Os Dentes Falsos de George Washington - R. Darnton.pdf

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  • - Darnton, Robert. "O processo do lluminismo: os dentes falsos de George Washington". In: . Os dentes falsos de George Washington. So Paulo: Cia das Letras, 2005, pp. 17-39.

  • i. O processo do Iluminismo: os dentes falsos de George Washington

    Vivemos numa era de inflao: dinheiro inflacionado, cargos inflados, cartas de recomendao infladas, reputaes infladas e idias infladas. O exagero publicitrio generalizado tem afetado nossa compreenso do movimento inicial da cultura poltica moderna, o Iluminismo setecentista, porque tambm ele tem sido amplificado de tal maneira que no seria reconhecido pelos ho-mens que o criaram. Inicialmente irrigado com uns poucos bons mots em alguns sales parisienses, ele se tornou uma campanha para esmagar Vinfme, uma marcha do progresso, um esprito da poca, uma f secular, uma viso de mundo a ser defendida, com-batida oii transcendida, e a fonte de tudo o que era bom, mau e moderno, incluindo o liberalismo, o capitalismo, o imperialismo, o chauvinismo masculino, o federalismo mundial, o humanita-rismo da Unesco e a Famlia Humana. Qualquer um que tenha contas a ajustar ou uma causa a defender comea pelo Iluminismo.

    Ns, acadmicos, contribumos para a confuso porque cria-mos uma imensa indstria, os estudos do Iluminismo, com suas prprias associaes, jornais, sries de monografias, congressos e

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  • fundaes. Como todos os profissionais, continuamos expandindo nosso territrio. Segundo o ltimo levantamento, havia trinta asso-ciaes profissionais em seis dos sete continentes (a Antrtica ainda resiste), e nos nossos ltimos congressos mundiais ouvimos traba-lhos sobre o Iluminismo russo, o Iluminismo romeno, o Ilumi-nismo brasileiro, o Iluminismo josefiniano, o Iluminismo pietista, o Iluminismo judeu, o Uuminismo musical, o Iluminismo religio-so, o Iluminismo radical, o Iluminismo conservador e o Iluminis-mo confucionista. O Iluminismo est comeando a ser tudo e, por-tanto, a no ser nada.

    I

    Proponho a deflao. Tomemos o Ilurpinismo como um movi-mento, uma causa, uma campanha para mudar as mentes e refor-mar as instituies. Como todos os movimentos, ele teve um co-meo, um meio e, em alguns lugares, mas no em outros, um fim. Foi um fenmeno histrico concreto, que pode ser situado no tempo e circunscrito no espao: Paris primeira parte do sculo XVJTI. Claro que Teve suas razes. Que movimento no as tem? Els~vmham da Antigidade e cobriam o mapa da Europa. A dvida cartesiana, a fsica de Newton, aepistemologia lockeana, as cosmologias de Leib-niz e Spinoza, a lei natural de Grotius e Pufendorf, o ceticismo de Bayle, a crtica bblica de Richard Simon, a tolerncia dos holande-ses, o pietismo dos alemes, as teorias polticas e o livre pensamento

    * dos ingleses. Poderamos fazer uma lista detalhada das fontes filos-ficas, e muitos historiadores a fizeram. Mas compilar as fontes errar o alvo, pois o Iluminismo era menos que a soma de suas partes filosficas, e poucos dos philosophesforam filsofos originais.

    Eles eram homens de letras. S raramente desenvolveram idias no sonhadas pelas geraes anteriores. Compare Voltaire

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  • com Pascal, Condillac cm Locke, Diderot com Descartes, Laplace com Newton, d'Holbach com Leibniz. Os philosophes empreende-ram variaes sobre temas estabelecidos por seus predecessores. Natureza, razo, tolerncia, felicidade, ceticismo, individualismo, liberdade civil, cosmopolitismo: tudo isso pode ser encontrado, com mais profundidade, no pensamento do sculo xvii. Esses tpi-cos podem ser encontrados na obra de pensadores do sculo xvm desvinculados dos philosophes ou opostos a eles, tais como Vio, Haller, Burke e Samuel Johnson. O que, ento, distingue os philo-sophes?

    Compromisso com uma causa. Engagement O philosophe era um novo tipo social, que hoje conhecemos como o intelectual. Ele pretendia colocar suas idias em uso, persuadir, propagar e trans-formar o mundo ao redor. certo que pensadores anteriores tam- . bm haviam nutrido a esperana de mudar o mundo. Os radicais religiosos e os humanistas do sculo xvi eram devotados a causas. Mas os philosophes representaram uma nova fora na histria, homens de letras agindo em conjunto e com autonomia consider-vel para impor um programa. Eles desenvolveram uma identidade coletiva, forjada pelo compromissb comum em face dos riscos comuns. Foram marcados como um grupo pelos perseguidores, apenas o bastante para dar dramaticidade a sua ousadia, mas no o suficiente para impedi-los de prosseguir na empresa. Desenvolve-ram um forte sentido de "ns" contra "eles": homens de esprito contra os fanticos, honntes hommes contra os privilgios exclusi-vos, criaturas da luz contra os demnios das trevas.

    Formavam tambm uma elite. A despeito das tendncias de nivelamento inerentes a sua f na razo, eles almejavam alcanar as posies de comando da cultura e iluminar de cima para baixo. Essa estratgia levou-os a se concentrar na conquista dos sales e academias, jornais e teatros, lojas manicas e nos principais cafs, onde poderiam ganhar os ricos e poderosos para a causa e mesmo

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  • r

    adquirir acesso, por meio de portas dos fundos e boudoirs, ao trono. Eles atingiam um amplo pblico entre as classes mdias, mas estavam acima do alcance do campesinato. Melhor no ensi-nar os camponeses a ler, dizia Voltaire; algum tem que arar aterra.

    Essa viso, percebo, heresia. politicamente incorreta. Embora contemple a influncia de damas da corte e grandes dames nos sales, ela s concentra em homens. elitista, voltairiana e incorrigivelmente parisiense. Mas e o famoso carter cosmopolita do Iluminismo? E os grandes pensadores de fora de Paris e mesmo das fronteiras da Frana? Embora eu considere Paris a capital da Repblica das Letras no sculo XVIII, concordo que o Iluminismo se difundiu a partir de muitos pontos: Edimburgo, Npoles, Halle, Amsterd, Genebra, Berlim, Milo, Lisboa, Londres e at mesmo Filadlfia. Cada cidade tinha seus filsofos, muitos dos quais se correspondiam com os philosophes; alguns deles at os superaram. Quando se avalia a profundidade e a originalidade do pensa-mento, difcil encontrar um parisiense que se compare com Hume, Smith, Burke, Winckelmann, Kant e Goethe. Ento por que se concentrar em Paris?

    Foi ali que o movimento tomou corpo e se definiu como uma causa. Nuiaa fase anterior, que eu chamaria de pr-Iluminismo, escritores filosficos como John Locke, John Toland e Pierre Bayle entrecruzavam seus caminhos atravs da Inglaterra e dos Pases Baixos. Eles compartilhavam itinerrios e idias, incluindo a viso de Bayle de uma Repblica das Letras internacional. Mas foi s quando seus herdeiros intelectuais, os philosophes, ocuparam o ter-reno e lanaram-se campanha que o Iluminismo emergiu como causa, com militantes e um programa. Seus partidrios forjaram sua identidade coletiva em Paris durante as primeiras dcadas do sculo XVIII. medida que o movimento ganhou fora, ele se espa-lhou, e medida que se espalhou, sofreu mudanas, adaptando-se

    j a outras condies e incorporando outras idias. Mas no chegou

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  • a toda parte, nem cobriu todo o espectro da vida intelectual. Tomar o Iluminismo pela totalidade do pensamento ocidental no sculo xvill compreend-lo muito mal. Ao v-lo como uma campanha planejada por um grupo consciente de intelectuais, podemos re-duzi-lo s devidas propores. Essa perspectiva faz justia a seu carter, pois os philosophesse concentravam menos em desenvolver uma filosofia sistemtica do que em dominar os meios de comuni-cao de sua poca. Eles brilhavam ria conversa inteligente, na escrita de cartas, nos boletins manuscritos, no jornalismo e em todas as formas do mundo impresso, dos grossos tomos da Bncyclch pdie aos borrados panfletos distribudos por Voltaire.

    A viso difusionista tambm d conta da expanso do Ilumi-nismo para outras partes da Europa na segunda metade do sculo XYin epara o resto do mundo dali em diante. Por volta de 1750, fil-sofos com idias semelhantes, vindos de outros lugares, haviam passado a pensar em si prprios como philosophes. Paris os atraa como um m, e os parisienses os arregimentavam para a causa, contentes por receber o reforo de pensadores originais como Hume e Beccaria. Mas o philosophe estrangeiro, com seu francs imperfeito e sua peruca ondulada incorretamente, sentia a condi-o forasteira em Paris. Com freqncia, ele voltava para casa determinado a seguir as investigaes por conta prpria. (Apesar de ter sido tratado como celebridade em Paris, Beccaria correu de volta para Milo o mais rpido que pde e trocou a criminologia pela esttica.) O philosophe en mission em Londres, Berlim e Milo tambm descobriu fontes aliengenas de pensamento, muitas delas angustiantemente crists. Fissuras se abriram; desenvolve-ram-se divises; ramificaes se estenderam em novas direes. Essa a natureza dos movimentos. Esto sempre em curso, multi-plicando-se e dividindo-se.

    Uma nfase na difuso no implica indiferena quanto s idias> nem entre os philosophes, nem entre os historiadores que os

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  • estudam. Tampouco implica passividade na recepo final das mensagens enviadas de Paris e de outros pontos de transmisso ao longo dos circuitos de intercmbio intelectual. Ao contrrio: os estrangeiros respondiam no mesmo tom. Dilogo, interao pes-soal, troca de correspondncia e livros mantinham em expanso "a Igreja", como Voltaire a chamava. E a causa infundia convico, porque as idias dos philosophes eram ides-forces, como liberda-de felicidade, natureza e leis naturais. Mas elas no eram particu-larmente originais. Pensadores em Estocolmo e em Npoles no precisavam ler Voltaire para aprender sobre tolerncia e lei natural.

    Essas idias pertenciam ao acervo comum de conceitos aces-sveis s classes instrudas de todos os lugares. Filsofos as desen-volviam de novas maneiras sem a necessidade de nenhum empur-ro de Paris e, muitas vezes, sem o menor alinhamento com o Iluminismo. No era uma matria original para o pensamento o que Voltaire e seus companheiros de conspirao forneciam, mas sim um novo esprito, o sentido de participao numa cruzada secular. Comeou com escrnio, como uma tentativa de expulsar os obscurantistas da sociedade civilizada por meio do riso, e termi-nou com a ocupao do mais alto territrio moral, como uma campanha pela libertao da humanidade, incluindo os subjuga-dos e escravizados, protestantes, judeus, negros e (no caso de Con-dorcet) mulheres.

    Da deflao difuso e da difuso ao estudo de um esprito, esta abordagem do Iluminismo pode muito bem parecer suspeita. Pois se no queremos fazer um inventrio de idias e sim tomar o pulso de um movimento, no seremos obrigados a tatear no es-curo em busca de um Zeitgeistf Prefiro pensar que podemos bus-car uma historicidade mais rigorosa. Os movimentos podem ser mapeados. Pode-se segui-los no espao e no tempo, medida que os grupos se combinam e as mensagens fluem pelos sistemas de comunicao.

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  • O Iluminismo surgiu de uma grande crise durante os ltimos -unos do reixiado de Lus XIV. Por um sculo, o poder da monarquia e o prestgio da literatura cresceram rapidamente, mas depois de 1685 elas se distanciaram gradualmente uma da outra. A revoga-o do edito de Nantes, a querela dos Antigos e Modernos, a perse-guio dos jansenistas e dos quietistas, tudo isso entrou em ebuli-o enquanto a Frana sofria uma srie de desastres demogrficos, econmicos e militares. Com o estado beira do colapso, homens de letras ligados corte Fnelon, La Bruyre, Boulainvilliers, Vauban, Saint-Simon questionavam as bases do absolutismo dos Bourbon e a ortodoxia religiosa que ele impunha. La vilte seguia seu prprio caminho enquanto J.a cour sucumbia parali-sia, esperando pela morte do rei idoso. Uma nova gerao de esprits forts e beaux esprits conquistou os sales e soprou vida nova na libertinagem desenvolvida durante o sculo xvil. Em 1706, um prodgio de doze anos de idade, Franois-Marie Arouet, mais tarde conhecido como Voltaire, debutou na sociedade libertina do Tem-ple. poca da morte de Lus xiv, nove anos depois, ele havia esta-belecido uma reputacQxomo_ajiiteligncia mais arguta de Paris, e a cidade, ou sua parte rica e mundana conhecida com-emortdey havia se rendido aos ditos espirituosos, muitos deles custa da Igreja e de qualquer coisa que passasse por digna nos crculos diri-gentes da Regncia.

    O Iluminismo, nesse estgio, permanecia confinado a uma pequena elite e tambm palavra falada e manuscrita. Bons mots e panfletos libertinos passavam de um salo a outro, mas raramente apareciam impressos. As primeiras grandes excees foram as Cartas persas (1721) de Montesquieu e as Cartas filosficas (1734) de Voltaire. Ambas as obras mostravam um progresso da sagaci-dade sabedoria, pois os dois autores misturavam irreverncias libertinas com reflexes srias sobre > despotismo e a intolerncia. Tendo sido espancado pelos lacaios do chevaliert Rohan-Chabot

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  • e preso duas vezes na Bastilha, Voltaire aprendera a levar em conta a fragilidade dos escritores independentes num mundo dominado por redes de proteo da riqueza e do bero.

    O grande evento editorial seguinte, o aparecimento de Le Phi-losophe em 1743, trouxe uma resposta a esse problema. Os escrito-res deviam moldar-se a um tipo ideal: nem um cientista nem um sbio, mas um riovo fenmeno, o philosophe, em parte homem de letras, em parte homem do mundo, e inteiramente empenhado em usar as letras para livrar o mundo da superstio. Esse pequeno panfleto, mais tarde incorporado na Encyclopdie e no vangile de la raison de Voltaire, serviu como uma declarao de independn-cia para o intelectual ao mesmo tempo que lhe fornecia uma estra-tgia: ele devia trabalhar no interior da estrutura de poder, promo-vendo uma aliana de gens de lettres e gens du monde, de modo a fazer avanar a causa da philosophie.

    Os philosophes, como o grupo agora comeava a ser conhe-cido, encontraram seu maior aliado em C. G. de Lamoignon de Malesherbes, o diretor do comrcio de livros de 1750 a 1763. Gra-as a sua proteo, o Iluminismo chegou plenamente ao texto impresso. Apesar da perseguio por parte de clrigos e magistra-dos, as obras mais importantes, desde Do esprito das 1c.it (1748) de Montesquieu at rnile e Do contrato social (1762) de Rousseau, circularam em segurana pelas artrias da indstria editorial. A Encyclopdie (dezessete volumes de texto, 1751-65, seguidos por onze volumes de ilustraes, os ltimos deles publicados em 1772) redefiniu o mundo do conhecimento para os leitores modernos, infundiu-lhe philosophie e identificou-o com um crculo de philo-sophesy a socit de gens de lettres nomeada em seu frontispcio. A Encyclopdie causou um escndalo e quase naufragou; mas em 1789 ela havia se tornado o maior best-seller da histria editorial. Apesar de alguns duros golpes, ou, antes, por causa deles, particularmente durante a crise poltico-intelectual de 1757-62, o philosophe havia

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  • emergido como um novo tipo social e uma fora a ser levada em conta, o fenmeno que hoje identificamos como o intelectual.

    O restante da histria no precisa ser contado aqui. Ela farta em complexidades e contradies (Jean-Jacques Rousseauno era a menor delas), e certamente no pode ser reduzida a um tranqilo processo de difuso da luz mediante a venda de livros. Depois dos anos 1750 a maior parte dela teve lugar fora da Frana, especial-mente atravs da remodelao do nnder autocrtico sob a forma de absolutismo esclarecido. Mas em toda parte na Prssia de Frederico N, na Rssia de Catarina II, na ustria de Jos II, na Tos-cana do arquiduque Leopoldo, na Espanha de Carlos rn, no Portu-gal de Jos i, na Sucia de Gustavo in soberanos e ministros vol-tavam-se para os filsofos em busca de orientao ou legitimao. Quase todos eles liam em francs; quase todos consultavam a Ericy-clopie, e os mais importantes dos seus sditos faziam o mesmo.

    O propsito desse desvio atravs do historicismo no mera-mente reduzir o Iluminismo a.propores manejveis, mas tam-bm lanar a discusso que veio a seguir: sua importncia para as questes que emergiram depois do sculo XVIII. O Iluminismo inflado pode ser identificado com toda a modernidade, com quase tudo o que se agrupa sob o nome de civilizao ocidental, e assim pode ser responsabilizado por quase tudo que causa descontenta-mento, especialmente nos campos dos ps-modernistas e antjoci-dentalistas.

    II

    Qualquer que seja nosso xito na reduo do Iluminismo a suas verdadeiras dimenses como fenmeno do sculo XVIII, no podemos negar que ele produziu uma srie de valores que perma-neceram vivos ao longo dos sculos seguintes e que separaram

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  • a l g u m a s sociedades das outras. A nomenclatura ^variamoderno vs. medieval; burgus vs. aristocrtico; liberal V5. tradicional; capi-talista vs. feudal, mas, tomados em conjunto, os termos contras-tantes apontam para uma linha divisria que tem existido h muito tempo na conscincia coletiva. Como a maioria das frontei-ras, ela provocou conflitos. Alguns pretenderam mud-la de lugar; outros, elimin-la. gora, porm, ela pode simplesmente desapa-recer sem luta porque uma nova linha foi traada: em 1989, a demarcao de duas eras antes e depois da Guerra Fria. Chega-mos ao fim de um sculo curto, que se estendeu de 1914 a 1989, mas no sabemos em que sculo estamos entrando.

    A era do ps-modernismo? O termo significa coisas diferen-tes para pessoas diferentes, mas, por mais insatisfatrio que possa ser, comunica um senso de ruptura com uma poca em que os ter-mos eram claros ou pelo menos desencadeavam claramente uma srie de idias antagnicas. Era-se a favor ou contra o liberalismo, o conservadorismo, o capitalismo, o socialismo, o individualismo, o coletivismo e assim por diante. Agora falamos, ou, antes, discur-samos, sobre representao, memria, inveno, negociao, construo, interpretao, construo e desconstruo. Tendo tomado o caminho da lingstica, sentimo-nos livres para reeditar a realidade e declarar morto o Iluminismo. Mas a realidade se recusa a comportar-se como um texto e o Iluminismo parece ainda ter vida dentro de si, porque ainda um menino aoitado,* e no se aoitam cadveres. Os ataques mudaram, porm. No lugar das antigas acusaespositivismo rasteiro, otimismo ingnuo, ideologia burguesa , os ps-modernistas tm denunciado o Ilu-minismo a partir de um novo conjunto de alegaes. A acusao assume a seguinte forma:

    *No original, whipping boy> garoto educado junto a. um prncipe e ocasional-mente castigado no lugar deste. A expresso tem o sentido figurado de bode expiatrio. (N.T.)

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  • 1. A pretenso do Iluminismo universalidade serviu na ver-dade como uma mscara para a hegemonia ocidental. Os direitos do homem deram legitimao destruio de outras culturas. Exemplo: capito Cook.

    No vou minimizar os danos ocasionados por ocidentais quan-do entraram em contato com outras partes do mundo, nem tam-pouco questionar a reputao de Cook como homem prototlpico do Iluminismo, Mas Cook mostrou muito respeito pelos costumes nativos, muito mais do que os conquistadores do sculo xvi e os imperialistas do xix. No se podia evitar a tragdia nos encontros OesteLeste e NorteSul, mas ela era trazida pelo comrcio, pela doena e pela tecnologia, e no pela filosofia. A incompreenso mtua certamente contribua para o estrago. Sua dimenso cultu-ral era crucial; mas Iluminismo c cultura ocidental no eram a mesma coisa, e os philosophes fizeram esforos louvveis no ape-nas para compreender outros povos, mas tambm para melhorar seu destino: veja-se a Histoirephilosophique des tablissements etdu commerce des Europens dans les deux Jndes, um tratado radical e amplamente difundido do abade Raynal, que contribuiu muito para a abolio da escravido.

    Uma acusao afim segue uma linha um pouco diferente: 2 . 0 Iluminismo era imperialismo cultural sob o disfarce de

    uma forma mais elevada de racionalidade. Ele proporcionou aos europeus uma "misso civilizadora" e um meio de construir "nati-vos" que levou ao silncio e submisso destes ltimos. Exemplo: o orientalismo.

    Este argumento bebe em Foucault, na teoria literria e na antropologia para enfatizar os ingredientes epistemolgicos e cul-turais da hegemonia ocidentai Ningum que tenha empreendido a leitura dessas fontes ir negar que os indivduos esto sempre construindo os outros. Em encontros intercultura/j, "alterizao" (para usar o jargo) pode ser fatal. Ela leva ao "essencialismo"

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  • (outro termo pejorativo em vigor) isto , projeo de qualida-des nos outros de uma maneira que os reifica aos olhos do obser-vador e vezes tambm aos deles prprios. A esse respeito o pen-samento iluminista pode parecer "limitado pela cultura" e "no-dialgico" (mais dois tabus na cincia social ps-moderna). Mas toda cultura tem fronteiras. As noes ocidentais de indivi-dualismo podem de fato ser incompatveis com as noes de eu desenvolvidas na China e na ndia. Mas o Iluminismo abriu o ca-minho para uma compreenso antropolgica dos outros. Ele foi profundamente dialgico e forneceu um antdoto a sua prpria tendncia a dogmatizar: testemunhos disso so o Suplemento viagem de Bougainville de Diderot e todos os dilogos do autor.

    O orientalismo certamente abasteceu os esteretipos que eles imputavam ao Oriente, e os philosophes contriburam com sua quota para essa tendncia. Montesquieu e Voltaire podem ter colo-cado seus simpticos persas e chineses filosficos sob uma luz positiva com o intuito de projetar de volta uma viso crtica sobre a Frana; mas estereotipar positivamente , de todo modo, estereo-tipar, e pode bloquear a receptividade a uma genuna relao de troca com outras culturas. Mas outras pocas, em contraste com o sculo XVIII, significavam quase s tomar tudo sem dar nada em troca. O imperialismo essencialmente um fenmeno do sculo XDT, e encontrou muito mais inspirao nos romnticos que nos philosophes. Byron e Kipling, Declacroix e Ingres, Verdi e Puccini superaram de longe os artistas do sculo xvni na criao de orien-tais exticos. Alm disso, a "exotizao" comeou muito antes do Iluminismo, e tomou freqentemente a forma de demonizao. Sarracenos cruis, dspotas orientais e ttes de Turcs proliferaram na imaginao ocidental desde as primeiras guerras contra o Imprio Otomano. Preconceitos mais antigos datam das Cruza--das. Desenvolveram-se ao longo dos sculos, acompanhados, bom que se diga, dos preconceitos dos orientais contra o Ocidente.

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  • (Depois de ouvir uma dissertao acadmica sobre a recepo de Rousseau no Japo, pareceu-me que devamos ter em mente um "ocidentalismo", analogamente ao "orientalismo") Culpar o Ilu-minismo pelo orientalismo confundir o pensamento de um punhado de intelectuais no sculo xvill com todo o curso da civi-lizao ocidental.

    Finalmente, preciso sublinhar que o Iluminismo carecia do mais venenoso ingrediente do imperialismo vale dizer, o racismo. No h como ignorar a defesa da escravido por Jeffer-son, ou as especulaes biolgicas de lorde Kames e lorde Mon-boddo sobre a natureza dos amerndios, dos africanos e dos oran-gotangos. Mas quem estiver procura de uma viso mais tpica deve voltar-se para a apaixonada denncia da escravido por Vol-taire no Cndido, captulo 19, que se inspirou no igualitarismo radical da obra Do esprito, de Helvtius. A raa no uma catego-ria fundamental no pensamento dos philosophes. O mundo teria de esperar por gente como Gobineau para chegar a esse nvel de filosofia.

    3 . 0 Iluminismo buscava o conhecimento to fanaticamente que solapava a tica. Em ltima instncia, aquele fanatismo ali-mentou o fascismo, pois armou o Estado com tecnologia -superior e destruiu as barreiras morais ao onipresente exerccio do poder de Estado, A lei natural de Newton foi reduzida a matria em movi-mento, a despeito de sua f num Deus cristo e intervencionista. O "ouse saber" de Kanttornou-se "ouse rejeitar as imposies da conscincia", apesar de sua tentativa de fornecer uma base racional para a regra de ouro. Os philosophes no causaram dano apenas religio organizada; eles tambm minaram toda moralidade, que em ltimaanlise reoousa no irracional: f e revelao. Exemplo: o -marqus de Sade.

    Sade chegou a ser apresentado como o philosophe lefinitivo, aquele que ps em prtica a "fsica experimental da alma" de

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  • cTAlembert nos cantos mais sombrios da crueldade. Max Hor-kheimer e Theodor Adorno alinhavam Sade com Kant e Nietzsche numa "dialtica da iluminao" que se estendia de Homero a Hitler. Confrontados com os desastres do totalitarismo e da guerra mundial, eles questionavam a presumida sabedoria da esquerda, que associava o Iluminismo revoluo. Em vez disso, sustenta-vam que o Iluminismo levou, por lima dialtica negativa, quilo que poderia parecer o seu oposto, o fascismo.

    D para entender o ponto de vista deles: uma desmistificao racional como a do sculo xvil poderia ser compreendida como algo que produz sua anttese dialtica, uma mitologia moderna da cincia e da tecnologia, que desemboca num deserto moral. Mas isso pode ser tomado seriamente como tentativa de dar conta do Iluminismo? Horkheimer e Adorno no discutem a obra de um philosophe francs sequer. Em lugar de considerar o Iluminismo concretamente, como um fenmeno situado no tempo e no espao, eles o perdem de vista enquanto especulam sobre todo o curso da civilizao ocidental.

    O ponto cego nas especulaes deles tem srias conseqn-cias, porque o Iluminismo fornecia a principal defesa contra a bar-brie que eles deploravam. A tentativa de Montesquieu de escorar a liberdade contra as agresses do despotismo, as campanhas de Voltaire contra as perverses da justia, o apelo de Rousseau pelos direitos dos desvalidos, o questionamento, por Diderot, de toda autoridade, incluindo a da prpria razo: tais foram as armas lega-das pelos intelectuais do sculo xvin a seus sucessores de duzentos anos depois. Horkheimer e Adorno recusaram-se a fazer uso delas.

    Em vez disso, beberam em outra tradio filosfica, aquela que vai de Hegel a Heidegger. No que eles subscrevessem o hitle-rismo de Heidegger. Mas, ao observar Hitler da perspectiva da dia-ltica alem, foram incapazes de compreender o supremo mal que subjugou a Alemanha, Esse mal condenado pelos padres de di-

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  • reitos humanos desenvolvidos no Iluminismo e proclamados nos documentos fundadores da democracia, notadamente a Declara-o de Independncia americana e a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado francesa. Pode haver indcios falsos das "ver-dades evidentes" da Declarao americana. So artigos de f, no fatos. Mas preciso pr f em alguma coisae melhor que seja, acredito, na tradio normativa do Iluminismo do que na dialtica concebida para rejeit-la.

    4 . 0 Iluminismo tinha uma excessiva f na razo. Ao se basear no racionalismo, ele fracassou na construo de defesas contra o irracional. Seu culto ingnuo do progresso deixou a humanidade indefesa diante dos horrores do sculo xx.

    A f na razo de fato uma f, e pode ser inadequada para dar sustentao a homens e mulheres confrontados com a violncia e a irracionalidade do sculo xx. Mas o racionalismo no distingue o Iluminismo de outras escolas de pensamento, como o tomismo e o cartesianismo. A distino pertinente, como explicou Ernst Cassirer, a que separa o esprit systmatique do sculo XVlir do spritdesystmeo xvil. O ltimo levava a razo ao extremo ao us-la para construir teorias que abarcavam tudo. Os philosophesdesa-fiaram as teorias. Ousaram criticar tudo, mas, com muito poucas excees d'Holbach, Quesnay, no edificaram sistemas..

    Qual a alternativa para o uso crtico da razo? Abraar o irra-cional? Freud se baseou na razo para explorar o irracional. Seguiu a trilha de Diderot, cujo O sobrinho de Rameau apresenta um estu-do d caso clnico de um homem sem moralidade, que queria ma-tar o pai para poder dormir com a me. Nietzsche celebrava o ingre-diente dionisaco da cultura, mas admirava Voltaire e no forneceu uma base lgica para que seus seguidores ps-modernistas aban-donassem a luta voltairiana contra a tirania e a injustia social.

    O mais tpico dos ataques ps-modernistas ao Iluminismo, Enlightenment's Wake, de John Gray, invoca Nietzsche para nos

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  • incitar a aceitar a necessidade de assumir posies numa paisa-gem despojada de balizas significativas. Como Horkheimer e Adorno, Grayno se d o trabalho de examinar o que os philoso-phes franceses de fato escreveram. Em vez disso, oferece uma des-crio vaga e sem substncia de algo que chama de projeto ilumi-nista e passa a conden-lo por sua incapacidade de estar altura dos padres da filosofia ps-moderna. parte seu anacronismo, a tese parece supor que a cultura poltica deriva da teoria poltica, como se um movimento em falso ou uma mudana de rumo na lgica de um filsofo pudesse determinar a maneira como os mortais comuns orientam-se no mundo. Gray os coloca nos eixos. Armado com argumentos de Nietzsche, Horkheimer e Adorno, ele fustiga o que toma pela viso de mundo do Ilumi-nismo, deixando-a em farrapos, e desafia seus leitores a aceitar seu "destino histrico" isto , o mundo segundo Gray, um mundo sem iluminismo, "a condio ps-moderna de perspectivas fratu-radas eprticas sem fundamento"'

    Os filsofos do Iluminismo provavelmente seriam reprova-dos nesse teste se Gray o ministrasse depois de examinar a obra deles. Condorcet desviado, sem dvida, de uma compreenso do destino histrico por seus esforos em libertar escravos, eman-cipar mulheres e deter Robespierre provavelmente tiraria nota zero, pois o que poderia ser mais sem fundamento, quando visto do lado de c do hitlerismo e do stalinismo, que a sua teoria do pro-gresso: a razo abolindo a falsidade com a ajuda da imprensa? Mas pode no ser absurdo conceber o progresso com p minsculo, como veremos mais adiante. Por enquanto, o que fazer da combi-nao de razo e Terror, que levou Condorcet ao suicdio?

    5. O Iluminismo est nas origens do totalitarismo. Ele forne-ceu as bases tericas para o Terror na Revoluo Francesa, que por sua vez mostrou o caminho para os horrores de Hitler e Stalin. O

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  • elemento comum entre os trs era a tentativa de forar a ordem social a encaixar-se num molde ideolgico.

    verdade que, ao fazer sua defesa do Terror, Robespierre se valeu deMontesquieu e Rousseau. Como muitos outros jacobinos, ele tentou redesenhar a Frana de acordo com a teoria poltica. Mas ele tambm despedaou o busto de Helvtius no Clube Jacobino e insurgiu-se contra os enciclopedistas, reservando seu louvor para o nico philo$ophe> Rousseau, que abriu uma brecha no Ilumi-nismo e preparou o caminho para o Romantismo. Aidia de Rous-seau de forcar os homens a serem livres mediante sua submisso aos ditames de uma Vontade Geral orgnica solapava as noes e liberdade desenvolvidas pelos outros philosophes. Mas Rousseuu nunca concebeu nada como o Terror, e o Terror no teve nada em comum com as ideologias do fascismo e do comunismo. Os crimes cometidos pelos estados do sculo XX violaram princpios bsicos do Iluminismo: respeito pelo indivduo, pela liberdade, por todos os direitos do homem.

    Mas a retrica sobre os direitos do homem expe o Ilumi-nismo a uma crtica suplementar: ela no diz nada sobre os direi-tos da mulher. E o que dizer dos animais, do meio ambiente e de outras causas que mobilizam a ateno do mundo ps-Guerrc: Fria? Essas questes conduzem a uma acusao final.

    6. O Iluminismo obsoleto e inadequado como perspectiva para lidar com problemas contemporneos. Os philosophes advo-gavam lima viso instrumentalista da razo, o que levou ao desas-tre ecolgico, e uma viso masculina da cidadania, o que relegou as mulheres esfera privada.

    certo que o Iluminismo estava vinculado a seu tempo, assim como sua cultura. Ele teve lugar num mundo em que algumas causas do sculo XX permaneciam impensveis. Foi, em decorrn-cia disso, incapaz de formular as grandes idias que mais trde mudaram as fronteiras da cultura. Defender o Iluminismo no sig-

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  • nifica rejeitar a poesia de T. S. Eliot, a pintura de Picasso, a fsica de Einstein ou mesmo a gramatologia de Derrida. Tampouco signi-fica rejeitar os direitos das mulheres. Na verdade, Olympe de Gou-ges e Mary Wollstonecraft devem muito ao exemplo, tanto quanto s idias, dos philosophes, ainda que algumas especulaes de Diderot e Rousseau paream retrgradas quando comparadas com as noes anteriores de Poulain de la Barre. A questo no fazer um inventrio de idias, riscando algumas da lista e adicio-nando outras. , em vez disso, adotar uma postura intelectual que seja til quando as linhas esto traadas e no h recuo possvel. Quando desafiados a condenar atortura na Argentina, a guerra no Vie. n ou o racismo nos Estados Unidos, onde mais podemos nos amparar seno em princpios preservados pela Declarao de Independncia americana e pela Declarao dos Direitos do Ho-mem e do Cidado?

    Tendo chegado ao fim da acusao, percebo que acabei assu-mindo o papel de advogado de defesa e abandonando o de histo-riador. Os historiadores sucumbem com freqncia a escorreges desse tipo quando fazem parte da cultura que estudam. Por que no mandar o profissionalismo s favas e deslizar de vez para a pregao?

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    Se me permitem acrescentar algumas observaes pessoais,. eu enfatizaria a recusa dos philosophes em respeitar fronteiras, tanto entre as disciplinas como entre as naes. Apesar de sua ori-gem parisiense e de sua inclinao natural para o francs, eles viviam numa Repblica das Letras que era verdadeiramente cos-mopolita. Ela no tinha nem fronteiras nem polcia. Estava aberta s idias vindas de toda parte. Ningum nela, nem em qualquer

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  • outro lugar, concebia a idia de nacionalismo. Esse barbarismo teve incio com as guerras de 1792 e a idia fatal contida na frase "Meu pas, certo ou errado!".

    Recentemente sa um pouco do sculo xviii para fazer uma pesquisa sobre o domnio britnico na ndia nos arquivos do Indian Office em Londres. No demorou muito para que ecoasse em meus ouvidos um refro que aparecia em todos os documen-tos. Bande Mataram! Bande Mataram! Bande Mataram! ("Vida longa Me!"isto , ndia) era a palavra de ordem dos revolu-cionrios indianos que queriam expulsar os feringhees (foreigners, estrangeiros) no incio do sculo xx. Era o seu "Liberdade, Igual-dade, Fraternidade". Levava-os s lgrimas, e ocasionalmente aos ataques suicidas bomba. E seu fascnio, para um feringhee, seu carter impensvel. O que Bande Mataram para mim?

    E Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Dois sculos de mau tempo quase apagaram as palavras das fachadas da maioria das prefeituras na Frana. Duvido que elas ressoem nas almas de mui-tos franceses hoje em dia. Voc as ouve, quando muito, sob forma de pardia: "Nem Liberdade, nem Igualdade, nem Fraternidade, mas um pouco mais de mostarda, s'il vousplaf. A ltima vez que notei uma comoo patritica numa garganta francesa foi numa sesso de Casablanca, na cena em que Humphrey Bogart incita a multido a cantar a Marselhesa.

    No entanto, ontem mesmo homens matavam-se uns aos outros por uns poucos quilmetros quadrados da Bsnia. Morrer pela Grande Srvia? Outro pensamento inconcebvel. Por uma Irlanda unida? S recentemente o IRA concordou em parar de explodir bombas. Os atiradores de bombas do ETA ainda matam em nome da Ptria Basca. Curdos assassinam na Turquia, palesti-nos em Israel, israelenses na Palestina, tmeis no Sri Lanka, todos por um novo desenho do mapa. A mesma coisa est acontecendo no Chipre, no Azerbaidjo, na Chechnia...

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  • No h necessidade de recitar a lista inteira. Todos a conhece-mos bastante bem. O que no conseguimos absorver a paixo que leva homens a matar por tais causas. Para ns, a pequena minoria de bem nutridos e bem-educados ocidentais, Robert Graves disse tudo no final da Primeira Guerra Mundial: "Adeus a tudo aquilo" Nossos pais lutaram na Segunda Guerra Mundial para extinguir o nacionalismo, no para desencade-lo. Contudo, a cada dia ele explode diante dos nossos olhos nas telas de nossos televisores. Como podemos ver sentido no impulso de dar a vida por fantasias como a Mae ndia?

    Eis Ajit Singh, um nacionalista apaixonado, discursando para uma multido em Rawalpindi em 1907, de acordo com um agente policial que secretamente anotou suas palavras: "Morram pelo seu pas. Somos trinta crores* [trezentos milhes]. Eles so um lakh e meio [150 mil]. Um sopro de vento os jogaria longe. Canhes no tm nenhuma valia. Um dedo pode facilmente ser quebrado. Quan-do cinco dedos se juntam para fazer um punho, ningum p ode que-br-los. (Isso foi dito com muit nfase, e flores.foram atiradas)".

    Podemos entender o sentido. Mas ser que podemos "enten-der" a~ chuva de flores, a batida dos ps descalos, as canes bro-tando dos peitos, os meninos correndo para fazer juramentos sela-dos com cangue, os velhos com lgrimas nos olhos, os ns nas gargantas?

    As palavras permanecem, a msica se foipelo menos para aqueles que acolhem a frase de Graves e acrescentam: "Adeus, e j vai tarde! Que o nacionalismo morra mil vezes e nunca mais res-suscite" Entretanto a est ele, vivo e rugindo nossa volta, prati-camente audvel em Londres, Amsterd, Paris e Roma. Ser que

    *Crore: na ndia, o equivalente a 10 milhes, ou cem lakhs. O lakh a soma de 100 mil. Ambos os termos so usados geralmente para dinheiro (rpias), mas aplicam-se eventualmente a outros objetos.e, como no caso presente, a pessoas. (N. T.)

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  • existe alguma maneira de podermos sentir essa pulsao, se no com simpatia, pelo menos com a empatia suficiente para com-preender a fora que a move?

    Uma dessas maneiras seria mediante uma reconsiderao de nossas prprias tradies. Podemos nos horrorizar diante do san-gue patritico esparramado ao longo do nosso passado, mas mes-mo o mais sofisticado de ns, em algum momento, sentiu aquele peculiar n na garganta.

    Sofri eu mesmo uma grande comoo, devo confessar, du-rante uma visita guiada ao Independence Hall, em Filadlfia, al-guns anos atrs. Washington sentou ali, explicava o guia, naquela mesma cadeira, nesta mesma sala. Era uma bela cadeira georgiana com um sol emblemtico entalhado nas costas, e Washington es-tava presidindo a Conveno Constitucional de 1787. Num mo-mento particularmente difcil dos debates, quando o destino da jovem repblica parecia incerto, Benjamin Franklin, sentado aqui, perguntou a George Mason, que estava a seu lado: "O sol est nas-cendo ou se pondo?" Eles superaram o impasse em que se encon-travam e uma dzia de outros. E quando, por fim, deram por ter-minado seu trabalho, Franklin declarou: "Ele est nascendo".

    "Que homens grandiosos eles eram", disse para mim mesmo, o n crescendo em minha garganta. "Washington, Franklin, Madison e Jefferson, naquele momento assessorando Lafayette durante a primeira fase da Revoluo Francesa. Quo superiores eles eram aos nossos polticos de hoje. Eram homens do Iluminismo "

    No sou capaz de compreender o sol nascente do Japo, e duvido que o sol de Washington significasse muita coisa para os turistas japoneses ao meu lado no Independence Hall. Visto de fora, o culto Constituio e aos Pais Fundadores deve parecer um extico folclore. A bem da verdade, o prprio Washington j no desperta muita emoo mesmo nos peitos americanos. dife-rena de Lincoln e Roosevelt, ele parece demasiado formal e

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  • empertigado naqueles retratos de Gilbert Stuart, com a mandbula rgida, os lbios franzidos, as sobrancelhas pesadas, mais um cone que um ser humano. Os cones existem para ser adorados, mas o icnico Washington adorado nos Estados Unidos nos olha a partir da nota de um dlar.

    No entanto, o culto do dlar pode no ser de todo mau. Seu alcance emocional limitado, mas no letal. Ao contrrio do nacionalismo, ele inspira o interesse prprio em vez do ato de sacrifcio, o investimento em vez da exploso de bombas. E, com toda a sua vulgaridade, ele universal; o dlar de um homem to bom quanto o de qualquer outro. Esse princpio tambm deriva do Iluminismo, do ramo que passa por Mandevlle e Adam Smith. O interesse prprio esclarecido pode no ser to imponente quanto Liberdade, Igualdade e Fraternidade; mas ele tornou possvel uma nova vida no Novo Mundo para milhes de imigrantes, e pode em ltima anlise reformar a Rssia, onde o dlar tornou-se, na pr-tica, a moeda corrente.

    Essa linha de pensamento tem uma ascendncia respeitvel. Ela passa pela fisiocracia francesa, pela filosofia moral escocesa e pelo utilitarismo ingls. Mas nos leva a ns, americanos, para lon-ge das paixes que inspiravam nossos antepassados no incio do sculo xix, quando eles entalhavam,pintavam,bordavam e teciam imagens de Washington em tudo o que produziam. Se no pode-mos compartilhar aquela emoo, podemos, contudo, aprender algo dando uma olhada no homem por trs do cone.

    Certa vez, numa visita propriedade de Washington em Mount Vernon, deparei com o que deve ser uma das mais estranhas relquias j exibidas num memorial nacional, ainda mais estranha que todas as quinquilharias do Museu de Moscou e do Wellington Museum de Londres: os dentes falsos de George Washington. Ali estavam eles, atrs do vidro e como eu acreditava feitos de madeira! O Pai de Nossa Ptria com dentadura de madeira! Ento era por isso que ele parecia to austero nos retratos. O homem

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  • estava sob dor constante. Ele no conseguia extrair sumo algum da sua comida sem fustigar as gengivas com ondas de choque.

    As pessoas freqentemente me perguntam, na qualidade de especialista no assunto, se eu gostaria de ter vivido no sculo xvm. Primeiro, respondo, eu insistiria em nascer acima da linha dos camponeses. Segundo, nada de dor de dentes, por favor. Ao longo da leitura de milhares de cartas de pessoas de todas as posies na vida do sculo xvm, encontrei com freqncia dores de dente. A dor atravessa a linguagem arcaica, e o missivista surge em nossa imaginao, esperando com angstia que um tira-dentes itine-rante chegue cidade e, mediante uma breve tortura, ponha um fim s longas semanas de agonia.

    Hoje temos menos dor de dente e mais mostarda, em grande parte de primeira categoria, de Dijon. Podemos chamar isso de Progresso? Essa outra idia do sculo XVIII que parece dbia quando examinada com a perspectiva de dois sculos de sofri-mento. Mas alguma familiaridade com o que a humanidade sofreu no passado pode nos ajudar a avaliar as modestas e graduais vit-rias do prazer sobre a dor ou o progresso com p minsculo. Pode tambm ajudar-nos a simpatizar com aqueles que assumiram a defesa dos direitos humanos em face da desumanidade. Estou pen-sando em Voltaire, no o jovem libertino mas o velho irado, que jogou todas s suas ltimas energias na luta contra o fanatismo. Se ele parece demasiado estrangeiro Amrica ps-moderna, por que no convocar a figura central de nossa prpria cultura pol-tica?-No momento crtico,* podemos ser capazes de confrontar as injustias nossa volta rangendo nossos dentes e lembrando como era difcil para Washington ranger os dele.

    *A frase original, "when the cruttch comes", expresso idiomtca que significa aproximadamente o coloquial "na hora do vamos vier", remete tambm a "masti-gao ruidosa ou furiosa" Ccrunch")y configurando um jogo de palavras intradu-zvel. (N.T.)

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