Cristo! Dessa vez com as pernas
tremendo pra valer eu fui para a frente da turma. Dona Helena me estendeu
a folha com o poema... eu agradeci e ataquei de cor, olhando o mais firme
que a situação permitia nos olhos da Norminha.
Toda vez que eu a vejo
se agita meu coração...
Peguei confiança e embalei na declamação, até o grande final do "há
de ser minha!". Dona Helena puxou as palmas. Aí... aconteceu a maior
desgraça! Uma vozinha fina cortou o ar e o clima:
— Meu poeta!
Apesar da "norma" do verso, a Lenita se fez de desentendida, veio
correndo, se jogou nos meus braços e me tascou o maior beijo! Os aplausos
se transformaram em delírio. Quando eu consegui me livrar do amasso em
público e a poeira baixou... a Norminha tinha sumido.
PPiiccuuiinnhhaa,, ppêênnaallttii ee ppooeessiiaa
Voltei para casa sozinho, chutando lata na calçada. Não quis esperar
a carona do pai nem agüentar a irmã no ônibus. Fui a pé mesmo. Mais de
oito quilômetros. Triste final para uma seqüência de tão maravilhosos
sucessos.
Como é que eu ia explicar para ela?
A Lenita já não era problema. Para escapar do beijo interminável eu
quase a joguei pela janela. Essa não iria me procurar nunca mais. Quanto à
Mariângela, ela também não iria esperar muito para ter o seu troco... Eu ia
torcer o pescoço daquela palmípede fofoqueira!
Agora eu só queria saber com que cara iria à festinha do sábado.
Tudo que eu tinha montado — Operação Picuinha, Projeto Pênalti e Plano
Poesia — tinha ido por água abaixo. Bem na hora em que eu já estava
sentindo o gosto da vitória final.
Ela ia me namorar... estava na cara que ia.
Droga de vida! Cheguei em casa arrasado. Recusei o almoço materno
guardado em banho-maria e me tranquei no quarto:
— Hoje não saio daqui nem para tomar banho! Droga de futebol!
Droga de tradução! Droga de pênalti! Droga de poesia! Droga de irmã! Droga
de Lenita! Droga! Droga! Droga!
Tanto praguejei, tanto chorei, tanto xinguei... que acabei me sentindo
melhor. Quando a fome apertou, desci para fuçar na geladeira... Santo Deus!
Bolo de abacaxi!
Mamãe sabia o filho que tinha. Para mim não há desgraça que resista
a um grande, enorme pedaço de bolo de abacaxi. Caí de cabeça na massa
fofa, na calda amarela e melada... e voltei a ficar em paz com a vida.
2
2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao
conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
FFeebbrree,, aallhhoo ee lliimmããoo
Dor de cabeça é pouco. Eu amanheci na sexta-feira com a cuca
rachada ao meio. Nada a ver com o glorioso corte esportivo, que já estava até
secando, formando casquinha. Eu, que nunca fui de beber mais do que taça
de sidra em réveillon e colarinho de cerveja em almoço de domingo, pensei:
"Ressaca deve ser isso..."
Acho que era ressaca de excesso de emoções... fora o medo de ter de
ir à escola e enfrentar outro round do combate Lenita versus Norminha. Eu,
hein... ?
— Vai ou não vai? Resolva logo, antes que eu perca a hora! A
fofoqueira estava aflita. Mamãe subiu com o café da manhã.
Olhou a minha cara, entocado dentro das cobertas, viu que dali eu
não sairia mesmo e tratou de liberar a pata afobadinha:
— Vá sozinha, Mariângela. Seu irmão está doente.
É claro que a Mariângela não saiu sem deixar no ar o seu comentário
sobre o assunto:
— Desde quando covardia é doença?
Depois de meia hora e uma aspirina a dor começou a ceder, o corpo
relaxou e os olhos conseguiram suportar a luz. Ufa!
— Deve ser enxaqueca... — comentou mamãe. — Agora fique mais
um tempo no escuro até melhorar bem. Eu vou cuidar do almoço. Se
precisar, chame.
Mais calmo, o cérebro deu a partida e começou a funcionar. Parecia o
motor frio do Amarelinho peidando e rateando... Demorou a engatar o
primeiro raciocínio: o que estaria acontecendo na escola?
Minha vontade era de que a Norminha desse uma surra na Lenita.
Bobagem. A essa altura, o único bandido era eu. Vai ver as duas estavam até
conversando sobre o caso no canto do pátio... e dando risada do idiota aqui.
Trimmmmmmmmmmmmm!
O telefone tocou lá embaixo, mas a campainha berrou dentro da
minha cabeça...
— Atenda logo, mãe!!!
— Não, ele está com muita dor de cabeça. Só isso. Está bem. Eu digo
para ele. Obrigada. Até logo.
Quem seria a alma caridosa? A Norminha, nem pensar. Talvez dona
Helena. Com certeza a descarada da Lenita. Sabe-se lá o que a Mariângela
teria dito para ela... Graças a Deus, não era nem uma nem outra.
— O Tiago ligou para saber de você, meu filho! Disse que é para você
ficar bom logo e não se esquecer da festa de aniversário dele amanhã.
"Ainda bem que eu tenho amigos!", pensei.
Engraçada essa coisa de amizade! Desde pequenos criamos um laço
muito forte com os colegas da classe. O esporte faz crescer ainda mais a
confiança entre a gente. É uma espécie de trato de lealdade. Um respeita o
outro e, se pintar sujeira, pode até resolver o caso no tapa, mas a briga não
atrapalha a amizade. Agora... quando as meninas entram na história...
Acho que eu não entendo o que passa pela cabeça delas... Será que
vai ser assim a vida inteira? Eta mistura complicada de atração com
desentendimento! Você vai de peito aberto, bate com a cara na porta. Volta
para casa arrasado, encontra uma carta de amor... Não dá para se prever
nada! Parece que no jogo delas não tem regra...
De repente eu percebi que estava muito quente no quarto. Resolvi
levantar e abrir a janela. Quando coloquei os pés no chão, o teto girou e eu
quase caí no chão:
— MÃE!
O termômetro marcou 39 graus! Droga! Será que eu estava mesmo
doente?
— Deve ser gripe. Tome mais uma aspirina e não saia da cama. Se a
febre não ceder eu chamo o farmacêutico.
Pânico! E a festa, no dia seguinte? Eu tinha de ficar bom de qualquer
jeito.
— Eu quero tomar uma injeção! A mais forte que existir! Mãe que é
mãe entende das coisas. Passou a mão na minha cabeça e resmungou:
— Faça tudo o que eu mandar e até amanhã você estará curado. Vou
fazer um chá de alho com limão.
Alho com limão! Bom... se fosse esse o preço da cura milagrosa. ..
Preparei o estômago para ingerir a poção mágica da bru... da fada madrinha.
Logo depois a mãe voltou com a xícara na mão.
— Arghhhhhh!
— Tome tudo!
Difícil inventarem coisa mais amarga e fedida do que aquela. Tapei o
nariz e virei num gole. A curandeira ainda me gozou:
— Fique tranqüilo que até a festa também vai passar o bafo do alho...
Agora durma um pouco. Você vai suar bastante e acordar bem melhor.
Eu resolvi obedecer. Agarrei o travesseiro, fechei os olhos e limpei a
cabeça de tudo quanto fosse idéia nervosa. Principalmente meninas...
UUmm rraaiioo ddee lluuzz!!
Quando eu acordei não sabia bem onde estava nem que horas
seriam. Efeito do chá ou da febre. Aos poucos fui me encaixando na
realidade. Era o meu quarto. O raio de luz que entrava pela veneziana
entreaberta estava batendo no pôster da baleia azul. Um belo efeito! Com
certeza já era de tarde.
— Puxa! Como eu dormi!
Passei a mão na cabeça. Molhada e fria. Graças a Deus! A febre já
tinha ido embora. Arrisquei levantar a cabeça do travesseiro. Um pouco de
tontura mas nenhuma dor. Vontade de pular fora da cama e tomar uma
enorme chuveirada!
"Hoje você não sai da cama..." Lembrei-me da recomendação
materna. Era melhor não fazer nada sem consultar a santa curandeira.
Nisso, a porta se abriu bem devagar...
— Eu já acordei. Pode entrar, mãe.
Não era a mamãe. Era a pata. Suspiro fundo de paciência fraterna.
— Oi, Mané!
— Oi...
— A mãe foi até o supermercado e pediu para eu ficar olhando você.
Passou a febre?
— Acho que passou.
Com muita delicadeza e uma surpreendente dose de carinho a
Mariângela sentou-se ao meu lado e colocou a mão na minha cabeça. Essa
irmã! Às vezes eu tenho vontade de torcer o seu pescoço. Outras, de abraçá-
la e de beijá-la.
— O pessoal da escola mandou um abraço pra você.
— O pessoal... quem? — arrisquei perguntar.
— O Tiago, o Gabriel, dona Helena... e a Lenita.
— Ela está muito chateada comigo?
Mariângela fungou e fez uma pausa inexplicável para quem não
gostava de ficar quieta. Eu continuei no vazio:
— Ela é uma garota legal. Eu não devia ter usado a Lenita para fazer
ciúmes para a Norminha.
— Pensa que a gente não sabia disso, seu bobo?
— A gente quem?
— Eu e a Lenita, é claro! Você quis jogar com ela... e nós jogamos
com você.
— Como é que é?
— Não fique nervoso que a febre volta! Depois daquele vexame
público da segunda-feira eu percebi que até você estava a fim de dar um
troco para a Norminha... Arranjar uma namorada rápido para fazer
picuinha... Então eu resolvi ajudar. Por sorte você escolheu a Lenita.
Eu estava abismado! As duas tinham feito de mim gato-sapato o
tempo inteiro e eu nem aí! Homem é um bicho muito burro! E a Lenita se
fingindo de apaixonada... e os beijos e os abraços! Só para me salvar das
garras da Norminha!
— Mas no fim... eu ia acabar ficando com a Norma.
— Pois é... quando a Lenita percebeu que a bandida ia ganhar a
parada e cair nos seus braços, pulou na frente.
— Mas que sacanagem... — foi tudo o que eu consegui murmurar.
Com a cara mais santa e inocente do mundo a santa irmãzinha
pegou na minha mão.
— Desculpe, Mané. Eu sei que você está chateado e com razão. Eu
não devia ter brincado com os seus sentimentos. O pior é que agora...
Valha-me Deus! Ainda havia um pior! Não conseguia nem imaginar o
que poderia ser essa nova desgraça.
— Agora a Lenita está gostando de você pra valer.
— Dane-se... Eu quero a Norminha!
— Mas a Lenita é uma menina tão legal... Pense bem.
— Já pensei, já fui e já voltei. Agora é que eu não quero nada com
ela! Nem de farra, nem de brincadeira! E tem mais: você vai desfazer esse
rolo todo com a Norma!
— Eu sabia que isso ia acabar acontecendo. O que é que você quer
que eu faça?
— Qualquer coisa, sei lá! Você telefona para ela e conta a história
toda.
— Telefonar eu não telefono. Tenho vergonha. É muita humilhação...
— Então escreve uma carta.
— Dizendo o quê?
Comecei a perceber que o assunto estava engripando. Se eu não
aproveitasse a rápida crise de remorso ainda ia perder a oportunidade de
limpar a barra com a Norminha.
— Pegue o meu caderno em cima da mesa e escreva tudo o que eu
ditar.
A Mariângela nem chiou. Finalmente eu tinha assumido o comando
da situação.
— E capriche na letra!
— Não precisa. Minha letra é muito boa.
— Então escreva: Querida Norma...
— Querida eu não escrevo nem morta!
A coisa não ia ser fácil. Era melhor ter um pouco de paciência antes
que a raiva começasse a esquentar a minha cabeça.
— Está bem, vamos ser mais formais. Comece de novo: Norma, estou
escrevendo esta carta para explicar uma situação muito delicada.
— Devagar, que eu não sou taquígrafa! De... li... cada. Veja lá o que
você vai me obrigar a escrever.
— Continue: Meu irmão Manoel, o Mané, está apaixonado por você e
até escreveu uma poesia que tem o seu nome. Você deve ter percebido...
— Você está se entregando demais... — ponderou a maninha.
— Problema meu! Vamos lá: Acontece que eu e a Lenita aprontamos
uma brincadeira e todos pensaram que ele estava namorando a Lenita, o que
não é verdade. Ele gosta mesmo é de você...
— Ai, que tom horrível de intimidade...
— Quem mandou aprontar? Agora agüente! Está no fim. Escreva:
Como eu gosto muito do meu irmão e não quero atrapalhar a vida dele, estou
mandando esta carta para esclarecer as coisas. Sua amiga...
— Amiga, não!
— Está bem: Sua colega, Mariângela Leme da Fonseca.
A Mariângela acabou a mensagem, assinou e dobrou o papel com a
maior cara de nojo.
— E agora? O que é que eu faço com essa porcaria?
— Entrega para ela, é claro!
— Eu? Nunca! Já fiz muito em escrever a carta! Você que cuide da
entrega.
A Mariângela estava humilhada mesmo. Também... ela é que tinha
inventado a encrenca! Meu problema agora era achar alguém de confiança
para levar a carta até a casa da Norminha. Se eu pedisse para o Tiago... Não!
Era dar muita bandeira. O melhor era eu resolver o caso sozinho:
— Amanhã cedo eu vou de bicicleta até a casa dela. Assim, pelo
menos, eu tenho certeza de que ela vai receber a carta.
Levantei mais aliviado e tratei de esconder a mensagem salvadora
num canto do meu armário:
— Vai que a outra se arrepende...
Já que eu tinha levantado... achei que podia tomar um bom banho.
Além do mais eu estava fedendo a alho... por todos os poros. Entrei no
chuveiro e fiquei horas curtindo aquela água gostosa que me encharcava a
cabeça e escorria corpo abaixo.
A gripe tinha ido embora. A febre tinha ido embora. Eu já podia
sonhar de novo com a Norminha. Lá pelas tantas, a Mariângela começou a
esmurrar a porta do banheiro. Ela achou que eu tinha tido algum treco...
— Está vivo, cara? Abra, Mané!
Eu deixei que ela ficasse bem nervosa e depois soltei a voz no maior
berreiro:
— Sonno un poeta, che cosafaccio?
— Cre-ti-no! — foi a única resposta.
AAlleeggrriiaass ddee uumm ccaarrtteeiirroo
Como é bom poder acordar mais tarde! E como é chato acordar cedo
no dia em que você pode dormir até mais tarde... Assim que a luz do sol
botou a cara na minha janela, os olhos se abriram espantados:
"O dia é sábado!", berrou a alma do poetinha Vinicius nos meus
ouvidos.
Sábado... Era "Hoje ou nunca!". Era "Namorada ou morte!". Era
"Norma, ainda que tarde!". O corpo se esticou gostoso na cama. Que
semana, meu Deus! Só faltava agora a festa do Tiago. A carta da irmãzinha
era meia certeza de vitória...
A primeira coisa a fazer era entregar a mensagem salvadora!
Esperei o barulho da mãe preparando o café na cozinha e pulei da
cama. Enfiei correndo uma camiseta, o jeans e o tênis. Apanhei a missiva
salvadora em seu esconderijo e desci a escada de três em três degraus.
— Que é isso, menino? Caiu da cama? Não faça barulho para não
acordar seu pai.
Minha cara de felicidade não permitia perguntas sobre a saúde.
Abençoado chá de alho com limão! Era evidente que eu estava ótimo! Engoli
o café, dei dois beijos na mamãe e fui apanhar a bíci na garagem.
A rua estava quase vazia. Eu gostava do meu bairro. Tinha sido mais
tranqüilo quando eu era pequeno: menos edifícios, pouco comércio, ruas
calmas..., mas ainda era o meu lugar de sonhos e aventuras e eu me sentia
seguro na geografia de suas esquinas.
A Norminha morava num prédio perto da escola. Eu só não sabia o
número do apartamento, mas isso seria fácil descobrir. No caminho dei uma
parada numa papelaria que estava abrindo. Com o maior cuidado escolhi e
comprei um envelope para colocar a carta.
Ali mesmo, no balcão da loja, caprichei o nome da destinatária:
Norma Maria de Freitas Bueno (era esse o nome inteiro da Norminha). Em
mãos. Pensa que pensa, achei melhor não correr riscos e acrescentei com
letras bem grandes: URGENTE!
— Ótimo! — olhei e aprovei o meu trabalho.
Enfiei o envelope dentro da camiseta para não amassar e toquei em
frente. Delícia de manhã para uma bicicletagem. Pouco trânsito, brisa fresca
no rosto, sensação de liberdade batendo no coração, vontade de cantar:
Toda vez que eu a vejo
se agita meu coração...
Em menos de uma semana eu já tinha esquecido o caso infeliz da
bandeira e aquela conversa besta de galinha e de assanhada! Também,
pudera! Depois do pênalti, do poema e da tradução para Miss Megera, eu era
outra pessoa! Pensando bem... até o casinho com a Lenita tinha me dado
uma força.
Era ali que a Norminha morava. Parei no portão do prédio e fui falar
com o porteiro. Ele sabia quem era ela.
— A Norma, eu sei. A carioquinha do 104. Quer falar com ela? Por
um segundo eu quase caí em tentação. Mas era correr um risco inútil. O
melhor mesmo era deixar que ela lesse a carta sozinha. Depois... esperar o
efeito na festa.
— Por favor, o senhor pode entregar a carta agora de manhã? Ele
percebeu o meu nervoso. Deu uma risadinha meio sem-vergonha e me
confortou:
- Pode ficar tranqüilo. Eu entrego a carta para a sua carioquinha...
Para falar a verdade eu não gostei muito daquele tom de intimidade,
mas não era hora de brigar com o homem. Agradeci mais uma vez, montei
na bíci e voltei, assobiando, para casa. A primeira fase do game estava
terminada.
OO mmeellhhoorr ddaa ffeessttaa......
Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. Eram dez horas da
manhã e eu já estava a mil por hora. Quando cheguei ao "lar, doce lar"
iniciei a segunda etapa do jogo: arrumar a fachada. Há muito tempo o cabelo
vinha pedindo uma podada legal.
— Oi, pai! Solta uma grana que eu preciso cortar o cabelo! O velho
resmungou (eles sempre resmungam nessas horas),
enfiou a mão na carteira e soltou uma nota. Insuficiente.
— Só isso, pai? Hoje é sábado e vai ter festa. Me arranja um pouco
mais, vá! Eu preciso comprar um presente para o Tiago e...
Ainda bem que eu parei por aí. A maninha vinha descendo a escada
de ouvido ligado na conversa. Se ela ficasse sabendo que eu pretendia
comprar alguma coisa para a Norminha ia pôr areia na hora!
— O carteiro já cumpriu a sua missão? — perguntou a sempre
gozadora irmãzinha.
Achei melhor nem responder. O velho cocou a cabeça e soltou mais
duas notas, dizendo:
— Desse jeito a gente não vai trocar de carro nunca...
O sonho do pai era comprar um carro mais novo. O pouco que ele
conseguia economizar era para esse projeto. Volta e meia ele aparecia com
revistas sobre automóveis para ver os preços dos usados, mas a poupança
nunca dava para pagar a diferença. A ordem então era consolar o velho:
— Pra que trocar de carro, pai? O Amarelinho está tão bom... Essa a
Mariângela não perdoou:
— Hipócrita! Está falando isso só porque acabou de levantar uma
grana. Você vive morrendo de vergonha de andar no carro do pai...
Antes que eu tivesse tempo para responder ela disparou o segundo
torpedo:
— E fique sabendo que eu vou à festa com você!
— Mas quem convidou você? O Tiago disse que só ia chamar o
pessoal da classe.
— Pois é... mas a Lenita pediu e ele abriu uma exceção.
— Oferecida!
— Pode ser... mas você acha que eu ia querer perder o espetáculo da
noite? "A grande conquista"!
— Você e a Lenita estão querendo me secar...
— Imaginação sua. O que a gente quer é se divertir...
Papai, que não estava entendendo nada da discussão, resolveu entrar
na conversa.
— Chega de briga. Vá logo cortar o cabelo, meu filho.
— E eu, como é que fico nessa? Não vou ganhar um arranjo no
visual? — atacou a pata.
Antes que papai sugerisse uma divisão da grana que eu já tinha
faturado, tratei de me arrancar o mais rapidamente possível... não sem antes
deixar a marca do Zorro:
— Não jogue dinheiro fora, pai... O caso dela é de cirurgia plástica e
não de cabeleireiro!
Essa acertou em cheio! Antes de chegar ao portão eu ouvi o berro de
mamãe vindo lá da cozinha:
— Não fale assim de sua irmã!
TTiiaarraass oouu ttrraammeellaass??
Já que a ordem era caprichar, fui cortar o cabelo no shopping perto
de casa. Eu sabia que era bem mais caro do que o salãozinho do seu
Ronaldo... mas a ocasião era especial. Caí nas mãos de um tal de Zequito,
uma bichinha muito Manéirosa, mas com cara de competente.
Depois de lavar a minha cabeça com meia dúzia de cremes e xampus,
o artista me propôs fazer um corte curto e batido... sei lá mais o quê! Moda
ou não-moda, fiquei com medo do resultado e acabei dando a ordem de
sempre:
— Corte por igual, sem muita costeleta.
O malandro trabalhava bem com a tesoura. Acerta daqui, apara dali,
o visual foi pegando jeito. Quando achei que já tinha sido tosado o
suficiente, pedi que parasse. O espelho confirmou a beleza da retaguarda.
— Perfeito! — afirmei com a mais entendida das vozes.
O Zequito também parecia estar feliz com o trabalho. Só não gostou
muito da gorjeta. Eu sabia que era meio micha, mas ainda precisava
comprar o presente para o Tiago e a lembrança para a Norminha.
— Até a próxima — eu me despedi.
— Apareça quando quiser... — ele sussurrou baixinho.
Eu, hein! Tratei de me arrancar pisando duro para que ninguém
tivesse a menor dúvida a meu respeito. A turma sempre dizia que frescura é
doença contagiosa. Sei lá! Acho que cada um pode fazer o que quiser com a
própria cuca e o próprio corpo... mas eu queria distância da bicharada.
O passo seguinte foi comprar os presentes. Primeiro fui procurar
alguma coisa bem barata para dar ao Tiago. Assim sobrava mais dinheiro
para gastar com a Norminha. Vira daqui, vira dali, cheguei a uma evidente
conclusão:
— Tem de ser no jornaleiro...
Pobre Tiago! Acabou ganhando um adesivo de caveira para pôr no
seu skate. E agora... agora era achar um presentinho legal para a Norma.
Nessas horas é que a gente percebe que não foi mesmo preparado para
entender de mulher... Droga! Tudo o que eu pensava era caro, tudo o que eu
queria não ia servir para ela!
Depois de rodar na frente de todas as vitrines do shopping, bati os
olhos numa bijuteria. Era um treco de prender o cabelo. Sei lá como é que se
chama! Tiara? Travessa? Tramela? Não importa. Pensei no cabelão bonito da
Norma e decidi:
— É isso aí!
Por sorte o preço também estava na casa do isso aí... Mandei
embrulhar o objeto para presente e desci saltando os degraus da escada
rolante. Quando cheguei em casa para o almoço tive uma ótima surpresa:
— Sua irmã foi passar o dia na casa da Lenita. Mandou dizer que
encontra você na festa.
Maravilha! Eu ia poder descansar e me arrumar em paz sem ninguém
batendo na porta do banheiro. A lasanha da mamãe estava ótima! Comi meia
travessa. Depois subi para dar uma descansada. O livro do patrono Vinicius
estava na mesinha de cabeceira.
"Vou dar uma lida para me inspirar...", pensei. Abri ao acaso. Eu
imaginava que assim iria encontrar uma mensagem certa para mim. Vamos
ver:
"Tu me levaste, eu fui... Na treva, ousados
Amamos vagamente surpreendidos
Pelo ardor com que estávamos unidos
Nós que andávamos sempre separados."
Meu Deus! Seria um aviso? Uma premonição? Tomara que 0 Vinicius
estivesse certo! No embalo da imaginação, da lasanha e do passeio matinal
de bicicleta os olhos foram se fechando rapidamente... Ainda pensei em ligar
o despertador, mas a cabeça, quase apagando, me mandou um último
recado: "Bobagem. Mamãe não vai me deixar perder a festa..."
00 rroocckk ddaass eessttrreellaass
Banho tomado, corpo esfregado, dente escovado, sovaco
desodorizado, cabelo penteado, jeans lavado, camisa passada, tênis limpos...
Será que faltava alguma coisa? Os presentes! Pronto. Agora uma última
olhada de corpo inteiro em frente ao espelho da irmã. Se ela estivesse em
casa, sabe Deus o que eu leria de ouvir!
Ainda bem que a noite estava bonita e o Tiago morava perto. Mamãe
também deu uma revisada na aparência geral:
— Aprovado! Nem parece meu filho.
Papai informou que não iria dormir enquanto a gente não voltasse:
— Eu vou ficar vendo os filmes da Sessão Coruja. Podem me telefonar
quando a festa estiver acabando. Eu vou buscar vocês.
— Boa sorte, Mané.
Mãe que é mãe sabe das coisas... e merece mais dois beijos de
despedida. Agora... à luta! Olhei no relógio. Estava na hora.
Depois do portão um último pedido:
- Santa Gema que me proteja!
Fiz o sinal-da-cruz como motorista de caminhão quando sobe na
boléia e me atirei noite afora. Eu tinha certeza de que tudo ia dar certo. A
carta, o presente... O que eu estava sentindo era puro nervoso de vestiário.
Sempre passa na hora em que o time entra na quadra.
— Mais dois quarteirões...
A casa estava toda iluminada. O ruído da música foi se aproximando
aos poucos. A festa ia ser na garagem. Nessas horas eu queria ser como o
Robocop, para enxergar os detalhes a quilômetros de distância.
— Será que a Norma já chegou?
— Calma, que ela não veio ainda... — informou a querida mana,
plantada perto do portão.
— Boa noite, Mané... — emendou uma vozinha muito humilde e doce.
Passei reto para não ter de ficar batendo papo com a Lenita. Tudo o
que eu queria era distância dela. Depois... vai que a Norma chega e me
encontra conversando com a infeliz!
Fui direto falar com o Tiago. Não é que ele gostou do adesivo? Depois
pedi para guardar no seu quarto o pacotinho do presente. O amigão não
perguntou o que era nem para quem era. Só me fez uma pergunta:
— Me conte uma coisa, Mané. Você está namorando a Lenita? Eu
fiquei besta. Por essa eu não esperava! Tratei de responder rápido e firme:
— Nem pensar! O que aconteceu aquele dia na classe foi só uma
brincadeira. Se você estiver a fim dela... sinal verde e caminho livre!
Percebi que o Tiago fungou aliviado. A história estava indo melhor do
que a encomenda. Se ele atacasse a Lenita, facilitaria ainda mais as coisas
para o meu lado. Virei os olhos para cima e pensei: "Santa, Santa, Santa
Gema!"
Antes de voltarmos para a garagem-salão de festas demos uma
passada pela cozinha e uma bicada no ponche...
— Não adianta beber muito, pois está bem fraquinho... — avisou a
mãe do aliviado e sorridente aniversariante.
Nessa hora começou a chegar gente. Eu fiquei conversando com a
turma, de olho na porta. Da Norma... nem sinal! Em compensação saquei
que o Tiago não parava de paparicar a Lenita. A sonsa parecia surpresa e
encantada com o súbito interesse dele.
De repente, não mais que de repente... Agüenta, coração! Era ela!
Linda! Lindona! Minhas pernas tremeram... Quem é que devia falar primeiro
com quem? Eu nem podia tocar no assunto da carta... Tinha de fazer de
conta que não sabia de nada. E esperar a reação.
Fiquei no meu canto, de olho pregado na Norminha. Ela estava
procurando alguém. Seria eu? Seria?
SCRECKZZZZZZZZZ!
Era! Quando o olhar da gente se cruzou o ar tremeu. Eletricidade
pura... Faísca! Relâmpago! Curto-circuito! Fogo! Incêndio! Queimada! Os
pelinhos do braço arrepiaram tanto que eu me senti um porco-espinho
eletrocutado por milhões de volts!
Flutuando! Atravessei a garagem flutuando. Leve, leve... muito mais
leve do que a música e do que o ar. E ela veio em minha direção. Começamos
a conversar com a cabeça roçando o teto e os pés a meio metro do chão:
— Oi...
— Oi...
— Que bom que você veio!
— Que bom que você está aqui!
— Eu adorei a sua poesia.
— Eu fiz para você.
— Eu percebi. E também a tradução...
— Eu fiz para você.
— Você quer me namorar?
— Quero... muito.
— Eu também. Desculpe pela cena da segunda-feira.
— Já esqueci.
Minhas mãos ancoraram nos dedos da Norminha e a gente começou
a voltar à terra, balançando como duas pipas sem vento.
— Eu gosto de você...
— Eu te adoro...
— Quero dançar com você.
— Eu também quero.
— Me abrace...
Bem de leve, muito leve, leve, leve, eu abracei a Norminha e a
garagem-salão-festa-vida-planeta-universo começou a girar como se fosse a
estação orbital do filme 2.001! Meu tênis rangia no piso. Viva Strauss! Sei lá
que raio de música estava tocando. Mesmo que fosse um samba, para mim
aquilo era a "Valsa das estrelas"... se é que essa coisa existe!
— Você dança muito bem...
— Eu não estou ouvindo a música.
— Nem eu.
Voar. Emoção do pênalti. A bola voando. O corpo voando. Explosão
da defesa. Dança pura. Voar. Emoção do verso. A palavra voando. A
imaginação voando. De repente a rima se encaixa na métrica Amor! Corpo e
sentimento voando juntos na mesma rota de encontro. Pele. Dança. Pênalti.
Poesia. Paixão.
— Eu vou chorar de alegria.
— Eu vou chorar de emoção.
Nessa hora meu olho esquerdo semimergulhado nos cabelos da
Norminha deu uma rápida focada na realidade. Pânico! Estava todo mundo
parado, boquiaberto, abismado, de olho comprido na gente. Espanto e inveja
de tanto amor.
— Não abra os olhos.
— Eu estou sonhando.
Liguei a audição. A valsa que girava na nossa cabeça era um
tremendo rock — quem sabe, o uRock das Estrelas"... se é que essa coisa
existe.
— Eu te amo.
— Eu te amo.
Aflito, meu olho disponível deu uma piscada para o Tiago. Ainda bem
que o amigão é ligeiro no gatilho! Agarrou a Lenita, caiu na dança... e a festa
começou pra valer. Encostada num canto da garagem a patinha comovida
me mandou um adeusinho. Querida irmãzinha! A Norma percebeu.
— Sua irmã foi muito legal.
— A Mariângela é minha melhor amiga.
Será que felicidade é isso? Descoberta. Deslumbramento. A vida é
deslumbramento! O amor é deslumbramento! Ser assim é um prazer. Rosto
no rosto. Sonho no sonho. Voz, respiração, perfume...
Eu sinto a sua presença
sempre tão perto de mim,
como o perfume da rosa
no perfume do jardim...
—Você é maravilhoso.
—Você é linda.
—Você é meu.
—Você é minha.
— Você é...
—Você é...
—Você...
—Você...
n
AAUUTTOORR EE OOBBRRAA
Este é um dos livros que eu escrevi com mais prazer. A explicação é
simples: cada pedacinho dele é uma fatia, real ou fantasiada, do meu
passado. A família, os professores, os colegas, o futebol, as primeiras
namoradas... Está tudo lá!
Meu pai tinha um Chevrolet 1936, verde-garrafa. Eta coisa feia!
Desde o curso primário (hoje 1.° grau) eu jogava nos times da turma, como
goleiro. Comecei a escrever versos aos treze anos, graças aos empurrões
amigáveis do professor Adelino da Silva de Azevedo, o Azevedinho.
Quanto às festinhas de fins de semana... nós éramos um bando de
inocentes apaixonados. Em tempo: eu dançava mal, muito mal mesmo.
Bem... E a Norminha, que fim levou? A última vez que eu vi a santa
criaturinha ela estava numa doceria, acompanhada por duas netas... Fiquei
tão nervoso que quase derrubei a casquinha do sorvete na cabeça do meu
filho.
Todas essas pequenas coincidências não indicam que este livro seja
inteiramente autobiográfico. Ele é — isso sim! — o grito de alegria ("Beijei a
garota!", "Peguei o pênalti!") do jovem Queiroz que mora eternamente dentro
de mim.
E viva a vida! O mundo é nosso, garotada!
Carlos Queiroz Telles
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