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Paulo Cavalcante Eu Quero e Ouro e Os Falsificadores-libre

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ARTIGO SOBRE FALSIFICAÇÃO DE OURO NO SÉCULO XVIII

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PAULO CAVALCANTE

Eu quero éouro!HaviaSRQPONMLKJIHGFEDCBAm i l e uma maneiras -dedesviar as riquezas descobertas naColônia.D e religiosos a governadores,todo mundo dava um jeitod e

enriquecer sem pagar imposto

X T R A IR O U R O E D IA M A N T E S C U M P R IN D O A S R E G R A S

e p a g a n d o o s im p o s to s e s t ip u la d o s p e lo E s ta d o o u

fa z ê - I a d e m o d o i l íc i to , p ra t ic a n d o o d e s c a m in h o .

E s ta s e ra m a s d u a s fa c e s d o m e sm o m o v im e n to , c u -

jo n o m e é e x p lo ra ç ã o . N a s M in a s G e ra is d o f in a l d o

s é c u lo X V I I e d a s p r im e i r a s d é c a d a s d o X V I I I ,to d o s

q u e r ia m o u ro . A q u a lq u e r p re ç o .

O s p ró p r io s re p re s e n ta n te s d o E s ta d o p o r tu g u ê s -

g o v e rn a d o re s , o u v id o re s , p ro v e d o re s e tc . - , c u ja

m is s ã o e ra d is c ip l in a r a e x t r a ç ã o e a s s e g u ra r a o r -

d e m so c ia l , c o n t r ib u ía m p a ra d e s v ia r a s r iq u e z a s d a

F a z e n d a R e a l ( a R e c e i ta F e d e ra l d a é p o c a ) .

O rd e n a r a e x t r a ç ã o s ig n i f i c a v a e s ta b e le c e r a d e -

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~ n « i f ! .

s o r d e m d a e x p l o r a ç ã o . O f u n c i o n á r i o e m p e n h a -

d o e m d a r c a b o d e " e x e c r a n d o s d e l i t o s " ( d e s c a -

m i n h o s e c o n t r a b a n d o ) p r e c i s a v a c o n v i v e r c o m

e l e s p a r a m e l h o r e x t i n g u i - l o s . O f u n c i o n á r i o q u e

c u n h a v a a s m o e d a s d e n t r o d a C a s a d a M o e d a f a l -

s i f i c a v a - a s p o r f o r a . O h o m e m d e n e g ó c i o s q u e

a r r e m a t a v a o s c o n t r a t o s e f a z i a o s p a g a m e n t o s

p r o m e t i d o s à F a z e n d a R e a l s o n e g a v a o g ê n e r o -

s a l , p o r e x e m p l o - o u d a v a l i v r e t r â n s i t o a o o u r o

e m p ó , n o c a s o d o c o n t r a t o d a s p a s s a g e n s ( u m a

e s p é c i e d e p e d á g i o d a é p o c a ) .

O s d e s c a m i n h o s e r a m n u m e r o s o s e v a r i a d o s .

Q u a n t o m a i s o E s t a d o p o r t u g u ê s a p e r t a v a o c e r c o

p a r a a s s e g u r a r a s u a a r r e c a d a ç ã o , a í m e s m o é q u e

o s d e s v i o s d o o u r o p r o s p e r a v a m , c o m e x t r e m a c r i a -

t i v i d a d e . O s e n s o c o m u m t o r n o u n o t ó r i a a i m a g e m

d o s a n t o d e p a u o c o c o m o s í m b o l o m a i o r d o s d e s -

c a m i n h o s . I m a g e n s o c a s d e s a n t o s s u p o s t a m e n t e

r e c h e a d a s d e o u r o e d i a m a n t e s n o s s e r v e m m a i s

c o m o e x p l i c i t a ç ã o d a c o n t r a d i ç ã o e n t r e d o i s t r a ç o s

c o r r e n t e s n a s o c i e d a d e c o l o n i a l - o f e r v o r r e l i g i o s o

e a c o b i ç a m a t e r i a l - d o q u e c o m o c o m p r o v a ç ã o d e

p r á t i c a s r e l e v a n t e s d e e v a s ã o .

C o m o a s o c i e d a d e c o l o n i a l e r a e s c r a v i s t a , o s t r a -

b a l h a d o r e s n e g r o s e n c a r r e g a d o s d a m i n e r a ç ã o

e r a m v i s t o s c o m o o s p r i n c i p a i s " p a s s a d o r e s " ( d e s -

c a m i n h a d o r e s ) d e o u r o e d i a m a n t e s . O u r o e m p ó

s a l p i c a d o n o c a b e l o d e m u l h e r e s n e g r a s , p e p i t a s e

d i a m a n t e s d e s v i a d o s n o p e q u e n o c o m é r c i o d o s p o -

v o a d o s e d a s l a v r a s - e s p e c i a l m e n t e p e l a s c h a m a -

d a s " n e g r a s d e t a b u l e i r o " , q u e v e n d i a m c o m i d a s e

b e b i d a s - t a m b é m f o r a m m o d o s d e d e s c a m i n h a r a

r i q u e z a e x t r a í d a d a t e r r a . E s t e ú l t i m o e r a t ã o f o r t e

e d i s p e r s o q u e f o i o b j e t o d e u m a p r o i b i ç ã o p u b l i c a -

d a e m 3 1 d e j u l h o d e 1 7 3 3 , n o A r r a i a l d o T i j u c o , p e -

l o o u v i d o r g e r a l J o s é C a r v a l h o M á r t i r e s :

N a p á g i n a a o l a d o ,

o f i c i a l d a C a v a l a r i a d e

M i n a s G e r a i s d a

s e g u n d a m e t a d e d o

s é c u l o X V I I I : s o l d a d o s

c o n t r a b a n d e a v a m

o u r o e m p ó e s c o n d i -

d o n o s b o t õ e s d e

s u a s f a r d a s .

A mineração mobilizava menos de 5% da população

de Minas GeraisDCBA

M a n d o q u e n e n h u m a p e s s o a d e q u a l q u e r q u a l i d a d e

o u c o n d i ç ã o q u e s e j a m a n d e e s c r a v a s o u e s c r a v o s v e n d e r

d o C o r g o d a s L a g e se m d i a n t e , g ê n e r o a l g u m d e c o m e s t í -

v e i s , o u b e b i d a s ; p e n a d e q u e t o d a a e s c r a v a o u e s c r a v o

q u e f o r a c h a d o d o l u g a r r e f e r i d o e m d i a n t e , v e n d e n d oo s

r e f e r i d o s g ê n e r o s , s e r p r e s a , e p a g a r e m s e u s s e n h o r e s c e m

m i l r é i s d e c o n d e n a ç ã o (. . . ) a l é m d e s t a p e n a s e r ã oo s d i t o s

e s c r a v o s a ç o i t a d o s n o l u g a r m a i s p ú b l i c o d e s t e A r r a i a l .

O u t r a f o r m a m u i t o e f i c a z d e d e s v i o f o i a f a b r i -

c a ç ã o d e c o l a r e s p a r a e v i t a r o p a g a m e n t o d o q u i n -

t o . R e c h e a d a s d e c o l a r e s o u c o r d õ e s , a s p e s s o a s

c i r c u l a v a m e p r o p i c i a v a m a f u g a d o o u r o p a r a P o r -

" N a S e r r a d a E s t r e l a " ,

a q u a r e l a d e T h o m a s

E n d e r q u e m o s t r a u m

t r e c h o d o p e r c u r s o

p a r a a s m i n a s : a p e s a r

d a v i g i l â n c i a d o s

a g e n t e s m e t r o p o l i t a -

n o s e d a e x i s t ê n c i a

d e r e g i s t r o s , c a m i n h o s

c l a n d e s t i n o s p e r m i t i -

r a m o d e s c a m i n h o

d o o u r o .

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I

I '"ossrejihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA" '_ il!E~_.2JO Q8

tugal em seu próprio corpo . O recurso fo i c lassif i-

cado por funcionários da Coroa com o "m ui cav ilo -

50" (ard iloso). Estava claro que "os ta is cordões não

servem para uso e ornato das pessoas, senão para

por este m eio usurparem os d itos qu in tos", con-

c lu iu o re i D . Pedro li em 1698.

A m aneira m ais espetacu lar de desv iar ouro era

a fa lsif icação de m oedas. Encontravam -se m oedas

fa lsif icadas de d iversos tipos: vazada, cerceada (eu-

jas bordas eram raspadas para se ficar com o ouro),

com peso reduzido ou fund ida com metais conside-

rados baixos (com o cobre, n íquel e estanho).

Em 1708, o ju iz da Casa da M oeda do R io de Ja-

neiro in fo rm ou ao Conselho U ltram arino que re-

cebera qu inze m oedas de ouro de 4 m il ré is pro-

ven ien tes de São Pau lo para serem exam inadas

por parecerem falsas. Feito o exam e, constatou-se

a fraude. Suspeitava-se que as ta is m oedas hav iam

sido cunhadas na fábrica de um estrangeiro . O as-

sun to era sum amente grave, não só porque as

m oedas pod iam enganar m uita gente, m as tam -

bém porque a presença de estrangeiros na costa

ao su l do R io de Janeiro com eçava a se in tensifi-

car, e a possível insta lação de um a fund ição fa lsa

seria um indesejável sinal de enra izam ento des-

ses fo raste iros.

M as a fábrica de m oedas fa lsas de que realm en-

te se tem notíc ia não fo i obra de um estrangeiro .

Resu ltou da ação de um "bom português", Inác io

de Souza Ferre ira, e de um a grande rede de rela-

ções operando sob a pro teção insuspeita do pró-

prio governador das M inas Gerais, D . Lourenço de

A lm eida (1721-1732), e configurando um a "socieda-

de de contraband istas" com conexões in ternacio -

nais. D . Lourenço, a propósito , retom ou riqu íssim o

a Portugal, com bagagem reluzente, no fim do seu

governo . Estes sim , e não os escravos, fo ram os

grandes descam inhadores. N este caso , a m oeda era

fa lsa, m as não era ru im . O u m elhor, só era fa lsa

porque não hav ia sido cunhada na fábrica o fic ia l.

A o que tudo ind ica, a m oeda da fábrica de Inácio

era de qualidade, e certam ente teve grande aceita-

ção e circu lação (saiba m ais na pág ina 34).

A inda assim , a preocupação_~om os estrangei-

ros era pertinen te. A fina l, a in tensa concorrência

com erc ia l en tre os Estados europeus to rnou-se

particu larm ente desafiadora para Portugal quan-

do fo ram descobertos ouro e d iam antes na sua co-

lôn ia am ericana. E ra para M inas que todos que-

riam ir. A fa lsif icação de m oedas tinha o ob jetivo

de retirar d iretam ente o ouro da co lôn ia, desv ian-

do-o do m undo português. E essa prática não se li-

m itava à América. Isso já hav ia ocorrido na Costa

da M ina, na Á frica, no in íc io do sécu lo XV III. O-c

6 problema é que tanta gente estrangeira, de dife-~~ ren tes procedências (franceses, ing leses, espa-u

i5 nhó is, ho landeses, etc .), iam e v inham à costa da~~ América, e eram tão vu ltosos os desv ios que se te--c

~ m ia não só o descam inho, m as a perda do centro -

2 le das próprias Minas para uma associação entre

~ -" - .' ~. "" ... "" ~~Os vários modos do verbo furtarMLKJIHGFEDCBA

T a n to q u e lá c h e g am , c om e ç am a fu r ta r

p e lo m o d o in d ic a t iv o ,p o r q u e a p r im e i r a in -

fo rm a ç ã o q u e p e d em a o s p r á t ic o sé q u e

Ih e s a p o n tem e m ostrem osc am in h o s p o r

o n d e p o d em a b a r c a r tu d o . F u r ta m p e lo

m o d o im p e r a t iv o , p o r q u e ,com o têm o m e-

ro e m is to im p é r io , to d o e le a p l ic a m d e sp o ~

t ic a m e n te à s e x e c u ç õ e s d a r a p in a . F u r ta m

p e lo m o d o m a n d a t iv o , p o r q u e a c e i ta m

q u a n to Ih e s m a n d am ,e, p a r a q u e m a n d em

to d o s , os q u e n ã o m a n d am n ã o sã o c e e i -

to s . F u r ta m p e lo m o d o o p ta t iv o , p o r q u ede-

se ja m q u a n to Ih e s p a r e c e b eme, g a b a n d o

as c o is a s d e se ja d a s aos d o n o s d e la s , p o r

c o r te s ia ,sem v o n ta d e , as io z em suas. h s -

ta m p e lo m o d o c o n ju n t iv o , p o r q u e a ju n ta m

o se u p o u c o c a b e d a lcom o d a q u e le s q u e

m a n e ja m m u i to ,e b a s ta só q u e a ju n tem a

su a g r a ç a , p a r a serem q u a n d o m e n o s

m e e i r o s n a g a n ô n c ia . F u r ta m p e lo m o d o

p o te n c ia l , p o r q u e ,sem p r e te x to n em c e t i -

m ô n ia , usam d e p o tê n c ia . F u r ta m p e lomo-

d o p e rm is s iv o , p o r q u e p e rm i tem q u e o u tr o s

fu r tem , e estes c om p r am o s p e rm is s õ e s .

F u r ta m p e lo m o d o in ~ n i t iv o , p o r q u e n ã o

têm o ~m o fu r ta r com o ~m d o g o v em o ,e

sem p r e lá d e ix a m ra íz e sem q u e se v ã o

c o n t in u a n d o os fu r to s . E s te s mesmos mo-

d o s c o n jU R am p o r to d a sas p e s so a s , por-

q u e a p r im e i r a p e s so a d o v e r b oé a su o , o s

se g u n d a s os seus c r ia d o s , e a s te r c e i r o s

q u a n ta s p a r a is s o têm in d ú s t r iae consoén-

c io . F u r ta m ju n ta m e n te p o r to d o sos tem -

p o s , p o r q u e o d o p r e se n te - q u eé o se u

tem p o - c o lh em q u a n to d á d e s io t r iê n io ;

e p a r a in d u í r em n o p r e se n teo p r e té r i to e

fu tu r o , d o p r e té r i to d e se n te r r a m c r im e s , d e

q u e v e n d em os p e r d õ e s ,e d ív id a s esqueo-

d o s , d e q u e se p a g am in te i r a m e n te ,e d o

fu tu r o em p e n h am as r e n d a s e a n te c ip a m

os c o n t r a to s , com q u e tu d o o c a íd o e n ã o

c a íd o Ih e s v êm a c a i r n a s m ã o s . F in a lm e n ~

te , n o s m e sm o s tem p o s , n ã o Ih e s e s c a p am

os im p e r fe i to s , p e r fê i to s ,plus quam p e r fe i~

to s , e q u a is q u e r o u t r o s , p o r q u e fU r ta m , fU r ~

ta r a m , fu r ta v am , fu r ta r ia m e h a v e r ia m d e

fu r ta r , se m a is h o u v e s se .Em sum a , q u e o

r e s um o d e to d a e s ta r a p a n te c o n ju g a ç ã o

v em a ser osu p in o d o m e sm o v e r b o :a fu r ~

tar p a r o fu r ta r . E q u a n d o e le s têm c o n ju g a ~

d o a s s im to d a o v o z a t iv a ,e o s m is e r á v e is

p r o v ín c ia s s u p o r ta d o to d a a p a s s iv a , e le s ,

com o se t iv e r a m fe i to g r a n d e sserv iços, to r -

n a m c a r r e g a d o s d e d e sp o jo se r ic o s ;e e la s

~ c am ro u b a d a s ,e c o n sum id o s .

("Sermão do Bom Ladrão", do padre

Antônio Vieira, 1655)

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co lo n o s e es tra n g e iro s , em p a r t ic u la r o s f ra n ce -

se s . E sse é o l im ite e x trem o d o co n v ív ío en tre o r -

d em e d eso rd em , en tre c om é rc io le g a l e d e scam i-

n h o s : q u an d o es te s am eaçam o n eg ó c io p o r tu g u ês

d a co lo n iz a ção .

A s i le g a l id ad es seg u iam um a ló g ic a m e rcan t i l .

O o u ro i l íc i to im ed ia tam en te en tra v a n o c irc u i to

c om e rc ia l g e ra l . P o r e x em p lo : o o u ro sa íd o d o s r i-

b e iro s d e s im p ed ia -se d o s co n tro le s lo c a is , v en c ia

a s se r ra s d a M an tiq u e ira e d o M a r , p e rp a ssa v a o s

reg is tro s n a s p assag en s d o s r io s P a ra ib u n a e P a ra í-

b a , e n tra v a n o R io d e Jan e iro , d e sv en c i lh a v a -se d e

n o v o s co n tro le s , a lc an ça v a o s n eg o c ia n te s e s tra n -

g e iro s , d e sem ba ra ça v a -se d a A lfâ n d eg a , em b a rc a v a

n o s n av ío s d a f ro ta , a p a r ta v a n as i lh a s d o A tlâ n t i -

c o o u em L isb o a , d e sem ba ra ça v a -se n o v am en te d a

A lfâ n d eg a , p ro sseg u ia p a ra L o n d re s o u A m s te rd ã ,

e d e lá rum av a n o s n av ío s an g lo -h o la n d eses reu n i-

d o s n o ch am ad o "c om bo io d e E sm irn a " (o u Izm ir )

em d ire ç ão ao M ed ite r râ n eo , p a ra o in te rc âm b io

n e s te e em ou tro s p o r to s d a p en ín su la d a A n a tó l ia

(T u rq u ia ) , a o s q u a is c h eg av am as ro ta s com e rc ia is

te r re s tre s d o L ev an te com sed as d a P é rs ia , e n tre

o u tro s a r t ig o s .

O m a io r b en e f ic io d o a to d e d r ib la r a le i e ra e v í-

ta r o p ag am en to d o q u in to - o s 2 0% dev íd o s ao re i

- , c u jo " re c ib o " e ra um cu n h o rea l, m a rc ad o n a b a r -

ra d e o u ro o f ic ia lm en te fu n d id a . P o r isso , um d o s

m a is en g en h o so s e b em -su ced id o s d escam in h o s e ra

fa ls i f ic a r o p ró p r io c u n h o . A p o sse d e um cu n h o fa l-

so g a ran t ia ao seu d o n o o p o d e r d e le g a l iz a r to d a e

q u a lq u e r b a r ra fu n d id a sem qu e o E s tad o seq u e r

sen t is se o ch e iro d a su a p a r te d e v id a . U m do s caso s

m a is in te re ssan te s d e fa ls i f ic a ção aco n te ceu em S ão

P au lo em 16 9 8 . O s au to re s d a f ra u d e fo ram o v ig á -

r io d e T au b a té , Jo sé R o d r ig u e s P re to , um m on g e b e -

n ed it in o ch am ad o R o b e r to e um ce r to D om in g o s

D ia s d e T o rre s . N ad a su rp reen d en te q u e h om en s d e

re l ig iã o d e ix a ssem de la d o su as p r io r id ad es e sp ir i -

tu a is p a ra d a r g o lp e s d o g ên e ro . A co b iç a n ão d isc r i -

m in a v a co n d iç ão so c ia l o u c red o . E e le s a in d a se b e -

n e f ic ia v am de um p r iv i lé g io le g a l: o s re l ig io so s n ão

p o d iam se r p u n id o s p e lo g o v e rn ad o r , p o is e s ta v am

fo ra d a su a ju r isd iç ão . M as , a ss im com o b u r la r a le i

e ra p rá t ic a d issem in ad a , c um p r ir o s r i to s ju r id ic o s

tam b ém não e ra tã o o b r ig a tó r io . R esu lta d o : o s en -

v o lv id o s fo ram p re so s p e lo g o v e rn ad o r A r tu r d e S á

e M en eses (1 6 9 7 -1 7 0 2 ) . L o g o em seg u id a , fu g iram .

M a is ta rd e , o re i D . P ed ro I l , " o P ac íf ic o " , re so lv eu

p e rd o a r a to d o s e d e ix a r p o r isso m esm o : "V o s o rd e -

n o q u e to ca ao tem p o p assad o se n ão fa le m a is n e s -

te d e l i to " , e sc re v e ao g o v e rn ad o r em 1 7 0 0 .

O s p o p u la re s san to s

d e p au o co são m a is

re p re sen ta t iv o s d a

co n tra d iç ão en tre fé

e co b iç a d o q u e d a

p ra t ic a d o co n tra b an -

d o d e o u ro e d ia -

T am an h a m ise r ic ó rd ia n ão fo i c a so iso la d o .

A f in a l , ig n o ra r n o rm as e d ec re to s e ra com po r ta -

m en to ro t in e iro a té en tre o s ag en te s d o E s tad o .

B om ex em p lo é a p ró p r ia c r ia ç ão d as ca sa s d e fu n -

d iç ão p a ra a r re cad a r o q u in to . E la s fo ram in s t i tu í-

d a s em M in as p o r um b an d o p u b l ic a d o em V ila R i-

c a n o d ia 1 8 d e ju lh o d e 1 7 1 9 , c o n fo rm e a le i d e

1 4 d e fe v e re iro d e 1 7 1 9 . E n tre ta n to , só fu n c io n a -

ram d e fa to a p a r t i r d e 10 d e fe v e re iro ~ e 1 7 2 5 . P o r

q u ê? P o r c au sa d a re s is tê n c ia d o s p o ten ta d o s lo -

c a is . N in g u ém qu e r ia v e r a su a p a r te ' d o b u t im d i-

rn an te s .

Guardas da fiscalização transportavam ouro em

pó escondido nos botõesd e seus uniformes

m in u íd a . M as n ão h o u v e je i to , e ju n tam en te com

as fu n d iç õ e s v e io a o rd em de p ro ib ir a c irc u la ç ão

'd e o u ro em pó (p o r su a n a tu re za , m u ito fá c i l d e

co n tra b an d ea r ) . N em po r isso o o u ro d e ix o u d e es -

c o r re r p o r en tre o s d ed o s d o E s tad o : seu s g u a rd a s ,

n o s reg is tro s , tra n sp o r ta v am ile g a lm en te aq u e la

p u lv e r iz a d a r iq u e za ... e sco n d id a d en tro d o s b o -

tõ e s d o s u n ifo rm es !

Page 6: Paulo Cavalcante Eu Quero e Ouro e Os Falsificadores-libre

Saiba MaisZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

F U R T A D O , ju n ia F e r re ira .

O livro da capa verde:lkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAo

R e g im e n to D ia m a n t in o d e

1 7 7 1 e a v id a d o D is tr ito

D ia m a n t in o n o p e r ío d o

d a R e a l E x tra ç ã o . S ã o

P a u lo :A n n a b lu m e , 2008.

M E L L O E S O U Z A , L a u ra

d e . Desclassificados doO u -

ro: a pobreza mineira no

s é c u lo X V II I . 4 ' ed. rev .

a m p l. R io d e ja n e ir o :

G r a a l, 2004.

V I E I R A , A n t ô n io .Escritos his-

tóricos e políticos.S ã o P a u lo :

M a r t in s F o n t e s , 1 9 9 5 .

ossiê

A ousad ia dos descam inhos do ouro não conhe-

c ia lim ites. O lance m ais espetacu lar ocorreu na

presença do próprio re i D . João V . A sua qu in ta par-

te arrecadada dos m ineradores de C uiabá em 1727

hav ia sido acond ic ionada em quatro cunhetes (cai-

xo tes de m unição de guerra). R echeados de ouro ,

e les, obv iam ente, estavam m uito bem pro teg idos:

guardados em cofres-fo rtes, sob a rig ida v ig ilância

de m uitos guardas, fo ram co locados com toda a ce-

rim ôn ia jun to ao trono do rei, sob o o lhar cob içoso

do séqü ito de cortesãos e representan tes estrangei-

ros. N o m om ento em que D . João ordenou a aber-

tu ra dos cofres ... surpresa geral: o ouro hav ia desa-

parecido ! E m seu lugar, d ian te de todos, revelou-se

aos pés de Sua M ajestade um m etal nada nobre - o

chum bo. D á para im ag inar a cara re i ...

M as a m elhor época para a prática corriqueira

dos desv ios era a das fro tas. N av ios fundeados, a l-

fândegas abarro tadas e m ercadores por toda parte:

O s furtos e desvios não eram coisa de negro

nem de pobre. Não eram vício moral nem sinal

de cultura bastarda. Eram uma prática

branca, européia

C asa da In tendência e

Fund ição de Sabará,

atual M useu do O uro :

ev itar pagar o qu in to

era um dos expe-

d ien tes m ais vanta jo -

sos para os que bur-

lavam as le is do reino .

no caudal das gentes flu íam os negócios conform e

acertos e desacertos. T udo tão grave e insó lito que

o governador do R io de Janeiro , L u ís V ah ia M ontei-

ro (1725-1732), um dos m aiores com batentes con-

tra os descam inhos, sugeriu que se pusesse sob

contrato o serv iço das "tom ad ias", isto é, as opera-

ções de repressão aos descam inhos. V ah ia propôs

ao rei que, tão logo a fro ta ancorasse e os nav ios es-

tivessem pro teg idos pelos guardas, e le deveria

"m andar pôr E d ita is para arrendar astomadias do

ouro em pó porque estou certo que o contratador

achará os m eios para o descobrir, e sem pre fa ltam

quando as adm in istrações se fazem para Sua M a-

jestade adonde todo m undo é libera l em furtar, e

m uito m ais em dissim u lar os furtos". N a prática, is-

so sign ificava, em term os atuais, a privatização do

poder coerc itivo leg itim am ente exerc ido pelo E sta-

do . U m a to ta l inversão.

A o contrário de yah ia, quantos governadores

não d iv id iram sua lealdade entre o re i e seus pró-

prios bo lsos, ou m elhor, as suas "casas"? A "casa"

em questão com punha-se não só da fam ília , com o

a com preendem os ho je, m as de todas as dem ais

pessoas ligadas por laços de sangue e de afin idade

que grav itavam em tom o dela. Pelo poder do ouro ,

as "casas" das autoridades cresciam e aum entavam

seu prestíg io socia l. T antos o faz iam , e de m odo tão

exp líc ito , que um dos m ais destacados hom ens do

m undo português na época m oderna, o padre A n-

tôn io V ie ira (1608-1697), ded icou-lhes um a parte

do fam oso "Serm ão do B om L adrão" (ver box).

O que conclu ir d isso tudo? O rei abso lve os des-

cam inhadores. G overnadores e ofic ia is fu rtam em

todos os tem pos e por todos os m odos. E ntão , será

que o descam inho é m esm o um a aberração do pro-

cesso? O u um a caracteristica ineren te e ind ispensá-

vel à própria co lon ização? Provavelm ente, é a se-

gunda h ipó tese. A ex tração de ouro e d iam antes

apenas potencia lizou um a característica presente

na C olôn ia desde o in íc io .

N ão era co isa de negro nem co isa de pobre. N ão

era v íc io m oral nem sinal de cu ltu ra bastarda. E ra

prática branca, européia, chegou à A m érica com a

expansão com erc ia l e com o processo de form ação

do cap ita lism o, e aqu i contribu iu , desde o prim ei-

ro m om ento , para a institu ição da sociedade co lo -

n ia l. Por isso suas raízes são tão pro fundas.

A prática do descam inho e o cham ado exclusivo

com erc ia l (o tão conhecido "pacto co lon ia l" , segun-

do o qual as m etrópo les reservavam para si p ró-

prias o com érc io u ltram arino) são do is lados da

m esm a m oeda. U m a m oeda que, fa lsa ou verdadei-

ra, sem pre levou consigo o ouro do m aior qu ila te. H

PAULO CAVALCANTE É P R O F E S S O R D E H I S T Ó R I A D A

U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O E S T A D O D O R I O D E J A N E I R O

( U N I R I O ) , D A U N I V E R S I D A D E D O E S T A D O D O R I O D E

J A N E I R O ( U E R J ) E A U T O R D O L I V R O N E G Ó C IO S D E TRAPAÇA:

CAMINHOS E DESCAMINHOS N A AMÉRICA PORTUGUESA (1700-

1750), ( H U C lT E C , 2006).

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••• __ •••• _C!JQO_&.A"~iI._

PAULO CAVALCANTE

Os falsificadoresCom ~ proteção do governador, fábricaclandestina de moedas e barras de ourofez fortuna no início da mineraçãoZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

N o F IN A L D A D É C A D A D E 1 7 2 0 , f l o r e s c e u n o v a l e d o

R io P a r a o p e b a , n a b a s e d a a tu a l S e r r a d a M o e d a -

n o m e b a s ta n te s u g e s t i v o - , u m a v e r d a d e i r a f á b r i c a

d e b a r r a s e m o e d a s d e o u r o . A f u n d i ç ã o p r o d u z i a

i n i n t e r r u p ta m e n te , e g a n h o u f a m a p e la q u a l i d a d e

d o o u r o u t i l i z a d o e d o a c a b a m e n to d a s p e ç a s . S ó t i -

n h a u m p r o b l e m a : e r a t o t a lm e n te i l e g a l .

E n a d a d i s c r e t a . S o b o c o m a n d o d e u m c e r t oI n á -

c i o d e S o u z a F e r r e i r a t r a b a l h a v a m c e r c a d e 1 0 0 h o -

m e n s , e n t r e b r a n c o s , n e g r o s , m u la t o s , m e s t i ç o s ,

g e n te d e o u t r a s c a p i t a n i a s , d e o u t r a s p a r t e s d o s d o -

m ín i o s p o r t u g u e s e s e a té a n t i g o s f u n c i o n á r i o s d a a d -

m in i s t r a ç ã o l u s a n a A m é r i c a . C o m o p a s s a r i a d e s p e r -

c e b i d a u m a f á b r i c a d e ta i s d im e n s õ e s , m e s m o _

p r o te g i d a p o r m a to e m o n ta n h a s ? Q u e m a r r i s c o u a

h ip ó te s e d e q u e a f á b r i c a d e i l i c i t u d e s c o n ta v a c o m

a p o io o f i c i a l a c e r t o u n a m o s c a . E d e g e n te g r a ú d a : o

p r ó p r i o g o v e r n a d o r d a s M in a s , D . L o u r e n ç o d e A l -

m e id a ( 1 7 2 1 - 1 7 3 2 ) . A c o b e r t u r a o f i c i a l i a a l é m d a

" v i s t a g r o s s a " - t a m b é m a z e i t a v a a s r e d e s d e c o m e r -

c i a n te s e c o n t r a b a n d i s t a s c a p a z e s d e f a z e r a s b a r r a s

e m o e d a s c h e g a r e mà E u r o p a .

A f á b r i c a f o i d e s b a r a ta d a p e lo o u v i d o r g e r a l

D i o g o C o t r im d e S o u z a . E l e p r e c i s o u c e r c a r a o p e -

r a ç ã o d e m u i t o s i g i l o p a r a q u e o g o v e r n a d o r n ã o

s u s p e i t a s s e d e n a d a . O lo c a l , a l é m d a p o s i ç ã o e s t r a -

t é g i c a p a r a f a c i l i t a r a c o m u n i c a ç ã o c o m d i v e r s a s

p a r t e s d a C o lô n i a , e r a b a s ta n te p r o t e g i d o . O h i s t o -

r i a d o r A u g u s to d e L im a J ú n io r c h e g o u a c h a m a r a

f á b r i c a d e " f o r t a l e z a " , p o i s e s ta t i n h a p a r a s u a d e -

f e s a c a n c e l a s , c e r c a s , p o n te s e s t r e i t a s , m u i t a g e n te

e a rm a s . O b s e r v e a im a g e m e a c o m p a n h e a n u m e -

r a ç ã o . O n ú m e r o 1 a s s i n a l a a " e n t r a d a p e lo m a to

s e r r a a b a i x o q u e te m m e ia l é g u a a té a c a s a d eI n á -

c i o d e S o u z a " ( 1 7 ) . O n ú m e r o 2 i n d i c a d u a s c a n c e -

l a s s u c e s s i v a s q u e s e r v i a m d e d e f e s a e d e p o n to s d e

Page 8: Paulo Cavalcante Eu Quero e Ouro e Os Falsificadores-libre

contro le das pessoas que ali trabalhavam .No nú-

mero 29, cruzamos a cerca por uma pequena pas-

sagem . Note como as margens do cam inho estão

escuras e tracejadas, o que ind ica "a aspereza que

tem a serv idão (passagem ) naquela serra". C ruzada

a cerca, cam inha-se por longo trecho até a prim ei-

ra ponte (8) sobre o ribeiro (7).À esquerda, as sen-

zalas em expansão (20 e 21); à d ireita, a casa de fun-

d ição do cunho e demais casas; em frente, uma

pequena igreja (erm ida) e a casa do Inácio (17). To-

da a parte superior da casa do lnácio é uma espécie

de grande varanda/terraço de onde se pode obser-

var todas as instalações do lugar. Para se chegarà

casa da moeda falsa propriamente d ita (26 e 28), é

preciso cruzar nova ponte sobre outro ribeiro (27)

e depois nova cerca. Não há sim plic idade nem pre-

cariedade. A planta reg istra uma cena complexa,

bem planejada e em expansão.

A fundição ilegal encerrou suas operações em

1731, mas D . Lourenço de A lmeida já hav ia se be-

nefic iado o sufic iente do esquema para voltar ri-

quíssim o a Portugal, onde sequer fo i punido - pelo

contrário , continuou desfru tando de cargos e de

prestíg io social. Já lnácio , o chefe da fábrica, m ofou

na cadeia. Deixando de lado os destinos pessoais,

os dois eram faces da mesma moeda. Juntos, v iab i-

lizaram o negócio da colon ização. H

PAULO CAVALCANTE É PROFESSOR E lE H ISTÓR IA DA UN I-

VERSIDADE FEDERAL DO ESTADO RIO DE JANEIRO (UN IR IO ).

DA UN IVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E

AUTOR DO LIVRO NEGÓCIOS DE TRAPAÇA CAMINHOS E DESCA-

MINHOS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1700-1750). (HUC ITEC . 2006).

Saiba Mais

GU IM ARÃES,André Re-

zende. "Falsários e con-

trabandistas nas M inas

Setecentistas: Inácio de

Souza e 'sua rede in ter-

nacional de negócios ilíc i-

tos". D issertação de

mestrado (UFM G . 2008).

GU IM ARÃES, André Re-

zende. "M oedas falsas e

negócios: o território do

líc ito e do ilíc ito nas M i-

nas setecentistas", d ispo-

nível em:

httpJ/www .cerescaico.u fr

n .br/m neme/anais/st_ trab

--pdf/pdC9/andre_st9.pdf

TÚL lO , Paula Regina A I-

bertin i. "Falsários d'el re i:

Inácio de Souza Ferreira

e a casa de moeda falsa

do Paraopeba". D isserta-

ção de mestrado (UFF,

2005).

Desenho aquarelado

da fábrica clandestina

de barras e moedas

de ouro onde, sob o

comando de Inácio

de Souza, trabalhavam

cerca de 100

homens, entre bran-

cos, negros, e até fun-

cionários da adm in is-

tração rég ia.