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DESCARTES COM LENTESPaulo Leminski

Ego, Renatus Cartesius, cá perdidoneste labirinto de enganos deleitáveis,

vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejomais. Já lá vão três anos que deixei a Eu-ropa e a gente civil: lá presumo morrer àsombra de meus castelos e esferasarmilares, jazendo na ordem de meus an-tepassados. “Barbarus hic ego sum quiaintellegor ulli”, - isso do exílio de Ovídio

é meu.Do parque do Príncipe, contemploo telescópio, o cais, o mar e os pássarosdo Brasil. Como é do meu hábito de ver-des anos, medito deitado nas primeirashoras da manhã só me fazendo à ruamuito tarde, já sol de meio-dia.

Estando no parque de Vrijburg, circun-dado de plantas gordas, nas suas folhagensdescomunais, flores enormes de altas co-res, cintilantes de gotas d’água e de inse-tos; seu cheiro é uma carne, o ambiente ésólido, eu poderia tocá-lo.

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Bestas de toda sorte circulam em gai-olas, jaulas, ou soltas - animais anormaisgerados pela inclinação do eixo da terra,do equinócio. O chamado, na algaraviadestes reinos, tamanduá, c/ a língua ser-penteando entre as formigas de que extraitodo seu mantimento; levanta-se de pé àlaia de homem, formidando e formigófago;o olhar míope de ver formigas cara a cara,

tropeça num formigueiro e rola, envoltoem formigas. Tatu é convento, rochedo ebastião; disfarçado de pedra, gela com elase crescem árvores, repousando enquantopensa seus juízos irrefutáveis.

As capivaras, ratos magnos, o estôma-go maior que o corpo, concentrando co-

mida.Numa gaiola, o tucano, indeciso so-bre o penhasco do bico, ser pedra ou bi-cho. Monstros da natura desvairada nes-tes ares. A jibóia, python que Apolo nãomatou, abre todo seu ser em engolir; en-globa antas, capivaras, veados, - de quedeixa fora das goelas os chifres, - comouma árvore caída com galhos -, até queapodreça em seu bucho; então cospe oschifres e come outro. Exorbitantes, vivemséculos, diz Marcgrav. Certamente vivemséculos. Crias? Qual não será fihote? Cada

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vez maiores, a mãe delas todas acabará porengolir o orbe. Não, esse pensamento nãoé corrupção dos climas, é inchação do ca-lor em minha cabeça. Que se passa comi-go? Hei de abrir meu coração aArticzewski e saberá esclarecer essa trevaque me envolve. Virá. Articzewski virá.Nossas manhãs de fala fazem-me falta.Quanto falta para que chegue? Um papa-

gaio pegou meu pensamento,diz palavrasem polono, imitando Articzewski. Bestasgeradas no mais aceso do fogo do dia...Comer esses animais há de perturbar sin-gularmente as coisas do pensar. Passo osdias entre essas bestas estranhas e à noitemeus sonhos se povoam de estranha fauna

e flora, de bicos e dentes... É a florafaunizada e a fauna florescida. Singularesexcessos. Escrevendo as “PrimaeCogitationes circa generationemanimalium”, - de haec omnia non cogitavi.Esperarei consumindo desta erva de ne-gros que Articzewski me forneceu, chiba,chibaba, dianga, diamba, ou diancha,como a registra Marcgrav em seu “Lexiconomnium vegetalium quibus in Brasiliaeutentur”. É uso de tououpinambaoults, degês e de negros minas. Aspirar estes fu-mos de ervas, encher os peitos com os va-

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pores deste mato, a cabeça quieta. Crescede súbito o sol e as árvores vuhebehasu,que é enviroçu, embiraçu, inveraçu, con-forme as incertezas da fala destas regiões,onde as palavras são podres, perdendosons, caindo em pedaços pelas bocas dosbugres, água, fala que fermenta. índio égente que carrega enormes pesos nos bei-ços, pedras, paus, penas, e não podem fa-

lar, falam como quem tem a boca cheia debichos vivos. Os movimentos dos animaisé augusto e lento, todos se olhando de jau-la para jaula e para mim. A árvorevuhebehasu, de cerne mole, à maneira decarne ulcerada, casca com verrugas, asfolhas grandes lóbulos de orelha, com um

látex como porra pelos poros das formi-gas, dos seus galhos - tufos de parasitas,os frutos são ninhos de formiga, labirintosdos marimbondos, onde ostououpinambaouts vêm caçar maracanãs.Vejo baleias: limitado no mar Atlânticopelas tribos de baleias e no lado do poentepelos desertos de ouro em pó onde sopra ovento que vem do reino dos incas. E osaparelhos ópticos, meus aparatos? Ponhomais lentes no telescópio, tiro outras; am-plio; regulo; aumento, diminuo, o olhoenfiado nestes cristais, e trago o mundo

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mais perto ou o afasto longe do pensamen-to: escolho recantos, seleciono céus, dis-tribuo olhares, reparto espaços, o Pensa-mento desmonta a Extensão, - e tudo sãoaumentos e afastamentos. Um olhar compensamento dentro. Sempre fumando des-ta erva-que-dói. Como coça. Insetosinsetivoros... E de Articzewski (ouArticzowski?) nada... Nem signos nem si-

nais... E esse sol epilético... Por três anosem vão alcei meu pensamento sobre estafauna e esta flora e sinto que estes bichosde olhar calmo estão pensando em mim.Maravilha é pensar esse bicho. Como pen-sar esse bicho? Duvido que Articzewskipossa. Não poderemos. Este bicho é

proteu, aquela ave é orfeu, este vapor émorfeu? Quem mordeu? Metamorfose.Isso é dúvida ou concessão à má natura?O que é olho de onça, o que é vagalume?Enquanto o macaco representa e gesticulahumano - o papagaio fala, e parece genteem pedaços, uma parcela no macaco e umaporção num papagaio. Batavos há que temperdido a razão nestas zonas, casando-seem conúbios múltiplos com as índias, fa-lam o linguajar deles, que é como os sonsdos estalos e zôos deste mundo. Duvidode Cristo em nheengatu. Índio é gente?

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Este país cheio de brilho e os bichos den-tro do brilho é uma constelação de olhosde fera. E de noite a cabeça cheia de gri-los e gritos tem pensamentos de bichos...Esponjas, antenas, pinças certeiras. Pen-samento é susto. Que fome! Uma araraacende-se em escândalos mas não éArtichofski. Num galho reto da árvore soba qual me jazo (“patulae recumbans sub

tagmine fugi”), está o assim designadobicho preguiça que requer uma eternida-de para ir dez palmos: este animal não viveno espaço, vive no tempo, no calor e naintensidade. Este mundo não se justifica.Que perguntas fazer? Gigantomaquia,batracomiomaquia. Esta alimária levando

eternidades para nada é o relógio destemeu estar fracassado: o bicho mede-me otempo do intenso. Uma insógnita paradanuma reta. Preciso lembrar disso paraArtizcoff, e a preguiça sobre mim. Nem afumaça que emito a perturba no calor doseu estar. Este mundo é o lugar do desva-rio e a justa razão aqui se delira. Umasárvores de papagaios: formigas comemuma árvore numa noite, - e os papagaiosno sono, donde tantas árvores secas comos respectivos esqueletos apensos. E o ca-lor... Esta canícula... 0 calor é pura subs-

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tância onde bóiam gaivotas e o pensamen-to não entra nesses espaços nem ingressanesse mundo.

As aves sem fôlego, no sol, no fogo...O arúspice vê no vôo das aves o futuropelo muito eterno do presente em que elasvivem. Não, esses pensamentos recuso,refuto e repilo. Sinto coisas crescerem emmim, contra mim e em prol deste mundo.

Nada há aqui onde apóies o pensar. A estaterra faltam-lhe castelos, tumbas, estátu-as, palácios catafalcos, cenotáfios, marcosmiliários, arcos de triunfo, torres, estirpes.Fico feito Sísifo rolando rochas de cogita-ções que escorregam de volta no seu pró-prio peso. Faltam coordenadas... E essa

preguiça... Com esse sono pesado, estouancorado no presente, acordado neste pen-sar (ou pesar?) permanente... Artissef melevantará do chão e de minhas dúvidas. Ummecanismo de passarinhos! Aumento otelescópio: mais lentes. Lentes e dentes.Omito. Aqui não se reparte, não se divide.Um dia a selva desmorona em cima deMauritstadt e a afunda na lama e no calor.Não esse pensamento não. Atrapalhos etrambolhões. Trabalhos de hércules. Po-dar as opiniões recebidas, as verdades da-das e os dados herdados, passando o rio

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Aqueloo, - e o discernir é o Aqueloo; cor-tar as sete cabeças da Hidra da vã presun-ção e inchaço de saber, que são, a) pensarque se sabe, b) dizer que sabe não saben-do, c) distorcer o cristal da verdade, d) tero erro como verdade, f) não precisar deninguém para chegar à verdade, g) preci-sar de todas as autoridades para chegar àverdade. Isso é hidra. Saber é hidra? Dis-

so é mister cortar as sete cabeças. Colheros pomos de ouro do jardim das Hespérides(estes cajus) além das colunas: ir por par-tes, repartir. Sim, repartirei. Confirmo:Articavski, reparti. Parti, rachei, reparei.E de trabalhos não chegarei aos doze. Paraque trabalhar tanto? “Credo ut intellegam”,

sim, mas já não creio no que penso. Jáduvido se existo: exito. Se existe estetamanduá, eu não existo. Pensar é umaesponja? Tamanduá não é verdade; eu que-ro a verdade. Com os santos padres de LaFlèche aprendi a obrar em presença deDeus; e aqui, - obrando em presença debichos? Pelo Sagrado Coração de Jesus!E que é do Cérebro de Jesus? Ah, se o riode pensar fossem silogismos e subjunti-vos! Aqui tudo tão enigmas. Estavuhebehasu é esfinge, e Cérbero bebe oEstige e a água do meu cérebro. Quero

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dizer: aqui não se pensa: e olhar com len-tes já é o máximo do pensar... É o sumodo pensar, e aqui estou no máximo e noexcedente. Nas excelências. A cabeça fu-rada de cáries. Um côco roído de formi-gas. Nestes climas onde o bicho come oslivros e o ar caruncha os pensamentos, es-tas árvores ainda pingando as águas dodilúvio. Ah, Brasil, Parinambouc, minha

Tróia, este mundo é sujeira; este mundonão sai: é uma sujeira em meu entendi-mento no vidro de minhas lentes.

0 próprio do corporal alimento é, emalimentando, ir-se-lhe o sabor da boca;mas os frutos desta terra são caju, mara-cujá, guabirobas e ananazes; o sabor fica

na boca e não passa. Essas frutas são frutode minha imaginação ou usufruto de meucismar? Esta nota a porei em nótula ao “DeSaporibus”: em Marpion não. E metamor-foses, as coisas rolam, transformam-se semsair do lugar. Calor e mosquitos que mecarcomem os pensamentos. Meu pensarapodrece entre mamões, caixas de açúcare flores de Ipê. Durmo com um teoremana cabeça, comendo abacaxi, e acordo coma boca cheia de formiga. Vae! Ai do Pen-samento e da Extensão. Cancerado e can-celado. A humana criatura aqui não mais

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“substância pensante” mas substância pe-sando, substância substante, que sei? Aciência do silêncio e do pensar violento.Lá na torre, Marcgrav, Goethuisen,Usselincx e Post colecionam em vitrinese vidro os bichos e flores deste mundo;mas não sabem que deviam por o Brasilinteiro num alfinete sob o vidro? Não, essepensamento não. A sombra da preguiça

pesa sobre meu entendimento como umpenedo. 0 sol por dentro dos cachos, fru-tas explodem em fachos, entre penas deinsetos, plumas. Pirilampos de pensamen-tos, lampejos. A cabeça pensa com a bocapodre, os dentes carcomidos de açúcar? Aaranha ali leva para fazer a teia o mesmo

tempo que levo para pensar um teorema.Ou perco? Se perco, perdi-me Artizshofskiachar-me-á para mim e para ele?

Quando vim com Maurício, não pen-sava; quando vim, vinha. De fumar a bocase enche de terra e a cabeça de uma águacalma. Investi; pelejei contraParanambouc de ponto em branco no meumétodo – “mirabilis fundamentum” - masora sei que todo método é método depreservar-se da irrupção de novas realida-des. Que mau astro me trouxe a parar nes-tas paragens? Que signo? Câncer, - comi-

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do dos cânceres de Câncer, ou flechadonas setas de Sagitário, náufrago nas águasdo Aquário; e ponho na Balança um bichoque rói o fiel e a balança rui. Vim com asnaus de Nassau para expor meu métodoàs tentações deste mundo, para prová-lonesta pedra-de-toque, mas meu pensar batenessa pedra - e o eco é pleonasmo, étautologia, eco a mesmice; reflete, devol-

ve e recusa: siso de Narciso.– Ignoras, mundo, tudo que pensei?– Sei.– Qual é teu arcano que decifrar não

consigo?– Sigo.– Aonde vai esta preguiça que para

nada tanto tempo levou?– Vou.– Onde reside tua verdade para eu

buscá-la?– Cala.– Cogito ergo sum?– Um.– Quem me conta deste mundo, quetento mas não disseco?– Eco.Concrescem as horas e as obras, eu

perdido no pó deste pensar, no meio des-tas cobras. Raízes com ostras. Raízes.

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Monstros à mostra. Abortos abertos ao sol,e troncos. 0 aparente aparece. Isso é bara-lho: um ás na hora vale mais queAristóteles. Mas que digo! Alguém estápensando no meu entendimento, ou já crieibicho na memória? Ou é alguma carne,alguma rês, que comi? O ser é espêsso,definitivo. Precário. Ou uma erva, um cli-ma, uma região e um zôo podem mais que

meu entendimento e minha alma imortal?Salvá-la-ei? “Quod vitae sectabor iter?”Isso de Ausônio pergunte-me em verdesanos. E agora entre tououpinambaoults,que me importa? As vezes parece-me quea terra pulsa como um coração; ou será omeu? De quem será? Que pensam os índi-

os sobre isso tudo? Índio pensa? Artixoff mo dirá; ocorre-me que está aqui há dezanos: e não pensando mais? Com aquelastatuagens todas, pensa ainda? Um homemescrito pensa? Esse pensamento recuso,refuto, repilo, deserdo, rasuro, desisto. Ín-dios comem gente. Pensamento é susto.Estes conceitos - eu os quero perpetuar.Perpétuos em minha memória - estes su-cessos. Demasias. Este mundo, este mato.Índios comem gente. Como será? Sepul-tar em nós um corpo com nome e cora-ção, e me vem de súbito a fome de devo-

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rar Artixofski. Terei seus pensamentos?Sentirei seus males, sofrerei de sua sede,saberei de seus saberes e deveres? Estesconceitos - eu os quero esquecer. Artixoff não saberá deles, não se pensa mais nisso.Índio pensa? índio come gente - isso sim.Índio me comendo, pensará estes meuspensares ou pesará de todo esse peso, pa-rado no momento? Um índio come a tua

perna olhando cara a cara, olho a olho, comtua cabeça caveirada. Eu vi com estesolhos que a terra há de comer. Ou não?Ora saibam que os tououpinambaoults es-petam no fálus certos espinhos e acúleospara inchá-los como troncos, e mal podemsuster-se ao peso daquilo e incham pelo

amor de inchar que não há mulher que ossofra, como tudo incha e infla nestes cli-mas. Ah, como penso mal! Elefantíase domeu cogito! Uma fumaça sobe aos ares.Queimam os campos? Ou é a guerra?Artixov enfrenta os de Parinambouc. Oscorvos comedores de olho enfrentam o sole se assanham nas pupilas. Não, chega deficção, não há guerra, tudo é paz, é sosse-go, só essa angústia assustada. Aponto aluneta e partem naus. Erguem velas comgente suando de saudade. Partem mas nãovão. E a âncora que içam vem viva, é um

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caranguejo que corta as cordas e as jugulares. Naquela água de abacate, nadanavega, nada se locomove. E a bússola éum relógio morto. E o pensar estelar des-tes insetos com antenas azuis e ágeis? É omeu? Não é o meu, que eu sou de repartire separar. Ah, como era eu Cristo ao darseu pão repartindo em pequeninos! Sintoo pisar dos bichos, e o pesar dos peixes

nessas águas onde bóiam mamões. Nadaque mereça o bronze ou a bela linguagem.O olho do sol pisca. Artisheffsky para cairsobre meu pensamento. A preguiça nãocome. Incha de estar ali. Parada no pontoexato. Gerar e girar. Meu corpo só podiater o tamanho que tem. Vulnerável à dúvi-

da, ao dente e ao olhar, - vulnerável a lâ-minas, flechas, arcabuzes, - e a cabeça quepensa uma clava de tououpinambaoultsesmaga. Não há dúvida. Ai, como dói essaconstelação na úlcera de minha dúvidametódica! E o método duvidoso dessesbichos? É preciso matar para garantir ométodo; aquele olhar te olhando é pensa-mento, e isso dói. Pisando até esmagaraquela cabeça, o ar se limpa: você apagaessa fogueira do pensar, em cujo fumogesticulamos afônicos e acéfalos.Afasta-te, remove-te, Parinambouc dá-me

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o espaço de pensar-te e, em te pensando,salvar meu pensamento da danação, vaderetro! Sylva aestu aphy1la, sylva horrida...Intumuere aestu... Falar por falar é coisaque nunca fez mal. Pensar por pensar.Consumir-se suando de pensar como umcírio, aceso na cabeça e as formigas mecomendo e me levando em partículas parasuas monarquias soterradas. A existência

existe no existente, a presença presente nopresenciar, as circunstâncias no circuns-tancial, o integro integrado no integral, atotalidade totalmente no total. Contactocompacto com coisas coesas. No grandelivro do mundo, Parinambouc são páginasenigmáticas fechadas ao siso e à fala. Este

capítulo não cifro nem decifro; ou é erro?Sofro, e este livro sem textos é só ilustra-ção e iluminura. Não traduzo nem leio.Coagido, cogito. Giro e jazo. Um círculode giz em volta de meu juízo, uma nuvem,uma caligem, um bafo me embacia o en-tendimento para que não entendaParinambouc, - e Parinambouc é o círcu-lo, a nuvem, a caligem. Cogito ergo sum?Sursum corda. Ergo. Dentes e lentes. Co-gito e corrijo. Agito. Fedor de antas e ara-ras. Uma fera urra dando á, luz. A onçaestá parindo Articzewsky? Ai, ui, este pen-

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samento sem bússola é meu tormento. Meupenar e no pesar. Ah, quando verei meupensar e meu entendimento - fénix - re-nascer das cinzas deste cigarro de maco-nha? Ocaso do sol do meu pensar. Nova-mente: a maré de desvairados pensamen-tos me sobe no pomo de Adão como umvômito. Estes não. É esta terra: é um erro,um engano de natura, um desvario, um

delírio, um desvio. Uma doença do mun-do. E doença doendo, eu aqui com lentesesperando Articxoffski, e aspirando. Au-mento o telescópio; na subida, lá vemArtyxovsky... Mas como? Vem bêbado...Artyshesky bêbado... Bêbado como pola-co que é...

Bêbado? Quem me compreenderá?

Descartes com lentes (conto). Col.Buquinista, Fundação Cultural de

Curitiba, Curitiba, 1993.

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