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OS ELFOS
DE
PARANAPIACABA
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JOSÉ ARAÚJO
OS ELFOS
DE
PARANAPIACABA
2ª Edição 2014
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Copyright© 2014 - José Araújo
Título Original:
Os Elfos de Paranapiacaba – Araújo José
Editor:
José Araújo
Revisão e diagramação:
José Araújo
Editoração Eletrônica:
José Araújo
Ilustrações:
José Araújo
Capa:
José Araújo
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa.
1 – Literatura brasileira – 2 Romance – 3 Ficção
2ª Edição - 2014
São Paulo – Brasil
14x21 cm.
240 páginas
ISBN: 978-85-8196-850-6
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Introdução
Caro leitor,
A título de conhecimento dos fatos reais, antes
começar a ler este romance repleto de encantos, magia e
aventuras, um pouco da História da Vila de
Paranapiacaba, Santo André, São Paulo, um lugar cheio
de mistérios e lendas, que foi a principal fonte de
inspiração para a realização desta obra.
Paranapiacaba ou em tupi guarani “paranã
apiaca aba” cuja tradução é “Lugar de onde se vê o
mar”.
Em dias claros, esta era a visão que tinham os
povos indígenas que passavam por ali, depois de subir a
Serra do Mar rumo ao planalto, e que atualmente os
turistas da Vila de Paranapiacaba podem vislumbrar
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através do mirante ou de uma das várias janelas do
“Castelinho”, antiga moradia do engenheiro-chefe da
ferrovia.
No século XIX, naquele caminho íngreme
utilizado pelos índios, desde os tempos pré-coloniais,
seria construída uma estrada de ferro que mudaria a
paisagem do interior paulista e ocasionaria a fundação
da vila de Paranapiacaba.
O fator preponderante para a construção da
Ferrovia Santos-Jundiaí foi a expansão do café, que
chegou ao Rio de Janeiro no início do século XIX e logo
se espalhou pelo vale do Rio Paraíba.
A próxima região ocupada pela cultura cafeeira
seria o oeste paulista, já bem no interior do estado. A
partir daí, tornou-se urgente encontrar um meio de
escoar o café com maior facilidade para o Porto de
Santos.
O mercado no exterior era certo, mas o produto
levava dias de viagem em tropas de muares (mulas) até
o litoral.
A história de Paranapiacaba tem seu verdadeiro
início em 1835, quando os primeiros estudos para a
implantação da ferrovia começaram, mas foi apenas
depois de 1850 que a ideia começou a sair do papel,
graças ao espírito empreendedor do Barão de Mauá.
Ele encontrou nos ingleses os parceiros ideais
para executar o projeto.
Além de ter interesses em dinamizar o fluxo de
exportação e importação brasileiro, a Inglaterra detinha
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uma vasta experiência na construção de ferrovias,
utilizando a tecnologia da máquina a vapor - algo
imprescindível para vencer as dificuldades técnicas
impostas pelo desnível de 796 metros entre o topo da
serra e o litoral.
Em 26 de abril de 1856, a recém-criada empresa
inglesa São Paulo Railway Co. recebia por um decreto
imperial do então Imperador D. Pedro II, a concessão
para a construção e exploração da ferrovia por 90 anos.
As obras tiveram início em 1860, comandadas
pelo engenheiro inglês Daniel M. Fox.
Dadas às características extremamente íngremes
do trecho da serra, adotou-se o chamado sistema
funicular: o percurso foi dividido em quatro planos
inclinados, cada um com uma máquina fixa a vapor que
tracionava as composições através de cabos de aço.
A vila de Paranapiacaba era inicialmente apenas
um acampamento de operários. Depois da inauguração
da ferrovia, em 1867, houve a necessidade de se fixar
parte deles no local para cuidar da manutenção do
sistema. Assim, construiu-se a Estação Alto da Serra,
que também foi o primeiro nome dado ao lugarejo.
Por causa da sua localização, último ponto antes
da descida da serra, a vila começou a ganhar
importância. Também nesta época foi fundada, em
torno da estação São Bernardo, a futura cidade de Santo
André, à qual a vila de Paranapiacaba pertence hoje.
Enquanto isso, a ocupação no interior do estado
se consolidava graças à estrada de ferro. O comércio e a
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produção agrícola aumentaram significativamente. Em
pouco tempo já era preciso duplicar a ferrovia.
A partir de 1896, começaram as obras.
Paralelamente aos trabalhos de duplicação, a vila
também sofreria modificações. No alto de uma colina, os
ingleses construíram a casa do engenheiro-chefe,
chamada de Castelinho, de onde toda a movimentação
no pátio ferroviário poderia ser observada.
Na mesma época, foi erguida a Vila Martim
Smith, com casas em estilo inglês, de madeira e telhados
em ardósia, para servir de moradia aos funcionários da
empresa. Em 1900, o novo sistema de planos inclinados
é inaugurado, recebendo o nome de Serra Nova.
Em 1907 a vila recebe seu nome definitivo como é
conhecido até hoje por Vila de Paranapiacaba.
Do outro lado da estrada de ferro, a Parte Alta de
Paranapiacaba, que não pertencia à companhia, seguia
padrões arquitetônicos diversos daqueles da vila
inglesa. A área começou a ser ocupada por comerciantes
italianos e portugueses para atender os ferroviários já na
década de 1860. Ali também moravam os funcionários
aposentados, que não poderiam mais usar as casas
cedidas pela empresa.
Até meados da década de 40, os moradores
viviam ali como uma grande família. A vila era bem
cuidada, com ruas arborizadas e casas pintadas.
O clube União Lira Serrano era o centro de uma
intensa atividade sociocultural: bailes, jogos de salão,
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competições esportivas, encenações teatrais, exibições
de filmes e concertos da Banda Lira.
Outro importante ponto de encontro, para fechar
um negócio ou conversar sobre política e futebol, era a
Estação. Nas noites de sábados e domingos, moços e
moças bem alinhados, interessados em namorar,
caminhavam pelas plataformas largas, como relata João
Ferreira, antigo morador da vila.
Em 1946, termina o período de concessão da São
Paulo Railway Co. e todo seu patrimônio é incorporado
ao da União. Este fato é apontado pelos antigos
moradores como o início da decadência da vila.
Com a desativação parcial do sistema funicular,
na década de 70, mais um golpe: parte dos funcionários
é dispensada ou aposentada e outros são contratados,
para cuidar do novo sistema de transposição da serra - a
cremalheira-aderência.
Nos anos 1980, depois de várias denúncias na
imprensa sobre a deterioração da vila, é criado o
Movimento Pró-Paranapiacaba. Em 1986, a Rede
Ferroviária entregou restaurado o sistema funicular
entre o 4° e o 5° patamares e o Castelinho.
No ano seguinte, o núcleo urbano, os
equipamentos ferroviários e a área natural de
Paranapiacaba foram tombados pelo CONDEPHAAT -
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Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo.
Atualmente sua porção de Mata Atlântica é
núcleo da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da
cidade de São Paulo e integra também a Reserva da
Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pela UNESCO
como uma importante área de conservação ambiental
para a humanidade.
Tombada pelo CONDEPHAAT (Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico
e Turístico do Estado de São Paulo) em 1987,
Paranapiacaba está entre os 100 maiores monumentos
históricos do mundo, figurando na lista da WMF (World
Monuments Fund).
Assim, para entretenimento, que este livro, misto
de realidade, fantasia e ficção seja prazeroso de se ler,
para que se de a ele crédito e, se acredite que o que nele
contém é tudo verdadeiro, deixo a critério da
imaginação do leitor.
Tudo que posso dizer, é que faço votos de que
sua viagem pelo mundo da Magia seja um universo de
fantasias, aventuras e descobertas, nesta estória,
inspirada na Vila de Paranapiacaba, situada no
município de Santo André em São Paulo, com seus
encantos e mistérios, onde muitos dos antigos
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habitantes ainda residentes no local juram que a Alta e
boa Magia ainda existe e está na velha vila em estilo
inglês.
Ao lado do antigo terminal ferroviário da antes
chamada São Paulo Railway Co., com suas casas de
madeira, com paredes pintadas de vermelho e telhados
de ardósia, rodeadas pela exuberante natureza da Serra
do Mar, a Vila de Paranapiacaba é ainda hoje ponto de
encontro do povo da Magia e, quem chega a ela, sente
no ar que há muito mais do que pontos turísticos
naquele lugar.
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Nota do autor:
Conheço a Vila de Paranapiacaba desde a
minha infância e apaixonado pelo lugar, diante de
tantas coisas inexplicáveis aos olhos da ciência,
inúmeras vezes questionei-me ao longo dos anos, se na
História real daquela região, não haveria mais algo que
até hoje não foi divulgado.
Uma das perguntas que sempre estiveram em
minha mente e recuso-me a esquecer é a seguinte:
Teriam os ingleses trazido em suas bagagens
apenas projetos, ferramentas e tecnologia, ou trouxeram
algo mais que nunca se tornou publico?
Talvez, algo que pode estar oculto até hoje, quem
sabe mesmo, um mistério muito além da imaginação,
esperando para ser desvendado.
O fato é que, na Vila de Paranapiacaba, a Magia
se manifesta por toda parte e até mesmo no ar que
respiramos, quando do nada, surge uma forte neblina
que cobre a tudo e a todos naquele lugar.
Afinal, nada neste mundo é impossível, tudo
pode ser, basta a gente ter fé e acreditar.
José Araújo
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Capítulo 1
Fazia frio e ventava muito na estrada que
levava ao alto da colina na parte baixa da Vila de
Paranapiacaba, onde em seu topo ficava a casa do chefe
da estação, chamada por todos de Castelinho.
Rodeada pela mata atlântica, a estrada era
obscura em noites sem luar e quem caminhava por ela,
tinha sempre a sensação de estar sendo observado por
olhos invisíveis. Naquela noite, as árvores eram
sacudidas de um lado para outro na escuridão. Se
alguém precisasse sair de casa numa noite dessas, tinha
de afundar bem a cabeça por baixo da gola, ficando com
o rosto todo enrugado, sem enxergar quase nada,
envolto por uma espessa neblina, e avançar contra o
vento. De qualquer forma, era bom mesmo que fosse
assim, porque o que estava acontecendo por entre as
árvores, não era para ser visto por olhos humanos.
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1.945. De uma fresta entre as arvores da floresta
escapava uma faixa de luz azul que cortava a escuridão.
Vinha de uma fenda estreita num rochedo alto que
parecia um enorme dente, e dentro dela havia um
portão duplo, de ferro, escancarado. Passando por ele,
chegava-se a um túnel. Sombras se mexiam por entre as
árvores, enquanto uma procissão ia pelo portão,
sumindo lentamente dentro da colina.
Eram pessoas pequenas, de pouco mais de um
metro. Tinham o peito robusto e a cintura fina, e seus
braços e pernas eram compridos e magros. Vestiam
túnicas verdes e curtas, com cinto e sem manga, e
estavam descalças. Alguns usavam mantos de penas de
ganso.
Na verdade, era um sinal de distinção, não um
agasalho. Seguravam arcos de curva acentuada. De um
lado do cinto, portavam sacas cheias de flechas brancas.
Do outro, espadas largas. Todos montavam pequenos
pôneis brancos. Alguns iam eretos e orgulhosos, mas a
maior parte deles, se curvava sobre a sela e alguns até
jaziam completamente imóveis sobre os pescoços de
suas montarias, enquanto as rédeas eram seguras pelos
companheiros.
Ao todo, deveriam ser aproximadamente uns mil.
Ao lado dos portões de ferro, estava parado um
velho. Era alto e magro, vestindo um manto novo. Suas
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vestes alvas, seus cabelos e barba brancos, compridos,
esvoaçavam com o vento e ele se apoiava sobre um
cajado.
Devagar, os cavaleiros foram passando pelos
portões e entrando no túnel luminoso. Quando todos já
estavam lá dentro, o velho se virou e os seguiu. Os
portões de ferro rangeram e se fecharam após sua
passagem. Ficou apenas um rochedo nu, sob o vento.
Dessa maneira, em silêncio, sem ninguém
perceber, os Elfos de Paranapiacaba foram para
Élfindória, o último reduto da Alta Magia naqueles dias.
E lá foram recebidos por Sinamon Laatholan, um grande
mago, guardião dos lugares secretos da Serra do Mar.
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Capítulo 2
Vila de Paranapiacaba, parte baixa, 1981.
—Opa! Disse Rosemary Smith, filha de
descendentes dos ingleses que vieram ao Brasil para
construir a primeira ferrovia em território paulistano.
— O que é isto?
— O quê? — perguntou Edu.
— A manchete no jornal.
Edu e Dorinha chegaram mais perto, para ver o
que o dedo de Rosemary estava apontando. No meio da
página principal estava escrito em letras garrafais:
MISTÉRIO NO CASTELINHO
Despertou muita curiosidade a descoberta do que
parece ser um poço de quinze metros de profundidade,
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durante escavações realizadas em frente ao Castelinho,
na Colina de Paranapiacaba.
Trabalhadores contratados pela prefeitura
estavam cavando a terra em busca de um vazamento
que estava causando infiltrações na base da construção,
quando deslocaram uma laje de pedra e descobriram
uma cavidade. Ao baixarem uma corda com um peso na
ponta, constataram que a profundidade aproximada
tinha cerca de quinze metros, dos quais cinco ficavam
debaixo d'água. O poço não tinha nenhuma ligação com
o vazamento e, embora não se tenha removido toda a
cobertura, estima-se uma área de aproximadamente
dois metros quadrados para largura da cavidade, que
tem paredes forradas de lajotas de pedra com formas
estranhas e inscrições em uma língua desconhecida.
Foi aventada a hipótese de que antigamente teria
existido uma bomba d'água em frente à casa. As
escavações podem ter revelado o poço do qual a água
era bombeada.
Outra teoria provável é a de que se trate de um
respiradouro, ligado a possíveis galerias antigas, que se
estendem por uma distância considerável em direção à
Vila na parte baixa.
Engraçado! — disse Ana quando as crianças
acabaram de ler — é que, desde que eu me entendo por
gente, nunca ouvi dizer que existe um túnel embaixo do
Castelinho. E agora ele aparece. Fico imaginando o que
pode ser isso, finalmente.
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— Não sei por que tanto interesse — disse Ana.
— É só um buraco molhado, seja o que for. E por mim,
pode ficar por lá o tempo que quiser.
Dorinha riu e disse;
— Ei, cadê a sua curiosidade tia Ana?
— Na minha idade, ando com outras coisas na
cabeça, se quiser saber. Não dá para ficar metendo
buracos dentro dela.
— Todo mundo tem outras coisas pra pensar. Eu
tenho de fazer minhas compras, e vocês ainda não
acabaram. Disse Ana.
— Será que a gente não podia ir só dar uma
olhadinha? — propôs Dorinha.
— Era o que eu ia sugerir — disse Rosemary. — É
logo ali, depois da esquina. Não leva mais que alguns
minutos.
— Pois então, podem ir. — disse Ana. — Espero
que se divirtam. Mas não fiquem o dia todo por lá,
hein...
Saíram do mercadinho e foram para a rua
principal da Vila. No meio dos carros estacionados, a
carroça verde da família Smith, com seu cavalo branco,
Cheiroso, era uns trinta anos mais velha do que tudo o
que estava em volta. Mas os Smith também eram. Ana,
com seu casaco comprido e um lenço amarrado na
cabeça sobre seus longos cabelos negros, presos por
grampos, usando colete por baixo do casaco por causa
do frio, não via razão para mudar a vida de sempre.
Todos estavam acostumados a viver assim, na
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simplicidade, sem maiores preocupações. Uma vez por
semana saíam do Recanto Amigo, a fazenda que tinham
na encosta sul da Colina, e vinham de carroça até a parte
baixa da Vila de Paranapiacaba, fazer a entrega de ovos,
frangos e verduras aos fregueses. Logo depois de serem
adotados pela família Smith, quando Edu e Dorinha
chegaram para morar na fazenda Recanto Amigo, no
começo, tudo tinha parecido meio estranho. Mas eles
logo se adaptaram aos costumes dos Smith.
Rosemary e as crianças foram a pé, deixando a
carroça para trás, e seguiram pela distância curta que
subia a rua até o Castelinho, uma casa construída em
estilo inglês, meio gótico, mostrando a estrutura de
peças de madeira aparente e pintadas de um vermelho
escuro, quase marrom.
Na frente do prédio, tinham cavado uma espécie
de vala, de um metro de profundidade, bem junto à
parede. Rosemary subiu no monte de terra e barro, ao
lado, e olhou lá para baixo.
— Aí está.
Edu e Dorinha subiram também.
O canto de uma lajota de pedra brotava da
escavação, pouco acima do chão. Um pedaço da lajota
estava quebrado, deixando um buraco de menos de
meio palmo. Era tudo. Dorinha pegou uma pedrinha e a
jogou pelo buraco. Passou um segundo até se ouvir um
ploft, ressoando, quando ela bateu na água.
— Não dá para saber muita coisa, não é mesmo?
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— disse Rosemary. — Você está conseguindo
ver?
Dorinha tinha pulado para dentro da escavação e
estava abaixada, espiando pelo buraco.
— É redondo... Parece até um túnel em pé. Tem
alguma coisa espetada na parede, uma espécie de cano...
Não dá pra ver mais nada.
— Vai ver que é mesmo só um poço — disse
Rosemary. — Pena... eu bem que ia gostar se algo
diferente acontecesse para quebrar a monotonia deste
lugar.
Voltaram para a carroça. Quando Ana acabou de
fazer as compras, continuaram fazendo sua ronda de
entregas. Só terminaram no fim da tarde.
— Imagino que vocês vão querer voltar pra casa a
pé pelo bosque, como das outras vezes. Disse Ana.
—Isso mesmo, por favor... Podemos Tia? Falou
Dorinha.
— Por mim, achava melhor desistir dessa ideia —
disse Ana. — Mas se estão mesmo querendo tanto,
podem ir... Só que duvido que achem muita coisa. E
tratem de ir direto pra casa. Daqui a uma hora já vai
escurecer, e esses bosques podem ser muito perigosos
de noite, eles são traiçoeiros... Vocês podem cair num
buraco de algum poço abandonado de uma hora para
outra.
Edu e Dorinha foram andando pelo sopé da
Colina. Faziam isso toda semana, enquanto Rosemary
voltava para casa na carroça com a mãe. E toda vez que
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arranjavam um tempinho livre, iam também até a
estação, andar à toa pelos trilhos, procurando...
Nos primeiros quinhentos metros, a estrada era
margeada por jardins suburbanos, seguros. Depois,
começavam a aparecer umas plantações e num instante
a Vila ficava para trás. À direita, erguia-se a encosta
norte da Colina, vertical, saindo diretamente do
caminho de pedestres, com algumas arvores se
curvando sobre a estrada e a crista íngreme, cheia de
pinheiros e pedras.
Os dois saíram da estrada e tomaram a picada
estreita por entre as árvores. Durante algum tempo
foram subindo em silêncio, embrenhando-se pelo
bosque. De repente, Dorinha falou:
— Mas, em sua opinião, qual é o problema? Por
que não encontramos Sinamon?
— Pelo amor de Deus, não me venha com essa
história de novo... — disse Edu. — A gente nunca soube
como é que se pode abrir os portões de ferro, ou a
entrada da Caverna Sagrada de Sinamon, só os vimos
em nossos sonhos então, não temos muita chance de
encontrá-lo.
— Sei disso, mas não entendo! Porque ele não
está querendo aparecer? Antes, eu podia entender que
ele sabia que não era seguro aparecer para nós. Mas
agora não. Do que é que tem medo já que Nefhasta foi
só um sonho ruim?
—Aí é que está... — disse Edu. — Será que foi
mesmo?
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— Só pode ter sido — disse Dorinha. — Ana
disse que a lenda diz que a casa em que ela viveu está
vazia, e todo mundo na Vila confirma.
— Mas pode muito bem estar viva e não estar em
casa — disse Edu. — Andei pensando muito: Será que
além de Nefhasta, há algo mais que não sabemos? Então
agora, das três uma: ou ele só existiu em nossos sonhos,
ou nunca esteve aqui, ou está havendo algum problema.
Só pode ser. Senão, por que ia ser sempre assim?
Tinham chegado ao lugar que viram em seus
sonhos, a Caverna Sagrada. Ficava no sopé de um
penhasco, em um dos numerosos vales próximos à
colina. Era um buraco raso e longo na pedreira, no qual
pingava água da rocha. Ao lado, havia outra bacia,
menor, em forma de leque, e em cima dela uma fresta na
face do rochedo — era o segundo portão para
Élfindória, elas lembravam em detalhes de sua
localização.
Bem, na verdade, não faz parte desta história
contar como Edu e Dorinha se interessaram pela
primeira vez pelo mundo da Magia, que está tão perto
de nós e nos passa tão despercebido, como o que está
escondido por trás das sombras. As crianças quase
desejavam nunca ter sonhado que havia muito mais
coisas do que a gente pode enxergar a olho nu. Estavam
decepcionadas por não encontrar nada real mesmo
depois de muito procurar. Não podiam suportar a ideia
de que o bosque para eles fosse vazio de tudo, a não ser
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de beleza; ou que o buraco encontrado, não passasse de
um buraco e nada mais.
— Vamos — chamou Edu. — Ficar olhando não
vai fazer mágica e fazer acontecer o que sempre
esperamos. E se a gente não se apressar, não vamos
chegar em casa antes de escurecer. E você sabe como
Ana gosta de reclamar.
Foram saindo do vale para o alto da colina. No
crepúsculo, os galhos se erguiam contra o céu e a
penumbra corria pela grama, virava um breu nas fendas
e nas bocas das cavernas que cortavam o bosque com
seus montinhos de areia e pedregulho em seu interior.
Ouvia-se o assobio do vento, embora as arvores não se
mexessem.
— Eu tinha quase certeza, desde aquela noite em
que sonhamos o mesmo sonho, que Sinamon daria um
jeito de entrar em contato conosco...
— O que é aquilo? Disse Edu. —Você está
vendo?
Estavam andando pelo lado de uma pedreira,
desativada havia muitos anos. O chão já estava coberto
de capim e mato, e por isso só o paredão nu fazia com
que aquele vale fosse diferente dos outros que havia na
colina. Mas esse despojamento dava ao lugar uma
atmosfera primitiva, uma sensação de isolamento que,
ao mesmo tempo, era inquietante e tranquila. Parecia
que nesse lugar a noite chegava mais depressa.
—Onde? — perguntou Dorinha.
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—Na outra ponta da pedreira, um pouquinho à
esquerda daquela árvore.
— Não...
— Lá vai de novo Dorinha! O que é aquilo?
O vazio do vale estava sombrio, mas uma
mancha de escuridão se mexia, mais assombrosa do que
o resto. Flutuava por cima do capim, sem forma,
achatada, mudando de tamanho, e subia a superfície do
penhasco. Em algum ponto no meio da mancha, se é que
aquilo tinha um meio, havia dois pontos de luz
vermelha. Deslizou pela beirada da pedreira e foi
absorvida pelo mato.
—Você viu? — perguntou Edu.
—Vi. Quer dizer, se havia alguma coisa, eu vi.
Pode ter sido só... Um efeito de luz.
— E você acha que era só isso?
— Não.
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Capítulo 3
Agora estavam com pressa. A diferença
podia estar neles mesmos ou no bosque, mas Edu e
Dorinha sentiam que alguma coisa tinha mudado.
De repente, a colina se tornara não exatamente
maléfica, mas estranha, insegura. E eles estavam loucos
para chegar a um lugar aberto, sair do meio das árvores.
Talvez fosse só efeito da luz ou dos nervos, ou dos dois
ao mesmo tempo, mas alguma coisa ainda parecia estar
brincando de assustá-los. A toda hora imaginavam que
havia um movimento de algo branco por entre o alto
das árvores — nada muito definido, mas insinuado e
fugidio.
— Você acha mesmo que havia alguma coisa lá
na pedreira? — perguntou Dorinha.
— Sei lá... E se houvesse, o que seria? Acho que
deve ter sido mesmo só um efeito de luz. Não acha?
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Mas antes que Dorinha pudesse responder,
ouviu-se um assobio no ar. As crianças deram um pulo
para o lado, enquanto um pouco de areia jorrou a seus
pés, bem entre elas. Olharam e viram uma flecha,
pequenina e branca, fincada bem no meio do caminho. E
enquanto olhavam, espantados, uma voz firme falou,
vinda da escuridão, acima de suas cabeças.
— Não movam um único músculo de seus
músculos, uma única veia de suas veias, um único fio de
cabelo de suas cabeças, senão eu hei de lhes lançar
tantos dardos, do mais fino carvalho, que vocês ficarão
furados como uma peneira.
Instintivamente, Edu e Dorinha olharam para
cima. Diante deles, uma figura muito velha lançava seu
tronco em arco por cima do caminho. Entre os galhos da
árvore, estava de pé uma figura miúda, parecida com
um homem, mas de pouco mais de um metro. Usava
uma túnica branca e tinha a pele morena, enrugada pelo
vento. Os cachos de seu cabelo, colados à cabeça,
pareciam labaredas de prata. E os olhos... Bem, eram
olhos de gato. Emitiam uma luz que não se refletia em
nada no bosque. Nas mãos, a criatura segurava um arco
muito curvado.
No primeiro momento, Edu e Dorinha ficaram
parados, incapazes de dizer qualquer coisa. Depois, a
tensão dos últimos minutos fez Edu estourar.
— Que ideia é essa? — gritou. — Quase nos
acertou com essa coisa!
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— Ah, pelos deuses! Ah, por santa Hera! É ele
mesmo, o que fala com os Elfos!
Edu e Dorinha levaram um susto com a voz
cheia, que dava gargalhadas. Viraram-se e viram outra
figura pequena, porém mais troncuda, parada no
caminho atrás deles, com os cabelos vermelhos
brilhando sob as últimas luzes do dia. Poucas vezes
tinham visto uma cara tão feia. Tinha uns lábios
enormes, dentes separados, verrugas na cara, nariz de
batata, barba e cabelo embaraçados e uma pele
ressecada como as cascas das árvores no auge do
inverno. O olho esquerdo era coberto por um tapa-olho,
mas o direito valia por dois.
Sem dúvida, era um anão. Adiantou-se e deu
uma palmadinha no ombro de Edu, com tanta força que
o corpo do menino balançou:
— E este sou eu, Gabriel, o Batedor, que amo
vocês por causa disso! Salve! E agora, será que Sua
Alteza não quer descer da árvore e falar com os amigos,
Rafhael?
O vulto branco no alto da árvore não se mexeu.
Parecia não ter ouvido nada. Gabriel continuou:
— Estou achando que há outros lugares neste
bosque esta noite que estão muito mais necessitados das
flechadas dos Elfos do que aqui! Vejo que Benelordh se
aproxima e ele não parece nada tranquilo!
O anão estava olhando para o caminho lá na
frente, mais adiante de Edu e Dorinha. Eles não
conseguiam ver tão longe no escuro, mas ouviram o
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som distante de cascos de cavalo se aproximando. Cada
vez mais alto, cada vez mais perto, até que do meio da
noite surgiu um cavalo negro, com olhos selvagens e
molhado de suor. Esparramando areia, parou de
repente junto a eles. O cavaleiro, um homem alto,
também vestido de preto, chamou em direção ao alto da
árvore:
— Rafhael, meu Senhor! Encontramos o que
procurávamos, mas está fora do bosque, para o sul, e se
move depressa demais para mim. Heremid, filho de
Hermim, Thiolan, filho de Noran, e Osan, o gavião, com
metade dos cavaleiros de seu grupo, estão vigiando,
sem tirar o olho. Mas não bastam. Depressa!
Seu cabelo liso e negro chegava aos ombros, o
ouro brilhava em suas duas orelhas, e seus olhos
pareciam derreter qualquer geada. Na cabeça, tinha um
chapéu de copa alta, abas largas e os ombros estavam
envoltos por uma capa ampla, presa com uma fivela
enorme de puro ouro.
— Estou indo. Disse Rafhael a Gabriel. —
Benelordh ensinará a esta gente o que desejo.
Ligeiro, o Elfo correu pelo tronco do pinheiro
acima, e desapareceu no meio da copa da árvore. Houve
apenas uma brancura esvoaçando pelas árvores em
volta, como se fosse uma rajada de geada no inverno. E
por entre os galhos soou um barulho parecido com o do
vento. Durante algum tempo, ninguém falou. O anão
dava a impressão de estar se divertindo muito com a
situação, contente em deixar que os outros fizessem o
40
movimento seguinte. O homem chamado Benelordh
olhava as crianças. Edu e Dorinha ainda estavam se
recuperando da surpresa e se acostumando com o fato
de que estavam finalmente envoltos pelo mundo da
Magia na vida real — ao que parecia, por acaso. E agora
que estavam lá, perceberam que não era apenas um
mundo de encantamento, mas também de sombras
profundas.
Estavam caminhando para dentro daquele
mundo desde que tinham chegado à pedreira. Se
tivessem reconhecido essa atmosfera antes, os choques
sucessivos dos encontros com o Elfo, o anão e o
cavaleiro não teriam sido tão fortes nem os teriam
deixado sem fôlego.
— Acho que agora — disse Benelordh — a
questão não está mais nas mãos de Sinamon.
— O que você quer dizer com isso? — disse Edu.
— E o que está acontecendo?
— Ia levar algum tempo para explicar o que
quero dizer. Ou o que está acontecendo, aliás. E o lugar
para essas explicações é Élfindória, então é melhor
irmos juntos.
— Não há nada mais urgente para você resolver
no bosque esta noite? — perguntou Gabriel.
—Nada que a gente possa fazer — disse
Benelordh. — A velocidade e os olhos dos Elfos são
nossa única esperança, e tenho medo de que mesmo eles
não sejam o suficiente.
41
Apeou do cavalo e seguiu a pé, com as crianças e
o anão, pela picada aberta na mata. Não seria mais
rápido se fôssemos por ali? — Dorinha perguntou,
apontando para a esquerda.
— Seria — confirmou Benelordh. —Mas por aqui
o caminho é mais largo, e isso representa uma grande
vantagem esta noite.
Chegaram a uma espécie de clareira, de pedra e
areia, que se estendia até a beirada da colina. Era a
Ponta das Torturas, um lugar de onde dava para se
apreciar a paisagem durante o dia, mas que agora não
parecia muito amistoso.
De lá, cruzaram por cima das pedras até a Pedra
Escura, que era uma ponta do morro que avançava para
dentro da planície.
Bem no meio dela erguia-se um rochedo alto e
arredondado.
— Pode fazer o favor de abrir os portões,
Dorinha? — pediu Benelordh.
— Não consigo. Já tentei uma porção de vezes em
meus sonhos; mas não sei como fazer.
— Edu — disse Benelordh —, por favor, encoste a
mão direita na pedra e diga a palavra Orathtorah.
— Assim?
— É.
— Orathtorah!
— De novo.
— Orathtorah! Orathtorah!
Não aconteceu nada.
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Edu recuou, com cara de bobo.
— Agora Dorinha — insistiu Benelordh.
Dorinha deu um passo até junto da pedra, e
encostou nela a mão direita.
— Orathtorah! Viu? Não adianta. Já tentei muitas
vezes e não...
Apareceu uma fresta na pedra.
Foi crescendo e revelando um par de portões de
ferro. E atrás deles, um túnel iluminado por uma luz
azul.
43
Capítulo 4
Não vai abrir os portões? — perguntou
Benelordh. Dorinha esticou a mão e tocou os portões de
ferro.
Eles se abriram sozinhos.
— Depressa! — disse Benelordh. — A noite é
muito mais saudável lá dentro do que aqui fora.
Apressou as crianças a passarem logo pelo
portão. A pedra se fechou de novo assim que todos
acabaram de entrar.
— Por que eles se abriram? Antes nem se mexiam
— disse Dorinha.
— Porque você disse a palavra. E também por
outra razão que depois vamos discutir.
Foram descendo com Benelordh pelos caminhos
de Élfindória. Um túnel levava a uma caverna, a
caverna dava passagem a um túnel, e assim seguiram,
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de túnel em túnel e de caverna em caverna, todos
diferentes e todos iguais. Parecia não haver fim.
Quanto mais fundo iam, mais forte ficava a
pálida luz azul. Assim, as crianças souberam que
estavam se aproximando da Caverna dos Adormecidos,
cuja consideração tinha feito com que a velha caverna
dos anões de Élfindória recebesse a maior carga de
Magia de uma época. E seu guardião era Sinamon
Laatholan. Ali, naquela caverna, durante séculos
esperando o dia em que Sinamon iria despertá-lo de seu
sono encantado para travar a última batalha do mundo,
jazia um rei, cercado por seus cavaleiros, cada um com
seu cavalo branco como o leite.
As crianças olharam em volta, contemplando as
chamas frias, agora brancas no coração da Magia,
cintilando na armadura de prata. Viram os cavalos e os
homens. Ouviram o murmúrio abafado de sua
respiração ecoando, a batida do coração de Élfindória.
Depois da Caverna dos Adormecidos, o caminho
começava a subir, passando por mais túneis, por pontes
estreitas e de arcos altos, sobre abismos desconhecidos,
ao longo de passagens apertadas no teto de cavidades,
atravessando planícies de areia debaixo de abóbadas de
pedra, até as cavernas mais remotas. Finalmente,
chegaram a uma pequena gruta, bem nos fundos da
Caverna Sagrada, o lugar que o mago usava como seus
aposentos. Lá estavam umas poucas cadeiras, uma mesa
comprida e uma cama de pele de animais.
— Onde está Sinamon? — indagou Dorinha.
45
— Deve estar com os Rhios-rhor, os Elfos — disse
Benelordh. — Muitos estão passando mal, com a
doença-da-poluição. Mas enquanto ele não chega vocês
podem descansar aqui. Na certa há muita coisa que
estão desejando saber.
— Claro que há! — exclamou Edu. — Quem
estava atirando flechas contra nós?
— O senhor dos Elfos, Rafhael, filho de Zhef. Ele
precisa da ajuda de vocês.
— Da nossa ajuda? — repetiu Edu. — Pois tem
uma maneira muito esquisita de pedir.
— Nunca pensei que os Elfos fossem assim... —
disse Dorinha.
— Vocês estão se precipitando — disse
Benelordh. — Lembrem-se de que ele está com medo,
numa situação de perigo. Está cansado, sozinho... E é
um Rei. É bom lembrar, também, que os Elfos não têm
um amor natural pelos homens, porque os Rhios-rhor
foram expulsos para os lugares ermos justamente por
causa da sujeira, da feiura e do ar impuro que os
homens estão adorando nestes últimos dois séculos.
Vocês precisam ver o que a doença-da-poluição está
fazendo com os Elfos de Mauá, Cubatão e São Caetano.
Precisam ouvir a chiadeira dela nos pulmões deles.
Tudo culpa dos homens.
— Mas como é que nós podemos ajudar?
— Vou lhes mostrar — disse Benelordh. —
Sinamon está ha muitos dias falando sobre isso, e tem
suas razões, mas já que vocês estão aqui, acho que o
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melhor é contar-lhes o que está errado. Em resumo, é o
seguinte: há alguma coisa escondida nos ermos das
Terras do Sul, lá longe no vale de São Vicente, onde os
Elfos tinham erguido seu último reino. Durante muito
tempo, o número de Rhios-rhor já vinha diminuindo —
não por causa da doença-da-poluição, como está
acontecendo no ocidente, mas por alguma razão que
não conseguimos descobrir. Os Elfos simplesmente
estão desaparecendo. Somem sem deixar vestígios. No
começo, era de um em um, ou aos pares. Mas não faz
muito tempo, perdeu-se uma infinidade deles, o grupo
de Gholen, com tudo, até mesmo cavalos e armas. Não
sobrou nem uma flecha. Isso é obra de algum poderoso
ser do Mal. Para descobri-lo e destruí-lo, Rafhael está
conclamando todo o seu povo, do norte, do sul, do leste
e do oeste, e reunindo todo o povo da magia que
conseguir. Dorinha, será que você podia dar a ele a
Marca de Pena?
—O que é isso? — perguntou Dorinha.
—É o bracelete que Luanna Cabelos de Luar lhe
deu naquele dia em que vocês a encontraram na
floresta.
— Esta pulseira? Eu nem sabia que ela tinha
nome... Em que ela pode ajudar Rafhael?
— Não sei — disse Benelordh. — Mas tudo que
for mágico pode ajudar, e você tem magia nesse
bracelete. Não abriu os portões?
Dorinha olhou a pulseira de prata antiga que
usava em volta do pulso. Era tudo o que havia trazido
47
como lembrança de momentos de perigo e
encantamento, quando foram salvos de uma onça
pintada por Luanna Cabelos de Luar, que havia lhes
dito ser a Dama da Serra do Mar. Dorinha não sabia o
que significavam as letras pesadas que estavam inscritas
em negro, numa língua esquecida, sobre a superfície da
prata. Mas sabia que não se tratava de uma pulseirinha
comum, e não a usava sem respeito.
—Por que tem esse nome? — perguntou.
— Há muitas histórias sobre essas coisas, que só
conheço vagamente — respondeu Benelordh —, mas sei
que as Marcas de Pena fazem parte da Magia mais
antiga do mundo. Esta é a primeira que vejo, e não sei
para que serve. Mas de qualquer modo, você pode dá-la
a Rafhael?
— Não! — disse Dorinha.
Mas os Elfos podem ser totalmente destruídos,
quem sabe se justamente por precisarem de uma Marca!
— disse Benelordh. — Você se nega a ajudá-los bem na
hora em que eles mais precisam?
— É claro que vou ajudar — disse Dorinha. — Só
que Luanna recomendou muito que eu cuidasse sempre
de meu bracelete, mas não disse por quê. Então, se
Rafhael está precisando, eu tenho de ir com ele.
Ouvindo isso Benelordh desandou a rir, mas
ficou preocupado e disse:
— Agora você me pegou. Rafhael não vai gostar
nada disso. Mas esperem: será que ele precisa saber?
Não quero levar-lhe mais problemas, se puder evitar.
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Pode ser que a Marca não sirva para Rafhael, que não
possa usá-la, que só funcione com você. Mas você podia
me emprestar o bracelete, Dorinha, e o levo para que ele
tente, experimente seus poderes. Se não der certo, é
mais fácil ele aceitar sua oferta.
— Ah, é? E quem garante que, no momento em
que tiver a Marca nas mãos, ele não some, para lá de São
Caetano, mais depressa do que um coelho fugindo do
caçador se metendo pelo meio do bosque? E leva o
bracelete mágico embora...
— Você não conhece os Rhios-rhor, Dorinha —
disse Benelordh. — Dou minha palavra de que ele não
vai fazer trapaça.
— Então é preciso que os ouvidos de Sinamon
saibam disso — disse Rafhael. — Para que Rafhael não
fique achando que um perigo atroz merece ações
atrozes. Jamais um Rhios-rhor sairia de Élfindória se
Sinamon os mandasse ficar.
— Não precisa — disse Dorinha. — Confio em
você. E confio em Rafhael. Aqui está a pulseira. Ele pode
tentar ver o que consegue fazer. Mas, por favor, não
fiquem com ela mais tempo do que o necessário.
— Obrigado — disse Benelordh. — Você não vai
se arrepender.
— Tomara que não! — disse ela, com uma cara
que não parecia nada feliz. — Mas pelo que ouvi sobre
vocês, acho que andam muito sem juízo por não estarem
vestindo uma armadura. Disse Benelordh com um ar
reprovador. —A Nefhasta não esquece, nem perdoa.
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— A Nefhasta? — repetiu Edu. — Onde? Ela está
atrás da gente outra vez?
Embora as crianças tivessem cruzado com essa
mulher somente em seus sonhos sob sua forma humana,
logo ficaram sabendo que não era apenas com a feiura
dela que deviam se preocupar. Era a Nefhasta, a
senhora dos antros de bruxas chamados de Celeiros do
Mal. E acima de tudo, ela tinha o poder de despertar
poderes maléficos nas pedras e de fazer o ódio
fermentar no ar, além de ter uma força terrível. Mas seu
poder tinha sido quebrado por Sinamon Laatholan e os
Cavaleiros de Paranapiacaba há muito tempo atrás e
eles não sabiam se ela havia ou não sobrevivido à
destruição que aniquilara seus seguidores exatamente
na noite em que houve o terrível incêndio que destruiu
a antiga estação de trem.
— O celeiro do mal está disperso, mas ela foi
vista — disse Benelordh, apontando para Gabriel com
um gesto de cabeça. — O melhor é perguntar a ele, que
trouxe notícias dela. O anão com gênio de mel, vindo
das Terras do Norte, para lá de São Caetano.
— O que foi? Você a viu? — quis saber Edu.
— Eu vi? — disse o anão. — Vocês estão mesmo
querendo saber? Pois então, eu conto.
Respirou fundo e começou:
— Quando eu vinha para cá, passei pela Colina
da Samambaia Negra, em Mauá, e uma tremenda
tempestade estava se formando. Por isso, comecei a
procurar umas pedras e uns galhos de mato mais
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fechado, com intenção de fazer um abrigo para passar a
noite. E vi uma pedra redonda, castanha, meio separada
das outras. Pus os braços em volta dela para levantá-la,
e nesse momento, ai meu rei do sol e da lua, meu senhor
das estrelas brilhantes e perfumadas; a pedra criou
braços e me agarrou o pescoço, e já estava quase
expulsando a vida que mora em mim!
Fez uma pausa e continuou:
— Nem me perguntem como, porque eu mesmo
não sei dizer, mas consegui me soltar. E, de repente, a
pedra era a Nefhasta! Pulei pra cima dela com minha
espada. E mesmo ela me arrancando o olho, cortei sua
cabeça. O berro que deu foi repetido por todo lado, na
Colina da Samambaia Negra. Mas a cabeça deu um
pulo, direto, redondinho, e voltou para seu pescoço, e
num instante lá vinha ela de novo, xingando pra cima
de mim, e fiquei morrendo de medo. Três vezes nós
lutamos, três vezes tirei sua cabeça, mas três vezes ela
ficou inteirinha de novo, e eu já estava quase morrendo,
de tanta dor e cansaço. Então, quando mais uma vez
passei a espada pela altura de seus ombros, quando a
cabeça estava voltando para o tronco, consegui botar a
lâmina de ferro bem no lugar do pescoço. Então a
cabeça, "Toim!", quicou na lâmina, e pulou para o céu.
Quando estava começando a cair, e vi que vinha para
cima de mim, me desviei e ela entrou na terra uns dois
metros, com toda a força que vinha. Que cabeça! Depois
ouvi o barulho de pedras mordendo, mastigando,
mascando, moendo e triturando, achei que era hora de
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levar minhas pernas para longe dali, e lá me fui pela
noite afora, através do vento e da geada.
Ficaram todos esperando o mago chegar. E
enquanto esperavam, Gabriel se encarregou de não
deixar que a conversa se interrompesse nem um minuto.
Contou como Benelordh o encontrara um dia e
falara de um boato sobre alguma coisa que tinha saído
do chão perto de Élfindória e estava sendo caçada por
Sinamon Laatholan. Como já estava muito tempo sem
fazer nada, o próprio Gabriel resolveu fazer a viagem
para o sul, saindo de São Caetano, na esperança de que
Sinamon apreciasse seu auxílio. Não se decepcionou. O
assunto era muito mais importante do que ele
imaginava...
Havia muito, muito tempo, um dos antigos
malefícios do mundo tinha aterrorizado a planície, mas
tinha sido apanhado e aprisionado numa caverna, no
sopé da Colina. Muitos séculos mais tarde, por meio da
estupidez dos homens, esse mal escapara e exigira
muito trabalho e sacrifício para ser recapturado. Pois
agora Benelordh vinha com a notícia de que o homem
novamente soltara esse mal.
— E ninguém faz ideia do lugar deste mundo
duro e encolhido, onde se pode encontrar de novo o
Mestre do Mal — disse Gabriel.
52
Capítulo 5
— Acontece que o Mestre do Mal, — disse
Benelordh — Tem olhos e boca, mas não tem fala e,
infelizmente, não tem forma.
Não dava para entender. Mas a sombra que se
ergueu na mente de Dorinha enquanto o anão falava
parecia escurecer toda a caverna.
Pouco depois, Sinamon chegou. Estava com os
ombros curvados, e apoiava o peso no cajado que tinha
na mão. Quando viu as crianças, franziu a testa,
acentuando as rugas em volta dos olhos.
— Edu? Dorinha? Fico contente em ver vocês,
mas por que estão aqui? Benelordh, por que passou por
cima de mim e fez uma coisa dessas?
— Não foi bem isso o que aconteceu, Sinamon —
disse Benelordh. — Mas antes de mais nada, como estão
os Rhios-rhor?
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— Os Elfos de Santo André e Mauá vão demorar
muito a sarar — disse Sinamon. — Os que vieram de
Jundiaí são mais fortes, mas estão tomados pela doença-
da-poluição, e tenho medo de que alguns estejam fora
de meu alcance.
Voltou-se para os meninos e acrescentou:
— Mas agora me contem como vieram parar
aqui. Fomos... Detidos... Por Rafhael, o Elfo. E depois
que Gabriel e Benelordh apareceram — respondeu
Dorinha.
—acabamos de saber o que está acontecendo com
os Elfos.
— Não julgue Rafhael mal! Ele está sob pressão.
— disse Benelordh. — Mas Dorinha nos deu esperanças.
Estou com a Marca de Pena aqui.
Sinamon olhou para Dorinha.
— Fico... Contente... — disse. — É muito
generoso de sua parte, Dorinha. Mas será uma decisão
sábia? Vocês sabem que estou preocupadíssimo com a
destruição dos Elfos. Mas a Nefhasta...
— Já falamos nela — apressou-se a esclarecer
Benelordh. — O bracelete não vai ficar muito tempo
comigo, e não acho que a rainha das bruxas venha tão
ao sul por enquanto. Ela vai ter que estar muito mais
forte antes de ousar aparecer tão abertamente, e ainda
não se sente segura nem para sair de São Caetano, se é
que a história de Gabriel é verdadeira. Por que estaria
mudando de forma para se disfarçar de pedra, se não
estivesse com medo de ser perseguida?
54
— Tem razão — concordou Sinamon. — Talvez
eu esteja exagerando nos meus cuidados. Mas o fato é
que não gosto nada de ver estas crianças trazidas ao
limiar do perigo dessa maneira. Não, Dorinha, não fique
zangada comigo. Não é por causa de sua idade que eu
me preocupo, mas por causa de sua humanidade. É
contra minha vontade que vocês estão aqui agora.
— Mas por quê? — exclamou Dorinha.
— Por que acha que os homens só nos conhecem
nas lendas? Nós não temos que evitá-los para preservar
nossa segurança, como no caso dos Elfos. Mas pela de
vocês mesmos. Não foi sempre assim. Já houve um
tempo em que todos vivemos próximos. Mas pouco
antes que os Elfos fossem expulsos, vocês mudaram.
Acharam que o mundo era mais fácil de dominar se só
usassem as mãos. Assim, para vocês, as coisas passaram
a valer mais do que os pensamentos. E os homens ainda
chamaram isso de Idade da Razão. Só que, para nós, a
verdade é justamente o contrário. Por isso, nos nossos
assuntos, o ponto mais fraco de vocês é exatamente
onde deviam ser mais fortes. O perigo para vocês não
vem apenas do mal, mas de outras coisas com que
lidamos. Podem não ser maléficas em si, mas são forças
selvagens, descontroladas, que podem destruir quem
não estiver acostumado com elas.
Continuou explicando:
— Por todas essas razões, nós nos afastamos da
humanidade. Ficamos sendo apenas uma lembrança.
Com o passar do tempo, viramos uma superstição, um
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monte de espíritos e terrores em que se fala numa noite
de inverno. E, ultimamente, estamos sendo motivo de
zombaria e descrença. Por tudo isso é que tenho de ser
tão severo com vocês. Deu para entender?
— Acho que sim — respondeu Dorinha.
— Em linhas gerais, pelo menos.
—Mas se vocês cortaram qualquer contato
conosco, por completo, há tanto tempo, como é que
falam do mesmo jeito que a gente? — quis saber Edu.
— Mas não falamos — disse o mago. — Só
estamos usando a Língua Comum agora, porque vocês
estão aqui. Entre nós há muitas outras línguas. E não
repararam que, para alguns de nós, a Língua Comum é
mais difícil e mais estranha do que para outros? Os Elfos
são os que mais têm evitado os homens, quase
completamente. Falam a de vocês de um modo mais
parecido com o que ouviram pela última vez,
antigamente, e mesmo assim não falam bem. O resto de
nós — eu, os anões, e alguns outros — a temos ouvido
pelos anos afora, e a conhecemos mais do que os Elfos,
muito embora não consigamos dominar a rapidez com
que vocês falam agora nem seu jeito abreviado.
Benelordh é quem mais encontra os homens, e até ele de
vez em quando fica completamente perdido, mas como
acham que é maluco, não faz diferença.
Edu e Dorinha não demoraram muito na caverna.
A atmosfera daquela noite não os deixava muito à
vontade, e era evidente que Sinamon tinha muitas
outras coisas na cabeça, além do que tinha dito. Pouco
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depois das sete, subiram pelo túnel mais curto, que
levava à Caverna Sagrada. O mago tocou a rocha com
seu cajado e o penhasco se abriu.
A partir daí, Benelordh pessoalmente
acompanhou os meninos por todo o caminho, até a
fazenda, só os deixando quando chegaram ao portão.
Edu e Dorinha perceberam que os olhos dele não
paravam, vasculhando a escuridão, de um lado para
outro, para lá e para cá.
— O que é? — perguntou Dorinha. — O que está
procurando?
— Uma coisa que espero não encontrar — disse
Benelordh.
— Vocês devem ter notado que o bosque não
estava vazio esta noite. Estávamos perto do Mestre do
Mal, e tomara que agora já esteja bem longe daqui.
— Mas como é que você podia vê-lo, ou ver
qualquer outra coisa? — perguntou Edu. — Está escuro
feito breu.
— Vocês devem saber que os olhos de um anão
nasceram para enxergar no escuro — disse Benelordh.
— Mas até vocês veriam o Mestre do Mal se ele
aparecesse, mesmo que a noite estivesse mais negra do
que a goela de um lobo. É que, por mais negra que esteja
a noite, o Mestre do Mal ainda é mais negro.
Com isso, a conversa parou pelo resto da jornada.
Mas quando chegaram a Recanto Amigo, Dorinha
perguntou:
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— Benelordh, desculpe, mas qual é o problema
com os Elfos? Não quero parecer mal-educada, mas...
Bem, sempre achei que eram... Bem, os "melhores" do
povo de vocês.
— Ah! — exclamou Benelordh. — Na certa iam
concordar com você! E pouca gente discordaria deles.
Devem julgar por vocês mesmos. Mas uma coisa eu
posso dizer sobre os Rhios-rhor: São impiedosos, sem
nenhuma gentileza, e existem muitas coisas
incompreensíveis neles.
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Capítulo 6
Pouco menos de um quilômetro da fazenda
Recanto Amigo, depois da lombada da pedra marrom,
há uma antiga pedreira escavada no chão, que ficou sem
uso e foi inundada.
Quando as margens não são penhascos, são
barrancos abruptos, cobertos de árvores. Uma bomba de
ar, quebrada, range de vez em quando. Um caminho
esquecido se perde pelo meio dos espinhos sem levar a
lugar nenhum. À luz do sol, é um local desolado, tão
desolado quanto apenas uma maquinaria abandonada
consegue ser. Mas quando o sol vai baixando, o ar fica
carregado com uma atmosfera diferente. A água
escurece, fica malévola, no fundo das encostas dos
penhascos e as árvores se amontoam, inclinadas, para
beber água. A bomba geme. Um lugar solitário,
esverdeado, escuro.
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Mas tranquilo, pensava Dorinha. E isso não é
pouco. Não houvera muita paz na fazenda desde que os
dois tinham voltado. Já tinham passado dois dias, cheios
da conversa de Edu e dos silêncios pesados dos pais de
Rosemary. É que eles sabiam do envolvimento das
crianças com a Magia em seus sonhos, ocorridos no
passado, e ficavam tão preocupados com essa mistura
de mundos quanto Sinamon.
O tempo também não ajudava. O ar estava
parado, úmido, quente e pesado demais para o começo
do inverno.
Dorinha sentia que precisava dar uma volta e
relaxar um pouco. Por isso, nessa tarde, saíra sozinha,
sem Edu, e fora até a velha pedreira. Sentou-se na
beirada de uma laje que se projetava sobre a água e se
distraiu, vendo as sombras cinzentas dos peixes. Por
muito tempo, ficou ali sentada, desligando-se pouco a
pouco das tensões dos últimos dias. De repente, um
barulho fez com que levantasse a cabeça.
— Oi, quem é você?
Um pequeno pônei preto estava parado na
margem da água, do outro lado da pedreira.
— O que é que você está fazendo aqui? O pônei
sacudiu a crina e relinchou.
—Vem cá! Vem, rapaz!
O pônei olhou fixo para Dorinha, sacudiu a
cauda, depois se virou e desapareceu pelas árvores.
— Bem, deixa pra lá... Que horas serão?
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Dorinha subiu o barranco e se afastou da
pedreira, entrando no campo. Rodeou o bosque pelo
outro lado, e assobiou, mas não aconteceu nada:
— Oi, vem cá! Aqui, garoto, vem! Bom, se não
quiser vir, eu já... Epa!
O pônei estava bem ao seu lado.
— Você me assustou. Onde é que tinha se
metido?
Enquanto falava com o animal, a menina
acariciava as orelhas dele. Parecia que o pônei estava
gostando, porque encostou a cabeça no ombro dela e
fechou os olhos de veludo negro.
— Calma assim você me derruba... Durante
alguns minutos, ficou fazendo carinho no pescoço dele.
Depois, relutante, o empurrou.
— Agora tenho de ir embora. Mas amanhã volto
para te ver de novo.
O pônei saiu trotando atrás dela.
— Não, volte. Você não pode vir comigo.
Mas o pônei foi atrás de Dorinha por todo o
campo, empurrando-a de leve com o focinho e soprando
junto à sua orelha. E quando ela ia subir na cerca que
separava aquele campo do seguinte, ele se meteu entre
ela e a cerca, empurrando-a de lado com sua barriga
brilhante.
— O que quer?
— Um empurrão.
— Não tenho nada para lhe dar. Outro empurrão.
— O que é?