4
Versão online: http://www.lneg.pt/iedt/unidades/16/paginas/26/30/185 Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial I, 513-516 IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014 ISSN: 0873-948X; e-ISSN: 1647-581X Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico Superior da Ilha do Pessegueiro (Portugal) Footprints of Iberian lynx (Lynx pardinus) in the Upper Pleistocene from Pessegueiro Island (Portugal) C. Neto de Carvalho 1 © 2014 LNEG – Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP Resumo: Numerosas pegadas fossilizadas de mamíferos e aves têm sido descritas nas formações eolianíticas plistocénicas do SO Alentejano, um registo até então completamente desconhecido. Aqui reporta-se a ocorrência de raras pegadas de felídeo de média dimensão, possivelmente atribuíveis ao lince-ibérico, recentemente considerado próximo da extinção em Portugal. Palavras-chave: Pegadas, Lince-ibérico, Plistocénico, SO Alentejo. Abstract: Many fossil footprints of mammals and birds have been described in Pleistocene-age eolianite formations from SW Alentejo, constituting an interesting record hitherto completely unknown. Here is reported the occurrence of rare footprints from a medium-sized felid probably attributed to the Iberian lynx, which was recently considered close to extinction in Portugal. Keywords: Footprints, Iberian lynx, Pleistocene, SW Alentejo. 1 Geopark Naturtejo da Meseta Meridional – European and Global Geopark under UNESCO. Serviço de Geologia da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova - Centro Cultural Raiano. Av. Joaquim Morão, 6060-101 Idanha-a-Nova (Portugal). E-mail: [email protected] 1. Introdução O Campo Dunar do Malhão (concelhos de Sines e Odemira) corresponde à única sequência eolianítica portuguesa onde, até agora, foram encontrados pelo menos 14 níveis com pegadas e trilhos de mamíferos e de aves (Neto de Carvalho, 2011). Entre estes registos, os de pegadas de elefantes e de pequenos mamíferos, nomeadamente de leporídeos, são particularmente importantes, atendendo à raridade de descrições a nível mundial (Neto de Carvalho, 2009). Do conteúdo icnológico conhecido no Campo Dunar do Malhão foram descritos aspectos comportamentais identificados em trilhos e pegadas de elefante-antigo, veado, lebre, raposa e possivelmente lobo, para além de trilhos de aves semelhantes a cegonhas ou garças (Neto de Carvalho, 2011). Potencialmente interessante é o facto da medida das pegadas de veado dos diversos níveis, compatível com a média da espécie Cervus elaphus actual, não parecer corroborar o estudo biométrico realizado por Cardoso (1993), que aponta para a existência de um morfotipo de pequeno tamanho durante o Würm recente. Contudo, o presente trabalho descreve a mais recente descoberta de raras pegadas atribuíveis a um felídeo, ocorrência considerada rara no registo fóssil mundial (Anton et al., 2004), com 43 referências bibliográficas registadas por McDonald et al. (2007). As unidades estratigráficas do Plistocénico aflorantes no litoral a Sul de Sines foram definidas por Pereira (1990). O Campo Dunar do Malhão aflora entre S. Torpes e a Pedra de D. Rodrigo, possuindo uma área emersa de 28 km 2 e uma largura máxima de 5 km (Pereira, 1990). A disposição da ilha do Pessegueiro, bem como de outros ilhéus e rochedos, mostra que o campo dunar se estendia muito para além da presente linha de costa. As dunas fósseis, por vezes ainda mantendo a sua forma original, são compostas sobretudo por arenito bioclástico com diferentes graus de cimentação carbonatada por processos pedogénicos, lateralmente descontínua. Estes paleossolos incipientes são identificados pela homogeneização dos fabrics sedimentares primários, descoloração e presença abundante de rizólitos e, em certos casos, por fósseis de gastrópodes terrestres. Estão definidos dois ciclos deposicionais-pedogenéticos desenvolvidos no Plistocénico Superior, i.e., durante os Estádios Isotópicos OIS6?-5 e OIS3-2? (Pereira & Angelucci, 2004). O eolianito de Aivados encontra-se bem desenvolvido na secção da ilha do Pessegueiro, com a sequência emersa a atingir 18 m de espessura. Este ilhéu localizado a cerca de 250 m da linha de costa na praia- mar, tem 340 m de comprimentos por 235 m de largura (Fig. 1). A sucessão também pode ser seguida na arriba do Forte da Ilha de Dentro à Praia de Aivados, que parece ter continuidade lateral com o Pessegueiro, com até 10 m de espessura, cobrindo em discordância a Formação de Aivados-Bugalheira. Esta é uma sequência predominantemente fluvial estruturada em paleocanais métricos evidenciando granoselecção positiva, que aqui culmina com um conglomerado de clastos sub- Artigo Curto Short Article

Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico ... · Pegadas de Lince-ibérico no Plistocénico de Portugal 515 As pegadas do gato-bravo (Felis silvestris) são mais

  • Upload
    dinhnhi

  • View
    219

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico ... · Pegadas de Lince-ibérico no Plistocénico de Portugal 515 As pegadas do gato-bravo (Felis silvestris) são mais

Versão online: http://www.lneg.pt/iedt/unidades/16/paginas/26/30/185 Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial I, 513-516 IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014 ISSN: 0873-948X; e-ISSN: 1647-581X

Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico Superior da Ilha do Pessegueiro (Portugal) Footprints of Iberian lynx (Lynx pardinus) in the Upper Pleistocene from Pessegueiro Island (Portugal) C. Neto de Carvalho1

© 2014 LNEG – Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP

Resumo: Numerosas pegadas fossilizadas de mamíferos e aves têm sido descritas nas formações eolianíticas plistocénicas do SO Alentejano, um registo até então completamente desconhecido. Aqui reporta-se a ocorrência de raras pegadas de felídeo de média dimensão, possivelmente atribuíveis ao lince-ibérico, recentemente considerado próximo da extinção em Portugal.

Palavras-chave: Pegadas, Lince-ibérico, Plistocénico, SO Alentejo. Abstract: Many fossil footprints of mammals and birds have been described in Pleistocene-age eolianite formations from SW Alentejo, constituting an interesting record hitherto completely unknown. Here is reported the occurrence of rare footprints from a medium-sized felid probably attributed to the Iberian lynx, which was recently considered close to extinction in Portugal.

Keywords: Footprints, Iberian lynx, Pleistocene, SW Alentejo.

1Geopark Naturtejo da Meseta Meridional – European and Global Geopark under UNESCO. Serviço de Geologia da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova - Centro Cultural Raiano. Av. Joaquim Morão, 6060-101 Idanha-a-Nova (Portugal).

E-mail: [email protected]

1. Introdução

O Campo Dunar do Malhão (concelhos de Sines e Odemira) corresponde à única sequência eolianítica portuguesa onde, até agora, foram encontrados pelo menos 14 níveis com pegadas e trilhos de mamíferos e de aves (Neto de Carvalho, 2011). Entre estes registos, os de pegadas de elefantes e de pequenos mamíferos, nomeadamente de leporídeos, são particularmente importantes, atendendo à raridade de descrições a nível mundial (Neto de Carvalho, 2009). Do conteúdo icnológico conhecido no Campo Dunar do Malhão foram descritos aspectos comportamentais identificados em trilhos e pegadas de elefante-antigo, veado, lebre, raposa e possivelmente lobo, para além de trilhos de aves semelhantes a cegonhas ou garças (Neto de Carvalho, 2011). Potencialmente interessante é o facto da medida das pegadas de veado dos diversos níveis, compatível com a média da espécie Cervus elaphus actual, não parecer corroborar o estudo biométrico realizado por

Cardoso (1993), que aponta para a existência de um morfotipo de pequeno tamanho durante o Würm recente. Contudo, o presente trabalho descreve a mais recente descoberta de raras pegadas atribuíveis a um felídeo, ocorrência considerada rara no registo fóssil mundial (Anton et al., 2004), com 43 referências bibliográficas registadas por McDonald et al. (2007).

As unidades estratigráficas do Plistocénico aflorantes no litoral a Sul de Sines foram definidas por Pereira (1990). O Campo Dunar do Malhão aflora entre S. Torpes e a Pedra de D. Rodrigo, possuindo uma área emersa de 28 km2 e uma largura máxima de 5 km (Pereira, 1990). A disposição da ilha do Pessegueiro, bem como de outros ilhéus e rochedos, mostra que o campo dunar se estendia muito para além da presente linha de costa. As dunas fósseis, por vezes ainda mantendo a sua forma original, são compostas sobretudo por arenito bioclástico com diferentes graus de cimentação carbonatada por processos pedogénicos, lateralmente descontínua. Estes paleossolos incipientes são identificados pela homogeneização dos fabrics sedimentares primários, descoloração e presença abundante de rizólitos e, em certos casos, por fósseis de gastrópodes terrestres. Estão definidos dois ciclos deposicionais-pedogenéticos desenvolvidos no Plistocénico Superior, i.e., durante os Estádios Isotópicos OIS6?-5 e OIS3-2? (Pereira & Angelucci, 2004).

O eolianito de Aivados encontra-se bem desenvolvido na secção da ilha do Pessegueiro, com a sequência emersa a atingir 18 m de espessura. Este ilhéu localizado a cerca de 250 m da linha de costa na praia-mar, tem 340 m de comprimentos por 235 m de largura (Fig. 1). A sucessão também pode ser seguida na arriba do Forte da Ilha de Dentro à Praia de Aivados, que parece ter continuidade lateral com o Pessegueiro, com até 10 m de espessura, cobrindo em discordância a Formação de Aivados-Bugalheira. Esta é uma sequência predominantemente fluvial estruturada em paleocanais métricos evidenciando granoselecção positiva, que aqui culmina com um conglomerado de clastos sub-

Artigo Curto Short Article

Page 2: Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico ... · Pegadas de Lince-ibérico no Plistocénico de Portugal 515 As pegadas do gato-bravo (Felis silvestris) são mais

514 C. Neto de Carvalho / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial I, 513-516

angulosos, suportados por uma matriz arenosa, do tipo praia emersa (Pereira, 1990). Ao nível da praia e na base da arriba ocorre ainda unidade lenticular arenítica grosseira com abundantes fósseis marinhos sobrejacente à Formação de Aivados-Bugalheira, que corresponderá à Formação de Monte Figueira, sobre a qual também assenta a sequência em estudo.

O eolianito encontra-se densamente fracturado e é composto por três unidades calcareníticas que se encontram bem expostas na arriba ONO do pequeno forte do Pessegueiro, no seu fosso e na pedreira do séc. XVI localizada a Norte do ilhéu. As unidades encontram-se separadas por superfícies de reactivação, sobretudo por mudança de orientação dos foresets e da sua inclinação. A unidade inferior possui mais de 5 m de espessura e é composta por um arenito de grão médio a grosseiro organizado em feixes de estratificação entrecruzada planar. Foresets com 1-1,2 m mostram inclinações até 34º. As laminações têm menos de 2 cm de espessura e podem desenvolver ripples aerodinâmicas assimétricas, com cristas longas e paralelas, de baixa amplitude e baixo comprimento de onda. A fitoturbação é intensa mas irregularmente distribuída, por vezes associada a protossolos. O tamanho, orientação e distribuição dos icnofábricas de rizólitos permitem interpretar um coberto vegetal do tipo herbáceo-arbustivo com a ocorrência ocasional de árvores, desenvolvido paralelamente à frente de duna (Neto de Carvalho et al., 2003). A segunda unidade tem até 11 m de espessura e apresenta uma granulometria semelhante à unidade anterior. A base é planar, de origem erosiva. A laminação entrecruzada tem uma inclinação inferior a 20º e as ripples aerodinâmicas tornam-se mais comuns. A persistência lateral de uma laminação entrecruzada de mais baixo ângulo reflecte uma deposição em áreas interdunares extensas e estáveis. A fitoturbação é mais densa e composta sobretudo por estruturas verticais profundas que revelam um coberto vegetal de tipo arbustivo que cobria na totalidade o sistema dunar costeiro (Neto de Carvalho et al., 2003). A última unidade tem pouco mais de 1,5 m de espessura e é formada por laminação entrecruzada levemente ondulada. A fitoturbação torna-se muito mais esparsa e é caracterizada por finas estruturas horizontais, mostrando uma mudança do coberto vegetal para um domínio herbáceo desenvolvido sobre dunas móveis. Os ventos construtores das dunas sopraram predominantemente dos quadrantes NO e S, produzindo cordões dunares paralelos resultantes da coalescência lateral de pequenas dunas parabólicas orientados segundo a direcção OSO-ENE e SO-NE (Pereira, 1990). Os trilhos de vertebrados são frequentemente encontrados nas duas unidades inferiores. O eolianito de Aivados é mais recente do que 42519±1263 BP (Pereira & Angelucci, 2004). Este eolianito estará associado à regressão würmiana, possivelmente ao evento de flutuação climática global “Heinrich” H4, com idades centradas em torno dos 35000 anos (Brugal & Valente, 2007).

Fig. 1. Localização das pegadas em estudo no contexto icnológico da duna fóssil da Ilha do Pessegueiro. Fig. 1. Footprints location in the ichnological realm of the Pessegueiro Island fossil dune.

2. As pegadas do felino

O eolianito de Aivados e, particularmente, a Ilha do Pessegueiro, mostra nas suas arribas diversos níveis com pegadas de grandes cervídeos (Neto de Carvalho et al., 2003), com novos achados a salientar este predomínio (Fig. 2). Junto da pedreira que aqui existiu até o início do séc. XVII, observa-se grande bloco cuja laminação inclina 30º para Norte. A sua superfície mostra-se intensamente bioturbada por delicadas pegadas tridáctilas de aves e por subimpressões em casco bífido, alinhadas em trilho, provocadas por animais de muito maior peso, neste caso o veado Cervus elaphus (Fig. 3c). Na mesma superfície ocorrem quatro pegadas sem padrão aparente, mas próximas e de dimensões aproximadas, com as características das pegadas de felídeos. Cada pegada, de contorno circular e digitígrada, com cerca de 5 cm de diâmetro, mostra marcas de quatro dígitos, sem garras, assimétricos. Estas distribuem-se em torno da impressão da almofada central que tem uma forma trapezoidal e é anteriormente indentada (Fig. 3d).

A dimensão e forma das pegadas correspondem claramente às de um felídeo de média dimensão. Atendendo ao registo de felídeos no Plistocénico Superior português (Cardoso, 1993, 1996, 1997; Davis, 2002), excluem-se facilmente os grandes felídeos adultos, o leopardo (Panthera pardus – comprimento médio de pegada de 9 cm, de acordo com Stuart & Stuart, 1994) e o leão-das-cavernas (Panthera leo spelaea – comprimento médio de pegada de 14 cm, de acordo com Koenigswald et al., 1996), mas mais dificilmente as suas formas juvenis. No início do Plistocénico Superior estes hipercarnívoros e as hienas terão sido progressivamente substituídos pelo trio lince/lobo/raposa (Brugal & Valente, 2007), que parece estar presente, através das suas pegadas, no Campo Dunar do Malhão (Neto de Carvalho, 2011, e abaixo). Aliás, os restos de lince no Plistocénico em Portugal reportam-se ao Würm, na sua maioria em jazidas com idades compatíveis com o Würm recente (Cardoso, 1993, 1996).

Page 3: Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico ... · Pegadas de Lince-ibérico no Plistocénico de Portugal 515 As pegadas do gato-bravo (Felis silvestris) são mais

Pegadas de Lince-ibérico no Plistocénico de Portugal 515

As pegadas do gato-bravo (Felis silvestris) são mais pequenas e simétricas, com 4 cm de comprimento por 3,5 cm de largura. As pegadas de lince apresentam os dígitos intermédios com comprimentos diferentes entre si, um importante detalhe para a diferenciação destas em relação às pegadas de lobo e de gato (Fig. 2e). O lince-euroasiático (Lynx lynx) é maior em quase o dobro do tamanho do lince-ibérico (maior do que L. pardinus spaeleus que existiu no Plistocénico Superior ibérico; veja-se Cardoso, 1996) e a sua área de distribuição parece não ter ultrapassado o Norte da Península Ibérica. De facto, dados ecológicos e biogeográficos sugerem que o lince-ibérico encontrou no Sul da Península Ibérica refúgio durante as glaciações, como o fizeram numerosas outras espécies (e.g. Hewitt, 1996; Brugal & Valente, 2007), expandindo-se até à França Central apenas durante os períodos quentes (Johnson et al., 2004). Foi determinada uma baixa variabilidade genética para o lince-ibérico nos últimos 50 mil anos que poderá ter resultado de um pequeno número de efectivos fêmeas nas populações ao longo do tempo (Rodríguez et al., 2011).

A dimensão das pegadas, semelhante à do Lynx pardinus actual adulto (valores médios comprimento: largura em areia, de 4,93:5 cm para a mão e de 5,31:4,4 cm para o pé – Delibes, 1980), as marcas bem definidas dos quatro dígitos assimétricos sem evidências de garras distribuídos em torno da almofada principal, enquadra-se bem na descrição da icnoespécie Felipeda lynxi Panin & Avram, 1962 (Fig. 2f).

O lince-ibérico surgiu no Plistocénico do Sudoeste europeu por divergência filogenética do lince-euroasiático a partir do ancestral (L. issiodorensis) no intervalo 1,68-1,53 milhões de anos, de acordo com análises do ADN mitocondrial (Johnson et al., 2004). É um caçador solitário, de hábitos crepusculares, e que se alimenta quase exclusivamente de lagomorfos, em particular Oryctolagus cuniculus, presa na qual se especializou. No entanto, sabe-se que esta e outras espécies do género Lynx, em particular o lince-europeu, também se podem alimentar de roedores, aves como as perdizes e de crias de cervídeos, como o veado e a corça. As pegadas que se atribuem a esta espécie ocorrem na Ilha do Pessegueiro no mesmo nível com trilhos e pegadas de aves e de veados, suas potenciais presas. Dada a preferência do lince-ibérico por matos e bosques densos para refúgio e pastagens abertas para a caça, o ambiente dunar em que ocorrem estas pegadas de felídeo, paralelizável com aquele onde ocorre a actual população costeira do Parque Nacional de Doñana e com o próprio litoral alentejano onde até meados do séc. XX subsistiu este animal, parece confirmar a presença do lince-ibérico no Pessegueiro, em busca de alimento, durante o Plistocénico Superior.

O lince-ibérico é hoje considerado o felino mais ameaçado de extinção no mundo, tendo sido recentemente classificado pela IUCN como criticamente ameaçado, por redução de habitat, aumento da fragmentação das populações e forte redução

demográfica (Johnson et al., 2004). Actualmente existem duas populações reprodutoras em condições naturais, ambas em Espanha (Andujar-Cardeña e Doñana). Em Portugal, a situação actual do lince-ibérico foi considerada como próxima da extinção (Sarmento et al., 2009).

Fig. 2. Registo de novas ocorrências de pegadas na região da Ilha do Pessegueiro e Praia dos Aivados (Sines). a) Deformação do fabric sedimentar primário provocado pela passagem de cervídeos; Praia dos Aivados. b) Pegadas de veados em positivo (parcialmente preenchidas) em laje solta proveniente da mesma arriba. c) Laje fortemente bioturbada por aves e veados, onde são encontradas pelo menos quatro pegadas de felídeo; Pedreira na Ilha do Pessegueiro. d) Pormenor de uma das pegadas mais bem preservadas, mostrando as quatro marcas de dígitos assimétricos e a impressão da almofada central com forma trapezoidal e indentação anterior (parcialmente preservada); largura máxima aprox. 5 cm. e) Modelo do padrão de pegadas do lince-ibérico actual (Parque Nacional de Monfrague, Extremadura); escala em papel aprox. 4 cm. f) Pegada isolada evidenciando dígitos intermédios assimétricos. Fig. 2. New footprints found in the Pessegueiro islet and Aivados beach (Sines). a) Deformation of the primary sedimentary fabric due to trampling by cervids; Praia dos Aivados. b) Deer footprints as (partially filled) positives coming from the same cliff as in a. c) Horizon strongly trampled by birds and deers, where 4 felid footprints are also found; quarry in the south of Pessegueiro islet. d) Detail of one of the best preserved footprints, showing the four asymmetric digit imprints surrounding the central pad impression with a trapezoidal shape indented in the front part (partially preserved); maximum width appr. 5 cm. e) Cast of footprint pattern in recent Iberian lynx (Monfrague National Park, Extremadura); paper stripe as scale appr. 4 cm. f) Isolated footprint showing asymmetrical middle toes.

Page 4: Pegadas de lince-ibérico (Lynx pardinus) no Plistocénico ... · Pegadas de Lince-ibérico no Plistocénico de Portugal 515 As pegadas do gato-bravo (Felis silvestris) são mais

516 C. Neto de Carvalho / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial I, 513-516

3. Valorização de um património geológico único em Portugal

Até há uma década atrás os indícios de trânsito de vertebrados eram apenas reconhecidos fundamentalmente em trilhos e pegadas de dinossauros que ocorrem com alguma abundância, excepcional preservação e condições no Jurássico e no Cretácico das bacias Lusitânica e do Algarve. Os trilhos e pegadas do Campo Dunar do Malhão constituíram-se como o primeiro registo do comportamento locomotor de vertebrados (mamíferos e aves) no Cenozóico português. No entanto, parte significativa deste relevante património geológico resulta e encontra-se ameaçado pelo recuo das arribas eolianíticas, ocorrendo em blocos soltos e/ou sob a acção das marés e das tempestades. Não obstante e apesar de se encontrarem na área do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, várias tentativas infrutíferas até ao momento foram realizadas, a última das quais com um trabalho notável de divulgação feito pela National Geographic Portugal, no sentido de sensibilizar as autoridades locais para a necessidade urgente de resgate e salvaguarda de um registo paleontológico que é relativamente raro a nível mundial e que apresenta algumas características que o tornam mesmo único. A sua importância didáctica numa óptica de conservação da biodiversidade deve também ser valorizada para as escolas locais e para os muitos milhares de visitantes que percorrem a zona anualmente, uma vez que testemunha a passagem de animais que se extinguiram definitivamente com as profundas alterações climáticas que se deram no último Glacial, ou que aqui viveram até muito recentemente e que acabaram também por desaparecer pela pressão humana crescente sobre os habitats naturais.

Referências

Anton, M., López, G., Santamaria, R., 2004. Carnivore trackways from the Miocene site of Salinas de Añana (Alava, Spain). Ichnos, 11, 1-14.

Brugal, J.-P., Valente, M.J., 2007. Dynamic of large mammalian associations in the Pleistocene of Portugal. In: N.F. Bicho (Ed.). From the Mediterranean basin to the Portuguese Atlantic shore: papers in honor of Anthony Marks. Universidade Algarve, Faro, 15-28.

Cardoso, J.L., 1993. Contribuição para conhecimento dos grandes mamíferos do Plistocénico superior de Portugal. Tese doutoramento, Universidade Nova de Lisboa (não publicada) 485 p.

Cardoso, J.L., 1996. Les Grands Mammifères du Pléistocène Supérieur du Portugal. Essai de synthèse. Geobios, 29(2), 235-250.

Cardoso, J.L., 1997. As grutas, os grandes mamíferos e o homem paleolítico: uma aproximação integrada ao território português. Estudos do Quaternário, 1, 13-23.

Davis, S.J.M., 2002. The mammals and birds from the Gruta do Caldeirão, Portugal. Revista Portuguesa de Arqueologia, 5(2), 29-98.

Delibes, M., 1980. El lince ibérico. Ecología y comportamiento alimenticios en el Coto Doñana, Huelva. Doñana, Acta Vertebrata, 7(3), 1-128.

Hewitt, G.M., 1996. Some genetic consequences of ice ages, and their role in divergence and speciation. Biological Journal of the Linnean Society, 58, 247-276.

Johnson, W.E., Godoy, J.A., Palomares, F., Delibes, M., Fernandes, M., Revilla, E., O’Brien, S.J., 2004. Phylogenetic and Phylogeographic analysis of Iberian lynx populations. Journal of Heredity, 95(1), 19-28.

Koenigswald, W., Walders, M., Sander, M., 1996. The Upper Pleistocene tracksite Bottrop-Welheim (Germany). Acta Zoologica Cracoviensia., 39, 235-244.

McDonald, H.G., White, R.S., Lockley, M.G., Mostoe, G.E., 2007. An indexed bibliography of Cenozoic vertebrate tracks. In: S. Lucas, J.A. Spielmann, M,G. Lockley, (Eds). Cenozoic Vertebrate Tracks and Traces. New Mexico Museum of Natural History and Science Bulletin, 42, 275-302.

Neto de Carvalho, C., 2009. Vertebrate tracksites from the Mid-Late Pleistocene eolianites of Portugal: the first record of elephant tracks in Europe. In: G. Pienkowski, A.J. Martin, C.A. Meyer (Eds). Geological Quarterly, 53(4), 407-414.

Neto de Carvalho, C., 2011. Pegadas de vertebrados nos eolianitos do Plistocénico Superior do Sudoeste Alentejano, Portugal. Comunicações Geológicas, 98, 99-108.

Neto de Carvalho, C., Saltão, S., Ramos, J.C., Cachão, M., 2003. Pegadas de Cervus elaphus nos eolianitos plistocénicos da ilha do Pessegueiro (SW Alentejano, Portugal). Ciências da Terra, nº esp. 5, A36-A40.

Panin, N., Avram, E., 1962. Nouvelles empreintes de vertebres dans le Miocene de la zone subcarpathique roumaine. Studii i Cercetãri de Geologie, 7(3-4), 455-484.

Pereira, A.R., 1990. A plataforma litoral do Alentejo e Algarve Ocidental. Estudo de Geomorfologia. Tese doutoramento, Universidade Lisboa (não publicada), 450 p.

Pereira, A.R., Angelucci, D.E., 2004. Formações dunares no litoral português, do final do Plistocénico e inícios do Holocénico, como indicadores paleoclimáticos e paleogeográficos. In: A.A. Tavares, M.J. Ferro Tavares, J.L. Cardoso, (Eds). Evolução geohistórica do litoral português e fenómenos correlativos: História, Arqueologia e Climatologia. Universidade Aberta, Lisboa, 221-256.

Rodríguez, R., Ramírez, O., Valdiosera, C.E., García, N., Alda, F., Madurell-Malapeira, J., Marmi, J., Doadrio, I., Willerslev, E., Götherström, A., Arsuaga, J.L., Thomas, M.G., Lalueza-Fox, C., Dalén, L., 2011, 50,000 years of genetic uniformity in the critically endangered Iberian lynx. Molecular Ecology, 20(18), 3785-3795.

Sarmento, P., Cruz, J., Monterroso, P., Tarroso, P., Ferreira, C., Negrões, N., Eira, C., 2009. Status survey of the critically endangered Iberian lynx Lynx pardinus in Portugal. European Journal of Wildlife Research, 55(3), 247-253.

Stuart, C., Stuart, T., 1994. A field guide to the tracks and signs of Southern and East African wildlife. Tutorial Press, Zimbabwe, 310 p.