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8/13/2019 Ousmane Sembne: uma abordagem cultural na luta contra o colonialismo de 1950 a 1969 -Gustavo de Andrade
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Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969
Gustavo de Andrade Duro
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 123
Ousmane Sembne: uma abordagem cultural naluta contra o colonialismo de 1950 a 1969
Gustavo de Andrade DuroDoutorando em HistriaUFRJ
RESUMO: A trajetria de Ousmane Sembne (cineasta, escritor e militante marxista)explicita algumas estruturas da sociedade africana dos antigos territrios coloniaisfranceses. Buscando-se a percepo e a valorizao das obras de Sembne, e principalmentede sua obra cinemtaogrfica Le Mandat, de 1969, tem-se um representao dos problemasque envolveram a sociedade senegalesa no que tange seus valores humanos, polticos e de
identidade no perodo posterior independncia. Dessa forma, pretende-se promover umareflexo sobre o papel do intelectual africano no respectivo perodo, no mbito de Histriada frica contempornea, como um anlise acerca dos escritores negro-africanos falantesda lngua francesa.
PALAVRAS-CHAVE: Senegal; Histria da frica;Ngritude.
ABSTRACT: The trajectory of Ousmane Sembne (filmmaker, writer and marxistmilitant) explain some africain society strucutures of the old french colonial territories.Seeking the perception and exploitation of Sembnes work, and particularly his movie Le
Mandat, from 1969, which represents some of the problems surrounding the senegalese
society regarding their human values, political and identity in the period afterindependence. Thus, it is intended to promote a reflectionon the role of africain intellectualin the respective period, in the course of the Contemporary Africain History, as a reflectionon the black africain writers whon speaks french.
KEYWORDS: Senegal, Africain History,Ngritude.
Introduo
A partir dos estudos de frica que surgem com fora no mbito acadmico
brasileiro, pode-se perceber que em poucos anos desde o lanamento da Lei 10.639/03(que obriga o ensino de Histria da frica e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas e
universidades) muito se fez para enriquecer o conhecimento em relao ao continente e s
obras dos intelectuais negro-africanos do sculo passado.
Atravs deste balano e da percepo de fragilidades acadmicas sobre o tema foi
desenvolvido e pensado este artigo, no qual se pretende fazer uma provocao preliminar
acerca de um tema que est negligenciado pelos estudiosos da frica contempornea: a
frica francfona e s implicaes do colonialismo francs no continente africano no
mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]8/13/2019 Ousmane Sembne: uma abordagem cultural na luta contra o colonialismo de 1950 a 1969 -Gustavo de Andrade
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perodo que vai da produo literria ps-independente at os primeiros anos da
emancipao poltica africana.
Este trabalho baseia-se na obra de um importante autor, romancista e militante de
um movimento anticolonialista que comea fora da frica, mas tm suas bases no
questionamento do colonialismo no Senegal. Ousmane Sembne, alm de ter sido escritor,
foi um importante cineasta, pioneiro na representao da frica de expresso francesa
atravs da cinematografia.
A singularidade de sua obra justifica-se por retratar um ambiente social africano em
meio s transformaes poltico-sociais do mundo contemporneo. Alm disso, o referido
autor exps elementos suficientes para acreditarmos que a passividade do africano (de
expresso francesa) no ocorreu de fato como os livros de histria pretendiam nos ensinar
ou transmitir.
Ousmane Sembne no deixa de se referir ao Senegal em suas obras e
representante importante de uma elite colonial francfona que pde acompanhar o
processo de independncia de seu pas. Alm disso, participou de uma construo nacional
que criticava no s a estrutura capitalista deixada pelo colonizador, mas tambm o no
enfrentamento por parte do ex-colonizado (transformado oficialmente em cidado a partir
de 1960).
Suas obras so de fundamental importncia para os historiadores, se analisadas
como representao do tempo histrico. Os romances de Sembne e seus filmes
demonstram parte do modo de vida africano e das complexidades que foram encontradas
aps a independncia, uma realidade pouco explorada at o momento.
H diversas obras que poderiam ser escolhidas, tais como Vhi Ciosane, Le Bouts de
Bois de Dieu, Xala ou Molaade, mas a escolha pelo Le Mandat foi motivada pelo carter
representativo da sociedade africana que se relaciona com os parcos estudos sobre
pensadores da frica Ocidental Francesa.
Atravs de um dilogo intercultural e interdisciplinar prope-se movimentar uma
reflexo entre a Histria da frica e o contato colonial francs, que se mostra um bom
caminho de anlise sobre a escrita literria e as movimentaes polticas dos pensadores
africanos de expresso francesa.
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A compreenso dos mtodos coloniais franceses (como a assimilao, que contava
com a educao colonial dos indivduos) e as crticas colonizao francesa foram
abordadas sutilmente por Sembne em suas obras. Nelas, possvel perceber importantes
reflexes atravs da anlise entre literatura e cinema, pontos relevantes na narrativa de
Sembne, principalmente, se tomando como base a obra cinematogrfica Le Mandat de
1968.
Sembne, uma trajetria de crtica e de contestao
Ousmane Sembne nasceu em 1923 e comeou a sua carreira como escritor a partir
de 1956. Como era comum entre os colonizados na frica Ocidental Francesa, ocupou
diversos pequenos ofcios como mecnico, pescador, marceneiro, etc. Em 1942 Sembne
foi recrutado para ser atirador senegals (os recrutamentos dos atiradores foram iniciadas
pelo deputado Blaise Diagne em 1917) e com isso, deu-se incio a sua relao com a
metrpole.1
Pode-se dizer que as obras de Sembne eram direcionadas para uma elite cultural
africana que no pde capt-la de maneira produtiva, como ele almejava. A escolha de
Sembne pelo cinema, segundo seus crticos, foi um modo de tornar suas produes
acessveis a um pblico mais amplo, assim, as obras de Sembne estariam imbudas de uma
caracterstica mais popular2. O cinema foi, portanto, uma escolha que alm de popularizar
seu pensamento, tornou possvel difundi-lo mais abertamente.
Vale ressaltar que, no que diz respeito sua trajetria, Ousmane Sembne foi
enviado a Moscou para estudar cinema nos Estdios Gorki, a fim de aprender com os
mestres da cinematografia sovitica. Esse era o resultado de um programa de incentivo do
Ministrio da Frana para a Cultura e Cooperao.3
Contudo, o pensador senegals no estava sozinho na empreitada de pesquisa e
desenvolvimento de trabalhos sobre cinema, pois com ele foram estudar na Rssia outros
pensadores africanos como Costa Diagne (senegals) e Souleymane Ciss (malins), que
1 NZBATSINDA, Anthre. Le Griot dans le rcit dOusmane Sembne: entre la rupture et la continuitdune representation de la parole a fricaine. The French Review, EUA, v. 70, n. 6, p. 865-872, mai. 1997, p. 865.2______. Le Griot dans le rcit dOusm ane Sembne: entre la rupture et la continu it dune representation dela parole africaine, p. 865.3 GENOVA, James E. Cinema and the Struggle to (De)colonize the Mind in French/ Francophone West
Africa (1950s-1960s). The Journal of the Midwest Modern Language Association, EUA, v. 39, n.1, p. 50-62, mar.2006, p. 58.
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pode ter sido o primeiro africano a ter terminado o ciclo de estudos na cole Supriere de
Cinma.4
Desse modo, v-se que o papel de Sembne no campo cultural foi de extrema
importncia, pois operando com as representaes da vida cotidiana nas suas obras, o autor
expunha um colonialismo que era censurado. Essa crtica circulava na maioria dos
peridicos somente a uma parte dos representantes da elite letrada francfona, no
atingindo a maior parte da populao no alfabetizada.
A trajetria de Sembne foi diferente dos pensadores do Movimento da Ngritude
como Lopold Senghor e Aim Csaire, j que ele foi autodidata. Principalmente porque o
sistema educacional francs nas colnias desconsiderava as tradies culturais dos povos
que habitavam os territrios antes da chegada do colonizador e de alguma maneira a obra
de Sembne se tornou uma arma importante na luta anticolonial nas dcadas de 1950 e
1960.
Segundo o filsofo gans Anthony Kwame Appiah:
Insistir na alienao dos sditos coloniais de educao ocidental, em suacapacidade de apreciar e valorizar suas prprias tradies, correr o riscode confundir o poder dessa experincia primria com o rigor de muitasformas de resistncia cultural ao colonialismo. O sentimento de que os
colonizadores superestimam o alcance de sua penetrao cultural compatvel com a raiva ou o dio, ou a nsia de liberdade; mas noimplica as deficincias de autoconfiana que levam alienao.5
Desse modo v-se que a caracterstica do sistema de assimilao adotado pela
Frana era a manuteno de um sistema de ensino que no levasse em considerao a vida
e os costumes dos sditos coloniais. Por isso, levanta-se a hiptese de que caracterizando
essa tentativa de alienao nos mecanismos da misso civilizadora francesa, o papel de
Sembne foi de esclarecer sobre as ambiguidades da colonizao atravs de uma militncia
anticolonialista fortemente influenciada pelo ideal marxista.
Como tambm aponta a crtica literria Claire-Neige Jaunet, Sembne, bem como
Ferdinand Oyono (Le vieux ngre et la medaille1956) foram romancistas pioneiros na crtica
4GENOVA, James E. Cinema and the Struggle to (De)colonize the Mind in French/ Francophone WestAfrica (1950s-1960s), p. 58. 5 APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: A frica na filosofia da Cultura. Rio de Janeiro:Contraponto, 1997, p. 25.
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atividade colonial francesa e expuseram as necessidades mais urgentes de se pr fim ao
processo colonial na frica Ocidental Francesa.6
A mesma autora assegura ser a produo de Sembne uma das mais importantes
dentre os escritores negro-africanos por estar relacionada diretamente s questes de sua
sociedade e de sua poca. Um exemplo a primeira obra publicada de renome: Les Bouts de
bois de Dieu. O livro tratava da greve ocorrida entre 1947 e 1948 em Dacar, This e Bamako
(colnias francesas antes da independncia em 1960) e expunha no s as atividades de
explorao promovidas pela Frana, como demonstrava a movimentao dos trabalhadores
que exigiam condies iguais de trabalho para todos nas colnias.
possvel perceber ainda que a anlise de Sembne nesta obra pioneira por
demonstrar o papel das mulheres diante da contestao ao colonialismo francs e a
importncia destas em militarem favor dos homens negros de Dacar.7
Segundo um dos principais crticos da obra de Sembne, Anthre Nzbatsinda, o
escritor e cineasta pode ser comparado a um griot, verdadeiro artista da palavra africana, j
que a principal caracterstica das suas obras foi de buscar remontar s tradies africanas8.
De modo anlogo ao griotafricano, Sembne conta uma histria do passado e relembra a
oralidade, ou seja, na presente anlise ele ilustra um personagem que fez parte da rede de
saber. Revelando o ser pensante dentro de um espao dominado pelo francs, onde o
africano era constantemente bombardeado pela ideologia alienante da mission civilisatrice.
Utilizando a anlise de Aim Csaire sobre a relao entre a cultura e a poltica,
pode-se compreender a dificuldade e a resistncia ao contato cultural francs (bem como
sua ideologia) que ocorreu diante do sistema da assimilao. No ensaio apresentado no
Primeiro Congresso de Artistas e Escritores Negros em Paris, por exemplo, o autor define
que o fracasso de tal teoria que ela se baseia na iluso que a colonizao um contato
como outro qualquer e que todos os emprstimos so vlidos.9
Ngritudee a movimentao cultural dos escritores negros
6JAUNET, Claire-Neige. Les crivains de la ngritude. Paris : Ellipses - Col. Rseau_ les coles artistiques, 2001,p. 66-67.7______. Les crivains de l a ngritude, p. 70-71.
8NZBATSINDA, Anthre. Le Griot dans le rcit dOusmane Sembne, p. 867. 9CESAIRE, Aim. Culture et colonisation. Libert, v. 5, n. 1, 1963, p. 29 (traduo livre do autor).
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que prolongaram os debates comeados antes da guerra, preparandotodas as mudanas que viriam.13
O historiador Pap Ndiaye afirma que o perodo de 1945 a 1956 representou o
dilogo entre os pensadores africanos assimilacionistas e os anticolonialistas
14
. Os primeiroscomungavam do ideal de aceitao e implementao do sistema de assimilao preconizado
pelos colonizadores franceses; j os segundos eram os que demandavam o fim da presena
poltica e administrativa dos colonizadores na frica Ocidental Francesa, prezando pela
autodeterminao dos povos nos territrios da frica Negra.15
Ainda vale lembrar que os debates possuram grande complexidade e exigncia no
campo intelectual, por grande incentivo do governo francs em garantir bolsas de estudo
de qualidade para os indivduos das elites intelectuais na metrpole. ainda apontado por
Ndiaye que o investimento por parte da Rssia e do partido comunista tambm foram
fatores determinantes na manuteno de redes de solidariedade entre os pensadores negros
do incio da dcada de 1950.16
Por isso, grande parte da historiografia sobre os pensadores negros de expresso
francesa define a atuao de Alioune Diop como um fator determinante para o momento
que se iniciava. Isso se deu porque a revista Prsence Africaine (fundada por ele em 1946),
conseguiu grande projeo e apoio poltico de uma intelectualidade negra que ganhava cada
vez mais espao no campo literrio da sociedade parisiense. A ngritude de hoje, disse
Alioune Diop, tem por misso restituir a histria em suas verdadeiras dimenses .17
Essa grande crtica de Alioune Diop foi pronunciada no Primeiro Congresso de
Artistas e Escritores Negros, em 1956, e definia a qualidade da formao intelectual dos
participantes de um contexto que ainda no rejeitava totalmente o conceito de ngritude, mas
buscava uma atitude mais direcionada ao sistema de dependncia com o colonialismo
francs, tanto no mbito poltico, quanto cultural.
Ainda na expresso de Alioune Diop no referido congresso: Os homens de
cultura, em frica, no podem mais se desinteressar da poltica, que uma condio
13NDIAYE, Pap. La condition Noire: Essai sur une minorit franaise. Paris: Calmann-Lvy/ Gallimard, 2008,p. 384. (traduo livre do autor).14______. La condition Noire: Essai sur une minorit franaise, p. 359-362.15______. La condition Noire: Essai sur une minorit franaise, p. 361.
16______.La condition Noire: Essai sur une minorit franaise, p. 361.17KESTELOOT, Lilyan.Histoire de la Littrature Ngro-africaine. Paris: Karthala/AUF, 2004, p. 214.
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necessria do renascimento cultural18. Esta afirmao de Diop demonstra que um dos
objetivos desse congresso era definir as linhas de ao ideolgicas que seriam seguidas
pelos artistas e escritores que estavam engajados na luta contra a colonizao.
No primeiro congresso (1956), as linhas de ao estavam se definindo em torno dos
intelectuais negros americanos, antilhanos, africanos e malgaches com forte presena dos
ideais marxistas. De acordo com Lylian Kesteloot, a presena de Josephine Baker no
Congresso seria uma representao da multiplicidade de temas que circularam entre os
intelectuais ali presentes, demonstrando que as questes culturais ainda estavam
essencialmente em pauta.19
Contudo, aponta-se que, durante esse congresso, as questes nacionais no estavam
ainda fortemente definidas e o debate literrio-cultural ainda estava em voga. Por isso,
percebe-se que o discurso direcionado estritamente ao nacional s se dar mais
explicitamente no Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros, em 1959.
Retomando a anlise da escritora e estudiosa do tema Lilyan Kesteloot, tm-se que
as bases deste primeiro encontro foram tratadas a partir de trs verdades fundamentais:
Que primeiramente no h povo sem cultura, que em segundo, no h cultura sem
ancestrais e que no h liberdade cultural autntica sem liberao poltica prvia .20
A anlise da locuo do martiniquenho Aim Csaire de suma importncia para
compreendermos parte do sistema assimilacionaista, porque ilustra a dificuldade em se ter
liberdade e condies propcias para produzir-se intelectualmente na metrpole.
Principalmente quando este afirma que um regime poltico e social que suprime a
autodeterminao de um povo, mata ao mesmo tempo o poder criativo deste povo. 21Ou
seja, neste contexto de formao de novas propostas para a questo colonial que
Sembne procurou engajar-se para tornar possvel a realizao de suas produes culturais
voltadas s transformaes poltico-sociais necessrias sua realidade.
Sembne e os escritores negros de 1959
18KESTELOOT, Lilyan.Histo ire de la Littrature Ngro-africaine, p. 214-215.19______. Histoire de la Littrature Ngro -af ricaine, p. 218.
20______. Histoire de la Littrature Ngro -af ricaine, p. 219.21CSAIRE, Aim. Culture et colonisation, p. 20.
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Certamente essa ambincia cultural foi percebida por Sembne, pois, Aim Cesire
j apresentara seu Discours sur le Colonialisme (1950), Frantz Fanon escrevera Pele Negra,
Mscaras Brancas(1952) e Lopold Senghor j circulava seus escritos, como o chamado Les
elements constitutifs dune civilization dexpression negre-africainede 1956. Provavelmente Sembne
teria acesso quelas publicaes e certamente inteirou-se da discusso sobre produo
cultural, racismo e valorizao dos aspectos de uma literatura negro-africana.
Cabe lembrar tambm que a FEANF (Federao dos Estudantes da frica Negra
na Frana) representou um papel importante na militncia anticolonial, incentivando os
estudantes negros a iniciarem as manifestaes polticas e aderir aos sindicatos. Nota-se que
a partir da anlise detalhada de grande parte das fontes trabalhadas, grande parte de
escritores que constituem o campo de reflexo sobre o tema da ngritudeexalta o papel das
influncias marxistas no perodo (incio da bipolarizao do mundo contemporneo) e
outras silenciam quanto ao posicionamento destas ideologias como resultado do
posicionamento de no alinhamento tomado por muitos pases africanos aps a
conferncia da Bandung (1955).22
Foram ainda instituies como a FEANF e o PCF (Partido Comunista Francs)
que incentivaram o Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros (1959), onde a
Prsence Africainede Alioune Diop continuava com a sua forma de aglomerar os intelectuaisengajados nas questes politico-culturais e, alm disso, onde a SAC (Sociedade Africana de
Cultura) possua um amplo espao de penetrao.
Atravs das anlises dos textos sobre o tema percebe-se que houve uma grande
movimentao transnacional dos escritores negros que transpunham os territrios coloniais
chegando s metrpoles, atingindo escritores que tambm eram simpticos ao tema da
emancipao dos povos africanos e suas produes artstico-literrias.
Neste momento, segundo Kesteloot, Ousmane Sembne acabara de escrever seu
Docker Noir e se aproximava intelectualmente de Frantz Fanon e de Albert Memmi que
tambm expuseram seus trabalhos em dilogos no segundo congresso. A questo de estar
engajado ou no foi um dos grandes debates das dcadas de 1950 em diante, onde foi
exposto que no era mais possvel escrever qualquer obra literria sem se tomar um
posicionamento claro.23
22KESTELOOT, Lylian, Histoire de la Littrature Ngro-africaine, p. 218-226.23______. Histoire de la Littrature Ngro -af ricaine, p. 226.
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Segundo o pensamento do filsofo estruturalista francs Jean-Paul Sartre: Se
tratava na maior parte do tempo de criticar uma poltica, de denunciar uma medida
arbitrria, de se posicionar contra um homem ou contra uma propaganda (...)24. Essa
afirmao faz referncia a defesa que o escritor francs faz de um papel de engajamento
quase intrnseco ao papel de todo intelectual e homem das letras. Faz-se importante refletir
em que medida essa noes foram compartilhadas pelos pensadores africanos como
Ousmane Sembne.
Desse modo, como aponta o filsofo francs, essa nova gerao intelectual possua
no s um compromisso com a esttica e com a arte em si, mas tinha conscincia de que
ela estava atrelada a um posicionamento poltico e que a questo colonial restringia e
limitava uma qualidade essencial da cultura: a liberdade. Na definio de Aim Csaire a
ideia de uma influncia do poltico sobre o cultural se impe como uma evidncia.25
O ltimo congresso antes dos processos de independncia (1959) foi importante
para essa intelectualidade africana emergente e, sobretudo, para Sembne, j que foram
colocados em pauta temas como a participao dos soldados senegaleses (tiraileurs), a
questo da unidade poltica e tantos outros assuntos referentes emancipao dos povos.
possvel que Sembne tenha se utilizado de alguns aspectos das crticas dos
escritores que fizeram parte do Movimento da Ngritude para elaborar suas obras26. Alm
disso, imagina-se que ele tenha melhor construdo toda a sua crtica civilizao francesa a
partir disto.
De maneira geral e prtica, a colonizao no havia como ser combatida sem um
projeto que propusesse uma construo ideolgica para a unidade do Estado. Por isso,
Sembne, com a sensibilidade de um artista e com o compromisso do engajamento do
escritor, retratou o processo de assimilao e como ele permanece incrustado na estrutura
scio-cultural de um Senegal ps-independente. Pelo menos o que fica demonstrado
amplamente em sua obra Le Mandat(escrito em 1966 e filmado em 1969).
O Mandatouma resposta herana deixada pela misso civilizadora
24 SARTRE, Jean-Paul. Quest-ce que la littrature? Paris: Editions Gallimard, 1948, p. 230. (traduo livre doautor)25CSAIRE, Aim. Culture et colonisation, p. 20. (tradu o livre do autor).
26LIAUZU, Claude. Histoire de lanticolonialisme em France: Du XVI e sicle nos jours. Paris: Armand Colin,Pluriel, 2007, p. 296-297.
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A estria de Le Mandat, de 1966, representa uma espcie de odisseia do personagem
principal diante das dificuldades de se firmar como cidado no contexto scio-poltico-
cultural do Senegal ps-independente. O filme de Ousmane Sembne retrata com vastido
as dificuldades de Ibrahima Dieng para conseguir retirar um vale postal do correio,
presente de seu sobrinho (Abdou) que estava trabalhando na Frana.
Dentre os inmeros questionamentos de Sembne, pode-se notar a relao com as
instituies, com o dinheiro e com as questes complexas de uma sociedade matrilinear e
fundamentada nas prticas islmicas.
A principal dificuldade de Ibrahima em conseguir a retirada do dinheiro do
sobrinho apenas um primeiro aspecto que demonstra inmeros questionamentos por
parte de Sembne, gerando um retrato bastante fiel da situao ps-independente para os
indivduos comuns da antiga frica Ocidental francesa.
Os problemas de Ibrahima permeiam o campo da moral, mas demonstram tambm
que h uma imensa dificuldade em agir de maneira igualitria naquela sociedade que
apresentada como dominada pela ambio do capitalismo e das instituies. Um grande
exemplo pode ser a fala do funcionrio dos correios, quando diz: Velho, no importa,
respondeu-lhe, pousando a mo sob Dieng. Sem foto, certido de nascimento e carimbo eu
no posso nada, deixe o lugar ao prximo.27
Nessa passagem do livro, percebe-se que a carteira de identidade era o que conferia
a cidadania a Ibrahima e quando tenta a retirada do vale postal, o personagem principal do
livro compreende a sua impossibilidade. Ao no possuir documento com foto (sua
identidade) ele no era realmente cidado, entretanto, Ibrahima possua somente o ttulo de
eleitor, o que lhe permitiria cumprir sua funo de deciso nas escolhas da poltica, nica
responsabilidade diante do Estado.
Ibrahima Dieng parece representado tanto na obra literria como na
cinematogrfica como algum que est parte na infraestrutura das instituies no Senegal
aps 1960, que sem identidade no pode existir perante as estruturas poltico-econmicas
que permeiam o mundo dos antigos sditos coloniais.28
27OUSMANE, Sembne. Le MandatPrcd de Vhi Ciosane. Ed. 1996, Paris: Prsence Africane, 2008, p.
133, (traduo livre do autor).28______. Le MandatPrcd de Vhi,p. 133.
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Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969
Gustavo de Andrade Duro
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 134
Esta reflexo pretendeu demonstrar que alm de criticar a burocracia ou a
dificuldade em lidar com as instituies presentes no capitalismo moderno, a obra de
Sembne, traa uma crtica da Assimilao Total adotada no Senegal durante o perodo
colonial, sobretudo a partir da departamentalizao dos Territrios da frica Ocidental
Francesa a partir de 1920.
Pode-se perceber a importncia deste conceito no sentido de que ele explicita um
sistema jurdico-administrativo planejado para o controle e a organizao dos territrios
coloniais. Nas palavras de Anna Maria Gentili: A Assimilao Total, baseando-se sobre o
princpio da igualdade de todos os homens, defendia que no existiam diferenas que no
pudessem ser superadas pela instruo e pela ao da misso civilizadora. .29
Sendo assim, pode-se inferir que a implementao dos mecanismos administrativos
dos colonizadores franceses foi uma forte herana deixada pela administrao colonial aos
antigos sditos que perceberam, consequentemente, o agravamento dos modos de excluso
em sua sociedade.
Pode-se perceber representado na obra de Sembne no s a crtica excluso do
capitalismo, mas tambm o retrato de uma sociedade que estava deficiente nos seus
aspectos morais e nas estruturas das organizaes sociais.
O autor de Le Mandatquer mostrar que as instituies esto corrompidas e que a
moralidade est se tornando um problema social. Por isso, a estria de Ibrahima contada
por Sembne merece destaque ao mostrar uma situao sociocultural ainda conturbada,
devido ao contato entre o antigo colonizador, a tradio e as prprias tentativas de se
compreender uma nova ordem social, neste novo contexto que apresentava mudanas
externas ao cidado comum.
Atravs da ltima frase do filme que est tambm presente na obra literria, A
honestidade um delito dos nossos dias30, v-se claramente que os valores morais foram
questionados em sua obra.
A saga de Ibrahima pode representar a decadncia dos valores morais na antiga
frica Ocidental Francesa, que alm dos problemas sociais e das questes do cotidiano em
frica, demonstram a ambiguidade de se herdar valores europeus. Ao mesmo tempo, a
29GENTILI, Anna Maria. Verbete Assimilao. In: BOBBIO, Norberto. Dicionrio de Poltica, v. 1, 12 ed.
Braslia: UnB, 2004, p.64.30OUSMANE, Sembne. Le MandatPrcd de Vhi, p. 189, (traduo livre do autor).
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representao do escritor senegals auxilia a compreenso das estruturas polticas e
institucionais do Senegal recm-independente.
Sembne pioneiro quando expe uma representao das dificuldades em ser de
fato cidado em meio a uma sociedade que apresenta uma estrutura j complexa, de
instituies, burocracias e signos pr-estabelecidos por uma lgica do mundo do trabalho e
do sistema capitalista. O sistema das instituies pode ser analisado como as imposies do
capitalismo que no apresentaram qualquer sistema lgico de valores morais na sociedade
senegalesa das dcadas de 1950 e 1960.
Fechando uma anlise e convidando ao dilogo
A presente reflexo buscou demonstrar uma representao de frica e dascomplicadas relaes coloniais no ps-independncia, onde Sembne ilustra elementos
fundamentais para as ponderaes acerca da Histria e do processo de contato colonial em
meados do sculo XX.
A manuteno das estruturas institucionais a principal crtica de Sembne e apesar
da possibilidade de escolha de outras obras (como Xala) para fundamentar a anlise, optou-
se por Le Mandat que permite estabelecer uma relao entre cinema, obra literria e a
Histria da frica. A epopeia de Ibrahima foi exemplar para a anlise da colonizaofrancesa e de como os escritores negro-africanos representaram-na.
A grande tarefa de Sembne como representante de uma elite cultual africana foi
demonstrar as ambiguidades do sistema assimilacionista que deixa uma herana de
dependncia e uma manuteno de um determinado complexo de inferioridade ao negro-
africano. Por outro lado, v-se a forte caracterstica de inovao na obra do cineasta
senegals, por realizar a projeo de uma ambincia scio-poltica e cultural (por sinal,
verossmil) em um perodo decisivamente importante para a frica contempornea.
Para no encerrar a anlise sobre a obra de Sembne, deve-se ressaltar que atravs
da leitura e pesquisa das obras literrias e cinematogrficas inicia-se uma construo de uma
Histria da frica que centraliza o humano e a sua importncia no tempo-espao do
continente africano. Nas palavras de Nzbatsinda:
Se por um lado, se preocupa em atribuir literatura africana sua funosociocultural, e ento, de suavizar a ruptura (com o pblico autntico)devido modernidade inerente escritura, e talvez, haja nisso tambm a
vontade de uma certa impossibilidade de representar ficcionalmente o
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Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969
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real, se ele necessita cada vez explicar e justificar as modalidades e asfunes desta representao.31
Por fim, a obra dos escritores negros de expresso francesa precisa ser mais
profundamente investigada e analisada pela historiografia como maneira de se perceberuma frica moderna, complexa e ainda repleta de ambiguidades.
Recebido em: 06/05/2013
Aprovado em: 15/07/2013
31 NZBATSINDA, Anthre. Le Griot dans le rcit dOusmane Sembne: entre la rupture et la continuitdune representation de la parole africaine, p. 871, (tradu o livre do autor).