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JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO
OS HOMENS DA ADMINISTRAO E DA JUSTIA NO
IMPRIO: ELEIO E PERFIL SOCIAL DOS JUZES DE PAZ
EM MARIANA, 1827-1841
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
JUIZ DE FORA, MG
2010
JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO
OS HOMENS DA ADMINISTRAO E DA JUSTIA NO
IMPRIO: ELEIO E PERFIL SOCIAL DOS JUZES DE PAZ
EM MARIANA, 1827-1841
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao em
Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora para a
obteno do grau de Mestre em Histria.
Orientadora: Prof. Dr. Carla Maria Carvalho de
Almeida.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
JUIZ DE FORA, MG
Nascimento, Joelma Aparecida do.
Os homens da administrao e da justia no Imprio: eleio
e perfil social dos juzes de paz em Mariana, 1827-1841 / Joelma
Aparecida do Nascimento. 2010.
188 f. : il.
Dissertao (Mestrado em Histria)Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.
1. Juizes - Brasil. 2. Eleies. I. Ttulo.
CDU
347.962(81):324
AGRADECIMENTOS
Nesta etapa de finalizao de mais uma das fases da vida e que integra a opo
de dedicar-me ao estudo, pesquisa e ensino de Histria, enfim, ao ofcio de historiador,
tenho muito a agradecer. Agradeo, primeiramente, Deus e dedico esta conquista, aos
meus pais, Joo e Elionora, e minha irm Jnia, que sempre me apoiaram.
Agradeo minha orientadora Prof. Dr. Carla Maria Carvalho de Almeida que
sempre com todo cuidado me atendeu. Sua orientao, ininterruptamente, atenciosa e
precisa me deu nimo para continuar nessa empreitada. Agradeo-lhe por ter
acompanhado e acreditado na concretizao deste trabalho.
Ao Prof. Dr. lvaro de Arajo Antunes, amigo e idealizador desta investigao
desde a graduao, na Universidade Federal de Ouro Preto. Foi ele quem me apresentou
este objeto de pesquisa pelo qual pude me inquietar e me apaixonar. Por isso, agradeo-
lhe por me abrir estes novos horizontes e por estar sempre disposto a me atender.
Aos professores, Dr. Maria Fernanda Vieira Martins e Dr. Wlamir Silva
agradeo a participao na banca examinadora. Foi fundamental poder contar com a
atenta leitura destes profissionais, autores de pesquisas que me entusiasmam e pelas
quais tenho imensa admirao.
Da Universidade Federal de Juiz de Fora agradeo ao Prof. Dr. Alexandre M.
Barata pelas importantes observaes, momentos de discusso e, ainda por suas
riqussimas sugestes e reflexes pesquisa, ao participar do meu exame de
qualificao. Agradeo ainda Ana Mendes, sempre to compreensiva e pronta a nos
atender.
Aos amigos, que desde a graduao, auxiliaram-me em minhas indagaes e nos
meus momentos de leve desespero, Simone Cristina de Faria, Denise Maria Ribeiro
Tedeschi, Maykon Rodrigues dos Santos, Dejanira Resende, Tatiana da Costa Senna e
Rodolfo Chaves.
Aos amigos, em especial, pelas aproximaes dos nossos trabalhos e
semelhantes inquiries, companheiros de pesquisa pelos arquivos de Mariana e que por
diversas vezes me acudiram, Leandro Braga de Andrade, Pedro Eduardo de Andrade e
Thiago Enes.
Em Juiz de Fora, lugar onde por muitas vezes me senti muito s, tambm ganhei
amigos. Agradeo s queridas Paula Ferrari e Adriana Carvalho, sempre muito
atenciosas, e que primeiro me acolheram naquela cidade. s tambm queridas Lvia
Badar e Gislene Lacerda por me asilarem em sua casa e me oferecem o seu amparo.
Agradeo Luigi C. Barbosa pelo aprendizado de vida que nunca se apagar.
Aos amigos que de outras formas me ajudaram, me apoiando e tentando sempre me
animar, Maria Emlia C. Barbosa, Maria Marina C. Tavares, Maria Helena, Renata
Perrout e Franois F. Moreira e seu filhinho, meu afilhado, Francisco. Agradeo
tambm s antigas amigas, da minha cidade natal, que se preocuparam comigo e me
ofereceram apoio, de Itambacuri-MG, Las Aparecida de Melo Freire e Emanuele
Rodrigues.
Ao Diretor do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana Prof. Dr.
Marco Antnio Silveira e aos funcionrios Olinda, Felipe e Rafael, agradeo por to
prontamente me atenderem e com muita afeio participarem das minhas aflies. Aos
funcionrios do Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana: senhor Antero,
Cssio, Consola e Fabrcio pelo apoio.
Enfim, a todos que torceram por mim, obrigada!
RESUMO
O Juizado de paz representou uma das mais importantes instauraes do novo
paradigma de organizao poltica e social que angariou as inovaes mais ilustradas e
liberais do ordenamento jurdico europeu, indo ao encontro de uma vasta tradio e
institucionalizao em primeira instncia. Estabelecido no Brasil na Constituio de
1824, e regulamentado em 1827, o Juizado de paz, apesar das amplas funes denotadas
seu cargo e de ser um marco do desenvolvimento da administrao e da justia no
Brasil, trata-se de tema pouco visitado na historiografia brasileira. A presente pesquisa
tem por objetivo investigar os indivduos eleitos para juiz de paz, no extenso municpio
de Mariana, provncia de Minas Gerais, entre 1827-1841. Os propsitos foram abordar a
inaugurao desta instituio to ainda incgnita e, analisar as eleies locais que
elegiam aqueles homens e as funes desempenhadas pelos mesmos. Alm disso, e
paralelamente, procurou-se traar o perfil e insero social desses homens que, alm de
juzes de paz, compunham a to economicamente diversa sociedade mineira da primeira
metade do sculo XIX.
Palavras-chave: Juiz de paz, eleies e funes locais, perfil socioeconmico.
ABSTRACT
The Judge of peace represented the major new paradigm instauration of political and
social organization that raised the most learned and liberal innovations of the European
legal system to suit a wide tradition and institutionalization in the first instance.
Established in Brazil in the 1824 Constitution and regulated in 1827, the Judge of peace,
despite the broad functions denoted his position and be a milestone in the development
of administration and justice in Brazil, it is little visited theme in the historiography
Brazil. This research aims to investigate the individuals elected to justice of the peace in
the vast city of Mariana, in the province of Minas Gerais, between 1829-1841. The
purpose was addressing the inauguration of this institution as yet unknown, and
examine the local elections that elected the men and the functions performed by them.
Furthermore, and in parallel, we tried to trace the profile and social integration of those
men who, in addition to justices of the peace, made up as economically diverse mining
company in the first half of the nineteenth century.
Keywords: Justice of the Peace, elections and local functions, socioeconomic profile.
LISTA DE ILUSTRAES E FIGURAS
FIGURA 1 Organograma sumrio das funes e dos assistentes do cargo de juiz de
paz............................................................................................................................................52
FIGURA 2 Quantidade de eleies por localidade. Mariana, 1829-1841............................95
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Registro nominal para juzes de paz em processos-crime . Mariana, 1830-
1841..........................................................................................................................................63
TABELA 2 Correspondncias de juzes de paz remetidas para a Cmara Municipal de
Mariana, 1829-1841.................................................................................................................76
TABELA 3 Nmero de Juzes de paz eleitos por ano e Freguesia.......................................90
TABELA 4 Outros cargos e funes dos indivduos eleitos................................................97
TABELA 5 Obrigaes especficas aos juzes de paz. Mariana, 1829-1841.....................107
TABELA 6 Juntas de paz presididas pelos juzes..............................................................110
TABELA 7 Listas do Jri cumpridas pelos juzes..............................................................111
TABELA 8 Fontes indicadoras da insero social dos juzes de paz.................................125
TABELA 9 Informao de ocupao para todos os votados. Mariana, 1832.....................129
TABELA 10 Informao de ocupao para todos os eleitos. Mariana, 1832.....................131
TABELA 11 Informaes agrupadas para os eleitos e de ocupaes predominantes.
Mariana, 1831-1832...............................................................................................................132
TABELA 12 Quantidade de eleies por localidade. Mariana, 1829-1841.......................134
TABELA 13 Perfil de Antnio Martins da Silva................................................................135
TABELA 14 Composio da riqueza dos juzes de paz por faixa de fortuna....................151
TABELA 15 Monte-Mor dos juzes de paz mais ricos de Mariana, 1829-1841................153
TABELA 16 Nmero de juzes de paz proprietrio e da faixa de escravos por faixa de
fortuna....................................................................................................................................155
TABELA 17 Percentual de inventrio com presena de dvidas ativas.............................157
TABELA 18 Naturalidade dos juzes de paz......................................................................161
TABELA 19 Pertencimento Irmandades e ordens religiosas e pedidos de celebrao de
missas.....................................................................................................................................162
TABELA 20 Perfil de Antnio Jos de Souza Guimares.................................................165
TABELA 21 Perfil de Joo Carvalho de Sampaio.............................................................168
TABELA 22 Bens listados no inventrio de Antnio Lus Soares.........................170
SUMRIO
INTRODUO......................................................................................................................13
CAPTULO 1 FUNDAMENTOS E FORMAS DA ADMINISTRAO DA JUSTIA:
APONTAMENTOS SOBRE ANTIGO REGIME E LIBERALISMO
POLTICO.............................................................................................................................24
1.1 Monarquia e oficialato: consideraes histricas acerca da administrao da Justia .....24
1.1.1 A administrao da Justia no Brasil oitocentista: desafios para a historiografia
brasileira?................................................................................................................................ 32
1.2 A implementao do Juizado de paz no Brasil e em Portugal: breve histrico ................43
1.2.1 Entre a lei e o costume....................................................................................................43
1.2.2 O Juizado de paz no Brasil..............................................................................................47
1.2.3 O Juizado de paz em Portugal.........................................................................................67
CAPTULO 2 AS ELEIES E FUNES DOS JUZES DE PAZ EM MARIANA,
1829-1841................................................................................................................................80
2.1 Das eleies locais: continuidades e mudanas na virada do sculo XVIII para o sculo
XIX..........................................................................................................................................80
2.2 Das funes dos juzes de paz: governabilidade local......................................................99
CAPTULO 3 INDCIOS DO PERFIL SOCIOECONMICO DOS JUZES DE PAZ
EM MARIANA....................................................................................................................115
3.1 Herana e adaptao em uma vila do Imprio: hierarquias sociais em Mariana............117
3.1.1 Diversidade econmica e regional na primeira metade do sculo XIX.......................118
3.1.2 Setores ocupacionais e atividades dos juzes de paz....................................................124
3.2 Distribuio e composio da riqueza: bens e fortunas..................................................149
3.3 Estratificao social e circulao dos juzes de paz........................................................159
CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................172
REFERNCIAS...................................................................................................................174
ANEXOS...............................................................................................................................181
13
Introduo
Uma nova organizao poltica e administrativa era intentada pelo governo do
Brasil perante a situao especfica aps a independncia de 1822. Neste contexto,
estavam em voga mudanas situadas entre a transio de uma estrutura administrativa
colonial e a implantao de um novo sistema jurdico-administrativo. Tal temtica
logo muito conhecida. Porm, a regulamentao do Juizado de paz em 1827, tema,
quando no relegado, seguido apenas a escolta daqueles processos maiores. este aqui
o propsito, distinguir a inaugurao desse Juizado e um pouco dos que nele serviram
no Termo de Mariana - provncia de Minas-Gerais, entre os anos de 1829-1841.
De origem constitucional a criao do Juizado de Paz no Brasil foi decretada na
Constituio outorgada por D. Pedro I em 1824. Sua regulamentao ocorreu anos
depois, pela Lei regulamentar das atribuies, da competncia e jurisdio dos Juzes de
Paz, em 15 de Outubro de 1827. Esta Lei determinou a obrigatoriedade da conciliao
das partes nos processos judiciais, sendo esta a principal funo, de incio, a ser
desempenhada pelos juzes de paz.1
Vrias alteraes cunharam o seu funcionamento, especialmente no primeiro
Reinado (1822-1831) e no perodo Regencial (1831-1840). O Cdigo do Processo
Criminal de 1832, por exemplo, muito debatido e com clara preferncia pelas
instituies locais, modificou significativamente as atribuies dos juzes de paz. Este
continha, com a Disposio provisria acerca da administrao da Justia Civil a ele
anexada, 27 artigos dispostos somente sobre a conciliao. O Cdigo foi modificado
posteriormente, com a proclamao da maioridade de D. Pedro II quando foram
distribudas, para outras autoridades, funes antes exercidas pelos juzes de paz.2
Este pretende ser ento um estudo desta instituio o Juizado de Paz e dos
ocupantes do cargo, e do mesmo modo, das relaes delineadas nos espaos poltico-
sociais entre estes e a instncias do governo local, em especial a Cmara Municipal de
Mariana. Por outro lado, nos consente ainda apreender as discusses e debates acerca da
formao do Estado no Brasil. Entendemos aqui esse Estado como um constante
1 VIEIRA, Rosa Maria. O Juiz de Paz: do Imprio a nossos dias. Braslia: Editora da Universidade de
Braslia, 2002, pp. 73-77. 2 Idem.
14
normatizador do poder e da construo da sua prpria autoridade, mas que esbarrava,
por vezes, nas instncias locais representativas como foi o caso do Juizado de Paz ,
no alcance da Lei e da concretizao das suas prticas centralizadoras.
Neste sentido, so muitas as indagaes concernentes a esta fase da ordem
jurdica e da atuao da justia do Brasil Imperial. Entre o alcance do poder do Estado e
a repercusso local de suas medidas h um tortuoso caminho que sinaliza vrias
problemticas. Um dos questionamentos liga-se ao desenrolar da relao entre o
funcionamento da Cmara Municipal uma instituio impregnada das prticas
anteriores da governabilidade colonial e o novo processo eleitoral, instaurado a partir
da criao do Juizado de Paz.
De acordo com Russel-Wood as alteraes econmicas e sociais nos territrios
do Imprio portugus, aliadas s diversidades locais tornavam a tarefa do governo
municipal cada vez mais complexa nos sculos XVII e XVIII. Nesse contexto, as
Cmaras assumiram amplas responsabilidades concomitantemente ao aumento da
burocracia ao nvel local.3 Para a regio das Minas Gerais em decorrncia das
descobertas e intensas exploraes aurferas foi estabelecido um considervel aparelho
administrativo no sculo XVIII encabeado e, muitas vezes, organizado pela Cmara
Municipal.4
A importncia da estruturao da Cmara em Mariana antiga Vila do Carmo
e em geral na Amrica Portuguesa5, responsvel pela organizao administrativa e
manuteno da ordem judiciria nas comunidades, instiga a compreender como se
situou a organizao camarria aps as subsequentes mudanas na administrao da
justia que serviram ao Imprio Constitucional do Brasil. Russel-Wood j indicara que
em meados do sculo XVIII existia autonomia das instncias de poder local para o
exerccio da justia e como os juzes, na poca os juzes ordinrios, influenciavam no
controle do governo local.6 neste sentido que buscamos perceber como se
3 RUSSEL WOOD, A. J. O governo local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural.
In: Revista de Histria. So Paulo: v.55, ano XXVIII, 1977, pp.25-79. 4 Idem, pp.26-28.
5 Esta importncia j foi evidenciada na historiografia brasileira. Alguns exemplos so: VENNCIO,
Renato Pinto. Estrutura do Senado da Cmara (1711-1808). In: Termo de Mariana. Histria e
Documentao. Mariana: Imprensa Universitria da UFOP, 1998. FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria
F.; GOUVA & Maria de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa
(sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. 6 RUSSEL WOOD, Op. Cit., p.49.
15
desenvolveram as relaes entre os oficiais camarrios e os juzes de paz que
constantemente se corresponderam como a Cmara de Mariana.
Neste interstcio de modificaes polticas vrias questes vem tona, como as
das relaes dos juzes com outros grupos representantes do poder e o interesse do
indivduo em permanecer no cargo de juiz de paz, sendo este no remunerado. Por outro
ngulo, como demonstrado por uma historiografia j firmada, das adequaes
econmicas por que passou Minas Gerais no sculo XIX aps a queda da produo
aurfera e o crescimento das atividades agropastoris,7 importante atentarmos, em
especfico, para os reflexos no perfil econmico dos homens que participaram da
administrao da justia.
Como no sculo XVIII, tambm no XIX havia um sistema de Leis criado a partir
do centro para atender s necessidades emergenciais de um governo local, representado
pelas Cmaras Municipais. Tal sistema foi ainda caracterizado e corroborado no sculo
XIX por uma crescente descentralizao poltica pautada na negociao entre as esferas
local e central.8 Buscou-se manter a ordem mediante as novas mudanas institucionais
definidas aps 1822, pautadas por propostas de descentralizao poltica por um lado e
concentrao de poder para o governo, por outro.9
Tratamos assim de um perodo circunscrito a amplas reformas liberais, para as
quais, de uma forma geral, o poder visando o interesse geral e apoiado na lei teria de
ser nico, embora se admitisse que a administrao pudesse ser empreendida em nvel
local. Esta distino entre o poder do centro e o da periferia far curso durante todo o
sculo XIX. Para as correntes revolucionrias, o poder das cmaras tradicionais era um
dos alvos a serem vencidos, no que se depara com dois resultados distintos: pela poltica
centralizadora desarticula-se este plo perifrico de poder, mas, por outro lado, cria-se
um dispositivo poltico que, ao tornar disponveis para o governo vrios cargos pblicos
distritais, atribui ao mesmo a possibilidade de comprar fidelidades e alargar a rede da
sua influncia social. No plano do poder judicial, aponta-se para a funo de julgar, que
dependente de critrios mais alargados do que a simples observncia da lei. Para a
organizao judiciria liberal os juzes eletivos localizam-se entre duas correntes: por
7 Destaque para: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens Ricos, homens bons: produo e
hierarquizao social em Minas Colonial: 1750-1822. 2001. Tese (Doutorado)-UFF, Niteri, 2001. 8 VELLASCO, Ivan de Andrade. As sedues da ordem: violncia, criminalidade e administrao da
justia Minas Gerais, sculo 19. So-Paulo: Edusc/Anpocs, 2004. 9 Idem.
16
um lado, era o corolrio de uma plena democratizao do direito e da vida judiciria,
porm, por outro, eram restos suspeitos do pluralismo poltico pr-estatal.10
O estabelecimento do novo modelo de Estado foi assim marcado pelo confronto
do discurso da descentralizao caracterizada pela distino entre o sistema pluralista do
Antigo Regime e o sistema monista descentralizado. Tais oscilaes vo ao encontro
dos objetivos que por ora se apresentam em situar a movimentao de juzes eletivos
os juzes de paz na estrutura jurdico-administrativa do governo Monrquico
Constitucional brasileiro. Portanto, procuraremos identificar os indivduos inseridos
nesse contexto e compreender sua representao e deslocamentos nesse processo de
mudanas.
A delimitao espacial do termo de Mariana pertencente Comarca de Vila Rica
foi escolhida para esse trabalho por abarcar uma tradicional regio que se destacou,
desde o incio da ocupao do territrio, devido busca pelo ouro. Essa regio
apresentou intensa movimentao econmica e populacional sendo que, sua sede
constituiu importante centro administrativo, comercial e religioso na segunda metade do
sculo XVIII e para as primeiras dcadas do XIX.11
Alm disso, outra motivao dessa
delimitao espacial tem relao no apenas com a reconhecida importncia
administrativa de Mariana, mas tambm com a riqussima documentao disponvel
para essa localidade.
Enfim, nesta pesquisa pudemos discutir sobre as mudanas no sistema jurdico-
administrativo que tentaram afirmar o poder central e a aplicao da justia. Assim
sendo, nos trs captulos desenvolvidos a seguir propomos o estudo das tentativas da
implantao de um poder local que, ao mesmo tempo em que demonstra a diligncia da
construo de uma mquina administrativa centralizada e o funcionamento da justia,
perpassa o desenvolvimento das relaes destas duas esferas, e em suas mais variveis
contradies. Isso pode ser percebido quando se cria a figura do juiz de paz eletivo no
plano paroquial, com amplos poderes de ao jurdica e policial, (...).12
O Juizado de
Paz, considerado a base do Direito Processual brasileiro, teve o instituto da conciliao
10
HESPANHA, Antnio Manuel. Guiando a mo invisvel: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
Monrquico Portugus. Coimbra: Almedina, 2004, pp.331-349. Esta obra trata do constitucionalismo
monrquico portugus do sculo XIX com enfoque para a questo poltica do Liberalismo. Apesar de
tratar do Portugal monrquico o autor faz incurses sob o projeto constitucional para a Europa em geral, e
retrata, efizcamente, a impossibilidade da realizao prtica de alguns dos pressupostos do Liberalismo. 11
ALMEIDA, Op. Cit., p. 7. 12
VELLASCO, op. cit.
17
abolido em 1890, entretanto pela Constituio de 1891 os Estados do pas poderiam
ainda legislar sobre os processos e muitos adotaram o instituto Juizado de Paz
mantendo a conciliao espontnea, como Minas Gerais, So Paulo e Rio de Janeiro.13
Para tanto, trabalhamos com fontes de origem administrativa e judicial,
localizadas no Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana, dentre as quais
destacamos os livros de atas de eleies, as correspondncias oficiais, os livros de
censos, os livros de matrcula da Guarda-nacional, as leis e as sries de miscelnea.
Nessa documentao, nossa primeira preocupao esteve em, alm de construir a
listagem dos homens eleitos para o perodo em Mariana, verificar indcios da sua
atuao, suas preocupaes e realizaes, e de acordo com a legislao vigente.
As outras fontes privilegiadas, de origem cartorial, localizadas no Arquivo
Histrico da Casa Setecentista de Mariana so os inventrios post-mortem, os
testamentos e processos-crime. O inventrio um documento cartorial que nos traz,
dentre outras informaes, a relao de bens do falecido o que nos permite identificar a
riqueza dos indivduos eleitos juzes de paz. O cruzamento dos nomes dos eleitos e a
riqueza que detinham contriburam para a descrio do seu perfil social e a atividade
econmica desenvolvida.
J os testamentos, so tambm indicadores de insero social, pois nos revela o
pertencimento Irmandades e Ordens religiosas e foram aqui utilizados para avaliar a
condio de distino social de cada indivduo. Alguns processos-crime foram ainda
utilizados, a partir do cruzamento dos nomes dos juzes eleitos, para demonstrar as suas
participaes, seja como rus ou autores, nos ditos processos.
Tambm primordiais para anlise do perfil dos homens eleitos juzes de paz
foram as listas nominativas. Essas listas nominativas de habitantes, especialmente, as de
1831-1832 foram elaboradas para atender s determinaes do governo provincial de
Minas Gerais para levantamentos eleitorais, para o recrutamento militar ou para a
tributao. Muitas vezes indicava a ocupao do chefe do domiclio relativa atividade
econmica que sustentava a famlia, alm do estado civil, cor, origem e idade.14
Para os
13
Idem, pp. 77-79 14
Vale lembrar os minuciosos tratamentos demogrficos dados a esses conjuntos documentais por
COSTA, Iraci Del Nero. Arraia-mida. Um estudo sobre os no-proprietrios de escravos no Brasil.
MGSP Editores. So Paulo. 1992; LIBBY, Douglas Cole. Transformao e Trabalho em uma economia
escravista. Minas Gerais sculo XIX. So Paulo. Brasiliense: 1988; ANDRADE, Francisco Eduardo de. A
enxada complexa: Roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do sculo XIX. Belo
18
nossos propsitos, tais listas se tornam ainda mais relevantes pelo fato de sua
elaborao ter sido de responsabilidade dos Juzes de Paz de cada distrito dos diversos
municpios mineiros.15
Aliadas aos inventrios, o trabalho com tais fontes contribuiu
para a percepo da principal atividade desenvolvida pelo homem que, alm de eleito
juiz de paz, possua outras atividades, notadamente, as econmicas.
Enfim, neste trabalho, de incio passa-se por uma literatura mais clssica acerca
das anlises que envolvam as relaes entre grupos e indivduos, e como essas relaes
se delineiam para o estudo das sociedades de Antigo Regime e para o sculo XIX.
Traamos um breve panorama sobre a situao da poltica, da justia e da lei no sculo,
mas ressaltando, a posio da administrao e da justia no contexto daquelas
transformaes polticas, bem como, o desempenho de algumas anlises da
historiografia brasileira que realaram tais premissas.
Buscou-se ainda no primeiro captulo delinear, apesar dos poucos trabalhos
existentes, um breve histrico sobre a implementao do Juizado de Paz no Brasil e em
Portugal. Tal escolha partiu-se primeiramente devido a ordem dos acontecimentos, que
acontecera com a inaugurao das Constituies Polticas das duas naes, ambas
propagadas por D. Pedro I, bem como, a criao do Juizado de Paz naquele mesmo
perodo.
No segundo captulo buscou-se esmiuar o processo das eleies para juiz de
paz, abarcando vrias freguesias pertencentes ao termo de Mariana. Deparamo-nos com
uma questo de ordem metodolgica sobre qual deveria ser o encaminhamento, para
identificar corretamente o que havia de essencial, de especfico, de inovador naqueles
processos. Pelo grau de especificidade, a nica sada foi analisar cada eleio, uma a
uma, separadamente. O recorte temporal perpassa a Lei de 1828, que dispunha sobre as
eleies municipais e a administrao das Cmaras Municipais, e ainda o Cdigo
Criminal de 1830 e o Cdigo do Processo Criminal de 1832, considerados de cunho
liberal, at a lei do Ato Adicional de 1834 e sua Lei de Interpretao em 1840, essas
ltimas de carter conservador. Abarca desta forma, o perodo mais premente do
estabelecimento das funes dos juzes de paz, que sofrero uma reduo em 1841, com
Horizonte. Dissertao de mestrado. FAFICH. UFMG, 1995; e ANDRADE, Leandro Braga de. Senhor
ou Campons? Economia e Estratificao social em Minas Gerais no sculo XIX. Mariana: 1821-1850.
Dissertao de Mestrado. PPGH. FAFICH. UFMG. 2007. 15
Um estudo da origem das listas e da sua utilizao como fonte histrica em: PAIVA, Clotilde.
Populao e economias. Minas Gerais do sculo XIX. Tese de Doutorado. USP. So Paulo, 1996.
19
a Reforma do Cdigo. Discute-se assim, o ambiente poltico, as principais alteraes
legislativas e as prticas administrativas exercidas pelos juzes de paz.
Por fim, no terceiro e ltimo captulo analisa-se o perfil econmico-social para o
grupo de indivduos eleitos como juzes de paz no Termo de Mariana. A principal idia
desse captulo vai ao encontro da observao acerca da conservao da comunicao
intra-grupos e a permanncia destes na qualidade de elites econmicas e polticas,
destacando a qualidade de juiz de paz. Busca-se saber enfim, quem foram na sociedade
marianense os juzes de paz, aliando a discusso de cunho mais poltico e administrativo
ao perfil socioeconmico destes homens, na medida em que foram homens abastados e
de alguma forma envolvidos em outras atividades e ocupando outros cargos.
Por sua vez, trata-se de observar a complexidade e diversidade das relaes
interindividuais lembrando sempre da importncia em se considerar a capacidade de
articulao e de adaptao dos indivduos diante da abrangncia de novas conjunturas,
polticas e econmicas. Aspectos estes h muito ressaltados, explorados e trazidos para
a abordagem histrica por anlises que privilegiaram as relaes sociais e as estratgias
individuais formadoras de redes de interaes diversas. Torna-se essencial portanto, o
uso da histria social ajustada a anlises qualitativas e quantitativas na elaborao dos
dados, bem como, das indicaes do mtodo prosopogrfico do rastreamento da vida
dos indivduos e das formulaes para o universo destes atores. 16
Nesse sentido, a maior demonstrao foi apontada pela corrente conhecida como
micro-histria italiana representada por pesquisadores como Carlo Ginzburg e Giovanni
Levi no final dos anos de 1970. Tal corrente nasceu das trocas de um pequeno grupo de
historiadores italianos e pode ser compreendida como uma reivindicao do direito
experimentao em histria. A micro-histria surgia como uma reao a um momento
especfico da histria social, e props reformular certas exigncias.17
A reduo de escala proposta por Carlo Ginzburg, Carlo Poni, e depois Edoardo
Grendi, convidava a outra leitura do social. A histria social dominante refletia sobre
agregados annimos analisados em longos perodos, com dificuldades para apreender os
16
STONE, Lawrence. La crisis de la aristocracia, 1558-1641. Madri: Alianza Editorial, 1985.
Consideraes acerca da histria das elites e o mtodo prosopogrfico ver: CHARLE, Christophe. A
prosopografia ou biografia coletiva: balano e perspectivas. In: HEINZ, Flvio M. (Org.) Por outra
histria das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 17
REVEL, Jacques. Prefcio. In: LEVI, Giovanni. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no
Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.17.
20
acontecimentos. Apoiados na arquivstica italiana, os autores propunham acompanhar o
nome dos indivduos e dos grupos de indivduos. Tem, portanto, duas faces, usada em
pequena escala e na identificao das estruturas invisveis, nas quais o vivido se
articula.18
Ressaltamos como os emaranhados de situaes do flego ao tema e servem,
antes de tudo, para apresentar o lugar social em que se demarcaram continuidades e
inovaes no palco da ao da justia nas primeiras dcadas do sculo XIX. Assim, fica
evidente a importncia que daremos s formulaes observadoras dos aspectos
relevantes da lgica social como formas adaptadas a novas circunstncias.
Como bem props o italiano Giovanni Levi, os problemas enfrentados pelos
atores sociais e suas aes integram uma racionalidade limitada que abarca os
recursos e as escolhas que, por sua vez, agregam toda a sociedade. E ainda, dentro dos
sistemas normativos e em meio a um cenrio especfico, em que cada sociedade se
encontra, funcionam as estratgias, e o indivduo a inserido tem seu espao de
atuao.
Parece-nos que as leis do Estado moderno se tenham imposto sobre
resistncias importantes e, historicamente, irrelevantes. Mas as coisas
no se deram exatamente dessa forma: nos intervalos entre sistemas
normativos estveis ou em formao, os grupos e as pessoas atuam com
uma prpria estratgia significativa capaz de deixar marcas duradouras
na realidade poltica que, embora no sejam suficientes para impedir as
formas de dominao, conseguem condicion-las e modific-las.19
E essas foram indicaes que frequentemente se manifestaram nos mais variados
trabalhos: a preferncia por fenmenos circunscritos, a aproximao cada vez mais
estreita entre histria e antropologia, o fim da iluso etnocntrica, enfim vrios
caminhos que reforaram estudos mais peculiares.20
Ou seja, os fatores sociais
incidentes sobre o homem e que interferem diretamente em suas aes, nos aspectos das
18
Idem, pp.17-19 19
LEVI, Giovanni. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.45. O autor evidenciou a importncia em prestarmos ateno aos
diversos fatores que influenciam os comportamentos sociais. Demonstrou como uma sociedade podia
privilegiar as relaes pessoais de solidariedade, de dvida e de reciprocidade. Ao realizar uma anlise
estrutural de dois aspectos fundamentais, como o mercado de terras e as estratgias familiares, sugeriu
alguns dos princpios normativos sobre os quais comunidades, do mundo campons do Antigo Regime, se
organizavam no sculo XVII. 20
GINZBURG, C. & PONI, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiogrfico. In: A
micro-histria e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p.172.
21
mudanas polticas, das estratgias de ao e das relaes sociais. Neste tipo de
abordagem o ator histrico participa de processos e se inscreve em contextos de
dimenses e de nveis variveis
Na verdade, a escolha no alternativa entre duas verses da realidade
histrica do Estado, uma que seria macro e a outra micro. Uma e
outra so verdadeiras (e muitas outras mais em nveis intermedirios
que seria conveniente recuperar de modo experimental), e nenhuma
realmente satisfatria porque a constituio do Estado moderno
precisamente feita do conjunto desses nveis, cujas articulaes ainda
precisam ser identificadas e pensadas. A aposta da anlise microssocial
e sua opo experimental que a experincia mais elementar, a do
grupo restrito, e at mesmo do indivduo, a mais esclarecedora porque
a mais complexa e porque se inscreve no maior nmero de contextos
diferente.21
Deve-se lembrar ademais, que os questionamentos a que Levi se props, bem
como dos autores ligados a micro-histria, nasceram de uma aproximao com a
antropologia. Foi representativa a influncia das idias do antroplogo noruegus
Fredrik Barth para quem os sistemas de normas so repletos de incoerncias e a
sociedade vista como um contexto de aes. Para Barth, os valores e os recursos do
indivduo servem de parmetros realizao de suas escolhas ou estratgias trata-se
de um processo generativo.22
Como chamou ateno Ginzburg, no se deve esquecer o uso do mtodo
prosopogrfico, pois aliado a esse, h possibilidades de selecionar, na massa dos dados
disponveis, casos relevantes e significativos.23
Tal mtodo de pesquisa consiste,
grosso modo, em definir um grupo e estabelecer um questionrio biogrfico de anlise a
partir de um ou vrios critrios que serviro descrio da dinmica social. Foram
representativos, neste sentido, os trabalhos de Lawrence Stone para a Inglaterra do
sculo XVII.24
Partimos, enfim destes preceitos para pensarmos a administrao da Justia do
territrio brasileiro aps a independncia, em meio a um emaranhado de relaes e de
21
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experincia da microanlise. Rio de Janeiro: Fundao
Getlio Vargas, 1998, p.32. 22
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 2000. 23
GINZBURG, Op. Cit. 24
STONE, Lawrence. La crisis de la aristocracia, 1558-1641. Madri: Alianza Editorial, 1985.
22
momentos conflituosos. Trata-se de um contexto especfico daquela realidade em que,
por espaos curtos de tempo, ocorreram mudanas bruscas: marcou-se de incio (1808)
o transplante da realeza e a capital do Imprio, a separao dos reinos e a independncia
da colnia, a implantao da Constituio e a abdicao do imperador, a diviso dos
poderes polticos e a criao de novas autoridades.
O indivduo nesse interstcio, seja ele parte integrante ou no da mquina
centralizada de fazer leis, habituava-se a uma Legislao determinada e passava a
conviver constantemente com inmeros decretos e regulamentaes advindas do centro.
Como este acolheu ou reagiu a tais realidades o que buscamos compreender.
23
Captulo 1 Fundamentos e formas da administrao da justia: apontamentos
sobre Antigo Regime e Liberalismo Poltico
As tramas suscitadas em torno da administrao da Justia e a aplicabilidade da
justia local eram para os to conturbados primeiros anos do sculo XIX, pouco
esclarecidas. No Brasil, isso se dava principalmente pela falta de bases polticas
determinadas, ainda encabeadas nos moldes da dinmica imperial portuguesa.
Assim, o cenrio poltico aps a independncia forma um contexto de intensas
transformaes sociais que se estendem desde um incremento e edificao da
monarquia constitucional at a uma ruptura com o Antigo Regime, identificado ao
Absolutismo despotista.25
A independncia da colnia do antigo Imprio Portugus, em
1822, a Carta Constitucional de 1824, e as transformaes que a partir da se deram,
conjuntamente s heranas que se verificaram so os focos da presente anlise.
Pensando ainda em como, desde pelo menos o sculo XVIII, administrao e justia se
confundiam.
Buscamos enfim, neste primeiro captulo evidenciar como alguns fatores da
composio colonial, relativos administrao e justia, de alguma forma legaram
influncias sobre o aparato de governo posterior independncia e sobre os modos de
governar. Alm disso, procuramos demonstrar a ausncia de, ou os poucos, trabalhos
que na historiografia brasileira contemplaram o cotidiano da administrao e da justia
local para a primeira metade do sculo XIX.
Logo, ao buscarmos analisar tais momentos, assinalados por to importantes
marcos, nos remetemos a um contexto mais amplo, no mbito mesmo da histria do
pensamento liberal europeu, deparando-nos de imediato com tamanha abrangncia.
Logicamente, no nos seria possvel examinar com o devido aprofundamento os
pensadores que dedicaram parte de suas obras ao estudo do Liberalismo poltico do
sculo XIX, o que nos vinculou a limitar nossa anlise a alguns pontos representativos
do tema.
25
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir
do conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, pp.43-44.
24
1.1 Monarquia e oficialato: consideraes histricas acerca da
administrao da Justia
Em termos amplos, as foras da tradio e dos resqucios do Antigo Regime
mostraram-se presentes no somente pela forma como se organizou a poltica e a
administrao imperial, mas tambm pela herana e pela importao de um modelo de
organizao que circundavam as prticas e os comportamentos dos indivduos que aqui
permaneceram:
(...), certo tambm que, no Brasil, adotou-se um iderio europeu ps-
revolucionrio que havia se esmerado em marcar a ruptura com o
Antigo Regime, identificando o absolutismo ao despotismo e negando
qualquer relao de continuidade entre estes e o novo modelo poltico-
administrativo que ento se instalava. Mas, nem a Monarquia
absolutista europia foi necessariamente desptica, nem a monarquia
constitucional reviveria no sculo XIX totalmente livre dos resqucios
do Antigo Regime. A experincia poltica brasileira demonstraria a
fora dessa tradio ao seguir, em grande medida, a forma como se
organizou e consolidou a monarquia portuguesa e seu modelo de
administrao.26
Quanto ao Brasil, em relao ao modelo de administrao a ser seguido, os
moldes atravs dos quais se estabeleceram a administrao colonial portuguesa podem
ser percebidos quando nos dirigimos ao estudo das bases da governabilidade local. O
exemplo da administrao da justia local demonstra que desde os primrdios da
colonizao do territrio, foi transplantada nos padres da metrpole portuguesa,
regulada principalmente nas Cmaras Municipais. Por meio da atuao dos oficiais
locais possvel perceber as profundas razes fincadas na Amrica Portuguesa e
norteadoras dos seus rumos.
Em relao especialmente justia, no antigo Regime apreende-se que o aparato
dogmtico do direito comum, relativo construo jurdica dos corpos como um
investimento simblico, o meio atravs do qual a auto-representao da sociedade
assegurava a sua reproduo poltica alargada, eram as proposies destinadas a
modelar normativamente estas sociedades.27
26
Idem, p.43. 27
HESPANHA, Antnio Manuel. As Vsperas do Leviathan: instituies e poder poltico, Portugal sc.
XVII. Almedina: Coimbra, 1994, p.306.
25
De acordo com Antnio Manuel Hespanha o que era singular no pensamento
social do Antigo Regime seria a definio organicista da sociedade a partir da
considerao das suas funes: esmiuadas na caracterizao social como uma
qualidade pertencente prpria natureza individual, para qual a sociedade se enxerga
por meio de grupos de indivduos portadores da mesma funo e titulares de um mesmo
cargo; e ainda, pela definio deste enquadramento e destas funes a partir da
constituio tradicional da sociedade definidas pela tradio levando a que o estatuto
social decorresse no tanto da situao atual das pessoas, mas de uma posse estabelecida
pela tradio familiar, pelo uso e pela fama.28
Da a ideia de uma sociedade naturalmente estratificada e desigualmente
ordenada: os estatutos diferentes, cada qual correspondente a uma funo social e
designando um conjunto de pessoas, a este conjunto de pessoas com um mesmo
estatuto que a teoria social e jurdica do antigo regime chamava um estado ou
ordem.29
Caracterizada como uma Monarquia corporativa, a Monarquia portuguesa tinha
como princpios bsicos o poder real partilhado, e em um espao poltico dotado de
poderes com diferentes hierarquias entre os oficiais rgios, sendo estes, gozadores de
uma proteo alargada de seus direitos e com variadas atribuies, sendo estas tambm
estendidas s suas colnias.30
Para essa Monarquia no existiu um modelo ou estratgia
geral de domnio, mas sim variados caminhos para justificar a sua expanso colonial, e
no houve harmonia nas polticas de colonizao, pois estas eram diferenciadas de
acordo com o tempo e com as conquistas dos diferentes espaos.31
Desse modo, prevalecia nessa expanso territorial portuguesa a carncia de uma
constituio colonial unificada, sendo que a heterogeneidade de laos polticos impedia
o estabelecimento de uma regra uniforme de governo, ao mesmo tempo em que criava
limites ao poder da coroa ou dos seus delegados.32
A inconsistncia do direito colonial
28
Idem, pp.307-308. 29
Ibidem, p.308. 30
HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Reviso de alguns
enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria F. & GOUVA, Maria de F. (orgs.).
O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2001, pp.166-167. 31
Idem, p.170. 32
Ibidem, p.172.
26
moderno decorria, dentre outros fatores, da disposio do direito comum europeu
baseado nos princpios da preferncia por normas particulares, como tambm:
(...), a incoerncia do sistema jurdico derivava tambm de algo que j
foi evocado a constituio pluralista do Imprio, em que cada nao
submetida podia gozar do privilgio de manter seu direito, garantido por
tratado ou pela prpria doutrina do direito comum, de acordo com a
qual o mbito de um sistema jurdico era marcado pela naturalidade.
Da que o direito portugus s se aplicasse aos naturais (Ord. Fil II, 55),
governando-se os nativos pelo seu direito especfico.33
A Monarquia portuguesa, portanto, vinculava-se ao modelo corporativo,
emergente de um paradigma jusnaturalista, caracterizado pela superioridade da
jurisprudncia sobre a poltica. A ao poltico-administrativa era o fator mais
importante, e o rei teria que manter as jurisdies dos restantes dos corpos polticos
sempre em equilbrio:
Assim, o paradigma jusnaturalista limitava fortemente a capacidade de
aco da coroa. No s ao persistir numa concepo do poder que
apenas parcamente lhe concedia poderes integrveis numa
administrao activa, promotora de novos equilbrios sociais e
polticos, como ao subordinar toda a actividade da coroa s regras de
uma prudentia iuris, norteada pela conservao da ordem estabelecida e
servida por um estamento corporativista e eminentemente conservador
(no sentido mais radical do termo)(...).34
Esse sistema e a organizao poltico-jurdico caracterizou tambm a
administrao colonial na Amrica Portuguesa. Havia diferentes cargos estendidos e/ou
criados na colnia para conduzirem aquela expanso.35
O problema do domnio estava
ligado ao da organizao poltico-administrativa do prprio Imprio portugus. Vrios
modelos administrativos foram ento utilizados correspondentes s solues
encontradas para os diferentes pontos conquistados:
Assim, o imprio portugus no se estrutura sobre um modelo nico de
administrao, antes fazendo conviver instituies muito variadas
(instituies municipais e senhoriais de tipo europeu, capitanias-
donatrias, feitorias-fortalezas, situaes poltico-institucionais
desenhadas, caso a caso, em tratados de paz, de vassalagem e de
33
Ibidem, p.172-173. 34
HESPANHA, Antnio Manuel. As Vsperas do Leviathan: instituies..., p.286. 35
HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio..., pp.170-187.
27
protectorados, simples enquadramento tctico a partir das redes de
relaes comerciais, da aco dos missionrios ou mesmo da presena
de aventureiros portugueses, etc) em territrios tambm eles mltiplos,
de acordo com as intenes e oportunidades de ocupao.36
Nesse contexto, a estrutura do governo colonial, tradicionalmente inspirado nos
modelos administrativos do Reino, foi reservada s zonas de ocupao permanente, e as
restantes instituies e formas de domnio foram adaptadas entre expedientes formais
como os de municpio e capitanias-donatrias s modalidades menos
institucionalizadas, porm:
Esta mistura de poderes no chocava, de maneira nenhuma, o
imaginrio poltico moderno, cuja vertente pluralista bem notria.
Poderes divididos o da coroa, com o da Igreja; ambos com os dos
municpios, da famlia e do patronato constituam a realidade
quotidiana do cenrio poltico europeu. E nem os poderes de facto
eram desconhecidos. Portanto, estas formas de governo misto ou
informal no eram mais que a continuao, agora no ultramar, de
formas de exercitar o Poder na Europa.37
Dessa forma, necessrio reconhecer que no Portugal moderno estavam
presentes rupturas, mas tambm a continuidade de certas prticas de governo e culturais
resistentes. Isto tem sido evidenciado em vrios estudos que se empenharam em
demonstrar a capacidade da Monarquia nos Estados europeus em lidar com as elites,
uma relao que poderia se dar de variadas maneiras.38
36
HESPANHA, Antnio Manuel; SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num imprio ocenico. In:
MATTOSO, Jos (Org.) Histria de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, pp.351-
366. 37
Idem, p.353 38
Neste sentido, podemos nos referir a discusso acerca das chamadas redes clientelares tema muito
recorrente na historiografia brasileira que trata o perodo colonial refere-se s tramas das relaes de
poder no Antigo regime portugus e extensivas s suas colnias, e que com variaes se estenderam ao
sculo XIX. ngela Barreto Xavier e Antnio Manuel Hespanha reafirmaram a ideia de que na
colonizao portuguesa o sistema poltico atuante foi dotado de peculiaridades. Para estes, a pluralidade
das redes de relaes sociais foi responsvel por gerar estratgias e prticas que ultrapassavam os limites
das prticas institucionais do Antigo Regime. A poltica real assumia diversas formas e as chamadas
redes clientelares naquela sociedade no eram um fenmeno exclusivo da corte e dos ambientes
polticos. Os regimentos das relaes entre Rei e sditos no Portugal moderno poderiam ser
transplantados para a Amrica portuguesa e tais aspectos, inclusive, circundaram esforos das anlises de
alguns historiadores brasileiros para o entendimento da conformao das elites coloniais. Essas anlises
para o Portugal do sculo XVII e meados do XVIII clarificam o entendimento do sentimento de lealdade
e amizade que regeram a corte, os sditos e todas as pessoas que compartilhavam de um mesmo
sentimento da naturalidade de um sistema pautado no Rei, como topo e responsvel pelo restante. Ver:
HESPANHA, Antnio Manuel; XAVIER, ngela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, Jos
(Org.) Histria de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
28
A forma mais disseminada de governo local para os domnios portugueses nos
sculo XVII e XVIII foi atravs dos Senados das Cmaras, ou Conselho Municipal.
As alteraes econmicas e sociais do Imprio portugus, aliadas s diversidades locais
e territoriais das suas possesses, contriburam para tornar a tarefa do governo
municipal cada vez mais complexa, e as Cmaras assumiam amplas responsabilidades
concomitantemente ao aumento da burocracia em nvel local.39
A instalao das Cmaras Municipais funcionava como uma resposta direta a
fatores sociais, econmicos, polticos, religiosos, militares e tnicos dos diversos
territrios da expanso portuguesa. Havia constante adaptao da nomeao do pessoal
burocrtico, sua qualidade, nmero, dentre outros critrios, diretamente ligados s
especificidades necessrias - a criao destes rgos tinha como fator condicionante as
modificaes e transformaes locais que por serem variadas interferiam, enfim, na
composio da oficialidade.40
Na administrao colonial a Cmara era regida pela mesma lei da metrpole, as
Ordenaes Filipinas de 1603. Conforme a lei, a Cmara Municipal tinha faculdades
poltico-administrativas, judiciais, fazendrias e de polcia. Apenas nos locais com
estatuto de vila poderiam se instalar as Cmaras. Estas eram compostas pelos homens
bons das localidades, e atravs deles, elegiam-se os juzes, os vereadores, os homens
que serviam administrao das vilas. A Cmara cuidava de administrar os bens da
municipalidade, aplicar a lei, fazer o policiamento, cobrar as multas e arrecadar os
impostos locais, dentre outras diversas atribuies.41
Assim, a instalao das Cmaras Municipais representa em nossa histria uma
das primeiras tentativas de implantao de um governo local, e, por isso,
representativa das diversas experincias de organizao da administrao e da aplicao
da justia local. O aumento de pessoal burocrtico era uma constante. As nomeaes
tambm. E, no sculo XIX com a Legislao imperial tentara-se diminuir o poder de
justia das Cmaras repassando-o ao juiz de paz pela Lei Orgnica das Cmaras
Municipais de 1828.42
39
RUSSEL-WOOD, A. J. O governo local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural.
In: Revista de Histria. So Paulo: v.55, ano XXVIII, 1977, pp.25-79. 40
Idem, pp.25-36. 41
SALGADO, Graa (coord.). Fiscais e meirinhos: a administrao no Brasil colonial. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp.69-71. 42
Para mais detalhes sobre a Lei e o perodo ver Captulo 2.
29
Assim, para o sculo XIX, especificamente, que no contexto do Liberalismo
poltico europeu, a questo se mostra um pouco diferente, o importante no ser se os
preceitos do sistema e se os princpios liberais eram aplicados no dia a dia. Mas, sim, se
estavam presentes na prpria teoria poltica e jurdica da poca, no modo como se
ensinava o direito, nos modelos de como se organizava o Estado, nas leis como estavam
nos livros ou mesmo nas constituies que deveriam reger a organizao do sistema.
O liberalismo neste sentido de uma constituio de liberdades
individuais foi, em Portugal, mais ou menos o mesmo que me parece
ter sido em toda a Europa Ocidental, sem sequer excluir as Ilhas
Britnicas: um projecto constitucional que, alm de teoricamente algo
inconsistente, no podia tambm realizar os pressupostos da sua
realizao prtica. Ou, pondo as coisas, de forma diferente: um projecto
constitucional que, para realizar os seus pressupostos de realizao
prtica, tinha que comear por desmentir alguns dos seus postulados
tericos.43
Na realidade, j havia sinais da ideia de um governo ativo na legislao e na
prtica poltica desde finais do Antigo Regime. Porm, a revoluo liberal portuguesa
precisava de Estado. A eficcia administrativa, cujo modelo vinha da Frana (e depois
da Alemanha) s se atingiria com reformas, e o ponto chave era a ordem. 44
Mas, o discurso constitucional a questo se mostra bem mais complexo ao tentar
perceb-lo na prtica, pois ele constitui um conjunto de mensagens emitidas com
intenes originrias, mas tambm entendido por receptores, diferente de
destinatrios, com diferentes horizontes de leitura e intenes de apropriao, se o
direito no poltica, as solues jurdicas tm inevitveis consequncias jurdicas.45
Em Portugal, novos processos sociais exigiam novas medidas reguladoras, novas
reparties. Os direitos eram agora subordinados ao direito sistemtico. E esse direito
sistemtico conexo lei. O Estado devia atuar em nome de todos. A ruptura
constitucional fundadora distingue o modelo poltico iluminista das anteriores
monarquias de Antigo Regime, o despotismo iluminado traz de novo a constituio das
monarquias de Antigo Regime, o novo impacto da lei. A lei aparece como subsidiria
43
HESPANHA, Antnio Manuel. Guiando a mo invisvel: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
Monrquico Portugus. Coimbra: Almedina, 2004, p.6. 44
Idem, pp.7-8. 45
Ibidem, pp.25-26.
30
de uma ordem da razo que se ira positivar na criao dos cdigos que circundaram o
sculo XIX.46
Em Portugal destaca-se a conjuntura institucional vintista na dcada de 1820 e
os projetos constitucionais da restaurao joanina com o retorno de D. Joo VI do
Brasil. A carta constitucional de 1826, promovendo prticas poltico-constitucionais
visava a constituio dos aparelhos do governo e modelos jurdicos consubstanciados
por meio do direito e do Estado.47
Em 1820, na sequncia de um movimento militar, apoiado por um grupo de civis
pertencentes burguesia ilustrada, proclamada a Junta de governo do Porto
encarregada de convocar Cortes para se fazer uma constituio. O projeto de Bases da
Constituio promulgado em 1821. Ainda estando no Brasil, D. Joo VI forado a
aceitar a constituio de Lisboa. Quanto fonte do poder constituinte e aos processos
constituintes, quanto natureza da constituio, quanto relao entre direitos e
constituio, em todos estes pontos o argumento da continuidade traduz uma releitura
da tradio, induzida pela preocupao de legitimar a mudana, mas que no oculta
tambm as novidades. Nas ideias de ampliao e de reforma as cortes assumiram um
poder constituinte. Buscou-se dar nova forma ou alargar o mbito das leis fundamentais
histricas da Monarquia. No iderio poltico da poca se revalorizava a tradio poltica
e jurdica como instncia de positivao da ordem jurdico-constitucional.48
As novidades foram muitas quer em relao constituio tradicional do
Reino, quer mesmo em relao constituio reformista a partir da segunda metade do
sculo XVIII. Uma novidade fundamental era a de reconhecer s cortes um papel
constituinte. Algumas dessas novidades estiveram no plano da nova linguagem poltico-
constitucional.
No Antigo Regime e na ordem constitucional americana ou inglesa, os direitos
estavam antes da lei, podendo ser invocados contra esta. Mas, na tradio constitucional
portuguesa, esse ponto de vista, se tinha caracterizado pela constituio monrquica
corporativa. Apesar de se considerar limitado pelos direitos adquiridos, estes eram
estabelecidos no mbito da ordem jurdica positiva.49
46
Ibidem, pp.10-18. 47
Ibidem, pp.19. 48
Ibidem, pp.62-80. 49
Ibidem, pp.71-72.
31
A transio do Estado de polcia para o Estado de direito significou a introduo
de limites ao Estado, porm de limites que no eram os puros direitos individuais, mas
as normas da lei que os tornavam efetivos na sociedade civil. Assim, a lei a vontade
do poder, institudo pelo pacto poltico aparece como a origem dos direitos.50
O que se pretendia era um Estado em que o predomnio da vontade do poder
(materializada na lei) se impusesse. J havia tendido para este modelo o Estado
absolutista ilustrado, agora diferente dele, mudara-se o conceito de lei, da vontade do
soberano para a vontade geral. O projeto poltico liberal preocupara-se em restabelecer a
positividade da ordem poltica restaurando o conceito de nao e resignificando o
conceito de Estado.51
No obstante, a todo o contedo exposto acima, existem diferenas, mas tambm
continuidades entre a constituio do Antigo Regime e a primeira constituio liberal
portuguesa, tais como: a religio catlica continua sendo a religio da nao princpio
de Antigo Regime, como tambm persiste a manuteno da estrutura fiscal (forais,
direitos banais, dzimos), beneficial (bens da coroa, comendas) ou fundiria (morgadios,
capelas). As determinaes de 1821 ficaram servindo provisoriamente como a primeira
Constituio portuguesa em vigor de maro de 1821 a outubro de 1822.52
A Constituio Monrquica aponta para uma definio no geral e no
igualitria da nao. A nao estava longe de ser um conjunto de indivduos com
direitos homogneos, pois era diferenciada quanto possibilidade de participao na
deciso poltica. Como ocorreu, por exemplo, nos artigos da Constituio brasileira de
1824, especialmente, referentes s eleies quando restringe os votantes e os que
poderiam ser eleitos. Ou seja, no momento de se falar politicamente, restringira-se a um
grupo social que, nos seus traos sociais, no se difere muito do mundo poltico do
Antigo Regime.53
50
Ibidem, p.72. 51
Ibidem, pp.74-75. 52
Ibidem, pp.77-78. 53
Ibidem, pp.81-86.
32
1.1.1 A administrao da Justia no Brasil oitocentista: desafios para a
historiografia brasileira?
A afirmao de um poder central, capaz de exercer o monoplio da
jurisdio sobre o territrio nacional, realizou-se atravs de um processo
permanente de luta e negociao com determinados agentes e grupos
sociais de bases regionais que encarnavam tendncias centrfugas, em
grande medida condicionadas pela prpria formao social da poca,
quando, em grande parte do nosso territrio, ainda no se fazia presente,
claramente definido, um quadro mais dinmico de entrelaamento
social.54
A administrao da Justia era um dos fatores a serem organizados aps a
independncia de 1822. O Brasil, politicamente independente de Portugal, tinha como
desafio cunhar o governo do territrio, administrado h muito, nos moldes do
absolutismo portugus. Para a histria poltica do Brasil muitos analisaram o papel das
elites neste contexto. Das anlises mais recentes fica a ideia de que no somente a elite
desempenhou um papel importante na formao do Estado nacional, mas, que as
mudanas implementadas atingiam toda a sociedade.
Nesse sentido, aps a independncia teve incio o que seria depois caracterizado
como o princpio da formao do Estado. Carregada de resqucios coloniais,
especialmente no tocante s mudanas condizentes a administrao da Justia, foi
possvel uma relativa e necessria conciliao entre os poderes do centro e os das
localidades, para a sustentao do Imprio e a adoo do constitucionalismo. Os debates
travados na poca so reveladores das discordncias existentes e dos problemas que
viriam. Porm, para a historiografia brasileira, o tema est longe de se esgotar.
Vrios trabalhos buscaram compreender para a primeira metade do sculo XIX a
formao, a organizao e o desenvolvimento do Estado e da Nao brasileiros. Nesse
sentido, clssicos trabalhos de interpretaes do Brasil tiveram grande repercusso.
Buscamos delinear abaixo alguns daqueles que de alguma forma tentaram considerar as
condies e as respostas de adaptao social para o perodo. Na perspectiva aqui
defendida importa localizarmos a trama que envolve os indivduos localizados entre as
camadas com poder de influenciar decises, e como eles foram incorporados nesse
processo de estruturao do Estado imperial.
54
VELLASCO, Ivan de Andrade. As sedues da ordem: violncia, criminalidade e administrao da
justia Minas Gerais, sculo 19. So-Paulo: Edusc/Anpocs, 2004, p. 16.
33
O ponto central a considerao da gnese dos novos crculos caractersticos
dessa sociedade, de tal maneira, a corroborar com a ideia de que a situao poltica do
perodo possibilitou um diferente raio de ao para ambas as partes envolvidas, o centro
e a periferia. De onde, se torna fundamentalmente importante, uma anlise da atuao
dos novos poderes que foram institudos a partir da independncia de 1822.
Tomando como essencial as relaes entre o Estado e estes novos poderes que
iam surgindo e sendo criados pelo prprio, cabe observar que em meio s mudanas,
essa sociedade conjugou antigas prticas e valeu-se de suas possibilidades. A criao
dos juzes de paz foi exemplar neste sentido ao oferecer recursos pontuais frente a
imposio do Estado queles detentores de representatividade local.
Tudo isso desde a formao histrica inicial e o desenvolvimento poltico do
Estado brasileiro foi alvo de abordagens diversas e, de uma maneira genrica, por
meio de diferentes interpretaes, passou-se a dar maior peso s relaes desenvolvidas
entre o poder central e as elites, ao longo do perodo imperial, em identificaes, por
exemplo, como foram as de Ilmar Rohloff de Mattos.55
A abordagem desse autor estabeleceu que o processo de construo do Estado
monrquico brasileiro pode ser visto como resultado de uma dinmica social ligada
formao de uma classe senhorial e dirigente. Essa classe foi aos poucos sendo
identificada como a elite ascendente ao poder representada pelos fazendeiros da regio
do Vale do Paraba fluminense e reunidos em torno dos dirigentes saquaremas, em
meados dos anos de 1830 at o incio da dcada de 1860.
Para Mattos a construo do Estado Imperial e a constituio da classe senhorial
foram processos inteiramente relacionados, sendo esta uma relao propiciada pela
interveno de uma fora social: os Saquaremas. O tempo Saquarema foi ento o
resultado, bem como, a condio da ao saquarema, os produtores ou controladores do
tempo.56
Para o autor, no perodo colonial existiam duas faces: a face metropolitana
representada pelo Reino, e a face colonial representada sob a forma da regio, esta
ltima guardando uma resistncia prpria. A regio aos poucos se tornou o resultado da
ao colonizadora, dos processos adaptativos dos seus agentes ao territrio americano,
55
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formao do Estado imperial. So Paulo: Hucitec,
1987. 56
Idem, p.12
34
das formas associativas de interesses face metropolitana e das representaes em
permanente elaborao, entre as quais ganharam destaque as de grandeza e opulncia. O
primeiro resultado da produo colonial, e agente gerador de uma opulncia, foi a
transformao do colonizador em colono.57
Esse processo aconteceu na medida em que, os proprietrios eram em condies
coloniais os plantadores escravistas, e ao construrem suas individualizaes
possibilitaram o recorte de sua regio e pareciam constituir uma classe social. Mas, ao
mesmo tempo o isolamento das regies e dos plantadores limitava aquela constituio.
Nas cmaras os plantadores reafirmavam os nexos complementares e contraditrios que
os uniam aos colonizadores. Quase ao mesmo tempo, questionavam o preo do
monoplio e reivindicavam meios para sustentar a ordem escravocrata: 58
Fundar o Imprio do Brasil, consolidar a instituio monrquica e
conservar os mundos distintos que compunham a sociedade faziam
parte do longo e tortuoso processo no qual os setores dominantes e
detentores de monoplios construam a sua identidade enquanto uma
classe social.59
Para Mattos, com a instalao da corte em 1808 houve o estabelecimento de uma
subordinao, e como resultado disso, a inaugurao de uma relao distinta: o
enraizamento dos interesses metropolitanos, ou seja, dos colonizadores no sudeste
brasileiro. Na rea polarizada pela cidade do Rio de Janeiro foi-se constituindo o feixe
de foras polticas concretizadoras do rompimento com as cortes portuguesas. Ligados
ao aparelho do Estado, expandiam seus interesses, procuravam exercitar uma direo e
impunham uma dominao, por fim, levaram a cabo o se forjar enquanto classe. Esta
no se constituiu apenas dos plantadores, mas tambm dos comerciantes que lhes
viabilizavam e com eles se confundiam, alm dos setores burocrticos, articulados entre
a poltica e os negcios. Formou-se ento a classe senhorial, distinguida nesta trajetria
por apresentar o processo no qual ela mesma se forjava no interior da construo do
Estado imperial.60
Para o autor a coroa tornou-se o agente propiciador de uma restaurao e de uma
expanso dos monoplios que fundaram uma classe senhorial a garantia da unidade do
57
Ibidem, pp.20-26 58
Ibidem, p.40 59
Ibidem, p.126 60
Ibidem, p. 50-57
35
Imprio se constitua na garantia de uma continuidade tambm. Essa unidade e
continuidade sublinhavam a relao entre a construo do Estado imperial e a
constituio da classe senhorial. Diferente dos plantadores escravistas, que restringiam
sua atuao quase que ao exerccio de uma dominao nas suas propriedades, a classe
senhorial servia-se do Estado imperial para construir a sua unidade e sua expanso.61
Estar no governo do Estado era, principalmente, a capacidade de se exercer uma
direo poltica, intelectual e moral. Por isso, para alguns, a busca constante em conter
medidas liberais, como a Lei da Guarda Nacional de 1831, de elegibilidade local para os
postos da oficialidade, ou mesmo, a do Cdigo do Processo Criminal de 1832 que
reforava amplamente o papel do juiz de paz. Para outros, as contradies liberais,
incapazes de evitar que a liberdade a qual defendiam fosse atrelada ao princpio da
ordem e Monarquia. Por isso, tambm para os conservadores, o empenho em
caracterizar os distintos poderes polticos e definir-lhes uma hierarquizao, e, por
ltimo, o seu esforo, sobretudo, em articular diferenciao e definio, a essa poltica
determinada.62
Na anlise de Ilmar de Mattos, esse Estado se impunha ao restante do territrio
atravs desta classe dominante a classe senhorial do mundo do governo. Mas, ao
mesmo tempo, o autor no adentrou ao quadro de relaes entre estes polticos daquela
classe e os proprietrios e elites locais de outras regies do pas. Tambm deixou de
lado o funcionamento e a repercusso desse controle exercido pela autoridade central
sobre as demais regies do vasto territrio.
A reflexo de Jos Murilo de Carvalho se diferenciou das consideraes de
Ilmar R. de Mattos. Para Carvalho, a herana burocrtica portuguesa forneceu a base
para a manuteno da unidade e estabilidade na ex-colnia; e possibilitou ainda uma
homogeneidade da elite poltica, treinada em Coimbra e reproduzida aps a
independncia. Na anlise de Carvalho, o processo poltico brasileiro foi concebido por
uma formao tardia, no sofreu grandes mudanas de governo e conservou uma
supremacia civil. O autor ressaltou a necessidade de se analisar os envolvidos nas
decises polticas, qual seja, a elite poltica.63
E, diferentemente do que postulara
61
Ibidem, pp. 91-92. 62
Ibidem, pp. 136-144. Mais detalhes sobre a Guarda-Nacional, e sua eleio, sob presidncia do juiz de
paz, foram demonstrados no Captulo 2. 63
CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial; Teatro de sombras: a
poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, pp.58-59 e pp. 152-159.
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Raimundo Faoro, a saber, a manuteno de uma elite burocrtico-patrimonial no poder,
a elite, para Carvalho, foi marcada por distines e limites. Havia uma minoria que
influenciava determinados processos: a elite no era um simples representante do poder
rural e o Estado no era um simples executor dos interesses dessa classe. A elite,
juntamente com a burocracia, no funcionava como um estamento rbitro da nao:
A continuidade propiciada pelo processo de independncia, pela
estrutura burocrtica e pelo padro de formao de elite de Portugal
certamente deu ao Estado imperial maior capacidade de controle e
aglutinao do que seria de esperar de simples porta-voz de interesses
agrrios. Mas, em contrapartida, no havia na elite e na burocracia
condies para constiturem um estamento nem podia o Estado ser to
sobranceiro nao. A burocracia era dividida em vrios setores e a
homogeneidade da elite provinha mais da socializao e do treinamento
do que de 'status' comum e de privilgios que a isolassem de outros
grupos sociais. 64
Nessa discusso Carvalho enfatizou uma elite dotada de homogeneidade. Tal
homogeneidade foi fornecida pela socializao dessa elite por via da educao, da
ocupao e do treinamento. A burocracia se confundiu com a elite, mas se dividia
verticalmente e horizontalmente. Para o autor era nessa cpula que Faoro pensou, ou
seja, na burocracia poltica representante de uma parte resumida da elite poltica e de
1% de todo o funcionalismo. Para Jos Murilo existiam setores mais representativos no
interior deste processo, pois:
O segredo da durao dessa elite estava, em parte, exatamente no fato
de no ter a estrutura rgida de um estamento, de dar a iluso de
acessibilidade, isto , estava em sua capacidade de cooptao de
inimigos potenciais. Alm da diviso interna, outra caracterstica da
burocracia imperial contribua para reduzir seu poder de controle e de
direo da sociedade. Trata-se da distribuio dos funcionrios pelos
vrios nveis de poder central, provincial e local. Essa distribuio
acompanhava a prpria estrutura do aparato estatal e revelava, ao
mesmo tempo, aspectos da natureza do Estado.65
Os aspectos que afetaram a formao dessas elites ligam-se s singularidades da
formao de classes e do Estado que se indicava. Nesse sentido, demandas centrais da
histria vem tona, como a fase da histria brasileira de constituio deste sistema,
64
Idem, p. 42. 65
Ibidem, pp. 151-152.
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traado entre fronteiras geogrficas gigantes e reguladas por resqucios coloniais. A
complexidade do processo de formao e constituio do Estado nas ex-colnias,
especialmente em pases diferentes dos primeiros pases de revoluo burguesa,
caracterizou-se por um processo de prazos temporais muito curtos. Para alguns setores,
como na economia, existiram elementos externos e controladores dos mercados de
exportao e participantes tambm dos arranjos polticos. Alm do fato de que, na
Amrica do sculo XIX existiram modelos de organizao poltica que introduziram
justificativas ideolgicas e incentivadoras de aes entre grupos polticos opostos.66
As maiores decises polticas do perodo ps-independncia foram tomadas por
aqueles que haviam sido educados em Portugal. Os cdigos legais do imprio foram
redigidos por essa gerao, como o Cdigo do Processo Criminal e o Cdigo Comercial,
e mesmo a Constituio de 1824 com suas reformas posteriores.67
Para Carvalho a herana burocrtica portuguesa forneceu a base para a
manuteno da unidade e da estabilidade da ex-colnia no sentido, principalmente, de
possibilitar uma homogeneidade intraclasses dominantes e a regimes de compromisso.
A elite portuguesa teve como poltica a reproduo na colnia de uma outra elite
sua semelhana por meio da homogeneidade ideolgica, e com treinamento em
Coimbra. E, principalmente, essa mesma elite se reproduziu em condies idnticas,
aps o processo da independncia. A partir de ento, a burocracia foi o canal essencial
para a mobilidade dessa elite estabelecida na nova situao poltica: 68
O governo trazia para a esfera pblica a administrao do conflito
privado, mas ao preo de manter privado o contedo do poder. Os
elementos no pertencentes camada dirigente local eram excludos da
distribuio dos bens pblicos, inclusive da justia. O arranjo deu
estabilidade ao Imprio, mas significou, ao mesmo tempo, uma sria
66
Ibidem, pp. 13-22. 67
Ibidem, pp. 58-59. Segundo Carvalho o Imprio durou 67 anos podendo ser subdividido em cinco
perodos. O Primeiro Reinado entre 1822-1831 em que seu fim significou o afastamento de polticos
ligados a D. Pedro I e a entrada de nova gerao de lderes. O segundo perodo foi a Regncia (1831-
1840) em que a nova gerao chega ao Senado e ao Conselho de Estado, j dividida entre conservadores e
liberais. Os prximos perodos giraram em torno de dois ministrios geralmente considerados como
pontos de inflexo da poltica imperial. O primeiro foi o do Marques do Paran (1853), conhecido como
Ministrio da Conciliao que significou o fim de uma fase de lutas entre liberais e conservadores
culminando na Revoluo Praiera, ltima de grande porte do Imprio. O segundo Ministrio foi o do Rio
Branco (1871), o mais longo do Imprio; tpico conservador modernizante, fez grandes reformas. Assim
os cinco perodos foram: 1- Primeiro Reinado (1822-1831), 2- Regncia (1831-1840), 3- Consolidao
(1840-1853), 4- Apogeu (1853-1871), 5- declnio e queda do Imprio (1871-1889). 68
Ibidem.
38
restrio extenso da cidadania, portanto, ao contedo pblico do
poder. O governo se afirmava pelo reconhecimento de limites estreitos
ao poder do Estado.69
Dessa forma, a ecloso dos conflitos regionais e a ligao da elite poltica aos
agentes externos propiciaram uma conjuntura especfica e no to distantes das
contradies ainda presentes no seio dessa sociedade. A anlise de Carvalho se
aproximou mais do que aqui perseguimos: em consideraes que se voltem para os
fatores sociais caractersticos de um contexto especfico, e mesmo, a continuidade de
determinados resqucios influenciadores dos comportamentos e das mobilidades
individuais.
Ainda mais presentes no seio das nossas indagaes, em apreciaes mais
recentes sobre a construo do Estado nacional brasileiro, em suas mais prementes
complexidades, ultrapassando, enfim, aquelas abordagens sintetizadas em opor liberais
e conservadores, burocratas e classes senhoriais, autoridade central e provincial e
mesmo Estado e poderes locais, so as anlises de Maria Fernanda Vieira Martins e
Wlamir Silva.
Em abordagem sobre o Conselho de Estado, instituio to importante na
histria da formao do Estado imperial, Maria Fernanda Vieira Martins perpassou
inquiries que s vm a contribuir para os questionamentos dos que se debruam sobre
o tema de como foi possvel a construo do Estado imperial estando em jogo a coeso
da sociedade brasileira naquele perodo da nossa histria.70
O dito rgo foi criado em 1823, com manuteno confirmada com a Carta
Constitucional de 1824 e funcionou ao longo de todo o Segundo Reinado (1842-1889).
O primeiro Conselho atuou junto ao imperador D. Pedro I e foi extinto no conjunto das
medidas liberais presentes na reforma constitucional de 1834, mas sendo recriado
depois em 1841.71
Corria o ano de 1841. Aps o fracasso do sistema de regncias que
havia conduzido proclamao antecipada da maioridade de dom Pedro
II pela Assemblia Geral Legislativa, declarada em julho do ano
anterior, era elaborado o projeto de criao do Conselho de Estado, que
69
Idem, p. 159. 70
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir
do conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. 71
Idem, p.25.
39
reuniria poltico de vrias tendncias e origens diversas, com o objetivo
de apoiar e consolidar a unidade nacional e a prpria monarquia..72
Ao abordar os agentes que serviram no segundo Conselho de Estado a autora
demonstrou as origens das prticas institucionais e os seus esforos em como conciliar
as heranas de uma concepo poltica e administrativa de influncia portuguesa com as
novas demandas trazidas pelo iderio liberal europeu.
Funcionando como uma instituio estvel no seu perodo de atuao que
somente foi encerrado com o fim da monarquia o Conselho resistiu efizcamente, visto
que sua atuao poltica sempre excedeu as suas atribuies originais. O Conselho de
Estado foi assim uma instncia de relacionamento entre Estado e elites traduzindo o
pensamento do governo, mas tambm representou a adequao deste mesmo governo
aos interesses dos grupos dirigentes e das elites presentes, objeto de pesquisa que
permiti ento a compreenso dos espaos e limites que se davam para a execuo dos
princpios e projetos para o pas a partir dos grupos dirigentes.73
Para tanto a autora analisou a formao socioeconmica, trajetrias, relaes,
redes de sociabilidades e parentesco dos membros do Conselho representados por uma
elite dos principais grupos econmicos do pas, dos grandes negociantes e proprietrios
de terras e escravos, contnuos a oligarquias regionais e antigas famlias influentes. Bem
como, destacou tambm as suas participaes em instncias diversas do Estado e da
sociedade civil para conhecimento das principais diretrizes e prioridades daqueles
componentes, buscando suplantar os limites da Corte como espao exclusivo do poder
imperial. Em relao s suas carreiras a autora pde demonstrar que
Considerando-se em conjunto suas carreiras nos diversos cargos do
Poder Judicirio, importante destacar que essa vasta experincia,
principalmente no nvel local, lhe proporcionaria um profundo
conhecimento da maquina da Justia bem como da prpria legislao,
seus limites e imperfeies e a conscincia das dificuldades de faz-la
funcionar a contento. Suas trajetrias lhes trariam amplo cabedal para a
funo que exerceriam no Conselho de Estado, no somente no que se
refere ao papel da instituio como tribunal de instancia superior da
72
Ibidem, p.23. 73
Ibidem, p.26.
40
Justia, mas ainda por sua atuao na reorganizao e reforma
judiciria.74
Perante uma situao de carter imediatista frente s necessidades prementes da
poltica do perodo as elites perseguiram a formao e o modelo constitucional em
defesa da monarquia e da lei, sendo as inmeras reformas do perodo referncias neste
sentido. Amplas redes polticas e econmicas ligavam assim as diversas regies
caracterizando uma relao dinmica, entre elites governantes e poderes locais, sendo
que o grupo que chegou a cpula da administrao imperial no era um grupo
homogneo que teria assumido o Estado, e por isso a necessidade de se considerar uma
pluralidade e diversidade dos interesses ali representados:
A ao do Conselho de Estado colocou em prtica um amplo programa
de organizao da estrutura de governo, conduzido pelas elites
imperiais, que procurou, aps o processo de Independncia, os
caminhos para adequao do Brasil nova ordem internacional. Nesse
sentido, interagindo com os demais poderes. O Conselho contribuiu
diretamente para o fortalecimento do modelo monrquico e para a
superao das heranas coloniais permanncias de um passado
colonial que estava ainda vivamente presente sob diversos aspectos e
que permeava as relaes sociais e polticas, a forma de entender o
Estado e as prticas cotidianas de controle poltico e econmico -,
processo para o qual inegvel a influencia dos modelos tericos e das
praticas liberais.75
J Wlamir Silva destacou a ao autnoma das elites polticas a partir da
formulao e contraposio de projetos polticos gestados na primeira metade do sculo
XIX. Mais, precisamente, o autor destacou as peculiaridades, aes e idias de um
fragmento da elite poltica brasileira na provncia de Minas Gerais. Buscando as origens
dos membros daquela elite provincial o autor destacou, na dinmica da construo de
um plano nacional o projeto liberal-moderado.76
Se distanciando das anlises que tratam as crises do alvorecer do Imprio
conectado fatores puramente econmicos, de um movimento da estrutura econmica,
ou seja ligadas a uma classe dominante, ou mesmo quelas, ainda mais recorrentes,
linhas de argumentao que tratam a estrutura do Estado e os padres de cultura poltica
74
Ibidem, p.127. Dentre as informaes disponveis para 64 Conselheiros de Estado, 29 ocuparam cargos
no judicirio, de Juzes (de rfos, do crime, de paz, de fora), 19 foram Desembargadores das relaes, 8
Ministros do Superior Tribunal de Justia, 6 Ouvidores e 6 Promotores, entre 1842-1887. Ver Quadro 18. 75
Iidem, p.391. 76
SILVA, Wlamir. Liberais e Povo: a construo da hegemonia liberal-moderada na Provncia de
Minas Gerais (1830-1834). So Paulo: Hucitec, 2009, p.19.
41
como meras tradio herdada de Portugal. Outras vertentes, que para o autor tambm
deixam de lado questes essenciais so as que privilegiaram o controle poltico pelas
elites locais e conectado ao poder socioeconmico dos fazendeiros e proprietrios de
escravos.77
Tais anlises desconsideraram o que para o autor tem de mais peculiar naquele
contexto de importantes mudanas da primeira metade do sculo XIX, e mesmo