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A CRÍTICA E AS ARTES dossiê 55 número 1 volume 1 maio 2013 celeuma  e stabelece paralelos entre o conceito de monumento derivado da litera tura de Robert  Musil, obr as em prosa de Nuno Ramos e tra balhos de Eduardo Frota Robert Musil, autor de Der Mann ohne Eigenschafen (O homem sem qualidades ), escreve uma espécie de dicionário crítico nos relatos que compõem o pequeno  volume intit ulado Nachlass zu Lebzeiten (Obra póstuma publicada em vida). Um desses relatos, de uma parte do livro chamada de “Considerações inamistosas”, chama-se “Monumentos”. Musil arma um problema de perquirição em torno do termo e abre uma série de extensões ao sentido: numa delas diz categórico que ninguém os nota, porque “não há no mundo inteiro nada tão invisível quanto os monumentos.”[1] Esta ideia de monumento, me parece, remete também a um modo de uso e operação da palavra em torno de uma história monumentalizada que insiste numa monopolização da memória, porque a palavra é também erguida para ser vista, para despertar a atenção a algo, em algo, com algo, a palavra é o que chama, é o que convida algo a existir. Completa Musil que os monumentos foram erguidos, sem dúvida, para ser vistos ou, mais categoricamente, para despertar a atenção; revestem-se simultaneamente de algo que vai de encontro à atenção, a qual, obediente, escorre por eles como gotas de águ a sobre uma camada de azeite, sem se deter um só instante. [2] É possível pensar que a palavra assume um dizer, a forma de uma força, aquilo que a encarna e que ela encarna, exatamente porque se modula num movimento ambivalente entre o que desperta a atenção e o que vai de encontro à atenção, entre o que erige um monumento e o que, ao mesmo tempo, pode desmanchá-lo, lançá-lo ao chão e apagá-lo. O poeta/artista visual Nuno Ramos, por exemplo, que tem esticado o seu trabalho do suporte de um espaço na geometria escalonada da arquitetura de galerias e instituições até o suporte sosticado que ainda é o 1. MUSIL,Robert. O melro e outros escritos de obras póstumas publicadas em vida . Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: Nova Alexandria, 1996, p. 48. 2. Id., ibid . EDUARDO FROTA, NUNO RAMOS : PALAVRA E MODOS  DE USO* *outra versão deste ensaio foi publicada na revista  poiesis , do programa de pós-graduação em ciência Da arte da universidade federal uminense, u– n. 18 - ano 12 - dezembro 2011.

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 55nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 estabelece paralelos entre oconceito de monumento derivado da literatura de Robert Musil obras em prosa de Nuno Ramos e trabalhos deEduardo Frota

Robert Musil autor de Der Mann ohne Eigenschafen (O homem sem qualidades)escreve uma espeacutecie de dicionaacuterio criacutetico nos relatos que compotildeem o pequeno

volume intitulado Nachlass zu Lebzeiten (Obra poacutestuma publicada em vida) Um

desses relatos de uma parte do livro chamada de ldquoConsideraccedilotildees inamistosasrdquo

chama-se ldquoMonumentosrdquo Musil arma um problema de perquiriccedilatildeo em torno do

termo e abre uma seacuterie de extensotildees ao sentido numa delas diz categoacuterico que

ningueacutem os nota porque ldquonatildeo haacute no mundo inteiro nada tatildeo invisiacutevel quanto os

monumentosrdquo[1] Esta ideia de monumento me parece remete tambeacutem a um

modo de uso e operaccedilatildeo da palavra em torno de uma histoacuteria monumentalizada

que insiste numa monopolizaccedilatildeo da memoacuteria porque a palavra eacute tambeacutem erguida

para ser vista para despertar a atenccedilatildeo a algo em algo com algo a palavra eacute o quechama eacute o que convida algo a existir Completa Musil que os monumentos

foram erguidos sem duacutevida para ser vistos ou mais categoricamente

para despertar a atenccedilatildeo revestem-se simultaneamente de algo que vai de

encontro agrave atenccedilatildeo a qual obediente escorre por eles como gotas de aacutegua

sobre uma camada de azeite sem se deter um soacute instante[2]

Eacute possiacutevel pensar que a palavra assume um dizer a forma de uma forccedila aquilo

que a encarna e que ela encarna exatamente porque se modula num movimento

ambivalente entre o que desperta a atenccedilatildeo e o que vai de encontro agrave atenccedilatildeoentre o que erige um monumento e o que ao mesmo tempo pode desmanchaacute-lo

lanccedilaacute-lo ao chatildeo e apagaacute-lo O poetaartista visual Nuno Ramos por exemplo que

tem esticado o seu trabalho do suporte de um espaccedilo na geometria escalonada da

arquitetura de galerias e instituiccedilotildees ateacute o suporte sofisticado que ainda eacute o

1 MUSILRobert O melro e outros escritos de obras poacutestumas publicadas em vida Trad Nicolino Simone Neto

Satildeo Paulo Nova Alexandria 1996 p 48

2 Id ibid

EDUARDO FROTA NUNO RAMOSPALAVRA E MODOS DE USO

outra versatildeo deste ensaio foi publicada na revista poiesis do programa de poacutes-graduaccedilatildeo em ciecircncia Da arte dauniversidade federal fluminense uff ndash n 18 - ano 12 - dezembro 2011

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livro[3] sem perder de vista que um trabalho eacute tambeacutem o outro que este outro eacute tambeacutem um

mesmo procura indicar que toda obra de arte eacute feita de nosso horror como sugere Michel

Deguy e que toda palavra eacute Dichtung o dizer um dizer um ter a dizer um dizer aquilo

que resta etc Assim eacute possiacutevel pensar que os modos de uso da palavra podem ser tomados

como vetores que saem do sentido espremido da representaccedilatildeo para sugerirem-se ao mundo

como um objeto uma interdiccedilatildeo como ldquoassociaccedilotildees disjuntivasrdquo uma ldquoextensatildeo da fendardquo

ou ldquointervenccedilotildees extensivasrdquo (estas expressotildees satildeo do artista Eduardo Frota e datildeo tiacutetulo a

algumas de suas exposiccedilotildees)[4] mas tambeacutem sempre como peccedilas de poder No trabalho

de Eduardo Frota outro exemplo a palavra natildeo comparece senatildeo nos tiacutetulos que abrem ndash

por sua vez ndash articulaccedilotildees singulares mas tambeacutem ambivalentes eou redundantes o que

eacute interessantiacutessimo ainda mais se pensarmos que o trabalho de Eduardo Frota se constitui

em torno de uma linha da imaginaccedilatildeo do corpo para o corpo e com o corpo Esta eacute a sua

poliacutetica Uma linha que vem da tentativa de ler uma etnografia da origem de nossa cultura

quase nacional mas tensionada tambeacutem em direccedilatildeo ao poema moderno sem o verso mas

com o uso de uma ideia da linha E aiacute tanto faz se com Joatildeo Cabral de Melo Neto (a linha

curta e irrespiraacutevel a linha longa e irrespiraacutevel) ou se com Manuel Bandeira (a linha longa e

aberta a linha curta e aberta quando a prosa natildeo coincide mais com o romance mas sim e

tambeacutem com o poema)

Esta oxigenaccedilatildeo da forma este gesto de levar a forma a sua exaustatildeo ou de elaborar uma

fratura no sentido por meio da proacutepria fratura (como a leitura que Rauacutel Antelo faz da

literatura de Oswald de Andrade por exemplo) satildeo apontamentos que provocam uma

exasperaccedilatildeo do sentido Note-se que os trecircs primeiros livros[5] de Nuno Ramos se intitulam

com escavaccedilotildees ao diabo Cujo (aquilo que natildeo se pode dizer o nome) O patildeo do corvo (a

comida para o paacutessaro preto o delator e muitas vezes o nome improacuteprio do urubu) [6] e Oacute

(uma invocaccedilatildeo e tambeacutem o ciacuterculo eliacuteptico e santo e se extremo tambeacutem eroacutetico armado

por Padre Vieira no Sermatildeo de Nossa Senhora do Oacute) ou seja ao mesmo tempo o natildeo-sei-

3 Basta ver a primeira ediccedilatildeo de Cujo (1993) o primeiro livro de Nuno Ramos feito com papel biacuteblia especial e transpar-ente a capa em Coucheacute Reflex Matte com 150 exemplares numerados e assinados por ele O conceito e o procedimento datransparecircncia denunciam um caraacuteter fundamental desse livro como uma zona de contato em torno da palavra como superiacutecie e interiacutecie Haacute ainda outra ediccedilatildeo do mesmo livro pela Editora 34 mesmo ano feita de forma mais simples e padratildeo para sercomercializada e obviamente com o desaparecimento dessa questatildeo

4 Eduardo Frota tem usado esses tiacutetulos como um desdobramento do corpo desejoso e alucinatoacuterio que ele persegue paratensionar a histoacuteria da arte e algumas questotildees em torno do pensamento da arte no Brasil assim repete insistentemente comose fossem termos de composiccedilatildeo e os rearma outra vez como vertigem sem parar construindo assim seacuteries numeradas detrabalhos para exposiccedilotildees diferentes Como por exemplo a exposiccedilatildeo realizada no ano 2000 no Torreatildeo em Porto Alegre quese intitula ldquoEspaccedilo e SentidoIntervenccedilotildees Extensivasrdquo que faz parte da seacuterie Intervenccedilotildees Extensivas ou a exposiccedilatildeo intituladaldquoIntervenccedilotildees em Tracircnsitordquo realizada no MAM do Rio de Janeiro em 2006 que faz parte da seacuterie homocircnima

5 Optei por natildeo incluir o quarto livro de Nuno Ramos O mau vidraceiro (Satildeo Paulo Globo 2010) porque nesse momento olivro natildeo me parece ainda articular os problemas que me interessam pensar aqui nesse texto

6 Na 29ordf Bienal de Satildeo Paulo Nuno Ramos expocircs um trabalho intitulado Bandeira Branca com trecircs urubus vivos e engaio-lados junto a trecircs enormes esculturas de areia preta aparentemente fraacutegeis com caixas de som de onde se ouvia as canccedilotildees

ldquoBandeira Brancardquo ldquoBoi da Cara Pretardquo e ldquoCarcaraacuterdquo Este trabalho rendeu uma seacuterie de questionamentos quase absurdos e umcorajoso e convicto texto de Nuno Ramos na Folha de Satildeo Paulo [Caderno Ilustriacutessima 17102010] em resposta aos abusos dapalavra fraacutegil contra o seu trabalho e seu projeto poliacutetico em torno de um pensamento para a arte

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que-diga o natildeo o sem o catildeo aquilo que natildeo sabemos uns furos no saber etc

Ficamos diante de um trabalho que propotildee um pensamento em torno da palavra

que natildeo pode ser dita a palavra proibida que eacute toda ela apenas invocaccedilatildeo de uma

lembranccedila solta e diaboacutelica mas tambeacutem da palavra que eacute tiacutetulo cabeccedilalho lugar

da atenccedilatildeo exposiccedilatildeo e deriva do sentido

Seguindo Musil ainda lembra que haacute monumentos vigorosos e outros que ainda

satildeo a expressatildeo de um pensamento e de um sentimento vivos mas que o ofiacutecio

de grande parte dos monumentos comuns eacute sem duacutevida o de invocar uma

lembranccedila ou de chamar a atenccedilatildeo Ou seja Musil natildeo capitula porque para ele

ao chamar a atenccedilatildeo o monumento se daacute a ver na impressatildeo de um sentimento

piedoso numa crenccedila de que eles satildeo de alguma forma necessaacuterios E aiacute completa

eacute que o monumento fracassa que ele afugenta aquilo que deveria atrair

Impossiacutevel dizer que natildeo os percebemos deveriacuteamos dizer isto sim que nos

passam despercebidos que escapam aos nossos sentidos eacute uma qualidade

totalmente positiva que tende para o ato de violecircncia

Ora para isso haacute uma explicaccedilatildeo possiacutevel por certo Tudo que eacute duradouro

perde seu poder de impressionar Tudo o que constitui as paredes de

nossa vida ou por assim dizer os cenaacuterios de nossa consciecircncia perde a

capacidade de representar algum papel dentro dessa consciecircncia Ao cabo

de poucas horas deixamos de ouvir o barulho incocircmodo e permanente Os

quadros pendurados nas paredes em poucos dias satildeo absorvidos por elas eacute

muito raro que algueacutem pare diante deles para admiraacute-los Livros lidos pela

metade e dispostos entre as magniacuteficas fileiras de volumes da biblioteca

nunca mais voltaratildeo a ser lidos ateacute o final De fato agraves pessoas sensiacuteveis basta

a aquisiccedilatildeo de um livro cujo iniacutecio lhes agradou e elas nunca mais voltaratildeo

a tecirc-los nas matildeos

[]

Quando temos as melhores intenccedilotildees para com os monumentos eacute inevitaacutevel

que cheguemos agrave conclusatildeo que eles em contrariedade com a nossanatureza nos apresentam uma reivindicaccedilatildeo legiacutetima cujo cumprimento soacute

se daraacute em estabelecimentos muito especiais Seria um crime se quiseacutessemos

adaptar as placas de aviso para caminhotildees de uma forma tatildeo discretamente

monocromaacutetica como a dos monumentos Ateacute as locomotivas produzem

sons estridentes e desconcertantes e mesmo agraves caixas de correio damos uma

cor atrativa Numa palavra os monumentos assim como noacutes deveriam se

esforccedilar um pouco mais[7]

7 MUSIL Robert O melro e outros escritos de obras poacutestumas publicadas em vida Trad Nicolino Simone NetoSatildeo Paulo Nova Alexandria 1996 p 49 e 50

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A palavra pois se um monumento comparece como um apontamento de nosso

fracasso de nossa falta de esforccedilo com a linguagem ndash a linguagem eacute o lugar da

atenccedilatildeo disse Blanchot ndash de nossa situaccedilatildeo sempre desesperadora quando a

prosa cai onde e para onde cai a prosa por exemplo Porque eacute diante da palavra

que nos postamos ao cruzar com os carreteacuteis enormes ou com longos tubos fura-

mundo e desangulados de Eduardo Frota esta linha invisiacutevel de uma escultura

depois do verso que constitui qualidades de intervenccedilatildeo desagregadoras e

natildeo apenas expositivas mas sugerindo outra ldquotopologia simboacutelica do espaccedilo

expositivordquo com ldquobrechas atravancamento amontoado distanciamentos vazios

viscosidade o escorregadio ou inclinaccedilatildeordquo[8] O que nos resta nesse tempo de

iacutenterim de espera sempre eacute dizer o que resta Ficamos entre o que se diz e o

que se compreende do objeto entre o que se diz e se escreve do objeto quando

o que se diz e o que se escreve e o que se compreende eacute o objeto que temos Para

Benjamin isto seria a semelhanccedila imaterial da linguagem Rauacutel Antelo chama

atenccedilatildeo que toda ideia da significaccedilatildeo que procura armar um saber histoacuterico

efetivo vem primeiro como um vazio diz ele que todo valor ao se construir como

um quebra-cabeccedilas de peccedilas alheias numa loacutegica dispersiva inscreve-se na ordem

do acaso

Esta loacutegica dispersiva inscrita no acaso se natildeo eacute um procedimento de trabalho

eacute ao menos o monturo das narrativas como um problema filosoacutefico que Nuno

Ramos procura em seus trecircs primeiros livros No primeiro deles por exemplo

Cujo todo composto de fragmentos de anotaccedilotildees dispersas e ao leacuteu numa

compoacutesita de linhas curtas e irrespiraacuteveis linhas longas e irrespiraacuteveis linhas

curtas e abertas linhas longas e abertas quando a prosa natildeo coincide mais com

o romance mas sim e tambeacutem com o poema como um poema o pequeno

fragmento inicial aponta para um ato um gesto um mover-se do corpo em

direccedilatildeo ao vazio da atenccedilatildeo com a linguagem quando sugere que

Pus todos juntos aacutegua alga lama numa poccedila vertical como uma

escultura costurada por seu proacuteprio peso Pedaccedilos do mundo [palavrasprincipalmente palavras] refletiam-se ali e a cor dourada desses reflexos

dava uma impressatildeo intocada de realidade O som horriacutevel de uma serra

saiacutea de dentro da poccedila e completava o ritual como uma promessa [pela qual

eu esperava atento] que fosse conhecimento e revelaccedilatildeo Foi entatildeo como

se suasse que algumas gotas apareceram em sua superfiacutecie e escorreram

primeiro lentas e depois aos goles numa asfixia movediccedila que trouxe o

interior agrave superfiacutecie e desfez em pedaccedilos a suspensatildeo e a paralisia E feita

8 HERKENHOFF Paulo ldquoTexto criacuteticordquo In FROTA Eduardo Cataacutelogo Intervenccedilotildees extensivas X Vila VelhaMuseu da Vale do Rio Doce 2006 p 18

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dossiecirc 59nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

sujeira aos meus peacutes era um lamento do que eu tinha visto e perdido[9]

Satildeo esses pedaccedilos do mundo de mundo e no mundo as palavras que ndash no

trabalho de Nuno Ramos ndash aparecem numa fulguraccedilatildeo de seu uso como a

constituiccedilatildeo de uma pele Uma pele que eacute tambeacutem transparecircncia quando o

sentido escorre numa superfiacutecie sem fundo e infinita ateacute tentar esmaecer atenuada

numa interfiacutecie oscilante Haacute uma precisatildeo no trabalho ldquoInventar uma pele para

tudordquo diz ele Mas ao mesmo tempo afirma ldquoNatildeo consigo passar da pelerdquo[10]

Esta sugestatildeo de uma superfiacutecie do sentido e para o sentido quando eacute o disforme

que organiza tudo e pela borda ndash como por exemplo ldquocriar um ceacuteu abertordquo ldquoa

pele do coelho sem o coelho dentrordquo ldquoenxugar os foacutesforosrdquo ldquoosso feito de carnerdquo

etc ndash se encontra com a tentativa de busca do tempo perdido moderno da

nossa ldquofraccedilatildeo correta de fracassordquo e principalmente da tentativa de comeccedilar a

invadir uma interiacutecie como um gesto poliacutetico ldquoComecei a arrancar a pele das

coisasrdquo[11] O que sobra depois disso eacute uma sucessatildeo contraditoacuteria de acidentes

monoacutetonos e uma pergunta aflita ldquoAfliccedilatildeo diante das coisas que duram Para

quem elas duramrdquo[12] Robert Musil convida a que se repare na duraccedilatildeo das

coisas que encontramos pelo caminho se pergunta qual o motivo de erguerem-se

monumentos aos ldquograndes homensrdquo se as coisas satildeo como satildeo e refuta ldquoParece

um primor de maldade Jaacute que ningueacutem lhes pode mais prejudicar em vida

mergulham-nos num mar de esquecimento com um monumento ao redor do

pescoccedilordquo[13] Se a palavra-monumento eacute uma coisa que dura e aflige e mata a

proposiccedilatildeo de romper a sua superfiacutecie e encontrar-se com sua interiacutecie ndash como

estaacute no trabalho de Nuno Ramos ndash eacute tambeacutem como indica Rauacutel Antelo uma

possibilidade para que se possa pensar a histoacuteria como uma aceleraccedilatildeo de leituras

e melhor ldquoler o presente como se fosse passado o contexto como se fosse texto

atentando em todo caso para aquilo que natildeo foi observado o tempo perdido

[memoacuteria ou utopia]rdquo[14]

Uma reinvenccedilatildeo do tempo perdido da palavra assim uma ficccedilatildeo da histoacuteria a

partir dos modos de uso da palavra como uma persistecircncia Eduardo Frota deoutra maneira jaacute disse que seu trabalho ldquoparte para um intraduziacutevel em poucas

ou muitas palavras nesse mundo de voo alto e baixo fundo e raso da existecircnciardquo

9 RAMOS Nuno Cujo Satildeo Paulo Editora 34 1993 p 9

10 Ibidem p 19

11 Ibidem p 29

12 Ibidem p 31

13 Ibidem p 51

14 ANTELO Rauacutel Transgressatildeo e modernidade Ponta Grossa UEPG 2001 p 95

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A palavra pouco ou muito aparece no seu trabalho como algo que nomeia o

inominaacutevel porque estamos diante de uma forma extensa da proacutepria forma um

descabimento uma forma esticada que redesenha a pulsatildeo eroacutetica A forma ali

eacute tambeacutem uma tentativa de procurar sua proacutepria nudez uma escultura de formas

vacilantes que se desestabiliza por dentro que insiste em devolver o eroacutetico

agrave esfera conjunta do sagrado e da morte do sacrifiacutecio e do divino como soacute se

constituiacutesse numa ldquozona de lama pretardquo (a expressatildeo eacute de Joaquim Cardozo) de

uma experiecircncia que parece sempre a-humana aleacutem do humano do fora Nesse

tempo agora natildeo soacute como uma vacilaccedilatildeo ou oscilaccedilatildeo de uma deriva do sentido

ao natildeo-sentido que a palavra toma e elabora mas tambeacutem uma devoluccedilatildeo da pele

a ruga (Nuno Ramos) e uma devoluccedilatildeo da tripa a fenda (Eduardo Frota)

Ora isso comparece tambeacutem nos outros livros de Nuno Ramos Em Oacute por

exemplo desde o iacutendice num acompanhamento dos tiacutetulos com suas seacuteries

desvalidas em coisas como ldquoTocaacute-la engordar e paacutessaros mortosrdquo ldquoGalinhas

justiccedilardquo ldquoRecobrimento lama-matildee urgecircncia e repeticcedilatildeo cachorros sonhamrdquo

ldquoEpifania provas erotismo corpo-sim corpo-natildeordquo etc ateacute a intersecccedilatildeo de

passagem impenetraacutevel de um tema a outro por dentro das narrativas quando

elas tentam seguir o movimento sugerido por seus tiacutetulos Em O patildeo do corvo

noutro exemplo haacute um caraacuteter de silecircncio susto e pasmo entre a mudez e a fala

da palavra Como estaacute na mais que bonita narrativa intitulada ldquoEu peccedilo ao ventordquo

a conversa deliberada entre um leatildeo e uma leoa quando estatildeo muito longe um

do outro como uma fala perdida e solta no tempo em que natildeo haacute escuta mas

entendimento a partir do silecircncio de uma ferida aberta e sangue Haacute um pedido

ao vento e ao vaacute (imperativo que se nomeia numa substantivaccedilatildeo) que levem

ao outro uma pequena fagulha amorosa de espera e compreensatildeo da falecircncia

da ajuda e da morte Com Joseacute Gil eacute possiacutevel chamar a isto de uma ldquozona de

iminecircncia da irrupccedilatildeo da palavrardquo[15] E isto pode ser pensado a partir do que ele

propotildee que esta zona teria a ver com um costume egiacutepcio entre a mudez da morte

e a nova fala do outro mundo quando num dos ritos de passagem se abria a boca

e os olhos do morto Diz ele que esta zona demarca a impregnaccedilatildeo da imagem natildeodesignada ainda pela linguagem a imagem sem nome a imagem-nua Como me

parece estaacute tambeacutem no trabalho de Eduardo Frota e suas variantes de tentativas

em nomear suas exposiccedilotildees a partir do quanto exaure da forma ateacute deixaacute-las

em estado de abandono plenas de vacilaccedilatildeo Haacute algo do dizer que escapa por

definiccedilatildeo agrave palavra nos lembra Joseacute Gil ldquonem por isso uma imagem-nua deixa de

querer absolutamente falarrdquo[16]

15 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

16 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 56nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

livro[3] sem perder de vista que um trabalho eacute tambeacutem o outro que este outro eacute tambeacutem um

mesmo procura indicar que toda obra de arte eacute feita de nosso horror como sugere Michel

Deguy e que toda palavra eacute Dichtung o dizer um dizer um ter a dizer um dizer aquilo

que resta etc Assim eacute possiacutevel pensar que os modos de uso da palavra podem ser tomados

como vetores que saem do sentido espremido da representaccedilatildeo para sugerirem-se ao mundo

como um objeto uma interdiccedilatildeo como ldquoassociaccedilotildees disjuntivasrdquo uma ldquoextensatildeo da fendardquo

ou ldquointervenccedilotildees extensivasrdquo (estas expressotildees satildeo do artista Eduardo Frota e datildeo tiacutetulo a

algumas de suas exposiccedilotildees)[4] mas tambeacutem sempre como peccedilas de poder No trabalho

de Eduardo Frota outro exemplo a palavra natildeo comparece senatildeo nos tiacutetulos que abrem ndash

por sua vez ndash articulaccedilotildees singulares mas tambeacutem ambivalentes eou redundantes o que

eacute interessantiacutessimo ainda mais se pensarmos que o trabalho de Eduardo Frota se constitui

em torno de uma linha da imaginaccedilatildeo do corpo para o corpo e com o corpo Esta eacute a sua

poliacutetica Uma linha que vem da tentativa de ler uma etnografia da origem de nossa cultura

quase nacional mas tensionada tambeacutem em direccedilatildeo ao poema moderno sem o verso mas

com o uso de uma ideia da linha E aiacute tanto faz se com Joatildeo Cabral de Melo Neto (a linha

curta e irrespiraacutevel a linha longa e irrespiraacutevel) ou se com Manuel Bandeira (a linha longa e

aberta a linha curta e aberta quando a prosa natildeo coincide mais com o romance mas sim e

tambeacutem com o poema)

Esta oxigenaccedilatildeo da forma este gesto de levar a forma a sua exaustatildeo ou de elaborar uma

fratura no sentido por meio da proacutepria fratura (como a leitura que Rauacutel Antelo faz da

literatura de Oswald de Andrade por exemplo) satildeo apontamentos que provocam uma

exasperaccedilatildeo do sentido Note-se que os trecircs primeiros livros[5] de Nuno Ramos se intitulam

com escavaccedilotildees ao diabo Cujo (aquilo que natildeo se pode dizer o nome) O patildeo do corvo (a

comida para o paacutessaro preto o delator e muitas vezes o nome improacuteprio do urubu) [6] e Oacute

(uma invocaccedilatildeo e tambeacutem o ciacuterculo eliacuteptico e santo e se extremo tambeacutem eroacutetico armado

por Padre Vieira no Sermatildeo de Nossa Senhora do Oacute) ou seja ao mesmo tempo o natildeo-sei-

3 Basta ver a primeira ediccedilatildeo de Cujo (1993) o primeiro livro de Nuno Ramos feito com papel biacuteblia especial e transpar-ente a capa em Coucheacute Reflex Matte com 150 exemplares numerados e assinados por ele O conceito e o procedimento datransparecircncia denunciam um caraacuteter fundamental desse livro como uma zona de contato em torno da palavra como superiacutecie e interiacutecie Haacute ainda outra ediccedilatildeo do mesmo livro pela Editora 34 mesmo ano feita de forma mais simples e padratildeo para sercomercializada e obviamente com o desaparecimento dessa questatildeo

4 Eduardo Frota tem usado esses tiacutetulos como um desdobramento do corpo desejoso e alucinatoacuterio que ele persegue paratensionar a histoacuteria da arte e algumas questotildees em torno do pensamento da arte no Brasil assim repete insistentemente comose fossem termos de composiccedilatildeo e os rearma outra vez como vertigem sem parar construindo assim seacuteries numeradas detrabalhos para exposiccedilotildees diferentes Como por exemplo a exposiccedilatildeo realizada no ano 2000 no Torreatildeo em Porto Alegre quese intitula ldquoEspaccedilo e SentidoIntervenccedilotildees Extensivasrdquo que faz parte da seacuterie Intervenccedilotildees Extensivas ou a exposiccedilatildeo intituladaldquoIntervenccedilotildees em Tracircnsitordquo realizada no MAM do Rio de Janeiro em 2006 que faz parte da seacuterie homocircnima

5 Optei por natildeo incluir o quarto livro de Nuno Ramos O mau vidraceiro (Satildeo Paulo Globo 2010) porque nesse momento olivro natildeo me parece ainda articular os problemas que me interessam pensar aqui nesse texto

6 Na 29ordf Bienal de Satildeo Paulo Nuno Ramos expocircs um trabalho intitulado Bandeira Branca com trecircs urubus vivos e engaio-lados junto a trecircs enormes esculturas de areia preta aparentemente fraacutegeis com caixas de som de onde se ouvia as canccedilotildees

ldquoBandeira Brancardquo ldquoBoi da Cara Pretardquo e ldquoCarcaraacuterdquo Este trabalho rendeu uma seacuterie de questionamentos quase absurdos e umcorajoso e convicto texto de Nuno Ramos na Folha de Satildeo Paulo [Caderno Ilustriacutessima 17102010] em resposta aos abusos dapalavra fraacutegil contra o seu trabalho e seu projeto poliacutetico em torno de um pensamento para a arte

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 57nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

que-diga o natildeo o sem o catildeo aquilo que natildeo sabemos uns furos no saber etc

Ficamos diante de um trabalho que propotildee um pensamento em torno da palavra

que natildeo pode ser dita a palavra proibida que eacute toda ela apenas invocaccedilatildeo de uma

lembranccedila solta e diaboacutelica mas tambeacutem da palavra que eacute tiacutetulo cabeccedilalho lugar

da atenccedilatildeo exposiccedilatildeo e deriva do sentido

Seguindo Musil ainda lembra que haacute monumentos vigorosos e outros que ainda

satildeo a expressatildeo de um pensamento e de um sentimento vivos mas que o ofiacutecio

de grande parte dos monumentos comuns eacute sem duacutevida o de invocar uma

lembranccedila ou de chamar a atenccedilatildeo Ou seja Musil natildeo capitula porque para ele

ao chamar a atenccedilatildeo o monumento se daacute a ver na impressatildeo de um sentimento

piedoso numa crenccedila de que eles satildeo de alguma forma necessaacuterios E aiacute completa

eacute que o monumento fracassa que ele afugenta aquilo que deveria atrair

Impossiacutevel dizer que natildeo os percebemos deveriacuteamos dizer isto sim que nos

passam despercebidos que escapam aos nossos sentidos eacute uma qualidade

totalmente positiva que tende para o ato de violecircncia

Ora para isso haacute uma explicaccedilatildeo possiacutevel por certo Tudo que eacute duradouro

perde seu poder de impressionar Tudo o que constitui as paredes de

nossa vida ou por assim dizer os cenaacuterios de nossa consciecircncia perde a

capacidade de representar algum papel dentro dessa consciecircncia Ao cabo

de poucas horas deixamos de ouvir o barulho incocircmodo e permanente Os

quadros pendurados nas paredes em poucos dias satildeo absorvidos por elas eacute

muito raro que algueacutem pare diante deles para admiraacute-los Livros lidos pela

metade e dispostos entre as magniacuteficas fileiras de volumes da biblioteca

nunca mais voltaratildeo a ser lidos ateacute o final De fato agraves pessoas sensiacuteveis basta

a aquisiccedilatildeo de um livro cujo iniacutecio lhes agradou e elas nunca mais voltaratildeo

a tecirc-los nas matildeos

[]

Quando temos as melhores intenccedilotildees para com os monumentos eacute inevitaacutevel

que cheguemos agrave conclusatildeo que eles em contrariedade com a nossanatureza nos apresentam uma reivindicaccedilatildeo legiacutetima cujo cumprimento soacute

se daraacute em estabelecimentos muito especiais Seria um crime se quiseacutessemos

adaptar as placas de aviso para caminhotildees de uma forma tatildeo discretamente

monocromaacutetica como a dos monumentos Ateacute as locomotivas produzem

sons estridentes e desconcertantes e mesmo agraves caixas de correio damos uma

cor atrativa Numa palavra os monumentos assim como noacutes deveriam se

esforccedilar um pouco mais[7]

7 MUSIL Robert O melro e outros escritos de obras poacutestumas publicadas em vida Trad Nicolino Simone NetoSatildeo Paulo Nova Alexandria 1996 p 49 e 50

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 58nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pois se um monumento comparece como um apontamento de nosso

fracasso de nossa falta de esforccedilo com a linguagem ndash a linguagem eacute o lugar da

atenccedilatildeo disse Blanchot ndash de nossa situaccedilatildeo sempre desesperadora quando a

prosa cai onde e para onde cai a prosa por exemplo Porque eacute diante da palavra

que nos postamos ao cruzar com os carreteacuteis enormes ou com longos tubos fura-

mundo e desangulados de Eduardo Frota esta linha invisiacutevel de uma escultura

depois do verso que constitui qualidades de intervenccedilatildeo desagregadoras e

natildeo apenas expositivas mas sugerindo outra ldquotopologia simboacutelica do espaccedilo

expositivordquo com ldquobrechas atravancamento amontoado distanciamentos vazios

viscosidade o escorregadio ou inclinaccedilatildeordquo[8] O que nos resta nesse tempo de

iacutenterim de espera sempre eacute dizer o que resta Ficamos entre o que se diz e o

que se compreende do objeto entre o que se diz e se escreve do objeto quando

o que se diz e o que se escreve e o que se compreende eacute o objeto que temos Para

Benjamin isto seria a semelhanccedila imaterial da linguagem Rauacutel Antelo chama

atenccedilatildeo que toda ideia da significaccedilatildeo que procura armar um saber histoacuterico

efetivo vem primeiro como um vazio diz ele que todo valor ao se construir como

um quebra-cabeccedilas de peccedilas alheias numa loacutegica dispersiva inscreve-se na ordem

do acaso

Esta loacutegica dispersiva inscrita no acaso se natildeo eacute um procedimento de trabalho

eacute ao menos o monturo das narrativas como um problema filosoacutefico que Nuno

Ramos procura em seus trecircs primeiros livros No primeiro deles por exemplo

Cujo todo composto de fragmentos de anotaccedilotildees dispersas e ao leacuteu numa

compoacutesita de linhas curtas e irrespiraacuteveis linhas longas e irrespiraacuteveis linhas

curtas e abertas linhas longas e abertas quando a prosa natildeo coincide mais com

o romance mas sim e tambeacutem com o poema como um poema o pequeno

fragmento inicial aponta para um ato um gesto um mover-se do corpo em

direccedilatildeo ao vazio da atenccedilatildeo com a linguagem quando sugere que

Pus todos juntos aacutegua alga lama numa poccedila vertical como uma

escultura costurada por seu proacuteprio peso Pedaccedilos do mundo [palavrasprincipalmente palavras] refletiam-se ali e a cor dourada desses reflexos

dava uma impressatildeo intocada de realidade O som horriacutevel de uma serra

saiacutea de dentro da poccedila e completava o ritual como uma promessa [pela qual

eu esperava atento] que fosse conhecimento e revelaccedilatildeo Foi entatildeo como

se suasse que algumas gotas apareceram em sua superfiacutecie e escorreram

primeiro lentas e depois aos goles numa asfixia movediccedila que trouxe o

interior agrave superfiacutecie e desfez em pedaccedilos a suspensatildeo e a paralisia E feita

8 HERKENHOFF Paulo ldquoTexto criacuteticordquo In FROTA Eduardo Cataacutelogo Intervenccedilotildees extensivas X Vila VelhaMuseu da Vale do Rio Doce 2006 p 18

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 59nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

sujeira aos meus peacutes era um lamento do que eu tinha visto e perdido[9]

Satildeo esses pedaccedilos do mundo de mundo e no mundo as palavras que ndash no

trabalho de Nuno Ramos ndash aparecem numa fulguraccedilatildeo de seu uso como a

constituiccedilatildeo de uma pele Uma pele que eacute tambeacutem transparecircncia quando o

sentido escorre numa superfiacutecie sem fundo e infinita ateacute tentar esmaecer atenuada

numa interfiacutecie oscilante Haacute uma precisatildeo no trabalho ldquoInventar uma pele para

tudordquo diz ele Mas ao mesmo tempo afirma ldquoNatildeo consigo passar da pelerdquo[10]

Esta sugestatildeo de uma superfiacutecie do sentido e para o sentido quando eacute o disforme

que organiza tudo e pela borda ndash como por exemplo ldquocriar um ceacuteu abertordquo ldquoa

pele do coelho sem o coelho dentrordquo ldquoenxugar os foacutesforosrdquo ldquoosso feito de carnerdquo

etc ndash se encontra com a tentativa de busca do tempo perdido moderno da

nossa ldquofraccedilatildeo correta de fracassordquo e principalmente da tentativa de comeccedilar a

invadir uma interiacutecie como um gesto poliacutetico ldquoComecei a arrancar a pele das

coisasrdquo[11] O que sobra depois disso eacute uma sucessatildeo contraditoacuteria de acidentes

monoacutetonos e uma pergunta aflita ldquoAfliccedilatildeo diante das coisas que duram Para

quem elas duramrdquo[12] Robert Musil convida a que se repare na duraccedilatildeo das

coisas que encontramos pelo caminho se pergunta qual o motivo de erguerem-se

monumentos aos ldquograndes homensrdquo se as coisas satildeo como satildeo e refuta ldquoParece

um primor de maldade Jaacute que ningueacutem lhes pode mais prejudicar em vida

mergulham-nos num mar de esquecimento com um monumento ao redor do

pescoccedilordquo[13] Se a palavra-monumento eacute uma coisa que dura e aflige e mata a

proposiccedilatildeo de romper a sua superfiacutecie e encontrar-se com sua interiacutecie ndash como

estaacute no trabalho de Nuno Ramos ndash eacute tambeacutem como indica Rauacutel Antelo uma

possibilidade para que se possa pensar a histoacuteria como uma aceleraccedilatildeo de leituras

e melhor ldquoler o presente como se fosse passado o contexto como se fosse texto

atentando em todo caso para aquilo que natildeo foi observado o tempo perdido

[memoacuteria ou utopia]rdquo[14]

Uma reinvenccedilatildeo do tempo perdido da palavra assim uma ficccedilatildeo da histoacuteria a

partir dos modos de uso da palavra como uma persistecircncia Eduardo Frota deoutra maneira jaacute disse que seu trabalho ldquoparte para um intraduziacutevel em poucas

ou muitas palavras nesse mundo de voo alto e baixo fundo e raso da existecircnciardquo

9 RAMOS Nuno Cujo Satildeo Paulo Editora 34 1993 p 9

10 Ibidem p 19

11 Ibidem p 29

12 Ibidem p 31

13 Ibidem p 51

14 ANTELO Rauacutel Transgressatildeo e modernidade Ponta Grossa UEPG 2001 p 95

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 60nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pouco ou muito aparece no seu trabalho como algo que nomeia o

inominaacutevel porque estamos diante de uma forma extensa da proacutepria forma um

descabimento uma forma esticada que redesenha a pulsatildeo eroacutetica A forma ali

eacute tambeacutem uma tentativa de procurar sua proacutepria nudez uma escultura de formas

vacilantes que se desestabiliza por dentro que insiste em devolver o eroacutetico

agrave esfera conjunta do sagrado e da morte do sacrifiacutecio e do divino como soacute se

constituiacutesse numa ldquozona de lama pretardquo (a expressatildeo eacute de Joaquim Cardozo) de

uma experiecircncia que parece sempre a-humana aleacutem do humano do fora Nesse

tempo agora natildeo soacute como uma vacilaccedilatildeo ou oscilaccedilatildeo de uma deriva do sentido

ao natildeo-sentido que a palavra toma e elabora mas tambeacutem uma devoluccedilatildeo da pele

a ruga (Nuno Ramos) e uma devoluccedilatildeo da tripa a fenda (Eduardo Frota)

Ora isso comparece tambeacutem nos outros livros de Nuno Ramos Em Oacute por

exemplo desde o iacutendice num acompanhamento dos tiacutetulos com suas seacuteries

desvalidas em coisas como ldquoTocaacute-la engordar e paacutessaros mortosrdquo ldquoGalinhas

justiccedilardquo ldquoRecobrimento lama-matildee urgecircncia e repeticcedilatildeo cachorros sonhamrdquo

ldquoEpifania provas erotismo corpo-sim corpo-natildeordquo etc ateacute a intersecccedilatildeo de

passagem impenetraacutevel de um tema a outro por dentro das narrativas quando

elas tentam seguir o movimento sugerido por seus tiacutetulos Em O patildeo do corvo

noutro exemplo haacute um caraacuteter de silecircncio susto e pasmo entre a mudez e a fala

da palavra Como estaacute na mais que bonita narrativa intitulada ldquoEu peccedilo ao ventordquo

a conversa deliberada entre um leatildeo e uma leoa quando estatildeo muito longe um

do outro como uma fala perdida e solta no tempo em que natildeo haacute escuta mas

entendimento a partir do silecircncio de uma ferida aberta e sangue Haacute um pedido

ao vento e ao vaacute (imperativo que se nomeia numa substantivaccedilatildeo) que levem

ao outro uma pequena fagulha amorosa de espera e compreensatildeo da falecircncia

da ajuda e da morte Com Joseacute Gil eacute possiacutevel chamar a isto de uma ldquozona de

iminecircncia da irrupccedilatildeo da palavrardquo[15] E isto pode ser pensado a partir do que ele

propotildee que esta zona teria a ver com um costume egiacutepcio entre a mudez da morte

e a nova fala do outro mundo quando num dos ritos de passagem se abria a boca

e os olhos do morto Diz ele que esta zona demarca a impregnaccedilatildeo da imagem natildeodesignada ainda pela linguagem a imagem sem nome a imagem-nua Como me

parece estaacute tambeacutem no trabalho de Eduardo Frota e suas variantes de tentativas

em nomear suas exposiccedilotildees a partir do quanto exaure da forma ateacute deixaacute-las

em estado de abandono plenas de vacilaccedilatildeo Haacute algo do dizer que escapa por

definiccedilatildeo agrave palavra nos lembra Joseacute Gil ldquonem por isso uma imagem-nua deixa de

querer absolutamente falarrdquo[16]

15 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

16 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21

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que-diga o natildeo o sem o catildeo aquilo que natildeo sabemos uns furos no saber etc

Ficamos diante de um trabalho que propotildee um pensamento em torno da palavra

que natildeo pode ser dita a palavra proibida que eacute toda ela apenas invocaccedilatildeo de uma

lembranccedila solta e diaboacutelica mas tambeacutem da palavra que eacute tiacutetulo cabeccedilalho lugar

da atenccedilatildeo exposiccedilatildeo e deriva do sentido

Seguindo Musil ainda lembra que haacute monumentos vigorosos e outros que ainda

satildeo a expressatildeo de um pensamento e de um sentimento vivos mas que o ofiacutecio

de grande parte dos monumentos comuns eacute sem duacutevida o de invocar uma

lembranccedila ou de chamar a atenccedilatildeo Ou seja Musil natildeo capitula porque para ele

ao chamar a atenccedilatildeo o monumento se daacute a ver na impressatildeo de um sentimento

piedoso numa crenccedila de que eles satildeo de alguma forma necessaacuterios E aiacute completa

eacute que o monumento fracassa que ele afugenta aquilo que deveria atrair

Impossiacutevel dizer que natildeo os percebemos deveriacuteamos dizer isto sim que nos

passam despercebidos que escapam aos nossos sentidos eacute uma qualidade

totalmente positiva que tende para o ato de violecircncia

Ora para isso haacute uma explicaccedilatildeo possiacutevel por certo Tudo que eacute duradouro

perde seu poder de impressionar Tudo o que constitui as paredes de

nossa vida ou por assim dizer os cenaacuterios de nossa consciecircncia perde a

capacidade de representar algum papel dentro dessa consciecircncia Ao cabo

de poucas horas deixamos de ouvir o barulho incocircmodo e permanente Os

quadros pendurados nas paredes em poucos dias satildeo absorvidos por elas eacute

muito raro que algueacutem pare diante deles para admiraacute-los Livros lidos pela

metade e dispostos entre as magniacuteficas fileiras de volumes da biblioteca

nunca mais voltaratildeo a ser lidos ateacute o final De fato agraves pessoas sensiacuteveis basta

a aquisiccedilatildeo de um livro cujo iniacutecio lhes agradou e elas nunca mais voltaratildeo

a tecirc-los nas matildeos

[]

Quando temos as melhores intenccedilotildees para com os monumentos eacute inevitaacutevel

que cheguemos agrave conclusatildeo que eles em contrariedade com a nossanatureza nos apresentam uma reivindicaccedilatildeo legiacutetima cujo cumprimento soacute

se daraacute em estabelecimentos muito especiais Seria um crime se quiseacutessemos

adaptar as placas de aviso para caminhotildees de uma forma tatildeo discretamente

monocromaacutetica como a dos monumentos Ateacute as locomotivas produzem

sons estridentes e desconcertantes e mesmo agraves caixas de correio damos uma

cor atrativa Numa palavra os monumentos assim como noacutes deveriam se

esforccedilar um pouco mais[7]

7 MUSIL Robert O melro e outros escritos de obras poacutestumas publicadas em vida Trad Nicolino Simone NetoSatildeo Paulo Nova Alexandria 1996 p 49 e 50

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 58nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pois se um monumento comparece como um apontamento de nosso

fracasso de nossa falta de esforccedilo com a linguagem ndash a linguagem eacute o lugar da

atenccedilatildeo disse Blanchot ndash de nossa situaccedilatildeo sempre desesperadora quando a

prosa cai onde e para onde cai a prosa por exemplo Porque eacute diante da palavra

que nos postamos ao cruzar com os carreteacuteis enormes ou com longos tubos fura-

mundo e desangulados de Eduardo Frota esta linha invisiacutevel de uma escultura

depois do verso que constitui qualidades de intervenccedilatildeo desagregadoras e

natildeo apenas expositivas mas sugerindo outra ldquotopologia simboacutelica do espaccedilo

expositivordquo com ldquobrechas atravancamento amontoado distanciamentos vazios

viscosidade o escorregadio ou inclinaccedilatildeordquo[8] O que nos resta nesse tempo de

iacutenterim de espera sempre eacute dizer o que resta Ficamos entre o que se diz e o

que se compreende do objeto entre o que se diz e se escreve do objeto quando

o que se diz e o que se escreve e o que se compreende eacute o objeto que temos Para

Benjamin isto seria a semelhanccedila imaterial da linguagem Rauacutel Antelo chama

atenccedilatildeo que toda ideia da significaccedilatildeo que procura armar um saber histoacuterico

efetivo vem primeiro como um vazio diz ele que todo valor ao se construir como

um quebra-cabeccedilas de peccedilas alheias numa loacutegica dispersiva inscreve-se na ordem

do acaso

Esta loacutegica dispersiva inscrita no acaso se natildeo eacute um procedimento de trabalho

eacute ao menos o monturo das narrativas como um problema filosoacutefico que Nuno

Ramos procura em seus trecircs primeiros livros No primeiro deles por exemplo

Cujo todo composto de fragmentos de anotaccedilotildees dispersas e ao leacuteu numa

compoacutesita de linhas curtas e irrespiraacuteveis linhas longas e irrespiraacuteveis linhas

curtas e abertas linhas longas e abertas quando a prosa natildeo coincide mais com

o romance mas sim e tambeacutem com o poema como um poema o pequeno

fragmento inicial aponta para um ato um gesto um mover-se do corpo em

direccedilatildeo ao vazio da atenccedilatildeo com a linguagem quando sugere que

Pus todos juntos aacutegua alga lama numa poccedila vertical como uma

escultura costurada por seu proacuteprio peso Pedaccedilos do mundo [palavrasprincipalmente palavras] refletiam-se ali e a cor dourada desses reflexos

dava uma impressatildeo intocada de realidade O som horriacutevel de uma serra

saiacutea de dentro da poccedila e completava o ritual como uma promessa [pela qual

eu esperava atento] que fosse conhecimento e revelaccedilatildeo Foi entatildeo como

se suasse que algumas gotas apareceram em sua superfiacutecie e escorreram

primeiro lentas e depois aos goles numa asfixia movediccedila que trouxe o

interior agrave superfiacutecie e desfez em pedaccedilos a suspensatildeo e a paralisia E feita

8 HERKENHOFF Paulo ldquoTexto criacuteticordquo In FROTA Eduardo Cataacutelogo Intervenccedilotildees extensivas X Vila VelhaMuseu da Vale do Rio Doce 2006 p 18

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sujeira aos meus peacutes era um lamento do que eu tinha visto e perdido[9]

Satildeo esses pedaccedilos do mundo de mundo e no mundo as palavras que ndash no

trabalho de Nuno Ramos ndash aparecem numa fulguraccedilatildeo de seu uso como a

constituiccedilatildeo de uma pele Uma pele que eacute tambeacutem transparecircncia quando o

sentido escorre numa superfiacutecie sem fundo e infinita ateacute tentar esmaecer atenuada

numa interfiacutecie oscilante Haacute uma precisatildeo no trabalho ldquoInventar uma pele para

tudordquo diz ele Mas ao mesmo tempo afirma ldquoNatildeo consigo passar da pelerdquo[10]

Esta sugestatildeo de uma superfiacutecie do sentido e para o sentido quando eacute o disforme

que organiza tudo e pela borda ndash como por exemplo ldquocriar um ceacuteu abertordquo ldquoa

pele do coelho sem o coelho dentrordquo ldquoenxugar os foacutesforosrdquo ldquoosso feito de carnerdquo

etc ndash se encontra com a tentativa de busca do tempo perdido moderno da

nossa ldquofraccedilatildeo correta de fracassordquo e principalmente da tentativa de comeccedilar a

invadir uma interiacutecie como um gesto poliacutetico ldquoComecei a arrancar a pele das

coisasrdquo[11] O que sobra depois disso eacute uma sucessatildeo contraditoacuteria de acidentes

monoacutetonos e uma pergunta aflita ldquoAfliccedilatildeo diante das coisas que duram Para

quem elas duramrdquo[12] Robert Musil convida a que se repare na duraccedilatildeo das

coisas que encontramos pelo caminho se pergunta qual o motivo de erguerem-se

monumentos aos ldquograndes homensrdquo se as coisas satildeo como satildeo e refuta ldquoParece

um primor de maldade Jaacute que ningueacutem lhes pode mais prejudicar em vida

mergulham-nos num mar de esquecimento com um monumento ao redor do

pescoccedilordquo[13] Se a palavra-monumento eacute uma coisa que dura e aflige e mata a

proposiccedilatildeo de romper a sua superfiacutecie e encontrar-se com sua interiacutecie ndash como

estaacute no trabalho de Nuno Ramos ndash eacute tambeacutem como indica Rauacutel Antelo uma

possibilidade para que se possa pensar a histoacuteria como uma aceleraccedilatildeo de leituras

e melhor ldquoler o presente como se fosse passado o contexto como se fosse texto

atentando em todo caso para aquilo que natildeo foi observado o tempo perdido

[memoacuteria ou utopia]rdquo[14]

Uma reinvenccedilatildeo do tempo perdido da palavra assim uma ficccedilatildeo da histoacuteria a

partir dos modos de uso da palavra como uma persistecircncia Eduardo Frota deoutra maneira jaacute disse que seu trabalho ldquoparte para um intraduziacutevel em poucas

ou muitas palavras nesse mundo de voo alto e baixo fundo e raso da existecircnciardquo

9 RAMOS Nuno Cujo Satildeo Paulo Editora 34 1993 p 9

10 Ibidem p 19

11 Ibidem p 29

12 Ibidem p 31

13 Ibidem p 51

14 ANTELO Rauacutel Transgressatildeo e modernidade Ponta Grossa UEPG 2001 p 95

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 60nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pouco ou muito aparece no seu trabalho como algo que nomeia o

inominaacutevel porque estamos diante de uma forma extensa da proacutepria forma um

descabimento uma forma esticada que redesenha a pulsatildeo eroacutetica A forma ali

eacute tambeacutem uma tentativa de procurar sua proacutepria nudez uma escultura de formas

vacilantes que se desestabiliza por dentro que insiste em devolver o eroacutetico

agrave esfera conjunta do sagrado e da morte do sacrifiacutecio e do divino como soacute se

constituiacutesse numa ldquozona de lama pretardquo (a expressatildeo eacute de Joaquim Cardozo) de

uma experiecircncia que parece sempre a-humana aleacutem do humano do fora Nesse

tempo agora natildeo soacute como uma vacilaccedilatildeo ou oscilaccedilatildeo de uma deriva do sentido

ao natildeo-sentido que a palavra toma e elabora mas tambeacutem uma devoluccedilatildeo da pele

a ruga (Nuno Ramos) e uma devoluccedilatildeo da tripa a fenda (Eduardo Frota)

Ora isso comparece tambeacutem nos outros livros de Nuno Ramos Em Oacute por

exemplo desde o iacutendice num acompanhamento dos tiacutetulos com suas seacuteries

desvalidas em coisas como ldquoTocaacute-la engordar e paacutessaros mortosrdquo ldquoGalinhas

justiccedilardquo ldquoRecobrimento lama-matildee urgecircncia e repeticcedilatildeo cachorros sonhamrdquo

ldquoEpifania provas erotismo corpo-sim corpo-natildeordquo etc ateacute a intersecccedilatildeo de

passagem impenetraacutevel de um tema a outro por dentro das narrativas quando

elas tentam seguir o movimento sugerido por seus tiacutetulos Em O patildeo do corvo

noutro exemplo haacute um caraacuteter de silecircncio susto e pasmo entre a mudez e a fala

da palavra Como estaacute na mais que bonita narrativa intitulada ldquoEu peccedilo ao ventordquo

a conversa deliberada entre um leatildeo e uma leoa quando estatildeo muito longe um

do outro como uma fala perdida e solta no tempo em que natildeo haacute escuta mas

entendimento a partir do silecircncio de uma ferida aberta e sangue Haacute um pedido

ao vento e ao vaacute (imperativo que se nomeia numa substantivaccedilatildeo) que levem

ao outro uma pequena fagulha amorosa de espera e compreensatildeo da falecircncia

da ajuda e da morte Com Joseacute Gil eacute possiacutevel chamar a isto de uma ldquozona de

iminecircncia da irrupccedilatildeo da palavrardquo[15] E isto pode ser pensado a partir do que ele

propotildee que esta zona teria a ver com um costume egiacutepcio entre a mudez da morte

e a nova fala do outro mundo quando num dos ritos de passagem se abria a boca

e os olhos do morto Diz ele que esta zona demarca a impregnaccedilatildeo da imagem natildeodesignada ainda pela linguagem a imagem sem nome a imagem-nua Como me

parece estaacute tambeacutem no trabalho de Eduardo Frota e suas variantes de tentativas

em nomear suas exposiccedilotildees a partir do quanto exaure da forma ateacute deixaacute-las

em estado de abandono plenas de vacilaccedilatildeo Haacute algo do dizer que escapa por

definiccedilatildeo agrave palavra nos lembra Joseacute Gil ldquonem por isso uma imagem-nua deixa de

querer absolutamente falarrdquo[16]

15 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

16 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 58nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pois se um monumento comparece como um apontamento de nosso

fracasso de nossa falta de esforccedilo com a linguagem ndash a linguagem eacute o lugar da

atenccedilatildeo disse Blanchot ndash de nossa situaccedilatildeo sempre desesperadora quando a

prosa cai onde e para onde cai a prosa por exemplo Porque eacute diante da palavra

que nos postamos ao cruzar com os carreteacuteis enormes ou com longos tubos fura-

mundo e desangulados de Eduardo Frota esta linha invisiacutevel de uma escultura

depois do verso que constitui qualidades de intervenccedilatildeo desagregadoras e

natildeo apenas expositivas mas sugerindo outra ldquotopologia simboacutelica do espaccedilo

expositivordquo com ldquobrechas atravancamento amontoado distanciamentos vazios

viscosidade o escorregadio ou inclinaccedilatildeordquo[8] O que nos resta nesse tempo de

iacutenterim de espera sempre eacute dizer o que resta Ficamos entre o que se diz e o

que se compreende do objeto entre o que se diz e se escreve do objeto quando

o que se diz e o que se escreve e o que se compreende eacute o objeto que temos Para

Benjamin isto seria a semelhanccedila imaterial da linguagem Rauacutel Antelo chama

atenccedilatildeo que toda ideia da significaccedilatildeo que procura armar um saber histoacuterico

efetivo vem primeiro como um vazio diz ele que todo valor ao se construir como

um quebra-cabeccedilas de peccedilas alheias numa loacutegica dispersiva inscreve-se na ordem

do acaso

Esta loacutegica dispersiva inscrita no acaso se natildeo eacute um procedimento de trabalho

eacute ao menos o monturo das narrativas como um problema filosoacutefico que Nuno

Ramos procura em seus trecircs primeiros livros No primeiro deles por exemplo

Cujo todo composto de fragmentos de anotaccedilotildees dispersas e ao leacuteu numa

compoacutesita de linhas curtas e irrespiraacuteveis linhas longas e irrespiraacuteveis linhas

curtas e abertas linhas longas e abertas quando a prosa natildeo coincide mais com

o romance mas sim e tambeacutem com o poema como um poema o pequeno

fragmento inicial aponta para um ato um gesto um mover-se do corpo em

direccedilatildeo ao vazio da atenccedilatildeo com a linguagem quando sugere que

Pus todos juntos aacutegua alga lama numa poccedila vertical como uma

escultura costurada por seu proacuteprio peso Pedaccedilos do mundo [palavrasprincipalmente palavras] refletiam-se ali e a cor dourada desses reflexos

dava uma impressatildeo intocada de realidade O som horriacutevel de uma serra

saiacutea de dentro da poccedila e completava o ritual como uma promessa [pela qual

eu esperava atento] que fosse conhecimento e revelaccedilatildeo Foi entatildeo como

se suasse que algumas gotas apareceram em sua superfiacutecie e escorreram

primeiro lentas e depois aos goles numa asfixia movediccedila que trouxe o

interior agrave superfiacutecie e desfez em pedaccedilos a suspensatildeo e a paralisia E feita

8 HERKENHOFF Paulo ldquoTexto criacuteticordquo In FROTA Eduardo Cataacutelogo Intervenccedilotildees extensivas X Vila VelhaMuseu da Vale do Rio Doce 2006 p 18

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 59nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

sujeira aos meus peacutes era um lamento do que eu tinha visto e perdido[9]

Satildeo esses pedaccedilos do mundo de mundo e no mundo as palavras que ndash no

trabalho de Nuno Ramos ndash aparecem numa fulguraccedilatildeo de seu uso como a

constituiccedilatildeo de uma pele Uma pele que eacute tambeacutem transparecircncia quando o

sentido escorre numa superfiacutecie sem fundo e infinita ateacute tentar esmaecer atenuada

numa interfiacutecie oscilante Haacute uma precisatildeo no trabalho ldquoInventar uma pele para

tudordquo diz ele Mas ao mesmo tempo afirma ldquoNatildeo consigo passar da pelerdquo[10]

Esta sugestatildeo de uma superfiacutecie do sentido e para o sentido quando eacute o disforme

que organiza tudo e pela borda ndash como por exemplo ldquocriar um ceacuteu abertordquo ldquoa

pele do coelho sem o coelho dentrordquo ldquoenxugar os foacutesforosrdquo ldquoosso feito de carnerdquo

etc ndash se encontra com a tentativa de busca do tempo perdido moderno da

nossa ldquofraccedilatildeo correta de fracassordquo e principalmente da tentativa de comeccedilar a

invadir uma interiacutecie como um gesto poliacutetico ldquoComecei a arrancar a pele das

coisasrdquo[11] O que sobra depois disso eacute uma sucessatildeo contraditoacuteria de acidentes

monoacutetonos e uma pergunta aflita ldquoAfliccedilatildeo diante das coisas que duram Para

quem elas duramrdquo[12] Robert Musil convida a que se repare na duraccedilatildeo das

coisas que encontramos pelo caminho se pergunta qual o motivo de erguerem-se

monumentos aos ldquograndes homensrdquo se as coisas satildeo como satildeo e refuta ldquoParece

um primor de maldade Jaacute que ningueacutem lhes pode mais prejudicar em vida

mergulham-nos num mar de esquecimento com um monumento ao redor do

pescoccedilordquo[13] Se a palavra-monumento eacute uma coisa que dura e aflige e mata a

proposiccedilatildeo de romper a sua superfiacutecie e encontrar-se com sua interiacutecie ndash como

estaacute no trabalho de Nuno Ramos ndash eacute tambeacutem como indica Rauacutel Antelo uma

possibilidade para que se possa pensar a histoacuteria como uma aceleraccedilatildeo de leituras

e melhor ldquoler o presente como se fosse passado o contexto como se fosse texto

atentando em todo caso para aquilo que natildeo foi observado o tempo perdido

[memoacuteria ou utopia]rdquo[14]

Uma reinvenccedilatildeo do tempo perdido da palavra assim uma ficccedilatildeo da histoacuteria a

partir dos modos de uso da palavra como uma persistecircncia Eduardo Frota deoutra maneira jaacute disse que seu trabalho ldquoparte para um intraduziacutevel em poucas

ou muitas palavras nesse mundo de voo alto e baixo fundo e raso da existecircnciardquo

9 RAMOS Nuno Cujo Satildeo Paulo Editora 34 1993 p 9

10 Ibidem p 19

11 Ibidem p 29

12 Ibidem p 31

13 Ibidem p 51

14 ANTELO Rauacutel Transgressatildeo e modernidade Ponta Grossa UEPG 2001 p 95

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 60nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pouco ou muito aparece no seu trabalho como algo que nomeia o

inominaacutevel porque estamos diante de uma forma extensa da proacutepria forma um

descabimento uma forma esticada que redesenha a pulsatildeo eroacutetica A forma ali

eacute tambeacutem uma tentativa de procurar sua proacutepria nudez uma escultura de formas

vacilantes que se desestabiliza por dentro que insiste em devolver o eroacutetico

agrave esfera conjunta do sagrado e da morte do sacrifiacutecio e do divino como soacute se

constituiacutesse numa ldquozona de lama pretardquo (a expressatildeo eacute de Joaquim Cardozo) de

uma experiecircncia que parece sempre a-humana aleacutem do humano do fora Nesse

tempo agora natildeo soacute como uma vacilaccedilatildeo ou oscilaccedilatildeo de uma deriva do sentido

ao natildeo-sentido que a palavra toma e elabora mas tambeacutem uma devoluccedilatildeo da pele

a ruga (Nuno Ramos) e uma devoluccedilatildeo da tripa a fenda (Eduardo Frota)

Ora isso comparece tambeacutem nos outros livros de Nuno Ramos Em Oacute por

exemplo desde o iacutendice num acompanhamento dos tiacutetulos com suas seacuteries

desvalidas em coisas como ldquoTocaacute-la engordar e paacutessaros mortosrdquo ldquoGalinhas

justiccedilardquo ldquoRecobrimento lama-matildee urgecircncia e repeticcedilatildeo cachorros sonhamrdquo

ldquoEpifania provas erotismo corpo-sim corpo-natildeordquo etc ateacute a intersecccedilatildeo de

passagem impenetraacutevel de um tema a outro por dentro das narrativas quando

elas tentam seguir o movimento sugerido por seus tiacutetulos Em O patildeo do corvo

noutro exemplo haacute um caraacuteter de silecircncio susto e pasmo entre a mudez e a fala

da palavra Como estaacute na mais que bonita narrativa intitulada ldquoEu peccedilo ao ventordquo

a conversa deliberada entre um leatildeo e uma leoa quando estatildeo muito longe um

do outro como uma fala perdida e solta no tempo em que natildeo haacute escuta mas

entendimento a partir do silecircncio de uma ferida aberta e sangue Haacute um pedido

ao vento e ao vaacute (imperativo que se nomeia numa substantivaccedilatildeo) que levem

ao outro uma pequena fagulha amorosa de espera e compreensatildeo da falecircncia

da ajuda e da morte Com Joseacute Gil eacute possiacutevel chamar a isto de uma ldquozona de

iminecircncia da irrupccedilatildeo da palavrardquo[15] E isto pode ser pensado a partir do que ele

propotildee que esta zona teria a ver com um costume egiacutepcio entre a mudez da morte

e a nova fala do outro mundo quando num dos ritos de passagem se abria a boca

e os olhos do morto Diz ele que esta zona demarca a impregnaccedilatildeo da imagem natildeodesignada ainda pela linguagem a imagem sem nome a imagem-nua Como me

parece estaacute tambeacutem no trabalho de Eduardo Frota e suas variantes de tentativas

em nomear suas exposiccedilotildees a partir do quanto exaure da forma ateacute deixaacute-las

em estado de abandono plenas de vacilaccedilatildeo Haacute algo do dizer que escapa por

definiccedilatildeo agrave palavra nos lembra Joseacute Gil ldquonem por isso uma imagem-nua deixa de

querer absolutamente falarrdquo[16]

15 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

16 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 59nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

sujeira aos meus peacutes era um lamento do que eu tinha visto e perdido[9]

Satildeo esses pedaccedilos do mundo de mundo e no mundo as palavras que ndash no

trabalho de Nuno Ramos ndash aparecem numa fulguraccedilatildeo de seu uso como a

constituiccedilatildeo de uma pele Uma pele que eacute tambeacutem transparecircncia quando o

sentido escorre numa superfiacutecie sem fundo e infinita ateacute tentar esmaecer atenuada

numa interfiacutecie oscilante Haacute uma precisatildeo no trabalho ldquoInventar uma pele para

tudordquo diz ele Mas ao mesmo tempo afirma ldquoNatildeo consigo passar da pelerdquo[10]

Esta sugestatildeo de uma superfiacutecie do sentido e para o sentido quando eacute o disforme

que organiza tudo e pela borda ndash como por exemplo ldquocriar um ceacuteu abertordquo ldquoa

pele do coelho sem o coelho dentrordquo ldquoenxugar os foacutesforosrdquo ldquoosso feito de carnerdquo

etc ndash se encontra com a tentativa de busca do tempo perdido moderno da

nossa ldquofraccedilatildeo correta de fracassordquo e principalmente da tentativa de comeccedilar a

invadir uma interiacutecie como um gesto poliacutetico ldquoComecei a arrancar a pele das

coisasrdquo[11] O que sobra depois disso eacute uma sucessatildeo contraditoacuteria de acidentes

monoacutetonos e uma pergunta aflita ldquoAfliccedilatildeo diante das coisas que duram Para

quem elas duramrdquo[12] Robert Musil convida a que se repare na duraccedilatildeo das

coisas que encontramos pelo caminho se pergunta qual o motivo de erguerem-se

monumentos aos ldquograndes homensrdquo se as coisas satildeo como satildeo e refuta ldquoParece

um primor de maldade Jaacute que ningueacutem lhes pode mais prejudicar em vida

mergulham-nos num mar de esquecimento com um monumento ao redor do

pescoccedilordquo[13] Se a palavra-monumento eacute uma coisa que dura e aflige e mata a

proposiccedilatildeo de romper a sua superfiacutecie e encontrar-se com sua interiacutecie ndash como

estaacute no trabalho de Nuno Ramos ndash eacute tambeacutem como indica Rauacutel Antelo uma

possibilidade para que se possa pensar a histoacuteria como uma aceleraccedilatildeo de leituras

e melhor ldquoler o presente como se fosse passado o contexto como se fosse texto

atentando em todo caso para aquilo que natildeo foi observado o tempo perdido

[memoacuteria ou utopia]rdquo[14]

Uma reinvenccedilatildeo do tempo perdido da palavra assim uma ficccedilatildeo da histoacuteria a

partir dos modos de uso da palavra como uma persistecircncia Eduardo Frota deoutra maneira jaacute disse que seu trabalho ldquoparte para um intraduziacutevel em poucas

ou muitas palavras nesse mundo de voo alto e baixo fundo e raso da existecircnciardquo

9 RAMOS Nuno Cujo Satildeo Paulo Editora 34 1993 p 9

10 Ibidem p 19

11 Ibidem p 29

12 Ibidem p 31

13 Ibidem p 51

14 ANTELO Rauacutel Transgressatildeo e modernidade Ponta Grossa UEPG 2001 p 95

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

httpslidepdfcomreaderfullpalavras-e-modos-de-uso-manoel-ricardo 67

A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 60nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pouco ou muito aparece no seu trabalho como algo que nomeia o

inominaacutevel porque estamos diante de uma forma extensa da proacutepria forma um

descabimento uma forma esticada que redesenha a pulsatildeo eroacutetica A forma ali

eacute tambeacutem uma tentativa de procurar sua proacutepria nudez uma escultura de formas

vacilantes que se desestabiliza por dentro que insiste em devolver o eroacutetico

agrave esfera conjunta do sagrado e da morte do sacrifiacutecio e do divino como soacute se

constituiacutesse numa ldquozona de lama pretardquo (a expressatildeo eacute de Joaquim Cardozo) de

uma experiecircncia que parece sempre a-humana aleacutem do humano do fora Nesse

tempo agora natildeo soacute como uma vacilaccedilatildeo ou oscilaccedilatildeo de uma deriva do sentido

ao natildeo-sentido que a palavra toma e elabora mas tambeacutem uma devoluccedilatildeo da pele

a ruga (Nuno Ramos) e uma devoluccedilatildeo da tripa a fenda (Eduardo Frota)

Ora isso comparece tambeacutem nos outros livros de Nuno Ramos Em Oacute por

exemplo desde o iacutendice num acompanhamento dos tiacutetulos com suas seacuteries

desvalidas em coisas como ldquoTocaacute-la engordar e paacutessaros mortosrdquo ldquoGalinhas

justiccedilardquo ldquoRecobrimento lama-matildee urgecircncia e repeticcedilatildeo cachorros sonhamrdquo

ldquoEpifania provas erotismo corpo-sim corpo-natildeordquo etc ateacute a intersecccedilatildeo de

passagem impenetraacutevel de um tema a outro por dentro das narrativas quando

elas tentam seguir o movimento sugerido por seus tiacutetulos Em O patildeo do corvo

noutro exemplo haacute um caraacuteter de silecircncio susto e pasmo entre a mudez e a fala

da palavra Como estaacute na mais que bonita narrativa intitulada ldquoEu peccedilo ao ventordquo

a conversa deliberada entre um leatildeo e uma leoa quando estatildeo muito longe um

do outro como uma fala perdida e solta no tempo em que natildeo haacute escuta mas

entendimento a partir do silecircncio de uma ferida aberta e sangue Haacute um pedido

ao vento e ao vaacute (imperativo que se nomeia numa substantivaccedilatildeo) que levem

ao outro uma pequena fagulha amorosa de espera e compreensatildeo da falecircncia

da ajuda e da morte Com Joseacute Gil eacute possiacutevel chamar a isto de uma ldquozona de

iminecircncia da irrupccedilatildeo da palavrardquo[15] E isto pode ser pensado a partir do que ele

propotildee que esta zona teria a ver com um costume egiacutepcio entre a mudez da morte

e a nova fala do outro mundo quando num dos ritos de passagem se abria a boca

e os olhos do morto Diz ele que esta zona demarca a impregnaccedilatildeo da imagem natildeodesignada ainda pela linguagem a imagem sem nome a imagem-nua Como me

parece estaacute tambeacutem no trabalho de Eduardo Frota e suas variantes de tentativas

em nomear suas exposiccedilotildees a partir do quanto exaure da forma ateacute deixaacute-las

em estado de abandono plenas de vacilaccedilatildeo Haacute algo do dizer que escapa por

definiccedilatildeo agrave palavra nos lembra Joseacute Gil ldquonem por isso uma imagem-nua deixa de

querer absolutamente falarrdquo[16]

15 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

16 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 60nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

A palavra pouco ou muito aparece no seu trabalho como algo que nomeia o

inominaacutevel porque estamos diante de uma forma extensa da proacutepria forma um

descabimento uma forma esticada que redesenha a pulsatildeo eroacutetica A forma ali

eacute tambeacutem uma tentativa de procurar sua proacutepria nudez uma escultura de formas

vacilantes que se desestabiliza por dentro que insiste em devolver o eroacutetico

agrave esfera conjunta do sagrado e da morte do sacrifiacutecio e do divino como soacute se

constituiacutesse numa ldquozona de lama pretardquo (a expressatildeo eacute de Joaquim Cardozo) de

uma experiecircncia que parece sempre a-humana aleacutem do humano do fora Nesse

tempo agora natildeo soacute como uma vacilaccedilatildeo ou oscilaccedilatildeo de uma deriva do sentido

ao natildeo-sentido que a palavra toma e elabora mas tambeacutem uma devoluccedilatildeo da pele

a ruga (Nuno Ramos) e uma devoluccedilatildeo da tripa a fenda (Eduardo Frota)

Ora isso comparece tambeacutem nos outros livros de Nuno Ramos Em Oacute por

exemplo desde o iacutendice num acompanhamento dos tiacutetulos com suas seacuteries

desvalidas em coisas como ldquoTocaacute-la engordar e paacutessaros mortosrdquo ldquoGalinhas

justiccedilardquo ldquoRecobrimento lama-matildee urgecircncia e repeticcedilatildeo cachorros sonhamrdquo

ldquoEpifania provas erotismo corpo-sim corpo-natildeordquo etc ateacute a intersecccedilatildeo de

passagem impenetraacutevel de um tema a outro por dentro das narrativas quando

elas tentam seguir o movimento sugerido por seus tiacutetulos Em O patildeo do corvo

noutro exemplo haacute um caraacuteter de silecircncio susto e pasmo entre a mudez e a fala

da palavra Como estaacute na mais que bonita narrativa intitulada ldquoEu peccedilo ao ventordquo

a conversa deliberada entre um leatildeo e uma leoa quando estatildeo muito longe um

do outro como uma fala perdida e solta no tempo em que natildeo haacute escuta mas

entendimento a partir do silecircncio de uma ferida aberta e sangue Haacute um pedido

ao vento e ao vaacute (imperativo que se nomeia numa substantivaccedilatildeo) que levem

ao outro uma pequena fagulha amorosa de espera e compreensatildeo da falecircncia

da ajuda e da morte Com Joseacute Gil eacute possiacutevel chamar a isto de uma ldquozona de

iminecircncia da irrupccedilatildeo da palavrardquo[15] E isto pode ser pensado a partir do que ele

propotildee que esta zona teria a ver com um costume egiacutepcio entre a mudez da morte

e a nova fala do outro mundo quando num dos ritos de passagem se abria a boca

e os olhos do morto Diz ele que esta zona demarca a impregnaccedilatildeo da imagem natildeodesignada ainda pela linguagem a imagem sem nome a imagem-nua Como me

parece estaacute tambeacutem no trabalho de Eduardo Frota e suas variantes de tentativas

em nomear suas exposiccedilotildees a partir do quanto exaure da forma ateacute deixaacute-las

em estado de abandono plenas de vacilaccedilatildeo Haacute algo do dizer que escapa por

definiccedilatildeo agrave palavra nos lembra Joseacute Gil ldquonem por isso uma imagem-nua deixa de

querer absolutamente falarrdquo[16]

15 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

16 GIL Joseacute Sem tiacutetulo ndash escritos sobre arte e artistas Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 2005 p 25

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21

7172019 Palavras e Modos de Uso - Manoel Ricardo

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A CRIacuteTICA E AS ARTES

dossiecirc 61nuacutemero 1 volume 1 maio 2013celeuma

Parece que a palavra entre o pouco uso de Eduardo Frota e o muito uso de Nuno

Ramos se estabelece aiacute nesses trabalhos numa zona de iminecircncia como uma

operaccedilatildeo criacutetica logo poliacutetica de seus modos de uso Isto se imprime por fim

seguindo Valegravere Novarina um pensador de teatro esta fuacuteria em direccedilatildeo ao ver

(theacutea) quando nos coloca espectadores ativos exatamente diante da palavra

mas como uma ala Ele argumenta que todo real eacute falado que eacute sobre a fala que

repousa a mateacuteria[17] que a fala eacute a pauta do tempo Diz ele que nada eacute sem voz

e que todo visiacutevel eacute falado porque nada eacute sem linguagem Recupera o princiacutepio

de que eacute a palavra que chama as coisas que ela nos avisa que as coisas faltam

e que assim ao chamaacute-las mantecircm juntos o seu ser e seu desaparecimento

ldquoNoacutes levamos o mundo na nossa boca ao falarrdquo[18] e ldquoO mundo aparece de

um desaparecimento eacute ao nos faltar que o real estaacute diante de noacutes [] Em si

mesma a mateacuteria natildeo eacute nada Ela eacute apenas uma linguagem feita de coisasrdquo[19]

Esta imposiccedilatildeo do mundo como algo chamado pela palavra da palavra como

ala amalgama-se agrave ruga e agrave enda (mas natildeo soacute) e sugere aos seus modos de uso

ndash numa operaccedilatildeo criacutetica em torno do natildeo-sentido do sentido ndash um ver quando

dizer eacute ver quando ver eacute o dito quando ler eacute ver Se do objeto agrave palavra como

objeto se dar palavra ao objeto e agrave sua objetualidade se a palavra como presenccedila-

ausente de si mesma e agrave ldquosuacutebita densidade da vidardquo

983149983137983150983151983141983148 983154983145983139983137983154983140983151 983140983141 983148983145983149983137 eacute poeta professor de literatura brasileira da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Publicou Embrulho

(7 Letras) e Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras) [poemas] Falas

Inacabadas ndash objetos e um poema com Elida Tessler (Tomo Editorial) Entre

Percurso e Vanguarda ndash alguma poesia de Paulo Leminski (Annablume) e 55

Comeccedilos (Editora da Casa)[ensaios] entre outros

17 Carlos Drummond de Andrade faz essa passagem de uma forma muito interessante no poema ldquoMatildeosDadasrdquo de seu terceiro livro Sentimento do Mundo (1940) no final do poema aparecem os versos ldquoO tempo eacute aminha mateacuteria o tempo presente os homens presentes a vida presenterdquo No seu livro intitulado A vida passadaa limpo (1958) no poema ldquoNudezrdquo ele escreve um verso que refaz o percurso da seacuterie tempo homens e vida pre-sentes 20 anos depois ldquoMinha mateacuteria eacute o nadardquo Aleacutem da trajetoacuteria insuspeita dos versos a elaboraccedilatildeo de umalinha mais tensa em direccedilatildeo a uma genealogia do esvaziamento do sentido

18 NOVARINA Valegravere Diante da palavraTrad Angela Leite Lopes Rio de Janeiro 7Letras 2009 p 19

19 Ibidem p 20 e 21