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PAS-DE-DEUX Eduardo Pavlovsky 1 PAS-DE-DEUX Eduardo Pavlovsky Tradução: Maria Angélica Keller de Almeida ELE (enquanto fala deve realizar todos os movimentos sugeridos pelo texto) Olhando para a frente. Talvez de perfil. Agora olho na minha mão. Viro a cabeça para a direita, agora para a esquerda, posso olhar outras vezes para a frente. Pausa. Não. Tenho que fazer alguma coisa, golpeio meu joelho esquerdo. Me levanto. Me sento. Coço o nariz. Trato de que cada gesto tenha sentido, quer dizer, que adquira uma dimensão de espontaneidade. Não quero vazios. Olho para a frente, bruscamente para trás. Me agrada olhar um ponto fixo. Me sustenta. Lus- trada de sapato nas calças. Necessito de mais atos. Uma boa massagem no pescoço, rotação de cabeça. Tudo como se fosse normal. O tempo se deteve. Um bocejo, outro bocejo, um leve sorriso, uma penteadinha, coçada na testa, batidinha de sapato no chão. Assobio. Assopro. Vou ao banheiro. Não estou com vontade. Volto. Me sinto bem. É preciso aprender a se sentir bem. Olho o teto. Como falta ainda, meu Deus! Lustro outra vez o sapato direito. Faço de conta que penso em algo concreto que me preocupa. Faço gestos de quem descobre alguma coisa. Assumo uma cara de safado. Imagino que me lembro de uma aventura amorosa. Imagi- no os lugares. Me distraio um momento. Volto ao vazio. Não! Quanto falta? Penso em minha mãe. Tento reter a imagem do rosto da minha mãe. Me lembro. Me coça o nariz. Deixo que me coce... para ganhar tempo enquanto me coço. Me coço um pouco. Me esfrego. Uma pausa depois de tanto esforço. Que fazer, meu Deus! Um pouco de esperança. Dura pouco. Agora, desesperança. Finjo que esqueço uma coisa e agora me lembro. Abro a boca. Fecho. Tusso. Tusso duas vezes. Tusso três vezes. Agora finjo que me sufoco. Faço de conta que me recupe- ro. Como continuo? Quanto falta? Mudo a cadeira de lugar. Torno a mudar a cadeira de lugar. O tempo não passa. Me sento no chão. É bom sentar no chão, muito bom. Ando. Paro. Ando. Mexo os quadris. Sou homem. Sou mulher. Sou criança. Sou animal. Que pretensioso! Um pouco de representação, um pouco de humor, de bom humor, de humor fino, de humor inglês. Pausa. Pausa. Pausa. Comecemos outra vez. O que acontece se eu me deixo ficar? As imagens se detêm. As caras como imagens sem dimensões. Tudo plano. Talvez um pequeno discurso, ou melhor, um método, algum recurso que pudesse me distrair... Pausa. Quanto falta, meu Deus! Como demora... tudo isso demora muito... pensar eu não posso... já gastei o pensamen- to de sustentação... preciso de altos, ações...

PAVLOVSKY, Eduardo Pas de Deux

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PAVLOVSKY, Eduardo Pas de Deux

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Page 1: PAVLOVSKY, Eduardo Pas de Deux

PAS-DE-DEUX – Eduardo Pavlovsky 1

PAS-DE-DEUX

Eduardo Pavlovsky

Tradução: Maria Angélica Keller de Almeida

ELE (enquanto fala deve realizar todos os movimentos sugeridos pelo texto) Olhando para a

frente. Talvez de perfil. Agora olho na minha mão. Viro a cabeça para a direita, agora para a

esquerda, posso olhar outras vezes para a frente. Pausa. Não. Tenho que fazer alguma coisa,

golpeio meu joelho esquerdo. Me levanto. Me sento. Coço o nariz. Trato de que cada gesto

tenha sentido, quer dizer, que adquira uma dimensão de espontaneidade. Não quero vazios.

Olho para a frente, bruscamente para trás. Me agrada olhar um ponto fixo. Me sustenta. Lus-

trada de sapato nas calças. Necessito de mais atos. Uma boa massagem no pescoço, rotação de

cabeça. Tudo como se fosse normal. O tempo se deteve. Um bocejo, outro bocejo, um leve

sorriso, uma penteadinha, coçada na testa, batidinha de sapato no chão. Assobio. Assopro.

Vou ao banheiro. Não estou com vontade. Volto. Me sinto bem. É preciso aprender a se sentir

bem. Olho o teto. Como falta ainda, meu Deus! Lustro outra vez o sapato direito. Faço de

conta que penso em algo concreto que me preocupa. Faço gestos de quem descobre alguma

coisa. Assumo uma cara de safado. Imagino que me lembro de uma aventura amorosa. Imagi-

no os lugares. Me distraio um momento. Volto ao vazio. Não! Quanto falta? Penso em minha

mãe. Tento reter a imagem do rosto da minha mãe. Me lembro. Me coça o nariz. Deixo que

me coce... para ganhar tempo enquanto me coço. Me coço um pouco. Me esfrego. Uma pausa

depois de tanto esforço. Que fazer, meu Deus! Um pouco de esperança. Dura pouco. Agora,

desesperança. Finjo que esqueço uma coisa e agora me lembro. Abro a boca. Fecho. Tusso.

Tusso duas vezes. Tusso três vezes. Agora finjo que me sufoco. Faço de conta que me recupe-

ro. Como continuo? Quanto falta? Mudo a cadeira de lugar. Torno a mudar a cadeira de lugar.

O tempo não passa. Me sento no chão. É bom sentar no chão, muito bom. Ando. Paro. Ando.

Mexo os quadris. Sou homem. Sou mulher. Sou criança. Sou animal.

Que pretensioso! Um pouco de representação, um pouco de humor, de bom humor, de humor

fino, de humor inglês.

Pausa. Pausa. Pausa. Comecemos outra vez. O que acontece se eu me deixo ficar? As imagens

se detêm. As caras como imagens sem dimensões. Tudo plano. Talvez um pequeno discurso,

ou melhor, um método, algum recurso que pudesse me distrair... Pausa. Quanto falta, meu

Deus! Como demora... tudo isso demora muito... pensar eu não posso... já gastei o pensamen-

to de sustentação... preciso de altos, ações...

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A vida nos lança no vazio e nós dizemos no ar “vou por este caminho, escolho este outro, me

equilibro entre aqui e ali”.

Bem que eu queria explicar os fatos, as circunstâncias desencadeantes, explicar as causas.

Dizer: esta atitude eu posso explicar deste modo. Só posso dizer que sou absolutamente res-

ponsável por tudo, não me arrependo absolutamente de nada, minhas atitudes são a única coi-

sa que faz algum sentido, um fio para seguir... Sou responsável por cada uma das minhas in-

tensidades... isso é certo... absolutamente certo. Essa é minha certeza.

Qual era o problema? Agora o tempo modifica tudo, acho que o tempo modifica tudo.

ELA Você sabe por quê?

ELE Por quê?

ELA Eu pergunto se haveria em você algum tipo de convicção, pelo menos nos primeiros

tempos, quando nos conhecemos, nos começos.

ELE Convicções, convicções...

ELA Idéias, simplesmente idéias.

ELE Eram apenas nossos encontros que modificavam tudo... Custei a perceber isso. Porque

você se transformou em NECESSIDADE para mim. Necessidade dos nossos corpos... juntos.

Necessidade de te ter perto, de falar com você próxima, sempre perto. Tocando sempre em

você...

ELA Alguma convicção você deve ter tido em algum momento. Pelo menos para distinguir o

verdadeiro do falso.

ELE O verdadeiro do falso?

ELA Para saber se o que você fazia tinha algum sentido, por exemplo.

ELE Sempre pensei que se faziam as coisas porque se tinha vontade de fazer.

ELA Só por isso? Por mais nada?

ELE Por que você pergunta tanto?

ELA Porque estou cheia de perguntas.

ELE Sobre mim.

ELA Sobre os dois.

ELE Quando eu estava na sua frente, descobria a intensidade. Deixar de estar com você era

enfrentar o vazio, era horrível saber que a intensidade poderia terminar num só instante... que

só dependia de você. Tinha medo que você cedesse e que tudo terminasse assim, de repente.

ELA Pronto?

ELE Não podia deixar nenhum detalhe da cerimônia, nenhum detalhe do ritual.

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ELA Nada mais era importante, só a intensidade? Cada uma das ações de cada pergunta pro-

curavam então silenciar, ou esperavam respostas equivocadas? É difícil acreditar, no entanto...

tudo para justificar a intensidade. Cada instante, então, dessa cerimônia era apenas uma simu-

lação? Para justificar os encontros, cada encontro uma simulação?

ELE Depois de um tempo, cada um de nossos encontros foi simulação.

ELA Cada um dos gestos de todo o ritual da cerimônia, do ritmo geral, todo aquele aparato, a

importância dada a cada uma das perguntas? Foi simulação para todos? Sempre?

ELE Só para mim que era uma simulação. Chegou um momento em que eu desejei que al-

guma coisa falhasse... para justificar outros encontros. Amava sua fortaleza, era a única coisa

que assegurava a continuidade.

ELA Se eu de repente cedia...

ELE Era cair, então, no imenso vazio do tempo presente, tomar contato com a consciência...

Vivia das expectativas do próximo encontro.

ELA Eu soube, desde o primeiro dia.

ELE Como, desde o primeiro dia?

ELA Porque percebi que não te interessavam minhas respostas, mas sim o tom em que você

formulava suas perguntas.

ELE Me lembro do dia, hoje eu posso te dizer que você sempre me impressionou, tenho a

imagem de uma discussão ou de algo parecido com uma discussão... como um mal-entendido

ou alguma coisa assim.

São retalhos, é verdade que antes de nos conhecermos... eu tinha recriado uma imagem sua...

quero dizer que você me era familiar... Quando alguém me falava de você... me sentia miste-

riosamente atraído pelo que se falava de você... malgrado minha vontade, às vezes me pegava

escutando... às vezes entendendo pela metade... às vezes tentando acompanhar uma seqüência,

para entender melhor...

Você me despertava uma grande curiosidade... sempre me dava curiosidade...

Ela tenta ir embora.

ELE Aonde você vai?

ELA (se detém) O tom de certas palavras sempre remete à imagens...

ELE Sempre te perguntei aonde ia... absolutamente sempre, em nossos tempos... aqueles

tempos...

ELA Aqueles tempos...

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ELE Eu era possessivo. Reconheço. Antes de te conhecer, já achava que você me pertencia.

Seu nome me pertencia... Enfim, eu brincava de que você me pertencia... Ainda quando eu

não te conhecia, quando você era só um nome... me obcecava a idéia de te possuir... me apo-

derar de você como um troféu, sempre pensava em teu corpo... Me apossar de repente... de

imprevisto... igual a um animal, quando caça sua presa... te invadir... assim...

ELA E por que tantas verdades... Hoje? Por acaso, algum outro jogo de intensidades?

Pausa.

ELE Nós sabíamos aproveitar o tempo... Eu tinha pedido para te ver, assim que fiquei saben-

do que... Bem, que íamos nos conhecer... Me lembro desse dia, o primeiro encontro, esses

seus olhos, tão incrivelmente perscrutadores e tão belos sempre... Perguntei seu nome, você

disse alguma coisa como Carlomagna, comecei a rir, você riu, acabamos rindo os dois por um

bom tempo, não tínhamos nos falado, mas em compensação o riso dos dois foi nosso primeiro

selo de encontro.

Você deixou de rir e me olhou, acho que me disse não é necessário, te perguntei não é neces-

sário? Você disse que não é, eu te disse necessário o quê Você disse não é, pedi que falasse

claro que eu começava a me irritar, você disse que não tinha culpa se eu não entendia, que

você falava pouco, que ia falar muito pouco e que não se sentia responsável pelo que eu não

fora capaz de compreender, que eu não compreendia que te dissera nada, respondeu, incrível,

disse, eu você é incrível e comecei a rir a gargalhadas

você me feriu no orgulho

você me feriu no orgulho

não sabia se estávamos brincando nossa primeira brincadeira, não sabia se os dois participá-

vamos do mesmo jogo, como eu te sabia inteligente, suspeitava que você jogasse o jogo sozi-

nho e que eu fizesse o papel de imbecil, rindo sozinho. Parece que você disse que eu estava

nervoso ou alguma coisa assim, havia uma precisão em suas palavras, quer dizer, o que você

falava era muito exato.

Se falava sobre suas contestações, sobre suas respostas rápidas e lúcidas...

te confesso que estava prevenido, tinha me dito que o importante para estabelecer qualquer

tipo de conversação com você era não te olhar nos olhos, que eu falasse sem olhar para você

porque se o fizesse ia cair na sua rede, entende?

Suas pouquíssimas palavras, a necessidade de não ter que explicar nada

Seus Silêncios nos momentos mais difíceis, que poderiam aludir a tantas coisas...

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suas saídas insólitas que aprofundavam ainda mais o mistério de nossa existência

ELA Somos, fomos, você e eu, nossas histórias, nossas certezas.

Nossa maneira de sentir as coisas, disso não podemos nos arrepender

Cá você, lá eu,

é a distância que nos ajuda a nos reconhecer

que mistério é o que se cruza entre nós dois

fazendo-nos esquecer tanto passado quem sabe se somos tão diferentes

o que terá crescido tanto entre nós dois?

alguma coisa que não entendo, alguma coisa mais além que me faz

sentir ambígua e que me produz terror ter sentido piedade em algum momento

Como foi que surgiu, apesar de mim, isto da piedade entre os dois como piedade converter-

me em piedosa eu que nunca o fui

ELE Um domingo de tarde eu tinha ido te visitar e tinha levado torta de ricota que você gos-

tava, porque tinha me dito um dia

Você perguntou quem era meu pai

Meu pai?, disse eu, me ouviu bem, me disse eu não sei quem era meu pai, te disse, sabia, me

disse, e depois de provar a torta perguntou e tua mãe? Minha mãe, sim, eu conheci bem

Imaginava, disse você

curioso, do meu pai eu só tenho lembrança, uma lembrança que sempre me volta...

como se toda a relação com meu pai se revelasse através dessa lembrança

eu tinha perto de nove ou dez anos

tinha chegado em casa chorando, porque uns meninos tinham me batido na rua

meu pai perguntou que idade tinham os meninos

eu disse que eram maiores que eu, que tinham doze ou treze anos

me disse que queria vê-los, prometeu que não ia se meter com eles que só queria vê-los

fomos juntos caminhando até a praça onde a turma em geral se reunia. Estavam lá. Não nos

viram. Papai perguntou qual tinha sido o que tinha me batido.

Mostrei um deles o maior deles para mim, que tinha bigodes

meu pai me disse e esse idiota te bateu?

Vai lá e bate nele agora mesmo

eu não vou deixar que nenhum outro menino se meta

anda e fala para ele que você veio bater nele sozinho

eu olhei o menino de bigodes, me pareceu maior que nunca tive uma sensação física de debi-

lidade enorme, sentia que ia desmaiar, tremia de medo...

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Você tem que brigar com ele, anda, o garoto jogava bolinhas papai estava impaciente com

minha covardia, anda não seja cagão

anda vai e bate nele

e quanto mais papai insistia mais eu me aterrorizava.

Agora é o momento, anda e diz que quer brigar com ele sozinho, sem os amigos, que você

quer bater nele sozinho você vai ver como se encolhe, certeza que vai se encolher.

Eu não saía do terror, tinha a impressão de que era muito maior e muito mais forte do que eu,

mas papai insistia.

Para mim essa cena não acabava mais, foi eterna

é provável que tenha durado apenas um ou dois minutos

só sei que num momento disse pro meu pai

quero ir embora pra casa, não tenho coragem

Certeza que não tem? Me lembro de seus olhos. Sua expressão desembaraçada, sua frustração

infinita. Seu filho era um covarde.

Não podia acreditar, não tenho coragem é maior do que eu lhe disse...

não, não é maior, se você não tem coragem não se engane a você mesmo e vamos para casa...

e voltamos caminhando em Silêncio junto.

Ainda depois de muitos anos, sempre tive a sensação de que papai nunca me perdoou essa

covardia...

que marcou nossa relação para sempre. Esse dia permaneceu oculto entre nós

vergonhosamente silenciado e cúmplice.

Foi a marca por onde transitou nossa história.

ELA Não quer um copo de água? Não tem sede?

Paramos aqui ou continuamos?

Você está cansado.

Recomeçamos ou paramos por aqui?

É que um trabalho tão intenso deveria às vezes levar em conta a fadiga física.

Mais um pouco de água? Quanto faz que você não come?

Pausa.

Talvez fosse bom recomeçar, mas tomando em conta o trabalho já realizado.

Não é o caso de atirar tudo pela janela.

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Às vezes é tão fácil esquecer cada um dos detalhes, cada uma das intensidades, por isso acho

que cada momento que repetimos se transforma numa verdadeira descoberta.

Temos que procurar recordar cada detalhe dos acontecimentos com a mesma intensidade ori-

ginal, você não acha?

Primeiro transformamos experiências vividas em conceitos e com os conceitos nos afastamos

das intensidades.

O problema dos conceitos é o esquecimento das intensidades, o esquecimento da experiência

da vida, você não acha?

Falamos de coisas, de palavras que aludem a outras palavras, temos que voltar para as inten-

sidades,

Voltar a recordar tudo segundo a segundo com nossos corpos

que não se esqueça de nada,

nada de nada,

ELE Me falta ar

ELA Quanto?

ELE Quanto quê?

ELA Quanto de falta, um litro, dois litros, você sempre foi muito preciso, por que não há de

sê-lo agora?

Temos que reconstruir cada detalhe, cada instante,

senão se esquece tudo

é tão fácil esquecer...

ELE Pára que eu me sufoco, poderia te bater me falta ar

ELA Agora é o momento.

Talvez possamos reconstruir

as palavras nos servem para esquecer, muitas vezes tentamos falar para esquecer.

Lembra-se daquelas longas tertúlias nas quais falávamos para esquecer o que tinha aconteci-

do?

Cada frase que dizíamos sepultava cada acontecimento.

Tentávamos esquecer o que tinha crescido entre nós

é disso que se trata

de reconstruir tudo

o mistério de cada acontecimento no detalhe.

Por acaso se pode falar de tudo isso?

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Se pode falar da morte, da dor sem evocá-las com a proximidade dos nossos corpos, ou sim-

plesmente evocamos tudo isso para esquecer os horrores e para transformar o horror em pala-

vras que já não significam nada

Te sufoco, te faço mal? Passa o ar?

A traquéia ainda resiste?

Quantos sufocados?

Agora sim, estamos juntos, quantos com a cabeça no barro?

Sem poder respirar

Corpos nus, mutilados, agora sim estamos juntos

Agora sim, agora sim.

Podemos recordar juntos, você não acha?

Ela começa a assobiar uma canção, de improviso. Faz-se um longo silêncio, enquanto a can-

ção é assobiada.

ELE Não tem razão de ser, não faz sentido.

No momento oportuno você a assobiava.

Pensei que poderia ser o começo de alguma coisa entre você e eu

como um aviso que insinuava algum próximo encontro

pensava que o assobio podia corresponder a algum estímulo e que talvez cansada de você

mesma, de teu Silêncio, você começasse a assobiar como uma forma primitiva de diálogo.

Lembro minhas esperanças, minhas promessas, minhas expectativas.

Você continuava assobiando, sempre me olhando nos olhos, nunca deixou de me olhar

você começava a fazê-lo com mais força, com mais ritmo até que parou em uma longa pausa.

Eu, tremendo, perguntei se você queria dizer algo e você não respondeu, te ofereci um cigar-

ro, acho que já aceso, esperava algum gesto mínimo de reconhecimento, alguma coisa que me

permitisse intuir seu possível interesse, como uma trégua

minha mão e o cigarro ficaram no ar

você não respondeu nem pegou o cigarro e continuou assobiando

enquanto seus olhos me seguiam, apaguei o cigarro e pensei que talvez não tinha chegado

ainda a oportunidade do nosso encontro

Pausa.

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ELE Quem

ELA Ela

ELE Ela quem

ELA Quem ela

ELE Quem ela quem

ELA Ela quem quem

ELE Eu falo sério

ELA Quem quem ela

ELE Quem

ELA Ele

ELE Ele quem?

ELA Quem ele

ELE Quem ele quem

ELA Ele quem quem

ELE Eu falo sério

ELA Quem quem ele

ELE Quando

ELA No destempo

ELE Onde.

ELA Juan Arriveños, 341

ELE Quem

ELA Almoçando com o que sorri à direita

ELE À direita de quem

ELA Mais para trás Peter

ELE Como?

ELA Loiro com alguns cabelos brancos, é difícil distinguir os brancos dos loiros

ELE Quem

ELA Peter e Juan

ELE Onde?

ELA Se conheceram num churrasco de uma menina de sobrenome Ocampo

ELE Quem como?

ELA Boa gente, um tanto tímida, que se formou no Colégio Northlands de Olivos, de onde

surgiu Lea Fate, jogadora de hóquei do Sury

ELE Lea quê?

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ELA O irmão Paul Fate jogava rúgbi em Quilmes. A relação entre Ocampo Peter e Juan não

deixa de ser um mistério.

ELE Aqui há mistérios

ELA Ocampo tinha relação com Peter e Juan. Juan tinha relações com Ocampo. Peter tinha

relação só com Juan. Portanto Ocampo levava vantagem de conhecer os corpos de Peter e de

Juan. Juan conhecia o de Ocampo

ELE Mais devagar

ELA Peter conhecia o de Juan e o de Ocampo. Juan se apaixonou por Peter e Peter por O-

campo. Logo depois de separaram porque os três sofreram muito

ELE Não acredito. Quem?

ELA Ela

ELE Ela quem

ELA Quem ela

ELE Quem ela quem

ELA Ela quem quem

ELE Eu falo sério

ELA Quem quem ela

ELE Quem

ELA Ele quem?

ELE Quem ele

ELA Quem ele quem

ELE Quem quem

Eu falo sério

ELA (gritando) Quem quem ele

ELE De onde era?

ELA Quem

ELE Peter

ELA Da Irlanda do Norte

ELE Não acredito

comecemos outra vez

ELE Quantas vezes eu perguntei qual seria a melhor forma de te conhecer ou de me fazer

conhecer, qual seria a melhor colocação, a que menos pudesse confundir ou simplesmente

te incomodar, te encher, às vezes nos tornamos complicados

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não é fácil para mim falar agora, quer dizer, voltar a recordar se te digo que você foi minha

única obsessão antes de te conhecer, você tem que acreditar em mim, se te digo que hoje você

é minha obsessão você tem que acreditar em mim

seria absurdo que hoje eu tentasse perguntar além do que você pode me responder

e antes eu evitava te perguntar coisas que pudessem te chatear além do necessário...

mas hoje se trata de um vínculo, de uma história, de uma experiência humana compartilhada

com toda intensidade

disso não podemos nos arrepender

se alguma coisa pode definir nossa história

foi a intensidade do compartilhado.

É verdade que eu às vezes era brutalmente possessivo

queria conhecer até seus mais íntimos pensamentos

não podia tolerar que houvesse algo que eu desconhecesse

Talvez a intensidade estivesse nesses momentos em que pensava que havia algo seu que exis-

tisse fora de nós

Esta porção de sua intimidade que eu não podia alcançar nunca me desesperava

Talvez isso eu nunca tenha podido te dizer, mas a meu favor posso afirmar que eu não o sabia,

quer dizer, há muitas coisas da nossa relação que só agora eu posso compreender.

No princípio eu estava todo dominado pela obsessão de te conhecer

de me apoderar de tudo seu

de cada um dos teus interstícios

porque possuir-te não era só uma questão física, você bem sabe mas te possuir toda inteira,

tua intimidade, o mais incomunicável é essa sem dúvida minha verdade de hoje.

Você há de imaginar que esse clima me impedia todo tipo de sensatez

os anos, talvez um pouco mais de amadurecimento, o tempo que tudo cura

permitiram que eu me colocasse de outra maneira frente às nossas coisas

mas é curioso, se por um lado me tornei mais sensato e compreensivo, a zona de mistério que

ainda hoje não consigo desvendar me parece mais atormentadora agora do que antes

Porque antes todas nossas coisas pareciam que faziam parte do mistério.

Hoje eu posso chegar a compreender alguma coisa, me parece ainda mais incompreensível

aquilo que ainda não posso decifrar

ELA Necessidade de te contar coisas, palavras que crescem quando juntos

apesar de você e de mim

apesar de nossa história sempre tão diferente, tão horrivelmente diferente

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PAS-DE-DEUX – Eduardo Pavlovsky 12

só crescem

não por você e por mim

brotam sempre palavras onde só deveria existir o grande Silêncio das gritarias

cresce a lembrança apesar dos dois

que estranho espaço teremos inventado

que às vezes não posso deixar de te falar malgrado minha vontade...

ELE Tudo explode

A desesperança não é um diálogo triste, mas sim o estalo de um Silêncio ensurdecedor.

Isso que hoje eu sinto por você

Recorte de nossas caras... de nossos corpos.

Teu corpo aqui, o que você foi, o que você é

hoje aqui, o que te dizer, meu Deus, o que posso te dizer?

Te pedir desculpas por tudo?

Não, não posso te pedir desculpas, você não permitiria

continua sendo a mais forte!

Mas por quê?

O que tem o seu corpo que hoje você ainda é a mesma?

Com a mesma força que ontem

e eu tremendo na sua frente

sempre tremendo,

Isso que eu toco que é você e não é você

primeiro foram os corpos

até onde chegaram

os vazios... sem espaços

agora a calma das intensidades

é o vazio que não tolero...

“o horror era saber que a intensidade podia terminar de repente”, se lembra?

Aquilo...

Isto, sem outro nome que ISTO tão concreto

onde começo, onde termino

onde você começa, onde você termina

ELA Pensei que você me conhecia. Esse foi seu grande erro. Você pensava que tinha chegado

a me conhecer e agora sofre porque não sabe com quem esteve tanto tempo, tantas horas e aí é

onde seu pequeno tormento te fala de tantas horas equivocadas

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Tanto trabalho malfeito, algo que não estava previsto

você pensava que a intensidade faria desvendar até o mais intimo do que mais se preserva na

intensidade, sempre alguma coisa fica protegida

o indivisível no momento da gritaria e dali essa intimidade se agiganta porque o íntimo se

converte no último baluarte para se preservar.

Ali se joga a SOBREVIVÊNCIA

ELE Por que sempre as evasões ganhando em teu Silêncio?

E queria que você gritasse todas as verdades

que me olhasse mais em teu Silêncio...

Se você pudesse me insultar, quebrar a calma, perder o controle um momento, apenas...

se você pudesse falar de nossa história, de toda nossa história... da verdade da nossa história

compartilhada.

Você não falou antes e não quer dizer meu nome agora

quem sou eu então?

Você me olha nos olhos como antes me olhava quando eu te dizia a pergunta que nunca me

respondia.

Cheguei a te pedir que inventasse nomes que eu só necessitava um nome inventado só para

que você dissesse algo para ter um nome entre você e eu alguma coisa que nos pertencesse o

nome era tua entrega qualquer invento era legítimo e o importante chegou a ser que você jo-

gasse de ceder, nem sequer eu pedia que cedesses... que brincasse apenas...

só um invento uma brincadeira entre os dois cansei de te pedir realidades

mas você nem sequer me concedeu o “jogo” tua ética não permitiu não te peço muito... apenas

que me tenha como parte da sua história porque foi importante, não?

Nosso caso foi?...

Por que você não me denuncia filha da puta?

Confessa meu amorzinho grita bem alto para que todos ouçam quem sou eu, grita alto que eu

te fiz

você é sempre a mesma merda de antes e agora

te peço que diga a verdade

que conte o que eu te fiz

necessito isso para mim

é o meu triunfo

ELA Lá, nas nossas intensidades, focos de luz deformando nossos rostos, a maca em posição

inverossímil, a eletricidade e seu protagonismo, as pancadas secas, algodões e o cheiro de

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sangue coagulado, desafio aos limites de hoje e um pouco mais, a música que parecia nascer

dos nossos próprios corpos. Agonias, os suores frios, a morte espreitando, tudo isso reunido

entre nós, objetos com força própria, movimentos diferentes e ali nossos corpos, fazendo parte

de tudo isso. Nos enganamos quando pensamos que nós é que gerávamos as paixões e a ener-

gia, porque quando todo o dispositivo desaparece nos encontramos só com nossa nudez, você

e eu, descobrimos com horror que as paixões tão nossas faziam parte da cenografia do aconte-

cimento. Por isso hoje só você e eu enfrentamos o vazio da perda do sentido, e isso é insupor-

tável. Na minha memória só ficou disso tudo a lembrança dos movimentos.

ELE Me apoderar do seu corpo, dos buracos dos seus cheiros

cada zona do seu corpo que eu golpeava

sabia a cor de cada um dos hematomas

antes tinha algum sentido, diziam que eu não conseguiria te tirar nenhum nome nunca...

agora não te entendo você pode gritar meu nome para todos e outra vez prefere calar e não

falar

confessa filha da puta grita quem sou eu quem fui grita o que aconteceu entre nós não me ne-

gue mais.

Porque eu existi. Eu fui.

Por quê? Por quê? Por que não diz o meu nome?

ELA Não direi o seu nome. Você preferiria que eu te denunciasse, que contasse tudo

Sei que assim você se sentiria melhor orgulhoso de que todos soubessem que me bateu.

Você quer ser herói como todos os demais orgulhosos outra vez do que fizeram

orgulhosos de andar soltos desafiando e ameaçando sempre... outra vez heróis...

você é muito deturpado e não vou dizer nome você vai seguir esperando... esperando sem-

pre...

será esse seu pequeno tormento te conheço bem

é a única maneira de estar prisioneiro não vou falar

não te conheço você é irreconhecível mais um de todos ELES

você quer ser herói e se sente herói e se sente anônimo...

Vou ficar em Silêncio. Meu Silêncio é sua prisão. Meu Silêncio são os gritos em sua cabeça

ali ninguém vai poder te soltar

você sabe que não

ali você continuará esperando sempre

prisioneiro dos gritos prisioneiro dos pânicos

talvez algum dia quem sabe ou talvez nunca

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PAS-DE-DEUX – Eduardo Pavlovsky 15

porque agora o tempo é meu.

Não vou falar,

Não vou te fazer HERÓI nunca

você vai continuar esperando fechado no meu Silêncio.

Não vou dizer o seu nome...