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A André Gardel é ator e pesquisador, doutorado pela UFRJ. obra de Arnaldo Antunes vem trazendo para o universo da cultura de massas, de modo sistemático e com grande poder inventivo, elementos expressivos que fin- cam raízes em algumas das mais impor- tantes experimentações de vanguarda do século XX. Não que tais trocas, intercâmbios e livres usos não ocorram, com certa freqüência, entre essas instâncias culturais; antes, pelo contrário, podemos dizer que fazem parte de seus proces- sos constitutivos comuns, das origens à atuali- dade, particulares mesmo de suas configurações abertas e permeáveis. E, muito menos ainda, que outros artistas brasileiros tão inventivos quanto Arnaldo, dentro da música popular, no Brasil, não tenham feito semelhante aproxima- ção e interferência de códigos culturais. O que salta aos olhos e diferencia a sua produção multimídia, é a manutenção e continuidade, tanto de sucesso comercial quanto de experi- mento, de um esforço criativo cuja plataforma básica é desentranhar do lugar comum, o inco- mum; da informação redundante, inovação; do banal cotidiano, poesia; dos padrões de norma- lidade, estranheza. A produção de Antunes parece ser um desdobramento pop de linhas inventivas dese- nhadas pelo Concretismo. Parece apenas. O poeta paulista contemporâneo não é mais um epígono dos concretos; sua postura estética é, na verdade, pós-concreta, aponta para um novo rumo a partir do movimento, assim como os três líderes iniciais do concretismo renovaram- se seguindo caminhos posteriores particulares e revitalizantes. Mas a base é uma só: o instru- mental lingüístico e semiótico; a inserção da escrita ideogramática na escrita alfabética, que incorpora a estrutura analógica à lógica dis- cursiva ocidental, subvertendo sintaxes, núcle- os vocabulares; a pesquisa gráfica e caligráfica revitalizando o verbal; a contaminação multi- meios; a poesia visual de fundo cronstrutivista; a proesia; a busca isomórfica de significação en- tre signo verbal e referente, similaridades fônicas e ambigüidades semânticas etc. Base que é solo nutritivo para outras notas e atitudes entrarem e se desenvolverem. Tais posturas estéticas, embutidas na criação e divulgação da obra de Antunes, têm como meta o estabelecimento de uma verdadei- ra reeducação dos sentidos, realizando uma es- pécie de pedagogia da estranheza, ao tentaram diminuir o fosso existente entre experimenta- ção formal e comunicação ligada à indústria cul- tural. Isso se dá como uma continuação, em ba- ses globalizadas atuais, da diversidade de 223 A palavra-corpo e a performance poética palavra-corpo e a performance poética palavra-corpo e a performance poética palavra-corpo e a performance poética palavra-corpo e a performance poética em Ar em Ar em Ar em Ar em Arnaldo Antunes naldo Antunes naldo Antunes naldo Antunes naldo Antunes A ndré Gardel R4-A3-AndreGardel.PMD 15/04/2009, 08:26 223

palavra-corpo e a performance poética em Arnaldo AntunesAA palavra-corpo e a performance poética em Arnaldo Antunes 225 um estado de linguagem – primitivo, semiótico, performativo

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    André Gardel é ator e pesquisador, doutorado pela UFRJ.

    obra de Arnaldo Antunes vem trazendopara o universo da cultura de massas, demodo sistemático e com grande poderinventivo, elementos expressivos que fin-cam raízes em algumas das mais impor-

    tantes experimentações de vanguarda do séculoXX. Não que tais trocas, intercâmbios e livresusos não ocorram, com certa freqüência, entreessas instâncias culturais; antes, pelo contrário,podemos dizer que fazem parte de seus proces-sos constitutivos comuns, das origens à atuali-dade, particulares mesmo de suas configuraçõesabertas e permeáveis. E, muito menos ainda,que outros artistas brasileiros tão inventivosquanto Arnaldo, dentro da música popular, noBrasil, não tenham feito semelhante aproxima-ção e interferência de códigos culturais. O quesalta aos olhos e diferencia a sua produçãomultimídia, é a manutenção e continuidade,tanto de sucesso comercial quanto de experi-mento, de um esforço criativo cuja plataformabásica é desentranhar do lugar comum, o inco-mum; da informação redundante, inovação; dobanal cotidiano, poesia; dos padrões de norma-lidade, estranheza.

    A produção de Antunes parece ser umdesdobramento pop de linhas inventivas dese-nhadas pelo Concretismo. Parece apenas. O

    poeta paulista contemporâneo não é mais umepígono dos concretos; sua postura estética é,na verdade, pós-concreta, aponta para um novorumo a partir do movimento, assim como ostrês líderes iniciais do concretismo renovaram-se seguindo caminhos posteriores particulares erevitalizantes. Mas a base é uma só: o instru-mental lingüístico e semiótico; a inserção daescrita ideogramática na escrita alfabética, queincorpora a estrutura analógica à lógica dis-cursiva ocidental, subvertendo sintaxes, núcle-os vocabulares; a pesquisa gráfica e caligráficarevitalizando o verbal; a contaminação multi-meios; a poesia visual de fundo cronstrutivista;a proesia; a busca isomórfica de significação en-tre signo verbal e referente, similaridades fônicase ambigüidades semânticas etc. Base que é solonutritivo para outras notas e atitudes entrareme se desenvolverem.

    Tais posturas estéticas, embutidas nacriação e divulgação da obra de Antunes, têmcomo meta o estabelecimento de uma verdadei-ra reeducação dos sentidos, realizando uma es-pécie de pedagogia da estranheza, ao tentaramdiminuir o fosso existente entre experimenta-ção formal e comunicação ligada à indústria cul-tural. Isso se dá como uma continuação, em ba-ses globalizadas atuais, da diversidade de

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    AAAAA pa l av ra - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c a pa l a v r a - co rpo e a pe r fo rmance poé t i c ae m A re m A re m A re m A re m A rna ldo An tune sna ldo An tune sna ldo An tune sna ldo An tune sna ldo An tune s

    AAAAA ndré Gardel

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    interesses, discursos, interferências, culturas eritmos introduzidos pela Tropicália (por si só,já uma deglutição pop de proposições moder-nistas) na música popular brasileira, com umacriação que navega na confluência dessas instân-cias, enfrentando de modo plural e muito pes-soal o jogo artístico que se desdobra da dialéti-ca contemporânea entre novidade e tradição,estética culta e de massas.

    O movimento mais constante nessa pro-dução, com isso, é o de busca de uma possívelbrasilidade desterritorializante, desfolclorizante,modulada pelo intuito de “transformar o óbviono inesperado.”1 E este procedimento vai domicroestético ao macrocultural, se apresentan-do nas unidades mínimas significativas da ma-terialidade poética, na reconfecção arejante demáximas e ditos populares, nas suas propostasde diálogo artístico intersemiótico. Trata-se deum trabalho de desconstrução que se insinuacomo a contraface pós-moderna, reciclada, doespírito e olhar primitivistas das vanguardas.O frescor originário do “bárbaro tecnizado deKeyserling” (Andrade, 1978, p. 14). transmode-la-se nos olhos livres recriativos do estranhoacústico/ eletrônico massivo, atravessados pelodesejo interessado (no sentido mariondradino dotermo), mas não especializado, em produziruma “criação contaminada de vida, contami-nando a vida” (Antunes, 2000, p. 12) e que, aomesmo tempo, sofra a interferência de váriasáreas do saber.

    Em outras palavras, para efetuar sua pe-dagogia da estranheza poética na sociedade bra-sileira contemporânea de massas, Arnaldo exe-cuta, em sua práxis poética, um movimentosinestésico que se desborda em multicultura-lidade e multidiscursividade: códigos distintosvistos como mundos distintos inter-relacioná-veis, mundos distintos ouvidos como códigosassimiláveis, linguagem e vida interagindo em

    contágios incessantes, vários campos de conhe-cimento em trânsito, desviando seus sentidos,readquirindo força na migração poética, nainteração de noções na imagem. Tudo isso parainjetar estranhamento numa ambiência que,para funcionar, exige o já assimilado, o estável,a não-novidade, e, também, dialeticamente,para embeber positivamente de cotidiano múl-tiplo, diálogo, clareza, fluxo vital a complexida-de formal, o trabalho com a linguagem.

    Os meios expressivos de que Arnaldo seutiliza são diversificados e amplos: livros, dis-cos, shows e ações performáticas, trabalhos deartes plásticas, caligráficas, gráficas, poemasvisuais e digitais, instalações, intervenções.A multiplicidade dessa produção disponibilizaum variado espectro de possibilidades de recep-ção, que podem ocorrer, por exemplo, commegashows realizados para multidões, em gale-rias de arte, a partir de videoclipes e programasmusicais de tv, do uso artístico de objetos deconsumo, da visão de outdoors e outros espa-ços urbanos, em palestras e recitais em bienais,feiras de livros, escolas, centros culturais, em es-paços teatrais específicos para pequenas perfor-mances, na leitura silenciosa livresca, naambiência hipertextual da internet.

    Como se vê, Arnaldo estabelece um livretrânsito entre a indústria “major” e a “minor”,entre os espaços “cults” e “bregas”, oficiais e al-ternativos, entre o erudito e o popular, entre os“happy few” e a massa. E é justamente essa pos-tura transicional, de Hermes-Mercúrio multi-cultural e interartístico, que propicia o exercí-cio e ampliação do viés “pedagógico” de suaprodução, em essência, poética. Pois é a partirda potencialização das forças que tencionam apalavra poética, se distendendo e reverberando,de modo recorrente, em todos os meios de ex-pressão a que se dedica, que vem à tona seuideário último: a revitalização, multimídia, de

    1 Antunes, Arnaldo. Entrevista concedida a Marili Ribeiro, suplemento Idéias-Livros do Jornal do Bra-sil, 27/09/1997.

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    um estado de linguagem – primitivo, semiótico,performativo – em que nome e coisa, objeto esigno surgem como um único e mesmo fenô-meno pulsante. Num resgate de uma situação ede um momento originários em que a lingua-gem torna-se corpo e o corpo, linguagem.

    Dar corpo à palavra significa reinaugurá-la em sua materialidade, desinvesti-la de suafunção lógico-linear-discursiva abstrata, tãousual na tradição ocidental. Recuperar, por umlado, sua tactibilidade de signo verbal oriundode um espaço sensório vivo e, por outro, de sig-no plástico passível de reconfiguração gráfica ecaligráfica, pictórica e ideogramática. No pri-meiro caso, o que se entremostra é o aspectoperformativo e semiótico da palavra poética, es-tado ritual da linguagem em que o verbo emer-ge traspassado de fulgurações de ritmo, melo-dia, dança, gestos, modulações vocalizantes,silêncios, pausas, formas-força situacionais queaderem à palavra e fazem dela poesia, formamutante aberta a recriações incessantes. No se-gundo, para aplicar um choque poético, antiar-bitrário, involutivo na escrita alfabética, com ointuito de que esta possa trazer em si sua pró-pria significação, assim como os hieróglifos, sobordenamento paratático, em co-presença de sig-nos-coisa, articulando-se em fraseogramas ouatomizando-se em arranjos de morfemogramas,por exemplo.

    A proposta deste trabalho é abordar apoesia das performances de Arnaldo Antunes.O que significa falar, basicamente, dos instan-tâneos de sua obra em que seu corpo, como au-tor e ator de uma individualidade, impregna-sede presentidade poética; e, na mesma medida,dos momentos em que o verbo viajante da poe-sia se encontra mais preso à língua do corpo,isto é, nas suas vocalizações, no contexto rít-mico-melódico das canções ou na ambiênciacênico-espacial de suas ações performáticas.Tangenciando essas instâncias, a pedagogia daestranheza de Arnaldo Antunes parece encon-trar uma de suas regras rotativas fundamentais:a recuperação, no corpo e na linguagem, de umaexperiência originária humana, em clave mixed-

    mídia, de desobstrução e circulação inventiva dapercepção e dos sentidos, (re) vivida e cons-truída pelo performer, esse “mago semiótico”(Glusberg, 2003, p. 103), com o intuito de quereverbere no mundo, expandindo-se como ri-tual coletivo secular.

    A palavra corpórA palavra corpórA palavra corpórA palavra corpórA palavra corpóreaeaeaeaea

    Os desdobramentos corpóreos da palavra poé-tica se manifestam “por suas formas, suas ema-nações sensíveis, e não somente por seus senti-dos” (Artaud, 1984, p. 157). Pois, segundo PaulZumthor, “tudo se passa como se a poesia tives-se, entre os poderes da linguagem, a função deacusar o papel performativo desta” (Zumthor,2007, p. 46). E é justamente pensando a línguacomo performance que Diderot, em sua Cartasobre os surdos-mudos, cria o conceito de energiapara definir a especificidade da linguagem poé-tica, portadora da unidade original da natureza:

    “Por intermédio da sensação, diz ele, nossaalma percebe várias idéias ao mesmo tempo,que são representadas sucessivamente pelodiscurso. Se a sensação pudesse comandar vin-te bocas simultaneamente, as múltiplas idéiaspercebidas de modo instantâneo também se-riam expressas a um só tempo. Na falta des-sas bocas, ‘vincularam-se várias idéias a umasó expressão’” (Mattos, 2005, p. 22).

    Nessa concepção de poesia, a única formade restaurar a exuberância do eixo da simulta-neidade sensorial, submetido à sucessividade dalógica-lingüística, é o exercício de construção delinguagem sob a fórmula quanto “menos discur-so, mais energia”, com o verbal podendo ser re-duzido “a uma palavra, a um gesto ou mesmo aosilêncio total” (idem). Aqui, a estética do menososwaldiana, cabralina e concreta é levada ao ex-tremo performativo, chegando à dimensãoextraverbal na qual outros códigos e não-códigosvêm em auxílio do poético para que a imanta-ção corpórea não perca sua pulsação originária.

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    Desconstrução necessária em uma civili-zação como a Ocidental, fundada na idéia mo-derna de evolução científica, de novidade e deexcesso de informação, de sons e de imagensdescartáveis e exangues, na qual a revivescênciada entidade energética silêncio surge como vi-tal. E é por meio de uma trajetória regressiva,abordada a partir da história dos produtos ma-teriais inventados pelo ou próprios do homem,com palavras desierarquizadas definindo fases,para chegar aos primórdios dos tempos, que serevela na letra/ poema O silêncio, presente noCD do mesmo nome2 de Arnaldo Antunes:“antes de existir computador existia tevê/ antesde existir tevê existia luz elétrica/ antes de exis-tir luz elétrica existia bicicleta/ antes de existirbicicleta existia enciclopédia/ antes de existirenciclopédia existia alfabeto/ antes de existir al-fabeto existia a voz/ antes de existir a voz existiao silêncio/ o silêncio...”. O silêncio precisa serresgatado em meio ao mar de ruídos contem-porâneos, por ser “a primeira coisa que existiu”.A reeducação dos sentidos implicando na audi-ção regenerativa de “um silêncio que ninguémouviu”, no micro e macrouniversos, na vida ena morte, nas partes internas e externas dos se-res: “...astro pelo céu em movimento/ e o somdo gelo derretendo/ o barulho do cabelo emcrescimento/ e a música do vento/ e a matériaem decomposição/ a barriga digerindo o pão/explosão de semente sob o chão/ diamante nas-cendo do carvão...”. A letra termina com a vozpoética retornando aos dias de hoje, para pediratenção educada e apaixonada ao silêncio-signopresente/ ausente em tudo como fonte de ener-gia primal: “...vamos ouvir esse silêncio, meuamor/ amplificado no amplificador/ do este-toscópio do doutor/ no lado esquerdo do peitoesse tambor”3.

    Em sua obra de poesia vocalizada e deperfomance poética, Arnaldo Antunes ecoa demodos diversos as questões suscitadas por Di-derot. Mas uma imagem que dialoga com ametáfora do filósofo e dramaturgo francês, comares de afinidade eletiva, é a fotomontagem quefecha o livro Tudos (Antunes, 1993), em que opoeta aparece com um rosto sem olhos ou na-riz, composto só por quatro bocas superpostasaté à testa, todas com um leve sorriso saciado.Dentro da significação imediata sugerida pelolivro-conceito, a noção que a foto traz é a dedeglutição polifágica do mundo criado e domundo incriado, do mundo da natureza e domundo astrofísico, dos nadas e silêncios,de tudos discursivos refeitos em linguagemcontaminada, transdisciplinar e artística, duplodo universo em semiose infinita sob as leis pa-radoxais e reconfigurantes da poesia. No entan-to, se levarmos em conta a perspectiva dide-rotiana, podemos ler o poema visual de Antu-nes também como alegoria do corpo aliviadopor expor, de modo simultâneo, os tudos quesente e percebe sem recorrer à redução a uma sóvoz discursiva linear, emitida por uma só bocanão-poética.

    É o que podemos perceber na audição doCD que acompanha o livro 2 ou + corpos nomesmo espaço (Antunes, 1997) e que funcionacomo uma transleitura vocal de poemas oriun-dos de contexto gráfico-espacial. Tal procedi-mento é recorrente na obra do poeta, que se or-ganiza como um tipo de máquina lúdica quenão se esgota no modelo barroco, com poemascirculando com roupagens diferentes, em dife-rentes veículos expressivos, num jogo intratex-tual em que peças se alternam na produção po-rosa de significados. Contudo, na operação detradução intersemiótica em questão, verbivoco-

    2 Antunes, Arnaldo. O silêncio (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown). Encarte do CD O Silêncio, BMG/Ariola, 1997.

    3 Idem.

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    visual, Antunes acrescenta a essa dinâmica odado performativo específico do corpo. Se estejá aparecia nas subterrâneas manifestaçõesaction-paiting de traços gestuais e entonativosdeixados em poemas caligráficos (em Apenas;idem, p. 83), na tridimensionalidade da dobra-dura de páginas ocupadas por vocábulos emconstelação sintática espacial (em Transborda;idem, p. 72-3) ou, ainda, na dinâmica de folhe-ar para animar a grafia do verbo cinético (emQuerer; idem, p. 26 e 38), agora o corpo se re-vela verdadeiramente em sua fisicalidade, pormeio das vocalizações de 13 poemas do livro.

    A voz corpórea esplende ora de um tran-se encantatório de sibila, ora ressoa da costurarapsódica de vocábulos sob domínio rítmico-melódico da respiração, do pulso e da pausa.O uso do sampler e da programação eletrônicapermite ao telúrico da voz humana um desdo-brar-se timbrístico no espaço, uma alteraçãomultiplicada do mesmo. O resultado acústico-corpóreo-eletrônico desse efeito é o de uma câ-mara de ecos independentes, em que as varia-ções da voz única do performer soam como asemissões das muitas bocas que protagonizam alinguagem dos sentidos e das sensações do cor-po que as impulsiona. Dispõem-se sob confor-mação jogralesca, coral, instrumental vocálica,sem perder, contudo, a autonomia, não-aletóriaou indeterminante, e, sim, sob forte conceitua-ção experimental do régisseur, desenhando aambiência de cada composição.

    Para exemplificarmos a transcodificaçãodo corpo plástico para o performativo da voz,vamos nos deter na vocalização de Apenas. Trata-se de um poema visual-caligráfico que se afigu-ra como uma espécie de torre torta, negra, quesobressai do fundo branco da página. Erguidapor superposição de traços de escrita de vocá-bulos, sílabas e sintagmas que surgem, desdo-brados, da repetição da palavra apenas, a ima-gem da torre de ébano sugere uma ironia à torrede marfim parnasiana, como seu duplo malditoembriagado complementar, dessacralizando omito do poeta gênio isolado em pensamentosprofundos, por meio de uma das expressões

    emergentes do processo que é “apenas pensa”.Sobrepostos uns aos outros, numa escrita hori-zontal trêmula, os signos gráficos que prolife-ram da palavra título (pena/ pensa/ apenas/apensa/ a pena/ pen/ paz/ ás) vão, aos poucos,transmodelando-se em borrões, ao descerem navertical do alto para a base da suposta torre, de-senho disforme por ecoar na sua figuração aidéia da fumaça de um cigarro angustiado dequem pensa ou está queimando a mufa. O du-plo sonoro de Apenas apresentado no CD ébrevíssimo, com duração de apenas 42 segun-dos, o que faz lembrar, pelo mínimo grávido demáximo, o esquete sonoro-visual beckttianopós-catástrofe Respiração (Berrettini, 2004,p. 206), de apenas 35 segundos.

    As palavras surgem em volume baixo noarranjo vocal, parecendo vir de longe, em eco,como pensamentos, e vão aumentando até seestabilizar numa altura de duas vozes médias emchamada e resposta, que se alternam em umcompasso binário, estabelecendo o ritmo deuma andadura, de um corpo que anda e pensa.Contudo, se ligam pela consoante sibilante esse,que se prolonga, insinuando um pedido de si-lêncio para a pena do pensar com a cabeçaapensa ou, ainda, o sibilar da serpente, dona daárvore do conhecimento. Aos 26 segundos daperformance, uma voz grave, que puxa para ochão, atravessa as outras duas com notas lon-gas, lentas, vindo do fundo para frente, inicial-mente mais baixa e logo mais alta, como se di-minuísse o ritmo, parasse e fosse escrever à pena,viver a pena ou apenas viver. Os sintagmas quese constroem/ destroem na vocalização do poe-ma podem ser atribuídos a uma primeira ou ter-ceira pessoa, a um personagem pensando con-sigo ou a um narrador descrevendo a situação;a voz grave do final, que acaba por levar todas aum fade out, pode ser apreendida como a falaemitida pelo “eu” que pensa ou, talvez, a de maisum outro personagem, que chega e some...

    A idéia pessoana de multiplicação das re-flexões e refrações do espelho do ser em lingua-gem, prismada em poetas e obras poéticas, emvozes que saem do imaginário e invadem a vida,

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    surge reconfigurada em Arnaldo, presa de modointrínseco à construção do discurso verbal dealgumas de suas letras de canções. Em Fora desi, do CD Ninguém, no trecho “eu fico oco/ eufica bem assim/ eu fico sem ninguém emmim.”4, o uso do verbo na terceira pessoa, fica,inicia a trajetória de relacionamento do estra-nho com o outro e faz do eu ele, do criador cria-tura, do sujeito expandido romântico voz lacu-nar cabralina, do ser existencial linguagempoética, a partir da contribuição milionária detodos os erros oswaldianos. Por outro lado, aterceira pessoa materializa a saída de si, cristali-za a presença/ ausência do outro, e o ente nin-guém se torna o mesmo. Na verdade, como emO seu olhar, do mesmo CD, “o seu olhar seuolhar melhora/ melhora o meu”5, alteridade emesmidade atuam juntas na compleição do ser.Pois, em O Buraco, do CD Silêncio, “o buracoensina a caber/ a semente a não caber em si”6, ecaber em si pode ser ficar preso no Buraco doespelho, do mesmo CD, que não dá acesso aolado de cá, à comunicação com o mundo: “Mes-mo que me chamem pelo nome/ Mesmo queadmitam meu regresso/ Toda vez que eu vou aporta some”.7

    Nas canções de Arnaldo, a voz corpórea,em ambiência rítmico-melódico-instrumental-acústico-eletrônica, se faz notar, principalmen-te, nos momentos em que é usada no limite en-tre o canto e o berro, ou quando o poeta produzum grave profundo em suas performances vo-cais. O canto berrado de Antunes parece ema-nar de um corpo que confirma as palavras deArtaud sobre Van Gogh, quando diz que “é dalógica anatômica do homem moderno nuncater podido viver, nem pensado viver, senão pos-

    sesso” (Artaud, 2007, p. 41). Como exemplo,Nome, de CD de título homônimo, no qualencontramos ainda Se não se, Entre ou Arma-zém,8 que apresentam atitudes estéticas que sóreafirmam a sua pedagogia da estranheza. Ex-plícita, ainda, no grave cavernoso da voz a querecorre em canções como Desce, do CD O Si-lêncio ou No fundo, do CD Ninguém, que tra-zem o peso da gravidade de uma voz de tubafincando os pés no chão, em contraponto in-tencional e didático à padronização do gostopor canções que se deixam atravessar pelo vôode vozes agudas cortando os céus do universopopular-comercial.

    Performance poéticaPerformance poéticaPerformance poéticaPerformance poéticaPerformance poética

    Vamos abordar, agora, as performances poéti-cas de Arnaldo Antunes a partir de duas pers-pectivas básicas: em suas ações em shows ao vivoe videoclipes, quando o artista se movimenta aosom instrumental de uma banda de música po-pular, e em recitativos de poemas, situações emque ou atua sozinho ou divide seu trabalho comoutros performers. Contudo, em nenhum doscasos as formas suscitadas se dão de modo iso-lado, há sempre a presença simultânea de dife-rentes linguagens estabelecendo diálogos, ten-sões ou interferências intersemióticas.

    Estamos pensando aqui a performance, “oúnico modo vivo de comunicação poética”(Zumthor, 2007, p. 34), nas palavras do teóri-co suíço-canadense Paul Zumthor, como o mo-mento da obra do poeta paulista no qual o cor-po do próprio artista torna-se meio e suportede expressão. Com isso, a movimentação poéti-

    4 Antunes, Arnaldo. Fora de si (Arnaldo Antunes). Encarte do CD Ninguém, BMG, 19955 Idem. O seu olhar (Paulo Tatit/ Arnaldo Antunes).6 Idem. O Buraco (Arnaldo Antunes). Encarte do CD O Silêncio, BMG/Ariola, 1997.7 Idem. O Buraco do Espelho (Arnaldo Antunes).8 Idem. Músicas presentes no CD Nome, BMG, 1993.

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    ca de uma voz lírica que se quer “ligada a vocêpelo chão” (Antunes, 2002) parece, finalmente,mostrar-se na dinâmica de seu circuito inven-tivo pleno, sempre exercido com o intuito dedisseminar um ritual de reeducação dos senti-dos: rodando sobre o mesmo eixo – acionadopor associações inesperadas, similaridades, ana-logias, esbarros iluminadores, presença pela au-sência, afirmação pela negação –, para que o sig-no vire corpo e o corpo, signo.

    Esse corpo signo que “é para ser usado”,que sabe que “ver dá vertigem” pois tem “umolho na ponta de cada dedo”, produz uma “mú-sica subcutânea” em que “o som ecoa no céu daboca”; e entende, sob a luz de “cine-pensamen-to”, movido por “vento dentro/ in-vento”, que“o ar que contorna define a forma”, já que “ogesto é o principal”, na medida em que sente a“pele viva à flor da carne”, numa “sensação comsentimento dentro”, aprendendo, assim, que “odesejo comanda o desejo” e “a pele pede pele”.Portanto, um corpo performativo, com um re-pertório de conduta subjacente a uma poética ea uma subjetividade, que desmascara a funçãoreguladora cultural das atitudes convencionaispor ser “um demonstrativo dramático de ges-tos, adquirindo o estatuto privilegiado de en-frentar-se com o óbvio, o simples e o mais na-tural” (Glusberg, 2007, p. 90).

    Uma postura criativa reincidente na po-esia de Arnaldo, no ato de desentranhar poéti-co do não-poético, é a reconfecção de adágiospopulares, ao redesenhar sentidos nas frases-fei-tas, jargões, clichês, como se fossem massa demodelar. O nome do livro Psia (1986), segun-do o autor, é o feminino do ruído oral signifi-cativo psiu (Antunes, 1998, capa), e, também,

    corruptela da palavra poesia, o que só ratifica omergulho radical e lúdico na coloquialidade,uma das fontes modernas de sua poética. A fra-se que abre o livro é uma espécie de diálogo como bordão popular Quem com ferro fere, com fer-ro será ferido, colocado em xeque a partir damudança do tipo de metal que fere: “Quemcom ouro fere?”. A expressão Ponha a mão naconsciência, que chama a si quem perdeu a ra-zão por motivo qualquer, aparece revigorada emtom libertário na letra Consciência, do CD Nin-guém: “tire a mão da consciência e meta/ nocabaço da cabeça/ tire a mão da consciência eponha/ no buraco da vergonha...”9. Em Deci-da, do CD Um som, as expressões de situaçõeslimites Ou dá ou desce e é agora ou já, apareceminvertidas e reempenhadas: “...Decida/ Ou des-ce ou desce/ Ou dá ou dá/ Decida/ É agora oujá/ É agora ou já...”10. A máxima liberou geral,que usualmente tem o sentido popular de valetudo, de mundo às avessas das inversões carna-valescas, reconcebida na letra Macha Fêmeo, doCD O silêncio, vira “liberal gerou”11, sugerindoo significado politicamente (in) correto que omundo liberal propiciou à questão das sexuali-dades alternativas.

    Essa mesma postura criativa, de extrair oincomum do comum, se desnuda no uso docorpo de Antunes como suporte de umaindumentária, uma fisionomia e uma movi-mentação coreográfica híbridas, funcionandocomo manifestações de sua pedagogia da estra-nheza na configuração de uma imagem públi-ca, que mescla informações culturais contras-tantes. O seu traço fisionômico tradicional é ode um rosto imberbe, com olhos bem abertos,mais para o sério ou para o êxtase contido do

    9 Antunes, Arnaldo. Consciência (Edgard Scandurra/Arnaldo Antunes). Encarte do CD Ninguém, BMG,1995.

    10 Idem. Decida (Edgard Scandurra/ Arnaldo Antunes). Encarte do CD Um som, BMG, 1998.11 Idem. Macha Fêmeo (Paulo Tatit/ Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer). Encarte do CD O Silêncio, BMG/

    Ariola, 1997

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    que para o riso largo, com um corte exótico decabelo entre a rebeldia punk e o clean pragmá-tico. A dança que realiza surge nos rápidos ins-tantes em que não canta, e se assemelha a es-pasmos autômatos de um balé construtivistaclownesco, que se anuncia e não se configura,sugere um caminho para, de imediato, borrá-lo, indo para outro que também se deixa inter-romper antes de ser concluído e, assim, sucessi-vamente. Traz, nos dedos, anéis artesanais demetal, às vezes com outras sem grandes pedras,e usa pesados sapatos pretos nos pés, com designentre o coturno e o executivo. Seu figurino, nogeral, alterna-se entre as cores preta, branca ebege, vestindo ora quimonos, ora ternos formaiscom as mangas das camisas de baixo muito lon-gas e desabotoadas, que oscilam de acordo comseus movimentos impermanentes.

    Vamos nos deter, agora, em três ações es-pecíficas de Arnaldo Antunes em shows ao vivoe em videoclipes. A primeira é uma performan-ce em que letra e figurino dialogam na reflexãosobre o corpo como “campo de contradiçõessociais e políticas, e não apenas instrumento deexpressão cultural neutra” (Pavis, 2008, p. x).Trata-se da letra da canção Na massa, do CDParadeiro12, que Arnaldo canta, em shows, ves-tindo uma indumentária que se assemelha a umParangolé que tivesse sido concebido peloperformer mexicano Guilhermo Gomez-Peña,em parceria com o nosso artista plástico viden-te-esquizo-paranóico Arthur Bispo do Rosário...Como o Penetrável de Hélio Oiticica, ganhaforma-força expressiva não apenas revestindo ocorpo mas, principalmente, com a vivência doponteado contido/ expansivo da dança. Comoas assemblages/ environments do autor da per-formance/ instalação El Shame-man se encuentracom el Mexican’t y com la hija apócrita de FridaCola y Freddy Krugger em Brasil, o corpo é meiode veiculação de identidades e não-identidades

    em choques, tensões e contrafluxos intercultu-rais, transnacionais e multidiscursivos. E, porúltimo, como as obras trash de nosso gênio daColônia Juliano Moreira, os trapos e restos quecompõem o figurino usado pelo compositor re-velam, por meio do trivial e do lixo, a objectua-lidade e a vulnerabilidade não-hierarquizada doselementos quando em trânsito vida/ arte.

    O multiculturalismo pulsando no que aAntropologia chama de cultura material, cujoconhecimento traz o social para o âmbito dosensorial, aparece na personagem transnacio-nalizada, “anjo sem asa”, que “segue a moda deninguém”, “moda tem a sua só”. Misturandoinformações diversas, lixo reciclado, fantasia decarnaval, badulaques múltiplos, o poeta com-põe um tipo híbrido: “... roupa de princesa/ empele de plebeu...”, nas falas e nomes de coisas:“...vai de my cherri/ vai de mon amour.../ man-to de garrafa pet.../ óculos Ray-ban/ raios detupã...”, nas roupas: “...no corpo collant.../ ca-miseta de Che Guevara.../ de biquíni xale bataou avental.../ turbante importado/ lá de Bag-dá.../ México chapéu cabana.../ tanga demiçanga fina...”, nos apetrechos: “...jóia de bi-juteria/ lantejoula e purpurina.../ ou com lençode cigano.../ capacete de bacana.../ gargantilhano cangote.../ plástico metal/ árvore de natal...”,no corte de cabelo: “passa de cabelo moicano” enos movimentos: “...anda de abada/ dança obragada...”. Pele e roupa se confundem: “...usaa roupa da pele da/ roupa da pele da roupa...”,numa construção exterior que sugere a interiorao mesclar produtos arcaicos e high tech, vetoresdas relações sócio-culturais, procurando umaidentidade, uma diferença “na massa”, mas quetambém se desconstrói na medida mesmo emque “some na massa”13.

    A segunda ação performativa em que nosdebruçaremos é a do videoclipe Música paraouvir, canção do CD Um som, dirigido por

    12 ANTUNES, Arnaldo. Na massa (Davi Moraes/ Arnaldo Antunes). CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.13 Idem. Na massa (Davi Moraes/ Arnaldo Antunes). Encarte do CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.

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    Andrew Waddington e Toni Vanzolini; mais es-pecificamente, sobre uma imagem-corpo que seapresenta ao olhar no transcorrer do vídeo.Concebida em linguagem inaugural de “cifraótica” (Lehmann, 2007, p. 119) ou de uma“espécie de hieróglifo vivo para ser decifrado”(Fernandes & Guinsburg, 2008, p. 18), cujafunção é propiciar uma aventura heurística re-ceptiva que insira o leitor/ espectador na ativi-dade do tempo ritual da performance poética, acomposição de Antunes sugere as metamorfo-ses de percepção implícitas na dinâmica do cor-po-signo. O poeta surge dançando em passossaltitantes espasmódicos, braços esticados, todode preto, com um alto falante, um pouco mai-or do que o formato de sua cabeça, preso a elana altura do rosto. Tal ser-signo sugere que to-dos os sentidos e suas potências de conforma-ção de linguagem, à exceção da audição, irmã-ímã do canto, encontram-se transcodificados,trazendo junto suas especificidades latentes, noato de vocalização corporal rítmico-melódico-instrumental, filtrada, modificada e ampliadapela tecnologia, simbolizada pelo alto falante.Esse corpo híbrido subjetivo/ objetivo que atra-vessa, meio gauche, o cenário do clipe, pode serentendido como a figuração da produção musi-cal do performer, em viagem auto-expressiva desua estranheza última, em pleno universo main-stream da indústria da música de massas.

    A terceira performance é a que Arnaldorealiza no videoclipe Essa mulher, música do CDParadeiro14. A letra da canção, que tematiza asações no clipe, aborda a manutenção do desejomasculino mesmo sendo desprezado pela mu-lher: “ela quer viver sozinha/ sem a sua compa-nhia/ e você ainda quer/ essa mulher”, que “temum travesseiro mais macio/ do que o seu braço/e um acolchoado muito mais/ quente que o seuabraço”. O que salta à vista são os bonecos, fan-toches, títeres, marionetes, manequins, mamu-lengos, de diferentes formas e tamanhos, que seespalham pela casa, junto com inúmeros pro-dutos industriais selados com a imagem do can-tor (batom, almofada, colher de pau, marcadorde livro etc), que está em cena, cantando, sem

    ser notado, assim como todos esses outros obje-tos, pela atriz que faz a personagem sugerida pelaletra. No final da encenação, o performer, ves-tido e caracterizado de boneco de pano, coreo-grafa uma dança patética, chapliniana, pois nãoconseguiu se fazer notar e ser companhia daque-la mulher.

    Para Kleist, o duplo da marionete adqui-ria um contorno romântico de figura de funda-ção para o mundo da arte, do qual vontade econsciência, características intrínsecas ao ho-mem, ente preso às leis da natureza, deveriamser abolidas para que se pudesse chegar ao en-cantamento e à beleza, fim próprio de uma cria-ção intelectual artística. Para Craig, como modode extrair da cena o mimetismo e recuperar asorigens sagradas da encenação, é necessária aincorporação da figura enigmáticas da superma-rionete, “descendente dos antigos ídolos de pe-dra dos templos”, “imagem degenerada de umDeus” (Craig, 2003, p. 166); não para rivalizarcom a vida, mas para ir além dela, figurandoum outro modo de presença do corpo huma-no, “em estado de êxtase” (idem, p. 167). ParaTadeusz Kantor, “os bonecos são algo como aessência primordial e esquecida do ser humano,seu Eu-lembrança que ele continua a levar con-sigo” (Lehmann, 2007, p. 121), duplo do ator/performer inaugural, um rebelde e herege porexcelência, que ousou se desvincular da sua co-munidade de culto, para retornar trazendo aexperiência da morte para o mundo dos vivos;daí seu Teatro da Morte, que faz do manequimpresença constante, por ser a figuração recorren-te deste instante arcaico originário da arte.

    No videoclipe de Arnaldo Antunes, oabismo entre homem e coisa é relativizado edesfuncionalizado. E a troca, a comunicação, acirculação, o diálogo se dá, antes, entre objeto eser humano, pois ambos, após serem tragicomi-camente desprezados, acabam como joguetes dodestino da mulher-deusa autônoma. E, no final,terminam por revelar sua mesmidade inerentefundamental: o corpo-signo-mamulengo-clowndançante, duplo grotesco pop tanto de um “es-tado de êxtase” primal, quanto metáfora da

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    morte vital artística do ator/ performer arcaico,pré-moderno, que retorna, costeando a moder-nidade, em pleno universo globalizado da cul-tura de massas informacional contemporânea.

    Podemos detectar as origens da perfor-mance nas seratas futuristas e dadaístas, nasexperimentações da Bauhaus e do BlackMountain College, na action-paiting, nohappening, na live art, no movimento Fluxus ena body art. Em Antunes, em seus recitativosperformáticos, em suas performances intermí-dias, elementos pinçados dessas propostas sur-gem sob a batuta multidiscursiva do performer-régisseur. Em interação comunicativa direta,com consciência de presença, o poeta canta/ re-cita sua palavra corpórea, na intersecção de mo-vimentos gestuais, enquanto são apresentados,simultaneamente, vídeos, slides, vídeoperfor-mances, performance plástico-caligráficas, sonsde sua própria voz pré-gravados, alterados emanuseados no aparelho para intervenção emsuas vocalizações pelo próprio Arnaldo, emis-sões de sons eletrônicos pontuais e ambientaisexecutados por outros performers convidados.

    A primeira experiência marcante de Arnal-do Antunes com a performance veio de sua par-ticipação, em fins dos anos setenta, na Aguilar ea Banda Performática. Criada e concebida peloartista plástico José Roberto Aguilar, agregavapoetas, dançarinos, atores, pintores em perfor-mance musical. Nas palavras do líder da banda,podemos apreender as bases do que será desen-volvido posteriormente por Arnaldo Antunes:

    “Eu não sou músico, sou pintor. Mas nadame impede de ser band-leader da BandaPerformática, porque atrás dela existe sem-pre um discurso sobre as artes plásticas, mascomo um conceito ou metalinguagem dorock. Minha banda é uma legião estrangeirade linguagens pois se serve de vídeo, dança,

    teatro, artes plásticas...Mas eu não quero queela seja diferente das outras bandas, porque,no fundo, é uma banda de rock. Minha ban-da é pintura. Muda a linguagem, mas o con-ceito é sempre o mesmo” (Aguillar, 1984).

    No recitativo performático da canção“Inclassificáveis”15, do CD O silêncio, que Ar-naldo Antunes realizou no auditório da Sociescde Joinville, em 29 de agosto de 2008, dentroda “V poesia em cena”, o poeta canta ao micro-fone, todo vestido de preto, segurando folhasde papéis na mão, acompanhado apenas pelosom sintetizado de Marcelo Jeneci, com ima-gens múltiplas se alternados ao fundo, numatela. As linguagens se organizam por justapo-sição e superposição, sem sucessão, fusão outransição, num simultaneísmo com instantesocasionais de diálogo entre voz/ som eletrônicoe as imagens plásticas em movimento (do tipochamado/ resposta rítmica, com alternânciavaga-lume da luz à pulsação dos acentos da mú-sica), e outros momentos de autonomia dos có-digos. As imagens passam por diferentes reinos,do natural, com a aparição de um peixe ver-melho no aquário, ao arquitetônico, com a vi-são angular de uma igreja iluminada vista doalto à noite, para finalizarem-se com formas ge-ométricas azuis em fundo negro, se alterandoem número de elementos e composição abstra-ta formal.

    A letra aborda a revitalização criativa domodelo étnico-cultural crioulo, a partir de lei-turas não-hifenizadas de nossa cultura, comArnaldo Antunes concebendo nosso universocultural como desierarquizado, assistemático,rebelde e vital. O poema cantado/ recitado ini-cia com perguntas indignadas, em resposta auma possível afirmação de nossa etnia a partirdo mito das três raças: “Que preto, que branco,que índio o quê?/ Que branco, que índio, que

    14 Antunes, Arnaldo. Essa mulher (Arnaldo Antunes). CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.

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    preto o quê?/ Que índio, que preto, que brancoo quê?/ Que preto branco índio o quê?/ Brancoíndio preto o quê?/ Índio preto branco o quê?”Utilizando-se dos procedimentos barrocos dapergunta iniciativa, de simetria e de máquinacomposicional lúdica do poema, a voz poéticasugere que a ordem dos fatores e suas insinuan-tes hierarquias não modificam o produto racialinclassificável da cultura brasileira. Que em suadinâmica e abertura de fluxos contínuos, pren-de e solta tipos e raças, como as palavras-valisede que se utiliza para expor a miscigenaçãoconstante, numa expressiva superposição lin-güístico-cultural: “Aqui somos mestiços mula-tos/Cafusos pardos mamelucos sararás/ Cri-louros guaranisseis e judárabes/ Orientupisorientupis/ Ameriquítalos lusos nipocaboclos/Iberibárbaros indo ciganagôs/ Somos o que so-mos/ Inclassificáveis”16

    No refrão, a série de ambigüidades conti-das no termo que nomeia a canção (Inclassi-ficáveis) se entremostra para (in)definir nossabrasilidade: “Não tem um, tem dois/ Não tem

    dois, tem três/ Não tem lei, tem leis/ Não temvez, tem vezes/ Não tem deus, tem deuses/ Nãotem cor, tem cores/ Não há sol a sós”. O tira ebota dos sintagmas – tem/ não tem – constrói adinâmica da dialética barroca, na qual a dife-rença se resolve em oposição, esta em simetriae, por fim, em nova identidade na qual o mes-mo vira outro. Assim, descreve nossa recon-fecção das leis oficiais em favor das leis quesurgem no dia-a-dia das comunidades, comaplicação prática na vida em detrimento de nos-sa abstração doutoresca; nossa multiplicidadegradativa de tons e cores raciais e/ ou naturais;nossa pluralidade de possibilidades religiosas emíticas em sincretismo negociante, em duploexpansivo: “não tem vez/ tem vezes”17. A am-bivalência fonética do verso final do refrão traznova reverberação espelhada, guardando, porum lado, a possibilidade de leitura de todo tipode sol, negro inclusive (não há sol, há sóis) e,por outro, a força solar que só brilha em nossainevitabilidade agregante rotativa última (nãohá sol a sós).

    15 Antunes, Arnaldo. “Inclassificáveis” (Arnaldo Antunes). CD O Silêncio (BMG/Ariola, 1997).16 Idem.17 Idem.

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    RESUMO: Abordagem da obra de Arnaldo Antunes sob a perspectiva da poesia de suasperformances, nas vocalizações e outras manifestações criativas. De como o autor, por meio de umaprodução que prima por impregnar de imprevisto o clichê e o automatismo da informação massiva,se empenha em trabalhar com a materialidade da linguagem em diferentes instâncias midiáticas eexpressivas. Proposta que leva a uma pedagogia inventiva da estranheza, tanto por resgatar, nacontemporaneidade high tech da arte, uma experiência originária humana de circulação desobstruídada percepção e dos sentidos, quanto por tentar diminuir o fosso entre experimentação estética ecomunicação de massas.PALAVRAS-CHAVE: Poesia e música popular. Performance. Jogo intersemiótico e multidiscursivo.Pedagogia da estranheza. Transculturalidade.

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