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223 Rev. APS. 2014 abr/jun; 17(2): 223 - 228. RESUMO Este estudo teve por objetivo identificar o perfil epide- miológico dos usuários de benzodiazepínicos residentes em áreas adscritas à Unidade de Saúde da Família da ci- dade do Recife. Foram avaliados todos os prontuários dos usuários de acordo com o banco de dados de saúde mental, pertencente às equipes de referência de uma uni- dade de Saúde da Família em 2011. Os resultados obtidos indicaram a utilização de benzodiazepínicos por 71% de mulheres com idade média de 52,45 anos, que faziam o uso crônico de ansiolíticos de meia-vida longa por mais de 12 meses (94,5%), indicado principalmente para insônia (42,6%), com prescrição inicial pelo médico clínico geral (66,2%). Constatou-se o problema do uso do grupo tera- pêutico estudado em mulheres idosas, em uma propor- ção significante, com continuidade do uso que vai além de uma finalidade específica e com um tempo indeterminado. PALAVRAS-CHAVE: Atenção Primária à Saúde; Uso de Benzodiazepínicos; Ansiolíticos. INTRODUÇÃO A Atenção Primária à Saúde (APS) representa um complexo conjunto de conhecimento e ações, que deman- da uma intervenção ampla em diversos aspectos para que se possa ter efeito positivo sobre a qualidade de vida da população. Assim, a APS deve ter estratégias importantes, com ações voltadas à promoção e à proteção da saúde tanto individual como coletiva. ABSTRACT This study aimed to describe the epidemiological profile of benzodiazepine users among residents in areas covered by a basic family health unit in the city of Recife. Medical records were evaluated for all users according to the mental health database belonging to specialized teams of a Family Health unit, in 2011. The results indicated the use of benzodiazepines by 71% of women, with a mean age of 52.45 years, who were chronic users of long half-life anxiolytics for more than 12 months (94.5%), prescribed mainly for insomnia (42.6%), with initial prescription by a general practitioner (66.2%). The problem with the use of the therapeutic group studied was demonstrated in elderly women, in a significant proportion, where continued use goes beyond a specific purpose and has an indeterminate time frame. KEYWORDS: Primary Health Care; Use of Benzodiazepines; Anti-Anxiety Agents. A Estratégia de Saúde da Família (ESF), vertente brasi- leira da APS, caracteriza-se como a porta de entrada prio- ritária do sistema de saúde, constitucionalmente fundado no direito à saúde e na equidade do cuidado e, além disso, hierarquizado e regionalizado, como é o Sistema Único de Saúde (SUS). Essa estratégia vem provocando, de fato e de direito, um importante movimento de reorientação do modelo de atenção à saúde no Brasil. 1 Com a ESF, iniciou-se, no país, um novo modelo de PERFIL DE USUÁRIOS DE BENZODIAZEPINICOS NO CONTEXTO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE Profile of benzodiazepine users in the context of Primary Health Care Aline Cavalcante de Lira 1 , José Gildo de Lima 2 , Maria Nelly S. de Carvalho Barreto 3 , Telma Maria Albuquerque Gonçalves de Melo 4 1 Aline Cavalcante de Lira, farmacêutica pela Faculdade Maurício de Nassau Recife (2008) e Residência Multiprofissional em Saúde da Família. E-mail: [email protected] 2 José Gildo de Lima, professor tutor da Residência Multiprofissional em Saúde da Família da UFPE 3 Maria Nelly S. de Carvalho Barreto, farmacêutica da Prefeitura da Cidade do Recife. Mestre em Saúde Pública pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães 4 Telma Maria Albuquerque Gonçalves de Melo, psicóloga, sanitarista. Mestre em Saúde Pública

Perfil de Usuários de Benzodiazepínicos no Contexto da Atenção Básica

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Pesquisa sobre o perfil de usuários de Benzodiazepínicos na atenção básica.

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  • 223Rev. APS. 2014 abr/jun; 17(2): 223 - 228.

    PERFIL DE USURIOS DE BENZODIAZEPINICOS NO CONTEXTO DA ATENO PRIMRIA SADE

    RESUMO

    Este estudo teve por objetivo identificar o perfil epide-miolgico dos usurios de benzodiazepnicos residentes em reas adscritas Unidade de Sade da Famlia da ci-dade do Recife. Foram avaliados todos os pronturios dos usurios de acordo com o banco de dados de sade mental, pertencente s equipes de referncia de uma uni-dade de Sade da Famlia em 2011. Os resultados obtidos indicaram a utilizao de benzodiazepnicos por 71% de mulheres com idade mdia de 52,45 anos, que faziam o uso crnico de ansiolticos de meia-vida longa por mais de 12 meses (94,5%), indicado principalmente para insnia (42,6%), com prescrio inicial pelo mdico clnico geral (66,2%). Constatou-se o problema do uso do grupo tera-putico estudado em mulheres idosas, em uma propor-o significante, com continuidade do uso que vai alm de uma finalidade especfica e com um tempo indeterminado.

    PALAVRAS-CHAVE: Ateno Primria Sade; Uso de Benzodiazepnicos; Ansiolticos.

    INTRODUO

    A Ateno Primria Sade (APS) representa um complexo conjunto de conhecimento e aes, que deman-da uma interveno ampla em diversos aspectos para que se possa ter efeito positivo sobre a qualidade de vida da populao. Assim, a APS deve ter estratgias importantes, com aes voltadas promoo e proteo da sade tanto individual como coletiva.

    ABSTRACT

    This study aimed to describe the epidemiological profile of benzodiazepine users among residents in areas covered by a basic family health unit in the city of Recife. Medical records were evaluated for all users according to the mental health database belonging to specialized teams of a Family Health unit, in 2011. The results indicated the use of benzodiazepines by 71% of women, with a mean age of 52.45 years, who were chronic users of long half-life anxiolytics for more than 12 months (94.5%), prescribed mainly for insomnia (42.6%), with initial prescription by a general practitioner (66.2%). The problem with the use of the therapeutic group studied was demonstrated in elderly women, in a significant proportion, where continued use goes beyond a specific purpose and has an indeterminate time frame.

    KEYWORDS: Primary Health Care; Use of Benzodiazepines; Anti-Anxiety Agents.

    A Estratgia de Sade da Famlia (ESF), vertente brasi-leira da APS, caracteriza-se como a porta de entrada prio-ritria do sistema de sade, constitucionalmente fundado no direito sade e na equidade do cuidado e, alm disso, hierarquizado e regionalizado, como o Sistema nico de Sade (SUS). Essa estratgia vem provocando, de fato e de direito, um importante movimento de reorientao do modelo de ateno sade no Brasil.1

    Com a ESF, iniciou-se, no pas, um novo modelo de

    PERFIL DE USURIOS DE BENZODIAZEPINICOS NO CONTEXTO DA ATENO PRIMRIA SADEProfile of benzodiazepine users in the context of Primary Health Care

    Aline Cavalcante de Lira1, Jos Gildo de Lima2,Maria Nelly S. de Carvalho Barreto3, Telma Maria Albuquerque Gonalves de Melo4

    1 Aline Cavalcante de Lira, farmacutica pela Faculdade Maurcio de Nassau Recife (2008) e Residncia Multiprofissional em Sade da Famlia. E-mail: [email protected] 2 Jos Gildo de Lima, professor tutor da Residncia Multiprofissional em Sade da Famlia da UFPE3 Maria Nelly S. de Carvalho Barreto, farmacutica da Prefeitura da Cidade do Recife. Mestre em Sade Pblica pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes4 Telma Maria Albuquerque Gonalves de Melo, psicloga, sanitarista. Mestre em Sade Pblica

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    Aline Cavalcante de Lira, Jos Gildo de Lima, Maria Nelly S. de Carvalho Barreto, Telma Maria Albuquerque Gonalves de Melo

    ateno primria no mbito do SUS, que visa, alm do aspecto curativo da doena e de sua reabilitao, a promo-o e a proteo sade. Desse modo, o indivduo deixa de ser o objeto nico da ao para ser visto como um su-jeito integrante de uma famlia, de um domiclio, de uma comunidade, contextualizando-o ainda sob os aspectos sociais, econmicos, culturais e ambientais, garantindo, dessa forma, a integralidade da ateno.1

    O uso irracional de medicamentos uma condio frequente na sociedade e que alcana papel central na te-raputica contempornea. A importncia desse tema fica ressaltada ao se levar em conta o momento atual do SUS, que investe na ampliao e reorientao da rede bsica por meio da ESF, podendo ser positivo, sendo uma chance para a reconstruo da autonomia, ou negativo, simulta-neamente, constituindo uma nova e poderosa fora medi-calizadora.2, 3

    A medicalizao social, visvel a todos que tm con-tato com a ateno sade, crescente e inexaurvel. A demanda por uma prescrio medicamentosa para todos os tipos de problemas, queixas, dores e incmodos faz que esse tema seja abrasador na prtica e no cotidiano dos servios do SUS, principalmente nas equipes da ESF. Aliado a isso, nos dias de hoje, est presente o fato de ocupar um lugar importante no jogo de interesses do po-der econmico e das consultas mdicas, resultando quase sempre numa prescrio, decorrente do modelo centrado na doena, para o qual o medicamento tornou-se o prin-cipal instrumento utilizado. 2, 3

    O consumo de frmacos pela populao em geral apresenta um crescente aumento, principalmente quan-do se trata de uso indiscriminado de ansiolticos e, con-sequentemente, trazendo uma preocupao maior com o fenmeno da dependncia. Entre eles, os benzodiazep-nicos (BDZ) encontram-se entre os mais consumidos em todo o mundo. Em 2004, Carvalho e Dimenstein mostra-ram que o consumo desses medicamentos tornou-se um problema complexo de sade pblica, atingindo grandes dimenses sociais.4-6

    Aps a dcada de 1960, no inicio de sua comercializa-o, os BDZ ligeiramente assumiram o lugar dos barbit-ricos, tornando-se os produtos farmacuticos mais utili-zados com propriedades sedativas, ansiolticas, hipnticas, miorrelaxantes e anticonvulsivantes na sociedade. Isso ocorreu em virtude do menor potencial de causar depen-dncia com maior ndice teraputico, isto , garantia de uma maior segurana em sua utilizao em comparao com outros grupos de ansiolticos.4-6

    comprovado que os BDZ devem ser usados no tra-tamento da ansiedade em curto prazo, no devendo exce-der mais que quatro semanas. Eles esto entre os frmacos

    mais prescritos a idosos e a mulheres, em uma proporo duas vezes maior do que aos homens. No entanto a conti-nuidade do uso est indo alm de uma finalidade especfi-ca e com um tempo indeterminado em que o medicamen-to passa a ocupar um lugar fundamental e imprescindvel na vida dos indivduos, com uma forte interao entre gnero, envelhecimento e servios de sade. 6-8

    Desse modo, este estudo serviu para indicar o cen-rio da prtica do uso de benzodiazepnicos, remetendo reflexo dos princpios da Ateno Primria e suas con-tribuies para ampliao e a qualificao do cuidado s pessoas no territrio, uma vez que a promoo da sade passa a ser elencada como uma das estratgias de reorien-tao do novo modelo assistencial. Dessa forma, busca-se romper com a lgica vigente de um modelo de sade at ento focado na hospitalizao e medicalizao da vida.

    Como nosso pas carece de dados a respeito da utili-zao desse grupo farmacolgico, em especial para a po-pulao que se utiliza de unidades bsicas de sade, ponto chave no atendimento primrio, esta pesquisa tem como objetivo identificar o perfil epidemiolgico dos usurios de benzodiazepnicos residentes em reas adscritas Uni-dade de Sade da Famlia da cidade do Recife, especifican-do as caractersticas dos usurios segundo as variveis s-ciodemogrficas, comportamentos relacionados a prticas de atividade fsica e s prticas medicamentosas.

    MATERIAL E MTODOS

    Trata-se de um estudo quantitativo do tipo descritivo observacional, que tem por objetivo determinar a distribui-o das condies relacionadas sade, segundo o tempo, o lugar e/ou as caractersticas dos indivduos, com facilida-de de execuo e baixo custo relativo. 9

    O estudo foi desenvolvido na Unidade de Sade da Famlia Chico Mendes e Ximbor no Distrito Sanitrio (DS) V, na cidade do Recife, que atualmente cobre cerca de 5500 pessoas, de acordo com o Sistema de Informao da Ateno Bsica (SIAB), residentes nas comunidades Chi-co Mendes e Ximbor. Esse distrito do Recife apresenta uma das mais baixas coberturas de Equipes de Sade da Famlia do municpio, apresentando alto nvel de pobreza instalado, o que ocasiona problemas de ordem social, eco-nmica e ambiental. As comunidades de Chico Mendes e Ximbor, juntamente com duas comunidades do Caote e Linha Nova, compem a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) do bairro de Caote, localizado na Regio poltico--administrativa (RPA) V, microrregio 5.2, a 7,83 quilme-tros do Marco Zero do municpio do Recife.10

    A unidade composta por equipe multiprofissional de enfermeiras, mdicas, tcnicos de enfermagem e agentes

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    PERFIL DE USURIOS DE BENZODIAZEPINICOS NO CONTEXTO DA ATENO PRIMRIA SADE

    comunitrios de sade (ACS), alm da equipe de sade bu-cal (dentista e tcnico de sade bucal). Tambm recebe resi-dentes multiprofissionais de sade da famlia da Universida-de Federal de Pernambuco (UFPE) que atuam em conjunto com os profissionais das equipes de referncia, comparti-lhando e apoiando as prticas em sade nos territrios sob responsabilidade das equipes, de acordo com as Diretrizes dos Ncleos de Apoio Sade da Famlia (NASF).

    Atualmente, a USF conta com duas equipes de refe-rncia que oferecem os seguintes servios: acolhimento, atendimento em puericultura, sade da mulher, clnica ge-ral, entre outros. Tambm presta servios de aplicao de vacinas, curativos, aplicao de injetveis, de nebulizao e de distribuio de medicamentos do componente bsi-co e estratgico da Assistncia Farmacutica. No entanto, os BDZ, que so medicamentos sob controle especial de acordo com a Portaria n. 344/98 da Secretaria de Vigiln-cia em Sade do Ministrio da Sade, so dispensados para os usurios dessa unidade na Farmcia da Famlia da Poli-clnica Agamenon Magalhes (unidade situada no bairro de Afogados, mesmo Distrito Sanitrio), apesar de exigirem condies especiais de dispensao e armazenamento.11

    Para este estudo, foram includos os usurios que fa-zem uso de benzodiazepnicos de ambos o sexo, residen-tes em reas adscritas USF. A seleo foi feita no banco de dados de sade mental dos usurios de psicotrpicos realizado pelas equipes para acompanhamento no territ-rio, e foram selecionados apenas os usurios maiores de 18 anos que utilizam os frmacos estudados.

    Os dados foram coletados de todos os usurios que apresentaram o uso de benzodiazepnicos registrado no pronturio at o momento da coleta no ms novem-bro/2011, sendo excludos os usurios que associam antipsicticos teraputica. A fonte de pesquisa foi os pronturios das famlias adscritas e anotaes dos ACS de visitas domiciliares. Para uniformizar a coleta de dados, foi elaborado um roteiro com os seguintes dados: tipo de benzodiazepnico utilizado; uso de outros medicamentos; durao de tratamento contnuo em meses; indicao para o uso; local de aquisio dos ansiolticos; primeiro prescri-tor; sexo do usurio; idade em anos; ocupao e realizao de prticas corporais e atividade fsica.

    A fim de investigar a amostra de estudo, foi realizada uma anlise estatstica descritiva dos dados coletados no programa estatstico SPSS verso 13.0, apresentada por meio de frequncias absolutas (n) e relativas (%) com res-peito s variveis pesquisadas. Para as variveis contnuas do estudo, foram apresentadas algumas medidas descriti-vas, tais como mnimo, mximo, mdia e desvio-padro. Tambm foi categorizada a varivel Tempo de uso em duas categorias (< 12 meses e >= 12 meses).

    As informaes foram coletadas de maneira que os su-jeitos da pesquisa no pudessem ser identificados direta-mente ou por meio de identificadores, conforme o Termo de Compromisso para utilizao de Dados para manuseio dos pronturios. O projeto foi submetido e aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Centro de Cincias da Sade da Universidade Federal de Pernambuco, de acordo com a Resoluo n. 196/96 do Conselho Nacional de Sade. Por se tratar de pesquisa baseada em dados secundrios, a autorizao de acesso foi dada pela Diretoria Geral do Trabalho e Educao na Sade da Secretaria de Sade da Cidade do Recife e co-municada ao Distrito Sanitrio correspondente. Os dados coletados sero guardados por cinco anos.

    RESULTADOS

    O total da amostra avaliada foi de 84 pronturios de usurios que utilizam ansiolticos de acordo com o banco de dados de informaes sobre sade mental das duas equi-pes de referncia e que moravam na rea adscrita Unidade de Sade da Famlia (USF). Houve excluso de 15 usurios, sendo 10 excludos por no constar no pronturio a utili-zao de benzodiazepnicos, dois por no mais residir nas comunidades da USF no momento da coleta , dois por-que faleceram e um era menor de 18 anos no momento da coleta. Um total de 69 usurios foi includo na anlise. Observa-se o predomnio do sexo feminino (n = 49; 71%), com uma mdia de idade de 52,45 ( 16,44 anos), sendo a idade mnima de 22 anos e a mxima de 105 anos.

    Quanto ocupao, revelaram que 58,3% desempe-nham sua atividade em ambiente familiar, 32,9% estavam registrados que nunca trabalharam fora de casa, sendo to-dos do sexo feminino e 25,4% aposentados; 19,4% traba-lhavam por conta prpria, sendo 16,4% de forma irregu-lar e apenas 3% cobertos pelo sistema previdencirio. Do total do estudo, apenas 14,9% tinham vnculo empregat-cio com recolhimento para Previdncia Social com seus direitos garantidos e 7,5% estavam desempregados. Em relao ao comportamento relacionado a prticas corpo-rais e atividade fsica, apenas 13% realizavam alguma pr-tica e o restante (87%) nunca tinha feito nenhuma ativida-de registrada at o momento da pesquisa nos pronturios.

    O uso prolongado de BDZ teve prevalncia maior entre os usurios do diazepam quando comparado ao clonazepam, entre os pacientes cadastrados. Observando uso dessas substncias, observamos que 44,9% (n=31) fa-ziam uso de diazepam; 39,1% clonazepam (n=27) e 1,4% (n=1) faziam associao desses dois frmacos. Outros an-siolticos foram encontrados, sendo 11,6% bromazepam (n=8), 1,4% lorazepam (n=1), e 1,4% alprazolam (n=1).

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    Aline Cavalcante de Lira, Jos Gildo de Lima, Maria Nelly S. de Carvalho Barreto, Telma Maria Albuquerque Gonalves de Melo

    Em relao ao agente da indicao desses medicamentos, observamos que o mdico clnico geral ou especializado em reas que no neurologia e psiquiatria foram respon-sveis, isoladamente, por 66,2% das prescries. Os es-pecialistas (neurologista e psiquiatra) foram responsveis por 29,4% das indicaes. Houve referncia aquisio de 4,4% de usurios em que utilizavam por conta prpria, fazendo automedicao.

    Entre os usurios que utilizaram os benzodiazepni-cos, 95,5% (n=63) utilizaram o medicamento por um ou mais anos, com uma mdia de uso em meses de 56,08 ( 44,65 meses), sendo a menor utilizao de um ms e a maior de 156 meses. Considerando o uso teraputico, os mais comumente utilizados foram: 42,6% hipntico/sedativo, seguido de ansioltico 41,2%; 8,8% depresso; 5,9% como anticonvulsivante/antiepiltico e 1,5% utili-zavam para dor. Da amostra em estudo, pode-se observar que 54,9 (n=28) fazem uso de anti-hipertensivos, 37,3% (n=19) associam antidepressivos com benzodiazepnicos, 23,5% fazem uso de antidiabtico (n=12), 19,6% (n=10) usam anticonvulsionantes em seu tratamento, 11,8 (n=6) usam drogas para reduo de lipdios, 5,9 fazem uso de antiparkinsonianos e 3,9% (n= 2) utilizam inibidores de produo de cido gstrico.

    Quanto aquisio dessa classe teraputica estudada, observamos que 58% conseguiram os medicamentos em farmcias pblicas da rede de ateno; 40,6% os compra-ram em farmcias e/ou drogarias do comrcio varejista e 1,4% conseguiu de outra forma.

    DISCUSSO

    Os dados obtidos atravs deste estudo refletem as ca-ractersticas das comunidades e tambm do prprio aten-dimento primrio em si, percebendo-se que o consumo de medicamentos influenciado por concepes de seus usurios e prescritores em um contexto definido pelas con-dies socioeconmicas. Nesse sentido, acreditamos que a interao entre gnero, envelhecimento e servios de sade encontra-se elaborada e construda socialmente o que de-termina particularidades no modo de uso dos medicamen-tos, formando conceitos, comportamentos e concepes sobre doenas e sade.8 Assim, foi constatado que a popu-lao usuria de benzodiazepnicos da USF composta, em sua maioria, por mulheres (71%) com idade em torno de 50 anos, corroborando o descrito na literatura por Nordon et al, 2009 e por Poyares, 2005, embora a tendncia observada por eles seja ainda maior em mulheres mais idosas, de 60 a 69 anos de idade, enquanto a deste estudo demonstrou uma faixa etria mais ampla (de 50 a 69 anos).4, 12

    Alguns autores defendem que o fator que poderia estar

    relacionado ao uso de ansiolticos pelo gnero feminino o maior comparecimento desse grupo s unidades de sade e relao com as desigualdades sociais entre os sexos, pro-duzindo caractersticas fsicas, posturas, doenas e hbitos de vida, em que se insere o uso de medicamentos, aumen-tando o consumo de frmacos, entre os quais os BDZ. 7, 8, 13

    Percebe-se, ainda, um significante nmero de mulheres que no esto inseridas no mercado de trabalho e desem-penham suas atividades em ambiente familiar, dedicando maior tempo aos problemas da famlia. Esses conflitos en-tre os membros de uma famlia esto muitas vezes relacio-nados definio de papis de seus membros e tornam-se a principal causa do consumo de BDZ.8 Um estudo feito, em 2002, por Ludermir e Melo Filho, mostrou resultados semelhantes: pacientes sem uma insero profissional apre-sentaram maior prevalncia de doenas mentais e que a falta de oportunidades de insero no mercado de traba-lho pode gerar frustraes e bloqueios sociais que acabam desencadeando o quadro de transtorno mental comum.14

    No que diz respeito ao uso de frmacos na populao idosa, alguns autores defendem que esse grupo populacio-nal oprimido pela sociedade, sendo discriminado e exclu-do do meio social. A viso da velhice de imperfeio, de retrocesso e de impotncia frente s mudanas sociais leva o idoso ao adoecimento e ao maior uso dos servios de sade, vistos muitas vezes com distrbios de humor, tor-nando-se o envelhecimento, alm do gnero, relevante para nossa anlise e orientao frente ao consumo de frmacos, principalmente quando se trata de benzodiazepnicos. 4, 8

    Em estudo realizado em 2011, Oliveira et al.15 mos-tram que a proporo de medicamentos potencialmente inapropriados para idosos significativa nas relaes de medicamentos da Assistncia Farmacutica Bsica, onde os benzodiazepnicos de longa durao esto presentes como, por exemplo, o diazepam. Em 2002, Coutinho e Silva associou o maior risco de quedas na populao aci-ma de 60 anos ao uso dessas drogas, apresentando dados sobre o papel delas na ocorrncia de fraturas decorrentes de quedas, que levam a complicaes graves, comprome-tendo a qualidade de vida dessa populao.15

    Os dados obtidos mostraram que as prticas corpo-rais e atividades fsicas no so relatadas no histrico dos usurios da USF, reforando a tese de que existe uma tendncia ao aumento de ansiedade e insnia em pessoas sedentrias. Conforme descrio realizada pelo o Minis-trio da Sade em 20091, algumas alteraes psicolgicas esto intrinsecamente ligadas promoo sade, enten-dendo que a produo de bem-estar resultante dos de-terminantes e condicionantes sociais da vida. As prticas corporais permitem a construo da sade atravs do de-senvolvimento de habilidades pessoais dos sujeitos, por

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    PERFIL DE USURIOS DE BENZODIAZEPINICOS NO CONTEXTO DA ATENO PRIMRIA SADE

    meio de grupos organizados nas unidades de sade e com a identificao de equipamentos sociais da comunidade e de seus espaos para a prtica de atividades fsicas e de lazer. Estudos observados sugerem que a atividade fsica, estruturada e orientada, pode auxiliar na reduo de indi-cadores para a ansiedade, principalmente em pessoa mais velha, propiciando ao sujeito autonomia e modos de viver mais saudveis.16

    Observou-se a prevalncia da prescrio do diazepam, um frmaco de meia vida longa e com efeito hipntico acentuado, seguido do clonazepam. Deve-se conside-rar que esses benzodiazepnicos fazem parte da relao municipal de medicamentos essenciais e, portanto, os resultados desse estudo inserem-se nessa realidade. Em outros estudos realizados no Brasil, observou-se tambm a prevalncia da prescrio do diazepam e a seleo desse frmaco, em vrios servios pblicos de sade, o que se justifica por se tratar de medicamento pertencente Re-lao Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), de ser eficaz, seguro, de baixo custo e de grande experi-ncia clnica nas suas diversas aplicaes.17 interessan-te ressaltar que o uso de benzodiazepnicos de meia-vida longa, em especial para idosos, pode ser perigoso, devido aos efeitos colaterais dos seus metablitos, que demoram mais tempo distribudos nos tecidos orgnicos.4, 13, 15

    Em relao ao tempo de utilizao, os medicamentos pesquisados apresentaram alto potencial de abuso, com usurios utilizando benzodiazepnicos por mais de 12 me-ses e evoluindo para um quadro de sndrome de abstinncia quando o uso descontinuado. importante salientar que mesmo doses teraputicas desses psicofrmacos podem le-var dependncia, o que muito preocupante e comprova a necessidade de se assegurar o acesso aos medicamentos com segurana, eficcia e resolubilidade, por meio da ati-vidade farmacutica comprometida com os princpios da promoo e preveno de agravos da sade, j que o produ-to farmacutico tido como insumo essencial no processo de medicalizao social, como descrito na literatura. 2-4, 18

    O uso crnico, aqui estabelecido como por mais de 12 meses, foi observado com alta prevalncia para todos os prescritores, sendo mais prevalente entre o clnico geral, ou especializado em reas que no psiquiatria e neurolo-gia. O principal prescritor atual o clnico geral da unida-de de sade que, muitas vezes, simplesmente mantm uma receita anterior, contribuindo para a queda na capacidade de enfrentamento independente da maior parte dos ado-ecimentos e das dores cotidianas.19 Como j mencionado, os benzodiazepnicos no deveriam ser usados por mais de trs a quatro semanas, pela perda de sua funo e pe-los possveis efeitos colaterais que seu uso pode trazer em longo prazo, como perda cognitiva, diminuio da produ-

    tividade e maior possibilidade de acidentes.1, 4, 18, 20

    Para os usurios que obtm os benzodiazepnicos sem receita, seu uso indiscriminado tambm crnico e inde-vido, sendo considerado um problema de sade pblica, que acarreta consequncias negativas importantes, tanto economicamente, como no mbito sanitrio, traduzidos, particularmente, pelo aumento de efeitos colaterais ou reaes adversas, por vezes bastante graves. Assim, ne-cessria a construo de uma nova cultura, atribuindo aos frmacos o seu significado real para a preveno de do-enas e restaurao da sade. Justifica-se, portanto, a pro-moo do debate do uso racional de medicamentos, por meio da realizao de campanhas, bem como o dilogo com os profissionais de sade, como tambm a formao de agentes multiplicadores para promover discusses re-lacionadas ao tema nos grupos sociais e na comunidade.1

    CONCLUSES

    Com este estudo, concluiu-se que os BDZ constituem importantes ferramentas teraputicas, no entanto so fr-macos bastante prescritos a idosos e s mulheres, em uma proporo significante, mas a continuidade do uso vai alm de uma finalidade especfica e com um tempo indetermi-nado. O medicamento ocupa um lugar fundamental e im-prescindvel na vida dos indivduos, com uma forte relao entre gnero, envelhecimento e utilizao dos servios de sade, porm seu uso, muitas vezes, poderia ser controlado de outras maneiras como uma maior ao psicossocial.

    Os resultados sugerem que os benefcios de uma as-sistncia farmacutica efetiva, baseada em ateno per-manente por equipe interdisciplinar, podem dirimir problemas relacionados ao uso irracional da teraputica medicamentosa e prevenir comorbidades na Ateno Pri-mria Sade. Nesse sentindo, as equipes de sade tm um grande desafio: identificar os fatores de risco junto a esse grupo populacional e estimular o fortalecimento da capacidade individual e coletiva, para lidar com a multipli-cidade dos condicionantes da sade, buscando qualidade de vida e reduo da necessidade de frmacos.

    Acredita-se que este trabalho contribui para os conhe-cimentos das caractersticas das pessoas adscritas ao servi-o primrio de sade que fazem uso de benzodiazepnicos nas comunidades, apontando a importncia de futuros es-tudos a respeito, tendo em vista as danosas consequncias do uso prolongado de BDZ e a necessidade do acesso aos medicamentos com segurana, eficcia e resolubilidade da ateno, por meio dos princpios da Ateno Primria a Sade e a concepo de que a produo de sade tam-bm produo de sujeitos.

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    Aline Cavalcante de Lira, Jos Gildo de Lima, Maria Nelly S. de Carvalho Barreto, Telma Maria Albuquerque Gonalves de Melo

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    Submisso: julho/2012Aprovao: outubro/2012