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Peça de teatro argntina
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OS ALPINISTASOS ALPINISTAS
(LOS ALPINISTAS)
OSVALDO DRAGÚN
PERSONAGENSPERSONAGENS
DAVI
CARLOS
JUAN (23 anos. nascido em corrientes)
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O QUARTO DE CARLOS, NUM QUARTO ANDAR, NO BAIRRO BOCA. À
ESQUERDA , UMA ESPÉCIE DE CUBÍCULO ONDE HÁ UMA CAMA
SUSPENSA. EMBAIXO DELA, CABIDES COM ROUPAS DE CARLOS.
MAIS ADIANTE, A PORTA DE SAÍDA DO QUARTO. À DIREITA, UMA
CAMA VELHA. ATRÁS DA CAMA, UMA MESA SOBRE A QUAL ESTÁ
UM PEQUENO FOGÃO E UM BOTIJÃO DE GÁS. TAMBÉM À DIREITA,
O BANHEIRO, BASTANTE PEQUENOS: PRIVADA, PIA, UM ESPELHO,
UM CHUVEIRO E NADA MAIS. OCUPANDO GRANDE PARTE DA
PAREDE DO FUNDO, UMA GRANDE JANELA CIRCULAR QUE
PARECE UM OLHO D3 BOI ESPREITANDO QUEM SABE O QUÊ.
DIANTE DA CAMA, UMA MESA BAIXA, OU TALVEZ UM CAIXOTE
AGORA USADO COMO MESA.
ESCURO. COM UMA VELA APOIADA NUM PEQUENO PRATO, EM PÉ,
EM CIMA DE VÁRIOS ALMOFADÕES. DAVID OLHA PELA JANELA.
EM SEGUIDA VAI EM DIREÇÃO À MESA. SENTA-SE NA CAMA E
COMEÇA A DESENHAR NUMA GRANDE FOLHA DE PAPEL. OLHA A
JANELA. OLHA O QUE ESTÁ DESENHANDO. TRAÇA UM RÁPIDO
CÍRCULO. OBSERVA-O. SUSPIRA. APANHA A VELA. ENTRA NO
BANHEIRO E SENTA-SE NA PRIVADA, DEPOIS DE DEIXAR O
PRATINHO COM A VELA NO CHÃO.
DAVID
- Primeira conversa. (Vai falar. Não consegue. Longa pausa) Oi...
(Pausa) Papai... (Longa pausa) Oi...
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(ABRE-SE A PORTA DE ENTRADA. ENTRA CARLOS, O “NEGRO”.
TRAZ UM PACOTE. SURPREENDE-SE AO ENCONTRAR O QUARTO NO
ESCURO. ACENDO UMA LUZ. VÊ A JANELA ABERTA. FECHA-A.
DEIXA O PACOTE SOBRE A MESA ONDE ESTÁ O PEQUENO FOGÃO.
VAI EM DIREÇÃO AO BANHEIRO. ANTES SE DETÉM PARA
OBSERVAR DANIEL ESTEVE DESENHANDO. OLHA RAPIDAMENTE.
VAI AO BANHEIRO. QUER ENTRAR, MAS DESCOBRE QUE A PORTA
ESTÁ FECHADA POR DENTRO.
CARLOS
- Moishe?
(DAVI SE SOBRESSALTA AO ESCUTÁ-LO. RESPONDE
RAPIDAMENTE, COMO SE ESTIVESSE COM PRISÃO DE VENTRE.
DAVID
- Já estou saindo! (E continua, com sua voz normal) Eu olho a tua
fotografia, papai. A única vez que te vi sorrindo. E como é uma fotografia, você
não pode apagar.
CARLOS
- Vai rápido, Moishe, eu estou me mijando!
DAVID (Com a voz de prisão de ventre.)
- Já estou saindo! (Com sua voz normal) Papai... (Pausa longa) Oi...
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(LEVANTA-SE DA PRIVADA. SAI DO BANHEIRO. CARLOS ENTRA
APRESSADO E COMEÇA A URINAR.)
CARLOS (Urinando)
- Você esteve trabalhando, eu vi.
DAVID
- Esboçando uma montanha.
CARLOS
- Montanha não tem janela.
DAVID
O obelisco tem uma.
CARLOS
- O obelisco não é uma montanha.
DAVID
- Você por acaso sabe o que é obelisco, Negro?
(DAVID VAI À JANELA. COMEÇA A ABRI-LA, MAS DECIDE DEIXÁ-LA
FECHADA. CONTINUA COM O PRATINHO E A VELA ACESA NA MÃO.
CARLOS TERMINOU DE URINAR. SAI DO BANHEIRO.)
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CARLOS
- Além disso, a janelinha do obelisco não serve pra nada. Que é que você
faz com a vela na mão?
DAVID
- Tem corte de luz.
CARLOS
- Já faz uma hora que terminou.
(DAVID OLHA-O. OLHA A LUZ ACESA. APAGA A VELA.)
CARLOS
- Que aconteceu?
DAVID
- Eu pensei que continuasse sem luz.
CARLOS
- Deixa de ser bobo, Moishe. Faz cinco anos que a gente não se vê. Você
chegou ontem de noite. Se jogou pra dormir aí... e morreu!
DAVID
- O papai morreu. (Carlos olha-o) Uma vez, em Córdoba, eu vi, no meio
da montanha, uma escada que levava... a parte nenhuma. Por isso que eu digo
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que a janelinha do obelisco não serve pra nada. Se essa escada de Córdoba
levasse, vamos dizer... ao living, eu não tinha me lembrado dela. O mistério,
Negro... isso é o mistério!
CARLOS (Cortando-o)
- Meus pêsames.
DAVID (Pausa)
- Obrigado... (Olha-o, como implorando) Posso ficar?...
CARLOS
- Claro
(DAVID SENTA-SE NA CAMA, TENDO AINDA NA MÃO O PRATINHO
COM A VELA APAGADA. DE REPENTE, COMEÇA A CHORAR
DESCONSOLADAMENTE. CARLOS OLHA-O. VAI NA DIREÇÃO DELE
E TIRA-LHE O PRATINHO COM A VELA.
CARLOS
- Você gosta de empadas?
DAVID (Em meio ao choro)
- O quê?
CARLOS
- Empadas. (Vai à cozinha e abre o pacote que trouxe.) No bar onde eu
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trabalho sobrou um pouco de massa de empada e um pouco de carne
picada... você gosta?
DAVID (Já chora um pouco menos.)
- Sim...
CARLOS (Começa a preparar as empadas. Põe a esquentar uma chaleira com
água)
- Olha, aqui comigo está morando um garotão da minha cidade... Juan.
DAVID
- Tirei a cama dele?
CARLOS
- Não, não se preocupe. Ele tem um saco de dormir.
DAVID (Olha ao redor)
- Não estou vendo...
CARLOS
- Ele leva com ele. Como nunca sabe se fica ou se vai... Não conta pra
ele, sobre teu velho. É capaz de rir...
DAVID
- Por quê?
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CARLOS
- Toda família dele acaba de morrer num incêndio. O teu velho era um.
Dele, morreram sete. As empadas você gosta com azeitona ou sem?
DAVID
- Dá na mesma. (Súbito, ri com uma gargalhada.) Sete... e muito!
CARLOS
- É, sim. É como nesses filmes que, quando morre o primeiro, você fica
preocupado. O segundo, você se mexe um pouco. Mas quando matam o terceiro,
aí você fala – “que morra todo mundo!”
DAVID (Rindo)
- É muito... você não pode nem sentir o gosto! A morte vira uma espécie
de xarope! Xarope... (Soluça baixo)
CARLOS (Olhando-o) Moishe... (David não responde.) Moishe! A água tá
pronta. Você quer preparar o mate? Você toma mate, não é?
DAVI
- Tomo... (Vai à cozinha. Começa a preparar o mate.) Você tem AIDS,
não é, Negro?
CARLOS
- Nem AIDS eu tenho. Que é que aconteceu com o teu velho?
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DAVID
- Desligou. Deixou o rosto e foi embora.
CARLOS (Pausa)
- Senti a tua falta. Moishe.
DAVID
- Eu não. Mas não me ocorreu nenhum outro lugar pra ir.
CARLOS
- E a tua mulher?
DAVID (Pausa)
- É tudo tão precário, negro... tão precário!
CARLOS
- Me escuta, Moishe, pro garoto... pro Juan, não fala nada dessas coisas.
Eu estou educando ele...para aprender a acreditar em coisas... como a família!
DAVID
- Que família...a tua?
CARLOS (Pausa. Um pouco culpado)
- Eu disse pra ele que sou viúvo.
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DAVID
- Que idade ele tem?
CARLOS
- Vinte e três.
DAVID
- O babaca é você. (Senta-se na cama como mate e a chaleira) Nessa
idade, agora, já sabem tudo.
CARLOS (Vai em direção a David. Deixa as empadas fritando. Senta-se)
- Nessa idade eles têm 23 anos. Juan não sabe de nada. Vem de
Corrientes. Quer tudo, mas não sabe nada.
DAVID
- Não? E por que ele carrega o saco de dormir?
CARLOS
- Fui eu que ensinei. Para que seja independente. É ele que decide cada
dia se volta ou não.
DAVID
- Nem pai você é. Tio-avô.
CARLOS
- Parece, não é. (Pausa) Sinto muito o teu velho.
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DAVID (Concorda coma cabeça. Não olha para ele. Súbito aperta-o com um
fortíssimo abraço. Assim ficam um momento. Em seguida, David se levanta e
vai em direção à janela.)
- Posso abrir?
CARLOS
- Melhor não. Faz frio.
DAVID (Pausa. Fundo)
- Por que merda eu tenho que te procurar sempre, Negro? Por quê?
CARLOS
- Porque você sabe onde eu moro. Que aconteceu coma tua mulher?
DAVID
- Que aconteceu com a tua? (Olha a anela, decide) Desculpa, Negro.
(Abre-a)
CARLOS
- Nós vamos morrer de frio!
DAVID
- Na minha bolsa tem alguma coisa que pode servir pra você.
(APONTA SUA BOLSA. CARLOS ABRE-A. TIRA UMA JAQUETA
PRÓPRIA PARA USAR NAS MONTANHAS.)
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CARLOS
- Isso é pra escalar uma montanha!
DAVID
- Claro.
CARLOS (Vê alguma coisa na bolsa que o surpreende.)
- E isso (Tira fora cordas e ganchos)
DAVID
- Comprei ontem. Para escalar uma montanha.
(CARLOS OLHA-O SURPRESO. DAVID APONTA O DESENHO DA
MONTANHA QUE ESTAVA FAZENDO. CARLOS RI.)
CARLOS
- Já está ocupada! Você não vê que tem janela e tudo?
(ABRE-SE A PORTA. ENTRA JUAN, TRAZENDO O SACO DE DORMIR
COMO MOCHILA.)
CARLOS
- Oi, garoto. Te apresento o meu amigo, o... (Vai dizer “Moishe”, mas
interrompe-se) Você se chama David, não é?
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DAVID
- É. E você... Carlos.
CARLOS
- É.
DAVI (Ri)
- Nós nos conhecemos desde o serviço militar e só hoje é que temos
nome!
(ESCURECE LENTAMENTE. ANTES DISSO, RUÍDO DE UM TROVÃO E,
PELA JANELA ABERTA, SE VÊ UM RELÂMPAGO, ESCURO. ALGUÉM
FECHA A JANELA. UMA VELA É ACESA E ALGUÉM LEVA-A AO
BANHEIRO. COLOCA-A NO CHÃO. NESTA SEMI-ESCURIDÃO, VEMOS
DAVID SENTADO NA PRIVADA. A LUZ DA LUA QUE ENTRA PELA
GRANDE JANELA CIRCULAR DO QUARTO PERMITE VER UMA VELA
APAGADA NUM PRATO, NO CHÃO.)
SEGUNDA CONVERSA: Você teve que morrer para eu me dar conta
de que você me faz falta. Como a água... A gente não precisa dela, até o dia em
que está no deserto. Ou mais fácil ainda, até o dia em que entope um cano. Você
não me deu tempo pra te beber nem em golezinhos pequenos. E eu não me dei
conta disso. A tua vida me pareceu sempre uma vida paralela. Ao lado, mas à
parte. Nada que ver. Ou pouco. O rito da família, mais nada. E agora eu não sei
o que está acontecendo comigo. De repente, você se transformou em agulhas na
minha carne. Mas as agulhas não são paralelas. Atravessam a pessoa de lado a
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lado. E eu não compreendi nunca. Nunca soube que você podia ser uma agulha.
Pelo contrário. Desde garoto eu te vi, humilhado e se humilhando. E quis me
afastar. Que fosse o meu pai, nada mais. Meu pai. Outro. Não eu. Nada que ver
comigo.
(ALGUMA COISA FOI COBRINDO QUASE TODA A GRANDE JANELA,
DEIXANDO UM PEQUENO ESPAÇO PELO QUAL CONTINUAR
ENTRANCE A LUZ DA LUZ. A PORTA SE ABRE. ENTRA JUAN,
CARREGANDO SEU SACO DE DORMIR. VAI EM DIREÇÃO À VELA
QUE ESTÁ NO CHÃO. ACENDE-A.
DAVID
- Não sei o que está acontecendo comigo... Por que eu me sinto
atravessado por você se eu nunca quis entrar nem deixar você entrar? O que é
que me une a você se antes não me unia a nada?
(JUAN ESCUTA-O. SURPRESO, LEVANTA A VELA DO CHÃO. NA MEIA
–LUZ, VEMOS QUE O QUE COBRIU QUASE TODA A JANELA FORAM
AS FOLHAS NAS QUAIS DAVID ESTEVE DESENHANDO SUAS
MONTANHAS COM JANELAS, DISPOSTAS AGORA DE TAL FORMA
QUE PARECEM UMA MONTANHA)
DAVID
- Que é que eu estou tentando te perguntar, papai? Como era o teu nome?
Se você gostava do amanhecer? Do açúcar? Do sal? Da água fria? (Pausa curta.)
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Se alguma vez você me quis?... Se eu cheguei a fazer parte da tua vida alguma
vez?
(JUAN AVANÇA EM DIREÇÃO À PORTA DO BANHEIRO,
ILUMINANDO-SE COM A VELA)
JUAN
- Senhor Davi?
DAVID (Responde de imediato, com a voz de prisão de ventre)
- Já estou saindo!
JUAN
- Está se sentindo bem?
DAVID (Com a mesma voz)
- Já estou saindo! (Puxa a descarga e sai do banheiro, levando sua vela)
JUAN
- Por mim... Não precisava!...
DAVID (Cortando-o)
- Oi, como você está? (Olha-o) Carlos vai ficar contente que você voltou.
JUAN
- Por que o senhor diz isso?
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DAVID
- Por causa do saco de dormir. Ele me disse que cada dia você decide se
volta ou se vai embora.
JUAN
- Isso foi ele que inventou! Me comprou essa coisa e pôs em cima de
mim! Eu pareço um camelo...
DAVID
- Olha, se você prefere a cama, não tenho problema em dormir no saco.
Quando fiz serviço militar com Carlos...
JUAN (Rápido)
- Não. (Pausa muito curta) Não, não...Desde que cheguei, durmo assim.
já estou acostumado!
(DAVID SENTA-SE NO CHÃO, DE COSTAS PARA O PÚBLICO. OLHA
SEU DESENHO DE MONTANHAS.)
JUAN
- As montanhas são assim? as de verdade.
DAVID
- Você nunca viu uma?
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JUAN
- Não. E o Senhor?
DAVID
- Na Suíça, na Espanha, no México...
JUAN
- E aqui?
DAVID
- Aqui, onde? Nesse quarto? (Juan ri do que considera uma piada de
David.) Quando tempo faz que você está aqui com o Carlos?
JUAN
- Três meses. Ele me falou que o seu pai morreu.
DAVID
- E a mim que a tua família morreu.
JUAN
- Meus pêsames.
DAVID
- Meus pêsames. (Juan olha-o. Ri. David olha-o. Não diz nada. Lembra
as palavras de Carlos.) Carlos me disse que você ia rir.
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JUAN
- Desculpe (Olha as montanhas) Pra que desenha elas?
DAVID
- Pra me acostumar.
JUAN
- A quê?
DAVID
- À idéias de escalar montanhas.
JUAN
- Todas?
DAVID
- É uma só.
(JUAN OLHA-O. PEGA SUA ELA E SE APROXIMA DOS DESENHOS.
ILUMINA-OS.)
JUAN
- Parecem o obelisco. O senhor é de Buenos Aires?
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DAVID
- Não, de Entre-Rios. Mas vim muito pequeno. Com quatro anos.
JUAN
- Ah. Então, o obelisco não deve lhe impressionar muito.
DAVID
- A você sim?
JUAN
- Ah, sei lá... Tem dias.
DAVID
- Te restou ainda família?
JUAN
- Carlos.
DAVID
Não, digo... família... direta.
JUAN
- Carlos.
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DAVID
- Está bem, Carlos. E aqui, você faz o quê? Trabalha?
JUAN
- É, sim... Sim não, faço como? E o senhor faz o quê?
DAVID
- Sou arquiteto.
JUAN (Entusiasmado)
- Sério? Eu também quero ser arquiteto!
(ESCUTAM-SE PASSOS NA ESCADA. QUEM CHEGA, TROPEÇA,
DEVIDO À ESCURIDÃO. XINGA.)
AGORA ENTRA E DIZ:
- “Que merda você pensa que é? O Príncipe de Gales?”... e eu que não
sei quem é o merda do Príncipe de Gales!
(RI. A PORTA SE ABRE. ENTRA CARLOS, SEGURANDO A PERNA.
JUAN SE APROXIMA DELE E ILUMINA-O COM A VELA.
CARLOS (Olhando-o)
- Que gentil que você está. Me dá. (Pega o prato coma vela e senta-se na
cama.) Até quando a gente vai continuar sem luz?
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(SOBE A CALÇA E MASSAGEIA A PERNA. JUAN SE APROXIMA.)
JUAN
- Machucou?
CARLOS (Com agressividade contida)
- Não precisa chorar. Não é fatal.
JUAN
- Quer que eu lhe traga um pano com...?
CARLOS (Corta-o)
- Hoje é o dia de amabilidade. Não precisa. Eu me curo com as próprias
mãos. As minhas mãos sempre me curaram.. (Passa a mão pela perna. De
repente, explode) Que merda você pensa que é? O Príncipe de Gales?
JUAN (A David)
- Eu falei pra ele.
CARLOS (A David)
- Falou?
DAVID
- Sim.
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CARLOS
- Quase tive que dar a bunda pra conseguir pra ele um trabalho no bar da
outra quadra e hoje fico sabendo que faz dois dias que não vai trabalhar! (A
Juan) Te despediram! Tem duzentos esperando a vaga!
JUAN
- Eu quero tocar violão. E cantar.
CARLOS
- E que mais?
JUAN
- Nada mais. Tocar violão. E cantar.
CARLOS (Olha-o. Passa a mão pela perna.)
- Puta que o pariu esses corte de luz! (Pausa. Olha para Juan) Você sabe
tocar violão e cantar?
JUAN
- Sei lá... (Pausa) Não.
CARLOS
- Vai descobrir onde vendem um violão... usado! E quem é que dá aulas
de violão no bairro.
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JUAN
- Obrigado, seu Carlos.
(JUAN SAI DO QUARTO.)
DAVID
- A mim ele falou que queria ser arquiteto.
CARLOS
- É. E antes de ontem queria ser “antropólogo”... mas confundiu
antropólogo com gente que pesca tubarão. Na semana passada, astronauta. Te
falei. Quer tudo, mas não sabe nada.
DAVID
- Pelo menos sabe que quer tudo. Como foi que ele apareceu? Você
conhecia a família dele?
CARLOS (Pausa. Não o olha. Continua massageando a perna)
- Sim. (Baixa a calça) Com quem é que você estava falando, ontem à
noite? (David olha-o) Eu ouvi você falando, no banheiro.
DAVID
- Confusão sua. Você estava sonhando.
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CARLOS
- Sabe quanto tempo faz que eu não sonho? Eu me deito e morro. Eu
estava bem. Você chegou e... me mudou tudo.
DAVID (Na defensiva)
- Não tenho aonde ir.
CARLOS
- Como é que você não vai ter aonde ir? Com toda tua família de
doutores... e deputados... e teus amigos bacanas... por que você não volta pra tua
mulher?
DAVID
- Por que você não volta pra tua?
CARLOS
- A minha está com outro, e você sabe disso!
DAVID
- A minha também (Carlos olha-o surpreso) E a minha família...
queimou. Uma pilha com toadas as fotos.., menos... Todas. Minhas. Dela. Deles.
E pus fogo. (Pausa curta) E u não tenho pra onde ir, Negro...
(DE REPENTE VOLTA A LUZ. CARLOS VÊ A “MONTANHA”, QUASE
COBRINDO A JANELA. SURPRESO, E COM A VELA AINDA ACESA NA
MÃO, VAI NAQUELA DIREÇÃO. OLHA, COMO SE A ESTIVESSE
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ILUMINANDO COM A VELA. VOLTA-SE A DAVID COM OLHAR DE
SURPRESA, COMO PERGUNTANDO O QUE É AQUILO.
DAVID
- Você me ajuda?
CARLOS
- A quê?
DAVID
- A escalar a montanha
(ABRE-SE A PORTA E ENTRA JUAN.)
JUAN
- Mudei de idéia, seu Carlos. Quero ser artesão. É assim que se chama
não é? Esses que consertam antenas de televisão nos telhados...
CARLOS
- Não. Esses são... sei lá, antenistas...
JUAN
- Ah. Bom, então... eu quero ser artesão.
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(A LUZ VAI DIMINUINDO LENTAMENTE SOBRE OS TRÊS. NA
ESCURIDÃO, VEMOS QUE A “MONTANHA” DEIXA DE COBRIR A
JANELA. DA RUA CHEGAM RUÍDOS DE AUTOMÓVEIS, CAMINHÕES,
ÔNIBUS, BUZINAS, GRITOS. OS RUÍDOS CRESCEM E PARAM DE
REPENTE. O QUARTO AGORA TEM LUZ DE DIA. NO BANHEIRO,
JUAN ESTÁ FAZENDO A BARBA. DAVID OLHA PARA FORA, PELA
JANELA.. CARLOS, SENTADO NO CHÃO, EXAMINA OS APETRECHOS
PARA ESCALAR TRAZIDOS POR DAVID.
CARLOS
- Você alguma vez já escalou uma montanha?
DAVID
- Não. Eu sempre viajei de avião. E você?
CARLOS
- O máximo que eu cheguei foi até a copa de um salgueiro. E caí no rio.
Foi no dia em que as piranhas me comeram. Você está louco... Você nem sequer
trouxe aqueles sapatos, com pregos...
DAVID
- Vamos sair e compramos dois pares.
CARLOS (Olha-o)
- Vamos, não. Você vai. E compramos, não. Você compra. Um. Você
está mais louco que não sei o quê. Por favor, não fale disso diante do garoto...
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(JUÁN PÁRA DE FAZER A BARBA. ESCUTA.)
DAVID
- Por quê?
CARLOS
- Por que ele pega tudo, por isso! Em três meses, desde que chegou, já
pegou escarlatina, inflamação de não sei o quê, gripe com vírus, falso crupe! Em
três meses! Imagina se agora vem você aí como o teu continho de montanha...
Para você pode ser divertido, mas ele pega tudo!
DAVID
- Nós podemos ir os três.
CARLOS (Olha-o)
- Aonde? Aonde você quer ir? Você não vai a lugar nenhum, e sabe
muito bem disso!
DAVID
- Eu tenho de ir. Senão...
CARLOS (Corta-o)
- Senão o quê? O quê? Você não vai Moishe! Não vai! Que idade você
pensa que a gente tem? Dezoito anos, como quando a gente se encontrou no
México, na época dos milicos? Você não vai, não vai! Por isso, por favor, não
fale diante do garoto... Não confunde ele mais! Agora ele quer ser artesão...
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DAVID
- E antropólogo. E arquiteto. E astronauta. E tocador de violão. E cantor.
CARLOS
- Está escolhendo! Mas isso... não! (Olha uma grande corda com
ganchos) E isso, como é que se usa essa merda?
DAVID
- Não sei... acho que a gente gira assim no ar... e atira... assim... (Faz o
gesto. Aprece que está laçando alguma coisa.) e aí se engancha... Acho.
CARLOS (Olha-o)
- Você acha. Nem sabe como é que se usa, e quer... Então, se engancha,
é. Ou então vindo de cima da montanha chega o Abominável Homem das Neves
e te faz o favor de enganchar... Muito obrigado, Abominável Homem das Neves!
Não tem de quê, Arquiteto!... (Pausa curta) Faça o favor, vai! (Vê que David
olha pela janela.) Que é que você está olhando?
DAVID
- Ali, no meio da neblina... Parece uma montanha, não é?
(CARLOS VAI À JANELA. OLHA.)
CARLOS
- É o obelisco, babaca! Você resolveu me alugar, é? Veio pra minha
casa... bom, pra cá... pra me alugar?
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DAVID
- Vim porque eu preciso de você.
CARLOS
- Não sou tua mulher, nem teu marido!...
DAVID (Rápido)
- Nem meu amigo?
CARLOS (Olha-o)
- Que é que está acontecendo com você, Moishe? Eu não te
compreendo... mas eu te sinto. Sim, eu sou teu amigo. E porque sou teu amigo é
que te digo: o negócio do teu pai te embananou, mas tudo embanana, e tudo
passa. Por isso, volta pra tua mulher, perdoa ela, ou faz que não sabe de nada,
mudou a letra do tango, agora a gente perdoa, então perdoa ela, custa a mesma
coisa que não perdoar... e segue adiante!
DAVID
- Não é a minha mulher... Nem o meu pai... Sou eu, Negro.
CARLOS (Olha-o)
- Você. É, você. Sempre foi você! Os outros não te importam uma porra!
Sempre! Você, você e você. E agora, agora que quando eu trabalho trabalho, e
quando como como, e quando durmo durmo... aí me aparece você com o teu
você pra me encher a vida... a mim e ao garoto!
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DAVID
- Você defende ele como se fosse teu filho!...
CARLOS
- É meu filho, porra!
(JUAN PARA DE FAZER A BARBA, MAS NÃO SE VOLTA. CARLOS
FALA EM TOM MAIS BAIXO.)
CARLOS
- Ele não sabe, mas é meu filho!...
(CARLOS VAI À PORTA DO BANHEIRO, TEMENDO QUE JUAN POSSA
TER ESCUTADO. JUAN CONTINUA FAZENDO A BARBA, ENQUANTO
ASSOBIA SUAVEMENTE. CARLOS VEM EM DIREÇÃO A DAVID.)
CARLOS
- Quando eu fiquei sabendo que a mãe tinha morrido, estive a ponto de
me jogar pela janela. Mas está muito alta. Não ia poder te contar...
DAVID
- Você pensou em me procurar?
CARLOS
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- Pensei... Mas aí chegou o garoto... e fiquei aqui. Decidi me dedicar à
educação dele... É por isso que eu deixo que ele escolha! Que escolha o
que lhe agrada...o que queira...
DAVID (Agressivo com pesar)
- Como você.
CARLOS
- Que é que você tem a dizer de mim?
DAVID
- De você, de mim...
CARLOS
- Olha, Moishe, melhor você não falar, que você não se animou nem
sequer a ter filhos! E agora você me vem com essa de escalar uma
montanha...Vamos! você está querendo brincar de quê? (Grita em direção ao
banheiro.) Vamos lá, garoto, te apressa, temos que ir ver o chefe dos ciganos
sobre esse negócio de artesania!
JUAN (Do banheiro)
- Já estou saindo, se Carlos!
CARLOS (A David)
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- Primeiro você devia ter tido a coragem de ter um filho! Mesmo que
fosse um só!
DAVID
- Eu teria matado ele. Ou ele teria morrido, de vergonha.
CARLOS
- Que judeu mais melodramático que você é, Moishe! Hoje em dia
ninguém morre de vergonha!
DAVID
Então eu teria matado ele.
CARLOS
- Eu te conheço, David! Não me vem com essa! Desde os dezoito anos
que a gente se conhece! Mesmo você sendo arquiteto e eu garçom de um bar na
Boca... eu te conheço! Não vem querer me vender um bonde, tá? Assim
que...você não teve filhos... nem mesmo um!... pra que ele não sentisse vergonha
de você... de mim... do mundo?! Tá mentindo, Moishe! Sempre mentindo! E
agora você me chega aí como sempre, cheio de frases...a vergonha... a
montanhazinha... Não me enche o saco, David! E não enche o saco do garoto!
Por favor, hein! Dele, não! ... (Grita) Que é que você tá fazendo, garoto... é onda
punk? Se quer eu te empresto grude pro cabelo!
(JUAN SAI DO BANHEIRO)
33
JUAN
- Onda o quê, seu Carlos?
CARLOS
- Nada. Vamos, que os ciganos são impacientes.
(VÃO EM DIREÇÃO À SAÍDA. CARLOS SE VOLTA PARA DAVID.)
JUAN
- O seu David vai embora?
CARLOS
- E daí, ele tem sua casa, não é? Tchau, Moishe!
DAVID
- Tchau, Negro... (Antes que Carlos saia) Negro... (Carlos se volta em
direção a ele. Davi grita. ) Até logo!
(CARLOS OLHA-O. RISO CURTO DE JUAN. CARLOS E JUAN SAEM.
DAVID OLHA PELA JANELA. ABRE-A. OLHA PARA LONGE. ASPIRA
FUNDO, ABRINDO OS BRAÇOS. OLHA PARA BAIXO. APANHA A
CORDA DE ESCALAR. APÓIA UM DOS GANCHOS NA MOLDURA DA
JANELA E JOGA A ACORDA PARA FORA. A PORTA SE ABRE. ENTRA
CARLOS. OLHA-O. DAVID VOLTA-SE PARA ELE.
34
CARLOS
- Você precisa ficar? (David concorda) Fica!
(NESTE PRECISO MOMENTO A LUZ É CORTADA.)
CARLOS
- Puta que o pariu!
(SAI E FECHA. ESCURIDÃO TOTAL, COM EXCEÇÃO DA LUZ DA
JANELA. DAVID ACENDE UMA DAS VELAS E VAI AO BANHEIRO.
DEIXA A VELA NO CHÃO E SENTA-SE NA PRIVADA.)
DAVID
- Terceira conversa: papai, eu tenho medo de você. Terror. Essa conversa
começou só entre nós, entre você e eu, quando te vi, aí, morto... Eu falava e
falava, porque eu tive a sensação de que você estava aí, é, mas ao mesmo tempo
em cima, flutuando sobre nós dois, nos olhando, me ouvindo... Agora eu tenho
medo do que você esteja dentro de mim... Os teus silêncios... Tuas frustrações...
Tua resignação... Eu tenho pânico do tempo que vai vir... Pânico de repetir os
teus gestos nos meus... De me calar com o teu silêncio... Pânico, pânico, papai,
de ser parecido com você... e você não vai estar ao meu lado para eu poder ver
que sou diferente... Nunca mais eu vou poder ver que sou diferente... Nunca
mais eu vou poder ser diferente de você, papai! (Pausa curta) E a tua fotografia
não me serve, porque o teu sorriso não é uma resposta... Não é... Não é!...
35
(A PORTA SE ABRE E CARLOS ENTRA RAPIDAMENTE. TROPEÇA NA
ESCURIDÃO.)
CARLOS
- Puta que o pariu!
(TATEANDO E TROPEÇANDO CHEGA ATÉ A PORTA DO
BANHEIRO. QUER ABRI-LA, MAS DESCOBRE QUE ESTÁ FECHADA
POR DENTRO.
CARLOS
- É você, David? Por favor, rápido, vai, que eu não consegui chegar nem
até a casa dos ciganos!
DAVID (Com a voz de prisão de ventre)
- Estou saindo!
(PUXA A DESCARGA. APANHA A VELA. APAGA-A COM UM SOPRO.
ESCURIDÃO TOTAL. NÃO SOBRA NEM A LUA. DE ALGUMA CANTINA
CHEGA O SOM DE UMA DISTANTE TARANTELA, QUE VAI SE
APROXIMANDO. AGORA SIM, A LUZ DA LUA ENTRA PELA JANELA.
PAUSA. ABRE-SE A PORTA. ENTRA CARLOS. ACENDE A LUZ.)
CARLOS
36
- Não! Não! Puta merda! Porque eu não nasci na Bolívia!
(ACENDE UMA VELA NA ZONA DA CAMA. VEMOS DAVID
RECOSTADO NELA. CARLOS VAI BUSCAR OUTRA LÂMPADA.)
DAVID
- Na Bolívia você ia sentir falta de ar. Não encontrou ele?
CARLOS
- Não... Caganeira de merda! Me atrasei... e quando cheguei na casa dos
ciganos... nem sombra do garoto! Não chegou nunca!...
DAVID
- Ele sabia onde era?
CARLOS
- É um panaca! Não sabe nada de nada! Por onde será que ele anda?
(ACENDE A LUZ.)
DAVID
- Está com o saco de dormir, não te preocupes.
CARLOS
- É, claro, mas por onde será que ele anda? Não sabe nada de nada!
37
DAVID
- Se ele não sabe anda de nada, por que é que você deixou ele “escolher”,
como você diz?
CARLOS (Nervoso)
- Não me complica as coisas, não me complica as coisas! (Pausa)
Desculpa ter te acordado...
DAVID
- Eu não estava dormindo. Escuta, como foi que... que... (Refere-se a
Juan)
CARLOS
- Horrível. Horrível. Uma das maiores filhas-das-putice que eu cometi na
minha vida. Nunca consegui tirar essa culpa de cima... Você quer um mate?
DAVID
- Tudo bem.
(CARLOS COMEÇA A AQUECER A ÁGUA E PREPARAR O MATE.)
CARLOS
- Um ano de merda.
DAVID
38
- Qual?
CARLOS
- 66
DAVID
- Pra mim, não.
CARLOS
- Pra vocês nenhum ano é mau! Vocês sempre caem de pé! Pra mim foi
uma merda. Tive que ir a Corrientes, por causa de uma greve. O companheiro
responsável estava em cana e eu fui substituí-lo. A família me recebeu como um
lorde, sabe... e eu me portei com um filho-da-puta. Comi a companheira do
companheiro que estava em cana!
DAVID
- Ela?
CARLOS
- É. A mãe. Um dia ela me escreveu. Me contou tudo. E eu comecei a
mandar grana pra ela.
DAVID
- Você não voltou nunca?
CARLOS
39
- Não... mandava uns trocados... Até que aconteceu o negócio do
acidente, e eu fiz o garoto vir... (Impaciente, vai à janela) mas em que lugar de
merda anda esse ignorante? (Vê a corda pendurada e o gancho preso na janela)
Que é isso?
DAVID
- O quê?
CARLOS
- Isso! (Mostra a corda)
DAVID
- Coloquei aí para treinar.
CARLOS
- Pra quebrar a cabeça você não precisa treinar! Te joga de cabeça e
tchau!
(A CHALEIRA COM ÁGUA COMEÇA A FAZER RUÍDO. CARLOS VAI À
PEQUENA COZINHA E PREPARA O MATE)
CARLOS
- Você já usou?
DAVID
O quê?
40
CARLOS
- Essa corda. Já usou?
DAVID
- Não, ainda não.
CARLOS (Pausa curta)
- Te agradeço. Eu já não tenho mais problemas com a polícia, mas não
quero que venham averiguar quem é o babaca que se suicidou querendo subir ao
quarto andar por uma corda! O que é que a gente comeu ontem à noite?
DAVID
- Talharins...
CARLOS
- Devem ter posto pimenta forte! Eu nunca tive diarréia... e agora, por
culpa da pimenta e da diarréia, sei lá por onde anda garoto!
DAVID
- Você não acredita em mim. Muda de conversa. Não me acredita...
CARLOS
- Tá bom. Acredito. E daí?
DAVID
41
- O negócio de escalar a montanha.
CARLOS
- Não. Não acredito. Toma... (Dá o mate a ele)
DAVID
Toma você primeiro.
CARLOS
- Sempre fino e pretensiosos... Sempre fino e pretensioso!
(BEBE O MATE. DAVID VAI À JANELA. PEGA A CORDA. OBSERVA-A
ATENTAMENTE. CARLOS OLHA-O COM ATENÇÃO.)
CARLOS
- Se não ferveu, ficou no quase!
(VOLTA À COZINHA E JOGA ÁGUA FRIA NA CHALEIRA. DAVID
OLHA PARA BAIXO. CARLOS OBSERVA-O)
CARLOS
- Era tão linda, David... um luxo! Todo o tempo, neste 23 anos, eu estive
querendo voltar, mas era a companheira de um companheiro , e eu tinha me
aproveitado da situação... Não pude! Não pude...
42
(DAVID SOBE NA JANELA. OLHA PARA BAIXO, PROCURANDO
DECIDIR-SE. CARLOS OBSERVA-O)
CARLOS
- Eu continuei mandando dinheiro e ela me escrevia cartas... “Obrigada,
senhor”... Escrevia, “senhor”... E me falava do marido... do
companheiro! Foi por isso que... não me animei nunca a voltar!
(DAVID RENUNCIA, POR ENQUANTO, À IDÉIA DE USAR A CORDA.
VOLTA PARA O QUARTO.)
DAVID
- Vergonha.
CARLOS
- É sim, vergonha! Mas eu não morri de vergonha! Me estrepei, mas não
morri! E enchi o saco de todas as mulheres que estiveram depois comigo, porque
cada vez que dormia com uma, pensava nela... Mas não morri!
DAVID
- Você foi sempre um sobrevivente. E eu te invejava por isso...
CARLOS
- Você diz “sobrevivente”, mas está querendo dizer outra coisa... fodido!
Mas não, você está enganado, é, eu sou um sobrevivente, mas pra mim isto
43
basta! Tenho um trabalhinho... de merda... mas é um trabalho... Esse quarto é
uma merda... mas eu vivo aqui e posso pagar o aluguel... comer, como ... merda!
Mas como... e tenho um filho... da vergonha, sim, mas a mim ela me deu um
filho! E pra você, deu o que... vontade de se matar, é isso que deu? Porque veio
pra isso... Pra se suicidar! Não foi?
DAVID
- Não. Não! (Pausa) Eu acho...
CARLOS
- Você não tem certeza nem mesmo do teu suicídio? Porque, de verdade
mesmo, que merda é essa tua montanha senão a morte?
DAVID
- Você acha, Negro?
CARLOS
- Não, Moishe, pra mim não! A montanha é tua! Foi você quem inventou
ela! Assume! Eu agora tenho outro... (Bebe o mate.) Esfriou, caralho! (Vai à
cozinha aquecer água)... outro problema: o garoto... onde será que ele se meteu?
E não fica com essa cara aí, Moishe!
DAVID
- Que cara?
CARLOS
44
- Essa, essa! Você não pode ficar fazendo cara de inocente pra me
perguntar se eu acredito que você quer se suicidar! Ninguém pode ser assim tão
inocente!
DAVID
- Não, Carlos.
CARLOS
- Não, o quê?
DAVID
- Eu não quero me suicidar.
CARLOS
- Está certo disso?
DAVID
- Estou...
CARLOS
- Então, você quer me dizer por que merda é que você veio? Que é que
você quer?
DAVID
- O contrário.
45
CARLOS
- O contrário de quê?
DAVID
- O contrário! Você não entende?
CARLOS
- Não! Como é que eu vou entender você, se você sempre andou com os
miolos dançando? Pra mim as coisas são mais simples e diretas! Eu sou pai.
Sabe o que isso significa para mim?
DAVID
- O quê?
CARLOS
- Que eu sou pai. Nem tio, nem avô... pai. Só isso. Assim, simples!
DAVID
- Mas o teu filho se perdeu.
CARLOS (Pausa.)
- É ... se perdeu. Que bosta que você é, Moishe... que bosta! Você
sempre acerta a porrada no saco!...
DAVID
46
- Eu não quis te ofender, Negro!
CARLOS
- E quem é que tá falando de ofensa? Eu estou tão treinado, que as
ofensas não me atingem! Essa é verdade... Perdi ele.. Desde que nasceu, perdi
ele, porque eu não vou ter nunca coragem de contar pra ele que eu sou o pai...
Essa vergonha de merda! (Ouve a água fervendo) E agora ferveu, caralho!
Agora nem mate!
DAVID
- O contrário quer dizer... viver. Mas viver,. Viver, Negro... viver a sério!
Isso... não!...isso não!... Um dia desses eu fui fazer a barba... e não me enxerguei
no espelho...
CARLOS
- Devia estar se olhando na porta.
DAVID
- Aí me avisaram que meu pai tinha morrido. Mas fazia uma hora que eu
estava sozinho...Estava até sem eu mesmo! Sozinho, sozinho, sozinho!
CARLOS
- E quem é que você quer encontrar lá em cima da tua montanha?
DAVID
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- Alguém...
CARLOS
- Alguém. E por que é que você não se animou há pouco a descer por
essa corda?
DAVID (Olha-o)
- Tive medo?
CARLOS
- Foi sim. A gente já conhece muita gente. Tem medo de conhecer gente
nova. Aceita um conselho: por tempo, faz a barba na barbearia. Passa o
problema para o barbeiro!
(ABRE-SE A PORTA. JUAN ENTRA LENTAMENTE. PARECE ter
SIDO GOLPEADO. ESTÁ SEM O SACO DE DORMIR.)
CARLOS
- Que aconteceu com você? (Vai a ele. Sacode-o) Que aconteceu com
você?!
JUAN
- Nada... Uma porrada de... uns caras... como se chama?
CARLOS
- Um bando.
48
JUAN
- É isso, um bando.
CARLOS
- Vamos à polícia!
JUAN
- Não, seu Carlos...
CARLOS
- Que não seu Carlos! Vamos à polícia! E não lava a cara, pra que vejam
o que te fizeram! Filhos-da-puta!
(PEGA O BRAÇO DE JUAN E VAI LEVANDO-O EM DIREÇÃO À
PORTA. JUAN RESISTE. POR FIM, SOLTA-SE.)
JUAN
- Não, seu Carlos... Espera... Espera... (Pausa) Não foi um bando...
CARLOS (Olha-o)
- A primeira mentira que você me diz. E quem foi?
JUAN
- O turco...
49
CARLOS
- Que turco?
JUAN
- O da loja da esquina...
CARLOS
- E por quê?
JUAN
- Besteira...
CARLOS
- Me conta. Eu tenho tempo.
JUAN
- Uma camisa...
CARLOS
- Que camisa?
JUAN
- Uma que eu comprei... comprei fiado... e esqueci de pagar...
CARLOS
50
- Devia ter me pedido o dinheiro!
JUAN
- Esqueci, já disse!
CARLOS
- E o saco de dormir?
JUAN
- O turco pegou...
CARLOS
- Por quê? Em troca de camisa?
JUAN
- É...
CARLOS
- Está bem. Vamos.
JUAN
- Aonde?
CARLOS
51
- Ver o turco. Eu pago a camisa, ele me devolve o saco de dormir, e
depois eu quebro a cara dele! Vamos!
(OUTRA VEZ QUER LEVÁ-LO PELO BRAÇO)
JUAN
- Não, seu Carlos... não... Me solte!
CARLOS (Olha-o)
- Que foi?
JUAN (Pausa.)
- Não foi por causa da camisa...
CARLOS
- Segunda mentira que você me diz... E por que foi?
JUAN
- Por causa da turca... da turquinha... da filha do turco...
CARLOS
- Você está cheio de surpresas, garoto.. cheio de surpresas! A gente pode
saber o que é que aconteceu com a turquinha? (Juan não responde. Carlos está
furioso.) Me conta, caralho, ou eu vou te deixar como outro olho inchado!
(Levanta a mão como para dar-lhe uma bofetada. Juan se põe em guarda, como
52
para devolver-lhe um possível golpe. Carlos se surpreende) Você ia bate em
mim?
JUAN
- Desculpe... (Assume pose de humilde)
CARLOS
- Me desculpa você também. E agora que estamos numa boa, me diz, o
que é que aconteceu com a turquinha?
JUAN (Pausa.)
- Comi ela. (Olha-o. Ri curto. Interrompe.)
CARLOS
- Que idade ela tem? A turquinha, que idade tem?
JUAN
- 22... acho.
CARLOS
- Não interessa! Mesmo que seja só vinte, é suficiente! Ela é responsável
pelo que faz... (Olha-o) Você violentou ela?
JUAN
- Não... quê! Ela deixou!
53
CARLOS
- Então o turco ano tem direito de bater em você! A filha dele já é
grande, maior de idade! Sabe o que faz! Vamos! (Volta a agarrar-lhe o braço.
Juan se solta)
JUAN
- Me deixa, tá! Não gosto que fiquem me puxando de um lado pro outro!
CARLOS (Olha-o. pausa)
- Você já me contou duas. Estou esperando a terceira mentira. A
turquinha... tem oito anos?
JUAN
- Não... Ela me disse que tem 22. Mas está grávida.
CARLOS (Pausa.)
- Você está chegando de onde, hein?... De Corrientes... ou de Paris?
Como é que ela pode estar grávida se faz só três meses que você chegou e aí
ficou dois meses e meio de doença em doença?
JUAN
- É ... nesse dia eu conheci ela... e de noite...
(DAVID RI.)
54
CARLOS
- Não fica rindo, pro favor! Continua pensando na tua montanhazinha,
que eu tenho problemas mais concretos! (Para Juan) Então, você emprenhou
ela... chegou... olhou... engravidou... Que filho-da-p...
JUAN (Corta-o)
- A minha mãe, não, hein!
CARLOS
- Desculpa. (Para David) Agora resulta que tem que lhe pedir perdão,
sou eu! (Para Juan) Do mesmo jeito ele não tem direito de bater em você. Pode
pedir pra você assumir a responsabilidade pelo que fez. Isso sim (Pausa) Porque
você vai assumir a responsabilidade. Eu juro! Você vai assumir a
responsabilidade!
JUAN
- Como o senhor?
CARLOS (Pausa)
- Como... como eu?
JUAN
- É sim... como o senhor assumiu a responsabilidade com minha mãe...
Todos os meses eu vou mandar um pouco de grana pra turquinha. É isso que o
senhor quer?
55
CARLOS
- Você... você me escutou quando... Mas você ouviu mal! Tudo tem uma
explicação!...
JUAN
- Não se canse, seu Carlos. Eu sempre soube. Mamãe me contou quando
eu fiz cinco anos.
(CARLOS OLHA-O. PAUSA. DE REPENTE, APAGAM-SE AS LUZES. )
CARLOS
- Puta que os pariu! Cada vez começa mais cedo!
(ESCURIDÃO TOTAL. NA ESCURIDÃO, ATRAVÉS DA JANELA, VÊEM-
SE RAIOS CRUZANDO O CÉU E ESCUTA-SE RUÍDO DE TROVÕES.
VENTO FORTE. É UMA TEMPESTADE. DEPOIS, TUDO SE ACALMA
LENTAMENTE. VÊ-SE O NASCER DE UM ARCO-ÍRIS, QUE PARECE
INUNDAR TUDO. NO BANHEIRO, ACENDE-SE UMA VELA. DAVID
ESTÁ SENTADO NA PRIVADA.)
DAVID
- Quarta conversa: eu olho a tua foto... A única vez que eu vi você...
Não, isso eu já falei.. Você teve que morrer para eu me dar conta de que... Não,
isso eu também já falei... Agulhas... é!... de repente eu descobri que você é como
uma agulha em mim... Isso eu também já falei! (Pausa. Inclina a cabeça) A gente
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nunca conversou... e eu já não tenho nada pra dizer pra você? O quê? Que eu
descobri que a minha mulher me enganava e não sofri com isso? Que você
morreu... e eu sofro por mim, não por você? Que todos morrem... e eu sofro por
mim, não por eles? Que eu olho... e olho. E olho... é essa a herança que você me
deixou, papai?
(DE REPENTE, VOLTA A LUZ. DAVID APAGA A VELA COM UM
SOPRO. PUXA A DESCARGA E VAI AO QUARTO. O ARCO-ÍRIS SUMIU
COMO UM PASSE DE MÁGICA. CARLOS PÕE BIFES NUMA
FRIGIDEIRA.)
CARLOS
- Como é que você gosta dos bifes, David?
DAVID
- Mais ou menos.
CARLOS
- Isso não quer dizer nada.
DAVID
- Nem cru nem cozido. Médium.
CARLOS
- É a vovozinha. Você fez a barba?
57
DAVID
- Fiz...
CARLOS
- Fez mal.
DAVID
- É. E o Juan?
CARLOS
- Mandei ele falar como turco... com o sogro. Que assuma a
responsabilidade. Você se dá conta? Ele sempre soube que eu era o pai, e eu...
envergonhado até o cangote!
DAVID
- E já acabou a vergonha?
CARLOS
- Não... não acaba nunca. Ou você aprende a viver com ela, ou é melhor
se suicidar!
DAVID
- Eu já disse que eu não penso em me matar.
CARLOS
58
- Não estou falando em você, estou falando de mim! Você sempre pensa
só em você, em ninguém mais?
DAVID
- Está bom. Eu me anulo. E por que você mandou ele... você quer que ele
se case com a grega?
CARLOS
- Turca. É turca. Você nunca escuta os outros, Moishe! É calor que ele
tem que casar! É o dever dele. Além disso, vai fazer bem pra ele. Vai assentar a
cabeça. Depois de tudo que aconteceu, ele precisa ficar tranqüilo...
DAVID
- Como nós, não... Conosco aconteceu de tudo. E agora nós estamos com
a cabeça no lugar, tranqüilos... como um copo cheio. Mais uma gota e derrama.
CARLOS
- Ele não tem nada a ver conosco! É outra época, outra geração! Eu vou
ajudar para que siga adiante. Vou educar ele como se deve.
DAVID
- E o casamento com a ... com a turca... pertence a que ano do colégio?
Ou é de nível universitário?
CARLOS
59
- De que merda que você tá falando? Por que que eu não te entendo?
DAVID
- Estou falando da tua idéia de educação. Primeiro, livre, que escolha...
antropólogo, artesão, arquiteto, guitarrista, cantor... o que quiser! E
agora, você quer que ele case com a... com essa!
CARLOS
- Agora eu sou o pai! Antes eu pensava que ele não sabia! Mas agora eu
sou o pai! Pra que merda que serve toda a minha experiência a não ser para
transmitir a ele? O que é que eu vou deixar de herança pra ele, hein?
DAVID
- Uma fotografia. Sorrindo.
CARLOS
- Uma... o quê? Eu, desde a época dos milicos, tenho tanto medo de
fotografia, que nem por um caralho você me faz tirar uma!
DAVID
- Mas agora você está fora de combate. Qual o problema?
CARLOS
60
- Fora não. Estou em outro. Você falou, como se fosse um insulto:
sobreviver.
DAVID
- E você está bem?
CARLOS
- Nunca penso nisso. Estou. E agora tenho que educar o meu filho! Essa
vai ser a minha vida!
DAVID
- Tua vida , não. A dele. Porque você está querendo lhe dar a tua de
presente para que ele se encarregue das duas.
CARLOS
- Por que você sempre complica tudo, Moishe, por quê? A vida é muito
mais simples, muito mais simples! Aprende isso de uma vez por todas e você vai
viver mais tranqüilo.
DAVID
- Teve uma época antes – você se lembra, Negro? – em que ver você me
dava como uma tranqüilidade.. uma paz... uma certa sensação de relaxamento...
de que eu podia descansar em você... Agora eu vim...
CARLOS
61
- Você veio me fazer te ajudar a escalar a tua montanhazinha, é isso, não
é? Sim ou não?
DAVID
- Sim...
CARLOS
- Viu, viu? Mas, sabe de uma coisa?
DAVID
- O quê?
CARLOS
- Eu não posso dar a você mais do que isso, Moishe. Mais nada. Antes
era igual. Só que antes, te servia, e agora...
DAVID
- Agora não me basta o que serve. Negro... eu descobri uma coisa muito
importante!
CARLOS
- O quê?
DAVID
62
- É preciso inventar o que não serve, o que ninguém compra nem vende!
O que não se vê! O que ainda não existe! Como uma viagem ao centro da terra!
Ou ao centro do céu!
CARLOS
- O céu não existe. É só ar. Eu li isso.
DAVID
- SE você leu existe. Não é o que eu digo.
CARLOS
- Por que é que você não vai um pouco à merda? Me fala, todos os
arquitetos são assim como você, pirados assim?
DAVID
- Eu não sou mais arquiteto. Renunciei à profissão. Queimei o título. Dei
de presente a mesa de desenhar. E deixei o carro, para a minha mulher.
CARLOS
- Desculpa, mas você não vendeu nada?
DAVID
- Não. Por quê?
CARLOS
63
- Pela grana, por quê! Ou você está pensando que vai viver à minha
custa?
DAVID
- É, sim. Até que a gente vá escalar a montanha.
CARLOS
- Nós não vamos um caralho a parte nenhuma, Moishe! Enfia isso na tua
cabeça de judeu na contramão! Eu não me mexo daqui! Agora, eu tenho
um filho! E eu nunca tive nada! Pra você é diferente! Você sempre teve e
renunciou! Eu, nunca, está me escutando, nunca tive nada! Até agora...
(DO FOGO SAI UMA CHAMA.)
CARLOS
- Puta que o pariu! Você me fez queimar os bifes!
DAVID
- Não faz mal. Eu gosto torrados.
CARLOS
- Que torrados! Onde é que você pensa que está? Numa churrascaria?
Esses, queimaram!
64
(TENTA SALVAR MESMO QUE SEJA UM POUCO DE CARNE.)
DAVID
- Quando meu pai morreu...
CARLOS
- Quando minha mãe morreu...
DAVID
- Eu senti que alguma coisa tinha terminado...
CARLOS
- Tive que sair recolhendo caixotes de verdura para fazer um caixão para
enterrar ela. Você vê a diferença, David? Eu sou a diferença... entende isso de
uma vez. O tempo passou...
DAVID
- E agora você é pai.
CARLOS
- Sim, sou pai. Parece pouco? (Sobre a carne) Não serve mais pra porra
nenhuma. Você quer ovos fritos... ou você tem colesterol?
DAVID
65
- E se tiver colesterol, por que você disse que tinha sentido falta minha?
CARLOS
- Se uma pessoa pudesse explicar tudo que é simples, seria muito mais
simples! Então, você deu tudo de presente...
DAVID
- Dei.
CARLOS
- Bom, fica, total, muito você não come! Fica até escalar a montanha...
Uma coisa sim, que seja logo, Moishe. Eu quero me dedicar ao meu filho... e
você me distrai. Você não ficou ofendido, não é?
DAVID
- Não. Eu vou te escrever.
CARLOS
- Sim. E manda um condor me trazer a carta!
(ABRE-SE A PORTA. ENTRA JUAN. TEM O OUTRO OLHO ROXO.)
CARLOS
- Que aconteceu com o outro olho?
66
JUAN
- O turco...
CARLOS
- O teu sogro? E por que agora?
JUAN
- Não me disse.
CARLOS
- A mim, sim, ele vai ter que dizer, por bem ou por mal!
(VAI EM DIREÇÃO À PORTA.)
JUAN
- Espere, seu Carlos...
CARLOS
- Que espere nem espere! Se seu sou teu pai, tenho que começar a me
comportar como um pai! (Pausa curta.) Caralho!
(SAI. JUAN OLHA DAVID. ASSOBIA.)
DAVID
- Que é que você ia dizer a ele?
67
JUAN
- Nada... Que eu estou com fome!
(VAI A COZINHA. PROCURA.)
JUAN
- E os bifes?
DAVID
- Queimaram. Ele jogou fora.
JUAN
- Jogou fora?... Está louco?
(BUSCA NA LATA DE LIXO. TIRA OS BIFES. COLOCA-AS NA
FRIGIDEIRA E COMEÇA A ESQUENTÁ-LOS.)
JUAN
- O fogo cura tudo (Ri) Me curou da minha família! Morreram todos
num incêndio! Sabia?
DAVID
- Sim... E você, como é que se salvou?
JUAN
68
- Sei lá... Andava por aí... quando voltei, não restava mais nada da casa.
(Sobre os bifes) Ficaram fantásticos! Quer?... Não, já sei que não... (Começa a
comer com desespero) Com toda essa zorra babaca, o meu velho se esqueceu de
me dar de comer!
DAVID (Olha-o)
- Você sempre come assim?
JUAN
- Assim, como? Como! Como posso... Desde que eu cheguei, as coisas
melhoraram... a comida, quero dizer! ... mas é preciso estar preparado.
DAVID
- Pra quê
JUAN (Olha-o. Ri.)
- Para tudo, seu David! Para tudo!
DAVID
- Você também me parece um sobrevivente, você sabe.
JUAN (Torna-se humilde de repente)
- Não, eu... eu sou um correntininho de 23 anos...Só isso, seu David!
DAVID
69
- Me faz um favor...
JUAN
- O quê?
DAVID
- O “seu David”... enfia no cu (Arrepende-se) Desculpa. Você me fez
perder as estribeiras...
JUAN
- Não faz mal!... E... tu continuas desenhando?
DAVID
- Não. E também não quero que você me trate por “tu”.
JUAN
- Sabe desenhar uma guitarra?
DAVID
- Sei.
(A LUZ É CORTADA DE UM GOLPE.)
DAVID
- Puta que o pariu!
70
(NA ESCURIDÃO, JUAN DÁ UMA GARGALHADA. E TAMBÉM NA
ESCURIDÃO ESCUTA-SE SUA VOZ.)
JUAN
- Saiu fantástica!
(UMA VELA É ACESA. ESTÁ SOBRE UM PEQUENO PRATO, APOIADO
NA MESA. DAVID ESTÁ DESENHANDO, JUAN, A SEU LADO, OLHA O
QUE FAZ.)
DAVID
- Aí está, é um violão elétrico.
JUAN
- Fantástico!
DAVID
- E assim, um violão de concerto
JUAN
- Fantástico! Tem alguns pesos pra me emprestar?
DAVID
- Pra que você quer?
71
JUAN
- Pra comprar um de verdade.
DAVID
- Pede ao teu pai... Ele queria te comprar um.
JUAN
- Não... com ele vai ser difícil!
DAVID
- Por quê?
JUAN
- Porque vai ser difícil. Me empresta ou não?
DAVID
- Não tenho.
JUAN
- Ah, vai!
DAVID
- Sério. Não me restou nem um peso. É o teu pai que me mantém.
72
JUAN (Olha-o, assombrado)
- Então essa noite você dorme no chão! Ontem passei a noite me
virando, tentando achar um jeito de me acomodar... e ainda por cima, o meu... o
meu velho... sonhando... e você... falando sozinho no banheiro! Você falava com
quem?
DAVID
- Não te interessa.
JUAN
- Genial! Eu não devo me importar nem com você nem com... com o
meu velho, mas você sim, têm que se importar comigo, e passam o tempo todo
se metendo na minha vida! É sempre igual... sempre igual. Todos se metendo na
minha vida! A única que era diferente era a minha mãe! Ela... (Interrompe-se.
Está a ponto de chorar) Merda!
(DIANTE DA LEMBRANÇA DE SUA MÃE, JUAN VAI À JANELA.
APÓIA-SE NELA E PÕE MEIO CORPO PARA FORA. É
INTERMITENTEMENTE ILUMINADO POR UMA LUZ QUE VAI E VEM,
COMO SE FOSSE UM FAROL.
DAVID (Olha-o)
- Carlos disse que ela era muito linda...
JUAN
73
- Ele não sabe merda nenhuma. Usou ela para trepara, só isso. Uma
noite. E se mandou. Eu sei como ela era. O único que soube como ela era...
DAVID
- Sinto muito.
JUAN
- Sentir o quê! Isso não é um desenhozinho... Você terminou a
montanha?
DAVID
- Sim. Acho.
JUAN
- Tá pensando em fazer o quê... subir nela?
DAVID
- Talvez. porque... você quer vir comigo?
JUAN
- Olha, pra algum lado eu vou ter que ir, porque acho que aqui... não me
sobra muita coisa!
DAVID
- Por quê?
74
JUAN
- Eu sei, eu sei! E fica onde, a tua montanha?
DAVID
- Em algum lugar.
JUAN (Olha-o surpreso. Ri.)
- Não , com você eu não vou pra lado nenhum! Você não sabe nada!
Imagina só, andar por aí com um cara como você? Nos fodem!
DAVID
- Estão a ponto de foder você!
JUAN
- Fala, diz! A mim ninguém nunca me fodeu!
DAVID
- Ah, não? E a turca? Te usou pra ficar grávida. Agora vai te usar pra
marido. E o turco pra genro. É essa a tua maneira de andar por aí? Um dia toca
guitarra, no outro é cantor, no outro artesão, no outro... E sempre tirando comida
de lata de lixo! Você tem 23 anos. Se você se deixa usar agora, nunca mais vão
te soltar. Sabe por que nasce um filho?
JUAN
- Vai me contar a história do repolho?
75
DAVID
- Sabe por que que nasce um filho?
JUAN (Olha-o)
- Por que o papai e a mamãe... (Faz o gesto com a mão)
DAVID
- Por milagre. Tem a mesma possibilidade de nascer morto e vivo.
Quando nasce vivo, é porque se produziu o milagre. Olha para você mesmo.
Olha pra mim. Olha pro teu pai. Te parece que nós temos algumas coisa que ver
com um milagre?
JUAN
- Você deve estar mais sozinho que a merda... pra se agarrar em mim pra
me falar disso...
(DAVID OLHA-O, DESCONCERTADO. DE REPENTE, APANHA A VELA
COM O PRATINHO E ENTRA NO BANHEIRO. JUAN SEGUE-O. DAVID
FECHOU A PORTA. SENTA-SE NA PRIVADA, DEPOIS DE ter DEIXADO
O PRATINHO COM A VELA NO CHÃO. JUAN CHAMA-O, DA PORTA.)
JUAN
- Eu não quis te ofender, seu David... Me parecia... Não enche!
DAVID
76
- Me deixa em paz, tá! (Falou coma voz de prisão de ventre. Agora com
sua voz norma.) Quinta conversa: papai... papai...
JUAN
- Escuta, seu David... saia daí... Se está precisando falar, a gente fala...
total, por um minuto...
DAVID (Com a voz de prisão de ventre)
- Some daqui! (Com a voz normal.) Papai...(Pausa) Que solidão, meu
Deus!
(PELA JANELA APARECE A CABEÇA DE CARLOS. PARA JUAN)
CARLOS
- Você estava aí, seu cafajeste? Pensei que você tinha sumido!
(JUAN SE VOLTA. ACENDE OUTRA VELA. VAI À JANELA E ILUMINA
CARLOS. O ROSTO DE CARLOS ESTÁ CHEIO DE MACHUCADOS.)
JUAN
- Que aconteceu? (Ri.)
CARLOS
77
- O turco! Me cagou na porrada! Ele e toda a família! Por culpa tua,
cafajeste! Tive que subir pela janela porque correram todos atrás de mim até a
porta!
(NO BANHEIRO, DAVID OUVE A VOZ DE CARLOS. PÕE-SE DE PÉ.)
CARLOS
- Então você falou que ia casar com a filha... por que você não me
contou?
JUAN
- É coisa minha...
CARLOS
- Coisa tua? A partir de hoje acabaram as coisas tuas, malandro!
(DAVI SAI DO BANHEIRO LEVANDO A VELA. VÊ CARLOS.
ASSUSTA-SE.)
DAVID
- Você escalou ela, Negro! Conseguiu!
CARLOS (Olha-o surpreso)
- De que é que você está falando, Moishe?
78
DAVID
- Você conseguiu escalar! Conseguiu...
CARLOS
- É... e morri de frio! (Entra. Vai em direção a Juan) Por que é que você
não quer se casar com a turquinha, fala, por quê?
JUAN
- Porque é uma puta...
CARLOS
- Que é que você sabe de putas?
JUAN
- Todas as mulheres são putas!
CARLOS
- Por respeito a tua mãe, eu não vou permitir que você fale assim!
(PEGA-O COM FORÇA)
CARLOS
- E você vai se casar coma turquinha, eu te juro!
79
DAVID
- Solta ele, Carlos... Ele só tem 23 anos!
CARLOS
- Você não sabe nada! Tem duzentos! Continua com as tuas babaquices,
Moishe!
JUAN
- Me solta! Não me manuseia como se fosse meu... (Interrompe-se)
CARLOS
- Teu o quê? Como se fosse teu o quê? Diz! Teu o quê?
JUAN
- Meu ... pai.
CARLOS
- Eu sou o teu pai, porra!
JUAN
- Que meu pai, que merda!
(JUAN SE SOLTA RAPIDAMENTE. CARLOS OLHA-O. AVANÇA EM
DIREÇÃO A ELE, MAS JUAN TIRA UMA NAVALHA DO BOLSO E O
DETÉM.)
80
JUAN
- A minha velha transou com vinte pelo menos... Ela mesma me contou...
E pra cada um ela escreveu dizendo que o filho era dele... e todos os meses ela
recebia um envelope com...
CARLOS
- Com dinheiro.
JUAN
- Nós éramos sete.
CARLOS
- Some daqui. Merda. Lixo. Nada. Você não existe. Some daqui... (Grita)
Já... ou eu juro que te mato... isso se o turco não te matar quando você sair!
JUAN
- A mim ninguém mata. (Guarda a navalha.)
CARLOS (Grita para ele.)
- Fora da minha casa!
(AVANÇA UM PASSO EM DIREÇÃO A JUAN E ESTE SAI CORRENDO.
PAUSA. DAVID VAI A CARLOS, LEVANDO A VELA. FICA JUNTO A
ELE. CARLOS VOLTA-SE PARA DAVI.)
81
CARLOS
- Agora nenhum de nós tem nada. Moishe...
(E NESTE PRECISO MOMENTO, VOLTA A LUZ. AMBOS OLHAM PARA
A LÂMPADA ACESA. PRODUZ-SE UMA LENTA ESCURIDÃO. NA
ESCURIDÃO A “MONTANHA DAS MONTANHAS” DESENHADA POR
DAVID COBRE A JANELA, DEIXANDO APENAS UM ESPAÇO PELO
QUAL PENETRA A LUZ. VAI NASCENDO A LUZ. CARLOS ESTÁ
SENTADO, COM UM DOS BIFES QUEIMADOS SOBRE O OLHO
FERIDO. DAVID ESTÁ NO BANHEIRO, SENTADO NA PRIVADA.
APESAR DA LUZ, HÁ UMA VELA ACESA NO CHÃO.)
DAVID
- Retomo: quinta conversa: papai...
CARLOS
- David!
DAVID (Com voz de prisão de ventre)
- Já estou saindo! (Com sua voz normal) Em seguida em volto... (Sai do
banheiro)
CARLOS (Olha-o)
- Você passa o tempo todo cagando...
82
DAVID
- Que é que você quer?
CARLOS
- Falar. Esse filho-da-puta me deixou no ar... (Magoado) Esses turcos
batem mais forte que pedra!
DAVID
- O bife não alivia?
CARLOS
- Está queimado... precisa ser carne crua! (Pausa) Você acredita que é
verdade?
DAVID
- O quê?
CARLOS
- O que falou esse... que a mãe transou com todos... que não é meu
filho... Não sei por que que eu te pergunto! Sinto que é verdade... Aqui, aqui,
aqui!... (Golpeia a cabeça com a mão) Eu sinto!...
DAVID
83
- Você está querendo falar sozinho. Não precisa de mim (Volta para o
banheiro. Carlos olha-o, surpreso. David senta-se na privada) Quinta conversa:
papai...
CARLOS (Grita)
- Davi!
DAVI (Com a voz de prisão de ventre, quase como um reflexo)
- Já estou saindo! (Suspira fundo. Com sua voz normal.) Eu já volto...
(Sai do banheiro. Para Carlos) Que é?
CARLOS
- Você tem diarréia?
DAVID
- Você continua falando sozinho. (Vou voltar ao banheiro.)
CARLOS
- Espera, Moishe... Por favor! (Davi volta-se para Carlos) É o costume...
anos e anos falando sozinho... a não ser quando a gente se encontrava... mas
cada um tinha a sua vida e...
DAVID
- Como é que você fez para escalar?
CARLOS (Olha a janela)
84
- Se eu não subisse, os turcos me matavam, Moshie!
DAVID
- E por que é que te custa tanto me entender, quando eu te digo que...?
CARLOS
- Eu te falo de coisas concretas, David, e você... Ah, que concretas! Me
deixou no ar!... 23 anos coberto de vergonha e agora descubro que até a
vergonha foi de graça!... (Olha a “montanha” que cobre a janela) Por que você
não joga isso fora, Davi? Isso não deixa passar a luz.
DAVID
- Eu estou estudando... para ver onde escalar.
CARLOS
- É um desenho, não é uma montanha! Como é que num desenho você
vai estudar por onde escalar uma montanha? Primeiro você não se animou a
descer por essa corda... e agora você quer subir por um desenho!... Que é que
você tem na cabeça?
DAVID
- Desenhos... Você e eu nós somos um desenho... O original ficou não
sei onde... Ou ainda não nasceu.
CARLOS (Pausa)
85
- David... quando nós nos conhecemos no quartel, eu te ajudei com os
chefões, sim ou não?
DAVID
- Sim...
CARLOS
- Quando a gente tinha fome por causa da merda que nos davam, eu
roubei galinhas pra nós dois comermos... Sim ou não?
DAVID
- Sim... mas!...
CARLOS
- Mas, um caralho! Roubei e a gente comeu! E quando você trepou pela
primeira vez, primeira vez... com dezoito anos... Eu te levei! Sim ou não?
DAVID
- Sim!
CARLOS
- Então, por que é que você não pode me ajudar agora, quando eu preciso
de ti?
DAVID
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- Eu quero! Mas eu falo... e você não me entende!
CARLOS
- Porque você só fala besteira! Como é que eu vou entender? Eu estou te
pedindo ajuda... de pessoa pra pessoa.. e você vem com babaquices, com
desenhozinhos... Eu não entendo nada de desenho! Eu... (Vai continuar falando.
Não sabe o que dizer. Cala)
DAVID
- Não são babaquices, Carlos... Vamos ver se agora eu consigo me fazer
entender. Mas faz um esforço, tá bom?
CARLOS (Pausa)
- Está bem...
DAVID (Mostra a “montanha” na janela)
- Essa montanha...
CARLOS (Grita)
- Essa montanha... não existe! (Vai à janela e arranca a “montanha”) E a
corda... acabou! (Desengancha a corda e joga-a na rua)
DAVID (Corre à janela)
- Não... (Olha para baixo) Não...
CARLOS
87
- Agora... fala.
(DAVID OLHA-O. CORRE AO BANHEIRO E SENTA-SE NA PRIVADA.)
CARLOS
- David!
DAVID (Rápido)
- Retomo: quinta conversa! Papai...
CARLOS (Na porta do banheiro)
- Moishe!... Ou você sai ou eu te arranco daí!
DAVID (Voz de prisão de ventre)
- Já estou saindo! (Pausa. Com voz normal) me enganei... não é a
quinta... é a última... Tchau, papai! (Sai do banheiro. Ele e Carlos se olham)
CARLOS
- Fala.
DAVID
- Você sabe por que que deixei a arquitetura?
CARLOS
- Fala.
88
DAVID
- Você sabe por que deixei a arquitetura?
CARLOS
- Porque sabia que eu ia manter você.
DAVID
- Isso também. Eu comecei a fazer arquitetura... pra encher a paciência.
Do meu tio, que queria que eu fosse advogado... como ele. E da minha mãe, que
queria que eu fosse como o meu tio. E do meu pai, que não queria nada... já não
queria nada! Comecei a fazer arquitetura pra encher o saco de todo mundo!
Então, um dia, um professor... um velho bezerro, decadente... e conservador...
nos disse que as igrejas se construíam para cima... por que Deus estava em cima!
CARLOS
- Você é judeu, Moishe. Não fale em Deus. Vocês mataram ele.
DAVID
- Mais ou menos. Você tem Deus, negro?
CARLOS
- Eu sim... acho. Ele, não sei.
DAVID (Ri)
- Acho... Não sei... Você está parecendo eu... Eu nunca tive Deus.
89
CARLOS
- Ah, vá... até os judeus...
DAVID
- Os meus pais, não. Só acreditavam em dois mais dois quatro. Neles não
havia lugar para Deus. Eu cresci assim... sem nada em cima... a não ser, quando
o sol era muito forte..., um guarda-sol!
CARLOS
- E agora... varíola na velhice!... Você está virando religioso? Se quer, eu
te ensino a rezar. Te ajoelha... (David olha-o) Vai, ajoelha, Moishe! (Faz com
que ele se ajoelhe e se ajoelha também) Padre Nosso que estais no céu... (Ergue
a mão e aponta para cima com o dedo.) No céu, está vendo? Em vima, bem em
cima!
DAVID
- O teu dedo. Mas e nós? Olha bem nos olhos. Embaixo. Bem embaixo.
Faz assim (Move a mão.)
CARLOS (Surpreso)
- O quê?
DAVID
90
- Assim, faz assim! (Carlos olha-o. resignado, move a mão imitando-o.)
Agora, faz assim! (Coça a cabeça. Carlos olha-o. coça também. Ri do que parece
uma estupidez de David.) Macaquinhos. É isso que nós somos. Macaquinhos de
repetição.
CARLOS
- Vai a merda, está bom! (Começa a rir) E não sou nenhum macaco!
DAVID
- Está bom. O macaco sou eu. (Continua ajoelhado) Eu vivo repetindo
gestos. E dias. E anos. E amores. E fome. E sede. E chegadas e despedidas...
(Move a mão) Alo! Adeus! E pensando... (Coça a cabeça como um macaco)
Olha como eu penso! Que maravilha como eu estou pensando! E os meus olhos?
(Inclina-se sobre o chão e olha para baixo.) Olhada profunda! Olhada funda!
Filosófica! Embaixo, embaixo, cada vez mais embaixo! (Golpeia o chão.)
CARLOS (Inquieto)
- Pára, David...
DAVID
- O velho bezerro tinha razão... sem querer, mas tinha razão! Falava de
um lugar que existe... um lugar ao qual nós temos medo de chegar... Por isso eu
estudei arquitetura... por isso eu construí... mas os meus edifícios se
entortaram... o terremoto entortou eles... o terremoto, Negro... e cresceram de
lado... não para cima... para o lado, como eu... Você tem sorte... Você não é um
91
macaquinho... Eu... eu sou um macaquinho que vive de lado... Olha! (Seu corpo
se inclina para o lado)
CARLOS
- Termina, tá bom! Termina! (Vai em direção a David) Levanta, já! (Faz
com que se levante.) Não entendo o que você fala... mas me faz mal... Que foi...
a tua mulher?... o teu velho?...
DAVID
- A minha mulher? ... Já não me lembro como ela era nem quando vestia
as meias. É incrível, Negro...Dez anos juntos e eu já não me lembro como ela
era nem quando punha as meias! Fomos o quê... transparentes? Nunca nos
encontramos, nem para ir ao banheiro de manhã depois de fazer amor. Que
amor? Quando ela me deixou, eu senti que pelo menos um gesto... um!... ia
deixar de se repetir... Você é um cara de sorte... sabia como conseguir comida...
tratar com os oficiais no serviço militar... conseguir uma puta... Você não é um
macaquinho, como eu... Eu sim... seu sim... por isso, quando o meu pai... ardeu!
CARLOS
- Não fala assim do teu velho!
DAVID
- É verdade. (Vai em direção à sua maleta e tira uma urna.) Está aqui.
Depois que cremaram ele, me deram a urna. Fervia. Eu levava ela... assim .
(Levanta a urna.) E acho que foi nesse momento que comecei a ver a
montanha... lá... no meio da neblina! E eu decidi levar ele comigo. Talvez lá... lá
92
em cima... a gente podia começar a falar... isso que a gente nunca falou... saber
onde começou tanto medo... o dele. O meu...
CARLOS
- Guarda isso! Você pode ser muito... muito inteligente... mas me parece
uma falta de respeito com o velho! Os mortos pertencem à terra!
DAVID
- E nós... os vivos... pertencemos a quê?
CARLOS
- Guarda isso! Você pode ser muito... muito inteligente... mas me parece
uma falta de respeito como velho! Os mortos pertencem à terra!
DAVID
- E nós... os vivos... pertencemos a quê?
CARLOS
- Guarda isso! (David guarda a urna em sua maleta.) Eu estou aqui.
DAVID
- Você tem sorte...
CARLOS
93
- Acaba com essa história de que eu tenho sorte! Sorte de quê? Sabe de
que eu tenho sorte? De não entender uma porra do que você fala! Senão, eu
estaria tão louco como você!
DAVID
- Eu não estou louco! Se estivesse louco, não tinha vindo te buscar!...
CARLOS
- Você se enganou, David!
DAVID
- Não! Você...
CARLOS
- Não! Eu, nada! Você se enganou... Eu te disse... Eu... eu sou a
diferença... Roubar galinhas pra comer era fácil... Se fazer de simpático com os
tenentinhos pra eles não nos encherem o saco, conseguir uma puta mais barata
que as outras... isso era fácil!... eu servia para isso, Moishe, para isso, sim! Isso...
eu não entendo você... e eu não sirvo para o que eu não entendo! Você mistura
muito., Moishe...mistura muito! Deus, os macaquinhos, a tua mulher, o teu pai...
É muito! E quanto à tua montanha... eu vou te dizer duas coisas, ainda que te
irritem... duas coisas... Primeiro: você não teve coragem de descer quatro
andares... descer, hein!... imagina subir... Você não tem colhão pra isso! E
segundo: A tua montanha... não existe. É invenção... puta invenção, Moishe!
94
(DAVID OLHA-O. PAUSA, PEGA SUA MALETA. VAI EM DIREÇÃO À
SAÍDA.)
CARLOS
- David... O teu velho era de Entre-Rios, não era?
DAVID
- Era.
CARLOS
- Presta atenção... se você quiser. Vai a Entre- Rios... e espalha as cinzas
no campo. Deixa ele descansar em paz... (Carlos murmura) Até logo, Moishe...
DAVID
- Negro. (Carlos se volta, surpreso.) Você não cansa de andar com olhos
pra baixo?
CARLOS
- Me serve pra não enfiar os pés na lama!
DAVID (Olha-o. Pausa.)
- Até logo, Negro, até logo, (Sai)
(CARLOS VAI À JANELA. OLHA O QUE RESTA DA “MONTANHA”
DESENHADA POR DAVID. PAUSA CURTA. DECIDE-SE E TERMINA
95
DE ARRANCÁ-LA. JOGA-A PELA JANELA. A LUZ É SUBITAMENTE
CORTADA.)
CARLOS
- Puta que o pariu!
(ESCURIDÃO. PAUSA. UMA VELA É ACESA NO BANHEIRO. CARLOS
ESTÁ URINANDO. JUAN ENTRA LENTAMENTE. TRAZ O SACO DE
DORMIR. TROPEÇA. XINGA. CARLOS ESCUTA-O)
CARLOS
- David?...
(SAI DO BANHEIRO. APESAR DA POUCA LUZ QUE TEM NA MÃO, VÊ
JUAN.)
CARLOS
- Você veio pra roubar?
(JUAN OLHA-O. JOGA O SACO DE DORMIR NO CHÃO. CARLOS
APROXIMA E ILUMINA-O)
CARLOS
- Como é que você conseguiu?
96
JUAN
- O turco.
CARLOS
- Imagino que por ser boa gente.
JUAN
- Por ser um cagão. (Tira a navalha e mostra-a)
CARLOS (Ilumina-o com a vela.)
- Que machinho que você é. Leva o saco de dormir. Vai te fazer falta.
JUAN
- O senhor pagou por ele. Não quero nada seu. Eu vou me arranjar.
CARLOS
- Então você não quer nada meu. Devia ter me trazido de volta o dinheiro
que eu babacamente dei durante 23 anos à tua mãe.
JUAN
- Comemos a grana. Nós éramos sete. Seu David foi embora?
CARLOS
- Foi.
97
JUAN (Ri)
- Está mais pirado que não sei o quê!
CARLOS
- Não ri dele, infeliz.
JUAN
- Desculpa... mas eu nunca entendi nada do que ele falava.
CARLOS
- E você ri de tudo que não entende?
JUAN
- É melhor do que chorar, não é?
CARLOS
- Olhem só, quando você chegou parecia um pinto molhado...
JUAN
- Eu nunca fui um pinto molhado.
CARLOS
- Sei. Você se fazia de pinto molhado. Agora você é como um ouriço. Eu
tenho uma curiosidade, sabe. Como era o teu pai? Quando eu fui à tua cidade,
98
ele estava em cana... Depois aconteceu aquilo, com a tua velha... e eu vim
embora.. Nunca cheguei a conhecer ele...
JUAN
- Mataram ele na prisão. E a minha mãe virou puta...
CARLOS
- Não fale assim da tua mãe, porra! Ela, sim, eu conheci! Que é que você
sabe o que custa manter a... Quantos eram vocês?
JUAN
- Sete.
CARLOS
- Sete! Você não sabe... nem vai ficar sabendo, se continuar por esse
caminho!
JUAN
- O senhor não tem bronca dela?
CARLOS
- Já não tenho forças para isso. Na realidade, não sei para que é que me
restaram forças... (Corta.) Mas por que que eu falo essas coisas com você?
JUAN
99
- Porque aqui não tem mais ninguém, agora que seu David foi embora...
A minha mãe me contou que o senhor foi à cidade para dirigir uma greve... Não
parece!
CARLOS
- Que é que você quer dizer com isso? E acende outra vela, porque na
escuridão eu não vejo a tua cara quando você fala!
JUAN (Enquanto procura a vela, encontra-a e acende-a)
-Eu digo que olho pro senhor e não vejo o senhor metido em greves...
CARLOS
- Porque eu conheci ela, e me entortei todo. Tudo sempre me entortou...
de lado, como diz o Davi!
JUAN
- Pelo jeito agora vou começar a não entender o senhor também! (Vê o
bife na cozinha) Sobrou um pouco de bife...posso? depois eu vou embora!
CARLOS
- Esse eu usei pra desinchar o olho.
JUAN
- É comida... e eu não sou fino. Posso?
CARLOS
- Vai, come, antes que puxe a navalha contra mim!...
100
(JUAN COMEÇA A COMER DESMEDIDAMENTE. ESCUTA-SE UM
RUÍDO NA JANELA. OLHAM. JUAN VAI À JANELA, ENQUANTO
COME.)
JUAN
- O gancho da corda...
CARLOS
- Não pode ser. Eu joguei fora... (Vai à janela. Vê o gancho) Se
enganchou de novo! Como foi? (Olha para cima , com meio corpo fora da
janela.)
JUAN (Faz o mesmo)
- Que é que está procurando?
CARLOS
- O Abominável Homem das Neves!
JUAN (Olha para baixo)
- Olha , seu Carlos...é o Moishe! Está querendo subir!
CARLOS (Olha)
- Que babaca! (Grita para baixo) Você não vai conseguir , Moishe! Volta
pra tua casa, não enche (Para Juan) Que ele faça o que quiser... Não vou mais
esquentar a cabeça por causa dele!
101
(VOLTA PARA O INTERIOR DO QUARTO)
JUAN (Continua olhando)
- Caiu!
CARLOS
- É bem coisa dele! Sai daí, que você me deixa nervoso!
(JUAN VOLTA PARA O INTERIOR DO QUARTO. LIMPA AS MÃOS NA
ROUPA.)
CARLOS
- Não faz isso, não faz isso, aí tem um guardanapo, como se você não
soubesse!...
JUAN
- Não pode deixar de dar conselhos?
CARLOS
- Desculpe! Desculpe!
(MAS JUAN VAI À COZINHA E LIMPA AS MÃOS COM UM
GUARDANAPO. E AGORA, ESTÁ PENSANDO EM IR PRA ONDE?
JUAN
- Eu ...vou ver o segundo da lista...
102
CARLOS
- Que lista?
JUAN
- A dos vinte caras que mandavam dinheiro pra velha...
CARLOS
- Eu fui o primeiro?
JUAN
- Foi
CARLOS
- Olha só... que sorte a minha! É a primeira vez que eu sou o primeiro em
alguma coisa... e acaba sendo falso... como você!
JUAN
- Eu sou como sou... O que aconteceu é que o senhor precisava de outra
coisa.
(CARLOS OLHA-O. LENTAMENTE, COMO QUEM NÃO QUER , VAI EM
DIREÇÃO À JANELA)
CARLOS
103
- O que eu preciso... (Olha pela janela) Continua! ... (Grita) Desce,
Moishe... você não tem colchão pra isso! Desce! Vai à merda!... quer se matar,
se mata!
(VOLTA PARA O INTERIOR DO QUARTO.)
CARLOS
- E a turca?... vai deixar ela abandonada por aí, como um filho teu? ...
como fiz com a tua... (Interrompe-se, ao tomar consciência do que ia dizer. Ri.
Juan também ri.)
JUAN
- Não. Vou levar ela. Ele me defendeu quando eu voltei pra buscar o
saco de dormir...
CARLOS
- Ah, é? Olha só! E o que é que você vai dizer ao segundo da lista? Que a
turca é tua tia, e que te amamentou quando você nasceu? Se for tão babaca
quanto eu, capaz de acreditar!...
(ESCUTA O RUÍDO QUE FAZ A CORDA NA JANELA. VAI À
JANELA, ASSUSTADO.)
CARLOS
104
- Se matou... (Mostra-se) Continua!... (Grita) Você não vai nunca me
deixar tranqüilo, Moishe? Desce daí, que você não vai conseguir (Histérico)
Desce! (Volta para o interior do quarto.)
JUAN
- Bom...
CARLOS
- Sim!... (Olham-se. Carlos corre para a janela. Grita.) Desce, porra!
Você vai se matar, Moishe!
JUAN (Vai a janela. Olha)
- E continua subindo, não... (Para Carlos) Bom, é melhor eu...
CARLOS
- Sim... (Grita para David.) Apóia o pé... o outro... o outro, Moishe!
JUAN
- Estou indo, seu Carlos...
CARLOS
- Tá. Tchau. (Grita) Agora o outro... aí, na saliência! Por que merda que
eu tenho que complicar a minha vida por tua causa, merda, se eu... O outro!...
Agora o outro... Que é que eu vou dizer à polícia quando ela chegar... que o
suicida era louco, ou que estava de porre? (Grita) Esse não... esse deixa de
apoio... o outro... É, é, esse, esse!
105
JUAN
- Olha que ele está subindo, seu Carlos...
CARLOS
- Sim... está subindo!
JUAN (Ri)
-Esse Moishe é mais...
CARLOS
- Não ri dele, porra! E não chame ele de Moishe... o nome dele é David!
(CARLOS SOBE AO PARAPEITO DA JANELA. GRITA)
CARLOS
- Cuidado com essa coisa aí, está solta, não consertaram! Assim... isso,
isso!
JUAN (Sobe também, inquieto por Carlos)
- Escute, seu Carlos, cuidado pra não ser agora o senhor que vá cair!
Desça, que já não está pra isso!
CARLOS
- Me segura, me segura um pouco...
106
JUAN
- Sim.
CARLOS (Grita para David.)
- Descansa um pouco agora, David! Está mudando o ar! Presta atenção...
JUAN (Olha)
- Continua subindo, seu Carlos...
CARLOS
- Que cabeçudo de merda! (Grita.) Presta atenção ao que digo, David,
por uma vez na vida, presta atenção!
JUAN
- E está prestando... seu Carlos!
CARLOS
- Que é?
JUAN (Segurando-o)
- Estou indo...
CARLOS (Olhando David)
- Sim. Não me solte... não me solte... Escuta...
107
JUAN
- O quê?
CARLOS
- Faz 23 anos que eu me acostumei à idéia de que você é meu filho... Me
dá um pouco de tempo para eu me desacostumar... (Olha para baixo)
Continua!... (Para Juan.) Aqui o lugar é feio, mas é grande. Até a tua turca cabe.
JUAN
- Não sei. Vamos ver. Me parece que... vai chegar, hein!
CARLOS (Grita.)
- Vai, continua assim, continua assim, David! Vai, que já falta menos!
JUAN (Grita) Vamos, seu David... Vamos!
(CONTINUAM GRITANDO. DE REPENTE NO CÉU COMEÇAM A
DESFILAR, COMO SE FOSSE A HISTÓRIA DO TEMPO: TORMENTAS,
RAIOS, SÓIS, LUAS, CHUVAS, ARCO-ÍRIS. E, NO MEIO DO FORTE
SOM DA TORMENTA, ESCUTAM-SE COMPASSOS DA “HERÓICA” DE
BEETHOVEN. A CORTINA VAI DESCENDO LENTAMENTE.)
FIM.
108