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Patrícia Oliveira da Silva - Editora ItacaiúnasBruno Nunes Batista (IFC) Miguel Rodrigues Netto (UNEMAT) Viviane Corrêa Santos (UEPA) Josimar dos Santos Medeiros (UEPB) Wildoberto

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  • Patrícia Oliveira da Silva

    A agricultura familiar na Região Metropolitana de Belém - Pará

    as estratégias de reprodução dos

    agricultores do município de Marituba

    1ª edição

  • © 2019 por Todos os direitos reservados.

    Capa e editoração eletrônica Editora Itacaiúnas

    Editor de publicaçõesWalter Luiz Jardim Rodrigues

    Conselho editorial Editora Itacaiúnas Colaboradores:

    Bruno Nunes Batista (IFC)Miguel Rodrigues Netto (UNEMAT)

    Viviane Corrêa Santos (UEPA) Josimar dos Santos Medeiros (UEPB) Wildoberto Batista Gurgel (UFERSA)André Luiz de Oliveira Brum (UNIR)

    O conteúdo desta obra, inclusive sua revisão ortográfica e gramatical, bem como os dados apresentados, são de responsabilidade de seus participantes, detentores

    dos Direitos Autorais.

    Esta obra foi publicada pela Editora Itacaiúnas em setembro de 2019.

    DOI: 10.29327/53648

  • AGRADECIMENTOS

    Preciso expressar minha imensa gratidão a todos que comigo construíram

    este trabalho, principalmente ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da

    Universidade Federal do Pará, ao meu orientador no curso de mestrado professor

    João Santos Nahum, à Rosanira Portal pela colaboração na pesquisa empírica, ao

    Frank Campos pela produção dos mapas e à Sirlene Oliveira, minha mãe, e José

    Luiz Sirotheau, meu companheiro, que juntos me fortalecem nesta vida.

  • RESUMO A presente pesquisa versa sobre a reprodução da agricultura familiar na Região

    Metropolitana de Belém-Pará, enfocando de forma mais específica agricultores dos

    bairros de Almir Gabriel e Uriboca no município de Marituba. Nesta perspectiva,

    centrou-se a análise em aspectos diversos, como a visão da agricultura presente

    nos documentos no âmbito do poder municipal, as políticas públicas voltadas a este

    segmento, as trajetórias vivenciadas, as práticas empreendidas por estes grupos no

    que concerne à produção e comercialização, que resultaram em uma amostra das

    incontáveis ações e processos que afetam a reprodução destes agricultores no que

    concerne à sua limitação ou favorecimento. Estes processos revelaram as

    estratégias que possibilitam a reprodução socioespacial dos agricultores familiares

    que inseridos em espaços metropolitanos, desenvolvem atividades ligadas à

    agricultura o que nos remete a uma tradição rural expressa em movimentos

    migratórios experimentados.

    Palavras-chave: Reprodução, Agricultura familiar, Marituba, Região Metropolitana

    de Belém.

  • Dedicatória

    Aos inúmeros agricultores familiares, que em meio às adversidades dos contextos socioespaciais nos quais estão inseridos, persistem e recriam-se em um estilo de vida peculiar.

  • Sumário

    INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 8

    CAPÍTULO 1 - ABORDAGEM TEÓRICO-CONCEITUAL ACERCA DA REPRODUÇÃO DA

    AGRICULTURA FAMILIAR EM ESPAÇO METROPOLITANO........................................... 19

    1.1 AGRICULTURA FAMILIAR: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA ........................................ 20

    1.2 A NATUREZA DA REPRODUÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR ............................... 26

    1.3 A RELAÇÃO RURAL-URBANA NA ANÁLISE DA AGRICULTURA FAMILIAR EM

    ESPAÇO METROPOLITANO ...................................................................................................... 31

    CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO HISTÓRICO-GEOGRÁFICA DO MUNICÍPIO DE MARITUBA E

    SUA RELAÇÃO COM A AGRICULTURA ........................................................................... 44

    2.1 A FORMAÇÃO DO MUNICÍPIO DE MARITUBA E SUA RELAÇÃO COM A

    AGRICULTURA .............................................................................................................................. 45

    2.2 A ALUSÃO À AGRICULTURA FAMILIAR NO PLANO DIRETOR MUNICIPAL DE

    MARITUBA ...................................................................................................................................... 58

    2.3 ESPACIALIZAÇÃO DAS INICIATIVAS DE AGRICULTURA FAMILIAR NA REGIÃO

    METROPOLITANA DE BELÉM ................................................................................................... 66

    CAPÍTULO 3 - DIMENSÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS AOS

    AGRICULTORES FAMILIARES COM ÊNFASE NO PRONAF ........................................... 80

    3.1 ASPECTOS GERAIS DA POLÍTICA ESTATAL PRONAF ................................................ 81

    3.2 CARACTERÍSTICAS DO PRONAF NA REGIÃO NORTE E NO ESTADO PARÁ ....... 90

    3.3 INDICATIVOS DO PRONAF NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELÉM COM

    ÊNFASE NO MUNICÍPIO DE MARITUBA ................................................................................. 95

    CAPÍTULO 4 - ESTRATÉGIAS SOCIOESPACIAIS DE REPRODUÇÃO DA

    AGRICULTURA FAMILIAR NO MUNICÍPIO DE MARITUBA ........................................... 100

    4.1 CARACTERIZAÇÃO DOS PRODUTORES FAMILIARES: TRAJETÓRIAS, PERFIL

    SOCIOECONÔMICO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ................................................................. 101

    4.2 AS MÚLTIPLAS PRÁTICAS SOCIOESPACIAIS RELACIONADAS À PRODUÇÃO E A

    COMERCIALIZAÇÃO .................................................................................................................. 114

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 140

    REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 144

  • 8

    INTRODUÇÃO

    Esta obra tem como objeto de estudo a reprodução da agricultura familiar na

    Região Metropolitana de Belém (RMB), enfocando de forma específica agricultores

    de dois bairros do município de Marituba. O objetivo geral foi analisar as estratégias

    que possibilitam a reprodução social dos agricultores familiares que inseridos em

    espaços considerados urbanos, desenvolvem atividades ligadas à agricultura o que

    nos remete a uma tradição rural presente nesta região metropolitana.

    É precisamente a partir da consideração do agir e do fazer dos agricultores,

    em consonância com a relevância da perspectiva da interação e imbricação dialética

    entre rural e urbano, que é possível compreender que em meio a um espaço no qual

    as relações urbanas são predominantes, conectam-se a estas práticas tidas

    enquanto sinais de um espaço rural, ratificado em muito pelas trajetórias de vida dos

    sujeitos históricos.

    As regiões metropolitanas guardam em sua essência um mosaico de relações

    que se mostra espacial e temporalmente de forma diversa, ainda que estas

    apresentem uma tendência homogeneizante moldada pelo processo de

    urbanização, expressa também espaços e relações diferencialmente

    complementares, produzidas pelos grupos sociais diversos, são relações cotidianas

    que podem ser visualizadas num estilo de vida que se tece tanto no interior das

    propriedades dos trabalhadores, nas produções, na organização familiar, na relação

    com a terra, quanto externamente na comercialização do que foi produzido, nas

    feiras, nas portas das casas, entre outros.

    A agricultura familiar, enquanto uma noção chave neste estudo é considerada

    na sua essência uma categoria complexa, ligada aos diferentes tipos de agricultores,

    que possuem interesses particulares, assim como estratégias próprias de

    sobrevivência e de produção. Tal produção se sustenta sobre o tripé terra, trabalho e

    família, e guarda um conteúdo socioespacial diverso. A esta abordagem, soma-se a

    análise referente à relação rural-urbana que permeia este processo. Estes

    referenciais teóricos da pesquisa foram delineados no primeiro capítulo.

    O campo teórico no qual esta pesquisa se insere tem como elemento de

    análise a reprodução da agricultura familiar em regiões metropolitanas. Neste

    campo, encontra-se a tese de Corona (2006), que demonstra as diversas inter-

    relações da reprodução social da agricultura familiar na Região Metropolitana de

  • 9

    Curitiba (RMC), revelando as estratégias criadas pelos agricultores, que garantem

    sua permanência no espaço rural; rural este submetido constantemente ao processo

    de transformação, intensificado pela inserção deste em uma região metropolitana.

    Os trabalhadores, comumente apresentando trajetórias de vida diferenciadas,

    imprimem no espaço metropolitano das cidades, outras formas de apropriação social

    e espacial, que muitas vezes destoam do que é predominante no espaço entendido

    enquanto urbano. Tratam-se de características diferenciadas de sobrevivência que

    se fazem presentes por meio de atividades como a agricultura, as quais se

    constituem enquanto atividades que possibilitam uma grande contribuição no

    sustento das famílias na metrópole, configurando-se espacialmente de forma

    diferenciada no espaço metropolitano.

    Noronha (2008) em seu estudo revela que o rural apresenta transformações e

    reformulações em sua forma e seu conteúdo, mostrando isso no processo de

    urbanização que se apresenta de forma difusa em bairros rurais do município de

    Jundiaí (São Paulo). Um dos elementos analisados por Noronha (2008) diz respeito

    à pluriatividade, que se configura enquanto uma estratégia tida pelos agricultores

    para se reproduzirem em meio aos espaços dos bairros rurais da Toca e da Roseira,

    que tem relação direta com o processo de urbanização.

    Em outro sentido, Lima (2008) estuda não a expansão da urbanização sobre

    o rural, mas a reprodução do rural nas cidades, observando em sua pesquisa, no

    espaço urbano de Imperatriz (Maranhão), que a mudança de residência dos

    trabalhadores rurais para a cidade não significou, ao menos em parte, uma

    transformação de sua cultura, das atividades, das relações sociais. Mesmo morando

    na cidade de Imperatriz os trabalhadores mantiveram as práticas, bem como o modo

    de viver trazido de suas experiências no meio rural.

    A partir do estudo de Lima (2008) é possível verificar que nas regiões

    metropolitanas, as quais revelam uma dimensão material e simbólica dos grupos

    sociais, a unidade contraditória e ao mesmo tempo complementar entre o rural e

    urbano é expressa nos espaços criados e recriados pelos trabalhadores rurais, os

    quais por meio de atividades tidas rurais, vão engendrando na cidade espaços que

    contribuem para sua reprodução.

    Estes espaços onde se revelam estratégias de sobrevivência ligadas à

    agricultura são geralmente tidos como periféricos, enfocados na pesquisa de

    Miranda (2008), que estão inclusos num estágio de transição rural-urbana. Conforme

  • 10

    esta autora é precisamente nestes espaços, onde os estudos sobre as

    possibilidades de planejamento e a aplicação de instrumentos de política urbana

    apresentam um déficit.

    De acordo com Miranda (2008) estas áreas de transição rural-urbana seriam

    espaços em que coexistem características e usos do solo tanto urbanos como rurais,

    marcados pela inexistência ou diminuta estrutura urbana contínua, estando propício

    a transformações econômicas, sociais e físicas, com uma dinâmica estreitamente

    vinculada à presença próxima de um núcleo urbano.

    No entendimento das relações e práticas socioespaciais a partir da relação

    rural-urbana, faz-se necessário a compreensão de que estes conteúdos se

    complementam e se diferenciam nas suas particularidades, como explanou Bagli

    (2006) em sua pesquisa acerca do rural e urbano nos municípios de Álvares

    Machado, Presidente Prudente e Mirante do Paranapanema em São Paulo.

    Neste estudo a partir de uma análise das origens da perspectiva dicotômica

    entre o rural e urbano, tem reconhecido destaque o esforço de Bagli (2006) em

    reconceituar rural e urbano, diante das transformações recentes presentes em

    ambos, partindo do princípio de que há complementaridades entre rural e urbano,

    contudo estas interrelações não anulam as diferenças entre estes que imprimem no

    espaço conteúdos socioespaciais particulares.

    Estas diversidades presentes nestes conteúdos, urbano e rural, nos espaços

    metropolitanos são resultantes das relações tecidas entre os sujeitos e estes com o

    espaço, entendido, conforme Santos (2006), enquanto um sistema de objetos e

    ações, que se encontra imbricado num processo de complementaridade, bem como

    de diferenciação, expresso na vida cotidiana dos sujeitos sociais.

    É precisamente neste debate acerca da reprodução da agricultura familiar em

    espaço metropolitano, que se dá a valorização da agricultura familiar enquanto uma

    categoria que auxilia na compreensão das transformações no espaço rural, bem

    como no espaço tido enquanto urbano. Neste sentido, este estudo teve como ponto

    de partida as transformações na dinâmica espacial amazônica que aconteceram em

    dois períodos, primeiramente com a colonização dirigida e espontânea para a

    Região Bragantina no estado do Pará no século XIX e em segundo a colonização

    incentivada pelo Governo Federal a partir da metade do século XX quando a

    Amazônia é reinventada a partir de vetores externos de modernização conservadora.

  • 11

    Estas transformações, enquanto resultado da primeira e segunda colonização

    empreendida pelo Estado, incidiram diretamente no conteúdo e forma da RMB, visto

    que se por um lado esta difunde um padrão urbano de vivência, por outro recria

    espaços/fragmentos, os quais contêm práticas socioespaciais como a agricultura,

    que não necessariamente obedecem a uma lógica reconhecidamente urbana.

    Deste modo, analisam-se nesta pesquisa as condições e possibilidades de

    reprodução da agricultura familiar na RMB, para tanto enfocou os agricultores de

    dois bairros do município de Marituba, a saber, Almir Gabriel e Uriboca. A opção

    pelo estudo detalhado deste município se sustenta em decorrência da realização de

    um levantamento prévio e sucinto acerca da incidência de agricultura familiar nos

    municípios da RMB e a constatação que esta região metropolitana, assim como as

    demais são marcadas pela expressão da agricultura familiar em sua composição.

    O trabalho empírico empreendido neste estudo se deu no plano do bairro,

    primeiramente porque o município de Marituba, não apresenta uma divisão oficial

    em zona urbana e zona rural, isto é, os espaços do município, conforme seu plano

    diretor, são considerados espaços urbanos ou em expansão urbana, o que resulta

    na divisão do município em bairros, caracterizando uma divisão fundamentalmente

    urbana, desta forma, para situar os agricultores espacialmente no município, utilizou-

    se o nome dos bairros nos quais os mesmos estão inseridos.

    Em segundo, o bairro foi considerado tendo em vista a perspectiva de Carlos

    (2001), segundo esta autora, o mesmo se apresenta como uma prática que se

    revela no plano do vivido, o qual tem sentido na evidência da vida cotidiana, na qual

    se tem a aproximação maior com a dimensão das necessidades, mas também dos

    prazeres e emoções dos grupos sociais.

    A pesquisa realizada em nível do bairro se justifica pelo entendimento de que

    no bairro é possível perceber com uma maior riqueza de detalhes as relações

    socioespaciais, sendo estas as relações de vizinhança, bem como as construídas

    entre o sujeito e o seu espaço. Nesta perspectiva, concordando com Certeau (1996,

    p. 40) o bairro “[...] constitui para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano

    na qual [...] ele se sente reconhecido”.

    Nestas acepções a escala do bairro é por excelência a escala dos

    acontecimentos presentes no cotidiano das famílias, dos vizinhos, das cooperativas

    e associações. Cotidiano este, que representa, de acordo com Martins (2008), o

  • 12

    espaço do homem comum, que no seu mundo de todos os dias dá vazão as suas

    vontades individuais e coletivas.

    Com base na pesquisa concisa realizada sobre os municípios da RMB, a

    partir de diagnósticos realizados pelo Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena

    Empresa no Pará (SEBRAE/PA), bem como por meio de informações obtidas em

    outras pesquisas que são especificadas no subtópico do segundo capítulo,

    possibilitou o reconhecimento desta agricultura na RMB, permitindo eleger um

    município que fosse representativo desta característica presente nesta região

    metropolitana, que é a permanência da agricultura familiar enquanto produção

    relevante. Neste sentido, selecionou-se o município de Marituba, precisamente os

    agricultores dos bairros de Almir Gabriel e Uriboca para análise minuciosa da

    reprodução desta agricultura familiar.

    O município de Marituba compõe a RMB, em conjunto com mais cinco, a

    saber, Belém, Ananindeua, Benevides, Santa Bárbara e Santa Izabel. Destes,

    Marituba apresenta um elevado grau de urbanização 87,18 % em 2000, segundo

    dados do Relatório de Avaliação do Plano Diretor de Marituba (2009). Contudo,

    conforme os resultados preliminares do censo 2010 do Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatística (IBGE), esta taxa de urbanização sofreu alteração em

    decorrência do aumento da população urbana em detrimento da rural, quantitativo

    referente a 127.109 e 1.122 pessoas respectivamente. Apesar destes números,

    pode-se dizer que o município apresenta ao mesmo tempo uma produção espacial

    relevante pautada na agricultura familiar, muitas vezes desconsiderada ou

    negligenciada pelas ações políticas, mas que responde pelo complemento alimentar

    e financeiro de muitas famílias.

    O estudo das estratégias de reprodução da agricultura familiar contribui para

    demonstrar a importância desta atividade para o sustento das famílias, bem como

    para os mercados locais em termos de abastecimento e assim apreender em que

    medida as estratégias utilizadas na produção dos cultivos neste município se

    assemelham e/ou se diferenciam. É exatamente no esforço de se considerar estes

    espaços enquanto essenciais na contribuição do sustento de um número

    considerável de famílias, residente nesta área metropolitana, que os mesmos

    necessitam ser discutidos e valorizados no âmbito de uma proposta de gestão do

    espaço regional e local.

  • 13

    Por isso, analisou-se o processo de reprodução da agricultura familiar na

    RMB, precisamente nos referidos bairros de Marituba, por meio também da

    revelação de estratégias de sobrevivência tidas pelos trabalhadores, bem como do

    conhecimento de suas trajetórias, as quais guardam muitas vezes idas e vindas

    experimentadas pelos grupos sociais. Em meio a esta discussão acerca da

    reprodução da agricultura familiar e considerando os meandros da relação entre o

    urbano e o rural na dinâmica espacial da composição desta região metropolitana,

    tendo como base empírica da pesquisa, os agricultores dos bairros de Almir Gabriel

    e Uriboca em Marituba, questionou-se:

    De que forma se dá a reprodução da agricultura familiar na Região Metropolitana

    de Belém, especialmente no município de Marituba?

    Esta problemática emergiu da necessidade de se compreender sobre que

    bases tal organização social e produtiva se reproduz diante de um conteúdo

    (urbano) e de uma forma (cidade) que pretendem e tendem à homogeneização do

    espaço. Por conseguinte, de posse desta problemática mais geral, levantou-se

    questões secundárias em torno das estratégias socioespaciais, desenvolvidas pelos

    agricultores no município de Marituba. Deste modo, a questão norteadora se

    desdobrou em três questões secundárias que subsidiaram a presente pesquisa:

    Os agricultores familiares enfatizados são alcançados pelas políticas públicas

    direcionadas à agricultura?

    Quem são estes sujeitos sociais, suas trajetórias, experiências?

    Quais as estratégias de reprodução socioespaciais destes agricultores?

    Com base nestes questionamentos levantados, os quais suscitaram diversos

    outros enfoques como a construção das políticas públicas, as trajetórias dos

    agricultores, contudo tendo por objeto de estudo a reprodução dos agricultores,

    frente à expansão crescente das relações e dos espaços predominantemente

    urbanos, objetivou-se em linhas gerais:

  • 14

    Revelar e analisar as condições socioespaciais que explicam a persistência da

    agricultura entendida neste estudo enquanto familiar desenvolvida na Região

    Metropolitana de Belém, precisamente nos citados bairros de Marituba.

    Este objetivo geral esteve intrinsecamente relacionado a outros três objetivos

    secundários pretendidos nesta pesquisa, para a melhor compreensão da

    problemática:

    Verificar o nível de participação dos agricultores nas políticas públicas

    direcionadas a este segmento

    Revelar as trajetórias vivenciadas pelos trabalhadores e familiares envolvidos na

    atividade da agricultura

    Identificar as estratégias socioespaciais realizadas pelos agricultores

    Para a realização deste estudo partiu-se da hipótese de que a permanência

    destas práticas socioespaciais diferenciadas em Marituba está associada a

    necessidade material de sobrevivência dos trabalhadores, assim como a

    necessidade subjetiva de trabalhar na atividade da agricultura, seja no espaço

    urbano ou rural.

    Estes, por sua vez, recriam estratégias socioespaciais ligadas tanto ao

    envolvimento da organização familiar na atividade, assim como à inserção destes

    trabalhadores em associações e cooperativas que possibilitam o fortalecimento dos

    mesmos. Estes fatores combinados representam possibilidades reais de

    sobrevivência para os envolvidos direta e indiretamente na produção.

    As trajetórias vivenciadas pelos sujeitos indicam uma diversidade de ações e

    caminhos percorridos, que expressam encontros e desencontros com um cotidiano

    essencialmente rural, fatores estes que influenciam uma produção socioespacial que

    se constitui em objeto de análise da presente pesquisa.

    Pressupõe-se também que apesar de ter tido um acréscimo nas políticas

    públicas voltadas para as atividades ligadas aos espaços rurais, ainda assim um

    número considerável de trabalhadores não é beneficiado com os incentivos, fator

    que decorre entre outros, do desconhecimento ou negligência quanto ao caráter

  • 15

    heterogêneo intrínseco aos grupos sociais envolvidos, sejam estes atuantes em um

    espaço rural ou urbano.

    Contudo, os agricultores familiares vêm assumindo espaço político destacado

    no período recente e buscam afirmar-se como categoria social estratégica, haja vista

    que estão apresentadas as condições políticas e institucionais para que estes

    agentes possam participar de um desenvolvimento rural tão propagandeado nas

    políticas. Estas políticas que se configuram isentas de neutralidade, visto que

    expressam um movimento contraditório intrínseco da sociedade.

    No que se refere ao instrumental metodológico, realizou-se pesquisa e análise

    bibliográfica, assim como levantamento e análise documental e de dados

    secundários em instituições públicas ligadas à agricultura familiar, como a Empresa

    de Assistência Técnica e extensão Rural (EMATER); Secretária Municipal de

    Agricultura e Abastecimento (SEMAB); Prefeitura Municipal de Marituba (PMM);

    Secretária Estadual de Agricultura (SAGRI); Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatística (IBGE), entre outros, com o objetivo de conhecer os números da

    população rural e urbana, planos, políticas públicas concebidas para este grupo,

    cadastro dos agricultores, dados relativos à produção agrícola, entre outros.

    A entrevista semiestruturada é uma técnica adotada nesta pesquisa por

    permitir conforme May (2004) que sejam apreendidas nos diálogos, não somente

    elementos quantitativos, mas de igual importância informações qualitativas, uma vez

    que o entrevistador ao utilizar esta técnica possa ir além da padronização contida

    nos questionários.

    Associada à entrevista semiestruturada, utilizou-se as entrevistas não

    estruturadas ou abertas, especificamente a história de vida. Esta técnica permite

    perceber com mais clareza as contradições sociais que envolvem a vida cotidiana

    dos trabalhadores, a relação destes com o espaço produzido, com a família, com a

    terra, com o espaço de comercialização e a possível relação entre este cotidiano

    vivenciado e as experiências reveladas por meio das histórias relatadas por estes

    trabalhadores.

    Para May (2004, p. 150) a opção por determinada técnica de pesquisa está

    intrinsecamente ligada aos objetivos e resultados pretendidos pelo pesquisador e no

    geral, a escolha pela técnica de entrevista aberta se justifica pela compreensão de

    que “[...] as entrevistas estruturadas dão pouco espaço para as pessoas

  • 16

    expressarem as suas próprias opiniões da maneira que escolherem. Elas têm que se

    ajustar a quadros ou categorias que o pesquisador já predeterminou”.

    Partindo da necessidade de conhecer os espaços dos trabalhadores, bem

    como suas práticas socioespaciais, as quais produzem espaços diferenciados, fez-

    se necessário observar os processos experimentados pelos sujeitos, por meio das

    conversas com os mesmos. Segundo Silva (2004) os relatos podem revelar que a

    memória é uma reconstrução social, e pode transformar o presente, na medida em

    que reinterpreta o passado.

    Para analisar as estratégias que respondem pela reprodução dos agricultores

    dos bairros selecionados, foi delimitado o número de agricultores entrevistados,

    utilizando a técnica da amostragem. Diante da impossibilidade de entrevistar todos

    os agricultores familiares residentes em Marituba, em decorrência da natureza da

    entrevista implementada, que requer um tempo maior para a realização e análise,

    bem como a ausência de recursos suficientes para subsidiar os procedimentos,

    dentre outros fatores, priorizou-se a seleção de um número predefinido de

    agricultores.

    O total de agricultores entrevistados obedeceu a uma seleção pautada em

    critérios indissociáveis, que dizem respeito, tanto à representatividade dos

    agricultores, quanto à espacialidade destes no que se refere à agricultura. A amostra

    de agricultores, não necessariamente representativa, encontra-se inserida no

    universo de estabelecimentos da agricultura familiar contabilizados pelo censo

    agropecuário do ano de 2006 (BRASIL, 2006), o qual totalizou cento e dezesseis

    unidades familiares produtivas.

    Neste sentido, foram entrevistados vinte agricultores familiares, sendo dez

    agricultores, localizados no bairro Almir Gabriel, reconhecidos pela produção

    hidropônica e orgânica e dez agricultores do bairro Uriboca, representativos, pela

    produção de hortaliças para o fornecimento, principalmente, na feira do Ver-o-Peso

    no município de Belém. Na sistematização das informações obtidas no trabalho

    empírico, buscou-se preservar a identidade dos entrevistados, para evitar possíveis

    contratempos, entretanto, os mesmos foram identificados por meio de números, de 1

    a 20, conforme o número de entrevistas.

    Essa etapa de campo se constituiu em uma das etapas fundamentais desta

    pesquisa, uma vez que nela se deu a reconstrução das trajetórias familiares no

    estabelecimento por meio de uma detalhada investigação, da qual resultaram

  • 17

    importantes e enriquecedores depoimentos, os quais foram utilizados no processo

    de análise e expostos nesta pesquisa, sobretudo no terceiro capítulo.

    Além da utilização das entrevistas como ferramenta essencial, o aporte

    metodológico da pesquisa foi desenvolvido por levantamento cartográfico, bem como

    visitas ao recorte empírico com observação sistemática, registro fotográfico, tanto

    dos espaços de produção, quanto de comercialização com o propósito de conhecer

    e revelar as práticas socioespaciais cotidianas destes grupos sociais. Tanto as

    observações sistemáticas, quanto as entrevistas, e o registro fotográfico,

    configuram-se enquanto instrumentos fundamentais para a constatação da

    persistência destas estratégias no espaço metropolitano, precisamente em Marituba,

    ratificando a relevância da análise em questão para a região.

    Do mesmo modo que a pesquisa balizou-se por um aporte metodológico, esta

    também se orientou por um referencial teórico-conceitual, que tem como teorias e

    conceitos chaves, primeiramente o espaço enquanto a indissociação entre sistema

    de objetos e sistema de ações conforme Santos (2006). A agricultura familiar

    enquanto uma categoria genérica que guarda uma diversidade de formas sociais na

    perspectiva de Wanderley (1996; 2003), assim como uma categoria socioprofissional

    institucionalizada conforme Neves (2007) e a concepção da reprodução das

    relações sociais, concebida, sobretudo por Lefebvre (1999), Bourdieu (2004);

    Bourdieu e Passeron (1992), além da utilização de apontamentos da obra de Marx e

    Engels (2009).

    A pesquisa necessitou da orientação de algumas noções e conceitos

    secundários, mas não menos imprescindíveis para o entendimento dos processos, a

    saber, a relação de diferenciação e complementaridade entre rural e urbano,

    baseando-se em Alentejano (2000), Marques (2002) e Spósito (2006), além da

    discussão sobre metropolização do espaço partindo da concepção de Lencioni

    (2003), assim como os aspectos do cotidiano concebido por Martins (2008), entre

    outros.

    A pesquisa estruturou-se em alguns momentos que se materializaram em

    quatro capítulos, os quais foram subdivididos em tópicos para o melhor

    direcionamento do trabalho escrito. Contudo os capítulos resultantes desta pesquisa,

    não se encontram isolados, mas conectados pela problemática central deste estudo.

    No primeiro capítulo intitulado “Abordagem teórico-conceitual acerca da

    reprodução da agricultura familiar em espaço metropolitano”, discutiu-se as

  • 18

    perspectivas conceituais acerca da agricultura familiar, bem como os elementos

    caracterizadores. Em seguida, foram analisadas algumas interpretações referentes

    ao conceito de reprodução, assim como a ênfase na relação rural-urbana, relação

    esta que permeia o processo de reprodução da agricultura familiar na região

    metropolitana de Belém.

    No segundo capítulo “Formação histórico-geográfica do município de Marituba

    e sua relação com a agricultura”, caracterizou-se de forma geral o processo histórico

    de ocupação do município em sua relação com a atividade agroindustrial, sua

    constituição enquanto município, sua localização, dados secundários relativos à sua

    população. Destacando-se, neste segundo capítulo, como o plano diretor municipal

    definiu o zoneamento dos espaços agrícolas em Marituba e por fim a espacialização

    da composição metropolitana com ênfase para as iniciativas da agricultura familiar

    na RMB.

    Já no terceiro capítulo intitulado “Dimensões das políticas públicas voltadas

    aos agricultores familiares com ênfase no PRONAF”, partiu-se das políticas públicas

    direcionadas aos agricultores, explorando os conteúdos dos programas,

    principalmente do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

    (PRONAF), além da análise de dados secundários e primários que indicaram o nível

    de participação dos agricultores nestas políticas, bem como a relevância destas na

    reprodução destes grupos.

    Finalmente no quarto capítulo ”Estratégias socioespaciais de reprodução da

    agricultura familiar no município de Marituba”, sistematizou-se as estratégias

    socioespaciais de reprodução destes agricultores, revelando as estratégias dos

    agricultores no que concernem as práticas socioespaciais de produção e

    comercialização, perpassando pelas suas trajetórias, características

    socioeconômicas e organização social em cooperativas e associações. Estas

    estratégias conjugadas convergem para reprodução das famílias ligadas à

    agricultura no município de Marituba, inserido na RMB.

  • 19

    CAPÍTULO 1 - ABORDAGEM TEÓRICO-CONCEITUAL ACERCA DA

    REPRODUÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR EM ESPAÇO METROPOLITANO

    A análise acerca da compreensão da categoria agricultura familiar no campo

    teórico, assim como os processos que envolvem a sua reprodução em espaço

    metropolitano e que por sua vez expressam uma relação rural-urbana presente

    nestes espaços recortados para a análise, configuram-se sobremaneira no objeto de

    apreciação neste primeiro capítulo.

    Neste sentido este primeiro momento da pesquisa foi sistematizado em três

    itens. Primeiramente destacam-se às distintas concepções sobre a agricultura

    familiar, presente nos estudos de Abramovay (2007), Fernandes (2002),

    principalmente de Wanderley (1996; 2003), Neves (2007), Schmitz (2008), entre

    outros que se debruçaram sobre a temática.

    No segundo, discute-se o conceito de reprodução, pautando-se, sobretudo no

    trabalho de Lefebvre (1999) intitulado “Estrutura social: a reprodução das relações

    sociais”, além dos escritos de Bourdieu (2004); Bourdieu e Passeron (1992) acerca

    da problemática da reprodução em consonância também com apontamentos da obra

    de Marx e Engels (2009), buscando neste subtópico os elementos que caracterizam

    este processo de reprodução dos agricultores.

    Já a abordagem, desenvolvida no terceiro e último item deste capítulo, refere-

    se à relação rural-urbana, a qual é entendida a partir da imbricação dialética entre os

    conteúdos, tanto de complementaridade, quanto de diferenciação, fundamentou-se

    principalmente nos trabalhos de Marques (2002), Alentejano (2000), Guerra (2006),

    Spósito (2006) entre outros, enfatizados neste estudo.

    Este momento foi construído com o intuito de subsidiar de forma teórica e

    conceitual o objetivo que busca identificar as estratégias socioespaciais dos

    agricultores, uma vez definida à perspectiva conceitual de agricultura familiar, bem

    como de reprodução atrelada às estratégias, no contexto da relação rural-urbana,

    associada à pesquisa empírica propriamente desenvolvida no terceiro capítulo,

    certamente será realizada a análise acerca das estratégias empreendidas pelos

    agricultores.

    Objetivou-se em síntese, nesta primeira parte, entender no plano teórico a

    reprodução da agricultura familiar, presente não somente no espaço rural, mas

  • 20

    também sendo desenvolvida no espaço urbano, demonstrando uma relação de

    complementaridade e diferenciação entre o par rural-urbano, frisando a valorização

    da agricultura familiar não a partir de sua forma, mas sobremaneira tomando como

    referencial seu conteúdo, sendo esta desenvolvida no campo ou na cidade, no rural

    ou no urbano ou na imbricação entre ambos.

    1.1 AGRICULTURA FAMILIAR: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA

    O recorte empírico privilegiado neste estudo apresenta atividades pautadas

    na produção agrícola, sobretudo de hortaliças, bem como na criação de animais de

    pequeno porte, realizadas por familiares ou cooperados no município de Marituba.

    Estas práticas socioespaciais são desenvolvidas nos quintais das casas, em áreas

    não utilizáveis por residências ou outras construções, estes espaços utilizados são,

    geralmente, reduzidos, pois estão localizados em espaços urbanos ou próximos a

    estes, conforme zoneamento proposto pelo plano diretor municipal do município de

    Marituba vigente desde o ano de 2007.

    A percepção da realidade presenciada condicionou ao entendimento de que

    esta forma de produzir, associada à produção propriamente dita, apresenta

    proximidade com uma concepção genérica de agricultura familiar, pautada na

    organização social e produtiva administrada pela família ou por cooperados.

    Ao se definir a agricultura familiar enquanto um primeiro termo essencial para

    a pesquisa, o qual guarda uma discussão teórica extensa, faz-se necessária uma

    apreciação teórica do termo agricultura familiar, conforme a análise de alguns

    autores, principalmente de Wanderley (1996, 2003), Neves (2007), Abramovay

    (2007), Schmitz (2008), Fernandes (2002), entre outros, que se debruçaram sobre a

    temática.

    Schmitz (2008) em consonância com Neves (2007) demonstra que a

    discussão acerca do termo agricultura familiar comumente aparece associada

    distinta ou indistintamente a dois conceitos, de campesinato e pequena produção.

    Estes termos, segundo os autores enfatizados, surgiram no Brasil de forma

    cronológica relacionados a diferentes modelos de desenvolvimento, cuja emergência

  • 21

    se deu tanto em âmbito político, quanto em âmbito analítico com o propósito de

    descrever a categoria.

    No âmbito político, inúmeras instituições tiveram significativa contribuição na

    elaboração e uso dos conceitos, seja referente ao campesinato, a pequena

    produção, ou a agricultura familiar, dentre estas, destaca-se, conforme Schmitz

    (2008) O Partido Comunista Brasileiro (PCB) que criou o Bloco Operário e

    Camponês (BOC) em 1927 e as primeiras ligas camponesas nos anos 1940; o

    Governo Militar (anos 1960), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Universidades, Governos

    democráticos (anos 1990), entre outros.

    Nesta perspectiva cronológica, a literatura indica que o campesinato como um

    conceito chave no contexto da questão agrária brasileira surge a partir dos anos

    1950, incorporando uma diversidade de relações de trabalho e de formas de acesso

    a terra. Desta forma o conceito de campesinato foi, de acordo com Schmitz (2008, p.

    3) “associado a um conteúdo político-ideológico e o conceito oposto foi o de

    latifúndio”.

    Conforme Moraes (1998) a análise que as Ciências Sociais no Brasil fazem

    sobre o campesinato perpassou basicamente por três grandes matrizes, uma de

    cunho marxista, com ênfase no processo de proletarização, portanto enfatizando

    muito mais o desenvolvimento do capitalismo em detrimento do campesinato. Em

    outro enfoque primou-se pelas análises ditas culturalistas, pautadas em Redfield,

    Wolf, Mendras, Shanin.

    E por último a análise chayanoviana a partir de sua teoria dos sistemas não-

    capitalistas e ainda a teoria marxista do modo de produção camponês, com base em

    Tepicht e Galeski compondo o terceiro enfoque. No âmbito da análise do

    campesinato propriamente dito, estes dois últimos enfoques se destacam, por

    analisarem o camponês “[...] como algo específico, seja como cultura ou como

    economia, buscando a partir ora de um, ora de outro desses aspectos, o irredutível,

    a identidade” camponesa. (MORAES, 1998, p. 124)

    Outro conceito que emerge no cenário político e acadêmico brasileiro é o

    conceito de pequena produção atrelado aos camponeses, o qual tem seu

    surgimento por volta dos anos de 1970, este estava estritamente relacionado com as

    transformações políticas do Estado com a Ditadura Militar, e a consequente

    valorização do latifúndio e desarticulação de alguns movimentos que tinham por

  • 22

    base a unidade camponesa, atribuída, sobretudo neste período o adjetivo de

    pequena produção.

    Já a agricultura familiar, configura-se em outro termo que emerge nas

    análises da questão agrária. Para Neves (2007), foi precisamente a partir da última

    década do século XX (1990), que o termo passou a receber destaque em nível

    internacional, frisando que em pesquisas foi constatado que de 1935 até 1984, não

    houve referência ao uso do termo agricultura familiar. Este termo surge inicialmente

    nos trabalhos estadunidenses e europeus, contrapondo-se ao modelo de

    interdependência entre agricultura e indústria.

    É exatamente neste contexto que segundo Neves (2007) se inicia um

    processo de construção do agricultor familiar a partir da redemocratização do Brasil,

    bem como da elaboração de políticas públicas direcionadas a esta categoria, a qual

    é denominada pela autora de socioprofissional, uma vez que seu reconhecimento

    resulta de um processo político de enquadramento institucional.

    A emergência desta categoria traz consigo um debate acerca das abordagens

    que enfocam os termos agricultura familiar e campesinato a partir do prisma da

    diferenciação. Nesta perspectiva é elucidativa a tese de doutoramento de

    Abramovay (2007). Neste estudo o referido autor demonstra que as unidades

    familiares de pequeno porte, associadas a sua crescente tecnificação e

    investimentos por parte dos estados europeus e dos Estados Unidos se mostraram

    mais eficazes na produção de alguns tipos de produtos alimentares, ressaltando,

    porém que este agricultor em nada se assemelha ao campesinato tradicional.

    Numa perspectiva de mudanças e permanências e até certo ponto

    evolucionistas, Abramovay (2007) explicita que as mudanças sofridas pela produção

    familiar na agricultura são tão intensas que não permitiram que as características

    centrais da produção camponesa permanecessem, pontuando que

    Tanto Chayanov como Tepicht [...] têm perfeita consciência de que por mais importante que seja a caracterização do camponês como uma forma social estável, esta tende irrefreavelmente a transformação e, no limite, à extinção. (ABRAMOVAY, 2007, p. 67)

    Neste sentido Abramovay (2007, p. 137) frisa os camponeses do Sul do

    Brasil, os quais se integraram plenamente às estruturas do mercado nacional,

    transformando sua base técnica e conseqüentemente se metamorfoseando “[...]

  • 23

    numa nova categoria social: de camponeses, tornam-se agricultores profissionais.

    Aquilo que antes de tudo era um modo de vida converte-se numa profissão, numa

    forma de trabalho”.

    Com uma abordagem visando à valorização do campesinato, em detrimento

    do agricultor familiar, tem-se outro trabalho significativo, o estudo de Fernandes

    (2002) intitulado “Agricultura familiar e/ou agricultura camponesa”, no qual

    demonstra a importância, valor histórico e político-ideológico que o conceito de

    camponês tem frente ao termo agricultura familiar. Para Fernandes (2002) há um

    grupo de teóricos que valoriza a agricultura familiar em detrimento do campesinato,

    enquanto conceito, alegando que este último vem perdendo seu poder explicativo,

    diante das transformações ocorridas no espaço agrário.

    Fernandes (2002) enfatiza que em geral as análises que elegem a agricultura

    familiar, pautam-se sobremaneira numa racionalidade econômica, sugerindo uma

    compreensão parcial, na qual não há o aprofundamento da análise da questão

    agrária. Para este autor a construção teórica acerca da agricultura familiar tem

    contribuído para uma imagem negativa dos camponeses, visto que as abordagens

    relacionam o camponês ao velho, arcaico e atrasado ao passo que o agricultor

    familiar representa o novo, o moderno, o progresso.

    Em sentido divergente a análise de Fernandes (2002) e partindo da

    compreensão de que a agricultura familiar tem na sua base a combinação genérica

    terra-trabalho-família, Wanderley (1996), entende que a agricultura familiar

    corresponde a uma categoria que incorpora uma diversidade de situações

    específicas, podendo se caracterizar, entre outras formas, enquanto uma agricultura

    camponesa, ou uma agricultura de subsistência, multiplicidades estas que se

    associam às particularidades inerentes às diferenciadas produções socioespaciais

    dos agricultores.

    Esta combinação inerente à categoria agricultura familiar em recortes

    temporal e espacialmente distintos revela formas sociais que demandam uma

    análise com base no empírico, por sua vez uma formulação conceitual, como no

    caso da agricultura camponesa, da agricultura de subsistência, entre outras.

    Contudo para outros autores como Neves (2007), este caráter diverso

    atribuído à agricultura familiar é forjado por políticas públicas voltadas a este

    segmento, que visando à construção de uma única categoria socioprofissional,

    reúne num mesmo aporte analítico, diversos e heterogêneos grupos sociais. Tal

  • 24

    postura, ao invés de esclarecer, segundo a autora, confunde as características

    essenciais de grupos com organização social, cultural e econômica diferenciadas.

    É reconhecida também por Schmitz e Mota (2007) a dificuldade de

    diferenciação interna concernente à agricultura familiar, porém quando se trata de

    distingui-la da agricultura dita patronal, além do tamanho da área do

    estabelecimento como critério notoriamente utilizado, deve-se considerar outros

    critérios relevantes como o grau de utilização da mão-de-obra familiar, a renda do

    agricultor, a significância do autoconsumo, as regras de herança, o aspecto cultural,

    a relação com os recursos naturais, dentre outros.

    Para Hurtienne (2005) a diversidade da agricultura familiar na Amazônia não

    se esclarece somente pelos fatores socioeconômicos e políticos, mais também com

    base nos agroecológicos, estes últimos ainda pouco compreendidos, uma vez que

    ainda perdura a concepção equivocada de que a agricultura familiar eleva, em

    grande escala, os níveis de desmatamento. Divergindo deste pensamento

    incoerente acerca da agricultura familiar, o mesmo expõe que,

    [...] o que sempre foi percebido como pequena produção de subsistência sem grandes chances de aumentar sua produtividade é reinterpretado como um campo bem mais diverso de formas de agricultura familiar com possibilidades econômicas também diversas. (HURTIENNE, 2005, p. 30)

    A dificuldade em se caracterizar uma agricultura familiar, deve-se inicialmente

    ao não reconhecimento de sua heterogeneidade, bem como a consideração de

    somente um critério ou outro para a definição da mesma. Comumente se utiliza, de

    forma inconsistente, um único critério, a saber, tamanho da propriedade, para se

    definir a agricultura familiar, bem como produtores familiares.

    Dentre os elementos para se caracterizar a agricultura familiar, bem como

    seus produtores, há de se considerar, além do tamanho dos estabelecimentos, a

    significância da subsistência, assim como as tradições e heranças relacionadas à

    estruturação e práticas socioespaciais que envolvem a vivência destes sujeitos, bem

    como sua organização social são elementos fundamentais no entendimento desta

    categoria.

    Partindo da diversidade intrínseca à categoria agricultura familiar e

    convergindo com Wanderley (2003), tem-se certa resistência em valorizar

    demasiadamente o camponês como único sujeito detentor de conteúdo histórico, em

  • 25

    detrimento do agricultor familiar como supõe Fernandes (2002), assim como há um

    descontentamento com a proposição, essencialmente evolucionista, de que o

    camponês estará cedo ou tarde fadado ao desaparecimento, visto que com a

    inserção de tecnologias, investimentos estatais e intensificação da relação com o

    mercado, este estará “irrefreavelmente” nos termos de Abramovay (2007) se

    transformando em agricultor profissional.

    Antes de se considerar esta passagem irreversível da condição de camponês

    tradicional para de agricultor familiar profissional nos moldes de Abramovay (2007),

    ou a negação do agricultor familiar enquanto sujeito ausente de história e

    resumidamente objeto de ação do Estado, deve ser considerado conforme

    Wanderley (2003) a capacidade de resistência e de adaptação dos agricultores aos

    novos contextos econômicos e sociais, os quais são outros e, por sua vez

    demandam outras estratégias, conforme o que ocorreu com os agricultores de

    Marituba, dentre os quais, um número relevante foi forçado a migrar de suas terras

    anteriormente.

    Mesmo não devendo conceber agricultura familiar enquanto um conceito, mas

    uma categoria de ação política como advoga Neves (2007), em geral, veiculada pelo

    Estado, é necessário, ponderar como explicita Wanderley (2003) que,

    Mesmo sendo uma identidade “atribuída”, na maioria dos casos, ela é incorporada pelos próprios agricultores e à diferença de outras denominações impostas de fora (agricultor de baixa renda, por exemplo), ela aponta para qualidades positivamente valorizadas e para o lugar desse tipo de agricultura no próprio processo de desenvolvimento. (WANDERLEY, 2003, p. 58)

    Convém esclarecer, que o objetivo desta análise foi menos uma proposição

    de distinção e conceituação entre agricultores familiares e camponeses e mais uma

    necessidade de entendimento deste caráter diverso da agricultura frente às

    atividades industriais, comerciais e de serviços, predominantes nos espaços

    metropolitanos, como é percebido no recorte espacial.

    Neste sentido, enfatiza-se a natureza da reprodução desta agricultura familiar,

    no próximo item, relacionando às diversas e diferenciadas formas que estes

    dispõem para a organização em cooperativas ou no núcleo familiar para produzir,

    para seleção de critérios sobre o que produzir, a relação tida com o mercado, entre

  • 26

    outros. Estas questões possivelmente são passíveis de esclarecimentos, quando se

    eleva a importância da pesquisa empírica com estes produtores, em espaços rurais

    ou urbanos, atrelada às apreciações teóricas.

    1.2 A NATUREZA DA REPRODUÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR

    O entendimento da permanência da agricultura familiar em regiões

    metropolitanas perpassa necessariamente pela compreensão do processo de

    reprodução, possibilitado pelas diversas estratégias realizadas pelos agricultores.

    Estas estratégias estão diretamente associadas às práticas socioespaciais das

    famílias, que envolvem desde a organização do núcleo familiar e das cooperativas

    até a comercialização da produção. Neste sentido, objetivando compreender a

    reprodução, buscando um quadro de análise no que concerne ao termo, enfocou-se

    a categoria a partir das elaborações, sobretudo de Lefebvre (1999), bem como de

    Bourdieu e Passeron (1992); Bourdieu (2004), para o qual o processo de reprodução

    está intrinsecamente relacionado às estratégias, além de alguns apontamentos da

    obra de Marx e Engels (2009).

    A teoria marxiana em geral, e os escritos de Marx e Engels (2009)

    especificamente na primeira parte da Ideologia Alemã, já delineavam princípios

    essenciais na compreensão da reprodução nas suas diversas dimensões. Partindo

    da diferenciação entre “os homens” e os animais, pautada não somente na

    consciência e religião por parte do primeiro, mas sobremaneira na sua capacidade

    de produção dos meios de subsistência, os quais conforme os autores não devem

    ser entendidos somente enquanto uma reprodução biológica, mas uma reprodução

    social, conforme expõe Marx e Engels (2009, p. 24).

    Esse modo de produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isto sim, de uma forma determinada da atividade desses indivíduos, de uma forma determinada de exteriorizarem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exteriorizam a sua vida, assim os indivíduos o são. [...] Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de produção. (MARX E ENGELS, 2009, p. 24, grifo nosso).

  • 27

    Na concepção de Marx e Engels (2009) a reprodução para além de uma

    reprodução biológica, deve ser entendida enquanto social, a qual consiste na

    produção, por parte dos grupos sociais, dos meios de sobrevivência, os quais estão

    associados aos estilos de vida dos grupos. Neste sentido, a reprodução dos

    agricultores de Marituba expressa um “determinado modo de vida”, o qual

    possivelmente revela uma tradição rural presente no cotidiano destes trabalhadores.

    Marx e Engels (2009, p. 23-24/40) ao definirem que a concepção materialista

    da história, em contraposição a concepção idealista, seria engendrada tendo por

    base “[...] os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida,

    tanto as que encontraram quanto as que produziram pela sua própria ação”, os

    autores negaram a perspectiva embasada na imaginação e consciência enquanto

    determinantes, e primaram pela percepção empírica fundamentada na história, a

    qual por sua vez tem como primeiro ato, a produção dos meios para satisfação das

    necessidades, fazendo parte, sobretudo “[...] comer e beber, habitação, vestuário e

    ainda algumas outras coisas”.

    Para Lefebvre (1999) se num primeiro momento analítico Marx e Engels ao

    formular acerca do sistema de produção capitalista e a gênese deste na história,

    ainda que se tenha indicado outros elementos, enfocaram a reprodução de forma

    marcadamente produtiva no sentido dos meios de produção, em outro momento por

    volta de 1863, Marx em uma carta encaminhada a Engels comentando o quadro

    econômico de Quesnay, reconhece o conceito de “reprodução total”, o qual é

    permeado por uma dinâmica relação entre permanência e inovação, a qual envolve

    todo o processo de reprodução das relações sociais.

    [...] Marx julga que este quadro não resume apenas uma circulação de bens e dinheiro, mostra de que modo e por que razão o processo não se interrompe, pois reproduz as suas próprias condições [...] Já não se trata, portanto, da reprodução dos meios de produção, mas da reprodução das relações sociais. (LEFEBVRE, 1999, p. 222)

    Lefebvre (1999) analisa a reprodução das relações sociais de produção,

    demonstrando que os trabalhos que se dedicaram ao esclarecimento dos processos

    que permearam e possibilitaram a reprodução das relações sociais apresentaram

    um caráter reducionista e parcial, constituindo-se em abordagens incompletas sobre

    a problemática da reprodução.

  • 28

    Neste sentido Lefebvre (1999) aponta que um segmento da corrente

    estruturalista reduziu o problema da reprodução das relações de produção a um

    componente elementar, os meios de produção, as indústrias, as empresas,

    centrando excepcionalmente na reprodução da força de trabalho, conforme é

    possível perceber na citação a seguir:

    Na perspectiva do marxismo estrutural-funcionalista, a reprodução das relações de produção reduz-se a um simples reforço, a uma duplicação destas relações pela intervenção do estado. [...] Este Estado intervém enquanto moderador, reduzindo os conflitos conforme interesse da fração hegemônico-burguesa. (LEFEBVRE, 1999, p. 236)

    Nesta perspectiva de demonstrar que a reprodução das relações sociais de

    produção não se explica tão somente pelas indústrias, ou pela empresa, Lefebvre

    (1999) frisa que a problemática da reprodução foi abordada de forma prudente, mas

    incompleta pelo marxista Wilhelm Reich, o qual percebeu nas relações sexuais e

    familiares analogias com as relações de produção capitalistas, propondo o lar

    familiar enquanto centro onde se produz e reproduz as relações sociais de produção

    em analogia a empresa capitalista.

    Outras análises parciais, mas não menos coerentes sobre o processo de

    reprodução e suas nuances foram construídas. Lefebvre (1999, p. 245) partindo do

    pressuposto de que ao contrário de um sistema acabado, sempre existirá o esforço

    com propósito de sistematização, defende enquanto hipótese estruturante que “[...] o

    lugar da reprodução das relações de produção não se pode localizar na empresa, no

    local de trabalho e nas relações de trabalho”.

    A partir de um exame retrospectivo acerca da realidade francesa, Lefebvre

    (1999) constrói sua tese no âmbito da reprodução das relações de produção,

    pautando-se na concepção de que o capitalismo como se apresenta transformou

    concepções, bem como criou elementos chaves na sociedade, a concepção de

    lazer, cultura, entre outros, apropriando-os ao seu uso.

    O capitalismo não subordinou apenas a si próprio, setores exteriores e anteriores: produziu setores novos transformando o que preexistia [...] Não é apenas toda a sociedade que se torna o lugar da reprodução (das relações de produção e não já apenas dos meios de produção): é todo o espaço. (LEFEBVRE, 1999, p. 247)

  • 29

    Com base na citação acima, observa-se que a hipótese estruturante de

    Lefebvre (1999) perpassa menos pelas abordagens isoladas e parciais acerca da

    reprodução e mais pela perspectiva totalizante, haja vista o enfoque no espaço, no

    qual são condicionadas, bem como erigidas as inúmeras possibilidades de

    reprodução das relações sociais de produção.

    A reprodução das relações sociais de produção no âmbito do sistema de

    produção capitalista, para Lefebvre (1999) não pode ser mais associado unicamente

    aos meios de produção, as empresas, ainda que se considere o lucro imediato ou o

    crescimento da produção, há além deste valor quantitativo, uma mudança qualitativa

    nas relações reveladas num cotidiano reduzido ao consumo programado mascarado

    pelas aparências e ideologias.

    A reprodução da agricultura familiar na RMB e especialmente em Marituba ao

    mesmo tempo em que revela um cotidiano reduzido ao consumo programado,

    expressa também relações cotidianas que estão além das rotinas. Na acepção de

    Martins (2008) está associada a um modo de viver, o qual não se reduz aos

    aspectos repetitivos e rotineiros ausentes de história.

    Nesta perspectiva de demonstrar outras dimensões da reprodução das

    relações sociais, que não necessariamente via indústria, enfatiza-se o trabalho de

    Bourdieu e Passeron (1992) intitulado “A Reprodução”, no qual os autores se voltam

    para o funcionamento do sistema educacional francês e identificam que a escola, no

    geral, não cumpre com seu papel de transformação social, acentuando as

    desigualdades de classe.

    Esta relação desigual deve-se ao fato da escola negligenciar as diferenças

    socioculturais entre as classes abastada e desprovida, privilegiando em sua teoria e

    prática pedagógica os valores culturais que dizem respeito à classe dominante.

    Neste sentido para Bourdieu e Passeron (1992) esta ação pedagógica se configura

    enquanto uma violência simbólica, na medida em que esta é imposta

    arbitrariamente, tendendo a uma reprodução cultural e social.

    As transformações empreendidas pelo capitalismo e que permeiam as

    relações sociais em todas as suas dimensões, não são isentas de conflitos e

    contradições apesar dos poderes e tendências coercitivas. Se o espaço por um lado,

    torna-se lugar por excelência da reprodução das relações de produção, por outro

    lado, este tende a reproduzir-se conforme as práticas sociais fruto das contestações

  • 30

    e insatisfações próprias dos grupos sociais descontentes com a tendência

    homogeneizante diante das diferenças, como expõe Lefebvre (1999).

    Se o espaço se torna lugar da reprodução (das relações de produção), torna-se também lugar de uma vasta contestação não localizável, difusa, que cria o centro às vezes num sítio e logo noutro. Essa contestação não pode desaparecer, pois o rumor e a sombra prenhe de desejo e de expectativa que acompanham a ocupação do mundo pelo crescimento econômico, pelo mercado e pelo Estado (capitalista e socialista). (LEFEBVRE, 1999, p. 248)

    Esta contradição inerente ao processo de reprodução das relações sociais

    revela o imprevisível, o incalculável, visto que a reprodução dos grupos sociais, não

    se configura enquanto uma repetição, caracterizada por uma determinação

    mecânica. Para Bourdieu (2004, p. 81) este caráter dinâmico implícito à reprodução

    tem relação direta com outro elemento chave na sua pesquisa, as estratégias, as

    quais constituem, conforme o autor “[...] produtos do senso prático como sentido do

    jogo, de um jogo social particular”.

    As estratégias na análise de Bourdieu (2004) não devem ser entendidas e

    consideradas de forma isolada, nem na valorização de uma em detrimento de outra,

    como no seu estudo sobre casamento no Béarn, onde as estratégias matrimoniais

    não podiam ser dissociadas do conjunto das estratégias (de fecundidade,

    educativas, econômicas, entre outras), visto que é,

    Através das quais que a família visa se reproduzir biologicamente e, sobretudo socialmente, isto é, reproduzir as propriedades que lhe permitem conservar sua posição, sua situação no universo social considerado. (BOURDIEU, 2004, p. 87)

    Transferido a concepção de Bourdieu (2004) acerca das estratégias para a

    análise da agricultura familiar nos bairros enfatizados, pode-se dizer que as

    estratégias praticadas pelos agricultores não devem ser analisadas de forma

    isolada, uma vez que as estratégias de organização política, técnicas, produtivas,

    territoriais, de comercialização, entre outras, convergem para um único objetivo, a

    reprodução destes agricultores.

    Bourdieu (2004) ao longo de sua dedicação à pesquisa das sociedades

    contemporâneas e das relações sociais que mantêm os diferentes grupos sociais, e

    convergindo metodologicamente com Marx e Engels (2009, p. 41) no que se refere à

  • 31

    valorização de condições vitais como a satisfação das necessidades, a produção da

    própria vida material, observou problemas fundamentais, muitas vezes

    desconsiderados, como por exemplo, a compreensão da,

    [...] lógica específica das estratégias que os grupos, e particularmente as famílias, empregam para se produzir e reproduzir, isto é, para criar e perpetuar sua unidade, logo, sua existência enquanto grupos, que é quase sempre, e em todas as sociedades, a condição da perpetuação de sua posição no espaço social. (BOURDIEU, 2004, p. 94)

    A necessidade de entender os mecanismos, as estratégias que perpassam e

    dão sentido a todo o processo de reprodução dos grupos sociais desde a produção

    das necessidades elementares à reprodução das condições de existência, como

    enfocou Marx e Engels (2009), assim como Bourdieu (2004), consiste no principal

    propósito deste estudo, ou seja, a reprodução dos agricultores na RMB que estando

    em espaços urbanos ou próximos a estes conseguem resistir a esta tendência

    homogeneizante da qual versou Lefebvre (1999) e reproduzir-se a partir de

    condições materiais diferenciadas do entorno.

    A reprodução da vida social envolve tanto a mudança de algumas estruturas

    quanto a permanência de outras. É um processo dinâmico, não implica na

    perpetuação imutável de uma realidade: dá-se em meio a transformações e

    adaptações, viabilizadas pelas estratégias engendradas pelos indivíduos. Estas

    transformações, considerando os agricultores enfatizados na pesquisa e sua

    localização em recortes entendidos como urbanos, tem como processo balizador a

    relação rural-urbana, processo que será analisado no tópico seguinte.

    1.3 A RELAÇÃO RURAL-URBANA NA ANÁLISE DA AGRICULTURA FAMILIAR

    EM ESPAÇO METROPOLITANO

    Apesar da predominância de relações socioespaciais urbanas, bem como

    comerciais e de serviços, revela-se no espaço metropolitano das cidades outras

    formas de apropriação, imprimindo neste, características diferenciadas de vivência e

    sobrevivência que podem significar a possibilidade do rural nas regiões

    metropolitanas, visualizadas na relação intrínseca entre os objetos e as ações.

  • 32

    Estes objetos e ações interdependentes e articulados dialeticamente,

    conforme Santos (2006) designam um espaço geográfico provisório, o qual antes de

    indicar o sentido de localização, expressa processos sociais que guardam

    organizações socioespaciais próprias que interagem numa dada região

    metropolitana.

    Os objetos sociais são entendidos, neste estudo, como sendo a materialidade

    das práticas sociais, ou seja, produto das ações dos sujeitos, resultando na

    espacialização dos mesmos. Este par objeto-ação é lido no espaço e compreendido

    a partir da interação destes entre si e com o espaço como um todo.

    Os objetos na leitura de Santos (2006) são tudo o que existe na terra, herança

    da história natural e resultante da objetivação das ações humanas. Os objetos nesta

    visão designam o extenso, a objetividade, o que o homem constrói e se torna

    instrumento material de sua vida.

    A análise geográfica que se empreende do espaço metropolitano, no que

    circunscreve o município de Marituba, deve está alicerçada na inseparabilidade

    entre as ações e os objetos, uma vez que “[...] o enfoque do espaço geográfico,

    como resultado da conjugação entre sistemas de objetos e sistemas de ações,

    permite transitar do passado ao futuro, mediante a consideração do presente.”

    (SANTOS, 2006, p. 100).

    O espaço, neste sentido, exprime a produção histórico-social da sociedade,

    consequentemente a visualização das marcas desta sociedade só pode ser possível

    no mesmo e a partir dele, em consonância com Carlos (2001);

    Os diversos elementos que compõem a existência comum dos homens inscrevem-se em um espaço; deixam aí suas marcas. Lugar onde se manifesta a vida, o espaço é condição, meio e produto da realização da sociedade humana em toda a sua multiplicidade. (CARLOS, 2001, p. 11)

    Este espaço aludido por Carlos (2001), num contexto metropolitano, guarda

    um mosaico de relações múltiplas e diferenciadas, que por sua vez, fazem com que

    estes espaços, enquanto materialidades do viver expressem as intermináveis

    possibilidades do ser humano.

    A compreensão destes espaços individualizados, inseridos numa lógica

    metropolitana, dá-se com base na interpretação do conteúdo dos objetos que por si

    só não se explicam, se não associados ao conjunto das ações. Nos termos de

  • 33

    Santos (2006, p. 66) “[...] a forma nos dá um ponto de partida, mas está longe de

    nos dá um ponto de chegada, sendo insuficiente para oferecer, sozinha, uma

    explicação”.

    Associando-se esta abordagem à leitura de Lefebvre (2001), faz-se pertinente

    a diferenciação concernente à cidade, bem como ao urbano, na qual a cidade

    constitui a realidade “presente”, “imediata”, “arquitetônica”, ao passo que o urbano

    designa um modo de viver que,

    [...] comporta sistemas de objetos e sistema de valores. Os mais conhecidos dentre os elementos do sistema urbano de objetos são á água, a eletricidade, o gás (butano nos campos) que não deixam de se fazer acompanhar pelo carro, pela televisão, pelos utensílios de plástico, pelo mobiliário “moderno”, o que comporta novas exigências no que diz respeito aos “serviços”. Entre os elementos do sistema de valores, indicamos os lazeres ao modo urbano (danças, canções), os costumes, a rápida adoção das modas que vêm da cidade. E também as preocupações com a segurança, as exigências de uma previsão referente ao futuro, em suma, uma racionalidade divulgada pela cidade. (LEFEBVRE, 2001, p. 19)

    É inconcebível o entendimento de uma determinada realidade, pautando-se

    somente em seus objetos, faz-se necessário, conforme Santos (2006), o diálogo

    entre o sistema de objetos e o sistema de ações e/ou valores na acepção de

    Lefebvre (2001), além da consideração da intencionalidade do sujeito, o que por sua

    vez, anima e recria estes objetos.

    A intencionalidade das ações, das práticas sociais é guardada pelos objetos,

    os quais são valorizados e/ou renovados para aquisição de novo valor. Visto que os

    sistemas de objetos e ações, não são estáveis, estes se alteram, através de novas

    formas, bem como de novas intencionalidades, ao longo do processo histórico.

    Este dinamismo inerente ao espaço é frisado também por Carlos (2001), ao

    analisar o espaço da metrópole sob a ótica da acumulação do capital, assim como a

    partir da reprodução da vida. Enfatizando, no primeiro a padronização dos espaços a

    partir do capital, por outro lado, evidenciando, no segundo, as relações cotidianas

    vivenciadas e reproduzidas pelos sujeitos.

    Relações cotidianas estas, que estão além das rotinas e banalidades de todos

    os dias, este cotidiano, ou melhor, a vida cotidiana, na acepção de Martins (2008),

    está associada a um modo de viver, o qual não se reduz aos aspectos repetitivos e

    rotineiros ausentes de história.

  • 34

    Nesta perspectiva, Martins (2008) pautando-se numa leitura lefebvriana do

    cotidiano, expõe que este só tem coerência perante a relevância das contradições

    do processo histórico, uma vez que não há cotidiano sem história, partindo do

    pressuposto de que o:

    [...] cotidiano não é residual, [...] mas sim a mediação que edifica as grandes construções históricas, que levam adiante a humanização do homem. A história é vivida e, em primeira instancia decifrada no cotidiano (MARTINS, 2008, p. 125)

    É necessário entender o cotidiano aludido neste estudo, associando-o a um

    espaço-tempo qualitativo das relações, dos usos dos sujeitos em intensa relação de

    interação e diferenciação com um cotidiano regido por um tempo da acumulação,

    condicionado pela mediação do valor de troca das mercadorias, conforme a análise

    de Martins (2008).

    É no fragmento de tempo do processo repetitivo produzido pelo desenvolvimento capitalista, o tempo da rotina, da repetição e do cotidiano, que essas contradições fazem saltar fora o momento da criação e de anúncio da história [...]. Esse anúncio revela ao homem comum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de transformação do impossível em possível. (MARTINS, 2008 p. 57)

    Partindo, sobretudo, da acepção de Santos (2006) acerca dos sistemas de

    objetos e ações, associada à contribuição conceitual de Lefebvre (2001) referente ao

    par cidade-urbano, além da pertinência do cotidiano na leitura de Martins (2008),

    pode-se reconhecer no espaço, especialmente o metropolitano, uma multiplicidade

    de ações/práticas sociais que o torna diferenciado apesar da tendência

    homogeneizante, conforme expõe Carlos (2001).

    A construção da cidade, hoje, revela a dupla tendência entre a imposição de um “espaço que se quer moderno”, logo homogêneo e monumental, definido, ou melhor, “desenhado” como espaço que abriga construções em altura associadas a uma rede de comunicação densa e rápida, e de outro “as condições de possibilidade”, que se referem à realização da vida (que se acham à espreita, de modo contestatório) revelando uma luta intensa em torno dos modos de apropriação do espaço e do tempo da metrópole – um processo que ocorre de modo profundamente desigual, revelando-se em seus fragmentos. (CARLOS, 2001, p. 36)

  • 35

    Em consonância com a reflexão de Carlos (2001) sobre os fragmentos na

    cidade, observam-se no município de Marituba, “fragmentos” que destoam de uma

    forma espacial padronizada apresentada pela cidade capitalista, a qual, através de

    seus elementos, predomina no espaço urbano da região metropolitana de Belém.

    Haja vista a existência no espaço de Marituba formas outras de produção espacial,

    alicerçada em objetos e ações que possivelmente caracterizam e revelam práticas

    socioespaciais diversas.

    É especificamente nestes “fragmentos” contidos na metrópole que segundo

    Carlos (2001), a vida cotidiana, enquanto produto e condição da reprodução humana

    se revela no:

    [...] cenário da superação das necessidades, lugar onde nasce o novo, onde se dá sua busca de como romper o igual, porque o vivido ocorre no plano do imediato, que corresponde ao nível de realização da sociedade e dos modos como é produzida a existência dos homens em sua plenitude. (CARLOS, 2001, p. 303)

    Partindo da constatação de práticas socioespaciais diferenciadas, resultante

    de um sistema de objetos e ações particulares presentes na vida cotidiana, que se

    buscou, por meio da pesquisa empírica o conhecimento da trajetória de vida destes

    agricultores, com o propósito de verificar se estes objetos ou elementos, decorrentes

    das práticas sociais destas famílias, designam as marcas no urbano de um espaço

    rural de onde estes moradores, certamente, provieram.

    Visto que para Wanderley (2000), pautando-se numa análise dialética dos

    espaços e relações, as populações entendidas enquanto rurais, assim como

    urbanas interagem cotidianamente nas distintas e múltiplas dimensões da vida

    social, sendo o espaço:

    [...] por excelência, o lugar da convergência entre o rural e o urbano, no qual as particularidades de cada um não são anuladas, ao contrário, são a fonte de integração e da cooperação, tanto quanto da afirmação dos interesses específicos dos diversos atores sociais [...]. (WANDERLEY, 2000, p. 120)

    Observa-se um processo intenso no campo brasileiro, sobretudo no que diz

    respeito ao processo de mecanização do espaço rural. Contudo, assim como há um

    entendimento do rural para além das atividades agrícolas, deve haver uma

    compreensão do urbano para além das atividades industriais, comerciais e de

    serviços, uma vez que se percebe a reprodução de atividades ligadas a agricultura,

  • 36

    sendo desenvolvidas no espaço urbano, precisamente em quintais, terrenos baldios,

    entre outros espaços revelando, ao menos aparentemente, uma relação rural-urbana

    presente nas cidades.

    Estas observações já foram registradas por muitos pesquisadores, dentre

    estes tem destaque os trabalhos de Bicalho (1992), os quais estiveram voltados ao

    estudo das atividades agrícolas em áreas urbanas no contexto das regiões

    metropolitanas. Bicalho (1992) advoga que estas produções agrícolas por estarem

    sendo desenvolvidas nas áreas urbanas ou próximas a estas, em espaços

    reduzidos, indefinidos enquanto rurais ou urbanos, possam ser definidas enquanto

    agricultura urbana ou até mesmo metropolitana.

    Estas produções agrícolas encontradas na cidade, se por um lado não

    transformam os espaços em rural, por outro, expressam a possibilidade de uma

    imbricação ainda mais efetiva entre o par rural e urbano conforme Guerra (2006).

    Todavia, sem a pretensão de discutir se esta agricultura é urbana ou rural, mas,

    considerando o interesse de agricultores pela delimitação da zona rural no

    município, negligenciada pelo plano diretor de Marituba, cabe a este estudo a

    análise deste processo e sua reprodução, mediante a intrínseca ligação que este

    processo de reprodução da agricultura familiar tem com a relação rural-urbana.

    A análise acerca da compreensão do par rural-urbano, diante das

    transformações no espaço geográfico, no que tange, a inserção de inovações

    tecnológicas no campo, bem como a expansão do processo de urbanização, resulta

    no descortinamento de distintas abordagens sobre a relação rural-urbana,

    perspectivas presentes nos estudos de Marques (2002), Endlich (2006), Graziano da

    Silva (1999), Alentejano (2000), entre outros, enfatizados neste estudo.

    Em meio a estas vertentes, sobressai-se à visão dicotômica, a qual fragmenta

    o espaço, evidenciando o urbano em detrimento do rural, Marques (2002) insere os

    estudos de Sorokim e Zimmerman (1986) nesta perspectiva, por expressarem de

    forma fragmentada a relação rural-urbana.

    (1) diferenças ocupacionais ou principais atividades em que se concentra a população economicamente ativa; (2) diferenças ambientais, estando à área rural mais dependente da natureza; (3) diferenças no tamanho das populações; (4) diferenças na densidade populacional; (5) diferenças na homogeneidade e na heterogeneidade das populações; (6) diferenças na diferenciação, estratificação e complexidade social; (7) diferenças na mobilidade social e (8) diferenças na direção da migração. (SOROKIN E ZIMMERMANN, 1986 apud MARQUES, 2002, p. 97)

  • 37

    Nas diferenças evidenciadas por Sorokin e Zimmermann (1986) apud

    Marques (2002), nota-se o rural, de modo geral, sendo definido a partir do urbano,

    numa relação de dependência, portanto, com base em suas deficiências, postura

    esta que negligencia as particularidades inerentes a este espaço denominado de

    rural.

    Endlich (2006) em seu trabalho acerca das perspectivas sobre o rural e

    urbano, sistematizou determinados critérios adotados na designação de rural e

    urbano, que aparecem como insuficientes para caracterizarem estes conteúdos

    socioespaciais. Dentre os critérios de diferenciação, tem-se a delimitação pelos

    limites político-administrativos definidos oficialmente, ou seja, sedes e distritos são

    considerados urbanos.

    Outro critério exposto pela referida autora é a definição de rural e urbano a

    partir do fator demográfico, estabelecendo o espaço com maior número de

    habitantes como urbano, e a carência enquanto rural, a natureza das atividades

    econômicas também se configura num elemento de classificação. Considerando

    estas perspectivas sobre rural e urbano, observa-se uma tendência de definição do

    rural a partir do urbano, isto é, de suas deficiências. Para Endlich (2006),

    Estabelecer o rural e o urbano a partir dos critérios mencionados, de forma descontextualizada, sem analisar a historicidade presente nos fatos e processos, parece estático demais. Ainda que se justifique pela finalidade pragmática, torna-se inadequado para compreender a dinâmica da sociedade. (ENDLICH, 2006, p. 19)

    Esta visão dualista da realidade também foi questionada por Alentejano

    (2000, p. 103), o qual frisa que nesta há implicitamente a construção de um

    estereótipo do rural como “agrícola”, “atrasado”, “natural”, ao passo que o urbano é

    empreendido, no cerne desta abordagem, como sinônimo de “moderno”, de

    “progresso” de sede industrial e tecnológica.

    Não muito distinta da vertente dicotômica, emerge outra perspectiva

    denominada de continuum, a qual apreende o rural meramente como uma extensão

    do espaço urbano. Esta interpretação do espaço rural pressupõe uma

    homogeneização entre os espaços, sobretudo no contexto das transformações no

    campo. Dentre os expoentes desta perspectiva do rural, enquanto um contínuo do

    urbano está Graziano da Silva (1999), para o qual:

  • 38

    A diferença entre o rural e o urbano é cada vez menos importante. Pode-se dizer que o rural hoje só pode ser entendido como um “continuum” do urbano do ponto de vista espacial; do ponto de vista da organização da atividade econômica, as cidades não podem mais ser identificadas apenas com a atividade industrial, nem os campos com a agricultura e a pecuária; e, do ponto de vista social, a organização do trabalho na cidade se parece cada vez mais com a do campo e vice-versa. (GRAZIANO DA SILVA, 1999, p.1)

    Para Marques (2002), em síntese as vertentes dicotômica e de continuum,

    diferem no que diz respeito aos seus princípios, contudo convergem em sua

    essência, entendendo este rural produzido e reproduzido com base no urbano,

    desconsiderando a interpretação deste espaço diferenciado independentemente do

    urbano, ou seja, a partir de suas características intrínsecas.

    É com base na análise de outros trabalhos que a concepção da categoria

    rural, enquanto uma categoria dispensável ao entendimento das distintas e diversas

    relações e espacializações que se tecem e se constroem no campo brasileiro, não

    representa a única alternativa de compreensão destas realidades diferenciadas.

    Em contraponto a estas concepções do rural, enquanto antítese ou continuum

    do urbano é enfatizado por Alentejano (2000) um processo mais amplo, no qual, em

    meio à complexidade, outras formas de organização surgem redesenhando espaços

    caracterizados como rurais e urbanos.

    Não se trata da eliminação pura e simples do rural e sua transmutação em urbano, mas de um fenômeno mais complexo, onde um novo urbano e um novo rural surgem do choque entre ambos. Na realidade, a diversidade de formas de organização social que proliferam, tanto no campo como na cidade, poderia nos levar a sucumbir à tentação de dizer que não existe um urbano e um rural, mas vários urbanos e rurais (ALENTEJANO, 2000, p. 103)

    Diversidades estas expostas por Alentejano (2000) que envolve tanto objetos,

    quanto práticas socioespaciais que em conjunto, refletem um modo de viver

    diferenciado que, por sua vez, produz e reproduz espaços entendidos enquanto

    rurais, os quais não estão ligados diretamente às transformações promovidas pelo

    capital.

    Nesta perspectiva, frisa-se por fim, uma terceira vertente em vias de

    estruturação, que advoga uma análise dialética da relação rural-urbana,

    reconhecendo as transformações pelas quais o espaço rural passa, no entanto

  • 39

    acreditando na pertinência do mesmo enquanto categoria de explicação da

    realidade, embora tenha sofrido alterações em seu significado, conforme Alentejano

    (2000).

    [...] ainda há lugar para o rural como elemento de descrição e explicação da realidade, mas seu significado atual mudou. Consideramos fundamental demonstrar que, apesar das inegáveis transformações sociais, econômicas, culturais e espaciais resultantes do desenvolvimento do fenômeno urbano, o rural não deixou e nem deixará de existir, apenas teve e está tendo seu significado alterado. (ALENTEJANO, 2000, p. 103)

    Esta abordagem possibilita um entendimento do rural a partir de suas próprias

    características reveladas num modo particular de vivência, diferentemente das

    demais abordagens, que concebem o rural secundariamente, a partir da definição do

    urbano. É preciso compreender o par dialético rural-urbano, partindo da conexão e

    imbricação existente entre ambos, sabendo que ao mesmo tempo em que

    interagem, guardam certas particularidades inerentes a cada um, perceptíveis no

    espaço. De acordo com Wanderley (2000, p. 90), “[...] destas relações, resultam

    práticas e representações particulares a respeito do espaço, do tempo, do trabalho,

    da família etc.”.

    O espaço rural, na acepção acima, é entendido na/pela sua inter-relação

    dialética com o urbano, cujos espaços, enquanto sistema de objetos e ações

    encontram-se imbricados num processo de complementaridade, bem como de

    diferenciação expressos na vida cotidiana dos sujeitos históricos, os quais, por sua

    vez, produzem e reproduzem seus espaços de acordo com seus anseios e

    necessidades materiais e subjetivas.

    Esta vivência peculiar aludida por Alentejano (2000) estaria relacionada às

    práticas socioespaciais que são empreendidas pelos trabalhadores em seus

    espaços de morada e produção, os quais exprimem a produção histórico-social

    destes sujeitos, visualizada por meio dos objetos e ações produzidos em seus

    espaços de produção e de co