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Organizadores - IBDU · Betânia Alfonsin Ellade Imparato Evangelina Pinho Nelson Saule Júnior Rodrigo Dantas Bastos Biênio 2009-2010 Ellade Imparato Fernando Bruno Henrique Frota

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OrganizadoresAdriana Nogueira V. Lima

Daniela LibórioEdésio FernandesEllade Imparato

Fernanda Costa CarolinaFernando Dantas

Jussara Maria Pordeus e SilvaLeticia Marques Osório

Nelson Saule JúniorPaulo RomeiroRosane Tierno

Vanêsca Buzzolato Prestes

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Porto Alegre, 2009

Organizadores

Diretoria do IBDU

Adriana Nogueira V. LimaDaniela Libório

Edésio FernandesEllade Imparato

Fernanda Costa CarolinaFernando Dantas

Jussara Maria Pordeus e SilvaLeticia Marques Osório

Nelson Saule JúniorPaulo RomeiroRosane Tierno

Vanêsca Buzzolato Prestes

Biênio 2007-2008Betânia AlfonsinEllade Imparato

Evangelina PinhoNelson Saule Júnior

Rodrigo Dantas Bastos

Biênio 2009-2010Ellade ImparatoFernando BrunoHenrique Frota

Paula Lousada RavanelliRosane Tierno

Diretoria da Editora Magister

Ana Maria PaixãoFábio Paixão

José Roberto PenzLuiz Antonio PaixãoRogério RodriguesTuchaua Rodrigues

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Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquermeio ou processo, sem prévia autorização do autor. (Lei 9.610, de 19.02.98 – DOU 20.02.98)

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

A533 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico – Manaus2008: O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasilei-ra de 1988 – Balanço e Perspectivas / [Organizado por] NelsonSaule Júnior et al. – Porto Alegre : Magister, 2009.

16x23 cm. ; 443 p.ISBN 978-85-85275-20-4

1. Direito. 2. Direito Urbanístico. 3. Planejamento urbano. I. SauleJúnior, Nelson.

CDU 349.44

Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273

Copyright 2009 by Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, Nelson Saule Júnior

1ª edição: novembro de 2009

Editoração Eletrônica: Editora Magister

Revisão: Nelson Saule Júnior e Camila Gerassi

Capa: Apollo 13

Alameda Coelho Neto, 20 / 3º andar91340-340 – Porto Alegre – RS

(51) 3027.1100 – www.editoramagister.com

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Apresentação

O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU, é uma associação civilde âmbito nacional dedicada a estudos e pesquisas no campo do direito urbanístico,quetem como finalidade entre outras:

I. Promover a consolidação da disciplina do Direito Urbanístico nas faculdadespúblicas e particulares;

II. Reunir especialistas em estudos urbanos de diferentes ramos disciplinaresnacionais e internacionais, voltado para as modalidades do direito urbanístico e odesenvolvimento sustentável da cidade;

III. Desenvolver pesquisas que servirão de apoio a políticas governamentaisna área urbanística;

IV. Promover congressos, cursos, palestras, encontros, seminários multidisci-plinares, bem como editar e publicar estudos e pareceres técnicos periódicos queenvolvam a área de direito urbanístico e planejamento urbano.

O IBDU surgiu a partir da realização de diversos congressos científicos, quecontaram com a participação de juristas, operadores de direito, urbanistas, pesquisa-dores, estudantes e demais profissionais que atuam com o tema do urbanismo e, todoo Brasil.

Os congressos são dedicados à apresentação e discussão de trabalhos científicose pesquisas acadêmicas realizadas sobre direito urbanístico, que abordam temas atuaise relevantes.

O V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico realizado na cidade deManaus, entre os dias 16 e 19 de novembro de 2008, como mote central, discutiu osavanços e as dificuldades para a consolidação do Direito Urbanístico brasileiro nestesvinte anos que transcorreram desde que a promulgação da Constituição brasileira,em outubro de 1988.

O V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico promoveu um balanço sobrea evolução do direito urbanístico brasileiro no decorrer dos 20 (vinte) anos daConstituição Brasileira de 1988, mediante o debate e diálogos públicos com osdiferentes sujeitos que atuam nos Poderes Públicos, na academia e na sociedade civilsobre o Direito Urbanístico e a ordem jurídica urbanística brasileira.

Como é sabido, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu normas especí-ficas, sobre a política urbana, voltadas à promoção do desenvolvimento das funções

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sociais da cidade, da função social da propriedade urbana e do bem estar dos habitan-tes das cidades brasileiras. Estas normas foram disciplinadas infraconstitucionalmentepelo Estatuto da Cidade, que adotou um conjunto de diretrizes, instrumentos e medi-das para os objetivos da política urbana serem alcançados como o estabelecimentoda democracia participativa através da gestão democrática das cidades, dos seus ha-bitantes terem acesso a condições dignas de vida com o desenvolvimento do direitoa cidades sustentáveis.

A realização de um balanço sobre o direito urbanístico nos 20 anos daConstituição Brasileira teve como foco avaliar a evolução da ordem jurídicaurbanística brasileira, o estágio da sua assimilação pelas instituições e agentesresponsáveis pela promoção da política urbana, tais como autoridades e gestorespúblicos, operadores do direito, considerando os paradigmas emergentes desta ordemjurídica, fundados nas funções sociais da cidade, função social e ambiental dapropriedade urbana, direito à cidade, gestão democrática da cidade e desenvolvimentourbano sustentável. Pretende-se, então, discutir os olhares dos diferentes sujeitosque atuam nos Poderes Públicos, na academia e na sociedade civil sobre o DireitoUrbanístico, bem como debater as interfaces do Direito Urbanístico com outros ramosdo Direito.

A escolha da cidade de Manaus para a realização deste Congresso teve comoestratégia propiciar uma avaliação sobre a aplicação do direito urbanístico nas cidadesda Amazônia que por conterem uma diversidade cultural e territorial, exigem umaabordagem específica sobre a possibilidade da aplicação dos instrumentos e institutosjurídicos da política urbana previstos na ordem jurídica urbanística.

Os trabalhos científicos deste Congresso foram apresentados e discutidos nasseguintes oficinas temáticas:

1 – A Ordem Jurídica Urbanística e Regularização fundiária

2 – Ensino jurídico do Direito Urbanístico

3 – A Ordem Jurídica Urbanística e a Função Social das Terras Publicas

4 – Instrumentos para a governabilidade das Cidades / a gestão democráticadas Cidades

5 – Proteção do Direito à Cidade, a ordem urbanística e a sua judiciabilidade

6 – Proteção do Direito à Moradia nos Conflitos Fundiários Urbanos

7 – Formas e Instrumentos de regulação do mercado de terras

8 – A Revisão da Legislação do parcelamento do solo urbano – balanço enovas perspectivas

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9 – Plano Diretor participativo e instrumentos de política urbana

10 – A Aplicação da Ordem Jurídica Urbanística nas Cidades da Amazônia

A publicação dos Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico comos trabalhos científicos sobre os temas de direito urbanístico, estimula e possibilita ea promoção de troca de experiências para todas as pessoas que desenvolvam atividades,estudos, pesquisas neste campo do conhecimento do direito.

A oportunidade da publicação dos trabalhos científicos do Congresso atendeos objetivos de fomentar a produção científica e propiciar um maior aprofundamentocientífico sobre temas de direito urbanístico , bem como de disseminar e analisarexperiências sobre a aplicação e implementação da ordem jurídica urbanística nascidades brasileiras.

Nelson Saule Júnior

Presidente do IBDU

Biênio 2006-2008

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Sumário

1. A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

O território da dicotomia urbanístico-ambiental: a favelaRaphael Bischoff dos Santos ..........................................................................................15

Loteamentos irregulares e clandestinos: sua regularização no município de PortoAlegre

Leila Maria Reschke, Luciano Saldanha Varela, Simone Santos Moretto ,Simone Somensi .............................................................................................................29

Desafios do serviço legal em ações de usucapião coletivo no judiciário paulista:experiências de extensão universitária na comunidade do Paraisópolis

Rodrigo Ribeiro de Souza, Ana Carolina Navarrete, Marco Aurélio Purini Belém,Renata Gomes da Silva, Stacy Natalie Torres da Silva ..................................................43

Retomando a problemática da integração das favelas à cidade: Após 20 anos da“Constituição Cidadã”, o Estado de Direito chegou às favelas?

Alex Ferreira Magalhães ...............................................................................................55

2. A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E A FUNÇÃO SOCIAL DASTERRAS PÚBLICAS

Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: fundamentos jurídico-urbanísticos, aplicabilidade e gestão pós-titulação, no Município de Osasco, SãoPaulo

Patryck Araújo Carvalho ...............................................................................................71

Aluguel entre particulares em áreas públicas municipais: considerações sobreconflitos enfrentados na implementação do programa paulistano de regularizaçãofundiária de favelas

Ana Paula Bruno, Candelaria Maria Reyes Garcia, Raphael Bischof dos Santos .......85

Fundamentos e instrumentos à ampliação da proteção às áreas especiais referentesaos direitos à moradia e ao meio ambiente: notas introdutórias

Marise Costa de Souza Duarte, Maria Dulce P. Bentes Sobrinha ................................93

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10 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

3. INSTRUMENTOS PARA A GOVERNABILIDADE DAS CIDADES / AGESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

Gestão democrática das cidades: a Constituição de 1988 é efetiva?Marinella Machado Araújo, Gabriela Mansur Soares, Mariano HenriqueMaurício de Campos ....................................................................................................103

Governança participativa de áreas públicas: em que avançamos da Constituição de1988 ao Estatuto da Cidade

Marinella Machado Araújo, Gabriela Mansur Soares, Thaís Louzada de Sousa ....... 115

A educação jurídica popular como instrumento do direito à gestão democrática dacidade: a prática extensionista na busca por uma participação popular efetiva

Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Marco Aurélio Purini Belém, Stacy NatalieTorres da Silva .............................................................................................................125

4. PROTEÇÃO DO DIREITO À CIDADE, A ORDEM URBANÍSTICA E ASUA JUDICIABILIDADE

A difícil implementação dos instrumentos urbanísticos quando da revisão dalegislação do uso e ocupação do solo urbano

Tatiana Monteiro Costa e Silva, Marcel Alexandre Lopes ..........................................139

Política habitacional no Rio de Janeiro: dez anos de morar sem risco (1994 a 2004)Roberto Jansen das Mercês .........................................................................................151

Acesso à justiça e segurança da posse da terra: obstáculos judiciais à regularizaçãofundiária plena

Vera Lúcia de Orange Lins da Fonseca e Silva, Juliana Accioly Martins ..................163

5. PROTEÇÃO DO DIREITO À MORADIA NOS CONFLITOSFUNDIÁRIOS URBANOS

Conflitos fundiários urbanos: o dilema do direito à moradia em áreas de preservaçãoambiental

Ana Maria Filgueira Ramalho, Vera Lúcia de Orange Lins da Fonseca e Silva ........179

Vila Itororó: direito à cultura como ameaça ao direito à moradia?Aline Viotto , Bianca Tavolari, Jonnas Vasconcelos, Yasmin Pestana .........................187

A experiência do SAJU-USP na Vila Itororó: assistência e assessoria podemcaminhar juntas?

Caio Santiago, Paulo L. Martins, Rafaela Oliveira, Vivian Barbour ..........................201

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 11

Pluralismo jurídico e o direito à moradia em FortalezaFrancisco Filomeno de Abreu Neto ............................................................................. 211

Direito à moradia: os planos diretores da RMBH aplicam o Estatuto da Cidade e aConstituição Federal de 1988?

Naiane Loureiro dos Santos, Circlaine da Cruz Santos Faria, Marinella MachadoAraújo ..........................................................................................................................223

6. FORMAS E INSTRUMENTOS DE REGULAÇÃO DO MERCADO DETERRAS

Dinâmica urbana e a legalização da produção do espaço (i)legalKênia de Souza Barbosa ..............................................................................................237

7. A REVISÃO DA LEGISLAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLOURBANO – BALANÇO E NOVAS PERSPECTIVAS

O direito à cidade e a revisão da lei de parcelamento do solo urbanoNelson Saule Júnior .....................................................................................................249

Revisão da lei de parcelamento do solo e ampliação da oferta de terras parahabitação de interesse social: aprendizados de Fortaleza/CE

Antonio Jeovah de Andrade Meireles, Henrique Botelho Frota ..................................275

8. PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E INSTRUMENTOS DE POLÍTICAURBANA

A outorga onerosa do direito de criar solo: a experiência da cidade de Porto AlegreAndrea Teichmann Vizzotto ..........................................................................................289

Uma proposta inovadora: operação urbana consorciada Lomba do Pinheiro – PortoAlegre

Denise Bonat Pegoraro, Cléia B. Hauschild de Oliveira, Andréa Oberrather ...........301

Planejando o território regionalmente: planos diretores para além dos limitesmunicipais

Luiz Alberto Souza .......................................................................................................313

Outorga Onerosa do Direito de Construir: a experiência de BelémHelena Lúcia Zagury Tourinho ....................................................................................325

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12 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

Estudo de Impacto de Vizinhança: a legislação do EIV em Porto AlegreGladis Weissheimer, Maria Tereza Fortini Albano ......................................................339

9. A APLICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA NAS CIDADESDA AMAZÔNIA

Balneabilidade na Praia da Ponta Negra, direito à cidade e ao meio ambienteecologicamente equilibrado

Danielle de Ouro Mamed, Cyntia Costa de Lima, Joelson Rodrigues Cavalcante .....353

Criação de municípios indígenas: desafios ao direito brasileiroCaroline Barbosa Contente Nogueira, Prof.Dr. Fernando Antônio deCarvalho Dantas ..........................................................................................................365

Municipalização da licença ambiental em Manaus: compatibilização entre licençaambiental e urbanística

Edson R. Saleme ..........................................................................................................375

O licenciamento urbanístico no município de ManausJussara Maria Pordeus e Silva ....................................................................................387

Planos diretores, participação popular e a questão indígena: reflexões sobre o textoconstitucional e o Município de São Gabriel da Cachoeira (AM)

Mariana Levy Piza Fontes ...........................................................................................427

Proposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes deManaus-AM

Miguel Angelo Feitosa Melo, Simone Minelli de Lima Texeira ...................................433

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1A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

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O Território da DicotomiaUrbanístico-Ambiental: a Favela

RAPHAEL BISCHOF DOS SANTOS*

Advogado e Mestrando da FAUUSP.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Da realidade enfrentada pelos programas deregularização fundiária; 2. Confusões no debate ambiental sobre a regularizaçãofundiária; 3. Efetividade de políticas ambientais e a rediscussão da cidade;Conclusão; bibliografia

INTRODUÇÃO

As conquistas dos movimentos de moradia e de reforma urbana nos últimosanos fizeram emergir uma disputa legal e institucional nos territórios urbanos, queficara obscurecida anteriormente.

Para a introdução de regimes diferenciados de produção de habitação destina-da à população de baixa renda e para a intervenção do Estado na legalização deassentamentos precários (assim compreendidas as favelas e loteamentos informaisocupadas pela mesma população de baixa renda), foi necessária a revisão de marcoslegais (em especial, com o advento do Estatuto da Cidade), a regulamentação dedispositivos constitucionais, o avanço institucional da burocracia e a construção desistemas nacionais de financiamento. Todos, fatores necessários para uma reformana maneira de ordenar os territórios urbanos.

A montagem de um sistema de habitação voltada à população de baixa renda,sobretudo a consolidação de políticas de regularização fundiária de favelas, parecehaver se processado em descompasso com outro sistema nacionalmente estruturado,qual seja, o Sistema Nacional de Meio Ambiente – o SISNAMA.

* Coordenador de Gestão Patrimonial / Gerência regional do Patrimônio da União em São Paulo. E-mail:[email protected]. Telefone: (11) 9723-5822

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16 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

Mais do que analisar e propor uma eventual sujeição de um sistema a outro, opresente estudo buscará abordar as consequências no descompasso da aplicação deambos nas áreas de preservação permanente localizadas no espaço urbano.

A explicitação desse conflito tornou-se ainda mais pungente em fevereiro de2006, quando o Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA – aprovou emsua 46a Reunião Extraordinária o texto de uma Resolução que propugnava a regula-rização fundiária sustentável de assentamentos informais ocupados predominante-mente por população de baixa renda dentro das faixas definidas como Áreas dePreservação Permanente – APPs.

Um mês após sua aprovação, foi publicada a Resolução n. 369/06, em 29 demarço de 2006.

Em vigor a partir de então, a aplicação da Resolução passa por seu processonatural de consolidação (senão construção) de entendimentos e avaliação de seusdesdobramentos.

É sobre a construção de alguns desses entendimentos que se presta o presente estudo.

1. DA REALIDADE ENFRENTADA PELOS PROGRAMAS DEREGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

O déficit habitacional apontado pela Fundação João Pinheiro e pelo Ministériodas Cidades, a partir dos dados do Censo de 2000, representa a necessidade de5.890.139 moradias1. Os números passam as 6 milhões quando adotados os ajustesestatísticos propostos pelo estudo elaborado pelo Centro de Estudos da Metrópole,contratado posteriormente pelo mesmo Ministério.

Além do déficit, os estudos apontaram as condições de inadequaçãohabitacional, hipótese que não chegaria a configurar déficit em virtude da possibilidadede adequação da possibilidade de melhoramentos da moradia no próprio local.Constituem situações caracterizadoras da inadequação a irregularidade fundiária, oadensamento excessivo, a ausência de banheiro e a carência de infra-estrutura. Nahipótese de inadequação habitacional, os números não se reduzem à necessidade demoradias novas (tal como se opera na questão do déficit habitacional), haja vista apossibilidade de sobreposição de fatores de inadequação. Apenas a título de ilustração,o estudo da Fundação João Pinheiro define a ocorrência, nos aglomerados subnormais(categoria em que o IBGE coloca as favelas), de 433.293 domicílios com irregularidade

1 Disponível em: http://www.cidades.qov.br/secretarias-nacionais/secretaria-de-habitacao/biblioteca/publicacoes-e-artigos/deficit-habitacional-no-brasil-2005/Deficit2005.pdf

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 17

fundiária, 300.250 apresentam adensamento excessivo, 206.489 não possuem banheiroe 677.349 demandam algum tipo de infra-estrutura. Os casos, comumente sobrepondotais hipóteses, representam 1.622.323 moradias inadequadas.

A aferição desses números vem sendo continuamente objeto de discussão juntoaos órgãos formuladores de políticas habitacionais, em virtude da necessidade deadoção de critérios limitados, sobretudo aqueles fornecidos pelos dados do IBGE(Censo de 2000)2. Prova dos dados subestimados pelos critérios do IBGE são asinformações apuradas por Santo André, Curitiba e São Paulo, por meio docadastramento de favelas elaborados por suas respectivas Prefeituras.

Ainda assim, os dados constituem fonte oficial de informação para o próprioMinistério das Cidades, na ausência de qualquer outro dado de melhor qualidade. Esão bastante ilustrativos da realidade imposta às gestões públicas.

Com efeito, somado o déficit às situações de inadequação, a atuação dos agentespúblicos acaba havendo que implementar medidas eminentemente curativas para cercade 7,5 milhões de moradias pelo país.

Obviamente, a essas medidas, acrescentam-se outras políticas habitacionaisvoltadas à provisão de moradia originada a partir da nova demanda a ser projetada, aqual não se confunde com a provisão de moradias para atendimento do déficit.

Nesse estudo, reforça-se o contexto atual para se proceder a uma análise daspolíticas habitacionais destinadas exclusivamente a medidas curativas no ordenamentoterritorial das cidades.Pretende-se, aqui, relacionar os números do déficit habitacionalcom a ocorrência de favelas em áreas com restrições ambientais. A aferição do númerode famílias irregularmente ocupantes de áreas urbanas e atingidas pelas APPs nãosabido. Dessa maneira, com exceção dos dados curitibanos, utilizam-se os dadospreliminares, referentes ao número de favelas situadas nessas nas APP para melhorilustrar o problema.

Segundo Taschner, o cadastro de favelas da Prefeitura de São Paulo apontavaquase 60% das favelas paulistanas nas margens de vias hídricas e 30% delas emterrenos de alta declividade. Ambas são situações caracterizadoras da restriçãoambiental (APP). Os fatores considerados podem encontrar-se sobrepostos.

2 Para os censos realizados pelo IBGE, “favela é um setor especial do aglomerado urbano formada por pelomenos 50 domicílios, na sua maioria carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos não pertencentes aosmoradores” (TASCHNER:2003,28). E problemas surgem da estipulação de número mínimo de domicílios e,sobretudo, da definição acerca da propriedade do terreno. Este dado, no mais das vezes, é baseado em informaçõesfornecidas pelo próprio morador, que comumente desconhece sua irregularidade fundiária.

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18 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

Também são pertinentes os dados apontados pelo Instituto de PesquisaEconômica Aplicada – IPEA –, utilizados por Ackermann, sobre a situação geográficadas favelas nas cidades de Natal e Recife (ACKERMANN:2008):

Tabela 1 – Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – in: IMPLANAT, 1993, p. 187apud Ackermann, 2008.

Tabela 2 – Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – in: Secretaria Municipal dedesenvolvimento e Urbano e Habitação, 1990, p.188 apud Ackermann, 2008.

Em São Vicente, no estado de São Paulo, dos 46 assentamentos precários, 27apresentam severas restrições sob a perspectiva da legislação ambiental, ainda quecomportem possibilidades de consolidação urbanística.

O Plano curitibano de Regularização Fundiária sintetiza um quadro estimativobastante apurado das ocupações irregulares situadas nas áreas de preservaçãopermanente, agrupando-as ocupações por sub-bacia hidrográfica.

Vale lembrar que foi melhor dimensionamento do total de moradias atingidaspela restrição ambiental definida em lei entre todos os municípios considerados nesteestudo. A avaliação dessas situações, conforme discriminação do próprio Plano, foifeita a partir do mapa do programa municipal PROLOCAR, a hidrografia do Municípioe as fotos aéreas de 2002 e 2003.

Situação das favelas em Natal(68 favelas no total, conforme dados de 1993 do IMPLANAT)

Dunas 33,82%

Plano 32,35%

Mangue 17,65%

Encosta 5,88%

Canal 2,94%

Irregularidade do terreno 7,36%

Situação das favelas em Recife(494 assentamentos no total, conforme dados de 1990 da

Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano)Várzeas e mangues 48,99%

Topo do morro 4,65%

Encostas íngremes 17,81%

Outros 28,55%

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 19

Tabela 3 – Número de domicílios em APP por sub-bacia hidrográfica (faixa de 30,00m e 50,00m)Fonte: IPPUC / COHAB-Ct/ SMMA, Elaboração: COHAB-CT, disponível no Plano de RegularizaçãoFundiária das APPs.

Localização Tipologia da Nº Total Nº em Nº estimado Nº de Total deocupação APP de domicílios domicílios domicílios/

(2005) em APP domicíliosem (%) APP

Sub-bacia do Assentamentos 9 3 1.061 279 26,3%Rio Passaúna espontâneos

Loteamentos 11 7 1.041 170 16,3%clandestinosPROLOCAR 6 4 89 47 52,8%

Sub-Total 26 14 2.191 496* 22,6%Sub-bacia do Assentamentos 96 72 21.503 4.874 22,7%Rio Bariguí espontâneos

Loteamentos 31 20 3.339 597 18,9%clandestinosPROLOCAR 17 12 1.066 499 46,8%

Sub-Total 144 104 25.908 5.970 23,0%Sub-bacia do Assentamentos 33 15 4.623 880 19,0%Rio Belém espontâneos

Loteamentos 5 3 581 53 9,1%clandestinosPROLOCAR 15 9 181 94 51,9%

Sub-Total 53 27 5.385 1.027 19,1%Sub-bacia do Assentamentos 55 38 13.079 2.593 19,8%Rio Atuba espontâneos

Loteamentos 28 16 1.490 171 11,5%clandestinosPROLOCAR 10 7 172 155 90,1%

Sub-Total 93 61 14.741 2.919 19,8%Sub-bacia do Assentamentos 41 25 8.109 1.405 17,3%Ribeirão dos espontâneosPadilhas Loteamentos 4 3 89 29 32,6%

clandestinosPROLOCAR 5 2 86 31 36,0%

Sub-Total 50 30 8.284 1.465 17,7%Bacia do Alto Assentamentos 20 11 5.587 1.166 20,9%Iguaçu espontâneos

Loteamentos 8 4 472 93 19,7%clandestinosPROLOCAR 3 - 33 - -

Sub-Total 31 16 6.092 1.259 20,6%Sub-total por Assentamentos 254 164 53.962 11.197 20,7%tipologia espontâneos

Loteamentos 87 53 7.012 1.113 15,9%clandestinosPROLOCAR 56 34 1.627 826 50,7%

Total 397 252 62.576 13.136 21,0%

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A ocorrência de moradias irregulares nas APPs varia em escala para cadalocalidade do país, considerados fatores como a distribuição de renda, a geografialocal e tamanho da aglomeração urbana. Mas ainda assim, os dados curitibanoschamam a atenção pelo número de remoções necessárias apenas para a recuperaçãodas APPs daquele Município. Ou seja, a produção de mais de 13.000 imóveis emárea urbana e minimamente inseridos na cidade (com infra-estrutura e transporte)somar-se-ia a outras situações caracterizadas por constatações fáticas de risco,necessidade de desadensamento de ocupações, além de atendimento de demanda pornovas moradias.

2. CONFUSÕES NO DEBATE AMBIENTAL SOBRE A REGULARIZAÇÃOFUNDIÁRIA

Retomando o debate ocorrido por ocasião da deliberação do CONAMA, acercada resolução n. 369 (ainda sob a forma de uma proposta), a indignação de váriosconselheiros presentes à 80a Reunião Ordinária e à 46a Reunião Extraordinária refletiao posicionamento sobre o tema da regularização. A manifestação do representante deuma organização não-governamental demonstra a solução imaginada para o problema3:

“Nós temos que ter uma faixa mínima porque senão o que vai valer não é o interesse deconservação do curso d’água, não é o interesse de remover a população de área de risco,mas o interesse daquele que vai ter que desapropriar aquela faixa, que vai ter que indenizaraquela população, que vai ter que remover aqueles moradores.”

Ou ainda:

“Eu acho que isso é um absurdo, é um desrespeito ao nosso Direito Ambiental, é umdesrespeito à população que vive nas margens desses córregos e que estão sujeitas a essesprojetos de regularização fundiária, sem que a gente possa dispor de uma faixa mínima desegurança, de respeito ao meio ambiente, de respeito à saúde, à sadia qualidade de vidadessa população.”

Tais observações denotam a “solução” de alguns conselheiros para oreconhecimento do direito à moradia: a remoção, independentemente da possibilidadetécnica de manutenção das casas.

O debate também demonstrou o receio com a alegada discricionariedade dosprocessos de regularização fundiária. Vislumbrada a possibilidade de redução da faixamarginal de preservação para quinze metros ao longo de cursos d’água (e até mesmosuprimi-las em alguns casos), conselheiros representativos de vários segmentostomaram a tribuna para expressar o risco de qualquer permissivo normativo nesse

3 Conforme ata de transcrição da 46a Reunião Extraordinária.

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sentido. Mais do que isso, ao tratar da redução das faixas de preservação combinadaà apresentação de um Plano de Regularização Fundiária Sustentável, identifica-se adesconfiança em relação aos processos de regularização fundiária em curso pelo país:

“O que a proposta que nós [do Ministério do Meio Ambiente] defendemos junto com [oMinistério das] Cidades e outros que negociaram, visa restringir o poder discricionário egarantir que esta decisão seja uma decisão motivada.”4

Ainda que o conceito de “ato discricionário” demande motivação, distinguindo-o daquele “arbitrário”, as exigências para o Plano de Regularização FundiáriaSustentável (previsto na Resolução, artigo 9º, inciso VI) foram pormenorizadas notexto, por meio de 9 exigências relativas ao conteúdo mínimo dos referidos Planos.As exigências variam desde fatores absolutamente relevantes como o impacto nasub-bacia em que está situado o assentamento informal até a necessidade deapontamento de aspectos culturais da comunidade a ser regularizada, de utilidadediscutível.

A posição dos conselheiros do CONAMA pouco difere de alguns argumentosrecorrentemente expostos pela sociedade em audiências públicas.

O Plano curitibano de Regularização Fundiária em APPs foi prova disso. Acontraposição do interesse coletivo (representado pelo meio ambiente) ao interesseindividual (do invasor) foram sintetizadas nas seguintes intervenções5:

“Se é área de preservação permanente, porque discutirmos a legalização de habitações?Pode o interesse de alguns moradores dessas regiões sobrepor o interesse e a necessidadeda humanidade presente e futura de viver num mundo de equilíbrio do meio ambiente?”

Ou, ainda:

“O Plano prevê a realocação de famílias que se encontram fixadas em áreas irregulares?

Existe algum programa previsto para fiscalização dessas áreas, com a intenção de impedirque novas famílias possam invadir essa área? Qual?”

As queixas e expectativas da população com Plano naquele Município informamo caráter provisório como são compreendidas tais ocupações. Não há diferenciaçãoexpressa para casos de ocupação consolidada, como a Favela do Parolim, existentedesde os anos 50, tratada anteriormente neste estudo. A análise de outras intervençõesnas mesmas audiências públicas permitem, no entanto,concluir a existência de

4 Conforme ata de transcrição da 46a Reunião Extraordinária.5 Disponível em: http://www.cohabct.com.br/Noticias/PlanoHabRegFundiaria/prf-Anexos/audiencia.htm

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expectativas diametralmente opostas, no caso dos próprios moradores dessas áreas,no aguardo da regularização fundiária de seus terrenos:

“Moro há mais de quinze anos em área na beira de rio, não há risco de enchentes, está parasair a regularização do meu terreno, apenas falta rede de esgoto, eu corro o risco de ter quesair da minha propriedade?”

O desconhecimento da incoerência legal justificado pela experiência diuturnade cidadãos em metrópoles absolutamente consolidadas sobre APPs antropizadasconduz a posicionamentos apressados sobre a possibilidade de efetiva recuperaçãoambiental dessas áreas.

Os mesmos discursos de recuperação ambiental (e aqui não restritas apenasaos casos de APP) e contenção de invasões também vêm ocorrendo em outrasmetrópoles do país e servindo à insegurança da posse e desconhecimento de qualquerdireito de moradia.

No caso carioca, a Prefeitura local foi compelida, pela 4a Vara de Fazenda doRio de Janeiro, a proceder à remoção integral de 14 favelas situadas em áreas deproteção ambiental sob o argumento de acelerados processos de adensamento e riscoda ocupação a seus próprios moradores. As alegações não comprovaram expansãohorizontal das favelas consideradas, conforme propugnado pelo autor da ação (oMinistério Público fluminense). Tampouco foram lastreadas nos laudos geotécnicosdo órgão municipal responsável, que indicavam situações pontuais de risco. Alémdisso as áreas eram objeto de programas de regularização fundiária da Prefeitura.Apesar dessa considerações, as alegações foram acatadas pela Juíza responsável,determinando a remoção integral das famílias, fundamentadas pelo receio de formaçãoum único conglomerado de favelas com a Rocinha e o Vidigal. referido receio foraamplamente difundido nos meios de comunicação, sobretudo pela série “Ilegal, edaí?”, veiculada pelo jornal “O Globo” (COMPANS:2007).

Na mesma linha, as reportagens da informando a expansão da Favela Chácarado Céu, situada no Morro Dois Irmãos e próxima ao Vidigal. A Revista Veja anunciavana edição de n. 2040 (de 26 de dezembro de 2007) a ameaça de ocupação desenfreadado ponto turístico da zona sul carioca (o Morro Dois Irmãos) pela Favela em questão,sob o título: “Salvem o cartão-postal”. A mesma edição conclamava os leitores aexigir das autoridades providências para evicção daqueles moradores:

“O Morro Dois Irmãos, no Rio, está ameaçado por uma favela. É preciso derrubá-laimediatamente.”

Dias depois, o jornalista Elio Gaspari, na edição de 6 de janeiro de 2008 daFolha de São Paulo, noticiava a diligência de autoridades no local, acompanhados dolevantamento de fotos aéreas de 2004.

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Constatou-se que a expansão da Favela Chácara do Céu (com certa de 200famílias), alertada pela Revista dias antes, assim como noticiadas nos jornais locaisreduzira-se a ampliação de uma casa, representando área impermeabilizada dentrodo Parque Penhasco Dois Irmãos de cerca de 20 metros quadrados, que foi pronta-mente demolida. Na mesma oportunidade, o morador da área propôs importanteindagação ao chamar a atenção à implantação de uma quadra de tênis (com áreasignificativamente maior que 20 metros quadrados), em condomínio de alto luxo dobairro Alto Leblon, a cerca de 200 metros do local onde ocorria a diligência e dentro deárea com restrição ambiental. O episódio é concluído da seguinte forma pelo jornalista:

“Foram procurar a expansão da favela no andar de baixo e acharam a invasão do andar decima.”

Na Grande São Paulo, a confusão dos discursos ocorre com grande intensidadecom relação à questão de ocupação dos mananciais, a requerem estudo específico.

Com efeito, reduzindo-se novamente o escopo da discussão às APPs urbanas.Adotam-se dados quantitativos de Santo André para ilustrar a questão. Apesar daárea urbana desse Município representar menos de 40% de seu território (o restanteintegra Área de Proteção dos Mananciais da Região Metropolitana), essa porção deterritório concentra 130 dentre o total de 150 assentamentos precários. Consideradasas moradias prejudicadas pela irregularidade fundiária e carência de infra-estrutura,são 29.130 residências na área urbana e 3.206 em áreas abrangidas pela proteçãolegal dos mananciais.

A discussão dessas áreas urbanas deve ser necessariamente contextualizada àocupação de seu entorno.

3. EFETIVIDADE DE POLÍTICAS AMBIENTAIS E A REDISCUSSÃO DACIDADE

Cumpre destacar que a legislação ambiental adota para alguns casos os conceitosde recuperação e restauração ambiental6. Por analogia, quando aplicadas às APPs, arecuperação implicaria a reconstituição do ambiente natural sem degradação, aindaque diferente da situação inicial.

Já a restauração seria a restituição de um ambiente natural à situação maispróxima possível de sua conformação original.

A opção de qualquer um desses métodos, no entanto, equivoca-se ao definir alinha de corte de políticas públicas de recuperação das APPs pela legalidade da

6 Lei federal n. 9.985/2000 (do Sistema Nacional de Unidades de Conservação).

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ocupação. A efetividade das políticas visando à sustentabilidade ambiental das cidadesnão se circunscreve à avaliação de impactos de processos de regularização fundiária.De certa forma, é o que já vem sendo considerado pelo Grupo Técnico de Recuperaçãodas APPs, organizado pelo CONAMA.

Mas a análise dos efeitos da legislação ambiental, sobretudo da ResoluçãoCONAMA n. 369/06, aplicável aos processos de regularização fundiária, leva àconclusão do equívoco suscitado no parágrafo anterior.

O Plano de Regularização Fundiária Sustentável, conforme proposto no textoda Resolução, apesar de não necessariamente abranger todas as favelas de umMunicípio, acaba exigindo um nível de aperfeiçoamento institucional e diagnósticoda situação hidrológica que superam a intervenção nas favelas, conforme a decisãode indeferimento nos pedidos de autorização pleiteados pelo Município de SantoAndré. De fato, as informações a serem utilizadas configuram uma necessidade deconferir maiores poderes ao próprio planejamento urbano da cidade existente de fato,independentemente de sua regularidade.

O modelo de gestão da cidade por bacias é ponto de intersecção das óticasambientalista e urbanista, não havendo razão para contraposição de interesses7. OPlano representa também uma necessidade de organização institucional dosMunicípios ainda não verificada em boa parte das cidades brasileiras. Mas a análiseda sub-bacia no âmbito reduzido e já difícil dos programas de regularização,obstaculiza a implementação destes. Prova disso são os dados apresentados nesseestudo, que autorizam os poderem locais a procederem a urbanização de favelas, masnão autorizam a o reconhecimento oficial da existência das moradias, o que significaa sua manutenção da insegurança jurídica de suas posses.

Outro aspecto a ser considerado na perspectiva ambiental das cidades é a comumcontraposição entre do direito ao meio ambiente e o direito à moradia. O primeiro éindiscutivelmente compreendido como um direito difuso, que não pode serindividualizado, cuja titularidade pertenceria a toda a coletividade. O direito a moradia,no entanto, não parece compreendido como algo coletivo.

A alteração de 2000 na Constituição brasileira para incluir o direito à moradiano rol de direitos sociais assegurados a todos os cidadãos ainda se encontra em fasede consolidação no ordenamento do país. E as políticas de regularização fundiárianada mais representam formas de concretização desse direito dentro do contextourbano imposto.

7 Nesse sentido, o posicionamento de Maricato (MARICATO:2002,79)

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Trata-se de direito de interesse igualmente público e coletivo, de acesso detodos ao solo urbanizado, de maneira alguma correspondente ou reduzido ao direitode propriedade.

O modelo de construção da cidades e a provisão habitacional à população debaixa renda é matéria de interesse ambiental e urbanístico. Curiosamente, aregularização fundiária não acompanha esse consenso.

As razões, conforme anteriormente abordadas neste estudo, parecem ser odesconhecimento do volume da ilegalidade ambiental nas favelas e a ausência dediscussão de alternativas técnicas de manutenção das famílias nos locais de ocupaçãoirregular de APP (sobretudo sobre as condições geotécnicas e a mitigação de efeitosnocivos da ocupação). Os potenciais ganhos ambientais nessas iniciativas deconsolidação de assentamentos tecnicamente viáveis parecem demonstrar maiorefetividade que a pura aplicação da restrição normativa, esvaziada de avaliação técnica.

Com efeito, colaciona-se o resultado de entrevistas apresentadas em dissertaçãomestrado desenvolvido junto ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado deSão Paulo, nas quais 13 profissionais especializados e reconhecidos nas áreas deagronomia, biologia, engenharia, geografia e geologia foram consultados. As respostasdesses profissionais à indagação sobre o tratamento diferenciado às APPs urbanasilustram a necessidade de aprofundamento da discussão de legitimidade da lei. Setedos entrevistados defenderam a necessidade de tratamento diferenciado das APPsem áreas urbanas e outros 2 defenderam tratamento diferenciado em hipótesesespecíficas do espaço urbano como alta antropização (ACKERMANN:2008).

CONCLUSÃO

A contradição de políticas públicas para a gestão de problemas urbanos presenteestudo parece ser carecer de efetividade de ganhos ambientais para a coletividade. Aanálise de casos, bem como a análise dos argumentos utilizados demonstram a maneiracomo a disciplina normativa supera qualquer discussão de resultados. Nesses casos,uma vez que o objeto de estudo foram os processos de regularização fundiária deassentamentos situados sobre APPs, ressalta-se que a decisão de manter determinadapopulação no local da ocupação ou de removê-la afasta-se muitas vezes da avaliaçãode exequibilidade dessas decisões.

A efetividade de que se trata remete àqueles objetivos gerais da populaçãourbana, sinteticamente reduzidos ao anseio de melhor ocupação de seu território,com melhor qualidade de vida, a que se referiu acima. Portanto, prescindindo-se daavaliação de resultados, foram apresentados casos e argumentações nas quais seprivilegiou a coesão do sistema jurídico, no lugar da discussão de legitimidade das

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normas impostas ao meio urbano. Com efeito, o estudo não pretende propugnar pelodesconhecimento ou rejeição ao ordenamento jurídico posto. Ao contrário, buscou-se tão somente evidenciá-lo nas suas contradições internas, perceptíveis apenas quandoaplicado à realidade.

De fato, o sistema normativo construído visa adequar as exigências da legislaçãoambiental a uma nova ordem jurídico-urbanística – a qual ainda é de reduzida aplicaçãono país. Ou seja, sob o ponto de vista do operador do Direito, parece haver umacoesão. Essa coesão, contudo, sucumbe a uma apurada análise da gestão públicanesses assentamentos precários.

A presença da favela no meio urbano, após anos de admissibilidade de políticasde urbanização e implantação de infra-estrutura vem sendo novamente questionada,sendo forçoso perceber que o debate sobre ocupações consolidadas e existentes hádécadas é comumente confundido com novas ocupações. Trata-se da mesma maneirasituações absolutamente diversas. Emprega-se o mesmo argumento para o espaçoconstruído o espaço ainda natural (sujeito a novas ocupações).

Espera-se haver contribuído para a discussão da regularização fundiária defavelas como meio de reconhecimento do estoque habitacional para a população debaixa renda existente nas cidades e inserção dessas favelas no tecido urbano comoalternativas à tradição brasileira de remoção dos pobres para áreas periféricas eexpansão horizontal das cidades.

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Loteamentos Irregulares e Clandestinos: SuaRegularização no Município de Porto Alegre

LEILA MARIA RESCHKE1

Procuradora.

LUCIANO SALDANHA VARELA

Engenheiro.

SIMONE SANTOS MORETTO

Assessora Jurídica.

SIMONE SOMENSI

Procuradora.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Regularização fundiária; 2.1. Dimensão urbanística;2.2. Dimensão jurídica; 2.3. Tipos de irregularidade fundiária; 3. Gerência deregularização de loteamentos; 3.1. Competência; 3.2. Áreas loteadas x áreasocupadas; 4. Formas de atuação. 4.1. Ações de prevenção; 4.1.1. Fiscalização;4.1.2. Medidas judiciais; 4.2. Ações de repressão; 4.3. Ações de regularização;4.3.1. Procedimento; 4.3.2. Etapas. 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

A questão habitacional exige um cuidado apurado da Administração Pública.A moradia do cidadão é direito fundamental inerente à dignidade da pessoa humana,ou seja, ocupa lugar central no pensamento filosófico e político como valor funda-mental da ordem jurídica de nossa sociedade, sustentando um dos pilares do EstadoDemocrático de Direito.

1 Integrantes da Gerência de Regularização de Loteamentos da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre.

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Constitucionalmente previsto como direito social pelo artigo 6º da Magna Carta,impõe aos administradores públicos intensa e constante preocupação com a forma deseu atendimento.

Neste contexto, a regularização fundiária assume importante papel, pois é abase para a prestação de uma série de serviços públicos. Além disso, no momento emque se regularizam as ocupações irregulares, em qualquer uma de suas modalidades,estamos resolvendo problemas habitacionais e acalentando a tão sonhada tranquilidadedas famílias que residem em áreas que não proporcionam segurança jurídica da possee propriedade, muito menos oferecem serviços públicos adequados.

Visa este trabalho, então, demonstrar como o Município de Porto Alegre trabalhaa regularização fundiária dos loteamentos implantados de forma irregular ouclandestina, bem como delinear os entraves urbanísticos e jurídicos que dificultamsobremaneira o processo. A problemática envolve questões jurídicas, fundiárias,urbanísticas e avaliação do desempenho das configurações espaciais, das atribuiçõesdo Poder Público e da capacidade de gestão.

2. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Denomina-se regularização fundiária o processo de verificação da situação dapropriedade e posse de áreas urbanas ou rurais, públicas ou privadas que se formaramem desacordo com as normas legais que regulam a matéria. Pressupõe, portanto, umautilização do território em condições que trazem dúvidas sobre os direitos depropriedade e posse do local.

Segundo Betânia Alfonsin2, é o processo de intervenção pública, sob os aspectosjurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradorasde áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação,implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadaniae da qualidade de vida da população beneficiária.

O que se busca com a regularização fundiária é, sem dúvida, transformar airregularidade na ocupação do solo em domínio e posse legítimas, a fim de cumpriremsua função social, como preconiza a Constituição Brasileira. Neste processo, o grandedesafio dos agentes públicos é fazer este trabalho de forma a evidenciar a permanênciadas populações moradores naquele espaço, evitando o reassentamento.

Nesse contexto, foram propostos novos instrumentos legislativos, jurídicos eurbanísticos com o escopo de contribuir para a formulação de uma nova política de

2 FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (coordenadores e co-autores). A Lei e a Ilegalidade na Produçãodo Espaço Urbano, Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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uso racional e socialmente adequada do solo urbano. O envolvimento do entemunicipal nestas questões, com objetivo de minimizar os problemas decorrentes dairregularidade fundiária certamente é uma estratégia inteligente de gestão dirigidapara disponibilizar moradia de qualidade e com infra-estrutura adequada aosmunícipes, pois ao resgatar a segurança jurídica da posse e da propriedade trará aoscidadãos benefícios em diversos setores, iniciando pelo acesso digno às redes deágua, luz e esgotamento sanitário, passando pela presença de serviços públicos, taiscomo escolas e postos de saúde, até chegar ao acesso facilitado ao transporte público.

Não é fácil trabalhar a irregularidade fundiária. Cada ocupação consolida-sede uma forma e por isso possui características próprias. Em cada caso é necessárioverificar sua origem (assentamento autoproduzido, invasão, loteamento irregular ouclandestino, etc.) e quais os desdobramentos urbanísticos e jurídicos ocorreram durantee após sua formatação.

Como se vê, a regularização fundiária se dá em duas dimensões: urbanística ejurídica. Faticamente até se poderia trabalhar somente um dos aspectos. Entretanto, ahistória já nos mostrou que os resultados somente serão positivos quando as duasdimensões são avaliadas e trabalhadas.

2.1. Dimensão urbanísticaA esfera urbanística trabalha as etapas que precedem a regularização jurídica e

registraria da gleba. O objetivo desta etapa é a formatação de um programa deurbanização que prevê a aprovação de projetos nos órgãos públicos, implementaçãode infra-estrutura e prestação de serviços públicos.

Tudo começa com a realização de um levantamento topográfico-cadastral daárea demonstrando como se deu o parcelamento do solo. Após, é necessário elaborarum estudo de viabilidade urbanística ou projeto urbanístico baseado nesse levanta-mento, redefinindo os usos e padrões de ocupação previstos na legislação e adequan-do-os à realidade atual.

É nesta etapa que se encontram as maiores dificuldades do trabalho deregularização fundiária. Neste momento é que aparecem os condicionantes urbanísticose ambientais não respeitados pela ocupação, como, por exemplo, a existência demoradia em faixas não edificáveis sobre redes de esgoto, de preservação ambientalmarginal de arroio ou nascente, incidência de diretriz de abertura viária, etc.

Neste âmbito, importante destacar os instrumentos urbanísticos alcançadospelo Estatuto da Cidade, tais como o zoneamento urbano e ambiental, definição deplanos de regularização fundiária, parcelamento compulsório, e, principalmente, ainstituição de zonas especiais de interesse social. Sem estes instrumentos não é possívelobter a regularização.

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Ultrapassada esta fase, com o projeto urbanístico discutido e aprovado primeiropela comunidade e depois pelo Município, inicia-se a etapa jurídica.

2.2. Dimensão jurídica

Estando a ocupação devidamente inserida na cidade formal em decorrência daaprovação do estudo de viabilidade urbanística ou do projeto urbanístico e suadecorrente implantação, necessário adequar o título de propriedade à realidade fática,dando início à política de legalização das áreas e dos lotes ocupados, gerando segurançajurídica aos moradores.

Neste aspecto, o Estatuto da Cidade também auxilia sobremaneira, trazendoinúmeros instrumentos jurídicos e principalmente traçando as diretrizes básicas deutilização ordenada do solo urbano, cujo centro é a preocupação constante com afunção social da propriedade.

De acordo com o tipo de propriedade (pública ou privada) e a forma de ocupa-ção do solo (assentamento autoproduzido, invasão, loteamentos irregulares ou clan-destinos) é possível utilizar institutos como concessão especial para fins de moradia,usucapião individual ou coletivo e ação de registro para transferir a titularidade doimóvel a quem de direito.

Importante destacar que a dimensão jurídica somente estará completa quandofinalizada a etapa registrai, ou seja, quando disponibilizado ao morador o seu títulode posse ou propriedade devidamente registrado no cartório imobiliário.

2.3. Tipos de irregularidade fundiária

Como citado anteriormente, várias são as formas de irregularidade fundiária:favelas, assentamentos autoproduzidos, loteamentos clandestinos ou irregulares. Asespecificidades se referem às formas de aquisição da posse ou propriedade e aosdistintos processos de consolidação dos assentamentos. Cada caso exige um tratamentoespecífico.

Os habitantes irregulares, por sua vez, dividem-se em dois segmentos básicos:um é constituído pelos núcleos e vilas irregulares e outro pelos loteamentos irregularese clandestinos. Para um melhor esclarecimento traçamos aqui a caracterização dosdois segmentos irregulares:

a) núcleos e vilas irregulares: são formados por moradores em área pública ouprivada com os problemas de irregularidade fundiária e com um grau variável dedeficiência de infra-estrutura urbana e de serviços. Os núcleos e vilas irregulares sãoaqueles cujos habitantes não são proprietários da terra e não têm nenhum contratolegal que lhes assegurem permanência no local. São, na sua maioria, formados através

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das ocupações (invasões). Na terminologia adotada pelo Plano Diretor deDesenvolvimento Urbano Ambiental do Município de Porto Alegre (PDDUA) são osassentamentos autoproduzidos;

b) loteamentos: é uma das formas de parcelamento do solo urbano, comdesmembramento da área em lotes e abertura de novas vias de circulação. Pela LeiFederal n. 6.766/79, o loteador é obrigado a elaborar projeto de loteamento, aprová-lo perante os órgãos municipais e depois registrá-lo no cartório imobiliário, além deser obrigado a realizar as obras de infra-estrutura. Somente após o cumprimento destasetapas é possível iniciar a comercialização dos lotes. A Lei Federal n. 6.766/79 definelote como terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aosíndices urbanísticos definidos pelo plano diretor. Infra-estrutura básica, por sua vez,são os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, redes de esgotosanitário e abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e viasde circulação.

Quando o loteamento não atende aos preceitos legais, torna-se irregular ouclandestino:

a) irregular: é aquele que possui algum tipo de registro no Município. O responsá-vel pode ter dado entrada com a documentação, mas não chegou a aprovar o projeto.Também é considerado irregular o loteamento que tem projeto aprovado, mas o loteadordeixou de atender as outras etapas previstas na Lei Federal n. 6.766/79, como a realiza-ção das obras de infra-estrutura ou registro do loteamento no cartório de imóveis;

b) clandestino: é aquele realizado sem nenhum tipo de projeto ou intervençãopública, ou seja, nenhuma norma é respeitada.

Feita a distinção, começaremos agora a tratar especificamente dos loteamentosirregulares e clandestinos e como o Município de Porto Alegre trabalha a suaregularização.

3. GERÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO DE LOTEAMENTOSColocada como premissa básica a necessidade dos programas de regulariza-

ção objetivar a integração dos assentamentos informais ao conjunto da cidade, e nãoapenas o reconhecimento da segurança individual da posse e propriedade para osocupantes, o Município de Porto Alegre montou uma equipe de trabalho multidisci-plinar, formada por procuradores, arquitetos, agentes comunitários, engenheiros, to-pógrafos, biólogos e geólogos, criando a chamada de Gerência de Regularização deLoteamentos.

Esta foi instituída através do Decreto Municipal n. 15.432, de 26 de dezembrode 2006, é coordenada pela Procuradoria-Geral do Município e possui em sua estrutura

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além de um núcleo jurídico, um núcleo de análise urbanística, coordenado pelaSecretaria de Planejamento Municipal, e um grupo técnico de regularização fundiáriacomposto por representantes de diversos órgãos, como Secretaria Municipal do MeioAmbiente, Departamento de Esgotos Pluviais, Departamento Municipal de Água eEsgoto, Secretaria Municipal de Obras e Viação, Secretaria Municipal de CoordenaçãoPolítica e Governança Local e Departamento Municipal de Habitação.

Este grupo técnico tem como objetivo elaborar diretrizes urbanísticas para aregularização dos loteamentos irregulares e clandestinos, o que acarreta na agilizaçãodo processo de regularização e procura dar um olhar diferenciado para a questão,pois o processo se dá de maneira inversa, ou seja, parte-se de uma situação consolidada.

3.1. Competência

Entre as competências da Gerência de Regularização de Loteamentos, podemoslistar:

a) análise de expedientes administrativos cujo objeto sejam loteamentosclandestinos e irregulares, abrangendo os procedimentos necessários à etapa daregularização urbanística através da instituição de área especial de interesse social –AEIS ou aplicação da Lei Complementar Municipal n. 140, de 22/07/86 (paraloteamentos implantados antes de 1979);

b) ajuizamento de ações competentes para responsabilização civil e penal dosloteadores irregulares e clandestinos;

c) execução de levantamentos topográficos e projetos urbanísticos em situaçõessubmetidas à análise e consideração da Gerência de Regularização de Loteamentos;

d) ajuizamento de ações de registro com base no Provimento n. 28/2004 daCorregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande doSul, denominado Projeto More Legal.

Sob este enfoque, necessário registrar que a regularização dos loteamentospode ser dividida em administrativa, urbanística e registraria, sendo a primeira adestinada à coleta de documentos, a segunda destinada à aprovação dos projetosjunto aos órgãos gestores de planejamento urbano e, a última, aquela que se ocupa daretificação e ratificação da titularidade das glebas.

3.2. Áreas loteadas x áreas ocupadas

Acima demonstrou-se a distinção entre os loteamentos clandestinos ouirregulares e assentamentos autoproduzidos. No Município de Porto Alegre diferentesórgãos trabalham a regularização fundiária: os primeiros são tratados pela Gerência

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de Regularização de Loteamentos, já os segundos são tratados pelo DepartamentoMunicipal de Habitação, que coordena o Programa de Regularização Fundiária – PRF.

A opção por esta formatação, embora questionável, levou em consideração aquestão da propriedade da gleba, que é fator de relevância para fins de regularização,e as diferentes legislações aplicáveis a cada caso. Ocorre que para a regularização deloteamentos há a necessidade de prévia aprovação de projeto urbanístico pelos ór-gãos municipais e, conforme artigo 14 do Decreto Municipal n. 12.715, para tal apro-vação é necessário requerimento firmado pelo proprietário ou pessoa por este autorizada.Em consequência disso, o órgão público só poderá atuar em casos onde não há litígioacerca da propriedade. Cumpre ainda lembrar que nas ações judiciais com base no Pro-vimento n. 28/2004 da CGJ/TJRS – Projeto More Legal – o pedido de registro dos lotesleva em conta os contratos de compra e venda apresentados e sua devida quitação.

Em relação aos assentamentos autoproduzidos, que podem estar sobre áreapública ou privada, geralmente a regularização leva em consideração somente a possedos moradores, ou seja, não há uma relação jurídica formal entre os ocupantes e osproprietários das áreas. Aliás, a possibilidade é de que existam conflitos pela ameaçaconcreta de expulsão dos ocupantes com base em ações judiciais de reintegração deposse promovidas pelos proprietários.

4. FORMAS DE ATUAÇÃO

4.1. Ações de prevenção

4.1.1. Fiscalização

Não há como trabalhar a prevenção dos loteamentos clandestinos ou irregularessenão com a atuação da fiscalização dos órgãos municipais. A única forma de evitara sua implantação é através de fiscalização planejada e adequada que contemple umdiagnóstico completo dos vazios urbanos e imediato agir dos órgãos públicos tãologo se tome conhecimento do parcelamento do solo ou de sua expansão.

O exercício do poder de polícia administrativo contempla a notificação doresponsável, a lavratura de autos de infração por danos ao parcelamento do solo e pordanos ambientais (o que ocorre na maioria das hipóteses), bem como termos deinterdição/embargo de obra e aplicação de multas. Poderá prever, também, a apreensãode materiais utilizados na implantação do parcelamento do solo, mormente quandohouver caracterização de delito ambiental.

Além disso, é preciso conscientizar os moradores da importância deste processo,demonstrando os prejuízos advindos da clandestinidade. Com isso, busca-se umcomprometimento da comunidade e o desenvolvimento da cidadania e senso coletivo.

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4.1.2. Medidas judiciais

Caso as medidas administrativas não sejam suficientes para impedir a formaçãodo loteamento irregular ou clandestino, necessário o ajuizamento de ações judiciais.

Neste aspecto, o melhor instrumento à disposição da municipalidade, semdúvida, é a ação civil pública, regulamentada pela Lei Federal n. 7.347/85. Aliás, aalteração legislativa ocorrida em 2001 com o advento do Estatuto da Cidade afastouqualquer discussão a respeito do cabimento desta ação ao incluir o inciso VI noartigo 1º, enfatizando que os danos causados à ordem urbanística são passíveis deresponsabilização e indenização através deste instrumento processual.

O desenvolvimento urbano submete-se a regramentos previstos em lei – LeiFederal n. 6.766/79 e aos planos diretores municipais. A coletividade tem direito dever observados os padrões legais de urbanismo. Por outro lado, é dever constitucionaldo órgão federado – no caso os municípios – defender a ordem urbanística, bem deuso comum do povo. Por isso não há dúvida de que a lesão à ordem urbanísticaautoriza o Município a buscar judicialmente a reparação ao mesmo, nos termos doartigo 5º c/c artigo 1º, inciso VI, da Lei Federal 7.347/85.

Assim como o direito ao meio ambiente saudável e sustentável pertence àcoletividade e não ao indivíduo isolado, a gestão ordenada do solo urbano tambémrepresenta um direito difuso, como soma e síntese de interesses individuais que mereceproteção jurídica de forma diferenciada daquelas previstas pela regras processuaisdo direito clássico. Nas palavras de Fernando Gama de Miranda Netto3, “Aproliferação dos interesses coletivos revelou-se inevitável. Ora, é da própria naturezahumana que os indivíduos se aproximem uns dos outros, em razão da suasociabilidade. (...) Nesta linha, foram os interesses coletivos “ganhando terreno” àmedida que se tornava mais vacilante a linha fronteiriça entre o público e o privado.A sociedade de massa, de fato, exacerbou o coletivo, diminuindo as áreas afetadasao particular e provocando o fenômeno da “publicização do direito”.

A legitimidade passiva resta evidenciada a partir da enunciação dos fatos. Devefigurar como réu na ação o loteador, seja ele proprietário e/ou vendedor da área a serloteada, com prova da comercialização dos lotes. E, nos casos em que as vendas nãosão realizadas pelo proprietário, este também será responsável pelo parcelamento namedida em que perdura documentalmente a indivisibilidade do patrimônio imóvel eo consequente dever de zelar pela imutabilidade da área. Ademais, qualquerprocedimento a ser adotado para fins de regularização do parcelamento dependerá da

3 MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. A Ponderação de Interesses na Tutela de Urgência Irreversível, Riode Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 129/130.

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regularidade registrai, por isso a importância em responsabilizar o proprietário queconsta como titular na matrícula do imóvel.

O pedido principal desta ação judicial será a condenação dos responsáveispela tentativa de implantação do loteamento à obrigação de não fazer, consistente navedação de execução de loteamento e de venda de lotes. A obtenção de liminar, nestahipótese, é de extrema importância, pois somente se evitará a consolidação doloteamento se houver ordem que impeça os loteadores de efetuarem parcelamento dosolo, vendas ou construções, sob pena de multa diária em caso de descumprimento4.

Importante destacar que a tomada de providências pelo município não é opção,mas imposição, pois a inércia do ente público o faz co-responsável, de forma solidáriaou subsidiária, como preconiza a Lei Federal n. 6.766/79, ou seja, somente destaforma evitar-se-á a responsabilização dos gestores públicos pela proliferação dairregularidade urbana e a obrigatoriedade em proceder a regularização.

4.2. Ações de repressão

A melhor e mais eficaz medida repreensiva que se pode tomar contra loteadoresclandestinos e irregulares é, certamente, o ajuizamento de ação penal pela prática dodelito previsto no art. 50 da Lei Federal n. 6.766/79.

Entretanto, trata-se de ação penal pública incondicionada, ou seja, o titular daação é o Ministério Público. Mas isso não significa que o município não possa e devatomar providências no âmbito penal.

No Município de Porto Alegre é prática comum o pedido de envio de ofício aoMinistério Público quando do ajuizamento de ações de prevenção ou regularizaçãono âmbito civil. Além disso, sempre que se tem notícia de crimes em processosadministrativos ou vistorias objeto de loteamentos irregulares ou clandestinos, comprova inequívoca de venda de lotes (contratos de compra e venda), elabora-se dossiêsnoticiando os crimes praticados pelos loteadores ao Ministério Público. De posse da

4 Refere Rodolfo de Camargo Mancuso, citando Lúcia Valle Figueiredo, que “a antecipação dos efeitos da tutela(CPC, art. 273, conforme Lei 8.952/94) é de ser aplicada à ação civil pública, já que esta tramita peloprocedimento comum, sobretudo o contraditório, sendo-lhe subsidiário o Código de Processo Civil (art. 19 daLei 7.347/85). Para tanto, hão que estar presentes os pressupostos específicos, que comportam: a) núcleocomum (prova inequívoca, conducente à verossimilhança da alegação – caput – e mais, a não irreversibilidadedo provimento antecipado – § 2º); b) virtuais alternativas (receio de dano irreparável ou de difícil reparação;conduta processual reprovável, do réu – incs, I e II). (...) Deverá o magistrado, pela prova trazida aos autos, nomomento da concessão da tutela, estar convencido de que – ao que tudo indica – o autor tem razão e aprocrastinação do feito ou sua delonga normal poderia pôr em risco o bem da vida pretendido – dano irreparávelou de difícil reparação. A irreversibilidade do dano na ação civil pública é manifesta e o “fluid recovery” nãoserá suficiente a elidir o dano.” In Ação Civil Pública, 6. ed., São Paulo: RT, 1999, pp. 81/82.

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documentação, o parquet tem condições de ajuizar a ação penal ou, se entendernecessário, complementar as informações através de inquérito penal.

4.3. Ações de regularização

4.3.1. Procedimento

O trabalho da Gerência de Regularização de Loteamentos começa em razão deuma denúncia de loteamento irregular ou clandestino ou devido a um pedido deregularização por parte da comunidade. A partir de então são adotados os seguintesprocedimentos:

a) identificação da gleba: correta localização em mapa cadastral do Município;

b) busca da titularidade junto aos cartórios imobiliários da matrícula atualizadavisando identificar se a área é pública ou privada e se o proprietário foi o loteador;

c) avaliação da existência de loteamento e da época de sua implantação: esteprocedimento orientará os técnicos de que maneira se efetivará a regularização, ouseja, através da instituição de Áreas Especiais de Interesse Social (art. 76, inciso II,do PDDUA) ou através da Lei Complementar Municipal n. 140/86.

A próxima providência é identificar o loteador. Nesse aspecto a presença dacomunidade é indispensável, pois são os compradores dos lotes que fornecem adocumentação necessária para tanto, ou seja, os contratos de compra e venda.

Identificado o proprietário da área e o loteador, esses são notificados nos termosdo art. 49 da Lei Federal n. 6.766/79 e do art. 218 da Lei Orgânica do Município dePorto Alegre, pois a responsabilidade pela regularização, como enfaticamente referido,é decorrente do ônus de sua atividade.

Obtido acordo para proceder a regularização é firmado termo de ajustamentode conduta, como preconiza o § 6º do art. 5º da Lei Federal n. 7.347/85, estabelecendo-se prazos para cumprimento das etapas de regularização mediante cominações, queterá eficácia de título executivo extrajudicial em caso de não cumprimento5.

Não sendo possível ajustar um procedimento junto ao loteador e/ou proprietáriopara obter a regularização, o Município poderá assumir, juntamente com os moradores,

5 Sobre a importância do compromisso de ajustamento de conduta já se manifestou Fernando Reverendo VidalAkauoi, citando Celso António Pacheco Fiorillo: “trata-se o instituto de meio de efetivação do pleno acesso àjustiça, porquanto se mostra como instrumento de satisfação da tutela dos direitos coletivos, à medida que evitao ingresso em juízo, repelindo os reveses que isso pode significar à efetivação do direito material.” InCompromisso de Ajustamento de Conduta Ambiental, São Paulo: RT, 2003, p. 68.

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a regularização, sem prejuízo das ações punitivas cíveis e penais cabíveis contra osloteadores, nos termos do artigo 208 da Lei Orgânica Municipal.

Nestes casos também é utilizada ação civil pública como instrumento processualviável para obrigar os responsáveis a proceder à regularização. Entretanto, o pedidoé completamente diferente, pois o loteamento já está consolidado. Se por ventura nãofor possível obter a recomposição dos danos causados à coletividade, ou seja, se oloteamento não puder ser regularizado pelos loteadores, deverá ser convertido o pedidoem indenização, por compensação econômica, a ser fixada pelo prudente critério dojulgador.

Destaca-se, mais uma vez, a importância, relevância e conveniência doajuizamento da ação civil pública regularizatória, para afastar a pecha de inoperânciae omissão dos órgãos públicos.

4.3.2. Etapas

A regularização propriamente dita inicia, como referido anteriormente, apósavaliação e enquadramento da gleba nas hipóteses de regularização, comenquadramento na Lei Complementar Municipal n. 140/86 ou no Plano Diretor, LeiComplementar Municipal n. 434/99.

A Lei Complementar Municipal n. 140/86 é aplicada como instrumentourbanístico para a regularização dos parcelamentos do solo implantados irregular ouclandestinamente anteriormente à Lei Federal n. 6.766/79, independentemente daobservância dos padrões urbanísticos definidos no Plano Diretor.

Os demais casos devem atender o Plano Diretor ou, se for necessário, prever ainstituição de Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS, que é o instrumentourbanístico previsto no art. 76 da Lei Complementar Municipal n. 434/99 (segundoPDDUA de Porto Alegre), o qual viabiliza a produção e manutenção de habitação deinteresse social através da adoção de padrões especiais de parcelamento e uso do soloe da permissão de normas construtivas específicas para núcleos habitacionaisconsolidados e novas áreas destinadas a programas habitacionais de interesse social.Os loteamentos clandestinos e irregulares enquadram-se no art. 76, inciso II, da LeiComplementar Municipal n. 434/99.

As AEIS, denominadas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) no Estatutoda Cidade, permitem que os loteamentos irregulares ou clandestinos sejam integradosà cidade formal. Ao gravar uma área como AEIS, permitimos que esta seja regularizadano próprio local com regras diferenciadas daquelas previstas no Plano Diretor. Taisáreas poderão ser urbanizadas considerando, sempre que possível, a forma como onúcleo está organizado.

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Na regularização de loteamentos irregulares ou clandestinos todos assumirãosuas parcelas de responsabilidade: o município, os moradores e os loteadores.

Após, necessária realização de levantamento topográfico e cadastral da área,que demonstre a realidade do assentamento e do parcelamento do solo no local, a fimde verificar quais medidas deverão ser realizadas para que ocorra regularização, ouseja, fixam-se diretrizes urbanísticas6.

O próximo passo é a apresentação do projeto urbanístico e sua aprovação peranteos órgãos técnicos. Com o projeto aprovado e o loteamento inserido na cidade formal,encerram-se os procedimentos urbanísticos e inicia a fase jurídica da regularizaçãodo loteamento, com vistas à retificação da matrícula (se necessário) e registro doloteamento perante o Registro de Imóveis, com abertura de matrícula dos lotes eequipamentos públicos.

Para que isto ocorra, geralmente é necessário o ingresso de ação de registrocom base no Provimento n. 28/2004 da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal deJustiça do Estado do Rio Grande do Sul, pois na maioria dos casos não é possívelatender os requisitos previstos na Lei Federal n. 6.015/73. Este Provimento,denominado Projeto More Legal, estabelece padrões diferenciados e flexibilizaçãona documentação a ser apresentada para registro do loteamento e individualizaçãodas matrículas por lote.

Muito embora os moradores já preencherem os requisitos para ver declaradoseu domínio por usucapião, optam por ver regularizado o loteamento como um todo,pois entendem como mais salutar e econômico, tanto do ponto de vista processualcomo financeiro, o ajuizamento em conjunto, dando por encerrada a situação fundiáriana sua integralidade.

5. CONCLUSÃO

A irregularidade urbana é um dos problemas mais graves a serem enfrentadospor administradores e administrados, pois se trata de fenômeno social generalizadoque atinge níveis altíssimos.

Não é de hoje que esta realidade vem sendo enfrentada sob a ótica legislativa.Já em 1937 houve a edição de legislação cuja finalidade era disciplinar a produção deloteamentos e as vendas de terrenos em prestações (Decreto-Lei n. 58/37). Aindanesta senda, novas tentativas para solucionar estes problemas foram encaminhadas

6 Instituiu-se o Grupo Técnico de Regularização Fundiária (GTRF) para fixar estas diretrizes, incumbidos ostécnicos de avaliar a realidade sob um enfoque diferenciado que parte da situação consolidada tentando adequá-la ao ordenamento jurídico da melhor forma possível.

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por ocasião da promulgação da Lei Federal n. 6.766/79 e do Estatuto da Cidade, semque se houvesse alcançado a efetividade necessária e desejada.

Porto Alegre faz algum tempo enfrenta esta realidade de modo especial. Paratanto, estruturou uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos cuja finalidade édar novo paradigma no trato da irregularidade urbana como política pública,observando, desta forma, tanto o ordenamento jurídico nacional quanto local.

Entretanto, por sua natureza enquanto fenômeno social, a regularizaçãofundiária se mostra multidisciplinar e requer a intervenção de profissionais de diversasáreas do conhecimento científico para obter resultados satisfatórios, os quais não sevislumbram concretamente a curto prazo, ao contrário, é um processo longo quedemanda tempo, dinheiro e boa vontade, seja do ente público, do loteador ou dapopulação envolvida.

Trata-se de uma forma de ampliar o acesso à habitação regular para a população,através de estratégia de gestão do solo urbano dirigida para disponibilizar moradia dequalidade e com infra-estrutura adequada, mormente para os setores de baixa renda.

Enfim, é um meio viável para adequar a norma legal à realidade fática, umavez que cria condições jurídicas, financeiras, urbanísticas e administrativo-institu-cionais aos cidadãos, assegurando o direito à moradia e à cidade de forma articulada,reconhecendo e assegurando direito de posse e propriedade, prevenindo, inclusive, aformação de novos assentamentos irregulares na cidade.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Desafios do Serviço Legal em Ações deUsucapião Coletivo no Judiciário Paulista –Experiências de Extensão Universitária naComunidade do Paraisópolis

RODRIGO RIBEIRO DE SOUZA

Advogado e Orientador do Departamento Jurídico“XI de Agosto” da Faculdade de Direito daUniversidade de São Paulo.

ANA CAROLINA NAVARRETE, MARCO AURÉLIOPURINI BELÉM, RENATA GOMES DA SILVA ESTACY NATALIE TORRES DA SILVA

Graduandos da Faculdade de Direito daUniversidade de São Paulo.

INTRODUÇÃO

Com as inovações trazidas pela Constituição Federal em seus artigos 182 e183, pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01) e pelo Plano DiretorEstratégico do Município de São Paulo (Lei Municipal 13.430/02), estabeleceu-seuma série de instrumentos para a garantia, no âmbito do município, do direito àcidade, da defesa da função social da propriedade e da democratização da gestãourbana. Este instrumental coloca a gestão democrática, a sustentabilidade urbano-ambiental, a cooperação entre setores sociais, bem como ajusta distribuição dosbenefícios e ônus que decorrem do processo de urbanização como os principaisobjetivos do pleno desenvolvimento da função social da cidade.

Temos claro, contudo, que esses objetivos, na prática, estão submetidos aprocedimentos jurídicos subordinados à tradicional preocupação de gerar segurança,identificação e titularidade ao direito de propriedade. Dessa forma, surge um choqueentre as aspirações sociais garantidas constitucionalmente e as barreiras processuaisencontradas no Poder Judiciário, exigindo um redimensionamento do papel dapropriedade, do direito à moradia e da implementação de políticas públicas urbanas.

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O presente artigo visa expor diversos aspectos da atuação do “Grupo deRegularização Fundiária em Paraisópolis” e os obstáculos por ele enfrentados frenteao Poder Judiciário ao lidar com demandas coletivas.

1. A EVOLUÇÃO DO GRUPO

No ano de 2003, foi assinado um convênio entre a Prefeitura Municipal de SãoPaulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da Universidadede São Paulo (FDUSP), a fim de realizar um projeto-piloto de regularização fundiáriaem uma quadra localizada na Comunidade de Paraisópolis, periferia da zona sul domunicípio de São Paulo.

Assim, além do existente projeto de urbanização – obrigatório de acordo como Plano Diretor Estratégico – objetivou-se produzir novos conhecimentos jurídicos esociais com os estudantes de direito, os quais se envolveriam simultaneamente emações judiciais e numa aproximação da comunidade. Participam do projeto estudantesde todos os anos da FDUSP, coordenados por um advogado cedido pelo DepartamentoJurídico XI de Agosto da FDUSP, entidade estudantil que realiza assistência jurídicagratuita à população carente.

1.1. A ESTRUTURAÇÃO FILOSÓFICA E PRÁTICA

O grupo de Regularização Fundiária se identifica como um serviço jurídicoinovador1, que privilegia a organização popular, bem como, valoriza a apropriaçãodo conhecimento, por parte dos moradores da comunidade, de direitos como cidadãos.É nesta medida que se torna possível a grande parte da população reivindicar taisdireitos e, nesse ínterim, resultar numa transformação de tais demandas em importantespolíticas públicas. Dessa forma, o grupo contribui para clarear a dimensão extralegal,permitindo que os interessados analisem criticamente as questões políticas, econômicase sociais conexas com a atividade jurídica, que permanece amiúde escondida pelotratamento formalista e excessivamente processual dado aos casos. Não se trata,certamente, de desprezar a estratégia legal, mas sim de utilizar esta via de maneirapolitizada, de modo a desprivilegiar o tecnicismo, a racionalidade formal e a análiseestrutural formalista. Enquanto prática inovadora, o grupo ressalta a necessidade demecanismos mais flexíveis de defesa dos interesses em questão, a fim de que osdemandantes devidamente apreendam seus problemas como “problemas legais” e,além disso, acentua a importância de se viabilizar a discussão dos remédios jurídicosdisponíveis – ou mesmo de novos remédios.

1 “expressão que tende a designar o conjunto de entidades voltadas para auxílio jurídico gratuito”. In: LUZ,Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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Assim como outras Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), abusca por um serviço jurídico inovador2 privilegia as experiências com práticas cole-tivas, não hierarquizadas, dialógicas, multidisciplinares e transformadoras. A partirdesses pressupostos, fez-se uma análise jurídica de Paraisópolis, mais especificada-mente junto aos moradores da área usucapienda e, após o convênio com a prefeitura,foram ajuizadas três ações de usucapião coletivo. E pelo comprometimento desafia-dor de um direito igualitário, reconhece-se através da prática uma incompatibilidadeentre as demandas da comunidade e os instrumentos exigidos pelo judiciário. Estatensão entre os mecanismos será analisada através das experiências acumuladas naatuação do grupo.

2. OS MAIORES ENTRAVES À REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Abaixo estão descritos os principais desafios encontrados durante todo oprocesso de regularização fundiária na Comunidade de Paraisópolis, que foi iniciadoem 2003 e que ainda se encontra em face incipiente.

2.1. O despreparo do nosso sistema jurídico em lidar com o coletivo

A dificuldade de lidar com o direito à moradia através de ações de usucapiãoespecial urbano coletivo surge antes mesmo do ajuizamento da ação judicial. Esteinstrumento, previsto no Estatuto da Cidade em seu art. 10, foi criado para regularizara situação fundiária de aglomerações da população de baixa renda, em que é difícilrealizar a individualização dos imóveis. Ao mesmo tempo em que se trouxe umagrande inovação social, com a possibilidade de inclusão de um grande número deautores e/ou réus, verificaram-se diversas dificuldades a serem enfrentadas, porque odireito processual brasileiro ainda é baseado em concepção liberal de partes individuaisna disputa por direitos disponíveis, a despeito da recente evolução da possibilidadede demandas coletivas.

Na atuação judicial, encontram-se sérios obstáculos práticos como a dificuldadeno recolhimento de documentos essenciais para a proposição desse tipo especial deação – por exemplo, a prova documental de que os autores residem na área há maisde 5 (cinco) anos, algo complicado devido à quantidade de pessoas geralmenteenvolvidas, o que dificulta, também, os próprios atos judiciais; é perceptível, outrossim,a dificuldade na própria mobilização comunitária de um modo geral, que é pressupostopara a participação efetiva no âmbito processual.

2 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e realidade social: apontamentos para uma tipologiados serviços legais in Discutindo Assessoria Popular. Coleção Seminários, nº 15. Rio de Janeiro: FASE, 1991.

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A mobilidade dos moradores é outro problema, já que as frequentes mudançasatrapalham o mapeamento dos moradores das áreas e também complicam o andamentodos processos à medida que a alteração constante dos pólos ativos pode tumultuar odesenvolvimento das ações judiciais, além de dificultar a comprovação de documentosque comprovem a posse há mais de 5 (cinco) anos, requisito legal da prescriçãoaquisitiva.

Diante de tal experiência, percebeu-se que ao invés de haver simplificação eflexibilização da ação de usucapião ordinário, tendo em vista as condições diferen-ciadas destas populações, a ação acaba se tornando ainda mais complexa, porquepassa a aglutinar as especificidades da ação de usucapião a uma multiplicidade de auto-res e réus, sendo necessários os mesmos documentos, requisitos e procedimentos.

Desse modo, o processo de usucapião coletivo uma sofre grande incongruência,já que sendo ele voltado a áreas em que a individualização é complicada, não é fácila obtenção de provas individuais da prescrição aquisitiva. Por exemplo, a obtençãode uma simples correspondência com o endereço residencial pode ser dificultada emvirtude da numeração desordenada das habitações. Em virtude disso, muitascorrespondências acabam sendo centralizadas em um único “endereço”.

É, portanto, necessário destacar que, apesar das grandes inovações trazidaspelo Estatuto da Cidade, a ação de usucapião especial urbano coletivo não tem umaaplicação prática veemente, sendo extremamente semelhante ao usucapião ordinárioindividual, diferenciando-se, mais substancialmente, em relação ao prazo para aprescrição aquisitiva.

2.2. A questão do registro de imóveisNa Comunidade de Paraisópolis, assim como em grande parte do Brasil, a

transmissão da propriedade se dá de maneira informal, por meio dos chamados “con-tratos de gaveta”, compromissos de compra e venda averbados na matrícula do imó-vel ou registrados no cartório de registro civil; apesar de fazerem parte de um grandee complexo sistema de contratos, tais instrumentos não são registrados de maneiradefinitiva no registro do imóvel. Esta informalidade é causada principalmente por causados altos preços cobrados pelos Cartórios de Registro de Imóveis, sendo que os serviçosnotariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.Quer dizer que, mesmo com este aspecto público, não são previstas condições especiaisou isenções de custas para aqueles que comprovadamente são de baixa renda.

Na tentativa de romper com essa lógica, o Estatuto da Cidade previu que asentença declaratória da ação de usucapião especial urbano serviria como título pararegistro. Esta é uma previsão relevante, contudo, não soluciona o problema, vistoque as próximas transmissões dos imóveis não serão registradas gratuitamente.

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Justamente ao se considerar isto, provavelmente nem haverá novos registros, o queinclui a área em um ciclo vicioso de constante necessidade de regularização fundiária.Esta falta de isenções gera desvantagens para o possuidor que, apesar de ter compradoo imóvel, não é formalmente proprietário, e para toda a coletividade, que tem umserviço desatualizado, muito distante do plano fático.

2.3. Os encalços do Processo Civil

O Código de Processo Civil tem mais de 30 anos e, apesar das reformasconstantes, ainda traz problemas para processos complexos como o usucapião, emespecial o coletivo. Através do Estatuto da Cidade, esta forma de aquisição dapropriedade ganhou contornos mais flexíveis e mais adequados à realidade brasileira,saindo daquela situação originada no Código Civil, que trazia muitas limitações,para, talvez, vir a se tornar um processo de maior importância para a construção decidades menos desiguais.

Apesar de parecer um grande avanço, tal instrumento tem suas restrições, quesão originadas principalmente, na falta de conhecimento dos operadores do direito aseu respeito e nas limitações do processo civil tradicional. Além de suas peculiaridades,o usucapião especial urbano coletivo, assim como outras ações coletivas, sofre coma estruturação liberal do processo, baseada na relação credor-devedor, com oenvolvimento de somente duas partes defendendo direitos disponíveis. A despeitodisso, o processo civil deve abarcar, atualmente, novos sujeitos que coletivamentetentam englobar as pessoas que estejam na mesma situação, ainda que não estejamcompletamente identificadas. Órgãos como o Ministério Público, as DefensoriasPúblicas, Sindicatos e Associações têm tido grande importância figurando no póloativo de ações na defesa de direitos difusos e coletivos e em processos que apontamfalhas ou omissões na consecução de políticas públicas.

A ilegitimidade ativa é um argumento muito utilizado na tentativa de não proverdireitos garantidos. Por conta disso, o Estatuto da Cidade foi expresso ao dispor, emseu artigo 12, III, a legitimidade de Associação de Moradores regularmente constituída,desde que autorizada por seus representados, para atuar como substituta processual.Entretanto, mesmo com a existência desta previsão, sua aceitação ainda deve sofrercom as barreiras criadas pelo Poder Judiciário, tendo em vista a problemática relaçãodeste poder com as ações coletivas. Esta legitimação extraordinária das associaçõesse justifica devido à situação peculiar destas comunidades, que contam com muitaspessoas nas áreas usucapiendas e intensiva mobilidade residencial.

A moradia é ainda, por diversos motivos históricos, tratada como um direitoindividual; não obstante, ao se considerar o elevado número de pessoas na mesmasituação em ocupações irregulares, verifica-se que ajuizar ações coletivas traz

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benefícios evidentes ao Poder Judiciário, pois pode evitar a sobrecarga com demandassemelhantes e relacionadas. Além disso, tais ações favorecerem a segurança jurídica,criam a possibilidade maior de mobilização entre os moradores – o que os favorececontra problemas como a forte especulação imobiliária e, além disso, trazem maisrepercussão e pressão social para a questão das deficiências das políticas públicasurbanas, de uma maneira geral.

Outra inovação trazida pelo Estatuto da Cidade é referente à previsão do ritosumário para as ações de usucapião especial urbano. Entretanto, por envolverdiretamente o direito de propriedade – garantia consagrada ainda em nossoordenamento como absoluta – seu processamento é demorado e burocrático. Seriarealmente desejável que a enorme demanda por processos deste tipo pudesse serresolvida mais rapidamente, mas a mera previsão legal não garante isso. Tal questãoé comumente ignorada, observando-se, na prática, o rito ordinário. Além disso, o juizteria a possibilidade de converter o procedimento de sumário para ordinário naaudiência, segundo o diploma processual (art. 277, § 4º do Código de Processo Civil).

Outra questão é que há uma grande dificuldade durante a fase citatória, já queos últimos registros na matrícula dos imóveis de que tratam as ações datam de meadosda década de 1970, o que gera obstáculos para encontrar os pólos passivos das ações.É importante, nesse sentido, tecer algumas considerações: a ação de usucapião temnatureza declaratória devendo somente declarar um direito já existente com a provaem juízo os requisitos necessários. No entanto, a ação acaba sofrendo de umaburocracia exacerbada e as provas exigidas, muitas vezes, estão acima daspossibilidades dos possuidores. Isso leva a questionamentos sobre a imensa burocraciacausada pelos entraves do Direito Processual, pois mesmo um terreno abandonadohá décadas, tem que ser submetido a um dos procedimentos mais complexos doordenamento jurídico para a formalização de uma situação fática evidente.

2.4. A atuação dos Operadores do Direito

O problema se agrava ainda mais porque a atuação acanhada do Judiciário e avisão conservadora em relação aos problemas sociais parece ser um sério fruto datradição do que de teorias embasadas cientificamente ou reflexões mais profundas,reflexo da formação antiquada dos juristas, conforme esclarece Edésio Fernandes:

“O olhar da maioria dos juristas e dos juizes ainda é profundamente marcado pelo paradigmacivilista, que se encontra materializado nos currículos obsoletos das faculdades de direito noBrasil e nos países latino-americanos, sendo que as decisões judiciais mais comprometidascom outros princípios e valores tendem a ser anuladas por tribunais superiores conservadores.”3

3 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In FERNANDES, Edésio; ALFONSIN,Betânia. Direito urbanístico: Estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 10.

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O Ministério Público, nas ações em que se manifestou, demonstrou umdesconhecimento da realidade de uma comunidade de baixa renda: foram requisitadasdiversas informações já presentes no processo, além de documentos sem relaçãodireta coma demanda ou sequer “realizáveis” como declarações de imposto de renda,individualização de imóveis comerciais, certidões de casamento/nascimentoatualizadas de todos os autores, demonstrativos de índices de violência na área e,ainda, informações sobre a existência de moradores da comunidade que não estejamna ação (sendo que a região de Paraisópolis conta com cerca de 80 mil habitantes!).

Na última ação de usucapião coletivo que foi distribuída, foi requerido, alémda declaração de propriedade dos moradores, a inspeção judicial (art. 440 a 443 doCódigo de Processo Civil), um meio de prova raramente utilizado, mas que poderealizar um exercício interessante de aproximação entre as partes e o judiciário, namedida em que pode contribuir para o juiz entender a realidade em que está intervindoe para os moradores se aproximarem da mítica figura do magistrado; foi requerida,também, a tutela antecipada visando garantir, desde já, maior segurança da posse dosautores, no entanto, os requerimentos foram ignorados.

2.5. As deficiências na assistência jurídica

O Brasil tem uma grande deficiência na assistência jurídica à população debaixa renda. A lei que cuida deste assunto (Lei Federal 1.060/50) é da década de 50 eparte da concepção, já ultrapassada, de assistência judiciária. A evolução do direito eda sociedade exige que os conflitos sejam resolvidos de forma mais célere e eficiente,surgindo daí a necessidade de outras formas de resolução de conflitos; além do mais,a previsão de isenção de custas processuais não abrange custas extrajudiciais, quesão extremamente relevantes para a propositura de demandas, como a já mencionadamatrícula dos imóveis para o usucapião ou mesmo para a prevenção e resolução deconflitos meramente administrativos.

Além disso, a ação de usucapião exige uma perícia realizada por engenheirocivil ou arquiteto e, apesar de estar previsto em lei o pagamento dos honorários deadvogados e peritos (art. 3º, inc. V da lei 1.060/50), não são previstos recursos certose suficientes na lei federal para este pagamento, o que pode prejudicar a efetividadedeste direito caso se considere a cobrança de honorários periciais, pois não possibilitaro acesso à perícia gratuita inviabiliza a ação de usucapião. Em decisão sobre o assunto,o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o Estado de São Paulo deveria fornecer aperícia através de membros do seu quadro de funcionários. Entendeu-se que, apesarde ser previsto o pagamento em lei, não há recursos destinados e, portanto, não épossível exigir a realização desta perícia gratuitamente. O acórdão chega inclusive asugerir que os peritos poderiam pedir compensações aos juízes por realizarem estas

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perícias de forma gratuita – ou com pagamento tardio, apenas ao fim do processo –com a previsão de novas perícias – desta vez pagas – em que ele seria nomeado:

“O art. 3º, V, da Lei n. 1.060/50, assegura a isenção no pagamento dos honorários do perito.Significa, tenho eu, que apenas não constitui uma obrigação prévia da parte assistida pelajustiça gratuita o depósito da importância correspondente aos honorários e demais gastosnecessários com realização da prova técnica. Mas isso não significa que vá competir aoEstado arcar com o valor correspondente. [...] Lembro que essa situação é muito comum naJustiça Obreira, quando a perícia é postulada pelo empregado reclamante, e nem por issoelas têm deixado de ser realizadas, até porque os profissionais que costumam prestar serviçopara os magistrados de 1º grau, que gozam da sua confiança, logram, em compensação,obter ocupação contínua em processos outros, em que recebem devida e antecipadamentepela atividade.”4

Este problema generalizado foi encontrado em nosso processo: o trabalho doperito foi orçado em R$ 6.000,00 (seis mil reais) em uma ação e R$ 2.000,00 (doismil reais) em outra; por tratar-se de beneficiários da justiça gratuita, os autores nãotêm condições de arcar com tal despesa, tendo sido necessário a realização de diversaspetições, com esclarecimentos ao juiz para a compreensão da situação. Ora, se são osautores pobres na acepção jurídica do termo, portanto não dispondo de recursos paraas despesas processuais sem prejuízo de seu sustento e de sua família, como seriapossível efetuar tal pagamento?

Uma das ações ainda não teve resposta judicial. A outra solução foi umaexceção: os honorários foram reduzidos para R$ 700,00 (setecentos reais) e a períciaserá paga pelo Estado. No entanto, a dificuldade em conseguir tal solução mostra oquanto ela é excepcional e o quanto uma sistematização para a realização de períciascomplexas gratuitamente é necessário. Enquanto não for realizada uma revisão oucomplementação da lei de assistência judiciária a realização de processos de usucapiãopara a população de baixa renda dependerá da boa vontade de magistrados e dasrelações dúbias entre estes e os peritos.

4 Ementa: PROCESSUAL CIVIL. PERÍCIA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. DESPESAS COM A PROVATÉCNICA DE ENGENHARIA. USUCAPIÃO URBANO. AUSÊNCIA DE COMPLEXIDADE OU CUSTOELEVADO NA REALIZAÇÃO DA PERÍCIA. POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DIRETA DOTRABALHO PELO ESTADO, EM TAIS CIRCUNSTÂNCIAS. OBRIGAÇÃO DE CUSTEIO DE PERITOAUTÔNOMO AFASTADA. I. A isenção prevista na Lei n. 1.060/50 não obriga o Estado a reembolsar asdespesas necessárias à realização da prova pericial requerida pela parte assistida pela Justiça gratuita. 11 .Caso,todavia, em que dado ausência de complexidade ou onerosidade da perícia, que não demanda, na espécie, gastossignificativos com recursos humanos, materiais ou exames laboratoriais, pode o trabalho ser exercido diretamentepor repartição administrativa do próprio ente público, quando necessária mera disponibilização de infra-estruturajá existente, em colaboração com o Poder Judiciário! 11. Recurso especial conhecido e provido em parte. (SuperiorTribunal de Justiça, Quarta Turma, Relator: Aldir Passarinho Júnior, Recurso Especial 81.901/SPJ. 07.08.2001)

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2.6. A consolidação da associação de moradoresMuitos dos problemas decorrentes do processo civil e mesmo nos registros de

imóveis podem ser amenizados pela propositura da ação de usucapião por associaçãode moradores, conforme previsto no Art. 12, III, do Estatuto da Cidade. Esta associaçãopode agir como substituta processual, ou seja, requerendo direitos em nome de outros.Isto facilitaria, num primeiro momento, a busca de documentos entre os moradores,o pólo ativo da ação não precisaria ser constantemente modificado no processo judicial.Desta maneira, o registro de imóveis seria sempre em nome da associação, mas coma posse garantida ao morador residente e, posteriormente, as alterações do registro deimóveis não precisariam ser realizadas constantemente.

Além disso, a articulação dos moradores permitiria uma maior participação noprocesso e na própria coletividade, gerando uma maior consciência de seus direitos emaior força oriunda da soma dos esforços individuais na busca de um objetivo comum.Nesse sentido, a união dos moradores numa associação pode dificultar a atuação daespeculação imobiliária na obtenção dos terrenos obtidos por meio do usucapião earticular a coletividade na pressão, junto ao poder público, pela implementação depolíticas públicas urbanas.

No entanto, o condomínio também pode gerar diversos problemas futuros.Dificilmente, obter a fração ideal de uma propriedade satisfaz os anseios da popula-ção que busca a declaração de propriedade. A indefinição da propriedade pode gerardiversas limitações econômicas ou mesmo jurídicas: tem-se um instrumento inova-dor limitado pela realidade fática, que não encara a propriedade de maneira coletiva.É necessário, portanto, criar mecanismos para incentivar e fortalecer as Associações,fundamentais para auxiliar na resolução de diversos problemas relacionados, princi-palmente, à pluralidade de autores.

CONCLUSÃODiante do exposto, diversas conclusões podem ser depreendidas a partir da

experiência do “Grupo de Regularização Fundiária de Paraisópolis” junto ao judiciáriopaulista. É necessário concluir que os instrumentos introduzidos na ordem jurídico-urbanística após a Constituição Federal de 1988 e, principalmente, após a edição doEstatuto da Cidade, garantiram diversos avanços no Direito material, tentando darcontornos mais delineados às funções socioambientais da cidade e da propriedade.Entretanto, esses instrumentos encontram uma série de entraves no Direito Processual,na Administração Pública e na cultura jurídica dos operadores do Direito, apoiadospor uma tradição extremamente formalista, privatista e liberal do Direito.

Dessa forma, as ações de usucapião coletivo, muitas vezes, nada mais são doque uma multiplicidade de ações individuais. Este posicionamento esvazia de sentido

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uma luta por uma prática coletivista, visto que a burocracia procedimental das açõesé multiplicada muitas vezes, variando de acordo com o número de integrantes dospólos passivos e ativos. Ao analisarmos essa questão sob um prisma meramenteprocessual, não há simplificação procedimental efetiva nesse tipo de ação coletiva.

No que se refere ao direito registrário, enquanto não se pensar em modos deisentar de custas extrajudiciais a população de baixa renda, as transmissões continuarãoa ser informais e os processos de usucapião e adjudicação compulsória resultantes dainformalidade tendem a crescer e prejudicar mais ainda a celeridade processual e obom andamento do Judiciário. É necessária uma mudança na “cultura jurídica” dosoperadores do Direito, para que seja menos dogmática, formalista e liberal e maisbaseada na realidade social.

Por fim, diagnosticadas essas questões, é preciso concluir que é necessáriauma intensa reforma legislativa nos campos do Direito Processual e do DireitoRegistrário, que, por sua vez, podem influenciar a mudança da cultura jurídica nasFaculdades de Direito e, portanto, na formação dos operadores de Direito. A mudança,entretanto, é difícil porque afeta grupos de pressão extremamente poderosos eorganizados.

Atualmente, como a ordem jurídico-urbanística está construída, as ações cole-tivas não se confirmaram como um incentivo ao trabalho dos serviços legais inova-dores, mas sim um óbice aos mesmos. Essa dificuldade apenas prejudica a populaçãoresidente na área, que deve esperar o longo procedimento judicial, decorrente dopróprio abandono do imóvel em questão, ou seja, o ônus da insegurança jurídicaacaba recaindo sobre aqueles que buscam dar à propriedade a função social necessá-ria após grande período de inércia dos proprietários.

Fica uma reflexão baseada nas experiências com a ação de usucapião coletivo:Quando se constata que a maioria da população não tem acesso aos meio formais deaquisição da propriedade, verifica-se que a lei já não traz mais segurança jurídica,pois exclui mais do que regula. Se a grande maioria fica à margem do ordenamento,não é hora de rever os ordenamentos e as concepções de propriedade e do direitoprocessual, para que as conquistas do campo constitucional não sejam apenas meraretórica desprovida de efeitos?

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Retomando a Problemática da Integração dasFavelas à Cidade: Após 20 Anos da“Constituição Cidadã”, o Estado de DireitoChegou às Favelas?

ALEX FERREIRA MAGALHÃES

Mestre em Direito.

1. INTRODUÇÃO

No presente artigo, deseja-se discutir as implicações jurídicas dos negócios decompra e venda de imóveis realizados nas favelas. Estes negócios, de um lado, revelama sensibilidade jurídica dos moradores da favela e, de outro, a ordem jurídico-urbanística interna à favela, que vai sendo constituída por força do conjunto dasrelações sociais aí configuradas. De outro lado, tais negócios podem e devem serexaminados quanto às implicações que produzem à luz da própria ordem jurídicaoficial vigente, a fim de que se esclareçam as conexões existentes entre essas duasordens, bem como se registrem os direitos já adquiridos pelos moradores das favelas,a despeito da pendência de regularização urbanística e fundiária de suas moradias.De diversas formas, esses moradores configuram-se como sujeitos de direitos que,ao menos em tese, são plenamente judiciáveis, embora, de fato, observemos umasérie de processos nos quais essa condição adquire peso bastante relativo no deslindedos conflitos que emergem nas relações cotidianas, da qual aquela ora estudadaconstitui um destacado exemplo.

O debate trazido à tona no presente artigo insere-se no contexto de uma pesquisamais ampla, que ora realizamos, sobre o Direito à Cidade por parte dos moradores defavelas e sobre a vigência (ou não) do Estado Democrático de Direito nas favelascariocas, após 20 anos da edição da Carta de 1988, que visou desconstituir e superaro regime autoritário então existente. O debate sobre as chamadas “zonas cinzentas”,isto é, regiões onde não vigoram, ou são relativizadas, as instituições do Estado deDireito, é uma problemática classicamente presente nos estudos jus-políticos dassociedades latino-americanas. Tal debate não perdeu a sua atualidade mesmo no

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contexto pós-Constituição de 1988, no qual não desapareceram – e talvez até mesmotenham se acentuado – os processos de segregação sócio-espacial consubstanciadosnas favelas, tal como evidenciou uma série de reportagens, realizada pelo jornal cariocaO Globo em 2007, intitulada “Os brasileiros que ainda vivem na ditadura”.

Propomo-nos re-examinar tal problemática, basicamente a partir da análise deconteúdo de um conjunto de entrevistas realizadas, ao longo de 2008, com moradoresde uma favela, situada na cidade do Rio de Janeiro, que passou por intervençõespúblicas no sentido de promover a sua urbanização e regularização urbanística, a fimde integrá-la à cidade. Em tais entrevistas se procurou perceber as normas que de fatoestão operando no espaço da favela, no tocante às relações de vizinhança e aapropriação, uso e ocupação do solo, bem como qual a fonte dessa normatividade –se estatal, “comunitária”, ou uma combinação de ambas – além, por fim, da naturezadessas normas, forjando uma interpretação sobre o significado social da regulaçãodo espaço que nelas se materializa.

Os argumentos e conclusões aqui apresentados são parciais, tendo em vista aetapa inicial em que se encontra a pesquisa e as limitações à extensão do presenteartigo, o que demandou um recorte a mais em nosso objeto de estudo.

2. A COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NO CASO ESTUDADO

2.1. O que se vende e como se paga

Conforme informaram os depoimentos, atualmente é muito escasso o acesso aimóveis na favela estudada por meio de invasão, predominando o acesso pelosmecanismos de mercado, notadamente a compra ou a locação. Um dos depoimentoscolhidos apontou que a aquisição da sua casa se deu mediante doação, que foi feitavisto que a entrevistada e sua família foram vítimas de incêndio que destruiucompletamente a sua casa, ficando em situação de virtual indigência. Em vista disso,um dos moradores doou a sua própria laje para que a entrevistada reconstruísse ali asua casa, enquanto os demais vizinhos fizeram doações de material de construção,móveis e roupas. Trata-se de uma situação a primeira vista incomum, verificadanormalmente entre familiares, mas que pode guardar certas analogias com outras,que relataremos adiante.

Com relação ao processo de compra e venda de imóveis, percebe-se,inicialmente, que são objeto dessa forma de acesso à moradia desde lotes vazios atéterrenos edificados, incluindo-se aí a venda de lajes, prática já identificada há algumasdécadas, no início do processo de verticalização das favelas. O processo deverticalização encontra-se amplamente desenvolvido no caso estudado, no qual seobserva que 82,6% dos lotes possuem mais do que 1 pavimento, e que 35,75% possuem

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3 pavimentos, sendo perceptível a tendência de que o gabarito de 4 andares ocupeuma faixa relevante de casos, dentro de alguns anos (PREFEITURA, 2006). De outrolado, não somente lotes edificados em alvenaria são objeto de troca, mas tambémimóveis com barracos de madeira, ou, ainda, construções precárias, adquirem valorde troca e são efetivamente vendidos, a exemplo de um dos entrevistados, que informouque, quando adquiriu sua casa, por compra, a mesma era desprovida de teto.

Outro aspecto do processo de compra e venda diz respeito ao pagamento dopreço, no qual se verifica amplo recurso ao pagamento parcelado e sem incidência dejuros e/ou correção monetária das prestações. Em geral, verificou-se que o compradorlança mão de verbas salariais extraordinárias a fim de realizar a compra do imóvel –indenização rescisória, férias, 13º salário, além do próprio FGTS, instituído para essafinalidade. No entanto, face às normas que regem a utilização do FGTS, que impedema sua utilização para aquisição de imóveis que não estejam devidamente matriculadose registrados no Cartório Imobiliário, verifica-se o recurso ao “acordo de demissão”a fim de liberar os recursos do Fundo. Em 100% dos depoimentos colhidos, o própriovendedor operou como concedente do crédito, a exemplo do que também ocorre navenda de materiais de construção, uma vez que os compradores em geral nãoconseguem acesso ao crédito bancário. Houve mais de um relato em que o moradoraté tentou obter financiamento da Caixa Econômica Federal, porém sem êxito umavez que não possuía bens suficientes ou hábeis a fornecer garantia do pagamento –por exemplo, o morador possuía imóvel de valor superior ao capital desejado, porémo mesmo não se encontrava sequer matriculado no Cartório Imobiliário.

2.2. A interveniência da Associação de Moradores

Um aspecto de suma importância, e que se pode indagar se não integraria oDireito Consuetudinário1 da favela estudada, consiste no fato de que a compra evenda de imóveis deve ser intermediada pela Associação de Moradores, isto é, acompra só seria válida e reconhecida publicamente se realizada perante o representanteda Associação, via de regra o seu próprio Presidente. Segundo os depoimentoscolhidos, tal norma vale para todo e qualquer imóvel vendido na área da favela, “atémesmo para o mais modesto barraquinho”, e constitui um procedimento reconhecidopor todos e que oferece a segurança consistente na legitimação do adquirente em face

1 O mesmo que Direito Costumeiro. Na doutrina, define-se como o conjunto de regras que se estabeleceram pelocostume ou pela tradição. Para que o costume seja admitido como tal, a teoria jurídica considera indispensávelque se tenha fundado em uso geral e prolongado, havendo a presunção de que o consenso geral o aprovou.Assim, constituem requisitos para seu reconhecimento (a) consistirem em fatos repetidos, de modo uniforme,por longo tempo; (b) a sua prática ser generalizada e pública; (c) serem fatos lícitos e não contrários à lei ou àordem pública. Cumpridos esses requisitos, o costume se considera fonte formal do Direito. No caso estudado,como se trata de situação não cogitada na lei, dir-se-ia que se trata de um costume praeter legem. Cf. verbeterespectivo in SILVA (2000, p. 270).

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de todos os moradores atuais e futuros daquela favela. Tratar-se-ia, pois, de um atoque, à luz dos costumes locais, confere eficácia erga omnes à compra do imóvel.

Para esse fim, a Associação criou e utiliza um documento padrão, denominadoTermo de Transferência de Benfeitoria, do qual consta o seguinte: declaração davenda; identificação das partes; endereço, medidas e nº de cômodos do imóvel vendido;preço e condições de pagamento; data do negócio; assinatura das partes, seus cônjuges,testemunhas e, aspecto indispensável, do próprio Presidente da Associação. Ou seja,trata-se de uma compra e venda feita por instrumento particular, porém com umaespécie de interveniência obrigatória de um terceiro, que lavra e subscreve o respectivoinstrumento. A atuação da Associação guarda analogia tanto com a função do Notário,pois redige o contrato, quanto com a função do Registrador, uma vez que a Associaçãoanota essa venda no arquivo por ela mantido, com base no qual se pode saber quem,para a Associação, é o “proprietário” de cada imóvel da favela. À luz da legislaçãoem vigor, tal interveniência, conquanto não seja vedada ou vista como ilícita, nãoseria de forma alguma obrigatória, uma vez que a Associação não é formalmenteinvestida em qualquer função pública, muito embora, de fato, opere como uma espéciede “governo da favela”, face às funções que o próprio Estado a ela delega, o queconstitui uma das múltiplas ambiguidades que marcam esses territórios. Além disso,uma vez que o vendedor não é proprietário do imóvel, este sequer dependeria deinstrumento público para transferir os direitos que possui sobre o mesmo, tal comoocorre na lavratura de escritura pública2. Isto somente ocorreria caso o imóvel estivessematriculado no Registro Imobiliário, bem como seu valor fosse igual ou superior a30 vezes o maior salário mínimo vigente no país3, conforme dispõe o art. 108 doCódigo Civil. A despeito de todas essas considerações, num caso concreto relatadonas entrevistas, o Presidente da Associação teria afirmado categoricamente àentrevistada que, sem a sua assinatura, o documento de compra do imóvel não terianenhum valor, o que, usando as categorias jurídicas, equivaleria a afirmar a nulidadedo título aquisitivo do comprador. Dessa forma, fica evidenciada a particularidadedas instituições, e da sensibilidade jurídica, desenvolvidas na favela estudada.

Abrimos aqui um pequeno parêntesis, a fim de justificar as aspas que envolvema palavra proprietário no parágrafo anterior, parêntesis que optamos por inserir no

2 Em virtude da ausência de propriedade, as vendas de imóveis em favelas, no rigor da técnica jurídica, constituiriamcontratos de Cessão de Posse, para os quais a lei não exige forma especial, o que significa que são válidos atémesmo se celebrados verbalmente.

3 Segundo informações colhidas na rede mundial de computadores, o maior salário mínimo vigente no país é o doestado do Paraná, no valor de R$ 548,00. Com base nisso pode-se afirmar que, mesmo que ocorra a regularizaçãofundiária, com a abertura de matrícula no RGI para todos os imóveis situados em determinada favela, a venda deboa parte dos imóveis aí existentes poderá continuar a ser feita sem necessidade de escritura pública. Isto porquea lei civil só a exige para imóveis vendidos a valores superiores à quantia acima especificada, que corresponderia,atualmente, ao montante de R$ 16.440,00.

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texto, e não em notas, dada a sua relevância para nossa argumentação. Num olhar,digamos, externo ao discurso dos envolvidos – por exemplo, à luz da legislação emvigor – aqueles que a Associação reputa proprietários seriam, em verdade, possuidoresdos imóveis, uma vez que, no caso estudado, a propriedade cabe indiscutivelmente àUnião, e dado que nenhum dos moradores adquiriu seu lote em face dela, nenhumdeles poderia transmitir um direito que não possui. No entanto, segundo esse mesmoolhar, seria possível afirmar que os moradores agem como se proprietários fossem,isto é, exercem posse com animus tenendi4, quiçá com animus domini5, o que, paraaquela coletividade, é suficiente para permitir que a pessoa seja reconhecida comoproprietária. Por fim, pode-se afirmar, com base nos depoimentos, que os moradoresda favela estudada têm consciência de que aquilo que eles consideram proprietário,para sua economia interna, não é a mesma coisa que o Estado, ou aqueles que nãomoram em favela, consideram como tal. Vários depoimentos registraram com clarezaa percepção de que existem critérios diferenciados para cada um dos casos, isto é, deque há regras, instituições, procedimentos e obrigações que são vigentes apenas forada favela, não dentro, e vice-versa. Ou seja, é clara a percepção da segmentação, ouausência de integração, entre os espaços interno e externo à favela, não nos parecendopassar despercebido aos moradores do local a existência de uma dualidade de conceitosde propriedade.

Além daquelas analogias entre instituições oficiais do Estado e comunitáriasda favela acima indicadas, no caso estudado há mais uma analogia relevante a serassinalada: à semelhança dos Registradores, que devem observar o chamado princípioda continuidade registraria, a Associação demonstra ter o idêntico cuidado de somenteaceitar e reconhecer uma venda caso seja realizada por aquela pessoa que, nos seusregistros, consta como “dono” do imóvel, isto é, aquela pessoa que tenha previamenteadquirido tal imóvel. Percebemos do depoimento do Presidente da Associação queele é bastante rigoroso nesse aspecto, já tendo se recusado a reconhecer tentativas devenda em descumprimento dessa norma. Os depoimentos colhidos ainda não permitemfornecer uma explicação segura sobre que fatores teriam determinado essa similitudede procedimentos, que a princípio surpreende o pesquisador na medida em que nãoconsta que os Presidentes da Associação tenham qualquer formação em DireitoRegistrário.

Uma hipótese mais rudimentar diria que tal semelhança se deve ao fato de seruma espécie de necessidade lógica e/ou uma necessidade operacional, isto é, seriauma norma que decorre do bom senso na administração dos negócios imobiliários,

4 Vontade ou intenção de ter e de possuir um bem, agindo em relação a ele do mesmo modo que o legítimo donoprocederia, como se fosse o próprio dono. Também designada por affectio tenendi (SILVA, 2000).

5 Vontade ou intenção de ser dono; intenção de ter e de possuir um bem como dono (SILVA, 2000).

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sem o qual esta perderia a sua racionalidade. Uma outra hipótese, que a princípio nosparece seja mais digna de ser investigada com seriedade e aprimorada, diria que talfato constituiria um indicador da comunicação discreta e imperceptível, que estariaem curso há algum tempo (isto é, não haveria nada de “novo” nisso), entre os costumesvigentes na favela e os rituais e procedimentos legais definidos pelo Estado. Emoutras palavras, a despeito dos inegáveis processos de segregação sócio-espacial, talfator não é impeditivo de que haja certo intercâmbio e/ou apropriação de instituiçõesoficiais do Estado por parte das coletividades favelizadas. Estas, à medida que assuas organizações internas se institucionalizam, tenderiam a começar a absorver, demaneira parcial e fragmentária, algumas técnicas e instrumentos de administração davida coletiva desenvolvidos no núcleo da sociedade nacional, plenamente vigentesem suas regiões não segregadas. O próprio nomen conferido ao documento lavradopela Associação – Termo de Transferência de Benfeitoria – revela algum nível deincorporação da técnica jurídica ao se referir à benfeitoria, e não ao solo, como objetoda venda, pois o solo não é de propriedade do vendedor, logo, este não poderia aliená-lo, ao contrário da construção.

Tal hipótese implica em afirmar que as favelas estariam mais integradas à vidasocial do que aparentariam á primeira vista, com o que se reitera a crítica à interpretaçãodualista da sociedade, critica que tem na obra de Francisco de Oliveira (OLIVEIRA,1988) uma de suas clássicas sínteses e referência teórica obrigatória. Implica, ainda,em afirmar uma certa via, ou estratégia (talvez não rigorosamente consciente), deexercício da cidadania pelos segmentos sociais favelizados, que através da apropriaçãofragmentária das instituições do Estado buscaria legitimar, interna e externamente,as suas próprias instituições.

2.3. O preço da intermediação

Outro aspecto relevante, da intermediação da Associação na compra e vendade imóveis no caso estudado, consiste no fato de que essa intermediação não é gratuita,mas há um preço a ser suportado pelo comprador, de maneira também análoga aoscustos de lavratura de escritura e de registro, nos casos compra de imóveis matriculadosno Cartório Imobiliário. No Termo de Transferência de Benfeitoria figura uma cláusulasegundo a qual, em qualquer venda de imóvel situado na favela, o vendedor deveráarcar com o pagamento de um percentual sobre o valor de venda, em favor daAssociação, a título de doação. Esse ônus, no entanto, é sistematicamente transferidoao comprador, tal como ocorre com os emolumentos cartorários e tributos incidentessobre a venda de imóveis regularizados. Na mesma cláusula, aparece a menção deque tal cobrança se fundamenta nos “Direitos do Costume”. Ressalte-se que tal cláusulafigura abaixo, e após, a assinatura das partes, o que seria algo inadequado segundo astécnicas usuais de redação contratual.

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O documento padrão utilizado pela Associação sugere que o percentual cobradonão é fixo, igual para todos os casos, mas pode variar. Isto porque, na cláusula emquestão, figura um campo em branco no contrato-modelo, que deve ser preenchidocom o percentual efetivamente cobrado em cada caso concreto, o que provavelmenteé feito pelo Presidente da Associação. Tal variação é corroborada pelas entrevistasrealizadas, que se referem a pagamentos entre 2 e 5%, feitos nos seus respectivoscasos. Pelas informações disponíveis, a variação no percentual se deve a diversascircunstâncias, tais como valor do imóvel, metragem do mesmo (alguns entrevistadosrelataram que um funcionário da Associação fez medição do imóvel antes da vendaser efetivada) ou até mesmo o poder de barganha das partes. Esta última variável foiclaramente explicitada no seguinte depoimento, que, por sinal, permite que sejamlevantadas diversas questões, a título de exercício analítico:

“Eu acho um absurdo você pagar um preço de cartório para botar uma casa no seu nome.Do valor da casa você paga 10%. Eu comprei minha casa por R$ 6 mil e falei para ele quefoi R$ 4 mil para eu poder pagar R$ 400,00. Ele (se refere a alguém da Associação, que fazas transferências dos imóveis, possivelmente o próprio Presidente) vai lá no computador,muda o nome do dono, põe o seu nome, você assina, o dono assina e pronto, aí você paga.Ele falou: “tem que pagar R$ 200,00”. Eu falei que não tinha esse dinheiro, de onde que euvou tirar R$ 200,00? Ele perguntou “quanto você pode me dar?” Eu falei “R$ 50,00”. Eledisse “não, então R$ 100,00”. Aí eu perguntei se não dava para passar aquele documentolá em casa, porque só ia gastar uma folha. Ele disse que não era pela folha, mas que tinhaque constar na Prefeitura que é outra pessoa que mora. Eu falei “todas as casas têm registrona Prefeitura?” Ele disse “todas não, mas a maioria tem; você não quer a sua casalegalizada?”. Eu falei “quero” e ele “então?” Eu falei “eu vou ver se eu posso pagar R$200,00. Eu falei com meu marido e ele disse para pagar os R$ 100,00 que ele não queriaconfusão. Eu paguei R$ 50,00 no dia que ele passou o papel e deixei os outros R$ 50,00para pagar no outro mês, porque nem eu nem ninguém tem condição de pagar tudo de umavez. Ele não assinou o papel e falou “só assino quando me pagar os outros R$ 50,00”. Elesó assinou depois que eu paguei os outros R$ 50,00. Ele me deu o papel, mas falou que sema assinatura dele aquele papel não valia nada. Quando eu estava com os outros R$ 50,00 eufui lá, paguei e ele assinou. Meu marido falou “esse dinheiro não vai nem para a Associação,não vai nem para ele comprar lâmpada para colocar nos postes, porque isso é serviço daPrefeitura”. Se eles vão receber algum dinheiro não custava nada eles comprarem aslâmpadas e falarem com o pessoal que trabalha na Associação para eles mesmos trocarem,porque eles têm aquelas escadas e não precisam ir na Prefeitura.”

Observe-se, primeiramente, que os moradores lançam mão de diversos recursosa fim de minimizar os custos da transação. No excerto acima, a entrevistada nãosomente declara um valor de compra menor do que aquele efetivamente avençadocom o vendedor – expediente que também foi noticiado por outros entrevistados,sendo o valor declarado, em média, 33% menor do que o real – como também forçaa Associação a aceitar redução e parcelamento do preço da intermediação. Alémdesses instrumentos de redução dos custos, um entrevistado declarou não ter realizadoa compra com a intermediação da Associação, realizando-a diretamente com o

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vendedor, sem submetê-la ao processo habitual de legitimação pela Associação, naqual seu imóvel ainda figura em nome do vendedor, conforme transcrição abaixo:

“Quando eu comprei uma casa lá na Rua 50, eu paguei R$15.000. A moça lá da Associaçãoqueria 500 contos para passar para o meu nome, aí eu não passei, ué (os outros entrevistadosriem). Eu ainda estou com o documento do rapaz que me vendeu, eu peguei o documento edepois eu vou lá no cartório, vou fazer um... entendeu, bonitinho lá em casa no computadore vou levar no cartório para mim autenticar isso. Pô, pagar 500 contos...”

(Pergunto) Então você não registrou na Associação? “Está no nome do outro cara, eleregistrou.” (Pergunto) E o cara já foi embora?

“Ele ainda mora lá no morro. Está por perto. Qualquer hora eu vou chamar ele para agente trocar uma pedra, aí nós vamos lá e...”

(Pergunto) E não te dá problema não ter feito isso na Associação? Não traz risco?

“Até agora não deu nada.”

Os depoimentos acima deixam nítida a racionalidade do homo aeconomicus,tal como já amplamente verificado nos estudos sobre a evasão tributária, que se vêsobremaneira alimentada em função da situação de baixa renda, amplamente presenteno caso estudado, uma vez que 63,08% dos titulares de imóveis declararam perceberrenda mensal igual ou inferior a 3 salários mínimos, sendo que é expressivo opercentual na faixa 0-1 SM (27%). (PREFEITURA, 2006)

De outro lado, pode-se verificar que se a legitimidade da intermediação daAssociação não é questionada em princípio, pode passar a ser em função decircunstâncias como o seu custo, ou mesmo os serviços prestados em retorno aosrecursos arrecadados coletivamente. A relação entre os moradores da favela e aAssociação, nesse caso, assume forte analogia com o modo como os contribuintes serelacionam com o Estado-Fisco. Com relação a esse ponto, chama atenção a maneiracomo o representante da Associação justifica a cobrança da “taxa” de transferênciado imóvel. O argumento aparenta conter certa ambiguidade, podendo tanto dar aentender que, mediante tal pagamento, a Associação se encarregará de promover aregularização do imóvel junto à Prefeitura, como que, diversamente, constitui condiçãonecessária a uma futura regularização a ser feita pela Prefeitura, ou ainda que, cumpridoo procedimento da Associação a propriedade estará efetivamente regularizada. Emqualquer dos casos, no entanto, abre-se mão de justificar a cobrança em função nãosomente dos serviços, como do reconhecimento coletivo, que somente a validaçãoda compra junto a Associação pode oferecer. Bem ou mal, a Associação tem a ofereceraos moradores da favela, um grau de segurança da posse que o próprio Estado éincapaz de oferecer. Goste-se ou não, a Associação detém um poder e legitimidadedentro da favela, que somente é contrastado pelo poder dos grupos armados nela

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existentes, e os seus registros e seu ativo envolvimento certamente serão indispensáveisaos trabalhos de regularização realizados pelo Poder Público. Tais fatores, em tesesuficientes a justificar a cobrança, não são acionados no exemplo acima reproduzido,o que constitui elemento importante na reconstrução da maneira como moradores elideranças da favela representam a instituição Associação de Moradores e seu papelno seio dessa coletividade.

O fato de alguns poucos moradores, segundo percebemos na pesquisa realizadaaté aqui, não fazerem a venda do imóvel perante a Associação mostra como podehaver informalidade mesmo no interior de um sistema informal. Seria o que, a grossomodo, provisoriamente e à falta de categorias mais consistentes e satisfatórias,podemos chamar de informalidade dentro da informalidade. No caso estudado, salvopoucas exceções, toda a massa de transações envolvendo imóveis se desenrola semque se cogite submetê-las aos rituais de escritura e registro criados pelo Estado, atéporque esta última seria impossível na ausência de regularização fundiária. De fato,vigora o processo de chancela, reconhecimento, validação ou legitimação perante aAssociação de Moradores, cuja intermediação não pode deixar de ser vista como aformalidade instituída pelos costumes estabelecidos naquela parcela da sociedade,válida e exigível especifica e unicamente para os imóveis situados em sua “jurisdição”.Ora, nos depoimentos acima reproduzidos, observamos que mesmo esta formalidade,de origem interna à favela, é evitada, driblada ou minimizada por alguns agentes queoperam nesse universo, que continuam a agir em busca de formas livres de quaisquerintermediações, mais simples e menos onerosas, a fim de realizar os negócios de seuinteresse. Trata-se de formalidade não estabelecida pelo Estado, mas sim pelos usose costumes daquele próprio microcosmo, porém, mesmo essas, quando necessário,são burladas pelos que atuam nesse microcosmo. Assim, a informalidade dentro dainformalidade constituiria um processo, de natureza socioeconômica, através do qualos agentes desenvolveriam sucessivos meios de se furtarem aos controles burocráticose mecanismos de formalização estabelecidos, mesmo aqueles supostamente maissimples, mais próximos e mais legítimos. Ela consistiria, assim, numa eternacapacidade de se constituírem procedimentos oficiosos, subterrâneos, paralelos eocultos aos mecanismos institucionalizados para controlar a vida social, mesmo queestes nada tenham a ver com o Estado. Ou seja, a informalidade não se reduzestritamente à fuga dos controles e formalidades de origem estatal, não sendo umprocesso relacionado à presença e ação da burocracia estatal, mas parece serrelativamente indiferente a matriz dessas formalidades.

Também merece atenção um outro nuance presente no relato da discussão entreAssociação e um morador em torno do quantum da taxa de transferência do imóvel.De um lado, a Associação teria aceitado, de imediato e sem contestação, a barganhaem torno do preço a ser cobrado por sua intermediação, assumindo tacitamente que

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se tratava de um valor barganhável, não sujeito a critérios estritamente objetivos. Deoutro, a posição conciliadora do marido da entrevistada, que “põe panos quentes” noconflito de interesses com a Associação, assumindo que o seu recrudescimento seriao mal maior a ser evitado, aceitando pagar uma quantia que, mesmo parecendoexcessiva, poria de imediato um fim ao caso. Os dois lados mostram-se dispostos afazer concessões, até certo limite, revelando um modo de administração do conflitoque se, de um lado, não cede inteiramente à vontade da outra parte, de outro, não trataseus próprios interesses como direitos irrenunciáveis e indisponíveis. Teríamos, talvez,uma postura com certo grau de flexibilidade e de conformismo, que possivelmente sebaseia na percepção realista da virtual inviabilidade de exigência estrita do que talvezconstituíssem seus direitos, até porque estes não seriam nítidos o suficiente paraconferir força e poder de convencimento à sua arguição. O que dá a Associação odireito de cobrar aquele valor? O que dá ao morador o direito de contestá-lo se eleseria cobrado de todos os que estão na mesma situação? Na medida em que a respostaa essas questões não emerge com clareza, a esfera do direito fica embaçada, tanto quenenhuma das partes verbaliza algo nesse sentido, sendo fatalmente remetidas ao planoda negociação, cujo desfecho seria bastante incerto e que poderia mesmo gerartratamentos diferenciados a situações assemelhadas. Essa possibilidade, por sua vez,pode comprometer a legitimidade dos procedimentos geridos pela Associação peranteo conjunto dos moradores.

2.4. A insegurança do comprador em seus direitos

As entrevistas realizadas revelaram, ainda, a ocorrência de um incidenteconsistente na desistência de uma venda já concluída, por parte do vendedor, demaneira repentina e imotivada. Tal caso foi narrado da seguinte forma pela depoente:

“Passei dois anos numa casa; depois passei para outra que a gente pretendia comprar, atépagou a entrada e depois o moço não quis, quis desfazer o negócio. Ele falou que nãoqueria mais vender, nós não podíamos ficar lá. Aí eu passei para a minha atual. Ele ficouinsistindo para a gente comprar, que a casa era boa... Meu marido falou que não ia terdinheiro para pagar na hora e ele dizia que esperava ele ir pagando aos poucos, dava umaentrada e podia ir morar na casa. Meu marido deu R$ 2 mil a ele, a casa era R$ 6 mil, paraficar pagando o restante aos poucos. Quando foi em dezembro, meu marido ia pagar maisR$ 1 mil a ele com o 13º, aí ele falou que não queria mais. A gente só tinha falado de boca,ninguém assinou papel nem nada, aí pronto, o gato comeu... Aí a parte que a gente pagouele devolveu, e a gente ficou pagando aluguel.”

(Pergunto) Porque vocês acham que ele desistiu?

“Não sei. Depois a irmã dele ficou com a casa, não sei se foi porque a irmã pediu a ele acasa, ela andava comprando casa. Na realidade ele só falou que não queria. Daí a genteficou morando e dali a uns 6 meses ele falou que queria a casa e que me dava 15 dias paradesocupar. Eu falei que só saía quando arrumasse uma outra casa, que não tinha 15 dias,

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não tinha 1 mês, não tinha nada, o meu aluguel está em dia, o meu mês está pago e você nãotem o direito de fazer isso. Meu marido, que não gosta de arrumar confusão com ninguém,chegou a dizer “deixa”, e eu disse “deixa nada, o senhor nem volte daqui a 15 dias; quandoeu desocupar a casa eu levo a chave para o senhor”. E ele não voltou. Eu fiquei igual a umamaluca procurando casa. Conheci todos os becos do Parque Royal. Uma amiga minha queme falou dessa casa onde estou morando agora. Ficamos 3 anos e alguns meses pagandoaluguel e depois que fomos comprar.”

(Pergunto) Nessa tentativa de compra, não chegaram a pensar em fazer um contrato escrito?

“Não, porque ele já era conhecido do meu marido há muitos anos, desde 1993, e meumarido confiou, achou que não ia acontecer nada. Ele devolveu o dinheiro, mas ficamosmuito chateados com ele. Na hora ficamos muito chateados, mas depois passou.”

Do ângulo da legislação em vigor, o casal comprador da casa não poderia sercompelido a desfazer o negócio, salvo se essa possibilidade tivesse sido expressamenteacordada antes, uma vez que o comprador já havia iniciado o pagamento e, inclusive,recebido o imóvel objeto da compra, ou seja, tratava-se de ato jurídico perfeito,encontrando-se o contrato em franca etapa de cumprimento. O fato de ter sido ajustadoverbalmente em nada o prejudica, ao menos na linha de princípio, uma vez que a leiadmite, nesse e em vários outros casos, o contrato verbal.6 Ainda dessa perspectiva,seria lícito que, além da devolução do que pagou, monetariamente corrigido, exigissedo vendedor uma indenização a título de perdas e danos, já que tratava-se de umaruptura sem motivo que a lei considere justo, bem como tal ruptura trouxe aocomprador os ônus de arcar com aluguéis, procurar outro imóvel e fazer sua mudança,o que não ocorreria se o negócio fosse mantido. Ao invés disso, os compradores, bemou mal, aceitaram o desfazimento exigido pelo vendedor de maneira arbitrária. Nãolhes é vedado por lei assim agirem, uma vez que qualquer contrato bilateral entreparticulares pode ser revogado por mútuo acordo dos contratantes, pelo que o ato derevogação, nos termos em que foi combinado, também pode ser classificado, à luz dalei civil, como um ato válido. No entanto, o aspecto relevante a ser aqui ressaltado éo de que, à semelhança do conflito em torno da “taxa” cobrada pela Associação – porsinal, nos dois casos trata-se do mesmo casal – a dimensão jurídica do caso – isto é,os direitos que porventura pudessem ter, naquela situação – não constitui o aspectodeterminante das decisões tomadas pelos interessados, pouco ou nada interferindona administração que fizeram do conflito de interesses. Em suma, trata-se de umadimensão praticamente alheia à maneira como as partes conduzem o caso.

O fato de tratar-se de um contrato verbal, a julgar pelas palavras expressas daentrevistada, levou as partes a crer que o mesmo poderia ser desfeito a qualquermomento. Porém, esta não nos parece ser a única variável que determinou essa

6 Por exemplo, no caso do contrato de locação, quer de bens móveis quer de imóveis, prevalece a mesma regra.

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percepção. Levando-se em consideração vários elementos dispersos no conjunto dosdepoimentos colhidos, provavelmente também contribuiu para essa percepção o fatode tratar-se de uma compra de imóvel dentro da favela, onde, segundo vários dentreos entrevistados, não vigoram as leis que valem fora da favela. Tal situação se veria,ainda, agravada pelo fato de a compra ter sido feita a um conhecido de longa data doscompradores, o que conduz a que as relações pessoais entre as partes se imiscuam narelação de compra e venda, pondo por terra uma das máximas que exprimem aracionalidade da economia de mercado, segundo a qual “amigos são amigos, negóciosficam à parte”. Se estiver correta a percepção dos entrevistados que aponta para aclivagem de regras do asfalto, ou da cidade, e da favela, o comportamento dessecasal, diante de idêntica situação, provavelmente seria diverso caso tivessematravessado a avenida que passa em frente à favela em que residem, a fim de adquiririmóvel nos conjuntos habitacionais existentes no entorno da favela. Trata-se de umainstigante hipótese, ainda a ser devidamente tratada na pesquisa que oradesenvolvemos.

3. CONCLUSÃOOs dados revelados por nossa pesquisa empírica parecem reforçar a tese de

que as ordens jurídicas estatal e favelar se encontram em um contínuo e conflituosoprocesso de diálogo, havendo diversas formas em que uma é condicionada pela outra,ou em que uma se constitui recorrendo à incorporação de elementos originários daoutra. Vemos nesse processo um capítulo dos conflitos sociais mais amplos, própriosde sociedades capitalistas periféricas como a brasileira, isto é, tratar dessas ordensjurídicas constitui nada mais do que um ângulo para tratar de como se constitui aordem social como um todo. Não estamos, pois, diante de duas ordens estanques,isoladas entre si, o que representaria uma perspectiva dualista a respeito do objetoestudado, perspectiva que refutamos em nossas referências teórico-metodológicas.

O fato de recusar-se esse dualismo metodológico não se confunde com anegativa do reconhecimento da situação de subordinação à qual as coletividadesfavelizadas encontram-se submetidas, posto que a comunicação e os fluxos existentesentre ambas essas ordens é profundamente desigual. Talvez signifique, diversamente,o abandono da noção de exclusão como ferramenta explicativa dos processos sobanálise – o que deliberadamente ocorreu no presente trabalho – uma vez que nossainterpretação caminha na perspectiva da integração subordinada, que nos parecemais acertada e fértil ao trabalho analítico. Também significa que recusamos umaperspectiva moral na abordagem das duas ordens, que promove a associação intrínsecade virtudes positivas a uma delas e negativas a outra, ou vice-versa. O fato de falarmosde uma ordem jurídica interna à favela não significa que ela seja necessariamentemelhor ou pior, mais ou menos democrática, do que a ordem legal oficial.

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Esse dualismo metodológico que criticamos parece comparecer nos trabalhosacadêmicos e jornalísticos que tratam do problema da não vigência de fato do EstadoLegal, e/ou as ambiguidades do funcionamento do sistema legal, como um problemarestrito às favelas e às outras regiões definidas costumeiramente como áreas cinzentas.Na verdade, este é um problema que diz respeito ao conjunto da cidade e ao DireitoUrbanístico de maneira geral, que tem sido histórica e recorrentemente marcado porcrônica inefetividade. Preferimos afirmar que o sistema legal, de maneira geral,apresenta graduações em sua efetividade ao longo do tempo e do espaço social comoum todo, e em função de diversas circunstâncias, que não se reduzem de maneiraalguma aos chamados “territórios de exceção”.

Nossa hipótese é a de que a grande diferença que marca a ordem jurídica nosdistintos espaços sociais seja de natureza ideológica e não empírica, isto é, seriaextremamente difundida socialmente a imagem das favelas como regiões essencial-mente anômicas, isto é, espaços “sem lei nem ordem”. Essa visão seria compartilha-da em certa medida pelos próprios favelados, conforme demonstram as entrevistasaludidas neste trabalho. Em que pese o fato de que os próprios moradores das favelasfazem distinções rígidas entre as normas que valem dentro e fora da favela, o fato éque o espaço da favela parece ser amplamente regulado, bem como se observa apresença relevante de diversas instituições oficiais, de maneira surpreendente emalguns casos. É o que vemos no caso exemplar da absorção, pela Associação deMoradores, do princípio da continuidade registraria, que a nosso ver constituiria aponta do iceberg de um processo de socialização das instituições oficiais, que vaidiscretamente introduzindo-as no senso comum e nos procedimentos mais comezi-nhos. Por mais que algumas dinâmicas sociais sejam efetivamente duais, tal aspectonão pode ser transportado acriticamente para o plano da teoria social, de forma adeterminar a aceitação do dualismo metodológico, o que comprometeria os resulta-dos analíticos.

O que deve ser objeto de atenção do pesquisador é, em primeiro lugar, o fatode que as soluções de força, em alguns casos arbitrárias, ao arrepio dos direitos que osistema legal oficialmente reconhece, constituem um componente presente e relevantenas relações sociais estudadas em nosso caso. Isto é, as relações jurídicas seriammarcadas por 3 distintas determinações: a) os usos e costumes locais, estabelecidosem processos de negociação; b) as apropriações do sistema legal estatal; c) asimposições e/ou soluções arbitrárias na solução de litígios, que exibem o aspecto deviolência latente, presente nas relações sociais de maneira geral.

Em segundo lugar, deve ser ressaltada a importância da análise e interpretação,à luz do Direito oficial vigente, das relações jurídicas travadas no âmbito das favelas.Trata-se, a nosso sentir, de um exercício estratégico, quer do ângulo teórico-jurídico,quer do ângulo das suas implicações sociopolíticas. Tal exercício muito pode contribuir

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para a afirmação da cidadania e da condição de sujeito de direito por parte dascoletividades objeto de segregação sócio-espacial. Julgamos que, até o presentemomento, tal exercício foi pouco realizado, aquém do que seria necessário, sendoesse mais um dos efeitos da barreira ideológica, de natureza dualista, a qual nosreferimos anteriormente, que atira acriticamente a quase totalidade das relações enegócios jurídicos realizados entre pobres no terreno da extralegalidade, reproduzindoaquilo que Boaventura Santos (1980) já denominou de “ilegalidade existencial”.Esta seria, provavelmente, uma das grandes barreiras para que se possa configurar aalmejada integração, que configuraria a vigência do Estado de Direito no espaço dasfavelas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Habitação; AGRAR.Regularização urbanística, administrativa e fundiária dos imóveis da área denominada Parque Royal –Ilha do Governador: relatório final. Rio de Janeiro: agosto / 2006. 55 p.

OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. 6. ed. Petrópolis: Vozes/Cebrap, 1988.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUTO, Cláudio;FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito: textos básicos de Sociologia Jurídica. São Paulo: Pioneira,1980. p. 109-117.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

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2A ORDEM JURÍDICA URBANÍSTICA E A

FUNÇÃO SOCIAL DAS TERRAS PÚBLICAS

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Concessão de Uso Especial para Fins deMoradia: Fundamentos Jurídico-Urbanísticos,Aplicabilidade e Gestão Pós-Titulação, noMunicípio de Osasco, São Paulo

PATRYCK ARAÚJO CARVALHO*

Arquiteto e Urbanista, Diretor de RegularizaçãoFundiária do Município de Osasco.

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO PARTE DA POLÍTICA DEDESENVOLVIMENTO URBANO

O Município de Osasco, localizado na região metropolitana de São Paulo,teve, como a maioria das grandes cidades brasileiras, um processo de expansão urbanadesigual e excludente, pautado pela precariedade e informalidade. Osasco foi umdistrito da cidade de São Paulo até 1962, quando teve sua emancipação político-administrativa. É um município com uma superfície de 64,93 km2, inteiramente urbano,população de 701.120 habitantes (IBGE – posição de 2007), sendo a quinta maiordensidade populacional do Estado de São Paulo.

A cidade formou-se dentro do modelo de expansão periférica da cidade de SãoPaulo, abrigando uma parcela da população que teve como alternativa habitacional aaquisição de lotes em loteamentos populares, quase sempre à margem do mercadoformal. Esse modelo foi definido por Nabil Bonduki como “auto-empreendimentoda moradia popular, baseado no trinômio loteamento periférico, casa própria eautoconstrução”1.

Osasco possui cerca de 170 assentamentos informais, implantados sobre áreaspúblicas municipais, identificados como “áreas livres”. Nesses assentamentos residem

* Rua Fradique Coutinho, 237 ap 09B – Pinheiros – São Paulo – SP – CEP 05416-010. Email:[email protected]. Tel: 11 9622-3828 ou 11 9641-6506.

1 BONDUKI, Nabil G. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusãoda casa própria. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998.

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cerca de 120 mil pessoas, quase 20% da população total da cidade. Muitos dessesassentamentos foram implantados em terrenos municipais que tinham outra destinaçãoque não a habitacional. Sem contar os loteamentos informais e clandestinos queocupam uma grande parcela da cidade. Estima-se que cerca de 60% do territórioapresentam algum tipo de desconformidade fundiária, aquém dos padrões urbanísticosmínimos ou desprovidos de regularidade jurídica.

Tendo em vista esse quadro, a partir de 2005, a administração do município deOsasco elaborou uma Política Habitacional e de Desenvolvimento Urbano na qual aquestão habitacional não se restringiu a produzir e financiar novas habitações.Estabeleceu a necessidade de coordenar e articular ações que melhorassem a qualidadedos assentamentos precários existentes. Neste sentido a regularização fundiáriadespontou como um dos principais programas habitacionais.

O Programa de Regularização Fundiária do Município de Osasco partiu dopressuposto que a Regularização Fundiária é um processo de intervenção, geralmentepública, que envolve três ações complementares:

– Físico-habitacional – melhoria das condições de habitabilidade nosassentamentos informais através da implantação de projetos de urbanização.

– Social – garantia de participação democrática da população, buscando tambéma articulação com outros programas e políticas públicas destinados à inclusão social,cidadania, geração de emprego e renda.

– Jurídica – aplicação das leis que asseguram a permanência da população nasáreas ocupadas, garantindo o direito constitucional à moradia.

A REGULARIZAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICAS OCUPADAS PARA FINSHABITACIONAIS

O principal objetivo da regularização é aplicar os instrumentos jurídicosprevistos no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01 e na Medida Provisória 2.220/01 para garantir, aos moradores das áreas públicas ocupadas, a segurança jurídica daposse. Principalmente se considerarmos que as ocupações para fins de moradia emáreas públicas municipais representam quase 20% da população do Município. Osmoradores de algumas dessas áreas públicas haviam recebido, em outros momentos,títulos precários de moradia, como por exemplo, permissão de uso a título precário.

O Município de Osasco, compreendendo o poder-dever de regularizar as áreaspúblicas ocupadas, emanado da MP 2.220/01, especialmente no seu art. 6º, adiantou-se ao pleito daqueles que moram em áreas públicas há décadas e outorgou porprocedimento “ex officio” os devidos Termos de Concessão de Uso Especial paraFins de Moradia.

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Esse procedimento foi precedido de critérios para seleção das áreas públicasque integrariam o que foi chamado de Fase I do Programa de Regularização. Dessaforma, foram inicialmente selecionados assentamentos que:

– apresentassem ocupação consolidada, dotados de infra-estrutura mínima eserviços;

– tivessem recebido algum tipo de intervenção ou urbanização pelo poderpúblico;

– não estivessem inseridos em áreas de proteção ambiental ou de risco;

– fossem implantados em áreas públicas de loteamentos regulares.

A metodologia de trabalho proposta está centrada em atividades que envolvema gestão democrática e participação das comunidades em todas as etapas do processode regularização fundiária, atendendo ao disposto pelo inciso II, do art. 2º do Estatutoda Cidade. Como instância de participação, foi criado o Fórum de Regularização quereúne cerca de 120 representantes das 33 áreas públicas inicialmente selecionadaspara o Programa.

Para orientar as atividades do Fórum de Regularização, foi elaborado materialque redundou na publicação de “Roteiro para as áreas públicas ocupadas – Programade Regularização da Prefeitura do Município de Osasco”. Esse material apresenta oschamados “10 passos fundamentais” para a regularização fundiária de áreas públicasocupadas, a partir da aplicação dos instrumentos da Concessão de Uso Especial paraFins de Moradia (CUEM) e da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). A formu-lação dos “10 passos” aconteceu nas reuniões iniciais do Fórum de Regularização.

A metodologia dos 10 passos serviu também para orientar o andamento dostrabalhos na rotina dos técnicos envolvidos2:

– 1º passo: Identificação, mapeamento e seleção dos assentamentos informais.

– 2º passo: Garantia de participação da população nos processos deregularização.

– 3º passo: Projeto de lei autorizando a desafetação das áreas públicas e aaplicação dos instrumentos de regularização fundiária.

– 4º passo: Projeto de lei delimitando as áreas ocupadas como zonas especiaisde interesse social (zeis).

– 5º passo: Realização do levantamento planialtimétrico cadastral (lepac).

2 Roteiro para as Áreas Públicas Ocupadas. Programa de Regularização da Prefeitura do Município de Osasco /Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, 2006.

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– 6º passo: Realização do cadastro sócio-econômico e coleta de documentospessoais que comprovem o tempo de posse.

– 7º passo: Registro da área municipal nos Cartórios de Registro de Imóveis.

– 8º passo: Definição dos instrumentos a serem aplicados em cada situação,elaboração da planta de concessão e dos memoriais dos lotes.

– 9º passo: Assinatura do termo de concessão (contrato).

– 10º passo: registro dos termos de concessão nos Cartórios de Registro deImóveis.

Integraram a Fase I do Programa de Regularização de Áreas Públicas, 33assentamentos informais, totalizando cerca de 10.800 lotes. Das 33 áreas, 15 foramincluídas em Convênios com o Ministério das Cidades, no Programa de Urbanização,Regularização e Integração de Assentamentos Precários / Ação de Apoio àRegularização Fundiária Sustentável de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas.

A ESPECIALIZAÇÃO E DESAFETAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICASOCUPADAS

Outro pressuposto do Programa implantado foi a emissão de instrumentos deregularização registráveis nos Cartórios de Registro de Imóveis. Para tanto foinecessário buscar de início a especialização das áreas públicas. Não é pouco comumencontrar municípios nos quais o controle do patrimônio público encontra-sedesatualizado. As áreas públicas oriundas de parcelamentos do solo registrados,raramente, possuem matrículas próprias ou quando possuem, essas são imprecisasou não correspondem à realidade.

A tarefa de proceder ao registro das áreas públicas junto aos Cartórios deRegistro de Imóveis obedeceu aos princípios preconizados pela Lei de RegistrosPúblicos, Lei Federal 6.015/73. O registro inicial deu-se conforme informaçõescontidas nas plantas de loteamentos já depositadas junto aos Cartórios de Registrosde Imóveis. Entretanto, invariavelmente, fez-se necessária a retificação desses registrosuma vez que as informações tabulares eram distintas das informações obtidas pormeio de levantamento topográfico.

Posteriormente ao registro em Cartório, procedeu-se à desafetação das áreaspúblicas, com base em autorização feita por meio da Lei Municipal nº 4.059/2006.

Nos termos do art. 5º da MP 2.220/01, é facultado ao Poder Público asseguraro direito à concessão especial em outro local, na hipótese de ocupação de imóvelclassificado como bem de uso comum do povo. Entretanto, essa faculdade não seafigurava como passível de aplicação no Município de Osasco, uma vez que a quase

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totalidade das áreas públicas ocupadas está incluída na categoria dos bens de usocomum do povo. E, especialmente, se considerarmos que o Município quase nãodispõe de vazios urbanos significativos, nos quais essa população pudesse serreassentada. Ainda que houvesse disponibilidade de terras, não haveria recursosfinanceiros suficientes para os reassentamentos.

A opção pela desafetação das áreas públicas visava atender, principalmente,aos moradores dessas áreas que não preenchessem o requisito da comprovação decinco anos de posse ininterrupta até 30 de junho de 2001, para adquirir o direitosubjetivo à Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia. Nesses casos, seriaaplicado o instrumento da Concessão de Direito Real de Uso.

Mesmo com a autorização legal para desafetação das áreas públicas municipais,só foi possível efetuar o registro dessas desafetações a partir de 31 de janeiro de2007.

Vale lembrar que o inciso VII da Constituição do Estado de São Paulo vedavaexpressamente a mudança de destinação das áreas definidas como “áreas verdes” e“institucionais” em planos de loteamentos. Esse era um dos principais entraves àregularização dos assentamentos informais implantados em áreas públicas dessanatureza. Entretanto, a Emenda Constitucional nº 23, de 31/01/2007, introduziu apossibilidade de exceção à vedação legal nos casos em que a alteração de destinaçãotivesse como finalidade a regularização fundiária de núcleos habitacionais de interessesocial, destinados à população de baixa renda e cuja situação estivesse consolidadaaté dezembro de 2004.

O DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA PARA GERAÇÃO DEPLANTAS, MEMORIAIS E TÍTULOS

Considerando os objetivos do Programa implantado e o número de lotes aserem regularizados, foi necessário o desenvolvimento de um sistema informatizadoque possibilitasse a geração de plantas, memoriais descritivos e o controle da emissãodos títulos de concessão para fins de moradia.

O sistema tem como objetivo automatizar o processo de modelagem epreparação das plantas, possibilitando a extração dos dados das poligonais, gerandoassim, os memoriais descritivos e os croquis de localização de todos os lotes demaneira automática.

A partir do tratamento das informações obtidas por meio do levantamentoplanialtimétrico cadastral é feita a individualização e geocodificação dos lotes e detodos os demais elementos que serão descritos. Após este tratamento inicial, a base éconvertida em um formato que possibilita a migração para um ambiente de dados

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geográficos integrados, onde será realizada a extração das informações que geram osmemoriais descritivos de qualquer parcelamento.

O Cadastro Sócio-econômico também é modelado e integrado ao sistema,permitindo dessa forma, a geração dos termos de concessão na forma de títulosemitidos por meio do próprio Sistema.

OS PRIMEIROS RESULTADOS DO PROGRAMA

Garantidos os procedimentos de especialização e desafetação das áreas públicas,o Município providenciou a elaboração de chamada “planta de concessão”. Essaplanta possibilita a identificação de todas as parcelas objeto de concessão. A plantade concessão reflete o cruzamento das informações geográficas com os dados sócio-econômicos e de documentação pessoal dos moradores. As informações obtidas nafase do cadastramento e coleta de documentos permitem que sejam definidos osinstrumentos que serão aplicados em cada situação específica. A planta de concessãopermite tanto ao Município, quanto aos Cartórios de Imóveis, o controle dedisponibilidade da “gleba”.

Com base na metodologia apresentada, foram emitidos, até julho de 2008,cerca de 3.000 títulos de regularização, incluindo Termos Administrativos deConcessão de Uso Especial, Termos Administrativos de Concessão de Direito Realde Uso ou Contratos de Compra e Venda. Desse total, 1.557 já obtiveram o devidoregistro junto aos Cartórios de Registro de Imóveis, sendo 995 títulos de concessãode uso.

O Município cuidou do encaminhamento aos Cartórios, das plantas deconcessão, acompanhadas dos respectivos memoriais descritivos e dos TermosAdministrativos de Concessão de Uso. O Município requereu a gratuidade dos atos aserem praticados, tendo em vista a disposição do § 15 do art. 213 da Lei Federal nº6.015/73: “Não são devidos custas ou emolumentos notariais ou de registro decorrentesde regularização fundiária de interesse social a cargo da administração pública”.

AS QUESTÕES COLOCADAS EM DUVIDA PERANTE O JUÍZOCORREGEDOR

Os Termos Administrativos de Concessão de Uso foram prenotados e registradospelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Osasco. As áreas localizadas na Zona Nortedo Município, sob a jurisdição do 2º Oficial de Registro de Imóveis de Osasco, nãotiveram seus registros efetuados e foram objeto de suscitação de dúvida junto aoJuízo Corregedor Permanente. De forma simplificada, destacamos as questões queforam apontadas como impeditivas ao registro:

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1) O registro de Termos Administrativos de Concessão de Uso não se caracterizacomo registro de regularização fundiária. “A ‘Regularização Fundiária’ é umaexpressão que vem sendo utilizada costumeiramente em seu sentido sociológico.Regularização fundiária em seu sentido jurídico é um procedimento administrativode legalização de parcelamentos do solo, normatizado pelos itens 152, 153, 154 e155 do Capítulo XX das normas de Serviço da Corregedoria, cujos requisitos deverãoser observados. O fundamento de validade destes itens está na Lei 6.766/79. O trâmiteda regularização, conforme item 154, ocorre no Juízo Corregedor Permanente, coma manifestação necessária do douto representante do Ministério Público e do OficialRegistrador competente, que deverão analisar todas as plantas e documentosnecessários.”3

2) Há ilegalidade da exigência de “anuência prévia e expressa” da Prefeiturapara fins de transferência das concessões.

3) Para o registro das concessões, o Município deve apresentar as informaçõesdo cadastro de IPTU de cada “lote”.

4) Necessidade de reconhecimento de firma das assinaturas constantes dostermos administrativos de concessão.

O feito tramita sob o nº 2.055/2007 perante a 6a Vara Cível da Comarca deOsasco. Entretanto, mesmo que não tenha havido decisão pelo Juízo Corregedor,acreditamos importante apresentar, de forma resumida, a linha de argumentaçãoadotada pela Municipalidade. Especialmente nos aspectos que defendem que a emissãoe o registro dos Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins deMoradia ou de Concessão de Direito Real de Uso caracterizam-se como ações deregularização fundiária, para efeitos de aplicação do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/73,ou do Estatuto da Cidade.

A Regularização fundiária de assentamentos informais urbanos deve ser inter-pretada em seu sentido lato, visto comportar diversas espécies e, consequentemente,legislação disciplinadora própria para cada espécie.

Neste sentido, vale destacarmos as lições do Desembargador Kiotsi Chicuta:

“Tradicionalmente, a regularização fundiária se fazia com observância da Lei 6.766/79,mas, agora, a visão não é mais tópica e sim abrangente, o que pode ser observado pela Lei10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as diretrizes básicas da política urbana, naforma do artigo 182 da Constituição Federal (a política de desenvolvimento urbano,executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem porobjetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bemestar de seus habitantes), dispondo no parágrafo 1º que “o plano diretor, aprovado pela

3 Processo nº 2.055/07 – 6ª Vara Cível da Comarca de Osasco – SP.

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Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é oinstrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, acrescentandono parágrafo 2º que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende àsexigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

Salta claro que, em todas as cidades, principalmente aquelas de grande porte como SãoPaulo, inúmeras são as ocupações decorrentes de invasões ou parcelamentos clandestinose parte das quais em próprios municipais, fazendo com que soluções sejam adotadas parainclusão desse segmento no mundo legal, inclusive com títulos inscritos no Registro deImóveis para que haja até mesmo outorga de direitos reais aos possuidores e titulares dedireitos.”4

Das linhas acima, depreende-se a elasticidade do conceito de regularizaçãofundiária que, como analisaremos, não mais compreende somente as formas de implan-tação, previstas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Lei Federal nº 6.766/1979.

O art. 38 e seguintes da Lei Federal nº 6.766/79 estabelecem, minuciosamente,todos os procedimentos de regularização do parcelamento do solo pela Municipalidade,em lugar do loteador faltoso, iniciando-se com a notificação deste para cumprir suasobrigações legais, interrupção de recebimento de prestações dos adquirentes dos lotes,depósito judicial destas prestações, culminando na realização das obras de infra-estrutura pela Prefeitura, às expensas das prestações depositadas, ou às expensas doloteador.

Nesses casos, a Municipalidade torna-se uma espécie de substituta do loteador,para fins de cumprimento das obrigações legais daquele que promoveu o parcelamento,minimizando a lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dosdireitos dos adquirentes de lotes. Assim, sempre que regulariza parcelamentos dosolo que não deu causa, não o faz em nome próprio, e sim em nome de outrem.

É nessa esteira que as Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça doEstado de São Paulo, Provimento nº 58/89, legitimam a Municipalidade para registrara regularização fundiária de parcelamento promovido por outrem.

Assinale-se também que, os dispositivos supra mencionados, das normas emregência, podem também ser aplicáveis aos parcelamentos promovidos pelaMunicipalidade, mesmo que excepcionalmente. São os casos em que o Municípiopromove o parcelamento do solo, alienando os lotes produzidos, em conformidadecom a prerrogativa prevista no Inciso IX do art. 23 da Constituição Federal.

Trata-se de produção de lotes visando à diminuição do déficit habitacional doMunicípio, com a contrapartida do recebimento do valor empregado para a produção

4 A função registrai e a atuação do Judiciário – Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessãoreal de uso. In Boletim Eletrônico IRIB/ANOREGSP 804 DE 28/03/2003.

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dos mesmos, pelos adquirentes (munícipes). Nesse caso, a atividade exercida peloMunicípio equivale ao do loteador particular e, portanto, subsume-se a toda legislaçãoatinente ao parcelamento do solo urbano, especialmente, à Lei Federal nº 6.766/79.

Nas situações em que o Município efetua o parcelamento do solo antes de seulicenciamento junto aos órgãos competentes, a única solução jurídica traduz-se napromoção da regularização fundiária. Em se tratando do Estado de São Paulo, oprocedimento de regularização fundiária é aquele previsto nas Normas da CorregedoriaGeral de Justiça, acima aludidas.

A par das características das normas, que anteriormente expusemos, destacamosuma em especial: o registro da regularização fundiária de parcelamentos do soloproduzidos informalmente, com a alienação de lotes, no Estado de São Paulo, sópode ser registrado através de mandado judicial, ou seja, é defeso ao Cartório deRegistro de Imóveis proceder ao registro do parcelamento, se o título hábil ao registronão ingressar pela via judicial.

Entretanto, existem outras espécies de regularização fundiária. É o caso queora analisamos, de registro de Termos Administrativos de Concessão de Uso paraFins de Moradia.

Para as áreas públicas historicamente ocupadas por população de baixa renda,até o advento do Estatuto da Cidade, não havia previsão normativa que possibilitassea sua regularização fundiária. Note-se que estamos falando de áreas públicas ocupadas,o que exclui as áreas públicas objeto de projetos habitacionais implantados pelo PoderPúblico.

Com a publicação do Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/01, as áreaspúblicas passaram a ter a proteção legal em nível nacional por meio da Concessão deUso Especial para Fins de Moradia, dentre outros instrumentos legais. A MedidaProvisória nº 2.220/01, editada logo após o Estatuto da Cidade, disciplinou esseinstrumento.

A primeira característica é o reconhecimento do direito à moradia à populaçãode baixa renda nas áreas públicas, por meio da concessão de uso especial. Estereconhecimento deixa de ser mero ato discricionário do Poder Público e torna-se umpoder-dever. Os requisitos estampados na Medida Provisória são: que o moradorpossua como seu, até 30 de junho de 2001, ininterruptamente e sem oposição, até250 m2 de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia oude sua família, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título,de outro imóvel urbano ou rural.

Podemos inferir então, que a outorga da concessão de uso especial para fins demoradia ao morador de área pública que atenda aos requisitos da Medida Provisória

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2.220/01, é ato vinculado, não restando alternativa ao poder Público senão praticá-loem conformidade com a legislação pertinente.

Neste sentido, a doutrina também se posiciona. Segundo Nelson Saule Júnior5:

“A concessão de uso deixa de ser uma faculdade do Poder Público para efeito de promovera regularização fundiária das ocupadas pela população de baixa renda. Esta normaconstitucional, de forma idêntica ao usucapião urbano, caracteriza a concessão de usocomo direito subjetivo, que deve ser declarado por via administrativa ou pela via judicial,mediante provocação dos interessados, nos termos do art. 6º da MP. De acordo com esteartigo, o título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela viaadministrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusaou omissão deste, pela via judicial”.

Tal direito subjetivo importa em um poder-dever do Poder Público, quematerializa sua própria vinculação quanto ao ato de outorga da Concessão de UsoEspecial para Fins de Moradia àqueles moradores de área pública que preenchem osrequisitos autorizadores do reconhecimento deste direito.

Vejamos o que afirmam Carlos Aguiar e Teresa Borba6:

“A CUEM é dotada de ação e sanção. É norma jurídica, nas feições objetiva e subjetiva. Élei que impõe direitos e deveres; regra escrita que incumbe ao ente estatal o dever de legalizara posse da terra.

Apesar de editada pelo Executivo na forma de medida provisória, a própria Carta Federal,em ser art. 62 atribui a ela força de lei. Registrem-se a eficácia e vigência da medidaprovisória nº 2220/01, por força do art. 2º, da emenda constitucional nº 32 de II de setembrode 2001.

Aspecto de não menos importância é a percepção de que a CUEM concretiza um dever “exlege”, atribuído aos entes estatais. Impõe uma conduta, uma prestação, no caso, a realizaçãode uma atividade em favor daqueles que se ajustam aos seus requisitos.

Tais fatos nos levam à conclusão de que, de forma inédita no Sistema Jurídico Nacional,tem-se uma espécie normativa que impõe um dever ao Estado de regularizar a posse daterra, urbanizar ou colocar à disposição do concessionário uma habitação. No direito pátrio,as disposições normativas existentes sempre trataram a legalização administrativa comouma faculdade do Poder Público – a expressão de um ato discricionário.

Na CUEM, encontramos a expedição de um título, como expressão de um ato administrativovinculado, com o Poder Público sem condições de negar o direito ao concessionário.”

5 SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: SérgioAntônio Fabris Editor, 2004.

6 AGUIAR, Carlos e TERESA, Borba. Regularização Fundiária e Procedimentos Administrativos. In ROLNIK,Raquel [et al.]. Regularização Fundiária Plena, Referências Conceituais. Brasília: Ministério das Cidades, 2007.

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A compreensão da natureza jurídica do instituto da Concessão de Uso Especialpara Fins de Moradia é fundamental para o entendimento da sua consequência noque tange à regularização do solo.

Imaginemos a hipótese de uma área pública onde todos ou a maioria dapopulação atenda aos requisitos da Medida Provisória nº 2.220/01. A AdministraçãoMunicipal outorgou os respectivos títulos administrativos de Concessão de UsoEspecial para Fins de Moradia. Além disso, o Poder Público elaborou planta apta àidentificação dos terrenos objetos de outorga de Concessão de Uso Especial paraFins de Moradia, medida que, além de vir ao encontro da política de planejamentourbano de competência do Município, apresenta-se como indispensável ao controlede disponibilidade da gleba objeto de outorga da CUEM.

No presente caso, a Municipalidade ao ofertar a mencionada planta e pleitearo registro dos termos administrativos de CUEM outorgados, apenas adiantou-se aoreconhecimento de um direito previsto constitucionalmente (art. 183, §§ 2º e 3º daCF/88), e na Medida Provisória nº 2.220/01, não possuindo alternativa, senão agir demodo vinculado.

Portanto, é de rigor concluir que o reconhecimento do direito à moradiaconferido aos moradores de áreas públicas nos termos da Medida Provisória nº 2.220/01 trata-se, mesmo que por via transversa, de regularização fundiária empreendidapelo Poder Público, para fins do § 15 do art. 213 da Lei Federal 6.015/73. Ainda queessa regularização se dê de modo diverso daquele previsto da Lei Federal nº 6766/79ou das Normas de Serviço acima aludidas, da lavra da Corregedoria Geral de Justiça.

Imaginemos agora a hipótese de centenas de moradores de área municipal quepleiteiam a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia de determinada áreapública. Que estes moradores e a área pleiteada pelos mesmos possuam ascaracterísticas previstas na Medida Provisória nº 2.220/01. Que diante da recusaadministrativa da administração pública, os mesmos consigam guarida judicial paraseus pleitos. Todos se dirigem ao Cartório de Registro competente para efetivar oregistro dos títulos concedidos. Decerto, a situação apresentada representará umentrave de monta ao registrador para o controle da disponibilidade da gleba onde selocalizam os terrenos dos tais titulares do direito.

Trata-se de regularização fundiária para efeito do § 15 do art. 213 da Lei 6.015/73? Temos que não, posto que não foi ato requerido, impulsionado, ou promovidopelo poder público. Vejamos:

“Lei de Registro Públicos, Lei Federal nº 6015/73, art. 213

§ 15. Não são devidos custas ou emolumentos notariais ou de registro decorrentes deregularização fundiária de interesse social a cargo da administração pública. (Incluído pelaLei nº 10.931, de 2004) (g.n.)

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O comando legal é claro: só goza de isenção total de emolumentos e custas oregistro dos atos de regularização fundiária promovidos pela Administração Pública.

Como então deverá proceder o Oficial para o controle da disponibilidade dagleba pública “parcelada”? Decerto terá enormes dificuldades, visto que a maioriadelas nem conta com matrícula aberta, e nos raros casos em que há matrícula, asmesmas são descritas de forma imperfeita, impondo a necessidade de prévia retificaçãojudicial. E quem poderá efetuar todo o complexo procedimento de retificação préviade registro, considerando que é vedado ao Oficial agir de ofício? Nem a legislação,nem a doutrina e muito mesmos a jurisprudência podem ainda responder a estesquestionamentos.

Essa breve exposição de duas situações tem o fito de demonstrar as dificuldadesprocedimentais que todos os atores envolvidos na regularização fundiária deassentamentos informais encontrarão ao se depararem com situações similares, masé importante expô-las, visto que há outra forma de solucionar tais impasses.

Temos que para evitar todos os entraves procedimentais acima expostos ecrentes que a regularização fundiária de assentamentos informais é um dos atos porexcelência de inclusão social e de inserção de bairros de moradores de baixa renda naCidade formal, em obediência ao previsto no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257de 2001, a Municipalidade de Osasco, como já afirmado anteriormente, adiantou-seao pleito daqueles que moram em áreas públicas há décadas e outorgou porprocedimento “ex officio” os devidos Termos de Concessão de Uso Especial parafins de moradia.

E mais, incluiu a regularização fundiária de áreas públicas no seu Programa dePlanejamento Urbano e Habitacional, por meio de seus diplomas municipaisnorteadores do planejamento urbano da Cidade, quais sejam: Plano Diretor, Lei deZEIS e demais legislações complementares.

Portanto, a outorga de Termos de Concessão de Uso Especial para Fins deMoradia não se trata de ação isolada da Prefeitura de Osasco, mas sim de políticapública de planejamento de seu território previsto em lei.

Além da obrigação legal imposta à Municipalidade, elencamos algumas dasvantagens do poder público se adiantar ao pleito da população de áreas públicas:

– Transparente planejamento municipal das áreas públicas ocupadas;

– Inserção das áreas públicas ocupadas no mapa oficial da Cidade;

– Cumprimento da função social da propriedade pública, prevista constitucio-nalmente;

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– Garantia de perfeito controle da disponibilidade da gleba pública pelo Oficialde Registro, com a elaboração de planta de concessão;

– Evita-se que centenas de pedidos de Concessão de Uso Especial para Fins deMoradia cheguem ao judiciário, que já conta com inumeráveis demandas ordinárias.

Do exposto concluímos que, a ação intentada pela Municipalidade de Osascoao outorgar Termos Administrativos de Concessão de Uso Especial para Fins deMoradia, é parte integrante de seu Programa de Regularização Fundiária, naperspectiva do planejamento urbano municipal. Contrariamente, se os pedidos deConcessão de Uso Especial para Fins de Moradia fossem pleiteados individualmente,além de atentar ao princípio da economia processual, dificilmente poderiam sercaracterizados como regularização fundiária, para efeitos do § 15 do art. 213 da Lei6.015/73, ou do Estatuto da Cidade.

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Aluguel Entre Particulares em Áreas PúblicasMunicipais: Considerações Sobre ConflitosEnfrentados na Implementação do ProgramaPaulistano de Regularização Fundiária deFavelas

ANA PAULA BRUNO

Arquiteta e Doutoranda da FAUUSP. Coordenadorado Programa de Regularização Fundiária daPrefeitura de São Paulo.

CANDELÁRIA MARIA REYES GARCIA

Advogada. Consultora Jurídica da Prefeitura de SãoPaulo.

RAPHAEL BISCHOF DOS SANTOS

Advogado e Mestrando da FAUUSP. Coordenadorde Gestão Patrimonial da Gerência de Patrimônioda União em São Paulo.

INTRODUÇÃOEm 2002, o Município de São Paulo promulgou seu Plano Diretor Estratégico

(Lei n. 13.430/02), definindo a regularização fundiária de determinadas porções deseu território (nas ZEIS, disciplinadas pelos artigos 171 e seguintes) uma das açõesestratégicas dentro da Política Habitacional do Município. Na sequência, a cidadeplanejou e iniciou a implementação da 1a Fase do Programa de RegularizaçãoFundiária, atendendo parcela significativa de seus assentamentos precários ocupadospor população de baixa renda. O Programa – e, em especial, essa primeira fase –, foiimpulsionado pela Lei n. 13.514/03, a qual desafetou cerca de 160 áreas públicas epreviu os instrumentos de regularização da posse entre outras medidas. Na sequência,a lei foi regulamentada pelo Decreto n. 43.474/03.

A implementação do programa, no entanto, enfrentou diversos óbices. Apesardo vultoso e inédito volume de famílias atendidas e tituladas – cerca de 42.000 –,

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seus resultados demandaram aprimoramento de algumas respostas do Poder Públicona execução da 2a Fase do Programa em 2008 – com proposta de atendimento de23.000 famílias.

Parte das demandas foi acolhida por revisão dos instrumentos normativos, re-presentado significativos avanços na execução do Programa. Em especial, destacam-se a possibilidade de desafetação de áreas por meio de decreto e a admissibilidade defotos aéreas como meios com probatórios da posse para outorga da titulação requisi-tada.

Com efeito, tais avanços não seriam possíveis caso o Município não houvesseposto em prática sua política de regularização fundiária a partir de 2003, tampoucoexperimentado as dificuldades operacionais do Programa para a escala de irregulari-dade da cidade1.

As inovações normativas encontram-se consubstanciadas na Lei municipal n.14.665/08 e no Decreto n. 49.498/08. No entanto, algumas das dificuldades encon-tradas na primeira fase persistiram no momento de implementação da segunda. Entreelas, fazem-se necessárias algumas considerações acerca do aluguel nas áreas regu-larizadas.

A importância das leis municipais mencionadas acima reside essencialmentena autorização que deram ao Poder Executivo de alterar a destinação de áreas objetode intervenção (permitindo, inclusive, a ampliação desse rol). Além disso, a Prefeiturafora igualmente autorizada a outorgar títulos para o uso dessas áreas por terceiros, oque simplesmente consolidava uma situação de ocupação de fato obscurecida pelalegislação até então vigente.

Faz-se relevante prever no presente estudo indagar sobre as naturezas jurídicasdos institutos empregados para a titulação dos moradores, para em seguida, se fazeremalgumas indagações acerca do animus domini. Pertinentes, ainda, algumasconsiderações acerca da observação histórica do papel da locação dentro da provisãode moradia para a população de baixa renda, o papel das áreas de domínio público eas limitações existentes no próprio Programa.

DAS FORMAS DE TITULAÇÃO E DE SEUS REQUISITOS

Em síntese, o Programa paulistano propõe a outorga de três tipos de títulos, aconcessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso e

1 Apenas para ilustração do volume da demanda de atendimento, são quase 1.600 favelas na cidade de São Paulo,com diferentes características e tamanhos, dentro das quais a Prefeitura calcula existirem cerca de 390.000domicílios, conforme dados do HABISP disponível em <www.habisp.inf.br>.

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a autorização de uso. Além dos títulos, vinculantes dos beneficiários à árearegularizanda, há também a possibilidade da Municipalidade conferir declarações depreenchimento dos requisitos necessários à concessão de uso especial para fins demoradia, que o Programa aplica aos casos onde se verifica a impossibilidade deconsolidação da ocupação no local (como situações de risco ou justificados pelanecessidade de realização de obras).

A regra é a concessão de uso especial para fins de moradia, prevista na MedidaProvisória 2.220/01, aplicando-se subsidiariamente a concessão de direito real deuso, prevista no ordenamento desde que outorgado o Decreto-Lei n. 271/67. Aoscasos de atividade não residencial (ou não predominantemente residencial) aplica-sea autorização de uso, prevista na mencionada Medida Provisória, apenas retomandoo instituto há muito existente no Direito Administrativo.

Os institutos não transferem a titularidade plena sobre a propriedade imobiliáriado ente público (o que é vedado constitucionalmente), mas possibilitam o usoprivativamente por beneficiários. As concessões são compreendidas como atosbilaterais entre as partes. No caso, as partes são a Prefeitura de São Paulo (comoproprietária dos imóveis onde se situam os assentamentos regularizados na 1a e 2a

fases) e as famílias beneficiárias do Programa (os concessionários).

A concessão de uso especial para fins de moradia, apesar de arrolada comoinstrumento de política urbana no artigo 4º do Estatuto da Cidade, teve seudisciplinamento constante nos artigos 15 a 20 daquele diploma vetado pela entãoPresidência da República. Os efeitos do veto foram revistos, também por intervençãodo Executivo Federal, com adição da Medida Provisória n. 2.220/012, a qual,diferentemente da disposição do Estatuto aprovada pelo Congresso, previu a exigênciade prescrição aquisitiva de direito até a data da de promulgação do Estatuto da Cidade.Ou seja, a MP somente permitiu a regularização fundiária de posses preexistentes hácinco anos ou mais, até a sua entrada em vigor.

Tratando-se de instrumento preferencial de regularização fundiária, a aplicaçãoda concessão de uso especial para fins de moradia requer a observância dos seguintesrequisitos: (i) possuir como sua área urbana de até 250m2; (ii) ter a posse da áreaurbana pelo período mínimo de cinco anos, ininterruptamente e sem oposição; (iii)utilizar a área urbana para sua moradia ou de sua família; (iv) não ser proprietárioou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (SAULEJR.:2004, 399).

2 Ainda não convertida em lei até a presente data.

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Destacam-se, por ora, a primeira e a última condição, uma vez que o destaquedeste estudo corresponde à confrontação dos instrumentos de titulação com a locaçãode moradias celebrada entre particulares.

Ao referir-se expressamente ao possuidor que houvesse como seu o imóvelurbano, a Medida Provisória identifica com precisão o animus domini, intrínseco aosrequisitos a serem observados. Ademais, constitui-se a impossibilidade de outorgade títulos no caso de propriedade ou domínio útil concomitante ao pleito da concessãode uso especial para fins de moradia.

A exegese das condições constantes da Medida Provisória parece bastantesimples. Mas sua aplicação nas favelas regularizadas pelo Programa paulistano deRegularização Fundiária defrontou-se, no entanto, com circunstâncias historicamenteconstruídas entre particulares onde a verificação de ocorrência do animus domininão é segura.

A orientação do Município, no intuito de resolver essa incerteza, é acomodartoda e qualquer relação jurídica entre particulares de maneira alheia à constatação daposse pelos serviços prévios de cadastramento e selagem das moradias regularizadas3.

Vale dizer, uma vez que posse é fato (ainda que juridicamente qualificado), é asituação de fato que prevalece, desfazendo-se o aluguel eventualmente avençadoentre as partes (particulares). Por se tratar de áreas públicas municipais, o Municípiocomo legítimo proprietário não reconhece tais negócios jurídicos, restando à assessoriajurídica do Programa a acomodação das negociações entre particulares por meio deoutros institutos de direito civil (notadamente, a confissão de dívida).

O Programa tenta desta maneira combinar a desconsideração dos contratos dealuguel e eliminar o enriquecimento sem causa (comumente representado pela titulaçãodo “inquilino” que recebe uma casa ou outro tipo de benfeitoria sem nunca haverconcorrido com as despesas para construí-la).

A situação é extremamente controversa nas áreas regularizadas. Além disso oscasos são muito diversificados. O aluguel nas favelas localizadas em áreas públicasmunicipais representa tanto benfeitorias erguidas como investimento acumulado deuma vida inteira como casos da mais absoluta opressão entre particulares. Certo éque verdadeiras relações jurídicas de locação formaram-se em décadas de omissãodo Município, mesmo que calcadas sobre posses qualificadas como injustas sob umaperspectiva meramente civilista. O Município, por sua vez, para voltar a se assenhorear

3 Resumidamente, cadastramento e selagem são etapas que precedem à titulação uma vez que, respectivamente,(i) identificam a composição das famílias beneficiárias e constatam quais são os possuidores de fato e (ii)delimitam o perímetro da parcela do imóvel a ser conferida a cada beneficiário, por meio da atribuição de umselo.

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de seu patrimônio e implementar uma política habitacional significativa no parquehabitacional para baixa renda estabelece na posse (uma situação de fato) o únicocritério para restabelecimento da tutela dessas porções territoriais.

Some-se a isso o fato da diretriz ser diametralmente oposta na regularizaçãofundiária de loteamentos irregulares ou clandestinos. Ou seja, nessas circunstânciaso setor competente da Prefeitura, dentro da mesma Secretaria, adota considera oadquirente, independentemente da posse direta sobre o imóvel, como beneficiário.

DA LOCAÇÃO PARA POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA

Do ponto de vista jurídico, a outorga da concessão de uso especial para fins demoradia poderia ser preterida para aplicação da concessão de direito real de uso,conforme previsto na legislação municipal, caso admitida a locação de imóveis sobreárea pública municipal. A diretriz do Programa, no entanto, não admite o aluguelentre particulares apesar de propor esse questionamento.

Senão vejamos.

A locação fora alternativa habitacional relevante em São Paulo na transiçãoentre os Séculos XIX e XX. Ressaltem-se as observações de Raquel Rolnik sobre ossubúrbios populares, caracterizando-os como fonte de renda intimamente ligados àsua falta de regulação urbanística:

“As casinhas ou cômodos de alugar situavam-se em lotes compridos e estreitos, de 9 metrospor 60 ou 65 metros, geralmente com uma casa na frente e um portão lateral dando acessopara várias casas de fundo.

Famílias também sublocavam cômodos no interior de suas casas alugadas a fim decomplementar sua renda, de tal forma que uma rede complexa de senhorios e inquilinos,constituía um mercado de alta densidade que foi gerador, ao longo do tempo, de um processode valorização quiçá mais rápido e intenso que as áreas de alta renda e uma ampla gama dealternativas de aluguel, para várias faixas de renda.” (ROLNIK:1999,118)

No mesmo sentido, a descrição de Nabil Bonduki acerca da produção habita-cional com finalidade rentista:

“Desde o surgimento do problema habitacional em São Paulo no final do Século XIX até adécada de 1930, surgiram várias modalidades de moradia para alojar os setores sociais debaixa renda, todas construídas pela iniciativa privada. Entre elas, as mais difundidas foramo cortiço-corredor, o cortiço casa de cômodos, os vários tipos de vilas e correr de casasgeminadas.

É importante ressaltar o que essas habitações possuíam em comum: quase todas erammoradias de aluguel.” (BONDUKI:2004,43)

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Registre-se, por ora, que a diferença entre os regimes de direito privado epúblico afastam as situações verificadas no passado por Rolnik e Bonduki daquelasatualmente observadas nas favelas. Também distinguem-se as situações deprecariedade urbanística. Mas, de fato, nas favelas regularizadas no Século XXImantém-se uma intrincada gama de alternativas de aluguel para a população de baixarenda, todas resultantes de regimes de autoconstrução. Portanto, repetindo a iniciativaprivada observada um século antes.

Nos casos enfrentados por ocasião da 2ª fase do Programa, em 2008, osatendimentos prestados pela assessoria jurídica disponibilizada aos moradoresconstatou a cobrança de alugueres em torno de R$ 200 (duzentos reais) por mês,variando conforme a infra-estrutura instalada e o tamanho da benfeitoria. A localizaçãodemonstrava-se bastante relativa, cabendo afirmar que alguns dos maiores valoresde alugueres foi encontrado na área denominada Guapira I (com valores em torno detrezentos reais), a qual, dentro do universo regularizado, era uma das áreas maisdistantes do centro da cidade de São Paulo.

DA NATUREZA PÚBLICA DOS IMÓVEIS REGULARIZADOS

Voltam, contudo, as indagações referentes às possibilidades de usos de imóveisde propriedade do Município, definidas por sua lei como zonas especiais de interessesocial. O aluguel para a população de baixa renda nessas áreas configuraria usoespeculativo ou seria alternativa de provisão habitacional (com a construção dasmoradias a um público que normalmente não tem acesso a crédito pelos meiosformais)? Quais seriam as circunstâncias a diferenciarem ambas as situações? E comoproceder a qualquer avaliação dessas circunstâncias sem configurar puro arbítrio dosagentes públicos?

O Programa de Regularização Fundiária de favelas em São Paulo, adotando ocritério da posse direta dos imóveis, afastou-se de qualquer arbítrio. Contudo, persistemos conflitos evidenciados em todas as áreas regularizadas, diferenciando-se apenasem maior ou menor incidência, a serem expostos a seguir.

Não menos importante, para a Prefeitura cabe o questionamento acerca de suapresença após a titulação dos possuidores de fato. Queixas de moradores em áreasrecém tituladas, algumas vezes colacionadas nos plantões de atendimento à populaçãoindicam a persistência de relações opressivas nas áreas, consubstanciadas nas relaçõesentre alegados “donos” de imóveis e “inquilinos” titulados. A pressão paradesocupação dos imóveis, antes e depois da entrada do Programa de Regularização,é extremamente forte. Isso, na prática, representa a permanência das avenças entreparticulares.

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E a capacidade de resposta do Município ainda é lenta e pouco representativaem termos da escala. Porém, é válido dizer que medidas exitosas da Coordenadoriado Programa no sentido de resguardar os direitos de beneficiários titulados produzemrepercussão que extrapolam apenas as partes.

Além dessa resposta do Poder Público municipal pôr em risco a efetividadedos diretos atribuídos por meio da titulação, registra-se no caso específico da concessãode uso especial para fins de moradia a ainda incipiente discussão jurídica acerca desua natureza. Vale dizer, não agindo a Prefeitura em tempo para impedir uma açãoopressiva entre particulares, o próprio Poder Judiciário pouco se manifestou acercados desdobramentos do instituto criado pela MP. Assim, apesar do Programa municipalentender que seus instrumentos de titulação outorgam o domínio útil de determinadaporção territorial a um beneficiário, existem posicionamentos a considerarem aconcessão de uso especial como direito pessoal e não real entre Poder Publico ebeneficiário, o que, a princípio, não representaria a almejada segurança da posse4.

O risco à segurança da posse de moradores (originalmente “inquilinos”)decorrente de tal entendimento ainda é desconhecido, mas fornece indicativos de quea posse no local objeto de titulação pode ser prejudicada.

CONCLUSÃO

A locação operada entre particulares sobre área de domínio público municipalé rechaçada pelas diretrizes do Programa de Regularização Fundiária de Favelas.Mas suas implicações levam a questionamentos fulcrais na definição das políticashabitacionais exequíveis. Dessa maneira, o enfrentamento dos contratos de aluguelsobre imóveis públicos municipais implicam a necessidade de métodos que ofere-çam maior segurança ao morador e menos arbitrariedade ao Poder Público. As for-mas interpretativas do ordenamento jurídico nesses casos, o papel da moradia alugadadentro da provisão habitacional de interesse social, a diferenciação entre situações desubsistência e sujeição, a especulação imobiliária em áreas públicas municipais e, atémesmo, a efetividade para resguardar a posse de “locatários” reconhecidos comoocupantes e assim titulados, todas consubstanciam etapas que somente a implemen-tação de uma política de regularização fundiária ao longo do tempo poderá avaliar.

4 Nesse sentido, a sentença proferida pela MM. 10a Vara da Fazenda Pública de São Paulo, nos autos n.053.08.111129-8. Compartilha esse entendimento também o Tabelião e Registrador Imobiliário do Ceará,Regnoberto Marques de Melo Jr., conforme estudos divulgados em 2002, disponível no sítio JusNavigandi:http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3237.

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BIBLIOGRAFIA

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ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo.São Paulo: FAPESP:Studio Nobel, 1999. 2. ed.

SÃO PAULO. HABISP. Disponível em <www.habisp.inf.br>.

SAULE JR., Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.

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Fundamentos e Instrumentos à Ampliação daProteção às Áreas Especiais Referentes aosDireitos à Moradia e ao Meio Ambiente:Notas Introdutórias1

MARISE COSTA DE SOUZA DUARTE2

Doutoranda em Urbanismo, Mestre em DireitoPúblico e Especialista em Serviço Social, todos pelaUFRN.

MARIA DULCE P. BENTES SOBRINHA3

Procuradora do Município de Natal/RN.

RESUMO: O trabalho busca introduzir ideias quanto à criação de mecanismosde proteção das áreas de interesse social e ambiental no Município de Natal. Apartir da experiência de revisão do Plano Diretor de Natal (período 2004-2007),constatou-se a elevada vulnerabilidade a que essas áreas especiais (já protegidaslegalmente desde o Plano Diretor de 1994) estavam sujeitas. Identificou-se queas pressões econômicas e políticas, principalmente no âmbito do Legislativo,representavam bem mais um campo de “ameaças” às conquistas sociais efetivadasdo que de consolidação e ampliação da proteção desses espaços. Diante dessequadro e considerando o patamar de proteção jurídica conquistada a partir daslutas sociais, com marco na Constituição Federal de 1998, pontuamos algunsfundamentos e instrumentos na linha de ampliação da proteção dessas áreas,pela função social e ambiental que exercem.

1 As ideias contidas neste artigo fazem parte da tese de doutorado “Ampliação dos instrumentos de proteção dasáreas especiais estabelecidas no Plano Diretor de Natal de 2007 a partir dos direitos à moradia e ao meioambiente” em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte.

2 Professora do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da UniversidadePotiguar – UNP e do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Gestão Urbana do Departamento em Geografiada UFRN.

3 Arquiteta e Urbanista, Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas – FAUUSP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/PPGAU/UFRN.

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INTRODUÇÃO

As cidades brasileiras, notadamente aquelas situadas em regiões litorâneas,vivem um momento de grande expansão do turismo imobiliário, verificando-seintensas pressões sobre áreas especiais protegidas4, notadamente aquelas que abrigamos recursos ambientais e as áreas de moradia de interesse social. Isso significa ameaçasà proteção de direitos hoje considerados fundamentais em nosso ordenamento. Não épor acaso que isso ocorre já que a produção do espaço urbano não se dá de formaneutra, mas é resultante de um processo histórico no qual se expressam as forças depoder existentes em um espaço e tempo determinados, em especial, o modo deprodução que se encontra na base econômica da sociedade5. No atual estágio docapitalismo globalizado o desenvolvimento imobiliário urbano se torna motor centralda expansão econômica das cidades, o solo urbano, meio privilegiado para valorizaçãodo capital privado6, e as áreas frágeis, como as destinadas a resguardar recursosambientais e os interesses das camadas de baixa renda, ficam cada vez maisvulneráveis.

Inserida nessa dinâmica, a cidade de Natal apresenta um crescimento urbanoexpressivo a partir da década de 1990, quando ocorre a implementação do ProjetoParque das Dunas/Via Costeira, considerado um marco nos conflitos entre proteçãoambiental, direitos sociais de moradia e grandes empreendimentos de infra-estruturaurbana ligados ao desenvolvimento do turismo em Natal. A partir de 2000, as açõesdo Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste – PRODETUR contribuírampara a expansão do capital turístico imobiliário, com ampliação e redefinição daspressões sobre o ambiente e as áreas de vulnerabilidade social. Num contexto em quea cidade de Natal conta com reduzidas áreas na faixa litorânea em porte adequadopara a implantação de grandes empreendimentos imobiliários, a revisão do PlanoDiretor de Natal (2004-2007) foi marcada pela forte pressão sobre as áreas protegidas,em processos que buscaram a desconstrução das leis que amparam as áreas especiaisde interesse social e ambiental no Plano Diretor de Natal, pelo menos desde 1994.

Embora a revisão do Plano Diretor (Lei Complementar nº 82/2007) tenha sepautado pela participação social, abrangendo diversos formatos de discussão pública(grupos temáticos, conferência, conselhos, audiências públicas), foi no processo

4 Como as áreas especiais de interesse social, as áreas de proteção ambiental, as áreas de controle de gabarito e deinteresse paisagístico, dentre outras.

5 Baseada no pensamento de Harvey (2004), compreendemos que a lógica de acumulação capitalista se assentaem uma contradição e incompatibilidade fundamental entre as necessidades de acumulação intrinsecamenteinerentes ao capital e as demandas sociais derivadas dos direitos conquistados pela população (tendo em vista aequidade social).

6 Mattos, (2004).

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legislativo onde se verificaram as mais sérias ameaças às conquistas sociais eambientais já efetivadas.

A partir dessa experiência, constatou-se a necessidade de estudos sobre aspossibilidades de aprofundamento dos instrumentos de proteção às áreas de interessesocial e ambiental, que neste trabalho coloca-se de forma introdutória, pontuandoalguns fundamentos e instrumentos na linha de ampliação e proteção dessasimportantes áreas.

FUNDAMENTOS E INSTRUMENTOS EM DIREÇÃO À AMPLIAÇÃO DOSESPAÇOS URBANOS PROTEGIDOS EM FAVOR DO DIREITO DEMORADIA E AO MEIO AMBIENTE SADIO

Partindo da Carta Magna de 1988, constata-se que a dignidade da pessoahumana (valor sobre o qual se assentam os direitos humanos fundamentais) se constituium dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III). Em seu artigo3º a Constituição define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,dentre os quais inclui: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; odesenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a reduçãodas desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem-estar de todos, excluídaqualquer forma de discriminação.

No Capítulo da Política Urbana (Capítulo II do Título VII), artigo 182, a Cons-tituição Federal trata das funções sociais da cidade e da garantia do bem-estar doshabitantes como objetivos da política de desenvolvimento urbano; além de conside-rar expressamente a função social da propriedade urbana. Importante destacar essecapítulo constitucional foi fruto de uma intensa luta do Movimento Nacional pelaReforma Urbana7 cujos ideários se manifestam tanto nos embates sociais e políticosno território concreto da cidade como na construção de direitos formalmente reco-nhecidos; enfrentando, portanto, reações tanto no âmbito de interesses patrimoniaiscontrariados quanto no contexto de posições ideológicas conservadoras. Ainda im-porta considerar que, inicialmente com foco na Justiça Social, a Reforma Urbana apartir dos anos 90 passou também a focalizar com mais ênfase a Justiça Ambiental,que parte da compreensão de que o modelo de desenvolvimento no Brasil tem comocaracterística a apropriação elitista do território e dos recursos naturais, a concentra-ção dos benefícios usufruídos do meio ambiente, a destruição dos ecossistemas e a

7 Nos termos postos por Maricato (1994), a luta pela “reforma urbana” se origina a partir da evidência do fossoque, nas cidades brasileiras, divide os espaços reservados aos ricos e aos pobres, tendo no seu ideário a buscapela construção de direitos formalmente reconhecidos, dentre os quais o direito de moradia e à qualidade devida.

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exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do desenvolvi-mento, indicando a necessidade de trabalhar a questão do “ambiente” não apenas emtermos de preservação mas também de distribuição de justiça8, aproximando as lutaspopulares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida com asustentabilidade ambiental9.

Tratando, pela primeira vez, do meio ambiente, em seu Capítulo VI do TítuloVIII, a Carta Maior prescreve, em seu artigo 225, que:

todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum dopovo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade odever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Essa norma10 se constitui um marco na proteção e de defesa do meio ambienteno Brasil já que insere um novo direito (meio ambiente ecologicamente equilibrado)no ordenamento jurídico, além de tratar do meio ambiente como bem e impor àcoletividade, juntamente, com o poder público, o dever de proteção e defesa dessedireito. Vale ressaltar que, além do referido artigo 225, vários outros artigosconstitucionais11 se referem à matéria ambiental, inaugurando uma nova etapa notratamento do meio ambiente no Brasil.

Por outro lado, os direitos sociais à moradia, à saúde, à educação, ao trabalhoe ao lazer, dentre outros direitos fundamentais à pessoa humana, também encontramsuas bases da Constituição Federal (art. 6º).

O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), norma regulamentadorados artigos 182 e 183 da Carta Magna, segue a orientação dos preceitos constitucionaisreferidos, estabelecendo que a política urbana tem por objetivo ordenar o plenodesenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, apoiando-se em diversas diretrizes gerais, dentre as quais: a garantia do direito a cidadessustentáveis, compreendido como “direito à terra urbana, moradia, saneamento

8 O Movimento por Justiça Ambiental surgiu no Brasil, a partir de 2001, com objetivo de ampliar o diálogo e aarticulação entre sindicatos, movimentos sociais, ambientalistas e pesquisadores, no sentido de estimular ofortalecimento da luta ambiental articulada à luta pela democracia e pelo bem comum, integrando as dimensõesambiental, social e ética, vez que parte da compreensão que a proteção do meio ambiente depende do combateà desigualdade social, não se podendo enfrentar a crise ambiental sem promover a justiça social. Atualmente éobjeto de coordenação por parte da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, tendo como seu principal articuladorHenri Acselrad.

9 Conforme Acserald, H.; Herculano, S.; Pádua, J. A. (2004).10 Que se decompõe em sete incisos e seis parágrafos, com importantes disposições normativas.11 Como os artigos 5º, LXXIII; 23, III, IV, VI, VII, IX, XI; 24, VI, VII, VIII; 129, III; 170; 174; 200 e 216; dentre

outros.

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ambiental, infra-estrutura urbana, transportes e serviços públicos, trabalho e lazer,para presentes e futuras gerações” (artigo 2º e inciso I).

Conforme mandamento constitucional (artigo 182) e o disposto no Estatuto daCidade, o Plano Diretor se constitui em um instrumento de planejamento “básicopara a política de desenvolvimento e de expansão urbana” no qual se estabelecem asexigências fundamentais para que a propriedade cumpra sua função social. Assim, éatravés do Plano Diretor e suas leis regulamentadoras, que devem ser estabelecidasnormas que venham efetivar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente,tendo especial importância o estabelecimento de áreas especiais de proteção ambientale de interesse social, que ganham um status de proteção diferenciado exatamente emrazão dos frágeis12 interesses que vem resguardar.

Na linha de análise aqui desenvolvida, emerge o princípio da função social dapropriedade13 e, mais recentemente, o princípio da função sócio-ambiental dapropriedade, tratado por diversos doutrinadores de Direito Ambiental14, que configura-se a partir da interpretação sistemática das normas constitucionais referentes ao usoda propriedade urbana e rural e das normas relativas à proteção ao meio ambiente.Ainda que não expressamente inscrito na legislação15 o princípio da função sócio-ambiental da propriedade é compreendido como o ônus que é atribuído ao proprietário,que consiste em um conjunto de deveres e responsabilidades que permeia toda arelação de propriedade (e não apenas limita o seu exercício), de modo com que,mesmo sem dar destinação produtiva aos recursos ambientais16, o proprietário estáobrigado a utilizá-los realizando finalidades sociais (vinculando-se a uma ética deresponsabilidade solidária) e o dever da coletividade (art. 225 da Constituição Federalde 1988). Desse modo, a propriedade protegida em nosso sistema jurídico é aquelana qual se desenvolve uma relação individualizada sustentável social eambientalmente; devendo ser reprimidas as práticas que atentam contra essa ideia,como a supressão de espaços ambientais e sociais.

Seguindo na busca pela ampliação da proteção aos espaços especialmenteprotegidos em favor do direito de moradia e ao meio ambiente, encontramos o princípioda vedação ao retrocesso social. Desenvolvido pela jurisprudência europeia, talprincípio é visto como uma “cláusula geral” de proteção dos direitos fundamentais,

12 Do ponto de vista da dinâmica territorial urbana atual, onde o uso do solo passa ser uma importante fonte deganhos financeiros.

13 Introduzido em nosso sistema jurídico desde a Constituição de 1934.14 Edis Milaré (2005), Rodrigues (2005), Mirra (1996), dentre outros.15 Importa destacar que o princípio da função social se encontra inscrito expressamente na Constituição Federal

nos artigos 5º, XXIII, 182, § 2º (referente à propriedade urbana) e 186, caput (propriedade rural).16 Art. 2º da Lei Federal 6.938/81.

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especializados pela legislação infraconstitucional, e que assume uma função de defesapara o cidadão contra as ingerências do Estado. Buscando uma maior interferênciana efetiva estabilidade constitucional em face dos direitos sociais, tal princípio temcomo escopo essencial evitar que a ordem jurídica sofra a insegurança reformista, seconstituindo mola mestra na condução da estabilidade dos direitos fundamentais queasseguram a dignidade da pessoa humana como um todo e, por consequência, aefetividade da segurança jurídica no Estado de Direito17. Pensamos que, diante dasameaças colocadas às áreas de interesse social e ambiental, de grande valia será autilização desse poderoso instrumento.

Por fim, não se pode deixar de considerar que o aperfeiçoamento do sistemade proteção internacional aos direitos de moradia e ao meio ambiente, dentre outrosdireitos sociais, se coloca como importante instrumento em favor da ampliação daproteção aqui defendida. Materializado em algumas ações concretas, esse sistema deproteção tem na Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais,Culturais e Ambientais (Plataforma DHESCA Brasil) um dos principais espaços dearticulação nacional de movimentos e organizações da sociedade civil para odesenvolvimento de ações para a promoção, defesa e reparação dos direitos humanoseconômicos, sociais, culturais e ambientais, visando ao fortalecimento da cidadaniae à radicalização da democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo, é necessário considerar que as ideias aqui colocadas se constituemna introdução de uma pesquisa em desenvolvimento e que requerem um amploaprofundamento teórico e prático, com foco nas novas ideias e saberes que naatualidade se colocam na linha da garantia aos direitos humanos fundamentais (comoos direitos à moradia e ao meio ambiente) tão arduamente conquistados, pelo menosa nível formal e normativo, pela sociedade.

Ainda que estejamos na condução do trabalho de revisão bibliográfica sobre otema estudado, seu fio condutor não se afasta da ideia central de garantir aos espaçosde interesse social e ambiental inseridos no Plano Diretor de Natal um grau de consolidaçãocapaz de resistir às sérias ameaças que se colocam em face da pressão política associadaà, cada vez mais, intensa pressão imobiliária urbana, com evidente influência nos fórunsonde se discutem e constroem as normas de uso e ocupação do solo.

Não olvidando a importância da participação social em todo o processo deconstrução das normas urbanas e nas ações e discussões sobre as (tão desejadas)

17 Brasil, (2007).

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cidades justas, inclusivas e sustentáveis, em especial no processo de revisão do PlanoDiretor de Natal 2007, pensamos que o aprofundamento do debate sobre o tema nocampo acadêmico se constitui uma exigência necessária, possível e um dos grandesdesafios para todos os que se preocupam com a efetivação da justiça social e daqualidade de vida nas cidades.

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3INSTRUMENTOS PARA A

GOVERNABILIDADE DAS CIDADES /A GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

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Gestão Democrática das Cidades: aConstituição de 1988 é Efetiva?1

MARINELLA MACHADO ARAÚJO

Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação e Graduação em Direito da PUC Minas.Coordenadora do Núcleo Jurídico de PolíticasPúblicas.

GABRIELA MANSUR SOARES

Mestranda em Direito Público pelo Programa dePós-Graduação em Direito pela PUC Minas.Pesquisadora do Núcleo Jurídico de PolíticasPúblicas/OPUR (NUJUP).

MARIANO HENRIQUE MAURÍCIO DE CAMPOS

Mestrando em Direito Público do Programa de Pós-Graduação da PUC Minas. Bolsista da Fundaçãode Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).Pesquisador do Núcleo Jurídico de PolíticasPúblicas/OPUR (NUJUP).

RESUMO: Ao expressamente atribuir aos Municípios brasileiros a competênciapara elaborar planos diretores, a Constituição de 1988 expressamente determinoua aplicação do princípio federativo da subsidiariedade ao planejamento urbano.Em 2001, o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, ao regularo capítulo de política urbana da Constituição de 1988, artigos 182 e 183,institucionalizou o modelo dialógico do planejamento urbano participativo. Vinteanos depois, apesar dos avanços, a gestão democrática das cidades ainda continuasendo um desafio para a Administração Pública brasileira. A tradição liberal de

1 Esse artigo resulta das discussões desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho Administração Pública Dialógica doNúcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas,coordenado pela professora doutora Marinella Machado Araújo. As ideias aqui apresentadas representam aindareflexões preliminares desenvolvidas pelos co-autores a partir seus respectivos projetos de pesquisa desenvolvidosno Programa de Pós-graduação da PUC Minas.

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gestão de interesse público, fundada na universalização desmotivada da aplicaçãoprincípio da supremacia do interesse público sobre o privado, reflete um abismoque ainda separa a construção coletiva, participativa, do planejamento urbano,do arbítrio imposto pela ausência de controle da discricionariedade administrativa.Contudo, se a previsão legal dessa gestão em nível federal criou condições paraa aplicação da gestão urbana democrática participativa proposta pela Constituiçãode 1988 e regulada pelo Estatuto da Cidade, a sua regulação pelos planos diretoresainda não é efetiva. É o que demonstra a análise das leis que instruíram planosdiretores das cidades históricas mineiras. Esse artigo analisa, a partir do princípiodo discurso de Habermas e da democracia contestatória de Pettit, em que medidaavançamos na regulação da gestão democrática participativa das cidadesbrasileiras após 20 anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988.

PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Subsidiariedade; Federalismo de Cooperação;Estatuto da Cidade; Planos Diretores; Gestão Urbana Participativa.

1. A QUESTÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

O Brasil, desde a sua descoberta, sempre recebeu influência europeia quandose trata de cultura política e jurídica. Neste sentido, foram diversas as leis portuguesasque por aqui vigoraram antes da Declaração da Independência em 1822 e daProclamação da República em 1891. Como exemplo, podemos falar das OrdenaçõesAfonsinas (de 1446 ou 1447 até 1511), Ordenações Manuelinas (editadas em 1521) eOrdenações Filipinas (1613), as quais vigoraram até a edição das primeiras leisbrasileiras como o Código Criminal do Império de 1830 e o Código de ProcessoCriminal de 1832 (DI PIETRO, 2006a).

A Constituição Republicana de 1891 recebeu forte inspiração Francesa com osideais da Revolução de 1789 e é considerada Liberal, uma vez que antes dapromulgação da Constituição já havia um movimento político no sentido de derrubaro Regime Imperial, como por exemplo o Manifesto Republicano de 1870, sendo quea insatisfação maior era em relação ao Poder Moderador, que foi extinto com a PrimeiraConstituição Republicana (BONAVIDES e ANDRADE, 1991).

Já a Constituição de 1934 recebeu influência do chamado Estado Social, atravésda inclusão no bojo constitucional de diversos direitos sociais, como a garantia desaúde, educação, salário-mínimo, limitação da jornada de trabalho, entre outros,recepcionados e melhor desenvolvidos nos artigos 5º e 7º da Constituição de 1988.

Com isso, notamos que as noções paradigmáticas tanto do Estado Liberal comodo Estado Social se fizeram presentes em nossos textos constitucionais desde aProclamação da República. Todavia, destacamos que a simples previsão legal dedeterminas garantias ou a proteção de direitos individuais não os efetivam de plano.

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É preciso mais. É imperioso que além da previsão no ordenamento jurídico se tenhavontade política para implementação de uma série de direitos fundamentais.

A concentração de renda no Brasil não é uma novidade. Sempre haverá umjornal ou uma pesquisa que demonstre o fosso social que se criou entre uma minoriabem provida de recursos e a grande maioria da população que vive com dificuldade,com recursos escassos e serviços públicos muito aquém do necessário. Acreditamosque isso é consequência de uma cultura oligárquica que domina a estrutura políticado país e que faz a nossa realidade tão distante daquilo posto em nossos textosconstitucionais.

A Constituição Federal promulgada em 1988 inovou em diversos aspectos eum deles é justamente a previsão de políticas urbanas, como já mencionado no início.Mais importante do que isso é a forma com que essas políticas vão acontecer.Mantendo-se um regime democrático estabelecido pela vontade da maioria certamenteas forças oligárquicas que todos sabemos presentes em nosso país, com certeza farãodo texto constitucional apenas um legado histórico, mas não um instrumento demudança.

HABERMAS (2007), embora partindo de uma realidade diferente da quevivenciamos aqui, ressalta de maneira peculiar as diferenças que modelosdemocráticos, seja de orientação liberal ou de orientação republicana podem fazersurgir no bojo social. Na concepção liberal, a política congrega e impõe interessessociais em particulares. Na concepção republicana, a política possibilita o surgimentoda solidariedade como fonte de integração social. A opinião pública política e sociedadecivil sustentam a concepção republicana.

O citado autor sustenta ainda um modelo de democracia que visa umdistanciamento da força que o poder econômico exerce nas sociedades atuais. Aseconomias de mercado tendem ao afastamento da política, considerando que estaengessa a mobilidade do capital. Mas a política levada ao extremo pode resultar oestabelecimento de uma ditadura.

A democracia para Habermas gira em torno da ideia de igualdade, liberdade eda autonomia do povo. Determinemos, pois, que para a coesão do discursohabermasiano a igualdade não pode ser entendida como formal, garantida apenaspelo texto legal e que privilegia determinado grupo de pessoas baseando essa exclusãoem fundamentos ligados a argumentos não jurídicos, e que por vezes, tornam-se, porexemplo, a igualdade do Estado Liberal em que assegurava-se o direito ao voto àuniversalidade desde que a universalidade comportasse os parâmetros burguesesditados.

A liberdade também não pode ser mera formalidade deve ser entendida comoliberdade material.

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E autonomia do povo? Entendida no melhor sentido de autolegislação deveser uma autonomia caracterizada pela vontade do povo que é capaz de enxergar-secomo autor e destinatários das leis estatais. Tal vontade popular representa naDemocracia o agir coletivo e a supressão das vontades individuais em prol dasociedade.

A formação de opinião e vontade pública só é possível através de um processoque é o meio da efetividade da soberania popular. E esse processo de construção daopinião e vontade popular se evidencia desde que a sociedade civil organize-se, pormeio de associações livremente agrupadas, e sejam abertas ao discurso com o Estado,dentro do ‘espaço público’.

Do ‘poder’ comunicativo do povo surge a legitimação da tomada de decisão,com base na maioria, tomada pelo Estado.

O modelo de Democracia de Habermas baseia-se nas condições de comunicaçãosob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais,justamente por cumprir-se de modo deliberativo. Pelo modelo discursivo do autor, oprocedimento democrático cria uma coesão interna na tomada de decisão por baseá-la em discursos que visam as negociações e o auto-entendimento entre a sociedadecivil e o Estado.

Numa outra linha, a construção da democracia para PETTIT (2003) faz-se apartir do poder contestatório do povo. Mas o que seria poder contestatório? Para oautor é ele a forma como o povo se expressa contra o poder arbitrário expresso nasdecisões executivas e legislativas que levam em conta apenas interesses particulares,sejam eles individuais ou de determinado grupo.

O consentimento para PETTIT (2003) contrário à ideia habermasiana estáassociado ao abuso de poder e à imposição de vontade seja ela do Estado ou de umgrupo social dominante. A democracia para Pettit é, assim como em Habermas,propiciada pelos movimentos sociais e pelo associativismo, mas ao contrário deHabermas que busca uma tomada de decisão baseada no consenso entre os atoressociais nos canais deliberativos, Pettit acredita que por esses canais as associaçõescivis devem exercer seu poder contestatório na construção de uma decisão que espelheseus interesses (decisões políticas contestatórias).

A forma de contestação é balizada por um processo discursivo, assim comoem Habermas, em que se colocam meios que apóiem as deliberações baseadas nacontestação das decisões tomadas unicamente pelo Estado.

Outro ponto chave na construção da Democracia Participativa a determinaçãodo que vem a ser interesse público. Para ÁVILA (2001) no Estado Democrático deDireito, interesse público não significa interesse do Estado. O autor defende ainda

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que a supremacia desse sobre o interesse privado defendido pelos liberais, não maisse sustenta.

Neste sentido, sua noção de democracia é baseada na equiparação entre ointeresse público e o privado principalmente porque o direito público, e com isso ointeresse público, no Estado Democrático comporta elementos privados (necessidadesdas comunidades políticas), já que até mesmo a Constituição da República elegecomo estruturante do interesse público caracteres privados (ÁVILA, 2001)

A construção da democracia para ÁVILA (2001) é baseada na concepção edefinição de interesse público, que deve ser aquele que conjuga reciprocidade eunidade com o interesse privado. Elemento esse que identificamos em Habermasquando ele trata da equiprimordialidade do interesse público sobre o privado.

De qualquer forma, a Administração Pública deve privilegiar a participaçãopopular no planejamento e gestão do interesse público como forma de garantia dalegitimidade das políticas públicas e consequentemente da concretização de direitosfundamentais sociais.

Um instrumento importante de participação da sociedade civil são os conse-lhos gestores, formados por diversos segmentos sociais. No entanto, a doutrina ad-ministrativista sequer trata da participação democrática na gestão da AdministraçãoPública e não existe classificação acerca desses órgãos de cunho popular como com-ponentes da estrutura administrativa. Esses órgãos forma introduzidos na legislaçãoque regula políticas públicas como Sistemas de Habitação de Interesse Popular, Ges-tão de Recursos Hídricos, Estatuto da Cidade, mas são esquecidos pelos tradicionaismanuais de direito administrativo, enraizados na tendência do Liberalismo políticodo século XIX.

2. RAZÕES PARA QUE O ESTATUTO DA CIDADE DETERMINASSEPLANOS DIRETORES PARTICIPATIVOS

O Estatuto da cidade é um instrumento de diretrizes do planejamento urbanoque foi pensado para regulamentar os preceitos constitucionais que dizem respeito àpolítica urbana (artigos 182 e 183 da CF/88) e que se pretende legítimo por associaràs decisões estatais, no âmbito de planejamento da cidade, a participação popularseja por instrumentos diretos como o plebiscito ou referendo seja através dasassociações civis, conselhos, fóruns ou outros instrumentos que privilegiem a gestãodemocrática com a participação da comunidade.

O Estatuto ainda prevê como instrumento para consecução de política urbanaos Planos Diretores que visam o planejamento urbano municipal, esses planos devemser elaborados pelo município. A competência dos municípios em elaborar os planos

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diretores advém do modelo de federalismo adotado pela Constituição Federal de1988, o Federalismo de Cooperação, art. 23.

Pelo Federalismo de Cooperação temos repartição de competências comunsentre os entes federados, possibilitando a integração entre Estados-membros e a Uniãopara implementar as políticas públicas, quando da redação de normas para consecuçãodessas políticas. Percebemos, pois, a busca por uma maior autonomia municipal, já queno momento em que há delegação do processo decisório para o ente local, principalmen-te no que se refere à política urbana, já que as necessidades e as demandas nessa áreasurgem do local para o global, já que os municípios estão mais pertos do cidadão.

Tal autonomia mostra a constante perseguição pela descentralização do poderentre os entes, o que permite a colaboração de entidades civis para a realização dosobjetivos públicos. Mas essa descentralização e distribuição de competências só têmsentido graças ao princípio da subsidiariedade. Por esse princípio pressupõe-se que asociedade tem condições de resolver ela própria por seus membros e por organizaçõesnão políticas, um número enorme de problemas sociais de forma eficiente, deixandoa resolução por parte do Estado só quando a iniciativa privada não for suficiente.

A subsidiariedade estabelece ainda, que todas as demandas que puderem ser aten-didas por um poder político local, como o município, não deve ser atendido pelas entida-des políticas superiores, o Estado. Dessa forma no federalismo de cooperação asproposições do princípio da subsidiariedade implicam o fortalecimento do município,vemos pela junção desses dois princípios um papel de maior destaque do cidadão, que éo núcleo deste ente político, o que propicia uma participação mais ampla e fiscalizaçãoefetiva das políticas públicas. Essa preleção do município atende não só aos princípiosem tela como concretiza o Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição de 1988.

Os Planos Diretores são essenciais às políticas urbanas que pretendem seadequar ao disposto nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Estão previstosno artigo 40 do Estatuto das Cidades e são essencialmente participativos na suaexecução, conforme interpretação sistemática dos artigos 39 até 43 da Lei Federal10.257/01 (Estatuto das Cidades), além das diretrizes de gestão democrática tambémprevistas na citada Lei.

No entanto, não é uma novidade no Brasil que existe uma distância real entrea Lei e sua aplicação efetiva. O Estatuto das Cidades previa originalmente no artigo50 o prazo de 05 anos para que os Municípios se adequassem. Ocorre que por váriasrazões, seja de cunho político ou incapacidade administrativa, o prazo não foi cumpridoe a Lei 11.673/2008 prorrogou o prazo para 30 de junho de 2008, retroagindo seusefeitos ao ano de 2006. Este fato mostra que existe uma profunda distância a Lei esua aplicação, uma vez que o monitoramento de Planos Diretores não é respeitado eos prazos não são observados.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 109

Percebemos também que o não cumprimento dos prazos de elaboração dosPlanos Diretores revela o baixo nível de comprometimento administrativo dosmunicípios e seus gestores. A importância da gestão participativa é inegável nocontexto do Estado Democrático. Neste sentido, as propostas feitas por HABERMAS(2007) e PETTIT (2003) são importantes porque refletem a necessidade da criaçãode mecanismos de participação popular no processo de tomada de decisões por parteda Administração Pública. A gestão democrática é importante ainda sob o ponto devista do controle social que é exercido sobre os gestores públicos, pois se esta culturaparticipativa estivesse enraizada na sociedade brasileira, certamente o descumprimentodo prazo do Estatuto das Cidades não chegaria ao ponto que chegou.

Por tais razões, acreditamos que a Gestão Democrática das Cidades é um pontode relevância a ser considerado pela doutrina administrativista. Com a edição doEstatuto das Cidades ficou impossível desconsiderar os instrumentos de participaçãopopular no governo dos Municípios Brasileiros. Seja com a participação da sociedadecivil e o procedimento racional-discursivo proposto por HABERMAS ou através dosmecanismos de contestação das decisões públicas conforme pretendido por PETTIT,certo é que a evolução do modelo representativo de democracia para o modeloparticipativo tornou-se uma necessidade premente.

E para cumprirmos o objetivo do trabalho, qual seja: analisar em que medidaavançamos na regulação da gestão democrática participativa das cidades brasileiras após20 anos de vigência da Constituição de 1988, resta-nos a análise das leis que instituíramplanos diretores das cidades históricas mineiras. Desta forma, selecionamos as nove cidadesque compõem a “Estrada Real”, sendo elas: Brumadinho, Congonhas, Diamantina, SantaBárbara, São João Del Rei, Serro, Nova Lima, Ouro Preto e Ponte Nova.

A partir dos dados obtidos junto ao Núcleo Jurídico de Políticas Públicas(NUJUP/OPUR) – PUC Minas – desenvolvemos três gráficos que retraíam a análisedos Planos Diretores destes Municípios destacados. O primeiro trata da quantidadede instrumentos de gestão democrática previstos, o segundo trata da existência dessesinstrumentos nos respectivos Planos Diretores e o terceiro gráfico demonstra acomposição dos Conselhos das Cidades ou órgão equivalente de cada um dosMunicípios pesquisados.

No primeiro gráfico2 constatamos que dos 09 Municípios pesquisados, 04prevêem a existência de Conselho das Cidades ou equivalente; 03 prevêem oorçamento participativo e as consultas públicas; 06 prevêem as Conferências dasCidades e Audiências Públicas e 07 prevêem os Conselhos Gestores.

2 Os dados reproduzidos nos gráficos 1, 2 e 3 representam a análise das informações junto ao Núcleo Jurídico dePolíticas Públicas (NUJUP/OPUR) da PUC Minas.

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110 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

Gráfico 1Instrumentos de Gestão Democrática – Municípios pesquisados

Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.

No segundo gráfico constatamos que o Conselho das Cidades ou equivalenteestá previsto para as cidades de Brumadinho, Congonhas, Diamantina e SantaBárbara. O orçamento participativo e as Consultas Públicas são previstos paraBrumadinho, Nova Lima e Santa Bárbara. As Conferências das Cidades estão previstaspara Brumadinho, Diamantina, Serro, Nova Lima, Ponte Nova e Santa Bárbara. AsAudiências Públicas estão previstas para Brumadinho, Congonhas, Diamantina, Serro,Nova Lima e Santa Bárbara. Já os Conselhos Gestores estão previstos para Brumadinho,Congonhas, Diamantina, Serro, Ouro Preto, Ponte Nova e Santa Bárbara.

Gráfico 2Instrumentos de Gestão Participativa

Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.

Municípios pesquisados: 09

Tipos de Instrumentos de Gestão

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 111

O terceiro gráfico revela a composição dos Conselhos das Cidades, sendo queos únicos Municípios que contêm previsão desta composição são Brumadinho,Diamantina e Santa Bárbara. Em Brumadinho, das vagas destinadas ao Conselhodas Cidades, o Poder Público Federal tem 19,72%, Poder Público Estadual 8,45%,Poder Público Municipal 14,08%, Movimentos Populares 26,76%, ONG’s 4,23%,Entidades de Trabalhadores 9,86%, Profissionais e Acadêmicos 7,04% e EntidadesEmpresariais 9,86%. Em Diamantina, das vagas destinadas ao Conselho das Cidades,o Poder Público Federal e Estadual têm 11,11% das vagas cada, o Poder PúblicoMunicipal e os Movimentos Populares têm 33,33% das vagas cada e as entidadesempresariais têm 11,11% das vagas, ONG’s, Entidades de Trabalhadores, Profissionaise Acadêmicos não têm destinação de vagas expressamente. Em Santa Bárbara, oPoder Público Municipal tem 40% das vagas, Movimentos Populares, ONG’s eEntidades Empresariais têm 20% cada.

Fonte: Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR, 2008.

CONCLUSÃO

Diante das considerações feitas durante o trabalho, concluímos que emboraexista a previsão constitucional, no âmbito Federal, relativa à gestão participativa eque o Estatuto da Cidade foi responsável pela regulamentação dos artigos 182 e 183da Constituição Federal de 1988, a gestão democrática e participativa dos centrosurbanos não é efetiva nos planos diretores analisados.

Gráfico 3Composição do Conselho das Cidades

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SANTA BÁRBARA

SÃO JOÃO DEL REI

SERRO

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OURO PRETO

PONTE NOVA

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Apenas 02 das 09 cidades analisadas (Brumadinho e Santa Bárbara) possuema previsão nos seus planos diretores de todos os instrumentos de gestão participativa3.Ademais, São João Del Rei não possui qualquer menção aos instrumentos de gestão.

É claro que nesses 20 anos de vigência da Constituição de 1988 avançamosmuito em relação aos regimes constitucionais anteriores, principalmente em termosde direitos e garantias fundamentais. Não obstante, é preciso que avancemos na gestãoparticipativa das políticas públicas porque somente com o modelo dialógico deAdministração Pública é que a concretização dos direitos fundamentais poderá tornar-se mais efetiva, consequentemente melhorando a qualidade de vida dos brasileiros.

As teorias de Habermas e Pettit demonstram a necessidade de criação deprocedimentos e mecanismos de participação e controle da gestão pública por parteda sociedade civil. Conforme nos diz Ávila, não há que se falar em universalizaçãoda supremacia do interesse público sobre o privado, mas podemos falar naconvergência e na reciprocidade de interesses entre o público e o privado, tal comoHabermas coloca a equiprimordialidade e co-originalidade entre a autonomia públicae privada.

Acreditamos numa “Administração Pública Dialógica”, modelo que deve serconsiderado como a evolução daquele tradicional descrito pela maioria da doutrinaclássica do Direito Administrativo. Devemos evoluir para que a escolha racional deprioridades segundo interesses reconhecidos pelo direito seja feita a partir dosmecanismos de participação da sociedade civil em interação com o Poder Público. AConstituição de 1988 em seus aspectos de participação popular ainda não é totalmenteefetiva, mas estamos evoluindo bem e alguns planos diretores, apesar de poucos,evidenciam este fato. A própria evolução do Direito Urbanístico no país passa pelaefetivação da gestão democrática nas cidades e esperamos comemorar este fato embreve, tal como comemoramos nos 20 anos da Constituição as conquistas democráticasde 1988.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, Humberto. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”.Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização. Jurídica, v. I, nº 7, outubro, 2001.Disponível em:<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 29 de agosto de 2008.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 18. ed. rev., ampl. e atual. Riode Janeiro: Lumen Juris, 2007.

Dl PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 500 anos de Direito Administrativo Brasilei-ro. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, Instituto de

3 De acordo com o Gráfico 02.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 113

Direito Público da Bahia, nº 05, Janeiro/Fevereiro/Março, 2006. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 29 de agosto de 2008.

FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. 5. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:Del Rey, 2004.

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensa-mento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

HABERMAS, Júrgen A inclusão do outro: Estudos de teoria política. Trad. George Sperbe e PauloAstor Soethe. São Paulo: Loyola, 2007.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno: de acordo com a EC 19/98. 3. ed. rev. e atual. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1999.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 23 ed. rev. e atual. até a EmendaConstitucional São Paulo: Malheiros, 2007.

PETTIT, Philip. Democracia e Contestabilidade IN: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Di-reito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.

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Governança Participativa de Áreas Públicas:em que Avançamos da Constituição de 1988ao Estatuto da Cidade1

MARINELLA MACHADO ARAÚJO

Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação e Graduação em Direito da PUC Minas.Coordenadora do Núcleo Jurídico de PolíticasPúblicas.

GABRIELA MANSUR SOARES

Mestranda em Direito Público pelo Programa dePós-Graduação em Direito pela PUC Minas.Pesquisadora do Núcleo Jurídico de PolíticasPúblicas/OPUR (NUJUP).

THAÍS LOUZADA DE SOUSA

Graduanda em Direito pela PUC Minas.Pesquisadora Bolsista pelo PROBIC – Programa debolsa de iniciação científica com o trabalhodesenvolvido juntamente com o Graduando emDireito pela PUC Minas Luiz Márcio SiqueiraJúnior, ambos vinculados ao NUJUP– NúcleoJurídico de Políticas Públicas.

RESUMO: Ao comemorar 20 anos de vigência, o texto constitucional de 1988atinge a maturidade necessária para a crítica de sua efetividade. Se avançamosno que se refere à tutela jurídico-legal de direitos fundamentais sociais, a suaconcretização ainda permanece um desafio como sustentam Konrad Hesse e

1 Esse artigo resulta das discussões desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho Administração Pública Dialógica doNúcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas,coordenado pela professora doutora Marinella Machado Araújo. As ideias aqui apresentadas representam aindareflexões preliminares desenvolvidas pelos co-autores a partir seus respectivos projetos de pesquisa desenvolvidosno Programa de Pós-Graduação da PUC Minas.

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Fridrich Müller. Nesse contexto, o princípio do discurso de Habermas apresenta-se como fundamento para a defesa da “governança participativa”, sustentadapelo Estatuto da Cidade, como um modelo de gestão administrativa fundado nainstitucionalização do diálogo, na articulação política entre poder público esociedade civil e accountability. Nesse contexto, o texto sustenta ser auniversalização da participação da sociedade, por meio de associações civis,representa uma forma eficiente de inclusão de grupos historicamentemarginalizados e de formação de sujeitos de direito co-responsáveis pelaformulação e implementação de políticas públicas. E, ao fazê-lo, apresenta oplano de coleta de lixo seletiva realizada pela Prefeitura do Município de BeloHorizonte como um modelo efetivo e eficiente de Administração Públicadialógica. E, ao fazê-lo, demonstra como a concretização de dois direitosfundamentais, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidadesustentável, pode ser realizada pela gestão democrática de espaços urbanos.

PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública Dialógica, Associativismo,Políticas Públicas.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é comprovar que a universalização da participaçãoda sociedade, por meio de associações civis, representa uma forma eficiente de gestãolocal, tornando os cidadãos co-responsáveis pela formulação e implementação depolíticas públicas.

O estudo dessa participação é feito à luz da teoria do discurso de Habermas eda teoria concretista de Müller, sendo a primeira utilizada para constatar o canal decomunicação entre a iniciativa privada e o Poder Público e, a segunda, utilizada paralegitimar as normas administrativas.

Evidenciamos tal abertura para a ‘governança participativa’ na AdministraçãoPública desde a Constituição quando essa elenca o poder estatal como emanação dopovo, no parágrafo único do artigo 1º, até o instrumento mais recente da administraçãodas cidades, o Estatuto da Cidade quando esse propõe que o desenvolvimentosustentável de uma cidade será promovido com a participação do povo, através dasassociações civis, que participando das decisões administrativas serão co-responsáveispela gestão democrática das cidades.

Arrimado em uma abordagem ilustrativa o texto, parte de uma análise indutiva,que nasce da parceria entre a Prefeitura de Belo Horizonte – Minas Gerais e aAssociação Civil dos catadores de lixo que criaram uma instituição destinada à coletaseletiva do lixo, denominada Asmare. Tal projeto intenta conscientizar e a valorizaras ações populares que fortificam as leis e o sistema da Administração Pública.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 117

Pretendemos demonstrar como a concretização de dois direitos fundamentais– ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável – pode serrealizada pela gestão democrática de espaços urbanos.

2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADECIVIL NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

Iniciemos a proposição analisando o que é República. República é uma formade governo que nasce como uma contraposição à Monarquia e possui um sentidomuito próximo ao da Democracia, uma vez que prevê a participação social no governo.Ela surge no final do século XVIII com as seguintes características: Eletividade – ogovernante é eleito pelo povo; Temporalidade – o governante recebe um mandatopor período certo e Responsabilidade – o governante é politicamente responsável edeve prestar contas ao povo.

Nesse sentido se apresenta a República adotada pelo texto constitucional, umaRepública Democrática, na qual o poder soberano do povo é exercido não sódiretamente através do voto direto, secreto e universal, bem como através de canaisdecisórios junto a administração pública que propiciam o diálogo entre o Estado e opovo, esse que é um meio, a nosso ver, eficaz de concretização da prescrição normativa,posta pela Constituição, no que diz respeito às normas que instituem direitosfundamentais.

É a partir do exercício de cidadania que o indivíduo contribuirá para a formaçãodo Estado Democrático de Direito. O ideal de liberdade política que extingue oabsolutismo e surge com o republicanismo intenta a soberania popular, a limitaçãode faculdades dos governantes e da garantia de direitos individuais. A consolidaçãoda soberania popular depende da transição do sistema de governo democráticorepresentativo para o participativo, de tal maneira que seja resguardado a liberdadee a legitimidade do povo.

Com o intuito de construir o conceito de cidadania moderna Cristina SeixasVilani (2002) faz uma explanação cronológica dos sistemas políticos. A explicaçãose inicia com um conceito de cidadania nascido na Antiguidade que se resume àqueleque pertence a uma comunidade cívica, perpassa por uma disposição Moderna queressalta o processo de criação e ampliação de direitos até adquirir uma dimensãouniversal. A estudiosa decorre por uma visão republicana – socialista que define ocidadão como um homem que pensa em liberdade como autodeterminação do povo;que possui um ideal de bem-estar coletivo. Finalmente estabelece o conceito de cidadãoliberal como aquele que luta intensamente pela tutela dos direitos individuais.

Vilani tece que o cidadão moderno advém desse desenvolvimento históricodos direitos civis aos políticos; dos direitos de primeira a terceira geração também

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chamado de metaindividuais. É quanto à classificação desses últimos direitos que aautora ressalta a evolução desse conceito, uma vez que o indivíduo passa a se preocuparcom a humanidade e apesar de se agrupar em categorias específicas (idosos, estudantes,religiosos etc.) ele percebe a necessidade do engajamento global. A proteção de direitosdifusos é fundamental na legitimação do Estado Democrático de Direito; ofortalecimento do sistema jurídico é derivado da execução do pluralismo, davalorização das diferenças, da igualdade de oportunidades e da prática cívica.

A participação social é o que oferece o dinamismo à norma. A própriaConstituição ao estabelecer no parágrafo único do art. 1º que “Todo o poder emanado povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termosdesta Constituição” (grifo nosso) dá margem a uma interpretação no que tange aoefetivo exercício da soberania popular, precisamente, por meio da participaçãodemocrática.

O povo é o único detentor legítimo do Poder, e isso se justifica no sentido deque a Constituição é oriunda do Poder Constituinte Originário, promulgada por umaAssembleia Nacional Constituinte, fundamento esse que justifica o sistemademocrático participativo para, além de outras coisas, se adequar ao paradigma deEstado Democrático de Direito. Percebemos a priorização desse sistema democráticoparticipativo, na recente reforma administrativa realizada no País, reforma esta quepriorizou, dentre outros fatores, uma participação acentuada do particular na discussão,gestão e execução do serviço público para o fortalecimento do Estado Democráticode Direito e consequentemente da legitimação da Administração Pública Dialógica.

A Administração Pública Dialógica é uma forma de gestão muito poucadifundida entre a população apesar de sua previsão ter nascido juntamente com aConstituição de 1988 ao prever a existência das Ações Civis Públicas e as AçõesPopulares. O conceito desse tipo de Administração Popular é tão pouco divulgado eaplicado que visualiza-se escassez de jurisprudência nesse sentido. Não há entre asdecisões jurídicas na explicito quanto à importância da participação popular nasdecisões administrativas.

3. A LIMPEZA URBANA

3.1. Uma função da Administração Pública

A Administração Pública como determina o tópico anterior surge da concessãodo poder do povo aos representantes que deverão dar prioridade aos direitos difusosem todas as suas decisões políticas. Esta concessão é feita principalmente pela CartaMagna que norteia claramente a vontade da Administração. Uma dessas funções éobjeto de estudo da presente pesquisa e está disposta a seguir:

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 119

A Constituição da República no Título VII – DA ORDEM ECONÔMICA EFINANCEIRA dispõe no seguinte art. 182 do Capítulo II – Da política urbana:

A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conformediretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funçõessociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (grifo nosso)

Há também a seguinte previsão no art. 225 do Capítulo VI – DO MEIOAMBIENTE:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum dopovo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade odever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (grifo nosso)

O texto constitucional incumbe a Administração Pública como a detentora dobem estar social, consequentemente a que possui competência no âmbito municipalde legislar sobre saneamento básico e meio ambiente. Nesse mesmo sentido dispõe oEstatuto da Cidade:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funçõessociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, àmoradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviçospúblicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativasdos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,programas e projetos de desenvolvimento urbano;

III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade noprocesso de urbanização, em atendimento ao interesse social;

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população edas atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modoa evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meioambiente.

A Lei Orgânica de Belo Horizonte prevê no art. 150 e 151 Capítulo III – DoSaneamento Básico:

Art. 150 – Compete ao Poder Público formular e executar a política e os planos plurianuaisde saneamento básico, assegurando:

II – a coleta e a disposição dos esgotos sanitários e dos resíduos sólidos e a drenagem daságuas pluviais, de forma a preservar o equilíbrio ecológico e prevenir as ações danosas àsaúde; (grifo nosso)

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Art. 151 – O Município manterá sistema de limpeza urbana, coleta, tratamento e destinaçãofinal do lixo, observado o seguinte. (grifo nosso)

Após a leitura da legislação percebe-se que a vontade da Administração Públicaé submissa à lei e que a previsão normativa não é suficiente para que o governoatenda as necessidades sociais. Logo que vivemos em uma realidade totalmente carentede iniciativas estatais principalmente quanto à limpeza urbana e todo o complexoque a envolve; como os funcionários que trabalham na coleta de lixo e a destinaçãodesses resíduos.

Konrad Hesse (1991) dispõe de forma mais clara o que era previsto por Kant.Ao examinar e ponderar a tese de Ferdinad Lassalle sobre o dever da Constituiçãorepresentar questões políticas, ele destaca que a simples formalidade da lei não garantea proteção dos direitos do homem, pois as relações de poder têm que ser aplicadas narealidade. Contudo, o afastamento total da previsão escrita gera insegurança eincerteza, não menosprezando, portanto, o valor do texto na evolução do Direito.

Hesse concebe que o texto somente se transforma em realidade com a atuaçãodo intérprete, o texto não é imutável, mas não poderá ser estático.

Aqui se enquadra a concepção de norma jurídica de Muller, o autor analisa aprópria concepção da norma metódica estruturante a partir dos métodos de interpre-tação. De acordo com Muller, ao contrário do que dispõe as teorias positivistas (asnormas e os institutos como um ato de vontade do Estado e que precisam ser obede-cidas independentemente dos dados históricos e da própria sociedade), a norma con-cretiza-se a partir da aplicação da prescrição normativa ao fato real, o teor legalrepresentará o limite dessas soluções, deve-se procurar no caso real o elemento nor-mativo que não pode ser eliminado sem que a situação sofra substancial transforma-ção.

A norma para Müller é, portanto, a junção do âmbito da norma (prescriçãolegal) e sua aplicação. Sem a aplicação das normas analisadas acima não há que sefalar em norma jurídica e, portanto, em concretização de normas que dizem respeitoà política urbana.

Esta colocação confirma-se a partir do exposto acima; a Constituição daRepública, o Estatuto da Cidade e a Lei Orgânica determinam que são funções doEstado preservar o meio ambiente e buscar uma finalidade certa ao lixo produzidonas cidades; todavia, o que observamos, em Belo Horizonte especificamente, é umaenorme quantidade de resíduos descartados no espaço público.

Percebemos, ainda, não haver por parte do Estado uma conscientização eficienteda população como determina a lei. Grande parte do lixo recolhido é remetida a umaterro sem que haja a reciclagem, como expõe a legislação. A destinação do lixo é

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uma realidade muito problemática não só para Belo Horizonte como para todo opaís, para se ter uma ideia da gravidade do problema, segundo o Manual do Instrutor(2006) do total de lixo coletado 55% é jogado em áreas alagadas e lixões a céuaberto; 35% são enterrados em aterros adequados e apenas 10% vai para usinas dereciclagem e compostagem.

Nesse sentido é essencial a contribuição das associações civis nas soluçõesdesses problemas, pois além de representarem um poder fiscalizador local estes grupospassam a ser a própria gestão administrativa do lugar.

Um dos instrumentos da gestão administrativa é o corporativismo surge2 coma precípua função de amenizar a realidade presenciada por indivíduos que não possuemamparo estatal, e, portanto, são incapazes de viver dignamente. O movimentoaconteceu no Brasil data de 1847 quando foi fundada a primeira cooperativa no Paranádenominada Colônia Tereza Cristina.

Em Belo Horizonte. Fatigados os moradores de rua e catadores de lixo, fatigadosdo cenário de exclusão em que viviam, e possuindo apenas, como meio desobrevivência a coleta de lixo resolveram se associar para serem reconhecidos comouma categoria. Esta seria a única de solucionar seus problemas. A ASMARE –Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de BeloHorizonte é uma associação organizada por estes cidadãos marginalizados que até opresente momento tem bom êxito.

Hoje os integrantes da ASMARE adquiriram novamente respeito social e sãovistos como cidadãos, principalmente por estarem contribuindo para a formação doDireito. A iniciativa da ASMARE inseriu esses indivíduos em um sistema claro deAdministração Dialógica, pois esse grupo pode participar de uma decisão resolutivapara um problema que os afetava diretamente.

Nesse ponto é que verificamos a aplicação do disposto pela Teoria Discursivade Habermas (2004) e que propõe a abertura de canais deliberativos aos vários atoressociais frente ao Estado. O autor fundamenta o valor da participação popular e dodiálogo sociedade – Estado para a legitimação normativa. Habermas entende quedeve existir em um Estado Democrático de Direito o agir comunicativo, ou seja, oentendimento entre falantes e ouvintes decorrente de um consenso sobre algo emcomum no universo que os envolve.

Ainda Ressalta Habermas que o corpo político se constitui de pessoas que seidentificam mutuamente como portadoras de direito recíprocos, o reconhecimento

2 Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável. Cartilha. Belo Horizonte: Minas Gerais,2004.

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de todos esses direitos pelos cidadãos fundam-se em leis, estas para serem legítimastêm de garantir o acesso de todos aos mesmos níveis de liberdade, inclusive os departicipação e resolução dos problemas sociais por eles enfrentados. O referido autorprossegue afirmando que a soberania do povo, somente tem espaço no processodemocrático. Dessa forma, atinge a consolidação jurídica de seus pressupostoscomunicacionais, se esta soberania popular tiver por fim precípuo a validação dopoder criado através da comunicação.

A democracia participativa, analisada sob o viés da teoria do discurso, assenta-se na garantia de acesso a qualquer indivíduo em pleno gozo de seus direitos políticos.Direito esse de exercer, em todos os graus, a liberdade de participação nas discussõese resoluções de problemas atinentes à sociedade no qual esses indivíduos estãoinseridos. Com efeito, a democracia participativa demanda para a sua efetivaconcretude, a ação da soberania popular pelo instrumento dialógico.

A manifestação de diversificadas ideias num ambiente público propício àdiscussão das questões sociais favorece, inicialmente, a canalização das opiniõespara um ponto comum. O consenso entre os debatedores resulta, dessa forma, emsoluções racionais plausíveis para os problemas sociais enfrentados.

A Democracia Participativa representa a concretização da soberania popularao conferir ao cidadão o direito de participação nos canais deliberação onde expondosuas ideias e ouvindo a de outros é capaz de construir um consenso na tomada dedecisões.

A parceria da Prefeitura de Belo Horizonte e da ASMARE é um modelo eficazde Administração Pública Dialógica, pois redes solidárias, como esta, são construídasem um contexto de muitos embates, principalmente com o poder público, mas oresultado desse processo de organização é sem dúvida altamente benéfica a váriosramos da sociedade.

Percebe-se que a criação da ASMARE, a partir de um canal de comunicaçãosociedade-Estado, proporcionou empregos de qualidade a milhares de brasileirosociosos e muitas vezes marginalizados. Ademais a reciclagem do lixo feita por essegrupo atribui renda a um produto que não possuía o menor valor de mercado diretode gestão por parte do indivíduo e proporciona a este autonomia na solução deproblemas por ele vivenciado como a questão do desenvolvimento da sociedadesustentável, além disso, a ASMARE representa um meio que antes não era aproveitávelhoje produz capital que é investido na própria sociedade.

Felizmente os cidadãos parecem se conscientizar da importância da criaçãodessas associações e cooperativas na concretização do Estado Democrático de Di-reito, pois a iniciativa dessa junção torna esses cidadãos mais poderosos frente ao

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Estado. O agrupamento em busca de uma meta comum implica em debate e contes-tação meios fundamentais para a verificação da validade e concretização de umanorma.

4. CONCLUSÃO

A partir da identificação do funcionamento local de um canal de comunicaçãoentre Estado-sociedade, especificamente a ASMARE, o presente artigo buscoudemonstrar a possibilidade da criação de uma relação dialógica entre o Poder Públicoe a iniciativa privada realmente eficaz, e como a efetivação da soberania popularposta constitucionalmente avançou pelos instrumentos concebidos pelo Estatuto daCidade.

O estudo embasado na análise da concretização de dois direitos fundamentais,ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à cidade sustentável, evidenciou arealização da gestão democrática de espaços urbanos.

Foi possível identificar um grau satisfatório de concretização do princípio daeficiência da Administração Pública. A partir da análise das políticas públicas delimpeza urbana implementadas pela prefeitura de Belo Horizonte e pela ASMARE.Concluímos que as teorias concretista de Muller, e discursiva de Habermas contribuempara a fundamentação teórica desse movimento de efetivação da democraciaparticipativa.

Da mesma forma, constatou-se a importância da proposição de ações ou projetosque visem à difusão do desempenho da Administração Pública. A necessidade dadescentralização gestora, e de repasse aos grupos sociais organizados da gestão dosprogramas sociais. Ao passo que à Administração Pública caberia apenas a fiscalizaçãodessas atividades. Essa situação acarreta, certamente, a concretização das funções edas normas que regem o Poder Público.

Em que pese a abertura para o canal de comunicação público-privado, énecessário que a iniciativa deva partir tanto do Estado quanto da sociedade, havendouma reciprocidade de interesses entre as partes envolvidas na deliberação das questõessociais. O Estado precisa estimular os cidadãos a se agruparem ou associarem parafacilitar a organização da entidade civil, ao passo que os cidadãos cientes do exercíciopleno da cidadania, precisam participar das deliberações públicas.

Portanto, uma das soluções apontadas para a edificação de um novo paradigmade Administração Pública eficiente e eficaz, é sem dúvida instituir mecanismos capazesde fortalecer a democracia participativa em que o povo seja o verdadeiro detentor dopoder, o que nada mais representa do que a ‘governança participativa’.

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A Educação Jurídica Popular ComoInstrumento do Direito à GestãoDemocrática da Cidade: a PráticaExtensionista na Busca por uma ParticipaçãoPopular Efetiva

LÍVIA GIMENES DIAS DA FONSECA

Graduada na Faculdade de Direito do Largo SãoFrancisco da Universidade de São Paulo. AssessoraTécnica da Comissão de Anistia/Ministério daJustiça.

MARCO AURÉLIO PURINI BELÉM ESTACY NATALIE TORRES DA SILVA

Graduandos da Faculdade de Direito do Largo SãoFrancisco da Universidade de São Paulo. Membrosdo Grupo de Regularização Fundiária emParaisópolis. Projeto Aprender com Cultura eExtensão da USP.

RESUMO: Neste artigo, o Grupo de Regularização Fundiária em Paraisópoliscompartilha as dificuldades enfrentadas na efetivação da participação popularem diversas instâncias (Conselho Gestor da ZEIS e Associação Projeto Moradia)do processo de urbanização e regularização fundiária nessa comunidade; bemcomo, reflete acerca das possibilidades e limites da Educação Jurídica Popularcomo instrumento de capacitação para exercício do direito à gestão democráticada cidade. O presente trabalho avalia em que medida o uso da educação decaráter emancipatório conjugada com a litigância em ações coletivas de“usucapião” pode contribuir para que a população participe de maneira efetiva enão simplesmente legitime um modelo de planejamento desigual e acabe porimplementar políticas que reproduzam a segregação e a exclusão nas cidades. Aexperiência existencial dos indivíduos que vivem nas cidades se constitui dentrodas fronteiras do anti-diálogo, na relação estrutural, rígida e vertical de centro eperiferia, em que os que compõem os estratos mais baixos são consideradosinferiores. Esse contexto de opressão gera um modelo de produção do territórioe do conhecimento que tem no homem e na mulher da periferia a descrença, asubestimação de sua capacidade de assumir o papel de sujeito, tudo isso fomentanesses indivíduos uma postura paciente e dócil, enquanto o ato de conhecer e

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participar do planejamento urbano deveria supor uma postura exatamente oposta.Em tal acepção, as atividades de extensão possuem um papel na diminuiçãodessa opressão ao aproximar o conhecimento produzido nas Universidades como conhecimento popular de maneira não hierarquizada, empoderando a populaçãopara que exerça seus direitos enquanto legítimos sujeitos políticos.

INTRODUÇÃO AOS INSTRUMENTOS DE GESTÃO DEMOCRÁTICADAS CIDADES

Uma nova ordem jurídico-urbanística foi inaugurada em nosso país com aConstituição Federal de 1988. A criação de um Capítulo denominado “Da PolíticaUrbana”, em seus artigos 182 e 183, marcou a constitucionalização do DireitoUrbanístico, dando um claro alcance de Direito Público para normas que regulam ouso, a ocupação, o parcelamento e a gestão do solo urbano, antes tratadas unicamentepelo viés civilista.

Esses capítulos só foram regulamentados anos mais tarde, com a edição doEstatuto da Cidade – Lei Federal nº 10.257/01. É importante frisar que tanto o Capítuloda Constituição quanto sua lei regulamentadora só foram normatizados devido àpressão e articulação, principalmente, de movimentos sociais e ONGs junto ao FórumNacional de Reforma Urbana (FNRU).

Por ser fruto de um processo de construção com atores comumente negligen-ciados dos processos de elaboração de políticas urbanas, o Estatuto da Cidade foiexplícito e enfático na necessidade de construção da política urbana por meios deprocessos públicos e participativos – e não meramente estatais, transformando esta ques-tão em um dos princípios mais caros ao Direito Urbanístico, o da “Gestão Democráticadas Cidades”, expresso no artigo 2º, II da Lei Federal 10.257/01 quando da “formulação,execução e implementação de planos, programas projetos de desenvolvimento urbano.”

Dessa forma, o Plano Diretor, que é “o instrumento básico da política dedesenvolvimento e de expansão urbana”, obrigatório para municípios com mais devinte mil habitantes (Constituição Federal, art. 182, § 1º), foi, com a edição do Estatutoda Cidade, transformado, necessariamente, em Plano Diretor Participativo, pois éobrigatória a realização de audiências públicas quando da elaboração da lei municipal,conforme dispõe, expressamente o art. 40, § 4º, III, do Estatuto da Cidade.

O Plano Diretor Estratégico (PDE) do município de São Paulo – Lei Municipal13.430/02 – também foi construído a partir dos mesmos princípios do Estatuto daCidade, inclusive o da “gestão democrática”. Prova disso é seu art. 7º, XII, que define,entre os seus princípios, a “participação da população nos processos de decisão,planejamento e gestão”.

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A Lei Municipal definiu também as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS),“porções do território destinadas, prioritariamente, à recuperação urbanística, à regu-larização fundiária e produção de Habitações de Interesse Social – HIS ou do Merca-do Popular – HMP”, (art. 171, caput, da Lei Municipal). Continua a Lei Municipal,em seu art. 175, VI, esclarecendo que cada ZEIS deverá estabelecer um Plano deUrbanização, por Decreto Municipal, que deverá prever formas “de participação dapopulação na implementação e gestão das intervenções previstas” e continua, no §1º: “Deverão ser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores compostos porrepresentantes dos atuais ou futuros moradores do Executivo, que deverão participarde todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e de sua implementação”.

1. O GRUPO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE PARAISÓPOLIS

A partir destes pressupostos foi firmado em 2003 um convênio entre a PrefeituraMunicipal de São Paulo e o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP,dando origem ao “Grupo de Regularização Fundiária de Paraisópolis” – um projeto-piloto de extensão universitária com o objetivo de promover regularização fundiáriaem uma área (quadra) da Comunidade de Paraisópolis, localizada na zona Sul domunicípio de São Paulo.

Devido aos princípios do direito urbanístico, as normas municipais e federaissobre o assunto e convicções políticas dos membros do grupo foi decidido realizar aregularização fundiária na comunidade a partir de ações de Usucapião Coletivo –instrumento previsto no Art. 10 do Estatuto da Cidade. Decidiu-se também, juntamentecom os moradores, fundar uma associação de moradores com os autores das ações –a Associação Projeto Moradia – que atuaria como substituta processual nas ações deusucapião coletivo. A partir da Associação Projeto Moradia e das ações de usucapiãocoletivo fazemos reuniões mensais com os moradores e as moradoras de Paraisópolis,discutindo os problemas da área e sua possível solução, num processo de incentivo àgestão coletiva do espaço. Além disso, incentivamos a participação dos associados eassociadas nas reuniões do Conselho Gestor de Paraisópolis, por ser um espaço dediscussão da urbanização de toda a coletividade residente naquela área e departicipação do poder público, sendo, portanto, um espaço de pressão da comunidadepara a efetiva implementação de políticas públicas urbanas.

2. RECONHECENDO AS DESIGUALDADES E OPRESSÕES NAPRODUÇÃO DA CIDADE

A experiência existencial dos indivíduos que vivem nas cidades se constituidentro das fronteiras do anti-diálogo, na relação estrutural, rígida e vertical de centroe periferia composta pela própria geografia, em que os que compõem os estratos

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mais baixos da sociedade são considerados inferiores. Esse contexto de opressão emque essas pessoas se encontram se reflete num modelo de produção de conhecimentoe de produção da cidade. No homem e na mulher da periferia há a descrença, asubestimação da sua capacidade de refletir, de sua capacidade de assumir o papel desujeito de procura do saber, o que faz com que seja exigida destes indivíduos, pormuitas vezes, uma postura paciente e dócil, quando o ato de conhecer supõe umapostura exatamente oposta.

Desta maneira, a produção de conhecimento na sociedade moderna adota ummodelo da “não-existência”, ou de outra forma, da “monocultura do saber” em que,nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, há a “transformação da ciência modernae da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente(...) Tudo que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente”1. Nestadireção, há uma separação absoluta entre conhecimento cientifico e outras formas deconhecimento do senso comum ou estudos humanísticos2, tendo na ciência catedráticaa única forma de produção de conhecimento considerado válido.

Em contraposição a este modelo, Boaventura propõe o exercício de umasociologia das ausências que implique na identificação das experiências produzidascomo ausentes de forma que se tornem presentes como “alternativas as experiênciashegemônicas”, que possam ter a sua credibilidade discutida e argumentada e possamser objeto de disputa política3.

Nesta mesma direção, se propõe também a substituição da “monocultura” pela“ecologia de saberes” em que se considera que “toda a ignorância é ignorante de umcerto saber e todo o saber é a superação de uma ignorância particular”4, que não háepistemologias neutras e que estas devem ser produzidas no exercício prático doconhecimento observando seus impactos em outras práticas socais5.

3. A EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR COMO INSTRUMENTO DEEFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA

As atividades de educação jurídica popular (extensão universitária) possuemum papel essencial no rompimento com a forma hegemônica de produção do

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: CortezEditora, 2006, p. 102-103.

2 Idem, p. 25.3 Idem, p. 1044 Idem, p. 106.5 Idem, p. 154.

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conhecimento científico ao colocar em contato o conhecimento produzido nos bancosdas Universidades com o conhecimento popular.

Desse modo, os dados da realidade fática, que a extensão emancipatóriarealizada nas Faculdades de Direito proporciona conhecer quando estimula nos(as)universitários(as) a busca de soluções aos problemas e conflitos sociais postos,alimenta a investigação sobre os possíveis significados e representações da realidadedentro de um campo teórico e os produtos dessa investigação são aproveitados paraa transmissão de um conhecimento dinâmico que se atualiza e, em lugar de permanecerapegado aos seus roteiros conhecidos, abre-se para novas formas de interpelar econhecer seu objeto de estudo6.

No aprendizado do Direito em questão, trata-se da quebra de uma visãohegemônica normativista sobre o direito e sobre a sociedade que serve para ocultar arealidade humana contraditória, conflitiva e injusta que acaba por impedir a percepçãodo direito como instrumento de superação de uma realidade injusta e de exclusãosocial.

Dessa forma, a concepção da educação como atividade supostamente neutrainstrumentalizada para a reiteração de um ideal de Direito em forma de lei edesprendido da construção social e das implicações históricas transforma as pessoasem objetos despolitizados das decisões do Estado. A construção de um saber jurídicoemancipatório só pode ser feita de forma coerente com uma educação que tambémesteja a serviço da emancipação de homens e mulheres.

Assim, a experiência do projeto de “Regularização Fundiária” da comunidadede Paraisópolis, apesar da preocupação inicial do grupo ser a viabilização litigiosa daregularização das moradias do bairro, na relação com os(as) moradores(as) da região,percebeu-se que direitos fundamentais, tais como o direito à moradia, tratados atravésde uma ação judicial coletiva, comportam estratégias que devem superar a meralitigância judicial.

Isto em razão do fato de que aqueles e aquelas que vivem em habitaçõesconsideradas “irregulares” sentem-se como indivíduos “ilegais”, ou seja, como relataBoaventura, vêem como perigoso trazer a situação ilegal da comunidade à atençãodos serviços do Estado, pois isto poderia levá-lo a lhes “jogar na cadeia”. O autordemonstra que pessoas que vivem nessas condições não buscam a polícia e/ou PoderJudiciário para a resolução de seus conflitos internos o que acarreta na criação de

6 A Constituição Federal de 1988 legitima o status da extensão como “indispensável” para o processo deaprendizagem e produção científica nas Universidades quando concede à extensão um caráter indissociável doensino e da pesquisa: “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e degestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

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uma situação de pluralismo jurídico7. Nesta direção, o mero tratamento litigioso daquestão, distanciado dos(as) moradores(as) da quadra, poderia levar a dar um uso aoDireito que reduziria os indivíduos à condição de “coisas”, roubando-lhes o direitode serem sujeitos de seu próprio discurso e destino.

Assim, o projeto passou a compor em sua atuação junto à comunidade oficinasde Educação Jurídica Popular. Entretanto, uma grande dificuldade em realizar umaverdadeira “práxis” é encontrada por muitos(as) estudantes na sua prática educativa.Para Lyra Filho, “o grau de conscientização, a sua própria coerência e persistênciadependem sempre do nosso engajamento numa práxis, numa participação ativaconsequente”8. A ação educativa para uma visão crítica do direito deve sempre estaraliada aos estudos das possibilidades dos seus discursos e de sua própria prática paraque essa seja repensada constantemente.

Uma educação para os Direitos Humanos, na perspectiva da justiça, deve sepretender “dialógica”, ou seja, deve buscar na relação dos indivíduos com o mundo asua existência à comunicação, o que é a essência do “ser da consciência”9 (aintencionalidade), e serve à sua libertação da condição de “seres para o outro” quepassa a ser a condição de “seres para si” significando a sua “autonomização”10 eempoderamento na perspectiva de se descobrirem dotados de um saber próprioindispensável para a transformação de uma normativa a que eles se encontramsubmetidos enquanto cidadãos, mas que não reflete as suas realidades. Nessa direção,os direitos formulados através da ação comunicativa da participação democráticadevem deixar a critério dos sujeitos jurídicos se querem e como querem fazer uso detais direitos11.

Desse modo, as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs) surgemcomo uma reação à redução do direito como norma e a uma forma de reflexão acercada “problemática da democracia, da cidadania e do papel das instituições (em especialo Estado) em relação ao poder”12, tendo, assim, como concepção de que o Direitodeva ser formulado através de uma prática dialógica, o que “pressupõe a recriação da

7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, In: Sociologia e Direito.São Paulo: Pioneira, 1999, p. 03.

8 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 2005 (col. Primeiros passos; 62) 12. reimpr.da 17. ed., 1995, p. 22.

9 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 77.10 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1997, p.39.11 Idem, p. 94.12 AGUIRRE, Claudia Freitas. Senso comum teórico dos juristas e saber crítico: uma leitura do pensamento de

Luis Alberto Warat. Dissertação (Monografia), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo,2006, p. 49.

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noção de Justiça e a ampliação do conceito de Direito, que não se reduzem à ordemestabelecida, mas apontam para a indisponibilidade do direito popular de auto-exercício de participação como sujeito determinante, ativo e soberano, da direção deseu próprio destino”13.

Portanto, a experiência da Regularização Fundiária de Paraisópolis é na verdadeuma “experiência de conhecimento” que busca nos conflitos e diálogos diferentesformas de saber. A tradução dessas diferentes formas de conhecimento, postas emcontato através do diálogo, “visa transformar a incomensurabilidade em diferença”14

e servem para a verificação da inadequação ou incompletude dos conceitos teóricosdo Direito que devem estar a serviço da emancipação social.

A partir desses pressupostos pretende-se contribuir com uma preocupaçãometodológica para trabalhar as questões de desigualdade e desmistificação da técnica,a fim de conferir uma verdadeira legitimidade popular à prática urbanística.

4. A ANÁLISE DA GESTÃO DEMOCRÁTICA EM PARAISÓPOLIS

Analisando especificamente a experiência de participação popular no processode urbanização e regularização fundiária no Paraisópolis, nota-se uma meraformalidade na gestão democrática, pelo espaço extremamente limitado de participaçãonas decisões.

Nossa ponderação tem início com a investigação da participação dos moradoresno processo de elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de São Paulo.Sendo o Plano Diretor peça chave da regulação urbanística das cidades, a ausênciade representantes dessa comunidade no seu processo de elaboração já macula asbases que serviram para tomada de decisão em torno dos objetivos e prioridades doPlano em relação a essa comunidade. A leitura da realidade através do olhar dosmoradores é fundamental para seleção de temas e objetivos a serem trabalhados peloPlano. A ótica da cidade pelo olhar da população não dispensa, contudo, a necessidadede que uma visão técnica e das leis seja apresentada a esses cidadãos, de modo quepossam participar verdadeiramente, sendo essencial o conhecimento dos instrumentosurbanísticos para que os objetivos do Plano possam ser cumpridos.

Pelo caráter permanente de participação que caracteriza a gestão democrática,exige-se uma distribuição democrática do poder, uma liberdade ativa, um espaçopúblico de palavra e de ação para o controle das atividades do poder público porparte dos indivíduos.

13 SOUSA Jr. José Geraldo (org.). Introdução crítica ao direito. Direito achado na rua, edição 4, vol. 1, p. 130.14 SANTOS, Boaventura de Sousa, ob. Cit, 2006, p. 104.

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Em Paraisópolis não houve uma construção do que iria ou não entrar na Lei doPlano Diretor, nem na fase inicial da elaboração do projeto de lei, nem na de deliberaçãodo texto final, embora fosse necessária a discussão pública e participativa. Para isto,seria necessário uma qualificação para a discussão, a capacitação desse grupo para odebate avançado em torno do texto e das prioridades a constarem no projeto.

Sendo essa comunidade uma Zona Especial de Interesse Social, deveria serestabelecido um Plano de Urbanização, que previsse formas “de participação dapopulação na implementação e gestão das intervenções previstas” e que deveriamser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores. De acordo com a lei essesdevem ser compostos “por representantes dos atuais ou futuros moradores, (...), quedeverão participar de todas as etapas de elaboração do Plano de Urbanização e desua implementação”. A qualificação/capacitação dos moradores, não foi priorizadanessa fase de elaboração do Plano de Urbanização e de Composição do ConselhoGestor da ZEIS. Deste modo, a hipossuficiência técnica dos moradores foi legitimadorade um Plano de Urbanização excludente, fruto de um planejamento tradicional, quenão permitiu que os moradores e moradoras participassem das decisões ou interviessemna promoção da integração da comunidade com o bairro que a circunda – é importanteressaltar que Paraisópolis é uma favela localizada no centro de um bairro de altíssimarenda em São Paulo. Além disso, o Plano de Urbanização não levou em conta asdesigualdades de género, os direitos dos idosos, perdendo uma excelente oportunidadede melhorar a condição de vida dos oprimidos da comunidade, ao não promover umapolítica urbana afirmativa.

Para exemplificarmos o que poderia ser uma política que diminuísse a opressãosobre as mulheres destacamos a previsão de equipamentos sociais de apoio às tarefasdomésticas, como lavanderias e restaurantes comunitários e espaços para creches. Equanto aos idosos, seria, por exemplo, a previsão de construção de moradias comadaptações as dificuldades cotidianas. Assim, estaríamos avançando na democratizaçãoda cidade, na medida em que seria contemplado um olhar atento as dificuldades reaisdos excluídos. O que aconteceu foi que a participação dos moradores nesse processolegitimou um modelo de planejamento desigual e acabou por implementar políticasque reproduziram a segregação e exclusão. Foram aprovadas no Conselho remoçõessem o devido atendimento habitacional, à revelia de um direito já conquistado poraqueles(as) que já ocupam a região à tempo e com requisitos suficientes para usucapira área. Sem a devida instrução sobre seus direitos, muitos saíram do Paraisópolis semo devido atendimento habitacional.

Na composição do Conselho Gestor da ZEISs temos uma peculiaridadeperversa. Conforme dito anteriormente, Paraisópolis tem em seu entorno um bairrorico, o que faz com que interesses imobiliários e do poder econômico ditem as regras

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da composição do Conselho. Isso ocorreu de tal forma que metade dos conselheirosé do Poder Público, e metade é da sociedade civil, porém a sociedade civil possui 30representantes, divididos da seguinte maneira: 3 são de ONGs, 2 proprietários deterrenos, 2 moradores do bairro de alta renda (Morumbi) e 23 moradores da favela.Tal configuração tem feito com que ao longo dos últimos anos (nos quais a Prefeituradefendeu uma política pró-proprietários) os moradores não tenham conseguido vencervotações contra o interesse dos moradores do Morumbi. Os moradores acabamdependendo da gestão que está no governo nos momentos em que seus interessesficam contrapostos aos interesses dos moradores do Morumbi.

Para exemplificar, algumas dessas derrotas, em meio a um momento conturbadode remoções e de início de grandes obras na comunidade, os moradores atingidoscomeçaram a se fazer presentes nas reuniões do Conselho; e as Secretarias (queraramente estão presentes) apareceram em peso para aprovar duas resoluções: ouvintessó terão direito a 1 minuto de fala e diminuiu para a metade da periodicidade dasreuniões do Conselho, o que aumentou a pauta e a complexidade da reunião. Ambasas resoluções tiveram rejeição plena pelos moradores da comunidade, mas foramaprovadas pelas ONGs, pelos proprietários e pelo poder público.

Defende-se neste trabalho que os Conselhos Gestores de ZEIS são espaçospara audição e defesa dos interesses daqueles que vão ser atingidos pelas intervençõesurbanísticas e que por servirem de instrumento no avanço da democratização dascidades, de maneira coerente com seu ideal, deveriam atentar em sua composição efuncionamento para questões de acessibilidade de localização e de horários; levar emconsideração a paridade de gênero; garantir o apoio às mães (com lugares para osfilhos brincarem enquanto elas participam), além da necessária capacitação e temposuficiente para expressão dos moradores. No entanto, parece demasiado distante essarealidade, na medida em que estamos lutando ainda pela não subordinação dosindivíduos, e por um sim ao diálogo15.

CONCLUSÃO

O trabalho dos estudantes do grupo de regularização fundiária de Paraisópolisprivilegia a experiência coletiva, numa prática não hierarquizada, dialógica emultidisciplinar; se baseia em um projeto pedagógico ético de luta por humanizaçãonum contexto de diálogo e troca e na indissociabilidade entre ensino, pesquisa eextensão. Por estarem comprometidos com o desafio de um direito igualitário, quegaranta direitos e não simplesmente se contente com a proclamação desses,

15 ARENDT, Hannah. The recovery of the Public World. New York: St. Martin Press, 1979, pp. 186.

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reconhecem através de sua prática que os direitos positivado quanto à governabilidadedemocrática das Cidades não são exercidos pelos excluídos. Na prática, no municípiode São Paulo, não há ainda um espaço público ensejador de participação na coisapública, com um diálogo plural que permite a palavra viva e a ação vivida, numaunidade criativa e criadora16. Por fim, se pretendemos fazer cidades mais justas eigualitárias, precisamos empoderar a população para que exerçam seus direitosenquanto legítimos sujeitos políticos, para que esses possam formular políticas quecolaborem para diminuir essa correlação desigual de conhecimento, de gênero, depoder. Dentre os marcos institucionais que constituem a nova ordem jus-urbanística,a participação popular é o principal instrumento capaz de verdadeiramente avançarna democratização da cidade. A luta pela implementação da gestão democrática, comuma efetiva participação popular, é essencial para impedir que esse instrumento tãofundamental para concatenação do objetivo de um ambiente urbano mais justo esustentável, se torne mera liberalidade, ou letra morta no nosso ordenamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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16 ARENDT, Hannah. On revolution. New York: Viking Press, 1965. pp. 217-285.______. The life of the mind, vol II. New York: Harcourt, Brace, Janovich, 1978. pp. 199-200.

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4PROTEÇÃO DO DIREITO À CIDADE,

A ORDEM URBANÍSTICA E A SUAJUDICIABILIDADE

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A Difícil Implementação dos InstrumentosUrbanísticos quando da Revisão daLegislação do Uso e Ocupação do SoloUrbano

TATIANA MONTEIRO COSTA E SILVA1

Mestre pela Universidade Estadual do Amazonas –UEA.

MAREEI ALEXANDRE LOPES2

Advogado.

RESUMO: Com a introdução da Lei Federal n. 10.257 de 2001 fez com quegrande parte dos municípios brasileiros se adequasse aos novos parâmetrosestabelecidos na referida norma, na revisão e/ou elaboração por meio dos planosdiretores. Dos vários instrumentos contemplados, ainda existe alguns limites aserem ultrapassados quando da implementação destes pelos municípios: primeiropela falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerenciamento urbano eos órgãos de planejamento, segundo pela dificuldade em delimitar os lotes urbanosonde se incidirão determinados instrumentos, com a própria questão dozoneamento. A delimitação físico-espacial do lote urbano por meio de legislaçãoespecífica na prática é de difícil implementação, seja pela ausência de algunsinstrumentos fundamentais: o levantamento aerofotogrométrico do município,o sistema integrado de informação – SIG, e os dados do perfil socioeconômicosda cidade. O presente artigo pretende demonstrar a importância de instrumentosprévios para complementar o estudo e análise de outros instrumentos quando darevisão da lei de uso e ocupação do solo: zoneamento, o direito de preempção edo IPTU progressivo no tempo, etc.

PALAVRAS-CHAVE: Plano Diretor, Delimitação, Legislação Específica,Aerofotogrometria, SIG, Perfil Socioeconômico.

1 Professora do UNIVAG – Centro Universitário, Professora do Centro Universitário – UNIRONDON, Diretorade Plano Diretor do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá.

2 Pós-Graduado em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso, Coordenadordo Núcleo de Prática Jurídicas do UNIVAG – Centro Universitário.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo mostrar a dificuldade de implementaçãodos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade, norma federal quedetermina que toda propriedade urbana deve cumprir com sua função social,especialmente por força de seu caráter sancionatório.

Contudo é sabido que a ausência de planejamento nos centros urbanos ocasionao colapso da qualidade de vida. Os instrumentos urbanísticos, quando implementados,objetivam proporcionar aos cidadãos o direito de ir e vir, a acessibilidade, a mobilidade,a moradia, o lazer e a cultura, enfim, o planejar a cidade para o amanhã.

Grande parte dos municípios brasileiros está passando por um processo deimplementação dos planos diretores, que devem compatibilizar com as normas deuso e ocupação do solo. Eis a grande dificuldade encontrada pelos técnicos e gestoresmunicipais, dada a falta de estrutura e articulação entre os órgãos de gerenciamentourbano e os órgãos de planejamento, como também pela ausência de algunsinstrumentos fundamentais prévios: o levantamento aerofotogramétrico do município,o sistema integrado de informação – SIG, e os dados do perfil socioeconômicos dacidade.

Daí a necessidade de observância das diretrizes destinadas a regular oplanejamento urbano, mesmo que referidas regras não se mostrem populares ou defácil aplicabilidade, por não atenderem interesses particulares.

1. ESTATUTO DA CIDADE E PLANO DIRETOR

A política urbana, para alguns doutrinadores, pode ser definida como ramo doconhecimento que discute e avalia, dentre outros temas, propostas de crescimento edesenvolvimento das cidades, políticas de regularização fundiária, políticas habitaci-onais, desenvolvimento sustentável, especialmente para o poder público municipal,objetivando compreender as relações entre direito, política e desenvolvimento urba-no.

O carro chefe de toda a política urbana idealizada pelo Ministério das Cidadesestá voltada para o Plano Diretor Participativo, que deve contemplar as váriasrealidades e vocações de cada município brasileiro, no âmbito do território municipal,não mais apenas no urbano. Com isso o Plano Diretor se revela um instrumentopreventivo da política urbana, tendo como atribuição prever a ocupação adequada dapropriedade urbana, garantindo assim o cumprimento de sua função social.

Esse processo democrático é um componente essencial para o plenodesenvolvimento dos centros urbanos, notadamente para aqueles com mais de 20.000

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habitantes, já que implica também articulação de diversos sujeitos e interesses, fazendocom que a participação tenha reflexos na melhoria da qualidade de vida e no bemestar dos cidadãos, conforme estabelece a Lei Federal nº 10.257, de 2001 – Estatutoda Cidade.

Conforme Fiorillo, o plano diretor obedece a dois pressupostos constitucionais:“1) tem que ser aprovado pela câmara municipal, e 2) é obrigatório para cidades commais de 20.000 habitantes.”3

O Plano Diretor propicia o combate às desigualdades e à exclusão social,promovendo a qualidade de vida e do ambiente. Pensar e planejar as cidades quecompõem a região metropolitana como um todo, para aproximar a urbanidade,valorizar a riqueza, a diversidade cultural e ambiental, dando continuidade funcionale espacial a essas cidades.

Para potencializar os planos diretores participativos, impõe-se mais do quenunca, a articulação entre o setor privado e o público, para encontrar o nível deconcentração econômica e solidariedade social, promovendo desta feita, a sustenta-bilidade urbana ambiental.

A prioridade visa a atender as necessidades essenciais da populaçãomarginalizada e excluída, que também possui um papel importante nesse processodemocrático-participativo.

Durante o processo de revisão e elaboração de alguns planos diretores, a faltade articulação e comunicação entre os órgãos de gerenciamento urbano com os deplanejamento, prejudicou e muito o resultado final, dada a ausência de informaçõestécnicas e operacionais de demandas específicas do setor, quanto a algunsposicionamentos: quais são as áreas mais adensadas da cidade? Ou, quais são asáreas estratégicas para cidade do ponto de vista do setor imobiliário? Ou, ainda,quais as dificuldades encontradas quando da aprovação dos projetos urbanísticos(potencial construtivo, gabarito) etc.

A falta de articulação fez com que alguns municípios, simplesmente instituíssemas mesmas diretrizes já contempladas no Estatuto da Cidade em seus planos diretores,não inovando, ou adotando procedimentos específicos para implementação dosinstrumentos urbanísticos, notadamente aqueles que exigem a delimitação das áreaspor meio de legislação específica.

A leitura técnica arquitetada aliada à leitura popular solucionaria dilemas en-frentados pelos Municípios, principalmente os de ordem operacional e regulamenta-dor.

3 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da Cidade comentado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2005.

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De qualquer forma, o Plano Diretor deve contextualizar a leitura popular e aleitura técnica, fixando premissas a serem executadas pelo Poder Público, visando aordenar o pleno desenvolvimento das cidades, objetivando a segurança, o bem-estare o equilíbrio ambiental, conforme diretrizes do Estatuto da Cidade.

1.1. Função social da propriedade urbana

A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funçõessociais da cidade e da propriedade urbana, de modo a evitar a utilização inadequadados imóveis; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamentodo solo, edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estruturaurbana; a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar comopólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; a retençãoespeculativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não utilização, adeterioração das áreas urbanizadas, e por fim a poluição e a degradação ambiental.

A função social da cidade tem como meta evitar a utilização inadequada, queafeta toda a coletividade, por isso o Poder Público municipal deve redirecionar osrecursos e a riqueza de forma mais justa, solidária e equitativa, combatendo asdesigualdades e a exclusão social.

A função social da propriedade urbana veio consagrada nos artigos 182 e 183do Texto Constitucional de 1988, tendo como ente principal ou realizador dessa políticade inclusão o Poder Público municipal.

O direito urbanístico, e consequentemente a função social da propriedade,sujeita-se aos mandamentos constitucionais, como assegura Figueiredo:

A disciplina urbanística da propriedade há de se sujeitar inteiramente aos princípiosconstitucionais consagradores da propriedade individual com suas limitações, no que tangeao interesse social e à função social da propriedade.4

Assim sendo, alguns instrumentos de planejamento urbanístico surgiramjustamente para corrigir o descompasso da má utilização do solo urbano, é o exemplodo parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo,a desapropriação com pagamento em títulos, direito de preempção etc.

Tais instrumentos devem compatibilizar-se com as normas de uso e ocupaçãodo solo. No caso de afronta devem se adequar aos parâmetros e diretrizes estabelecidosno Estatuto da Cidade.

4 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24.

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2. INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO URBANÍSTICO QUEPRECISAM DE DELIMITAÇÃO PARA A SUA INCIDÊNCIA

Para a incidência de alguns instrumentos contemplados no Estatuto da Cidade,há a necessidade de sua delimitação, baseada no plano diretor, bem como fixação deprazos de vigência, prazos para implementação da obrigação, condições etc., o querevela a dificuldade inicial, já que demanda informação e conhecimento.

A essa dificuldade inicial associa-se o insuficiente aparato institucional, comobem observa Negreiros e Santos:

As dificuldades de aplicabilidade estão associados ao insuficiente aparato institucional degestão urbana. De modo geral, o poder público local conta com uma incipiente organizaçãotécnica para efetivar as regras urbanísticas estabelecidas, o que resulta na dificuldade deentendimento dos objetivos do conjunto das normas urbanísticas, na dificuldade demonitoramento do crescimento urbano de acordo com essas normas e na debilidade emfiscalizar sua aplicação. Essa conjuntura de fatores, a outros mais perversos, provoca aexistência de uma cidade irregular ou ilegal, tornando a norma urbanística inócua a despeitode sua função de orientar a organização dos espaços urbanos.5

Eis o grande desafio do planejamento e da implementação dos instrumentosinstituídos no artigo 4º do Estatuto da Cidade, qual seja, a dificuldade de entendimentodos objetivos do conjunto das normas urbanísticas existentes, aliado a ausência deinformações das reais demandas e necessidades da cidade, o que dificulta a organizaçãotécnica de definir as regras urbanísticas para o presente e futuro.

Desse modo, o primeiro instrumento a ser destacado é o parcelamento, edifi-cação ou utilização compulsórios, previsto no art. 5º da Lei nº 10.257 de 2001, naqual lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar oparcelamento, edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado,subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para imple-mentação da referida obrigação.

O Poder Público Municipal não pode simplesmente instituir o instrumento,precisa especificar sua incidência (lote, lotes, áreas, vias etc.). Sobre o assunto asseguraFiorillo:

O proprietário que não atender ao regramento do meio ambiente artificial em face de seuterritório é notificado pelo Poder Executivo municipal, na forma e prazos definidos pelos §2º, 3º e 4º do art. 5º da Lei 10.257/2001, visando cumprir a obrigação, sob pena de sofreraplicação do imposto sobre sua propriedade na forma do art. 7º do Estatuto da Cidade (IPTUprogressivo no tempo) e, num segundo momento, conforme observa o art. 8º da lei quecomentamos, ser legitimado passivo em decorrência da desapropriação.

5 NEGREIROS, Rovena; SANTOS, Sarah Maria M. Dificuldade da gestão pública do uso do solo. In: Direitourbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 132.

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Caso haja o descumprimento do parcelamento, edificação ou utilizaçãocompulsórios, a sanção é o “IPTU progressivo no tempo”, outro instrumento previstono Estatuto.

Como se vê, a efetividade da norma demanda de outros fatores, e assim comoficam os municípios que elaboraram seus planos diretores, mas não especificaram asáreas de incidência do instrumento do parcelamento, ou então que as incluíram, masdeixaram de prever o IPTU progressivo?

O segundo instrumento é justamente o IPTU progressivo no tempo.

Conforme a CF, o IPTU é o imposto sobre a propriedade predial e territorialurbana, de competência privativa dos Municípios e do Distrito Federal (Constituição,art. 156, I, c/c. art. 147, in fine), excepcionalmente utilizado pela União, quanto aosimóveis situados em Território Federal não dividido em Municípios.

As hipóteses de incidências são definidas pelo Código Tributário Nacional,que condiciona a possibilidade de sua cobrança à existência de no mínimo doismelhoramentos urbanos como meio-fio ou calçamento com canalização de águaspluviais; abastecimento de água; sistema de esgoto sanitário; rede de iluminaçãopública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; escola primária ouposto de saúde a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado.

Nas palavras de Fiorillo, trata-se de um tributo ambiental, “destinado àviabilização real das funções sociais da cidade em consonância com as necessidadesvitais que asseguram a dignidade da pessoa humana (...), e não, pura e simplesmente,ao Estado.”6

Para Carrazza, seu caráter é nitidamente sancionatório, sendo um “mecanismoque a Constituição colocou à disposição dos Municípios, para que imponham aosmunícipes a observância de regras urbanísticas, contidas nas leis locais.”7

O uso de referida ferramenta é uma faculdade conferida aos municípios, que aadotarão ou não, em função de seus interesses e conveniência, mediante legislaçãoprópria, em áreas específicas definidas no plano diretor.

Mais uma vez vem a dúvida: se o município não especificou, no momento daelaboração do Plano Diretor, a área específica conforme exige o Estatuto, outra lei

6 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/2001: Lei do Meio AmbienteArtificial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 77.

7 Elizabeth Nazer Carrazza, apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo. Estatuto da cidade Comentado: Lei 10.257/2001: Lei do Meio Ambiente Artificial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2005. p. 78.

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poderia fazê-lo? Em tal situação, a norma federal que estabeleceu as regras gerais(Estatuto da Cidade) não estaria sendo afrontada.

Outro instrumento a ser analisado é o direito de preempção.

Também necessita da delimitação das áreas em que irá incidir, e em linhasgerais é o direito do Poder Público municipal adquirir com preferência imóvel urbanoobjeto de alienação onerosa entre particulares.

O instrumento refere-se apenas à alienação onerosa, abrangendo, assim, tãosomente as transferências dominiais ajustadas por meio de contratos de compra evenda. Negócios como a dação em pagamento, a permuta, a doação, herança e legadorestaram excluídos da incidência do direito.

Nos termos do artigo 26 do Estatuto da Cidade, não resta dúvida que a finali-dade do direito de preempção é social, econômico, ambiental e cultural e será exer-cido sempre que o município necessitar de áreas urbanas para: regularização fundiária;execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição dereserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implantaçãode equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer eáreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas deinteresse ambiental; proteção de áreas de interesse histórico, cultural e paisagís-tico.

Neste caso, como fica o Município que não procedeu ao levantamento daspropriedades quando da elaboração do Plano Diretor?

A outorga onerosa do direito de construir é outro instrumento a ser analisado,que também exige delimitação das áreas de incidência, via do Plano Diretor. Emsíntese, significa que o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficientede aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida do beneficiário.

O Plano Diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único paratoda a zona urbana, ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana,definindo limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento.

Nestes casos o que se questiona é como ficam os Municípios que elaboraramseus planos diretores, mas não definiram os critérios legais de incidência da outorgaonerosa do direito de construir?

Por fim, resta a análise das operações urbanas consorciadas, baseada no PlanoDiretor.

Fiorillo por meio das palavras da urbanística Raquel Rolink, nos ensina sobreo referido instituto:

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são definições específicas para uma certa área da cidade que se quer transformar, que prevêemum uso e uma ocupação distintos das regras gerais que incidem sobre a cidade e que podemser implantadas com a participação dos proprietários, moradores, usuários e investidoresprivados. O Estatuto da Cidade admite a possibilidade de que estas operações ocorram;entretanto, exige que cada lei municipal que aprovar uma operação como esta deva serincluído obrigatoriamente o programa e projetos bascos para a área, programa de atendimentoeconômico e social para a população diretamente afetada pela operação e o estudo de impactode vizinhança.”8

É instrumento pouco utilizado pelos municípios, já que estes se preocupam demodo imediatista com áreas urbanas já consolidadas, com o intuito de reverter acidade informal para a cidade formal.

Assim, o grande questionamento refere-se às alusões feitas ao plano diretor,no sentido do dever de delimitar as áreas, ou simplesmente por meio de diretrizes eprincípios indicar quais são os critérios de incidência dos referidos instrumentos.Algumas cidades brasileiras já revisaram ou elaboraram os seus planos diretores,mas em momento algum, dispuserem sobre as delimitações de tais áreas para aincidência dos instrumentos, sobra a esperança da lei específica para dirimir essesconflitos, com base nas diretrizes estabelecidas no Plano Diretor.

Além desses questionamentos, neste momento vários municípios passam porum processo de revisão ou adequação de suas normas de uso e ocupação do solo.Como conciliar a legislação específica com as leis de uso e ocupação do solo, semafrontar o Estatuto da Cidade?

Experiências e vivências de municípios que já legislaram e aplicaram osinstrumentos urbanísticos são fundamentais para a correta e precisa aplicação da leide uso e ocupação do solo e do próprio Plano Diretor, evitando, desta forma, a incorretautilização da norma.

De qualquer forma, de todos os instrumentos levantados que precisam serdelimitados para a sua incidência, convêm analisar a real necessidade do instrumentopara a cidade, dada a inviabilidade espacial e temporal.

Para auxiliar e dar suporte a essa árdua tarefa aos municípios existem osinstrumentos prévios a elaboração do plano diretor e outras normas específicas, taiscomo: o levantamento aerofotogramétrico, o sistema integrado de informação e operfil socioeconômico do município.

8 FIORILLO, Celso Antônio. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, apudROLINK, Raquel.

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3. INSTRUMENTOS PRÉVIOS: LEVANTAMENTOAEROFOTOGROMÉTRICO, SISTEMA INTEGRADO DE INFORMAÇÃOE PERFIL SOCIOECONÔMICO DO MUNICÍPIO

Em todos os casos tratados anteriormente, o poder público precisa delimitarvia do Plano Diretor, as áreas em que referidos instrumentos devem incidir.

Para tanto, é necessário a realização de procedimentos técnicos e administrativosprévios, que objetivam a correta e eficaz escolha dos locais de incidência.

O primeiro destes procedimentos é a criação e manutenção do Sistema Integradode Informação Municipal, composto por um conjunto de dados, métodos e usuáriosintegrados, possibilitando o desenvolvimento de uma aplicação precisa e capaz decoletar, armazenar e processar todas as informações relativas das diversas esferas esecretarias existentes na municipalidade.

Assim, como base de dados única, permanente, multifinalitária, deve seralimentada com informações culturais, sociais, econômicas, financeiras, tributárias,judiciais, educacionais, imobiliárias, patrimoniais, administrativas, geográficas,cartográficas, ambientais e outras de relevante interesse para o município, inclusivesobre planos, programas e projetos.

Só com base nesses dados o município é capaz de identificar, com efetividade,as áreas que demandam intervenção. A municipalidade que não detêm essa importanteferramenta está em prejuízo, já que não detém dados imprescindíveis para olevantamento do plano diretor e sua efetiva implementação.

Além do mais, a informação também deve ser disponibilizada à sociedade demodo geral, já que é um dos “elementos essenciais no rumo a uma democraciaparticipativa efetiva,” como bem assegura Prestes.

Continua a autora: “os municípios, sendo o ente federado que interage com apopulação, na medida em que o povo vive e se relaciona nos mesmos, têm maiorescondições de fazer deste princípio práxis.”9

Outro instrumento prévio fundamental é o perfil socioeconômico damunicipalidade, dada a sua natureza informativa sobre dados relevantes do perfil dasociedade que integra o território do município.

Serve como instrumento de pesquisa, planejamento e para a elaboração deplanos, programas e projetos a serem realizados, tanto na esfera privada ou pública.

9 PRESTES, Vânesca Buzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental.In: Temas de Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 236.

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Os dados do perfil socioeconômico compreendem aspectos históricos,caracterização do território, aspectos demográficos, aspectos econômicos, aspectosurbanos, aspectos sociais, infra-estrutura e serviços, administradores municipais etc.

Informações que garantem a identificação das regiões que mais crescem nacidade e demandam maior cautela em termos de planejamento, bem como dadosrelativos a expedição de habite-se, alvarás, e outras situações.

Com esses dados, e com base na infra-estrutura existente da localidade, omunicípio pode analisar o aumento de potencial e melhor delimitar as áreas deincidência dos instrumentos sancionatórios.

Por fim, o levantamento aerofotogramétrico, ferramenta recente e precisa quemapeia a cidade por meio de fotos em alta escala e com a digitalização dos dadoslevantados. Consiste no mapeamento da cidade, com base em fotografias áreas doterritório do município.

É uma ferramenta que torna eficaz o processo de gestão do município, incluin-do a área urbana e rural. Atualiza também o cadastro multifinalitário e o geoproces-samento, fazendo o reconhecimento do monitoramento e controle territorial,permitindo o avanço em todas as áreas do município, principalmente para o planeja-mento urbano. Por meio do levantamento, podem ser “identificados os mananciais,as áreas de preservação da mata atlântica, planejar a elaboração de novas linhas deônibus, ampliação de escolas, recolhimento de lixo, e afins.”10

CONCLUSÃO

O Plano Diretor não é uma regra que simplesmente pode ser copiada, já quedemanda certas particularidades, para quais nem todos os Municípios brasileiros estãopreparados.

A informação, com se vê, é elemento essencial, e deve ser obtida pelosnominados instrumentos prévios, atividade que demanda não apenas tempo e recursos.

Sem profissionais devidamente preparados, com visão abrangente da realnecessidade e utilidade de cada um dos instrumentos contemplados no Estatuto daCidade, o Plano Diretor pode acabar se transformando em uma verdadeira arapuca,capaz de comprometer o desenvolvimento e a qualidade de vida de determinadapopulação.

Os dados técnicos e as demandas reais do município é que colocarão as diretrizesdos instrumentos urbanísticos auxiliados pelas ferramentas prévias, determinando as

10 http://www.jornalmetas.com.br/hp/index.asp?p_codmnu=1&p_codedo=70&p_codnot=3508

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áreas de incidência dos instrumentos tratados, sem afrontar as diretrizes do Estatutodas Cidades, compatibilizando-as com as da lei de uso e ocupação do solo.

A constante revisão das normas urbanísticas são imprescindíveis para a gestãodas cidades e o pleno ordenamento do solo urbano, dada a dinâmica e peculiaridadede cada Município.

REFERÊNCIAS

CARRAZA, Elizabeth Nazer apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo. Estatuto da cidade Comentado: Lei10.257/2001: Lei do Meio Ambiene Artificail. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2005. p. 78.

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da cidade Comentado : Lei 10.257/2001: Lei do MeioAmbiene Artificail. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 77

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24.

NEGREIROS, Rovena; SANTOS, Sarah Maria M. Dificuldade da gestão pública do uso do solo. In:Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 132.

PRESTES, Vânesca Buzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matériaambiental. In: Temas de Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 236.

http://www.jornalmetas.com.br/hp/index.asp?p_codmnu=1&p_codedo=70&p_codnot=3508.

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Política Habitacional no Rio de Janeiro:Dez Anos de Morar Sem Risco(1994 a 2004)

ROBERTO JANSEN DAS MERCÊS

O artigo trata especificamente de um momento na história da política habitaci-onal no município do Rio de Janeiro, o Programa Morar Sem Risco desenvolvido noperíodo de 1994 a 2004 – desde sua criação até o referido ano; sendo extinto em 2006– pela Secretaria Municipal de Habitação (atual Secretaria do Habitat a partir de2006), órgão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. É importante ressaltar que oPrograma, inserido dentro da política municipal de moradia, volta-se para a popula-ção de baixa renda, cujo alcance da remuneração mensal, em sua maioria, não ul-trapassa aos três salários mínimos. Podemos aqui observar a única preocupação de maiorimportância dentro deste universo que a cidade conheceu durante o período assinalado.

Inicialmente as manifestações da crise da moradia são percebidas nas primeirasdécadas do século XIX – habitação popular assunto atual e problema muito antigo –na paisagem das cidades brasileiras, mais do que do déficit habitacional e ainadequação de domicílios, dão evidência que expressam a permanência da questão,mesmo com o esforço da prefeitura aquém da efetiva dimensão do problema. A questãohabitacional atinge de forma aguda as camadas de baixa renda e é ainda incipienteem enfrentar a base de sua explicação de natureza profundamente injusta, adesigualdade da formação social brasileira, a mais conhecida e reconhecida é a darenda, que mantém um contingente da população excluída, além de padrões mínimosde cidadania e com pouco alcance no resgate social.

A cidade tem graves problemas para enfrentar no campo da habitação e dainfra-estrutura urbana, a partir da ocupação pela população pobre das áreas aindadisponíveis, encostas, margens de rios, em cima de túneis, embaixo de pontes eviadutos, estabelecendo-se desde o início, relações de interdependência econômica,política e social. Nos dez anos do período de estudo do presente artigo, a administraçãomunicipal enfrentou o desafio de reverter o quadro de degradação dos espaços públicos

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da cidade. No que diz respeito às questões de moradia e habitação, o problema jávinha sendo observado mais detalhadamente desde a década de vinte, quando o PlanoAgache foi desenvolvido, apesar das realizações não terem sido tão eficientes nasolução do problema.

A questão da habitação, no contexto social brasileiro, vem apresentando umasérie de políticas setorizadas, com a finalidade de “sanar” essa problemática. Asprimeiras tentativas de resolução iniciaram-se no governo populista de Vargas etiveram prosseguimento, mas sem êxito. Em, 1964, durante a ditadura militar, surgeo Banco Nacional de Habitação – BNH – “criado com a competência de orientar,disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da Habitação e promover a construção ea aquisição da casa própria, especialmente pelas classes de menor renda” (COVRE,1995:48). Esse propósito não foi efetivamente consolidado durante a sua execução,mas é considerado um marco histórico na trajetória das políticas habitacionaisbrasileiras.

Outro problema relacionado ao “morar”, foi o surgimento e desenvolvimentode áreas favelizadas ocasionadas pelo êxodo rural e gerando um inchaço urbano (apartir da década de 30) como um problema social. E, no Rio de Janeiro, houve acriação de uma série de programas destinados a modificar esse quadro social; foramcriados os parques proletários, conjuntos habitacionais e órgãos como a Cehab, aCompanhia de Desenvolvimento de Comunidade – o Codesco –, o Chisam, além deprogramas como Promorar, Cada família um lote, entre outros.

Inicialmente foram articuladas políticas de remoção das favelas (a partir dadécada de 60), mas como essa atuação gerou animosidades, conflitos e reivindicaçõesdos próprios moradores, o poder público reformulou seu objetivo e adotou então apolítica de urbanização das favelas (a partir da metade da década de setenta até nossosdias), cujo destaque refere-se ao Programa Favela-Bairro. O quadro habitacionaltambém possui outra nuance: a partir de meados de noventa, com a consolidação daspolíticas neoliberais, a ausência de políticas públicas e o corte nos gastos sociais,observa-se um contexto de acirramento da pobreza e conseqüente agudização doquadro de exclusão social, que atinge as grandes metrópoles.

Logo, verifica-se que “dentre a população de mais baixa renda do município,inclui-se uma parcela que (sobre) vive em condições de extrema pobreza, para a qualaté mesmo o morar autoconstruído, do mercado informal, se torna inacessível. Restamentão as calçadas, praças e viadutos, espaços da rua que vão sendo cada vez maisocupados por aqueles que não têm onde morar” (RELATÓRIO IPLANRIO, 1988).Essa é a população-alvo do programa Morar Sem Risco, além daqueles que se encontraem favelas situadas em área de risco, sendo a proposta principal a melhoria daqualidade de vida.

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INTEGRAÇÃO URBANA

As várias ações governamentais, no Rio de Janeiro, voltadas para a melhoriade vida das populações de baixa renda como ponto de partida mais recente o final dosanos setenta. A partir desta década, inúmeras famílias em processo acelerado depauperização começaram a ocupar as encostas dos morros da cidade fugindo dosaltos aluguéis e em busca de novas modalidades de moradia. Nos anos seguintes, aespeculação imobiliária chega às favelas impedindo a muitos esta alternativa, levando-as a moradias em áreas altamente degradadas e de risco como viadutos, beiras derios, encostas com risco iminente de desabamento e logradouros públicos. Aindahoje, existem no município milhares de famílias ocupando estas áreas.

As ocupações em áreas de risco caracterizam-se por condições de vida abaixodos padrões mínimos. Fatores sócio-econômicos e culturais empurram as populaçõespobres para espaços totalmente degradados, sem qualquer infra-estrutura, onde aprecariedade das moradias e a agressão ao meio ambiente formam um quadrodramático de miséria absoluta. Fruto de vários fatores, mas principalmente doacirramento da pobreza, o número de favelas saltou de 372, em 1983, para 623, umadécada depois, num crescimento seis vezes maior que o da população do municípiodo Rio de Janeiro. Foi neste contingente, que o número de famílias em áreas de risco,foi estimado em sete mil, sobrevivendo em 324 áreas em situação de risco, incluindodezesseis viadutos. Diante da inviabilidade de soluções cabíveis para a permanênciadas moradias nos locais citados acima e a falta de recursos próprios da populaçãoenvolvida, criou-se o Programa Morar Sem Risco que visa atender a estas populações,reassentando-as em locais seguros, preferencialmente próximos aos já ocupados, apartir de uma ação conjunta entre prefeitura e moradores.

Vale lembrar como amadureceu este processo de oferecer a populaçãoalternativa para a solução de seu problema habitacional em função da situação derisco em que se encontra, proporcionando condições mais seguras de habitação,buscando assim a melhoria da qualidade de vida.

DESENVOLVIMENTO SOCIALA Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) foi criada, em

1979, com o objetivo de atuar na promoção do bem-estar social “com vistas a eliminarou reduzir os desequilíbrios sociais existentes” (Lei Municipal nº 110, de 23/08/1979). Para operacionalização de suas atividades, a SMDS foi dotada de uma estruturainterna formada por órgãos de direção superior, órgãos de apoio administrativo e trêscoordenações – Desenvolvimento Comunitário, Bem-Estar Social – que deram origemao Programa de Educação Comunitária e ao Projeto Mutirão Remunerado,respectivamente – e Regiões Administrativas.

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A criação da SMDS ocorreu numa época em que tomava impulso o processode redemocratização da sociedade brasileira. Diversos setores sociais, particularmentenas grandes cidades como o Rio de Janeiro, voltaram a se organizar e reivindicarmaior participação nos frutos do desenvolvimento econômico. Pode-se concluir quea criação daquela secretária surge do processo de redemocratização e da necessidadedo poder público carioca de fazer face ao crescimento das reivindicações dos setoresmais desfavorecidos da sociedade. Também durante este período, o acumulo dosmais variados programas e projetos em áreas distintas – educação, saúde, saneamentobásico, geração de renda, reflorestamento, entre outras – gerou críticas feitas às açõesda secretaria. Ela estaria servindo para consolidar uma situação de injustiça social, namedida em que implicavam um tratamento discriminado às populações de baixa renda.Esta crítica quanto à qualidade dos serviços que presta e ao seu papel na administraçãopública municipal. Era tida como uma Secretaria dos Pobres que incorporava váriasminissecretarias para atender a população desfavorecida naquelas diversas áreas. Acrítica faz sentido quando se leva em consideração que o modelo econômico adotadono Brasil foi altamente concentrador de rendas e que a prestação de serviços públicosem geral atingiu apenas parcelas reduzidas da população.

Apesar deste quadro ela representou um primeiro esforço no sentido de levaros serviços públicos a essa parte da população, o que por si só já representava umamudança na orientação da administração pública. Caso houvesse a opção de nãocriar um órgão como a SMDS, muito provavelmente a carência de serviços públicospor parte das comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro teria se agravado, e nãoteria ocorrido a inegável melhora que se verificou. E sem dúvida este tipo de trabalhocontinuará sendo necessário enquanto perdurarem as enormes disparidades sociaiseconômicas que se verificam no país. A maior prova disto foi à iniciativa destaSecretaria gerar o desdobramento de duas outras Secretarias: a do Meio Ambiente ea da Habitação. A que era uma virou três. Estas iniciativas ganharam impulso com oPlano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, de 1992, instrumento básico da políticade desenvolvimento e de expansão urbana e que estabeleceu parâmetro quefundamentam a ação do Poder Público.

BASES DA POLÍTICA HABITACIONAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIROA política habitacional do município do Rio de Janeiro se estrutura na

compreensão que a moradia é um direito do cidadão; a habitação não é só a casa, masintegração à estrutura urbana. Compatibilizar o direito individual com as possibilidadescoletiva, na construção de uma cidade melhor. O Plano Diretor Decenal da Cidade doRio de Janeiro, cuja elaboração é fruto de um amplo debate que extrapola os órgãosda administração municipal, mobilizando diversos setores da sociedade, torna-se apartir de 1992, ano de sua promulgação. A recomendação central é o reconhecimento

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da favela e a busca de integração desses aglomerados aos bairros cariocas, com aparticipação de seus moradores no processo de urbanização. A política habitacionaltem seus objetivos estabelecidos no Plano Diretor Decenal da Cidade (cap. II – art.138):

I. utilização racional do espaço através do controle institucional do solo urbano,reprimindo a ação especulativa sobre a terra e simplificando as exigências urbanísticaspara garantir à população o acesso à moradia com infra-estrutura sanitária, transportee equipamento de educação, saúde e lazer;

II. relocalização prioritária das populações assentadas em áreas de risco, comsua recuperação e utilização imediata e adequada;

III. urbanização/regularização fundiária:favelas/loteamentos de baixa renda;

IV. implantação de lotes urbanizados e moradias populares;

V. geração de recursos para o financiamento dos programas definidos no artigo146, dirigidos à redução do déficit habitacional em melhorias da infra-estrutura urbana,com prioridades para a população de baixa renda.

Para alcançar esses objetivos, serão observados alguns procedimentos básicostais como: os investimentos públicos devem direcionar-se àquelas ações próprias dacoletividade (infra-estrutura e ambiência urbana); bem como em unidade habitacionaisdevem se dar quando necessários à melhora da ambiência urbana e para enfrentarsituações de risco; e oferecimento de condições para construir em terra infra-estruturada.

Como a questão habitacional, no Rio de Janeiro, é de expressão metropolitana,sugere políticas municipais coordenadas. A implementação foi da seguinte formaatravés dos programas abaixo relacionados:

– Regularização Fundiária: regularização e saneamento

– Favela Bairro: urbanização e integração

– Novas Alternativas: vazios, fraldas e recomposição do tecido

– Morar Carioca: legislação e estimulo

– Morar Sem Risco: recompor e reassentar

MORAR SEM RISCO

A eleição de Cesar Maia para a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em1993, pelo Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democráticos – DEM), marcouuma inflexão em um longo período de domínio da centroesquerda e da esquerda na

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cidade e no Estado. A marca da passagem de Brizola pelo Rio de Janeiro é tão forteque os principais políticos em ação no estado e na cidade são egressos do seu partido(Cesar Maia também é das fileiras do PDT), como os ex-governadores MarceloAlencar, hoje no PSDB, e Anthony Garotinho, hoje, no PMDB. O prefeito CesarMaia se elegeu com um discurso que acionava elementos do “lacerdismo”, com fortesecos nas camadas médias da cidade. No seu programa de governo, ele enfatiza odiscurso sobre a ordem urbana. Cabe lembrar que o prefeito conseguiu eleger o seusucessor, o ex-secretário de Urbanismo, arquiteto Luiz Paulo Conde. O prefeito Condemanteve, em linhas gerais, a mesma política elaborada pelo seu antecessor, dandocontinuidade às suas iniciativas. Depois em disputa entre os dois, Cesar Maia comooposição é vitorioso para o segundo mandato, totalizando o período que é objeto dopresente estudo.

Para desenvolver e pôr em prática as medidas sugeridas pelo Plano Diretor foicriado, em 1993, o Grupo Executivo de Assentamentos Populares – GEAP, compostopor titulares dos órgãos municipais envolvidos de algum modo com a questão damoradia. O Grupo concebeu os vários programas que estruturam a política habitacionalaprovada pelo prefeito em dezembro de 1993. Em março de 1994, foi criada aSecretaria Extraordinária de Habitação e, em dezembro de 1994, a Secretaria Municipalde Habitação (SMH). O quadro técnico foi composto por funcionários e técnicos daSMDS, que lidavam com favelas, por uma parte dos quadros da Secretaria deUrbanismo (SMU) – ligados com loteamento –, da Rio Urbe, entre outros técnicos. Onovo governo soube aproveitar-se da capacidade técnica e administrativa acumuladaem anos de intervenção sobre as favelas e sobre os loteamentos populares, aumentandoas possibilidades de maior efetividade das ações.

A partir daí, a prefeitura definiu um plano de ação em tudo diverso da timidezcom que o Poder Público, até então, tratara os problemas habitacionais da Cidade nasdécadas anteriores. Realizaram, simultaneamente, vários programas abrangentesvoltados para diferentes aspectos da questão habitacional. Como linhas de atuaçãoforam criados os programas Favela-Bairro (que acrescentaria Bairrinho e GrandesFavelas), Morar Carioca, Regularização de Loteamentos, Novas Alternativas e MorarSem Risco (eliminar o risco de desabamento e/ou inundações; reassentar as populaçõesque moram em áreas de risco, isso quando não for economicamente viável a eliminaçãodos riscos; recuperação de espaços públicos comprometidos com ocupações irregulares(viadutos, calçadas), reassentando também os ocupantes destas áreas, através de umapolítica de reassentamento).

Para o reassentamento das famílias, a Prefeitura como opção, na maioria doscasos, utiliza as chamadas casas “evolutivas” – que dão condições de espaço paraque os moradores, com o tempo possam ampliá-las, acrescentando mais um quartoou uma área aberta. Outras possibilidades são o oferecimento de “kit material de

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construção” ou o “lote infra-estruturado mais kit” (opções em vias de revisão deatuação) e, em alguns casos, o auxílio habitacional – uma ajuda de custo para aaquisição de uma nova moradia em outro local – e as famílias que aguardam oreassentamento, o auxílio aluguel.

Os reassentamentos são feitos preferencialmente em locais já dotados de água,luz e rede de esgoto, pertencentes, em sua maior parte, à própria Prefeitura, ou emterrenos resultantes de desapropriação. Estes locais são, geralmente, próximos dasantigas residências, para que, desse modo, seja atenuado o impacto inerente àsmudanças no cotidiano das famílias. Com o mesmo intuito, a distribuição das novascasas mantém as antigas relações de vizinhança. O envolvimento da população éfundamental em todas as etapas do trabalho, pois é ela que ajuda a encontrar assoluções que minimizam os inevitáveis conflitos que surgem com a transferência dasmoradias.

IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA

A primeira intervenção do Programa nasceu de uma parceria entre as SecretariasMunicipais de Habitação e de Governo (SMG). Foi à conjugação de necessidade dasduas Secretarias, em atuar nas áreas de risco, localizadas por toda cidade; e por parteda SMG superar impasse quanto a situações de risco e insalubridade de diversasfavelas situadas na Área de Planejamento 1 (AP1), principalmente na 1a RegiãoAdministrativa, assim como trabalhar no sentido de intensificar e promover o usoresidencial do bairro do Caju, nessa Área de Planejamento, catalisando o processo dereestruturação urbana.

A favela localizada naquela Região Administrativa, chamada de Parque Con-quista, se encontrava espremida entre um vazadouro de entulho (área de propriedadeda Companhia de Limpeza Urbana – COMLURB), os muros do terreno da Viação1001, um canal e alguns containeres. Esta comunidade que em 1985 contava comsetenta barracos de madeira, sofreu intensa expansão e em 1993 apresentava o dobrode moradias. Inicialmente ocupando uma área de quatro mil quadrados, espraia-va-se por mais do que o dobro da ocupação inicial, subindo pelo monte de entu-lho, e ocupando parte da pista por onde um dia circularam os caminhões que aliderramavam os entulhos. Foi constatado que a Comlurb detinha uma extensaárea no bairro do Caju que por motivos diversos não atendia aos objetivos daCompanhia.

A disponibilidade desta área veio de encontro às necessidades dos doisprogramas do poder municipal. Para a Companhia foi apresentada uma proposta quecontemplava assentamentos, que atenderia às famílias da favela Parque Conquista,além das populações de favelas instaladas em todos os viadutos situados na AP1,

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Francisco Bicalho e Praça da Bandeira, e os moradores da Rede de Linhas FérreaFederal, ramal de Arará no Caju.

Ante esta primeira implementação, o Programa tem como função principalrecompor as áreas consideradas de risco – vias públicas (praças e viadutos); encostascom problemas geológicos; margens de rios, canais e lagoas; áreas de proteçãoambiental e florestal; emboque de túneis; faixas de proteção de via férrea e de linhade transmissão de energia – e reassentar famílias, liberando o espaço comprometidopela ocupação irregular. Atua ainda numa interface com a Defesa Civil – COSIDEC– e a Fundação Instituto GEO-RIO, sempre precedido de um levantamento sócio-econômico – cadastramento – das famílias ocupantes de área de risco.

Enfim, visa atender uma população que sobrevive em condições de estabilidadeduvidosa, cuja perda do seu referencial social, econômico e cultural, do qual precisarecuperar a sua cidadania para que consiga se administrar e, conseqüentemente,administrar sua habitação. É necessário, então, trabalho de promoção humana e social,buscando a integração destas famílias na sociedade. O programa Morar Sem Riscoobjetiva parceiros para esta função junto à Sociedade Civil, Entidades Filantrópicas,Igreja, Organizações Não Governamentais e Comitês contra a Fome, entre outras.

ATUAÇÕES DO PROGRAMA EM VIAS PÚBLICAS, TÚNEIS E VIADUTOS

A retirada de mais 1.634 famílias, que viviam sob dez grandes viadutos dacidade e seu reassentamento, é uma marca expressiva da ação do Programa MorarSem Risco. Os viadutos Figueira de Melo, em São Cristóvão, Ana Nery, em Triagem,Noel Rosa, em Vila Isabel, Viaduto de Bonsucesso (Vila Verde), e Santo Cristo, foramdesocupados em 1996. As famílias foram reassentadas. Viaduto de Coelho Neto elocal conhecido como Viaduto Malvinas – ocupação sob a linha do metrô e calçadade via pública – (Maria da Graça/Jacarezinho), em que as famílias também viviamem situação de risco, foram desocupados em setembro de 1995 e no seguinte ano,sendo reassentados nos Empreendimentos Habitacionais.

As famílias que moravam sob os viadutos Francisco Bicalho, na Praça daBandeira e da via férrea (ramal ferroviário de Arará), foram transferidas para osempreendimentos Parque Conquista e Parque Boa Esperança, respectivamente, ambosno bairro do Caju. O emboque do túnel Rebouças que foi ocupado por construçõesirregulares, o programa fez a desocupação da área, em agosto de 1995, reassentandoas duzentas e cinqüenta famílias também no Empreendimento Habitacional Portus.Na saída do túnel Zuzu Angel (na época Dois Irmãos), em direção ao bairro da Rocinha,junção com São Conrado, foram retiradas famílias que viviam sobre aquele túnel.Elas receberam auxílio habitacional para a compra de casa.

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QUESTÃO FUNDIÁRIA: ÁREAS DE ESPECIAL INTERESSE SOCIAL

Conforme a elaboração dos projetos nos empreendimentos habitacionais nasáreas de especial interesse social dos reassentamentos incluídos no programa Morarsem Risco, onde a titularidade da terra é municipal, foi considerada a necessidade dese estabelecer procedimentos específicos para a simplificação da aprovação elegalização dos projetos de parcelamento do solo e habite-se das unidades habitacionaisem áreas declaradas em lei como área de especial interesse social (AEIS).

Com a implementação do programa de Regularização e Titulação da SMH,instituído pelo Decreto nº 20.312, de 31 de julho de 2001, e com a atuação daadministração municipal na urbanização e regularização urbanística e fundiária dosreassentamentos populares do Rio de Janeiro. A Coordenação de RegularizaçãoFundiária trata da averbação das certidões e respectivos memoriais descritivos aoscartórios de registros de imóveis. As normas de uso e ocupação do solo cabem aCoordenadoria de Programação, bem como a elaboração, apresentação, análise eatendimento as exigências técnicas de projeto solicitadas pelo setor de aprovação.Obtém ainda a licença de obra de urbanização e/ou edificações na unidade da SecretariaMunicipal de Urbanismo (SMU) que atende a área onde está localizado o projeto.

Com base neste procedimento o município pretende imprimir um ritmo deregularização fundiária que dê atenção às demandas da população de baixa renda.Entretanto diversos motivos são apresentados na questão fundiária – assunto com-plexo –, onde aproveitamos para discorrer sobre o tema através de análise da arquite-ta urbanista Clarissa Moreira para os terrenos no bairro do Centro da cidade do Riode Janeiro, relativo ao programa Novas Alternativas, cujos rumos são bastante perti-nentes ao Morar sem Risco.

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIAO redirecionamento do desenvolvimento das cidades brasileiras para a busca

de modos de proporcionar melhor uso da estrutura urbana construída ao longo dosanos, através da reabilitação urbana, é uma alternativa possível e desejável.Principalmente, frente à incessante e desregulada expansão e construção nova nosmoldes cada vez menos qualificados da construção civil brasileira, em termos dequalidade de espaço urbano e arquitetônico. No entanto, esta nova forma dedesenvolvimento urbano implica rever instrumentos de regulamentação urbanística,fundiária, de formas de financiamento, de procedimentos administrativos e mesmo,de atuação dos governos e da sociedade civil. Trata-se de uma grande transformaçãono modo de fazer e de gerir a cidade. O processo de reabilitação urbana implica dotara cidade de condições favoráveis à realização e ao desenvolvimento de usos eatividades, e ainda, estimular sua implantação. Uma das condições fundamentais,

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neste contexto, é a solução de pendências em relação à propriedade do parqueimobiliário consolidado, através da regularização fundiária. E é ela um dos principaisimpedimentos ao processo de retomada das áreas – aqui se pode abrir um paralelo –ao Programa Morar Sem Risco quanto à implantação de novos usos e, sobretudo, douso habitacional, uma vez que irregularidades de propriedade e pendências jurídicasdificultam, senão impossibilitam transações imobiliárias.

Estas pendências geram obstáculos, uma vez que as exigências parafinanciamento e outros tipos de transação financeira normalmente compreendem atotal regularidade do imóvel, ou seja, a propriedade deve estar registrada, livre dedívidas, hipotecas ou quaisquer pendências sejam em nome do proprietário ou doimóvel. Numa breve análise da questão fundiária como impedimento à realização deempreendimentos habitacionais no Rio de Janeiro foi verificado no contexto dapromoção de empreendimentos habitacionais no Centro da cidade, a partir dareabilitação de imóveis. Os seguintes exemplos de impedimentos fundiários estãoentre os mais comuns:

– Imóveis sem registro. Diversas ordens religiosas ou mesmo órgãos públicos,ao lado de proprietários privados, não registraram seus imóveis ou as pesquisasfundiárias não os localizaram, o que demanda uma organização específica nestesentido, do ponto de vista cartorial; Estes tipos de impedimentos legais normalmentesó podem ser solucionados através de desapropriação. Seria aconselhável rever a leiem função do Novo Código Civil Brasileiro, que determina a apropriação aopatrimônio municipal de imóveis com dívidas de IPTU, em estado de abandono.

– A especulação imobiliária embora não seja uma questão de regularidadefundiária, diz respeito a um dos maiores obstáculos à disponibilidade de imóveispara empreendimentos.

Neste sentido, a questão da especulação imobiliária e da dimensão “intocável”da propriedade privada precisa ser abordada pela legislação urbana, considerando aquestão da função social da propriedade, prevista pelo Estatuto da Cidade. Prioridadejunto à gestão de patrimônio imobiliário público (compreendendo órgão federais,municipais e estaduais) para projetos habitacionais para baixa renda e média baixa,sobretudo em áreas centrais ou circunvizinhas. Utilização de medidas como IPTUprogressivo e outras (taxação da valorização imobiliária, etc.), a fim de desencorajara especulação imobiliária. O objetivo da presente análise não é sintetizar o tema daregularização fundiária em áreas centrais, mas reiterar a necessidade de realização deum diagnóstico aprofundado da questão fundiária e dos temas diretamenterelacionados, a fim de possibilitar a construção de uma política adequada para aimplementação de operações de reabilitação urbana. O enfrentamento da questãofundiária e dos aspectos a ela relacionados, como os citados anteriormente, é uma

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pré-condição para uma política de reabilitação urbana na escala necessária àconstituição de uma ação com a amplitude capaz de possibilitar a melhoria da qualidadede vida da população e o melhor aproveitamento do patrimônio urbano construído.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

O atual desafio para os gestores públicos é estruturar programas com o objetivode minimizarem os efeitos do processo da desigualdade social, que gera uma massacrescente de pessoas destituídas dos direitos humanos básicos, como o direito à saúde,educação, trabalho, segurança, moradia, etc. Sempre lembrando que a habitação éum direito básico da cidadania.

O respaldo está no debate internacional, desde a Declaração Universal deDireitos Humanos, de 1948, até a declaração de Istambul sobre AssentamentosHumanos, de 1996, que reafirmou o compromisso dos governos nacionais com a“completa e progressiva realização do direito à moradia adequada” e estabeleceucomo um objetivo universal que se assegure abrigo adequado para todos e que sefaçam os assentamentos humanos mais seguros, mais saudáveis e mais agradáveis,eqüitativos, sustentáveis e produtivos”. Este processo deve ser reduzido a partir daconstituição de dispositivos de inclusão social, onde a assistência não seja sinônimode assistencialismo, mas sim possibilidade de emancipação social.

Neste contexto, investir em programas de moradias é um passo fundamentalpara o resgate dos direito sociais subtraídos, assim como para a reconstrução de umnovo lugar para o indivíduo no mundo. O novo lugar é compreendido como apossibilidade de afirmação da singularidade deste contingente de pessoas “sem voz”,“sem direitos”, a partir da ruptura com as relações de tutela (com as instituições, como Estado, com o mundo) a reconstrução da autonomia e das redes de suporte social.É importante também, ao pensarmos na moradia, definir este conceito. Pensar a questãodo morar implica em redefinir sobre a relação que os indivíduos estabelecem com oespaço em que vivem, que sentidos atribuem a ele e de que forma dele se apropriam.Entendemos existir diferenças entre estar em espaços de moradia e habitá-los. Esseprocesso que caracteriza a experiência do morar.

E apesar das tendências – intervenções de urbanização e regularização fundiárianas favelas – terem sido ampliados, na medida em que se tornaram mais escassos osrecursos financeiros disponíveis para aplicação em projetos habitacionais destinadosàs famílias de baixa renda, ficando mais restritas as condições operacionais einstitucionais dos tradicionais agentes promotores habitacionais. Mesmo sendolegítima e necessária a permanência dessa linha programática, que promove aurbanização e a regularização, não devem ser excluídas alternativas de ação napromoção de moradia. E estas alternativas e programas como Morar sem Risco, assim

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como em todos os países que conseguiram, ao longo dos anos, combater a falta demoradias para a população de baixa renda, o fizeram através da concessão explícitade subsídios à aquisição das unidades. Inclusive em países mais desenvolvidos, cujaspopulações têm maior capacidade de pagamento, há a destinação de recursos a fundosperdidos para modelos com o mesmo objetivo.

Por fim, o município do Rio de Janeiro só se beneficiará em termos de ganhosambientais, sociais e urbanos, através de uma implementação efetiva do Plano Diretore o Estatuto da Cidade, com sua missão de encontrar saídas no tocante à concepção eà forma de implantação de empreendimentos habitacionais, principalmente, voltadostanto para as comunidades de baixa renda como para os demais segmentos sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acesso à Justiça e Segurança da Posse daTerra: Obstáculos Judiciais à RegularizaçãoFundiária Plena

VERA LÚCIA DE ORANGE LINS DA FONSECA E SILVA1

Advogada do CENDHEC; Pós-Graduanda emPolítica e Gestão Ambiental.

JULIANA ACCIOLY MARTINS

Advogada do CENDHEC.

DO ACESSO À JUSTIÇA

Kazuo Watanabe afirma que a garantia do acesso à justiça se traduz em “acessoà ordem jurídica justa”.

Nesse sentido, ordem jurídica justa é aquela onde todos os titulares de umdireito possam ter prestada a tutela jurisdicional de forma eficaz.

Tal entendimento já era defendido pelo Movimento de Acesso à Justiça,encabeçado por Mauro Cappelletti, onde se prega, em resumo, a efetivação dos direitosfundamentais da pessoa humana.

Em 1978, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, seguindo a tendência mundial deadequar o procedimento à realidade, propõe ao mundo jurídico, ao publicarem a obraAccess to Justice: The Worldwide Movement to Make Rights Effective2, uma novaconcepção de fazer justiça: a Justiça de Resultados.

Tratava-se de uma evolução proposta pelo conceito de acesso a justiça, admi-tindo como tarefa básica dos modernos juristas a busca do acesso real e efetivo à

1 CO-AUTORES: Mercia Alves (Assistente Social e Coordenadora do Programa Direito à Cidade); Flávia Gomes(Assistente Social); Keila Ferreira (Assistente Social); Adriana Mendonça (Arquiteta e Urbanista); AlexandrePacheco (Estagiário de Direito); Flora Pimentel (Estagiária de Serviço Social), Mônica Néri (Estagiária deArquitetura e Urbanismo).

2 No Brasil, a obra foi traduzida com o título Acesso à Justiça pela Sérgio Antônio Fabris Editor.

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prestação jurisdicional, ligando o conceito de acesso à justiça ao binômio possibili-dade e viabilidade de acessar o sistema jurídico em igualdade de condições.

A obra de Cappeletti e Garth elenca soluções práticas para o problema doacesso à justiça, classificando-as como ondas. São, na verdade, formas de suprimiros obstáculos existentes que impedem a prestação jurisdicional plenamente justa.

Conforme estes autores3, o movimento do acesso à justiça centra sua atençãono “conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimento utilizadospara processar e mesmo prevenir disputas na sociedade moderna”. Assim, essa“demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos forçou umanova meditação sobre o sistema de suprimento: o sistema judiciário”.

Em conformidade com o movimento preconizado por Cappelletti e Garth, oPoder Constituinte, ao promulgar a Constituição da República Federativa do Brasil,restabelecendo o Estado Democrático de Direito, reflete a preocupação em garantir oacesso à justiça em vários dispositivos da Carta Magna.4

Cappelletti5 analisa a dimensão social do processo, revolucionando a concepçãode acesso à justiça para uma visão tridimensional do direito. Explica o autor que odireito deve ser visto do ponto de vista do jurisdicionado, e não dos seus produdores.São os usuários dos serviços processuais que passam a ter importância fundamentalno conceito de acesso à justiça.

Sob esta visão, a partir do jurisdicionado, o jurista fica obrigado a pensar nanecessidade de resposta jurídica, ou seja, da prestação jurisdicional, e do impactoque esta exerce sobre aquele.

O movimento de Acesso a Justiça, tendo como foco de reflexão o sistemajudiciário brasileiro da atualidade, possibilita a identificação da responsabilidade doPoder Judiciário na criação e manutenção das desigualdades sociais, bem como suafunção de agente modificador da realidade.

Seguindo o clamor social para a concretização de direitos fundamentais, aConstituição Federal de 1988 estabeleceu como princípio fundamental a Dignidadeda Pessoa Humana. Esse princípio visa garantir ao indivíduo uma existência plena,com a devida efetivação de seus direitos e garantias fundamentais.

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à moradia ea função social da propriedade urbana e da cidade – princípios formadores do Estatuto

3 Mauro CAPPELLETTI, Bryant GARTH, ob. Cit, p. 70.4 A Constituição Federal de 1988 contém dispositivos que revelam a preocupação do Poder Constituinte em

garantir o acesso à justiça. Dentre eles, podemos citar os artigos 3º, I; 5º e 98, incisos I e II.5 Mauro CAPPELLETTI, Bryant GARTH, ob. Cit, p. 90.

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da Cidade – de forma a garantir o acesso ao solo urbano e à moradia digna. Todavia,percebe-se um grande distanciamento entre a garantia formal e à realidade.

DIREITO À MORADIA COMO DIREITO HUMANO

O Direito a Moradia é um dos direitos sociais assegurado constitucionalmenteno art. 6º, no entanto, contraditoriamente temos hoje no Brasil cerca de 6,5 milhõesde brasileiros sem acesso a moradia digna. Esta realidade de exclusão social esegregação territorial da maioria da população se deu, por conta do modelo deurbanização desordenada que tivemos longo dos anos, que privilegiou a populaçãoque tinha condições de atender aos critérios do mercado imobiliário privando assim,a população de menor renda ao Direito à Cidade.

Diante deste quadro, onde mais de 80% da população das cidades são urba-nas, e dessas mais de 40,5% auferem renda a baixo de 5 (cinco) salários mínimos,segundo o censo demográfico, são raros os municípios que não tem grande parte desua população vivendo em assentamentos precários sem a mínima condições dehabitabilidade necessitando portanto, de investimentos públicos para melhorias ur-banas e segurança da posse. Para que se consiga minimizar o problema seria neces-sário hoje a construção de 6 (seis) milhões de novas moradias e introduzir melhoriasurbanísticas e habitacionais em pelo menos 10,2 milhões de domicílios.

Observa-se portanto que, no Brasil os investimentos públicos em habitaçãosempre foram escasso e atendia, na verdade apenas, aqueles que tinham condiçõesde se enquadra aos critérios do mercado imobiliário. O Sistema Financeiro deHabitação (SFH) é um bom exemplo disto, pois ajudou o avanço da construção civilnos anos 70, gerando a edificações de grande números de habitações, porém apenaspara as classes médias e alta, ficando de fora os que ganhavam até 5 (cinco) saláriosmínimos.

Salienta-se o fato de que, a Constituição do Brasil rege-se nas suas relaçõesinternacionais pela prevalência dos direitos humanos, como encontra-se disposto noart. 4º, II, também prevê o direito social à moradia no seu art. 6º, o que significa dizerque, o Estado tem a obrigação de executar políticas públicas que de fato promova eproteja o direito à moradia adequada sob pena de responsabilização pela nãocumprimento das obrigações pactuadas. Portanto, impedir programas e ações deexclusão de parcela da população com menor renda do acesso à Moradia Adequada,adotar políticas públicas de habitação que de fato assegurem a efetivação do direito àmoradia, enfrentar os problemas urbanos com políticas integradas que possa de fatocontribuir com a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a justiçasocial é dever do Estado.

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Com este entendimento, de que é necessário criar políticas que promovam eprotejam a efetivação deste direito, é que ficou evidenciado a necessidade de construçãode uma política urbana que garanta a inclusão à cidade da população de baixa renda.

Neste espírito a Constituição Federal dedicou os artigos 182 e 183, com oobjetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e dapropriedade, e 10 (dez) anos depois o Estatuto da Cidade chega para regulamentar econsolidar os princípios e diretrizes que deve orientar o desenvolvimento e a ocupaçãourbana, munindo principalmente, os municípios de instrumentos capaz de enfrentaras desigualdesdes socioterritorial nas cidades.

O ESTATUTO DA CIDADE E O AVANÇO DO ACESSO AO SOLOURBANO NO BRASIL

A construção do Estado brasileiro sempre foi marcado por grandes distorções.A história noticia a adoção de políticas públicas segregadoras e distantes da realidadeda população. Diante desse contexto histórico, o crescimento das cidades brasileirasrefletiu a desigualdade existente entre os indivíduos.

Após a década de 30, a industrialização e o crescimento das grandes cidadesfez com que esses espaços passassem a ser refúgio daqueles que necessitavam detrabalho e não o encontravam em áreas distantes dos pólos industriais. Comoconsequência da ausência de espaço destinado à moradia, e a grande demandapopulacional, tem-se o alto preço das áreas urbanizadas, inacessível para a maioriada população, que precisa encontrar alternativas de moradia em ocupações urbanasilegais, irregulares e clandestinas.

Assim áreas desprovidas de infaestrutura básica necessária , tornam-se locaisde moradia para a população de baixa renda, afirmando a segregação socioespacial.

A partir dessa realidade, na tentativa de minimizar os efeitos da desigualdadena ocupação do solo urbano, várias normas urbanísticas, ambientais e fundiárias forameditadas ao longo dos anos, tendo como marco histórico o Estatuto da Cidade, quevem a regular a política urbana prevista na Constituição Federal.

Ocorre que, conforme Edesio Fernandes6, a Regularização Fundiária não deveser entendida apenas como forma de legalização da posse da terra consolidada, a fimde garantir a segurança da posse da terra.

6 Fernandes, Edesio. Regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos governos e da sociedade.In CARVALHO, Celso Santos (coord). Acesso à terra urbanizada: implementação de planos diretores eregularização fundiária plena. Florianópolis: UFSC; Brasília: Ministério das Cidades, 2008. 366 p.

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Na verdade, a regularização fundiária compreende uma série de ações quepromovam, além da regularização jurídica, a regularização urbanística, ambiental esocial, com a integração socioespacial dessas áreas.

Nesse contexto, a segurança da posse abarca uma série de conceitos que vãoalém da proteção contra despejos forçados: ações de acesso a crédito formal, produçãode assentamentos sustentáveis, reconhecimento de direito de cidadania, fortalecimentode organizações sociais, reconhecimento dos direitos das mulheres, etc.7

Com a promulgação do Estatuto da Cidade, busca-se garantir o desenvolvimentosustentável das cidades e seus habitantes, ampliando o conceito de função social dapropriedade para função social da cidade, através da utilização de vários instrumentosurbanísticos, jurídicos e de gestão participativa.

No entanto, após 20 anos da promulgação da Carta Magna e mais de 10 anosdo Estatuto da Cidade, ainda não se conseguiu efetivar essas garantias para osmoradores de baixa renda de assentamentos espontâneos.

DA EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: O CENDHEC E ASEGURANÇA DA POSSE DA TERRA

O Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, CENDHEC é umaentidade da sociedade civil, sem fins lucrativos fundada em 2 de novembro de 1989.O CENDHEC define como missão defender e promover os Direitos Humanos,especialmente de crianças e adolescentes, moradores e moradoras de assentamentospopulares e grupos socialmente excluídos, contribuindo para a transformação social,rumo a uma sociedade democrática, equitativa e sem violência.

O CENDHEC, enquanto entidade inserida nas relações sociais, volta sua açãopara a prestação de serviços sociais visando garantir direitos a grupos sociais cujascausas específicas são concernentes a crianças e adolescentes que tiveram ou têmseus direitos violados, além de moradoras e moradores de comunidades em situaçãode vulnerabilidade social na cidade do Recife.

A instituição conta, em suas origens, com as ações sociais desenvolvidas pelaArquidiocese de Olinda e Recife tendo a frente Dom Helder Câmara, até entãoarcebispo daquela comarca. D. Helder Câmara, maior representante da ala progressistada Igreja Católica, destaca-se por suas iniciativas de denuncia as torturas cometidaspelo Estado contra ativistas políticos e quaisquer indivíduos contrários ao regimeMilitar vigente no Brasil sendo, por isso, reconhecido como um fiel defensor dos

7 Ibid.

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direitos humanos. Ele estimulou a organização popular, abriu os espaços da igrejapara defesa dos direitos humanos e para formação política dos populares criandoassim a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife. Tinha umaprofunda consciência dos problemas da humanidade, sempre na perspectiva da açãode Deus entre os homens e suas intermediações.

Devido a sua marcante atuação política e sua forte influência nos grupospopulares D. Helder Câmara foi fortemente perseguido pelas forças militares e o seuafastamento (supostamente, por aposentadoria) do cargo institucional causou impactosnas ações desenvolvidas pela Igreja o que leva a desintegração do grupo que compunhasetor jurídico da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, quedefendia famílias moradoras de assentamentos de baixa renda. Tal fato responde aosurgimento do Centro D. Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC.

A atuação do CENDHEC se dá, prioritariamente, em âmbito local (na cidadedo Recife) e sua região metropolitana, alcançando dimensões a níveis estadual enacional a partir de sua articulação política com outras Organizações da sociedade emovimentos em Redes com repercussão extra local a fim de contribuir e fortalecerno controle social das políticas públicas. Daí, decorre sua articulação com osmovimentos sociais, com a Associação brasileira de ONG – ABONG, MovimentoNacional de Direitos Humanos – MNDH, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos deCrianças e Adolescentes de Pernambuco; Fórum Estadual de Reforma Urbana, RedeEstadual de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes,Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil, Fórum de PREZEIS, ConselhoMunicipal de Desenvolvimento Urbano, Fórum Nacional de Participação Popular,dentre outros.

No tocante ao Programa Direito à Cidade, o Cendhec atua na defesa dalegalização da posse da terra em nome dos seus reais moradores como um instrumentode garantia do direito à terra e à moradia para a população pobre moradora das ZonasEspeciais de Interesse Social – Zeis do Recife.

O Cendhec, através deste Programa, vem contribuindo efetivamente com adefesa da posse da terra impedindo, concretamente, a expulsão de centenas de famíliasde suas moradias por especuladores de terra urbana e pelo mercado imobiliário,sobretudo, junto as comunidades da Mustardinha, Mangueira, Entra Apulso, SitioGrande, Torrões, Campo do Vila, Três Carneiros, onde são desenvolvidas ações noâmbito da Defesa da Segurança da Posse da Terra.

Por conseguinte atua no campo da: Promoção de ações de usucapião individuale coletiva e defesa de moradores(as) em ações de reintegração de posse; Mobilizaçãodas comunidades em torno do direito à moradia; Participação nos espaços institucionaisde formulação e controle das políticas públicas, e de articulação da sociedade civil,

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referentes ao tema da reforma urbana e democratização do acesso ao solo; Elaboraçãode subsídios teóricos metodológicos; Ações de publicização da temática; Formaçãona temática da cidadania e política urbana.

Dessa forma, o Programa Direito à Cidade tem por objetivo contribuir com agarantia da segurança da posse da terra dos(as) moradores(as) das Zeis para quetenham assegurada uma moradia digna e qualidade de vida, estando em condições deproduzir soluções para seus problemas como cidadãos e cidadãs participantes davida pública na comunidade.

Esse objetivo é orientador para as ações desenvolvidas no âmbito dos projetosda Promoção, Defesa, Formação e Controle Social do Programa Direito à Cidade, noqual buscam consolidar os princípios e diretrizes que norteiam a luta no campo daReforma Urbana, tendo como marco o Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/2001.

O CENDHEC, portanto, atua na defesa da segurança da posse da terra através,primordialmente, de ação judiciais, com o objetivo de garantir aos reais ocupantes oacesso à terra.

Ocorre que a concretização desse direito não é alcançada tendo em vista osobstáculos encontrados na estrutura institucional do Poder Judiciário e órgãos essênciasà justiça.

DO PODER JUDICIÁRIO: EMPECILHOS E PROPOSTAS ÀEFETIVAÇÃO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA

Dentro da perspectiva do trabalho realizado pelo CENDHEC, pretende-seanalisar os obstáculos resultantes da atuação do Poder Judiciário na regularizaçãofundiária de áreas Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) da cidade do Recife,bem como formas de minimizar os efeitos desses problemas de efetivação de direitosfundamentais da pessoa humana.

Apesar da legislação brasileira consagrar como princípio fundamental o direitoà moradia e a função social da propriedade, o Poder Judiciário, no exercício de suafunção hermenêutica e concretizadora de direitos fundamentais, não aplica, na prática,esses princípios basilares.

Tal postura resulta, primordialmente, da utilização do paradigma individualistado Código Civil de 1916,8 onde se afirma o direito à propriedade privada absoluta.

8 FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória dodireito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p.

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Dessa forma, apesar da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidadãgarantirem, em termos abstratos, o acesso à moradia digna e a função social dapropriedade, o Poder Judiciário, através de seus juízes, não acompanham essa mudançade paradigma legal, e reafirmam, em suas decisões, os princípios que regiam o CódigoCivil de 1916, com resistência à nova concepção trazida pela Constituição Federal eo Estatuto da Cidade.

Assim, percebe-se um distanciamento entre a realidade das comunidades e oPoder Judiciário, que não faz uma avaliação acerca do seu papel na criação emanutenção da segregação socioespacial do espaço urbano.

Contudo, qual a dificuldade que existe para essa necessária mudança deparadigma, de forma a garantir a aplicação do princípio da função social da propriedadee da cidade através dos órgãos legitimados para tanto, como o Poder Judiciário?

Há no Poder Judiciário Brasileiro um descaso acerca do tema do direito àmoradia digna, que se reflete no desconhecimento por parte dos operadores do direitoacerca dos instrumentos legais de direito urbanístico e ambiental que garante a inclusãosocioespacial dos habitantes de assentamentos espontâneos, isto pode ser percebidono número de ações acompanhadas pelo CENDHEC em tramite na Justiça Estaduala mais de 10(dez) anos, e que muitas vezes esperam anos por um despacho, e quandohá, é para fazer exigências descabidas, como é o caso, da comprovação através decertidão dos cartórios de imóveis de que o autor da ação de usucapião urbano não éproprietário de outro imóvel.

A formação desses operadores, notadamente exegética, denota uma procedi-mento apegado à formas, sem incluir no processo judicial a expressão teleológicadefendida pelo movimento do Acesso à Justiça.

No campo dos direitos humanos, especialmente o direito à moradia decomunidades de baixa renda, o processo judicial tem a função de apaziguar adesigualdade reinante e servir como instrumento de transformação social.

Ainda acerca das instituições do Estado, o Ministério Público, órgão cujacompetência constitucional inclui a defesa da ordem jurídica, do regime democráticoe dos direitos sociais e individuais indisponíveis, é ausente no controle da ocupaçãodo solo urbano, bem como na defesa das garantias constitucionais das comunidadesque ocupam determinadas áreas, desprovidas de qualquer infra-estrutura e imprópriasà habitação humana.

Ademais, tendo em vista as consequências que as ocupações irregulares, ilegaise clandestinas representam no crescimento da cidade e nos seus habitantes, é necessárioque o Ministério Público intervenha de forma mais planejada e eficiente.

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Em Pernambuco, O Ministério Público conta com a Promotoria de Habitação,composta por uma promotora, cujo objetivo é de promover ações públicas para finsde garantir, com atuação limitada à habitação.

A despeito da promotoria especializada, os promotores, que atuam nas açõesjudiciais para fins de regularização fundiária nas varas cíveis, estão distantes darealidade social dos moradores das comunidades de baixa renda e não utilizam aferramenta processual para fins de minimizar a segregação socioespacial. Isso porque,interpretam a legislação urbanística de forma exegética, sem atribuir a função socialque a ela foi destinada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade.

Dessa forma, faz-se urgente que se crie um Promotoria especializada naRegularização Fundiária Plena, com condições de atuar na promoção da cidadaniados moradores das comunidades de baixa renda.

No que tange à defesa dos moradores de áreas Zeis da cidade do Recife, tem-se a total insuficiência da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para lidarcom as questões do acesso ao solo urbano e o direito à moradia. Seja pelodesconhecimento do tema, seja pela demanda de atendimentos e o limitado númerode defensores públicos.

Diante desse contexto, a Defensoria Pública se torna incapaz de atuar na defesada cidade e na garantia do direito à moradia dos cidadãos, enquanto sujeitos coletivosde direitos.

Assim, faz-se necessário seja implementado o Núcleo Especializado emRegularização Fundiária Plena e Prevenção de Despejos Forçados na DefensoriaPública, com atuação integrada às políticas públicas destinadas à efetivação do direitoà moradia adequada.

Outro grande desafio à efetivação do direito a moradia são as recorrentesdificuldades nos Cartórios de Registro Imobiliário. Entre elas, podemos elencar osaltos custos do registro; a quantidade de documentos exigidos para fins derequerimento de certidões; a ausência de procedimentos uniformes para todos oscartórios; bem como a ausência de comunicação entre os cartórios e o poder público,dificultando a obtenção de informações ou criando contradições nas bases de dadosde cada órgão.9

Ainda acerca do Direito Registrai, tem-se que os Cartórios de RegistroImobiliários também desconhecem os instrumentos trazidos pela nova ordemconstitucional e urbanística e vigor e afirmam, cotidianamente, o paradigma do Código

9 AFONSIM, Betânia; FERNANDES, Edesio. Regularização Fundiária: princípios e conceitos básicos.

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Civil de 1916, a propriedade individual absoluta, resistindo à concepção da funçãosocial da propriedade do solo urbano.

Ademais, os Cartórios de Registro Imobiliário não se enxergam enquantoparceiros na Regularização Fundiária Plena para a população de baixa renda e estãoausentes dos espaços de discussão de políticas públicas relacionadas ao tema.10

Necessário que haja, portanto, uma comunicação entre o Direito Urbanístico eo Direito Registrai, de forma a incorporar ao segundo os princípios de direito públicoque regem à propriedade, atribuindo função social aos registros imobiliários, de formaa adequar o Direito Registral aos novos parâmetros definidos pela Constituição Federale o Estatuto da Cidade.11

Em conclusão, é evidente que o Poder Judiciário e seus órgãos essenciais têmfundamental papel na efetivação da Regularização Fundiária dos assentamentos debaixa renda.

Todavia, para sua efetivação, necessário que as novas diretrizes traçadas pelaConstituição Federal e o Estatuto da Cidade sejam incorporadas no cotidiano dosJuízes, de forma que os mesmos percebam a sua responsabilidade na criação emanutenção da segregação socioespacial, bem como parte integrante de um modeloindividualista que está sendo perpetuado através de decisões judiciais.

É preciso, ainda, que o direito à propriedade individual absoluta, primado doCódigo Civil de 1916 não mais sirva como instrumento de resistência para aconcretização da função social da propriedade urbana e da cidade.

Como já esclareceu o professor e jurista Edesio Fernandes12, o Poder Judiciáriodeve refletir, de forma crítica, sobre o processo de produção da ilegalidade eirregularidade urbana, avaliando a criação das leis urbanísticas, as condições e osobstáculos ao cumprimento das referidas leis, estabelecendo uma relação com a suaresponsabilidade na produção e manutenção dessa ilegalidade urbana.

A CAMPANHA DO CENDHEC PELO ACESSO À JUSTIÇA

A partir do entendimento de que o Poder Judiciário precisa se perceber enquantoagente transformador da realidade social vigente e diante do total descaso e

10 Ibid.11 Ibid.12 FERNANDES, Edesio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidades: algumas notas sobre a trajetória do

direito urbanístico no Brasil. In MATTOS, Liana Portilho (org). Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257, de10 de Julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 480 p.

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desconhecimento dos intrumentos de regularização fundiária por parte dos operadoresdo direito, o CENDHEC identificou a necessidade de promover uma série de açõesvisando a conscientização da população em geral acerca do tema do acesso à justiçaenquanto efetivação de direitos fundamentais do indivíduo.

Dentro desse contexto, ao longo da atuação do CENDHEC nesses 19(dezenove)anos de existência, diversas ações foram executadas com o intuito de sensibilizar osgestores públicos e operadores do direito acerca da importância da concretização dodireito à moradia digna. Dessa forma, o CENDHEC promoveu vários círculos dedebates com agentes de diversos seguimentos públicos, denunciou às omissões ecobrou a execução de políticas públicas destinadas a defesa de direitos humanos,entre eles o direito à moradia.

O CENDHEC percebeu a necessidade de iniciar uma discussão maisabrangentes, englobando todas as parcelas da sociedade população, sociedade civil,administração pública e poder judiciário para tratar do acesso à justiça enquantodireito humano e enfrentar a questão do desconhecimento acerca dos instrumentosconcretizadores dos direitos fundamentais, notadamente os direitos da criança e doadolescente e dos moradores dos assentamentos informais.

Todavia, percebeu-se a insuficiência dessas ações na efetivação do acesso àjustiça, posto que a sociedade, de uma forma geral, estava afastada das discussõesacerca dos empecilhos decorrentes da atuação dos poderes públicos, notadamente oPoder Judiciário.

Assim, em julho de 2008, o CENDHEC iniciou uma campanha pelo acesso àjustiça, através do lançamento de uma publicação intitulada Acesso à Justiça é umDireito Humano,13 que foi encartado através de jornal impresso de grande circulaçãodo Estado de Pernambuco.

O objetivo da campanha é o de ampliar a discussão acerca do acesso à justiçapara a coletividade, de forma a incluir a sociedade pernambucana no debate sobre anecessidade de encontrar soluções para a efetivação dos direitos da pessoa humana,em especial os das crianças e dos adolescentes e dos moradores dos assentamentosinformais.

Essa publicação é o início de uma campanha que pretende, a princípio,sensibilizar a população para que ela exija do Poder Público a concretização dessesdireitos.

Como etapa complementar, com relação à efetivação do direito à moradiaadequada, pretende-se promover um ciclo de debates e seminários com o Poder

13 JORNAL DO COMMERCIO, 11 de julho de 2008.

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Judiciário, de forma a incluir os operadores de direito, notadamente os juízes, membrosdo ministério público e defensores públicos, na discussão acerca da regularizaçãofundiária plena, enfatizando as consequências da segregação socioespacial nodesenvolvimento das cidades e o seu papel na transformação dessa realidade.

Ainda, pensando na luta pela inclusão social e pela efetivação destes direitos,os movimentos de reforma urbana devem fazer uma agenda que incorporem ações desensibilização dos operadores do direito (Magistrados, promotores, defensorespúblicos, notoriais, etc.), com vista a conseguir a implementação da regularizaçãofundiária plena, bem como, refletir e investir na formação desses operadores, naacademia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A informalidade dos assentamentos urbanos é um problema que acarretadiversas consequências para a cidade e seus habitantes que tem origem na segregaçãosocioespacial dos espaços urbanos e nas políticas públicas.

Dessa forma, é preciso que os juristas se atentem para a dimensão jurídico-social do processo de desenvolvimento urbano, de forma a garantir o direito coletivoao planejamento e a gestão participativa das cidades. Isso porque o processo judicial,enquanto acepção teleológica, possibilita a inclusão social pelo direito, minimizandoas desigualdades sociais e incluindo setores sociais abandonados pelo Estado.

O Direito à Moradia é reconhecido como Direito Humano em diversasdeclarações e tratados internacionais da qual o Brasil é signatário, além de ser umdireito social reconhecido constitucionalmente, o que vale dizer que o Estado necessitade ações positivas, por meio da execução de políticas públicas assegurem a efetividadedeste direito, O estado brasileiro tem a obrigação de adotar políticas públicas deinclusão social e territorial da população tendo como meta integrar os assentamentosinformais a malha urbana da cidade dotando-as de infra-estrutura básica, urbanizaçãoe regularização fundiária.

BIBLIOGRAFIA

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5PROTEÇÃO DO DIREITO À MORADIA

NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

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Conflitos Fundiários Urbanos: o Dilema doDireito à Moradia em Áreas de PreservaçãoAmbiental

ANA MARIA FILGUEIRA RAMALHO

Arquiteta e Urbanista. Doutoranda emDesenvolvimento Urbano pela Universidade Federalde Pernambuco.

VERA LÚCIA DE ORANGE LINS DA FONSECA E SILVA

Advogada do Centro Dom Helder Câmara e Pós-Graduanda em Gestão Ambiental.

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca fazer uma reflexão sobre a regularização fundiária deassentamentos urbanos em Áreas de Preservação Permanente – APPs, consideradoaqui, como um tipo de conflito fundiário. Toma-se como referência, a cidade doRecife, por apresentar um alto índice de assentamentos consolidados em APPs. Pois,com poucas áreas urbanas disponíveis e de solo urbano escasso e caro, osassentamentos espontâneos existentes foram se expandindo em áreas de mata, manguee nas margens dos rios. O que era para ser preservado, ao longo dos anos foi setransformando em locais de moradia, de uma população excluída socialmente, queencontram nesses locais uma facilidade de ocupação, gerando dessa forma o conflitoentre o direito à moradia e o direito a um ambiente saudável. Direitos esses, garantidospela Constituição de 1988. Sendo assim, esse trabalho busca fazer uma reflexão sobreas seguintes questões: Quais os critérios que devem ser utilizados para ações deregularização fundiária em APPs? É possível fazer regularização fundiária sustentávelem APPs? A experiência de regularização fundiária sustentável do Recife em APPstem sido bem sucedida? Este trabalho foi estruturado em quatro partes: a primeiraparte apresenta as características urbanas e ambientais da cidade do Recife; na segundaparte, mostra como ocorreu o processo de reconhecimento dos assentamentosconsolidados nas Áreas de Preservação Ambiental; na terceira parte, faz uma discussãosobre os desafios da Regularização Fundiária Sustentável em Áreas de PreservaçãoPermanente; e na quarta e última parte, apresenta as considerações finais.

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1. A CIDADE DO RECIFE: CARACTERÍSTICAS URBANAS E AMBIENTAIS

A cidade do Recife ocupa uma área de 220 Km2, distribuída em 6 (seis) RegiõesPolítico-administrativas. Tem como características físico-ambientais o espaçodistribuído em 66, 83% de pequena elevação, 23,56% de planície aluvionar e 9,61%de ambiente aquático. Rica em beleza natural, de reconhecido patrimônio artístico ehistórico, de grande potencial de turismo e de serviços, é marcada por profundoscontrastes físicos-sociais que vem se acumulando ao longo de décadas. Recife possuiuma população urbana de aproximadamente 1,5 milhões de habitantes, de acordocom o Censo Demográfico de 2000 (IBGE), dos quais 50% dessa população vivemaproximadamente em 500 assentamentos informais, de forma precária e sem condiçõesde habitabilidade. A cidade é marcada por acentuadas desigualdades sociais,consequência de altos níveis de pobreza e de uma profunda concentração de renda,resultado de longos anos de ausência de uma política pública de interesse social nasdiversas esferas de governo. Como consequência, a cidade se dualiza entre umapopulação com maior poder aquisitivo e que pode adquirir o solo urbano em áreasplanas e de fácil urbanização e aquela população que ocupa o solo de formadesordenada em áreas de complexas soluções urbanísticas e de regularização fundiária.

Segundo dados da Prefeitura do Recife, durante o ano 2000, moravam cercade 550 mil pessoas ao longo dos rios que cruzam a cidade e aproximadamente 50 milfamílias nas margens dos diversos canais, e cerca de 144 assentamentos informaisem áreas de morros. O que representa que, em uma região com poucas áreas urbanasdisponíveis e de solo urbano escasso e caro, o adensamento populacional cresce emdireção às Áreas de Preservação Permanente – APPs, isto é, aos poucos, osassentamentos espontâneos existentes vão se expandindo nas áreas da mata eprincipalmente nas margens dos rios. O que era pra ser preservado vai se transformandoem locais de moradia, mesmo que em parte inapropriadas, por uma população excluídasocialmente, mas que encontram nesses locais uma facilidade de ocupação, gerandodessa forma o conflito entre o direito a moradia e o direito a um ambiente saudável.

Para responder as demandas dos movimentos populares em busca de uma cidadesocialmente mais justa e equilibrada, foi criado na década de 80, no contexto daredemocratização, o Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social– PREZEIS, constituindo-se como um marco na renovação nos moldes de gestão depolíticas urbanas no Recife, e que serviu posteriormente como referência nacional naimplantação de políticas públicas em assentamentos espontâneos no Brasil. A partirdo reconhecimento desses assentamentos como “Zonas Especiais” da cidade, o passoseguinte foi a viabilização do Poder Público Municipal em promover ações deurbanização e de regularização fundiária. Porém, nesse momento não foi aprofundadoa viabilidade da regularização fundiária naqueles assentamentos espontâneos

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localizados em APPs, mesmo quando transformados em ZEIS. O contexto sócio-político em que a cidade vivia, marcada por um período de tensão muito forte emrelação à posse da terra e a garantia do direito a moradia, especificamente nas áreasde propriedade particular e naquelas de maior interesse especulativo da cidade,terminou em não priorizar essa discussão, o que não impediu, ao longo dos anos, aocupação das APPs por aqueles que tinham a necessidade de moradia.

Com uma atuação frágil do Pode Público Municipal no exercício do controleurbano, as ocupações nas margens dos rios, mangues e morros foram aos poucosacontecendo, se expandindo e se consolidando, caracterizando-se assim, como umnovo tipo de conflito fundiário urbano, na medida em que, evidenciou-se a dificuldadede adquirir a posse da terra, e retirar as famílias que ali residem da condição deilegalidade e da situação de constante insegurança. Porém, a discussão, bem como,as alternativas para intervenção de regularização fundiária em áreas ambientais forampostergadas para décadas seguintes.

2. O RECONHECIMENTO DOS ASSENTAMENTOS CONSOLIDADOS NASÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE NA CIDADE DO RECIFE

Em 2002, a partir de uma determinação do Ministério Público do Estado dePernambuco quanto a aplicação do Código Florestal na cidade do Recife, começa-sea discussão sobre o destino das APPs em áreas urbanas. O cerne da questão referia-sea exigência do Ministério Público para que o município pusesse em prática adeterminação dos limites das APPs previstos no Código Florestal, ao invés, de comovinha sendo feito, da utilização dos limites de preservação bem inferior, previsto naLei de Uso e Ocupação do Solo Urbano da cidade. Como já dito, Recife é uma cidadecortada por uma grande quantidade de rios, lagos e mangues e essa medida afetariadiretamente a utilização do solo urbano.

A gestão municipal criou um grupo de estudo para compatibilizar essa questãofundamental para o desenvolvimento da cidade, e como consequência, gerou umanormatização específica, a Lei nº 16.930/2003, construída pela Prefeitura do Recifecom a participação do Conselho Municipal de Meio Ambiente, altera alguns dosartigos do Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico do Recife (1996) edefine os critérios para estabelecimento das APPs. Nesta nova lei foram consideradas depreservação permanente todas as formas de vegetação existentes ao longo dos corpos ecursos d’água, das áreas de manguezais, do topo de colinas e suas encostas, ao redor denascentes, olhos d’água, lagos e lagoas, reservatórios de água naturais ou artificiais, alte-rando os parâmetros antes previstos no Código Florestal para a supressão total ou parcialda vegetação, tornando-as assim, mais compatíveis com a realidade da cidade.

Contudo, o grande avanço que se pode obter com essa nova lei foi viabilizar aexecução de projetos de “utilidade pública” ou “interesse social”, possibilitando assim,

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a regularização fundiária em APPs quando destinadas à habitação de interesse social,desde que haja a prévia anuência dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente e deDesenvolvimento Urbano. O que indicou a preocupação do legislador em integrar aspolíticas urbanas e ambientais.

Paralelamente, em âmbito nacional, essa discussão também foi iniciada noConselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA, que gerou a Resolução 369 de2006 onde possibilita a regularização fundiária de área urbana nas APPs. No entanto,essa resolução trouxe muita discussão e divergências de opiniões entre ambientalistase urbanistas. Para os ambientalistas o Código Florestal era muito restritivo, pois, anova resolução torna a questão de “utilidade pública” e de “interesse social”interpretações muito abrangentes. Enquanto que urbanistas, viram nessa resolução, apossibilidade de resolver os conflitos fundiários urbanos.

3. OS DESAFIOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SUSTENTÁVELEM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL

Segundo Mukai (2002), o urbanismo não se ocupa apenas de arranjos físicosterritoriais das cidades, mais abrange o meio urbano e o rural, e considera que é porisso que esta disciplina tem que cuidar também dos aspectos do meio ambiente. Comisso, o autor, utiliza da afirmação do jurista Louis Jacquignon que o direito urbanísticocomo disciplina visa também à proteção do meio ambiente:

O direito urbanístico é a arte de arranjar as cidades sobre o aspecto demográfico, econômicos,estéticos e culturais, tendo em vista o bem do ser humano e a proteção do meio ambiente(Mukai apud Jacquignon, 2002).

Sendo assim, o direito urbanístico e o direito ambiental não podem estardissociados, visto que fazem parte do ramo do direito público e tem o mesmo marcoconceituai que é a Constituição Federal de 1988. Porém, quando se trata do direito àmoradia adequada, muitas questões ainda são postas em debate. Especialmente quandose trata da regularização fundiária em APPs, que ainda é tema pouco discutido eenfrentado pelas gestões municipais.

Se por um lado é possível afirmar que não há mais um conflito do ponto devista das legislações ambientais e urbanas, por outro lado, criam-se incertezas daforma como os novos parâmetros devem ser aplicados nas cidades, e como, deve serconciliado o direito dos ocupantes e a preservação ambiental.

De acordo com Pádua (2006) ao se flexibilizar os parâmetros em APPs ficaafrouxada em todo o Brasil, a prioridade de proteção aos mangues, nascentes, encostas,margens de rio, dunas, restingas, escarpas, brejos, topos de morro e outras áreasconsideradas estratégicas para a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas e dos

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serviços ambientais essenciais para a sociedade. A autora, apesar de opinar que oCódigo Florestal de 1965 era extremamente restritivo e que o Brasil da época eraoutro país, na sua opinião, no momento em que cada Município adaptar a lei à suarealidade, as APPs perderão valor, e teme por essa “adaptação”, pois ficará vulnerávelde acordo com a vontade do gestor, principalmente quando se trata de municípiosque ainda não dispõem de Planos Diretores. Assim, crítica dizendo: “Foi uma enormeinfelicidade. O Conama ficou com medo de enfrentar outras áreas, cedeu a muitosinteresses e violentou as APPs”.

Para Fernandes (2007) o problema dos assentamentos espontâneos em APPs éuma expressão de um velho conflito entre os defensores da chamada “agenda verde”do meio ambiente e os defensores da chamada “agenda marrom” das cidades. Ouseja, não existe um conflito entre preservação ambiental e moradia. Pois, ambos sãovalores e direitos sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raizconceituai, qual seja o princípio da função socioambiental da propriedade. E o desafioé compatibilizar esses valores e direitos.

(...) é crucial que governos e a população reconheçam que a promoção da regularização dosassentamentos informais é um direito coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivosocioambiental criado ao longo de décadas no país. Para tanto, é preciso que se adote umconceito antropocêntrico de natureza, bem como, que se tomem todas as medidas necessáriaspara a total reversão do atual modelo de crescimento urbano segregador e poluidor, de talforma que as cidades brasileiras possam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do pontode vista socioambiental. (FERNANDES, 2007).

Diante desse contexto, o debate deverá responder a questão do como fazerações de regularização fundiária em APPs. Portanto, quais os critérios que devem serutilizados para ações de regularização fundiária em APPs? É possível fazerregularização fundiária sustentável em nessas áreas? A experiência de regularizaçãofundiária sustentável do Recife em APPs tem sido bem sucedida?

Para a regularização fundiária em APPs será necessário levar em consideraçãoa consolidação dos assentamentos espontâneos, predominantemente residenciais e ograu de interação sócio-cultural dos moradores com o local em que estão instalados,ou seja, a relação de pertencimento destes com o local de moradia, considerando queesse local proporcionará condições de habitabilidade e salubridade. No entanto, noscasos em que essas condições não estejam efetivadas, será necessária a relocação dapopulação para um local próximo, prevalecendo o direito à moradia.

A Regularização Fundiária Sustentável em APPs compreende as dimensõesjurídica, através da titulação da posse da terra; urbanística, dotando a área de infra-estrutura e equipamentos urbanos; socioambiental, através de programas de educaçãoambiental e mobilização da comunidade para um melhor convívio com o meio

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ambiente; e a econômica, através da geração de emprego e renda. Necessita para asua efetivação, um plano de regularização fundiária, além da autorização do PoderPúblico e da anuência do órgão ambiental responsável. Pensar em RegularizaçãoFundiária Sustentável é pensar em regularização que incorpore essas dimensões, sobpena de não se cumprir a diretriz do Estatuto da Cidade que é “garantir o direito acidade sustentável, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamentoambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e serviços urbanos, ao trabalho e aolazer, para as presentes e futuras gerações”, como dispõe o Art. 2º, inciso I. Portanto,do ponto de vista normativo podemos dizer que é possível fazer regularização fundiáriasustentável em APPs. Porém, a capacidade dos municípios em conduzir políticaspúblicas integradas tem sido um dos principais entraves para a solução desse conflito.

No caso do Recife, a experiência da regularização fundiária sustentável emAPPs não tem sido exitosa, apesar da Lei 16.930/2003, que torna possível aregularização dos assentamentos espontâneos consolidados nessas áreas. Um dosfatores que contribui para isso é a falta de articulação entre os diversos setores daesfera governamental envolvidos na temática urbana e ambiental, o que confirma adificuldade de conciliação dessas agendas. Cabe ressaltar, que a referida Lei determinaque projetos ou programas que tenham como meta a regularização fundiária em APPs,devem ser discutidos entre os Conselhos de Meio Ambiente e de DesenvolvimentoUrbano, o que poderia facilitar o diálogo entre essas duas temáticas.

Em consulta feita a Prefeitura do Recife foi constatado que não existem dadosmais aprofundados que informem quais são e quantos são os assentamentosconsolidados em APPs. Também não se sabe ao certo, qual a população estimada quedemanda a regularização no local e qual a população que deverá sofrer remoções.Como também, não se tem diretrizes específicas para a regularização fundiária nessasáreas. Além do que, na sua maioria as ações de regularização fundiária são executadasde forma fragmentada, ou seja, não conseguem contemplar todas as dimensõesnecessárias. A exemplo do PREZEIS, que visa promover a regularização jurídica eurbanística das ZEIS, mostra dificuldades de promover uma regularização sustentável,o que se observa é que este programa tem contemplado ações pontuais, ou de titulaçãodo imóvel ou de urbanização, em detrimento de um planejamento urbano integrado,o que dificulta a inserção das ZEIS à cidade formal. Nesse sentido, pode-se afirmarque não existe uma experiência bem sucedida de regularização fundiária sustentávelno Recife, apesar de dispor de um arcabouço legal favorável a tal procedimento.

4. CONSIDERAÇÕES FINAISApesar de avanços do ponto de vista das legislações existentes, ainda falta nos

programas de regularização fundiária em APPs, dialogar com as políticas públicas,principalmente, as de natureza urbanas e ambientais.

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Observa-se também, que o programa de regularização fundiária do Recife nãotem contemplado todas as dimensões necessárias a sua sustentabilidade.Principalmente, ao que se refere às ações de caráter ambiental, quando existem,apresenta uma função secundária, o que tornam os programas vulneráveis quanto àpreservação ambiental.

No entanto, também se faz necessário políticas preventivas de controle urbano,com o objetivo de coibir novas ocupações em APPs sob pena de comprometermos otambém garantido direito constitucional, das presentes e futuras gerações a umambiente ecologicamente equilibrado.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Estatuto da Cidade. Guia para implementação pelos municípios e cidadãos.

Brasília, 2001.

FERNANDES, Edésio. Regularização Fundiária de Assentamentos Informais em Áreas Urbanas. 2007.Disponível em: http://www.pucminas.br/virtual/2009 01/eursos/curso.php.curso. Acessado em 10 desetembro de 2008.

MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002.

PÁDUA, Maria Tereza. Áreas de Preservação Permanente. 2006. Disponível em: http://www.oeco.com.br/index.php/busca/MARIA%20TEREZA%20PADUA.searchphras. Acessado em 10 de setembro de 2008.

RECIFE. Lei Nº 16.930, de 13 de setembro de 2006. Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecoló-gico do Recife.

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Vila Itororó: Direito à Cultura Como Ameaçaao Direito à Moradia?

ALINE VIOTTO, BIANCA TAVOLARI,JONNAS VASCONCELOS E YASMIN PESTANA1

Graduandos em Direito.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Contextualização do Problema; 3 O Projeto deRevitalização da Vila Itororó; 4 Aspectos Econômicos e Urbanísticos do Projeto;5 A Realidade dos Moradores da Vila Itororó; 6 Outras Perspectivas; 7 Conclusão.

RESUMO: Este artigo busca analisar a possibilidade de coexistência entremoradia e cultura na Vila Itororó, tendo como referência o trabalho de educaçãojurídica popular do SAJU-USP2 em conjunto com os moradores locais. Partindode uma breve exposição sobre a comunidade da Vila Itororó no contexto históricoda cidade de São Paulo e sobre o projeto de revitalização do espaço pela PrefeituraMunicipal, identificamos uma tensão entre direito à cultura e direito à moradia,uma vez que a iniciativa elaborada pelo poder público visa à desapropriação daárea em questão e ao despejo dos moradores, a fim de construir um pólo culturalcom bares e restaurantes. A partir deste estudo busca-se contribuir com o debateacerca da atual ação de desapropriação proposta pela Prefeitura, levantandoquestões sobre concepções de cultura, à luz de outras experiências semelhantesà da Vila.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Cultura, Educação Jurídica Popular,Vila Itororó, SAJU-USP.

1. INTRODUÇÃO

De início, contextualizamos a história e a importância da Vila Itororó. Seusmoradores convivem atualmente com a ameaça de despejo motivada pela formulação

1 Os autores são estudantes do segundo ano da graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Pauloe membros do SAJU-USP, grupo de extensão sob orientação do Professor Doutor Celso Fernandes Campilongo,do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.

2 Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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de um projeto de revitalização, realizado pela Prefeitura de São Paulo. O projeto derecuperação da Vila visa à construção de um centro cultural e, por esse motivo,apresentamos criticamente o paradigma de reforma urbanística adotado pela Prefeitura.

Em seguida, buscamos expor os processos de revitalização e de desapropriaçãodo espaço da Vila Itororó dentro de um contexto de transformações econômicas eurbanísticas que superam a esfera da localidade. Partimos então à análise de diferentesconceitos de cultura que permeiam, de um lado, o projeto proposto e, de outro, arealidade dos moradores da Vila. Finalmente afirmamos a possibilidade de convivênciaentre cultura e moradia no mesmo espaço, a partir de exemplos já realizados emoutros lugares semelhantes à Vila na cidade de São Paulo.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA

A Vila Itororó está localizada num dos bairros mais centrais da cidade de SãoPaulo, a Bela Vista, sendo caracterizada por vezes como a primeira vila urbana dacidade3. As edificações foram construídas entre 1916 e 1922 pelo mestre de obrasportuguês Francisco de Castro e seu nome – Vila Itororó – deve-se à proximidade danascente do riacho do vale do Itororó. A Vila apresenta estilo arquitetônico único,materializado pela técnica de colagem: peças do antigo Teatro São José foramincorporadas na estrutura das casas e do palacete.

Em meados da década de 50, com a morte do seu fundador, a Vila foi leiloada.Posteriormente, a propriedade do imóvel foi doada à Instituição Beneficente AugustoOliveira de Camargo. Esta fundação possui um hospital filantrópico em Indaiatuba,que, por muito tempo, teve seus gastos custeados pela arrecadação dos aluguéis dascasas locadas na Vila Itororó4. A partir de 1997, a instituição abandonou o local,deixando de cobrar os aluguéis e de prover serviços como os de manutenção elétricae sanitária. A região continua ocupada por cerca de 70 famílias, que há mais de 10anos zelam sozinhas pelo espaço, apesar das dificuldades inerentes à condição debaixa renda e do descaso do Poder Público em efetivar políticas públicas voltadas àmoradia no local.

Em razão da degradação da região central, contemporânea ao movimentohistórico da saída da elite paulistana para áreas mais ao sul da cidade, foramdesenvolvidos projetos de “revitalização” desses espaços, como acontece com a Vila.De forma simplificada, essas reformas consistem em retirar a população de baixarenda do centro, reformar e restaurar os imóveis históricos e, por fim, viabilizar a

3 Disponível em: http://www.prefeitura, sp.gov. br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=7275, acesso em 15 Set.2008.

4 Disponível em: http://www.haoc.org.br/m_fundacao.html, acesso em 15 Set. 2008

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oferta de lazer e de serviços. A autorização da Prefeitura do processo de desapropriaçãocontra a Fundação proprietária da Vila5 se insere nesse contexto.

Em contrapartida, nós, do SAJU-USP, juntamente com os moradores da Vila,participamos da elaboração de pedido declaratório da Usucapião Especial Plúrimo6

Pelo periculum in mora evidente, em razão da ação de desapropriação, pedimos tutelaantecipada, que foi negada. Recorremos com um Agravo de Instrumento no Tribunalde Justiça do Estado de São Paulo7, que ainda aguarda julgamento.

A aproximação do SAJU com os moradores da Vila teve início através decontatos no Fórum Centro Vivo, uma organização que congrega movimentos sociaise também outros setores da sociedade que discutem as políticas públicas para o Centrode São Paulo. Desde então, o SAJU realiza atividades de educação popular com acomunidade da Vila Itororó.

Por reconhecermos o papel pedagógico – logo, político8 – que desempenha-mos, o grupo almeja, através de suas práticas, não atuar pelos moradores, mas comeles. Com isso, dentro dos pressupostos de uma Pedagogia do Oprimido, vemos osmoradores como sujeitos e não como objetos nesse processo de luta por justiça. En-frentamos inúmeras dificuldades, acentuadas em razão de, ainda que inconsciente-mente, reproduzirmos práticas opressoras. Tendo isso em vista, repensamos semprenossas ações e realizamos oficinas e debates com os moradores de forma horizontal,que possa permitir uma verdadeira troca de saberes. Nestes encontros, discutimosmuitos temas, como a eficácia dos instrumentos processuais e os mecanismos políti-co-jurídicos necessários para a efetivação dos direitos sociais, como também as atu-ações em coletivo para a manutenção do espaço da Vila.

Através desse trabalho de educação, pretendemos afastar a visão de que osmoradores seriam meros ocupantes a serem despejados. Neste aspecto, o trabalhopedagógico pelo despertar da consciência coletiva dos moradores é essencial para ofortalecimento da luta pela moradia. A intenção maior é incluir os moradores comosujeitos nas discussões sobre a reforma urbana, e não expectadores à espera passivado despejo para a periferia da capital.

5 Nº 583.53.2007.134155-9, distribuída na 1ª Vara da Fazenda Pública.6 Nº 583.00.2008.136490-1, distribuída na 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital SP.7 Nº 2008.708530-7(05)8 O pedagogo Paulo Freire, em toda a sua vida e obra, sustentou coerentemente a necessidade de reconhecer o

caráter político da educação, para que se possibilite uma prática crítica e emancipadora. Como ele revela, “Omito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo educativo e a torná-locomo um que fazer puro, em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração, é oponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma práticaastuta e outra crítica.” (FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se complementam.São Paulo: Cortez, 2006. p. 23).

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Os moradores possuem grande interesse em continuar residindo naquele espaço.Além grande disponibilidade de transportes públicos e da intensa zona de comércio ede serviços localizados no Centro, os moradores ainda contam com, por exemplo,quatro escolas públicas, três hospitais, um hospital infantil, três creches comunitárias,o Centro Cultural Vergueiro, a sede do PROCON, o Poupatempo, a Defensoria Públicae outros serviços públicos nas redondezas. Motivos mais fortes para permanecer nolocal são os laços pessoais construídos ao longo de anos de convivência e relaçãocom o bairro e com outros moradores da Bela Vista.

Há, ainda, no Centro de São Paulo, um grande déficit habitacional, causadotanto pela pouca quantidade de imóveis destinados à moradia, como também pelasubutilização e inutilização de prédios habitacionais e de casas na região. A propostade uso da Vila Itororó pra outro fim que não o da moradia vem aumentar esse déficit,além de reafirmar um paradigma adotado pela Prefeitura de São Paulo em relação àquestão da moradia.

3. O PROJETO DE REVITALIZAÇÃO DA VILA ITORORÓ

Como define Souza Filho,

o patrimônio ambiental, natural e cultural, assim, é elemento fundamental da civilização eda cultura dos povos, e a ameaça de seu desaparecimento é assustadora, porque ameaça dedesaparecimento a própria sociedade.9

Esta, portanto, passou a perceber, ao longo dos anos, a importância da preser-vação do seu patrimônio. Para tanto, o Direito se torna instrumento imprescindível,ao estabelecer as normas e ações reguladoras e protetoras do patrimônio.

A Constituição de 1988 interpreta como bem cultural “aquele bem jurídicoque, além de ser objeto de direito, está protegido por ser representativo, evocativo ouidentificador de uma expressão cultural relevante”10. Isto significa que todos os bensculturais possuem um interesse público especial, que altera sua essência. A autoridadecompetente deve reconhecer o valor do bem e realizar a sua proteção por meio de atoadministrativo denominado tombamento, o qual proíbe a sua mutilação, destruiçãoe/ou demolição, mas permite obras de restauração, reparação e pintura.

Ao longo da história da humanidade, nunca se estabeleceram critérios comunse permanentes na classificação do que deveria ser protegido. A preservação tinha

9 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. Curitiba: Juruá, 2008,p. 16

10 Idem. p. 36.

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como objeto apenas o que parecia ser “importante”, ou seja, daquilo que estaria ligadoàs elites.

Em geral, guardaram-se os objetos e as construções ricas da classe poderosa. Guardaram-seos artefatos de exceção e perderam-se para todo o sempre os bens culturais e corriqueiros dopovo. Esses bens diferenciados preservados sempre podem levar a uma visão distorcida damemória coletiva, pois justamente por serem excepcionais não têm representatividade.11

O caso da Vila Itororó ilustra bem a descrição acima. O conjunto residencialda Vila foi construído por um português pertencente à elite paulistana e manteve suapreservação ao longo do tempo por ser uma construção de grande valor arquitetônicoe histórico. Essa preservação ocorreu através de seu tombamento, realizado peloCONPRESP12 e pelo CONDEPHAAT13, o qual visava criar condições para apreservação dessa área em face às modificações de caráter imobiliário que vinhamcrescendo nesse período no Bairro da Bela Vista.

O “Projeto de Recuperação Urbana da Vila Itororó”14 foi elaborado em 1976pela Prefeitura. Posteriormente, em 2006, o prefeito José Serra sancionou o Decretonº 46.926, que declara de utilidade pública os imóveis particulares situados na Vila,os quais deverão ser desapropriados para a execução desse plano de urbanização.

Para a concretização desse projeto, a Prefeitura prevê a implantação e a operaçãode obras e serviços de “recuperação”, realizadas pelos órgãos públicos a fim de que,posteriormente, iniciativas privadas interessadas em explorar economicamente o localpossam se estabelecer. Os objetivos previstos são, além de recuperar e valorizar oconjunto arquitetônico urbanístico, valorizar a micro-região da Bela Vista e tornar oprojeto auto-sustentável a partir do desenvolvimento de atividades culturais, artísticas,educacionais, comunitárias e turísticas. Para isso, estão previstos espaços para oficinas,teatros, cinemas, livrarias, galerias de arte, restaurantes, bares, estacionamentos einstalações hoteleiras.

O seguinte conceito de lazer foi utilizado no projeto:

[lazer] é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade,seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolversua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livrecapacidade criadora.15

11 LEMOS, Carlos A. C. O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 22.12 Resoluções 01/93 e 22/02.13 Resolução SC 09/05.14 Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.

2008.15 DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 34, apud Projeto de

Recuperação Urbana da Vila Itororó.

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A prefeitura diz ainda respeitar, no projeto, os princípios consagradosinternacionalmente na Carta de Veneza, da qual o Brasil é signatário. O trecho dotratado citado no próprio projeto diz:

A noção de monumento compreende não só criação arquitetônica isolada, como também oambiente no qual ela se insere. O monumento é inseparável do meio no qual ela se situa e dahistória do qual é o testemunho. Reconhece-se então tanto o valor monumental dos grandesconjuntos arquitetônicos, quanto o de das obras modestas que com o tempo adquiriram umasignificação cultural e humana.16

No entanto, se analisarmos com maior atenção essa proposta, podemos levantaruma série de questões quanto à sua elaboração e função. Conforme a própria Carta deVeneza estabelece, o monumento histórico não pode ser separado do ambiente noqual ele está inserido, mas tal distinção ocorre nesse projeto. Em nenhum momento aprefeitura prevê a interação dos moradores da Vila Itororó com o desenvolvimentodo pólo cultural nessa região. Desse modo, além de não propor um projeto em relaçãoà moradia, a Prefeitura acredita que a questão cultural e a questão da moradia sãoincompatíveis no caso da Vila Itororó.

A ideia de cultura inserida nesse projeto é a de uma cultura voltada exclusiva-mente para uma lógica mercadológica, que se torna evidente quando o projeto esta-belece como um dos seus objetivos a auto-sustentabilidade e, até mais, que ele sejarentável economicamente. Isso significa que a cultura produzida nesse espaço deve-rá atender aos interesses do mercado, pois só assim ela será consumida e trará lucrosaos seus investidores. Essa concepção de cultura enquanto “produto trocável pordinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer coisa”17 pode serdenominada “cultura de massas”, cujas origens históricas remontam à RevoluçãoIndustrial e o surgimento de uma economia de mercado.

O Poder Público, dessa forma, impõe à comunidade da Vila Itororó umaespecífica ideia de cultura, que não se relaciona com os moradores. É a “afirmaçãode um padrão cultural único e tido como o melhor para todos os membros dasociedade”18. Assim, os moradores locais são duplamente privados pela Prefeitura: odireito à sua própria cultura lhes é, pois se perderá com a desapropriação. Tambémlhes é negado o acesso a essa cultura “de consumo”, já que os moradores dificilmentepoderão pagar quantias elevadas para usufruírem das atividades desenvolvidas nessepólo cultural. Assim, notamos como a ideia inicialmente proposta do “indivíduo poder

16 Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.2008.

17 COELHO, Texeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 11.18 CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007. p. 50.

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se entregar de livre vontade” ao lazer nesse local é restrita e não contempla as própriaspessoas residentes na Vila Itororó. A Vila, porém, não é um caso isolado: estárelacionada a uma lógica econômica e urbanística mais ampla.

4. ASPECTOS ECONÔMICOS E URBANÍSTICOS DO PROJETO

O projeto de revitalização da Vila Itororó, proposto pela Prefeitura de SãoPaulo, revela não só um conceito de cultura adotado, mas também um modelourbanístico. Na apresentação do projeto, a seguinte passagem se mostra relevante afim de compreender o enfoque estatal:

A iniciativa da Prefeitura, através da Secretaria Municipal de Cultura, com a participaçãointegrada das Secretarias de Planejamento e da Habitação e Desenvolvimento Urbano, e daEMURB – Empresa Municipal de Urbanização, prevê, a implantação e operação das obrase serviços de recuperação com participação da iniciativa privada. Ou seja, não se cogitapara a Vila a criação de um novo Centro Cultural ou de um Museu ao ar livre, mas sim umconjunto dinâmico de atividades que incorporem e ultrapassem esses programas e apresentemcondições de auto-sustentabilidade após as intervenções que necessariamente deverão serfeitas pela Prefeitura.19 (grifo nosso)

Essa caracterização é representativa do projeto como um todo e faz-se neces-sário avaliar alguns de seus pontos. A Prefeitura é bastante clara ao dizer que a “recu-peração” da Vila Itororó se dará por meio de participação da iniciativa privada, apósintervenções feitas pelos órgãos públicos citados. O modelo aqui pretendido, portan-to, é essencialmente privado: precisa apresentar condições de auto-sustentabilidade,que, em outras palavras, quer dizer autonomia econômica traduzida na forma delucro. Ou seja, os bares, restaurantes, galerias e até uma rede hoteleira terão as condi-ções necessárias a desenvolverem suas atividades comerciais.

A lógica aqui apresentada insere-se no contexto de reestruturação global dosistema econômico, evidenciada no Brasil a partir da década de 1990, através demedidas de flexibilização do mercado de trabalho e ajustes estruturais que limitaramos gastos públicos. Essas mudanças

transformaram a geografia da pobreza urbana e da vulnerabilidade social, com impactosprofundos na dinâmica de agregação societária do território popular e nas relações reais ousimbólicas que este estabelece com o restante da cidade.”20

Ainda sobre as transformações econômicas, a urbanista Mariana Fix analisabrevemente:

19 Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.2008.

20 ROLNIK, Raquel. A Lógica da Desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. p. 10.

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A liberalização e a desregulamentação financeira inseriram novamente o Brasil nos fluxosinternacionais de capital, interrompidos com a crise da dívida e a derrocada dodesenvolvimentismo, no contexto da crise da ordem de Bretton Woods. Contudo, ao contráriodo ciclo desenvolvimentista, a liberalização foi responsável por atrair montantes elevadosde capital, financeiro especulativo, os mesmos que invadiram as periferias asiática e latino-americana, em um contexto de aumento da mobilidade do capital e de busca por rentabilidadetambém fora dos países centrais.21

Assim, essas transformações deram início à consolidação de um modelourbanístico concentrador e excludente, estruturando as cidades brasileiras:

O território popular se densificou, sobre uma base urbanística frágil e tosca, fruto deintervenções fragmentadas, desconectadas e descontínuas, definidas e executadas natemporalidade “da política”.

A Vila Itororó é representativa dessa forma de urbanização, que hoje, no casoespecífico do qual tratamos, é objeto de iniciativas de reforma e de “revitalização”.

Para “revitalizar” pressupõe-se que não haja mais vida e é exatamente essa avisão da Prefeitura: os moradores e suas histórias não são em momento algum citadosno plano de reforma, apenas menciona-se que alguns dos espaços serão desapropriados.“Revitalizar”, do modo proposto (ou imposto, uma vez que não houve participaçãodos moradores e de demais cidadãos na elaboração do planejamento), e “o chamadoplanejamento estratégico, as operações urbanas e as parcerias público-privadas”23

compõem o núcleo em torno do qual se forma o “pensamento único das cidades”24.Tal pensamento substitui a ideia de desenvolvimentismo por um modelo de cidadescompetitivas, atraentes e funcionais. Assim, a ideia de alcançar um padrão de vidados países ricos por meio da industrialização e desenvolvimento internos foiabandonada. Tal mito foi substituído pelo das “cidades globais” (global cities), cidadesque são competitivas internacionalmente, cidades que têm “vocação para dar certo”.

O próprio projeto da Prefeitura descreve a Vila com um grande potencial:

A Vila Itororó apresenta uma configuração espacial especialíssima, com grande potencialcenográfico, que a torna única para a possibilidade de acomodar atividades de caráter cultural,educacional e de lazer, com repercussão no campo do turismo, que ultrapassa de muito o

21 FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo,2007, p. 166.

22 ROLNIK, Raquel. A Lógica da Desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008. p. 10.23 FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo,

2007, p. 163.24 ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do Pensamento Único. São Paulo: Vozes, 2000.

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âmbito local, possibilitando uma referência de caráter metropolitano e estadual, pelo menos.É esta referência que orientou também a definição do vulto das atividades previstas parainstalação na Vila.25 (grifo nosso).

Torna-se, portanto, muito clara a intenção de repercussão da reforma e dosefeitos atrativos para além do bairro, além da Bela Vista e até da própria cidade deSão Paulo. Reformas como as propostas têm reconhecida visibilidade internacional eturística, como nos casos do Pelourinho em Salvador e de Puerto Madero, em BuenosAires. Ambos os lugares são exemplos de espaços ditos degradados, em parteabandonados, que foram revitalizados e são hoje centros de comércio e visitação.

Aqui, no caso da Vila Itororó, instrumentaliza-se o conceito de cultura a fim decriar esses espaços atraentes, que tornam a cidade mais bonita, com mais visibilidadee mais excludente. Reformar, por si só, não é uma ação necessariamente negativa. Aquestão aqui gira em torno de uma lógica privatista, que visa à expulsão de moradoresde suas casas a fim de criar mais um espaço de consumo na cidade de São Paulo. Sea cidade é um espaço de interação, de encontros, de construção e de consolidação derelacionamentos, a efetivação do projeto da Prefeitura seleciona somente algumaspessoas que possam dele participar. A limitação é essencialmente econômica, umavez os atuais moradores da Vila Itororó, por exemplo, não teriam recursos financeirose nem disponibilidade de tempo para aproveitar restaurantes, bares e galerias, muitomenos hotéis.

A iniciativa da Prefeitura, se concretizada, cria mais um lugar de anti-cidadeem São Paulo, por impossibilitar a interação espontânea entre pessoas, porimpossibilitar a sensação narrada por Júlio Cortázar, em um de seus contos:

Cuando abra la puerta y me asome a la escalera, sabre que abajo empieza la calle; no elmolde ya aceptado, no Ias casas ya sabidas, no el hotel de enfrente; la calle, la viva florestadonde cada instante puede arrojarse sobre mi como una magnolia, donde Ias caras van anacer cuando Ias mire, cuando avance un poço más(...)26

Cabe, nesse momento, expor e analisar a perspectiva dos moradores.

5. A REALIDADE DOS MORADORES DA VILA ITORORÓ

Realizamos, em conjunto com os moradores, uma dinâmica sobre os váriosconceitos de cultura, no primeiro semestre de 2008. Organizamo-nos em três grupose foi pedido a cada pessoa que trouxesse de sua casa um objeto que representasse o

25 Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf, acesso em 18 Set.2008.

26 CORTÁZAR, Mio. Cuentos Completos 1. Madri: Alfaguara, 2007, p. 406.

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que ela entendia por cultura. Dessa forma, moradores e moradoras voltaram às casase trouxeram pro pátio da Vila toda sorte de objetos: figuras de santos, crucifixos, CDscom músicas de sua terra, quadros, fotos, ornamentos, peças de vestuário. Cada umteve sua vez de explicar o porquê do objeto escolhido e sua significação.

Uma moradora levou uma flor. Explicou que a flor representava pra ela anecessidade de preservação, tanto do meio ambiente quanto das pessoas e que issosimbolizava o que ela entende por cultura. Um outro morador, que materializou suaconcepção de cultura num crucifixo, ressaltou a importância de respeitar a religião ea crença dos outros, assim como as culturas diferentes, como foi apontado por algunsmoradores, migrantes do nordeste do país. Um menino, filho de uma moradora etambém ele morador da Vila, sintetizou as opiniões levantadas: “As pessoas só vêemo lado de fora da Vila. Esquecem que a aqui tem gente. Esses objetos representamisso, sem eles, sem cultura, a gente fica seco por dentro.”27.

Entendemos que a construção cultural se dá nas relações do homem com seuespaço e as produções culturais não necessitam estar em lugares ditos qualificadospara que tenham valor, como galerias e museus. Assim,

a cultura, no amplo conceito antropológico, é o elemento identificador das sociedades humanase engloba tanto a língua na qual o povo se comunica, conta suas histórias e faz seus poemas,como a forma como prepara seus alimentos, o modo como se veste e as edificações que lheservem de teto, como suas crenças, sua religião, o saber e o saber fazer as coisas, seu direito.28

Por esses motivos, não entendemos que possa haver uma hierarquia entreculturas, uma cultura melhor ou superior que as demais. A Vila Itororó, dessa forma,já é um pólo cultural. Seu espaço contém histórias de vida, revela como os moradoresconvivem e se relacionam, produz lembrança e memória, sem as quais resta apenasum “grupo [de pessoas] sem norte, sem capacidade de escrever sua própria história e,portanto, sem condições de traçar o rumo de seu destino.”29

A partir dessa linha de pensamento, cultura e moradia não são excludentes.Elas podem conviver no mesmo espaço e isso é claramente demonstrado no projetohabitacional realizado pelo grupo EMAU-Mosaico30. Essa proposta de extensãouniversitária “objetiva-se a atender as demandas sociais organizadas que se encontramà margem da produção do mercado imobiliário e, muitas vezes, das ações do poder

27 Relato anotado e representado de forma livre, porém sem mudança de conteúdo.28 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. Curitiba: Juruá, 2008, p. 1529 Idem. p. 16.30 Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie.

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público, com trabalhos essencialmente participativos.”31 Assim, em trabalho conjuntocom os moradores e moradoras, foi construído um estudo sobre a área, visando àconstituição do direito de morar no centro da cidade.

O projeto prevê três praças de uso comum, sendo uma delas destinada às criançasda Vila, bem como a existência de 70 unidades habitacionais que abarquem as famíliasque hoje lá vivem. A reforma dos prédios e casas é um pressuposto, porém a funçãode moradia pode ser mantida, como exemplificado:

Dessa maneira, foi contemplada a perspectiva do palacete passar a ser de uso público – eaqui entende-se uso público como o relativo a serviços de acesso universal e não restaurantese cafés, por exemplo – podendo ser oferecido a alguma Secretaria Municipal ou Estadual,com atendimento à população, ou mesmo ao Serviço Social do Comércio, considerando-seo trabalho social desenvolvido pelos SESCs e a possibilidade de recuperação da primeirapiscina coletiva para um uso efetivo da população. As demais edificações da Vila poderiamser recuperadas para seu uso original – o de habitação – compondo estratégias de importantesprogramas públicos de apoio à moradia em área central.32

Analisamos, a seguir, experiências na cidade de São Paulo que conjugam amoradia e a cultura.

6. OUTRAS PERSPECTIVAS

Defendemos, portanto, que cultura e moradia podem conviver em um mesmoespaço, assim como o posposto pelo projeto do grupo EMAU-Mosaico, em que asáreas de cultura e lazer construídos não excluem os moradores, que podem permanecerna Vila contribuindo para formação cultural do espaço. Avaliamos que a cultura podeser mais do que entretenimento, pode contribuir para história do local, para ofortalecimento da comunidade e o desenvolvimento dos que lá vivem.

O Projeto de Recuperação da Vila Itororó apresentado pela Prefeitura, jáanteriormente citado, não observa que a sobrevivência da Vila Itororó se deve àpresença resistente dos moradores, que se mantiveram no local como mantenedorese preservadores do patrimônio histórico da Vila. Deslocar os moradores e moradorasda Vila, portanto, seria afastá-los do próprio núcleo cultural que eles própriosconstruíram. É não permitir o reencontro dessa população com a sua própria história.Isso seria o mesmo que contar a história do Bairro da Bela Vista sem mencionar seuspróprios personagens.

31 Disponível em: http://www.mosaicomakenzie.org/index.html, acesso em 10 Out. 2008.32 Projeto habitacional para a Vila Itororó 2008. Mosaico/Vida Associada – FAU Mackenzie, p. 3.

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Dentro desse contexto, surge a questão: seria possível preservar moradia,patrimônio histórico e cultura? Utilizamos o caso da Vila Operária Maria Zélia, situadano bairro de Belenzinho, Zona Leste de São Paulo, para demonstrar a possibilidadede uma relação integrada e sustentável desses três vértices presentes tanto na discussãoda Vila Itororó, como na Vila Maria Zélia.

A Vila Operária Maria Zélia, construída em 1917, abriga aproximadamente180 casas e 600 famílias que formam a Sociedade Amigos da Vila Maria Zélia, fundadano dia 10 de julho de 1981. A Vila Maria Zélia foi tombada pelo CONDEPHAAT33

em 1992, e os próprios moradores estão organizados para promover a revitalizaçãodos prédios históricos, que pertencem ao INSS34. A Sociedade dos Amigos buscaefetivar melhorias nos prédios e armazéns, que se encontram em condições precárias.Na Vila Maria Zélia, a peça A residência do Grupo XIX35 de teatro trouxe uma formade revitalização que procura trabalhar com os espaços, atendendo às necessidadesdos moradores.

O projeto do Grupo XIX foi contemplado pela Lei de Fomento ao Teatro paraa cidade de São Paulo, em janeiro de 2004, momento em que teve início o “trabalhosócio-cultural de residência” nessa vila. Agora, o grupo retorna à Maria Zélia com oprojeto Casa Aberta, motivado por outra Lei de Fomento, dando continuidade para aresidência artística. O projeto do grupo procura trabalhar sem hierarquias, em umprocesso colaborativo de criação, em que dramaturgo, diretor de arte, diretor, atorese atrizes e o próprio público participam da construção artística da peça. Ressalta-se ainiciativa do grupo teatral de afirmar o vínculo do teatro com a cidade, a aproximaçãoe a apropriação da arquitetura e dos valores sociais e antropológicos guardados nasedificações e nos patrimônios históricos.

Na construção das peças, o grupo realiza uma pesquisa temática pautada nahistória do Brasil em conjunto com um processo investigativo, que busca a construçãoda realidade social de determinada época a partir da história oral, de registros emperiódicos e outros meios que aproximem do cotidiano a ser interpretado. Nessesentido, a residência artística, buscando um contato com a antropologia do local,pode ser um meio de (re)viver a história por parte do moradores, que podem contribuircom relatos, documentos históricos, fotografias e cartas.

Por outro lado, o projeto do Grupo XIX, incentiva a integração dos habitantesde outras áreas de São Paulo com a história da Vila Maria Zélia, não com um olhar de

33 Processo: 24268/85 – Tomb.: Res. SC 43 de 18/12/92 – D.O.: 19/12/92. Livro do Tombo Histórico: Inscrição nº305, p. 77, 28/5/1983.

34 Disponível em: http://www.vilamariazelia.com.br/vilahoje.html, acesso em 5 Out. 2008.35 O Grupo XIX teve início no Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP).

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um museu estático, mais em uma perspectiva que possibilita interação do teatro, dosprédios históricos e o cotidiano dinâmico dos moradores que lá residem. É apossibilidade de somar a cultura preocupada com sua função social e aspectos vivosda formação histórica da cidade.

Embora não se trate especificamente de moradia, a manutenção de valoresantropológicos e de uma cultura dinâmica também é exemplificada por um terreirode candomblé de nação Ketu, localizado na Vila Facchini, em São Paulo. O Axé IlêObá36 também foi tombado pelo CONDEPHAAT. Com a morte do proprietário doespaço, esse seria dividido entre os herdeiros, mas a sobrevivência do terreiro dependiadas instalações já construídas e assim, o tombamento foi a saída vislumbrada. Muitosespecialistas hesitaram em considerar o Axé Ilê Obá como patrimônio cultural,alegando “não ter tradição”. O argumento, porém, foi superado, uma vez que oentendimento do conceito de patrimônio cultural deixou de se orientar por uma “culturaem conserva” de uma tradição estática, fria e repetitiva.

Os dois exemplos mostram a preservação de uma cultura em constanteconstrução e não desmembrada do círculo social em que vive, é nesse sentido quepensamos a Vila Itororó. Para esta, que já foi palco de uma Festa Junina em 200737

organizada pelos moradores, desejamos que seja palco de outras intervenções culturaisrealizada pela comunidade e que possa desfrutar de outras produções de cultura quesejam construídas na Vila.

7. CONCLUSÃO

Buscamos, com esse artigo, contribuir com o debate sobre projetos dedesapropriação em áreas tombadas, sempre tendo como ponto de partida o papel dosmoradores enquanto sujeitos, que, organizados, conseguem mostrar a possibilidadede convivência da moradia e da cultura.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COELHO, Texeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2004.

36 Disponível em: http://www.aguaforte.com/antropologia/osurbanitas/revista/tombasp.htm, acesso em 11 Out. 2008.37 Disponível em: http://vilaitororo.blosspot.com/2007/07/ii-festa-junina-da-vila-itoror-junho07.html, acesso em

05 out. 2008

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http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arguivos/secretarias/cultura/vilaitororo.pdf

http://www.vilamariazelia.com.br/vilahoje.html

http://vilaitororo.blogspot.com/2007/07/ii-festa-junina-da-vila-itoror-junho07.html

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A Experiência do SAJU-USP na Vila Itororó:Assistência e Assessoria Podem CaminharJuntas?

CAIO SANTIAGO, PAULO L. MARTINS,RAFAELA OLIVEIRA E VIVIAN BARBOUR1

Graduandos em Direito.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Marcos Teóricos; 3. Experiências Brasileiras – Aformação das AJUPs e da Renaju; 4. O Modelo de Atuação do SAJU-USP naVila Itororó; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende promover uma releitura dos conceitos de Assistênciae Assessoria no atual contexto de luta pelo direito à moradia, para então responder àpergunta principal deste trabalho: de que forma deve se dar a intervenção dasAssessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs) nos conflitos fundiáriosurbanos a fim de contribuir para a garantia do direito à moradia de comunidades debaixa renda?

Para isso, iniciaremos com uma abordagem dos referenciais teóricos dosserviços legais inovadores. Posteriormente, enfocaremos as primeiras experiênciasdestes na década de 1980 e as atuais práticas de assessoria jurídica universitária, apartir do modelo predominante na Rede Nacional de Assessorias JurídicasUniversitárias (RENAJU). Por fim, apresentaremos um contraponto a esse modelo,com base na atuação do SAJU-USP na comunidade da Vila do Itororó, no centro deSão Paulo.

1 Os autores são estudantes de graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membros doServiço de Assessoria Jurídica Universitária da USP (SAJU-USP), grupo de extensão sob orientação do ProfessorAssociado Celso Fernandes Campilongo, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.

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2. MARCOS TEÓRICOS

No período das décadas de 1980 e 1990, no contexto da retomada dasmobilizações populares na América Latina e do processo de redemocratização política,formaram-se novas correntes críticas na teoria do Direito. Em conjunto com oPluralismo Jurídico e com o Direito Alternativo, surgem novas práticas jurídicas emdiversos países da região, ligadas ao pensamento marxista, que visavam romper coma tradicional lógica formalista e tecnicista do direito.

Diretamente ligadas às lutas sociais do período, essas novas práticas de atuaçãojurídica colocaram-se ao lado dos nascentes movimentos sociais, contribuindo parasua organização e prestando apoio jurídico. Nesse sentido, traziam a luta dosmovimentos para o mundo jurídico, dentro das possibilidades criadas pelos novosmarcos legislativos da época, conquistados pelas mobilizações populares, como, porexemplo, a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu garantias para diversosdireitos sociais e previu novos instrumentos processuais para atender às demandascoletivas.

Essa nova linha de atuação teve seu primeiro estudo empírico específico comFernando Rojas2, em 1988. A partir de uma análise em quatro países da AméricaLatina (Chile, Colômbia, Equador e Peru), o autor buscou características identifica-doras do que chamou de “serviços legais alternativos”, quais sejam:

a) Ideia de mudança social a partir de uma visão de igualdade que transcendeseu aspecto formal e de um valor de justiça baseado na solidariedade;

b) Crítica e combate ao sistema capitalista, com a ideia de que os serviçoslegais alternativos atuam como metas transitórias na concretização de avanços sociais; e

c) Ações de organização comunitária e de conquista do poder político pelasminorias excluídas.

Esses serviços pesquisados, segundo Rojas, não só se formaram fora do âmbitodo Estado, na forma de organizações não-governamentais, como também eram, muitasvezes, críticos a este. Sua atuação se dava justamente aliada aos novos movimentossociais em expansão, ligados aos grupos sociais oprimidos, como trabalhadores rurais,mulheres e índios, assim como à população pobre das cidades. Além disso, Rojasobservou que, por serem oriundos de escolas de referência social, os militantes dessesserviços possuíam alta formação técnica.

2 ROJAS, Fernando. Comparación entre las tendências de los servidos legales en Norteamérica, Europa y AméricaLatina (primera e segunda parte) – El otro decrecho. Bogotá, pp. 5-57, agosto, 1988.

3 Para um estudo sobre a obra de Rojas, conferir LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular noBrasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 48-59.

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No Brasil, o principal marco teórico sobre esses novos serviços legais é oestudo realizado por Celso Fernandes Campilongo4, no início da década de 1990.Nele, o autor elaborou, a partir da literatura então existente sobre o tema, como otrabalho de Rojas, uma tipologia ideal da dicotomia entre os serviços legaistradicionais, de um lado, e os serviços legais inovadores, de outro. Em um segundomomento, o autor realizou, utilizando como instrumento de análise essa construçãoteórica, uma pesquisa empírica sobre os serviços legais em São Bernardo do Campo.

O trabalho apresentou como critérios basilares dessa dicotomia, o interessetutelado, o vínculo ético, a natureza do serviço, a relação cliente/advogado, oconhecimento e o acesso à justiça. Nessa linha, os serviços legais inovadores tratariamde demandas coletivas, fundados numa macroética com vistas à conscientização dogrupo atendido sobre seus direitos e à necessária organização para a concretizaçãodestes. Esse modelo concebe o acesso à justiça para além do Poder Judiciário, numarelação horizontal entre os clientes e advogados, com base na desmistificação doconhecimento jurídico.

Os serviços legais inovadores, no Brasil, são comumente denominados deassessorias jurídicas, enquanto que os serviços tradicionais, de assistência. Emboranão seja nossa intenção promover uma discussão conceituai, uma análise mais apuradadas ideias deduzidas por Campilongo revela que houve uma assimilação equivocadados conceitos forjados em seu trabalho – a contraposição entre tradicional e inovadornão corresponde necessariamente ao par assistência-assessoria5. Conforme veremos,essa diferenciação entre assessoria e assistência marcou profundamente o surgimentode grupos universitários e da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária.

3. EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS – A FORMAÇÃO DAS AJUPS E DARENAJU

As experiências brasileiras dos serviços legais inovadores, conforme seu campode atuação, podem ser distinguidas em Advocacia Militante e Assessoria Universitária,segundo Vladimir de Carvalho Luz6 Para o autor, a primeira consiste na atuação deentidades não-governamentais, sem vínculos acadêmicos e universitários, enquanto

4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em São Bernardodo Campo. In: O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 15-52.

5 Campilongo baseou sua tipologia de serviços legais em diferentes modelos de assistência jurídica, diferenciando-os entre tradicionais e inovadores, não em assistência e assessoria. De fato, todos os modelos analisados peloautor realizavam trabalho de assistência jurídica, diferenciando-se quanto ao modelo utilizado.

6 LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica ePerspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 124-154.

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a segunda é realizada por estudantes de direito, em ambiente de universidades, comuma organização autônoma em relação à administração destas.

Enquanto paradigmas de grupos de Assessoria Universitária, objeto deste artigo,cabe destacar os Serviços de Apoio Jurídico (SAJU’s) das Universidades Federais daBahia e do Rio Grande do Sul.

O autor afirma que, apesar de formadas em épocas e ambientes distintos, taisgrupos estudantis possuíam as seguintes características comuns:

a) Diferenciação entre os conceitos e as práticas de assistência jurídica,entendida como apoio jurídico individual, e de assessoria jurídica, entendida comoapoio jurídico coletivo;

b) Autonomia decisória em relação à administração das universidades, sendoformadas e geridas por iniciativa exclusiva dos estudantes;

c) Desenvolvimento de projetos de extensão e/ou pesquisa, em atividadespermanentes ou sazonais;

d) Ampliação das práticas jurídicas para além do âmbito forense; e

e) Interação institucional com a universidade a partir da ocupação de seusespaços públicos, ao tempo que promovem atividades de caráter social.

O SAJU-UFRGS foi fundado em 1950, sendo que, até a década de 1980, aentidade seguiu um modelo de atuação jurídica marcadamente assistencialista,limitando-se ao aspecto processual das demandas, em geral de caráter individual,dentro do paradigma de serviço legal tradicional. Posteriormente, com a formação degrupos temáticos sobre regularização fundiária e gênero, aproximou-se de um modelomais inovador, passando a atender também demandas de caráter coletivo de grupossociais oprimidos. Em 1990 e 91, a entidade consolidou-se enquanto prestadora deassessoria jurídica na região metropolitana de Porto Alegre.

Apesar de enfrentar algumas dificuldades em relação a conflitos internos, àcontinuidade dos programas e à formação teórica de seus membros, o SAJU-UFRGSrealizou importantes atividades de impacto na sua região, como o ajuizamento deações coletivas, promoção de projetos de pesquisa e elaboração de cartilhas, jornaise revistas próprias. Estas constituem importante material de pesquisa sobre o grupo,essencial para o registro de suas atividades e de seu pioneirismo enquanto assessoriajurídica.

Em semelhança à entidade gaúcha, o SAJU/UFBA iniciou, na década de 1960,um modelo de atuação jurídica essencialmente assistencialista, sendo uma espécie delaboratório de prática forense do curso de Direito. Apenas em 1996, o grupo, a partir

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de um contato com o modelo de assessoria jurídica, passou também a atender demandascoletivas, dentro de um padrão mais próximo da assessoria.

Na década de noventa, surge a Rede Nacional de Assessorias JurídicasUniversitárias (Renaju), como forma de aglutinar os projetos que se difundiram entreas faculdades de direito de todo o país. Hoje, a Rede conta com vinte e três projetosde todas as regiões, sendo mais presente no Sul e no Nordeste brasileiros. Entre essesprojetos, são poucos os que compreendem a assessoria como uma prática que envolvaa atuação judicial. Com poucas exceções, a Rede tem adotado o entendimento de quea assessoria jurídica universitária prescinde da prática judicial (assistência).

Nesse sentido, a maioria dos projetos ligados à rede possuem práticas de edu-cação popular que exploram interfaces do direito com outras áreas do conhecimento,como a pedagogia, a comunicação e a economia, mas abrem mão das vias judiciais comoforma possível de solução de conflitos. Essa ideia extrajudicial de atuação tem comofundamentação a construção de um novo direito, mais próximo dos anseios e necessida-des das classes oprimidas, considerando o direito como um ideal ético de justiça.

4. O MODELO DE ATUAÇÃO DO SAJU-USP NA VILA ITORORÓ

A fim de contribuir com a presente discussão, apresentaremos, a seguir, omodelo de atuação que o SAJU-USP desenvolveu na comunidade da Vila Itororó.Não queremos com isso propor um modelo abstraio e aplicável em qualquer localidade,sob quaisquer condições, mas demonstrar a possibilidade de conciliação entre doismodelos de atuação jurídica supostamente excludentes, assistência e assessoria.

A concepção que o SAJU-USP desenvolveu sobre o que seria o modelo idealde uma assessoria jurídica universitária sempre contemplou, em primeiro plano, otrabalho de educação jurídica popular, muitas vezes confundido, aliás, com a própriaideia de assessoria. De fato, nunca fomos contrários a uma prática que envolvesse aassistência jurídica, até porque um de nossos mais antigos Grupos de Trabalho, desdesua fundação, sempre atuou com a judicialização de conflitos fundiários urbanos7.Por outro lado, fortemente influenciados pelos escritos de Paulo Freire, acreditávamosna possibilidade de uma atuação extensionista que se restringisse à área da educaçãoe da comunicação.

Nossa inserção na comunidade da Vila Itororó, no entanto, nos fez rever algunsconceitos já cristalizados pela prática. Tivemos um primeiro contato com o caso pormeio das reuniões do Fórum Centro Vivo, articulação entre movimentos sociais,

7 O atual Grupo de Regularização Fundiária da Paraisópolis constituiu-se dentro do SAJU-USP em 2003, a partirde um convênio com a Procuradoria Geral do Município de São Paulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto, como objetivo de promover a regularização fundiária em uma quadra da favela de Paraisópolis.

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entidades da sociedade civil e grupos universitários que possuem algum tipo de atuaçãono centro da cidade de São Paulo.

A comunidade, localizada no centro da cidade de São Paulo, sempre chamou aatenção do Poder Público por sua composição arquitetônica. Dessa peculiaridaderesultou, aliás, o tombamento do conjunto pelos órgãos de defesa do patrimôniohistórico e cultural do município e do estado de São Paulo, Conpresp e Condephaat,respectivamente. A Prefeitura de São Paulo possui projetos antigos de “revitalização”da área, que incluem a transformação da Vila em um pólo cultural dotado derestaurantes, teatros, bares e livrarias8. Em 2006, a Vila foi declarada como área deutilidade pública, sendo, atualmente, objeto de ação de desapropriação.

Desde este primeiro momento, portanto, ficou claro para nós que a judicializaçãodo conflito por que passava a Vila era a possibilidade mais plausível para solucionara situação de instabilidade jurídica que se instaurara na comunidade desde 2006.

O primeiro contato que tivemos com a comunidade, intermediado pelo CentroGaspar Garcia de Direitos Humanos, que cuidava do caso até então, foi marcado porum forte apelo assistencialista, em que assumíamos um papel passivo de estagiáriosde direito. Apesar de insatisfeitos com nossa atuação, nos submetemos temporaria-mente a ela por considerarmos importante preparar, em pouco tempo, a petição ini-cial do processo de usucapião que buscaria defender os interesses dos moradores.

Como a comunidade não possuía histórico anterior de mobilizações, osprimeiros meses de trabalho foram marcados por dificuldades de comunicação e pelosbaixos quóruns das reuniões. Além disso, os requisitos formais de instrução da peçainicial comprometiam quase que a totalidade do tempo de nossos encontros com acoleta de documentos e conversas individuais sobre a situação de cada morador. Talprocesso, apesar de burocrático, possibilitou um contato mais próximo entre nós,grupo de assessoria jurídica, e a comunidade, atraindo a atenção de moradores que,inicialmente, se demonstravam apáticos e desinteressados.

Ajuizada no início de 2008, a Ação de Usucapião Especial Urbana em litis-consórcio ativo facultativo possui fundamentos na Lei 10.257/2001, o Estatuto daCidade. Inicialmente, aderiram à ação quarenta das setenta famílias que ocupam osimóveis da Vila Itororó. Além desta ação, também assessoramos a comunidade naAção de Desapropriação movida pela Fazenda Pública do Estado contra o proprietáriode direito da Vila Itororó – a Fundação Leonor de Barros Camargo.

Com a situação mais tranquila, nos organizamos para iniciar um projeto deeducação jurídica popular que complementaria o trabalho de assistência jurídica como

8 Conferir TOZZI, Décio; TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó – Projeto de Recuperação Urbana. SãoPaulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2006.

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fator politizante de nossa atuação. Durante um ano, aperfeiçoamos nosso modelo,fortemente influenciados pelos interesses e ansiedades da comunidade. Desde já, éoportuno ressaltar que, em todo o processo de educação popular que desenvolvemosna Vila Itororó, o pano de fundo fundamental que possibilitou a aglutinação dacomunidade em torno de uma pauta de interesse comum tem sido, certamente, agarantia do Direito à Moradia, cumprindo papel fundamental a judicialização dareferida Ação de Usucapião.

Detalhamos, a seguir, as etapas de desenvolvimento do nosso projeto deeducação popular, levantando os principais pontos de convergência entre os modelosde serviço legal discutidos neste artigo.

– A leitura da realidade

A formulação de um projeto de educação que contemple as questões quepermeiam o dia-a-dia da comunidade deve, por óbvio, ser capaz de compreenderquais são tais questões. Assim, a primeira e fundamental etapa é o levantamentotemático. Inicialmente, as questões levantadas pela comunidade parecem desconexase pouco inovadoras. De fato, esta fase inicia-se quase que espontaneamente nosprimeiros contatos, individuais ou coletivos, que se fazem com a comunidade.Questões muito frequentemente levantadas são aquelas relacionadas com aconvivência entre vizinhos – lixo, barulho, cachorros etc. Desacostumados com umadinâmica participativa e horizontal, não é raro que os moradores levantem tais questõespor meio de discussões pouco dialógicas, na forma de reclamações, numa “lavaçãode roupa suja” coletiva.

Havendo vários métodos viáveis para o levantamento temático (entrevistasindividuais, questionários etc.), acreditamos que o mais eficaz é sua realização emum encontro com todos os moradores interessados. Este método, ao possibilitar aosmoradores que enxerguem no outro os mesmos problemas que os afligempessoalmente, inicia um processo de construção ou fortalecimento de uma identidadecomunitária.

Nessa etapa, a clareza na definição do pano de fundo sobre o qual se erguerá oprojeto de educação é fundamental para não dispersar o espaço coletivo em construçãoe para apontar focos de discussão. Assim, a garantia do Direito à Moradia por meioda judicialização do conflito fundiário em que se insere a comunidade pode representarum interessante ponto de partida para a aglutinação dos moradores em torno de umapauta comum.

– A problematização da realidade

Depois de levantados os temas pela comunidade, segue-se a etapa de proble-matização. O principal objetivo desta fase é tentar identificar limites, possibilidades,

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insuficiências e até ingenuidades inerentes às questões sugeridas para discussão, pos-sibilitando novas abordagens para temas recorrentes. Além disso, deve-se atentarpara a aglutinação de temas que possuam aspectos comuns.

Nesta fase, cada um dos temas levantados pelos moradores será debatidoprofundamente pelo grupo de assessoria jurídica antes de levado novamente para acomunidade, com uma nova roupagem. Deve-se atentar para o estudo daspossibilidades, judiciais ou extrajudiciais, de solução da questão em debate. Cadatema será, em seguida, debatido pelos moradores que, depois de o problematizarem,apontarão a solução mais adequada para o problema.

– A modificação da realidade

É importante que haja uma ação prática para cada tema debatido. Esse apegoà prática é de grande importância para que a comunidade sinta, em curto prazo, osreflexos de sua própria organização e trabalho conjunto. Isso porque, apesar daimportante simbologia da ação judicializada, a demora típica da Justiça tende a pesarnegativamente, provocando desânimo na comunidade e uma consequentedesagregação do espaço coletivo construído.

Assim, depois de cada discussão, são debatidas propostas de intervenção narealidade. Nessa fase, são ideias recorrentes, por exemplo, a organização de mutirões(limpeza da comunidade, reformas pontuais em espaços comuns etc.), ou a busca deinstituições do direito formal para indicar alternativas para o problema (orientaçõesjurídicas, fundação de associação de moradores etc.).

Também aqui é de grande importância uma composição entre a educação e aassistência jurídica. Da comunidade, podem surgir demandas de intervenção quepassem necessariamente pela judicialização de conflitos internos, ou pelo acionamentode mecanismos administrativos do Poder Executivo em favor da comunidade.

5. CONCLUSÃO

Como procuramos demonstrar, o apelo jurídico da assistência (instrumentosprocessuais) tem muito a contribuir para a construção de um espaço coletivo e,consequentemente, para criar ou fortalecer uma identidade comunitária. Os anseiosda comunidade por uma segurança formal que garantirá o respeito aos seus direitossão consolidados na judicialização do conflito fundiário que a aflige. Assim, arepresentação simbólica do processo judicial é capaz de aglutinar os moradores emtorno de uma pauta comum, neste caso, a garantia do Direito à Moradia.

Apesar do disseminado sentimento de descrédito direcionado ao Sistema deJustiça Brasileiro, a aura de formalidade e de poder que reveste o Judiciário atrai

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determinantemente a atenção dos moradores quando são confrontados com conflitosfrente aos quais se sentem impotentes. Ao entenderem que os problemas que os afligepessoalmente são comuns a todo um universo de pessoas que constituem a comunidadeem que se inserem, os moradores tendem a buscar alternativas coletivas para soluçãode tais problemas. A possibilidade de judicialização de uma ação de natureza coletivacontribui, nesse sentido, para a aglutinação comunitária.

Esta aglutinação é fundamental para dar foco à atuação dos moradores na defesade seus direitos. A partir dela, originada de um apelo supostamente assistencialista, écompletamente viável que se estabeleça um processo de politização e emancipação.Deve-se, por outro lado, cuidar para que a judicialização do conflito não pareça asolução para os conflitos que se apresentam na comunidade, contribuindo paradissolver o espaço coletivo ainda em construção, mas que, pelo contrário, representeparte da possível solução.

Além disso, se a judicialização do conflito favorece a organização e mobilizaçãodos moradores, esta contribui, num movimento inverso, para o melhor andamentodaquela. Ou seja, a construção de um espaço que reúna e articule os sujeitos envolvidosno processo, de caráter coletivo, possibilita a melhor evolução do mesmo, em virtudede suas numerosas e complexas exigências em seu decorrer, como a documentaçãode todos os moradores, descrição histórica do local, desenho da divisão e arranjo dascasas, entre outras.

Assim, a assistência jurídica possui um papel fundamental na intervenção daAssessoria Jurídica Universitária Popular nos conflitos fundiários urbanos atuais, afim de garantir o direito à moradia da população de baixa renda. Isso porque não sóatua judicialmente dentro das possibilidades criadas pelos novos marcos legislativos,como também contribui para avanços na organização dos moradores e para suaidentidade comunitária.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em SãoBernardo do Campo. In: O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.

LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Históricae Perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

ROJAS, Fernando. Comparación entre Ias tendências de los servidos legales en Norteamérica, Europa yAmérica Latina (primera e segunda parte) – El otro derecho. Bogotá, pp. 5-57, agosto, 1988.

TOZZI, Décio; TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó – Projeto de Recuperação Urbana. São Pau-lo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2006.

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Pluralismo Jurídico e o Direito à Moradia emFortaleza

FRANCISCO FILOMENO DE ABREU NETO

Mestrando em Desenvolvimento Urbano naUniversidade Federal de Pernambuco.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho faz parte de uma dissertação apresentada no Programa dePós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco.A pesquisa abordou alguns aspectos da relação entre o pluralismo jurídico e ainformalidade urbana.

Neste trabalho entende-se por informalidade urbana o fenômeno resultante dodesenvolvimento desordenado das cidades, regrado pelo mercado imobiliárioexcludente, provocando o surgimento de assentamentos informais como favelas,loteamentos irregulares e clandestinos, cortiços e conjuntos habitacionais irregulares.O pluralismo jurídico é, por sua vez, concebido como a existência de diferentes formasde Direito, de um Direito que não se origina do Estado, mas sim de necessidadeshumanas não atendidas, não providas, pela máquina estatal.

Buscou-se neste trabalho abordar o direito à moradia dentro de diferentesescalas, desde a escala internacional até a local, considerando na escala localassentamentos urbanos que vivem atualmente tanto processos de regularizaçãofundiária como de conflitos fundiários. Faz-se uma análise do arcabouço institucionalrelacionado ao direito à moradia e a práxis local dentro dos assentamentos irregulares.

1. O PLURALISMO JURÍDICO E A CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DODIREITO

Ao se falar de pluralismo jurídico temos que tratar do Estado como produtodas relações sociais. Os diferentes segmentos da sociedade vivem se relacionando,muitas vezes em relações de opressão de uns sobre os outros. As diferentes relaçõessociais, as diferentes relações de poder determinam a configuração das instituiçõesestatais.

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Como o Estado é produto de uma relação, ele não pode ser visto simplesmentecomo instrumento de uma classe, como marionetes da classe burguesa, pois nemmesmo existe uma unidade na classe burguesa. O Estado, sua política, sua forma,suas estruturas, traduzem, portanto, os interesses da classe dominante não de modomecânico, mas através de uma relação de forças que faz dele uma expressãocondensada da luta de classes em desenvolvimento (POULANTZAS, 1980).

Os diferentes atores da sociedade convivem dentro do Estado em contradição,em relação de força. Muitas vezes cada estrutura, cada camada do Estado, é ocupadapor uma classe ou fração de classe. No entanto, da mesma maneira que o Estado nãoé o simples instrumento de uma classe, ele também não é simplesmente um produtodesconexo das relações. O Estado tem uma unidade que se traduz por sua políticaglobal e maciça em favor da classe ou fração hegemónica.

Assim como o Estado, o Direito vai incorporar as lutas de classes. Como afirmaArruda Jr. (1992, p. 96), “o Direito é um fenômeno histórico, que expressa o avançoou não de uma luta política entre classes sociais. Assim como o Estado expressa acondensação de forças sociais (mesmo que assimetricamente), também o direitoacompanha o desenvolvimento de relações concretas (das relações de produção, dasforças produtivas), embora reconheçamos que o sistema jurídico, enquanto arcabouçotécnico, não se subordina, de forma imediata e mecânica, aos movimentos de infra-estrutura, não estando, contudo, imune ao mesmo.”

Acrescentando, Wolkmer (2003, p. 155) coloca que “toda estrutura jurídicareproduz o jogo de forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturaisde uma dada organização social”. Como os autores colocam, o Direito é uma instituiçãoque está sendo moldada pelas lutas de classes, pelas relações de forças. Dentro doEstado, vários segmentos lutam pelos seus direitos e influenciam nas instituiçõesformadas, cada segmento influencia na lei criada, assim, o direito estatal vai ser frutodas relações das forças capitalistas, incorporando as reivindicações que tiverem maisforça para se firmar. O Direito Estatal não é neutro como alguns juristas insistem emafirmar. O Direito é um reflexo das relações de força, as leis tendem a cristalizarconcepções e ideologias.

As necessidades humanas são uns dos fatores que levam as pessoas a seorganizar e reivindicar por direitos. Muitas vezes a organização popular em torno dasnecessidades humanas não consegue força suficiente para se transformar em direitose, mesmo se transformado em direitos, estes não são efetivados. O não atendimentodas necessidades humanas provoca o surgimento de formas paralelas de direito, surgeo pluralismo jurídico.

Joaquim Falcão Neto (1984, p. 80-81) coloca que existem duas concepções dedireito: uma monista, para quem só existe o direito positivo estatal, e outra dualista,

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que admite a existência de vários direitos, “quer quando se comparam sociedadesdiversas, quer mesmo no âmbito interno de uma única sociedade”.

O cerne do pluralismo jurídico está na negação do Estado como centro únicodo poder político e a fonte exclusiva de toda a produção do direito. O Estado incorporaem suas instituições vários direitos oriundos de vários segmentos da sociedade, porém,esta incorporação, oriunda das relações de força, limitam-se ao mínimo necessáriopara que os conflitos sejam dispersados. O Direito, ou a necessidade, não incorporadono âmbito das correlações de força, torna-se um Direito marginal, alheio ao Estado epor ele não reconhecido. Na verdade, como Wolkmer coloca, temos no pluralismojurídico uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que estabelece asupremacia de elemento ético-político-sociológicos sobre critérios tecnoformaispositivistas.

Daniela Madruga (2004, p. 186) coloca o Pluralismo Jurídico como “fruto dacoexistência de várias ordens jurídicas no mesmo espaço geopolítico e surgiu danecessidade de uma abordagem crítica, inovadora, em relação a um direito que nãoatende mais, como deveria, a uma tão complexa demanda social, é um novo referencialteórico que busca, através de práticas plurais, atender às necessidades sociais”.

Wolkmer (2001) na mesma obra designa pluralismo jurídico como amultiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político,integrados por conflitos e consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo razão de sernas necessidades existenciais, materiais e culturais.

Na perspectiva urbana temos a necessidade de moradia não atendida que levaa população a buscar outras formas de moradia. Os assentamentos irregulares surgemcomo uma forma plúrima de direito que aos poucos está sendo admitida no direitoestatal.

Ao debate do pluralismo jurídico, Boaventura de Sousa Santos (2005) acresceo uso da cartografia como ferramenta de análise, definindo um paralelo com a geografiae estabelecendo uma relação entre a cartografia e o direito. O autor coloca que osmapas são representações imperfeitas da realidade. Estas distorções da realidadetrazidas pelos mapas são controladas por aquele que quer representar o espaço, oautor disciplina que há uma similaridade desta técnica com a do direito, quando esterepresenta a realidade. Segundo ele “as relações das diferentes juridicidades com arealidade social são muito semelhantes às que existem entre os mapas e a realidadeespacial” (SANTOS, 2005, p. 199). A este procedimento o autor denominou‘Cartografia Simbólica do Direito’.

Dentro da Cartografia Simbólica do Direito é trabalhada a questão da escala. Aescala é o principal instrumento da cartografia. Seria a “relação entre a distância no

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mapa e a correspondente distância no terreno”. Temos as grandes escalas, querepresentam um espaço menor, e as pequenas escalas, que representam um espaçomaior. A escolha da escala é relacionada com o fenômeno que se quer retratar oupotencializar.

Na grande escala identificamos a representação como característica mais forte,sendo “rica em detalhes, descreve pormenorizada e vivamente os comportamentos eatitudes, contextualiza-os no meio envolvente e sensível às distinções e relaçõescomplexas entre familiar e estranho, superior e inferior, justo e injusto”. A pequenaescala privilegia a orientação, ela é “pobre em detalhes e reduz os comportamentos eas atitudes a tipos gerais e abstratos de ação”. (SANTOS, 2005, p. 210)

As diferenças entre pequena e grande escala são claras em duas pesquisasrealizadas pelo autor: “Quando, em 1970, estudei o direito interno e não oficial dasfavelas do Rio de Janeiro, tive ocasião de observar que este direito local, um direitode grande escala, representava adequadamente a realidade sócio-jurídica damarginalidade urbana e contribuía significativamente para manter o status quo dasposições dos habitantes das favelas enquanto moradores precários de barracas e casasem terrenos invadidos (SANTOS, 1977). Quando, dez anos mais tarde, estudei aslutas sociais e jurídicas dos moradores das favelas do Recife com o objetivo delegalizarem a ocupação das terras por meio de expropriação, compra ou arrendamento,verifiquei que a forma de direito a que recorriam privilegiadamente era o direitooficial, estatal, um direito de menor escala, que só muito seletiva e abstratamenterepresentava a posição sócio-jurídica dos moradores, mas definia muito claramente arelatividade das suas posições face ao Estado e aos proprietários fundiários urbanos,um direito que, nas condições sociais e políticas da época, oferecia o atalho maiscurto para o movimento de uma situação precária para uma posição segura (SANTOS,1982b; 1983)” (SANTOS, 2005, p. 210).

O presente estudo se utiliza da cartografia simbólica do direito de Boaventurapara análise da relação entre o nosso ordenamento jurídico brasileiro e a informalidadeurbana, traçando a existência do pluralismo jurídico. Nos próximos itens serãotrabalhados quatro espaços jurídicos, quatro escalas. Serão utilizadas as três escalasque Boaventura disciplinou (internacional, nacional e local) e se acrescerá uma escala,a Municipal. No Brasil o pacto federativo e o modo em que se dispõe a legislaçãourbana torna imperativo a consideração de um âmbito municipal descolado donacional, pois as normas federais poderão ser ou não regulamentadas no municipal,de acordo com as relações de força em cada Município.

As diferentes escalas têm diferentes direitos que se formam das diferentesrelações sociais entre os diferentes atores. O nível de conscientização de conhecimentodos diferentes atores vai influenciar nas relações de poder e nas institucionalidades

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formadas. Notamos aí o fenômeno do pluralismo jurídico, onde diversas formas dedireito se manifestam nos diferentes espaços jurídicos, nas diferentes escalas.

O direito à moradia vai ter um nível de efetividade diferente em cada escala,de acordo com as relações de força. O direito à moradia é trazido por diversasnormatizações, mas o atores que as formam não são os atores diretos envolvidos nosconflitos fundiários oriundos da falta de moradia. A garantia da segurança jurídica daposse está nas normas internacionais e nas federais, mas a sua efetividade foi contidaao se delegar ao plano diretor a competência para se traçar a função social dapropriedade, o conflito fundiário é dispersado para o âmbito municipal. No Municípiopodemos ter um plano diretor que encampe os princípios do Estatuto da Cidade erealmente operacionalize a função social da propriedade ou somente ter um plano defachada que traga os princípios, mas não os aplique. Já no campo social local muitasvezes nenhuma das legislações dos outros campos irão despontar, sendo ineficazesdiante dos conflitos concretos de propriedade.

2. O DIREITO À MORADIA NAS ESCALAS INTERNACIONAL E NACIONALO direito à moradia foi retratado nas diferentes escalas. Neste artigo serão

trabalhados superficialmente às escalas internacional e nacional, amplamentetrabalhadas pela doutrina, e será dada maior atenção às escalas municipal e local.

No âmbito internacional temos várias normas internacionais que retraíam odireito à moradia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz em seu art.XXV que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a suafamília saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e osserviços sociais indispensáveis, direito a segurança em caso de desemprego, doença,invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência emcircunstâncias fora do seu controle.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais detalhouvários dos direitos trazidos pelo art. XXV da Declaração Universal. Apesar dasconvenções e pactos internacionais trazerem o direito à moradia, as normas nãodetalhavam os contornos deste direito. Em 1991, o Comitê dos Direitos Econômicos,Sociais e Culturais produziu o Comentário Geral nº 4 sobre o Direito à moradiaadequada, trazido pelo art. 11, do Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos,Sociais e Culturais. O Comentário Geral traz como elementos do direito à moradia asegurança jurídica da posse, a habitabilidade, a capacidade de suportar os custosligados à moradia, a disponibilidade de infra-estrutura e serviços básicos, a boalocalização e o próprio acesso à moradia, além da adequação cultural desta moradia.

Outro Comentário que merece ser ressaltado é o Comentário Geral nº 7 sobreo Direito à Moradia Adequada que trata dos despejos forçados. A segurança na posse

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deve ser garantida de maneira a impedir os despejos forçados que desrespeitam váriosdireitos humanos. Neste sentido, o Comentário Geral busca trazer a proteção dosdireitos humanos àqueles que estão ameaçados ou foram despejados, explicitando anecessidade remédios legais para a sua proteção.

Na escala nacional temos o direito à moradia retratado expressamente no art.6º da Constituição Federal. Além deste dispositivo, vários são os momentos em quea Constituição traz o direito à moradia, como quando trata da usucapião, do saláriomínimo, das competências, dentre outros.

Apesar de não se tratar diretamente de direito à moradia, as normas jurídicasnacionais que tratam do planejamento urbano são essenciais no que se refere ao direitoà moradia. A Constituição Federal traz que a propriedade deverá cumprir a sua funçãosocial e o plano diretor como o instrumento básico que irá regular a política urbana,sendo o plano diretor a lei que irá definir quando a propriedade urbana está ou nãorespeitando a função social da propriedade.

A lei federal 10.257/01, o Estatuto da Cidade, traz vários princípios e instru-mentos jurídicos que irão auxiliar no planejamento urbano, sendo regulamentados eaplicados dentro do plano diretor.

Pode-se dizer que tanto a legislação internacional como a nacional avançammuito no que tange ao direito à moradia e ao desenvolvimento urbano, mas estasterão sua aplicabilidade condicionada aos planos diretores que serão elaborados nosdiferentes municípios no país.

Quanto aos assentamentos irregulares, temos uma avançada regulamentaçãono que tange a situações consolidadas, através da usucapião e concessões, mas temosuma regulamentação insuficiente no que se refere à assentamentos em conflitofundiário.

3. ESCALA MUNICIPAL E LOCALQuanto à habitação temos disciplinado na Lei Orgânica do Município – LOM

de Fortaleza que a política habitacional do Município deverá priorizar programasdestinados à população de baixa renda e se constituirá primordialmente de urbanizaçãoe regularização fundiária de assentamentos irregulares, sem exclusão dos projetos deprovisão habitacional, atividades contínuas e permanentes a integrar o planejamentourbano do Município.

Ainda traz a LOM que o Poder Público só construirá conjuntos habitacionaispara abrigar a população carente ocupante de assentamentos irregulares, quando porquestões técnicas ou de estratégia de uso do solo não for possível a urbanização doseventos.

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Outra lei municipal que traz normas referentes à moradia é o Plano Diretor deDesenvolvimento Urbano Ambiental, lei nº 7.061 de 16 de janeiro de 1992,principalmente no tratamento dos assentamentos espontâneos, regulamentados naseção de uso e ocupação diferenciados, nos arts. 73, 74 e 75. O artigo 73 consideraassentamentos espontâneos, podendo ser objeto de regularização fundiária, as áreasocupadas por população de baixa renda, favela ou assentamentos assemelhados,destituídos da legitimidade do domínio dos terrenos, cuja forma se dá em alta densidadee em desacordo com os padrões urbanísticos regularmente instituídos.

Apesar de reconhecer a existência dos assentamentos irregulares em Fortaleza,não temos a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social ou instrumento similarque proporcione ações como de flexibilização das normas de uso e ocupação do soloe proteção das comunidades contra o avanço da “expulsão branca”. Não há tambémnormas referentes aos conflitos fundiários e o papel do Poder Público.

Passamos à análise da escala local como campo onde incide o pluralismojurídico. A primeira questão a colocar é a da existência da própria informalidadeurbana, só em Fortaleza, por exemplo, existem mais de 600 favelas. A informalidadeurbana existe em tamanha proporção que a política pública de regularização fundiáriase mostra tímida frente a quantidade de assentamentos informais.

Mostramos aqui dois tipos de assentamentos, uns que estão sendo atendidospela política pública de regularização fundiária, seja pelo Município, seja pela socie-dade civil organizada, e aqueles que estão à margem de uma política e estão sendopalco de conflitos que podem resultar a qualquer momento em um despejo violento.

Temos como assentamentos que não têm conflito fundiário nem ação judicialos antigos conjuntos habitacionais construídos em regime de mutirão pelo Municípiode Fortaleza. Como assentamentos que tem conflito fundiário, mas não tem açãojudicial o Pirambu. Temos como assentamento que não tem conflito fundiário, mastem ação judicial a Terra Prometida. E por último, temos como assentamentos quetem ação judicial e conflito fundiário o Morada da Paz, o Bom Sucesso e o ParqueSantana.

A primeira demonstração de que existe pluralismo jurídico é que, com exceçãodo Pirambu, estes assentamentos surgiram depois da Constituição Federal de 1988.Apesar de termos um grande avanço legal não temos uma imediata incorporaçãodestas medidas nas diferentes legislações municipais.

Todas estas famílias ocupantes destes imóveis, com exceção dos conjuntoshabitacionais, foram em busca de um imóvel para utilizar para suas moradias, famíliasque necessitavam de uma terra para morar, a grande massa de excluídos que formouo Pirambu, os moradores da Terra Prometida movidos pela necessidade e pela fé

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ocupam um terreno vazio, os moradores de rua do centro da cidade procuram abrigono prédio abandonado no centro, os moradores do Bom Sucesso, depois de ludibriadospor uma liderança clientelista, ocupam um terreno que seria destinado à moradia, porfim as pessoas sem teto ocupam terreno não utilizado no Parque Santana.

A necessidade por moradia faz com que as famílias busquem, através de meiosnão legais, um espaço na cidade para constituir a suas moradias. Temos sim aquipluralismo jurídico, temos o acesso à terra urbana, acesso à moradia, não pelo mercado,nem por políticas habitacionais, mas através da ocupação urbana organizada.

Mesmo com o avanço da legislação ainda temos este modo de aquisição demoradia muito presente em Fortaleza, vê-se que mesmo com todo o avançoinstitucional não temos ainda um acesso amplo à terra urbanizada por parte dapopulação de baixa renda.

Quanto aos casos estudados temos a demonstração de alguns casos de, mesmocom a legislação, não houve o pleno acesso à moradia; e temos outros que mesmocom a legislação contra os moradores, o acesso a moradia se mostra como umapossibilidade no futuro.

Temos inicialmente encontrado em alguns casos que, mesmo com o avanço dalegislação, verificamos o impedimento ao acesso à moradia. Temos como primeirocaso o da Terra Prometida onde temos a usucapião amplamente regulamentada noâmbito nacional, mas uma discordância doutrinária faz com que o direito não sejareconhecido pelo judiciário. O Estatuto da Cidade regulamenta que não é possível atransferência inter vivos no caso da usucapião individual e o Código Civil diz que épossível. Esta discordância é levantada pelo Ministério Público e faz com que ele seoponha à usucapião dos moradores da Terra Prometida, negando-lhes o acesso àsegurança na posse e por decorrência à moradia.

Outro caso é a falta de documentação por parte dos ocupantes das terras públicas.Tanto os beneficiários do Pirambu como os dos Conjuntos Habitacionais não tem osseus RGs e CPFs o que inviabiliza a emissão de títulos de Concessão de Direito Realde Uso e inviabiliza a Regularização Fundiária. A falta de uma formalidade que é odocumento, acaba inviabilizando uma outra formalidade que é o título do imóvel nonome dos respectivos beneficiários.

Outra questão que chama a atenção é a falta de regulamentação das ZonasEspeciais de Interesse Social e a discordância entre as secretarias municipais. Tantono caso do Pirambu como no caso dos Conjuntos Habitacionais temos a inviabilidadedo registro dos imóveis devido à irregularidade no parcelamento do solo. E mesmoque tivesse as ZEIS, ou mesmo que o parcelamento estivesse regulamentar, a falta decooperação e estrutura entre a Secretaria de Infra-estrutura e a Fundação de

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Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR inviabiliza o trâmitedos imóveis que estão de acordo com a lei de ordenamento do solo urbano.

Mesmo com o reconhecimento do direito à moradia a nível internacional, doreconhecimento do direito à moradia daqueles que moram em assentamentos informaisa nível nacional, mesmo com a flexibilização das normas para habitação de interessesocial feita pela Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano, mesmo com o Estatutoda Cidade, as normas municipais não permitem a regularização de ocupaçõesespontâneas como o Pirambu e de assentamentos produzidos pelo próprio PoderPúblico Municipal. Mesmo com todo o avanço legal, as diferentes escalas de direitotem avanços diferentes quanto à efetividade do direito à moradia, enquanto a escalalocal também não tiver este avanço, podemos falar que nestes casos temos formas dedireito paralelas ao direito oficial, temos um pluralismo jurídico.

Com relação a estes três primeiros casos (Pirambu, Conjuntos Habitacionais eTerra Prometida) faz-se interessante colocar que a necessidade pela segurança jurídicada posse, de um título jurídico que possa servir de garantia para aqueles moradores,não foi sempre uma necessidade ou desejo dos moradores destes locais. Por um ladoeste interesse veio do Poder Público, tanto como na hora de promover a regularizaçãofundiária, no caso dos conjuntos habitacionais, ou como ameaça, no caso do ProjetoCosta-oeste para o Pirambu e Terra Prometida. Apesar de termos avanços legais nasescalas nacional e internacional quanto à moradia e à titularidade jurídica, não podemosdizer que existia um empoderamento deste discurso no âmbito local. Podemos perceberaqui um pluralismo jurídico, pois aqueles que promoveram o debate e as lutas a nívelnacional não são os mesmos que lutam a nível local, o nível diferente de consciênciadas necessidades faz com que o direito nas diferentes escalas seja diferente, sejaefetivado a nível nacional, e não seja nem percebido como necessidade a nível local.

Quanto aos casos que tem conflito fundiário e ação judicial temos alguns fato-res que se tornam comuns nos três casos. A primeira questão é que mesmo não haven-do posse por parte dos proprietários em nenhum dos casos a ação judicial, que foi utiliza-da nos três casos, foi a reintegração de posse. Apesar de o instrumento cabível ser a açãoreinvidicatória, que discute a propriedade, resolveram entrar com uma ação que discute aposse, mesmo sem ela existir. Sendo, inclusive, um dos argumentos que os ocupantesusam para se legitimar a questão que os imóveis estavam vazios e sendo usados para ocometimento de ilícitos e eles pegaram o imóvel e deram uma função social, a moradia.

As ações de reintegração foram impetradas, aproximadamente, na mesma épocae tiveram três fins diferentes: uma foi extinta por se reconhecer que não há posse,outra foi dada uma liminar de reintegração de posse e até hoje está sendo prorrogadasem nenhuma solução na Vara Cível e a outra, também, vem sendo adiada, mas foipara a Vara da Fazenda Pública.

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Todos os três casos tiveram como argumento da defesa a questão de que oconflito fundiário não é meramente uma causa particular, uma causa cível, mas simuma questão social, uma questão de falta de moradia. Este argumento passoudesapercebido pelo Juiz do caso Morada da Paz. No Parque Santana, ainda, temosum mandado de liminar de reintegração de posse em voga, mas o juiz, por motivoscristãos, não executa este mandado, despacho este que foi criticado em agravo pornão se fundamentar em causas jurídicas, no direito formal.

No caso do Bom Sucesso foi o único em que se percebeu a real conotaçãosocial dos conflitos e da necessidade de uma intervenção mais ampla dos executivosdos Poderes Públicos para a busca de uma solução. Então, temos que o reconhecimentoda ocupação como necessidade por moradia só se deu em um caso dos três em quehouve conflito e ação judicial, mas mesmo neste caso a ação ainda continua correndona 26ª Vara Cível e este argumento não é utilizado para de dar o fim da ação comjulgamento do mérito.

Outro fato que chama a atenção é a da chamada do Poder Público para a soluçãodos conflitos em voga. O Juiz que julga o caso do Morada da Paz entende que nestecaso não é pertinente a chamada do Poder Público, por uma questão de formalidadecoloca que o interesse do Poder Público só pode ser averiguado por uma Vara daFazenda Pública, sendo que dessa maneira uma ação de reintegração de posse nuncachegaria à Vara da Fazenda e nunca se teria a intervenção do Poder Público.

No caso do Parque Santana, na esfera cível a HABITAFOR demonstra interessena causa, o que faz com que o processo seja enviado para a vara da Fazenda Pública.A intervenção da HABITAFOR não tem por fim, até aí, solucionar o conflito, massim ganhar tempo, conseguindo a prorrogação por dois anos.

Já no caso do Bom Sucesso, o Juiz entende que o caso deve sim ser alvo dachamada dos entes públicos que devem fazer parte da solução do problema. Passa-seaqui a defender a existência de uma vara especial para conflitos fundiários e esta devetrabalhar conjuntamente com a União, Estado e Município para a solução dos conflitos.

Percebemos que o envolvimento ou não do Poder Público nos conflitos emquestão, também, transparece a percepção de que o conflito fundiário não é umaquestão de simples lide pela propriedade, mas sim uma demanda social que vem danecessidade humana por moradia.

Quanto às soluções para os conflitos fundiários em questão, podemos notarque não há uma solução conclusiva para nenhum deles. Na verdade os conflitos atéagora tem sido dispersados através dos anos de discussão judicial, mesmo no caso doParque Santana que tem uma liminar de reintegração de posse ativa, não verificamosmedidas efetivas para o seu cumprimento.

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No caso do Parque Santana temos a utilização do direito oficial de formadesvirtuada e de maneira a possibilitar o reconhecimento da moradia de maneiradiferente. No caso do Parque Santana nem se nega o direito à moradia das famílias láresidentes nem se nega o direito de propriedade dos autores da ação, através denegociação com a HABITAFOR buscou-se uma outra alternativa que foge ao direitooficial. O proprietário doará as terras ocupadas como áreas verdes, institucional efundo de terras para o poder público de maneira que este faça a regularização fundiáriadas terras que serão públicas, as terras restantes ocupadas serão desapropriadas.

No Morada da Paz temos uma decisão extinguindo a ação de reintegração daposse por motivos técnico-formais, não sendo verificada a posse destes. Com o fimda ação de reintegração da posse surgem uma ação reinvidicatória e uma ação deusucapião. Mas a solução do conflito pode vir por uma dispersão deste por meio daviolência. A Prefeitura Municipal de Fortaleza, que no caso do Parque Santanaproporcionou o acesso à moradia, nesse caso o nega, promovendo uma açãodemolitória do prédio que é utilizado para moradia destas famílias. Em resposta aessa ação da Prefeitura, os próprios moradores estão demolindo e reformando o prédioem questão para que desapareça o novo argumento utilizado pelos proprietários.

No caso do Bom Sucesso temos uma real dispersão do conflito, pois estepermanece sem solução. O judiciário se pronunciou informalmente que eles nãosairiam de lá, mas a ação ainda corre normalmente, temos aqui um caso em que nemse nega a propriedade nem se garante o direito à moradia destas famílias.

Temos nos casos encontrado resultados que:

– O direito à moradia é reconhecido e a ocupação urbana como resultado danecessidade por moradia;

– O direito à propriedade é garantido, não sendo repudiado em nenhummomento;

– Que o judiciário não decidiu em nenhum momento nem a favor do direito àpropriedade nem a favor do direito à moradia.

Podemos notar que, com relação ao diálogo entre as quatro escalas, não temosaqui uma real inter-relação entre estas. Temos o direito à moradia amplamenteregulamentado na escala internacional, temos na escala nacional a informalidadeurbana reconhecida e o desenvolvimento urbano regulamentado. Quando chegamosna escala municipal não vamos ter os direitos das escalas internacional e nacionalsuficientemente regulamentados.

Colocamos que o judiciário e a política pública de regularização são os doisespaços em que as diferentes escalas se tocam. Quanto à primeira, temos que o direitode propriedade e o direito à moradia são ao mesmo tempo reconhecidos e negados,

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não havendo um pronunciamento definitivo. O Judiciário aceita o direito depropriedade trazido pelo âmbito nacional, mas ao mesmo tempo legitima a ocupaçãourbana, como uma forma de direito a não promover de logo as reintegrações de posse.

Nas políticas de regularização fundiária temos o reconhecimento da legislaçãonacional de que o direito à moradia deve ser efetivado e deve ser garantida a segurançana posse, mas esta esbarra na legislação municipal que não regulamenta as ZEIS e naquestão local da falta de documentação dos pretensos beneficiários da regularizaçãofundiária.

É claro aqui que temos práticas jurídicas diferentes nos quatro espaços:internacional, nacional, municipal e local. Que nestas práticas verificamos consensos(solução no Parque Santana) e conflitos (no caso Morada da Paz), sendo as soluções,quando existentes, dadas aos casos com base em direitos oficiais (reconhecimento dapropriedade) ou não oficiais (ocupação urbana como modo de acesso à moradia),mas temos que em todos a razão de ser, a necessidade existencial, material e culturalpor moradia.

Concluímos que mesmo com o avanço da legislação no reconhecimento dodireito à moradia, ainda podemos falar na existência de pluralismo jurídico nainformalidade urbana, originado pela necessidade por moradia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASARRUDA JR., Edmundo Lima de. Direito alternativo – notas sobre as condições de possibilidade.In: ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Lições de Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica,1992.

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SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.

WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-nais, 2003.

______. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.

______. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3. ed. São Paulo: EditoraAlfa-Omega, 2001.

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Direito à Moradia: os Planos Diretores daRMBH Aplicam o Estatuto da Cidade e aConstituição Federal de 1988?1

NAIANE LOUREIRO DOS SANTOS2

Mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas.

CIRCLAINE DA CRUZ SANTOS FARIA3

Assistente Social.

MARINELLA MACHADO ARAÚJO4

Doutora em Direito.

RESUMO: Esse artigo objetiva (i) discutir se os planos diretores da RegiãoMetropolitana de Belo Horizonte (RMBH) aplicam os instrumentos de políticaurbana, regulados pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade,Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. E, em caso afirmativo, (i.a) se essa previsãopode ser considerada legítima segundo os fundamentos da democraciacontestatória de Philip Pettit, a soberania popular como procedimento de JúrgenHabermas e o modelo de Estado Democrático de Direito brasileiro, (ii) Objetivaainda divulgar os resultados da pesquisa intitulada Direito à moradia:Mapeamento das políticas públicas e das experiências alternativas de habitaçãopopular da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), financiada em2007 pelo Fundo de Fomento à Pesquisa da PUC Minas. A partir dos instrumentosde política urbana que concretizam direito à moradia, essa pesquisa apresenta

1 Este artigo resulta da pesquisa trabalhos realizados pelo Núcleo Jurídico de Políticas Públicas/OPUR (NUJUP)do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, em parceria com o Observatório de Políticas Urbanas/PROEX – PUC Minas, ambos integrantes da Rede Nacional Observatório das Metrópoles.

2 Pesquisadora e extensionista do Observatório de Políticas Urbanas da PROEX/PUC Minas, que integra a RedeNacional Observatório das Metrópoles/IPPUR. Pesquisadora do NUJUP.

3 Pesquisadora e extensionista do Observatório de Políticas Urbanas da PROEX/PUC Minas, que integra a RedeNacional Observatório das Metrópoles/IPPUR. Pesquisadora do NUJUP.

4 Professora do Programa de Pós-graduação em Direito e da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.Coordenadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas (NUJUP). Pesquisadora da Rede Nacional Observatóriodas Metrópoles/IPPUR.

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análise crítica da gestão da política habitacional nos 34 municípios que integrama RMBH. Os resultados apontam os avanços detectados e as tendências daspolíticas públicas habitacionais nesses municípios. Considerado direitofundamental social somente a partir da publicação da Emenda Constitucional n.26, de 2000, a concretização do direito à moradia ainda permanece um desafiopara o Poder Público municipal. Nesse contexto, a análise enfatiza o processodemocrático participativo de formulação das políticas habitacionais locais.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Plano Diretor Participativo,Democracia Participativa, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

1. A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO,INSTRUMENTOS DE POLÍTICAS URBANA E PLANO DIRETOR

As políticas públicas são ações que o Estado promove no exercício de suafunção executiva para alcançar os interesses públicos que concretizam os direitosgarantidos pela ordem constitucional. No Brasil, a Constituição de 1988, ao regular apolítica de desenvolvimento urbano, determinou tratar-se de competência concorrenteentre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios5. Contudo, adotou oprincípio federativo da subsidiariedade6 ao atribuir aos municípios função normativaprincipal. Assim, de acordo com o artigo 182 da Constituição de 1988, cabe aosmunicípios a elaboração de planos diretores, leis municipais que funcionam comoinstrumentos básicos da política de desenvolvimento urbano (§ 1º), pois estabelecemas diretrizes gerais (i) de ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais dacidade e da propriedade e (ii) da garantia do bem-estar dos habitantes da cidade(caput).

Apesar de assumirem diversos objetivos, diferentes características e formatosinstitucionais, as políticas públicas apresentam características gerais. Azevedo (2003)identifica duas características gerais das políticas públicas: (i) a busca do consensoem torno do que se pretende fazer e deixar de fazer e (ii) a definição de normas e oprocessamento de conflitos. Assim, (i) quanto maior o consenso, melhores condiçõesde aprovação e implementação das políticas propostas. Por outro lado, (ii) as políticaspúblicas, tanto podem estabelecer normas de ação, definidoras de diretrizes e

5 Esse entendimento é resultado da interpretação dos artigos 24 e 30 do texto constitucional e já reconhecido peloSupremo Tribunal Federal.

6 Por esse princípio, unidades políticas de uma federação devem atuar de forma subsidiária dentro de suascompetências constitucionais. Assim, as unidades federativas mais próximas do interesse público têm prioridadena solução dos conflitos de interesse, sendo que, apenas na ausência das condições necessárias para a suaresolução, atuariam as unidades de competência mais abrangente (União e Estados-membros).

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instrumentos para a atuação do Estado, como os instrumentos de política urbana,previstos no Estatuto da Cidade, quanto normas-sanção para a resolução dos eventuaisconflitos entre os diversos indivíduos e agentes sociais, como a tipificação de condutascriminais e a incidência de multas administrativas.

Em democracias participativas, como a instituída pela Constituição de 1988,espera-se que os processos políticos de tomada de decisões governamentais eparticipativas possam ser objeto de controle social. O modelo representativo quecaracteriza o Estado liberal tem se mostrado insuficiente para garantir pluralidade dedireitos e respeito a diferenças como sustenta Habermas em a Inclusão do Outro(2004). A existência de leis cujo descumprimento sujeita seus infratores a algumaespécie de punição por órgãos institucionalizados pelo Estado, como proposto porKelsen em Teoria Geral do Direito e do Estado (1996), tende a tornar-se mais efetivae eficiente se a elaboração e a execução das leis que regulam direitos e deveres érealizada de forma participativa. Habermas (2006) demonstra que a participaçãopopular reforça a legitimidade do processo legislativo e, assim, torna mais efetiva asua aplicação. Esse é o princípio democrático (participativo) que fundamenta aobrigatoriedade do planejamento e gestão urbanos participativos, que prevê o Estatutoda Cidade (arts. 39, § 4º, e 43 a 45).

Pettit (2007) sustenta que um Estado de direito, democrático e republicano,fundado na liberdade, deve conter em seu ordenamento jurídico instrumentos decontrole discursivo7 das funções públicas, ou seja, meios colocados à disposição docidadão para que possa questionar as decisões tomadas no âmbito de atuação dos trêsPoderes do Estado que visam efetivar o interesse comum8. Não basta que possamoseleger nossos representantes (dimensão autoral da democracia). É preciso quepossamos controlá-los. Esse modelo democrático Pettit (2007) denomina democraciacontestatória. Dois fatores devem ser considerados para que as pessoas desfrutem daliberdade como controle discursivo: (i) capacidade raciocinativa para participar, e(ii) capacidade relacional.

2. POLÍTICAS PÚBLICAS PARTICIPATIVAS E A PROPOSTA DEPLANEJAMENTO URBANO DO ESTATUTO DA CIDADE

Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, o debate sobre a questãodemocrática no Brasil voltou-se, em grande parte, para a discussão sobre a aplicaçãodos instrumentos democráticos instituídos pela Constituição de 1988. Parte dessadiscussão estabeleceu-se entorno dos mecanismos institucionais de participação

7 Pettit indica três formas de contestação ou de controle discursivo: o procedimental, o consultivo e o recursal.8 Pettit considera interesse comum todo interesse que possa ser sustentado publicamente.

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popular na definição e no controle de políticas públicas por meio de canais departicipação do tipo: conselhos municipais, orçamento participativo, elaboração doplano diretor participativo, consórcios públicos. Contudo, a cultura política brasileirae a falta de maturidade democrática do povo brasileiro têm representado obstáculos àefetividade do planejamento e gestão participativos regulados pelo Estatuto da Cidade.Legitimidade da ação participativa envolve mais do que a existência de canaisinstitucionalizados de participação. Envolve também o enfretamento de questõescomo: (i) assimetria de conhecimento entre atores sociais, (ii) paridade entre a culturapolítica vigente no poder público e a vigente na sociedade civil, (iii) educação,capacitação e sensibilização de atores sociais.

Nesse sentido, muitos são os desafios decorrentes das práticas que envolvem aformulação e a execução de políticas públicas participativas. Talvez o maior delesseja justamente como garantir a apropriação legítima do poder político de participaçãotanto pela sociedade civil, como pelo poder público. O enfrentamento dessa questãoimplica, por um lado, (i) na autocrítica da forma como o poder público e sociedadecivil concebem o interesse público e, por outro, (ii) no fortalecimento dos canais departicipação por parte da sociedade. A experiência tem demonstrado que os canais departicipação popular, que envolvem planejamento e gestão de políticas públicas, sãona prática ainda pouco deliberativos no que ser refere à participação da sociedade9. Oprocesso de implantação da democracia participativa é lento. E o exercício dademocracia é um processo contínuo e dialógico, como sustenta Habermas (2006).

Se por um lado, a democracia brasileira avançou na medida em que produziuleis, como o Estatuto da Cidade, que reconhecem o direito à participação einstitucionalizam canais de interlocução entre sociedade civil e poder público com o

9 O OPUR em parceria com o NUJUP e outras organizações não governamentais promove anualmente o ProgramaInterdisciplinar de Políticas Públicas e Gestão Local: curso de capacitação para conselheiros municipais eagentes sociais, com intuito de instrumentalizar os atores sociais, fornecendo um conjunto de conceitos, teorias,métodos e técnicas que reforçam a qualificação em esferas públicas de participação popular. A partir dessaexperiência, que já possui 5 edições no âmbito da Região Metropolitana de Belo Horizonte, foram identificadosobstáculos à participação a partir do relato da atuação desses atores nos processos de tomadas de decisão deconselhos municipais, movimentos sociais, fóruns, ONGs, associações comunitárias dos quais participam. Muitosdesses relatos demonstram que a realidade da gestão participativa não é uniforme: ora acontece de formaconsultiva, ora deliberativa, independentemente da natureza da deliberação. Esses atores sociais chegam para ocurso com muitas dúvidas, vontade política e também com muitas experiências de lutas. Exemplos não faltampara mostrar como os processos de decisão, em suas instituições de atuação como atores sociais, são difíceis econflituosos, sobretudo, entre poder público e sociedade civil.O mesmo foi observado na pesquisa Perfil dos Conselhos e Conselheiros Municipais da RMBH, em 2002,atualizada parcialmente em 2005, pelo OPUR – PROEX/PUC Minas em parceria com a Rede NacionalObservatório das Metrópoles. De acordo com os dados coletados, vários conselhos mencionaram em suasexperiências a seleção dos conteúdos que deveriam ser decididos ou votados por todos os membros do conselhoe os que deveriam ser apenas consultados à sociedade civil. Para a maioria dos entrevistados não existe umequilíbrio de forças no interior dos conselhos.

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objetivo de viabilizar o exercício cooperado das funções do Estado. Por outro, alegitimidade da atuação desses canais de participação, que é diretamente proporcionalà sua apropriação pela sociedade civil, ainda representa um desafio.

2.1. A garantia do direito à moradia como principal função social dacidade

Desde a teoria funcionalista de Le Corbusier consagrada pela Carta de Atenasde 1933, a habitação figura entre as funções-chave da cidade. Em que pese as teoriassobre planejamento urbano adotado variável social, no sentido de reconhecer a im-portância do habitante da cidade para a eficiência do planejamento urbano, a habita-ção ainda é uma das funções-chave da cidade. Tanto assim que, ao regular a políticade desenvolvimento urbano, a Constituição de 1988 estabelece que a propriedadeurbana cumpre sua função social quando atende as diretrizes fundamentais de orde-nação da cidade expressas no plano diretor (art. 182, § 2º). Igualmente, toda a con-cepção das diretrizes gerais e dos instrumentos da política de desenvolvimento urbanoregulada pelo Estatuto da Cidade foi concebida tendo por referência o direito deacesso à terra urbanizada. Isso é observado tanto pela natureza das diretrizes previs-tas no artigo 2º, como pelos fins atribuídos aos instrumentos de política urbana.

O direito à moradia somente foi alçado à condição de direito fundamentalsocial pela Emenda Constitucional n. 26, de 2000. E, desde então, sua garantiapaulatinamente vem sendo incorporada à jurisprudência da Corte Constitucionalbrasileira. Nesse sentido é a proferida na ADIn 2990/04 em que o STF reconheceu aconstitucionalidade da lei do Distrito Federal que previa possibilidade de alienaçãode imóveis, localizados em área de proteção ambiental, após a realização de programade regularização fundiária sem licitação de imóveis.

3. PLANOS DIRETORES PARTICIPATIVOS DA RMBH

Ao final do ano de 2006, o Ministério das Cidades10 em parceria com CONFEA(Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia), como desdobramentoda Campanha Nacional Cidade para Todos11, realizou pesquisa como o objetivo de

10 O Ministério das Cidades foi criado em 2003 com o objetivo de atuar na universalização do acesso aos direitosfundamentais vinculados à política de desenvolvimento urbano por meio do fomento a ações democráticasdescentralizadas e participativas de ordenação do espaço urbano. Nesse sentido, busca-se refletir os limites queperpassam a discussão sobre políticas públicas participativas, detendo-se, principalmente, a legitimidade daparticipação popular.

11 A campanha Cidades para Todos teve por objetivo sensibilizar e capacitar os atores sociais do poder público eda sociedade civil para a elaboração dos Planos Diretores Participativos e foi realizada no período de 2005/2006.

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identificar, naquele momento, qual era o estágio do processo de elaboração dos planosdiretores participativos nos municípios que se encontravam dentro dos critérios deobrigatoriedade estabelecidos pelo Estatuto da Cidade: cidades com mais de 20 milhabitantes e inseridas em regiões metropolitanas, nos termos da Resolução n. 25, de18 de março de 2005, do CONCIDADES (Conselho das Cidades). A pesquisa foirealizada em âmbito nacional e contou com a participação dos CREAs (ConselhoRegional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) para a sua operacionalização. Nocaso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, a pesquisa foirealizada por meio da parceria entre o Observatório de Políticas Urbanas/PROEX-PUC Minas e o CREA-MG.

Os instrumentos de coleta de dados utilizados na pesquisa basearam-se emtrês tipos de questionários para serem aplicados: (a) ao coordenador político do PlanoDiretor Participativo no município; (b) ao coordenador técnico e (c) ao representanteda sociedade civil gerando, assim, três tipos de banco de dados12, com os quais setrabalhou na pesquisa Direito à moradia: Mapeamento das políticas públicas e dasexperiências alternativas de habitação popular da Região Metropolitana de BeloHorizonte (RMBH), financiada em 2007 pelo Fundo de Fomento à Pesquisa da PUCMinas.

A pesquisa mostrou que num universo de 31 municípios válidos, em 26 houverespostas do coordenador político (83,87%), em 18 do coordenador técnico (58,06%)e em 19 houve respostas do representante da sociedade civil (61,29%). Com basenesses resultados, considerou-se que o coordenador político teve uma maiorparticipação no processo de elaboração dos planos diretores participativos seguidoda sociedade civil e o coordenador técnico.

No que se refere aos instrumentos urbanísticos adotados pelos municípios emseus planos diretores, estiveram mais presentes: a Zona de Especial Interesse Social(ZEIS), a Transferência do Direito de Construir, a Outorga Onerosa do Direito deConstruir, o IPTU Progressivo no Tempo, Operação Urbana Consorciada, Parcela-mento, Edificação ou Utilização Compulsórios e Contribuição de Melhoria. Chamouatenção o fato de que apesar de alguns municípios terem informado a previsão deZEIS em seus planos diretores, nenhum dos atores pesquisados considerou a existên-cia da Regularização Fundiária como instrumento de política urbana.

De um modo geral, a pesquisa mostrou que em mais de 50% dos municípiosda RMBH houve participação da sociedade civil no processo de elaboração dos planos

12 Cabe ressaltar que: as informações obtidas são percepções dos entrevistados e que não houve análise documental.Assim, pode-se observar a existência de algumas divergências entre as respostas dos entrevistados e dos 34(trinta e quatro) municípios pesquisados, sendo que 03 (três) não constam nos bancos de dados, 02 (dois) porquenão enviaram suas respostas e 01 (um) porque foi invalidado.

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diretores participativos. Entre os instrumentos de gestão democrática, previstos peloEstatuto da Cidade no artigo 45, os mais utilizados foram os conselhos gestores, ascomissões e as audiências públicas, e os menos utilizados foram os fóruns, as oficinase palestras.

Entretanto, ao analisar as respostas sobre a utilização ou não dos instrumentosurbanísticos regulados pelo Estatuto da Cidade nos planos direitos, observou-se existirdivergência entre o informado pelo coordenador político, o informado pelorepresentante técnico e o informado pelo representante da sociedade civil. Essadivergência levou à formulação da seguinte hipótese: A participação popular informadanão teria sido efetiva em razão da ausência de informação e de transparência noprocesso de elaboração dos planos diretores desses municípios.

4. DIREITO À MORADIA: MAPEAMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDAS EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS DE HABITAÇÃO POPULAR DAREGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE (RMBH)

Essa pesquisa teve por objetivo traçar o panorama geral da situação da políticahabitacional de interesse social nos municípios da Região Metropolitana de BeloHorizonte, no que diz respeito à execução desta política e a efetivação da participaçãopopular nos processos participativos de tomada de decisão dos municípios. Pretendeutambém, realizar uma análise comparativa mediante dados de uma pesquisa13 realizadaem 2002 sobre a mesma temática.

Nesses quatro anos foram identificados alguns avanços. O número deinstrumentos urbanísticos aumentou em todos os municípios, segundo a informaçãofornecida pelos responsáveis da área. A tabela a seguir ilustra esta percepção.

Nota-se que de um modo geral a evolução quanto ao alcance dos instrumentosurbanísticos na RMBH foi positiva, uma vez que a maioria dos instrumentos aquilistados se difundiram consideravelmente dentro da região citada no períodoapresentado. Os instrumentos que apresentaram queda quanto a seu uso foram poucosde 2002 a 2006. São eles: Consórcio Imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriaçãoo que denota o pouco interesse dos municípios em relação a estes instrumentos. Noano de 2006 nenhum coordenador técnico alegou a existência dos instrumentos

13 Realizou-se em 2002, financiada pelo FINEP, denominada Rede de Avaliação e Disseminação de ExperiênciasAlternativas em Habitação Popular, sob coordenação nacional do Observatório das Metrópoles sediado noIPPUR/UFRJ.Para a realização desta campanha foram criados Núcleos Mobilizadores Estaduais que congregavam váriasinstituições do poder público e sociedade civil. O OPUR/PROEX e o CREA-MG faziam parte do NúcleoMobilizador de Minas Gerais.

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urbanísticos citados anteriormente. Essa informação foi conflitante com osrepresentantes da sociedade civil consultados sobre a mesma questão, 10,53% destesalegaram a existência do Consórcio Imobiliário, Usucapião Urbano e Desapropriação,ratificando a divergência. O instrumento Estudo Prévio de Impacto ambiental (EIA)decresceu sua participação no universo dos municípios consultados, passou de 5, em2002, para 4, em 2006, os municípios que assumem tal instrumento. Do ponto devista ambiental isso pode significar uma deterioração quanto à qualidade do ambiente.

Todos os demais instrumentos apresentaram forte crescimento quanto à suaadoção por parte dos municípios da RMBH. Destacam-se: IPTU Progressivo noTempo, Direito de Superfície e Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios,

Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles/Núcleo Minas Gerais – PROEX/PUCMINAS –Fase (2002)e Pesquisa Observatório das Metrópoles/Núcleo Minas Gerais PROEX/PUCMINAS – Plano Diretor(2006)Nota: Os municípios de Baldim e Matozinhos não devolveram os questionários da pesquisa sobre oPlano Diretor (2006). Nova União foi desconsiderada na pesquisa uma vez que os questionários retorna-dos foram considerados inválidos, graças a tais fatos os três anteriores não entraram na composição databela.

Tabela 1 – Instrumentos UrbanísticosAtores do Plano Diretor (2006)

Instrumentos 2002 Sociedade Civil Coordenador Técnico Coordenador PolíticoUrbanísticos Total Sim (%) Total Sim (%) Total Sim (%)

Consórcio imobiliário 0 0,00% 19 2 10,53% 18 0 0,00% 26 0 0,00%Usucapião urbano 1 3,23% 19 2 10,53% 18 0 0,00% 26 0 0,00%Desapropriação 5 16,13% 19 2 10,53% 18 0 0,00% 26 0 0,00%Concessão especialde uso para fins de 2 6,45% 19 2 10,53% 18 1 5,56% 26 1 3,85%moradiaConcessão de direito

2 6,45% 19 5 26,32% 18 2 11,11% 26 6 23,08%real de usoEstudo prévio deimpacto ambiental 5 16,13% 19 3 15,79% 18 4 22,22% 26 1 3,85%(EIA)Contribuição de

4 12,90% 19 10 52,63% 18 10 55,56% 26 22 84,62%melhoriaDireito de superfície 1 3,23% 19 15 78,95% 18 11 61,11% 26 20 76,92%IPTU progressivo no

0 0,00% 19 14 73,68% 18 13 72,22% 26 23 88,46%tempoOutorga onerosa do

3 9,68% 19 12 63,16% 18 14 77,78% 26 21 80,77%direito de construirTransferência do

3 9,68% 19 11 57,89% 18 14 77,78% 26 17 65,38%direito de construirZEIS/AEIS 6 19,35% 19 15 78,95% 18 15 83,33% 26 24 92,31%Parcelamento,edificação ou

1 3,23% 19 14 73,68% 18 15 83,33% 26 22 84,62%utilizaçãocompulsóriosOperação

3 9,68% 19 13 68,42% 18 16 88,89% 26 20 76,92%consorciadaDireito de preempção 5 16,13% 19 16 84,21% 18 16 88,89% 26 21 80,77%

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que em 2002 eram os menos adotados e em 2006 aparecem entre aqueles maismencionados. O instrumento Direito de Superfície, dentre os 31 municípios, apareciaem apenas 3,23%. Em 2006, dos 31 municípios apenas 19 tiveram os questionáriosvalidados para coordenador técnico, destes 61,11% afirmaram possuir o instrumento.O mesmo aconteceu com o Parcelamento, Edificação ou Utilização compulsórios. Jáo IPTU Progressivo no Tempo teve ampliação ainda maior no que se refere à suadifusão dentro da RMBH. Em 2002, era nula sua adoção. Em 2006, dos 18questionários validados para esse recorte espacial, esteve presente em 72,22% dosmunicípios, segundo os coordenadores técnicos do Plano Diretor. Os dados derepresentantes da sociedade civil e também dos coordenadores políticos reforçamessa informação.

Outorga Onerosa do Direito de Construir, Transferência do Direito de Construire Operação Consorciada, representavam 3,23% do total de municípios no ano de2002. Em 2006, a Construir e Operação Consorciada constava em 51,61 municípios,enquanto a Transferência do Direito de Construir em 45,16%

No ano de 2006 a grande maioria dos instrumentos os atores convergem parauma direção na maioria dos casos. Em apenas três casos, Consórcio imobiliário,Usucapião Urbano e Desapropriação, houve divergência significativa entre os atoresdo Plano Diretor.

A pesquisa tinha também o objetivo de analisar a natureza das políticas públicasmunicipais em matéria de habitação executadas na Região Metropolitana de BeloHorizonte – RMBH; e identificar as experiências alternativas de habitação popularexistentes na RMBH a fim de avaliar a natureza deliberativa dessas políticas, bemcomo a efetividade do direito fundamental à moradia previsto no artigo 6º daConstituição Republicana de 1988. Em razão da grande recusa, por parte dosentrevistados, em responder o questionário formulado incorporando esse análise, osegundo objetivo não foi cumprido. Esse obstáculo ocasionou uma mudança detrajetória no objeto da pesquisa que, então, passou a avaliar a efetividade dos processosparticipativos de tomada de decisão.

5. CONCLUSÃO

(i) Apesar de considerados participativos, o grau de divergência entre os atorespesquisados sobre a existência nos planos diretores de seus municípios de instrumentosde política urbana, previstos no Estatuto da Cidade, demonstra que a compreensãodesses instrumentos não para parece ter sido apreendida, tanto pelo poder público,quanto pela sociedade civil local. Várias razões podem justificar esse resultado, entreelas, a ausência do que Pettit (2007) denomina de capacidade raciocinativa departicipar e que Habermas (2006) denomina condições ideais de fala. Em outras

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palavras, os atores não compreenderam o significado desses instrumentos no processode elaboração dos planos diretores. O que poderá comprometer a efetividade e aeficiência de seus resultados. Em síntese, a utilização dos instrumentos de políticaurbana, se existente, parece ter sido apenas nominal.

(ii) Nesse sentido, a legitimidade dos planos diretores elaborados por essesmunicípios parece ter sido apenas formal, uma vez que seus atores não foram capazesde sustentá-la de forma coerente. Por outro lado, se consideramos, a democraciacomo processo, como sustenta Habermas (2006), um grande passo foi dado em direçãoà concretização do planejamento urbano participativo.

(iii) Por fim, no que se refere ao direito à moradia, pode-se dizer que evoluímosem direção à concretização do direito à cidade sustentável. Ao menos, sob o aspectoquantitativo, uma vez que boa parte dos planos diretores incorporaram instrumentosde política urbana diretamente vinculados ao direito de propriedade.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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6FORMAS E INSTRUMENTOS DE

REGULAÇÃO DO MERCADO DE TERRAS

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1 Como considerar ilegalidade a situação de uma grande parcela das famílias moradoras dos territórios urbanosbrasileiros, que mora em favelas em áreas públicas, favelas em áreas privadas, cortiços, loteamentos clandestinose irregulares, conjuntos habitacionais ocupados e sob ameaça de despejo e casas sem habite-se? Que legalidadeé essa, se grande parte da cidade é ilegal? Por isso, estou utilizando o “i” entre parênteses.

Dinâmica Urbana e a Legalização daProdução do Espaço (I)Legal

KÊNIA DE SOUZA BARBOSA

Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal deMinas Gerais e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo pelaUniversidade Federal de Minas Gerais.

RESUMO: Este trabalho busca refletir sobre a produção da (i)legalidade e dalegalidade do espaço urbano e o impacto dos programas governamentais deregularização de (i)legalidades na dinâmica urbana e no mercado do solo formal.Ao longo das últimas duas décadas a questão da (i)legalidade da propriedade dosolo urbano vem ganhando destaque nas discussões das cidades no Brasil e,mais intensamente nos últimos anos, diversas cidades têm procurado formular eimplantar políticas de regularização fundiária desses assentamentos ilegais, comoé o caso das favelas brasileiras, visando a promover a urbanização das áreas ereconhecer os direitos dos moradores.

1. INTRODUÇÃOO rápido processo de urbanização das cidades brasileiras, associado ao

surgimento de graves problemas urbanos, torna muito complexa a prática doplanejamento e da gestão do solo. O padrão de urbanização brasileiro criou cidadessegregadas, onde de um lado tem-se a cidade formal, que concentra os investimentospúblicos e de outro lado a cidade informal, que cresce exponencialmente na ilegalidadeurbana, sem atributos de urbanidade, exacerbando as diferenças socioambientais.

Este trabalho busca refletir sobre a produção da (i)legalidade1 e da legalidadedo espaço urbano e o impacto dos programas governamentais de regularização de(i)legalidades na dinâmica urbana e no mercado do solo formal.

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238 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

Ao longo das últimas duas décadas a questão da (i)legalidade da propriedadedo solo urbano vem ganhando destaque nas discussões das cidades no Brasil e, maisintensamente nos últimos anos, diversas cidades têm procurado formular e implantarpolíticas de regularização fundiária desses assentamentos ilegais, como é o caso dasfavelas brasileiras, visando a promover a urbanização das áreas e reconhecer os direitosdos moradores.

2. LEGALIDADES E (I)LEGALIDADES DO ESPAÇO URBANOO crescimento das cidades brasileiras intensificou-se a partir da década de 30,

do século XX. Em 1950 o índice de urbanização do país era de 36%; em 1970, 56%;em 1990, mais de 77%; atualmente o índice supera os 80%. Ou seja, dos mais de 176milhões de habitantes, mais de 140 milhões habitam as cidades brasileiras.

Gráfico 2 – Brasil – Índice de Urbanização de 1940 a 2000.Fonte: Santos, M. A urbanização brasileira, ed. Hucitec, 1994 e IBGE, 2002.

Gráfico 1 – Brasil, População Total e População Urbana de 1940 a 2000.Fonte: Santos. M. A Urbanização Brasileira, ed. Hucitec 1994 e IBGE, 2002.

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Índice de urbanização

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O intenso crescimento urbano nas grandes cidades brasileiras foi acompanhadoda deterioração das condições de vida da maior parte da população. Uma parcelasignificativa da população é excluída do acesso à terra urbana e da moradia. O déficithabitacional estimado em 2005 foi de 7.902.699 moradias no país, o que significa14,9% do total do estoque de domicílios. Em números absolutos, o déficit habitacionalestá predominantemente concentrado nas áreas urbanas (6.414.143 domicílios), dosquais 34,7%, ou 2.226.730, nas regiões metropolitanas.2

As ocupações irregulares de terrenos urbanos para moradia da população debaixa renda se repetem na maioria das cidades. Associado às ocupações irregulares,há ainda a inadequação das moradias existentes, em virtude da precariedade, dainsalubridade, da ilegalidade e da falta de infra-estrutura urbana. O acesso (i)legal/informal e inadequado ao solo e à moradia acaba se tornando mais regra do queexceção.

A grande maioria das cidades brasileiras convive, cotidianamente, comlimitações e dificuldades institucionais no controle do solo urbano. Essas limitaçõesvão desde o reduzido número de fiscais, com pouca qualificação e baixa remuneração,escassez no quadro técnico efetivo, cadastro imobiliário desatualizado/subutilizado,passando pelo desconhecimento por parte do cidadão das legislações urbanísticas,uma arraigada relação de clientelismo entre o poder público e os cidadãos, até chegara um grande número de situações de ilegalidades urbanas (obras sem alvará, ocupaçãoirregular dos passeios, invasões e ocupações de áreas públicas e privadas e loteamentosirregulares, públicos e privados).

Predominam nas cidades as construções fora das exigências legais. De acordocom MARICATO (2000):

“(...) a maior parte das nossas cidades se constitui de imóveis ilegais, tanto quanto ao usoilegal do solo e a ilegalidade das edificações, se observado a Lei do Parcelamento do Solo,o Código de Obras e a Lei do Zoneamento” e “mesmo em relação à cidade formal, asadministrações municipais são ineficazes em virtude da fragmentação de competências”.

As normas de edificações procuram estabelecer parâmetros detalhados sobretodos os aspectos das construções, incluindo tanto a relação da edificação com seuentorno (recuos, número de pavimentos, altura máxima) quanto a sua configuraçãointerior (insolação, ventilação, dimensão de cômodos). A virtual impossibilidade dedar conta do excessivo nível de detalhe acaba por jogar na (i)legalidade a maior partedas edificações.

2 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2006.

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240 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

A persistência da informalidade, conforme mencionado por BIDERMAM(2008), em cidades da América Latina não pode ser totalmente explicada pelas taxasde pobreza, e pelo insuficiente investimento público em habitação social, infra-estru-tura urbana e serviços. Há uma maior conscientização de que o mercado de terraurbana e as normas e regulamentos são também fatores contribuintes para a informa-lidade. Assim, inadequados regulamentos de uso do solo e códigos de obras reforçamoutros fatores que já contribuem para a informal e irregular ocupação dos solos urba-nos.

Conforme explicitado por MARICATO (2000), “esta gigantesca ilegalidadenão é fruto da ação de lideranças subversivas que querem confrontar a lei. Ela éresultado de um processo de urbanização que segrega e exclui”. A (i)legalidade emrelação à posse da terra, além de fator de exclusão social da população de menorrenda, é o principal agente do padrão de segregação espacial que caracteriza as cidadesbrasileiras.

Esta dinâmica de urbanização e ocupação do território valoriza significativa-mente os terrenos situados nas áreas nobres, o que, ao mesmo tempo, exclui a popu-lação carente de acesso à terra e moradia através do mercado formal.

3. REGULARIZAÇÃO DE (I)LEGALIDADES

Diante do caos urbano das nossas cidades, que refletem a situação subumanavivenciada por milhares de pessoas, não é surpreendente que os movimentos popularesvêm reivindicando ações dos governos.

“Foi somente nas últimas décadas que, com as mudanças no quadro político maior do país– causadas inicialmente, dentre outros fatores, pelo fortalecimento dos movimentos popu-lares –, algumas administrações locais começaram a reconhecer os direitos dos faveladosde terem acesso ao solo urbano e à moradia. Vários programas de regularização de favelasjá foram formulados com vistas a promover tanto a urbanização quanto à legalização dasfavelas existentes.”3.

Nesse sentido, tornou-se necessária uma legislação que avançasse nas questõesdo direito à cidade para todos e também do direito à moradia digna.

Neste contexto, dois arcabouços legais são importantes: a inserção na CartaMagna, em seu artigo 6º, do direito à moradia; e a criação do “Estatuto da Cidade”4.Em decorrência, principalmente, das obrigações assumidas perante a comunidade

3 SAULE JÚNIOR (1999).4 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988,

estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.

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internacional, o Brasil inseriu no texto legal, através da Emenda Constitucional nº26/2000, o direito à moradia como um direito fundamental dos cidadãos brasileiros.O texto legal assim descreve:

“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança,a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,na forma desta Constituição.”

Já o Estatuto da Cidade, desde sua aprovação pelo Congresso Federal, emjulho de 2001, tem sido celebrado como um marco decisivo na legislação urbana,oportunizando a possibilidade da prática do planejamento e da defesa e preservaçãodo ambiente urbano.

Em 2003 criou-se no Brasil um órgão governamental superior dedicadoexclusivamente às questões urbanas – o Ministério das Cidades –, através do qualvem sendo propostas ações e programas, visando a regularização fundiária deassentamentos (i)legais, promovendo a urbanização das áreas e reconhecendo osdireitos dos moradores.

Dentre as ações e programas federais executados nos últimos anos, conformedados do Ministério das Cidades, destacam-se:

1) Apoio à Melhoria das Condições de Habitabilidade de Assentamentos Pre-cários – programa voltado principalmente ao apoio a estados, Distrito Federal emunicípios para melhorar as condições de habitabilidade de populações residentesem assentamentos humanos precários, reduzir riscos mediante sua urbanização, inte-grando-os ao tecido urbano da cidade;

2) Programa Habitar Brasil BID – HBB – programa que destina recursos parao fortalecimento institucional dos municípios e para a execução de obras e serviçosde infra-estrutura urbana e de ações de intervenção social e ambiental, por meio,respectivamente, do Subprograma de Desenvolvimento Institucional (DI) e doSubprograma de Urbanização de Assentamentos Subnormais (UAS).

A promoção de regularização fundiária é hoje vista por instituições financeirasinternacionais (incluindo o Banco Mundial) como sendo a condição essencial paraampliação do mercado nas cidades e para a reativação da economia urbana. De fato,o Banco Mundial tem imposto a outorga de títulos de propriedade como condiçãopara liberação de recursos, inclusive em vários países da América Latina, com baseno argumento de que, entre outros efeitos, a segurança da posse e consequente acessoao crédito formal farão com que os moradores invistam em seus lotes e casas, assimreativando a economia urbana como um todo.5

5 FERNANDES (2001).

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Compartilho com FERNANDES (2006) do receio em relação à justificativaeconômica para a regularização da titulação nesses assentamentos (i)legais,principalmente na modalidade da outorga de títulos de propriedade individual plena,ao invés de recorrer aos tradicionais argumentos humanitários, religiosos e sócio-políticos.

Diante desse contexto, o cenário pode representar um retrocesso para as políticaspúblicas de regularização, conforme acrescentou FERNANDES:

“(...) a mera atribuição de títulos individuais de propriedade pode até garantir a segurançaindividual da posse, mas com frequência acaba fazendo com que os moradores vendamsuas novas propriedades e sejam “expulsos” para as periferias precárias, em muitos casosinvadindo novas áreas – onde o mesmo processo de ilegalidade começa novamente.”

Nessa perspectiva, conforme dito por FERNANDES (2006), “não são os grupospobres, mas sim os (velhos e novos) grupos econômicos privados ligados aodesenvolvimento da terra urbana que mais uma vez se beneficiariam do investimentopúblico na urbanização dessas áreas, geralmente bem localizadas e atraentes”.

4. NOVOS IMÓVEIS PARA O MERCADO DO SOLO FORMAL

O processo de regularização fundiária desses assentamentos, ao promover aurbanização das áreas e atribuir títulos de propriedade, acaba incorporando esseslocais ao mercado do solo formal das cidades. Se considerarmos os estudos econstatações abaixo, sobre a renda da terra urbana, urbanização e mercado informal,veremos que esse “novo” produto do mercado imobiliário já é em si contraditório,reflexo do processo de produção do espaço urbano capitalista, do mercado imobiliárioe da atuação do Estado. Algumas constatações que seguem demonstram exatamentea complexidade desse “novo” produto que surge ao mercado formal.

1. “(...) A terra e um bem não produzido que, portanto, não tem valor, mas adquire preço.Ora, um bem não produzido não pode ter seu preço regulado pela lei da oferta, pois não hálei regulando a sua oferta. É a procura que suscita o preço da terra e não o encontro domercado de produtores e compradores de solo.”6

2. “A produção de espaço urbano se dá, em geral, pela incorporação à cidade de glebas queantes tinham uso agrícola.”7

Os “novos” imóveis provenientes do processo de regulação fundiária e quesão incorporados ao mercado formal não surgiram pela procura dos consumidores e

6 RIBEIRO (1997).7 SINGER (1979).

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também não eram glebas rurais. No entanto, os “novos” imóveis se tornarão um novoproduto do mercado imobiliário.

3. “A propriedade privada da terra urbana coloca-se como obstáculo ao investimento nosetor (habitacional). (...) a cada processo produtivo o capital encontra diante de si o proprietáriofundiário que exige dela uma renda para permitir o uso do solo.”8

4. “(...) Cada processo produtivo é necessário um novo solo. Isto faz com que a propriedadeprivada da terra urbana se apresente como um obstáculo maior para o capital investido nesteramo (produção de moradias)...”9

É necessário avaliar se os processos de regularização fundiária, principalmentena modalidade da outorga de títulos de propriedade individual plena, não estariamcontribuindo para dificultar o acesso à moradia as famílias de baixa renda.

5. “(...) A utilidade da moradia enquanto unidade central de consumo não é apenas definidapelas suas características internas enquanto ambiente construído. Seu valor de uso é tambémdeterminado pela sua articulação com o sistema espacial de objetos imobiliários que compõemo valor de uso complexo representado pelo espaço urbano.”10

6. “O gradiente de preços do mercado fundiário e imobiliário informal nas favelas nãoacompanha o gradiente de preços dos bairros legalizados contíguos as favelas. Esse resultadoempírico é de grande importância, pois tanto o senso comum, como os modelos da economiaurbana neoclássica atribuem a formação de preços nas áreas de favela um caráter reflexo domercado formal. Isto é, os preços nas favelas seriam determinados pelos preços dos bairrosonde elas se localizam com uma taxa de desconto em função de algumas característicasinternas, tais como grau de violência e estágio da urbanização. O resultado empírico danossa pesquisa sobre a cidade do Rio de Janeiro permite concluir que há uma lógica internaaos mercados informais que determinam os seus preços; uma lógica endógena na formaçãodos preços e que deve ser identificada a partir de variáveis e características do territórioda(s) favela(s).”11

A dinâmica urbana, em especial a questão imobiliária e a produção da(i)legalidade do espaço urbano, que poderá surgir com a implantação dessa políticade regularização fundiária nacional merece reflexões e estudos. Esses novos imó-veis, ao entrarem no mercado formal, poderão acabar elevando o preço da moradia,se consideramos, por exemplo, que esses imóveis tornariam os “piores” imóveis for-mais e assim teriam os preços dos “piores” imóveis antes deles entrarem no mercadoformal. Nesse caminho, os grupos econômicos privados – sobretudo, ligados ao de-

8 RIBEIRO (1979).9 RIBEIRO (1997).10 RIBEIRO (1997).11 ABRAMO (2005).

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senvolvimento da terra urbana – é que mais uma vez se beneficiariam do investimen-to público na urbanização dessas áreas. Dessa forma, numa visão muito pessimista, aregularização fundiária estaria consolidando a dinâmica da máquina de produzir fa-velas e as políticas públicas correndo sempre atrás do prejuízo.

Outra possibilidade é surgir um novo mercado imobiliário que não seguirá osmecanismo do mercado formal e nem do mercado informal, se considerarmos, porexemplo, que esses “novos” imóveis não foram produzidos em função da incorporaçãoà cidade de glebas que antes tinham uso agrícola e que também não foram reguladospela “lei” da procura da terra.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os assentamentos informais em áreas urbanas decorrem, principalmente, dacarência de políticas adequadas de moradia – inacessíveis e insuficientes, ressalta-se –,mercados especulativos formais e informais, sistemas políticos clientelistas, legisla-ção e planejamento urbano elitistas e tecnocráticos. Vários são os impactos e impli-cações causados pela produção desse espaço (i)legal. Na questão social, geram aexclusão e marginalidade; na questão jurídica, a falta de segurança da posse. Naprática política, produz a vulnerabilidade e o clientelismo. Na questão econômica,reproduz cidades caras para os pobres. Na questão ambiental, geram as ocupações deáreas de preservação, áreas de risco e diversas outras formas de poluição.

É visível, na atualidade, a flexibilização da legislação brasileira na promoçãodo acesso à moradia, através do incremento de normas mais brandas, quer seja pelacriação de novos institutos (posse-trabalho, usucapião coletiva) ou pela revitalizaçãode instrumentos existentes (usucapião ordinária, direito de uso), além de haver umacontínua legalização de situações (i)legais, visando assim facilitar o acesso à moradiae a melhoria das condições das moradias nas favelas, assentamentos e ocupaçõesilegais ou irregulares em condições subumanas. O Estado vem legalizandoassentamentos e ocupações (i)legais, bem como, urbanizando-os, dotando-os demelhor infraestrutura com instalação de escolas, praças, áreas de lazer, saneamentobásico, luz e água.

É importante que todo esse esforço nessas políticas públicas consiga ao mesmotempo legalizar o (i)legal, promovendo a urbanização das áreas e reconhecendo osdireitos dos moradores, e, principalmente, assegurar a permanência das comunidadesnas áreas onde têm vivido. É importante que as políticas de regularização fundiáriabusquem assegurar a regularização jurídica, urbanística, espacial e social. Só aregularização jurídica não basta. São necessários instrumentos e ações que garantama permanência da população beneficiada e que dificultam as ações pervessas domercado imobiliário.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 245

É fundamental evitar o surgimento de novos assentamentos irregulares emoutras áreas da cidade pelo deslocamento de famílias previamente atendidas porprogramas de regularização fundiária e urbanização. É imprescindível que todas essasações não se traduzam no desperdício do dinheiro público e na necessidade de novosempenhos para essa (mesma) população excluída.

Por fim, as políticas de regularização só serão efetivas se aplicadas em conjuntocom outras políticas que evitem a ilegalidade urbana, pois, do contrário essas políticasde regularização de terras serão funcionais à enorme indústria de produção urbana(i)legal e legal.

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7A REVISÃO DA LEGISLAÇÃO DO

PARCELAMENTO DO SOLO URBANO –BALANÇO E NOVAS PERSPECTIVAS

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O Direito à Cidade e a Revisão da Lei deParcelamento do Solo Urbano

NELSON SAULE JÚNIOR

A lei federal do parcelamento do solo urbano esta sendo objeto de revisão noCongresso Nacional através do projeto de lei 3057-2000. O presente trabalho visaanalisar as proposições referentes aos requisitos urbanísticos e ambientais para osnovos parcelamentos do solo urbano, o tratamento dos condomínios urbanísticos eloteamentos fechados, e o tratamento sobre a regularização fundiária de interessesocial e de interesse específico.

O objetivo do trabalho é promover uma análise crítica a apresentar propostassobre estes tópicos de modo que a revisão desta lei seja voltada a assegurar odesenvolvimento do direito á cidade nos termos do Estatuto da Cidade.

1. A EVOLUÇÃO DAS LEGISLAÇÃO DE PARCELAMENTO DO SOLOURBANO

1.1 A finalidade da Lei de Parcelamento do Solo Urbano

As periferias dos grandes centros urbanos são ilustrativas do processo deimplantação de loteamentos urbanos sem infra-estrutura urbana ou sem autorizaçãodo Poder Público, o que resultou numa ocupação sem padrões mínimos de qualidadeambiental de grande parte do território destas cidades.

Na cidade de São Paulo, por exemplo na década de 20 do século XX, a LeiMunicipal nº 2.611/23 definiu regras para a abertura de loteamentos, o que significavaa associação da atividade de arruar com o uso e ocupação do lote. Esta lei municipaldeterminou-se à apresentação de um plano de loteamento após a obtenção de diretrizes.O plano deveria ser apresentado com curvas de nível de metro em metro, definindo oarruamento e os espaços livres, o nivelamento das vias e o sistema de escoamentodas águas pluviais. Exigia-se a doação de áreas para o Poder Público: 20% para asvias e 5,7% ou 10% para espaços livres. O lote mínimo deveria ser de 300 metrosquadrados, com frente mínima de 10 metros.

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Esta lei estabelecia que se o armador não observasse os critérios para aberturade rua, com a colocação da parte que lhe competia em infra-estrutura, poderiam serabertas ruas particulares, que não seriam consideradas, no entanto, como ruas oficiais.Logradouros particulares foram se multiplicando na cidade, sobretudo na periferia,sem nenhum critério de articulação com as vias já existentes; sem nenhum cuidadoespecial quanto à declividade (na maioria das vezes muito acentuada) e sem nenhumapreocupação com os espaços públicos.

No final da década de 30 do Século XX o parcelamento do solo urbano passoua ser disciplinado por meio de legislação federal. O Decreto Lei nº 58, de 10 dedezembro de 1937 e o Decreto nº 3.079, de 15 de setembro de 1938, passaram aexigir dos loteadores obrigações referente a infra-estrutura e projeto de parcelamentodo solo, dispor de regras contratuais sobre a compra de terrenos mediante pagamentosem prestações – não tiveram eficácia para conter a proliferação de loteamentospopulares sem condições de habitação adequadas. A proibição de construção dehabitações coletivas para população de baixa renda na região central da cidade deSão Paulo por exemplo, foi determinante para a proliferação de loteamentos popularesna periferia sem autorização do Poder Público e sem atender as exigências da legislaçãode parcelamento do solo.1

Com o objetivo de reverter esta situação de deterioração das áreas urbanas, foiinstituída a Lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano contendocomo normas gerais normas gerais definições sobre Modalidades de Parcelamento –Loteamento ou Desmembramento, Lote e Infra-estrutura básica de Parcelamento,Áreas passíveis de Parcelamento para Fins Urbanos.

A Lei de Parcelamento do Solo Urbano disciplina as seguinte matérias:

a) Modalidades de parcelamento: A lei define Loteamento como a subdivisãode gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação,de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias

1 Sobre os efeitos da legislação urbanística na proliferação dos loteamentos irregulares na cidade de São Paulo,Marta Dora Grostein, em sua tese sobre “A cidade clandestina: os ritos e mitos”, ilustra com muita clareza estasituação: “No decorrer das quatro primeiras décadas, foram criadas as condições para que a clandestinidade e airregularidade se estabelecessem como prática de parcelamento do solo para fins urbanos. A sua reprodução atéa década de 50 deve-se, entre outras causas, aos aspectos relacionados com os instrumentos normativos eadministrativos. Quanto aos normativos, podemos destacar que as ‘ruas particulares’ eram permitidas por lei;era possível construir-se com planta aprovada (isto é, com o reconhecimento oficial) mesmo nas ruas particularesdo município (que, como vimos, confundem-se com as clandestinas); era possível incorporar à cidade oficialmenteconstituída os arruamentos e loteamentos abertos e executados em desacordo com a lei; a legislação contemplavaum único tipo de loteamento urbano, independente das classes sociais a que se destinassem e, finalmente, nãohavia apoio legal para punir o loteador clandestino, uma vez que prevalecia uma posição ambígua do Estado, naqual a intervenção na propriedade privada era vista como indevida, ainda que interferindo nos aspectos coletivosda vida urbana. (GROSTEIN, Marta Dora, A cidade clandestina: os ritos e os mitos, Tese de Doutoramento,Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU-USP, São Paulo, 1987, p. 541.)

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existentes. A lei define como desmembramento é a subdivisão de gleba em lotesdestinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde quenão implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento,modificação ou ampliação dos já existentes. A lei define parcelamentos de interessepúblico como aqueles vinculados a planos ou programas habitacionais de iniciativadas Prefeituras, ou entidades públicas, bem como os destinados a regularização deparcelamento de assentamentos.

b) Requisitos Urbanísticos para Loteamento: a lei define como lote o terrenoservido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticosdefinidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situa. A infra-estrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos deescoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário,abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias decirculação. Nos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei deinteresse social a iluminação pública, energia elétrica pública e pavimentação deixamde ser parte da infra-estrutura básica.

A lei determina que o parcelamento do solo urbano é admitido nas zonasurbanas, de expansão urbana ou de urbanização especifica assim definidas no planodiretor ou aprovadas por lei municipal. A lei não contém uma definição sobre o quesão zonas urbanas ou de expansão urbana. A lei define as áreas que não podem terparcelamento do solo urbano tais como terrenos alagadiços e sujeitos a inundações,terrenos em que tenham sido aterrados com material nocivo a saúde pública, áreas depreservação ecológica.

A lei estabelece como requisitos urbanísticos para loteamento a necessidadede áreas destinadas a sistemas de circulação, implantação de equipamento urbano ecomunitário, espaços livres de uso público (praças). Os lotes devem ter área mínimade 125 m2 e frente mínima de 5 metros. Quando se tratar de loteamento em áreas deurbanização específica ou para edificação de conjuntos de habitação de interessesocial o lote poderá ser menor através de legislação estadual ou municipal.

c) Responsabilidades do Loteador e do Poder Público;

d) Elementos do Projeto do Loteamento e Desmembramento;

e) Aprovação e Registro do Parcelamento do Solo;

f) Define as competências do Município e do Estado para o parcelamento dosolo urbano. Cabe ao Estado disciplinar por decreto a aprovação pelos Municípiosde loteamentos e desmembramentos localizados em áreas de proteção especial comode mananciais, patrimônio cultural ou histórico,em mais de um Município,em regiõesmetropolitanas quando abranger área superior a 1 milhão de m2.

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g) Relações Contratuais – Loteador e Adquirentes de Lotes. A lei disciplina asrelações contratuais entre loteadores e compradores de lotes urbanos definindo quaissão os componentes dos compromissos de compra e venda, cessões e promessas decessão que valem como título para o registro da propriedade do lote adquirido. A leiadmite nos parcelamentos populares a cessão de posse em que estiveremprovisoriamente imitidas a União, Estados e Municípios, que tem caráter de escriturapública. A lei estabelece medidas de proteção ao adquirente de lote urbano. No casode loteamento que não foi registrado ou regularmente executado de acordo com oprojeto aprovado na Prefeitura, o adquirente do lote pode suspender o pagamento dasprestações restantes e notificar o loteador a cumprir com as suas obrigações.

h) O Papel do Poder Público na Regularização de Parcelamento Irregular;

i) Critérios Específicos para a Regularização de Parcelamentos de InteresseSocial promovidos pelo Poder Público. A lei estabelece a competência para aPrefeitura Municipal regularizar loteamento ou desmembramento implantado deforma irregular pelo loteador.

Esta competência não exclui a responsabilidade do loteador pela implantaçãode loteamento irregular.

j) Infrações e Crimes de Parcelamento do Solo. Alei tipifica os crimes contra aAdministração Pública referente ao parcelamento do solo urbano. Exemplo são crimesdar início ou efetuar loteamento sem autorização da Prefeitura, ou sem cumprir comas exigências do Poder Público determinadas na licença que aprovou a implantaçãodo loteamento.

k) Requisitos para a modificação de área rural para área urbana para fins deimplantação de parcelamento urbano. Esta alteração depende de prévia anuência doINCRA, do órgão metropolitano se houver, onde se localiza o Município, e daaprovação da Prefeitura Municipal.

A lei de parcelamento do solo estabelece os padrões urbanísticos mínimospara implantação de loteamento urbano, tais como, sistema viário, equipamentosurbanos e comunitários, áreas públicas; bem como as responsabilidades dos agentesprivados (proprietários, loteadores, empreendedores) e do Poder Público; e tipificaos crimes urbanísticos.

A Lei nº 6.766 substituiu o Decreto-lei nº 58/37 para o parcelamento do solourbano. O Decreto-lei, que vigeu até 19 de dezembro de 1979, teve mais a intençãode proteger os compradores de lotes, por meio de pagamento parcelado do preçototal, do que uma preocupação urbanística. Desta forma, previamente, o parceladordeveria basicamente apresentar o plano de loteamento firmado pelo profissionalhabilitado e o modelo de contrato irretratável de compromisso de venda e compra

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perante o Cartório de Registro de Imóveis competente e fazer registrar o primeiro. Apartir do registro, poderia comercializar os lotes. A planta do parcelamento registradodeveria ser previamente aprovada pela Prefeitura Municipal, apenas para osparcelamentos urbanos (art. 1º, § 1º). Todavia, não eram dados critérios urbanísticospara esta aprovação.

A Lei nº 6.766/79 fixa os índices urbanísticos para a aprovação de parcelamentosurbanos em todo o território nacional. O parcelador deverá primeiramente aprovar aplanta de parcelamento na Prefeitura Municipal (arts. 12/17) para posteriormenteregistrá-lo (arts. 18/24). O depósito do modelo de contrato, no Cartório de Registrode Imóveis, continuou obrigatório (arts. 25/36). A venda de lotes de parcelamentonão registrado restou proibida (art. 37) e a conduta criminalizada (arts. 50/51). Valeobservar que, na hipótese de parcelamento de solo dentro de área metropolitana,região de mananciais, ou se a gleba a ser parcelada perfizer mais de 10 milhões demetros quadrados, antes do registro, o loteamento deverá ser aprovado pela instânciadesignada em lei estadual (art. 13).

O grande benefício trazido pela lei do parcelamento do solo urbano, foireconhecer a competência dos Municípios para regularizarem os parcelamentos feitosilegalmente dentro de seus territórios (arts. 40/41). E, ainda, trouxe a possibilidadede parcelamentos especiais para a população de baixa renda (art. 4º, II, in fine).

A admissão de tamanhos de lotes diferenciados para loteamentos de interessesocial aprovados, mesmo não tendo alterado o regime jurídico para a produção demoradias de interesse social, representou um avanço, na medida em que possibilitoua regularização, pelo Município, de casas populares construídas em parcelamentosinformais.

1.2. A competência do Município na Lei do Parcelamento do Solo UrbanoA irregularidade do loteamento ocorre quando o loteador obtém a aprovação

do projeto de loteamento pelos órgãos competentes do Município, efetua o registrodo loteamento no Cartório de Registro de Imóveis, porém, não executa as obras deinfra-estrutura necessárias que constam do projeto de loteamento aprovado. Outrasituação que caracteriza o loteamento irregular ocorre quando o loteador apresentouo projeto de loteamento para a aprovação do órgão público municipal competente,sem atender às outras etapas necessárias para a sua implantação, nos termos da lei6.766/79, como a execução das vias de circulação do loteamento, ou a demarcaçãodos logradouros públicos.

O loteamento é irregular em razão das irregularidades físicas ou urbanísticas,quais sejam, as que tocam à questão de ausência de infra-estrutura e de áreas públicas,e as irregularidades jurídicas, concernentes aos obstáculos existentes para o registro

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do loteamento, consistentes, principalmente, na incorreção do título de propriedadeda gleba.

Os loteamentos irregulares são parcelamentos do solo urbano que obtiveramaprovação do Poder Público municipal, mas que não foram executados conforme oato administrativo da aprovação. Os loteamentos clandestinos são aqueles que nãoobtiveram nenhuma aprovação por parte do Poder Público municipal e surgem dianteda inércia da Administração Pública em fiscalizá-los.

Uma situação de irregularidade muito comum ocorre quando as ocupações deáreas, que foram objeto de parcelamento do solo com a aprovação do projeto deloteamento no Poder Público, não atendem o traçado oficial do loteamento.Geralmente, são ocupadas as áreas destinadas para as vias de circulação, áreas verdese equipamentos comunitários. Muitas vezes, as casas são construídas em desacordocom a divisão dos lotes.

Os conjuntos habitacionais promovidos por órgãos e instituições do PoderPúblico responsáveis pela execução de programas habitacionais, muitas vezes sãoconstruídos sem atender às exigências da lei de parcelamento do solo e da legislaçãomunicipal de uso e ocupação do solo. Situação comum é a falta de infra-estrutura ou doregistro público do empreendimento no Cartório de Registro de Imóveis competente.

O estabelecimento de normas e procedimentos para o parcelamento do solourbano é de competência do Município. Segundo a Constituição Federal, nos termosdos incisos I e VIM do artigo 30, é competência do Município legislar sobre assuntosde interesse local; e promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solourbano.

Se o Município tem a atribuição constitucional para condicionar o exercíciodo direito da propriedade urbana aos objetivos, diretrizes e metas da política urbanamunicipal decorrente desta atribuição, cabe ao Município, no próprio Plano Diretorem que este for obrigatório, por exemplo, dispor dos critérios, instrumentos eprocedimentos para efetuar a regularização dos loteamentos irregulares existentesem seu território.

Neste sentido, Paulo José Villela Lomar, Toshio Mukai e Alaor Caffé Alvestêm o mesmo entendimento sobre a competência do Município para dispor sobre aaprovação do parcelamento do solo urbano:

“Apesar de fixar normas urbanísticas genéricas, padrões mínimos válidos para todo o territórionacional, o ato de aprovação do parcelamento do solo urbano continua sendo de exclusivacompetência do município (ou do Distrito Federal), em atenção ao peculiar interesse local

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na matéria (art. 15,11, da CF), salvo nas hipóteses exaradas no art.13, em que esse ato deaprovação implicará, na sua formação, a anuência prévia do Estado.”2

A competência exclusiva do Município não se refere apenas à edição de normaspara aprovação do loteamento urbano, mas também às regras para regularizá-lo, porquese trata de um assunto de predominante interesse local.

A aprovação, a disciplina e a regularização do parcelamento do solo urbanosão de competência municipal, sendo inválida qualquer exigência feita por parte deoutros entes políticos, inclusive com relação às regras condicionadoras do registroimobiliário, criadas pelos órgãos do judiciário, responsáveis pelas corregedorias doscartórios; os quais devem promover o necessário para que as normas que editam, arespeito da regularização de loteamentos, não interfiram na autonomia do Município.

Os Municípios, por meio do Plano Diretor ou lei municipal específica (se oPlano Diretor não for obrigatório), devem estabelecer a política de regularização deloteamentos irregulares, que pode incluir as seguintes medidas3:

– Delimitação das áreas com grande concentração de loteamentos irregulares,ou de loteamento irregular com elevada densidade populacional, como as ZonasEspeciais de Interesse Social – ZEIS.

– Exigir do Poder Público, para os loteamentos irregulares delimitados comoZonas Especiais de Interesse Social – ZEIS, um plano de urbanização contendo normasespeciais de parcelamento, uso e ocupação do solo e de edificações compatíveis coma realidade da ocupação existente, como principal instrumento de regularização doloteamento irregular.

A delimitação dos loteamentos irregulares como Zonas Especiais de InteresseSocial – ZEIS – no Plano Diretor, para o estabelecimento de um plano de urbanizaçãocom normas de urbanização específicas, atende à exigência do artigo 3º da lei nº6.766, pelo qual somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos, emzonas urbanas de expansão urbana, ou de urbanização específica, assim definidaspelo Plano Diretor ou aprovadas por lei municipal.

A delimitação das Zonas Especiais de Interesse Social em áreas com grandeconcentração de loteamentos irregulares, ou com loteamentos populares com elevadadensidade populacional, caracteriza uma zona urbana de urbanização específica,possibilitando o estabelecimento de normas de parcelamento, uso e ocupação do solo

2 MUKAI, Toshio; ALVES, Alaôr Caffé e LOMAR, Paulo José Villela, Loteamentos e Desmembramentos Urbanos.Sugestões Literárias, São Paulo, 1980, p. 59.

3 Sobre as possibilidades legais de regularização dos loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, ver oManual: Regularização da Terra e Moradia – O Que é e Como Implementar, p 50-67.

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e de edificação específicas, no plano de urbanização, para fins de regularização deloteamentos irregulares. A atribuição preponderante do Município, na regularizaçãode loteamentos e conjuntos habitacionais, não significa reduzir a importância dasdemais instituições públicas. No Poder Judiciário, a Corregedoria Geral do Tribunalde Justiça tem um papel relevante para a instituição de provimento, simplificando osprocedimentos de registro de loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares. AsVaras Especializadas de Registros Públicos, também, mediante portarias internas,podem simplificar os critérios e procedimentos administrativos e judiciais para finsde regularização fundiária4.

1.3. As possibilidades de regularização fundiária na Lei deParcelamento do Solo com base nas modificações da Lei nº 9.785 de29/01/1999

Através da Lei nº 9.785 de 29 de janeiro de 1999, as alterações feitas na Lei nº6.766/79, atenderam o objetivo de constituir instrumentos voltados à proteção dodireito à moradia, mediante a proteção da segurança da posse da população moradorade assentamentos urbanos informais (conjuntos habitacionais e loteamentos popularesdestinados à população de baixa renda).5

Cacilda Lopes, em sua dissertação sobre as legislações de parcelamento dosolo urbano, tem o seguinte entendimento sobre as modificações feitas na Lei nº6.766/79 pela Lei nº 9.785/99;

“...Constatamos que as alterações introduzidas pela Lei n. 9.785/99 na Lei n. 6.766/79, notocante à flexibilização das normas quando o Estado promover empreendimentos imobiliários,tiveram como intuito minimizar a ausência, por longos anos, de investimentos em programashabitacionais. Isso em um quadro de profundas mudanças econômicas, que ocasiona oaumento de pessoas que não conseguem obter, mesmo com o trabalho, a garantia de habitaçãodigna. O Estado, ao perceber que o modelo de acesso à terra no Brasil privilegia apenas

4 No Estado do Rio Grande do Sul, o Provimento nº 77/99 – CGJ da Corregedoria Geral da Justiça instituiu oProjeto “More Legal II” que dispõe sobre os critérios e procedimentos para a regularização e registro deloteamento, desmembramento ou fracionamento de imóveis urbanos ou urbanizados. Por meio deste provimento,é valorizado o papel do município como o ente responsável pela regularização. Por exemplo, o parágrafo 5 doartigo 2 estabelece o seguinte: Nas regularizações coletivas, poderá ser determinada apresentação de memorialdescritivo elaborado pela Prefeitura Municipal, ou por ela aprovado abrangendo a divisão da totalidade da áreaou a subdivisão de apenas uma ou mais quadras. No Estado do Rio de Janeiro, o Provimento nº 108/85 daCorregedoria Geral de Justiça, simplifica o procedimento de depósito das prestações, aceitando simples recibospara a realização dos depósitos.

5 Sobre a legislação de parcelamento do solo urbano recomendamos a seguintes leituras: Ministério Público doEstado de São Paulo/CAOHURB e Procuradoria Geral de Justiça – Temas de Direito Urbanístico – co-edição,São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1999. Ministério Público do Estado de São Paulo/CAOHURB eProcuradoria Geral de Justiça – Temas de Direito Urbanístico 3 – co-edição, São Paulo, Imprensa Oficial doEstado, 2001.

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determinadas classes sociais, o que não conseguiu atender a uma classe numerosa demiseráveis, promove alterações na legislação, instituindo um modelo dual de acesso a lotes:um para os pobres e outro para a classe média, já reproduzido em outros momentos daHistória. Uma legislação de parcelamento do solo que exclui determinadas classes sociaisdo acesso legal à terra causa grande impacto na produção dos espaços urbanos. A parcela dasociedade que não consegue obter habitação pelo modo tradicional de aquisição de lotesfica sujeita a outras formas de apropriação do espaço urbano. Dessa forma, são criados osespaços das favelas, dos cortiços, dos loteamentos clandestinos e irregulares e espaços maisprivilegiados, como os loteamentos regulares, sem falar daqueles que não têm acesso anenhuma dessas formas de moradia, vivendo em ruas, praças, marquises e viadutos.”6

Além da lei nº 6.766/79, também foram alteradas a lei de registros públicos e alei sobre desapropriações de interesse público.

Um dos principais benefícios trazido pelas alterações feitas a lei de parcelamentodo solo urbano foi respeitar a competência constitucional atribuída aos Municípiospara regularizarem os parcelamentos do solo feitos ilegalmente dentro de seusterritórios. E, ainda, trouxe a possibilidade de parcelamentos especiais para a populaçãode baixa renda. Esta alteração na lei de parcelamento de parcelamento do solo urbanorepresenta um avanço, na medida em que não estabelece restrições e impedimentos àregularização, pelo Município, de casas populares construídas em parcelamentosinformais.

De acordo com as modificações feitas a regularização somente será permitidapara parcelamentos em zona urbana ou de expansão urbana, ressalvados os índicesurbanísticos estabelecidos pela legislação municipal para a zona. Portanto, alocalização do parcelamento em zona urbana ou de expansão urbana deve ser entendidacomo um primeiro critério para a aprovação de novo loteamento ou para aregularização daqueles implantados irregularmente.

Na alteração feita pelo artigo 3º, acrescenta o § 6º no artigo 2º, institui asZonas Habitacionais de Interesse Social (ZHIS) como instrumento de regularizaçãofundiária. Estas zonas devem ser declaradas por lei municipal. Outro instrumentoestabelecido é a zona de urbanização específica para fins de parcelamento do solourbano. Esta zona deve ser definida pelo Plano Diretor ou por lei municipal. ASZHIS ou as zonas de urbanização específicas podem ser instituídas também comoZonas Especiais de Interesse Social – ZEIS.

Outra medida importante é o reconhecimento das regularizações deparcelamento e de assentamentos como de interesse público. De acordo com o artigo53, são considerados de interesse público os parcelamentos vinculados a planos e

6 LOPES, Cacilda, As Influências das Legislações de Parcelamento do Solo na Produção dos Espaços Urbanos.Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001, p. 94-95.

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programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal,ou de entidades autorizadas por lei; em especial as regularizações de parcelamentose de assentamentos.

Por meio desta norma, os conjuntos habitacionais executados pelo Poder Públicoque apresentem irregularidades com relação ao parcelamento, uso e ocupação dosolo são considerados passíveis de regularização fundiária, tanto no aspectourbanístico, como no aspecto jurídico; englobando a regularização do empreendimentono Cartório de Registro de Imóveis. Para as ações e intervenções destinadas àregularização dos loteamentos, não será exigível documentação que não seja a mínimanecessária e indispensável aos registros nos cartórios competentes, vedadas asexigências e as sanções pertinentes aos particulares; especialmente, aquelas que visema garantir a realização de obras e serviço, ou que visem a prevenir questões de domíniode glebas, que se presumirão asseguradas pelo Poder público responsável nos termosdo parágrafo único do artigo 53-A.

De maneira alguma, esta norma isenta o Poder público de implantar a infra-estrutura e os equipamentos urbanos no conjunto habitacional. Esta obrigação temfundamento tanto no direito da população beneficiária como consumidores, em funçãodo contrato celebrado com o Poder Público, como no respeito ao direito à moradia.Esses fundamentos devem ser observados nos processos de regularização, de modoque a população atendida tenha uma moradia adequada; uma vez que a urbanização,visando à melhoria das condições habitacionais, é um dos componentes daregularização fundiária.

2. ESTATUTO DA CIDADE E O DIREITO À CIDADE – PRECEITOSNORTEADORES DA REVISÃO DA LEI DO PARCELAMENTO DO SOLO

O Estatuto da Cidade é a lei federal de desenvolvimento urbano que dispõesobre os princípios e as diretrizes fundamentais da política de desenvolvimento urbanocom base na competência concorrente da União em legislar sobre direito urbanístico,as diretrizes previstas no artigo 2º do Estatuto da Cidade se configuram como asnormas gerais de direito urbanístico. Considerando que as normas de parcelamentodo solo urbano fazem parte das normas do regime do direito urbanístico, estas normasdevem observar as diretrizes da política de desenvolvimento urbano prevista noEstatuto da Cidade.

Neste sentido a revisão da lei do parcelamento do solo deve ser promovida emconsonância com os princípios e diretrizes da política de desenvolvimento urbanonos termos das normas constitucionais da política urbana (em especial o artigo 182 e183 da Constituição Federal) e das normas previstas no Estatuto da Cidade.

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A lei de parcelamento do solo urbana deve conter normas de ordem pública einteresse social que direcionem o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, demodo que sejam respeitados os princípios das função social da propriedade e dasfunções sociais da cidade.

Para o atendimento do princípio das funções sociais da cidade a lei doparcelamento do solo deve conter normas que sejam voltadas ao plenodesenvolvimento do direito à cidades sustentáveis nos termos previstos no Estatutoda Cidade.

Com o Estatuto da Cidade ocorre um profundo impacto no direito à cidade,que deixa de ser um direito reconhecido somente no campo da política e passa a serum direito reconhecido no campo jurídico. O direito à cidade adotado pelo direitobrasileiro o coloca no mesmo patamar dos demais direitos de defesa dos interessescoletivos e difusos, como por exemplo, o direito do consumidor, do meio ambiente,do patrimônio histórico e cultural, da criança e do adolescente, da economia popular.

O Estatuto da Cidade define o direito à cidades sustentáveis, como o direito àterra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, aotransporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futurasgerações, e a gestão democrática por meio da participação da população e de associa-ções representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução eacompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

Esta definição jurídica do direito à cidade, contém uma característica semelhantea do direito ao meio ambiente, por estabelecer que os seus componentes como àmoradia devem ser assegurados para as presentes e futuras gerações. Esta definiçãoretraía que o direito à cidade é um direito coletivo ou difuso dos habitantes da cidade.Por exemplo uma comunidade tradicional existente numa cidade que esteja ameaçadade perder sua memória ou identidade, qualquer habitante desta cidade poderá demandara proteção dos direitos desta comunidade com base no direito à cidade definido noEstatuto da Cidade. Devido a esta definição jurídica são sujeitos que tem proteçãojurídica com base no direito à cidade por exemplo:

– os grupos de habitantes e as comunidades que tenham formado a identidadee memória histórica e cultural da cidade,

– os grupos sociais e comunidades que vivem em assentamentos urbanosinformais consolidados que podem demandar do Poder Público, ações e projetos deurbanização e regularização fundiária de interesse social.

O direito à cidade é o paradigma para a observância das funções sociais dacidade, que estarão sendo respeitadas quando as políticas públicas forem voltadas

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para assegurar, às pessoas que vivem nas cidades, o acesso à terra urbana, à moradia,ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviçospúblicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações.

As funções sociais da cidade, como princípio constitucional dirigente da políticaurbana, foram introduzidas na Constituição Brasileira pelo caput do artigo 182 deforma vinculada com a garantia do bem-estar de seus habitantes Com esta vinculaçãodos objetivos, o interesse em que as funções sociais da cidade sejam plenamentedesenvolvidas é dos habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquergrupo social. Com isso, não há o estabelecimento de categorias entre os cidadãospelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independenteda origem social, condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade.

O desenvolvimento das funções sociais da cidade, por ser interesse de todos oshabitantes da cidade, se enquadra na categoria dos interesses difusos, pois todos oshabitantes são afetados pelas atividades e funções desempenhadas nas cidades:proprietários, moradores, trabalhadores, comerciantes e migrantes têm comocontingência habitar e usar um mesmo espaço territorial. Logo, a relação que seestabelece entre os sujeitos é com a cidade, que é um bem de vida difuso.

O reconhecimento institucional e jurídico do direito à cidade como preceitoque deve balizar a política urbana à luz do desenvolvimento sustentável aponta paraa construção de uma nova ética urbana, em que os valores da paz, da justiça social, dasolidariedade, da cidadania, dos direitos humanos predominem no desempenho dasatividades e funções da cidade, de modo que estas sejam destinadas à construção deuma cidade mais justa e humana.

O respeito ao direito à cidade é o principal indicador para verificar o estágiodas cidades brasileiras estarem desenvolvendo as suas funções sociais. Quanto maiorfor o estágio de igualdade, de justiça social, de paz, de democracia, de harmonia como meio ambiente, de solidariedade entre os habitantes das cidades, maior será o graude proteção e implementação do direito à cidade.

Com relação ao princípio da função social da propriedade, devem serconsideradas como diretrizes da lei de parcelamento do solo urbano as seguintesdiretrizes da política de desenvolvimento urbano previstas nos seguintes incisos doartigo 2º do Estatuto da Cidade:

III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade noprocesso de urbanização, em atendimento ao interesse social;

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população edas atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modoa evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meioambiente;

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V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequadosaos interesses e necessidades da população e às características locais;

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;

b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação àinfra-estrutura urbana;

d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólosgeradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;

e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou nãoutilização;

f) a deterioração das áreas urbanizadas;

g) a poluição e a degradação ambiental;

VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista odesenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;

VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbanacompatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Municípioe do território sob sua área de influência;

IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastospúblicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentosgeradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;

XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorizaçãode imóveis urbanos;

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, dopatrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos deimplantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobreo meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixarenda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação dosolo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normasambientais;

XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normasedilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidadeshabitacionais;

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XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção deempreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interessesocial.

A revisão da lei de parcelamento do solo deve incorporar estas diretrizes comonormas gerais de parcelamento do solo urbano de modo que esta lei seja adequada anova ordem jurídica urbana.

2.1 Matérias da revisão da Lei de Parcelamento do Solo Urbano

No ano de 2007 o Projeto de Lei 3.057/2000 que altera a lei de parcelamentodo solo urbano, foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados cujorelator foi o Deputado Renato Amary (PSDB-SP), e necessita ser aprovado no plenárioda Câmara dos Deputados. Este projeto de lei ainda precisa ser apreciado pelo SenadoFederal.

O Projeto de Lei 3.057/2000 tem como objetivo estabelecer as normas geraisdisciplinadoras de parcelamento do solo urbano e de regularização fundiáriasustentável de áreas urbanas lei e visa ter como denominação lei de responsabilidadeterritorial.

O Projeto de Lei 3.057/2000 inicialmente trata das definições jurídicas dosseguintes temas:

– área urbana e área urbana consolidada;

– das modalidades de parcelamento do solo urbano: loteamento,desmembramento, condomínio urbanístico;

– infra-estrutura básica e complementar;

– licença urbanística e ambiental integrada;

– gestão plena do Município em parcelamento do solo;

– zonas especiais de interesse social e assentamentos informais;

– empreendedor de parcelamento do solo urbano;

– regularização fundiária sustentável em área urbana;

– regularização fundiária de interesse social;

– regularização fundiária de interesse específico;

– demarcação urbanística e legitimação de posse.

O Projeto de Lei disciplina as seguintes matérias sobre o parcelamento do solourbano:

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– os requisitos urbanísticos e ambientais do parcelamento do solo urbano;

– as responsabilidades do empreendedor e do Poder Público na implantação emanutenção do parcelamento do solo;

– os requisitos e critérios sobre o conteúdo e para fins de aprovação do projetodo parcelamento do solo;

– as competências do Município e do Estado sobre licenciamento paraparcelamento do solo as exigências para a adoção da licença urbanística e ambientalintegrada, bem como para a entrega das obras e da licença final integrada;

– critérios para o registro do parcelamentos do solo;

– regras para os contratos, relações de consumo e direito do consumidor emparcelamento do solo;

– regularização fundiária sustentável em área urbana, regularização fundiáriade interesse social e de interesse específico, demarcação urbanística e legitimação deposse, registro da regularização fundiária de interesse social;

– infrações penais, administrativas e civis sobre parcelamento do solo;

– requisitos e critérios para implantação e regularização do loteamento comcontrole de acesso;

– critérios sobre o custo do registro dos títulos inerentes ao parcelamento eregularização fundiária de interesse social.

3. TEMAS ESTRATÉGICOS DO DIREITO À CIDADE E DA REFORMAURBANA NO PROJETO DE LEI Nº 3.057/2000 – REVISÃO DA LEI DEPARCELAMENTO DO SOLO

3.1. Adoção dos princípios e diretrizes da Política de DesenvolvimentoUrbano

Conforme aludido acima as normas de parcelamento do solo urbano devemestar subordinadas aos princípios e as diretrizes da política urbana estabelecidas naConstituição Federal e no Estatuto da Cidade. Neste sentido a lei do parcelamento dosolo deve adotar em especial os princípios da função social da propriedade urbana eda cidade; a garantia do direito à cidades sustentáveis e do direito à moradia e emespecial as seguintes diretrizes:

– prevalência do interesse público sobre o interesse privado;

– ocupação prioritária dos vazios urbanos, respeitados os espaços territoriaisespecialmente protegidos;

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– oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicosadequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

– adoção de padrões de expansão urbana compatíveis com os limites dasustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob suaárea de influência;

– justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbani-zação;

– recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado avalorização de imóveis urbanos;

– regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população debaixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso eocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da populaçãoe as normas ambientais.

3.2. Infra-estrutura básica adequada ao direito à moradia e o direito àcidade

Nos termos do art. 2º, inciso XVIII do Projeto de Lei a infra-estrutura básica édefinida como: os equipamentos de abastecimento de água potável, disposiçãoadequada de esgoto sanitário, distribuição de energia elétrica e sistema de manejode águas pluviais.

Para atender o direito à moradia e o direito à cidade é necessário ser incluídana infra-estrutura básica a iluminação pública e a pavimentação. A pavimentaçãoentendida de forma genérica visando garantir a acessibilidade e mobilidade das pessoasnos loteamentos e conjuntos habitacionais.

3.3 Obrigatoriedade de percentual de reserva de terra para HIS nosparcelamentos de solo e/ou empreendimentos

A criação de percentuais de obrigatoriedade de reserva do território paraHabitação de Interesse Social é outro instrumento importante que deve ser utilizadopara garantir a oferta de terra para HIS nos municípios brasileiros. Para tanto, éextremamente importante que este tema seja incluído como obrigatoriedade na revisãoda lei de parcelamento de solo. Atualmente a lei brasileira de parcelamento do solo6766/79 determina que 20% da gleba seja destinada ao sistema viário, 10% para usoinstitucional e 5% para áreas verdes, sendo omissa para o tema da terra para habitação.Caso seja adotado no Brasil, o percentual deveria ser determinado pelo plano municipalde acordo com as necessidades do município.

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Como contrapartida aos benefícios individuais que serão gerados ao proprietário eempreendedor do parcelamento do solo urbano devido a atividade econômica doempreendimento imobiliário, cabe ao Poder Público exigir do proprietário e o empreendedoruma contrapartida que resulte um benefício social para toda a coletividade .A destinaçãode um percentual da área objeto do parcelamento do solo, visa atender as necessidades demoradia social nas cidades brasileiras, que é um dos componentes essenciais dos princípiosnorteadores da política urbana que são os princípios da função social da propriedade urbanae das funções sociais da cidade.

Contribuições urbanísticas obrigatórias são também adotadas na Espanha,Holanda, Canadá e diversos países europeus.

Assim, através destes instrumentos de percentuais de obrigatoriedades, todosempreendimentos destinados à alta e média renda devem obrigatoriamente destinarum percentual da gleba para a produção de Habitação de Interesse Social.

De acordo com o art. 10. do projeto de lei sem prejuízo de outras obrigaçõesprevistas nesta Lei, a legislação municipal pode exigir do empreendedor:

I – (...)

II – doação de área para implantação de programas habitacionais de interesse social ou derecursos para fundo municipal de habitação.

Esta proposta vai ter pouco impacto para a produção do HIS. Necessáriodefender a seguinte emenda no artigo 10:

§ 4º Os parcelamentos do solo para fins urbanos deverão ter no mínimo 10 % da áreaparcelada destinadas a parcelamentos de interesse social.

§ 5º Fica facultado ao empreendedor destinar as áreas para implantação de parcelamentode interesse social em áreas demarcadas pelo Município como zonas especiais de interessesocial para a produção de habitação de interesse social.

3.4 Inclusão da modalidade de parcelamento de interesse social

Esta modalidade não esta prevista sendo importante a sua inclusão para umtratamento diferenciado com relação a financiamentos, prestação dos serviços defornecimentos de água, energia elétrica, responsabilidades de manutenção da infra-estutura. O projeto de lei admite uma modalidade mais branda de parcelamento, queé o de pequeno porte, mas não regulamenta a produção de parcelamentos para fins deHIS. No aspecto dos assentamentos informais de baixa renda, o PL só regulamenta asações curativas de regularização fundiária, deixando a descoberto as atividadesvinculadas à produção de lotes e unidades habitacionais de interesse social.

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Propostas de emenda no artigo 2º:

Novo inciso – Parcelamento de Interesse Social: são parcelamentos do soloexecutados por meio de empreendimentos habitacionais de interesse social com baseem planos e programas habitacionais vinculados a política habitacional de interessesocial estabelecida pelo Município pelo plano diretor ou lei municipal específica.

Proposta de emenda no artigo 3º:

– Admite-se o parcelamento do solo de interesse social nas modalidadesloteamento, desmembramento, conjuntos habitacionais unifamiliares e multifamiliaresou condomínio urbanístico localizados preferencialmente em ZEIS, bem como porsuas variantes definidas nesta Lei.

3.5. Plano de expansão urbana como condição de extensão doperímetro urbano

Deve constar da revisão da Lei federal 6766/79 que os planos de expansãotornem-se obrigatórios na abertura de qualquer novo loteamento que se encontre emuma zona de expansão urbana. Sendo que neste planos de expansão deve-se determinar,ainda uma obrigatoriedade de percentual de doação de terra para implementação de HIS.

Necessidade de definição de zona de expansão urbana no PL e da inclusão daobrigatoriedade do plano de expansão urbana no artigo 7º.

O marco regulatório do parcelamento do solo – nacional como local – com suavisão privatista (gleba a gleba) e rentista (percentuais fixos, sem relação com osdiferentes sítios urbanos e situações municipais quanto à necessidades de infra-estrutura e equipamentos) tem incidido de forma negativa, tanto no processo deexpansão das cidades de forma adequada, quanto na disponibilização de terras paramoradia.

Na experiência internacional do planejamento urbano, raros são os paísesdesenvolvidos que prescindem de um planejamento da expansão urbana, predefinido,aonde já se definem os sistemas viários e de mobilidade básicos, assim como odimensionamento e localização de equipamentos, áreas verdes e áreas de lazer.

3.6. Integração entre a legislação ambiental e urbanística

A revisão da Lei 6.766/1979 precisa considerar a integração entre as legislaçõesambientais e urbanísticas nos aspectos que dizem respeito a produção de novosparcelamentos e regularização de parcelamentos existentes, integrando, inclusive oslicenciamentos de forma a agilizar os processos de aprovação das habitações queatualmente são muito complicados e demorados.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 267

Outro elemento com grande impacto na relação entre a produção habitacionale o desenvolvimento urbano, de forma mais geral, é a fragmentação da regulação doterritório em dimensões que não dialogam, é o caso da gestão ambiental versus gestãourbanística. As gestões ambientais e urbanísticas que incidem sobre os mesmosterritórios, numa superposição de fatores, muitas vezes são contraditórios. Há tambémregras que não dialogam, agravadas pela existência de esferas de controle e fiscalizaçãoverticalizadas, correspondentes a cada um destes setores. Tais esferas de controle everticalização exercem, por meio de suas gerências e superintendências regionais,poderes e propriedades sobre o espaço urbano muitas vezes conflitantes.

A ausência de instrumentos modernos de gestão urbana que incorporem adimensão ambiental em sentido amplo é sentida largamente no território. A inexistênciade um marco regulatório único, que trate a questão ambiental e a questão urbana deforma integrada, e a fragmentação da regulação do território em dimensões que nãodialogam, acaba provocando ações perversas para o desenvolvimento urbano e apreservação ambiental Em grande parte do território brasileiro verifica-se aincapacidade de romper os ciclos de expansão periférica e de ocupação das áreasambientalmente frágeis. Uma das características do mercado formal de habitação doBrasil é sua pouca abrangência. A maior parte da população de baixa renda nãoconsegue ter acesso a esta produção de mercado. Consequentemente, a maior parteda produção habitacional do país se faz à margem da lei nas áreas rejeitadas pelomercado imobiliário privado.

Mas a reflexão sobre a legislação ambiental, que persiste até os dias atuais,ainda é muito pontual e fragmentada. São leis com visões setorialistas, que visamapenas a conservação – marcada por um viés anti-urbano – e não refletem sobre anecessidade de construção de um modelo de cidade ambientalmente sustentável. Coma legislação existente, não é possível conciliar no ambiente urbano a reflexão sobreexclusão social e necessidade de saneamento com a discussão da preservaçãoambiental. É preciso pensar em um novo marco regulatório urbanístico e ambientalúnico que trabalhe com toda a diversidade do território brasileiro, e reflita sobremodelos de ocupação urbana do território que dialoguem com esta diversidade.

3.7. Dos condomínios urbanísticos e loteamentos com controle de acesso

É necessário impor limites de tamanho para esta modalidade de parcelamento.Deve ser incluído o seguinte inciso no Art. 2º:

XII – condomínio urbanístico: a divisão de imóvel com área total não superior a 50.000 m2

em unidades autônomas destinadas à edificação, às quais correspondem frações ideais dasáreas de uso comum dos condôminos, sendo admitida a abertura de vias de domínio privadoe vedada a de logradouros públicos internamente ao perímetro do condomínio;

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XV – condomínio urbanístico integrado à edificação: a modalidade de condomínio em imóvelcom área total não superior a 50.000 m2 em que a construção das edificações é feita peloempreendedor, concomitantemente à implantação das obras de urbanização;

Com relação ao Loteamento com Controle de Acesso (Loteamento Fechado),pelo artigo 124 do projeto de lei está prevista a modalidade do loteamento, bemcomo dos loteamentos fechados existente serem regularizados sem nenhumacompensação.Deve ser previsto para os loteamentos fechados existentes que aregularização seja condicionada a compensações urbanas tais como:produção de HIS,regularização fundiária de HIS, implantação de infra-estrutura, equipamentos públicos,ciclovias, implantação de áreas verdes, praças e parques. Sobre novos loteamentosfechados a lei não deve admitir esta modalidade.

3.8. A competência preponderante do Município para legislar sobreregularização fundiária

O projeto de lei deve dispor de forma clara que a competência para oestabelecimento das normas de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano eedificação para fins de regularização fundiária é do Município, que deverão serrespeitadas pelos agentes e órgãos públicos dos demais entes federativos .

O Município é o principal ente federativo para tratar da política urbana deacordo com o pacto federativo estabelecido na Constituição Federal (Artigos 30,VIII, e 182). O Estatuto da Cidade atribui ao plano diretor que é uma lei municipaltratar da política e dos instrumentos de regularização fundiária, com base nas diretrizesestabelecidas nos incisos XIV e XV do artigo 2º. A atual lei do parcelamento do soloatravés do artigo 40 atribui a Prefeitura Municipal ou Distrito Federal, a competênciapara regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sematender as determinações do licenciamento do Poder Público.

3.9. Tratamento diferenciado para novos parcelamentos eregularização fundiária

A lei precisa conter um tratamento diferenciado entre as normas que tratamdos critérios, exigências, do processo e procedimento, dos instrumentos para apromoção de novos parcelamentos do solo urbano e as normas que tratam daregularização fundiária de interesse social de assentamentos urbanos que secaracterizam como parcelamentos informais, irregulares ou clandestinos.

A lei para ter eficácia não pode estabelecer os mesmos critérios e exigênciaspara a implantação de um novo parcelamento do solo, e para a regularização fundiáriade interesse social de parcelamentos do solo consolidados, como por exemplo exigiro mesmo tamanho de lote mínimo, o mesmo percentual de área destinadas a uso

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público ou de uso comum como os equipamentos públicos e comunitários, o mesmopercentual para as vias públicas.

3.10. Adoção de Regimes Especiais de Zoneamento deAssentamentos Urbanos de Interesse Social

A lei deve adotar como diretriz da regularização fundiária de interesse social aconstituição pelos Municípios de regimes normativos especiais de zoneamento deassentamentos urbanos de interesse social, através da aplicação do instrumento dazona especial de interesse social, para as situações no qual a localização e característicado assentamento urbano de interesse social objeto da regularização fundiária, apresentesobreposições ou conflitos entre legislações urbanas, ou entre a legislação urbana e alegislação ambiental.

A lei federal de parcelamento do solo urbano deve prever que as normasurbanísticas e ambientais, estabelecidas nestes regimes especiais de zoneamento deinteresse social, devem prevalecer sobre as demais legislações urbanas e ambientaiscomo forma de eliminar os entraves e obstáculos existentes, em especial para olicenciamento urbanístico e ambiental integrado para fins da regularização fundiáriados assentamentos urbanos de interesse social.

Através destes regimes especiais de zoneamento que podem ser formalizadospelos Municípios, com a instituição legal do instrumento das zonas especiais deinteresse social e quando for o caso dos planos de regularização fundiária de interessesocial, serão estabelecidas normas especiais urbanísticas e ambientais de parcelamento,uso e ocupação do solo urbano compatíveis com o assentamento urbano consolidadoque viabilizem a regularização necessária para o reconhecimento do direito à cidadee da moradia do grupo social que vive neste assentamento.

A lei federal de parcelamento do solo deve estabelecer os conteúdos básicosdestes regimes especiais de zoneamentos de assentamentos urbanos de interesse social,que devem ser observados para o licenciamento urbanístico e ambiental em especial:

– os parâmetros urbanísticos e ambientais específicos para fins de regularizaçãodo parcelamento;

– os padrões de habitação e edificação;

– os percentuais e critérios específicos para a regularização das vias decirculação, das áreas destinadas a uso público ou de uso comum, e dos equipamentosurbanos e comunitários.

Esta medida é necessária para eliminar um dos principais obstáculos e entravesdos processos de regularização fundiária de interesse social que é a existência de

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diversas legislações urbanas e ambientais da União, do Estado e do Município queestabelecem normas de uso e ocupação do solo contraditórias e conflituosas parauma mesma área urbana onde esteja localizado um assentamento urbano de interessesocial. Estas legislações ou normas conflituosas, praticamente impedem olicenciamento urbanístico e ambiental destes assentamentos para fins de regularizaçãofundiária. O caso mais comum é o conflito existente entre a legislação ambiental queconsiderada áreas urbanas consolidadas ocupadas por favelas, ou outros tipos deassentamentos de população de baixa renda ou tradicional, como área de preservaçãopermanente.

Em alguns casos os Municípios reconhecem na legislação urbana como porexemplo através do plano diretor que estas áreas se consolidaram como um assentourbano de interesse social, mediante a demarcação destas áreas como áreas ou zonasde interesse social, ou áreas ou zonas especiais de urbanização ou regularizaçãoespecífica.

Considerando que a lei federal de parcelamento do solo deve dispor de normasgerais de parcelamento do solo é fundamental que seja prevista como norma geral aprevalência das normas urbanísticas e ambientais de parcelamento uso, ocupação, eedificação, constituídas pelos regimes especiais de zoneamento de assentamentosurbanos de interesse social instituídos pelos Municípios, para solucionar assobreposições e conflitos existentes nas legislações urbanas e ambientais, em especialpara viabilizar o licenciamento urbanístico e ambiental destes assentamentos.

3.11. Da obrigação da iniciativa do Poder Público promover aregularização fundiária de interesse social

A lei deve prever as situações no qual o Poder Público tem a obrigação de tera iniciativa de promover a regularização fundiária de assentamentos urbanos deinteresse social. Esta obrigatoriedade deve ser estabelecida para os parcelamentosrelacionados a planos ou programas habitacionais de iniciativa de órgãos daAdministração Direta ou Indireta vinculados aos Municípios, Estados, Distrito Federale União, que se caracterizem como irregulares, tais como conjuntos habitacionais,loteamentos populares.

A obrigatoriedade de iniciativa deve ser estabelecida para a regularizaçãofundiária de assentamentos urbanos de interesse social, localizados em áreas públicasde domínio da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, considerados comoconsolidados, que tenham direitos reais constituídos, como por exemplo o direito aconcessão de uso especial para fins de moradia, ou definidas como zonas especiaisde interesse social pelo plano diretor ou lei municipal para fins de regularizaçãofundiária de interesse social.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 271

No caso da regularização fundiária de assentamento urbano de interesse sociallocalizado em áreas particulares como as favelas, nas quais os posseiros tenham direitosreais constituídos através do usucapião urbano ou ordinário, a lei deve prever que oPoder Público tem a obrigação de prestar ou viabilizar, os serviços de assistênciatécnica e jurídica e social para a população de baixa renda.

Existe um elevado número de conjuntos habitacionais e de loteamentospopulares promovidos por órgãos, instituições e empresas habitacionais vinculados aMunicípios, Estados e União que foram implantados de forma irregular sem atendera atual lei do parcelamento do solo urbano.

A atual lei do parcelamento do solo com base nesta realidade considerou comode interesse público os parcelamentos vinculados a planos ou programas habitacionaisde iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal, ou entidades autorizadaspor lei, em especial as regularizações de parcelamentos e de assentamentos nos termosdo artigo 53-A. Através deste artigo é previsto um tratamento especial para viabilizaro registro do assentamento objeto da regularização.

Para reverter este quadro de irregularidade de um elevado número deempreendimentos habitacionais de interesse social promovidos pelo Poder Públiconas cidades brasileiras, a lei do parcelamento do solo deve prever a obrigação doPoder Público promover a regularização fundiária dos assentamentos urbanos queestejam nesta situação.

Esta obrigação deve ser estendida para as áreas públicas ocupadas por populaçãode baixa renda ou tradicionais, que tenham constituído direitos reais de posse oumoradia para os possuidores destas áreas por provisão constitucional ou legal, comoo direito a concessão de uso especial para fins de moradia.

Esta medida é necessária para assegurar o cumprimento da função social dapropriedade urbana pública, e do direito fundamental à moradia estabelecido naConstituição federal, bem como do direito à cidade previsto no Estatuto da Cidade.

3.12. Da iniciativa de entidades civis para promovera regularizaçãofundiária de interesse social

A lei deve prever o direito de iniciativa de solicitar, exigir ou quando for o casode promover a regularização fundiária de interesse social as pessoas ou suasorganizações criadas legalmente que tenham direitos reais constituídos nosassentamentos urbanos de interesse social, seja em razão de atenderem os requisitoslegais de posse de área urbana, para fins de reconhecimento do direito à moradia ouda propriedade (no caso de área urbana particular), ou por terem adquirido lotesurbanos ou unidades habitacionais.

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272 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

A lei dever prever o direito de iniciativa para os beneficiários da regularizaçãofundiária de forma individual ou coletiva.Este direito deve ser reconhecido asassociações de moradores da comunidade ou de cooperativas habitacionais,regularmente constituídas, com personalidade jurídica,com autorização expressa deseus representados, bem como para associações civis sem fins lucrativos que tenhamcomo atribuição estatutária prestar serviços e promover medidas administrativas,jurídicas e judiciais para fins de regularização fundiária de assentamentos urbanos deinteresse social.

A Constituição Federal através dos incisos XVII e XVIII do artigo 5º, asseguraque é plena a liberdade de associação para fins lícitos, bem como que a criação deassociações e na forma da lei a de cooperativas independem de autorização.

Esta medida é voltada ao fortalecimento da cidadania da população de baixarenda ou tradicional que vivem em assentamentos urbanos de terem o direito dereivindicar a proteção e o reconhecimento de seus direitos constituídos legalmentede posse, propriedade ou moradia através da promoção da regularização fundiáriadestes assentamentos perante o Poder Público (poder executivo, legislativo, judiciário).

3.13. Das contrapartidas da regularização fundiária de assentamentosurbanos de média e alta renda

A lei do parcelamento do solo urbano deve tratar da regularização fundiária deassentamentos urbanos de média e alta renda como por exemplo os loteamentosfechados, condomínios civis verticais e horizontais, clubes de campo e chácarastransformadas em loteamentos urbanos.

Como diretriz para a regularização fundiária destes assentamentos urbanos,deve ser estabelecida a obrigatoriedade desta regularização ser onerosa. Aregularização fundiária onerosa pode ocorrer através de contrapartidas urbanas.

O Estatuto da Cidade estabelece como diretrizes da política urbana nos termosdos inciso IX e XI do artigo 4º respectivamente: a justa distribuição dos benefícios eônus decorrentes do processo de urbanização; a recuperação dos investimentos doPoder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos.

A lei do parcelamento do solo deve determinar que a regularização fundiáriade assentamentos urbanos de média e alta renda deve ser feita de forma onerosa aosbeneficiários da regularização, de modo a atender estas diretrizes da política urbana,bem como o princípio da igualdade mediante um tratamento diferenciado entre aspopulações de baixa renda e alta renda nesta matéria.

O Estatuto da Cidade já prevê o instituto da outorga onerosa de alteração deuso do solo urbano, que pode ser aplicado para a regularização dos loteamentos urbanos

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 273

implantados em zonas de expansão urbana ou mesmo em zonas rurais, como umadas formas de contrapartida proporcional aos impactos que estes empreendimentosgeram no sistema viário, trânsito e na demanda de infra-estrutura, equipamentos eserviços públicos da cidade.

O estabelecimento de contrapartidas urbanas para fins de regularização fundiáriade assentamentos urbanos de interesse social, ou para a produção de habitação deinteresse social é plenamente justificável para atender o princípio das funções sociaisda cidade de modo a contribuir com a política urbana e habitacional do Município.

A legislação federal que versa sobre os imóveis da União dispõe que os institutodo aforamento, da concessão de direito real de uso, ou da cessão de imóveis objeto deregularização fundiária de assentamentos de média e alta renda localizados em imóveisda União deverão ser outorgados de forma onerosa para os beneficiários daregularização (ver a lei federal nº 9.636/98 e a lei federal nº 11.481/2007).

Além de prever a aplicação da outorga onerosa de alteração do uso do soloprevista no Estatuto da Cidade para fins de regularização fundiária destesassentamentos, a lei deve prever como contrapartidas urbanas:

– a destinação de recursos financeiros para a regularização fundiária deassentamentos urbanos de interesse social;

– a destinação de áreas urbanas para projetos de habitação de interesse socialcom base no plano diretor do Municípios;

– a promoção de projetos de habitação de interesse social.

3.14. Da simplificação do registro da regularização fundiária

A lei do parcelamento do solo deve estabelecer normas voltadas a simplificaras exigências e os procedimentos para o registro público de imóveis públicos ouprivados objeto de processos de regularização fundiária de assentamentos urbanosde interesse social. A adoção dos institutos da demarcação urbanística prevista na legis-lação federal, que versa sobre a regularização fundiária de imóveis da União (Artigo 6ºda lei federal nº 11.481/2007) e da legitimação de posse atendem este objetivo.

A lei deve eliminar os entraves para a abertura da matrícula da área urbanaobjeto da regularização, como por exemplo aceitar fotos aéreas para a identificaçãoda situação fática da forma de ocupação da área urbana, de reduzir e simplificar adocumentação exigida para instruir o processo do registro do imóvel, A lei tambémdeve simplificar o registro dos títulos jurídicos objeto da regularização fundiária emespecial da sentença judicial do usucapião urbano individual ou coletiva, dos termosadministrativos de concessão de direito real de uso, e da concessão de uso especial

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para fins de moradia individual ou coletiva, bem como do contrato do direito desuperfície.

Com relação ao custo do registro dos imóveis objeto da regularização fundiáriade interesse social, o pagamento de taxas e emolumentos tem sido o principal entravepara viabilizar, o registro dos direitos reais constituídos legalmente em favor daspopulações de baixa renda ou tradicional.

Neste sentido a lei deve assegurar a gratuidade dos registros de regularizaçãofundiária de interesse social, assim como da lavratura da escritura pública e do primeiroregistro de direito real constituído em favor do beneficiário da regularização fundiáriade interesse social.

O Estatuto da Cidade estabelece como uma das diretrizes da política urbana notermos do inciso XV do artigo 2º, a simplificação da legislação de parcelamento, usoe ocupação do solo e das normas edilícias com vistas a permitir a redução dos custose o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais. Esta diretriz deve ser aplicadano tratamento da regularização fundiária de interesse social, de modo a reduzir oscustos dos processos desta modalidade de regularização fundiária, bem como paraviabilizar a regularização plena com o registro dos parcelamentos do solo e dos títulosdos direitos reais nos Cartórios de Registros de Imóveis.

A gratuidade do registro da regularização fundiária já esta prevista na lei fede-ral nº 10.932 de 3 de agosto de 2004, bem como no artigo 12 da lei federal sobre aregularização fundiária dos imóveis da União (lei federal nº 11.481/2007), que alterou oartigo 290-A, da lei de registros públicos (Lei federal nº 6.015/73) nos seguintes termos:

Devem ser realizados independentemente do recolhimento de custas e emolumentos:

I – o primeiro registro de direito real constituído em favor de beneficiário de regularizaçãofundiária de interesse social em áreas urbanas e em áreas rurais de agricultura familiar;

II – a primeira averbação de construção residencial de até 70 m2 (setenta metros quadrados)de edificação em áreas urbanas objeto de regularização fundiária de interesse social.

§ 1º O registro e a averbação de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo independemda comprovação do pagamento de quaisquer tributos, inclusive previdenciários.

§ 2º Considera-se regularização fundiária de interesse social para os efeitos deste artigoaquela destinada a atender famílias com renda mensal de até 5 (cinco) salários mínimos,promovida no âmbito de programas de interesse social sob gestão de órgãos ou entidadesda administração pública, em área urbana ou rural.

O PL está retirando a gratuidade através do artigo 136 e dos incisos II e III doartigo 138.

Proposta de Emenda: Suprimir o artigo 136 e os incisos II e III do artigo 138.

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Revisão da Lei de Parcelamento do Solo eAmpliação da Oferta de Terras paraHabitação de Interesse Social: Aprendizadosde Fortaleza/CE

ANTÔNIO JEOVAH DE ANDRADE MEIRELESHENRIQUE BOTELHO FROTA

INTRODUÇÃO

Com o avanço, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº 3.057/2000, quevisa à revisão da legislação de parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766/79), muitosdebates têm sido fomentados pelo movimento social, organizações não-governamentais e administração pública nas diversas esferas (federal, estadual emunicipal).

Dentre as críticas e proposições do Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU)ao PL 3.057/2000, encontra-se a tentativa de ampliar o acesso à terra urbanizada paraa implantação de habitação de interesse social. Nesse sentido, o FNRU propõe que oart. 10 do PL seja alterado para exigir que 10% (dez por cento) da área dosparcelamentos urbanos sejam obrigatoriamente destinados a esse tipo de habitação(FÓRUM NACIONAL DA REFORMA URBANA, 2008).

O presente artigo tem por escopo contribuir com o debate a partir da análise docaso do Município de Fortaleza, cuja Lei Municipal nº 6.541/89 institui um Fundo deTerras destinado à implantação de programas habitacionais de interesse social. Umdos componentes do mencionado fundo é o percentual de 5% (cinco por cento) deárea exigido quando da aprovação de projetos de parcelamento do solo.

Como aporte para a análise, propõe-se a utilização do paradigma da JustiçaAmbiental, ainda pouco difundido entre os pesquisadores. Ao final, o que se espera édemonstrar que esse conceito pode ser um importante aliado na superação da dicotomiaentre moradia e meio ambiente.

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1 A JUSTIÇA AMBIENTAL NO CONTEXTO DO MARCO JURÍDICO-URBANÍSTICO BRASILEIRO

O conceito de Justiça Ambiental surgiu a partir de lutas pelo reconhecimento eampliação de direitos civis articuladas com reivindicações acerca da qualidadeambiental de comunidades negras dos Estados Unidos da América. Embora tenhahavido, desde o final da década de 1960, tentativas de conjugação entre o movimentonegro ou de trabalhadores com as questões ambientais, o marco amplamente apontadocomo o início do movimento pela Justiça Ambiental é o ano de 1982. No referidoano, a comunidade de Afton, no condado de Warren, estado americano da Carolinado Norte, foi palco de inúmeros protestos que levaram a mais de 500 prisões. O focodas reivindicações foi a resistência da comunidade, em sua maioria, formada porpopulação afro-americana, à implantação de um aterro químico destinado a depositarbifenil policlorado.

Em 1983, por força da grande repercussão que ganhou o caso de Afton, o U.S.General Accounting Office realizou um estudo intitulado Siting of Hazardous WasteLandfills and Their Correlataion with Racial and Economic Status of SurroundingCommunities. Surpreendentemente, os estudos revelaram que, apesar das comunida-des negras da Região 4 (que compreende oito estados do sudeste dos EUA) corres-ponderem a apenas 20% (vinte por cento) da população total da área, grande parte dosaterros comerciais de resíduos perigosos estavam instalados nas suas imediações.

Segundo Acselrad (2004), foi a partir das lutas de base similares àquelaenfrentada em Afton que a Justiça Ambiental passou a ser considerada como umaproblemática central nas lutas do movimento por direitos civis nos EUA. Essaefervescência em torno dos protestos contra as iniquidades ambientais fez com que aUnited Church of Christ, por meio de sua Comissão de Justiça Racial, em 1987,divulgasse um estudo contendo importantes constatações sobre as relações entredeposição de rejeitos tóxicos e comunidades negras nos EUA. A pesquisa revelouque as localizações de depósitos de resíduos perigosos naquele país apresentavamum padrão cujo principal fator influenciador era a composição racial das comunidadesafetadas. Embora, existisse também uma forte relação com o fator renda, em muitoscasos, comunidades pobres compostas majoritariamente por pessoas brancas não eramafetadas pelo problema, o que demonstrou que a cor da pele possuía mais peso doque a renda no momento da escolha sobre a localização dos aterros. Essa constataçãofez com que o reverendo Benjamin Chavez cunhasse a expressão “racismo ambiental”para designar “a imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigososàs comunidades de cor” (PINDERHUGHES apud ACSELRAD, 2004, p. 26).

Em 1991, como resultado da I Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistasde Povos de Cor, realizada em Washington, foi lançado o documento “17 princípios

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da Justiça Ambiental”. Durante a Conferência das Nações Unidas para o MeioAmbiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, o documentofoi amplamente divulgado de forma que o movimento ganhou eco em diversas partesdo mundo.

Para Acselad, Herculano e Pádua (2004), no Brasil, a Justiça Ambiental temganhado novas interpretações, indo muito além do debate acerca da contaminaçãoquímica e da questão racial.

As gigantescas injustiças sociais brasileiras encobrem e naturalizam um conjunto de situaçõescaracterizadas pela desigual distribuição de poder sobre a base material da vida social e dodesenvolvimento. A injustiça e a discriminação, portanto, aparecem na apropriação elitistado território e dos recursos naturais, na concentração dos benefícios usufruídos do meioambiente e na exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais dodesenvolvimento (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, 2004, p. 10).

A partir de 2001, como resultado do I Colóquio Internacional sobre JustiçaAmbiental, Trabalho e Cidadania, realizado no campus da Universidade Federal Flu-minense em Niterói, foi criada a Rede Brasileira da Justiça Ambiental (RBJA). Deacordo com essa rede, constituída por pesquisadores, sindicatos, movimentos ambi-entalistas, organizações não-governamentais e movimentos populares, compreende-se por Justiça Ambiental:

O conjunto de princípios e práticas que:

a – asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte umaparcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas,de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausênciaou omissão de tais políticas;

b – asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;

c – asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientaise a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processosdemocráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos quelhes dizem respeito;

d – favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais eorganizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos dedesenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e asustentabilidade do seu uso. (REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL, 2001)

Depreende-se que a justiça ambiental está calcada em quatro pilares básicos,que podem ser assim resumidos: 1) distribuição igualitária das consequências ambi-entais negativas decorrentes das atividades humanas; 2) equidade no acesso aos re-cursos naturais; 3) democracia participativa e direito à informação; 4) sustentabilidade.

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Cabe salientar, por oportuno, que tais valores não estão restritos exclusivamenteao âmbito das mobilizações sociais, encontrando paralelos importantes noordenamento jurídico pátrio. Por todo o texto constitucional percebe-se uma sucessãode princípios e garantias que dão suporte jurídico a um novo paradigma socioambientalque deve informar as políticas públicas e as ações dos particulares. O princípio daisonomia, consagrado no caput do art. 5º é um exemplo concreto disso.

Ainda tratando do art. 5º, dentre tantos direitos e garantias fundamentais,destaca-se a liberdade de associação (XVII), a função social da propriedade (XXIII),o direito de informação (XXXIII), o direito de petição (XXXIV, “a”) e a Ação Popular(LXXIII) como instrumentos que contribuem para o exercício da cidadania.

Saltando para o capítulo relativo ao meio ambiente, o art. 225 da Carta Magnaestabelece que a ele todos têm direito, reconhecendo-o como essencial para a sadiaqualidade vida das presentes e futuras gerações. Ao consagrar a solidariedade inter-geracional, a Constituição não apenas impõe que sejam respeitados os direitos da-queles que ainda não nasceram, mas também solidifica o princípio danão-discriminação entre a atual geração. Isso porque, seria impossível defender odireito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para uma parcela da popula-ção, uma vez que tal direito apresenta-se como difuso e indivisível. Cabe salientarque a concepção de meio ambiente não fica restrita à “natureza intocada”, mas incor-pora o patrimônio histórico-cultural, o meio ambiente do trabalho e o meio ambienteconstruído.

Especificamente no que concerne à proteção ambiental nas cidades é relevantedestacar que a Constituição de 1988, influenciada pelas reivindicações do MovimentoNacional de Reforma Urbana, inaugurou novos paradigmas jurídico-urbanísticos notratamento da propriedade urbana no país. Calcado fundamentalmente no princípioda função social da propriedade, o ordenamento jurídico brasileiro rompeu com aclássica e ultrapassada concepção individualista de propriedade privada, que justificavapoderes absolutos aos proprietários. Nos dizeres de Silva (2006),

[...] a função social manifesta-se na própria configuração estrutural do direito de propriedade,pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos deaquisição, gozo e utilização dos bens. Por isso é que se conclui que o direito de propriedadenão mais pode ser tido como um direito individual. A inserção do princípio da função social,sem impedir a existência da instituição, modifica sua natureza.

Há, portanto, uma consciente opção do legislador constituinte em limitar ospoderes inerentes à propriedade, condicionando-os ao benefício da coletividade. Nocaso, de acordo com o art. 182, § 2º, da Constituição de 1988, compete ao PlanoDiretor Municipal estabelecer as condições que determinam o cumprimento da funçãosocial da propriedade. Apesar da liberdade conferida ao legislador municipal para

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que estabeleça o conteúdo da função social da propriedade urbana no Plano Diretor,é evidente que a interpretação do dispositivo constitucional não se pode darisoladamente, mas sim de forma sistemática, tomando-se como elementares os demaisprincípios estabelecidos na própria Constituição e na legislação infraconstitucionalem vigor.

Com a promulgação, em 2001, da Lei Federal nº 10.257, conhecida comoEstatuto da Cidade, o Capítulo da Política Urbana da Constituição Federal foiregulamentado e a função social da propriedade urbana ganhou delineamento maispreciso, conforme artigo 2º da referida Lei:

Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funçõessociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, àmoradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviçospúblicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativasdos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,programas e projetos de desenvolvimento urbano;

(...)

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população edas atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modoa evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meioambiente;

(...)

IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

Nota-se que o Estatuto da Cidade positivou valores que submetem a propriedadeurbana não apenas a uma função social, mas a uma função socioambiental.

Sobre a cidade sustentável, Carrera (2005, p. 33-34) compreende que ela “nadamais é do que uma cidade onde se pratica, efetivamente o desenvolvimento sustentável,com o objetivo constitucional e primordial de se garantir o sustento das geraçõespresentes e futuras”.

Para alguns setores ambientalistas, um dos mais perigosos vilões contra odesenvolvimento sustentável nas cidades é a população ocupante de áreasambientalmente frágeis que ali estabelece seu local de moradia. Contudo, tratando daintegração do que chama de agendas verde e marrom, Fernandes (2006) questionase, de fato, há um conflito entre direito à moradia e meio ambiente nas cidadesbrasileiras. Para o autor, “trata-se de uma falsa questão: os dois são valores e direitos

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sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceituai, qual seja, oprincípio da função socioambiental da propriedade” (FERNANDES, 2006, p. 357).A criminalização das áreas de risco deveria, portanto, reverter-se em uma análisemais crítica sobre a possibilidade de acesso à terra urbana e a efetivação do direito àmoradia pela população mais pobre.

Ajusta distribuição dos benefícios e ônus oriundos da urbanização, em geral, éentendida como sendo a possibilidade de recuperação dos investimentos do poderpúblico de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos. Entretanto, semabandonar essa concepção, é necessário interpretar esse princípio com um outro sentidocomplementar ao primeiro. A justa distribuição dos benefícios e ônus da urbanizaçãoimpõe não apenas que toda a coletividade seja responsável pelo custeio das obraspúblicas e que colha de forma igualitária a valorização econômica decorrente dessasobras. Nem todos os benefícios revertem-se em valorização dos imóveis privados,havendo também ganhos para a qualidade de vida em função da preservação ambiental.É importante, assim, que toda a população possa ter acesso a áreas saudáveis e dotadasde infra-estrutura para estabelecer seu local de moradia, realizar seu lazer oudesenvolver suas atividades de trabalho.

A Justiça Ambiental, como movimento e princípio, insere-se, diante do expostotambém na realidade jurídica brasileira, em especial no que tange à problemáticaurbana. Em função disso, o planejamento urbano e a apropriação do solo nas cidadespode ser analisada com base nos eixos centrais que compõem o conceito de JustiçaAmbiental, demonstrando que não deve existir dissociação entre o direito à moradiadigna e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

2 ACESSO A TERRA URBANA E O PARCELAMENTO DO SOLO EMFORTALEZA/CE

Fortaleza teve, ao longo de sua história, um forte processo de exclusãosocioterritorial, cujos reflexos são hoje inegáveis. De um lado, a cidade possui bairrosintegralmente dotados de infra-estrutura e serviços urbanos, mas, de outro, milharesde habitantes convivem com a falta de serviços e com a precariedade da moradia.

Segundo Rodrigues (2003), um elemento de destaque que conduz à cisão dascidades é o fato serem socialmente produzidas, mas a renda do solo é individualmenteapropriada. Nesse sentido, os investimentos públicos valorizam o solo urbano,contribuindo para o aumento de seu preço e beneficiando, por conseguinte, osproprietários.

O preço da terra varia em função da apropriação privada (escassez), da procura,da localização e da infra-estrutura existente. Quanto maior for a procura por imóveis

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em dada região, ou quanto melhor forem as condições de vida naquela área, ou aindaquanto maiores forem os benefícios decorrentes da localização do imóvel, maior seráseu preço. Como o acesso à terra se dá, em geral, por meio de compra e venda, “osque mais precisam usufruir de uma ‘cidade com serviços e equipamentos públicos’ –aqueles que têm baixos salários – compram lotes/casas em áreas distantes, onde opreço é mais baixo” (RODRIGUES, 2003, p. 22).

Impedida de ter acesso a bons imóveis pelas vias do mercado, uma parcelaconsiderável da população busca alternativas na irregularidade através de ocupaçõesde terra, compra de lotes em parcelamentos clandestinos e autoconstrução de suasmoradias sem observância das normas de uso, ocupação e edificação do solo. Nessesentido, diversas áreas de preservação permanente ao longo de rios, riachos, lagos elagoas, em dunas e manguezais sofrem processos de ocupação inadequada, dandoorigem às chamadas áreas de risco. Hoje, Fortaleza possui 103 áreas de risco e 632favelas. Para se ter uma ideia da dimensão econômica da exclusão socioambiental, oSenso 2000 do IBGE indica que o município possui 54.690 domicílios sem banheiro,dos quais 84,29% concentram-se na faixa de renda familiar de até 3 salários mínimos.

Fortaleza conta com um déficit habitacional de 77.615 moradias e a RegiãoMetropolitana apresenta uma carência de 122.988 habitações (IBGE, 2000). Essacarência por moradia possui uma forte marca no que diz respeito à renda, atingindointensamente os mais pobres. Sabe-se que mais de 80% do déficit habitacional estáconcentrado no grupo de famílias que possuem uma renda mensal de 0 a 3 saláriosmínimos. Considerando uma faixa de renda de 0 a 5 salários mínimos esse percentualchega a 90% do total.

Um dos aspectos cruciais na política pública de moradia é o debate sobre opapel do poder público e da iniciativa privada na produção de habitação de interessesocial. Historicamente, o mercado imobiliário esteve preocupado em construirhabitações para as classes mais abastadas, só voltando sua atenção para a habitaçãopopular quando contratado pelo poder público para tal. Como consequência, um grandecontingente excluído dos mecanismos formais de acesso à moradia busca alternativasnas ocupações irregulares, favelas e loteamentos clandestinos. Diante da baixaqualidade de vida dessa população, o poder público é pressionado a construirhabitações de interesse social para suprir a falta de oferta do mercado imobiliáriopara os níveis de renda mais baixos. O desafio imposto aos governos municipais,portanto, é ter a capacidade de desenvolver uma política de acesso democrático àterra urbana, possibilitando que a população de baixa renda possa morar em áreasdotadas de boas condições de infra-estrutura, serviços urbanos e qualidade ambiental.

Visando à ampliação da oferta de áreas para habitação de interesse social, aLei Orgânica do Município de Fortaleza, em seu art. 152, institui o Fundo de Terras.

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Conforme a Lei Municipal nº 6.541/89, o Fundo é composto por: 1) terras dopatrimônio municipal, ressalvados os terrenos institucionais; 2) áreas objeto detransferência de domínio do patrimônio da União ou Estado para o município; 3)áreas decorrentes de permuta do Poder Público Municipal, dos direitos de construção,para as zonas dotadas de infra-estrutura urbana e equipamentos sociais; 4) áreas objetode doações ou transferências para fins de implantação de programas habitacionais deinteresse social; 5) áreas desapropriadas pelo Poder Público Municipal para integraremprogramas habitacionais; 6) o percentual de área exigido quando da aprovação deprojetos de parcelamento (a Lei Municipal nº 6.543/89 em seu artigo 3º, III, determinaa necessidade de destinação de no mínimo 5% da área total objeto do parcelamentodo solo, para implantação de programas habitacionais de interesse social). Os imóveisque integram o Fundo de Terras devem ser destinados à implantação de programashabitacionais de interesse social.

A determinação do percentual obrigatório de 5% (cinco por cento) do total daárea de cada loteamento estabelecido pela Lei Municipal nº 6.543/89 em seu artigo3º, inciso III, é fundamental para se ter uma política urbana mais justa, ampliando aatuação do poder público no enfrentamento das demandas por moradia popular, eefetivando a função socioambiental da propriedade, sem encargos para o erário esem demandas judiciais.

A legislação municipal permite a opção de oferta de outra área estranha aosloteamentos em geral, em qualquer outra zona da cidade, desde que ocorra a préviaaprovação do Poder Público e seja mantida a equivalência dos seus preços de mercado.No entanto, o controle e a gestão dessa permuta deveriam, segundo a Lei Orgânicado Município de Fortaleza, ser fiscalizado e gestionado pelo Conselho Municipal deHabitação Popular (CONHAP) e, portanto, somente aceito mediante deliberação desseConselho. Percebe-se um avanço importante no sentido de estabelecer um controlesocial do Fundo de Terras municipal garantindo participação popular em seuplanejamento e gerenciamento.

Considerando a proposta de inclusão, no PL 3.057/2000, de mecanismosemelhante ao já aplicado em Fortaleza há quase dez anos, qual seja, um percentualdos parcelamentos que deve ser destinado a habitação de interesse social, é importanteavaliar quais os aprendizados que a experiência municipal tem a oferecer.

Um primeiro problema na execução da política municipal de parcelamento dosolo diz respeito ao controle social e à participação popular. O Conselho de HabitaçãoPopular, criado por meio da Lei Municipal nº 8.214/98, encontrava-se totalmentedesarticulado e inoperante até o ano de 2007. A referida lei nomeou expressamentequais as entidades que deveriam integrar o CONHAP, não havendo nenhuma previsãode processo democrático para escolha desses representantes. Em razão disso, passados

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quase dez anos após sua criação, algumas das entidades da sociedade civil indicadasna lei já não mais existiam. Da mesma forma, diversas secretarias municipais foramextintas e outras surgiram, não havendo previsão de sua participação. Para se ter umaideia, a Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR),entidade de administração indireta responsável pela política habitacional do município,criada em dezembro de 2003, não tinha assento no Conselho. Tal situação fez comque o CONHAP se transformasse em uma estrutura defasada e sem capacidade deexercer suas atribuições.

Com a inoperância do Conselho, o parcelamento do solo urbano em Fortalezapassa a ser conduzido exclusivamente pelo corpo técnico sem nenhum tipo de controlesocial. Assim, as permutas de imóveis previstas na lei municipal para suprir a exigênciade destinação de 5% dos parcelamentos para habitação de interesse social passarama ser objeto de deliberação da Secretaria de Infra-Estrutura sem a participação doCONHAP.

No ano de 2005, inicio de uma nova gestão municipal, a HABITAFOR ganhamais destaque graças ao preocupante déficit habitacional. Há, assim, maisinvestimentos na área habitacional e Fortaleza começa a desenvolver uma políticamais consistente. Nesse contexto, ao se planejar a construção de novos conjuntoshabitacionais, os imóveis constantes do Fundo de Terras tomaria um papel estratégico.Contudo, a ausência de controle social no parcelamento do solo, fez com que inúmeraspermutas de imóveis fossem aprovadas, transformando o que deveria ser excepcionalem regra. Boa parte das terras provenientes de doação dos loteadores não integravamseus loteamentos, localizando-se, em geral, em áreas distantes, com dificuldade deacesso, infra-estrutura precária e condições ambientais impróprias.

O gerenciamento das permutas por parte do corpo técnico do município nãofoi capaz fiscalizar adequadamente os imóveis doados. Não apenas pela quaseinexistência de fiscais na prefeitura, mas também em virtude de uma visão deurbanização segregadora, as gestões municipais anteriores haviam colaboradofortemente para a cisão da cidade.

Não havia e ainda não há, em Fortaleza, um plano municipal de habitação, oque dificulta a execução articulada das diversas ações nessa área. Da mesma forma,o crescimento da cidade não é planejado por meio de um plano de expansão urbana,ficando a critério do mercado definir onde e quando deverão ocorrer os novosparcelamentos.

A previsão de destinação obrigatória de 5% da área dos loteamentos parahabitação de interesse social, embora represente uma medida considerada avançada,não proporcionou mudanças na configuração excludente do crescimento urbano deFortaleza. A maior parte da população continua residindo em condições de

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irregularidade, pois não consegue ter acesso à terra pelas vias formais do mercado. Aação direta do município na construção de habitações também não se revela capaz deintegrar a população mais pobre à cidade formal, já que as terras que dispõe estãolocalizadas nas bordas da cidade ou em regiões com infra-estrutura precária.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ACESSO A TERRA E (IN)JUSTIÇA AMBIENTAL

Em razão da segregação sócio-espacial verificada nas cidades, e com maisveemência nas grandes metrópoles, a população mais pobre fica desprovida nãosomente dos serviços básicos de infra-estrutura e equipamento urbanos. Sofre tambémcom a ausência de condições dignas de moradia, encontrando, em muitas situações,uma única alternativa: ocupar irregularmente áreas insalubres. Tais áreas são associadasà vulnerabilidade da população às condições ambientais, posto que, em geral, sãolocalizadas em margens de rios e lagoas, encostas de morros, áreas de mangue ouformações de dunas.

Diante dessa constatação, Guerra e Cunha (2005, p. 27) concluem que “osproblemas ambientais (ecológicos e sociais) não atingem igualmente todo o espaçourbano. Atingem muito mais os espaços físicos de ocupação das classes sociais menosfavorecidas do que os das classes mais elevadas”. No caso de Fortaleza, as 103 áreasde risco evidenciam tal realidade.

Resgatando os quatro eixos que integram o conceito de Justiça Ambiental,percebe-se que o crescimento urbano no caso em estudo conduz a uma cidade injustaque submete uma parcela da população a condições ambientais degradantes de maneiradesproporcional. Com efeito, de forma alguma há equidade no acesso da populaçãoaos recursos ambientais, às áreas de lazer, aos espaços públicos ou à terra urbanizada.

No que diz respeito à democracia participativa e ao acesso à informação, aexperiência do CONHAP demonstra que as gestões municipais não apresentavamnenhum esforço em manter o controle social. Recentemente, o Conselho foireestruturado, Conferências da Cidade foram realizadas em consonância com asConferências Nacionais e tem havido uma maior abertura para o diálogo com osmovimentos sociais. Os avanços, contudo, são recentes se comparados aos anos emque a cidade foi esteve desprovida de um planejamento democrático. Seus efeitossão ainda tímidos no que diz respeito à ampliação da oferta de terra urbana para ascamadas de mais baixa renda da população.

Por fim, a sustentabilidade urbana, considerada pelo Estatuto da Cidade comosendo o acesso “à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estruturaurbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentese futuras gerações”, está longe de ser alcançada.

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O intento do presente artigo foi trazer contribuições para o debate da revisãoda legislação federal de parcelamento do solo, especificamente no que diz respeito àexigência de destinação de percentual obrigatório dos parcelamentos para habitaçãode interesse social. A visão aqui apresentada não deve ser compreendida como umacrítica a tal mecanismo, mas um alerta sobre como os municípios devem implementaressa medida. A participação popular é, assim, um componente central que deve serfortalecido para que haja democratização do acesso à terra.

Uma segunda contribuição foi a tentativa integrar a concepção de JustiçaAmbiental na análise do crescimento urbano. O intuito é de demonstrar que as agendasda moradia e do meio ambiente não são conflitantes, mas complementares.

REFERENCIAS

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8PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E

INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA

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A Outorga Onerosa do Direito de Criar Solo:a Experiência da Cidade de Porto Alegre

ANDREA TEICHMANN VIZZOTTO1

Procuradora do Município de Porto Alegre.

1. NOÇÕES PRELIMINARES

A acelerada ocupação desordenada do solo urbano com o desequilíbrio à infra-estrutura urbana foi um dos fatores responsáveis pelo surgimento na Europa, na décadade 70, do denominado “solo criado” como instrumento de planejamento e gestãourbanística, oriundo da ideia da separação do direito de construir do direito depropriedade (GRAU, 1976; ALOCCHIO, 2005; SILVA 2006). O pressuposto era ode que o direito de construir pertenceria à coletividade, não podendo serindividualizado, senão por meio de ato administrativo de concessão ou autorizaçãodo Poder Público (GRAU, 1976; COLLADO, 1979). Para o interessado em construiracima do limite único de construção fixado seria prevista a possibilidade, medianteuma contraprestação ao poder público, de assim o fazer. Essa contraprestação visavaa compensar os efeitos do adensamento decorrentes da construção acima do coeficienteúnico de aproveitamento previsto nos planos diretores. A proposta teórica pretendia,também, solucionar os problemas decorrentes da supervalorização de determinadasáreas da cidade em razão das possibilidades de construção e adensamento. Construiralém do limite legal mediante contrapartida significava ir além do coeficiente únicode aproveitamento. Significava o pagamento pela criação do solo novo: o “solo criado”,ou melhor dizendo, a outorga onerosa de criar solo2.

1 Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Especialista em DireitoMunicipal pela Escola Superior de Direito Municipal e Faculdade Ritter dos Reis. Especialista em Revitalizaçãode Patrimônio Histórico em Centros Urbanos pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Professora de DireitoAdministrativo da Faculdade de Direito de Osório – FACOS. Co-Autora das obras: Temas de Direito Urbano-Ambiental e Direito Municipal em Debate.

2 Ver a respeito da diferenciação entre o direito de construir e o direito de criar solo a preciosa lição do MinistroEros Roberto Grau na relatoria do recurso extraordinário nº 387047-5, de 02-5-2008, do Supremo TribunalFederal. In www.stf.gov.br. Acesso em 05-5-2008.

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Seria possível, então, o controle do uso e ocupação do solo, como medidarestritiva ou incentivadora do desenvolvimento de áreas da cidade. Ademais, o “solocriado” visava também a corrigir distorções quanto à apropriação desigual do solourbano, assim como a incidir sobre a distribuição dos benefícios gerados pela açãoda administração pública, bem como sobre a repartição dos encargos gerados pelouso do solo e a classificação uniforme dos efeitos decorrentes da valorização dosimóveis (GRAU, 1977, p. 32).

Além de ser classificado como mecanismo de planejamento e gestão, pelaincidência mais rápida e mais direta sobre o território da cidade, “o solo criado” éclassificado, também, como um instrumento jurídico. Isso porque regula o exercíciodo direito de propriedade, autorizando a compra de solo do poder público acima dolimite básico previsto em lei.

Em um rapidíssimo relato histórico, nos limites deste trabalho, no mês dedezembro de 1976 foi editada a “Carta do Embu” que, inspirada na legislação francesa,introduziu o “solo criado” no Brasil, adotando a tese de estar o direito de construirinserido no de propriedade, no limite do coeficiente único de aproveitamento3. Apartir daí, o solo excedente deveria ser adquirido do Poder Público, como titular dodireito de edificar. Além disso, nos termos das bases teóricas a exploração e avalorização da propriedade dependeria da infra-estrutura pública oriunda dos recursosadvindos de toda a coletividade, sem a qual a atividade aplicada à propriedadeindividual não poderia se perfectibilizar. A rentabilidade do solo urbano não decorreriade ação exclusiva do proprietário, mas de um conjunto de ações do setor público eprivado.

Dever se considerado também que, se por um lado os investimentos públicos eprivados incrementam o uso individual da propriedade, também é verdade que há umvalor econômico inerente à propriedade em si. Assim, partia-se da premissa de haverum padrão correspondente a esse valor econômico, impedindo que alguns proprietáriosse privilegiassem em detrimento de outros (GRAU, 1976, p. 25). A tradução dessepadrão, em termos urbanísticos, seria o coeficiente de aproveitamento, logicamenteúnico. Nada mais justo, então, que o proprietário interessado em criar solo acima dopermitido compensasse o Poder Público pelo acréscimo de demanda de infra-estruturae serviços urbanos. Necessário, assim, que o Poder Público assegurasse a proporçãoentre solos públicos e privados, com uma equação equilibrada entre atividades privadase as áreas de circulação e de equipamentos públicos e comunitários. Portanto, a outorga

3 Diferentemente da ideia inicial de coeficiente único para todo o território urbano, o artigo 28 da Lei Federal nº10.257, de 20-7-01, Estatuto da Cidade, prevê a possibilidade de índices diferenciados para as diversas áreas dacidade. A experiência de Porto Alegre na utilização do solo criado com índices diferenciados ilustra os efeitos daaplicação dessa política destoante das ideias teóricas do instrumento jurídico-urbanístico.

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onerosa de criação de solo é pautada pela equidade no exercício do direito depropriedade, garantido o coeficiente único de aproveitamento a todos os proprietáriosde terrenos. Além disso, parte-se do princípio de que, havendo construção acimadesse limite, necessário compensar, mediante contrapartida, a outorga deferida. Osrecursos arrecadados com a outorga do direito de criar solo devem estar diretamentevinculados à execução de obras e serviços que redundem em melhoria das condiçõesde vida urbana, na questão da infra-estrutura e na da habitação popular. Essa necessáriavinculação dos recursos justifica-se como medida de compensação pelo adensamentodo solo e da infra-estrutura da cidade.

2. A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO E ALEGISLAÇÃO DA CIDADE DE PORTO ALEGRE

Em Porto Alegre, o 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, instituídopela Lei Complementar nº 43, de 21-7-79, já previa, ainda que de forma tímida, aalienação ou permuta de “índices de aproveitamento”, denominados “índicesconstrutivos”, que correspondiam à mobilidade da capacidade de construir4-5, utilizadoscomo instrumento de gestão e controle da ocupação e do uso do solo urbano6.

A Lei Municipal nº 159, de 22-7-877 instituiu o Fundo Municipal de Desen-volvimento Urbano, de “natureza contábil especial, cujos recursos se destinam a apoiar

4 Artigo 170 – As áreas vinculadas a recuos viários projetados, aberturas de vias constantes do esquema viárioestabelecido pelo traçado do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e a instalação de equipamentosurbanos, referidos no parágrafo único, inciso II do artigo 139, constituem a reserva de índice construtivo darespectiva Unidade Territorial, destinada à aquisição, parcial ou total, pelo Município, dos imóveis atingidospor essa vinculação, nos termos seguintes: I – permuta pela faculdade de construir, em qualquer gleba ou lotelocalizado na mesma Unidade Territorial de Planejamento, ressalvado o parágrafo único deste artigo, áreacorrespondente ao índice de aproveitamento incidente na mesma Unidade Territorial, acrescido de área que oproprietário poderia construir em seu imóvel na parte atingida pela vinculação da qual se trata; (...)Parágrafo único – Quando se tratar da preservação de prédio identificado de interesse sócio-cultural na formada Lei, fica ressalvada a hipótese de aplicação da reserva de índice construtivo em outras Unidades Territoriais,além daquela a que se refere o inciso I deste artigo, a critério do Sistema Municipal de Planejamento eCoordenação do Desenvolvimento Urbano, tendo por base:I – a identificação das Unidades Territoriais, cuja densidade esteja saturada e daquelas passíveis de acréscimoem seu adensamento, de acordo com os padrões do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano;II – a manutenção de um equilíbrio entre os valores do terreno permutado e do terreno no qual seja aplicada areserva de índice construtivo, de acordo com avaliação dos órgãos técnicos municipais competentes.

5 A reserva de índices construtivos era utilizada para a permuta de área pelo direito de construir em áreas vinculadasa recuos viários projetados, aberturas de ruas e instalação de equipamentos. Essa hipótese correspondia ao queatualmente a Lei Complementar nº 434 – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, no artigo 51e seguintes, denomina de Transferência de Potencial Construtivo.

6 Como em outras cidades brasileiras, Porto Alegre adotou o solo criado como instrumento jurídico urbanístico,bem antes da sua adoção pela Lei Federal nº 10.257, de 10-7-2001, Estatuto da Cidade.

7 Essa lei foi regulamentada pelo Decreto Municipal nº 9.001, de 08-10-87, alterado pelo Decreto nº 9581, de 1º-12-89. Esse foi alterado pelo Decreto nº 10.749, de 28-9-93 e 11.098, de 16-9-94.

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em caráter supletivo os programas e projetos relacionados com o desenvolvimentourbano, implantados ou coordenados pela Secretaria de Planejamento Municipal”8,formado por receitas provindas de dotações orçamentárias específicas do Municípioe, entre outras, das receitas resultantes da alienação de reserva de índices construti-vos, vinculados diretamente à implantação do traçado do Plano Diretor de Desenvol-vimento Urbano e à melhoria da infra-estrutura urbana já existente.

Logo após, no ano de 1988, surgiu a Constituição Federal como um marcoimportante, ao dedicar capítulo específico à política urbana, atribuindo aos municípiosa competência para a ordenação territorial.9

A seguir, no ano de 1989, foi editada a Lei Orgânica do Município de PortoAlegre como a lei de maior hierarquia no sistema jurídico municipal. Isso significadizer que as diretrizes e normas gerais para o Município de Porto Alegre foramdelineadas pela Lei Orgânica10.

Nessa cronologia legislativa, em janeiro de 1994, foi editada a Lei Comple-mentar nº 315, que regulamentou o artigo 21311 da Lei Orgânica de Porto Alegre,constituindo-se em marco significativo na adoção do solo criado na cidade de PortoAlegre. Pelo artigo 1º da Lei Complementar o solo criado foi caracterizado comoinstrumento urbanístico com os objetivos de incentivar a construção civil, através dautilização plena da capacidade construtiva, permitindo uma densificação populacio-nal em regiões da cidade melhor atendidas com redes de serviço, saneamento e equi-pamentos públicos; evitar o adensamento populacional em regiões com estruturaurbana precária, através do aumento do potencial construtivo das regiões passíveisde densificação populacional; obter, pelos recursos auferidos, o retorno dos investi-mentos públicos, buscando o desenvolvimento harmônico da cidade, particularmen-te através da compra de áreas urbanas incorporadas ao Banco da Terra, visando apolíticas habitacionais para a população de baixa renda e regularização fundiária;

8 Artigo 1 º da Lei Complementar nº 159.9 Artigo 30, II e VIII e artigo 182 e seguintes.10 Art. 202 – São instrumentos do desenvolvimento urbano, a serem definidos em lei: (...)

VII – o solo criado;(...)Art. 204 – Para os fins previstos no artigo anterior o Município usará, entre outros, os seguintes instrumentos:(...)II – jurídicos:(...)I) solo criado;

11 Art. 213 – Incorpora-se à legislação urbanística municipal o conceito de solo criado, entendido como excedentedo índice de aproveitamento dos terrenos urbanos com relação a um nível preestabelecido em lei.

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propiciar, por meio dos recursos auferidos, investimentos em urbanização e equipa-mentos públicos nas regiões carentes da cidade e a complementação da infra-estrutu-ra urbana das regiões melhor estruturadas, bem como a implantação do traçado doPlano Diretor de Desenvolvimento Urbano, favorecendo, assim, o pleno aproveita-mento do potencial construtivo destas regiões e auxiliar e incentivar supletivamente,por meio dos recursos auferidos, outras políticas públicas, preferencialmente, nasáreas de proteção ao menor, à cultura e ao patrimônio histórico.

Por meio da outorga onerosa todo o proprietário teria o direito de construir atéo coeficiente de aproveitamento correspondente a uma vez a área do terreno. Issosignificava que até o coeficiente de aproveitamento 1,0, o proprietário do imóvelnecessitaria apenas do projeto arquitetônico aprovado e licenciado pelo poder públicopara edificar. Além desse limite, o interessado deveria obter, mediante outorga, osíndices de aproveitamento correspondentes à metragem de criação de solo.12

A Lei, no artigo 2º, criou uma exceção a esse coeficiente de aproveitamentobásico, garantindo a manutenção dos critérios de definição da capacidade de construirdos terrenos estabelecida pelo anterior Plano Diretor, sem o ônus do “solo criado”.Com isso, somente os incrementos propostos para além dos coeficientes deaproveitamento já existentes na matriz apresentada pelo Plano Diretor da épocacorresponderiam ao “solo criado”13.

Não obstante essa exceção de manutenção dos coeficientes de aproveitamentodiferenciados previstos pela legislação anterior, fator determinante ao afastamentoda legislação da capital gaúcha das linhas conceituais teóricas da “Carta do Embu”,foi mantida a ideia de criação de solo em contraposição à compensação decorrentedo adensamento. Também foram agregadas outras formas de utilização dos recursosadvindos da venda de solo criado, citando-se, por exemplo, o auxílio e incentivo, deforma a suplementar outras políticas públicas.14 Verifica-se então que, além do

12 Sobre a diferenciação desses dois tipos distintos de atos administrativos ver capítulo anterior a respeito danatureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir.

13 Artigo 2º [...]§ 1º – Ficam isentadas do ônus do Solo Criado:I – as edificações já existentes, cuja capacidade construtiva esteja em conformidade com a legislação urbanísticavigorante na época da construção;II – a capacidade construtiva dos terrenos expressa nos atuais índices do PDDU.§ 2º – Não haverá ônus de Solo Criado para as edificações que vierem a ser construídas dentro dos limitesimpostos pelos índices 1,0 ou da capacidade construtiva permitida pelos atuais índices do PDDU.§ 3º – Qualquer aumento do potencial construtivo da cidade, seja por incorporação de novas áreas à áreaurbana de Ocupação Intensiva ou por aumento da capacidade de edificação nas atuais UTPs, ou em outrasáreas adensáveis do PDDU, dar-se-á na forma de Solo Criado, observado o disposto no “caput” deste artigoe em seu § 1º, nos termos desta Lei Complementar.

14 Artigo 1º, inciso V da Lei Complementar nº 315.

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alargamento das hipóteses de utilização dos recursos do Fundo Municipal deDesenvolvimento Urbano, a exceção passou a regra geral. O pagamento em dinheiropela criação de solo passou a ser a regra.

Se no Plano Diretor de 1979, ainda sob a influência da “Carta do Embu”, osfins da operação de venda de solo eram atinentes à compensação da infra-estruturaurbana, mediante monitoramento específico, tais propósitos foram bastante alargados.A vinculação das receitas arrecadadas visava a uma finalidade específica, com o usoexclusivo na compensação decorrente do adensamento específico ou no custeio depolítica habitacional. Tanto em uma como em outra hipótese haveria a compensaçãooriginada pela criação de solo.15 Inegável que o gasto dos recursos vinculados aoFundo Municipal de Desenvolvimento Urbano em políticas públicas de proteção dacultura e do menor, por exemplo, não obstante a sua importância, enfraqueceram anatureza eminentemente urbanística do instituto do solo criado.16

A Lei Complementar nº 315 foi regulamentada pela Lei Municipal nº 7.592,de 12-01-95, que instituiu o Fundo Municipal de Desenvolvimento, como fundocontábil especial para financiar a política habitacional do Município de Porto Alegre.Note-se que a regulamentação da Lei Complementar nº 315 tratou da políticahabitacional do Município de Porto Alegre, inserido o uso do “solo criado”. Ou seja,a regulamentação não se ateve aos objetivos previstos, mas regulou aspectos de políticahabitacional, em um alargamento juridicamente impróprio, quer do ponto de vistaformal-legislativo, quer do ponto de vista material.

Se por um lado houve o incremento de recursos arrecadados pelo Fundo deDesenvolvimento, formado a partir do disposto no artigo 2º da Lei Municipal nº7.59217, por outro lado houve uma pulverização de finalidades públicas. A própria

15 O gasto dos recursos com o financiamento de outras políticas públicas deu azo a entendimentos doutrináriosrelativos à natureza arrecadatória da outorga onerosa (ALOCCHIO, 2006, p. 57).

16 A natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir foi examinada em recente decisão do SupremoTribunal Federal, cuja relatoria coube ao eminente Ministro Eros Roberto Grau, já anteriormente referida.

17 Os recursos do FMD provirão:I – da taxa de licenciamento de construção, calculada com fundamento no custo unitário básico da construçãoou em outro índice que venha a substituí-lo;II – dos recursos auferidos com a aplicação do instituto do solo criado e da alienação da reserva de índices;III – de recursos orçamentários do Município;IV – de contribuições, transferências, subvenções, auxílios ou doações dos setores público e privado, bem comode organismos nacionais ou internacionais;V – dos recursos auferidos com as contribuições mensais obrigatórias decorrentes da aplicação das LeisComplementares 242/90 e 251/91.VI – de recursos provenientes de Fundos Estaduais ou Nacionais;VII – de recursos auferidos com a aplicação do previsto no parágrafo único da Lei Complementar nº 312/93;VIII – de rendas provenientes da aplicação de seus recursos, bem como de outras receitas que lhe vierem a serdestinadas.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 295

origem das receitas integrantes do Fundo de Desenvolvimento ratifica a ideia de serpolítica urbano-habitacional muito mais ampla do que a mera operação matemáticadecorrente da compensação da infra-estrutura em razão do adensamento, comodispunha o comando da Lei Complementar nº 315. Com a combinação do dispostopelo inciso II do artigo 1º com o artigo 4º da Lei Municipal nº 7.592 os recursos davenda de solo criado passaram a ser utilizados na remoção de moradias em área derisco e reassentamento, despesas cartorárias e registrarias decorrentes dos processosde regularização e de desapropriação. Além disso, os recursos passaram a financiar aconstrução de albergues para crianças e adolescentes para fins de enfrentamento desituações decorrentes de problemas habitacionais, programas de recuperação decortiços, em especial daqueles cuja arquitetura fosse significativa para o patrimôniohistórico e cultural da cidade. Nas hipóteses elencadas não há uma sequer que refiraa utilização dos valores arrecadados para compensação direta e específica à infra-estrutura em decorrência da venda de solo e adensamento.

Portanto, o alargamento das hipóteses de utilização dos recursos advindos doFundo a situações relativas à política sócio-habitacional, desvirtuaram a ideia originalde aplicação do mecanismo urbanístico do solo criado na cidade de Porto Alegre.Pode-se afirmar, assim, ter havido uma priorização à manutenção da situaçãourbanística anterior. Embora uma das diretrizes do novo Plano tenha sido a daarticulação do novo ao pré-existente, o espaço privado ao público, bem como asinterfaces críticas da cidade (MARASQUIN, 1998, p. 45), pode-se deduzir tambémter havido a perpetuação do modelo pré-existente como justificador das novas regras.

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre, LeiComplementar nº 434, de 10-12-99, buscou alterar a política de planejamento dacidade. A natureza reguladora da ocupação e do uso do solo urbano dos planosanteriores deu lugar a um plano de cunho estratégico, estruturado por meio deprincípios, objetivos e metas.

A venda de solo foi prevista pelo atual Plano Diretor18, sempre orientada pelasestratégias e pela interpretação sistemática, permanecendo em vigor a LeiComplementar nº 315 e suas respectivas regulamentações.

18 Artigo 53. O Solo Criado é a permissão onerosa do Poder Público ao empreendedor para fins de edificação emÁrea de Ocupação Intensiva, utilizando-se de estoques construtivos públicos, e rege-se pelo disposto na LeiComplementam” 315, de 6 de janeiro de 1994.§ 1º As vendas de estoques construtivos serão imediatamente suspensas mediante decreto do Poder Executivo,em caso de se constatar impacto negativo na infra-estrutura decorrente da aplicação do Solo Criado, ou mesmoquando se verifique a inviabilidade de sua aplicação em face dos limites estabelecidos para as Unidades deEstruturação Urbana ou quarteirão, nos termos do art. 67. [...]Artigo 110 – O Solo Criado e a Transferência de Potencial Construtivo serão aplicados em toda a Área deOcupação Intensiva, devendo atender aos limites máximos previstos no Anexo 6, considerando nesses limites o

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O Plano Diretor de 1999 previu o monitoramento da densificação, por meio depatamares máximos de densidade por Unidades de Estruturação Urbana. Essemonitoramento permanente pretendia a observação da evolução da densidade urbana,com a avaliação permanente da capacidade dos equipamentos urbanos e comunitários,segundo parâmetros e critérios de qualidade quanto ao dimensionamento, carênciase tipologias.19Aliado nesse processo de planejamento e gestão, o monitoramentoconstante e permanente funciona como peça-chave na ordenação da cidade, no controleda ocupação e do uso do solo urbano e na medida concretização do modelo especialtraçado pelo Plano Diretor. A gestão dinâmica, contínua e flexível conjugada com osistema de informações previsto pelo artigo 46 e seguintes do Plano Diretor sãoimprescindíveis ao monitoramento constante das condições da ocupação e do uso dosolo urbano.

No caso específico da outorga onerosa, o monitoramento subsidia asinformações sobre o adensamento de determinada área da cidade, permitindo que semantenha o equilíbrio com a infra-estrutura existente. Além disso, o monitoramentoda densificação permite a identificação dos eixos e padrões de crescimento da cidadea fim de que sejam mantidas ou revisadas as metas e estratégias para determinadasáreas, conforme o resultado desse acompanhamento constante.

Em Porto Alegre, há também, o controle numérico da metragem do estoque decriação de solo posto à disposição de uma determinada Macrozona20-21. Esses controles

somatório dos índices privados e públicos. Artigo 111-O Solo Criado, estoques construtivos públicos alienáveis,é constituído por:I – índices alienáveis adensáveis;II – áreas construídas não-adensáveis;III – índices de ajuste.§ 1º Índices alienáveis adensáveis correspondem às áreas de construção computáveis e às áreas construídasnão-adensáveis, nos termos do § 1º do art. 107.§ 2º Áreas construídas não-adensáveis são as áreas definidas no art. 107, nos termos do § 4º do mesmo artigo.§ 3º Índices de ajuste correspondem à aplicação de Solo Criado para ajuste de projeto, desde que não ultrapassea 10% (dez por cento) do índice de Aproveitamento do terreno, até o máximo de 100m2 (cem metros quadrados);ou acima destes limites, a critério do SMGP (Sistema Municipal de Gestão do Planejamento), desde quecomprovadamente não resulte em densificação. (NR)§ 4º O Solo Criado constituído de áreas construídas não-adensáveis e de índices de ajuste terão estoquesilimitados.

19 Artigo 71 do PDDUA.20 A Macrozona constitui unidade de divisão territorial da cidade prevista pelo artigo 29 da Lei Complementar nº

434.21 Em Porto Alegre o outorgado terá o prazo de cinco anos a contar da outorga para o uso dos índices de

aproveitamento adquiridos. Ultrapassado o prazo legal sem o uso, os índices de aproveitamento correspondentesao solo não criado retornam aos estoques públicos disponíveis, procedimento inerente à gestão.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 297

são imprescindíveis à gestão da ocupação e do uso do solo da cidade. Afora isso, háo controle contábil dos recursos advindos das operações de outorga onerosa e o controledocumental pela formalização jurídica adequada das operações de outorga onerosa.Esses controles também se traduzem em monitoramento não apenas para manter adinâmica do processo de gestão, mas para dar transparência e clareza aos atosurbanísticos praticados.

3. AS OPERAÇÕES DE OUTORGA ONEROSA EM PORTO ALEGRE: OCASO DO BAIRRO MENINO DEUS

A rápida transformação de certas áreas da cidade, aliada à expectativa de perdade qualidade de vida e bem estar dos moradores, geraram a mobilização dascomunidades por meio de grupos organizados22 que imputaram à verticalização acausa principal desse fenômeno de crescimento. Há também a questão do impactovisual causado pelas construções em altura. Esse impacto se traduz na dimensão dasrecentes edificações em relação às demais construções do bairro caracterizado pelopredomínio de residências de 1 ou 2 pavimentos, alterando a paisagem e ambiênciado bairro.

A construção em altura não possui relação direta com o aumento de densidade,na medida em que, se mantida a infra-estrutura adequada densificação não haverá.Todavia, a acelerada transformação de partes da cidade, como a do bairro MeninoDeus, demandou investigação do papel do “solo criado” nesse processo.

No ano de 2003 o setor imobiliário realizou pesquisa em que foi constatadoser o bairro Menino Deus um dos mais atrativos no que se refere à oferta de imóveis.23

Ainda, os dados coletados pela Secretaria de Planejamento de Porto Alegre, no anode 2004, que mostraram ser o bairro um dos quatro mais adensados e verticalizadosda cidade.

Examinadas, por amostragem, edificações construídas após o ano 2000, o quese constatou foi que a peculiaridade da legislação da cidade marcou o modelo espacialde forma indelével.

A conclusão primeira foi a de que os coeficientes de aproveitamentodiferenciados são elevados o suficiente para atender a demanda imobiliária, na medidaem que duplicaram ou até triplicaram a capacidade construtiva dos imóveis.

22 Na cidade de Porto Alegre podem ser citados os movimentos “Petrópolis Vive”, “Moinhos Vive” e “MeninoDeus Vive”. Todos esses movimentos comunitários têm por objetivo principal manter as características dosbairros, evitando a verticalização acelerada ocorrida nos últimos cinco anos.

23 Disponível em: <www.urbansystems.com>. Acessado em: 20-7-07.

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Outra conclusão foi a da alta concentração de índices de aproveitamento empoucas edificações, acarretando não apenas a verticalização, mas o exercíciodiferenciado do direito de propriedade dos demais proprietários de imóveis nesseslocais. Não obstante os coeficientes previstos, se analisada a densidade, tantopopulacional como habitacional, não haveria qualquer outra possibilidade deedificação, prejudicando os demais proprietários que desejassem construir em alturanesses quarteirões. Ou seja, aquele proprietário que ainda possui coeficiente deaproveitamento para ser utilizado não poderia sequer exercer o seu direito depropriedade, haja vista os patamares máximos de densificação encontrarem-seesgotados.

Por fim convém referir que não se encontrou em quaisquer das edificaçõesexaminadas qualquer operação efetuada na forma de permuta por área. As operaçõesrealizadas foram, na totalidade, “compensadas” em espécie. Essa forma de contra-partida, prevista em lei, inicialmente como modo excepcional de contrapartida aoadensamento, tornou-se prática cotidiana. O pagamento em dinheiro, não obstante aprevisão legal, com vinculação dos recursos ao Fundo Municipal, é outro fator que difi-culta o controle do equilíbrio da densidade e infra-estrutura. Afora o fato de ter sidoconstatado que os recursos ingressam no caixa-comum, a permuta por área seria umaforma mais direta e eficaz de controle, justamente em razão da natureza dessa transação.

4. CONCLUSÕES

As exceções previstas na legislação de Porto Alegre desvirtuaram, por completo,a aplicação do instrumento urbanístico na cidade de Porto Alegre de modo que ocoeficiente único de aproveitamento correspondente a 1,0 nunca foi aplicado. Issoporque foram mantidos os critérios de capacidade de construir dos terrenos fixadapelas legislações anteriores.

O afastamento das ideias conceituais contidos na “Carta do Embu” só sejustificou como forma de privilégio a outros interesses, que não urbanísticos, nemjurídicos e nem coletivos. Esse afastamento, representado pela manutenção doscritérios de definição da capacidade construtiva dos imóveis, tal como previstos nalegislação anterior prejudicou, pela impressão indelével, a aplicação do solo criadoem Porto Alegre. Ao serem mantidos os coeficientes de aproveitamento diferenciados,sob a equivocada escusa de evitar uma hipotética discussão sobre direito adquirido,incabível em sede de normatização jurídico-urbanística, ocorreu a priorização dosinteresses da construção civil em detrimento do uso dos instrumentos urbanísticos,entre eles o solo criado.

O novo modelo de cidade e de desenvolvimento urbano trazido pelo PlanoDiretor de 1999, não obstante a visão estratégica distinta do enfoque normativo

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 299

anterior, foi inevitavelmente marcado pela matriz preexistente de coeficientes deaproveitamento diferenciados. Ou seja, a opção de concepção do legislador de 1994,nos termos da Lei Complementar nº 315 e alterações posteriores, configurou-se comoum “caminho sem volta”, já que a base conceituai da normatização do solo criado nacidade de Porto Alegre partiu de premissas diversas que, por evidência, geraramimpactos também diversos no território da cidade.

Ocorre que, também nesse aspecto o Plano Diretor atual, firmado por meio deestratégias como forma de mudar o planejamento e a gestão da cidade, imprimindonovas características ao modelo espacial da cidade, por exemplo, não saiu da esferateórica. Quanto ao uso dos instrumentos urbanísticos, no planejamento e gestão dacidade, o descompasso entre a legislação e a realidade encontrada, tal comodemonstraram os resultados obtidos no caso empírico, tornou o Plano Diretor atualmuito semelhante ao anterior, tecnocrático, discricionário e defensor dos interessesprivados, não dos coletivos.

Por fim, de ratificar que, o “solo criado”, na forma como foi previsto pelalegislação municipal, não se prestou ao fim primeiro de incentivo ou contenção dodesenvolvimento de áreas da cidade, prejudicado que foi pelos coeficientes deaproveitamento diferenciados. Nesse contexto serviu apenas como complementaçãoou ajuste na capacidade produtiva, relegado a um lugar sem qualquer destaque noplanejamento e gestão do solo urbano. O que era uma expectativa acabou tendo umpapel secundário, servindo apenas como moeda de troca em caso de ajuste ouadensamento disfarçado.

O instrumento da outorga de criação de solo é excelente instrumento deplanejamento e gestão do solo urbano, desde que observados os requisitos teóricosbásicos entre os quais a relação direta entre infra-estrutura e densidade urbana, atendidoo coeficiente único de aproveitamento.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALOCCHIO, Luiz Henrique. Do Solo Criado. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005.

ASPECTOS JURÍDICOS DO SOLO CRIADO, Embu/São Paulo. Anais. São Paulo: Fundação PrefeitoFaria Lima, dez. 1976.

BRASIL. Constituição (1988), de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Constituinte,Brasília, DF, 05 de outubro de 1988.

______. Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da CF. DiárioOficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 de julho de 2001.

COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana: encuadramiento y regimen. Madrid:Montecorvo, 1979.

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DALLARI, Adilson; FERRAZ, Sérgio (Orgs.). Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006.

GRAU, Eros Roberto. Aspectos Jurídicos da Noção de Solo Criado. São Paulo: Cepam, 1976.

______. Direito Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.

GUIMARAENS, Maria Etelvina. Das normas de Porto Alegre e o Estatuto da Cidade. Revista da Pro-curadoria-Geral do Município de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 16, 2002.

PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 158, de 22 de jul. de 1987. Altera LC 43/1979 (1º PDDU) noque se refere a índices de aproveitamento, taxas de ocupação, padrões de recuos para ajardinamento.Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Poder Executivo, Porto Alegre, RS, 31 de jul. 1987. p.15 e ss.

______. Lei Complementar nº 159, de 31 de jul. 1987. Institui o Fundo Municipal para o Desenvolvi-mento Urbano de Porto Alegre. Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Poder Executivo, PortoAlegre, RS, 31 de jul. 1987. p. 32 e ss.

______. Lei Complementar nº 43, de 21 de jul. 1979. Dispõe sobre o Desenvolvimento Urbano noMunicípio de Porto Alegre e Institui o 1º PDDU. Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, PortoAlegre, RS, 30 de jul. 1979.

______. Lei Complementar nº 315, de 06 de jan. 1994. Dispõe sobre o instituto do Solo Criado, regula-mentando o Art. 212 da Lei Orgânica do Município – Cria o Fundo Municipal de Desenvolvimento.Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Poder Executivo, Porto Alegre, RS, 30 de jan. 1994.

______. Lei Complementar nº 434, de 1º de dez. 1999. Dispõe sobre o Desenvolvimento Urbano noMunicípio de Porto Alegre. Institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de PortoAlegre e dá outras providências. Diário Oficial [do] Município de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, 24dez. 1999. p. 1-120.

______. Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, 03 de abr. 1990. Poder Legislativo. Diário Oficial[do] Município de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, 04 de abr. 1990. p. 23 e ss.

SOLO CRIADO/CARTA DO EMBU, São Sebastião e Embu/São Paulo. Anais. São Paulo: FundaçãoPrefeito Faria Lima, 25-29 jun. 1976.

UZON, Néia. Entrevista, out. 2007.

Sites consultados:

www.stf.gov.br

www.urbansystems.com

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Uma Proposta Inovadora: Operação UrbanaConsorciada Lomba do Pinheiro – PortoAlegre

DENISE BONAT PEGORARO*CLÉIA B. HAUSCHILD DE OLIVEIRA*ANDRÉA OBERRATHER***

Arquitetas.

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de PortoAlegre, L.C. 434/99, aprovado em 1999, depois de um amplo processo de discussãoenvolvendo os paradigmas da elaboração da Constituição de 1988, aponta novosconceitos que estão indicados através de um conjunto de princípios, estratégias,diretrizes e normas, capazes de propiciar um planejamento flexível com capacidadede adaptar o modelo de cidade desejada, à dinâmica de suas partes, não só nos aspectosfísicos, mas sociais e econômicos.

O Projeto Especial é um instrumento do PDDUA que tem como intençãoprincipal fortalecer o papel do Poder Público municipal enquanto gestor dodesenvolvimento urbano. Além de sua tradicional atribuição de produzir, aplicar econtrolar a legislação urbanística, ganha a possibilidade de ser um agente social ativo,propositivo na tarefa de alcançar metas, propostas alternativas para solucionarproblemas e buscar a melhoria das condições de ocupação de determinados espaçosurbanos.

* Arquiteta pela Universidade Federal de Pelotas (UPEL), mestranda no PROPUR da FAU/UFRGS, Técnica daSecretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1995, coordenadorado Projeto Lomba do Pinheiro a partir de 2007 até a presente data.

** Arquiteta pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAU/UFRGS), Especialização em PlanejamentoUrbano pelo Programa de Pós Graduação em Urbanismo – PROPUR da FAU/UFRGS, Especialização emDesenvolvimento Sustentável pelo Fórum Latino Americano de Ciências Ambientais – FLACAN, Argentina.Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1979,gerente do Programa Porto do Futuro e primeira coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro de 1998 a 2004.

*** Arquiteta pela FAU/UFRGS, Técnica da Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipalde Porto Alegre desde 2000, segunda coordenadora do Projeto Lomba do Pinheiro de 2004 a 2007, coordenadorado Plano Estratégico da Zona Sul.

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302 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

BASE LEGAL

O PDDUA, através da aplicação do disposto no Art. 21, referente à Estratégiade Produção da Cidade, propicia que o Poder Público seja o agente promotor dodesenvolvimento, como se verifica no seu enunciado, ou seja:

“Estratégia de Produção da Cidade que tem como objetivo a capacitação do Municípiopara a promoção do seu desenvolvimento através de um conjunto de ações políticas einstrumentos de gerenciamento do solo urbano, que envolvem a diversidade dos agentesprodutores da cidade e incorporam as oportunidades empresariais aos interesses dodesenvolvimento urbano como um todo.”

O parágrafo único do mesmo artigo destaca que a Estratégia de Produção daCidade efetivar-se-á através de:

I – da promoção, por parte do Município, de oportunidades empresariais para odesenvolvimento urbano;

II – do estímulo e gerenciamento de propostas negociadas com vistas à consolidação dodesenvolvimento urbano;

III – da implementação de uma política de habitação social que integre e regule as forçaseconômicas informais de acesso à terra e capacite o Município para a produção pública deHabitação de Interesse Social (HIS)

IV – da implementação de uma política habitacional para as populações de baixa e médiarenda, com incentivos e estímulos à produção de habitação.

Já o artigo 23 estabelece os programas que compõem esta estratégia:

I – Programa de Projetos Especiais, que busca promover intervenções que, pelamultiplicidade de agentes envolvidos no seu processo de produção ou por suas especificidadesou localização, necessitam critérios especiais e passam por acordos programáticosestabelecidos com o Poder Público, tendo como referência os padrões definidos no PlanoRegulador;

II – Programa de Habitação de Interesse Social, que propõe a implementação de ações,projetos e procedimentos que incidam no processo de ocupação informal do solourbano,através da regulamentação, da manutenção e da produção da Habitação de Inte-resse Social, viabilizando o acesso dos setores sociais de baixa renda ao solo legalizado,adequadamente localizado, considerando, entre outros aspectos, áreas de risco, compatibi-lização com o meio ambiente, posição relativa aos locais estruturados da cidade, em especialos locais de trabalho, e dotado dos serviços essenciais;

III – Programa de Gerenciamento dos Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano, quebusca gerenciar os instrumentos de planejamento, monitorando o desenvolvimento urbano,potencializar a aplicação dos instrumentos captadores e redistributivos da renda urbana,bem como sistematizar procedimentos para a elaboração de projetos que viabilizem acaptação de recursos;

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 303

IV – Programa de Incentivos à Habitação para baixa e média renda que, através de parceriasentre o poder público e a iniciativa privada, com a adoção de incentivos fiscais,financiamentos especiais e oferta de Solo Criado, dentre outros, busque a criação deprocedimentos simplificados no exame e aprovação de projetos de edificação e parcelamentodo solo direcionados à população de baixa e média renda.

Dentro deste contexto está inserido o Projeto Integrado da Lomba do Pinheiroa partir do momento em que, através de uma experiência piloto, busca odesenvolvimento de uma metodologia de trabalho projetual, como instrumento depromoção de um planejamento mais gerencial e participativo, dentro de uma visãomais estratégica e menos normativa.

Propomos novos parâmetros de gestão e desenvolvimento na lei quedenominamos de “Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro”, sendo aregião da Lomba do Pinheiro uma das constantes no gráfico indicativo paradesenvolver Projeto Especial que faz parte da Estratégia de Produção da Cidade,definida no Capítulo VI (PDDUA, figura 7, p 29).

Também no Plano Diretor de Porto Alegre – L.C.434/99 verificamos que nosartigos 55 a 65 estão estabelecidas as regras a serem aplicadas nas áreas objeto deProjetos Especiais. No parágrafo 2º do artigo 55 está o conceito de OperaçãoConcertada, que apresenta estreita relação com o conceito de Operação UrbanaConsorciada, como podemos observar a seguir:

“Operação Concertada é o processo pelo qual se estabelecem as condições e compromissosnecessários, firmados em Termos de Ajustamento, para a implementação de empreendimentocompreendendo edificação e parcelamento do solo com características especiais, ou para odesenvolvimento de áreas da cidade, que necessitem acordos programáticos adequados àsdiretrizes gerais e estratégias definidas pelo plano diretor.”

Ao observar o enunciado do artigo 62 da L.C. 434/99, parte reproduzido abaixo,verificamos uma estreita relação entre o que estabelece a estratégia da Cidade,constante do PDDUA e o processo de planejamento implementado na região nosúltimos anos, o que possibilitou não somente conhecer as peculiaridades do local,mas especialmente, tomar decisões compatíveis com aquela realidade, envolvendoos agentes, ou seja:

“entende-se por Empreendimento de Impacto Urbano de Segundo Nível o Projeto Especialpara setor da cidade que, no seu processo de produção, e pelas suas peculiaridades,envolve múltiplos agentes, com possibilidade de representar novas formas de ocupaçãodo solo.”

O projeto de lei em questão propõe um conjunto de regras que tem como base,não só o Plano Diretor de Porto Alegre, mas também o Estatuto da Cidade, Lei Federal

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nº 10.257, de 2001. Nesta lei, encontra-se o conceito de Operação Urbana Consorciada,na Seção X, art. 32 § 1º, que transcrevemos a seguir:

“Considera-se Operação Urbana Consorciada o conjunto de intervenções e medidascoordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários,moradores, usuários permanentes e investidores privados, com objetivo de alcançar emuma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorizaçãoambiental”.

Também no Art. 33 do Estatuto da Cidade encontramos respaldo legal, pois omesmo determina que o Poder Público coordene intervenções e medidas a seremimplementadas na área delimitada pela Operação Urbana e remete à lei municipalespecífica, baseada no Plano Diretor, a delimitação da área e a definição de um planode operação urbana consorciada. Este deve conter, entre outras exigências:

1. Programa básico de ocupação;

2. Programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetadapela operação;

3. Estudo prévio de impacto de vizinhança;

4. Contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidoresprivados em função da utilização das medidas decorrentes das modificações das normasedilícias e urbanísticas ou da regularização de imóveis;

5. Representação da sociedade civil no controle compartilhado da operação.

Assim, a proposta de Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheirotem um amplo amparo jurídico no Plano Diretor de Desenvolvimento UrbanoAmbiental e no Estatuto da Cidade, os quais foram resultado de longos anos dediscussão e amadurecimento de novos paradigmas de como aliar a produção urbanacom justiça social.

PROJETO INTEGRADO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DALOMBA DO PINHEIRO

Com base neste suporte legal e com o objetivo de aplicar novos conceitos deplanejamento urbano, a partir de 1998, foi realizada uma capacitação interna naPrefeitura de Porto Alegre para desenvolver em três áreas distintas da cidade, oschamados “Projetos Integrados”, na perspectiva de capacitar o Município naviabilização de soluções diferenciadas para cada região que, por suas peculiaridades,exigem uma análise aprofundada e propostas compatibilizadas.

O Projeto Integrado denominado “Desenvolvimento Sustentável da Lomba doPinheiro” abrange toda a Macrozona 6 definida no Plano Diretor ora vigente e parte

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 305

da Macrozona 8, região caracterizada pela sua localização na periferia, comsignificativa concentração de bens naturais e ocupações espontâneas e irregulares debaixa e média renda.

O Projeto teve como objetivo geral identificar oportunidades de desenvolvi-mento que resolvessem os conflitos de urbanização, compatibilizando-os com a pre-servação dos bens naturais, além de garantir o atendimento da demanda habitacionalreprimida e a criação de postos de trabalho e de programas de geração de renda.

Um amplo caminho foi percorrido, podendo ser dividido em três fases:

1) Trabalho interno de capacitação técnica e conhecimento da região, realizaçãode várias reuniões com os atores locais na área de estudo, para a construção dosobjetivos a serem desenvolvidos pelo projeto.

2) Elaboração do diagnóstico do meio natural e construído envolvendoUniversidade Federal, órgãos estaduais e municipais, além de forte participação dosmoradores na elaboração do Diagnóstico Rápido Participativo através da criação doGrupo de Planejamento Local.

3) Elaboração da lei de Operação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro.

Paralelamente foram realizadas ações que contribuíram para alimentar odiagnóstico do meio construído, tais como: estudos de criação do Parque Linear ArroioTaquara, desenvolvimento do EVU – Estudo de Viabilidade Urbanística – na VilaRecreio da Divisa (Experiência Habitacional) com definição de AEIS I em 2002,programas para o desenvolvimento econômico local da Lomba do Pinheiro e ainstituição do Grupo de Planejamento Local (GPL). Este grupo criado em 2002, foicomposto por representantes da comunidade, da saúde, de escolas, da igreja, doOrçamento Participativo (OP), da Região de Gestão do Planejamento 7 (RGP 7),bem como por representantes de departamentos e secretarias municipais, assim comoda METROPLAN e EMATER, representando o Governo Estadual. Por meio destegrupo, foi possível elaborar o Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) da regiãocom a intenção de conhecer sua realidade, através de uma leitura não só quantitativa,mas principalmente qualitativa. Este grupo teve um papel fundamental na construçãodesta lei, pois não só apresentou um olhar bastante particular do território, comocomplementou a análise técnica, além de acompanhar todo o Diagnóstico Integrado,incorporando nesta avaliação as necessidades em relação às melhorias físicas, sociaise econômicas a serem implementadas no futuro.

O estudo aprofundado permitiu a identificação de áreas aptas e não aptas paraa ocupação. Encontrou-se no instrumento da Operação Urbana Consorciada,disponibilizada pelo Estatuto da Cidade (LF 10.257/01), a forma de atender aodesenvolvimento da Lomba do Pinheiro de forma equilibrada.

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OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA LOMBA DO PINHEIRO

Os eixos de transformação urbana foram definidos, por um lado, através deestímulos à ocupação e uso do solo de acordo com um zoneamento que resultou doDiagnóstico Integrado, inclusive definindo setores prioritários de atuação, descritosno corpo da lei. Foram identificadas Áreas Aptas à Ocupação e para cada uma delasfoi avaliado o grau de adensamento máximo, tendo em vista projetar a populaçãofutura e os respectivos equipamentos urbanos e comunitários.

Porém a ideia não é simplesmente mudar o Regime Urbanístico possibilitandomaior potencial construtivo nas áreas aptas. A partir do estudo de experiências emdiversas cidades do mundo, verificou-se a possibilidade de proceder esta alteraçãode regime através de uma Operação Urbana, ou seja, uma lei que autorize a mudançade Regime Urbanístico, desde que sejam realizadas melhorias urbanas como formade contrapartidas, calculadas em função de parte da recuperação obtida a partir davalorização decorrente desta mudança no uso do solo, e seja dada prioridade paraviabilizar projetos de Interesse Social.

O estudo realizado possibilitou uma referência, para que se estabeleçam metasde transformações urbanísticas necessárias a serem obtidas no tempo, no que tange asuprir as carências quanto ao traçado viário estruturador, composto por vias arteriaise coletoras, assim como prover os atuais e futuros moradores de equipamentos urbanose comunitários bem como efetuar a regularização urbanística e fundiária e a produçãode novos lotes a serem oferecidos às faixas de renda mais necessitadas, porém, combaixo custo. A partir do Diagnóstico Integrado da Lomba do Pinheiro, foram elaboradosparâmetros que propiciem as transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociaise a valorização ambiental. Este diagnóstico indica as áreas mais carentes deequipamentos urbanos e comunitários e propõe incentivos para ocupação das áreasaptas, que recebem Regime Urbanístico adequado às condições de uso e ocupaçãodo solo, bem como os equipamentos necessários para a densificação proposta.

Trata, portanto de um conjunto de regras que serão implementadas na região,alterando em especial a divisão territorial, o zoneamento de uso do solo, os códigos epadrões de edificação e parcelamento do solo. Estas novas regras foram aplicadas naregião em estudo, a qual foi divida em 4 partes, sendo estas áreas compostaspredominantemente por residências, sobre as quais está previsto um sistema de ÁreasEspeciais – de Interesse Social, Institucional e Natural – bem como, as Centralidadese áreas incentivadas para produção primária, chamadas de Produtivas I e II.

Para o cumprimento dos objetivos desta lei, estão propostos dois regimesurbanísticos diferenciados, que correspondem ao Regime Urbanístico Básico, sendoeste mais de acordo com a situação existente, e o Regime Urbanístico Máximo, queconsidera o adensamento proposto e projeta as melhorias urbanas necessárias para o

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desenvolvimento da região. O Regime Urbanístico Máximo só poderá ser utilizadomediante a prestação de contrapartidas, por parte dos empreendedores, que serãocalculadas de acordo com a valorização imobiliária, decorrente da oferta deste regimeurbanístico. Após a aprovação do empreendimento ou atividade será assinado umTermo de Compromisso que expressará o ato administrativo decorrente da adesão aOperação Urbana Consorciada Lomba do Pinheiro.

O projeto de lei de Operação Urbana Consorciada, não se restringe às normasde Uso e Ocupação do Solo (Regime Urbanístico), mas também define o Plano deMelhorias Urbanas, estabelece um Termo de Compromisso que regrará as obrigaçõesdo empreendedor e cria o Comitê de Desenvolvimento1 da Lomba do Pinheiro, coma finalidade de acompanhar sua implementação, bem como a utilização simultâneade outros instrumentos complementares, como por exemplo, planos setoriais,programas, recursos disponíveis no Município, tais como, Fundo Municipal deDesenvolvimento Urbano, através de sua capacidade de financiar a políticahabitacional nos termos do Capítulo IV, Título V da Lei Orgânica do Município dePorto Alegre, o Banco de Terras, quando este destina terras para atender os programase projetos habitacionais e de equipamentos de caráter social, e outros, como Concessãodo Direito Real de Uso, IPTU, Reserva de índice Construtivo e Solo Criado.

Cabe aqui salientar que a proposta de instituir uma Operação UrbanaConsorciada na Lomba do Pinheiro é justamente para fortalecer o papel do poderpúblico na gestão das diversas iniciativas de desenvolvimento urbano, na promoçãodas parcerias público-privadas, além de prover a região de um Plano de MelhoriasUrbanas. Estas representam as contrapartidas sugeridas aos investidores, visandominimizar as carências de infra-estrutura e equipamentos urbanos e comunitários,bem como, recuperar o ambiente bastante degradado e ameaçado constantemente deextinção, em especial os ecossistemas naturais de importância não só para a região,mas para a cidade como um todo, incluindo a promoção da geração de renda cujosbenefícios deverão estar voltados à região da Lomba do Pinheiro.

Trata-se assim, de uma legislação atual, capaz de não só estabelecer novasregras, mas de promover as ações necessárias para alavancar o desenvolvimento daregião e implementar progressivamente seus princípios e finalidades, abaixorelacionadas:

I – A promoção da sustentabilidade urbano-ambiental na região da Lomba doPinheiro e na cidade de Porto Alegre;

1 Proposto com formação paritária entre governo municipal, sociedade civil e moradores locais.

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II – Produção de Habitação de Interesse Social (HIS), para atendimento dademanda habitacional reprimida;

III – A promoção da justa distribuição de ônus e benefícios do processo deurbanização;

IV – A recuperação da valorização imobiliária decorrente dos investimentospúblicos e das alterações da normativa urbanística;

V – A supremacia do interesse coletivo sobre os interesses particulares;

VI – O estímulo a uso do solo miscigenado e a democratização do acesso aterra na região da Lomba do Pinheiro;

VII – A regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por populaçãode baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de uso, parcelamentodo solo, edificação, com gravame de AEIS I ou II;

VIII – A parceria público – privada na promoção de empreendimentos e naurbanização da região, desde que atendido o interesse público;

IX – Incentivo ao desenvolvimento econômico local da região;

X – A participação da população moradora, dos proprietários, usuários perma-nentes e investidores privados no processo de discussão, aprovação e implementaçãoda Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro;

PLANO DE MELHORIAS URBANASEste plano está em fase de detalhamento e corresponde a todas as propostas de

obras de infraestrutura urbana, de equipamentos comunitários identificados noDiagnóstico Integrado necessários para a região. Para tanto, estão sendo dimensionadasas redes de infra-estrutura e as vagas destinadas à educação, a melhoria do atendimentoà saúde e todas as iniciativas de geração de renda.

Para tentar minimizar as carências da região foi estabelecido um conjunto deintervenções físico-ambientais e socioeconômicas que comporão as contrapartidas,cujo detalhamento será objeto de estudo e deverá ser aprovado pelo Comitê deDesenvolvimento.

O programa de atendimento físico-ambiental compreende obras de saneamento,de implantação de vias arteriais e coletoras, de implantação equipamentos destinadosao lazer, à cultura, à educação e à saúde, à recuperação de arroios, à arborização deruas dentre outros. O programa de atendimento sócio-econômico visa a implantaçãode loteamentos de Interesse Social, através do gravame de AEIS III com a promoçãode lotes regulares, à regularização urbanística e fundiária, à promoção de

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 309

reassentamento de famílias localizadas em áreas de inadequadas à ocupação, além deincentivo à agricultura urbana dentre outros.

Para a aplicação dos programas propostos, serão utilizados os instrumentos deregulação do solo, no qual se destaca as normas de uso e ocupação do solo, tributaçãoe incentivos, Projetos Especiais, monitoramento da densificação e Áreas Especiaiscomo as de Interesse Social identificadas em áreas ocupadas e vazias, as ÁreasEspeciais de Interesse Ambiental, que correspondem a Proteção do Ambiente Naturale Interesse Cultural, que deverão ser identificadas nos regimes urbanísticos daOperação, de acordo com sua função existente e proposta.

Pretende-se, também, a estruturação viária da região através de um sistema devias, projetado ou existente, de forma hierarquizada com funções e perfis definidos.Este sistema foi estudado e projetado para atender as necessidades atuais e ocrescimento urbano futuro.

CONTRAPARTIDASQuando for utilizado o Regime Urbanístico Máximo serão definidas contra-

partidas, que são calculadas sobre a diferença entre os Regimes Máximo e Básico.Parte desta diferença será revertida em melhorias urbanas para a região e a outraparte ficará com o empreendedor. As contrapartidas serão aplicadas exclusivamentena área da Operação Urbana Consorciada e poderão ser financeiras, quando o valorfor pequeno e não der para efetivar uma melhoria urbana, mas preferencialmente,deverão ser em melhorias urbanas como segue abaixo:

I – Em obras públicas vinculadas às Finalidades e aos Programas da OperaçãoUrbana Consorciada da Lomba do Pinheiro;

II – Em Habitação de Interesse Social (HIS) e oferta de lotes de preço compatívelcom a renda da Demanda Habitacional Prioritária.

III – Gleba e lotes urbanizados para reassentar famílias em áreas de risco ouáreas inadequadas à ocupação;

IV – Em bens imóveis situados dentro da Operação Urbana Consorciada Lombado Pinheiro;

V – Financeira, integrada à conta vinculada à Operação Urbana Consorciadada Lomba do Pinheiro.

ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇAA proposta de empreendimento vinculada a Operação Urbana Consorciada

Lomba do Pinheiro será analisada, mediante Projeto Especial de Empreendimento

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Pontual2 ou de Primeiro Nível3, cuja avaliação dos impactos positivos e negativosserá discriminada em Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), considerando osseguintes conteúdos:

I – Estrutura e paisagem urbana quanto à:

a) Estruturação e mobilidade urbana, no que se refere à configuração dosquarteirões, às condições de acessibilidade e segurança, à geração de tráfego e demandapor transportes;

b) Equipamentos públicos comunitários, no que diz respeito à demanda geradapelo incremento populacional;

c) Uso e ocupação do solo considerando a relação com o entorno preexistenteou a renovar, níveis de polarização e soluções de caráter urbanístico;

d) Patrimônio natural e cultural, no que se refere à sua manutenção e valorização.

II – Infra-estrutura urbana, quanto a equipamentos e redes de água, esgoto,drenagem, energia, entre outras.

III – Estrutura sócio-econômica, quanto à produção, ao consumo e a renda dapopulação;

IV – Valorização imobiliária.

O Projeto Especial proveniente desta Operação Urbana será analisado atravésde Estudo de Viabilidade Urbanística – EVU, o qual irá determinar o Termo deReferência para a elaboração dos estudos necessários que irão subsidiar a definiçãode diretrizes para o empreendimento, através dos estudos de caso a caso.

A elaboração do EIV não substitui a elaboração e aprovação do Estudo deImpacto Ambiental quando este se fizer necessário, de acordo com análise do órgãoambiental competente, uma vez que a Lomba do Pinheiro, por possuir uma parte deseu território ainda com grandes áreas de preservação natural, precisará de estudosprévios de impacto visando avaliar precisamente as intervenções futuras.

FORMA DE CONTROLE

A lei cria o Comitê de Desenvolvimento da Operação Urbana Consorciada daLomba do Pinheiro, coordenado pela Secretaria do Planejamento Municipal contando

2 Classificação de acordo com a Lei 434/99 – PDDUA, artigos 57 e 58.3 Classificação de acordo com a Lei 434/99 – PDDUA, artigo 61.

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com a participação de órgãos municipais, proprietários, moradores, usuáriospermanentes e sociedade civil organizada. Caberá a ele o controle geral da OperaçãoUrbana Consorciada Lomba do Pinheiro, bem como formular e acompanhar os planose projetos urbanísticos que venham a se beneficiar desta lei, aplicar o Plano deMelhorias Urbanas, propor a revisão da presente lei no prazo de cinco anos a partirde sua vigência, além de outras competências.

A composição será de forma paritária e tripartite, com a participação de órgãosmunicipais, entidades da região e moradores locais, estes dois últimos eleitos nacomunidade. Sempre que houver a necessidade da participação de qualquer outrorepresentante da PMPA para subsidiar o caso específico, este será convidado peloComitê. A intenção é de praticar um modelo de gestão propositivo e articulador dianteda realidade de necessidades da região, dando ênfase à atuação integrada dos diversosatores da construção deste ambiente urbano regional.

O Comitê Gestor da Lomba do Pinheiro tem como finalidade o controlecompartilhado da Operação para acompanhar a implementação da lei, bem como autilização simultânea de vários instrumentos complementares como planos setoriais,programas, recursos disponíveis no Município.

CONCLUSÃO

Com a elaboração e aprovação do PDDUA, que contempla estratégias e osProjetos Especiais, criou-se um ambiente favorável para o desenvolvimento projetual,que prospecta soluções locais aliadas ao amadurecimento do processo de gestãodemocrática em que se consolidam acordos entre os diferentes.

A mudança de paradigma conceituai proposto pelo Estatuto da Cidade foi obalizador para o projeto de lei de Operação Urbana Consorciada da Lomba do Pinheiro,o qual é uma das alternativas encontradas para amenizar as carências da região, atravésde recuperação da valorização imobiliária obtida pela oferta de Regime Urbanístico.Com isto pretende-se obter avanços no processo de desenvolvimento urbano, atravésdo qual os interesses individuais dos proprietários de imóveis co-existam com osinteresses sociais, culturais e ambientais da cidade.

A cidade tem um grande espectro de temas a enfrentar e em especial a regiãoda Lomba do Pinheiro que tem muito ainda por fazer e está em processo de construçãode sua urbanidade, onde se impõe mais do que nunca a articulação entre o setorprivado e o público.

A síntese aqui apresentada resgata os eixos jurídicos contemplados no PlanoDiretor e no Estatuto da Cidade, que deram a base legal para uma ação política naLomba do Pinheiro, de iniciativa do Poder Público. A Operação Urbana Consorciada

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é uma nova alternativa que permite avançar em termos de planejamento urbano, nosentido de se obter respostas concretas às carências da cidade com a redistribuição darenda urbana. A aplicação deste importante instrumento, através de uma atuaçãointegrada e propositiva, impulsiona o desenvolvimento local, na busca da qualidadede vida e garantindo a função social da cidade e da propriedade urbana.

A lei de Operação Urbana Consorciada é resultado de um amplo debate emtorno dos conflitos existentes, seja de caráter físico, social ou econômico, e buscasoluções compatibilizadas com os diversos interesses, estabelecendo os acordosprogramáticos, firmados em “Termo de Compromisso”. Este procedimento, nadamais é do que estabelecer as condições de uso e ocupação do solo possível, desde queatendida as necessidades urbanísticas, sociais e econômicas para qual finalidade aárea se destinar. Nestes casos, ficam definidas as características de excepcionalidade,que serão analisadas caso a caso através de Projeto Especial, de acordo comregulamentação específica.

Esta proposta de lei, a primeira desta natureza em Porto Alegre, representa noseu conjunto, a definição de um território para atuação diferenciada, onde o poderpúblico toma iniciativa e viabiliza em parceria as transformações urbanísticasnecessárias para impulsionar o desenvolvimento urbano e ambiental.

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Planejando o Território Regionalmente:Planos Diretores para Além dos LimitesMunicipais

LUIZ ALBERTO SOUZA

Professor da Universidade Regional de Blumenau –FURB. Doutor em Planejamento Urbano e Regional –IPPUR/UFRJ. Arquiteto da Associação dosMunicípios do Médio Vale do Itajaí – AMMVI.

RESUMO: O recente processo de elaboração de Planos Diretores em diversosmunicípios brasileiros reacendeu interessante debate em torno de um velho dilemarelacionado à práxis do planejamento urbano: como planejar suas ações paraalém dos limites administrativos do município? O presente trabalho procuratecer algumas considerações sobre essa questão utilizando-se do texto da NovaCarta de Atenas e, ao mesmo tempo, questionar o processo de planejamento quese limita institucionalmente a expressar uma visão restrita do território municipalde forma a rever velhas práticas institucionalizadas e permitir novos referenciaispara a construção de um urbanismo mais pragmático e socialmente inclusivo.

PALAVRAS-CHAVE: Plano Diretor; Planejamento Urbano; PlanejamentoRegional.

INTRODUÇÃO

A Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) abriu novas perspectivasna gestão do espaço urbano das cidades brasileiras cujos resultados ainda devemdemorar aparecer. Por outro lado, uma das fragilidades do Estatuto da Cidade está naausência da abordagem das questões relativas ao planejamento regional de cidades ena questão metropolitana. O ressurgimento da figura do Plano Urbano como elementoarticulador e legitimador das ações públicas no município, reacende uma nova edesafiadora possibilidade para o urbanismo. Como enfrentar o desafio do planejamentoregional de cidades tendo como desenho institucional o Plano Diretor Regional com

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a dimensão explícita de operacionalizar as possíveis transformações do espaço urbano-regional.

A criação do Ministério das Cidades (2003) impulsionou o processo deelaboração de Planos Diretores Participativos nos municípios com mais de vinte milhabitantes e àqueles pertencentes a Regiões Metropolitanas exigindo ações em diversosníveis e esferas governamentais. Para se ter noção de números, segundo dados doMinistério das Cidades (2007), de um total de 1678 municípios brasileiros estavamobrigados a elaborar seus Planos Diretores para atender às exigências do Estatuo daCidade (Lei Federal nº 10.257/2001), 86 % deles, de uma forma ou outra, cumpriramcom essa exigência legal. Vale ressaltar que a grande maioria dos municípios brasileirosé composta por municípios de pequeno porte (Tabela 1) não obrigados por lei, aelaborar seus planos diretores.

Tabela 1 – Quadro Populacional dos Municípios Brasileiros

Nº de municípios População (nº de habitantes)

4.074 Menores de 20.000

964 20.001 até 50.000

301 50.001 até 100.00

194 100.001 até 500.000

31 Acima de 500.000

Fonte: IBGE (2000).

Cerca de 30% da população brasileira, o que significa mais de 51 milhões depessoas, morando em apenas nove das maiores regiões metropolitanas do Brasil.Esse fato representa um dos grandes desafios que deve ser enfrentado peloplanejamento na escala regional. Passado mais de duas décadas da promulgação daConstituição Brasileira de 1988 e no alvorecer do século XXI, a retomada na discussãosobre a importância do planejamento urbano e, de novas formas de gestão do espaçourbano, se configura num debate que com certeza, deverá permear os meios políticose acadêmicos cada vez mais intensamente.

Os atuais e tradicionais instrumentos utilizados no planejamento urbano, comopor exemplo, o zoneamento e os planos meramente normativos, não têm encontradorespostas e muito menos se mostrado eficazes como ferramentas na organização doespaço urbano e na garantia do desenvolvimento das chamadas funções sociais denossas cidades. Por outro lado, a simples existência de um conjunto de códigos enormas jurídicas que convencionalmente compõe os atuais Planos Diretores são, na

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 315

maioria das vezes, incapazes de articular as relações sociais entre os diversosprodutores do espaço urbano, projetando apenas um imaginário de cidade muito aquémdas reais necessidades da população.

O senso comum nos leva a acreditar que a lei pode e deve ser um instrumentopara o aperfeiçoamento na gestão das cidades, imprescindível para a conservação domeio ambiente e fundamental na contribuição da melhoria no nível de qualidade devida de seus habitantes. Porém, para que isso aconteça faz-se necessário uma revisãoteórica e conceituai para mudanças na concepção dos atuais “modelos” de políticasurbanas. As políticas de desenvolvimento urbano atualmente em prática, priorizam aquestão do crescimento econômico em detrimento das demais funções sociais dacidade, e que é em particular, muito mais perversa para os países em desenvolvimentoonde se deveria prever até que ponto a implementação dessas políticas podem perdurarsem um desequilíbrio sócio-ambiental mais grave e de consequências incontroláveispara sua população.

A CONTINUIDADE DE UM PENSAMENTO HEGEMÔNICO ATRAVÉS DANOVA CARTA DE ATENAS

As propostas contidas na denominada “Nova Carta de Atenas” possui aindapouca penetração em nosso meio científico e acadêmico, mas tem sido motivo denovas e acirradas controversas entre as mais variadas correntes do urbanismo europeu.Através do presente artigo propomos debater o processo brasileiro de elaboraçãomassiva de Planos Diretores, a partir do novo marco jurídico criado pelo Estatuto daCidade e pela criação do Ministério das Cidades e, da análise de experiências realizadasem diversas esferas governamentais. Num segundo momento, trataremos de apresentaruma visão do conteúdo da Nova Carta de Atenas, abordando seus princípios econceitos, de forma a produzir uma breve interpretação dessa “nova” propostaurbanística que se intitula como sendo “A Visão do Conselho Europeu de Urbanistassobre as Cidades do Século XXI”.

Seu texto, pretensiosamente propõe uma correção histórica de rumo em suavisão de urbanismo. A partir de agora, defende textualmente que suas propostas estãovoltadas diretamente para os “sujeitos” da cidade e, adaptadas as necessidades geradaspelas constantes mudanças ocorridas na sociedade no último século e, não maiscentradas em seu próprio objeto, como a Carta de Atenas de 1933, produzida duranteo IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Apesar de afirmarexplicitamente não se tratar de uma “nova utopia”, a Nova Carta sustenta a tese danecessidade da construção das denominadas “cidades coerentes” que, longe doidealismo anterior vivido na década de 1930, as cidades do futuro precisam estarpreparadas para os novos desafios e ao realismo inerente ao Século XXI, em função

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das mudanças sociais e tecnológicas (KANASHIRO, 2003). É fato que, ao analisarmosa trajetória do urbanismo contemporâneo, podemos constatar que ele conseguiuproduzir nesses últimos cem anos, efeitos e resultados contraditórios na produção doespaço material das cidades. Desde a publicação da Carta de Atenas de 1933, o mundoocidental vivenciou diversas experiências urbanísticas, quase todas sustentadas pelomesmo discurso: a busca incessante por um “modelo” universal de urbanismo capazde produzir a “cidade ideal”.

Decorridos mais de setenta anos dos ideais urbanísticos divulgados pela “antiga”Carta de Atenas, o Conselho Europeu de Urbanistas – CEU reacendeu o debate sobrea necessidade de se (re)pensar as cidades para o Século XXI, segundo eles, através de“um novo enfoque teórico e instrumental do planejamento urbano”. Uma das ideiaschaves da “Nova Carta de Atenas” é promover a “integração plena através de umaampla e contínua rede de cidades”. Entre as condições necessárias para suaimplementação, afirma textualmente que as cidades do Século XXI devem contarcom os “necessários compromissos dos urbanistas para porem prática esta visão”.O documento foi elaborado entre os anos de 1995 e 1998 por uma delegação dearquitetos e urbanistas das Associações Nacionais e dos Institutos de Urbanistas deonze países da União Europeia (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Grécia, França,Irlanda, Itália, Holanda, Espanha, Portugal e Grã-Bretanha).

Ao mesmo tempo, a edição da Nova Carta de Atenas aponta para a desafiadoraquestão da sustentabilidade urbana onde enaltece essa figura recente nas agendas dascidades:

“[...] planejamento estratégico do território e o urbanismo são indispensáveis para garantirum desenvolvimento sustentável, hoje entendido como a gestão prudente do espaço comum,que é um recurso crítico, de oferta limitada e com procura crescente nos locais onde seconcentra a civilização”.

Neste pequeno ensaio, pretendemos utilizar esse referencial teórico comocontraponto à recente experiência brasileira de elaboração de Planos DiretoresParticipativos, em atendimento às exigências do Estatuto da Cidade. Ainda comoforma de contribuir para esse debate no âmbito das cidades brasileiras apresentamosao longo do texto, algumas reflexões sobre essa “práxis” que julgamos ter tido poucoespaço de tempo para um efetivo exercício crítico mais reflexivo. Dessa forma, aNova Carta de Atenas possui o mérito de reacender a polêmica da discussão sobre aconstrução de um novo paradigma urbanístico, através da revisão da nossa usualpráxis do planejamento urbano.

Dentre as teses preconizadas pela Nova Carta estão que as cidades devem serconcebidas e planejadas de forma a produzir a sua: “coerência social, a coerênciaeconômica, coerência no tempo e a coerência ambiental”, que aparecem como

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 317

princípios imprescindíveis às cidades do século XXI. Os diversos instrumentosutilizados pelos urbanistas em seus planos foi justamente o mecanismo do zoneamentoque demonstrou ser o mais “eficaz”, onde alguns autores (VILLAÇA, 1999; NERYJR., 2002) alertam que, tanto para o bem quanto para o mal. No Brasil, podemosafirmar que pela experiência verificada pelas grandes cidades e principalmente nasmetrópoles, o zoneamento foi, e continua sendo o mais forte mecanismo de regulaçãoe de ordenamento do território dessas cidades. Dirigida e pensada particularmente apartir da realidade das cidades europeias, a Nova Carta de Atenas defende a plenaintegração da comunidade europeia no decorrer do século XXI, onde essa granderede urbana de cidades deve seguir as seguintes diretrizes:

– Conservar a sua riqueza cultural e a sua diversidade, resultantes da sua longa história;

– Ficar ligadas entre si por uma multitude de redes, plenas de conteúdos e de funções úteis;

– Permanecer criativas e competitivas, mas procurarão simultaneamente a complementaridadee a cooperação;

– Contribuir de maneira decisiva para o bem-estar dos seus habitantes e, num sentido maislato, de todos os que as utilizam.

O CEU defende ainda na sua parte introdutória a adoção de novas práticasurbanas necessárias para atingir os objetivos ali propostos, entre eles, o fortalecimentoda conectividade entre as cidades. A Nova Carta de Atenas dirige-se, sobretudo aosurbanistas profissionais que trabalham na Europa e a todos os que se interessam poreste tipo de trabalho, a fim de orientá-los nas suas ações, de modo a assegurar maiorcoerência na construção de uma rede de cidades com pleno significado e a transformaras cidades europeias em cidades coerentes, em todos os níveis e em todos os domínios.

Mais adiante a Nova Carta de Atenas defende abertamente a utilização doplanejamento estratégico do território e do urbanismo como sendo instrumentos“indispensáveis para garantir um desenvolvimento sustentável”. A tese sustentadapelos urbanistas europeus se baseia na necessidade da gestão do espaço comum, emface de escassez dos recursos naturais e da crescente migração interna em direção àsgrandes cidades europeias.

Apesar de se proclamar que não se trata de uma “nova utopia”, o documentosustenta a tese da necessidade da construção de uma “cidade coerente” que, longedo idealismo anteriormente proposto pelo IV CIAM em 1933, as cidades do séculoXXI precisam estar preparadas para os novos desafios que se apresentam. A NovaCarta defende que:

Esta visão centra-se na Cidade Coerente. É essencialmente um instantâneo sobre aquilo quegostaríamos que as nossas cidades fossem agora e para o futuro. Esta visão é a expressão do

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objetivo para o qual os urbanistas europeus se comprometem a trabalhar e procuram contribuir,aplicando o melhor das suas capacidades profissionais – um objetivo que pode muito bemser atingido se essa visão vier a ser o objetivo de todos os atores responsáveis pelos processosde desenvolvimento e gestão sustentáveis do território.

A cidade coerente integra um conjunto variado de mecanismos de coerência ede interligação que atuam a diferentes escalas; incluem tanto elementos de coerênciavisual e material das construções, como os mecanismos de coerência entre as diversasfunções urbanas, as redes de infra-estruturas e a utilização das novas tecnologias deinformação e de comunicação.

“O conceito de cidade coerente decorre da necessidade de se reconstruir a coesão socialnos espaços urbanos, superando-se problemas de exclusão social, racismo e conflitos ci-vis. Para se construí-la, é preciso que o planejamento urbano e, por consequência, o direitourbanístico, como seu instrumento, considerem as diferenças e as desvantagens de certosgrupos sociais em relação a outros dentro de cada cidade. O planejamento deve transfor-mar a cidade em um espaço igualitário para seus habitantes e em um ambiente apto aintegrar, social e culturalmente, novos cidadãos – uma cidade para todos” (MARRARA,2007).

Dentre os requisitos estabelecidos a Nova Carta apresenta quatro conceitosditos fundamentais: “coerência no tempo, coerência social, coerência econômica ecoerência ambiental”. A conquista dessas dimensões aparece como imprescindívelàs cidades europeias do século XXI. Ainda segundo o CEU, essas cidades devem sedistinguir dos demais aglomerados urbanos de grande parte do mundo, face àsparticularidades dos processos históricos e sociais que se desenvolveram ao longo dotempo. Em contrapartida, as transformações sociais, econômicas e políticas dos últimosanos, tornaram as cidades europeias cada vez mais específicas e ao mesmo tempo,semelhantes, num processo de “globalização” cultural, social e econômico avassalador.Um novo fenômeno surge a partir da formação de uma grande rede de cidades quecomeça a se formar em inúmeras regiões da Europa, onde em muitos casos, não maisse distingue o espaço urbano, do espaço rural.

Processo semelhante também começa a ocorrer em território brasileiro. Aconturbação contínua começa a surgir ao longo dos quatrocentos quilômetros doeixo da Via Dutra entre a cidade do Rio de Janeiro e São Paulo. Na Região do ABCDPaulista (KLINK, 2001) a expansão urbana é vertiginosa, não respeitando em nadaos limites administrativos municipais. Outro eixo de urbanização começa a surgir naregião sul do Brasil, ao longo da BR-101, mas precisamente entre o norte do Estadode Santa Catarina, a partir de Joinville, até o extremo sul do Estado, na cidade deCriciúma, numa extensão de mais de 300 quilômetros de uma urbanização quase quecontínua. Sobre o crescimento dessas novas redes de cidades o texto da Nova Cartade Atenas assim se expressa:

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Lenta, mas inexoravelmente, novas redes complexas ligam pequenas e grandes cidades entresi, criando contínuos urbanos já perceptíveis em inúmeras partes da Europa, onde as cidadesclássicas se transformam em simples componentes de novas redes informais. Os efeitosprejudiciais dessa tal tendência devem ser inevitavelmente abordados numa visão de futuropara as cidades.

A suposta ausência de “coerência” das cidades ainda segundo o CEU, nãoconsiste somente em termos materiais, mas e principalmente, pela falta de “coerência”na continuidade da sua evolução no tempo, que passa a afetar as “estruturas sociaise as diferenças culturais”. De certa forma, a crítica dos urbanistas europeus estábaseada na perda crescente da própria identidade cultural das populações submetidasa esse processo. No que se refere à “coerência social”, a proposta da nova Carta deAtenas se preocupa em propor que as cidades estabeleçam condições para um chamadoequilíbrio social, através da redução progressiva das desigualdades econômicas, sociaise culturais. Trata-se de importante objetivo para a cidade, que, na sua essência, necessitarespeitar os interesses da sociedade como um todo, tendo em conta a necessidade deconciliar os direitos e os deveres dos diversos atores sociais sem, contudo ferir osinteresses individualmente dos cidadãos. Alguns dos mais recorrentes “problemas”comuns aos brasileiros como, o desemprego, a pobreza, exclusão social, criminalidadee violência, emergem como questões emblemáticas a serem enfrentadas pelas cidadesdo século XXI.

A Nova Carta de Atenas alerta para o perigo da “ruptura do tecido econômicoe social” caso as cidades do século XXI não sejam capazes de apontar soluções paraesses “problemas” principalmente no plano social e político. Ainda que estes nobresobjetivos ultrapassem a esfera do mandato do urbanista, a cidade coerente do séc.XXI deverá procurar também a maior diversidade de oportunidades, de escolhaseconômicas e de emprego para todos os que nela habitam e trabalham, e deveráassegurar um melhor acesso à educação, à saúde e ao maior número de equipamentospossível. Enfim, novas formas de estruturas sociais e econômicas virão corrigir asgrandes disparidades sociais, causas da exclusão, da pobreza, do desemprego ecriminalidade e proporcionar o novo quadro de vida necessário à correção daquelesdesequilíbrios. No plano econômico, como não poderia deixar de ser, a preocupaçãodos urbanistas europeus se concentram na necessidade de uma maior e melhordistribuição da riqueza entre as cidades.

A coesão econômica deve ser buscada a partir da diversidade produtiva e daexploração das “vantagens competitivas” de cada cidade. A cidade como uma possívelmercadoria passível de ser vendida para investidores, aparece como uma daspreocupações centrais aos governantes em balizar seus planos de governo. Nessesentido, alguns autores vêm alertando para o perigo da difusão dessa ideologia noâmbito das cidades brasileiras (VAINER, 1996; SANCHES, 2003).

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Segundo o CEU as cidades europeias do séc. XXI tendem a continuar a serfortemente interdependentes do nível de atividade econômica. Com isso, elas devemprocurar pertencer a “redes econômicas densas e de malha fina, conjugando eficáciae produtividade, mantendo altos níveis de emprego e procurando assegurar umamargem de desenvolvimento competitivo no quadro da economia global, adaptando-se continuamente às mudanças internas e externas”.

Como não poderia deixar de ser, a “coerência ambiental” assume posiçãorelevante na Nova Carta de Atenas. Publicada para ser politicamente correta, elaenfatiza a necessidade da preservação do meio ambiente como sendo uma condição“sine qua non”, onde as preocupações com a conservação do solo, do ar e da água,devam assumir de agora em diante, um caráter prioritário no planejamento urbano.

As cidades do novo milênio irão gerir permanentemente o balanço “input-output” dosrecursos consumidos, com prudência e economia, adaptando-o às necessidades reais,utilizando tecnologias inovadoras, minimizando o seu consumo pela reutilização e reciclagema níveis tão altos quanto possíveis.

Percebe-se que as diretrizes estabelecidas pelo CEU no âmbito do contextourbano europeu reconhecem que a busca pelo desenvolvimento sustentável, deve viracompanhado de medidas e ações concretas que tornem as cidades mais justas edemocráticas. Esse é, sem dúvida nenhuma, o grande desafio. A valorização do pla-nejamento urbano e do urbanismo como ferramentas indispensáveis na construçãodesses objetivos, ressurgem ante a deterioração crescente das condições físicas denossas cidades:

O planejamento do território e o urbanismo continuarão a ser as ferramentas eficazes paraconseguir a proteção destes elementos do patrimônio natural e cultural, bem como o veículopara a criação de novos espaços livres que darão coerência aos tecidos urbanos.

De forma análoga à anterior, a Nova Carta de Atenas também apresentarecomendações para o desenho urbano, mantendo a antiga crença que através domesmo, as cidades podem propiciar uma melhor qualidade de vida para seus habitantes.Concordamos parcialmente com essa questão. A nova receita do CEU enfatiza osseguintes princípios como elementos necessários:

1. O relançamento do desenho urbano e da composição urbana para proteger e melhorar asruas, as praças, os caminhos de pedestres e outros percursos, como instrumentos da coesãosocial e de continuidade do tecido urbano;

2. Reabilitação das formas urbanas não humanizadas e degradadas;

3. Medidas necessárias para facilitar os contatos entre as pessoas e para multiplicar os locaisde descanso e de lazer;

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4. Medidas para melhorar o sentimento individual e coletivo de segurança, que é um elementoessencial da liberdade e bem-estar individuais;

5. Esforços para criar ambientes urbanos simbólicos provenientes do espírito próprio decada lugar, valorizando assim a diversidade de caráter de cada cidade;

6. Manutenção e exigência de um alto nível de excelência estética em todos os locais dacidade;

7. Proteção sistemática dos elementos do patrimônio natural e cultural, assim como a proteçãoe extensão das redes de espaços abertos urbanos.

Compreender ou mesmo aceitar cada um desses objetivos, só é possível consi-derando-se a inserção e o contexto da rede urbana europeia. O respeito às suas parti-cularidades e aos processos históricos de formação das suas cidades pode explicar,até certo ponto, o conteúdo formal da Nova Carta, mas, acreditamos que não o bas-tante para produzir ou desencadear mudanças efetivas na forma de planejamento e degestão das cidades nesse novo milênio.

Diversos e novos desafios se multiplicam a cada dia, o que torna complexoaceitar novamente um receituário para a salvação das cidades. Um dos grandes dilemasainda não pacífico na práxis urbana brasileira trata da questão do direito de propriedadee do polêmico debate em torno de sua função social, tema que há muito tempo encontra-se plenamente resolvido na grande maioria dos países europeus, por exemplo.

Algumas exceções situadas principalmente em países do leste europeu aindase ressentem da instituição de um marco regulatório que vise disciplinar essa questão,retardados pelo modelo político adotado durante os anos que viveram sob a égide deregimes totalitários e que de certa forma ainda vivem momentos de incerteza emrelação à segurança jurídica da terra.

A construção da sustentabilidade possível (nas dimensões econômica, social,espacial, cultural e ecológica) das cidades (SACHS, 1993), é sem dúvida nenhuma,um dos maiores desafio de alcance mundial neste Século XXI. No caso brasileiro, aluta travada pela aprovação e pela implementação dos instrumentos jurídicos eurbanísticos previstos na Lei Federal nº 10.257/2001 (FERNANDES, 2001) se revestedesta ambiciosa tarefa social. Ao mesmo tempo, se têm a compreensão de que oEstatuto da Cidade não pode ser um instrumento suficiente per si, capaz de provocarmudanças paradigmáticas desse nível.

Em diversas passagens deste trabalho, apontamos às limitações que esseinstrumento se apresenta no contexto do planejamento urbano brasileiro, em especial,por não abordar concretamente questões referentes a processos de inclusão social etambém, questões relativas aos “problemas” que afetam diretamente as regiões

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metropolitanas brasileiras e que dependem da criação de uma “esfera de decisão”neste nível (RIBEIRO & CARDOSO, 2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar e planejar nossas cidades para além de seus limites administrativospressupõe a necessidade de uma nova práxis de atuação dos planejadores. O universodo território e seu alcance regional devem ser à base de futuros planos articuladosentre a escala urbana e a escala da região de influência da cidade pólo. A intenção dosurbanistas europeus na busca da consolidação do paradigma da sustentabilidade paraas cidades europeias do século XXI demonstra que ainda se encontra ativa a propostaideológica de um possível planejamento urbano “universalizado”. Trata-se, comovimos de um debate ainda incipiente no âmbito científico brasileiro, sobretudo pelomomento vivido em grande parte das cidades brasileiras. Julgamos oportuno lembrarque essa nova avalanche de Planos Diretores produzidos sem um maior controlesocial do seu conteúdo, ainda não produziu seus efeitos: tanto para bem como para omal. De certa forma percebemos que muitos municípios têm procurado inovar seusprocessos de planejamento, através da prática do planejamento participativo e daadoção de mecanismos e instrumentos jurídicos e urbanísticos que podem a médio e,em longo prazo, melhorar parcialmente a qualidade de vida e o urbanismo nessascidades.

O fato é que algo precisa ser feito para romper com a inércia política que aindacontamina grande parte do meio técnico responsável pela formulação das políticasde planejamento em nosso país e que se encontram enraizadas em diversos níveistanto da esfera pública, como no setor privado. Os dilemas e impasses que vivenciamosno âmbito da nossa práxis urbana encontram-se permanentemente em processo detransmutação. A conclusão mais óbvia que podemos apurar dessa situação é que nãoexiste uma única resposta para a mesma. Poderíamos falar inclusive, que vivemoshistoricamente numa espécie constante de metamorfose do urbanismo, movimentoeste que reproduz dialeticamente a mesma coisa, mas com um discurso que busca nadiferença, se apresentar como o novo. Nesse sentido, a Nova Carta de Atenas apenascumpre com sua função instrumental de reproduzir o papel central do urbanismocomo elemento histórico de suporte físico para a sustentabilidade das cidades,definindo a cidade como “[...] o estabelecimento humano com certo grau de coerênciae coesão. Não se considera somente a cidade convencional e compacta, mas tambémas cidades região e as redes de cidades”.

Para Villaça (1999), a exteriorização formal dessa “crise” urbana necessitapermanentemente de processos sociais que possam de certa forma, manter acesso odebate sobre as relações entre o espaço, sociedade e o meio ambiente. Nesse sentido,

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as cidades devem ser vistas cada vez mais como espaços de fluxos e não mais comoespaço de lugar (LIMONADI, 2007). Ainda segundo Villaça (1999), a ideologia doplanejamento urbano se apoiou historicamente em conceitos e práticas que somentecontribuíram para manter o “status quo” social e econômico. Por fim, verificamos aemergência de novas práticas urbanísticas sendo difundidas como soluções“alternativas” para o planejamento urbano de nossas cidades. Também o planejamentoestratégico de cidades (BORJA & FORN, 1996) com larga aceitação desde a propostalevada a efeito pela cidade de Barcelona para os Jogos Olímpicos de 1992, bemcomo na tese do urbanismo realizado através da implantação de grandes projetosurbanos (INGALLINA, 2001), que avança silenciosamente com a promessa de curaa todos os problemas atuais e futuros existentes em nossas cidades, tendo Bilbao eseu Museu Guggenheim como exemplo paradigmático.

Outras propostas ainda surgem como estratégias de mudar a visão doplanejamento como, por exemplo, a implantação do urbanismo de resultados(ASCHER, 2001), que visa administrar pontualmente os problemas urbanos e queprivilegia as funções de comunicação, mediação e negociação a partir do planejamentourbano, sem falar no planejamento estratégico. Acreditamos que esse debate, quechega de certa forma tardio, pode colaborar para ampliar os limites e possibilidadesda adoção de uma nova prática urbanística para as cidades brasileiras. Essa questãodeve ser amplamente debatida pela academia e também no âmbito do poder público,principalmente nesse momento onde “novos” Planos Diretores surgem no cenário degrande parte dos municípios brasileiros forjados única e exclusivamente por umaexigência legal e não pela vontade ou reconhecimento da necessidade do instrumentodo planejamento de nossas cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Outorga Onerosa do Direito de Construir: aExperiência de Belém

HELENA LÚCIA ZAGURY TOURINHO1

Arquiteta e Urbanista

RESUMO: O artigo faz uma análise da aplicação do conceito da Outorga Onerosado Direito de Construir (OODC) em Belém, este que foi um dos instrumentos depolítica urbana regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001). O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira apresenta uma breverevisão histórica e conceituai do instrumento, na segunda discute a experiênciade aplicação do conceito da OODC em Belém, no período 1988-2008. Concluisugerindo que as dificuldades e distorções ocorridas na aplicação do conceito daOODC em Belém, no período analisado, resultaram da luta entre interesses,vencida por grupos do capital imobiliário e dos proprietários fundiários, quetêm demonstrado ser a força política dominante no Legislativo Municipal.

PALAVRAS-CHAVE: Política Urbana, Estatuto da Cidade, Outorga Onerosado Direito de Construir, Planejamento Urbano em Belém

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo analisar a aplicação do conceito da OutorgaOnerosa do Direito de Construir (OODC) na legislação urbana de Belém, a partir dapromulgação da Constituição Federal de 1988 e da sua regulamentação pelo Estatutoda Cidade. O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira apresenta uma breverevisão histórica e conceituai do instrumento, na segunda discute a experiência deaplicação do conceito da OODC em Belém, no período 1988-2008.

1 M. Sc. em Planejamento do Desenvolvimento, Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidadeda Amazônia – UNAMA e Doutoranda em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco– UFPE/MDU. E-mail: [email protected].

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1. A OODC COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA URBANA: BREVEHISTÓRICO

A OODC é um instrumento de política urbana que consiste na concessão dodireito de edificar acima do coeficiente de aproveitamento básico2 estabelecido porlei, mediante uma contrapartida do beneficiado ao poder público. Tal contrapartidajustifica-se por diversas razões, dentre as quais estão as necessidades de: 1) equalizaçãodo direito de construir a todos os proprietários do solo, igualdade essa que é quebradano processo de planejamento urbano quando, com fins de racionalizar o uso dasinfra-estruturas mediante o adensamento de alguns espaços urbanos, são estabelecidosíndices de aproveitamento máximo diferenciados entre as partes da cidade; 2)recuperação, pelo poder público, da valorização fundiária provocada peloestabelecimento de índices de aproveitamento diferenciados nas leis de uso e ocupaçãodo solo; 3) distribuição de forma equânime dos benefícios e custos dos investimentospúblicos na cidade; 4) geração de recursos para financiar, compensatoriamente,programas de habitação e urbanização de áreas populares3.

Inicialmente, o instituto da OODC foi denominado de “solo criado” efundamentado na possibilidade da criação de área construída artificial além da áreado terreno sob ou sobre o solo natural. Depois, a concepção do “solo criado” foivinculada à ideia da construção praticada acima de um coeficiente único, válido paratodos os terrenos localizados em um município, região ou país (GRAU, 1983).

Originada em Roma, quando especialistas concluíram pela necessidade deseparar o direito de construir do direito de propriedade, a OODC foi aplicada naFrança desde 1975, na Itália desde 1977 e no Brasil vem sendo discutida desde adécada de 1970. Em 1976, na carta de Embu, urbanistas e juristas brasileirosdefenderam sua inserção na legislação municipal com a denominação de “solo criado”.A partir daí, alguns municípios brasileiros passaram a instituí-la em suas legislações(DORNELAS, 2007).

A Constituição Federal de 1988, em seu capítulo II, estabeleceu que a políticaurbana tem o objetivo ordenar o desenvolvimento da função social da cidade e remeteuaos planos diretores urbanos a definição desta função. Além disso, separou o direitode superfície do direito de construir e enunciou alguns instrumentos como o

2 Conforme § 1º do Art. 28 do Estatuto da Cidade, coeficiente de aproveitamento é “a relação entre a área edificávele a área do terreno” (BRASIL, 2001). O índice ou coeficiente de aproveitamento básico determina quantasvezes a área do terreno pode ser construída, sem que seja necessário o beneficiário pagar ao poder público pelaoutorga do direito de construir.

3 De acordo com a avaliação da aplicação da OODC em doze cidades brasileiras, realizada por Furtado et al.(2006), esta foi a justificativa predominante para o uso desse instrumento.

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parcelamento e a edificação compulsórios, o IPTU progressivo do tempo e a usucapião.Não obstante, a Carta Magna não fez qualquer referência à OODC, no que foi seguidapela Constituição Estadual do Pará.

A inserção da OODC no ordenamento jurídico nacional só veio a ser efetivadatreze após a aprovação da Constituição Federal, através da Lei Federal 10.257/2001,conhecida pela denominação de Estatuto da Cidade. O Estatuto da Cidaderegulamentou o Capítulo da Política Urbana da Constituição Brasileira e osinstrumentos de política urbana, e dentre esses, a OODC, prevista como instrumentojurídico, tanto com o fim de ampliar o direito de construir, como para alterar o uso dosolo. A partir da aprovação do Estatuto da cidade, coube ao Plano Diretor, conformeos Artigos 28 e 29 (BRASIL, 2001):

a) fixar o coeficiente básico de aproveitamento e determinar as áreas nas quaiso direito de construir poderá ser exercido acima dele, mediante contrapartida a serprestada pelo beneficiário. O coeficiente básico poderá ser único para toda a zonaurbana ou diferenciado por áreas.

b) estabelecer os limites máximos possíveis a serem atingidos pelos coeficientesde aproveitamento em cada área da cidade, considerando a proporcionalidade entre ainfra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área;

c) definir as áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do solo,mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário; e,

d) estabelecer as condições a serem observadas para a OODC e de alteração deuso, determinando a fórmula de cálculo para a cobrança, os casos passíveis de isençãodo pagamento da outorga e a contrapartida do beneficiário.

Vale ressaltar que o Estatuto da Cidade, ao instituir a possibilidade de uso decoeficientes básicos diferenciados, já se afastou da ideia original do solo criado,flexibilizando o princípio da equidade do direito de construir e criando a possibilidadede reprodução das desigualdades e da especulação fundiária em áreas periféricas.

O Estatuto da Cidade, no Artigo 31, previu ainda que os recursos auferidospela OODC e de alteração de uso deverão ser utilizados para as finalidades previstasnos incisos I a IX do artigo 26 do Estatuto, que são: regularização fundiária; execu-ção de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reservafundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implementação deequipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreasverdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas verdes;criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesseambiental; e, proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico(BRASIL, 2001).

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2. A EXPERIÊNCIA DE BELÉM

No caso de Belém, a OODC apareceu, pela primeira vez em 1990, no Art. 118do Capítulo de Política Urbana, da Lei Orgânica do Município (BELÉM, 1990).Com a denominação de “solo criado”, referido instituto foi citado como um dosinstrumentos tributários e financeiros destinado a assegurar as funções sociais dacidade e da propriedade. A Lei Orgânica, contudo, não estabeleceu as condições paraaplicação dessa taxação, o que só viria a acontecer após a aprovação do Plano Diretorem 1993. Desde então, a OODC, foi regulamentada por três grandes legislaçõesurbanísticas: O Plano Diretor Municipal de 1993, a Lei Complementar de ControleUrbanístico de 1999 e o Plano Diretor de 2008.

2.1. O Plano Diretor Municipal de Belém de 1993

A decisão de elaboração do Plano Diretor Urbano do Município de Belém, oprimeiro após Constituição Federal de 1988, partiu de uma pressão no Poder Legis-lativo Municipal, através do requerimento de um vereador que cobrou do Prefeito asua realização, fundamentado no Art. 250 da Lei Orgânica do Município de Belém.Construído em um momento de transição – entre a promulgação das ConstituiçõesFederal e Estadual e a Regulamentação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) – o Plano Diretor do Município de Belém (Lei 7.603, de 13 de janeiro de1993) não pode contar com a regulamentação federal da OODC. Neste Plano Dire-tor, esse instituto apareceu: no Artigo 31, como instrumento destinado a “perseguir ajusta distribuição dos ônus decorrentes das obras e serviços públicos implantados,com a recuperação, pela coletividade, da valorização imobiliária decorrente da açãodo poder público”; no Artigo 34 como um dos instrumentos voltados para “regular omercado imobiliário”; no Art. 137 como um dos instrumentos tributários e financei-ros destinados à execução da política de desenvolvimento municipal; e, no Art. 155como um dos instrumentos de atuação urbanística (BELÉM, 1993).

O plano previu, no seu Art. 37, a instituição de dois zoneamentos para fins deoutorga onerosa: um para estabelecer o estoque de potencial construtivo a ser outorgadoonerosamente; e outro que destinado a estabelecer o próprio estoque. No Artigo 162as zonas foram classificadas em zonas de adensamento até o coeficiente básico (ZACB)e zonas adensáveis acima do coeficiente básico potencial (ZAOO). A classificaçãodas áreas da cidade em uma ou outra zona era vista como transitória e mutável,podendo se alterar desde que houvesse saturação da capacidade de infra-estrutura oua ampliação da mesma (Artigo 164).

O dimensionamento da oferta do potencial construtivo, para fins de OODC,deveria ser em função da capacidade infra-estrutural, sobretudo daquela referente ao

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sistema de circulação4, este composto pelos sistemas viário básico e de transportes(Art. 37). No que concerne ao cálculo do valor pago pelo direito de construir, o planoestabeleceu pelo metro quadrado outorgado o mesmo valor do metro quadro constantena planta de valores do município, mais um acréscimo correspondente à correçãomonetária referente ao período compreendido entre a data de definição do valor venale a data de pagamento da outorga onerosa ao poder público (Artigo 185). Para isso,previu a correção anual da planta de valores e a revisão quadrienal do valor de mercadodos imóveis e instituiu o prazo para o pagamento de até cinco meses, contados apartir da aprovação do projeto (Artigo 190).

A destinação do valor recebido da outorga deveria ser: o Fundo deDesenvolvimento Urbano, no caso das áreas em que houvesse infra-estrutura jáinstalada; e a própria zona onde foi outorgado o direito de construir, quando nelahouvesse carência de infra-estrutura para absorver a ampliação da área construídaoutorgada onerosamente (Artigo 185). O executivo municipal foi autorizado a receberimóveis para pagamento da OODC e, também, a conceder para a iniciativa privada eos demais agentes promotores a redução total ou parcial do pagamento pelo direitode construir acima do coeficiente básico, no caso de projetos de habitação de interessesocial, desde que o plano fosse aprovado em Lei Municipal e que houvesse parecerfavorável do Conselho de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Artigo 185).No caso das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) o pagamento da OODCpoderia ser reduzido até zero, dependendo da capacidade da infra-estrutura existente,do custo das moradias e do poder aquisitivo dos usuários finais do espaço urbanizado(Artigo 167). Nessas zonas o plano previu, também, a possibilidade de alteração nocálculo da outorga onerosa, desde que justificada por estudos específicos (Artigo182).

O coeficiente de aproveitamento básico para todos os lotes urbanos contidosno município foi estabelecido em 1,4 (um vírgula quatro), excetuados aqueleslocalizados em zonas especiais (Artigo 182). Os coeficientes máximos deaproveitamento das zonas, por seu turno, ficaram para ser instituídos em uma posteriorLei de Controle Urbanístico (Artigo 186), que deveria fazê-lo de forma diferenciadapor uso (residencial e não-residencial), e conforme a capacidade de suporte infra-estrutural já referenciada anteriormente (Artigo 187). Vale ressaltar que o

4 No Artigo 163, Parágrafo 1º, o Plano estabeleceu que os cálculos dos potenciais construtivos deveriam serrealizados através de procedimentos técnicos utilizando metodologia apropriada e explicitada para o conhecimentopúblico. No caso do sistema de circulação, instituiu o uso de metodologia baseada em modelos de simulaçãoentre uso do solo e transportes, a partir de pesquisa de origem e destino, o que tornava dispendiosa e complexasua realização (BELÉM, 1993).

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dimensionamento do estoque edificável consideraria a zona como um todo e não olote individual (Artigo 188).

Enquanto a Lei Complementar de Controle Urbanístico não fosse aprovada, aoutorga onerosa deveria ser aplicada considerando o coeficiente máximo estabelecidona legislação urbanística em vigor. Contudo, não foi isso o que ocorreu na prática. Aatualização da Lei de Controle Urbanístico não foi providenciada de imediato e váriosproblemas foram evocados para evitar a cobrança da outorga onerosa, tais como aausência de planta de valores e de cadastro técnico atualizados, a não-implementaçãodo Fundo de Desenvolvimento Urbano, as indefinições quanto ao estoque construtivo,a ausência de mecanismos de gestão dos estoques edificáveis, etc.

Tão logo começaram as tentativas de cobrança da OODC esse instrumentocomeçou a ser enfraquecido pelo legislativo municipal. Através da Lei 7.683 de 11de janeiro de 1994, a Câmara de Vereadores autorizou o Prefeito a aplicar um redutorde 75% no valor da OODC e aumentou para 1,8 o coeficiente básico aplicado a lotescom área inferior a 150 m2 A vigência dessa Lei foi prorrogada até 31 de dezembro de1995 pela Lei 7.744 de 28 de dezembro de 1994 e, até 31 de dezembro de 1996 pelaLei 7.782 de 27 de dezembro de 1995.

Mais tarde, a Lei 7.877, de 6 de abril de 1998, alterou os Artigos 182 e 340,bem como acrescentou parágrafos aos artigos 190 e 191 da Lei do Plano Diretor. Asprincipais mudanças foram:

a) a alteração do coeficiente básico de 1,4 para 4,0 aplicada a todos os lotesurbanos do município, mantendo a exceção aos lotes das zonas espaciais (Art. 182);

b) o estabelecimento do coeficiente máximo igual a 6,0 (Art. 340);

c) a isenção do pagamento da outorga onerosa nos casos de habitação populardesde que comprovado o baixo poder aquisitivo dos usuários finais e o padrão damoradia a ser produzido (acréscimo no Art. 190); e,

d) o parcelamento em 12 prestações do pagamento da outorga onerosa (Art.190).

É evidente que essas mudanças na legislação resultaram de pressõesempreendidas por segmentos do setor imobiliário sobre os seus representantes naCâmara de Vereadores. Como consequência, foi praticamente inviabilizada a aplicaçãodo instrumento da OODC, até porque, como referenciou Rodrigues (2005 in BELÉM,2005), na época, não interessava para o mercado imobiliário atingir índices maioresdo que o novo índice básico (igual a 4,0). Segundo Belém (2001), antes da aprovaçãoda Lei Complementar de Controle Urbanístico, a cobrança da OODC foi feita commuitas concessões e dificuldades operacionais.

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2.2. A Lei Complementar de Controle Urbanístico de 1999

Entre a aprovação do Plano Diretor de 1993 e a aprovação da Lei Complementarde Controle Urbanístico (LCCU) transcorreram seis anos. O Projeto da LCCU foielaborado por dois técnicos da Prefeitura Municipal a partir de discussões com agentesdo mercado imobiliário e dos movimentos sociais, sobretudo com os primeiros, foiinstituído pela Lei Complementar 02 em 19 de julho de 1999. É, portanto, anterior aoEstatuto da Cidade.

A LCCU tratou dos espaços continentais do município de Belém. Em seu Art.64, classificou a parte continental em Zonas Adensáveis até o Coeficiente deAproveitamento Básico (ZACB) e em Zonas Adensáveis Acima do Coeficiente Básico(ZAOO).

É de se destacar que, na LCCU, o conceito do instituto da OODC foi total-mente alterado. O coeficiente básico deixou de ser idêntico para toda a cidade. NaZACB o coeficiente de aproveitamento foi estabelecido em 2,0 (dois), e na ZAOO,os coeficientes variaram conforme os modelos urbanísticos. A outorga onerosa emvez de incidir sobre o diferencial entre as áreas construídas resultantes dos coefici-entes de aproveitamento máximo e básico passou a ser aplicada sobre a área cons-truída que excedia o cálculo do coeficiente máximo estabelecido nos quadros demodelos urbanísticos aplicados a cada zona. Como determinava o Art. 73 (BELÉM,1999):

Art. 73. A outorga onerosa do direito de construir, definida nos artigos 189 a 191 da Lei nº7.603, de 13 de janeiro de 1993, será aplicada nas ZAOO conforme a seguir:

I – nas ZUM 4, ZUM 5 e ZUM 6 – até 10% (dez por cento) acima do coeficiente deaproveitamento do modelo utilizado;

II – nas ZH 4, ZH 5, ZUM 7 e ZUM 8 – até 20% (vinte por cento) acima do coeficiente deaproveitamento do modelo utilizado.

Dito de outra forma, a LCCU, nas áreas sujeitas à cobrança da outorga onerosaigualou conceitualmente “coeficiente básico de aproveitamento” com o que antes erao “coeficiente de aproveitamento máximo de cada zona” e passou a fazer incidir aOODC apenas sobre o que excedia ao coeficiente de aproveitamento de cada lote,que era definido conforme o zoneamento ordinário do uso pretendido e as dimensõesdo lote. Essa estratégia de igualar o coeficiente básico ao coeficiente de aproveitamentomáximo, usada em outras cidades brasileiras (Curitiba, Porto Alegre, Salvador, porexemplo), “admite que o município vá arcar com a infra-estrutura necessária paraadequar a cidade ao máximo permitido pelo zoneamento anterior e só irá recuperaros investimentos ou financiar o que for dali excedente” (FURTADO et al., 2006). No

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caso de Belém, contudo, tal estratégia se deu associada ao estabelecimento de índicesurbanísticos, sem que os mesmos tenham sido fundamentados em estudos técnicosconsistentes de avaliação da capacidade de suporte infra-estrutural.

Além de restringir a concessão da outorga onerosa a lotes cujas testadas fossemsuperiores a determinadas dimensões (15 metros no caso do modelo M4; 12 metrosno caso dos M10, M12 e M14) a LCCU, também reduziu, sobremaneira, as áreascomputáveis para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento máximo.

Art. 70. Consideram-se não computáveis para fins de cálculo do coeficiente deaproveitamento, as seguintes áreas:

I – nas edificações destinadas à habitação unifamiliar:

a) jardins abertos ou não;

b) sacadas e terraços, desde que abertos;

c) varandas, dentro do limite de 5 % (cinco por cento) da área da edificação;

d) estacionamento ou garagem.

II – nas edificações destinadas à habitação coletiva:

a) as destinadas aos serviços gerais, tais como:

1. máquinas e elevadores;

2. bombas d’água;

3. transformadores;

4. centrais de ar condicionado;

5. aquecimento de água;

6. instalação de gás;

7. contadores e medidores;

8. instalações para coleta e depósito de resíduos sólidos;

b) as que constituem dependências de uso comum:

1. vestíbulos;

2. circulação horizontal e vertical;

3. recreação e jardins abertos ou não;

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4. salões de recepções;

5. guarita;

c) sacadas e terraços, desde que abertos, ainda que constituam dependências de utilizaçãoexclusiva da unidade autônoma;

d) varandas, desde que não ultrapassem a 5% (cinco por cento) da área de utilização exclusivada unidade autônoma de até 120,00 m2 (cento e vinte metros quadrados) de área, ou 10%(dez por cento) da área de utilização exclusiva da unidade autônoma por habitação com áreasuperior a 120,00 m2 (cento e vinte metros quadrados), e de até 180 m2 (cento e oitentametros quadrados) ou 15% (quinze por cento) da área de utilização exclusiva da unidadeautônoma por habitação com área superior a 180,00 m2 (cento e oitenta metros quadrados);

e) estacionamento ou garagem;

f) residência de zelador, quando igual ou inferior a 50,00 m2 (cinquenta metros

quadrados);

g) pavimento em pilotis quando livre e sem qualquer vedação, excluídas as áreas previstasnos incisos anteriores.

III – nas edificações destinadas a atividades não residenciais:

a) aquelas discriminadas no inciso II, alínea “a”, deste artigo;

b) as destinadas à circulação horizontal e vertical, de uso comum;

c) as destinadas à guarita;

d) as referidas no inciso II, alíneas “c”, “e” e “f, deste artigo.

Como se pode constatar sobrou muito pouca área construída para a aplicaçãoda outorga onerosa, e a que sobrou ainda teve sua forma de pagamento facilitada peloArtigo 74 (50% do valor no licenciamento da obra e o restante em cinco parcelasmensais, iguais e sucessivas corrigidas monetariamente).

A definição das zonas com estoques de potencial construtivo para outorgaonerosa deveria, segundo a LCCU ser feita com base na capacidade de infra-estrutu-ra, das vias de circulação e das conveniências de qualificação ambiental. O estoquedeveria ser dividido em estoque para fins residenciais e estoque para fins não-resi-denciais (Artigo 87), cabendo ao poder executivo divulgar as quantidades dessesestoques e suas localizações. Ainda segundo o Artigo 162, o estoque de área edificá-vel disponível deveria ser calculado pelo Poder Executivo Municipal e encaminhadoà Câmara Municipal de Belém no prazo máximo de um ano, a partir de 19 de julhode 1999. De acordo com Belém (2005) tais estoques não chegaram a ser dimensio-nados.

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2.3. O Plano Diretor do Município de Belém de 2008

A revisão do Plano Diretor de Belém foi feita sob a égide do Estatuto da Cidade,num processo compartilhado entre governo e sociedade, conforme estabelecido peloArt. 40 do Estatuto da Cidade, sendo formulado em duas etapas básicas. A primeiraconsistiu na elaboração de estudos e diagnósticos e foi procedida através da contrataçãode trabalhos técnicos de consultores e do levantamento e sistematização de informaçõesjunto aos órgãos da administração municipal realizada pelos membros da equipetécnica coordenada pela SEGEP. A segunda etapa consistiu no processo de discussãocom diversos segmentos sociais, por meio de seminários e audiências públicas, deonde saíram contribuições para o texto final.

A Lei que institui o Plano Diretor do Município de Belém (Lei 8.655 de 30 dejulho de 2008) situa a OODC dentre os instrumentos jurídicos e urbanísticos. SeuArt. 131 restabeleceu os conceitos de coeficientes de aproveitamento: básico (a seradotado nos processos de aprovação de projetos que não contemplem a outorga onerosaou a transferência de direito de construir); mínimo (a ser usado como parâmetro demedição da subutilização do lote e, portanto, da condição de aplicação doparcelamento, edificação ou utilização compulsórios, do IPTU progressivo no tempo,e da desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública); e, máximo (a serusado nos processos de aprovação de projetos, que contemplem a outorga onerosa oua transferência do direito de construir).

A OODC voltou a incidir sobre a área resultante da subtração entre as áreasobtidas através da aplicação dos coeficientes de aproveitamento máximo e básico.As áreas sujeitas a OODC foram novamente ampliadas, sendo compostas, de acordocom o Art. 158, pelo Setor I da ZAU 3, pela ZAU 6 e pelo Setor II da ZAU 7.

Embora a Lei do Plano Diretor tenha estabelecido os coeficientes deaproveitamento mínimos (variando de 0,05 a 0,15), remeteu a regulamentação dadefinição do coeficiente básico e das condições de aplicação para uma posterior Leida Outorga Onerosa do Direito de Construir.

Enquanto a Lei da OODC e a Lei de Uso do Solo não forem formuladas eaprovadas, o Plano previu, em suas disposições transitórias, algumas alterações naLCCU/1999, tais como, mudanças nos limites do zoneamento e no quadro de mode-los urbanísticos. Permaneceu, contudo, a sistemática de incidência da OODC apenasna área construída que excede aquela calculada com base nos coeficientes máximospermitidos no quadro de modelos, este sim alterado. Manteve, também, o art. 70 daLCCU, citado anteriormente, que isenta uma grande variedade de espaços do côm-puto total da área construída para fins de cálculo do coeficiente de aproveitamento.

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Foram revogadas, dentre outras, a Lei 7.603/1993, que instituiu o primeiro PlanoDiretor de Belém pós-Constituição Federal de 1988, e a Lei 7.877/1998, que estabe-leceu o coeficiente básico e o coeficiente máximo iguais a, respectivamente, quatroe seis.

3. CONCLUSÕES

A análise da legislação mostrou a imprescindibilidade e o papel fundamentaldo Plano Diretor e da legislação municipal no estabelecimento de coeficiente(s)básico(s) e máximos de aproveitamento e das condições de aplicação da OODC. Aoatribuir ao município o estabelecimento do coeficiente básico e a definição dascondições de aplicação do instituto da OODC, o Estatuto da Cidade deslocou, paraessa esfera, o debate e o embate político sobre tais condições.

Considerando-se que o Estado é um campo de forças, no qual agentes cominteresses diferenciados, lutam pela apropriação dos benefícios da urbanização, so-mente em situações de equilíbrio de forças políticas pode haver a possibilidade deimplementações progressistas e democráticas dos instrumentos urbanísticos. Casocontrário, a tendência é de que ou o instrumento não seja instituído, ou que sejacapturado/deturpado para atender interesses de grupos dominantes, como o queocorreu em Belém ao se instituir a aplicação da OODC acima do coeficientemáximo de aproveitamento e ao se desvirtuar o próprio conceito de índice deaproveitamento, excluindo do seu cálculo uma quantidade enorme de ambientesconstruídos.

No caso da OODC, dentre os grupos desinteressados na aplicação desseinstrumento estão os proprietários fundiários e o capital imobiliário, pois estes deixarãode apropriar, de forma privada, benefícios socialmente criados. Num quadro demercado operando com os valores máximos possíveis de comercialização, taissegmentos poderão ter dificuldades de realização de suas margens de lucro/rendafundiária.

O adiamento das decisões referentes à OODC no Plano Diretor do Municípiode Belém aprovado em 2008 evidencia a dificuldade histórica de pactuar esse instru-mento com os setores compostos pelos proprietários fundiários e do capitalimobiliário. Por outro lado, as dificuldades de gerenciamento técnico do instru-mento e de monitoramento da dinâmica imobiliária e os baixos valoresarrecadados são alguns dos fatores que ajudam a entender o pouco interesse queo instrumento desperta no executivo municipal. A julgar pelo que tem ocorridoaté o presente, é grande o risco de se tornar a OODC um instrumento sem eficá-cia e credibilidade.

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REFERÊNCIAS

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______. Lei nº 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém edá outras Providências. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém, PA, 16 nov. 1993.

______. Lei nº 8.655, de 30 de julho de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém e dáoutras Providências. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém, PA, 31 jul. 2008.

______. Lei Complementar de Controle Urbanístico Lei nº 2, de 19 de julho de 1999. Dispõe sobre oparcelamento, ocupação e uso do solo urbano do Município de Belém e dá outras providências. DiárioOficial [do] Município de Belém. Belém, PA, 13 set.1999.

______. Lei nº 7.683, de 11 de janeiro de 1994. Estabelece medidas aplicáveis à legislação do PlanoDiretor Urbano de Belém, de que trata a Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Diário Oficial [do]Município de Belém. Belém, PA, 1994.

______. Lei 7.744, de 28 de dezembro de 1994. Prorroga a vigência da Lei 7.683, de 11 de janeirode 1994, que estabelece medidas aplicáveis à legislação do Plano Diretor Urbano de Belém, ins-tituído pela Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém,PA, 1994.

______. Lei 7.782, de 27 de dezembro de 1995. Prorroga a vigência da Lei 7.683, de 11 de janeirode 1994, que estabelece medidas aplicáveis à legislação do Plano Diretor Urbano de Belém, ins-tituído pela Lei 7.603, de 13 de janeiro de 1993. Diário Oficial [do] Município de Belém. Belém,PA, 1995.

______. Lei 7.877, de 06 de abril de 1998. Altera os artigos 182 e 340 e acresce parágrafos aos Arts. 190e 191 da Lei 7.603 de 13/11/1993, e dá outras providências. Diário Oficial [do] Município de Belém.Belém, PA, 1998.

______. Prefeitura Municipal; SEGEP. Relatório de revisão do Plano Diretor de Belém (Lei 7.603/93).Belém, 2005.

______. Lei Orgânica do Município de Belém, de 30 de março de 1990. Diário Oficial [do] Municípiode Belém. Belém, PA,1990.

BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da ConstituiçãoFederal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jul. 2001.

DORNELAS, Henrique Lopes. A abordagem do instituto jurídico da outorga onerosa do direito deconstruir (solo criado). In: PAULA, Alexandre Sturion de (Org.). Estatuto da cidade e o plano diretormunicipal: teoria e modelos de legislação urbanística. São Paulo: Lemos Cruz, 2007, p. 127-192.

FURTADO, Fernanda et ai. Outorga onerosa do direito de construir: panorama e avaliação de experiên-cias municipais. In. ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PES-QUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, XII, 2007, Belém.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 337

GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.

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Estudo de Impacto de Vizinhança: aLegislação do EIV em Porto Alegre

GLADIS WEISSHEIMER1

MARIA TEREZA FORTINI ALBANO2

Arquitetas e Urbanistas.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A discussão realizada em Porto Alegre sobre o Estudo de Impacto de Vizi-nhança – EIV tem seu marco na 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor deDesenvolvimento Urbano Ambiental – PDDUA, Lei Complementar 434/99 realiza-da em 2003, quando ficou estabelecido como pauta a necessidade de compatibiliza-ção deste instrumento com o Estatuto da Cidade – EC.

Nesta ocasião se evidenciou de maneira bastante forte a insatisfação de parcelasda população com os resultados espaciais decorrentes das propostas do plano. Otema da paisagem urbana que durante o processo de elaboração do PDDUA desdemeados dos anos 90 tinha sido aspecto de pouca relevância, passar a ser, durante eapós a 1ª Conferência de Avaliação, questão essencial, voltada principalmente para atemática das alturas das edificações e das Áreas Especiais de Interesse Cultural dacidade, com ênfase na delimitação e definição de regimes urbanísticos para umaadequada valorização do patrimônio cultural.

Assim se iniciou uma ampla mobilização para que o EIV fosse exigido paraum número bastante grande de situações envolvendo até mesmo projetos de prédioscom mais de 500m2 que estivessem em processo de aprovação junto ao setorcompetente da Secretaria de Obras do Município.

É possível afirmar que a discussão do EIV em Porto Alegre se confundiu muitasvezes com a da revisão do plano diretor. Através desta discussão a população

1 Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1989. Técnica da SPM da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.Coordenadora da elaboração da Lei do EIV em Porto Alegre.

2 Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1976. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR– UFRGS 2000. Técnica SPM desde 1979. Integra grupo da elaboração da Lei do EIV em Porto Alegre, Coordenouem 2003 o tema Projetos Especiais de Impacto Urbano e EIV na revisão do PDDUA.

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vislumbrou neste instrumento uma oportunidade de resolver situações de conflitogeradas pelos regimes urbanísticos propostos pela legislação de 1999, que emdesacordo com a realidade da cidade preexistente nos bairros, passou a propor usos evolumetrias bastante superiores das identificadas nos diversos locais. Através de umestímulo de renovação em quase todos os bairros da cidade passaram a surgir espigõesisolados, em zonas com predominância de residências unifamiliares ou de prédioscom um número reduzido de pavimentos.

Se por um lado, setores da comunidade consideraram o EIV como um instru-mento capaz de propiciar uma luta pela manutenção das ambiências dos bairros tra-dicionais da cidade, por outro lado, representantes do setor imobiliário o perceberamapenas como mais um ato burocrático e fator de aumento de despesas no desenvolvi-mento dos projetos com necessidade de aprovação pela Prefeitura Municipal.

Desde então se estabeleceu um debate sobre os limites de abrangência do EIVbem como sobre as possibilidades e os desafios para a construção de uma propostade consenso para a cidade de Porto Alegre. O que se buscava era um acordo possívelque fosse capaz de garantir as condições de implementação do instrumento, atendendoàs expectativas dos diferentes atores sociais quer como produtores da cidade,moradores dos diversos bairros, usuários do comércio e serviços, gestores públicos etodos aqueles que de alguma maneira são responsáveis pelo funcionamento do sistemaurbano.

Na sua essência, desde o início das discussões o EIV vem sendo tratado comoum instrumento de gestão democrática, materializado em um documento que reúneas informações necessárias para subsidiar a avaliação prévia dos impactos sobre oambiente sempre que a magnitude do empreendimento ou atividade assim o exigir esempre que a ênfase predominante for de caráter urbanístico.

De maneira mais e menos intensa estes e outros aspectos já foram abordadosem outros dois trabalhos enviados ao III e IV Congressos do IBDU.

Neste sentido, no presente momento, se pretende trazer para o V Congresso osresultados do processo vivido desde 2003 que culmina na elaboração de um projetode lei e na realização de um seminário público com o objetivo subsidiar a tomada dedecisão dos conselheiros do CMDUA – Conselho Municipal de DesenvolvimentoUrbano Ambiental com relação à proposta de lei elaborada.

Portanto, a minuta de projeto de lei ainda em discussão junto ao CMDUA, tempor objetivo atender ao disposto nos artigos 36, 37 e 38 da Lei Federal 10.257 de 10de julho de 2001 e adequar a utilização de outros instrumentos de avaliação de impactojá utilizados desde longa data em Porto Alegre aos conteúdos do Estatuto da Cidadesobre o EIV.

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A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DO EIV: REFERENCIAIS GERAIS

A análise de impactos não é uma novidade em Porto Alegre. Desta forma ocaminho para a definição de empreendimentos e atividades passíveis de EIV bemcomo dos demais aspectos relacionados pelo EC passa pelo reconhecimento de que:

– todos os empreendimentos e atividades são causadores de impacto;

– os impactos podem ser controlados por normas, critérios, estudos ou poravaliações pós-ocupação;

– as avaliações de impacto pós-ocupação só são objeto de EIV quando umdeterminado empreendimento ou atividade deseja expandir-se de forma significativa3.

Da mesma forma, há de se reconhecer que na contemporaneidade a sociedadepassa a se preocupar com novas pautas até então inexistentes. Considerando apenasaspectos da questão ambiental, a escassez e o esgotamento dos recursos naturais,temáticas fundamentais da atualidade que remetem à preocupação com o direito dasfuturas gerações4.

Não é por acaso que os planos diretores estritamente normativos, maisespecificamente desde os anos 70 do século XX, vem recebendo um enorme númerode críticas.

Neste contexto de críticas surgem novas abordagens e as avaliações de impactointroduzem uma perspectiva de adoção de um modelo “previne-corrige” como umaalternativa ou um complemento para o modelo modernista do “comando-controle”.

E os planos diretores tradicionalmente concebidos como instrumentos deregulação que se reduziam a um conjunto de definições de regimes urbanísticos comorepresentações físico-territoriais expressas através de padrões quantitativos passam aincorporar ideias de flexibilização que devem expressar os princípios de uma políticade desenvolvimento urbano-ambiental pensada como um projeto global das cidades.

Na nova lógica não se propõe o abandono dos regimes urbanísticos, mas umdestaque a possibilidade de consideração de outros aspectos que podem serresponsáveis pela definição da configuração sócio-espacial de setores urbanos.

Portanto o regime urbanístico é um dos elementos, e não o único, que comparecena definição do que é qualidade de vida para uma cidade ou uma população. A partirdo conceito de função social da propriedade, tão bem expresso no novo marco legal

3 Foi rejeitada proposição de considerar como passíveis de EIV as análises das repercussões pós-ocupação deempreendimentos e atividades, pois no próprio Estatuto da Cidade o EIV é um estudo prévio de impacto.

4 Ideias apresentadas por Vanesca B. Prestes no Seminário Estudo de Impacto de Vizinhança – A legislação doEIV em Porto Alegre, realizado em 28 e 29 de agosto de 2008 em Porto Alegre.

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pós Constituição Federal de 1988, o regime urbanístico passa a ser uma referênciaindicativa de como poderá se dar a ocupação do solo, mas sua utilização plena não égarantida nem obrigatória, devendo entrar em consideração as demais avaliaçõesque demonstrem concretamente a real adequação de uma determinada proposição aum determinado ambiente.

Nesta nova ótica, que consolida as avaliações de impactos como instrumentosdo planejamento das cidades, se pretende buscar a qualidade de vida através deprocedimentos objetivos, transparentes e menos abstratos do que o utilizado peloplanejamento mais tradicional.

ESTRUTURA DO PROJETO DE LEI

A opção por uma lei independente do plano diretor se estrutura a partir dosseguintes conteúdos básicos que integram o texto legal: instituição do instrumento;conceituação; definição de responsabilidade sobre a coordenação; instituição da Taxade aprovação do EVU; objetivos do instrumento; estrutura básica; conteúdo mínimo;lista de atividades e empreendimentos passíveis de EIV; situações de dispensa;questões relacionadas ao Termo de Referência; aprovação de EVU e Termos deCompromisso; responsabilidade sobre despesas e custos; aspectos da gestãodemocrática e prazos.

A forma final construída pela assessoria jurídica é fruto de muitas idas e vindasde um debate que se deu a partir da 1ª Conferência de Avaliação do Plano Diretor,mas que se consubstancia num trabalho técnico dentro da PMPA, onde estiverampresentes a Secretaria do Planejamento Municipal – SPM como coordenadora doprocesso, a de Meio Ambiente – SMAM, a de Mobilidade Urbana – SMU, a deCultura – SMC e a Procuradoria Geral do Município – PGM.

UM EVENTO EXCLUSIVO PARA DISCUTIR O EIV

Enviado ao CMDUA para discussão em março de 2008 o trabalho recebeuconsiderações antagônicas, ora voltados para a rejeição pura e simples do tema, oraaprofundando questionamentos sobre muitos outros aspectos, entre os quaisprovavelmente o mais relevante é o da forma de discussão com a sociedade.

Considerando um histórico recente da cidade de Porto Alegre de encaminharao Ministério Público pendências não resolvidas entre as partes interessadas aindano processo de discussão que antecede o encaminhamento de matérias legais ao PoderLegislativo, por orientação do secretário do Planejamento Municipal se realizou umseminário público de discussões com vistas a subsidiar a decisão do CMDUA.

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Numa organização compartilhada entre representantes do CMDUA, MinistérioPúblico do Estado do Rio Grande do Sul e Prefeitura Municipal, coordenada pelaequipe da SPM, o evento contou com inúmeros palestrantes representantes dediferentes visões sobre o tema5 e se estruturou ainda com a colaboração da EscolaSuperior de Direito Municipal para discutir em diversos painéis os seguintes temasbásicos: histórico que envolve a formulação do instrumento, conteúdos propostospor Porto Alegre para a legislação do EIV, análise de legislações sobre o EIV,apresentação de experiências de cidades brasileiras com estudos de impacto; desafiospara a gestão democrática do instrumento, visão empresarial sobre os estudos deimpacto e EVUs e aspectos conceituais e metodológicos.

DISCUSSÃO SOBRE OS PRINCIPAIS CONTEÚDOS

O MÉRITO DO INSTRUMENTO

A tradição da cidade em temas relativos à avaliação de impacto urbanístico e agestão democrática são elementos fundamentais para afirmar que o que está emdiscussão em Porto Alegre não é o mérito do instrumento EIV, mas sua implementaçãoe regulamentação.

A inclusão do instrumento EIV no EC representa o reconhecimento de situaçõesde conflito que têm ocorrido, especialmente em centros urbanos ou metrópoles, quenecessitam receber soluções urbanísticas mais adequadas, visando a melhoria daqualidade de vida dos moradores das cidades e adotando os aspectos urbanísticoscomo fio condutor transversal das análises dos diversos temas.

Em Porto Alegre a implementação deste instrumento foi encarada como umaoportunidade de promover a qualificação e o aprimoramento das análises de impactourbanístico já experimentadas por outros instrumentos, adotando o aspecto urbanísticocomo fio condutor transversal das análises dos diversos temas e consolidando ogerenciamento destas avaliações através de métodos preestabelecidos, estudostecnicamente reconhecidos, transparência e participação dos envolvidos, sob acoordenação da Secretária de Planejamento Municipal.

É preciso registrar que ao longo do processo de discussão da proposta, existiramposições antagônicas, de grupos que são absolutamente favoráveis ao mérito doinstrumento e de grupos bastante resistentes ao mesmo, neste caso, sempre associadasa questões burocráticas ou a custos para o empreendedor. Tais questões foram

5 Antônio Cláudio Moreira Lima e Moreira, Benny Schasberg, Cibele Rumei, Gladis Weissheimer, Luciano JoelFedozzi, Magda Cobalchini, Magda Satt Arioli, Maria Tereza Fortini Albano, Miguel Satler Rogério Rocco eVanesca Buselato Prestes.

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consideradas legítimas devendo ser equacionadas, não devendo constituir empecilhoà implementação do EIV.

É importante salientar o que foi considerado uma das principais premissasdeste trabalho: o EIV é instrumento de avaliação para o permitido pela norma – querseja rígida ou dotada de flexibilização com análise mediante Projeto Especial. Damesma forma que demais instrumentos de avaliação de impacto, não é empecilhopara a implementação de empreendimentos na cidade, também não é instrumentoaplicável ao proibido em lei, estes casos devem ser precedidos de alteração dalegislação através do legislativo. O regime urbanístico definido em lei, ou seja,permitido, não exclui a necessidade de demonstração de solução de impacto atravésde instrumento de avaliação, caso contrário, o instrumento não seria aplicável emnenhum caso da lista.

O CONCEITO DE IMPACTO URBANO

Da mesma forma que o EC, o conceito de impacto urbano não foi explicitadona proposta de lei, evitando polêmicas desnecessárias entorno do assunto e optando-se por enfatizar seus objetivos.

Para a estruturação da proposta foram considerados conceitos constantes emdocumentos que nortearam a proposição do Sistema de Avaliação de Impactos Urbanos– SADUR6 no PDDUA e outros autores reconhecidos por suas pesquisas sobre otema, em consonância com as disposições do Estatuto da Cidade.

Conteúdos do Estatuto da Cidade sobre impacto:

... contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto àqualidade de vida da população residente na área e suas proximidades incluindo a análise,no mínimo, das seguintes questões...

Rômulo Krafta em texto para do SADUR:

Assim, presume-se que os diversos elementos que compõem a cidade território, objetos,espaços e atividades estão interligados de maneira tal que, no limite, qualquer mudança,por menor que seja, em qualquer destes elementos provoca alterações gerais em todos osdemais elementos, bem como nas relações que mantém entre si.

Antônio Cláudio Lima Moreira Lima em texto para disciplina Políticas públicasde proteção do ambiente urbano:

6 Proposta de acompanhamento sistemático da realidade para subsidiar tomada de decisão de políticas urbanas,avaliações de impacto e monitorar o desenvolvimento urbano.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 345

O que caracteriza o impacto ambiental não é qualquer alteração nas propriedades doambiente, mas as alterações que provoquem o desequilíbrio das relações constitutivas doambiente tais como as alterações que excedam a capacidade de absorção do ambienteconsiderado.

A concepção adotada para a legislação de Porto Alegre passa pelo reconheci-mento de que qualquer empreendimento gera impactos na cidade pré-existente e quea forma de avaliação e de definição de soluções sobre estes impactos pode ser dadaatravés de um conjunto de opções de instrumentos, incluindo os já existentes, a se-rem aplicados de acordo com a complexidade da situação, como o Estudo de Viabi-lidade Urbanística – EVU, o Relatório de Impacto Ambiental – RIA e o Estudo deImpacto Ambiental – EIA, aos quais vem se adicionar o EIV.

O CONCEITO DE VIZINHANÇA

Para dar suporte à proposta, foram pesquisados conteúdos oriundos do CódigoCivil – Direito de Vizinhança, das propostas urbanísticas de Unidades de Vizinhançae da Área de Influência prevista pelos estudos ambientais. Avaliou-se que os objetivosdo instrumento estão estreitamente relacionados com o que atualmente é utilizadonestes últimos, abstraindo-se a associação com a bacia hidrográfica, que em meiosurbanos apresenta-se muitas vezes descaracterizada por diversas intervenções. Combase nestas informações, a proposta considerou como vizinhança o território sobre oqual incidem as repercussões positivas ou negativas de um determinadoempreendimento considerando cidadãos, moradores permanentes, empregados,pessoas que transitam ou utilizam permanentemente este território, definido caso acaso, conforme a pré-existência e a complexidade dos principais impactos a seremconsiderados.

A COMPATIBILIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS EXISTENTES

A lógica adotada foi a de não desprezar reconhecidas conquistas já alcançadasnas avaliações de impacto realizadas na cidade de Porto Alegre.

O trabalho estabeleceu como pressuposto que instrumentos tradicionais comoa norma geral, que propicia aprovar projetos diretamente junto à Secretaria de Obras,e instrumentos ambientais mais complexos já existentes como o RIA/DS ou EIA/RIMA, devem ter sua utilização valorizada e ratificada em seus respectivos camposde atuação.

Um dos principais desafios reside justamente neste quesito, ou seja, em definiras escalas e campos de atuação de cada instrumento. Nesse sentido é que o foco deatuação do EIV deve estar em situações de maior impacto urbanístico, privilegiando

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análises ainda não contempladas plenamente nos estudos ambientais, mas essenciaisdo ponto de vista urbanístico de uma cidade, como o adensamento populacional, avalorização imobiliária e a paisagem urbana.

Uma das questões cruciais do debate realizado é a compreensão sobre a distinçãoentre o instrumento preexistente, o EVU, e o EIV.

Em Porto Alegre o instrumento denominado EVU é, essencialmente, umprocedimento administrativo de aprovação de projetos, através do qual os interessadossubmetem suas proposições para análise pelo Poder Público. Conforme o grau deimpacto das proposições, o EVU deverá receber o aporte de estudos específicos sobreáreas setoriais do conhecimento, como os de ambiente natural ou de tráfego, paracitar exemplos mais recorrentes, ou estudos mais complexos como EIV, RIA ou EIA/RIMA.

O EIV é, antes de tudo, o documento que reúne os estudos e as informaçõessistematizadas de um determinado projeto, de natureza ou porte predefinidos em lei,propiciando a avaliação prévia dos impactos urbanísticos sobre a área de influênciade um empreendimento proposto por um EVU.

O CONTEÚDO E LIMITAÇÕES DE UMA LISTA

A existência de listas fechadas definindo o que deve ser passível de EIV levantauma situação que foi sempre muito questionada nos zoneamentos dos planos diretores,uma vez que a realidade é sempre muito mais dinâmica do que a capacidade deprever o que poderá surgir no futuro da vida de uma cidade.

Apesar de tais limitações, reconheceu-se que esta opção além de atender àsdeterminações do próprio Estatuto da Cidade, proporciona a segurança jurídicareivindicada pelos envolvidos, tanto aos empreendedores quanto a sociedade, queestarão previamente informados sobre exigências que incidem sobre as intenções deum projeto.

O ENQUADRAMENTO DE CASOS NÃO PREVISTOS

Como forma de contemplar situações imprevisíveis, sem abrir mão de umalista objetiva dos empreendimentos e atividades passíveis de EIV, foi discutida anecessidade de inclusão de enquadramentos de situações que devido às suascaracterísticas promovam impactos significativos ou o agravamento de situaçõespreexistentes. Foram previstos os seguintes casos:

– similaridade às situações previstas no que se refere aos possíveis impactosgerados

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 347

– solicitação de aumento de porte para atividades ou empreendimentos pré-existentes na cidade.

O primeiro caso refere-se a atividades novas que constantemente surgem nocotidiano das cidades e o segundo refere-se a, por exemplo, um shopping center quesolicita ampliação da sua capacidade de operação, estando naturalmente contribuindopara uma situação de agravamento de impacto, quer seja pelo aumento da polarizaçãode veículos quer seja na densificação da quantidade de edificação em lugares já bastanteedificados.

PREOCUPAÇÃO COM A BANALIZAÇÃO DO INSTRUMENTO

A exigência de EIV para um número muito grande de situações foi consideradadesnecessária e indesejável em Porto Alegre, resultando possivelmente na banalizaçãodo instrumento.

A proposta baseia-se na hierarquização de níveis de impactos, definindo comopassíveis de EIV as situações que não podem ter seus impactos identificados eequacionados através de soluções propostas pela norma geral ou pela elaboração deanálises setoriais específicas proporcionadas pelo EVU.

Considerou-se imprescindível direcionar a aplicação do EIV para oaprimoramento de propostas de maior impacto no ambiente urbano, abrangendosituações de maior complexidade, com repercussões em áreas de influência maiorese causadores de maiores transformações urbanas.

É importante salientar, no entanto, que o EIV não é um instrumento paracontrolar as inadequações do plano diretor, ou seja, se há incongruências ouinconformidades de determinados segmentos sociais quanto às proposições do plano,há de se promover um processo mais permanente de revisão de seu conteúdo, deforma a alterar o regime urbanístico de forma homogênea e não no caso a caso atravésda aplicação de um EIV.

GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Esta é uma das questões mais recorrentes neste debate. O Estatuto da Cidadegerou uma polêmica desnecessária por ter sido um tanto tímido no Parágrafo únicode seu artigo 37, referindo-se apenas a “dar-se-á publicidade aos documentos cons-tantes do EIV”. Entretanto, cabe salientar que esta questão é pressuposto de atuaçãodefinido no Capítulo I – Diretrizes Gerais e no Capítulo IV – Da Gestão Democráti-ca da Cidade, como uma regra a ser seguida pelos capítulos anteriores.

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Cabe então, inicialmente um destaque à forma como a cidade de Porto Alegreorganizou a proposta de gestão da participação social, aspecto previsto no PDDUAem sua Parte II, Sistema Municipal de Gestão do Planejamento – SMGP.7 Com vistasa propiciar a referida participação, a cidade foi dividida em oito Regiões de Gestãodo Planejamento, cada uma delas com seu representante no CMDUA que é apoiadopor um Fórum Regional de Planejamento – organismo que subsidia a atuação doconselheiro.

A participação da população e a socialização das informações são viabilizadasna proposta de Porto Alegre através da realização de audiências públicas,reconhecendo, portanto, reivindicações históricas e a tradição do município em opinarem processos de consolidação de propostas de impactos significativos na configuraçãosócio-espacial de setores urbanos.

A discussão no CMDUA recebeu considerações polarizadas, pendendo tantopara omissão como para excessos, com proposições tanto ao momento em que se dáa participação e quanto à forma de garantir seu acesso.

Representantes do setor da construção civil questionaram a realização deaudiências públicas, sugerindo restringir-se ao proposto pelo artigo 37 do EC, com amera publicação de uma lista após a realização do EIV. O representante daUniversidade Federal sugeriu a participação no momento da solicitação doinstrumento, através de consulta direta aos moradores vizinhos. Já representantes deregiões de Planejamento reivindicaram viabilizar a participação antes mesmo darealização do EIV, além de considerar a audiência pública um formato ainda muitoprecário para garantir a participação, baseando-se em casos pregressos bastantedesastrosos8.

Relatos referidos por Rogério Rocco, com base em experiências de outrascidades, recomendaram que a realização de audiências possa ser opcional. A propostafoi ajustada permitindo a realização de consultas ou audiências públicas, possibilitandoa simplificação em casos menos complexos e garantindo a legitimidade ao processo,a fim de evitar questionamentos futuros. Também foram incorporadas outras sugestões,como disponibilizar as informações via internet, enviar correspondência às associaçõesde bairro integrantes da área de influência do empreendimento e instalar placa noendereço do empreendimento em local de fácil visualização.

7 A participação social no PDDUA está prevista através do disposto nos artigos 33 a 41 e prevista para acontecerem três níveis: global, regional e local.

8 Em 2007, a audiência pública promovida para a Revisão do PDDUA foi questionada juridicamente devido àpresença maciça de trabalhadores da construção civil que se deixavam manipular pelos dirigentes sindicais ereprimiram a participação de outros setores da sociedade, especialmente as associações de moradores.

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PRAZOS JUSTOS E PROCEDIMENTOS

Este item foi abordado baseado na experiência de implementação dos estudosambientais em Porto Alegre, numa trajetória de quase duas décadas, avaliando osprós e os contras para os prazos que foram adotados. Considerou-se razoávelestabelecer seis meses para o prazo de sua realização, já que para estudos ambientaiso prazo é de um ano.

Então, a proposta sugeriu que os EIVs sejam apresentados ao Poder PúblicoMunicipal no prazo máximo de seis meses após a expedição de seu Termo deReferência. Deve-se sempre ressaltar que os prazos são máximos, possibilitando queo empreendedor apresente o estudo em tempos menores, tendo em vista que a previsãode prazos máximos está diretamente vinculada à complexidade do estudo e à celeridadede sua apresentação.

Houve críticas aos prazos propostos, sugerindo a redução do período destinadoà elaboração e análise, e ampliação do prazo previsto para a apropriação do tema pelapopulação. A proposta foi incorporada, passando para 4 meses para sua elaboração epara 30 dias o período em que deve estar disponível para consulta.

RESPONSABILIDADE TÉCNICA

Neste quesito a principal questão discutida é se a responsabilidade técnicapela elaboração do estudo deve se dar através da exigência de uma equipemultidisciplinar ou se é suficiente apenas um único responsável técnico. Além disso,foi sugerida a consulta a cadastros prévios a exemplo do que é realizado nos estudosambientais.

A opção apresentada é a do responsável único, que aciona equipes técnicasdependendo do tema e da complexidade da análise, sem necessitar de cadastros préviosjá que esta exigência demonstrou-se ineficiente e concorrente com a competênciadas entidades de classe, portanto, desnecessária. A área do conhecimento que coordenao estudo também foi motivo de questionamentos, tendo sido reivindicada pelosarquitetos, especialmente os arquitetos urbanistas. Foi considerado desnecessárioespecificar a proposição na lei, entendendo-se que cada tema poderá exigirprofissionais de campos distintos, devendo ser fiscalizado por entidades de classe.

PRINCIPAIS DESAFIOS

Considerando a abordagem até aqui realizada, passa-se a ressaltar alguns dosprincipais pontos que devem caracterizar a continuidade deste debate com vistas àimplementação do instrumento, que envolvem aspectos tais como:

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– Qualificação da gestão urbano-ambiental, através do aprimoramento demetodologias de avaliação de impacto integradas e monitoramento;

– Aporte e capacitação de recursos humanos e tecnológicos, oferecendo suporteàs demandas oriundas da implementação do instrumento;

Nesse sentido considera-se que o EIV, ao longo de sua implementação, deveconquistar a robustez necessária para se consolidar como o instrumento maisabrangente e adequado para tratar das questões urbanas em diferentes escalas, dentrodo quadro desejável de sustentabilidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALBANO, Maria Tereza Fortini; MANN, Elisabeth Maria; WEISSHEIMER, Gladis; BORGES, Syn-thia Ervis Kras. Desafios para implementação do Estudo de Impacto de Vizinhança em Porto Alegre:questões pendentes x controvérsias. Porto Alegre. 2006. Texto apresentado no IV Congresso Brasileirode Direito Urbanístico, realizado em São Paulo.dezembro de 2006.

BRASIL. Lei 10.257: Estatuto da Cidade, de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os art. 182 e 183 daConstituição Federal, estabelece as diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. DiárioOficial da União: Brasília, edição de 11 de julho de 2001. Disponível em: Senado Federal – Publicações,acesso em janeiro de 2007.

CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Dispõe sobre critérios básicos e diretrizes geraispara o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. Resolução n. 001, de 23 de janeiro de 1986. DiárioOficial da União: Brasília, edição de 17 de fevereiro de 1986.

LOLLO, J. A.; ROHM, S.A. Aspectos Negligenciados em Estudos de Impacto de Vizinhança. RevistaEstudos Geográficos. Disponível em: http://www.rc.unesp.br/igce/grad/geografia/revista/Sumario0302.htm, Ano 3, Número 2 – 2005, acesso em dezembro de 2006.

PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal.PDDUA: Lei Complementar 434/99. Porto Alegre: PrefeituraMunicipal, Secretaria do Planejamento Municipal, 2000.

PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Lei 8267. Regulamenta o licenciamento ambiental no Municí-pio de Porto Alegre, cria a Taxa de Licenciamento Ambiental. Secretaria do Municipal de Meio ambien-te, 30 de dezembro de 1998.

PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Manual do Licenciamento Ambiental de Porto Alegre. Secre-taria Municipal do Meio Ambiente, 2004.

PRESTES, Vanêsca Buselato (Org.). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

KRAFTA, Rômulo. Sistema de Avaliação de Impactos Urbanos: Termo de Referencia. 1997.

MOREIRA, A C Lima Moreira. Conceitos de Ambiente e de Impacto Ambiental Aplicáveis ao MeioUrbano. Material didático da disciplina de pós-graduação AUP 5861 – Políticas públicas de proteção doambiente urbano. São Paulo: 1999.

CÓDIGO CIVIL – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Parte Especial – Livro III Do Direito dasCoisas – Título III Da Propriedade Capítulo V – Dos Direitos de Vizinhança.

Resolução CONAMA 001/86 art. 5º inc III.

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9A APLICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA

URBANÍSTICA NAS CIDADES DAAMAZÔNIA

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Balneabilidade na Praia da Ponta Negra,Direito à Cidade e ao Meio AmbienteEcologicamente Equilibrado

DANIELLE DE OURO MAMED,CYNTIA COSTA DE LIMA EJOELSON RODRIGUES CAVALCANTE1

Graduandos em Direito.

1. INTRODUÇÃO

O tratamento da ciência do Direito em relação a seus objetos tem sofrido intensasmodificações. A ciência tradicionalmente vinculada ao positivismo2 e à autonomiaem relação às demais concede, paulatinamente, lugar a uma análise das demandassociais de maneira mais aprofundada e completa, já que se permite uma maiorintegração aos outros “saberes”. Este fato representa uma considerável evolução,não apenas para a ciência do Direito, mas também para a sociedade, que se vêbeneficiada por um tratamento jurídico mais voltado às suas necessidades.

O processo de urbanização é definido por Ferrari (1979)3 como concentraçãode população em cidades e a consequente mudança sócio-cultural dessas populaçõesalém de que pode ser entendido também pelo aumento da população urbana emdetrimento da rural.

Fato é que o modelo de desenvolvimento consolidado pelo avanço da sociedadeindustrial é o principal causador deste fenômeno, já que o mesmo preconiza anecessidade de mão-de-obra trabalhando nas cidades. A Revolução Industrial Inglesaé considerada a desencadeadora dessa tendência já que previu a retirada massiva dostrabalhadores do campo para as grandes cidades em busca de trabalho nas indústriase melhores condições de vida. Entretanto, é sabido que esse processo gerou inúmerosproblemas, graças à falta de estrutura para absorver toda a população proveniente do

1 Discentes do curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas, cursando o 9º período.2 Nesse sentido, consultar: AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora

Alfa-Ômega, 1999.3 FERRARI, C. Curso de planejamento municipal integrado. 2. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979, p. 631.

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354 Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico 2008 – Manaus 2008

campo, o que desencadeou problemas sociais de diversas ordens (desemprego,violência, falta de saneamento básico, problemas de saúde, dentre outros).

Como fator que influencia tantos elementos, o processo de urbanização nãopode ficar alheio ao Direito. As mudanças sócio-culturais dele advindas devem sertuteladas juridicamente visando a garantia de princípios de ordem constitucional,como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à sadia qualidade devida, à dignidade e ao lazer.

A cidade de Manaus, especificamente, sofreu um processo de urbanizaçãoacelerada e, de forma análoga a muitas cidades do Brasil, sem condições estruturaispara tanto. Este processo se deu de maneira mais pungente a partir da constituição daZona Franca de Manaus, que atraiu um parque industrial de grande proporção para acapital, causando um inchaço populacional. Diante disso, houve-se a necessidade desolucionar, ou ao menos amenizar, as situações de desacordo das cidades com o idealcriado pela lei.

O objetivo deste trabalho é relacionar a tão almejada qualidade de vida,objetivada através da observância do direito à cidade e ao meio ambienteecologicamente equilibrado no contexto da utilização da Praia da Ponta Negra(Manaus) como balneário pela população local, que necessita, além de infra-estruturabásica, de espaços onde possa se desenvolver integralmente, contando com o acessoa uma sadia qualidade de vida, incluindo-se o lazer.

2. METODOLOGIA

Para execução do presente trabalho, foi realizado levantamento bibliográficobásico sobre os direitos envolvidos na temática (lazer e meio ambiente ecologicamenteequilibrado); aplicação de questionários por amostragem e análise dos dados coletados.

Cumpre esclarecer que, para a aplicação do questionário, utilizou-se o métodopor amostragem no percentual de 25,31% em relação ao universo.

Foram questionados 20 (vinte) banhistas, maiores de 15 anos, que seencontravam na praia no dia da saída a campo (08/06/07), sendo que no local haviaum total de 79 banhistas, incluindo-se as crianças.

3. RESULTADOS

3.1. A Constituição Federal de 1988 e o meio ambiente

A Constituição de 1988 trouxe de forma inédita para o Brasil dispositivosconstitucionais que se referem à proteção ambiental. A referida regulação encontra-

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 355

se consubstanciada no título VIII (Da Ordem Social), capítulo VI, no artigo 225.Nela, é possível observar o estabelecimento de um norte voltado à realidade do séculoXXI, voltado para as sociedades de consumo, caracterizadas por um crescimento porvezes desordenado e acelerado desenvolvimento tecnológico. Diante desse diagnósticoa Carta Política de 1988, adere a uma nova concepção de direitos, os chamados direitosdifusos que, de acordo com Mancuso (2004)4 seriam aqueles cuja titularidade não sepode definir com exatidão.

Pode-se afirmar que o referido artigo possui além da preocupação ambientalem si, um viés de natureza antropocêntrica cujo objeto é preservar a vida e a dignidadehumana, ameaçadas diante das incontestáveis consequências negativas geradas pelotrato inadequado com o meio ambiente. O equilíbrio a que faz menção o artigoconstitucional não deve significar a inalterabilidade da natureza e está concernidanuma harmonia e proporcionalidade entre aqueles que formam a natureza e devemser alcançadas na soma de forças entre Poder Público e coletividade.

A previsão constitucional que assegura o direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado tem por fim a garantia da sadia qualidade de vida, direito quesugere a ideia de meio ambiente não-poluído ou próprio para manutenção de umavida digna. Ao dispor sobre qualidade de vida, o poder constituinte determina quecompete ao Poder Público a proteção, preservação e melhoramento do meio ambien-te que para serem efetivados necessitam de normas e políticas públicas, e para garan-tir esse direito, a Constituição dispõe sobre o dever que tanto a coletividade quanto oPoder Público possuem para tal.

Cabe destacar que a atual Carta Magna avançou consideravelmente no sentidode incluir no próprio artigo 225, a noção de desenvolvimento sustentável aoestabelecer:

“Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de usocomum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e àcoletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A importância de tal dispositivo deve-se à tendência internacional de preser-vação ambiental construída de maneira mais significativa a partir de 1987 com apublicação do Informe Brundtland, documento que plasmou a noção de desenvolvi-mento sustentável, preconizando o aproveitamento dos recursos naturais para as ge-rações presentes, sem comprometer o mesmo direito das gerações futuras.

4 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2004.

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Cumpre-nos observar que a Carta Política de 1988 alçou a consideração domeio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado como direito fundamental,ainda que não esteja expressamente instituído no rol dos direitos elencados no artigo5º da Constituição. Como bem coloca José Afonso da Silva5:

“O ambientalismo passou a ser tema de elevada importância nas Constituições mais recentes.Entre nelas deliberadamente como direito fundamental da pessoa humana, não como simplesaspecto da atribuição de órgãos ou de entidades públicas, como ocorria em Constituiçõesmais antigas”.

Segundo Freitas6, o aspecto mais importante quando se refere ao meio ambienteé a proteção à vida, lembrando que a expressão meio ambiente inclui ainda a relaçãoentre os seres vivos, bem como o urbanismo, aspectos históricos, paisagísticos eoutros tantos essenciais à sobrevivência sadia do homem na Terra. Assim, ficarespaldada a visão de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é pressupostopara salvaguarda do direito à vida em sua plenitude.

Nota-se que é necessário o envolvimento de cada indivíduo na luta por umambiente saudável, assim será possível o envolvimento e mudança de postura detoda sociedade neste aspecto.

3.2. Direito ao lazer como forma de efetivação do Direito à Cidade

O direito à cidade vem se consolidando na doutrina internacional a partir daconstrução da chamada “Carta Mundial do Direito à Cidade” que teve como pontapéinicial a discussão decorrente do Fórum Social Mundial de 2001. As entidades dasociedade civil que compunham o Fórum constataram a necessidade doestabelecimento de um modelo sustentável de sociedade e vida urbana baseados nasustentabilidade.

Um dos objetivos da Carta, conforme se pode observar no próprio preâmbulo,consiste no reconhecimento do direito à cidade como passível de proteção dentro dosistema internacional dos direitos humanos, já que é pressuposto para a existência deum padrão adequado de vida. Tal objetivo decorre do próprio conceito de direito àcidade, trazido no documento através do artigo I, parte 2, segundo o qual:

“O direito à cidade se define como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípiosda sustentabilidade e da justiça social. Entendido como o direito coletivo dos habitantes dascidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade

5 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.6 FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais. 2002. p. 17.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 357

de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o plenoexercício do direito a um padrão de vida adequado”.

Além de definir a extensão do direito à cidade, a carta dispõe em seu artigo Ique todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero,idade, raça, etnia e orientação política e religiosa, preservando a memória e a identidadecultural, direitos, inequivocamente, inerentes ao ser humano.

De acordo com Saule7 (2005), consistiu uma grande inovação ao tema otratamento dado pela Carta ao direito à cidade como um direito coletivo, já que,tradicionalmente, nos sistemas legais, buscou-se a proteção de um direito à cidade noâmbito individual, garantindo-se desta maneira um tratamento mais adequado àextensão da problemática, que seguramente, transpassa a esfera individual.

Um outro documento que deve ser citado é o Tratado sobre Questão Urbana,que se desenvolveu durante a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambientee Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro (ECO-92). Este Tratado determinoucomo princípio fundamental o direito à cidadania, que seria compreendido como aparticipação dos habitantes das cidades e povoados na construção de seus destinos.Isso incluiria, dentre outros direitos, o direito à terra, aos meios de subsistência, àmoradia, à informação e ao lazer.

Para a abordagem do presente trabalho, considerou-se o direito ao lazer comode primordial importância no que tange ao alcance de uma sadia qualidade de vida eao desenvolvimento integral da pessoa humana. Devendo-se destacar que na CartaMagna brasileira esse direito encontra fulcro no artigo 6º, caput, que o define comodireito social, dada a sua importância.

Os habitantes das cidades devem encontrar condições de satisfação de tal direitono equipamento urbano que constitui seu meio. Nesse sentido há que se considerarque os objetivos da Carta incluem o comprometimento de seus signatários com aefetivação de seus princípios, não se podendo desconsiderar a necessidade de atenderàs demandas dos habitantes das áreas urbanas nessa matéria.

Na cidade de Manaus o balneário da Praia da Ponta Negra, como veremosadiante, é um dos principais espaços na cidade destinados ao lazer da população e umdos mais buscados graças à facilidade de acesso e aos custos reduzidos para utilização,legitimando-se uma necessária preocupação quanto à sua utilização.

7 SAULE, Nelson Júnior. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática. Disponívelem: <http://www.polis.org.br>. Acesso em: 02 de Nov. 2008.

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3.3. Legislação Municipal e Direito Urbanístico – Praia da Ponta Negra

O direito urbanístico possui como objeto de estudo o urbanismo, que segundoGuimarães8, além de um fato social constitui técnica de criação, desenvolvimento ereforma das cidades.

Além das disposições constitucionais em relação ao direito ao lazer e ao meioambiente ecologicamente equilibrado, pode-se encontrar na legislação do Municípiode Manaus textos que também visam garanti-los. A lei municipal de número 6059 de2001 (Código Ambiental de Manaus), em seu artigo 1º, dispõe que tal lei, procuraatender ao interesse local em favor da preservação, conservação, entre outras açõesque visam à recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente equilibrado.Ex vi do artigo:

Art. 1º – Este Código, fundamentado no interesse local, regula a ação do Poder PúblicoMunicipal e sua relação com os cidadãos e instituições públicas e privadas, na preservação,conservação, defesa, melhoria, recuperação e controle do meio ambiente ecologicamenteequilibrado, bem de natureza difusa e essencial à sadia qualidade de vida.

O referido diploma legal também dispõe de princípios que norteiam a atuaçãodo município de Manaus no que tange à aplicação da Política Municipal de MeioAmbiente. Tal afirmação infere-se do conteúdo do art. 2º da lei:

Art. 2º – A Política Municipal de Meio Ambiente é orientada pelos seguintes princípiosgerais:

I – o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a obrigação de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações;

II – a otimização e garantia da continuidade de utilização dos recursos naturais, qualitativae quantitativamente, como pressuposto para o desenvolvimento sustentável;

III – a promoção do desenvolvimento integral do ser humano;

A cidade de Manaus (Amazonas), não diferente de outras de seu porte, apresentaproblemas urbanísticos de distintas naturezas. Neste trabalho, analisou-se um espaçoda cidade bastante visado tanto do ponto de vista imobiliário pela parcela da populaçãomais favorecida economicamente, quanto por sua vocação natural de fornecer àpopulação em geral um espaço de lazer.

8 GUIMARÃES, Natália Arruda. O Direito Urbanístico e a Disciplina da Propriedade. Disponível em: <http://www.fcaa.com.br>. Acesso em: 22 set. 2008 14:25:56.

9 MANAUS, Lei nº 605 de 2001. Câmara Legislativa de Manaus.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 359

A praia da Ponta Negra é comumente utilizada pelos frequentadores comobalneário, ainda que suas condições de balneabilidade sejam questionadas pelo sensocomum. O referido espaço deve ser visto como um instrumento de efetivação dodireito ao lazer10, além de ter necessidade de proteção especial, já que constitui umaárea de preservação permanente, sendo esta conceituada ainda na Lei 605, de 24 dejulho de 2001:

Art. 32 – São áreas de preservação permanente aquelas que abriguem:

I. as florestas e demais formas de vegetação natural, definidas como de preservaçãopermanente pela legislação em vigor;

II. a cobertura vegetal que contribui para a estabilidade das encostas sujeitas a erosão e aodeslizamento;

III. as nascentes, as matas ciliares e as faixas marginais de proteção das águas superficiais;

IV. exemplares raros, ameaçados de extinção ou insuficientemente conhecidos da flora eda fauna, bem como aquelas que servem de pouso, abrigo ou reprodução de espéciesmigratórias;

V. outros espaços declarados por lei.

Além disso, podemos ainda encontrar na Lei Orgânica do Município de Manausa classificação da Ponta Negra como área de interesse ecológico:

Art. 296 – Está facultado ao Município criar, por critério próprio, reservas ecológicas oudeclarará áreas de relevante interesse ecológico.

Parágrafo único – Além do dispositivo no artigo 231, da Constituição do Estado, sãoconsideradas áreas de interesse ecológico da Ponta Negra, o Tarumã, a Ponte da Bolívia, aPraia do Tupé e a praia do Amarelinho, na orla do bairro do Educandos, e os igarapéslocalizados no Município de Manaus.

Por constituir-se um espaço de notável beleza cênica e que dispõe de umaestrutura que disponibiliza aos usuários entretenimento gratuito, possui grandeimportância dentro do contexto da cidade de Manaus. Assim, analisar-se-á a relaçãoentre os frequentadores da praia, sua balneabilidade e o direito a disfrutar do meioambiente ecologicamente equilibrado.

Periodicamente a Prefeitura Municipal de Manaus, realiza a análise dabalneabilidade dos cursos de água da cidade como forma de informar à sociedade os

10 Art. 6º da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, asegurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na formadesta Constituição”.

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locais próprios, ou não, para utilização como meio de lazer. Segundo a Fundação doMeio Ambiente de Santa Catarina11, balneabilidade pode ser definida como a avaliaçãoda qualidade da água para fins de recreação através de critérios objetivos. Tais critériosdevem estar baseados em indicadores a serem monitorados e seus valores confrontadoscom padrões pré-estabelecidos, e para que se possa identificar as condições debalneabilidade em um determinado local; pode-se definir, inclusive, classes debalneabilidade para melhor orientação dos usuários.

A Área de Proteção Ambiental (APA) do Tarumã-Ponta Negra, foi criada em1995 como categoria prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação(SNUC), devido a sua importância ambiental. O artigo 15 da lei nº 9.985/2000 queversa sobre o SNUC, conceitua tal área da seguinte maneira:

“uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributosabióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade devida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger adiversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade douso dos recursos naturais”.

Além deste dispositivo, a lei estabelece normas em relação às atividades devisita, e de pesquisa científica nas áreas, o que denota uma preocupação do PoderPúblico com o controle a ser exercido. Entretanto, analisando-se esta área emespecífico, observa-se que tais exigências possuem aplicabilidade questionável, jáque a área de proteção ambiental Tarumã – Ponta Negra, com limites estabelecidospela Prefeitura Municipal de Manaus, corresponde às áreas nos bairros Compensa,Nova Esperança, Lírio do Vale, Redenção, Santo Agostinho, Ponta Negra, Tarumã,Campos Sales, Parque São Pedro, Nova Vitória e Ismael Aziz. Frisando-se que taisbairros possuem acentuado desenvolvimento urbanístico, tanto para fins residenciaiscomo para fins comerciais.

A Praia da Ponta Negra, em si, é um dos principais cartões postais da cidade deManaus, fazendo jus a seu enquadramento em tal categoria. Sua estrutura éespecialmente voltada para o lazer da população visto que dispõe de calçadão paracaminhadas, ciclovia, quiosques, anfiteatro para realização de apresentações artísticasalém da praia, utilizada como balneário.

Segundo o portal de informação da Prefeitura de Manaus, a balneabilidade daPraia da Ponta Negra, está estritamente associada ao regime do Rio Negro, quedetermina a concentração de poluição nos pontos utilizados pelos banhistas. Segundo

11 FUNDAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA. Disponível em <http://www.fatma.sc.gov.br>.Acesso em: 23 set. 2008.

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a secretária de Meio Ambiente, Luciana Valente12, a explicação para a questão é que“os resultados das análises não são definitivos, pois estão sujeitos à sazonalidade, ouseja, das circunstâncias climáticas de determinada época do ano como vazante echeia”, o que justifica a assertiva.

Em relação à Ponta Negra, este fato beneficia os poucos banhistas quefrequentam o lugar na época das cheias, tendo em vista que em tal período, a faixa depraia restringe-se a um pequeno espaço, localizado no final da praia, antes do HotelTropical. Assim, pôde-se perceber que os banhistas utilizam esta pequena faixa e asescadarias para banhar-se. Já no período de vazante, a procura pela praia é bem maior,posto que a faixa de praia aumenta consideravelmente. Estando a maior concentraçãode banhistas durante o período da vazante, pode-se concluir que é neste período queos banhistas ficam mais vulneráveis às consequências da utilização de uma praia nãobalneável, já que neste período a poluição acaba concentrada.

Durante a aplicação dos questionários, pôde-se perceber que os frequentadoresda praia são atraídos ao lugar por dois motivos principais:

1. Afinidade com o local;

2. Fácil acesso.

A justificativa do primeiro motivo, na maioria dos casos, constituiu-se nocostume de visitar-se a praia, bem como na apreciação do lugar no tocante às suasbelezas naturais. Já para justificar o segundo motivo, alegou-se que os demaisbalneários da cidade possuem difícil acessibilidade, pois localizam-se em ramais nasestradas que cortam o município (AM-010 ou BR-174) ou, ainda, balneários comacesso via fluvial, o que elevaria os custos do dia de lazer. Já a Ponte Negra localiza-se ainda no perímetro urbano, contando com serviços suficientes de transporte coletivo.

Com o intuito de relacionar a balneabilidade da praia à percepção de seusfrequentadores, foi indagado aos entrevistados se estes tinham conhecimento de quehá estudos periódicos da Prefeitura Municipal de Manaus atestando a balneabilidadeda praia. Do total dos 20 (vinte) entrevistados, 13 alegaram não ter conhecimento detais estudos. Tal fato aponta para a falta de êxito das autoridades locais em informardados tão relevantes à população. A informação, neste sentido, traria uma noção maispróxima da realidade aos usuários da praia, quanto ao seu ambiente de lazer.

Um fato curioso, também observado, é que, das 13 (treze) pessoas que alegaramdesconhecer os estudos de balneabilidade feitos na área, 10 (dez) reconheceram que

12 PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS. Disponível em: <http://www.manaus.am.gov.br/noticias/qualidade-da-agua>. Acesso em 22 set. 2008.

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não deixariam de frequentá-la caso soubessem de sua impropriedade para banho.Demonstra-se, dessa forma, que os banhistas preferem assumir o risco de problemasde saúde pela contaminação por coliformes fecais a deixarem de exercer seu direitoao lazer naquela área, posto que o costume e as facilidades em fazê-lo, lhes fornecemsubsídios para um dia agradável de lazer.

A título de curiosidade, foi perguntado, também, se os banhistas consideravamque a conservação despendida à praia por parte da Prefeitura Municipal de Manaus,se dá de forma satisfatória. 12 (doze) pessoas responderam que a conservação vemsendo bem realizada, enquanto que 8 (oito) responderam que não. As 12 respostaspositivas levaram em consideração a diminuição visível da quantidade de lixo napraia, tendo em vista o aumento de lixeiros espalhados pelo complexo, ressaltando-se, também, a conscientização crescente dos usuários.

4. CONSIDERAÇÕES FINAISAssim, ao desenvolvimento do presente trabalho, foi possível verificar a ne-

cessidade de que o poder público deve fazer-se responsável pela efetivação de medi-das que garantam à população de Manaus, e mais especificamente, aos frequentadoresda praia da Ponta Negra, o livre usufruto desta área pública, respeitando-se os direi-tos ao lazer e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como maneira de efeti-var-se o direito à vida em toda sua plenitude (entenda-se, com qualidade de vida). Apraia objeto do estudo deve ser vista como de extrema importância urbanística den-tro do município de Manaus e fator fundamental para o desenvolvimento humano dapopulação que o desfruta.

O Direito à cidade traz à abordagem o destaque de uma de suas facetas: odireito ao lazer, intimamente relacionado à vida e ao desenvolvimento integral do serhumano. Este direito, na cidade de Manaus, encontra na Praia da Ponta Negra um dosmais relevantes espaços de efetivação, sendo, portanto, de acentuado interesse públicoa viabilização do direito ao lazer e também à informação sobre as condições ambientaisda área, visando à saúde da população usuária, haja visto que a maioria dosentrevistados desconhecia a existência de períodos impróprios para utilização da praiacomo balneário.

Outro aspecto a considerar-se é que de nada vale o estabelecimento de áreas deproteção ambiental, se não há o compromisso de fiscalização e efetivação do que diza lei em relação à gestão de tais áreas. Deste modo, há que se ter em mente a criaçãode institutos que visem à salvaguarda dos dispositivos legais em relação às áreasdessa natureza.

A Carta Magna que atualmente norteia o ordenamento jurídico pátrio possuipapel fundamental ao estabelecer direitos de cunho ambiental de maneira genérica,

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entretanto, para que se consiga realmente atingir as finalidades que propõe, há quehaver um esforço conjunto tanto dos diversos âmbitos legislativos (entenda-se aquelesda União, os estaduais e os municipais) quanto dos órgãos gestores do meio ambientebrasileiro.

Pôde-se perceber, ainda, que as leis que têm por objetivo regular as relaçõesdo homem com o meio ambiente urbano, devem respeitar outros direitos, sendo umesforço praticamente inválido aquele que estiver pautado em tratar o território urbanovalendo-se apenas de conhecimentos jurídicos. Por este motivo o chamado direito àcidade possui elevada abrangência, tendo em vista a diversidade de direitosrelacionados, como a dignidade da pessoa humana, sustentabilidade, informação,justiça social, habitabilidade, meio ambiente ecologicamente equilibrado e lazer.

Assim, buscou-se demonstrar com o presente trabalho as questões do direito àcidade, equilíbrio do meio ambiente e direito à informação e ao lazer na relação entrea praia da Ponta Negra e aqueles que a utilizam como balneário.

Importante ressaltar que as consequências advindas de uma má gestão desseterritório transpassam o contexto do Direito, envolvendo também profundosconhecimentos sociológicos, geográficos e históricos, por exemplo. Desta forma,poder-se-á construir um direito urbanístico pautado na observância de princípiosbásicos estabelecidos em 1988 na Constituição Federal, de forma democrática eatendendo aos interesses sociais.

5. REFERÊNCIAS

AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1999.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional, 1988.

CARTA MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE. Disponível em <http://www.conferencia.cidades.pr.gov.br>. Acesso em: 02 nov. 2008.

FERRARI, C. Curso de planejamento municipal integrado. 2. ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979. p. 631.

FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed.São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.

GUIMARÃES, Natália Arruda. O Direito Urbanístico e a Disciplina da Propriedade. Disponível em:<http://www.fcaa.com.br>. Acesso em: 22 set. 2008.

Manaus, Lei Orgânica do Município de Manaus. Manaus: Câmara Municipal, 1990. 158 p.

MANAUS, Lei nº 605 de 24 de julho de 2001, Institui o Código Ambiental no Município de Manaus edá outras providências. In: Diário Oficial do Município de Manaus, Manaus, v I, n. 318, 24 de julho de2001.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2004.

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SAULE Jr., Nelson. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática. Polis,2008. Disponível em: <http://www.polis.org.br>. Acesso em: 02 nov. 2008.

SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.

PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS. Notícias PMM. Disponível em: <http://www.manaus.am.gov.br/noticias/qualidade-da-agua>. Acesso em 22 set. 2008.

FUNDAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DE SANTA CATARINA. Disponível em: <http://www.fatma.sc.gov.br>. Acesso em: 23 set. 2008.

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Criação de Municípios Indígenas: Desafiosao Direito Brasileiro

CAROLINE BARBOSA CONTENTE NOGUEIRA1

Graduanda em Direito

FERNANDO ANTÔNIO DE CARVALHO DANTAS2

Doutor.

RESUMO: O trabalho proposto é resultado da Pesquisa de Iniciação Científica(PAIC/UEA/FAPEAM)3, no qual objetivamos analisar a possibilidade da criaçãomunicípios indígenas ou instâncias políticas específicas e diferenciadas no Brasil,buscando diálogo entre as legislações constitucionais dos países-membros doTratado de Cooperação Amazônica (TCA) que tratem sobre estas instânciaspolíticas peculiares, correlacionando-os as legislações brasileiras e a autonomiados Indígenas Amazônicos, abrangendo seus contextos jurídicos, políticos esociais. Trabalharemos este assunto a partir da garantia constitucional dada pelotexto do art. 231 e art. 232 da Constituição Federal Brasileira de 1988, quetratam do reconhecimento dos costumes, cultura e forma de organização socialdos povos indígenas, correlato ao seu art. 1º, que traz a cláusula pétrea do PactoFederativo, e ao art. 18, § 4º, que discorre sobre a criação de municípios.Observamos ainda o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, com interessanteaspecto sobre sua forma de gestão administrativa equilibrando a organizaçãoterritorial, a gestão e o uso das terras indígenas, possibilitando aos seus índios aadministração de seu espaço, conforme sua cultura. Buscamos por dispositivoslegais dos países membros do TCA e encontramos nas Constituições do Peru,Equador, Bolívia e Colômbia dispositivos que outorgam autonomia política,administrativa e jurídica aos seus indígenas, dentro de seus limites legais,possibilitando a organização e gestão suas terras conforme seus valores.Finalizando, afirmando que temos um grande desafio ao nosso Direito na

1 Bolsista do PAIC/FAPEAM/UEA. Graduanda em Direito pela Escola Superior de Ciências Sociais daUniversidade do Estado do Amazonas;

2 Orientador do bolsista PAIC/FAPEAM/UEA. Professor Coordenador do Programa de Pós-graduação Mestradoem Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.

3 Programa de Apoio à Iniciação Científica financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Amazonascom convênio com a Universidade do Estado do Amazonas.

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caminhada para efetivação dos direitos dos povos indígenas, desde a outorgadeste há 20 anos, quando da promulgação da CF/88, e para isso, é necessárioque haja relativização dos dogmas jurídicos, pluralizando o Direito Brasileiro,com o respeito às diferenças étnicas, sociais e culturais.

PALAVRAS-CHAVE: Direito; Índio; Constituição; Município; Autodeterminação.

INTRODUÇÃOTraremos ao debate acadêmico a problemática da criação de municípios

indígenas ou entidades políticas diferenciadas, buscando, através dos dadosbibliográficos colhidos nas legislações brasileira e dos países-membros do Tratadode Cooperação Amazônica, mostrar a possibilidade de implementação desta figurapolítica, bem como sua configuração política e administrativa.

Discutiremos esta necessidade/possibilidade de criação de município indígenano território amazônico ou entidade política semelhante, fundamentando-nos no textoconstitucional do art. 231 da Carta Magna Brasileira de 1988, refletindo as garantiasde reconhecimento da cultura, costumes, valores e organização social dos índiosconcomitantemente às redações dos arts. 1º e 18º, § 4º também da Lei Maior, querelacionam a cláusula pétrea do Pacto Federativo Brasileiro e a criação de municípios,correlacionando-os às propostas legais existentes nos países membros do Tratado deCooperação Amazônica.

No ensejo desta reflexão discutiremos as questões jurídicas, sociais e políticasda consolidação do texto constitucional e efetivação das garantias dadas aos povosindígenas brasileiros, observando as possibilidades legais da criação deste ente diversodos previstos no sistema federativo brasileiro a fim de atender a realidade AmazôniaBrasileira.

Partindo do multiculturalismo, do pluralismo jurídico e da interdisciplinaridadefaremos a leitura das necessidades abordadas pelos teóricos sobre implementação depolíticas públicas adequadas às populações indígenas amazônicas, em especial asdos aglomerados populacionais que estudaremos localizados na região do Alto RioNegro, formando verdadeiras cidades com ausência de planejamento urbano queatendam suas necessidades fundamentais de qualidade de vida.

1. UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DAPOPULAÇÃO INDÍGENA DO ALTO RIO NEGRO E UAUPÉS

Historicamente temos um povo massacrado e subjugado pelos interessesmercantilistas de acúmulo de capital, quanto maior o contato das populações indígenas

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com a cultura trazida pelo colonizador europeu, maiores os desastres, os genocídiose a destruição dos territórios para transformá-lo em lucro.

Traremos aqui, discussões apontadas por Andrello4, que tratam da leiturahistórica da região do Alto Rio Negro e Uaupés, falando desde as primeiras exploraçõesde Portugal até o início do século XX, e o objetivo presente em todas as épocas foi ode expandir ou consolidar as fronteiras e fixar os índios em núcleos de colonização,utilizando como recurso econômico a mão-de-obra destes, com enfoque para as “tropasde resgate”, muito utilizadas na colonização para conquista de escravos indígenas,citando passagens sobre clérigos carmelitas que fundaram os primeiros núcleos depovoamento a fim de atrair indígenas para catequizarem.

É de relevância citarmos tanto Diretório Pombalino quanto o período posterior,com suas medidas drásticas para com os índios, utilizando a política de descimentos,proibindo o uso da língua dos nativos, promovendo a integração destes com brancosatravés da miscigenação, entre outras atrocidades do império. Entre estas constataçõeshistóricas, temos outras como os conflitos entre brancos e índios, epidemias de doençastrazidas pelos europeus, o emprego da mão-de-obra indígena escrava, as políticasque tiraram estes povos de suas terras e trouxeram-nos aos aldeamentos para centralizaro controle dos mesmos, contribuíram por massacrar e diminuir substancialmente onúmero demográfico-populacional desta região amazônica.

Com a criação da Província do Amazonas, institucionaliza-se o programa de“civilização e catequese”, para atrair os chamados gentios às margens dos rios, afimde que fossem facilmente transferidos e engajados nos programas de serviço públicoda província. Porém, a nova Diretoria dos índios muda o percurso de transferência,em vez de estabelecerem-se ao longo do curso dos rios, iriam para as cabeceiras dosprincipais, Rio Uaupés e Içana.

Um exemplo das transformações nos dados populacionais das etnias é citadopelo referido autor, que nos mensiona listas de escravos feitos pelos descimentos,dentre eles os mais vistos, e os que abrangeriam um quarto do total eram os Boapé,Macu, Baniwa e Ariquema. Há listas de estudiosos da época que apresentavam ospovos das regiões dos rios Negro e Uaupés, no primeiro foram citadas 33 etnias:Manao, Paraviana, Uaranacocena, Carahiahi, Baré, Passe, Cocuana, Aroaqui, Tacu,Cubeuana, Coeuana, Duanáis, Jurí, Japíuna, Jaruna, Juma, Mendó, Maquiritare,Puiteno, Pexuna, Termairarí, Yurimarí, Uauuana, Xamá e Xapuena, algumas décadasmais tarde só se encontrariam 22 destas 33 etnias citadas, em vista de descimentos dealdeamentos, seja pela extinção ou assimilação dos remanescentes de uma na outra.

4 ANDRELLO, Geraldo. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauretê. São Paulo: UNESP: ISA; Riode Janeiro: NUTI, 2006.

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Atualmente são cinco empregadas ao longo do rio Negro e seus afluentes: Baré,Baniwa, Maku, Warekena e Cubeo(Ana). A configuração do Uaupés foi diferente,para o qual apontavam 25 etnônimos e hoje temos: Tariano, Tukano, Arapasso,Dessana, Pira-Tapuia, Wanao, Tuyuka, Miriti-Tapuia, Carapanã, Cubeo, Maku,Sussuarana, Tatu-Mira, Jurupari-Mira, Arara e Arara-Tapuia.

Andrello, ao longo de sua pesquisa histórica, aponta a hipótese sobre osurgimento de aldeamentos ao longo do alto Rio Negro e no baixo Uaupés, paraestabelecer o diálogo entre a história vivida por estas populações e a atual configuraçãogeográfica em que se encontram, e assim mostrar-nos que a realidade na qual vivemhoje os indígenas desta região vem sendo construída desde as primeiras políticascolonizadoras, e que estes povos passam até então pelas dificuldades acerca decondições urbanísticas dos adeamentos.

2. COMENTÁRIOS SOBRE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E DIREITOINDÍGENA

Após longo período de disputas e guerras que extinguiram muitos destes povos,temos o período de negação, onde os indígenas eram excluídos do Estado edesconsiderados como pessoas de direito. Mais tarde, tentando reverter a exclusão,tenta-se a política integracionista, que diz respeitar os povos indígenas, mas os deixaem sua coletividade, apenas para oportunizá-los a serem indivíduos e cidadãos dasociedade tutelada pelo Estado.

Durante séculos, aos índios foi negado o seu reconhecimento como povodiferenciado, principalmente no que diz respeito à vida civil brasileira, pois as leiscivilistas não continham nenhum instituto que pudesse comungar com as necessidadesindígenas. O Estatuto do índio (Lei 6.001/73) nasce em meio à ditadura militar, e nostraz uma forma regulamentar da tutela já prevista no Código Civil vigente, nãoacrescentando grandes contribuições à realidade dos povos indígenas, visto que apenasratificou a lei civil que coloca os assuntos citados sob tutela do direito público. Outroponto negativo deste estatuto foi sobre a questão das terras indígenas, pois aoreformular a emancipação do índio de sua cultura, também possibilita a devolução desuas terras à União5.

Com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, os direitos do índioforam consolidados e positivados e seus territórios foram reconhecidos. Segundo

5 SOUZA FILHO, Carlos F. Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá Editora, 2006.p. 103.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 369

Souza Filho6, a Constituição “reconheceu aos índios o direito de ser índio e de manter-se como índio”, extraindo do art. 231 a garantia de organizar-se socialmente, demanter seus costumes, línguas, crenças, tradições e o direito originário a terra.

Já nas décadas seguinte o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 34/93, quesancionou o texto da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)–agência da Organização das Nações Unidas (ONU) – sobre os povos indígenas etribais em países independentes, foi aprovado em 19/06/2002, e estabeleceu em nossopaís as diretrizes do primeiro documento internacional que tratou de temas relevantesàs populações tradicionais. Entre estes direitos temos o direito dos povos indígenas àterra e aos recursos naturais, à não-discriminação e a viverem e se desenvolverem demaneira diferenciada, segundo seus costumes.

3. A REALIDADE NAS CIDADES DE ÍNDIOS

É encontrada uma grande barreira na falta de políticas públicas queestruturassem o crescimento de suas populações, criando verdadeira cidades de índiosna região Amazônica, sem projetos estruturais urbanos de infraestrurura, saneamentobásico, água, saúde e educação em condições satisfatórias para o bom desenvolvimentodestes povos, gerando insegurança aos seus direitos outrora afirmados pela CartaMagna.

Nestas terras indígenas os números populacionais chegam a quatro milhabitantes, como os povos Tikuna, dois mil habitantes como na região do Alto RioNegro, com população multiétnica, e mais duas cidades crescem em Raposa Serra doSol, em Roraima, na fronteira com Venezuela e Guianas.

A urbanização atinge-os com grandes problemas estruturais já citados, e, apesardisto, ainda vivem de forma tradicional, em coletividade e com poucos bens deconsumo. Sem perspectivas imediatas de que a legislação brasileira trata soluçõescomo forma de administração e organização destas cidades que nascem à margem dasociedade Estatal. Temos exemplo na América Latina de reconhecimento dos direitosindígenas mais como direito de povos, como a Bolívia, que trouxe em sua Constituiçãode 1995, a garantia de que as autoridades étnicas de suas comunidades possam gerire aplicar suas próprias normas junto ao seu povo7.

6 SOUZA FILHO, Carlos F Marés. op. cit. p. 107.7 SOUZA FILHO, Carlos F Marés. Multiculturalismo e direitos coletivos in SANTOS, Boaventura de S. Reconhecer

para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.p. 102.

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4. ANALISANDO AS CONSTITUIÇÕES DOS PAÍSES-MEMBROS DOTRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA E A CONSTITUIÇÃOFEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Retomando objetivo inicial de nosso trabalho, no qual nos propusemos a iden-tificar nas Constituições dos Países do Tratado de Cooperação Amazônica a previ-são de Municípios Indígenas, correlacionando-os à autonomia das culturasindígenas amazônicas e as normas constitucionais, nos contextos jurídicos, polí-ticos e sociais, traremos ao debate a análise de parte das legislações e da biblio-grafia referente ao assunto. Assim vemos nas citações das Constituições Políticasa seguir relacionadas, que tratam seus povos indígenas de forma diferenciada,dando possibilidades de se organizarem conforme as necessidades de gerir suasterras:

Constitución Política de República del Bolívia, 1995:

Articulo 1º. Clase de Estado y Forma de Gobierno

I. Bolívia, libre, independiente, soberana, multiétnica y pluricultural, constituída em Repúblicaunitária, adopta para su gobierno la forma democrática representativa, fundada en la unión yla solidaridad de todos los bolivianos.

Articulo 171º. Reconocimiento de derechos de pueblos indígenas

II. El Estado reconoce la personalidad jurídica de Ias comunidades indígenas y campesinasy de Ias asociaciones y sindicatos campesinos.

III. Las autoridades naturales de las comunidades indígenas y campesinas podrán ejercerfunciones de administración y aplicación de normas propias como solución alternativa deconflictos, en conformidad a sus costumbres y procedimientos, siempre que no sean contrariasa esta Constitución y las leyes. La ley compatibilizará estas funciones con las atribucionesde los Poderes del Estado.

Constitución Política del Colômbia

Articulo 246. Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funcionesjurisdiccionales dentro de su âmbito territorial, de conformidad con sus propias normas yprocedimientos, siempre que no sean contrários a la Constitución y leyes de la República.La ley establecerá las formas de coordinación de esta jurisdicción especial con el sistemajudicial nacional.

Articulo 286. Son entidades territoriales los departamentos, los distritos, los municípios ylos territórios indígenas.

Articulo 287. Las entidades territoriales gozan de autonomia para la gestión de sus intereses,y dentro de los limites de la Constitución y la ley. En tal virtud tendrán los siguientes derechos:

Gobernarse por autoridades propias. Ejercerlas competencias que les correspondan.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 371

Administrar los recursos y establecer los tributos necesarios para el cumplimiento de susfunciones.

Participar en las rentas nacionales.

Constitución Política del Ecuador, 1998

Articulo 83. Los pueblos indígenas, que se autodefinen como nacionalidades de raícesancestrales, y los pueblos negros o afroecuatorianos, forman parte del Estado ecuatoriano,único e indivisible.

De los gobiernos seccionales autônomos

Art. 228. Los gobiernos seccionales autónomos serán ejercidos por los consejos provinciales,los concejos municipales, las juntas parroquiales y los organismos que determine la ley parala administración de las circunscripciones territoriales indígenas y afroecuatorianas.

Art. 241. La organización, competencias y facultades de los órganos de administración delas circunscripciones territoriales indígenas y afroecuatorianas, serán reguladas por la ley.

Constitución Política del Peru

Artículo 48º. Son idiomas oficiales el castellano y, en las zonas donde predominen, tambiénlo son el quechua, el aimara y las demás lenguas aborígenes, según la ley.

Artículo 89º. Las Comunidades Campesinas y las Nativas tienen existência legal y sonpersonas jurídicas.

Son autónomas en su organización, en el trabajo comunal y en el uso y la libre disposiciónde sus tierras, así como en lo económico y administrativo, dentro dei marco que la leyestablece. La propiedad de sus tierras es imprescriptible, salvo en el caso de abandono previstoen el artículo anterior.

El Estado respeta la identidad cultural de las Comunidades Campesinas y Nativas.

Artículo 149º. Las autoridades de las Comunidades Campesinas y Nativas, con el apoyo delas Rondas Campesinas, pueden ejercer las funciones jurisdiccionales dentro de su âmbitoterritorial de conformidad con el derecho consuetudinario, siempre que no violen los derechosfundamentales de la persona. La ley establece las formas de coordinación de dicha jurisdicciónespecial con los Juzgados de Paz y con las demás instancias del Poder Judicial.

Artículo 191º. Los gobiernos regionales tienen autonomia política, económica y administrativaen los asuntos de su competência. Coordinan con las municipalidades sin interferir susfunciones y atribuciones.

La ley establece porcentajes mínimos para hacer accesible la representación de género,comunidades nativas y pueblos originários en los Consejos Regionales. Igual tratamiento seaplica para los Concejos Municipales.

Nas constituições citadas acima, encontramos questões sobre soberania, terri-tórios indígenas, municipalidades, descentralização, e preservação do pluralismo

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cultural e a diversidade étnica de cada região, dando importância aos povos indíge-nas e reconhecendo suas formas de organização e administração territorial, bem comosuas autoridades e respectivas funções nas comunidades.

Da análise da Constituição Política Brasileira de 1988, citamos o seguinte artigo:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças etradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindoà União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreendea União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos destaConstituição.

§ 4º. A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão porlei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerãode consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, apósdivulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma dalei.

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados eMunicípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e temcomo fundamentos.

Observamos assim que falta-nos no Brasil legislação que possa suprir estaslacunas do Estado perante seus povos diferenciados, por isso a necessidade de iniciaresta discussão, a fim de elencar e analisar os mecanismos legais utilizados pelospaíses membros do Tratado de Cooperação Amazônica, no tratamento dado aos seuspovos indígenas, no que diz respeito ao reconhecimento de auto-organização e auto-gestão destes em seus territórios, e assim trabalharmos analiticamente as propostasde criação de município, ou ente político diferenciado, ou políticas públicasdiferenciadas, que possam respeitar os valores étnicos indígenas.

Sabemos também que há pensamentos fortemente conservadores nesta ques-tão no Brasil, pois levanta-se a bandeira da segurança jurídica da soberania nacional,em detrimento da consolidação dos direitos dos índios. Contudo, essa insegurança jurídi-ca é falsa, pois não é o objetivo das populações nativas tornarem-se um Estado indepen-dente, e sim ver materializar-se o respeito e o reconhecimento de sua terra, sua cultura,seu conhecimento, enfim todos os seus direitos abraçados pela Constituição de 1988.

5. DA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS, ENTES POLÍTICOS DIFERENCIADOSOU POLÍTICAS PÚBLICAS ADEQUADAS ÀS CIDADES INDÍGENAS

Iniciando uma reflexão acerca da solução para o problema abordado, temosalgumas opções que trataremos neste trabalho, dentre elas a criação de um município,

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com população indígena e que se adequasse às realidades destes povos em relação àgestão, administração e funções políticas e jurídicas, ou um ente político diferenciado,trazendo em sua essência peculiaridades que atendam à complexidade social quesão os povos tradicionais, ou ainda políticas públicas dentro dos contextos políticosem que já se encontram estas cidades de índios já citadas, porém modificando ospontos necessários para conformidade com as reais necessidades observadas nesteslocais.

Em relação à criação de Municípios temos, portanto, no art. 18, § 4º, os requi-sitos para a criação de deste ente federativo. Porém, neste ponto há mais uma questãoem debate, a lacuna perante a regulamentação legal para o dispositivo previsto noparágrafo 4º do referido artigo, visto que, após 20 anos da promulgação da CartaMagna, não há ainda a Lei Complementar Federal estipulando o período para elabo-ração de Lei Estadual que traga em seu escopo a criação de um novo município eainda os Estudos de Viabilidade Municipal não possuem os parâmetros definidos.Contudo, há na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei Complementar que trata daregularização do referido artigo, o PLP 293/2008, iniciado em maio de 2008, e envi-ado para apreciação no Senado Federal.

Quanto à entes políticos diferenciados, temos uma barreira maior que se tratado Princípio Federativo previsto no artigo 1º da Carta Magna, e portanto devendo termaiores estudos acerca deste ente a fim de não ferir tal princípio tido como CláusulaPétrea do Estado Brasileiro.

Em relação às políticas públicas diferenciadas temos uma possibilidade maiorde consolidarmos alguns dos temas abordados neste artigo. Como exemplo de políticaspúblicas urbanísticas que já estão em execução, temos o Plano Diretor de São Gabrielda Cachoeira, do qual citaremos o terceiro dispositivo:

Art. 3º. São princípios do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira:

I. Respeito aos direitos culturais e territoriais das comunidades indígenas e tradicionais;

II. Cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade;

III. Democratização do planejamento e gestão territorial.

Parágrafo 1º. Os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e tradicionais quevivem em São Gabriel da Cachoeira devem ser respeitados em virtude da importância dadiversidade dos grupos étnicos que formam a sociedade local, cada qual com seus própriosvalores culturais, relações socioambientais, territorialidades e formas de organização coletiva.

Vemos neste ponto, a forma diferenciada de análise de gestão territorial,administrativa e política de um município, possibilitando a realização de políticasespecíficas e o atendimento das realidades vividas por estes conglomerados indígenas.

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Porém, há necessidade de que a Constituição Brasileira traga maioresespecificações e aprofundamento, no que diz respeito ao reconhecimento dos direitosdos índios, de seus costumes, valores sociais, identidade cultural, etc., como foi vistonas Constituições dos Paises-membros do Tratado de Cooperação Amazônicaestudados neste trabalho, o reconhecimento e respeito das culturas tradicionaisindígenas, inclusive de suas formas de gestão e lideranças políticas e jurídicas.

CONCLUSÃO

Temos um grande desafio ao Direito Brasileiro na caminhada de efetivaçãodos direitos dos povos indígenas. Já passamos por longo período de negação até oreal reconhecimento na Constituição de 1988, hoje precisamos trazer ao cenárioacadêmico as reflexões elencadas neste artigo, bem como as demais consideraçõesfeitas por teóricos, para assim ratificarmos e efetivarmos os direitos reconhecidosaos índios na Lei Maior. Com a relativização dos dogmas jurídicos, encontraremos opluralismo em nosso Direito, respeitando as diferenças e minorias, nos educando aconviver com as diversidades étnicas e culturais.

REFERÊNCIAS

ANDRELLO, Geraldo. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauretê. São Paulo: UNESP:ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006.

DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. A Cidadania Ativa como novo conceito para reger as rela-ções dialógicas entre as Sociedades Indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro. Hiléia, Revista deDireito Ambiental da Amazônia, n. 2, Manaus, 2004.

SOUZA FILHO, Carlos F. Marés. Multiculturalismo e direitos coletivos in SANTOS, Boaventura de S.Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2003.

SOUZA FILHO, Carlos F Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá Edito-ra, 2006.

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura do Direito. SãoPaulo: Alfa Omega, 1994.

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Municipalização da Licença Ambientalem Manaus: Compatibilização Entre LicençaAmbiental e Urbanística

EDSON R. SALEME1

Doutor em Direito do Estado pela USP.

1. INTRODUÇÃO

Estatuído no 15º Princípio da CNUMAD (ECO/92), o princípio da precauçãorefere-se à necessidade da tomada de cuidados específicos por parte das autoridadeslicenciadoras, em face de situações que não exista segurança quanto à extensão dosdanos que possa causar determinada atividade ou empreendimento. Os danosambientais e urbanísticos podem ser irreversíveis ou mesmo irreparáveis causandoimpacto local além daqueles previamente imaginados.

Os princípios ambientais evitam não somente riscos ambientais que possamser calculáveis, mas antecipar aqueles que se mostram mais prováveis de ocorrer. Ocaput do art. 225 é incisivo ao referir-se à necessidade de proteção e preservação domeio ambiente, pelos mecanismos criados para tal finalidade. Isso sem contar com aexistência de normas que prevêem a compensação ambiental assim como aquelasque prevêem a necessidade de licença ambiental para determinados empreendimentoscausadores de impacto ambiental.

Contudo, o que se discute neste trabalho é a questão da emissão de licençaambiental pelos municípios, a conveniência ou não dessa possibilidade. Certamenteserá também abordada a possível aprovação do Projeto de Lei 3057/2000, do Dep.Fernando Chucre, que trata de nova regulamentação acerca do parcelamento do solo,regularização fundiária e lei de responsabilidade territorial urbana. Projeto polêmicoque vem causando acirradas discussões, mormente pelo fato de cometer aos municípiosprocedimentos ambientais que antes eram desempenhados pelos estados de suacircunscrição. Seria tal medida adequada ou não?

1 Professor do Curso de Mestrado em direito ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e da UNISANTOS.

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Já existem municípios no País, a exemplo de Porto Alegre, que obtiveram, doEstado respectivo, poderes suficientes para emitir licença ambiental em seus territórios.Entretanto, são municípios dotados de equipe técnica especializada, capazes de formaruma opinião consistente em termos de impacto ambiental. Entretanto, essa não é asituação de grande parte das municipalidades deste País. As equipes de servidoresmunicipais não contam com profissionais que possam pontuar danos eventualmentecausados pelas atividades

Os diversos atos normativos expedidos pelo CONAMA ou mesmo peloCONCIDADES com vistas à regulamentação de normas ambientais buscam evitaratividades causadoras de poluição ambiental ou mesmo de impacto local. Previamenteao licenciamento, é necessária manifestação de técnicos especializados para apreciaros projetos de empreendimentos ou atividades por meio de relatórios técnicospormenorizados . Ademais, há de ajustar-se o plano regional e local a fim de se lograruma composição para todos os aspectos ali envolvidos. A sustentabilidade, comoprincípio máximo do direito ambiental, indica a necessidade de estudos técnicosaprofundados em prol da necessária manutenção de um meio ambiente adequado.

Se por um lado existem dispositivos consagrando normas protetivas, relatóriosde impacto local e de vizinhança, apreciação dos técnicos, audiências públicas,consultas populares; por outro, existem empresários ansiosos em desenvolver e ampliarseus negócios, deste lado também estão as autoridades locais preocupadas em manter-se no poder e contentar a população local com maior numero de vagas edesenvolvimento das atividades na municipalidade; contudo, ambas as partes, porvezes, desconhecem o alcance, a médio e longo prazo, dos danos que a atividadepode causar. Nesse sentido, não somente pareceres técnicos devem embasar asdecisões, mas também consultas populares com a participação de entidades quepossam, de fato, auxiliar nessa pesquisa de impacto.

Atualmente, o Município de Manaus possui trâmite bem equacionado nosempreendimentos potencialmente poluidores ou que possam causar impacto ambiental,por meio das leis locais. Qualquer atividade potencialmente poluidora que desejar alise instalar deve buscar a zona industrial adequada, obter as licenças das autoridadesestaduais a partir do EIA-RIMA, a fim de obter a licença de instalação. Caso hajaimpacto regional ou mesmo que possa ensejar a intervenção do IBAMA, este tambémdeverá manifestar-se a partir desses e outros elementos que considerar relevantes.Caso sua pretensão dependa de manifestação das autoridades municipais para obtençãodas licenças urbanísticas, essa somente será expedida após a emissão da licençaambiental. Esse é o procedimento, aliás, de grande parte das municipalidades degrande porte, a exemplo das grandes capitais.

Desta forma, o trabalho se desenvolverá, em um primeiro momento, abordandoa questão da licença ambiental e suas peculiaridades e a atuação dos órgãos do

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 377

SISNAMA em sua emissão. A gestão dos estados na edição de licenças e como serealiza presentemente o licenciamento em termos de órgãos públicos. Nodesenvolvimento, será abordado o papel dos municípios e se, de fato, contam comaparato suficiente para atuarem como árbitro e juiz de um processo de licenciamentode interesse que ultrapassa seu território e interesse local. E, ao final, a conveniênciaou não da aprovação do projeto 3.057/2000.

2. ATIVIDADE LICENCIADORAO art. 3º, III, da Lei implementadora da Política Nacional do Meio Ambiente

determina ser obrigatória a licença ambiental para as atividades que venham a degra-dar, poluir ou promover alterações adversas ao meio ambiente. Caso haja duvidasquanto ao nível de poluição e sua inserção ou não na restrição referida, deve-se con-sultar a Resolução 237 do CONAMA, em seu anexo I, que consigna considerável rolde atividades e empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental. O tratamentoé genérico e permite identificação facilitada da atividade. Mesmo não se encontran-do nesse rol a atividade, deve-se consultar a autoridade licenciadora acerca da neces-sidade ou não de se proceder o estudo de impacto da atividade. Esta deverá,discricionariamente, observar se há ou não problemas ambientais naquela atividade.

As licenças ambientais estão prescritas no Decreto 99274/90, o qual indicourol exaustivo desses atos: licença prévia – LP; licença de instalação – LI e licença deoperação – LO. A primeira apenas atesta a viabilidade do início do empreendimento eprescreve requisitos básicos a serem respeitados, a fim de se conceder as licenças poste-riores necessárias à realização da atividade. A LI permite que o projeto seja implantado ea LO é outorgada quando todos os requisitos prescritos nas licenças anteriores foramdevidamente observados e atendidos e isso não dispensa novas avaliações e requisições.

O tramite procedimental das licenças obedecem a seguinte sequência: o primeiropasso é o pedido do empreendedor junto ao órgão competente, que deve emitir umtermo de referência. Como segundo passo, o empreendedor deve iniciar os estudos afim de se elaborar o estudo de impacto ambiental (EIA-RIMA); e o ato que conduzao rumo final é a realização de audiências públicas, a fim de se obter a opinião popularacerca do empreendimento. Somente após a verificação de todos esses procedimentosé que o órgão licenciador lavra um parecer técnico submetendo-o ao Conselho doMeio Ambiente; a partir de então será deliberada a concessão ou não da LicençaPrévia. Observe-se, outrossim, que a LP apenas atesta a viabilidade do projeto não asua efetiva realização.

O EIA, o qual deve embasar a decisão da autoridade ambiental, é essencialpara o licenciamento de atividades efetivamente poluidoras. Referido estudo contemplatodos os elementos indispensáveis para o desenvolvimento da atividade com o mínimo

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impacto, seja por meio de alternativas tecnológicas e de implantação; na faseoperacional observa a área geográfica a ser atingida além de seu enquadramentoentre os planos e programas governamentais e outros zoneamentos que possamcontemplar a inserção da atividade na região. O RIMA (Relatório de ImpactoAmbiental) é o resumo do EIA. Deve ser elaborado da forma mais coloquial possívelde maneira a viabilizar um entendimento do seu conteúdo a quem quer que seja. ORIMA, portanto, observa os pontos de maior relevância no EIA e informa a populaçãoacerca dos riscos que a atividade pode gerar em termos ambientais.

A obrigatoriedade da avaliação de impacto ambiental foi também prevista notexto constitucional vigente. Com efeito, estabelece o inciso IV do parágrafo primeirodo artigo 225 que, no âmbito das atribuições estatais e no caminho para a construçãode um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o Poder Público deveexigir, na forma da lei, o estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obraou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente.

Instrumento esse a que se dará publicidade tendo em vista a possibilidade derealização de audiências públicas que objetivam expor aos interessados o conteúdodos projetos apresentados ao Poder Público2.

É neste sentido, que afirma Edis Milaré ser o “mecanismo que dá vida a doisprincípios fundamentais de Direto Ambiental: o da publicidade e o da participaçãopública.”3

Sua função, ressalta Paulo Affonso Leme Machado4 ao citar Chambault, não éa de influenciar as decisões administrativas a favor das considerações ambientais emdetrimento das vantagens econômicas e sociais suscetíveis de advirem de um projeto.O objetivo é o de fornecer suporte à Administração Pública de modo que seja possívelsopesar os interesses em jogo no processo de tomada de decisão5.

3. LICENCIAMENTO MUNICIPAL

A competência para editar normas gerais da União, no que se refere à compe-tência concorrente, tem sido alvo de diversas discussões em sede jurisdicional. Oexemplo típico foi a Lei 8.666/93 (Estatuto das Licitações e Contratos Administrati-

2 Resolução CONAMA n. 009/87.3 Edis Milaré. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco, p. 358.4 Direito ambiental brasileiro, p. 221.5 Tomada de decisão inclusive com relação às atividades desenvolvidas pelo próprio Poder Público. A exemplo,

o artigo 3º da Lei n. 8.666/93 (Lei das Licitações) prescreve que a licitação destina-se a garantir a observânciado princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. Por seuturno, o artigo 12 descreve que nos projetos básicos e projetos executivos de obras e serviços serão consideradosdentre outros requisitos o impacto ambiental (inciso VII).

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vos), cujo conteúdo foi considerado inconstitucional, pelo simples fato de exorbitaro que se considerava “geral”. Contudo, o STF fez suas considerações e referida nor-ma mantém-se sem alterações. Em matéria ambiental, o entendimento tem sido o deque quanto maior a proteção ao meio ambiente mais apropriada será a norma. Nãodevem existir mecanismos flexibilizadores nas demais unidades federativas. Estadose Municípios podem sim complementar as normas, exigindo e determinando a obser-vância de fatores considerados relevantes, de acordo com suas peculiaridades, nostermos da legislação concorrente, do art. 24, I, VI, VII e VIII e os municípios combase no inciso II e VIII do artigo 30 da CF.

A estrutura federativa do Estado brasileiro oferece o denominado federalismode terceiro grau. Isso quer dizer que os municípios nacionais possuem autonomiapolítica e administrativa; possuem órgãos legislativos e um considerável aparatoadministrativo. Os que possuem grande número de habitantes necessitam de grandeagilidade, sobretudo no que se refere aos empreendedores que nele queiramdesenvolver suas atividades. A estrutura atual permite que a esses entes o oferecimentode determinadas vantagens às empresas que nele querem se instalar. Certamente osmunicípios compreendidos em zonas industriais ou mesmo regiões demarcadas dentrede uma região metropolitana possuem maiores vantagens a oferecer. O Estado, porvezes, ingressa na proposta a fim de proporcionar um ambiente atrativo às empresasque aí queiram desenvolver suas atividades.

A agilidade em se emitir licenças e outros atos capazes de proporcionarsegurança ao empreendedor passou a ser considerado item relevante nas propostasrecebidas pelos empresários. Por outro lado, como já referido, olvidam-se do aspectoambiental. Os que se preocupam com esse aspecto, por vezes, utilizam-se demecanismos legais ou mesmo subterfúgios para não atingirem espaços ambientalmenteprotegidos em centros urbanos.

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) proporciona meios viáveis para referidaproteção: o solo criado e a transferência do direito de construir. Assim, atualmente háuma tendência, mormente nos grandes centros urbanos, em se vincular a licençaurbanística ao cumprimento de normas ambientais, como é o caso da Municipalidadede Manaus. Essa tendência está plenamente de acordo com as competênciasconstitucionais, ou seja, aquela insculpida no artigo 30, VIII da CF, além da orientaçãoque deflui das decisões do STF, de que as municipalidades não podem diminuir asexigências propostas pelos demais entes federativos. Podem, de outra forma, aumentá-las de forma a proteger a municipalidade no aspecto ambiental ou outros que o PlanoDiretor tenha se inclinado.

Diversos são os instrumentos de intervenção urbanística previstos no Estatutoda Cidade. Destaca-se, por exemplo, a exigência que decorre do texto constitucionalpara que as cidades com mais de 20 mil habitantes elaborem seus planos diretores.

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Como o planejamento urbano é um instrumento de transformação da realidadelocal, os planos diretores tornam-se instrumental básico para a política dedesenvolvimento e expansão urbana (CF, art. 182, § 1º), pois “realizam umaradiografia do município no seu atual estado e identificam quais são os problemasque o município enfrenta e as suas necessidades para um futuro estimado em dezanos, possibilitando que os Prefeitos, Vereadores, comerciantes, industriários,investidores e munícipes de forma geral possam impedir o agravamento dos atuaisproblemas e planejar o desenvolvimento e crescimento do município”.6

Assim, não há como desvincular qualquer ato de licença da observância dasnormas federais e estaduais vigentes. Se algum município confere licença urbanísticaem discordância com tais legislações pode ser por fazer “vistas grossas” a determinadosempreendimentos ou mesmo edificações em áreas protegidas. Como referido, a dúvidapela possível inserção de atividade como potencialmente poluidora está nas mãos daautoridade administrativa. Esta, de acordo com os princípios ambientais, deveriasempre tornar o projeto mais detalhado de maneira a assegurar a plena defesa aoambiente. Isso também ocorre em decorrência de comumente se separar o urbanísticodo ambiental, seja por parte dos juristas como das autoridades públicas em geral.

Tanto o licenciamento (processo administrativo) como a licença ambiental (atoadministrativo) estão contemplados no art. 1º da Resolução 237/97 do CONAMA. Oprimeiro é procedimento administrativo tendente a viabilizar a instalação deempreendimento determinado. Sua natureza jurídica é discutida na doutrina; LEMEMACHADO (2000) indica ser ato administrativo discricionário; MILARÉ (2001)afirma ser licença administrativa com características próprias. A posição mais certeiraé aquela que aponta uma natureza mista. Discricionária quanto à emissão da licençae vinculado após a primeira manifestação da autoridade, com traços característicosde autoridade administrativa capaz de romper o prazo da licença na hipótese dedescumprimento das condições impostas ao empresário; além disso, há um prazopara cada licença, cujo término determina a busca por uma prorrogação que contemplanovos mecanismos fiscalizadores. Enfim, sua característica jurídica impõe umanatureza mista, capaz de fornecer à autoridade administrativa poderes suficientespara determinar sua cassação ou não prorrogação. Esses atos devem cumprir com oprincípio da finalidade, o qual determina seja o ato administrativo emitido de acordocom o interesse coletivo.

A tendência a uma agilidade administrativa capaz de pôr em risco a atividadelicenciadora, a ser observada em sede constitucional após a inserção do principio daeficiência no caput do art. 37 não deve macular o interesse público em preserva omeio ambiente. Destarte, a descentralização em matéria ambiental vem de maneira a

6 Alexandre Sturion de Paula. Estatuto da Cidade e o Plano Diretor Municipal, p. 17.

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integrar o município nessa gestão, pois é nessa esfera federativa que os indivíduospossuem maior integração e proximidade e as políticas públicas devem estar voltadasao atendimento da comunidade local, sempre considerando o desenvolvimentosustentável.

Ao cogitar-se da possibilidade da emissão das licenças por parte da importânciade adequação das administrações municipais às necessidades dos munícipes, sobretudodiante das restrições ao uso da propriedade e as disposições constantes no PlanoDiretor, fez com que se criassem mecanismos capazes de compatibilizar a licençaambiental e urbanística.

No Município de Manaus essa possibilidade está sendo cogitada, sobretudodiante da construção da Ponte Manaus-Iranduba, que irá modificar o entorno da RegiãoMetropolitana local, criada há pouco tempo. A sistemática de licença integrada foisatisfatoriamente efetivada no Município de Porto Alegre; considerável parcela deurbanistas opinam como sendo uma medida salutar, desde que o município tenhacondições de aferir os requisitos legais a fim de se emitir a respectiva licença prévia,monitorando as atividades de forma mais próxima, principalmente com o intuito darenovação da mesma. Essa posição foi reiterada também pelos dos ministros que jáocuparam a pasta do Ministério das Cidades em sessões presenciadas por esteacadêmico.

A atividade urbanística, em sua atuação mais concreta e eficaz é exercida noplano Municipal. Os planos de desenvolvimento urbanos desenvolveram-se em formade planos diretores que estabelecem regras para um desenvolvimento físico dascidades, ordenando a expansão dos núcleos urbanos do Município.

A concepção de planejamento urbano deixou de concentrar-se apenas no entornodas cidades e evoluiu ainda em outro sentido, passou a contemplar o interior dascidades; destarte “passou a abranger todo o território municipal – cidade, campo,área rural, como elementos indissociáveis e integrativos da unidade constitucionalprimária que é o Município7”.

Os Municípios com considerável número de habitantes sempre tiveramcompetência para elaborar planos urbanísticos; porém, poucos estabeleceram umprocesso de planejamento que atingisse de forma sustentável e permanente alocalidade. Não somente a falta de recursos técnicos, mas também recursos financeirospara sustentá-los, até mesmo recursos humanos e o pior deles seja “o temor do Prefeitoe da Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de atuaçãopolítica e de comando administrativo”8.

7 Hely Lopes Meirelles. Direito de Construir. Malheiros: São Paulo, 1976, p. 115.8 José Afonso da Silva. Direito Urbanístico Brasileiro. Malheiros: São Paulo, p. 101.

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Outro fator que se observa na dificuldade de implementação de grande partedos institutos urbanísticos é o temor do prefeito e da Câmara desagradar munícipesinfluentes e que se autodenominam “benfeitores” da localidade. Isso certamente trazgrandes problemas para o bioma local que recebe o impacto com vistas a receber debom grado investimentos para a municipalidade.

A questão do planejamento integrado é algo recentemente implantado. Algumastentativas exitosas já foram realizadas em municípios com equipe técnicaespecializada. Essas equipes buscam integrar o aspecto ambiental ao e urbano, com ofito de efetivar uma gestão urbana ágil e adequada aos padrões atuais.

O aspecto econômico nos municípios é visto como elemento deficitário. Talveza melhor articulação no âmbito territorial seria se o aspecto econômico fosse articuladopelos órgãos federais ou mesmo estaduais e o aspecto físico-territorial levado emconsideração apenas no nível local. O planejamento urbanístico deveria ser maisbem articulado no aspecto nacional levando-se em consideração os aspectoseconômicos e sociais; no município existiria apenas a distribuição desses elementosem ambiente físico-territorial. Isso não contrasta com a autonomia; ao contrario, acataa determinação da União elaborar os planos nacionais; os regionais, cometidos aosestados; os municípios, a partir dos estudos técnicos realizados pelas demais unidadesfederativas, poderia opinar no momento da elaboração genérica. Sua atuação, contudo,deveria ser ulterior às fases já mencionadas e importaria na distribuição do econômicoe social já relevado nos planos anteriores. A sequência segue o plano constitucional ea estrutura federativa brasileira.

É dessa forma que se pode afirma ser o planejamento urbanístico no Brasilainda em fase de desenvolvimento; a articulação entre unidades federativas éincipiente; há longas discussões e normas a serem elaboradas com o intuito de seefetivar uma ação coordenada e propícia ao desenvolvimento de acordo com ascaracterísticas regionais. Sequer as funções urbanísticas essenciais contempladas naCarta de Atenas (habitar, trabalhar, recrear e circular) não se logra atingir; o intuito éalcançar o que preceitua o artigo 182 da Constituição Federal, ou seja, buscar o realsentido da “função social da cidade” e assim atingir a tão almejada função social dapropriedade urbana e rural.

4. O PROJETO DE LEI 3.057/2000 E A CONVENIÊNCIA OU NÃO EMSUA APROVAÇÃO

Este Projeto de Lei, que trata dos parcelamentos do solo e das regularizaçõesfundiárias em área urbana, faz alterações substanciais em duas das mais importanteslegislações ambientais brasileiras: a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e o

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Código Florestal. Referido projeto deveria ser objeto de exaustivos debates noCongresso Nacional, por meio de das comissões temáticas e da sociedade civil.

Referido projeto refere-se aos parcelamentos do solo revogando a lei nº 6.766/79, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano. Trata também de regularizaçõesfundiárias em área urbana, buscando a regularização de propriedades em situaçãoirregular e em áreas de proteção ambiental. No que tange o Código Florestal, traz umequacionamento das áreas de Preservação Permanente – APPs, em zona urbana, poispermite utilização de APPs como áreas de lazer em parcelamentos e condomínios; hádeterminados dispositivos que permitem parcelamentos em locais atualmenteprotegidos pelo Código Florestal.

Talvez o pior do projeto seja a proposta por uma municipalização dolicenciamento ambiental, o que, como visto, traz riscos incomensuráveis ao meioambiente como um todo, pois confere às prefeituras amplo espaço decisivo. Sublinhe-se que a maior parte delas, conforme já afirmado por parte das mais importantesONGs brasileiras, estão desprovidas de recursos financeiros e humanos capazes deemitir opiniões acerca de matéria ambiental.

A pior critica gira em torno da dispensa de licenciamento estadual paraempreendimentos menores que 100 hectares e, aliado a esse aspecto, estimula aaprovação de projetos em etapas. Exclui a incidência do Código de Defesa doConsumidor nos loteamentos, causando riscos aos que adquirirem lotes. Empresáriosmal intencionados poderão lotear sem as atuais restrições legais. O licenciamentoúnico gera ambiente mais propício para a desvinculação do loteamento em seusaspectos preservacionistas.

5. CONCLUSÕES

É bastante comum nos municípios brasileiros que o urbano e o ambiental sejamtratados separadamente. Atualmente, o licenciamento fica a cargo dos Estados, queemitem a palavra final em termos decisivos acerca da conveniência ou não daempreitada e o seu respectivo aspecto ambiental. Quando há uma repercussão demaior amplitude regional, o IBAMA se manifesta para proteger o ambiente, de formacomplementar. Não exclui ainda a possibilidade do município opinar em termosambientais por intermédio de sua secretaria de meio ambiente. No Município deManaus a licença urbanística segue essa tendência e só é emitida após a comprovaçãoda licença ambiental.

Os municípios com grande número de habitantes e considerável número deatividades desenvolvidas em seus territórios condicionam a expedição da licençaurbanística à licença ambiental. Esta deve ser objeto de análise por meio dos estudos

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de impacto ambiental e exteriorizadas por meio de um relatório, este deve ser veiculadoamplamente à população local com o objetivo de se discutir ou não a conveniênciado desenvolvimento daquela atividade. Em que pese a necessidade de discussãopopular, sua opinião ainda pode ser desconsiderada, se a municipalidade justificarinteresse local na aprovação.

Ainda que existam polêmicas acerca dos limites das normas gerais estabelecidasnos parágrafos do artigo 24, é majoritário o entendimento, inclusive com parecer doSTF, no sentido de que as normas federais têm aplicabilidade abrangente e não podemser objeto de flexibilização por parte dos estados e municípios. Estas unidadesfederativas devem complementá-las com maiores exigências, sempre com o fito deatender os princípios da precaução e da prevenção. Eventual conflito deve ser decididocom base na norma que tutele de forma mais abrangente o bem ambiental. Assim, opreenchimento dos requisitos necessários para a emissão da licença urbanística deveincluir a observância da legislação federal e estadual, sobretudo quando se tratar deáreas protegidas pelo Código Florestal.

A propriedade urbana tem no direito de construir sua expressão econômica, oqual não é atribuído pelo Código Civil, mas sim pelo Plano Diretor, o qual contemplaa lei de zoneamento, uso e ocupação do solo. O denominado direito subjetivo estáplenamente condicionado ao atendimento dos requisitos impostos por referidosinstrumentos. Ademais, esse direito deve submeter-se aos regramentos ambientaisvigentes, que podem seriamente restringir o uso da propriedade, sobretudo com adesignação de áreas de proteção permanente e outros institutos capazes de inviabilizaro uso da propriedade de maneira plena.

O Projeto de Lei 3.057/2000 fragiliza o sistema de licenciamento ambiental. Aprática atual empregada por alguns municípios brasileiros, mormente os de maiorporte, de utilizar técnicas urbanísticas para proteger espaços ambientalmenteprotegidos nos centros urbanos, de acordo com o próprio plano diretor, além de secondicionar a emissão de licença urbanística à ambiental, atende plenamente asnecessidades de desenvolvimento sustentável. O projeto é inconsequente. Comete àsmunicipalidades a tarefa de licenciar projetos ambientais, sendo que a maciça maioriadas prefeituras, mesmo com número considerável de habitantes, não tem condiçõesde praticar tais avaliações ambientais. Além disso, outros interesses poderão concorrerafrontando o princípio do desenvolvimento sustentável e outros de cardeal importânciaprevistos implicitamente na Constituição Federal.

5. BIBLIOGRAFIA

FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 2008.

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo Brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

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MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 5 ed., São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2007.

PAULA, Alexandre Sturion de. Estatuto da cidade e o plano diretor municipal: teoria e modelos delegislação. São Paulo: Lemos e Cruz, 2007.

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O Licenciamento Urbanístico no Municípiode Manaus

JUSSARA MARIA PORDEUS E SILVA1

Mestre em Direito Ambiental.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Limitações Urbanísticas. 2.1. LicençasUrbanísticas. 3. O Plano Diretor do Município de Manaus. 4. O Código de Obrase Edificações do Município de Manaus. 5. Revisão e Extinção das Licenças. 6.Taxa de Licenciamento. 7. Transmissibilidade da Licença. 8. Infrações eLegalidade Urbanística. 9. Controle e Sanções das Infrações Urbanísticas noMunicípio de Manaus. 10 A Omissão do Poder Público Municipal e asconsequências para a cidade e seus habitantes. 11. A Responsabilidade doMunicípio e do Agente Público pela Omissão no Controle Urbanístico. 12. OPapel do Ministério Público e da Sociedade Organizada na defesa da OrdemUrbanística. 13. Conclusões. Referências bibliográficas.

RESUMO: Este trabalho aborda o Licenciamento Urbanístico no Município deManaus, partindo da análise de todo o procedimento de obtenção da licençapara construir, desde o pedido, pressupostos para obtenção, inclusive dashipóteses de revisão que podem ensejar revogação, extinção e cassação, taxa de

1 Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas, Mestre em Direito Ambiental pelaUniversidade do Estado do Amazonas. Doutoranda da Universidade de Coimbra. Coordenadora do Núcleo deDireito à Cidade do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas,Professora de Direito Administrativo da Graduação da Universidade do Estado do Amazonas, Professora doMódulo Sistema de Controle Urbanístico do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico daFaculdade Martha Falcão, Coordenadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico na Região Norte.Coordenadora da pesquisa qualitativa dos Planos Diretores nos municípios do Amazonas para a UFRJ/IPPUR.

2 Cf. Leonardo Valles Bento, Sociedade Civil é um conceito que já foi objeto de inúmeras interpretações, as quaiscontribuíram para que a expressão lograsse um potencial inesgotável de ressiginificação. O conceito surgecom as doutrinas do jusnaturalismo contratualista, ou melhor, essas doutrinas inauguram a tradição teórica doconceito de sociedade civil, que chegou aos dias atuais. A sociedade civil é vista como instrumento dedisseminação da ideologia socialista, cuja conquista é necessária a fim de se conquistar o Estado e transformara ordem econômica. Em contraponto, expõe, ainda o referido autor o pensamento de Gramei que enxerga asociedade civil muito mais como um obstáculo a ser enfrentado (de fato, ele define a sociedade civil burguesacomo um conjunto de trincheiras e casamatas para a defesa do capitalismo), do que um espaço neutroideologicamente onde a política e a liberdade encontram seu pleno sentido e realização (BENTO, 2003, p. 207-216).

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licenciamento, transmissibilidade, até as infrações urbanísticas e o correspondentedireito urbanístico sancionador. Inclui, ainda, a omissão do Poder Público e suasconsequências para a cidade e seus habitantes, a responsabilidade do Municípioe de seus agentes por omissão no controle urbanístico e o papel do MinistérioPúblico e da Sociedade Civil2 Organizada na defesa da ordem urbanística.

PALAVRAS-CHAVE: Direito de Propriedade; Função Social; Direito deConstruir; Limitações Urbanísticas; Licenciamento Urbanístico; InfraçõesUrbanísticas; Direito Urbanístico Sancionador; Omissão do Poder Público;Responsabilidade do Município e de seus agentes; Defesa do Ordem Urbanística;Papel do Ministério Público e da Sociedade Civil Organizada.

1. INTRODUÇÃO

À luz da Constituição Federal de 1988 – que condiciona o direito de propriedadeao cumprimento da função social, em seus arts. 5º, XXIII e 170, III – assim como doEstatuto da Cidade – que concebe a ordem urbanística como bem difuso3 a serprotegido – infere-se a necessidade de uma releitura do Direito de Construir, uma vezque a este direito se deu nova concepção, na medida que ficou subordinado, além dasrestrições relativas ao mau uso da propriedade de ordem privada, também àsimposições legais de direito público, que visam o bem-estar social, advindas do PlanoDiretor e das leis dele decorrentes.

A socialização do domínio particular e a evolução da propriedade-direito paraa propriedade-função passaram a ser matérias pertinentes tanto ao Direito de Construirquanto ao Direito de Propriedade, através da dicotomia imposta pelo interesse socialsobre o particular. Como bem refere Di Pietro (1999, p. 24-25) essa concepção já éencontrada nas teorias de São Tomás de Aquino4 e na doutrina social da Igreja5.

A liberdade de construir passa a ser limitada, não apenas pelo princípio danormalidade6 de seu exercício (que condena a concepção de mau uso, de abuso ouexcesso na fruição) – que hipoteticamente prejudica a segurança, o sossego e a saúdedos que habitam nas vizinhanças – mas, também pela teoria da relatividade dos

3 Bem difuso, para efeito deste trabalho, significa bem de titularidade difusa.4 “O proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora

pertençam a um só” (São Tomás de Aquino, In: Ferreira Filho, 1975, p. 66).5 Essa doutrina social da Igreja foi exposta na Ecíclica Mater et Magistra, do Papa João Paulo XXIII, de 1961, e

na Populurum Progressio, do Papa João Paulo II, nas quais se associa a propriedade à ideia de uma funçãosocial, ou seja, à função de servir para a criação de bens necessários à subsistência de toda a humanidade.

6 Segundo Meirelles (2000, p. 30), a teoria da normalidade foi sistematizada por Georges Ripert, em famosa teseapresentada em 1902, em Paris: De 1’Exercice du Droit de Propriété dans ses Rapports avec les Propriétés deVoisines.

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direitos7, universalmente aceita, e por leis e regulamentos que criam as denominadaslimitações administrativas, que, por sua vez, buscam o bem-estar no convívio dacoletividade nas urbes.

Há, assim, íntimas relações entre o Direito de Construir e o Direito Urbanístico,pois o primeiro, que era anteriormente integrado ao Direito de Propriedade, portanto,restrito ao direito privado, em sua atual concepção encontra-se submetido às limitaçõesadministrativas, imposições de ordem pública, revestidas de poder de imperium,clausuladas de imprescritibilidade, irrenunciabilidade e intransacionalidade8 Portanto,o Direito de Construir passa a ser regido por regime misto, limitado por normas dedireito público e privado, razão por que alguns de seus preceitos chegam a seinterpenetrarem, o que ocorre também em relação ao Direito de Vizinhança, de ordemexclusivamente privada.

As limitações urbanísticas9, segundo Toshio Mukai (1988, p. 75), compõemum largo campo de instrumentalização do Direito Urbanístico brasileiro porrepousarem sobre a base filosófica da solidariedade entre os componentes do gruposocial, onde todos estão sujeitos a suportar um sacrifício razoável e não indenizável,em favor da coletividade.

Por essa razão, as características dessas limitações se fundam nos princípiosda generalidade e da razoabilidade, pois, se o sacrifício não é geral, e, sim, particular,geraria direito à indenização para recompor o patrimônio lesado em face de sacrifíciodesigual de cargas públicas, o que estaria ferindo o princípio da igualdade.

Portanto, as limitações urbanísticas objetivam regular o uso do solo urbano,suas construções e ainda o desenvolvimento de ações visando melhorar as condiçõesde vida dos habitantes das áreas compreendidas nos espaços habitáveis, impondonormas de conforto, salubridade, estética, segurança e funcionalidade, normatizando

7 Meirelles (2000, p. 30) explica que Georges Ripert, para elaboração da teoria da normalidade, partiu da teoriada relatividade dos direitos As premissas fundamentais da teoria da relatividade repousam na concepção deaplicação dos postulados físicos à experiência jurídica, o que não significa a adoção de fórmulas matemáticas naresolução dos conflitos sociais. As concepções absolutistas se tornaram insustentáveis com o advento da teoriada relatividade. (Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto508>. Acessoem: 30 ago. 2004). Esta teoria permite, por exemplo, a flexibilização de direitos individuais em benefício dedireitos coletivos e do bem-estar social.

8 Intransacionalidade, nesse ponto, significa dizer que tais disposições legais – limitações administrativas – nãopodem ser negociadas ou deixar de ser exigidas pelo órgão fiscalizador da Municipalidade. Todavia é sabido sercomum, a partir da edição da Lei da Ação Civil Pública. Termos de Ajustamento de Conduta intermediados peloMinistério Público e acordos homologados em juízo, nos quais a parte infratora se submete a obrigações defazer, como por exemplo, dar outra área para uso comum do povo em troca, em face da teoria do “fato consumado”ou irreversibilidade ao status quo ante (ex.: construção em área non edificandi).

9 Limitações urbanísticas são ônus pessoais (positivos ou negativos) impostos por lei ao proprietário, de formageral e, geralmente, inidenizáveis, visando ordenar o espaço urbano. (Vide item 5.1, do capítulo V).

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o trabalho urbano, as obras públicas e particulares, com a única finalidade de facilitara vida de seus ocupantes.

Celso Antônio Bandeira de Melo (1969, RDP nº 9, p. 57), ao referir-se aoassunto, acentuou: “a propriedade, assim como a liberdade, necessita ajustar-se aosinteresses coletivos, e a atividade estatal condicionante desses fins é designada ‘poderde polícia’”10.

Entretanto, observa-se claramente a existência de construções desenfreadas,sem qualquer planejamento urbanístico e ambiental, não obstante a maioria dosmunicípios brasileiros contar com Planos Diretores em consonância com o dispostono Estatuto da Cidade, leis de Parcelamento do Solo federal e local, leis de ZoneamentoUrbano e Código de Obras e Edificações, o que faz a incoincidência entre a cidadelegal e a cidade real11. E a gigantesca ocupação ilegal do solo urbano representa paraalguns autores, a exemplo de Maricatto (2002, p. 122), a exclusão urbanística12.

Para Rizzardo (1998, p. 204), a expansão desordenada dos povoamentos,carentes de condições mínimas de infraestrutura, notadamente quanto ao sistema deágua, esgoto, vias públicas e áreas verdes, transformou as cidades em problema crônicopara as municipalidades. Assim, o Poder Municipal, ao implantar os requisitos legaisurbanísticos, sobretudo quanto às exigências sanitárias mínimas, passou a se verobrigado a suportar pesados ônus, por conta da impune irresponsabilidade dosloteadores.

E da feita que a maioria da população brasileira concentra-se na área urbana, aexemplo de Manaus (onde cerca de 70% dos habitantes do Estado do Amazonas vivenesta capital13), um meio ambiente ecologicamente equilibrado depende doplanejamento urbanístico das grandes cidades. A impunidade no descumprimento

10 Ao mesmo tempo que a CF e as leis concedem direitos, os condicionam ao bem-estar da coletividade, assim opoder que o Estado tem de limitar o uso, gozo, fruição e destruição de bens, direitos e atividades, em prol dacoletividade e do bem estar social, se chama poder de polícia.

11 Rolnik (2003, p. 13) aborda o tema em relação à cidade de São Paulo, na sua obra A Cidade e A Lei: “[...] isto époderosamente verdadeiro para a cidade de São Paulo e provavelmente para a maior parte das cidades latino-americanas, ela determina apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que o produto – cidade – nãoé fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido na lei, mas da relação que esta estabelece com as formasconcretas de produção imobiliária da cidade. Porém, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba pordefinir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadanialimitada [...] quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como é o caso de nossascidades de maiorias clandestinas, é aí onde ela é mais poderosa no sentido de relacionar diferenças culturaiscom sistemas hierárquicos.”

12 A autora tece uma crítica ao urbanismo brasileiro – entendido como planejamento e regulação urbanística – nosentido de não ter comprometimento com a respectiva realidade, na medida em que abrange apenas uma parteda cidade.

13 Dados do IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em 15 out. 2008.

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das normas urbanísticas e ambientais, portanto, deve ser combatida, buscando-seuma maior eficiência no seu controle, em vista dos ecossistemas e, consequentemente,da própria subsistência humana14, ainda que o sucesso desse controle não se dê porobediência espontânea das normas, mas através de imposição de terceiros, como doPoder Judiciário.

No município de Manaus, não são raros os loteamentos que sequer atendam asexigências da lei federal do Parcelamento do Solo, legislação municipal e Código deObras e Edificações, no que se refere à metragem dos lotes, aos espaços verdes, àárea de circulação, de lazer e equipamentos sanitários, necessários ao atendimentodas condições mínimas de saúde pública da população15. E como já foi anteriormentemencionado, como 70% (setenta por cento) da população de todo o Estado doAmazonas concentra-se na área urbana de sua capital, é de fundamental importânciaa intervenção da Administração Pública para regular o uso do solo, propiciando umdesenvolvimento harmônico na cidade, através do planejamento urbano e deinstrumentos como o licenciamento urbanístico.

Não obstante todas as exigências legais, que são previstas em relação aosloteamentos urbanos, torna-se comum, após aprovação do projeto pelo órgãofiscalizador municipal, a existência de alterações posteriores por parte das construtoras,com o intuito de efetuar o máximo de ocupação do solo, visando lucro desmesurado,em detrimento das exigências urbanísticas e ambientais. Também não se pode descartara omissão do órgão municipal fiscalizador com essas irregularidades, por ocasião daconcessão da licença prévia e da definitiva (do “habite-se”)16.

Desse modo, o planejamento e a legislação tornam-se ineficazes, se não houvermeios efetivos de proteção da legalidade urbanística, ou seja, de fiscalização documprimento dessas normas. Em Manaus, observa-se, concretamente, abundantelegislação e suficientes instrumentos de controle para se fazer cumprir as normasnorteadoras dos loteamentos e edificações, todavia, a municipalidade carece de infra-estrutura e de um ordenamento de ações. E, mesmo os meios de controle repressivosexistentes e possíveis de serem utilizados pela própria Administração, como por

14 A Constituição Federal estabelece no art. 225 a preservação ambiental como forma de garantir a subsistênciadas presentes e futuras gerações.

15 Essa realidade está presente em Manaus não apenas em bairros habitados por pessoas de baixa renda – a exemploda Nova Cidade, onde foi totalmente devastada a área verde – mas, também, em condomínios de classe média,nos quais os construtores, em busca de lucro desmensurado, desrespeitam a legislação urbanística, edificandoalém do permitido, suprimindo áreas públicas obrigatórias, como no Conjunto D. Pedro, onde a área verde foinegociada pela associação de moradores e hoje é ocupada por um estabelecimento de ensino. Outros casos serãoapontados no corpo deste trabalho.

16 No empreendimento Manaus Parque, no bairro do Vieiralves, foi substituída a área destinada à circulação porgaragens adicionais a serem negociadas pelas construtoras com os proprietários das unidades, além de teremsido construídos mais andares nos edifícios do que os aprovados no projeto aprovado.

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exemplo, a revisão de licenças, mediante anulação, revogação, cassação e declaraçãode caducidade, em sua maioria provocada através de denúncia de titularidade popular,raramente são usados.

Ao se considerar, de um lado, a importância da cidade de Manaus, não apenaspara a Amazônia ocidental, mas num contexto universal, e que essa realidade vem secontrapor, não apenas às questões urbanísticas estéticas e arquitetônicas, mas,sobretudo, frente à forte tendência mundial – a de conservar a personalidade históricae cultural das cidades, assim como seu meio ambiente, por razões sociais, econômicase até mesmo de sobrevivência humana – vê-se a necessidade da sistematização deum modelo jurídico que torne eficiente o controle urbanístico e seja capaz de contero urbanismo político17 que “atropela” as leis.

Na realidade, a ocupação desordenada dos espaços urbanos, gerada pela ex-plosão demográfica e a ação predatória do homem, traz grandes problemas urbanís-ticos e ambientais para a cidade, como a poluição, a formação de bairros periféricos,sem infra-estrutura, a desordem urbana com a prática de funções sociais numa áreaem desacordo com o zoneamento, assim como aos princípios urbanísticos e disposi-tivos como, por exemplo, o art. 182 da Constituição Federal de 1988.

Este trabalho propõe medidas e ações específicas a serem implementadas, nosentido de que a legislação urbanística de Manaus seja cumprida efetivamente pelasconstrutoras, especificamente em relação às limitações administrativas existentes nalegislação pertinente – normas urbanísticas, normas ambientais, códigos de obras ede posturas – na medida em que “[...] as normas urbanísticas devem ser formuladasobjetivando resguardar os interesses e direitos coletivos, evitando que a implantaçãodo empreendimento traga impacto indesejável para a cidade como um todo” (SILVA,1999, p. 27).

Em Manaus, como é público e notório, a maioria dos bairros periféricos foiformada através de invasões. Historicamente, portanto, a atuação do urbanismo foi ade criar uma infra-estrutura após ocupações desordenadas18. Manaus pode serconsiderada um exemplo da prática, também histórica, de infrações urbanísticas, assimcomo também de agressões aos Recursos Naturais, haja vista de um lado, o costumedos menos favorecidos de se instalarem às margens dos igarapés com a complacênciado Poder Público19 e, de outro, a dragagem e a poluição dos límpidos igarapés de

17 Urbanismo político é aquele advindo de interesses políticos, sem qualquer embasamento técnico.18 Zumbi, Novo Israel, Coroado, São José etc. são bairros formados através de invasões, que já foram urbanizados.19 Em algumas situações verifica-se que, apesar do Poder Público Municipal haver sido conivente com a ocupação

das margens dos igarapés e, inclusive ter cobrado IPTU dos respectivos moradores, quando havia necessidadeda desocupação do local em face de obra pública, alegava a Municipalidade que os moradores não tinhamqualquer direito porque estavam ocupando área non edificandi.

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águas doces existentes outrora em Manaus, o que descaracterizou profundamente acidade.

Nesse contexto, configurou-se o seguinte problema: ante o visível desordena-mento urbano da cidade de Manaus, que ações podem ser implementadas frente àfalta de efetividade20 das formas e instrumentos de controle do licenciamento urba-nístico?

A partir dessa indagação, estabeleceu-se, como objetivo geral deste trabalho,sistematizar a doutrina, a legislação urbanística e as ações de controle, especificamenteaplicáveis ao licenciamento urbanístico.

2. AS LIMITAÇÕES URBANÍSTICAS

Sendo uma das sete formas de intervenção do Estado na propriedade21, alimitação administrativa22 é ônus geral, advindo de lei, em regra gratuito, imposto aoproprietário de modo positivo, negativo ou permissivo, que vem a limitar o uso, gozoe fruição de seu imóvel, visando sempre o bem-estar coletivo (GASPARINI, 2003,p. 616).

Classificam-se as limitações administrativas em três espécies: as urbanísticas,as de higiene e de segurança, e as militares. O objeto de analise do presente estudo,entretanto, limita-se às limitações urbanísticas.

As limitações urbanísticas, segundo Meirelles (2000, p. 103-104),

são todas as imposições do Poder Público, destinadas a organizar os espaços habitáveis, demodo a propiciar ao homem as melhores condições de vida na comunidade. Entenda-se porespaços habitáveis toda área em que o homem exerce coletivamente qualquer das seguintesfunções sociais: habitação, trabalho, circulação, recreação.

20 De acordo com Ferraz Júnior, “[...] a efetividade [...] tem antes o sentido de sucesso normativo, o qual pode ounão exigir obediência. Exigindo obediência, devem-se distinguir, presentes os requisitos fáticos, entre aobservância espontânea e observância por imposição de terceiros [...]. Uma norma é, assim, socialmente ineficazde modo pleno se não for observada nem de um modo nem de outro”.

21 As formas de intervenção na propriedade, segundo Gasparini (2003, p. 619), são: limitação administrativa,servidão administrativa, tombamento, ocupação temporária, requisição, desapropriação e parcelamento eedificação compulsórios.

22 Ressalta-se que Silva (2000, 386-387) sustenta posicionamento diferente tanto de MEIRELLES (2000, p. 84-89) quanto de GASPARINI (2003, p. 629-621), denominado esse instituto de “restrição” administrativa, o quedefine como limitações impostas às faculdades de fruição, de modificação e de alienação da propriedade nointeresse da ordenação do território, entendendo, ainda, que limita o caráter absoluto da propriedade e atinge afaculdade dominial.

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Essas limitações de ordenação do espaço urbano advêm do poder de polícia,ou seja, da “faculdade de que dispõe a Administração pública para condicionar erestringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício dacoletividade ou do próprio Estado” (MEIRELLES, 2000, p. 104) e são preceitos deordem pública. São ônus pessoais e genéricos, oriundos, em regra, de leis, atingindotodas as propriedades que se encontrem naquela determinada situação e, portanto,recaindo no ônus geral da sociedade. Em outras palavras, pode-se dizer que sãoinegociáveis e inidenizáveis, assim como recaem sobre o proprietário e não sobre oimóvel, atingindo a todos, indistintamente.

Sua finalidade é sempre o bem-estar social e se distinguem em três espécies:positiva (gera uma obrigação de fazer ao proprietário); negativa (induz uma obrigaçãode não fazer ao proprietário) e a permissiva (impõe ao proprietário uma obrigação depermitir ou suportar, ou seja, deixar fazer determinada ação do Poder Público em suapropriedade).

Os superiores interesses da comunidade justificam as limitações urbanísticas de toda ordem,notadamente as imposições sobre área edificável, altura e estilo dos edifícios, volume eestrutura das construções; em nome do interesse público a Administração exige alinhamento,nivelamento, afastamento, áreas livres e espaços verdes; impõe determinados tipos de materialde construção; fixa mínimos de insolação, iluminação, aeração e cubagem; estabelecezoneamento; prescreve sobre loteamento, arruamento, habitações coletivas e formação denovas povoações; regula o sistema viário e os serviços públicos e de utilidade pública;ordena, enfim, a cidade e todas as atividades das quais depende o bem-estar da coletividade(MEIRELLES, 2003, p. 498).

Quanto ao poder de polícia, em matéria urbanística, trata-se de uma questãobastante discutida pela doutrina. Para Gordillo (1975, T2/XII-1 e XII-2), esse poderé apenas uma parte das funções do poder estatal, que é uno:

Por de pronto, es de recordar que el aditamento de “poder” es equivocado por cuanto elpoder estatal es uno solo, y ya se vio que la Ilamada división de três “poderes” consiste, porum lado, em uma división de “funciones” (funciones legislativa, administrativa, jurisdicional),y por el outro em uma separación de órganos (órganos legislativo, administrativo yjurisdiccional).

Em tal sentido el “poder de policia” no seria em absoluto um órgano del Estado, sino emcambio uma espécie de facultad o más bien uma parte de alguna de Ias funciones mencionadas.

Bandeira de Mello (1947, RDA 9:55) comunga, em parte, com esse posiciona-mento, todavia, vislumbra utilidade prática na noção de polícia, pois admite a distin-ção da chamada atividade de polícia em outras atividades, assim como, alerta, quenão se deve confundir propriedade com direito de propriedade, na medida em queesta última expressão só é admitida em dado sistema jurídico, em face do contornolegal que lhe tenha sido dado.

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Manifestação bastante reverenciada a esse respeito é a de Renato Alessi23,através da qual, infere-se de que se excluem da definição de poder polícia as atividadesproibidas de modo absoluto na norma, ou seja, aquelas em relação às quais não sobramnenhuma discricionariedade ou “faculdade de mérito” à Administração. Todavia,incluem-se as situações que, embora a lei proíba genericamente a atividade, deixa aoalvedrio do Poder Público derrogar a proibição, conforme a análise de cada casoconcreto, a exemplo do que se dá com as autorizações (SANTOS, 2001, p. 77).

Entretanto, não se pode excluir do conceito do poder fiscalizador e reguladorda ordem urbanística as atividades vedadas de modo absoluto pela norma, ou seja, asinfrações urbanísticas, justamente porque cabe a esse poder de polícia, não apenasenvidar medidas preventivas de verificação da conformidade ou não com a lei, mas aaplicação das respectivas medidas de polícia repressivas, dentre elas, as penalidades,como, por exemplo, as que seriam cabíveis nas hipóteses de construções em áreasverdes ou em área non edificandi à beira de igarapés, fatos corriqueiros na cidade deManaus.

Sem olvidar do controle concomitante, que será abordado no decorrer desseestudo, é preciso que reste clarividente que todos são momentos de controle dalegalidade urbanística, através do poder de polícia, com aplicação de medidas própriasa cada um deles.

Bem a propósito, Di Pietro (1999, p. 31-34) classifica as medidas de políciaem: preventivas e repressivas. Dentre as preventivas, a autora insere a autorização, alicença, a aprovação e os atos de fiscalização em geral. Como repressivas cita a autoraa anulação e a cassação de alvará, o embargo de obra, a demolição da obra ou suainterdição compulsória, além de sanções, como a multa. Dentro da competênciaurbanística, a autora destaca as medidas de polícia que dizem relação ao uso de bensde uso comum do povo, incumbindo ao Poder Público zelar para que não sejamoutorgadas autorizações ou permissões contrárias ao interesse público ou quecomprometam a sua principal destinação que é a circulação.

Di Pietro (1999, p. 32), entende que, embora a aprovação das medidaspreventivas seja um ato vinculado, como o é a licença, mesmo se o projeto não satisfizera plenitude das exigências legais, não pode lhe ser negado o direito de adequação oucorreção, o que passa a lhe ser conferido. Quanto a esse aspecto, não se vê divergência,como será verá mais à frente, quando se tratar do procedimento para aprovação deprojeto no Município de Manaus (§ 1º do art. 25 do Código de Obras e Edificações).

23 Esse posicionamento de Renato Alessi é citado por Celso Antônio Bandeira de Melo, Lúcia Valle Figueiredo eMárcia Walquíria Batista dos Santos em suas obras consultadas.

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Após a aprovação do projeto, tem-se um outro ato vinculado, que é a expediçãodo “alvará de licença”, considerando-se que o direito de construir, embora regido porregime misto, não deixou ser decorrente do direito de propriedade. Como exemplo,cita-se o artigo 1299 do novo Código Civil, de 10 de janeiro de 2002, que mantém amesma redação do art. 572 do Código Civil de 1916 (Idem, ibidem): “O proprietáriopode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dosvizinhos e os regulamentos administrativos”.

2.1 As licenças urbanísticas

O direito de edificar no próprio solo é um direito reconhecido abstratamente.Contudo, na prática, se vê submetido a um regime especial no ordenamento urbanístico,que permite classificar a propriedade como de estatutária, na medida em que osproprietários se vêem obrigadas à obtenção de prévia licença.

Um dos princípios tradicionais de Direito Urbanístico é a subsunção de quetoda a atividade, que implique controle prévio do uso artificial do solo, tem a finalidadede assegurar a conformidade desses princípios às normas aplicáveis em cada caso.

A licença urbanística é, pois, um instrumento de controle prévio da atividadeedilícia, verificando se a obra projetada está conforme e compatível com a ordenaçãourbanística aplicável, permitindo que seu objeto básico obedeça ao conteúdo da próprialicença, normalmente definido no projeto técnico apresentado.

Esse meio de fiscalização preventiva é uma das formas de intervenção do Estadona propriedade e atividade de seus administrados, para comprovar que não estãosendo contrariados os interesses gerais. Concede-se o direito ao proprietário de usare desfrutar de sua coisa, como realizar obras e construções, mas com as limitaçõesestabelecidas em lei.

Assim, as licenças urbanísticas não são consideradas como desenvolvimentode atividades de planejamento, mas de exteriorização da atuação de regulaçãourbanística, exercendo uma função de instrumento de polícia urbanística. E, se de umlado, as licenças de edificações são autênticos atos de execução dos preceitos da lei edos planos urbanísticos, de outro lado, configuram-se em instrumento de controle delegalidade urbanística.

Já superada a estéril polêmica que dividia a doutrina sobre a natureza jurídicadas licenças urbanísticas – há os que sustentavam que fosse um ato declaratório dedireito, a exemplo de Tomás-Ramon Fernández (2004, p. 208), em seu clássico Manualde Direito Urbanístico e os que defendem ser um ato constitutivo de direito, a exemplode Estévez Goytre (2002, p. 457-458), em obra de título idêntico – pode-se afirmarque a licença, desde o momento que se limita a comprovar que o pedido está conformeo planejamento aplicável, é um ato meramente declarativo de direito.

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Isso parece claro ao se partir da premissa de que as licenças urbanísticas sãoatos administrativos de poder e autoridade pública, cujo objetivo é o de controlarpreviamente a atuação do administrado, determinando o conteúdo do direitourbanístico aplicável ao caso concreto, declarando e de nenhum modo constituindo,o direito de propriedade, submetido ao princípio da legalidade urbanística, outorgando,conforme as previsões da legislação de ordenamento do solo e do planejamentourbanístico, uma garantia de sua observância pelo proprietário, como assevera Lemus(1999, p. 203): “[...] en definitiva, la licencia municipal constituye um acto de controlpreventivo, meramente declarativo de um derecho preexistente dei solicitante,atribuído por el ordenamiento civil y urbanístico”.

Entretanto, para Di Pietro (1999, p. 32), essa licença não pode ser revogadasem que o proprietário seja devidamente indenizado, pois implica reconhecimentodo direito de construir. Parte da jurisprudência pátria tem reconhecido esse direitocomo um direito subjetivo, todavia, somente a partir do momento em que o proprietáriodê início à construção24.

A licença urbanística, de maneira geral, está condicionada ao cumprimentoefetivo de todas as obrigações e cargas que se impõem ao proprietário, dentro dosprazos previstos na legislação.

A doutrina brasileira, por sua vez, quando trata da natureza jurídica da licençase atém à questão de ser ato discricionário ou vinculado, não analisando o aspecto deser ato declaratório ou constitutivo como o direito espanhol25. Quanto a esse ponto,não existe divergência, pois há unanimidade em se afirmar ser um ato vinculado ouregrado, pois só se outorga essa licença sobre as previsões da lei e dos planosurbanísticos aplicáveis. Cabe à Administração limitar-se a avaliar as circunstânciasobjetivas do caso concreto, ou seja, se estão ou não compatíveis com a legislação queordena o solo urbano, como refere Santos (2001, p. 109).

Se as solicitações da Administração forem atendidas e tudo estiver em ordem e de acordocom a legislação edilícia, a licença deverá ser outorgada. Por esta razão é que a licença temcaráter vinculado, não podendo ser refutada, por exemplo, se existir decreto considerando oimóvel de utilidade pública para fins de desapropriação. Somente esta consumada autorizariao Poder Público a indeferir o requerimento do interessado.

Meirelles (2000, p. 187) também classifica como ilegal a recusa de aprovaçãode projeto de construção ou mesmo de plano de loteamento, pelo fato de haver sido

24 Jurisprudência: STF, 2ª Turma, RE nº 85.002-SP, Rei. Min. Moreira Alves, j. 03.12.1976, DJU 11.03.1977.25 Apenas Oswaldo Aranha Bandeira de Mello apud Renata Peixoto (Disponível em: <www.direito.ufba.net/

mensagem/renatapeixoto/da-licencaparaconstruir.doc>. Acesso em: 25 jul. 2004) classificava as licenças paraedificar como ato administrativo constitutivo-formal, uma vez que entendia consistir em declaração recognitivade direito, de asseguramento da situação jurídica e que ensejava o desfrute de situações preexistentes.

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editado decreto expropriatório da área, ou mesmo plano de obras públicas, queabranjam o terreno, pois, qualquer circunstância de futuro, não concretizada, não temo condão de impedir a construção particular, sem que o proprietário seja indenizado.

Quanto à extensão do dever de se obter prévia licença, em regra, alcança todosos atos de edificação e uso do solo, que signifiquem uma transformação material.Sua enumeração será tratada em tópico próprio, observando-se a legislação domunicípio de Manaus.

2.1.1. Espécies de licenças urbanísticas

São em número de quatro, as espécies de licença urbanística, na classificaçãoadotada por Silva (2000, p. 421), ao considerar o seu objeto: (a) as licenças paraedificar ou para construir; (b) as licenças para reformar; (c) as licenças parareconstrução; (d) e as licenças para demolições. O autor dá destaque para as licençasde edificação e demolição, por se constituírem como instrumentos de controle deaplicabilidade das normas de ordenação urbana. O levantamento estatístico das licençasexpedidas no Município de Manaus, classificadas por casa espécie, encontra-se nosAnexos VI (ano de 2000), VII (ano de 2001), VIII (ano de 2002), IX (ano de 2003) eX (até maio de 2004).

Para o autor supramencionado, a licença para edificar vai além da simplesnoção de “remoção de limites”, tão arraigada na doutrina estrangeira, principalmentena espanhola26, que a considera uma autorização de regime especial, questão jásuperada com a separação do direito de construir do direito de propriedade. E explica:

A licença para edificar constitui mais que simples remoção de obstáculos; constitui técnicade intervenção nas faculdades de edificar, reconhecida pelas normas edilícias e urbanísticas,com o objetivo de controlar e condicionar o exercício daquelas faculdades ao cumprimentodas determinações das mencionadas normas edilícias e urbanísticas, incluindo asdeterminações dos planos urbanísticos. Ela é, como nota G. Spadaccini, “um ato que não seexaure com a remoção de um limite, mas que constitui, além disso, novos limites para aquelaatividade privada que deve ser exercida pelo sujeito”. Seu escopo – segundo esse mesmoAutor – é consentir que a concreta atividade construtiva (edificatória) do particular operecom pleno respeito das normas gerais postas pelos planos reguladores e pelos regulamentosedilícios comunais (grifo nosso). (SILVA, 2000, p. 422-423).

Outra classificação, utilizada pela doutrina espanhola, diz respeito ao momentoe efeitos das licenças. São as referentes às obras provisórias, às licenças condicionadas

26 La licencia urbanística es un acto administrativo de autorización por cuya virtud se lleva a cabo un controlprévio de la actuación proyectada por el administrado verificando si se ajusta o no a las exigências del interespúblico tal como han quedado plasmadas en la ordenación vigente: si es esta la que determina el contenido delderecho há de ejercitarse ‘dentro de los limites y con cumplimiento de los deberes’establecidos por el ordenamientourbanístico (ESTÉVEZ GOYTRE, 2002, p. 456).

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e às definitivas (GONZÁLEZ, 2003, 215-219). No Brasil, para as obras provisóriasou precárias, como a instalação de alojamento de pessoal ou depósito de material, oalvará não será de licença e sim de autorização.

Na Espanha, apesar da natureza das licenças urbanísticas ser de igual modovinculada, tem-se admitido a possibilidade, no ato da concessão, de introduzir cláu-sulas que evitem sua denegação. Assim, pode-se estabelecer uma condição suspensi-va para o início da edificação ou para sua finalização frente a um acontecimentofuturo, contudo, em todo caso, o condicionamento não pode estender-se além dotermo contratual (GOZÁLEZ, 2003, p. 226). Já no Brasil, a praxe é a concessão deprazo no procedimento para correção ou adequação, caso o projeto não atenda atodas as exigências, segundo Di Petro (1999, p. 32). Ressalta-se que a denegação doplano, sem que se dê oportunidade ao requerente de corrigir, complementar ou escla-recer dúvidas, é considerada por alguns autores, como Meirelles (2000, p. 187), umailegalidade.

Aprovado o projeto, com o preenchimento de todos os requisitos pelo requerentelegitimado, expede-se o alvará de licença.

2.1.2 Pressupostos para obtenção da licença para edificação

A parte legítima para efetuar o pedido de licença para edificação, denominadade sujeito passivo, é o legítimo possuidor da terra, o proprietário, ou seja, é a pessoafísica ou jurídica, privada ou pública, que precisa exercer o direito de edificar e,consequentemente, se submeter à outorga do Poder Público. Já o sujeito ativo é aentidade ou órgão emissor da licença (Prefeitura, Empresa de Urbanização etc.). EmManaus, o órgão competente para expedir o alvará de licença para construir é o InstitutoMunicipal de Planejamento – IMPLURB, autarquia que teve sua criação por meio delei específica (art. 133 do Plano Diretor).

Os documentos a serem apresentados, em regra, são os seguintes: título depropriedade ou compromisso de compra e venda; memorial descritivo da obra; peçasgráficas de acordo com o modelo adotado pelo respectivo órgão competente;levantamento topográfico para que sejam verificadas as dimensões, área e localizaçãodo imóvel. Entretanto, para cada tipo de construção (edificação, instalações,reconstruções, reformas, demolições, construção de muros e gradis no alinhamentoda via pública etc.) a documentação requerida vai variar.

A documentação exigida para licenciamento urbanístico no Município deManaus está discriminada no Código de Obras e Edificações do Município de Manaus,Lei nº 673, de 4 de novembro de 2002, posteriormente alterada pelas Lei nº 715, de11 de dezembro de 2003 e Lei nº 751, de 7 de janeiro de 2004.

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2.1.3. Procedimento para obtenção da licença para edificação enormas aplicáveis em Manaus

No caso específico de Manaus, o Código de Obras e Edificações foi instituídopela Lei Municipal nº 673, de 4 de novembro de 2002, com as alterações através daLei nº 715, de 11 de dezembro de 2003 e da Lei nº 751, de 7 de janeiro de 2004 e suasdisposições aplicáveis a obras novas, reformas, ampliações, acréscimos, reconstruçõese demolições.

O procedimento para obtenção da licença para construir está previsto a partirdo art. 5º ao 32º do Código de Obras e Edificações. E os projetos somente serãoaceitos se estiverem assinados e sob a direção de profissionais registrados no ConselhoRegional de Engenharia e Arquitetura do Amazonas-CREA-AM.

Serão intervenientes no processo: o Corpo de Bombeiros em relação à segurançacontra incêndio; os órgãos federais e estaduais responsáveis pela proteção ao meioambiente e patrimônio histórico-artístico estadual, assim como os competentes paraimplantação de projetos industriais; os concessionários de serviços públicos(abastecimento de água, esgotamento sanitário, fornecimento de energia elétrica etelefonia); as empresas fornecedoras de gás para abastecimento domiciliar ou industriale o órgão responsável pela fiscalização do exercício profissional, no âmbito dasmatérias constantes do Código.

Com caracteres bem visíveis, deve ser afixada, na obra, placa de modelo oficial,de no mínimo 1,20m X 0,60m em obras com testada de até 20m e de 2,00m X 1,00mem obras de testada igual ou superior a 20m, que deverá conter, além do número doalvará de construção, a indicação do nome, número de registro profissional e endereçodos profissionais responsáveis tanto pela elaboração dos projetos, como pela aexecução das obras.

Além do Código de Obras, é aplicável ao procedimento do licenciamentourbanístico a Lei de Uso e Ocupação do Solo, nº 672/2002, alterada pela Lei nº 752/2004, uma vez que estabelecem a taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento,recuo e gabaritos de acordo com cada unidade de estruturação urbana e corredoresurbanos de Manaus.

Como exemplo, cita-se a orla da Ponta Negra (Manaus), onde a taxa de ocupaçãomáxima é de 60%; o coeficiente de aproveitamento do solo máximo é de 1,2; ogabarito máximo de edificação é 3 e os afastamentos mínimos são, 5,00m frontal e defundos e 2,50m laterais.

Quanto à construção à beira dos cursos d água, todavia, deve ser observado odisposto no Código Florestal aplicável no Município de Manaus quanto à área nonedificandi, de preservação permanente, em face do § 1º do art. 25 da Lei de Uso e

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Parcelamento do Solo local (Lei nº 672/2002), que prevê a aplicação daquele diplomanacional. Ademais, o art. 108 da Lei nº 672/2002 prevê expressamente que, para oscursos d água localizados na área urbana e área de transição27, será adotada a faixa deproteção mínima de 30 metros, contados de cada margem de maior enchente.

Assim, esses procedimentos podem ser resumidos em três fases, como segue:

2.1.3.1. Primeira Fase – do pedido

O interessado deverá encaminhar requerimento, acompanhado dos documentosexigidos pelo mesmo diploma legal, devendo contar do pedido: o nome do titular dapropriedade, da posse ou do domínio útil do imóvel, comprovado por documentohábil; a natureza e o destino da obra; o endereço da obra e Certidão de InformaçõesTécnicas e/ou Certidão de Diretrizes de Projeto de Edificação.

O art. 20, do Código Edilício de Manaus, prevê que os projetos deverão serapresentados em três vias, assinados pelo proprietário e pelos responsáveis pelo projetoe pelo executor da obra. O parágrafo único exige a procuração passada ao promitente-comprador quando a área foi adquirida a prazo. Os documentos que devem acompanharos projetos para outorga da licença, também descritos no Código de Obras e edificaçõessão elencados no artigo 21.

2.1.3.2. Segunda Fase – da instrução

Dispõe o art. 25 do Código de Obras e Edificações do Município de Manausque o a Municipalidade terá trinta dias úteis para se pronunciar sobre os processosreferentes à aprovação de projetos. Caso os projetos não estejam em conformidadecom a legislação vigente, o parágrafo 1º do dispositivo citado concede o direito aorequerente de corrigi-los e reapresentá-los (no prazo de até trinta dias – parágrafo 2º),sob pena de arquivamento, fixando-se um novo prazo de tramitação não superior atrinta dias úteis. Essa oportunidade só poderá ocorrer por mais duas vezes, de acordocom o parágrafo Terceiro.

2.1.3.3. Terceira Fase – da decisão

Prevê o Código de Obras do Município de Manaus, no seu art. 27, que, emsendo aprovado o projeto, o órgão municipal competente (IMPLURB) poderá emitiro alvará de licença para a obra nesse mesmo ato ou, em até cento e oitenta dias, apedido do interessado. E, em consonância com o parágrafo 1º, será entregue ao

27 O art. 46 do Plano Diretor de Manaus, Lei nº 671/12002, as áreas urbana e de transição são delimitadas pela LeiMunicipal de Perímetro Urbano, Lei nº 644/2002. A divisão da área urbana em Unidades de Estruturação Urbana-UES, por sua vez, é fixada a partir do art. 4º da Lei nº 672/2002, Lei de Uso e Ocupação do Solo do Municípiode Manaus, alterada pelo Anexo II da Lei nº 752/2004.

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requerente duas cópias do projeto aprovado, sendo que uma terceira via e o arquivodigital da planta de situação e locação, ficam arquivadas no IMPLURB.

O parágrafo 2º do art. 27, com a alteração da Lei nº 751/2004, dispõe que oalvará de licença de construção conterá número de ordem, data, prazo de vigência,natureza da obra, nome do proprietário, do construtor e do responsável técnico e ovisto do Poder Público Municipal, deixando ainda em aberto a qualquer outrainformação que seja reputada como essencial.

Em caso de haver modificações nas normas de edificação ou nas regras deordenamento (uso e ocupação) ou parcelamento do solo urbano, que venham a incidirnos projetos já aprovados antes de iniciadas as obras, o art. 28 dá um prazo aoproprietário para realizá-las no máximo em doze meses. Findo esse prazo, o projetodeverá se adaptar à nova legislação de acordo com o parágrafo único desse mesmodispositivo. Ressalte-se que início da obra, de acordo com o artigo 29, é qualquerserviço que modifique as condições da situação preexistente no imóvel.

Em relação à alteração no projeto, depois de aprovado e expedido o alvará, o art.30 estabelece que o interessado deverá requerer a modificação, acompanhado da docu-mentação exigida pelo IMPLURB. Todavia, será dispensado novo alvará se as alteraçõesnão implicarem em modificações contempladas na legislação aplicável ou então nãoimportem em acréscimo da área construída (§ 1º). Caso contrário, será expedido novoalvará de construção, mediante o pagamento das taxas concernentes à alteração (§ 2º).

Mas o alvará de licença pode perder a validade de aprovação, nos molde doart. 31, se: (a) a obra não for iniciada no prazo de dois anos e não houver sido renovado;(b) os serviços de construção não forem concluídos no prazo de dois anos e nãohouver sido renovado.

Essa renovação do alvará de licença deve ser requerida antes de vencido oprazo de validade, pagando novos emolumentos (§ 1º). Porém, quando houverinterrupção nos serviços de construção, com licença aprovada, essa paralisação deveser comunicada ao Poder Público para que o interessado possa ser beneficiado com oprazo restante no concedido para sua execução (§ 2º).

A seguir, prevê o Código de Obras e Edificações de Manaus, no art. 32, ahipótese de revogação do alvará de licença, por ato do Prefeito Municipal, a qualquertempo, com fundamento no poder de polícia, e motivado por razões de interessepúblico ou de segurança justificáveis.

3. O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE MANAUSO Plano Diretor do Município de Manaus, especificamente em relação ao

Licenciamento Urbano, dispõe ser atribuição da Municipalidade licenciar, autorizar

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e fiscalizar o uso, ocupação e parcelamento do solo urbano, instituindo, comoinstrumentos complementares, os estudos Prévios de Impacto de Vizinhança eAmbiental (art. 71 e parágrafo único).

O art. 72, do Plano Diretor de Manaus, determina ser necessário contemplarefeitos positivos e negativos de um empreendimento ou atividade sobre a qualidadede vida da população residente na área e em suas proximidades. Assim, o Poderexecutivo Municipal poderá exigir o prévio Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).Por sua vez, o art. 73 remete às leis de parcelamento e de uso e ocupação do solourbano definir quais empreendimentos e atividades que estariam sujeitas ao EIV paraa aprovação do projeto, obtenção de licença ou autorização, seja de natureza públicaou privada.

A competência para elaborar o EIV está prevista no parágrafo único do art. 73,que legitima o próprio empreendedor, seja público ou privado, sendo que esse resultadoserá objeto de análise e parecer pelo órgão de planejamento urbano.

No art. 74 são delineados alguns objetivos que justificariam a feitura do EIV,dentre eles, assegurar o controle social da intervenção; analisar a capacidade deadensamento da área objeto da intervenção; fixar a demanda gerada com a intervençãopor equipamentos urbanos e comunitários; prever a valorização imobiliária advindade qualquer tipo de concessão; dimensionar a geração de tráfego e a demanda portransporte público; garantira a qualidade da ventilação e circulação e preservar apaisagem urbana e os patrimônios natural e cultural.

O art. 75 deixa claro que o EIV não substitui a elaboração e aprovação doEstudo Prévio de Impacto Ambiental – EPIA, nos termos da legislação ambiental,assim como não isenta de avaliação urbanística especial, quando lei local assim oprever.

4. O CÓDIGO DE OBRAS E EDIFICAÇÕES DO MUNICÍPIO DEMANAUS

O uso e ocupação do solo, que deve ser autorizado pelo Poder PúblicoMunicipal, deve ser formalizado através do documento denominado de Habite-se.Assim, terminada a obra, deve o proprietário requerer que seja realizada uma vistoria,anexando-se os documentos necessários. A lei de igual modo discrimina os documentosnecessários à obtenção do Habite-se por obras que se prestem a outros usos.

O Código de Obras também já estabelece que requisitos devem ser verificadoscomo satisfeitos por ocasião da vistoria para que o Habite-se seja expedido, advertindoque nenhuma construção pode ser habitada sem que tenha havido autorização porparte do Poder Público Municipal.

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Todavia, há previsão expressa de concessão de habite-se parcial, quando aedificação tiver partes independentes, por exemplo, com parte para uso comercial eparte para uso residencial, desde que possam ser utilizadas separadamente, ou, ainda,quando existir mais de uma construção dentro do mesmo terreno.

5. REVISÃO E EXTINÇÃO DAS LICENÇAS

Existem quatro formas de revisão das licenças, que são concedidas por meiode: anulação, revogação , cassação e declaração de caducidade, gerando efeitosdiversos (José Afonso da Silva, 2000, p. 429-433; Márcia Walquíria Batista dosSantos, 2001, p. 126; Patrícia Ulson Pizarro Werner, 1998, p. 318-319; Renata Peixoto(Disponível em: <www.direito.ufba.net/ mensagem/renatapeixoto/dalicencaparaconstruir.doc>.Acesso em: 25 jul. 2004).

A revisão por meio da anulação se dá quando se apresente ilegalidade noprocedimento de licenciamento urbanístico, que tem caráter vinculado aos requisitosimpostos pela legislação aplicável. Assim, viciado o processo por infringência àsexigências normativas, que caracterizem vício de ilegalidade insanável, torna-seinválido o procedimento de outorga. Esse reconhecimento pode se dar de ofício oupor iniciativa de qualquer interessado, administrativa ou judicialmente.

A revisão mediante revogação ocorre quando sobrevêm o interesse público enão se torna mais conveniente ou oportuno para a Administração Pública aquelaedificação para a qual já foi expedida licença de construir. Aqui se trata de controlede mérito.

Ressalta-se que existe uma previsão, expressa no art. 28 e seu parágrafo únicodo Código de Obras de Manaus, no sentido de que se houver mudança na legislaçãoantes de iniciadas as obras, o interessado terá ainda um prazo de 1 ano para iniciar aobra segundo o projeto original, todavia, após este prazo o projeto deverá se adequarà nova legislação. Portanto, no município de Manaus, essa situação só será motivo derevogação da outorga, após um ano de inércia do proprietário, sem dar início à obra.

A revisão em face de cassação se impõe quando a ilegalidade surge na execuçãoda obra, em desobediência ao próprio projeto, à lei ou regulamento, que norteiam aexecução da obra ou, ainda, em desobediência às próprias exigências constantes doalvará.

Assim, as licenças podem ser extintas através das formas de revisão analisadas,a saber: anulação ou invalidação, revogação, cassação, caducidade e, ainda, em facede seu esgotamento.

Os efeitos de cada uma das modalidades de revisão são diferentes.

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No caso de anulação, como se trata de ilegalidade, ainda que o proprietárionão tenha contribuído para a prática do vício, seu efeito é ex tunc, não gera direitos,portanto, não é indenizável mesmo que tenha havido prejuízo. Há jurisprudência nosentido de que essa anulação se dá mesmo que já tenha sido registrada a incorporaçãode edifício em cartório de imóveis28.

A cassação da licença de construir está prevista no inciso IV do art. 39 doCódigo de Obras de Manaus, como modalidade de sanção ao proprietário-infratorque infringe as disposições desse estatuto de edificações, tendo o interessado o diretoao devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Quanto à caducidade, esta advém do transcurso in albis de perempção. Seuefeito é automático, não precisa a Administração Pública baixar ato declaratório.

No caso de Manaus, ocorre a caducidade da licença quando o proprietário nãoconstrói no prazo de dois anos ou quando, após este prazo, não providencia a renovaçãoda licença (art. 31, do Código de Obras).

6. TAXA DE LICENCIAMENTOA taxa, não obstante ser espécie de género tributário, diferencia-se dos demais

por exigir uma contrapartida da Administração Pública diretamente ao contribuinte,seja através da prestação de um serviço público, seja através do poder de polícia.

In casu, a taxa de licenciamento urbano é um tipo de taxa instituída peloexercício do poder de polícia, embasada sempre em uma atuação de fiscalização doPoder Público. Nesse sentido, já se manifestou o Colendo Supremo Tribunal Federal,ao entender como ilegal a cobrança de taxa de licença de localização e funcionamento,sem que tenha havido o efetivo exercício do poder de polícia29. Entretanto, o pagamentoda taxa é condição sine qua non para a obtenção da licença de edificação. Em Manaus,por exemplo, essa taxa foi instituída pelo art. 49, inciso IV do Código TributárioLocal (Lei 1.697, de 20 de dezembro de 1983).

O art. 54 e seu parágrafo único estabelecem o cancelamento da licença se aobra não for iniciada no prazo concedido no alvará. Entretanto, esse prazo pode serprorrogada a pedido do contribuinte, se o tempo concedido for insuficiente para aexecução do projeto.

O art. 57 estabelece o momento de lançamento das taxas como sendo logoapós a expedição dos atos que constituem seus atos imponíveis e, no art. 58, que elasserão lançadas de ofício.

28 Jurisprudência: STF, RE nº 86214, Rel. Min. Leitão de Abreu.29 Jurisprudência: STF, RE nº 69.957-ES, RTJ 59/799.

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A Taxa para obtenção do Alvará de Edificação está fixada atualmente noMunicípio de Manaus, através do Decreto nº 6.435, de 26 de setembro de 2002 (AnexoII). Ressalte, ainda, que, em Manaus, há previsão legal de que o Poder PúblicoMunicipal poderá isentar dessas taxas e, ainda fornecer projeto, a pessoas de baixarenda e com área não superior a 50m2.30

7. TRANSMISSIBILIDADE DA LICENÇA

A questão da transmissibilidade da licença é um tema pacífico tanto na doutrinaestrangeira quanto nacional (GOYTRE, 2002, p. 488).

Transmite-se automaticamente aos sucessores a alienação do imóvel, não sendolícito ao órgão municipal opor-se à expedição ou à transferência do alvará ao novoproprietário ou compromissário comprador, segundo o entendimento de Meirelles(2000, p. 190-191).

8. INFRAÇÕES E LEGALIDADE URBANÍSTICA

Constitui infração urbanística, em sentido amplo, qualquer vulneração dalegalidade urbanística. Essa transgressão, por sua vez, constitui o pressuposto daeficácia sancionadora da norma e, qualquer que seja a modalidade da sanção, poderevestir-se de nulidade do ato viciado, perda de direitos patrimoniais, expropriaçãoforçosa, multa pecuniária etc.

A legislação urbanística seleciona, segundo uma técnica similar à da tipificaçãopenal, determinadas condutas especialmente contrárias aos fins da ordenação e daação urbanística dos entes públicos, conferindo à Administração Pública, responsávelpelo controle e gestão do urbanismo, o poder de aplicação de sanções, dentre elas, apecuniária.

A interpretação da conduta pela Administração Pública, subsumindo-a ao tipode ilícito urbanístico previsto na lei, assim como a aplicação da respectiva sanção,guardado o princípio da proporcionalidade, são questões que a lei pode deixar umamargem maior ou menor de discricionariedade ao agente competente, para efetivar ocontrole.

Assim, num sentido mais restrito, são infrações urbanísticas as ações ou omis-sões que vulneram as prescrições contidas na legislação e planejamento urbanístico,tipificadas e sancionadas expressamente.

30 Art. 11 da Lei Municipal nº 673/2002.

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O Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 – Balanço e Perspectivas 407

8.1. Classificação das infrações urbanísticas

Quanto à qualidade e importância, classificam-se as infrações urbanísticas emgraves e leves. Outorga-se a qualificação de graves, às infrações que constituamdescumprimento das normas de parcelamento, uso do solo, altura, volume e situaçãodas edificações e ocupação permitida na superfície das parcelas, ou seja, todas aquelasque incidam sobre os elementos determinantes do aproveitamento urbanístico dosterrenos. Em qualquer caso qualifica-se de graves o parcelamento urbanístico dosolo não urbanizável e a realização de obras de urbanização sem a prévia aprovaçãodo Plano e Projeto de Urbanização exigido.

Atribui-se a qualificação de leves às infrações urbanísticas que infrinjam con-dições higiênico-sanitárias e estéticas ou coloquem em risco a normalidade do uso.

8.2. Infrações em matéria de uso do solo e de edificação

Em matéria de Edificação, as infrações ocorrem quando são encontradasincompatibilidades com o regime urbanístico do direito de construir. Nesse caso, asinfrações podem ser graves ou leves, pois no direito de construir estão incluídos, nãoapenas os regramentos padrões de construção, como altura, recuo etc., mas, também,a parte higiênico-sanitária e estética.

Em Manaus, conforme entrevista com o Engenheiro Carlos Alexandre RochaLima31 as infrações urbanísticas mais comuns quanto a edificação e uso do soloocorrem em relação ao afastamento e às construções de empreendimentos semestacionamento.

8.3. Infrações em matéria de parcelamento

No Município de Manaus, através de entrevista com a Engenheira Eloísa AlvesSerrão da Silva32, foi possível detectar que as infrações urbanísticas mais frequentes,em matéria de parcelamento do solo, recaem sobre a comercialização dos lotes, antesde conclusão do processo de concessão da licença, da disponibilização da necessáriainfra-estrutura, que por vezes é até iniciada e não concluída ou, ainda, antes do registroimobiliário.

8.4. Infrações em matéria de planejamento

Em Manaus, essas infrações são recorrentes, já que não existe meios efetivosde prevenir as invasões de espaços urbanos por parte daqueles que chegam à cidade

31 Responsável pela Seção de Uso do Solo – SUSOL, do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus– IMPLURB.32 Responsável pela Divisão de Parcelamento-DPS do Instituto de Planejamento Urbano de Manaus – IMPLURB.

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em busca de uma vida mais próspera, como não há política eficiente que dê condi-ções de sobrevivência digna a essas pessoas no seu município de origem, ensejandoum crescimento desordenado da capital do Amazonas33. Nos assentamentos dessesimigrantes, a maioria das ocupações e das obras é irregular, além de não contar cominfra-estrutura mínima. A mais, seus proprietários se furtam – nisso não se diferenci-ando das classes mais favorecidas –, até por falta de condições, a sua regularizaçãoperante o Poder Público.

9. CONTROLE E SANÇÕES DAS INFRAÇÕES URBANÍSTICAS NOMUNICÍPIO DE MANAUS

O Código de Obras e Edificações do Município de Manaus destina os arts. 37a 46 para o controle, sanções e procedimento de defesa das infrações urbanísticas.

Inicialmente dispõe sobre um controle preventivo, ou seja, de orientação aosinteressados sobre as normas urbanísticas e edilícias, se antecipando, desse modo, àstransgressões.

Depois, reconhece a legitimidade a qualquer pessoa para oferecer denúnciasquanto a infrações urbanísticas, assim como para mover ações que visem à proteçãodo ordenamento urbanístico e edilício vigente.

A seguir, prescreve as sanções aplicáveis aos que infrinjam as regrasestabelecidas no Código de Obras e Edificações, dentre elas: o embargo (paralisaçãoimediata), a multa, a apreensão de equipamentos e ferramentas, a cassação do alvaráde licença, a interdição (proibição de uso de parte ou de toda a edificação) e a demoliçãoadministrativa (destruição de parte ou de toda a edificação).

As sanções, sempre precedidas de notificação ao infrator, são pessoais, dirigidasao proprietário, possuidor ou detentor do domínio útil do imóvel.

A sanção de embargo da obra é aplicável: quando se tratar de edificação semprojeto e sem licença; quando ocorrer discrepância com o projeto aprovado e que, aomesmo tempo, infrinja as regras contidas no Código de Obras; e, finalmente, quandoimpuser risco à segurança de pessoas, bens, instalações ou equipamentos.

Já a apreensão de ferramentas ou equipamentos tem cabimento quando oproprietário ou o executor da obra se insurge contra o embargo da mesma:

A cassação do alvará de edificação, por sua vez, é cabível quando a execuçãoda obra não se der em harmonia com o ordenamento urbanístico e edilício.

33 Resultado de entrevistas com os arquitetos Claudemir José Andrade e Paulo Fiúza, responsáveis pela Divisão dePlanejamento Urbano Integrado do Instituto de Planejamento urbano de Manaus-IMPLURB.

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A interdição já se aplica na hipótese da obra estar sendo utilizada sem o devidoHabite-se, quando a obra colocar em risco a segurança de pessoas, bens instalaçõesou equipamentos e, finalmente, quando a obra for uma ameaça à saúde pública:

Estão previstos, ainda: (a) a possibilidade de aplicação de mais de uma penapara o mesmo fato, na medida em que, adverte o Código de Obras, que a aplicação deuma pena não exclui a de qualquer outra; (b) as sanções de embargo e de interdição,que deverão ser devidamente comunicadas ao interessado, fixando-se prazo paraenquadramento às exigências que, se satisfeitas, ensejará a revogação daquelas; (c)no caso de irreversibilidade das infrações, as medidas sancionadoras de embargo einterdição poderão culminar com o cancelamento do alvará de licença e, ainda, coma demolição parcial ou total da obra.

Em relação à despesa com a demolição total e parcial, consigna o Estatuto deObras de Manaus que correrá por conta dos responsáveis pela construção quando aobra for incompatível e insanável frente à legislação ou quando colocar em risco asegurança pública, caso em que essas medidas ocorrerão de imediato. O interessadoserá notificado no mínimo vinte e quatro horas antes da demolição administrativa; ea ação demolitória só será executada se for sem riscos à segurança pública, assimcomo ao funcionamento dos serviços públicos.

Quanto à sanção administrativa pecuniária, esta será fixada independentemen-te das responsabilidades civis e criminais, sendo corrigida pelo índice oficial doMunicípio, em vigor na ocasião do pagamento. Será imputada nas seguintes hipóteses:de haver sido apresentada documentação com indicação de falsidade; do início ou exe-cução de obra sem licença autorizadora; da execução de obra em desacordo com o proje-to aprovado; de infrações às disposições do Código de Obras e Edificações e de ocupaçãode área sem o devido Habite-se. Em caso de reincidência, as multas terão um acréscimode 20% (vinte por cento) do valor original. Todavia, o pagamento da multa não implicaimpossibilidade de aplicação de outras sanções, previstas no Código de Obras.

O Código de Obras e Edificações de Manaus trata, ainda, dos arts. 43 a 46, doprocesso administrativo instaurado contra o infrator e seu direito de defesa, que seráinstrumentalizado por meio de petição, no prazo de sete dias a partir da notificação.

A multa terá uma redução de 20% caso haja renúncia à defesa ou ao recursopelo infrator ou, ainda, seja a mesma satisfeita no prazo do recurso. O recursotempestivo da decisão de primeira instância, porém, tem o condão de suspender aexigibilidade da multa. Transcorrido o tempo para defesa, os autos serão encaminhadosde imediato à autoridade competente para julgamento.

Antes de julgar, em restando questão duvidosa, poderá a autoridade condutorado feito determinar a realização de diligência complementar e requerer parecer daProcuradoria Geral do Município.

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Da decisão de primeira instância será dada ciência ao interessado através doDiário Oficial do Município de Manaus.

10. A OMISSÃO DO PODER PÚBLICO MUNICIPAL E ASCONSEQUÊNCIAS PARA A CIDADE E SEUS HABITANTES

Uma reflexão que se impõe, antes de se analisar a questão específica da omissãodo poder público no Município de Manaus, é a colocada por Osório (2002, p. 77),quando trata das Diretrizes Gerais da Lei nº 10.257/2001, acerca da não coincidênciaentre a cidade legal e a cidade real, questão também abordada por Rolnik (2003, p.13), porém, em relação especificamente à cidade de São Paulo. Assim, Osório expressaclaramente que:

No contexto brasileiro de direitos não universais e de cidadania restrita, o abismo entreconteúdo da lei e sua aplicação é imenso. Nas cidades, o reflexo deste distanciamento teveum efeito devastador: nas áreas de ocupação ilegal, não amparadas pela legislação, há cadavez menos financiamentos; não há controle urbanístico ou investimentos públicos. Na cidadelegal, consolidada e bem servida de infra-estrutura e serviços, concentram-se cada vez maisos investimentos imobiliários e públicos, sob um zoneamento restrito, elitista, excludente(OZÓRIO, 2002, p. 77).

Essa realidade não é diversa no Município de Manaus. Entretanto, observa-se,de maneira geral, que os instrumentos de controle urbanístico do Poder PúblicoMunicipal não estão sendo efetivados satisfatoriamente e no momento oportuno, poisé comum defrontar-se com obras sendo construídas ou habitadas, sem a devida licença,independentemente do fato de serem construídas em áreas consideradas nobres (ouhabitadas pela classe de maior poder aquisitivo) ou periféricas (áreas habitadas pelapopulação de baixo poder aquisitivo), como se poderá constatar no decorrer destetrabalho.

Assim, apesar de a legislação ser abrangente e seus institutos eficazes, visívele notória é a falta de estrutura do Poder Público Municipal de Manaus para fiscalizaro crescimento desordenado da cidade, do que se pode concluir pela falta de efetividadedo controle urbanístico prévio, via licenciamento urbano ou mesmo via Habite-se, jáque também é comumente o manauara começar a usar e ocupar o solo construídosem antes obter a licença de uso e ocupação do solo.

Verifica-se assim – ante a quantidade de loteamentos clandestinos34 e invasõesapuradas, assim como a quantidade de empreendimentos iniciados sem dar início ao

34 Loteamentos clandestinos são aqueles oriundos das invasões, portanto de posse ilegal; enquanto que os loteamentosirregulares são aqueles advindos de domínio ou posse legal, mas que não atendem às exigências da legislaçãourbanística.

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devido processo legal do licenciamento – haver uma certa liberdade de se construirem Manaus. Infere-se, por conseguinte, que o Município não conta com uma infra-estrutura ou aparelhamento necessários para prevenir e reprimir as ações urbanísticasilegais.

Desse modo, uma maior eficiência funcional-administrativa, com o aumento etreinamento dos servidores responsáveis pela fiscalização, aliada a uma simplificaçãodo conjunto de regras legais que norteiam o procedimento, além de um controleinterno mais rigoroso com sanções rígidas aos servidores que fossem omissos ounegligentes, levariam a expedição regular das licenças dentro do prazo estipulado.

Considerando-se, então, que a proteção do meio ambiente, dentre eles o artificialou construído35, não é exclusiva do Poder Público36. Como bem de uso comum dopovo (art. 225 da CF/88), incide em toda a coletividade, e, na hipótese de restarevidenciada a falta de vontade política por parte do administrador municipal emresolver a questão na esfera política-administrativa, uma das vias possível seria amovimentação da maquina judiciária através da Ação Civil Pública para defesa daordem urbanística.

Esse instrumento processual teria o condão de obrigar o Poder PúblicoMunicipal a melhor se estruturar e se aparelhar para cumprir seu papel de controle daordem urbanística, sob pena de gerar responsabilidade civil e improbidadeadministrativa para aqueles que estão sendo negligentes e omissos no seu papelfiscalizador. Portanto, em face da legitimidade de representação coletiva desseinstrumento, defende-se a sua utilização pelas associações, sindicatos, partidospolíticos e pelo Ministério Público.

Nesse aspecto, destaca-se, como importante, o posicionamento de ClariceDuarte37 (no prelo), quando afirma que o grande desafio do Estado Social é o deconter os abusos causados pela inércia estatal no cumprimento do dever de realizarprestações positivas, de cumprir os objetivos e programas de ação governamental,constitucionalmente delineados.

Noutro prisma, alerta Silva (2003, p. 128-130) não competir ao Poder Judiciárioa formulação de políticas públicas, mas, deixa evidente que, por meio de ações

35 Para SILVA (2002, p. 21), meio ambiente artificial é o constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciadono conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes,espaços livres em geral: espaço urbano aberto) enquanto que o meio ambiente natural é o constituído pelo solo,a água, o ar atmosférico, a flora; enfim, pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correlaçãorecíproca entre as espécies e as relações destas com o ambiente físico que ocupam.

36 “A Carta Magna não atribui com exclusividade ao Estado o dever de defender e de preservar o meio ambientepara as presentes e futuras gerações, mas impõe-no também à coletividade” (GOMES, 2003, p. 213).

37 A ser publicado na Revista São Paulo em perspectiva, da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados –SEADE.

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judiciais, ele pode determinar aos governos que adotem medidas de preservação domeio ambiente. Adverte, outrossim, competir ao Judiciário determinar ao executivoque execute políticas públicas já contempladas na legislação, seja na Carta Política,seja em leis já editadas pelo próprio governo.

11. A RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO E DO AGENTE PÚBLICOPELA OMISSÃO NO CONTROLE URBANÍSTICO

A omissão do Poder Público no exercício do poder de polícia tem comoconsequências, conforme Di Pietro (1999, p. 38), a responsabilidade civil da pessoajurídica (art. 37, § 6º da CF/88) e ainda pode acarretar responsabilidade civil,administrativa e, eventualmente, até criminal, do agente público que deixou de adotara medida cabível. A autora justifica essa assertiva em face do poder de políciacaracterizar-se um poder-dever irrenunciável pela autoridade, que é obrigada a exercê-lo no interesse público. A autora ainda tipifica como ato de improbidade administrativa“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” (inciso II, do art. 11da Lei nº 8.429/92).

Não é diferente o posicionamento de Freitas (2002, p. 345)38, quando afirmaque o poder de polícia autoriza a aplicação de sanções como embargo de edificaçõesnão licenciadas e sua demolição, deixando bem evidente, outrossim, que a hipótesede eventual inércia da Administração Pública pode gerar tanto sua responsabilizaçãoem ação civil pública por omissão, quanto do agente ou servidor público por impro-bidade administrativa (Lei nº 8.429/92, art. 11, II) e crime de prevaricação. Faz lem-brar, ainda, o autor, que o servidor omisso poderá responder tambémadministrativamente em face de sua inércia.

Entretanto, o poder-dever de agir no controle urbanístico pelo agente públicocompetente advém de outros princípios maiores, disciplinadores da ação estatal, quegeram a ilegalidade da omissão e consequente responsabilidade, quais sejam, aindisponibilidade do bem ambiental difuso que é a cidade e a obrigatoriedade deintervenção estatal na ordem urbanística.

No que concerne à responsabilização penal, Oliveira (2000, p. 299-310)39

discorre acerca da responsabilidade dos agentes da Administração Pública em DelitosUrbanísticos, desenvolvendo tese no sentido de inclusão dos funcionários públicosresponsáveis pela fiscalização e administração da ordenação do solo, como autores

38 Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo de SãoPaulo-CAOHURB.

39 Promotor de Justiça Criminal de São Paulo.

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dos delitos urbanísticos e ambientais, a exemplo de crime praticado contra área verde,em face de delito em comissão por omissão (art. 13, § 2º do Código Penal) porquegarante os bens jurídicos colocados sob sua guarda e proteção.

12. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA SOCIEDADEORGANIZADA NA DEFESA DA ORDEM URBANÍSTICA

Como já se referiu anteriormente, as infrações urbanísticas acontecem amiúdena cidade de Manaus, independentemente da vasta legislação que regula a matéria.Na capital amazonense, o comum é se construir para depois se tentar regularizar,situação encontrada não apenas em pequenos investimentos, uma vez que os grandesinvestidores também procuram fugir das taxas de licenciamento e de registroimobiliário. Inúmeros seriam, por exemplo, os casos de construções em áreas depreservação permanente, ou seja, a menos de 30m da maior enchente da margem doscursos d água no Município de Manaus40 (art. 25, combinado com o art. 108, ambosda Lei nº 672/2000).

Verificada também a carência de infra-estrutura estatal para exercer um controleefetivo das construções no município de Manaus, indaga-se: qual seria o papel doMinistério Público, na qualidade de fiscal da lei e defensor dos interesses da sociedadee qual a parcela de responsabilidade da sociedade organizada na luta pela efetividadeda legislação urbanística?

A omissão administrativa ilícita, violadora de interesses difusos e coletivos dasociedade, por transgredir a lei e os princípios de uma Administração Pública eficiente,além de caracterizar-se ato de improbidade administrativa, deve ser combatida peloMinistério Público41 através de instrumentos extraprocessuais, como o inquérito civilpúblico, a recomendação e o termo de ajustamento de conduta, como, também, casorestem insuficientes esses meios, através de instrumentos processuais como a açãocivil pública, arrolada pelo Estatuto da Cidade.

Sua legitimidade para agir nesse caso é patente ante seu papel de fiscal da lei edefensor dos direitos da sociedade, devendo zelar, in casu, pela ordem urbanísticacomo bem difuso reconhecido pelo Estatuto da Cidade a ser tutelado via Ação CivilPública.

40 Apenas para ilustrar esse exemplo, citam-se três grandes empreendimentos, todos implementados na cidade deManaus: o Condomínio House Ville onde reside a autora deste trabalho, construído pela Engeco; oempreendimento Millenium, da construtora Unipar, que modificou o curso do Igarapé do Mindú para enquadrá-lo nos parâmetros legais; o Fiat Tropical, construído praticamente no leito do rio Negro, na Ponta Negra.

41 Art. 129, III, da Constituição Federal de 1988.

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Destaque-se que, em Manaus, foram criadas, desde 2001, duas Promotorias deJustiça Especializadas na Proteção e Defesa da Ordem urbanística do MinistérioPúblico do Estado do Amazonas42, às quais compete, dentre outras atribuições, zelarpela observância dos Planos Diretores, Código de Obras e edificações do Municípiode Manaus, normas de gabarito e as demais normas edilícias de zoneamento urbanísticode posturas, assim como pelo Estatuto da Cidade, lei federal nº 10.257 e demaisnormas de uso do solo para fins urbanos, promovendo medidas judiciais, extrajudiciaise/ou administrativas cabíveis.

Assim, essas atribuições, antes divididas entre a Promotoria de Justiçaespecializada junto à Vara de Fazenda Municipal, Registros Públicos e a Promotoriade Defesa de Consumidor, ganharam dois órgãos próprios e específicos para cuidarda matéria, a exemplo do que já existia em outros Estados, não apenas para osinquéritos civis e procedimentos investigatórios da área civil, mas, inclusive, comatribuição criminal para promover as devidas ações penais por crimes praticadoscontra a ordem urbanística.

Antes de abordar a questão do papel da sociedade civil organizada no controleurbanístico da cidade, ante a comprovada omissão do Poder Público Municipal econsequente responsabilidade de seus agentes, impõe-se tratar primeiramente dogénero da qual é espécie, qual seja, a gestão democrática da cidade.

Visando consolidar o Estado Democrático de Direito e assegurar a participaçãoda comunidade na elaboração e implantação de plano de uso e ocupação do solo etransporte, assim como na gestão dos serviços públicos, a Emenda Popular de ReformaUrbana43 previa uma gestão democrática da cidade, ao criar instrumentos departicipação popular.

A Constituição incorporou vários instrumentos defendidos nessa emenda, asaber: as audiências públicas, a constituição de Conselhos, plebiscito, o referendopopular, a iniciativa popular e o veto popular.

Ressalta-se, nesse aspecto, que o art. 29, inciso XII, determina como obrigatóriaa “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”, comorequisito constitucional de sua validade.

Observa Saule Júnior (2001, p. 29) que, primeiramente, a iniciativa popularfoi prevista para leis de âmbito municipal, mediante subscrição de 0,5% do eleitorado.

42 Instaladas, aos 28 de dezembro de 2001, na cidade de Manaus, através do Ato PGJ nº 166/2002 da lavra deS.Exa. o Sr. Procurador-Geral de Justiça, Dr. Mauro Luiz Campbell Marques.

43 Proposta apresentada à assembleia constituinte, oriunda de entidades, associações de classe, organizações não-governamentais, associações civis, movimentos e grupos sociais, que apresentou um conjunto de princípios,regras e instrumentos sobre variados temas, como: direitos urbanos, propriedade imobiliária urbana, políticahabitacional, transporte e serviços públicos, assim como as diretrizes para uma gestão democrática da cidade.

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Quanto ao veto popular, este instrumento teria o objetivo de suspender a execução delei através de 5% do eleitorado municipal, devendo ser submetida, automaticamente,a referendo popular. Em segundo lugar, lembra o autor, que na falta de lei, foi defendidaa tese do mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão,referente à questão urbana, com o objetivo de dar eficácia às normas constitucionais,sendo que, ao Ministério Público ou qualquer interessado, caberia o intuito de serdeterminada a aplicação direta da norma ou se fosse o caso, a sua regulamentaçãopelo Poder Legislativo. A decisão favorável do Judiciário, nesses casos, teria força decoisa julgada a partir de sua publicação. Todavia, sabe-se que esses instrumentos sãopraticamente letra morta no ordenamento jurídico brasileiro.

No entender de alguns autores, a exemplo de Malaquias (2002, p. 316), comoo constituinte não adotou numerus clausus para designar as formas de democraciaparticipativa, podem ser estabelecidas outras formas de participação popular,compatíveis com o princípio constitucional da democracia participativa, como fez osart.s 43 e 45 do Estatuto da Cidade, não obstante tenha sido lamentavelmente vetadoo inciso V de seu art. 43, que previa a realização de referendo popular e plebiscito.

Segundo Matos (2002, p. 306), a técnica legislativa é inteligente, quando serefere aos instrumentos para a gestão democrática das cidades, previstos pelo Estatutoda Cidade, no seu art. 43, porque permite a participação popular através de outroscanais, que não os institucionalizados, como, por exemplo, o Movimento dos SemTerra – MST:

A redação dada pelo legislador ao caput desse artigo é de técnica conhecida, no jargãohermenêutico, de numerus apertus, o que equivale a dizer que os instrumentos de gestãodemocrática arrolados nos incisos são meramente exemplificativos, permanecendo apossibilidade, pelos gestores públicos e pela sociedade civil, de outros instrumentos visandoao mesmo objetivo – a gestão democrática da cidade. A técnica legislativa adotada éinteligente, pois vai ao encontro das potencialidades criativas que se têm verificado no esforçode reconstrução democrática das cidades brasileiras, sobretudo no aspecto específico daampliação participativa direta da população no exercício do poder político por outros canaisque não os institucionalizados [...] Um exemplo de repercussão em todo o país é o doMovimento dos Sem Terra (MST), de inegáveis força social, capacidade de mobilização eorganização, e que pode ser apontado como grande responsável pela ampliação da discussãoda reforma agrária no Brasil”.

Muito embora o princípio participativo, na concepção Silva (2000, p. 145-146) “caracterize-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dosatos de governo”, esse impasse participativo pode ser amenizado na medida em queo Ministério Público possa assegurar a participação popular, pelo menos de formaindireta, através da realização de audiências públicas, mas sempre com atenção ecuidado a respeito da manipulação e do direcionamento de massas.

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Todavia, concernente ao papel da sociedade civil organizada, cabe aqui ressaltar,ainda, a questão da governança44, ou seja, segundo Diniz (1996, p. 12), é a maneirade como os cidadãos poderiam colaborar com “a capacidade da ação estatal naimplementação de políticas e na consecução de metas coletivas”. Bento (2003, p.249), sobre o mesmo tema, assevera:

Para que iniciativas de participação popular e de controle social na administração públicapossam traduzir-se em democratização é mister que os cidadãos sejam chamados a participarcomo tais, isto é, como cidadãos e não como clientes ou como representantes de interessescorporativos.

Na visão de Bento (apud Santos, 1997, p. 12) essa participação “no conjuntode mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural dasociedade [...] implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e deadministração do jogo de interesses”, todavia, não deve ser apenas consultiva, aexemplo de pesquisa de mercado, nem tampouco centrada em questões técnicas oude gerenciamento, mas deve discutir e, mais ainda, deliberar, sobre questões políticas.

Assim, conclui o autor, a participação deve atingir todos os níveis, que vãodesde a formulação de estratégias mais globais até as setoriais e locais deimplementação. In verbis:

Nesse sentido, a participação deve se desenvolver em todos os níveis, desde a formulaçãodas estratégias mais gerais de atuação do estado – compreendidas num projeto reflexivo derelações Estado-sociedade e de desenvolvimento econômico, social e humano – até as políticassetoriais e locais encarregadas de sua implementação (BENTO, 2003, p. 250).

Aplicando-se essa participação da sociedade civil organizada ao caso concretodo licenciamento urbanístico, como forma de controle das construções, ela partiriadesde a formulação das políticas de planejamento e desenvolvimento urbano, até aexecução do controle urbanístico, através do próprio procedimento formal da licençaurbanística em si.

A partir desses resultados, onde foram delineados os principais aspectos dolicenciamento urbanístico da cidade de Manaus, proceder-se-á, sequencialmente, àsconclusões deste trabalho.

44 Para Bento (2003, p. 85) Governança diz respeito aos pré-requisitos institucionais para a otimização dodesempenho administrativo, isto é, é o conjunto dos instrumentos técnicos de gestão que assegure a eficiência ea democratização das políticas públicas. Já para Santos, Maria Helena de Castro (1997, p. 341), “trata-se, comefeito, do modus operandi das políticas governamentais, tendo em vista o contexto de complexidade e depluralidade em que irão incidir, e de como torná-lo eficiente e efetivo”.

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13. CONCLUSÕES

Com a sociabilização do direito de propriedade, a qual foi atribuída uma funçãosocial, o Direito de Construir se dissociou do direito privado, passando a ser regidopelo Direito Público, submetendo-se então às limitações administrativas com o fitode se alcançar o bem-estar social, em face da prevalência do interesse público esocial sobre o domínio particular e a evolução da propriedade-direito para apropriedade-função.

Assim, a liberdade de construir passou a ser limitada, não apenas pelo princípioda normalidade de seu exercício, que condena a concepção de mau uso, de abuso ouexcesso na fruição – hipótese em que prejudica a segurança, o sossego e a saúde dosque habitam nas vizinhanças –, mas, concomitantemente, por leis e regulamentosque criam as denominadas limitações administrativas, que buscam o bem-estar noconvívio da coletividade nas urbes. Não se pode olvidar, desse modo, as íntimasrelações entre o Direito de Construir e o Direito Urbanístico, submetido, como são,as limitações urbanísticas.

O princípio da Função Social da Propriedade caracteriza-se justamente porimpor freio e contrapeso ao direito individual, determinando, por conseguinte, o deverde condicionar a necessidade de requerimento da licença urbanística, nas edificações,para o alcance do bem-estar coletivo. Este princípio se traduz no equilíbrio entre ointeresse público e o privado, pois depende do uso que se faz de cada propriedade.Em outras palavras, o princípio da Função Social da Propriedade preconiza a realizaçãoplena do urbanismo e do equilíbrio das relações da cidade, que significa a supremaciado interesse público sobre o particular, inerente a qualquer sociedade e condição desua existência.

Desse modo, as restrições ao pleno e exclusivo gozo da propriedade não podemser entendidas como agressões ao poder de dominus, pois a preservação do meioambiente é considerada como um bem necessário à subsistência de toda a humanidade.

O Licenciamento Urbanístico, como procedimento preventivo de controle daatividade urbanística, é norteado pelo princípio da legalidade, só podendo ser favorávelao requerente quando preenchidos todos os requisitos impostos pelo texto legal.Considerado como instrumento fiscalizador do ordenamento urbano, tem um papelprimordial na ordenação das cidades.

Um dos princípios tradicionais de Direito urbanístico é a subsunção de quetoda atividade, que implique uso artificial do solo, deve ser submetida a um controleprévio, com a finalidade de assegurar a conformidade com as normas aplicáveis aocaso. Essa fiscalização preventiva é uma das formas de intervenção do Estado napropriedade e atividade de seus administrados, para comprovar que não estão sendo

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contrariados os interesses gerais. Portanto, concede-se o direito ao proprietário deusar e desfrutar de sua coisa, como realizar obras e construções, mas com as limitaçõesestabelecidas em lei.

As Licenças Urbanísticas, portanto, são instrumentos de controle préviourbanístico, assim como técnica de intervenção do Estado na propriedade. São atosadministrativos vinculados, estando submetidos ao regime jurídico de Direito Público.Impõem deveres e os condicionam. Todavia, não podem ser denegadas quandopreenchidos todos os requisitos legais.

O direito de edificar no próprio solo é direito reconhecido abstratamente,contudo, na prática, se vê submetido a um regime especial no ordenamento urbanístico,que permite classificar a propriedade de estatutária, na medida em que os proprietáriosse vêem obrigados à obtenção de prévia licença.

E, como instrumento de controle prévio da atividade edilícia, essa licençaverifica se a obra projetada está conforme e compatível com a ordenação urbanísticaaplicável, permitindo que seu objeto básico – a implantação da atividade de construçãode uma obra – permaneça conforme o conteúdo da própria licença, normalmentedefinido no projeto técnico apresentado, ou seja, constata se a construção da obra seajusta às exigências de interesse público, como preconiza o ordenamento urbanísticovigente.

As licenças, todavia, não são consideradas atividades de planejamento, masexteriorização da regulação urbanística, exercendo uma função de instrumento depolícia urbanística. De um lado, são autênticos atos de execução de preceitos da lei edos planos urbanísticos; de outro, configuram-se como instrumentos de controle dalegalidade urbanística.

Nesse contexto, as Infrações Urbanísticas configuram-se como a vulneraçãoou a ofensa da legalidade urbanística, constituindo-se como pressupostos da eficáciasancionadora da norma, podendo revestir-se, qualquer que seja sua modalidade, emnulidade do ato viciado, perda de direitos patrimoniais, expropriação forçosa, multapecuniária etc.

Essas infrações podem ocorrer nas três áreas do ordenamento urbano: na fasedo planejamento, na do parcelamento do solo (loteamentos e desmembramentos) ena de uso e ocupação do solo (atividade edilícia controlada via licenciamentourbanístico).

Quanto às infrações urbanísticas que ferem o licenciamento urbanístico(praticadas em face do uso e ocupação do solo), podem ocorrer em três momentos:nas construções iniciadas sem a devida licença; nas modificações irregulares durantea execução da obra, quando já expedida a licença provisória; e na habitação sem a

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licença definitiva (Habite-se). Ressalta-se que no Município de Manaus são detectadaslargamente essas três modalidades de infrações urbanísticas.

Guardando técnica similar à da tipificação penal, essas ações ou omissões quevulneram as prescrições contidas na legislação e planejamento urbanístico, subsumem-se ao tipo de ilícito urbanístico previsto em lei, assim como à aplicação da respectivasanção, guardado o princípio da proporcionalidade, podendo a lei deixar margem dediscricionariedade ao agente competente para análise subjetiva da adequação da sançãoao caso concreto.

Em Manaus, foram constatadas várias ocorrências de infrações: em matéria deplanejamento, principalmente por falta de controle migratório e pelas construçõesdesordenadas e incompatíveis com os planos urbanísticos; em matéria de parcelamentodo solo, pela comercialização de lotes antes da conclusão do processo de concessãode licença, antes da disponibilização de infra-estrutura e antes de providenciar oregistro imobiliário; de uso e ocupação do solo (edificação), onde as irregularidadesmais comuns ocorrem em relação ao afastamento, como também em empreendimentossem estacionamento.

Nesse campo, a omissão do órgão fiscalizador pode ocorrer: por falta delegislação; por falta de infra-estrutura para o controle (elemento estático); por faltade infra-estrutura para efetivação do controle (elemento dinâmico); ou, ainda, porinércia desidiosa do agente competente, trazendo sérias e graves consequências paraa cidade e seus habitantes.

Em Manaus, o costumeiro é construir-se primeiro para depois tentar regularizar,mesmo em relação a grandes empreendimentos, onde os responsáveis tentam se furtarao pagamento de taxas do licenciamento e do registro imobiliário.

Apesar da legislação ser abrangente e seus institutos eficazes, visível e notóriaé a falta de estrutura do Poder Público Municipal para fiscalizar o crescimentodesordenado da cidade. Infere-se, portanto, que a ineficiência do controle urbanísticomanauara ocorre através do fato de o Município não contar com infra-estrutura ouaparelhamento necessários para prevenir e reprimir as ações urbanísticas ilegais.

Assim, ao ser constatada a omissão do Poder Público Municipal de Manaus,recomenda-se o aumento e treinamento dos servidores responsáveis pela fiscalização,aliada a uma simplificação do conjunto de regras legais que norteiam o procedimento,além de um controle interno mais rigoroso, com sanções rígidas aos servidores quenão tenham sido ou não estejam sendo eficientes, buscando-se, com isso, a maiorcobertura legal das construções na cidade de Manaus, com a expedição regular delicenças, dentro do prazo legal estipulado.

Sustenta-se, portanto, que a responsabilidade do órgão e dos agentes responsá-veis pela omissão administrativa ilícita está plenamente configurada, pois transgride

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a lei e os princípios de uma Administração Pública eficiente a inação ou ação insufi-ciente à demanda, além de caracterizar-se como improbidade administrativa, deven-do ser combatida tanto pelo Ministério Público quanto pela sociedade.

Essa responsabilidade pela inércia administrativa se dá tanto na esfera civilquanto na esfera criminal, na medida que o meio ambiente construído é um bemtutelado pela ordenação jurídica constitucional e legal brasileira.

A delimitação da responsabilidade em matéria de fiscalização e controle daocupação dos espaços urbanos é de fundamental importância para as cidades, porqueos delitos urbanísticos, além de infringirem a lei, comprometem o bem-estar social,por vezes causando erosão, desmoronamentos, alagamentos e danos ambientaisirreversíveis.

Assim, tipificada a responsabilidade do Município e dos agentes competentespela ausência de eficiência no controle urbanístico na cidade de Manaus, recomenda-se que sejam apuradas as responsabilidades pela omissão e desrespeito à ordemurbanística, independentemente da falta de infra-estrutura estática (conjunto deelementos necessários à implementação do controle, como a quantidade de servidorese sua qualificação) e dinâmica (elementos necessários ao exercício da efetivafiscalização no caso concreto), assim como da ausência de uma sistematização deordenamento e de ações.

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Planos Diretores, Participação Popular e aQuestão Indígena: Reflexões sobre o TextoConstitucional e o Município de São Gabrielda Cachoeira (AM)

MARIANA LEVY PIZA FONTES1

Advogada.

Após 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, o presente artigopretende estabelecer reflexões sobre uma questão específica, ainda não evidentequando da realização da Assembleia Nacional Constituinte: as conexões e desafiosde se promover a participação popular na elaboração de planos diretores emMunicípios, cuja maioria da população é indígena.

A regulamentação do art. 182, a promulgação do Estatuto da Cidade e oestabelecimento de prazos e requisitos de participação popular pelo Estatuto da Cidade(art. 29, XII, CF c/c art. 40 e 53 da Lei 10.251/2001) conjugado ao recente incrementoda urbanização na região amazônica observada na última década estabelecem novosdesafios para a gestão democrática das cidades no Brasil.

PLANEJAMENTO URBANO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O planejamento urbano no Brasil sofre mudanças significativas a partir dapromulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). Este marco jurídico-urbanístico incorpora a crítica formulada ao modelo deplanejamento urbano no Brasil, especialmente àquele implementado durante o regimemilitar.

O planejamento urbano brasileiro alimentou-se da matriz modernista/funcio-nalista implementada ao longo do século XX, cujas raízes iluministas e positivistas

1 Mestranda em Direito Urbanístico Ambiental pela PUC/SP. Cientista social formada pela Universidade de SãoPaulo. Foi assessora técnica da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e atualmenteé Coordenadora Geral de Estudos e Pesquisas da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.

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baseavam-se na crença absoluta na ciência, técnica, racionalidade e neutralidade doplanejamento.

É durante o regime militar que essa concepção de planejamento urbano adquireforça e importância. São criados dois órgãos federais de planejamento (SERFHAU eSAREM), uma quantidade inédita de Planos Diretores é produzida, órgãos municipaisde planejamento e escolas de arquitetura proliferam-se. O planejamento é tomadocomo solução para o grande caos urbano. Tudo se resumiria a uma questão de eficiênciae competência técnica.

Paradoxalmente, é durante esse mesmo período que as cidades brasileiras maiscrescem “fora da lei”, com aumento expressivo de favelas, cortiços, loteamentosirregulares e clandestinos em todo o país.

Essas diretrizes e sistemas de planejamento vigoraram até a década de 80.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, esta concepção de planejamentourbano burocrática e tecnocrática é colocada em cheque pela Emenda Popular daReforma Urbana, apresentada por uma série de movimentos sociais urbanos,associações não governamentais (ONGs), entidades de classes, etc.2, e subscrita por130.000 eleitores. A iniciativa popular propôs uma série de instrumentos para ocumprimento da função social da propriedade urbana, bem como uma proposta degestão democrática das cidades, rejeitando a ideia de um plano-discurso, a serelaborado unicamente pelo Estado. O texto original da emenda popular da reformaurbana não previa expressamente a expressão “plano diretor”, que acabou por serincorporado na própria definição da função social da propriedade urbana.

Conforme a explicação da urbanista Ermínia Maricato, indicada pelas entidadessignatárias da emenda para defende-la no Plenário Constituinte: “A rejeição ao planodiretor significou a rejeição de seu caráter ideológico e dissimulador dos conflitossociais urbanos. Além de ignorar a proposta de plano diretor, a iniciativa populardestacou a gestão democrática das cidades, revelando o desejo de ver ações que fossealém dos planos”3.

2 Dentre elas a Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento de Defesa do Favelado (MDF),Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), Coordenação Nacionaldos Mutuários e Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) (Nelson Saule Júnior, Novas perspectivas do direitourbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor, p.25.

3 Ermínia Maricato, As ideias fora o lugar e o lugar fora das ideias:planejamento urbano no Brasil. In OtíliaArantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2000, p.175, apud, José Roberto Bassul, ob.cit., p. 82.

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Do embate constituinte, porém, nasce o capítulo “Da Política Urbana”, queconsagra o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimentourbano, obrigatório aos Municípios com mais de 20.000 habitantes (art. 182, § 1º,CF).

Mais do que isso, o Plano Diretor passa a definir o conteúdo concreto doprincípio da função social da propriedade urbana (art. 182, § 2º, CF). Ressalte-se queo texto constitucional, pela primeira vez, vincula a definição da função social dapropriedade ao processo de planejamento territorial municipal.

De um lado, o planejamento territorial não é mais considerado como intervençãodo Estado no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio restrito dodireito de propriedade, a respeito do qual a ordem constitucional permite a interferênciaimperativa do Poder Público por meio da atuação da atividade urbanística.4

Consequentemente, por tratar-se de dispositivo ligado diretamente à delimitaçãodo próprio direito de propriedade5, não se aplicaria o art. 174 da Constituição Federal,que determina que o planejamento será meramente “indicativo para o setor privado”.O Plano Diretor é totalmente determinante para os proprietários privados, que a elessão obrigados a ajustar seus comportamentos6.

De outro lado, o texto constitucional e, posteriormente, o Estatuto da Cidadeacabam por substituir a concepção do planejamento urbano municipal como processopuramente técnico e neutro. A participação popular no processo de planejamentomunicipal e, especialmente na elaboração dos Planos Diretores, passa a ser exigidacomo condição obrigatória, sob pena de improbidade administrativa (art. 29, XII, CFc/c art. 40 e 53 do Estatuto da Cidade).

Parte-se de um reconhecimento constitucional, de que embora tenha conteúdotécnico, o planejamento é um processo político. Não existe, pois, planejamento neutro.As ações de planejamento estão sempre voltadas para o futuro, voltadas para atransformação social. E essa transformação social se dá tanto ao longo do tempocomo no espaço.7

4 José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 93.5 Convém lembrar que a função social não deve ser confundida com limitação do direito de propriedade. Isto

porque as limitações administrativas dizem respeito ao exercício do direito pelo proprietário. De maneira distinta,a função social interfere na estrutura do direito mesmo (José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro,p. 75)

6 Carlos Ari Sundfeld, O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, in Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.),O Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 50.

7 Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988,p. 31.

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Trata-se, portanto, de visão que incorpora o processo político ao planejamentourbano, garantindo a participação daqueles tradicionalmente excluídos da construçãodas cidades. O processo de elaboração do Plano Diretor visa garantir uma esferapolítica, democrática, capaz de construir consenso entre os mais diversos atores sobreo futuro das cidades.

Este reconhecimento jurídico da necessidade de um processo político deplanejamento urbano nas cidades brasileiras adquire uma nova em complexa amplitudeno caso de Planos Diretores elaborados em Municípios situados na Amazônia,especialmente naqueles situados em terras indígenas – sejam elas demarcadas ounão.

OS ÍNDIOS E O PROCESSO PARTICIPATIVO

Dentre aqueles tradicionalmente excluídos do planejamento estatal no Brasil,está a população indígena. O constituinte de 88 houve por bem considerar os índioscomo sujeito de direitos, reconhecendo “ sua organização social, costumes, línguas,crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmenteocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seusbens.” (art. 231, CF).

Com efeito, o texto constitucional menciona também as populações indígenas(art. 22, inciso XIV) e a comunidade indígena (art. 232). Trata-se, pois doreconhecimento de um sujeito de direitos sui generís. De um lado, os direitos indígenasdizem respeito a uma comunidade cultural específica, ligada à raça (fator biológico)e a valores (crenças, costumes, língua, tradições). Nesse sentido, há uma proteçãoconstitucional a cada uma das características peculiares das etnias presentes noterritório brasileiro. Por outro lado, cada índio em particular é considerado brasileiroe é dotado dos benefícios da nacionalidade e cidadania (arts. 1º, parágrafo único eart. 5º da Lei 6.001/73).8

O aumento dos processos de urbanização na região amazônica impõe a juristase urbanista uma leitura conjunta desses direitos indígenas e do capítulo da PolíticaUrbana. Com efeito, a presença de uma enorme diversidade étnica em um mesmoterritório e a necessidade de se garantir processos efetivamente democráticos naaprovação de Planos Diretores colocam novas questões para o Direito Urbanísticobrasileiro. É o que se verá a partir da análise do Município de São Gabriel da Cachoeira.

8 Tercio Sampaio Ferraz Jr., Direito Constitucional. Liberdade defumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanose outros Temas, p. 503.

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O MUNICÍPIO DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA9

O Município de São Gabriel da Cachoeira localiza-se no noroeste do Estadodo Amazonas em plena floresta amazônica, na fronteira entre Brasil, Venezuela eColômbia. Sua extensão é de 109.108 km2. Trata-se de um dos maiores municípiosbrasileiros.

Além disso, sua população é predominantemente indígena – 81,66% doterritório do Município de São Gabriel da Cachoeira são terras indígenas demarcadas10.O território municipal congrega mais de 23 povos indígenas distintos. São etniasresidentes do Município de São Gabriel da Cachoeira: Arapaso, Baniwa, Barasana,Baré, Desana, Hupda, Karapauã, Kubeo, Kunipako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob,Piratabuya, Potigua, Guiano, Taiwano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana, Werekena,Yanomami.

A diversidade étnica se expressa também na quantidade de línguas faladas poressas comunidades: são mais de 20 línguas distintas, provenientes de troncoslinguísticos específicos, tais como o Tupi, o Tukano Oriental, o Maku, o Aruak eYanomami. O Município de São Gabriel da Cachoeira co-oficializou, inclusive, aslínguas Nhengatu, Tukano e Baniwa (Lei municipal nº 145/2002) ao lado do português,idioma brasileiro oficial (art. 13 da Constituição Federal).

Nesse contexto étnico-cultural, São Gabriel da Cachoeira elaborou recentementeseu Plano Diretor, que foi aprovado pela Lei municipal nº 209/06. Não obstante oenorme leque de questões jurídicas importantes trazidas pelo Plano Diretor de SãoGabriel da Cachoeira – conflitos fundiários, as terras indígenas e a questão federativa,o urbano e o rural na Amazônia11, sobreposição de unidades de conservação e terrasindígenas, entre outros – a construção de um processo democrático em um imensoterritório com a presença de diferentes etnias já é, em si, um desafio.

A elaboração de Planos Diretores participativos é condicionada a uma série derequisitos, tais como a coordenação compartilhada entre governo e sociedade civil12;a publicidade (art. 4º da Resolução 25 e art. 40, § 4º, II do Estatuto da Cidade), e a

9 A análise do processo de elaboração do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira foi elaborada com base nosrelatórios elaborados pelo Instituto Polis (Instituto de Assessoria, Pesquisa e Formação em Políticas Públicas) epelo ISA (Instituto Socioambiental).

10 Este número pode chegar a 90% com a conclusão dos processos de demarcação das terras do Balaio e MarabitanaCué Cué.

11 Sobre uma leitura jurídica mais ampla sobre o Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, vide Nelson SauleJúnior e outros, Plano Diretor no Município de São Gabriel da Cachoeira. Aspectos Relevantes da LeituraJurídica. In Direito Urbanístico Brasileiro: vias jurídicas da Política Urbana, pp. 235 a 284.

12 (art. 3º, § 1º da Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades).

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diversidade do processo participativo, através da realização de debates por segmentos,por temas e por divisões territoriais (art. 5º, inciso I, da Resolução 25).

Ora, como garantir um processo participativo em um território cujas etniasfalam línguas distintas? Como se compartilhar um processo de elaboração de PlanosDiretores quando a distância a ser percorrida entre a sede do Município, pode durardias e com altos custos? Como se estabelecer divisões territoriais para os debatesquando cada pedaço de terra possui um altíssimo valor simbólico, cultural, mítico?

São questões que surgem a partir da realidade amazônica concreta e das recentestransformações no processo de urbanização brasileiro. O texto constitucional e onovo marco jurídico urbanístico brasileiro precisam, pois, ser analisados a partir dessesnovos desafios, articulando o planejamento territorial e os direitos indígenas,articulando não só capítulos do texto constitucional, mas o próprio Estatuto das Cidadese Estatuto do índio, de modo a garantir a construção de cidades mais justas e apreservação de culturas tão distintas.

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Proposta de Compensação Fiscal paraAssentamento de Populações Carentes deManaus/AM

MIGUEL ANGELO FEITOSA MELO,SIMONE MINELLI DE LIMA TEXEIRA

Alunos do Programa de Mestrado em DireitoAmbiental da Universidade do Estado do Amazonas(UEA).

RESUMO: É dever-poder dos Municípios promoverem políticas dedesenvolvimento urbano, destinadas à realização das funções sociais da cidadee ao bem-estar de seus habitantes (art. 182, caput, CF). Entende-se ser a tributação,com finalidades extra fiscais, um dos instrumentos idôneos para a consecuçãodesses objetivos. O exercício de atividades produtivas, no meio urbano, emborabenéfico do ponto de vista estritamente econômico, gera externalidades negativas,como a formação de favelas, a ocorrência de invasões de áreas de proteçãoambiental, trânsito congestionado etc. Não obstante, os detentores dos meios deprodução não socializam seus ganhos econômicos, que, para serem auferidos,tiveram a colaboração da comunidade. Assim sendo, faz-se oportuna a intervençãodo Ente Público Municipal para, servindo-se das competências tributárias quelhe são conferidas pela Constituição Federal, buscar induzir (indução positiva)os grandes agentes produtivos, segundo o modelo de gestão redistributiva, apromoverem projetos de cunho social que ensejem melhoria na qualidade devida dos habitantes da cidade, oferecendo, como contrapartida a essas ações,isenções ou reduções de impostos, taxas e contribuições de melhoria municipais.Respeitados os princípios constitucionais tributários, reputa-se viável ainstrumentalização de tributos para a efetivação de políticas de desenvolvimentourbano. Ademais, dar-se-ia aplicabilidade aos princípios jurídicos ambientaisda prevenção, do poluidor/usuário-pagador, da cooperação, do desenvolvimentosustentável, dentre outros. Sob esta visão, é que se propõe, para o Município deManaus-AM, detentor de inúmeros problemas de ordem urbanística, ainstrumentação dos seus tributos para que a iniciativa privada seja incitada aviabilizar projetos de assentamento de populações carentes residentes em favelase áreas de proteção ambiental, localizadas na Cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Municípios; Ocupações Irregulares; Política Urbana;Tributação Extra-Fiscal; Assentamentos; Princípios Ambientais e Tributários.

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SUMÁRIO: Introdução. 1. O crescimento urbano e a formação de favelas eocupações irregulares; 2. O capítulo II (arts. 182 e 183), do Título VII, daConstituição Federal/88 e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001); 3. A tributaçãoextra-fiscal como instrumento de política urbana; 4. As “invasões” e demaisocupações irregulares na Cidade de Manaus-AM; 5. Proposta de compensaçãofiscal para assentamento de populações carentes de Manaus-AM. Conclusão.Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca avaliar a possibilidade jurídica de se implementarpolíticas de crescimento urbano, utilizando-se de instrumentos tributários.

Após se defender a viabilidade jurídica de programas dessa ordem, sendoexpostas, ao mesmo tempo, as condições para a sua efetivação, tendo em vista,principalmente, as limitações constitucionais ao poder de tributar, representadas pelosprincípios constitucionais tributários, aborda-se no texto o problema das favelas,invasões e demais ocupações irregulares na área urbana do Município de Manaus,para o que é suscitada e defendida proposta de compensação fiscal para assentamentode populações carentes de Manaus-AM.

1. O CRESCIMENTO URBANO E A FORMAÇÃO DE FAVELAS EOCUPAÇÕES IRREGULARES

Sabe-se que, hodiernamente, são os centros urbanos o local em que sedesenvolve a maior parte das atividades produtivas no Brasil. Essa realidade veio seconstruindo nos últimos quarenta anos e modificou a distribuição populacionalbrasileira, que, até a década de 1960, era fortemente concentrada no meio rural,conforme tabela abaixo:

1960 2000

População urbana 45% 80%

População rural 55% 30%

Fonte: IBGE, 2000.

Tal metamorfose que ensejou a concentração da população no meio urbano foidecorrente do crescimento dos setores secundário e terciário da economia brasileira,sentido a partir do início da década de 1970.

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Efetivamente, na medida em que as indústrias e o comércio brasileiros passarama ter capacidade de produção expressiva, a oferta de mão de obra nos grandes centrosfoi majorada, o que fez com que grandes contingentes de pessoas que viviam naszonas rurais se deslocassem para as Cidades grandes, em busca do emprego comcarteira assinada, de melhores condições educação e saúde para a família, daprevidência etc.

Foi nesse contexto, portanto, que se formaram os principais centros urbanosbrasileiros: pessoas da zona rural que emigraram para as Cidades, cuja indústria eserviços precisavam de mão-de-obra para se desenvolver.

Ocorre que ao grande contingente populacional que se concentrou nas Cidadesnão foram oferecidas, ao longo do tempo, condições adequadas de infra-estruturaurbana, de acesso à terra urbana, à moradia (art. 6º, da Constituição Federal/88 – CF/88), ao transporte e a outras necessidades básicas.

Ao invés disso, o operariado desses centros viu campear a poluição do ar, adegradação dos rios, o congestionamento do trânsito, a diminuição dos espaços delazer, o aumento da criminalidade e a impossibilidade de acesso a um terreno urbanoonde pudesse construir sua moradia, rodeada de serviços urbanos essenciais àqualidade de vida de sua família.

Tal massa de trabalhadores, alijada das condições referidas, em especial doacesso à terra urbana, supervalorizada e especulada nas “áreas legais” da Cidade,estabeleceu-se muitas vezes em “invasões”, como áreas de proteção ambiental, ondecresceram favelas cujas condições, sob o ponto de vista urbanístico, é despiciendodelinear.

2. O CAPÍTULO II (ARTS. 182 E 183), DO TÍTULO VII, DA CONSTITUIÇÃOFEDERAL/88 E O ESTATUTO DA CIDADE (LEI 10.257/2001)

Atento a essa situação, o legislador constituinte reservou o capítulo II (arts.182 e 183), do Título VII, da CF/88, à política urbana brasileira, prevendo, logo nocaput do art. 182, caber aos Municípios promoverem políticas de desenvolvimentourbano, destinadas à realização das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seushabitantes. Destarte, o Município é identificado como o ente federativo responsávelpela promoção da política urbana, a qual deve ser estabelecida de forma a ordenar opleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, a garantir o bem estar de seushabitantes e a assegurar à propriedade urbana o cumprimento de sua função social.

A legislação que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal é oEstatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), que representa um importante passo para aconcreção das citadas normas constitucionais, na busca de cidades comprometidas

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com a inclusão social, na medida em que reforça a supremacia do interesse coletivosobre o individual.

Com vistas ao cumprimento dos objetivos de desenvolvimento urbano (art.182 da CF), o mencionado Estatuto prevê vários instrumentos de política urbana:parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o direito de superfície e o direitode preempção; e a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, bemcomo a transferência de potencial construtivo, concessão de uso especial para fins demoradia, concessão de uso especial coletiva para fins de moradia, usucapião urbana(individual ou coletiva).

Além desses meios, o Estatuto da Cidade previu expressamente, em seu art. 4º,IV, a utilização de instrumentos tributários para a consecução de políticas dedesenvolvimento urbano qualitativo. É exatamente acerca de tais instrumentos que opresente trabalho busca discorrer, de maneira a expor que são meios idôneos elegítimos, social e juridicamente, para se implementar políticas de melhoria do espaçourbano.

3. A TRIBUTAÇÃO EXTRA-FISCAL COMO INSTRUMENTO DEPOLÍTICA URBANA

Consoante descrito acima, a grande população dos principais centros urbanose as consequências daí decorrentes, como favelas, poluição, grandes congestiona-mentos no trânsito de veículos, têm sua origem nas atividades das indústrias e de-mais empreendimentos situados na Cidade que demandam grandemente a mão-de-obrade operários.

Em virtude do trabalho desses operários, a atividade econômica, de um modogeral, cresceu nas últimas décadas, gerando, para os agentes produtivos detentoresdo capital, grandes lucros e novos investimentos na escala de produção, ensejandoriquezas que se majoraram geometricamente.

Não obstante, os trabalhadores que, com seu labor, participam desse processonão tiveram e não têm acesso a esses ganhos econômicos, tampouco usufruíram demelhorias sociais, no que diz respeito a sua qualidade de vida, tendo em vista quepassaram a viver em favelas, regiões, em regra, de alta criminalidade, de ocupaçãoirregular e desprovida das mínimas condições de infra-estrutura urbana.

Percebe-se, portanto, que os ganhos usufruídos pelos detentores do capital sãoprivatizados, e não socializados, embora esses ganhos sejam obtidos de formasocializada, e não individualizada, na medida em que concorrem para ele não somenteo capital investido, mas também o suor do referido operariado.

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Os multicitados efeitos da atividade econômica sobre o meio urbano e aspopulações de baixa renda (as classes média e alta são menos atingidas) sãoexternalidades negativas1 do processo produtivo, as quais, todavia, não são absolvidaspelos detentores do capital, que deixam para a coletividade os efeitos nefastos de suaprodução, cuja lucratividade é de todo privatizada.

Assim sendo, faz-se necessária a intervenção do Estado no domínio econômico,com o objetivo de as referidas externalidades ser compensadas pelos que as geram edelas extraem riquezas.

Nesta senda, a tributação com finalidades extra-fiscais mostra-se como meioeficiente para o Estado intervir na economia, incitando a prática de açõesambientalmente elogiáveis, no que se denomina de indução positiva2, e inibindo osmodos de produção que, embora lícitos, são nefastos ao meio ambiente, ensejandouma indução negativa.

A indução positiva, para ser alcançada, deve haver, por parte do Estado, umincentivo fiscal, sob a forma de isenção, redução de alíquota ou de base de cálculo,anistia, remissão etc. Efetivamente, se o ente tributante oferta ao agente produtorincentivos dessa ordem, em troca de ações em prol do meio-ambiente (no presentecaso, urbano), decerto, atingirá a sua finalidade, tendo em vista o alto custorepresentado pelos tributos no orçamento da empresa, além do marketing que essaempresa poderá promover em virtude uma ação de interesse coletivo.

Por outro lado, a indução negativa opera-se com a exasperação (aumento daalíquota ou da base de cálculo) da carga tributária sobre processos produtivos quenão sejam recomendáveis do ponto de vista ambiental, embora não sejam consideradosilegais.

Nessa hipótese, percebendo o produtor o aumento no custo de produção, nopreço final do produto e, quiçá, uma diminuição das vendas, será compelido aabandonar os meios de produção indesejáveis para o bem da coletividade.

Não é por outra razão que a agenda 21, na seção IV – Meios de Implementação(Capítulo 33 – recursos e mecanismos de financiamento) recomenda, dentre outros,o uso de incentivos e mecanismos econômicos e fiscais (item 33.16, letra “b”) comoforma de promoção do desenvolvimento sustentável e de melhoria da qualidade devida dos assentamentos urbanos.

Também nesta vereda, o Estatuto da Cidade, ao regulamentar os arts. 182 e183 da CF/88, no tocante à política de desenvolvimento urbano, não só conferiu aos

1 AMARAL, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.2 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

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Municípios autonomia para definir a função social da propriedade urbana, comoressaltou a utilização de outros instrumentos legais motivadores do cumprimentodessa função social, dentre os quais os de natureza tributária (art. 4º, IV, da Lei 10.257/2001).

Toshio Mukai3, em sua obra Direito Urbano-Ambiental brasileiro, enaltece opapel dos tributos extra-fiscais como regulatórios das atividades individuais dentroda sociedade, por meio do estímulo ou desestímulo de certas condutas, no interesseda coletividade, “[...] através das figuras das isenções tributárias, das reduções, dassuspensões, ou mesmo, da tributação progressiva”.

Nesse sentido, faz-se mister enaltecer os mecanismos previstos no Estatuto daCidade, com vistas à tributação extra-fiscal:

a) o art. 2, X, prevê “a adequação dos instrumentos de política, econômica e financeira [...]aos objetivos do desenvolvimento urbano”;

b) o art. 4º preconiza a utilização do IPTU para a promoção do desenvolvimento urbano embenefício do interesse coletivo, indicando para tanto, no seu inciso IV, “instrumentostributários e financeiros: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana –IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros”.

c) o art. T prevê a aplicação da progressividade do IPTU, no caso de descumprimento dosprazos fixados para edificação e utilização dos imóveis;

d) o art. 47 estabelece que “os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativasa serviços públicos urbanos, serão diferenciados em função do interesse social”;

Resta evidente, portanto, a possibilidade de utilização, pelos Municípios, deseus tributos para a promoção de políticas de desenvolvimento urbano. Prova disso éque o Supremo Tribunal Federal (STF)4 tem destacado o caráter extra-fiscal dos tributospara o cumprimento da função social da propriedade.

Ressalte-se que o objetivo arrecadatório continuará a existir, mas ao tributopoderá ser adicionado o viés social direcionado a melhorias da qualidade de vida nasCidades. Eis, portanto, a nobre finalidade extra-fiscal a que os tributos dos Municípiospodem se prestar.

3 MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002, p. 82.4 EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPTU. PROGRESSIVIDADE

EXTRAFISCAL. ARTIGO 182, § 4º, II, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A cobrança do IPTU progressivopara fins extrafiscais, hipótese prevista no artigo 182, § 4º, inciso II, da CB/88, somente se tornou possível apartir da edição da Lei n. 10.257/01 [Estatuto da Cidade]. Agravo regimental a que se nega provimento. RE-AgR 338589-ES, Min. EROS GRAU, Julgamento: 24/06/2008, Órgão Julgador: Segunda Turma.

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Expostos, de forma breve, os fundamentos da tributação com vistas à promoçãode políticas de desenvolvimento urbano, traz-se à baila o problema de acesso à terraurbana e à moradia digna na Cidade de Manaus-AM.

4. AS “INVASÕES” E DEMAIS OCUPAÇÕES IRREGULARES NACIDADE DE MANAUS-AM: NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DODIREITO FUNDAMENTAL DE MORADIA (ART. 6º, DA CF/88)

Esta urbe, por ser o principal centro industrial da Região Norte do país, atraiupara si pessoas provenientes de diversos Municípios da Amazônia, ou de outras regiõesdo Brasil, com expectativa de ter acesso ao trabalho e a outras condições que umcentro econômico pode oferecer. Como resultado desse processo, Manaus, que, em1970, possuía 300 mil habitantes, passou a ter, no ano de 2000, população de 1,5milhões de pessoas5.

Sucede que o Poder Público Municipal, embora tenha participado e incremen-tado apoio político para a criação (Decreto nº 288/1967) e a prorrogação (art. 40 daCF/88) da Zona Franca de Manaus, não preparou a Cidade com condições ideaispara servir de palco para um relevante parque industrial e para uma grande massa deoperários atraídos por oportunidades de trabalho oferecidas direta ou indiretamentepelo Pólo Industrial de Manaus-AM.

Assim sendo, o que se viu em Manaus foi o surgimento de habitações precáriase irregulares em diversas partes da Cidade, o que ensejou seu atual déficit habitacionalde 67%, segundo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Estado doAmazonas (CREA-AM). Ou seja, de cada 100 manauaras, 67 não possuem moradiaou a possuem sem condições adequadas de habitabilidade.

Muitas dessas moradias irregulares estão concentradas em terras do patrimôniopúblico federal, estadual ou municipal, em áreas de proteção ambiental, como osigarapés que cortam a Cidade, formando as várias invasões que existem na capitalAmazonense.

As invasões, é cediço, não oferecem aos seus ocupantes as mínimas condiçõesde saneamento básico, segurança, educação, lazer, que o espaço público deve ofertara sua população. São locais de ocupação irregular, áreas “fora da lei”, onde o PoderPúblico é ate mesmo impedido, por restrições legais, de promover investimentos eminfra-estrutura urbana.

Resta, portanto, aos Municípios realizar e executar projetos de assentamentode famílias de baixa renda, residentes nas citadas áreas. Tais famílias necessitam que

5 Fonte: Censo IBGE 1970/2000.

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o Poder Público e, em especial, o Município, desincumba-se do seu deverconstitucional, e lhes efetive o direito à moradia (art. 6º da CF/88).

Todavia, esse direito, de caráter fundamental, não se exaure na obtenção deuma construção com chão e teto, mas requer uma residência com cômodos adequadose todas as demais condições de habitabilidade, somadas à disponibilização de serviçose equipamentos urbanos, como escolas, unidades públicas de saúde, transportes, áreade lazer, ensejando para o munícipe dignas condições de moradia e oportunidades deinclusão social.

Ocorre que esses projetos, muitas vezes não são implementados com a devidaeficiência pelos Municípios, não sendo raro o registro de desvio de dinheiro públicoe de obras de habitação popular inacabadas.

5. PROPOSTA DE COMPENSAÇÃO FISCAL PARA ASSENTAMENTODE POPULAÇÕES CARENTES DE MANAUS-AM

Nesse diapasão, mostra-se interessante a indução (positiva), por parte doMunicípio, por meio dos instrumentos tributários, num modelo de gestãoredistributiva, para que a iniciativa privada custeie e execute empreendimentos sociaisdessa natureza, com o escopo de obter tratamento tributário privilegiado.

Os impostos (IPTU, ISS e ITBI), as taxas e as contribuições de melhoria dacompetência tributária dos Municípios podem ser instrumentalizados para aconsecução da proposta ora sugerida.

Os impostos, pela ausência de retributividade e pelo alto custo que representapara o setor produtivo, são a espécie tributária mais apropriada para a tributaçãoambiental-urbana, podendo ser utilizado para gerar a já citada indução positiva, pormeio da concessão de isenções ou reduções de alíquotas ou bases de cálculo.

As isenções ou reduções nos valores das taxas e contribuições de melhoriatambém têm aptidão para induzir positivamente os detentores do capital à realizaçãodos citados projetos de cunho social.

Ademais, cabe notar que proposta dessa natureza, além de encontrar respaldonos Estatutos jurídicos já referidos, fundamenta-se também na aplicabilidade dosprincípios jurídicos ambientais da prevenção, do poluidor/usuário-pagador, dacooperação, do desenvolvimento sustentável, dentre outros.

Não obstante, é necessário alertar que o estabelecimento de política urbanacom tributação extra-fiscal deverá se submeter aos princípios constitucionaistributários, previstos no Título VI da CF/88, sob o título da tributação e do orçamento.

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Nesse sentido, a concessão de incentivos fiscais, conforme acima tratado, devenecessariamente se submeter ao princípio da legalidade (art. 150, I, § 6º, da CF,combinado com o art. 97, VI, do Código Tributário Nacional – CTN).

Além disso, a Lei que concede o benefício fiscal, sob qualquer de suas formas,necessariamente terá que ser específica, ou seja, deverá regular exclusivamente oincentivo fiscal concedido ou o correspondente tributo que esteja sendo objeto daconcessão do privilégio tributário, nos termos do § 6º, do art. 150, da CF, in verbis:

§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de créditopresumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá serconcedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamenteas matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo dodisposto no art. 155, § 2º, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3. de 1993).

Essa norma visa a evitar que incentivos fiscais sejam previstos no bojo deprojetos de leis referentes a assuntos de natureza distinta e acabem por passardespercebidos pelos parlamentares e pela sociedade brasileiros. Trata-se de exigênciasalutar, na medida em que tenta buscar o debate e participação de toda a coletividadena criação de um incentivo fiscal, o que vai ao encontro do Estatuto da Cidade, queprevê a gestão democrática das Cidades, “[...] por meio da participação da populaçãoe de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação,execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimentourbano” (art. 2º, II, do Estatuto da Cidade).

Outrossim, deverá ser observado o primado da vedação da concessão deisenções heterônomas (art. 150, § 6º, e art. 151, III, da CF/88), que veda que os entestributantes concedam benefícios fiscais relativos a tributos da competência de outroente federado. Ou seja, não poderá o Município de Manaus-AM deferir benefíciostributários referentes a tributos da competência dos Municípios que lhe são vizinhos,ainda que os assentamentos a ser realizados se localizem em áreas pertencentes aoterritório das Cidades contíguas à capital Amazonense.

CONCLUSÃO

Verifica-se, portanto, que, com a CF/88 e o Estatuto da Cidade, os Municípiospassaram a dispor de instrumentos capazes de promover políticas públicas proficientes,ensejadoras de melhorias no meio ambiente urbano e na qualidade de vida doshabitantes das Cidades, bem como de inclusão social de populações marginalizadas.

Dentre os instrumentos disponibilizados pelos citados repositórios, a tributaçãocom finalidades extra-fiscais apresenta-se como meio idôneo e legítimo para aimplementação de políticas de crescimento urbano.

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Idôneo, porque, na medida em que se intervém no domínio econômicoaumentando ou diminuindo a carga tributária das atividades produtivas, as empresassão induzidas a perseguir os objetivos almejados pela Política Pública, pois,inexoravelmente, desejam fugir dos cautos da tributação.

Entende-se que uma medida de governo, para ser eficiente em sua atuaçãojunto aos agentes econômicos, deve utilizar instrumentos que gerem reflexoseconômicos. É preciso “jogar com a mesma moeda”. Não é conveniente esperar dainiciativa uma conscientização social que, quiçá, nunca venha, salvo poucas exceções.

E legítimo porque impõe aos agentes produtivos a absorção de parte dasexternalidades negativas que seus empreendimentos geram em prejuízo do meiourbano e das pessoas que nele vivem, além de ser uma forma de redistribuição deriquezas.

Ademais, dar-se-ia aplicabilidade aos princípios jurídicos ambientais daprevenção, do poluidor/usuário-pagador, da cooperação, do desenvolvimentosustentável, dentre outros.

Em vista do exposto, considerando a realidade social e econômica da Cidadede Manaus, entende-se ser pertinente, tanto sob a ótica social quanto jurídica, aproposta de compensação fiscal para assentamento de populações carentes dessaCidade, a qual, não obstante, teria que obedecer todas as limitações constitucionaisao poder de tributar, conforme visto.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2007.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Curso de Direito Ambiental. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. II. ed. São Paulo: Malheiros,1997.

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MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros. 1998. MEIRELLES,Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

MOTTA, Ronaldo Seroa da, OLIVEIRA, José Marcos Domingues de, MARGULIS, Sérgio. Propostade Tributação Ambiental na Atual Reforma Tributária. IPEA: Rio de Janeiro, 2000.

MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002.

OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário e Meio Ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1999.

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Sites Consultados:

CASTELLO, Melissa Guimarães. A possibilidade de instituir tributos ambientais em face da Constitui-ção de 1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 692, 28 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6796>. Acesso em: 21 nov. 2007.

FERNANDES, Rodrigo. A eficácia dos instrumentos econômicos para o desenvolvimento sustentável .Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 589, 17 fev. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6342>. Acesso em: 21 out. 2007.

LENZ, Leonardo Martim. Proteção ambiental via sistema tributário . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.589, 17 fev. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6343>. Acesso em: 29out. 2007.

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