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Panorama do Pensamento Cristão_Michael Palmer

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  • CB4D

    Ti

    ygfgf* V H^ 5i -

    Compilado e editado por Michael D. Palmer

  • Panorama do pensamento

    CristoCompilado e editado por Michael

    D. Palmer

    Prefcio de Russel P. Spittler

  • REIS BOOKS DIGITAL

  • Todos os direitos reservados. Copyright 2000 para a lngua portuguesa da Casa Publicadora das Assemblias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

    Ttulo do original em ingls: Elements o f a Christian Worldview Gospel Publishing House, Springfield, Missouri, USA Primeira edio em ingls: 1998 Traduo: Lus Aron de Macedo

    Preparao de originais: Jefferson Magno Reviso: Alexandre Coelho e Kleber Cruz

    Capa: Alexander Diniz Projeto grfico: Daniel Bonates Editorao: Osas Felcio Maciel

    CDD: Filosofia-201 ISBN: 85-263-0303-1

    As citaes bblicas foram extradas da verso Almeida Revista e Corrigida, Edio de 1995, da Sociedade Bblica do Brasil, salvo indicao em contrrio.

    Casa Publicadora das Assemblias de DeusCaixa Postal 33120001-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    Ia edio/2001

  • Dedicatria

    Para meus pais,Don eThelma Palmer,

    que foram bem-sucedidos em me transmitir a f e sempre me incentivaram para que eu buscasse a verdade,e para meu filho de 18

    anos, Bradley Charley Palmer que, na poca de sua morte trgica ocorrida

    em 22 de novembro de 1997, j sabia profundamente muitos dos conceitos

    centrais apresentados neste livro.

  • Sumrio

    Introduo / 7 Prefcio / 11 Agradecimentos / 13 Lista de Colaboradores / 151. Panorama do Pensamento Cristo / 1 7

    Michael D. Palmer2. O Rapei da Bblia na Formao do Pensamento Cristo / 79

    Edgar R. Lee3. Vozes do Passado: Tentativas Histricas para Formar um

    Pensamento Cristo / 109 Gregory J. Miller

    4. O Cristo e a Cincia Natural / 149Lawrence T. McHargue

    5. Uma Perspectiva Sobre a Natureza Humana / 181Billie Davis

    6. Trabalho / 223Miroslav Volf

    7. Entrando no "Descanso Divino": Rumo a uma Viso Crist de Lazer / 247

    Charles W. Nienkirchen8. A tica de Ser: Carter, Comunidade, Prxis / 293

    Cheryl Bridges Johns e Vardaman W. White9. Msica que Vem do Corao da F / 325

    Johnathan David Horton10. O Lugar da Literatura no Pensamento Cristo/ 351

    Twla Brown Edwards11. Os Cristos e a Cultura da Mdia de Entretenimento / 391

    Terrence R. Lindvall e J. Matthew Mellon12. Poltica para Cristos (e Outros Pecadores) / 427

    Dennis McNutt

    Apndice 1: Reflexes sobre os Significados da Verdade / 470 Michael D. Palmer

    Apndice 2: Jean-Paul Sartre / 487 Michael D. Palmer

    Apndice 3: Karl Marx / 489 Michael D. Palmer

    Apndice 4: A Msica e o Espao de Execuo / 493

  • ELEMENTOS DE UMA COSMOVISO CRIST

    Johnathan David HortonApndice 5: A Msica e o Estilo de Adorao / 497

    Johnathan David HortonApndice 6: C . K. Chesterton no Poder dos Contos

    de Fada / 502Twila Brown Edwards

    Apndice 7: C. S. Lewis / 504 Twila Brown Edwards

    Apndice 8: Thomas FJobbes e a Teoria de Contrato de Justia/506

    Michael D. PalmerApndice 9: John Locke e a Teoria dos Direitos

    Naturais / 509Michael D. Palmer

    Apndice 10: Os Direitos/ 512 Michael D. Palmer

    Apndice 11: A Justia / 516 Michael D. Palmer

  • IntroduoMuitas palavras do vocabulrio ingls (e tambm do portugu

    s) vm dos idiomas grego e latino. Palavras to comuns quanto agenda ou exit (sada) vm diretamente do tempo dos autores clssicos. Outras palavras, entretanto, entraram em nossa lngua sem serem percebidas, provenientes de alguma outra cultura. Khaki (cqui) originria de um termo paquistans. Bureau (agncia, repartio) francs puro. Corridor (corredor), palio (ptio) e plaza (praa) so termos espanhis autnticos, e chocolate provm diretamente do dialeto asteca.

    Cosmoviso, a palavra que define o ponto central deste livro, alcana a lngua portuguesa como se tambm fosse um emigrante lingustico. O idioma alemo tem uma grande propenso para palavras compostas. S para dar um exemplo extremo, eis um termo alemo para tanque militar: Schutzengrabenzerstrungsautomobil. Pelas mesmas leis do idioma, este um sinnimo: der Panzer. A palavra cosmoviso junta lado a lado duas palavras equivalentes em portugus como traduo lite ra l do termo alemo Weltanschauung termo com longa e nobre herana filosfica.

    Inventado por filsofos alemes, Weltanschauung descreve um modo de ver o mundo. Algum poderia supor que o mundo uma iluso; que as coisas no so reais. Outros poderiam dizer, como fazem os idealistas de todas os tempos, que existe mais coisas no mundo do que se pode ver. Outros ainda poderiam concluir que o mundo inspito e irremedivel, levando ao desespero.

    Em vez de aportuguesar Weltanschauung para a palavra cosmoviso , os linguistas teriam feito um favor aos povos de fala portuguesa sendo um pouco menos complicados. Traduzir Weltanschauung como perspectiva ou mesmo atitude no teria representado uma traduo longe do seu significado, a no ser pelo fato de que o termo tcnico alemo refere-se especificamente atitude da pessoa para com o mundo.

    Que mundo ? As vastas extenses do universo estrelado? O pleno complemento das culturas humanas de nosso globo? Ou possivelmente o mundo que entra em nosso vocabulrio mediante alguma presso que algum exerce de maneira incorreta e forada sobre a Escritura? Ao usar essa palavra, a tradio filosfica alem certamente tinha em mente o mundo material e o universo invisvel, o mundo visvel e as galxias que o nosso intelecto capaz de imaginar que existam. A noo que as pessoas tm da realidade constitui a cosmoviso delas.

    At onde sei, no h palavra bblica que possa equivaler palavra cosmoviso . Porm encontramos nas pginas das Escrituras uma atitude normativa em relao ao mundo visvel e invisvel. A li existe - ainda que os telogos no faam muita conta disso - uma teologia do mundo.

    A cosmologia qualificada como um termo que descreve como

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    as pessoas pensam a respeito do mundo. Os astrnomos e cientistas usam o termo para definir uma cincia do universo distante. Os telogos usam o mesmo termo para reunir doutrinas bblicas relacionadas com a origem e o destino do mundo visvel chamado em grego (inclusive o grego do Novo Testamento) de cosmo. (O termo cosmtico obteve sua qualidade de beleza proveniente da admirao grega da simetria deslumbrante dos cus.)

    A outra palavra importante no Novo Testamento grego traduzida por mundo vai numa direo diferente. Oikoumen descreve a soma total das culturas humanas. Considerando que esta palavra primeiro definia uma casa de fam lia, fcil entender como veio significar sociedade organizada, levando, por um lado, palavra economia e, por outro, palavra ecumnico . Assim , as palavras bblicas usadas para descrever o mundo foram tomadas de outros significados comuns. Mas neste livro s nos preocuparemos em falar sobre uma teologia do mundo.

    Detectei no Novo Testamento um uso duplo da idia de mundo e como os cristos deveriam v-lo. H uma viso joanina do mundo um sistema organizado de oposio humana, demonaca at, e que peca contra Deus. Deste ponto de vista, segundo um grupo de passagens do Evangelho de Joo, das Epstolas de Joo e do Apocalipse, os verdadeiros crentes so aconselhados a evitar o mundo o que pode ser chamado de este mundo mal , um setor da sociedade que acha-se em oposio Igreja. Este o mundo a evitar, a afastar-se, e sua existncia torna necessria a nossa santidade (separao do mundo).

    O outro elemento da idia de mundo na Escritura paulino. A viso de Paulo do mundo mais sangunea do que a de Joo. Essa diferena pode refletir as diferentes experincias de suas respectivas vidas. Tradicionalmente, Joo foi considerado um pescador rural; Paulo, como cidado de Roma, um sofisticado e frequente viajante. H, portanto, contrastes distintos nas atitudes de Joo e de Paulo em relao ao mundo. Nutridos pelas Escrituras judaicas, ambos vem Deus como o Criador de tudo o que h. Ambos encaram Deus como estando no controle de todos os acontecimentos humanos. Ambos sabem que o sistema mundial presente passageiro, que logo passar. Ambos, junto com Pedro, esperam um novo cu e uma nova terra.

    Porm, a diferena entre os dois jaz na opinio sobre o que fazer no campo da cultura humana neste tempo presente. Joo mal consegue achar alguma coisa boa no atual mundo de pessoas e coisas. Por outro lado, Paulo eleva sua retrica majestosa em louvor do controle de Deus sobre todo empreendimento humano, o que ele v como reflexos manchados, mas autnticos, da imagem de Deus residente em toda pessoa e, por conseguinte, em toda cultura humana.

    Claro que tanto Joo quanto Paulo levam em conta o pecado para fazerem a anlise fundamentalmente correta da condio humana falha. Ambos olham para as metforas da transformao di-

  • vina da biologia novo nascimento, segundo nascimento, vinhas e podas, vida etema e coisa parecida. Paulo, treinado como advogado, prefere a linguagem judicial culpa, julgamento, adoo, justificao, absolvio.

    Os cristos pensantes podem obter ajuda de Paulo e Joo. As maquinaes da humanidade cada realmente agrupam-se nos bolses da cultura humana pornografia, leis injustas, trapaas sistemticas nos negcios ou na educao, para nomear apenas algumas. Os cristos de tradies arminianas, que ressaltam a liberdade humana, parecem inclinar-se s obscuras vises do mundo como algo a evitar, um reino do qual se separar. Tais idias vagas foram teologizadas especialmente nos setores metodista, holiness e pentecostal da Igreja.

    Porm, noes igualmente bblicas sobre a cultura humana emergem dos escritos do apstolo Paulo e aparecem em partes da Igreja afetada pela tradio reformada. Por exemplo, considere esta afirmao feita por Paulo num contexto de aconselhamento dado aos cristos corntios que se limitavam aos embaixadores favorecidos da verdade crist: Tudo vosso: seja Paulo, seja Apoio, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, seja o presente, seja o futuro, tudo vosso, e vs, de Cristo, e Cristo, de Deus (1 Corntios 3.21-23).

    Tudo vosso , a herana dos cristos. Tudo da cultura humana: toda arte, toda msica, todos os atos hericos da abnegao, toda nobreza, toda compaixo. Nada foi omitido. Tudo pertence ao cristo. Os heris da f. O violinista mestre. Os fabricantes de filigrana de prata pura. O evangelista eloquente. Corrie ten Boom. Albert Einstein. Os bosques de tigre. Paulo, Apoio e Cefas: O Senhor no pretendeu que ningum limitasse a receptividade a qualquer uma das criaturas de Deus. Tudo vosso: todas as pessoas, at todas as coisas.

    O editor dos captulos deste livro, e os prprios autores, fornecem aqui recursos repletos de reflexo para que por meio deles possa ser construda uma cosmoviso de amplitude que mescle Paulo e Joo. Estas palavras sbias ajudaro seguidores pensativos de Jesus a saber o que evitar no mundo, do que se afastar. Mas tambm sero de ajuda na avaliao de tudo o que bom na cultura humana, e na considerao das reflexes coletadas das mais altas criaturas do Senhor que, embora manchadas e sozinhas entre todos os seres viventes, encarnam a imagem de Deus.

    Recomendo este livro aos cristos pensativos de todos os lugares, e especialmente aos adultos jovens que esto comeando a aprender a considerar a imensido e diversidade do mundo de Deus.

    Russel P. SlittlerReitor e Professor do Novo Testamento no Fuller Theological Seminary

  • Prefcio do EditorO prefcio frequentemente a parte menos lida de um livro.

    Espero que este seja uma exceo, porque o objetivo deste livro e as preocupaes filosficas que o inspiraram esto explicadas aqui.

    Conforme o ttulo d a entender, este livro considera certos componentes ou fatores elementos, como os chamo que constituem uma cosmoviso. E um livro escrito por estudiosos cristos destinado a cristos que buscam respostas claras e slidas s questes fundamentais que esto a confront-los nos inmeros aspectos da vida. Mais particularmente, foi escrito para todos os cristos que se sentem intensamente confrontados por esses questionamentos. Alguns captulos aliceram-se em algumas disciplinas acadmicas. Outros tratam de assuntos cotidianos da vida. E outros, ainda, concentram-se em fenmenos culturais.

    Enquanto medito na distribuio dos captulos e as ligaes entre eles, a palavra mais descritiva que me vem mente montagem: quadros separados foram combinados para formar um quadro composto. Embora os captulos sejam unidos uns aos outros de vrios modos, cada um pode ser lido independentemente.

    Conseqiientemente, o leitor procurar em vo por um nico e contnuo argumento do princpio ao fim . No se trata desse tipo de livro. No obstante, ele exibe periodicamente certo tema recorrente: a integrao da f, da aprendizagem e da vida. Integrar coordenar ou misturar informaes, fatos e concluses num todo funcional e unificado. Integrar a f, a aprendizagem e a vida significa desenvolver para ns mesmo um modo completamente cristo de pensar e responder a assuntos e todos os tipos de situaes da vida. Significa desenvolver uma perspectiva distintamente crist em todos os assuntos da f, todos os modos de investigao e todas as profundas questes que a vida levanta.

    A integrao em sua expresso mais rica pensar e agir de modo completamente cristo no nem facilmente alcanada, nem alcanada de uma vez por todas. De fato, melhor no pensar nela como uma realizao, absolutamente. E la na verdade mais um processo que continua ao longo da vida medida que refletimos no significado de nossa f e intentamos permitir que isso molde nossas respostas a novas idias e experincias.

    Infelizmente, o que vemos com mais frequncia que integrao alguma forma de justaposio. Justapor duas coisas p-las uma ao lado da outra. A interao entre elas pode ser real de certa maneira, mas o mbito da interao total est limitado, e as duas nunca esto verdadeiramente unidas. O estudante de psicologia estar to-somente justapondo sua f e seu curso universitrio se no pensar cuidadosamente sobre como suas convices crists rela- cionam-se com as teorias da personalidade que ele est estudando em sala de aula. O jovem gerente empresarial est meramente justapondo sua f e sua profisso, se ele no permite que as implica

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    es morais do seu sistema cristo de convico influenciem sua poltica de administrao.

    Em geral, justapomos (ou colocamos lado a lado) nossa f e nosso curso universitrio, ou nossa f e nossa profisso, ou nossa f e qualquer outro aspecto de nossa vida.

    Quando falamos da f fazendo evidente diferena sobre como pensamos e nos expressamos, queremos dizer mais que simplesmente poder declarar nossas convices clara e sucintamente. A doutrinao pode alcanar esses resultados. Mas integrao e doutrinao no so a mesma coisa. A doutrinao busca a aceitao inquestionvel de respostas desenvolvidas por outra pessoa, normalmente uma figura de autoridade, enquanto que a integrao requer que descubramos para ns mesmos, mesmo que algum nos ajude no processo. A integrao, mesmo quando d ifcil e dolorosa, promove a f madura.

    Com estas distines em mente, apresso-me em observar que este livro uma tentativa deliberada de dirigir-se queles a quem a doutrinao no uma resposta aceitvel para as grandes (e d ifceis) questes da vida. E um livro que explora idias, conceitos e princpios, alguns dos quais controversos e todos resistentes a respostas fceis. Presume uma medida de maturidade por parte do leitor. Alm disso, pressupe e encoraja uma abordagem integrada aos assuntos de que trata.

    O primeiro captulo apresenta os elementos bsicos de qualquer cosmoviso. So, segundo minha concepo: 1) ideologia, 2) narrativa, 3) normas morais e estticas, 4) rituais, 5) experincia e 6) o elemento social. O restante dos captulos lida, de uma maneira ou de outra, com aqueles seis elementos enquanto os vemos desenvolvidos numa cosmoviso crist. Em cada caso, os autores dos captulos se esforaram por fornecer mais que informao sobre suas respectivas disciplinas e campos de habilidade. Eles procuraram modelar o que significa pensar cristmente para verdadeiramente integrar a f, a aprendizagem e a vida. minha esperana que as palavras deles venham a servir de estmulo a muitos cristos, para que vivenciem o significado de sua f em cada aspecto de suas vidas.

    Michael D. Palmer Professor de Filosofia Evangel University

  • AgradecimentosOs autores em geral isentam todas as pessoas que os ajudaram

    da responsabilidade por quaisquer erros ou deficincias no texto. Porm, mesmo que os erros e as deficincias sejam meus, o crdito deles pertence a muitos amigos e colegas. Todos somos produtos do que as outras pessoas nos ajudaram a ser. Com relao a este livro, muitas pessoas ajudaram no processo desde a formao da idia in icial at a criao do produto final e desejo reconhecer minha considervel dvida para com eles.

    A junta diretora editorial da Logion Press merece crdito pela confiana depositada em mim para empreender este projeto, e pela pacincia e apoio no processo. David Bundrick, presidente da junta quando este livro foi proposto pela primeira vez, trabalhou com afinco para assegurar que o projeto tivesse um bom comeo. Dayton Kingsriter, que sucedeu Bundrick como presidente da junta diretora editorial, dedicou muitas horas a este trabalho. Agradeo-lhe pelo empenho como facilitador. Jean Lawson, editor administrativo, e Glen Ellard, editor de publicaes, foram de grande auxlio, agradveis e profissionais em todos os sentidos. Sou grato a Leta Sapp pelo design do lay-out e texto. Kim Kelley fez excelente trabalho coordenando o lay-out e design do livro. Desejo expressar agradecimento especial ao Dr. Stanley Horton, editor geral, pela ateno cuidadosa que deu aos vrios desenhos de cada captulo. Alm do mais, desejo agradecer-lhe pelo apoio moral e pacincia que me estendeu durante o desenvolvimento do livro. Acabei tendo profundo afeto por ele como pessoa e considervel respeito por sua habilidade como editor. Trata-se de um homem em quem no h dolo um cavalheiro no mais verdadeiro sentido da palavra e considero um privilgio ter trabalhado com ele.

    Que prazer foi trabalhar com os autores colaboradores! Seus escritos estimularam meu pensamento alm de qualquer coisa que eu tivesse imaginado no incio.

    Localmente, a Evangel University tem sido um lugar maravilhoso para eu amadurecer como estudioso desde que cheguei no campus em 1985. Desde os primrdios deste projeto, o Dr. Glenn H. Bemet Jr., Vice-presidente para Assuntos Acadmicos, deu encorajamento para o projeto e dinheiro! Ele tem sido o principal responsvel por eu haver recebido subsdio do Fundo para Projetos dos Alunos/Faculdade da universidade que subscreveu as vrias despesas associadas com o desenvolvimento do livro.

    Muitos estudantes na Evangel University tambm contriburam para a qualidade global deste livro. Durante duas sesses de vero (1996 e 1997), os estudantes de um curso de educao geral intitulado Filosofia Crist leram as primeiras verses de alguns dos captulos que aparecem aqui e fizeram comentrios proveitosos. Estou satisfeito por terem levado a srio meu convite para fazerem um comentrio sobre todos os aspectos do manuscrito.

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    Estou em dbito com vrios colegas que leram e teceram comentrios sobre certos captulos. Larry Dissmore, do Departamento de Msica, fez comentrios sobre o captulo de msica. Turner Collins, do Departamento de Cincia e Tecnologia, props numerosos comentrios teis no captulo de cincia. Eu mesmo no poderia ter escrito meu principal captulo sobre cosmoviso sem a ajuda generosa de Tw ila Edwards (Estudos Bblicos) e James Edwards (Humanidades). Quando em certo ponto no desenvolvimento do captulo cheguei a um impasse, eles dedicaram quase um fim de semana inteiro lendo o manuscrito e discutindo comigo numerosos assuntos organizacionais e substantivos.

    Michael Buesking, do Departamento de Humanidades, produziu virtualmente todos os trabalhos de arte no texto. Os esboos do seu lpis me so fonte contnua de satisfao e orgulho. Sinto-me honrado por seus nomes aparecerem neste livro. Stan Maples, do Departamento de Humanidades, projetou a capa para o livro. Agradeo a Stan por sua pacincia em ouvir minhas idias para o design da capa e reconheo sua considervel habilidade em transformar minhas idias imprecisas em imagens que prendem a ateno.

    Aos meus colegas do Departamento de Estudos Bblicos e F ilosofia, que me incentivaram para que eu empreendesse este projeto e que me proporcionaram ajuda ao longo dele, expresso meus agradecimentos. Gary Liddle, cujas funes pedaggicas habituais encontram-se nos estudos bblicos, mas que na verdade um generalista ao estilo renascentista, o heri no aclamado por trs deste livro. Ele cr nos conceitos, entende-os de certa maneira melhor do que eu e, portanto, suas palavras tiveram peso especial nas conjunturas cruciais ao longo do caminho. Ele ofereceu anlise extensa sobre vrios captulos. Suas perguntas eram investigadoras e seus comentrios muito prestimosos.

    M inha esposa, Connie M arie , fo i e tem sido minha incentivadora e minha companheira favorita no desenvolvimento deste livro, como em tudo o mais, sine qua non.

    M . D. P.

  • Lista de ColaboradoresBillie Davis, Ed.D. (Administrao & Sociologia, University of

    Miami, Flrida), Professor Emrito e ex-Ctedra do Departamento de Cincias Behavioristas da Evangel University, em Springfield, Missouri.

    Twila Edwards, M.A. (Literatura Inglesa, Southwest Missouri State University), M A. (Literatura Bb lica, Assemblies of God Theological Seminary), Professora Associada de Estudos B b licos na Evangel University, em Springfield, Missouri.

    Johnathan David Horton, Ph.D. (Msica, George Peabody College for Teachers), Professor de Msica na Lee University, em Cleveland, Tennessee.

    Cheryl Bridges Johns, Ph.D. (Educao Crist, Southern Baptist Theological Sem inary), Professor Associado de Discipulado e Formao Crist no Church of God Theological Seminary, em Cleveland, Tennessee.

    Edgar R. Lee, S.T.D. (Teologia, Emory University), Vice- presidente para Assuntos Acadmicos no Assemblies of God Theological Seminary, em Springfield, Missouri.

    Terrence Lindvall, M.Div. (Fuller Theological Seminary), Ph.D. (Comunicao, University of Southern Califrnia), Professor de Cinema e Estudos de Comunicao na Regent University, em Virginia Beach, Virgnia.

    Lawrence T. McHargue, Ph.D. (B io logia, University of Califrnia, Irvine), Professor de Biologia na Southern Califrnia College, em Costa Mesa, Califrnia.

    Dennis McNutt, Ph.D. (Governo, Claremont Graduate School), Professor de Histria e Cincias Polticas na Southern Califrnia College, em Costa Mesa, Califrnia.

    J. Matthew Melton, Ph.D. (Regent University), Ctedra de Comunicao e Letras na Lee University, em Cleveland, Tennessee.

    Gregory J. Miller, Ph.D. (Estudos Religiosos Histria do Cristianismo, Boston University), Professor Associado de H istria Ec le si stica no V alley Forge Christian College, em Phoenixville, Pensilvnia.

    Charles W. Nienkirchen, Ph.D. (H ist ria , W aterloo University), Professor de Histria Crist e Espiritualidade no Rocky Mountain College em Calgary, Alberta, Canad. Ele tambm serve como Professor Adjunto em faculdades de graduao de diversos seminrios canadenses.

    Michael D. Palmer, Ph.D. (Filosofia, Marquette University), Professor de Filosofia e Ctedra do Departamento de Estudos B b licos e Filosofia na Evangel University, em Springfield, Missouri.

    Miroslav Volf, Th.D. (Teologia Sistemtica, Eberhard-Karls Universitt, Tbingen), Professor em Teologia do Henry B . Wright na Yale University, em New Haven, Connecticut.

    Vardaman W. White, candidato a Ph.D. (Teologia e tica, University of Iowa), vive e trabalha em Atlanta, Gergia.

  • 1Panorama do pensamento

    Cristo

    Michael D. Palmer

  • 18 MICHAEL D. PALMER

    No frequente ler um livro que me surpreenda, muito menos um que cause em mim uma impresso impactante. Mas fiquei surpreso e impressionado com o romance de Chiam Potok, The Chosen (O Escolhido). No incio do romance, Reuven, o narrador, confessa: Durante os primeiros quinze anos de nossas vidas, Danny e eu morvamos a cinco quarteires um do outro e nenhum de ns sabia da existncia do outro .1 Minha infncia e primeiros anos de adulto foram passados numa cidade de tamanho mdio nas montanhas do Estado de Montana ocidental, Estados Unidos, onde eu conhecia todos os vizinhos de vrios quarteires em todas as direes. Assim , quando essa observao no livro de Potok, minha imaginao foi instigada. Descobri, enquanto lia, que Reuven e Danny estavam impedidos de ser amigos, porque seus amigos mais chegados, fam lia e especialmente seus pais, tinham adotado cosmovises competidoras. Observar a coliso destas cosmovises impressionou minha imaginao e marcou um ponto crucial em minha reflexo sobre as principais foras da convico e do sentimento que animam minha prpria cos- moviso crist.

    Dois Meninos, Dois MundosReuven Malter e Danny Saunders eram meninos judeus que

    cresceram nos anos de 1940, em um bairro densamente povoado do Brooklyn. At os anos da adolescncia, no sabiam nada um do outro porque pertenciam a seitas diferentes, ou da mesma ramificao do judasmo, com marcantes diferenas na cosmoviso. A fam lia e amigos de Danny eram judeus hassdicos, profundamente conservadores com origens na Rssia. Em sua vida cotidi- ana, comunicavam-se em idiche e observavam certas prticas culturais que inequivocamente os identificavam como hassidim.

    Por exemplo, os homens usavam chapus pretos e casacos pretos longos, e cultivavam barbas fartas e cachos de cabelo pegados aos lados do rosto; os meninos usavam cachos de cabelo pegados

    O hassidismo um movimento judaico fundado na Polnia no sculo X V III por um homem chamado Baal Shem Tov. O nome hassidism o deriva da palavra hassidim , que significa os piedosos . O movimento hassdico surgiu como reao s perseguies e ao formalismo acadmico do judasmo rabnico. Desde seu incio,

    incentiva a expresso religiosa jovial por meio da msica e da dana, e ensina que a pureza de corao mais agradvel a Deus do que a aprendizagem . Em 1781, os talm udistas declararam hertico o hassidismo. No obstante, o movimento continuou crescendo e hoje uma presena forte e vital na vida judaica.

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 1 9aos lados do rosto e tinham franjas no lado de fora de suas calas compridas. A fam lia e amigos de Reuven, ao contrrio, praticavam uma ortodoxia judaica menos conservadora. Em sua vida cotidiana comunicavam-se principalmente em ingls, usavam rou-

    O idiche um idioma do alto alemo escrito em caracteres hebraicos que se desenvolveu durante a Idade Mdia. A palavra idiche a forma abreviada de idiche daytsh, que significa literalmente judeu-alemo . Os linguistas classificam o idioma como membro do grupo germnico ocidental, da subfamlia germnica pertencente famlia indo-europia de idiomas.

    Antes do aniquilamento de 6 milhes de judeus pelos nazistas durante a dcada de 1940, o idiche era a lngua de mais de 11 milhes de pessoas. Embora no seja uma lngua nacional, hoje o idiche falado no mundo inteiro por mais de 4 milhes de judeus, especialmente nos Estados Unidos, Israel, Argentina, Canad, Frana, Mxico, Rssia, Ucrnia e Romnia.

    pa americana comum e no tinham barba ou cachos de cabelo ao lado do rosto. Enquanto tanto os Maiter e os Saunders ansiavam pelo retorno dos judeus sua ptria, suas ideologias ditavam caminhos muito diferentes para que isso acontecesse. O pai de Danny, o rabino Saunders, como outros na comunidade hassdica, asseverava que os judeus s poderiam voltar sua ptria depois da chegada do seu to esperado Messias.

    O pai de Reuven, por outro lado, juntava-se ao sionismo, um movimento ideolgico que lutava para estabelecer o Estado de Israel. Alm de diferirem sobre assuntos polticos importantes, os Saunders e os Maiter divergiam nas atividades cotidianas, como o

    *7onTor quer dizer ensinos ou apren

    dizagem . Os judeus usam a palavra de duas maneiras relacionadas, mas distintas. Primeiro, Tor o nome hebraico para o Pentateuco, os cinco primeiros livros da B b lia. A Tor, ou Le i Escrita, que os ju deus ortodoxos acreditam que foi revelada diretamente por Deus a M oiss no monte S in a i, estabelecia certas le is da moral e comportamento fsico . Segundo, o nome Tor usado num sentido mais

    amplo para referir-se a todos os ensinos do judasm o , in c lu s ive toda a escritura hebraica, o Talmude e qualquer outra in terp retao rabn ica geralmente aceitada.

  • 20 MICHAEL D. PALMERentretenimento. Danny e Reuven nunca teriam se encontrado em um teatro, porque a cosmoviso do rabino Saunders proibia assistir filmes.

    Tanto o ramo hassdico de Danny quanto o ramo ortodoxo de Reuven acreditavam em Deus e ressaltavam a importncia da Tor. No obstante, os hassidim viam o povo de Reuven com suspeita. Eles os chamavam de apikorsim, termo de zombaria usado para referir-se aos judeus que abandonavam as prticas culturais tradicionais e negavam certas doutrinas bsicas da f judaica, como a existncia de Deus, sua revelao e a ressurreio dos mortos. Tambm dizia respeito aos judeus que liam a Tor em hebraico e no em Idiche, um pecado imperdovel aos olhos dos hassidim, porque o hebraico era a lngua santa. Us-la em discurso comum de sala de aula era considerado uma profanao do nome de Deus.

    Claro que o povo de Reuven no negava a existncia de Deus. Porm, sua educao diferia de maneira notvel da educao das crianas hassdicas. Enquanto a cosmoviso hassdica restringia a educao principalmente aos assuntos religiosos aprovados, a cosmoviso ortodoxa acrescentava religio tais estudos como cincia moderna e psicologia, tpicos profundamente suspeitos para o rabino Saunders.

    No princpio da dcada de 1940, com o pas completamente comprometido com os esforos da guerra, alguns professores de ingls nas escolas paroquiais judaicas (yeshiva) sentiram a necessidade de fazer uma declarao ao mundo gentio . Eles queriam mostrar que os estudantes yeshiva, conhecidos por seu estilo de

    *7atwtudeA palavra Ta/mude quer dizer literalmente

    aprendizagem ou instruo . No judasmo, o nome de uma obra composta de duas partes: A Lei Oral judaica e os comentrios rabnicos de acompanhamento. O texto da Lei Oral (escrito em hebraico) chamado Mishn;

    o texto dos comentrios rabnicos de acompa-

    nhamento (escrito em aramaico) chamado Gemara. A Gemara desenvolveu-se das interpretaes da Mishn feitas por estudiosos ju deus (fariseus de c. 200 a.C. a c. 500 d.C .), cujos argumentos excessivamente minuciosos tornaram a obra fonte valiosa de informao suplementar e comentrio.

    vida repleto de estudos, eram fisicamente capazes como qualquer outro. Para fazerem isso, organizaram as escolas de bairro numa liga de softball, forma modificada de beisebol jogado com bola mais macia e maior. Como era de se esperar, os rabinos que ensinavam nas yeshivas encararam o beisebol com ceticismo. Para eles, era um nocivo desperdcio de tempo. Eles temiam seu forte apelo, temiam que seduziria os jovens a abandonar sua identidade judaica, temiam que faria com que os jovens quisessem assimilar as idias e cultura americanas. Mas os jovens resolveram adotar o

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    jogo e enfrentar o preconceito de serem americanos. Para eles, uma vitria no beisebol entre as ligas representou somente um valor menos significativo do que uma nota alta no Talmude . O sucesso no beisebol permitiu-lhes considerar-se a si mesmos participantes plenos na vida da nao: Foi uma inquestionvel marca do americanismo, e ser considerado um americano leal tinha se tomado cada vez mais importante para ns durante esses ltimos dias da guerra .2

    Danny e Reuven encontraram-se pela primeira vez durante uma competio de beisebol entre suas duas escolas. Durante o jogo, o olho de Reuven ficou seriamente ferido, quando foi atingido por uma bola batida por Danny. A interao dos rapazes, inclusive sua consequente amizade depois do acidente, fornece base concreta para considerar o que significa manter uma cosmoviso. Tambm proporciona modelo proveitoso para refletir cuidadosamente e com preciso nas principais linhas de uma cosmoviso crist. Na verdade, a histria destes rapazes judeus merece considerao, por causa das importantes questes que evoca, pois so as mesmas que os cristos enfrentam hoje: perguntas sobre Deus, sobre ns mesmos, sobre nossa comunidade, sobre o que podemos esperar, sobre o que temos de fazer.

    Nas pginas que se seguem, exploraremos o que significa ter uma cosmoviso em geral, e em particular o que significa ter uma cosmoviso crist. Quando tivermos terminado, disporemos de (como Danny e Reuven) uma avaliao profunda das questes e um melhor entendimento de como nossa cosmoviso pode permanecer unida.

    O que uma Cosmoviso?Como definio inicial de nosso tpico, podemos dizer que

    uma cosmoviso um conjunto de crenas que a pessoa mantm. Contudo, nem todo conjunto de crenas forma uma cosmoviso. Alguns desses conjuntos so meramente colees fortuitas ou sortimentos estranhos de crenas. Ao olhar os livros numa estante em meu gabinete de estudos, identifico um chamado Triviata. Seu subttulo descreve-o como Um Compndio de Informaes Inteis. Um amigo me deu o livro como uma brincadeira. As declaraes desconexas dos fatos que ele contm seguramente no constituem uma cosmoviso. As convices numa cosmoviso permanecem unidas, de certo modo coesas. Em vez de ser uma lista de idias desconexas (um compndio de informaes inteis, por assim dizer), estas crenas ajustam-se umas s outras de modo unificado e formam um todo. Neste ponto, ningum poderia encontrar contraste mais forte do que entre a Triviata e o Talmude.

    Na tradio judaica, o Talmude representa um esforo ao longo dos sculos feito por muitos comentaristas rabnicos para chegar a uma interpretao unificada da Le i Oral judaica. Mesmo

  • quando os rabinos diferem em suas interpretaes da Le i Oral, eles continuam se empenhando na busca de uma interpretao unificada que no contenha nenhuma contradio.

    No mnimo, uma cosmoviso um conjunto de crenas que so consistentes entre si e que formam um ponto de vista unificado. Mas at esta descrio no adequada. Por exemplo, um conjunto de crenas sobre geometria, outro sobre o equilbrio do oramento nacional e outro sobre a navegao numa grande rede de computadores como a Internet podem exibir consistncia e unidade de perspectiva, mas nenhum destes conjuntos de crenas constitui uma cosmoviso. Isto assim por pelo menos duas razes.

    Primeiro, embora consistentes e unificados em seu ponto de vista, so bastante estreitos em seu enfoque e lidam principalmente com assuntos tcnicos. Ao contrrio, as crenas centrais de uma cosmoviso abordam interesses centrais ao significado da vida hu

    mana. Segundo, as crenas sobre geometria, a dvida interna ou a Internet tm poucas conexes diretas para as outras coisas em que acreditamos ou fazemos. O gemetra no tem de aplicar seu conhecimento para construir casas; uma teoria sobre o equilbrio oramentrio nacional pode muito bem nunca ver a luz do dia alm da porta do economista que a desenvolveu; saber como navegar na Internet no diz nada sobre que tipo de informao a pessoa

    deve procurar ou compartilhar.Ao contrrio, as crenas centrais de uma cosmoviso tm im

    plicaes importantes para muitas outras crenas e prticas na vida diria. Na comunidade hassdica de Danny, por exemplo, crer em Deus afetou profundamente todas as outras crenas e prticas. Semelhantemente, porque acreditavam que a Tor era a lei de Deus, os hassidim tambm acreditavam que deveriam reunir-se regularmente na sinagoga para orao e estudo. Alm disso, expressaram sua f e lealdade comunitria por meio de seus rituais (ritos de passagem, como o bar mitzvah para os meninos), as roupas (chapus pretos e casacos pretos longos), aparncia externa (barbas fartas e cachos de cabelo pegados aos lados do rosto) e prticas tradicionais (matrimnios arranjados pelos pais). Em resumo, as crenas centrais de uma cosmoviso no so estreitas em seu foco, mas tocam quase todas as outras crenas e prticas daqueles que mantm-se fiis cosmoviso.

    As questes enfrentadas por pessoas como Danny e Reuven na tradio judaica e por pessoas pensativas na tradio crist so realmente questes sobre nossas crenas e prticas mais bsicas. Quer estejamos cientes disso ou no, nossas crenas centrais e prticas formam um ponto de vista ou perspectiva que distintamente nosso. Esta perspectiva distintiva constitui nossa cosmoviso-, nossas vrias crenas centrais e prticas so os elementos dessa

    22 MICHAEL D. PALMER

    Uma cosmoviso um conjunto de crenas e prticas que moldam o

    envolvimento da pessoa nos assuntos mais importantes da vida.

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 23

    cosmoviso. Uma cosmoviso um conjunto de crenas e prticas que moldam a abordagem da pessoa aos assuntos mais importantes da vida. Por meio de nossa cosmoviso, determinamos prioridades, explicamos nossa relao com Deus e com os seres humanos, avaliamos o significado dos acontecimentos e justificamos nossas aes.

    Nossa cosmoviso tambm influencia as prticas mais comuns da vida cotidiana, inclusive os tipos de coisas que lemos e vemos, os tipos de entretenimento e atividades de lazer que buscamos, nossa abordagem ao trabalho e muito mais.

    Quem Tem uma Cosmoviso?Qualquer pessoa capaz de considerar esse assunto tem uma

    cosmoviso. O modo como falamos e agimos d evidncia que temos uma cosmoviso. Isto mostra que mantemos certas crenas, que adotamos determinado conjunto de prioridades, que certas histrias nos impressionam como particularmente eficazes e provveis de mexer conosco, e que certas prticas e situaes sociais tm importncia especial para ns.

    Claro que no verdade que todas as pessoas que tm uma cosmoviso a possuem precisamente da mesma maneira. A cosmoviso de algumas pessoas s existe no sentido de que herdaram um conjunto de crenas e prticas de sua fam lia e comunidade imediata. Elas no entendem suas crenas e no alcanam o significado maior de suas aes. Acreditam e agem __________________de forma no crtica e ingnua em vez de um modo auto-reflexivo. Na grande maioria das vezes explicaro por que acreditam ou fazem algo, referindo-se s tradies da famlia, aos padres da igreja ou afiliao partidria poltica. Em resumo, elas s tm uma cosmoviso no sentido de que outra pessoa a imps nelas, e no porque elas refletiram cuidadosamente sobre as questes importantes e escolheram sua cosmoviso.

    No incomum para os indivduos que to-somente herdaram sua cosmoviso presumirem que as crenas e prticas de todo o mundo so semelhantes s suas. No desafiados por qualquer outro ponto de vista, eles podem tornar-se apticos com relao ao seu prprio ponto de vista. Em meados dos da dcada de 60, numa cano intitulada Nowhere Man (O Homem de Nenhum Lugar), os Beatles capturaram o sentido da vida para aquele que cresceu indiferente sua cosmoviso.3 De acordo com a letra da cano, o homem de nenhum lugar ocupa um lugar na terra de nenhum lugar fazendo planos sem sentido para ningum. Ao que tudo indica, ele no faz a mnima idia para onde vai. Talvez no ponto mais comovente da cano, ouvimos que o homem de nenhum lugar no tem um ponto de vista . A frase levanta pergunta

    Quem tem uma cosmoviso? Todas as pessoas capazes de

    considerar esse assunto.

  • constrangedora: possvel no ter nenhum ponto de vista? Provavelmente no. E mais provvel que o verdadeiro problema do homem de nenhum lugar no seja que ele no tenha literalmente nenhum ponto de vista. Seu caso pior. Ele indiferente ao nico ponto de vista que lhe familiar. Portanto, ele pode muito bem no ter um porque no tem nenhuma idia para onde est indo

    na vida.A descoberta de que nem todo o mundo

    segue os padres de crena e prtica similares s suas prprias pode surgir como um despertar abrupto. Quando isso ocorre, dois tipos de reao so comuns. Algumas pessoas reagem defensivamente. Elas se retiram para trs dos dogmas memorizados e dos clichs familiares e geralmente adotam a posio de que no tm nada a aprender de estranhos. (Em The Chosen, os hassidim particularmente os adolescen

    tes jovens adotaram esta postura em relao aos judeus no- hassdicos.) Outras pessoas reagem com embarao.

    Ao compararem suas crenas ou prticas com as dos outros, as suas podem parecer sem importncia, triviais ou ingnuas. Elas podem tentar menosprez-las ou mesmo escond-las quando interagem com estranhos. (Uma das questes que Danny enfrentou quando foi para a universidade foi se deveria cortar seus cachos de cabelos e usar roupas que no o identificassem como ju deu hassdico.) Defesa e embarao frequentemente so sinais de imaturidade. Indicam que o indivduo em questo no est completamente confortvel com sua prpria cosmoviso.

    Estamos falando sobre o modo como as pessoas obtm sua cosmoviso. Alguns indivduos, j dissemos, meramente herdam sua cosmoviso. Aqueles que obtm sua cosmoviso apenas por este meio limitado podem muito bem tornar-se apticos ou indiferentes a ela. Ou, se inesperadamente encontram algum que tenha uma cosmoviso diferente, podem reagir defensivamente ou com embarao. Por outro lado, uma cosmoviso pode ser obtida por escolha. Escolher, no sentido pretendido aqui, no significa simplesmente que a pessoa escolhe uma cosmoviso dentre vrias opes disponveis como se fosse uma criana que escolhe um cachorrinho numa loja de animais domsticos.

    Escolher tambm no significa que a pessoa rejeita a cosmoviso herdada. Escolher diz respeito a um processo deliberativo que quase mais um estilo do que uma ao. Prontido, conscincia, auto- reflexo, estar presente nas alternativas tudo isso significa o que se pretende dizer por escolha. Escolher significa que a pessoa no lanada ao sabor do vento como os despojos que o mar da vida traz praia. Como certo autor ressaltou: Podemos no ser os capites de nosso destino e os mestres de nossa alma, com capacidade total para controlar o ambiente que nos cerca, mas somos os capites de nosso

    24 MICHAEL D. PALMER

    "Somos os capites de nosso destino e os mestres de nossa alma

    em nossa capacidade de decidir acerca da vida que levamos".

    Vincent E. Rush

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 2 5

    destino e os mestres de nossa alma em nossa capacidade de decidir acerca da vida que levamos...4 Em suma, o indivduo que escolhe o oposto do homem de nenhum lugar dos Beatles.

    Toda pessoa capaz de refletir sobre as questes da cosmoviso j tem uma cosmoviso? A pergunta crtica : Como afinal de contas se obtm essa cosmoviso. Obt-la como herana da fam lia e da comunidade imediata pode ser uma boa forma de comear. Na verdade, esse o modo como todo o mundo obtm uma cosmoviso. Mas em certo sentido importante, uma cosmoviso herdada ainda no inteiramente da pessoa. T-la inteiramente como sua vivenci-la com convico e acreditar nela com entendimento requer que o indivduo a escolha. Aquele que escolhe uma cosmoviso tomando-a uma questo de escolha deliberada e reflexiva no ficar aptico ou indiferente a ela. Nem provvel que tal indivduo se porte defensivamente ou fique envergonhado com ela. Finalmente, aquele que escolhe uma cosmoviso est melhor posicionado para avaliar as deficincias de sua prpria cosmoviso e para aprender de outras cosmovises.

    De&ua de roCme& de uma,Nas ltimas dcadas, os cristos tm en

    frentado tremendos desafios intelectuais em vrias frentes. E o menor deles certamente no o de enunciar uma cosmoviso que sirva para as doutrinas centrais da f do cristianismo e ao mesmo tempo funcione adequadamente como resposta aos desenvolvimentos contemporneos da cincia emprica, da teoria moral, das artes e da filosofia. Um dos lderes em enfrentar este desafio desde a segunda metade do sculo X X tem sido o filsofo Arthur Holmes. No trecho apresentado a seguir, Holmes oferece um resumo dos principais critrios de uma estmtura intelectual que pode de maneira justa ser chamada de cosmoviso.

    Uma cosmoviso global apresentar as seguintes caractersticas:

    1. Tem uma meta globalizada, buscando ver cada rea da vida e do pensamento de uma forma integrada.

    2. E uma abordagem sob um determinado aspecto, versando as coisas de um ponto de vista previamente adotado que agora proporciona uma estrutura integrada.

    3. um processo exploratrio, sondando a relao de uma rea aps a outra para a perspectiva unificada.

    4. pluralista no sentido de que a mesma perspectiva bsica pode ser enunciada de maneiras um tanto diferentes.

    5. Tem resultados de ao, pois o que pensamos e o que avaliamos guiamo que faremos.

    Este trecho um excerto de The Making of a Christian Mind, A Christian World View & the Academic Enterprise (A Estrutura de uma Mente Crist, Uma Cosmoviso Crist e o Empreendimento Acadm ico). Downers Grove, Illin o is : InterVarsily Press, 1985, p. 17. Outras obras notveis de Holmes so AI.I Truth is Gods Truth (Toda Verdade a Verdade de Deus) e Contours o f a Christian Worldwide (Contornos de uma Cosmoviso Crist).

  • Elementos de Uma CosmovisoUma cosmoviso bem desenvolvida fornece tipicamente um

    amplo quadro das preocupaes essenciais da vida. Portanto, uma cosmoviso bem desenvolvida evidencia em geral certos componentes ou elementos essenciais. Na cincia como a qumica, um elemento uma substncia fundamental que consiste em tomos de um s tipo. Usamos a palavra elemento deste modo quando falamos de elementos qumicos, como o hidrognio ou o hlio da tabela peridica. Na matemtica um elemento um membro bsico de uma questo matemtica ou lgica. Na f crist, usamos a palavra elementos (plural) para nos referirmos ao po e ao vinho associados com a memria da ltima ceia de Cristo.

    Entretanto, dentro do contexto de falar sobre cosmoviso, um elemento mais como um aspecto definvel de como os seres humanos explicam e praticam o que acreditam. Uma cosmoviso bem desenvolvida mostra caracteristicamente pelo menos seis elementos distintos.5 Podem ser descritos sucintamente da seguinte forma:

    1. Ideologia. O elemento ideolgico de uma cosmoviso consiste em crenas centrais. Estas crenas normalmente so expressadas de uma maneira formal e precisa, como nas proposies filosficas, declaraes de credo, frmulas autorizadas ou doutrinas. A ideologia de uma cosmoviso tambm geralmente expressada de um modo sistemtico, significando que algum esforo feito para assegurar que as declaraes chaves sejam consistentes entre si. Em The Chosen, o rabino Saunders ensinou a Danny as ideologias do hassidismo mediante estudo intensivo do Talmude.

    2. Narrativa. O elemento narrativo de uma cosmoviso reconta certos eventos significativos da histria daqueles que mantm a cosmoviso. Em alguns casos, as narrativas tambm tratam de eventos futuros. As narrativas podem ser sobre muitas coisas, por exemplo, uma pessoa famosa, a fundao de um povo ou nao, o comeo do mundo ou a interao de algum com Deus ou com prticas religiosas. Com frequncia, os narradores expressam esses eventos em escritos sagrados, mitos, contos histricos, histrias, lendas ou at na letra de um hino.

    As vezes, os artistas tambm representam temas narrativos em pinturas ou outras formas de arte. Se a ideologia expressa crenas centrais em linguagem precisa e formal, as narrativas expressam crenas centrais pelo exemplo, imagem, smbolo ou metfora. As histrias bblicas de Abrao, Isaque e Jac so centrais para a cosmoviso hassdica.

    3. Normas. Uma norma um padro de algum tipo. Quando se trata de uma cosmoviso, dois dos mais importantes tipos de normas so as normas morais ou ticas e as normas estticas. As normas estticas proporcionam base para a tomada de deciso sobre o que bonito, agradvel ou sublime.6 As normas morais estabe

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 27lecem exigncias para a conduta correta, estipulam nossas res- ponsabilidades e geralmente nos explicam que tipo de pessoa devemos ser. Em The Chosen, o lugar das normas morais no judasmo emerge vigorosamente em certo ponto, quando Danny visita Reuven no hospital logo depois de ferir-lhe o olho. Com raiva de Danny, Reuven a princpio recusa-se a falar, mas depois explode: V para inferno e leve junto esse seu grupo esnobe de hassidim . Quando o senhor Malter fica sabendo da atitude indelicada de Reuven, diz: Voc fez uma coisa tola, Reuven. Lembre-se do que diz o Talmude. Se algum vem se desculpar por t-lo ferido, voc tem de ouvi-lo e perdo-lo .7

    Estes trs elementos de uma cosmoviso ideologia, narrativa e normas formam um complicado padro de crenas. Contudo, este padro no existe meramente na teoria. Ele se torna vital e dinmico no contexto da experincia e da prtica. No judasmo ortodoxo, por exemplo, as crenas acerca de Deus (ideologia) no so meros conceitos sobre alguma deidade neutra e distante considerada como o Mestre do Universo.8 E le um ser que ativamente adorado. Os hassidim retratados em The Chosen oram a Ele nas sinagogas do bairro e falam sobre Ele nas casas, ruas e lojas. Sua influncia sentida em todas as facetas de suas vidas, porque eles acreditam que so seu povo escolhido. A histria (narrativa) que eles recontam sobre os atos de Deus na histria do povo deles clebre e representada de novo em certos rituais, como aqueles associados com a Pscoa e o Hanuk. As narrativas centrais juntamente com os rituais tradicionais evocam intensas experincias para o crente.

    4. Ritual. Um ritual um ato cerimonial executado periodicamente em ocasies especiais. E projetado a representar novamente ou recordar um acontecimento especial. Um ritual pode ser sombrio ou festivo, formal ou informal. Em todo caso, os rituais proporcionam uma ocasio para se refletir no significado das crenas centrais do indivduo e evocam uma resposta afetiva a essas crenas. Ambas as funes so tencionadas a integrar os padres de crena no trama da vida interior e no carter da pessoa. Por exemplo, observar a Pscoa envolve celebrar e, de certo modo, reviver a libertao dos hebreus da escravido egpcia descrita no Livro de xodo.

    5. Experincia. Quando falamos do elemento experiencial de uma cosmoviso, queremos dizer o modo como algum se d conta vivamente das verdades expressadas nas crenas centrais. As crenas j no parecem abstratas e distantes. Ao invs disso, tornam-se imediatamente presentes. Os hassidim so famosos por nutrir experincias altamente msticas e pessoais.

    6. Elemento Social. As crenas centrais de qualquer cosmoviso evaporaro como a nvoa ao sol da manh, se no estiverem

    Estes trs elementos de uma cosmoviso ideologia, narrativa e normas formam um complicado

    padro de crenas.

  • embutidas numa situao social. Isto assim porque a situao social fornece as estruturas organizacionais e outros meios que permitem que as crenas sejam perpetuadas de uma gerao para outra. Uma das caractersticas mais notveis de The Chosen o modo como Potok fornece insight na vida comunitria hassdica. Cada seita hassdica tinha seu prprio rabino, sua prpria sinagoga e yeshiva, seus prprios costumes, suas prprias lealdades ferrenhas. Em um comentrio bastante expressivo sobre a vida na comunidade, Reuven diz: Em um sbado ou manh festiva, os membros de cada seita podiam ser vistos caminhando para as suas respectivas sinagogas, vestidos com seus trajes particulares, ansiosos para orar com seu rabino particular e esquecer o tumulto da semana...9

    Comentamos anteriormente que uma cosmoviso um conjunto de crenas e prticas que moldam a abordagem de uma pessoa para as mais importantes (e muitas outras) questes da vida. Todo mundo, dissemos, tem uma cosmoviso. Tambm fizemos uma descrio breve de seis elementos mais importantes de uma cosmoviso. A seguir, examinaremos estes seis elementos com mais detalhes em preparao descrio de uma cosmoviso crist.

    O Elemento IdeolgicoAs cosmovises geralmente surgem da experincia e das nar

    rativas que exemplificam e desenvolvem-se nessa experincia. Mas as experincias variam de uma pessoa para outra, e as narrativas por sua prpria natureza prestam-se a mltiplas interpretaes. Por estes motivos as cosmovises comumente desenvolvem um conjunto de declaraes autorizadas que constituem seu elemento ideolgico. Estas declaraes formam uma estrutura central, ou sistema, para explicar a realidade. J nos referimos a elas como crenas centrais. Por exemplo, o judasmo ortodoxo expressa diversas crenas centrais, entre elas: H um s Deus, Deus criou o mundo, Deus est ativamente envolvido na histria. Estas crenas essenciais so parte do elemento ideolgico do judasmo ortodoxo. Estas doutrinas (e outras importantes) explicam a natureza de Deus e sua relao com o resto da criao, inclusive os seres humanos.

    F u n e s G e r a is d a I d e o l o g ia

    O elemento ideolgico de uma cosmoviso exerce diversas funes. Uma dessas funo trazer ordem e coerncia vasta srie de dados proporcionados na experincia. Superficialmente, as coisas que vivenciamos parecem no ter nenhuma relao uma com outra. Alm disso, as experincias de uma pessoa afiguram- se no ter conexo com as de outra pessoa, especialmente se a outra pessoa mora em outro pas ou se viveu no passado. Mas a ideologia pode fornecer um senso de ligao entre eventos aparentemente discrepantes e entre pessoas separadas geograficamente

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 29e pelo tempo. Este ponto vividamente notrio na ideologia do judasmo. Durante o tempo em que Moiss estava procurando assegurar a libertao dos hebreus, as pragas que sobrevieram aos egpcios no eram catstrofes simplesmente fortuitas e isoladas. Faziam parte de um destino maior: A obra de Deus nos eventos histricos. O judasmo tambm nutriu sempre um forte senso de identidade do seu povo. Os judeus no so meros indivduos isolados, mas membros de um povo histrico. Os Livros da Le i os lembram desta conexo histrica com seus antepassados. No Livro de Deuteronmio, quando Moiss est a ponto de pronunciar os mandamentos de Deus, ele diz: O SENHOR, nosso Deus, fez conosco concerto, em Horebe [monte Sinai]. No foi com nossos pais que fez o SENHOR este concerto, seno conosco, todos os que hoje aqui estamos vivos (Deuteronmio 5.2,3). Os indivduos a quem estas palavras foram ditas no estavam presentes quando o concerto foi feito em Horebe. No obstante, o concerto vlido para eles em cada detalhe tanto quanto o era para seus antepassados, porque eles so parte de um povo escolhido por Deus desde tempos imemoriais. Em resumo, uma funo da ideologia trazer ordem e coerncia experincia.

    Uma segunda funo fornecer base para avaliar os valores, os insights e as declaraes de conhecimento dos outros. Tem havido poucas pocas na histria humana em que os partidrios de qualquer determinada cosmoviso viveram uma gerao inteira, ou mesmo vrias geraes, sem encontrar pessoas cuja cosmoviso diferia radicalmente da deles. Mesmo os mais isolados povos ocasionalmente interagiam com estranhos. No ponto do fato histrico, a maioria dos povos interagia com estranhos de maneira frequente e diversa, desde o comrcio guerra e troca cultural.

    Sempre que ocorre interao entre uma pessoa e outra, a pergunta surge naturalmente: Como iremos avaliar e dar sentido quilo que estas pessoas (os estranhos) dizem e fazem? A ideologia da cosmoviso do indivduo fornece uma estrutura de referncia para responder pergunta.

    Quando Daniel e outros membros jovens da nobreza judaica foram levados cativos para a Babilnia no sculo V II a.C ., eles mantiveram sua identidade, enfrentaram e venceram a cosmoviso de seus captores, em parte porque estavam bem fundamentos em sua prpria cosmoviso. Eles julgaram o que era bom e mau, certo e errado, proibido e permitido. Mas sem uma compreenso clara das crenas centrais de seus captores, eles facilmente poderiam ter sido assimilados pela vida e cultura babilnicas.

    Uma terceira funo do elemento ideolgico definir a comunidade. Em outras palavras, a ideologia ajuda a separar as pessoas ntimas dos estranhos, aqueles que pertencem ao grupo daqueles

    As cosmovises comumente desenvolvem um conjunto de declaraes autorizadas que

    constituem seu elemento ideolgico.

  • 30 MICHAEL D. PALMERque no pertencem ao grupo. Em cada cosmoviso, as crenas tipicamente aceitas por aqueles que mantm-se fiis determinada cosmoviso formam uma estrutura, um esqueleto, que d forma ao mundo como percebidas pelos membros da comunidade. Enquanto normalmente h alguma abertura em como interpretar e aplicar as crenas centrais, qualquer um que estira demasiadamente os limites arrisca ser separado da comunidade. Grandes diferenas nas crenas centrais no podem em geral ser toleradas indefinidamente.

    Considere, por exemplo, que os cristos da Igreja primitiva eram judeus. Uma profunda diviso ideolgica aconteceu quase que imediatamente dentro do judasmo, porque os seguidores de Jesus declararam que Ele era divino e igual a Deus uma noo ideolgica inaceitvel para os judeus ortodoxos.

    C o n t e d o I d e o l g ic o G e r a l

    As cosmovises que de outra forma diferem uma da outra em seu contedo especfico mesmo aquelas que so radicalmente opostas uma a outra mostram uma semelhana interessante no modo como desenvolvem seu contedo ideolgico em geral. Em outras palavras, as cosmovises tendem a falar sobre tpicos semelhantes. Por exemplo, as cosmovises naturalistas (como o existencialismo atesta marxista) e as cosmovises testas (como o judasmo ou o cristianismo) divergem em muitos pontos importantes. Elas so to diferentes em alguns pontos que entram em conflito uma com a outra, s vezes at se contradizem. No obstante, falam sobre tpicos similares. Por exemplo, ambas expressam vises ideolgicas sobre o que existe e ambas fazem as- severaes sobre a natureza humana. Vamos examinar estes tpicos mais de perto.

    ~ j O alemo K a rl M arx (1818-1883) foi o filsofo social e revolucionrio que viveu e escreveu na plenitude da Revoluo Industrial do sculo X IX . E le e Friedrich Engels so considerados os fundadores do moderno socialismo e do comunismo. Com Engels, ele escreveu o Manifesto Comunis

    ta (1848) e outras obras que quebraram a tradio de teoristas como John Locke, que

    apelava aos direitos naturais para justificar a reforma social. Marx invocou o que acreditou ser as leis da histria que inevitavelmente levariam ao triunfo da classe operria. Marx foi exilado da Europa depois das revolues de 1848. Em sua monumental obra O Capital (3 volumes, 1867-1894), a qual foi escrita quando ele morava em Londres, Marx apresentou uma crtica cortante teoria econmica capitalista e desenvolveu uma teoria econmica prpria.

    Para mais informaes sobre Marx, veja o Apndice 3, Karl Marx , no fim deste livro.

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    T e o r ia d e F u n d o s o b r e o q u e E x ist e

    As declaraes ideolgicas gerais sobre o que existe constituem o que podemos chamar de teoria de fundo sobre a natureza do universo. Uma teoria de fundo aborda pelo menos trs tpicos: o cosmo, Deus e a histria.10

    O Cosmo. A expresso cosmo foi usada pela primeira vez pelos gregos antigos para referir-se a algo formoso e sistematicamente organizado como as linhas numa tapearia. O oposto de cosmo era o caos ou a desordem. Desde ento, os gregos usaram o termo para descrever o arranjo ordenado e harmonioso das estrelas e dos planetas como apareciam no cu noite. Hoje, o significado do termo foi ampliado para incluir no s a harmonia dos corpos celestiais, mas o universo em geral literalmente, tudo o que existe.

    Inclui as coisas que prontamente vemos como tambm as coisas difceis de se ver, por exemplo, os eltrons. Tambm inclui coisas que no podemos ver de jeito nenhum, mas que podemos apenas pensar nelas, como nmeros, conceitos, leis da natureza. Apesar destas mudanas em seu uso nos tempos modernos, o termo cosmo ainda levanta questes que os gregos antigos ponderavam. Se os corpos celestiais no cu noite esto distribudos de um modo ordenado e harmonioso, o que explica essa ordem e harmonia? Algum ou algo os organizou de acordo com algum plano, ou sua aparncia s produto do acaso?

    Uma cosmoviso naturalista aquela que nega que qualquer evento ou objeto tenha algum significado sobrenatural. As modernas cosmovises naturalistas asseveram que leis cientficas ou princpios so adequados para explicar todos os fenmenos, tais como o arranjo dos corpos celestiais e o movimento dos eltrons. Uma cosmoviso testa, por contraste, aquela que adota a idia de que poderes sobrenaturais desempenham um papel no desdobramento dos eventos. Portanto, as cosmovises testas de hoje rejeitam a reivindicao de que as leis cientficas em si podem explicar o mundo e a nossa experincia dele. O marxismo e o existencialismo atesta so exemplos de cosmovises naturalistas. O judasmo, o islamismo, o hindusmo e o cristianismo so exemplos de cosmovises testas.

    Deus. bastante bvio que nem todas as cosmovises reconhecem a existncia de Deus. Entretanto, todas as principais cosmovises afirmam, ou pelo menos implicam, uma posio relativa existncia dEle. O judasmo, o islamismo e o cristianismo como cosmovises testas tm muito a dizer em suas declaraes ideolgicas, doutrinrias, sobre a existncia de Deus, seus atributos, suas atividades. Como era de se esperar, o marxismo, como cosmoviso naturalista, tem menos a dizer sobre Deus. No obstante, no ficou calado no assunto nem neutro. O prprio Marx negava a existncia de Deus. De fato, ele famoso por ter declarado que a religio o pio do povo , querendo com isso

  • 32 MICHAEL D. PALMERafirmar que a vida de f enganosa e ilusria: No oferece esperana alguma para resolver os problemas existenciais, e s bem- sucedida em encobri-los temporariamente.

    A Histria. Toda importante teoria de fundo do universo tambm afirma ou implica algo sobre a histria em sua ideologia. As cosmovises testas enfatizam a obra de Deus no fluxo da histria. Elas destacam o modo como Deus usa as pessoas e os acontecimentos, em momentos e em locais especficos, para cumprir seus propsitos supremos, que so infinitos.

    Por exemplo, o hassidismo, tanto na realidade quanto descrito no romance de Potok, identifica um homem chamado Baal Shem Tov como algum especialmente chamado por Deus em cerca de 1750 para viver uma vida piedosa e ensinar os outros a viver piamente. (Hassidim quer dizer os piedosos .)

    O judasmo em geral tambm tem um forte senso da interveno de Deus na histria: Deus criou o universo e os seres humanos (Gnesis 12), deu uma promessa histrica a Abrao (Por pai da multido de naes te tenho posto [Gnesis 17.5]) e at usou os inimigos dos hebreus (por exemplo, Fara e Ciro) para cumprir seus propsitos. Uma cosmoviso crist diverge de qualquer cosmoviso judaica em um aspecto crucial: Jesus, ao mesmo tempo divino e humano, a figura central no relato do tratamento de Deus para com a humanidade.

    As cosmovises naturalistas afirmam uma viso cegamente mecnica da histria. A histria o produto dos seres humanos interagindo entre si e com as foras naturais impessoais. Entretanto, os naturalistas esto divididos no que tange a se a histria exibe padres quer sejam de progresso ou de regresso. O filsofo francs Jean-Paul Sartre rejeitou qualquer noo da ordem natural participante , ou que ela seja responsvel por qualquer coisa como

    causa do seu envolvimento com as foras da resistncia francesa e em parte por causa do seu brilho filosfico, depois da guerra Sartre emergiu como figura dominante no movimento existencialista francs. (3 prprio Sartre era ateu. Durante os anos imediatos depois da guerra, ele escreveu vrios romances e peas teatrais que lhe deram fama mundial.

    Para informaes adicionais, veja Apndice 2, Jean-Paul Sartre , no final deste

    eanrO francs Jean-Paul

    Sartre (1905-1980) foi filsofo, dramaturgo e no- velista. A partir de 1936, publicou estudos filosficos e romances, sendo os mais notveis A Nusea (1938) e O Muro (1939). Durante a Segunda Guerra Mundial, ele

    completou sua obra filosfica mais importante, O Ser e o Nada (1943). Em parte por

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    o progresso histrico. Para ele, a natureza no tem nenhum propsito ltimo, nenhuma inteno, nenhuma direo simplesmente existe.

    Por outro lado, Karl M arx, que certamente rejeitava qualquer noo de propsito divino ou plano para a histria, declarou que a natureza mostra padres de progresso. Os seres humanos so parte da natureza; portanto, tambm mostram padres de progresso em sua histria.

    Relato da Natureza HumanaAlm de fornecer uma teoria de fundo do universo, as cosmo

    vises oferecem um relato geral do que significa ser humano. Este relato trata de certos temas importantes da teoria de fundo. Por exemplo, se a teoria de fundo rejeita (ou silenciosa sobre) a noo de que o universo tem um propsito e um destino ltimo, ento o relato associado da natureza humana tambm rejeitar (ou estar silencioso sobre) se a pessoa individual tem um propsito ou um destino ltimo.

    Semelhantemente, se a teoria de fundo diz que o universo tem um propsito e um destino ltimo, ento o relato associado da natureza humana expressar a mesma viso sobre a pessoa individual. Sartre, um existencialista atesta, retrata o universo como totalmente destitudo de propsito e destino ltimo. A natureza no existe para os seres humanos. Na verdade, a natureza no existe para qualquer coisa. Simplesmente existe sem plano, propsito, inteno, esperana ou destino.11 (Certo personagem em um dos romances de Sartre, percebendo este ponto enquanto pondera junto s razes de um castanheiro gigante, sente repugnncia pelo pensamento e vomita.)12 Consistente com esta viso do universo, Sartre afirma que os seres humanos, no incio da vida, tambm carecem de qualquer propsito essencial ou destino. Nem Deus nem a natureza do significado vida. Se a vida algum dia vier a ter um propsito ou significado, acontecer apenas porque a pessoa escolhe tom-la significativa.

    Por contraste, o judasmo e o cristianismo asseveram que Deus criou o universo, que E le est atuando no universo para pr em execuo seus propsitos, e que o universo tem um destino ltimo de acordo com o seu plano. E a humanidade se ajusta no propsito ltimo de Deus para o universo? Sim , com certeza! O livro de Gnesis, sagrado tanto para o judasmo quanto para o cristianismo, declara que fomos feitos imagem de Deus. Potok, referindo-se ao fundador do hassidismo, diz: Ele os ensinou que o propsito do homem tornar a vida santa cada aspecto da vida: comer, beber, orar, dormir .13

    Obviamente que uma cosmoviso que descreve o indivduo como tendo um propsito e um destino ltimo tambm expressar um conjunto de ideais para cada pessoa. Esses ideais podem ser traos de carter interior. Por exemplo, o apstolo Paulo, falando

  • 34 MICHAEL D. PALMERno sculo I d .C ., descreve a tarefa de cada pessoa como a de conformar-se imagem de Cristo. E le estabelece certos ideais de carter em referncia a Jesus. Cada pessoa tem de esforar-se para encarnar os ideais de carter modelados por Jesus, inclusive a integridade pessoal, a humildade, a mansido, a pacincia, o amor e a compaixo. Os ideais tambm podem ser expressos como situaes sociais. Os antigos profetas judeus, por exemplo, exaltavam a justia como um ideal social. Para eles, a sociedade justa seria aquela em que o pobre e o fraco seriam adequadamente cuidados.

    Se as cosmovises propositadas parecem naturalmente expressar ideais para seus partidrios, as cosmovises naturalistas tambm oferecem ideais? A resposta parece ser um qualificado sim. Como observamos anteriormente, Marx negou a existncia de Deus. Portanto, ele no deixou lugar em sua cosmoviso para um conceito de propsito divino para os seres humanos. Neste sentido, a humanidade no tem nenhum destino e nenhum ideal a alcanar.

    Porm Marx reivindicou descobrir padres de progresso na histria humana: E le raciocinou que os seres humanos progrediram do antigo barbarismo atravs dos estgios da escravido e do feudalismo para as formas capitalistas da sociedade e da economia. O estgio final, acreditava ele, era aquele no qual os trabalhadores viriam a controlar a indstria e outros meios de produo. O controle destas foras econmicas lhes permitiria mudar as instituies sociais e polticas para melhor e, assim, ocasionar as melhores relaes possveis (quer dizer, o ideal) entre todos os seres humanos. Em suma, embora a cosmoviso de Marx certamente no seja propositada, parece identificar certos ideais e defender o empenho por eles.

    Albert Camus, como Jean-Paul Sartre, rejeitou no apenas a noo de propsito como se evidencia na cosmoviso testa, mas tambm qualquer coisa como os padres de progresso descritos por M arx. Para ele, a realidade absurda totalmente destituda de significado, propsito ou plano. Isto significa que, para Camus, as escolhas humanas so no final das contas arbitrrias. Coisas e eventos so o que lhes fazemos ser, e realmente no h razo para faz-las de um jeito em vez do outro. Isto significa que Camus no reconheceu nenhum ideal? A resposta : De fato, ele reconheceu ideais.

    Em sua mais famosa publicao ideolgica, O Mito de Ssifo, Camus adapta aos seus prprios propsitos filosficos o antigo mito grego de Ssifo .14 De acordo com o mito, certo dia, Ssifo, rei de Corinto, incorreu na ira inexorvel de Zeus. No Hades, o submundo, Zeus castigou Ssifo forando-o a rodar uma pedra para cima e repetir este ciclo para sempre. Para Camus, Ssifo o operrio ftil do submundo . Sua atividade totalmente sem sentido, completamente destituda de propsito. Deve Ssifo deve aqueles cujas vidas refletem a vida de Ssifo desesperar-se? Camus acha que no. A alegria uma opo: A pessoa tem de

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 35imaginar Ssifo fe liz .15 Mas como? E onde est o ideal nesta representao da condio humana?

    A alegria possvel porque o significado de destino no fim uma questo de ser resolvida pelos seres humanos. Segundo Camus, Zeus pode ditar nosso destino, mas somente ns podemos determinar o que esse destino significar para ns e se nos desgraar. Ssifo , diz Camus, ensina a mais alta fidelidade que nega os deuses e levanta pedras. 16 O ideal de Camus sua figura herica algum que logo reconhece que o universo implacavelmente frio e indiferente para com os interesses humanos, mas que, no obstante, resolve alcanar um tipo de vitria absurda ao determinar para si que suas experincias tenham significado.

    Os ideais estabelecem que tipo de pessoa devemos ser e exemplificam o que vale a pena alcanar. Os ideais representam a realidade e a condio humana como elas devem ser, e no como so. A implicao que as coisas podem ser melhores do que so. Assim , quando uma cosmoviso inclui um conjunto de ideais, tambm costumeiramente oferece uma explicao sobre porqu as pessoas no alcanam esses ideais.

    Nas cosmovises judaica e crist os seres humanos vivem idealmente em comunidades fraternais entre si e em harmonia com o seu Criador. Estas relaes ideais existiram no princpio, numa situao como o jardim . Elas foram quebradas pelo fato de terem as escolhas humanas rejeitado os propsitos de Deus. Numa cosmoviso existencialista com a de Sartre ou Camus, os seres humanos vivem idealmente vidas autnticas, executando projetos que

    tent &uuu&O francs Albert Camus (1913-1960) foi

    romancista e homem de letras. Nascido em Algiers, Arglia, grande parte de sua vida intelectual foi dedicada a explorar sua convico de que a condio humana absurda. Este fato, juntamente com sua associao com o filsofo francs Jean-Paul Sartre, levaram muitos a identific-lo como membro do movimento existencialista, embora sua marca particular de humanismo o distinguisse daquele movimento. Os personagens de suas peas e romances so obviamente apresentados como reconhecedores do absurdo e da falta de sentido da situao deles (um tema existencialista proeminente); ao mesmo tem

    po, afirmam sua humanidade ao se rebelarem contra essa mesma situao (a volta humanstica distintamente de Camus). Os trabalhos mais notveis de Camus so os romances O Estrangeiro (1942), A Peste (1947) e A Queda ( 1956), e seus ensaios O Mito de Ssifo (1942) c O Rebelde ( 1951). Em 1957, Camus foi premiado com o prmio Nobel de literatura. Morreu num acidente de automvel em 1960. Na poca de sua morte, ele estava trabalhando num romance autobiogrfico, postumamente publicado em 1995 sob o ttulo O Primeiro Homem.

  • 36 MICHAEL D. PALMEReles escolheram livremente. Eles ficam aqum do ideal, porque recusam a aceitar o fardo de sua prpria liberdade e porque falham em assumir a plena responsabilidade pelo vasto alcance das escolhas implicadas por aquela liberdade.

    Na cosmoviso marxista, os seres humanos existem idealmente em harmonia (e no em competio) entre si, trabalham em tarefas que satisfazem (e no humilham) e desfrutam o fruto do seu trabalho (em vez de v-lo tomado por outros e usado contra eles). O ideal foge ao entendimento deles, por causa de certos arranjos

    econmicos capitalistas subjacentes, e por causa das estruturas sociais e polticas que reforam a economia capitalista. Em geral, cada cosmoviso no s enuncia certos ideais, mas tambm explica por que os seres humanos no os alcanam.

    Ordinariamente, quando uma cosmoviso enuncia um conjunto de ideais e ento explica como os seres humanos e suas instituies so

    ciais ficam aqum dos ideais, tambm oferece alguma soluo. Se os ideais (ou algo parecido com eles) outrora existiram, ento a cosmoviso explicar como recuperar o que estava perdido.

    Por exemplo, o judasmo identifica um tempo sob o governo dos reis Davi e Salomo quando Israel era uma nao unificada. Se esse tempo no era bastante ideal, com certeza representava um ponto poltico e social culminante para os judeus. O ideal foi perdido quando os exrcitos estrangeiros repetidamente invadiram a ptria deles. O ideal s pode ser recuperado quando os ju deus se preparam espiritualmente e Deus intervm na histria para prover o Messias.

    Claro que para algumas cosmovises, os principais ideais na verdade nunca existiram. S existem no futuro, no horizonte do tempo. Neste caso, a cosmoviso explicar como alcan-los. O marxismo justamente tal cosmoviso. Os marxistas acreditam que nunca houve um tempo na histria humana em que a maioria dos seres humanos de algum modo no sentiu falta de comunidade, no sofreu as indignidades do trabalho forado, no perdeu o controle sobre suas ferramentas e os produtos do seu trabalho. Mas com o capitalismo desenfreado na plenitude da Revoluo Industrial na Europa e nos Estados Unidos no sculo X IX , estas condies pioraram. As mulheres trabalhavam em miserveis estabelecimentos escravizantes e morriam prematuramente. Os homens competiam entre si por empregos de baixos salrios. Mesmo as crianas trabalhavam horas dolorosamente longas em condies imundas. Para M arx, a causa e a soluo eram econmicas. O capitalismo desenfreado, em vez dos arranjos sociais ou polticos, era responsvel pela prevalecente misria e alienao. Uma vida melhor na verdade, a vida ideal s pode ser alcanada no futuro medida que as condies econmicas so mudadas.

    Em geral, cada cosmoviso no s enuncia certos ideais, mas

    tambm explica por que os seres humanos no os alcanam.

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    ResumoNesta seo, discutimos o elemento ideolgico de uma cosmo

    viso. Primeiro, citamos trs funes gerais da ideologia: 1) trazer ordem e consistncia aos dados proporcionados pela experincia, 2) fornecer base para avaliar os valores, os insights e as declaraes de conhecimento dos outros e 3) definir a comunidade. Estas funes da ideologia no pertencem a uma cosmoviso especfica. Antes, so funes comuns de qualquer cosmoviso. Em seguida, fornecemos um esboo do contedo ideolgico geral de uma cosmoviso. Aqui comentamos mais uma vez que embora as cosmovises possam ser diferentes em seu contedo especfico, elas falam sobre tpicos semelhantes. Por exemplo, eles fornecem uma teoria de fundo sobre o que existe. Trs tpicos centrais da teoria de fundo so o cosmo, Deus e a histria. As cosmovises tambm fornecem um relato geral da natureza humana. Este relato explicar se a vida humana tem ou no propsito, que ideais valem a pena alcanar, em que aspecto os seres humanos ficam aqum dos ideais e como os ideais podem ser alcanados.

    O contedo ideolgico de uma cosmoviso ordinariamente expresso em proposies filosficas, declaraes de credo, frmulas autorizadas ou doutrinas. Em geral tambm expresso de modo sistemtico, significando que algum esforo feito para assegurar que as declaraes chaves sejam consistentes entre si. A natureza preposicional formal da ideologia a distingue de outro elemento importante de uma cosmoviso, a narrativa, que comumente tem uma qualidade semelhante histria.

    O Elemento NarrativoRessaltamos anteriormente que o elemento narrativo de uma

    cosmoviso reconta certos eventos passados ou futuros, tendo a ver com aqueles que mantm a cosmoviso. Porm, as narrativas da cosmoviso no so simples registros de acontecimentos coincidentes ou resumos de eventos interessantes, mas fortuitos. So histrias que contam algo especial sobre a cosmoviso ou sobre as pessoas que a mantm. Podem ser sobre uma pessoa famosa, a fundao de um povo ou nao, o comeo ou fim do mundo, a interao de algum com Deus ou deuses, ou algum outro evento integralmente ligado cosmoviso.

    As narrativas so uma caracterstica bem reconhecida das cosmovises religiosas. Todas as principais religies do mundo esto repletas delas. O elemento narrativo do cristianismo, por exemplo, enfoca a criao do mundo; o primeiro homem e a primeira mulher afastando-se de Deus; os subsequentes concertos entre Deus e a humanidade; o nascimento, morte e ressurreio de Cristo; a formao da Igreja, e a promessa de que Cristo voltar terra para orquestrar os eventos finais da histria. Mas as narrativas no so

  • limitadas s cosmovises religiosas. As cosmovises seculares tambm contm um importante elemento narrativo.

    Por exemplo, o marxismo conta uma narrativa bastante elaborada que enfoca o desdobramento da histria humana, as foras impessoais que moldam a natureza humana, as vrias maneiras que os seres humanos sofrem alienao, os modos como os arranjos econmicos e polticos vm existncia e mudam, e os prospectos para uma vida melhor sob os novos arranjos econmicos e polticos.

    F u n e s G er a is d a N arrativa

    H duas funes predominantes das narrativas da cosmoviso. Primeiro, elas reforam e embelezam os temas ideolgicos centrais. Poderamos comparar a ideologia de uma cosmoviso e suas narrativas centrais com o esqueleto e a carne de um corpo. Entretanto, esta comparao induzir em erro se for considerada a implicar que um elemento de alguma maneira mais bsico ou fundamental que o outro. O esqueleto e a carne so necessrios juntos para que o corpo viva; a ideologia e a narrativa so necessrias juntas para que uma cosmoviso floresa.

    Segundo, as narrativas da cosmoviso fornecem padres, ou modelos, para os partidrios da cosmoviso. A linguagem da ideologia por sua prpria natureza tende a ser abstrata, tcnica e um tanto escassa. Nas cosmovises bem desenvolvidas, o papel da ideologia crucial, mas a pessoa comum encontra pouco deleite ou estmulo em navegar em suas complexidades e distines de nuanas. J as narrativas, ao contrrio, atraem e capturam a imaginao. Inspiram no s a mente, mas tambm despertam as emoes. Convidam os ouvintes a visionar e vicariamente sentir o que seria vivenciar o contedo ideolgico da cosmoviso.

    Se a Tor e o Talmude apresentam a estrutura ideolgica pertinente ao judasmo tradicional, as histrias de Abrao, Moiss, Josu, Davi e Salomo fornecem seu contedo narrativo.17 Se os ensinamentos didticos de Jesus e Paulo, Tiago e Pedro e o Credo Apostlico constituem parte da dimenso ideolgica do cristianismo, ento as parbolas e aes de Jesus e os relatos em Atos formam a parte crucial do seu contedo narrativo. Se a teoria do valor do trabalho parte da ideologia de M arx, as histrias de trabalho infantil, o sofrimento e morte de mulheres em estabelecimentos escravizantes e os homens trabalhando horas longas em condies anti-higinicas e perigosas (tudo recontado em seu l ivro, O Capital) fornecem parte do contedo narrativo de sua cosmoviso.18

    As narrativas podem nos fazer rir ou chorar; podem divertir ou chocar nossa sensibilidade. Em todo caso, fornecem modelos para o desenvolvimento do carter e sobre como nos comportar, no para nos moldarmos a arranjos sociais aceitveis, mas pelo que somos.

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO

    T ipo s d e N a rrativa

    O dever da narrativa recontar os eventos centrais, passados e futuros de um povo e sua cosmoviso. A funo da narrativa reforar ideologias centrais e fornecer modelos para os partidrios da cosmoviso. Tendo dito isto, devemos notar que o contedo narrativo de uma cosmoviso pode tomar vrias formas. Discutiremos aqui cinco delas brevemente.

    Escritos SagradosEm qualquer tradio, os escritos sagrados (cridos como pala

    vras divinas) so distintivos de outras histrias culturais ou lendas 1) na autoridade que inspiram, 2) nos propsitos religiosos a que servem e 3) at ao ponto em que todos os pensadores ortodoxos na tradio tm de ajustar seu pensamento ao deles. Em algumas cosmovises testas, as narrativas mais importantes aparecem em textos considerados sagrados. Por exemplo, no judasmo as narrativas centrais f os relatos de Abrao, Moiss, Josu, os juizes, os reis e os profetas so recontadas em textos cujo status bblico indiscutvel entre os judeus ortodoxos. Os cristos crem no mesmo acerca das narrativas encontradas ao longo da Bblia, mas especialmente nas de Jesus e dos apstolos no Novo Testamento.

    Na tradio hindu, a narrativa da cosmoviso mais importante e famosa aparece no Bhagavad Gita (Cano do Senhor), um curto fragmento de assustadora poesia dramtica, que parte de um poema pico.19 Nele, um homem chamado Arjuna, o heri da narrativa, busca o conselho de Krishna, a principal deidade hindu, visto que Arjuna est a ponto de entrar numa batalha importante que envolver todas as pessoas da ndia.

    MitoTendo sido antes uma palavra perfeitamente boa, o vocbulo

    mito veio a ter uma reputao ruim em alguns crculos. Deriva da palavra grega traduzida por histrias, mythoi. As mythoi gregas eram frequentemente sobre os deuses e sua interao com os seres humanos. Com o passar do tempo, a cultura grega (incluindo sua religio) caiu em m fama. Seus mitos vieram a ser vistos como histrias no baseadas em fatos, histrias falsas . Entretanto, entre os estudiosos de hoje, a palavra mito refere-se estritamente a uma narrativa na qual os seres divinos representam algum papel. Us- la deste modo no trata da questo se ou como a narrativa pode ser considerada verdadeira. Em outras palavras, a avaliao da verdade de um mito um item separado da questo do papel que desempenha na cosmoviso. Alm disso, mesmo que no fosse historicamente factual, ainda pode funcionar como narrativa que contribui de modo importante para uma cosmoviso.20

    O mito uma categoria distinta de escritos sagrados. No mundo antigo, esses escritos sagrados eram primariamente usados em ritos e cerimnias religiosos. Em convocaes sagradas especiais,

  • 40 MICHAEL D. PALMERas pessoas ouviam o texto sagrado lido por um sacerdote com o propsito de encorajar e instruir.21 Claro que os mitos no esto sem seu elemento religioso. A final de contas, eles so histrias sobre a interao de seres divinos com seres humanos. Mas historicamente no serviam para as mesmas funes sacerdotais servidas para os escritos sagrados, especialmente a Escritura. Antes, encontravam seu lugar na assemblia pblica, no mercado e nos teatros ao ar livre do mundo antigo.22

    Quase no podemos entender as cosmovises antigas sem prestarmos honestamente ateno ao significado dos seus mitos. Este ponto certamente vlido no caso dos gregos antigos. Por exemplo, os mitos de Homero, na forma de dois poemas picos, a Ilada e a Odissia, so indubitavelmente os mais famosos e influentes do mundo grego antigo. A Odissia a histria de Odisseu, o ltimo guerreiro grego a voltar para casa depois da derrota de Tria. Em cada virada da histria, Odisseu encontra estranhas criaturas m ticas: um Ciclope (gigante de um olho s), ninfas do mar, lotfagos, sereias. E a cada reviravolta da histria, seu caminho ou dificultado ou facilitado por algum deus. Quando finalmente chega sua casa-ilha, ele tem de derrotar um exrcito de homens que queriam apossar-se de sua propriedade e tomar sua mulher. Em sua jornada de volta ao lar, que durou anos, Odisseu, cheio de astcia e malcia, guerreiro ousado e impetuoso teve de aprender a enfrentar os desafios da vida com uma nova estrutura de referncia. Gradualmente, ele aprende a pacincia, a temperana e a humildade. Somente quando aprende estas lies que finalmente chega a Itaca, sua amada casa-ilha, e reencontra sua fiel e devotada esposa, Penlope.

    Por que esta histria tinha tamanho poder para os gregos e ressoava to eloquentemente para as geraes subsequentes na c iv ilizao ocidental? Ninian Smart sugere uma resposta parcial, dizendo que o significado ltimo dos mitos tm a ver com os impulsos profundos de nossa psique: [Os mitos] tm a ver com o modo como podemos chegar a um acordo com nossos sentimentos, e como podemos alcanar a integrao pessoal e a inteireza .23 A jornada de Odisseu sua casa na verdade uma jornada rumo a um tipo de inteireza do ego, no possvel sob o modelo do antigo guerreiro grego. Mas, como Smart tambm ressalta, o mito tradicionalmente tem um significado comunal predominante: Um mito no apenas sobre mim: sobre ns .24 A histria de Odisseu acerca de um homem que encontrou seu caminho para casa e, ao faz-lo, descobriu um novo modo de viver; mas tambm a histria de um povo inteiro. Na realidade, a histria de como algum pode enfrentar as dificuldades da vida. Mais adiante no poema, por exemplo, Homero faz Odisseu dizer:

    Das criaturas mortais, entre tudo o que respira e se move, a terra no leva sobre si nenhum mais frgil do que o gnero humano...

  • PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTO 41

    Nenhum homem deveria zombar da lei,mas manter em paz quaisquer presentes que os deuses podem dar.25

    A Odissia de Homero tem falado de maneira muito simples aos gregos, e tem falado a sucessivas geraes no Ocidente, porque seus temas transcendem a histria de um guerreiro.

    Narrativa HistricaO mito continua sendo uma forma vivel de narrativa no mun

    do de hoje. Mas desde o comeo da era cientfica, e sobretudo depois do advento de tcnicas modernas de escrever histria, o poder de contar mitos diminuiu. Curiosos como estamos ao adentraro sculo X X I, parece que temos uma forte necessidade de descobrir e recontar como foi realmente o passado. Desejamos colocar as pessoas e os fatos juntos numa ordem coerente. A Guerra C iv il , histria televisiva com dez horas de durao feita por Ken Burns, da PBS, e Beisebol , sua histria televisiva mais recente com dezoito horas de durao ambas imensamente populares nos Estados Unidos ilustram bem o ponto em questo. Parte de sua atrao, e parte da atrao dos trabalhos histricos em geral, que eles respondem nosso desejo de conhecer algo sobre ns mesmos. Conhecer algo sobre a histria de nosso grupo conhecer algo sobre ns mesmos.

    Mas mesmo quando falamos de nos conhecer, defrontamos dois interesses competidores na produo dos trabalhos histricos. Primeiro, tendemos a buscar a mesma resposta para as nossas perguntas histricas conforme a rainha malvada buscou no conto de fadas Branca de Neve. Espelho, espelho meu, haver no mundo algum mais bonita do que eu? , perguntou ela, esperando que o

    omen&Homero (sculo V III a .C .) o mais fa

    moso poeta (bardo ou cantor) do perodo arcaico da histria grega. De acordo com a antiga tradio, Homero era cego. Tambm de acordo com a antiga tradio, ele comps dois poemas picos com materia l trazido do sculo X III a.C . por uma longa tradio oral: a Ilada e a Odissia. Hoje estes poemas so considera-

    ! dos os prottipos de todos os poemas| picos, e esto entre as maiores obrasi da literatura ocidental. A Ilada narra umi episdio que dura alguns dias na guerra

    de dez anos entre os gregos e os troianos: a ira de A quiles e suas consequncias trgicas, inclusive as mortes de Ptroclo e Hector. A Odissia comea dez anos depoi s da queda de Tria. Conta como um dos heris gregos,Odisseu, finalmente consegue retornar sua casa, em taca, onde reunido sua esposa Penlope e ao seu filho Telmaco.

  • espelho lhe dissesse que ela era a mulher mais linda da terra. Temos a tendncia de romantizar o passado, encontrando heris em conjunturas cruciais. Ao agirmos assim, fazemo-nos a ns mesmos parecer melhores do que talvez mereamos.

    Se George Washington se recusasse a mentir a respeito de cortar a cerejeira, ento sua virtude resultaria de algum modo diminuda a todos os americanos. Se um dos meus antepassados no sculo X IX se candidatasse ao