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Definir metafísica, “demonstração ontológica”... Ao final dessa leitura, deve-se ter entendido (ou tentado entender) que: KANT Numa época de revisão geral, em que valores são contestados, reavaliados, substituídos e muitas vezes, recriados, a crítica tem papel preponderante. Essa, de fato, é uma das principais características do Iluminismo, que, submeteram tudo ao crivo da razão. Entretanto, ninguém foi tão longe quanto Kant, que colocou a própria razão sob julgamento. Mais do que isso, com ele a crítica assume um sentido preciso e se torna uma atitude sistemática. Radical, Kant não poupa a metafísica, que pretendeu construir uma concepção completa de Deus, a alma e o mundo. Nesta, a situação é de impasse. Proliferaram doutrinas, cada uma sustentando a sua “verdade”, mas que se perdem no dogmatismo, isto é, em raciocínios sobre ideias produzidas apenas pela razão, sem indagar se a própria razão tem capacidade para isso. Por isso, Kant recomenda aos que pretendem ser metafísicos: “É incontornavelmente necessário pôr de lado por um tempo seu trabalho, considerar tudo o que aconteceu até agora como não acontecido e antes de todas as coisas formular a pergunta: a metafísica é possível?”.

Palestra Filosofia da Ciencia

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Kant e Popper

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Definir metafísica, “demonstração ontológica”...

Ao final dessa leitura, deve-se ter entendido (ou tentado entender) que:

KANT

Numa época de revisão geral, em que valores são contestados,

reavaliados, substituídos e muitas vezes, recriados, a crítica tem papel

preponderante. Essa, de fato, é uma das principais características do

Iluminismo, que, submeteram tudo ao crivo da razão. Entretanto, ninguém foi

tão longe quanto Kant, que colocou a própria razão sob julgamento. Mais do

que isso, com ele a crítica assume um sentido preciso e se torna uma atitude

sistemática.

Radical, Kant não poupa a metafísica, que pretendeu construir uma

concepção completa de Deus, a alma e o mundo. Nesta, a situação é de

impasse. Proliferaram doutrinas, cada uma sustentando a sua “verdade”, mas

que se perdem no dogmatismo, isto é, em raciocínios sobre ideias produzidas

apenas pela razão, sem indagar se a própria razão tem capacidade para isso.

Por isso, Kant recomenda aos que pretendem ser metafísicos: “É

incontornavelmente necessário pôr de lado por um tempo seu trabalho,

considerar tudo o que aconteceu até agora como não acontecido e antes de

todas as coisas formular a pergunta: a metafísica é possível?”.

Os empiristas já haviam criticado a pretensão da metafísica, mas o

resultado, como em Hume, foi o ceticismo. Além disso, o dogmatismo e o

ceticismo coincidem em um aspecto fundamental: ambos falam de coisas, mas,

enquanto o dogmatismo tem certeza sobre as coisas, o ceticismo faz delas o

resultado da crença baseada no hábito.

Kant supera essas duas alternativas, que no fundo se reduzem a uma

só, com sua famosa “revolução copernicana”. Assim como Copérnico, que para

superar os impasses – a crise – da astronomia concebeu o modelo

heliocêntrico, invertendo o geocentrismo, Kant inverte a questão tradicional da

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metafísica: em vez de procurar conhecer as coisas, é preciso examinar antes o

próprio conhecimento e suas possibilidades.

------------------Com essa inversão, ele propõe um campo de

investigação, que denomina transcendental. Por esse termo, o

pensamento escolástico designava tudo o que pudesse ser dito a respeito

de um sujeito, mas sem que nada fosse acrescentado a esse mesmo

sujeito. Por isso, para Kant, “transcendental” refere-se ao que já está,

desde sempre, contido no sujeito – no caso, o sujeito do conhecimento.

Trata-se, então, de analisar esse sujeito na sua pureza, isto é, sem

acréscimos que, como tais, são-lhe necessariamente posteriores. O que é

posterior (a posteriore) ao sujeito é experiência sensível (ou empírica), e,

por isso, a investigação transcendental deve examinar o sujeito puro, a

priori, isto é, anterior a toda e qualquer experiência. Tal exame é

indispensável para verificar se o sujeito puro, por si só, é capaz do

conhecimento a priori, independentemente da experiência, pois é

exatamente isso que a metafísica pretende realizar. ------------------

MELHORAR A DEFINIÇÃO DE TRANSCENDENTAL

O conhecimento formula-se por proposições ou juízos. Uma proposição

do tipo “A é A” ou “A não é não-A”, que obedece tão somente ao princípio

lógico de não-contradição, é um juízo a priori, pois não depende de nenhuma

experiência. Mas esses juízos – que Kant chama de juízos analíticos – apenas

analisam o que já estava dito. Nada acrescentam ao conhecimento.

Os juízos sintéticos, ao contrário, ampliam o conhecimento, pois

realizam sínteses, isto é, a composição ou unificação de vários elementos.

Assim, o juízo do tipo “esta flor é vermelha”, em que se acrescenta ao sujeito

“esta flor” um predicado “vermelha” em que ele não continha. Nesse exemplo, o

juízo sintético depende da experiência sensível e é, portanto, a posteriore. Mas

esse conhecimento ampliado refere-se apenas a um sujeito singular (“esta

flor”); não apresenta caráter universal nem necessário.

Haveria juízos universais e necessários, como os analíticos, e que

também ampliassem o conhecimento, como os sintéticos? Tais juízos seriam

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juízos sintéticos a priori, formulados independentemente da experiência

empírica. São, no entanto, possíveis?

A matemática, por exemplo. Acreditou-se que sua universalidade e sua

necessidade se devessem ao fato de serem todos analíticos. Mas, se assim

fosse, não haveria nenhum acréscimo de conhecimento, o que é refutado pelo

evidente progresso da matemática.

Uma proposição como “7 + 5 = 12”, é, sem dúvida, universal e

necessária. Mas seria analítica? Ou seja, “12” já estaria contido na expressão

“7 + 5”? Essa expressão designa a união de “7” e “5”, mas, por mais que seja

decomposta analiticamente, sempre será “união de 7 e 5”, jamais “12”. Em

outras palavras, “12” é acréscimo e independe de qualquer experiência

sensível; a proposição “7 + 5 = 12” só pode ser um juízo sensível a priori.

Kant fornece outro exemplo: “A linha reta é a mais curta entre dois

pontos”. “Linha reta” refere-se a uma qualidade e nada diz sobre a grandeza

(quantidade). Há, portanto, um acréscimo (“mais curta”) à expressão “linha

reta”, e isso é obtido de modo universal e necessário, sem que seja preciso

medir empiricamente as distâncias de retas compreendidas entre infinitos

grupos de dois pontos. Os juízos sintéticos a priori são, então, possíveis.

Para Kant, o conhecimento começa com a experiência, mas sem por

isso originar-se nela. Isso porque a experiência pressupõe o sujeito como

condição de sua possibilidade, sem o que a palavra “existência” nem teria

sentido. O sujeito, então, deve apresentar capacidades ou faculdades que

possibilitem a experiência e o próprio conhecimento.

A primeira dessas faculdades é a sensibilidade, definida como “a

capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como

somos afetados por objetos (...)”. Na sensibilidade, essas representações se

dão de modo imediato pela intuição. Esta é empírica quando se referir às

sensações, isto é, aos efeitos causados na sensibilidade ao ser afetada pelos

objetos. Mas e antes disso?

“Mediante o sentido externo (uma propriedade da mente)”, diz Kant,

“representamo-nos objetos fora de nós e todos juntos no espaço (...)”. Por isso,

não é possível intuir um objeto a não ser representando-o no espaço, exterior

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ao sujeito (“fora de nós”). Mas o espaço não é fruto da abstração de dados

empíricos, como “esta casa”: imaginando, por abstração, que “esta casa” não

exista, resta o lugar, ou seja, “o espaço” que ocupava. Mas, para Kant, mesmo

esse lugar pressupõe o espaço “fora de nós”. Sem isso, como representar os

próprios lugares em que se situam os objetos da intuição empírica? O espaço,

portanto, é a condição a priori de possibilidade da intuição empírica.

Raciocínio semelhante pode ser feito a respeito do tempo. “A

simultaneidade ou a sucessão nem sequer se apresentariam à percepção se a

representação do tempo não estivesse subjacente a priori. Somente a

pressupondo pode-se representar que algo seja num mesmo tempo

(simultânea) ou em tempos diferentes (sucessivo).” O tempo é, então, uma

representação imediata que, como o espaço, torna possíveis as instituições

empíricas, como tal, só pode ser uma intuição pura.

Da intuição ao conceito

Kant escreveu três “Críticas” que são alicerces da sua filosofia crítica. As

“Crítica da Razão Pura”, “da Razão Prática” e “Crítica do Juízo”. Na primeira

das Críticas, Kant afirma que o conhecimento só pode provir da intuição, que

representa o objeto de modo imediato, e dos conceitos, com os quais as

representações são pensadas. No conhecimento empírico, as intuições

empíricas representam objetos, e os conceitos a que correspondem são

unificados em juízos sintéticos a posteriori. Mas de onde provêm os conceitos

na matemática dita “pura”, que prescinde da intuição empírica?

A resposta só pode ser uma: mediante a construção de conceitos.

“Construir um conceito”, diz Kant, “significa apresentar a priori a intuição que

lhe corresponde”. Tal intuição pura é possível, como prova a intuição pura do

espaço e tempo. É também possível intuir partes do espaço, sem que para isso

seja necessário “preenche-lo” com sensações. A partir dessa intuição, que é a

priori, pode-se construir, por exemplo, o conceito de triângulo e, de intuição em

intuição, proceder à síntese dos vários conceitos construídos, acrescentando

novos conhecimentos sobre o triângulo.

Se, desse modo, os conceitos da geometria são construídos a partir da

intuição do espaço, a “aritmética constrói seus conceitos de número através da

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adição sucessiva de unidades de tempo (...)”. Ambas as ciências, portanto, são

constituídas de juízos sintéticos a priori, o que possibilita tanto o acréscimo de

conhecimento quanto a universalidade e a necessidade de suas proposições.

Do conceito à experiência

O espaço e o tempo, como condições a priori de possibilidades da

intuição empírica, constituem a receptividade que define a sensibilidade. São

como receptáculos, ou seja, puras formas que previamente não continham

nada. O conteúdo (ou a matéria), isto é, aquilo que corresponde à sensação, só

pode provir a posteriori e é ordenado segundo certas relações de espaço e

tempo. Por isso, o objeto só pode ser intuído no tempo e no espaço e constitui-

se naquilo que Kant denomina fenômeno, isto é, “objeto indeterminado de uma

intuição empírica”.

“Objeto indeterminado” porque aparece na sensibilidade como múltiplo:

diversas representações são dadas juntas no espaço e no tempo, de modo

sucessivo. Determinar o objeto é ligar (sintetizar), numa certa unidade, as

diversas representações desse múltiplo. Na proposição “o calor dilata os

corpos”, por exemplo, são ligadas num juízo.

Mas se o objeto dado na intuição empírica é indeterminado, então a

síntese, que o determina, não pode estar nele. Nem na sensibilidade, pois é

nesta que o objeto indeterminado aparece como tal, no espaço e no tempo. A

síntese, portanto, pressupõe uma faculdade do sujeito do conhecimento cuja

ação seja exatamente a de sintetizar.

Essa faculdade é o entendimento, que Kant define como “faculdade de

pensar”. O pensamento é o conhecimento mediante conceitos, que são

sintetizados por juízos. Estes não se formulam ao acaso, mas de acordo, com

certas ligações e princípios da lógica, que, como tais, são dados a priori; são

condições de possibilidade dos próprios juízos.

Kant, na “Analítica Transcendental” da Crítica da Razão Pura, enumera

todas as formas possíveis de juízo segundo a sua função. Os juízos podem se

referir à quantidade e são universais, particulares ou singulares; em relação à

qualidade, são afirmativos, negativos ou infinitos e assim por diante. Tal

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enumeração é possível a priori, pois os juízos não apresentam nenhum

conteúdo empírico e referem-se apenas à forma do entendimento.

Dadas as formas possíveis de juízo, pode-se também estabelecer a

priori os possíveis conceitos que os juízos formulam. Esses conceitos – por

exemplo, substância, causa, necessidade, realidade, etc. – são puros, e Kant

os denomina categorias. Sem estas seria impossível “compreender algo do

múltiplo na intuição, isto é, pensar um objeto dela”.

A proposição “o Sol aquece a pedra”, por exemplo, unifica as intuições

empíricas “Sol” e “aquecimento da pedra”. A partir dessas intuições, apenas, só

seria possível formular o que Kant denomina “juízo da percepção”: “o Sol brilha

e a pedra aquece”. É preciso então que outro elemento, a priori, subordine as

intuições para que sejam pensadas. No caso, esse elemento a priori é a

categoria da causa. “O Sol aquece a pedra” implica uma relação de

causalidade, e isso só pode ser pensado mediante o conceito de causa.

Isso esclarece a possibilidade da física como ciência. Ela é constituída a

partir de categorias do entendimento e formula leis da natureza – por exemplo,

“tudo o que acontece é sempre predeterminado por uma causa segundo leis

constantes” –, que são juízos sintéticos a priori e, por isso, sempre universais e

necessários. O múltiplo da intuição empírica é então pensado sob tais

categorias e leis que o subordinam e sintetizam por uma ação do

entendimento, a subsunção.

Em outras palavras, não é a experiência que torna possível os conceitos

a que correspondem os objetos da física. Ao contrário, são os conceitos (puros

do entendimento) que tornam possível toda a experiência. Propriamente

falando, “experiência” não se refere à sensação causada quando a

sensibilidade é afetada por um objeto, mas àquilo que se torna possível pelo

entendimento, que é, por isso, seu autor. Do mesmo modo, “objeto da

experiência” corresponde ao fenômeno – “o objeto indeterminado de uma

intuição empírica” – que pode ser determinado e subsumido sob regras a priori

e categorias do entendimento.

A possibilidade do conhecimento objetivo ou da objetividade do

conhecimento é, portanto, dada pelo entendimento, que determina o campo da

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experiência possível e de seus objetos, cuja totalidade se chama natureza. A

física é a ciência da natureza porque determina a priori seus próprios objetos,

sobre os quais formula juízos universais e necessários.

Por tudo isso, o sujeito do conhecimento é legislador: ele torna possível

a representação (no espaço e no tempo) do fenômeno; impõe, a este,

determinações que o constituem como objeto da experiência, subsumindo-o a

leis da natureza; e legitima o conhecimento desse objeto como universal e

necessário. “A razão tem que ir à natureza”, diz Kant, “(...) não porém na

qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas na

de um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder às perguntas que

lhes propõe”. Também nesse sentido a razão é tribunal.

Ideias puras: simples ilusões

Mas se o objeto da experiência é apenas o que o sujeito constitui como

tal, o que é, antes disso, o objeto em si mesmo? A responsta é impossível. Pois

só se pode conhecer o que aparece ao sujeito como fenômeno, isto é, o

múltiplo no espaço e tempo e que é subsumido sob categorias. A coisa em si –

que Kant denomina númeno (do grego nounemon), em oposição a fenômeno –

não pode ser conhecida, pois está aquém de toda a experiência possível.

Não seriam, no entanto, possíveis os juízos sintéticos a priori sobre a

coisa em si? Essa é a pretensão da metafísica. E é o que ela faz, concebendo

ideias que não se referem a nenhuma experiência. A capacidade de conceber

ideias é a faculdade da razão propriamente dita, cuja ação é sintetizar as

categorias do entendimento.

Para que as representações do entendimento sejam reunidas em uma

unidade – pois sem isso não haveria síntese –, é preciso pressupor a condição

de possibilidade de tal unidade, isto é, o sujeito do conhecimento. Mas qual

seria a condição de possibilidade desse sujeito? Só poderia ser outro sujeito,

mas já sem condições, um incondicionado, que subsiste em si e por si: uma

substância, que a metafísica denomina alma. Ou então a causa – sob esse

conceito, o entendimento liga um objeto a outro, possibilitando o conhecimento

de um acontecimento; a partir disso, a razão concebe a série completa de

causas e acontecimentos, isto é, o mundo. Finalmente, a razão também pode

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conceber uma condição incondicionada de todos os possíveis (alma ou

mundo): Deus. Essas são as ideias puras da razão propriamente dita, e Kant

as examina com minúncia na “Dialética Transcendental” de sua Crítica da

Razão Pura.

Kant define a “dialética” como “uma lógica da ilusão”. De fato, a razão

tem a “ilusão de tomar a possibilidade lógica do conceito (já que ele não se

contradiz a si mesmo) pela possibilidade transcendental das coisas (...)”. É o

que ocorre com a ideia metafísica de alma. O sujeito, que não se confunde com

nenhum “eu” individual e empírico, é apenas a condição formal de conhecer

algum objeto como substância, e, como tal, não pode ser substância. É forma

(lógica) do conhecimento e não seu conteúdo; é sujeito transcendental.

Tal ilusão conduz também ao que Kant denomina “antinomias da razão

pura”, em que os juízos se contradizem em teses e antíteses, sem que uma e

outra apresentem falhas lógicas de raciocínio. Pode-se então afirmar

racionalmente que o mundo tem um limite no espaço e no tempo, ou, ao

contrário, que é ilimitado; que cada substância que o compõe reduz-se a partes

simples, ou que tudo é composto; que nele há uma causa última sem causa –

causa livre ou liberdade –, ou que o mundo é inteiramente regido por causas

necessárias; que existe um ser absolutamente necessário como causa do

mundo, ou que tal ser não existe. Do mesmo modo, todas as provas da

existência de Deus enfrentam dificuldades semelhantes.

As ideias da razão são ilusões, pois pretendem transformar o

transcendental em transcendente (aquilo que ultrapassa toda experiência

possível). O transcendental – as formas da intuição (espaço e tempo) e do

entendimento (categorias) – é apenas a forma da objetividade e não o próprio

objeto; é vazio de conteúdo e nada significa em si. A ilusão da razão consiste

em conferir a priori um significado a esse vazio, transformando-o em um objeto

transcendente, fora do alcance da experiência possível. A metafísica, então,

não é nem sequer falsa ou fictícia: é propriamente ilusão, esse vazio do não-

conhecimento, que é produzido pelo uso legítimo dos conceitos. É por tal

ilegitimidade que a metafísica deve ser condenada no tribunal da razão.

Mas, segundo Kant, “nossa capacidade cognitiva [de conhecimento]

sente uma necessidade bem mais alta do que simplesmente soletrar

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fenômenos segundo uma unidade sintética para poder lê-los como experiência

(...)”. Em outras palavras, o que deve ser condenado não são os metafísicos,

que foram levados a conceber suas doutrinas por essa necessidade inerente à

própria razão, mas o mau uso, ilegítimo, da razão, o que os levou à pretensão

de constituir a metafísica como ciência.

As necessidades da razão, no entanto, não são necessariamente as do

conhecimento, isto é, as de ordem teórica. Elas se situam antes na esfera da

ordem prática, e a metafísica, no fundo, propõe certas regras morais. Por que

então permanecer na ilusão da possibilidade de uma ciência, em vez de tomar

as ideias da razão não mais como conhecimento, mas como ideias reguladoras

da prática dos homens? “Crítica” também significa escolha: no caso, um novo

ponto de vista para abordar a metafísica.

POPPER

O fundamento da filosofia da ciência de Popper está na forma original

dele de demarcar a ciência da pseudociência em geral e da metafísica em

particular. Para ele, a questão é distinguir a ciência empírica de outras formas

de conhecimento que poderiam ser confundidas com ela, como a matemática

ou a metafísica. Identificar essa distinção com aquela de sentido e carência de

sentido é apenas uma estipulação verbal arbitrária, porque a demarcação não

é clara, nem definitiva: a pseudociência, a metafísica, ou o ‘mito’, como por

vezes a chamamos, podem transformar-se em ciência. Com efeito, o progresso

geral do conhecimento humano pode ser considerado uma conversão do mito

em ciência por sua sujeição ao exame crítico. O problema da demarcação é

assim interpretado por Popper como o problema de propor uma convenção

adequada, que caracterize o que consideramos ciência e quem deve ser

considerado cientista.

O saber começa com a proposta arriscada de hipóteses, para cuja

elaboração não podemos estabelecer regras. Uma hipótese será científica se

excluir algumas possibilidades observáveis. Para testá-la, aplicamos a lógica

dedutiva de modo a derivar dela enunciados de observação, cuja falsidade

refutaria a hipótese. Um teste científico consiste, pois, na procura insistente

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dessas instâncias falseadoras. Algumas hipóteses são mais falseáveis que

outras: elas excluem mais e desse modo tem maior probabilidade de ser

refutada. Quanto mais falseável for uma hipótese, menos provável ela será, e,

ao excluir mais, ela diz mais acerca do mundo, isto é, tem maior conteúdo

empírico.

Tudo significa que o método apropriado da ciência consiste em formular

hipóteses o mais falseáveis possível e, portanto, as que possuem o maior

conteúdo empírico e são logicamente as menos prováveis; e procurar

insistentemente por instâncias negativas para ver se alguns dos falseadores

potenciais são realmente verdadeiros.

Se uma hipótese sobrevive às tentativas de falseá-la, então, na

expressão de Popper, ela ‘provou sua força’ e pode ser aceita – mas nunca

estará conclusivamente estabelecida. A sobrevivência às sérias tentativas de

refutar a teoria corrobora a teoria, sendo maior a corroboração quanto maior for

a falseabilidade da teoria. Popper mostra que há uma diferença de atitude entre

aqueles que glorificam as confirmações e aqueles que buscam falseamentos;

no primeiro caso, a aceitação é dogmática; no segundo, é crítica. A ciência não

é um sistema de enunciados certos e bem estabelecidos. Nossa ciência não é

conhecimento: nunca pôde afirmar ter alcançado a verdade, ou mesmo um

substituto para ela, tal como a probabilidade de alcança-la. Não conhecemos:

somente podemos conjecturar.

A epistemologia biológica

Nos seus trabalhos mais recentes, Popper desenvolver algumas

consequências de sua filosofia anterior. Uma delas é que o conhecimento não

está fundado em fontes infalíveis, quer coloquemos essas fontes na razão quer

nos sentidos. As epistemologias racionalista e empirista convergem em sua

tentativa de substituir uma espécie de autoridade (a instituição religiosa ou os

textos sagrados) por outra (uma capacidade humana mental). Os dois tipos de

autoritarismo intelectual sustentam a opinião incorreta de que a verdade é

manifesta e consequentemente de que o erro é um enorme problema e sua

propagação se deve a uma conspiração empreendida com o propósito de

enganar.

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A segunda consequência é que a concepção empirista tradicional de

formação de conceitos – em particular, a ideia de Hume de que os conceitos

são adquiridos pela percepção da similaridade de conjuntos de impressões

particulares – é errônea, porque incorpora o mesmo erro indutivista da teoria de

Bacon e Mill. A semelhança não é passivamente apreendida; ao contrário,

classificamos as coisas à luz de pré-concepções e expectativas anteriores.

Popper acredita que abordamos o mundo da experiência com propensões

inatas, em particular, com uma expectativa geral de regularidade que é

biologicamente justificável, embora não seja logicamente justificável. A

influência kantiana é claramente visível neste ponto da filosofia de Popper. Em

certo sentido a proposição de que a natureza contém regularidades, por não

uma ser uma verdade lógica, nem uma verdade empírica, pois não é falseável,

parece possuir uma espécie de necessidade biológica como característica

geral do intelecto humano ativo.