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Aqui começa uma nova série de aventuras de Perry Rhodan. São passados 60 anos após a guerra atômica que não houve e 56 anos após a falsa destruição da Terra.Agora, o primeiro obstáculo que Rhodan tem pela frente é superar Atlan, o arcônida que, além de possuir o dom do sexto sentido, carrega o ativador celular...
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1º CICLO - A TERCEIRA POTÊNCIA
VOLUME 9
P-41 - 45
2º CICLO – ATLAN E ÁRCON
VOLUME 11
P-50 - 54
2
Os Condenados de Isan
Volume 53
O Duelo
Volume 54
O Soro da Vida
Volume 51
O Pseudo
Volume 52
Atlan. O Solitário do Tempo
Volume 50
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
3
Atlan, O Solitário do Tempo
O Soro da Vida
O Pseudo
Os Condenados de Isan
O Duelo
2º Ciclo – Atlan e Árcon
Volume 10
Episódios: 50 - 54 de 50/99
O Herdeiro do
Universo
4
Nº 50
De K. H. Scheer
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Denise Bartolo Revisão e novo formato W.Q. Moraes
Aqui começa uma nova série de aventuras de Perry Rhodan. São passados 60
anos após a guerra atômica que não houve e 56 anos após a falsa destruição da
Terra.
Agora, o primeiro obstáculo que Rhodan tem pela frente é superar Atlan, o
arcônida que, além de possuir o dom do sexto sentido, carrega o ativador
celular...
O sussurro tornou-se uma autêntica gargalhada.
Alguém dizia que uma besteira tão grande jamais havia
sido ouvida. Entrando na conversa uma voz
frágil de mulher, a gargalhada terminou de
repente.
— Com licença? — perguntou um
homem assustado. — Você está afirmando
que isto é apenas uma sombra da verdade?
Havia irritação na voz feminina. Depois
a gargalhada estrondosa continuou.
Somente podia ser Hiob. Ninguém ria tão
alto e por qualquer ninharia, como ele.
— Conversa fiada — disse outra voz,
mais objetiva.
— Alucinação, ou seja, lá o que for.
Devem ter sido obrigados a uma
aterrissagem forçada. Vocês sabem como
estas coisas acontecem por lá.
Ouviu-se novamente o gargalhar de
Hiob. Se ao menos conseguisse dominar um
pouco sua risada estrondosa e sem motivo!
Nunca o pude suportar, muito menos agora.
Era um tipo arredondado, de faces avermelhadas e olhos
frios. Se, no meu setor, acontecia alguma coisa errada,
Hiob Malvers estava certamente por trás dos bastidores.
— Silêncio — disse eu furioso. — Diabos de gente
calem a boca! Primeiro, é completamente indiferente para
nós se a aterrissagem foi voluntária ou não.
— Está certo — resmungou Billy Plichter. — Bom,
então comecemos tudo de novo. Como aconteceu, então,
Olavo? Como é que pode ter dado tudo errado? Que é que
há, então, Olavo? Por que o negócio não está certo,
Olavo... Olavo...!
O barulho aumentou. Tinha a impressão de que
campainhas minúsculas começaram a tocar ao mesmo
tempo dentro de minha cabeça. Escutava a minha resposta,
apesar de não estar falando.
Olavo era eu. Sem dúvida nenhuma era meu nome
que estavam gritando, constantemente, cada vez mais
alto. Sentia que a dor de cabeça aumentava. Billy
Plichter não tinha dó, não parava de insistir. E eu
precisava de descanso e merecia o descanso.
Alguém começou a falar e demorei um pouco a
compreender suas palavras. Vinham de minha própria
boca. Queria rir, mas a dor não deixava.
Ao meu lado houve um ruído. O movimento que
fizeram com minha coxa foi rápido. Um calor
agradável invadiu meu corpo e fiquei admirado de que
o médico me tivesse dado a injeção na presença de
outras pessoas.
Fiquei com vergonha. Ali na sala estava Willy
Fergusen. Como me poderiam dar uma injeção na
presença deles? Certamente, viram minha coxa!
Diante dos meus olhos, pairava uma neblina
afogueada e as dores no meu cérebro se transformaram
em pontadas dolorosas. Não estava quase aguentando.
Quando a minha visão ficou mais clara, percebi que
Willy Fergusen não poderia ter estado na sala. Hiob
estava rindo novamente, mas também
ele não estava na sala. Na minha frente
cintilava uma grande tela, bem clara.
Estava olhando admirado para o
belo quadro colorido. Meus
colaboradores conversavam sobre
coisas que me eram muito familiares,
estava no meio deles, e,
paradoxalmente, encontrava-me aqui!
A tela ficou mais nítida de repente.
Apareceu nela um relógio muito
moderno para medição dos anos e
alguém anunciou muito solenemente:
— O tempo acabou meu amo.
Quando foi que alguém me chamou
pela última vez de “meu amo”? Com
muito esforço consegui virar a cabeça.
— Como, por favor? — perguntei
com muita dificuldade.
— O tempo acabou meu amo.
Era a mesma voz que penetrava no meu ouvido,
desta vez, porém, com menos solenidade, mas com
mais vibração metálica.
O rosto plástico de Rico se contraiu em rugas.
Estava sorrindo. Levantei a cabeça em sua direção, até
encontrar seus olhos parados.
— Alô, é Rico.
— Sim, é Rico, meu amo. O tempo acabou, estava
obrigado a acordá-lo. Exatamente sessenta e nove anos,
meu amo.
Não estava gostando desta expressão cerimoniosa.
Não se devia permitir que robôs tão aperfeiçoados
assim, repetissem a toda hora uma expressão tão servil.
Mas o que havia com os tais sessenta e nove anos?
O pensamento sobre isso me deixou aturdido. Tudo
se encontrava como sempre foi. A consciência ia
chegando, porém com muita dor. Tentei me levantar.
Rico interveio imediatamente. Senti a rigidez do aço
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Personagens principais deste episódio:
Perry Rhodan — Primeiro Administrador do Império Solar.
Atlan — Um arcônida que já se encontrava na Terra quando da quase deflagração da guerra atômica.
Tombe Gmuna — Jovem tenente de Terrânia. General Peter Kosnow —
Ministro da Defesa do Império Solar.
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sob o revestimento leve de plástico de sua mão.
Consegui sufocar meus gemidos, mas minhas
articulações pareciam enferrujadas. Acabei dando com
os olhos novamente no relógio de medição dos anos, na
tela.
— Somente sessenta e nove anos? Tinha regulado
pra setenta. Que houve então?
Rico era tão cabeçudo, como costumam ser todas as
máquinas.
— Somente sessenta e nove anos, meu amo —
disse imóvel. — Recebi o telecomando exatamente há
trinta e seis horas, três minutos e dezoito segundos.
Quer dizer então que desta vez levaram 36 horas
para me acordar do biossono, uma espécie de
hibernação letárgica.
“Muito tempo, muito tempo”, dizia meu cérebro.
Perguntei, então, a mim mesmo, por que um
pequeno erro de regulagem causou uma diferença de
tempo de um ano? Certamente foi minha culpa. O
negócio foi tão rápido naquela época, quando
começaram, lá em cima, com a loucura da bomba
atômica.
Surgiu uma unidade especial de som, que me
deixou muito espantado. O grande relógio desapareceu
da tela. O videotape havia realmente desempenhado
sua função, pois pessoas do meu tipo tinham
necessidade de impressões óticas e acústicas do tempo
imediatamente anterior ao começo do processo do
grande sono biomédico. Agora estava me lembrando de
que eu mesmo havia colocado no aparelho de som e
imagem a fita muito bem preparada do videotape.
O insistente gargalhar de Hiob me ajudou muito.
Talvez sem ele, não teria recuperado minha alegria.
Apareceu na minha frente a cabeça plástica e
redonda de Rico. Rico pertencia aos poucos robôs
fabricados especialmente para o controle e a
manutenção das máquinas da cúpula. Sua capacidade
de falar era um jogo positronicologístico com um setor
ultrarrápido de aproveitamento e conversão de dados
matemáticos em sons inteligíveis. Era um meio para
provocar os sentidos que paulatinamente iam
recuperando a vivacidade natural. Mas agora sentia
necessidade de falar, de me comunicar, mesmo que
fosse com uma máquina positrônica. Além do mais, o
vocabulário de Rico era mais ou menos reduzido.
À direita da cama, estava à ducha de ativação tele
controlada pelo computador central. O local parecia
uma sala de operação moderna, com a única diferença
de que ali não existiam médicos. Os estimulantes
bioquímicos que atuavam sobre minhas células, ou
eram injetados ou transmitidos na forma das mais
diversas radiações. Na minha cabeça, ainda estava a
touca cintilante do gerador de vibrações que me havia
transmitido aos sentidos as primeiras impressões.
Fiquei uma hora parado, pensando nos motivos que
me levaram a este sono profundo.
Exatamente há 69 anos, princípios de julho de
1971, os responsáveis pelos três blocos das grandes
potências perderam a cabeça. Quando começaram a
serem lançados da Ásia os primeiros mísseis atômicos,
ainda consegui fugir para minha cúpula submarina.
Escapei da estúpida e inútil destruição. O que
aconteceu, porém, com todos os homens dos
continentes da Terra? Só o fato de querer recordar o
terrível destino de bilhões de homens, fria e
objetivamente, era uma coisa insuportável. Neste
momento, eu apenas sabia que era o único homem na
Terra.
— Homem! — disse eu rindo.
Rico se aproximou. Quando a aparelhagem
mecânica da visão percebia alguma coisa, sua reação
era instantânea. Continuei sentado, sentindo as mãos
macias de plástico dos muitos braços da máquina de
massagem. A fisioterapia era indispensável para que eu
começasse a obter o controle sobre o corpo. Ainda
levaria umas horas para poder me levantar. Uma
corrente de ar comprimido jorrava dos poros da
espuma de borracha. O colchão no qual, pela posição
de meu corpo durante 69 anos, haviam surgido
pequenas deformações, voltou a ficar normal.
Nu, ainda completamente enfraquecido e abalado
por sentimentos confusos, fui levado por Rico para fora
do quarto. Na antecâmara, um ambiente alegre e
aconchegante, estava funcionando o órgão de cores.
Desenhos suaves e tranquilizantes inundavam as
paredes, enquanto que sons maviosos de velhas
composições penetravam em meus ouvidos.
Os poucos metros foram terrivelmente cansativos.
Gemendo, deixei-me cair nas almofadas macias da
poltrona vibratória, que continuava de uma maneira
muito mais suave, a massagem pesada feita pelas mãos
do robô.
Rico ministrou-me os primeiros alimentos líquidos.
Meu estômago ainda não aceitava substâncias sólidas.
De qualquer maneira, ainda eram necessários três ou
quatro dias para me sentir mais ou menos bem.
Rico puxou mais para perto o grande espelho
colorido e ajeitou a cama. Eu não havia emagrecido
sinal de que meu corpo reagira muito bem à
hibernação. Fiz um sinal com a mão e vi como ele
empurrou o espelho para uma cavidade na parede. Aí,
o robô ficou ao meu lado. O rosto de Rico seria muito
mais humano se não fosse aquela palidez que parecia
cera.
— Amigo, não sei o que poderia dar em troca, se,
em lugar de você, estivesse aqui um ser humano de
verdade. Como vão as coisas lá em cima?
— Muita água, meu amo — respondeu meu criado
particular diplomaticamente.
Fiquei observando-o mais a fundo. Sua resposta
teria sido um truque psicológico para dar vazão a
sentimentos de ira reprimidos ou ele não sabia mesmo
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outra coisa?
— Naturalmente muita água. Estamos no fundo do
Oceano Atlântico, ao sul da ilha açoriana São Miguel.
Aqui começam as célebres fossas oceânicas de uma
profundidade enorme. Portanto, acima de nós, há
somente água. No entanto, eu quero saber como está o
continente europeu. Como é que terminou a guerra
atômica na França e na Espanha.
— Não sei meu amo.
O sangue me subiu então à cabeça. O sorriso
plástico, submisso, de Rico me pareceu de repente
como uma máscara de escárnio.
— Como assim? — exclamei em tom interrogativo.
Minhas cordas vocais começaram a funcionar
corretamente. — Por que razão não se realizou a
observação da superfície que eu determinei?
— Por culpa sua, meu amo. Todas as três estações
de televisão foram destruídas pelos aviões. Fomos
informados ainda de que o lançamento dos satélites
seria inútil e sem sentido, pois a atmosfera do planeta
estava coalhada de máquinas de guerra. Recebemos
realmente suas ordens.
Decepção, medo e cólera contra minha própria
imprevidência se abateram contra mim. Naturalmente
os robôs não poderiam ter agido de outra forma, depois
que eu, apressado e estúpido, havia dado as instruções
para observação dos continentes mais importantes.
Após o plano a minha intenção era despertar, ficar a
par de tudo o que acontecera durante a guerra.
Agora estava completamente aéreo, separado de
tudo. Não era apenas o ente mais solitário da Terra,
mas também o mais ignorante. Acima da abóbada de
aço da minha cúpula pressurizada nas profundezas do
Atlântico, pesava uma tremenda muralha de água. É
claro que esta muralha me havia preservado das
radiações mortíferas dos inúmeros reatores nucleares,
mas isto não me adiantou nada.
Uma ânsia premente de ao menos uma palavra
saída de boca humana me avassalou de tal maneira
que comecei a me sentir mal.
Levantei-me gemendo e vi, sem querer, as
horríveis cicatrizes da operação, espalhadas por todos
os cantos do ventre. Não podia fazer mais nada contra
isso, principalmente pelo fato de que perguntas
curiosas me teriam sido mais do que desagradáveis.
Além disso, onde estaria o médico para corrigir os
encaroçamentos e rugas da horrível intervenção
cirúrgica? Certamente não existiria mais em toda a
Terra nenhum cirurgião à altura. A catástrofe atômica
se abatera sobre a humanidade há 69 anos. Os
médicos recém-formados na época, já deviam ter
morrido há tempo, mesmo na hipótese de haverem
sobrevivido, por circunstâncias milagrosas, à
hecatombe geral, que foi a destruição do mundo.
— Minhas roupas — disse eu ao robô.
— Quais? Meu amo.
— As últimas que estava usando antes de
hibernação.
— O senhor ainda está muito fraco, meu amo.
Agora é que começa a segunda fase da convalescença.
Tinha que ficar resignado. Não se pode fazer nada
contra as conclusões lógicas de uma máquina tão
preciosa e perfeita.
Com a ajuda de Rico, meus dedos atingiram as
teclas do painel de controle e eu passei para uma
confortável cadeira giratória. Ponto por ponto, fui
percorrendo todas as fases da convalescença
programada. Surgiam na grande tela as diversas seções
de minha cúpula de aço à prova de bombas, pousada no
fundo do mar. Aqui embaixo não se notou nada da
guerra atômica. O fornecimento de energia foi sempre
motivo de muita preocupação. Os reatores II e III
estavam desligados e o I funcionava com apenas 20 por
cento de sua força total.
Liguei a câmara de observação submarina. Os
sensores infravermelhos, montados fora da cúpula
mostravam uma imagem clara e penetrante de minha
habitação no fundo do mar. Diante da escotilha de
saída do lado sul, havia se amontoado uma grande
quantidade de lodo. A abertura de cima, porém, estava
normal. Fiz com que o reator I funcionasse com a
velocidade total, para armazenar a energia suficiente
para a projeção.
Pela primeira vez em 69 anos, as grandes máquinas
estavam funcionando. Muito abaixo de meus pés, o
ruído era tremendo. O ronco surdo me penetrava nos
nervos. Lá fora, enorme quantidade de lodo estava se
desprendendo da carcaça.
Um jato
concentrado de uma
pressão de quarenta
mil toneladas por
metro cúbico resolveu
a questão. Em poucos
minutos, a escotilha
sul estava livre de
qualquer sujeira.
Em seguida,
procurei entrar em
contato com meu
satélite de
televisionamento,
através do rádio. O
corpo esférico de
apenas dois metros de
diâmetro, antes do
início da guerra
atômica, estava em
órbita de duas horas
em torno da Terra. As
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instalações eram tão perfeitas que permitiam
ampliações muito nítidas. Qualquer objeto do tamanho
do corpo humano podia ser visto com clareza. Mas não
consegui ligação nenhuma. O minicomputador
embutido no satélite não se manifestou.
— O TEK-1 foi lançado naquela época, meu amo
— explicou Rico objetivamente. — Isto foi cerca de
uns dois dias depois do início de sua hibernação. Um
caça da defesa espacial soviética tomou nosso satélite
como se fosse de origem americana.
Ouvia tudo sem dizer uma palavra. Fazia censuras a
mim mesmo. Realmente cometi muitos erros quando,
com medo louco de morrer, me escondi afobadamente
nas profundezas do Atlântico.
Estava também separado da superfície. Informei-
me no computador central sobre o estado de coisa em
volta de mim. Se os continentes estavam contaminados
pela radioatividade, então era muito natural que
também as correntes marítimas contivessem partículas
nocivas.
— Nenhum perigo nas imediações contíguas com a
cúpula — constatou o cérebro positrônico de minha
residência submarina. Os hipersensores, no entanto,
acusam grande fonte de radiação na fossa do
arquipélago de Açores. O valor oscila, conforme a
profundidade, entre seis e meio e trinta e cinco
miliroentgen. Fim.
Suspirei abatido. Trinta e cinco miliroentgen era
extremamente perigoso, pois encontrava-me a uma
profundidade de 285 metros abaixo da superfície do
mar.
Procurei fazer um quadro comparativo da
intensidade de radiação entre o mar e a terra firme. Se
lá embaixo já havia trinta e cinco miliroentgen, então
mais para cima a coisa devia ser assustadora.
Que tipo de isótopos radioativos devem ter sidos
empregados? Conforme meus cálculos, a duração
média do tempo de validade da maioria dos isótopos
era tão curta, que não se podia mais contar com o poder
de radiação após 69 anos.
Depois de ter examinado todas as instalações de
minha cúpula, cheguei à conclusão de que devia subir à
tona o mais depressa possível. Quem sabe ainda
poderia ajudar muitos sobreviventes com alimentos e
remédios? Encontrava-me com bastantes provisões.
Poderia alimentar vestir e instruir pelo menos mil
pessoas. Em certo sentido, eu poderia dar à
Humanidade uma nova possibilidade de ressurgimento.
Tratava-se apenas de saber até que ponto a radiação
nociva havia atingido os sobreviventes. Talvez tivesse
havido mesmo grandes alterações, físicas ou psíquicas.
Com a cabeça cheia de preocupações, saí do setor
de controle da minha cúpula de aço. Uma coisa estava
certa, tinha que voltar à tona o mais depressa possível,
para ver o que tinha acontecido aos homens.
“Socorrer”! — Ecoava no meu cérebro. Estava
pensando agora nos meus amigos e conhecidos.
Mesmo Hiob Malvers estava entre eles, apesar de me
ter deixado muitas vezes irritado. Apesar de tudo, eu
tinha saudade de sua gargalhada estridente!
A composição das coisas necessárias para meu
abrigo submarino foi questão de simples cálculo
matemático ou de bom senso. Num local
completamente ermo não há necessidade nem de armas
especiais de ataque nem de meios sofisticados de
defesa.
No entanto, fiz tudo para ter uma proteção eficiente
contra a radioatividade e carreguei ao máximo o reator
do meu uniforme de mergulho. O ativador oval estava
pendurado na altura do peito nu. Além disso, estava
com o traje pesado e incômodo de proteção contra
radiações, com o qual esperava poder vencer a pesada
camada de água. Minha única arma de defesa era o
inofensivo raio psicológico, cujo efeito hipno sugestivo
era mais do que suficiente para demover qualquer
adversário de suas intenções. Mais do que isto, não era
necessário.
Na mochila do uniforme de elevada pressurização,
carregava alimentos concentrados e medicamentos
especiais para neutralização da radiação. Em caso de
necessidade, eu teria que trazer para minha cúpula
submarina os sobreviventes em estado grave, vítimas
desta guerra maluca. Certamente, não poderia tratá-los
convenientemente na superfície. Afinal de contas, não
faria mal a ninguém deixar entrar em meu abrigo
àqueles pobres coitados, mutilados ou abobalhados
descendentes da geração da guerra. Certamente não me
poderiam causar nenhum dano.
Fazia cinco dias que havia sido despertado pelo
robô. Estava bem melhor e já podia tentar a subida para
a tona. E examinei o funcionamento de todo o material.
O dispositivo antigravitacional funcionava
normalmente. Com a maior facilidade, levantei-me do
chão da cúpula.
Rico, com seus olhos mecânicos, frios,
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acompanhava o que eu estava fazendo. Na grande tela,
ainda se liam as notícias e as imagens, que há 69 anos
eram coisas atuais.
Antes de deixar a cúpula, dirigi-me pela última vez
para a grande tela. Li com pesar as notícias de um
jornal americano, segundo o qual havia chegado à Lua
o primeiro aparelho tripulado. O comandante da
operação foi um tal de Perry Rhodan, major e piloto de
provas da Força Espacial Americana.
Antes de este homem ter partido para a Lua, eu o
examinei atentamente. Minha impressão foi a melhor
possível. Apenas, naquela ocasião — isto foi a 15 de
julho de 1971 — não podia imaginar que exatamente
este major da Força Espacial Americana, haveria de
provocar, ao menos indiretamente, a guerra atômica.
Sei apenas que havia encontrado na Lua uma
substância extremamente preciosa para os grandes
grupos políticos da Terra. Rhodan se recusara a
entregar o achado. Foi com sua nave lunar para o
deserto de Gobi e aí começou tudo.
As últimas notícias falavam de envoltórios
energéticos que Rhodan havia inventado para sua nave
lunar. Pelo desenrolar precipitado dos acontecimentos,
não tive mais oportunidade de constatar a veracidade
das notícias, em parte sensacionais, dos jornais e da
televisão.
Depois de uma rápida fuga do meu laboratório para
construção de naves espaciais com propulsão atômica,
ainda antes de entrar para a cúpula submarina, já
haviam partido da Ásia os primeiros mísseis bélicos.
Os nervos dos homens não aguentaram e
instintivamente veio o golpe de morte: apertar o botão
das armas nucleares. Todas as nações pensavam que
Rhodan teria uma importância decisiva no
desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Todos
se sentiam prejudicados e todos desconfiavam de
Rhodan. Assim se chegou a uma guerra, que nada foi
capaz de evitar.
Para escapar destas explosões, desci para as
profundezas do mar. E agora estava diante da tela,
tentando arranjar uma explicação lógica para minha
hesitação. Adiava minha saída do mar, embora meu
instinto me dissesse que eu tinha de dar uma olhada lá
fora. Atrás de mim, soou a cigarra. Poderia ir.
O último olhar foi para uma foto feita por
teleobjetiva. Talvez tirada de uma nave espacial. Em
meio à areia escaldante do deserto de Gobi, repousava
um corpo brilhante, recoberto por um clarão
fosforescente.
Olhava muito para aquela fotografia, tinha algo de
misterioso. Pelo menos, para os meus conceitos, era
inexplicável como um foguete primitivo daquele tipo,
de combustível líquido, tinha de permanecer protegido
por um envoltório energético.
Interrompi os pensamentos, pois não tinha mais
sentido quebrar a cabeça por coisas tão afastadas no
tempo. A Humanidade tinha cavado sua própria
sepultura. O próprio major Perry Rhodan, que, sem o
desejar, tinha botado lenha na fogueira, já devia estar
morto há muito tempo. Naquela época, tinha mais ou
menos 30 anos.
A tela apagou. Dei ainda algumas instruções para
outras programações e me dirigi para a escotilha
corrediça.
Rico não deu mais uma palavra. Estava sozinho na
parte inferior da cúpula. Quem sabe também estaria
sozinho lá em cima, fora d’água? Liguei o campo
magnético de meu traje de proteção, esperando até que
o dispositivo de sincronização desse o sinal verde de
compensação de pressão e depois ligasse,
automaticamente, os registros da água.
Das fendas do chão da câmara, a água se projetou
espumante, sob alta pressão. Em questão de segundos,
a comporta estava cheia. Cessou o ruído esfuziante do
ar expulso pela forte entrada da água. Cessou também a
correnteza e o redemoinho que me lançaram de
encontro à parede da câmara, apesar do meu esforço
em ficar onde estava. Aliás, aquela câmara fora
planejada somente para saída de emergência. Meu
envoltório de proteção funcionava muito bem. Podia
me mover com facilidade e segurança dentro da
cápsula cilíndrica, cuja reserva de ar seria suficiente
para o trajeto até em cima.
Regulei meu dispositivo de gravitação no máximo,
pois em virtude do impulso natural, fui lançado de
encontro ao teto da comporta. Só depois de alguns
minutos de uma regulagem mais calma, fiquei em bom
equilíbrio. Sem nenhum ruído, a porta externa se abriu.
Diante de mim estava o insondável fundo do mar, com
seus misteriosos seres vivos.
Saí com cautela. Já que meu envoltório de proteção
não era flexível, e sim rígido, seria impossível tentar
nadar. Caminhava num trecho de chão macio, onde
tinha que vencer apenas a resistência da água.
A luz infravermelha do meu capacete estava acesa.
Por meio de óculos especiais, tinha uma boa visão que
alcançava uns cem metros, como se lá embaixo
também houvesse a luz do sol. Ainda renunciando ao
transporte automático, atingi o planalto de uma grande
rocha. Atrás de mim ainda se via a meia esfera de
minha cúpula de aço, já mergulhando na escuridão.
Era um silêncio de rebentar os nervos. Com certeza,
nunca houve homem em situação de tão completa
solidão, como eu. Sessenta e nove anos sozinho.
A menos de 200 metros da câmara d’água,
começava a grande fossa oceânica. Cheguei até sua
beira e inclinei a cabeça para frente, fazendo com que a
lanterna do capacete a iluminasse. Curioso, um peixe
fosforescente chegou bem perto. Já sabia há muito
tempo que a luz infravermelha era estimulante para
muitos animais. Foi interessante ver quando seres vivos
das formas mais esquisitas começaram a dançar, como
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que inebriados pela luz infravermelha. Tudo no maior
silêncio. Silêncio este que agora passava de angustiante
para alegre e colorido. Quem sabe era minha
peculiaridade reagir desta forma, bem diferente da
maioria dos homens?
— Alô, caro amigo! — disse-lhe eu.
Ouvi minhas próprias palavras e botei na cabeça
que o peixe me tinha compreendido. Começou a se
balançar até que chegou a dar impressão de estar
dançando. Por fim, tive que afastá-lo com um
movimento rápido da mão, pois estava se aproximando
demais do meu envoltório energético e eu não podia
matá-lo. Num planeta destruído, nada era mais sagrado
e precioso do que os últimos sinais de vida. Este
pensamento me arrancou do grande abatimento.
Consultei os instrumentos. Estava tudo em ordem.
Não havia nenhum indício de radioatividade. Talvez
fossem apenas os sensores da cúpula que a podiam
descobrir.
Liguei o circuito de turbulência, aumentei em
0,025% o campo de gravitação e assim comecei a
subir. Passei com facilidade por sobre a garganta da
tremenda fossa. Sabia que meu corpo dava a impressão
de um cilindro brilhante de alta intensidade. Os peixes
se reuniam cada vez mais em torno de mim. Flutuei
umas milhas para o norte, até encontrar o rochedo que
subia íngreme. Era à base da ilha dos Açores. Daí em
diante começou a subir a cinco metros por segundo.
Outros peixes vieram. De vez em quando, meu
refletor dava com pontas de rocha saliente. As
primeiras plantas das regiões mais fundas foram
aparecendo. Eram espécies desconhecidas da ciência.
Os homens penetrando no espaço, sem conhecer bem
os mistérios do próprio planeta.
Era tudo tão lindo, que estava sorrindo feliz, até que
me veio à cabeça de novo a lembrança da catástrofe
atômica, desaparecendo então o sorriso de meus lábios.
Neste momento, a instalação de alarme do meu
pequeno rastreador começou a soar. Sentia os impulsos
que vinham de encontro ao envoltório de proteção.
Este os acusava com exatidão devido a sua estabilidade
estrutural. Nos primeiros instantes, estava escutando
um pouco assustado o zumbido que vinha da instalação
de alarme, cada vez mais forte. Cheguei até a pensar
em monstros do fundo do mar que têm a faculdade de
descobrir suas vítimas por meio de ondas ultrassonoras.
Era um recurso que a natureza dava a estes gigantes
das trevas submarinas para encontrarem alimento.
Fiquei de espreita, preparado para o que desse e
viesse. Aos poucos, cheguei à conclusão de que este
zumbido jamais poderia vir de um peixe. Depois de
algum tempo, não precisava mais da instalação de
alarme. Os impulsos emitidos por um instrumento de
orientação submarina de alta frequência é que estava
causando o tal ruído agudo.
Por algum tempo, fiquei como que petrificado.
Estava acontecendo algo de incrível. Uma coisa que já
não devia existir mais. O setor de recordações do meu
subconsciente se manifestava. Gente como eu, jamais
esquece estas coisas. Numa evidência berrante,
lembrei-me de uma coisa que até então não me viera à
cabeça.
“Submarinos atômicos, sobreviventes! Cuidado!”
— foi o que pensei.
De maneira completamente irracional, comecei a
nadar com movimento descoordenado de pés e mãos.
Meu frágil circuito de turbulência submarina me
proporcionava uma velocidade de, no máximo, dez
milhas por hora. Era suficiente para um avanço normal
e agradável, nunca, porém para escapar de submarinos
de propulsão nuclear.
Gotas de suor escorriam pela minha face, sinal de
que meus sentidos estavam exaltados. Os impulsos
recebidos estavam cada vez mais intensos. Antes de
conseguir chegar à fenda mais próxima da rocha, fui
atingido por refletores ofuscantes. Ouvia-se o ronco
cavernoso de um forte motor. A partir daí, cheguei à
conclusão de que meus meios de defesa eram ridículos.
Interrompi os movimentos de natação e fiquei
olhando para o foco de luz intensa Talvez julgassem
que eu fosse um animal aquático. Aliás, não podiam
pensar de outro jeito, pois, fora de mim, não havia
ninguém na Terra que possuísse um traje com proteção
contra radioatividade.
Meu cérebro trabalhava com muita lógica. Lutar
seria mera loucura, ainda mais que eu não tinha nada
para atacar este peixe de aço. Também estaria fora de
meus interesses ferir de qualquer maneira os
sobreviventes da guerra nuclear. O que me interessava,
realmente, era chegar são e salvo no interior do
submarino.
Reduzi a velocidade, sabendo muito bem que, na
melhor das hipóteses, meu corpo seria tomado como
uma sombra. A carcaça do meu cilindro tinha um
brilho muito forte para permitir uma visão suficiente do
interior.
Meu sistema nervoso até que estava em ordem. Não
sentia medo. O ronco do motor se tornava cada vez
mais forte. Daí a uns segundos começaria a dançar na
frente da luz como os peixes atraídos pela claridade.
Esperava, porém, que ninguém atirasse um arpão de
pesca submarina contra o meu envoltório de proteção.
Ainda sabia muito bem como era a pesca submarina
antes da guerra. Fortes descargas elétricas seriam
funestas para a estabilidade do envoltório de proteção.
Estavam me perseguindo, não havia dúvida. Uma
vez ou outra, podia perceber os contornos de um
pequeno submarino de águas profundas. Isto se dava
quando conseguia fugir do refletor. Quando notei que
estava próximo de uma caverna estreita e funda, já era
tarde. Não se pode provocar um pescador, nem torná-lo
desconfiado. Pode-se enganá-lo, mas não
11
grosseiramente, como eu estava fazendo de modo
inconsciente. Talvez pensassem que eu iria desaparecer
imediatamente naquela caverna escura.
Ouviu-se um silvo curto e agudo.
“Tiro de ar comprimido”, gritou-me meu sexto
sentido. Fiquei parado, imóvel, à espera do choque.
Não teria nenhum sentido procurar escapar de um tiro
teledirigido.
Um fantasma flamejante veio certeiro ao meu
encontro. Atingiu-me em cheio, exatamente depois de
dois segundos e meio. Vi a ponta de contato do arpão
de alta voltagem penetrar no meu envoltório e explodir.
Um clarão de grande intensidade envolveu-me todo.
No microrreator de minha mochila, começou o
zumbido de alarme e a lâmpada vermelha de
emergência do meu pulso direito começou a brilhar.
Sobrecarga no circuito. Choques elétricos bem
doloridos açoitavam-me o corpo. Curvei-me todo de
dor, tentando desesperadamente ficar livre da câimbra
nervosa.
Com o resto de força que me sobrou, apertei o
botão para ligar o circuito de rádio dentro d’água, e
com voz interrompida tentei falar no microfone preso
no pescoço:
— Parem com essa loucura. Eu me rendo sem
resistência.
Certamente o receptor deles estava em outra
frequência. Quem poderia saber a quanto tempo estes
homens estariam neste submarino, com o qual talvez
teriam escapado da guerra nuclear?
Um segundo torpedo de alta voltagem atingiu-me
novamente. Novas descargas e choques me arquearam
novamente o corpo dolorido. O envoltório de proteção
não existia mais. Não resistiu ao segundo impacto,
maior que o primeiro.
Uma escuridão total me envolveu e para os meus
ouvidos havia um bramido como se fossem águas a
rolarem de uma cascata.
“Cascatas, nas profundezas do mar? Ridículo.”
Foi um impulso do subconsciente que penetrou no
meu cérebro já entorpecido. Claro que no meio do mar
não podia haver queda d’água.
Parecia o ciciar do vento no cordame de um barco à
vela. Antes de minha fuga para as profundezas do
oceano, gostava muito de enfrentar as forças da
natureza. Mas desta vez, não estava a bordo de um
barco à vela, para ficar apreciando o movimento das
nuvens Era diferente, muito diferente.
Eram quatro ou cinco. O que julgava ser o ciciar do
vento, não era outra coisa senão palavras pronunciadas
depressa e em voz alta.
Julgavam que estivesse ainda desacordado e eu
fazia questão de que continuassem com esta impressão.
Assim, percebi pela conversa deles que me julgaram
realmente um peixe desconhecido, das profundezas do
oceano, com uma fosforescência nunca vista. Atiraram
contra mim arpões de pesca e no momento do
rompimento do envoltório de proteção puxaram-me por
raios de tração para a escotilha de pesca do submarino.
Foi minha sorte, ou minha desgraça.
Num piscar de olhos, percebi que estava numa
grande sala, sobre uma mesa. Talvez fosse um
laboratório, onde os seres das profundezas do mar eram
estudados.
Falavam inglês. Mas o assunto de sua conversa me
deixava confuso. O setor especial de lógica do meu
cérebro me dizia com toda insistência que os
sobreviventes de uma guerra nuclear deviam se
preocupar com outras coisas. Não deveriam mergulhar
com um submarino especial nas profundezas do
Atlântico, perto dos Açores, para ali curtirem as
aventuras de uma pesca numa das maiores fossas do
mar.
Se tivessem falado que esta pesca era para o
sustento de suas vidas ou para a alimentação do povo,
eu teria compreendido. Mas só por divertimento...
Estava deitado, completamente imóvel, quando
dedos macios começaram a apalpar meu rosto e a nuca.
Uma voz masculina, de timbre grosso, disse irritada:
— Que droga! Não há sinal nenhum de brânquias.
Não é apenas um animal de respiração pulmonar, mas
simplesmente um homem.
— Cubra-o — disse o outro. — Dora está chegando
4
12
aí.
Puxaram um cobertor de lã para cobrir minha
nudez. Sentia cócegas na pele banhada de suor e tive
que fazer um esforço muito grande para não retirar a
coberta de cima do estômago. Desde a última operação,
esta parte do corpo me era muito sensível.
— Ele já está acordado? — disse uma mulher,
demasiadamente alta.
Um hálito quente atingiu meu rosto. O perfume de
um cabelo bem tratado penetrou em minhas narinas.
Daí em diante, comecei a pensar que o negócio da
guerra nuclear não poderia ter sido tão sério assim,
como eu havia imaginado o tempo todo. Se já estavam
fabricando perfumes tão caros assim...
— Um jovem de classe, hein! — disse alguém em
tom de zombaria. — Pelo menos uns oitenta e oito
anos, figura de atleta, nenhuma grama de gordura a
mais, cabeleira loura, como um deus nórdico.
Outros dois homens davam gargalhadas. No meu
íntimo, estava começando a me envergonhar.
Certamente era gente que não ligava muita importância
à boa educação e às boas maneiras. Estavam me
tratando como um animal precioso, sobre o qual
podiam dizer a bobagem que quisessem.
Já estava com vontade de me levantar, quando
aconteceu o que eu esperava instintivamente. Um
homem, que chamaram de doutor, penetrou na sala.
Cumprimentou mui educadamente, mais ou menos
como um jovem recém-formado em medicina
cumprimenta pessoas ricas e muito influentes.
— Ah! O senhor trouxe as radiografias? —
perguntou o homem de voz grossa.
— Claro, meu senhor. Aliás, muito esquisitas, devo
dizer.
— É um homem-peixe ou não? — perguntou a
mulher impaciente.
— De maneira alguma, minha senhora, mas
também não é homem. Gostaria de mostrar-lhes as
radiografias.
— Passe para cá, logo — exclamou alguém
deseducadamente.
— Que diabo! Que é isto? Não tem costelas?
Senti que todos se afastaram de mim, receosos.
— Deixe o revólver na cintura, por favor — disse a
mulher. — Não pode ser tão perigoso assim. É
maravilhoso. O senhor pode acordá-lo, doutor?
— Dificilmente, em poucas horas, minha senhora.
Recebeu choques fortes demais.
A mão de alguém tirou a coberta de meu peito.
Devia ser o médico.
— Olhe aqui a cicatriz, minha senhora.
— Horrível — disse ela. — Eu sempre me
interessei muito pela medicina. Quem foi o
“remendão” que fez isso?
— Não tenho ideia, minha senhora Trata-se
aparentemente de operação do estômago.
— Como aparentemente? — insistiu o homem de
voz grossa. — O senhor é médico ou não? Deve,
portanto saber se houve ou não operação no estômago.
O médico estava em apuros. E era para ficar, pois o
pessoal era mesmo sem educação.
— Senhor, com esta estrutura especial do esqueleto,
não se pode fazer uma afirmação categórica. A caixa
torácica toda se compõe de chapas de osso contínuas e
extremamente estáveis. Este... ah... este homem deve
ser levado imediatamente para uma grande clínica.
Minhas possibilidades são limitadas.
— Quem? As possibilidades ou o senhor? —
zombeteou o de voz grossa.
— Meu amigo, eu vou lhe dizer uma coisa. Se isto
não é nem um monstro, nem um ser humano, então o
negócio é muito sério. Seu aparecimento torna-se mais
do que esquisito.
— Foi com envoltório energético, eu já disse.
— É também minha opinião, John. Já lidei muito
com campos energéticos. Parece mesmo que o sujeito
não nasceu na Terra. Extremamente se assemelha
muito conosco. Por dentro é muito diferente. Isto é um
caso para o Departamento de Defesa Aérea. Sabe Deus
o que nós acabamos de encontrar. Passe um rádio para
o Ministério da Segurança, em Terrânia. Em caso de
necessidade, a Administração também deve ser
avisada. Eu quero ficar fora deste caso.
— Mas, papai — disse a mulher aborrecida. —
Talvez seja um animal raro das profundezas do mar.
Imagine o que vai...
— Bobagem — interrompeu o homem. — Que
animal das profundezas o quê! Você vai fazer o que eu
achar melhor. O sujeito será levado para o
Departamento de Defesa Aérea. Capitão; interrompo
aqui a excursão. Suba à tona e providencie o rádio para
Terrânia. Devem mandar um aparelho bem rápido.
Com isso acaba para mim todo o prazer do esporte
submarino.
Continuaram discutindo, sem suspeitarem de que eu
estava ouvindo cada palavra. A comichão foi se
tornando insuportável na região das cicatrizes do
estômago. Tinha vontade de coçar com todos os dedos.
Além disso, a situação estava ficando perigosa para
mim. O homem de voz grossa parecia não somente o
chefe de todo o submarino, mas principalmente um
homem enérgico.
Devagar comecei a coordenar os pensamentos.
Examinei os dados que havia anotado nesta longa
conversa. Minha capacidade de raciocinar se recusava
a aceitar o incrível. Meu cérebro parecia estar em
greve. Sentia grande dificuldade para tirar a conclusão
mais simples deste mundo.
Tudo dava a entender que lá em cima não tinha
havido nenhuma guerra nuclear. Falou-se de uma
Defesa Aérea, portanto deviam existir também naves
espaciais.
13
Se era possível se dirigir a um Ministério da
Segurança e solicitar um aparelho veloz, então tudo
isso não significava outra coisa senão o fato de eu estar
caindo num erro muito grande. Mas que tipo de erro?
Tinha plena certeza de que, no momento de minha
fuga, haviam sido lançados da Ásia os primeiros
mísseis nucleares.
Será que este major da Força Aérea Americana teve
alguma participação em tudo isso? De qualquer
maneira, devia ter descoberto, em sua aterrissagem na
Lua, coisas importantes, que eu desconhecia
totalmente.
“Perdeu 69 anos dormindo inutilmente, seu burro”,
é o que me dizia meu sexto sentido.
Comecei então a pensar que talvez tivesse sido
destruída apenas uma parte da Terra. O fato de o
pessoal a bordo não ter falado nada a respeito, devia
ser pelos longos anos já decorridos. Mas ainda assim,
saía de minha cabeça um mau pressentimento: as
cicatrizes de uma guerra nuclear não desaparecem
totalmente em 69 anos.
Continuei a ouvir a conversa. Tudo que falavam era
a meu respeito. Pude saber então tudo que aconteceu.
— Vamos botar um ponto final em tudo isto —
disse o chefe um pouco zangado. — Tenho bom faro
para estas coisas. O Império Solar não pode permitir a
presença de estranhos no planeta principal e este —
senti um dedo bater no meu peito — e este sujeito não
é daqui. Vá para a superfície, capitão. E você, John,
está armado?
— Tenho um revólver antigo — disse alguém
hesitando.
— É suficiente. Fique de guarda no laboratório de
pesca e vigie os movimentos do rapaz. Ou você está
com medo?
O homem de nome John confirmou muito afobado
que não tinha medo nenhum. A mulher deu uma
gargalhada estridente. Parecia histérica.
Muitos homens deixavam a sala. Ouvi um ruído
metálico e em seguida um homem que praguejava em
voz baixa. Depois foi o estalo de um cilindro de
revólver. Aparentemente, tinha puxado para fora o
tambor para saber se a arma estava carregada.
— Por quanto tempo ainda ficará inconsciente? —
perguntou John, gritando para os homens que se
retiravam e o deixavam com o desconhecido.
Não obteve resposta. Fiquei sozinho com um
homem de sistema nervoso, talvez, muito fraco.
Continuei calmo, respirando profundamente.
Conhecia gente desse tipo de John. Com certeza ao
primeiro movimento que eu fizesse, receberia uma bala
no peito.
Desviei-me do assunto. Estava ainda soando no
meu ouvido o sintagma “Império Solar”. Que
significaria isto? Quando desapareci na minha cúpula,
há 69 anos, havia na Terra três grandes potências. Não
se podia pensar ainda num governo único para toda a
Terra. E muito menos ainda, numa confederação
política abrangendo o sistema, a que se pudesse dar o
nome de “Império Solar”.
Sentia-me calmo e compenetrado. Gente do meu
tipo recupera num instante a capacidade de raciocinar
objetivamente. Estava bem claro que havia cometido
um grande erro, provocado em última análise pelos
meus conhecimentos deficientes da natureza humana.
Quando, há 69 anos, alguém apertou os botões dos
mísseis nucleares, eu estava crente de que as demais
pessoas normais também ficariam doidas e cometeriam
o mesmo erro.
Mas me enganei. E porque tudo aconteceu assim,
era fácil de se deduzir. Minhas ponderações se
concentravam no nome de Perry Rhodan. Este piloto
espacial era a chave para o grande enigma.
Esperei até que meu vigia ficasse mais calmo.
Depois de alguns minutos, se encaminhou para a
antepara. Ouvi-o manejando os pesados ferrolhos. A
porta se abriu lentamente.
Levantei um pouco a cabeça. O primeiro olhar
consciente abrangeu a sala. Era de fato um laboratório.
John estava na porta entreaberta, olhando para fora.
Usava camisa de mangas curtas e calças bem apertadas,
em cuja cintura estava o revólver.
— Tragam-me ao menos alguma coisa para comer
— gritava o rapaz.
Alguém respondeu, mas tão baixo que não consegui
entender. Minha primeira experiência deu resultado.
Tinha absorvido bem o choque das radiações. À minha
esquerda estava meu traje de proteção radioativa.
Parece que examinaram tudo, mas não se deram por
contentes. Na parte superior da perna direita do traje
observei a saliência alongada da minha pistola
hipnopsíquica. Não se deram ao trabalho de retirar as
armas.
John continuava gritando. Acho que não tinha fome
alguma. Queria é que alguém ficasse perto dele.
Sem nenhum ruído e rapidamente, saí da mesa.
Com dois passos largos, estava atrás do rapaz magro.
Pulei em suas costas, travando seus braços com minhas
pernas. Podia ainda respirar, mas meus dedos que
comprimiam fortemente à direita e à esquerda da
laringe, impediam a passagem do sangue da artéria
para o cérebro. Sem o menor movimento de reação,
caiu e ficou inerte no chão. Depois de uns três minutos;
voltaria a si. Eu não tinha, pois, tempo para perder.
Duas coisas aconteceram naquele instante.
Primeiro, os possantes motores do submarino
começaram a roncar e, a seguir, ouviram-se passos que
se aproximavam.
Ao conseguir reconhecer o homem, a pistola
hipnopsíquica já estava em minha mão. Foi atingido
pelos raios finíssimos do radiador hipnopsíquico antes
mesmo de notar o que se passava. Eu mesmo senti na
14
cabeça a leve vibração da arma silenciosa que
paralisava por uns instantes a atuação da vontade. Já
estava então realizado o contato de transmissão para a
vítima selecionada. Nem precisava falar, bastava que
eu pensasse intensamente, e a pessoa obedecia.
O homem parou no meio da sala. Seus olhos
pareciam de vidro.
— Vá para o laboratório de pesca e fique lá
esperando até que eu o chame! — foi o meu comando
hipnótico.
Sem dizer uma palavra, pôs-se em movimento,
passou pela minha frente e desapareceu no aposento
contíguo. Esperei até que o outro, que estava
inconsciente, voltasse a si. Recebeu a mesma ordem.
Meu radiador tinha um alcance de dois mil metros.
Se regulasse o feixe de raios para uma extensão maior,
seria possível cobrir uma ampla área num só disparo.
Não estava pensando mesmo em ir de aposento em
aposento, procurando um por um da tripulação, o que
seria, aliás, muito perigoso. Regulei a arma para toda a
extensão do submarino. Depois de alguns minutos
foram chegando. Todos os tripulantes estavam sob meu
comando. Na frente estava um homem corpulento, que
eu julguei ser o da voz grossa. Atrás dele mais quatro
pessoas, entre as quais uma jovem de cabelos tingidos
de um verde-berrante.
Reuniram-se no laboratório, onde os prendi, dando-
lhes a ordem de não saírem dali, por motivo algum.
Seminu, como estava, percorri o submarino. Atrás
de um camarote de grande luxo, havia um salão com
telas panorâmicas ligadas. O submarino já estava há
muito em movimento, porém mantendo a profundidade
de dois mil metros. Atrás do salão, estava o posto de
comando. Ao lado, o alojamento da tripulação e o
porão dos reatores e dos transformadores.
Ninguém olhou para mim, quando passava pelas
diversas divisões do barco. Chegando ao posto de
comando, fiquei de pé atrás do capitão. Era um senhor
idoso, de cabelos brancos e pele muito branca.
Os timoneiros seguiam minhas ordens sem
hesitação. O primeiro oficial se dirigiu à calculadora
para determinar a rota por mim indicada.
— Siga pelo litoral de Portugal. Em frente ao Cabo
Roca, pouse o submarino no fundo do mar. Qual é sua
velocidade de cruzeiro?
— Oitenta milhas marítimas, no máximo —
respondeu o comandante, sem nenhuma flexão na voz.
— Bem, mantenha a velocidade de setenta milhas e
com o piloto automático.
As ligações foram feitas. Dos aparelhos da cabine
de rádio, ouvia-se o ruído típico. O radar eletrônico
acusou a presença de outro submarino e a operação de
desvio se deu automaticamente.
Um mapa luminoso anunciava que nos estávamos
aproximando de uma linha de navegação submarina de
intenso tráfego. Surgiam cada vez mais linhas
vermelhas com indicação de profundidade. Isto
comprovava novamente que eu estava mesmo
enganado. Não havia nenhum indício de guerra
nuclear.
Resolvi fazer uma pergunta meio fora do assunto.
— Houve uma guerra nuclear em 1.971, em que a
Terra foi devastada?
— Não, respondeu o comandante com voz fria.
— Qual é sua idade?
— Sessenta e cinco anos.
— Sua data de nascimento?
— 23 de abril de 1.975.
— Quer dizer que estamos no ano 2.040?
— Perfeitamente.
— Como foi que não se chegou a uma guerra
nuclear? Isto é ensinado nas escolas?
— Sim. A Terceira Potência, sob a presidência de
Perry Rhodan, impediu a eclosão da guerra, por
intermédio da supertécnica dos arcônidas.
Senti que minhas pernas iam começar a tremer.
Provavelmente meu rosto estava pálido como cera.
— Técnica arcônida? — repeti com voz vacilante.
— Quer dizer então que Perry Rhodan se aliou com os
arcônidas? Em caso positivo, quando, como e onde foi
isto, responda.
Ele estava sob a influência do meu radiador
psicológico. Suas respostas tinham de ser
absolutamente verdadeiras.
— Perry Rhodan descobriu, depois da sua primeira
aterrissagem na Lua, uma nave espacial de exploração
de fabricação arcônida, que ali descera em pouso de
emergência. Perry os ajudou e mais tarde foi auxiliado
por eles. Impediu a guerra nuclear. Surgiu depois a
Terceira Potência.
A informação foi inútil para mim, pois o homem só
podia responder o que era perguntado expressamente.
Deixei de lado um longo período.
— Como está a Terra atualmente? Que é Perry
Rhodan hoje? Que forma de governo vocês têm?
— A Terra é grande, ampla e bela. Os desertos
foram aproveitados e nós controlamos o tempo. Não
existem mais doenças. Perry Rhodan é hoje o
administrador-geral do Império Solar. O IS foi fundado
em 1990, depois de ter surgido o governo mundial.
Procurei uma cadeira para sentar. As revelações
eram fortes demais. Tinha passado bobamente 69 anos
na cúpula, enquanto a Terra fazia progressos incríveis.
Ainda fiquei fazendo perguntas por quase uma
hora. Fiquei sabendo o suficiente.
Aquele piloto espacial, rude e ousado, tinha tido a
coragem de enfrentar, outrora, as grandes potências.
Depois, em empreendimentos espaciais que pareciam
verdadeira loucura, foi arranjando poderosos
cruzadores e belonaves, com os quais foi penetrando
cuidadosamente na imensa Galáxia. Deve ter estado até
15
em Árcon.
Com esta ideia, interrompeu-se a sequencia de meu
pensamento. Desde quando podiam estes pequenos
selvagens chegar até Árcon? Com uma única frota, eu
teria tocado para o hiperespaço as poucas naves de
Rhodan.
— Como é que Rhodan foi recebido em Árcon?
Sabe-se algo a respeito?
— Sim, sabemos. O grande Império sob a soberania
de Árcon se esfacelou. Atualmente Árcon é governado
por um robô, por um cérebro positrônico. Os arcônidas
são preguiçosos, degenerados, imprestáveis para a
vida.
Meu subconsciente tomou conta de mim. Dei um
salto e agarrei com as duas mãos a garganta do homem.
Gritava como um doido. Como é que este sujeito se
atrevia a falar assim dos arcônidas?
Não se defendeu, ao ser sacudido por mim. Só
segundos depois é que me contive.
— Não diga isto outra vez, nunca mais, ouviu?
— Sim! — disse o homem apático. — Nunca mais.
Não fiz mais perguntas. Fui até a proa, onde estava
o laboratório de pesca. Os homens me apresentaram os
documentos, que examinei cuidadosamente, vinham
dos Estados Unidos, um estado de federação, passando
oficialmente por terranos. Não havia mais dúvida
nenhuma de que este tal Rhodan havia realizado o
sonho dos grandes idealistas do passado.
Mandei que os homens se apresentassem em fila e
os fui examinando. Um deles, que se chamava Phil
Holding, tinha mais ou menos a minha compleição.
Mesmo no rosto, parecia comigo, embora houvesse
diferenças marcantes. Na minha primeira saída lá fora,
para a aparentemente supercivilizada Humanidade, eu
teria que ser Phil Holding. Era diretor-comercial de
uma fábrica de conservas de legumes.
Levei-o para sua cabina e pedi que me explicasse o
uso de cada terno. Eram calças muito apertadas com
paletós compridos em cores berrantes, classificadas por
Phil como a última palavra da moda. Vesti-me e me
olhei no espelho. Não havia tanta diferença assim da
moda de outrora.
Daí para frente, meu plano já estava bem delineado.
Primeiramente tinha que procurar uma boa livraria e
estudar a história da Terra nos últimos 69 anos.
Utilizando-me da memória fotográfica, seria um
trabalho para 24 horas.
Nesse ínterim, o submarino, com sua tripulação,
desaparecia. Informei-me com o primeiro oficial sobre
o estoque de provisões. Era mais do que suficiente.
Tinham alimentos para quatro semanas. Água potável e
ar eram produzidos por máquinas robotizadas.
Portanto, podia dar-lhes ordem de permanecerem
quatro semanas nas profundezas do oceano. Só
poderiam vir à tona após este período. Afinal de
contas, não podia matá-los de fome.
Atingimos o litoral português após cautelosas
manobras. Reuni no grande salão toda a tripulação e os
passageiros. Utilizando-me ainda do radiador
hipnopsíquico, dei as últimas instruções. Ficariam
parados no local e na profundidade determinados, até
que acabassem os alimentos. Depois disso deveriam
emergir e esquecer o incidente.
Sem fazer nenhuma objeção, retiraram-se para seus
abrigos. Examinei mais uma vez as instalações
robotizadas do barco. Achei que estavam em ordem.
Vesti o terno que Phil me recomendou como o mais
elegante. Seus documentos passaram para minha nova
carteira. O dinheiro abundante me era desconhecido.
Eram cédulas laváveis de um plástico de alta
qualidade. Microfios embutidos imantados com
impulsos magnéticos tornavam a falsificação quase
impossível. Havia acabado o tempo que o mundo tinha
uma quantidade enorme de moedas diferentes. Em toda
a Terra, como também em todo o sistema solar, ou
Império Solar, como era o nome, funcionava uma única
moeda — o solar. Um solar tinha cem sóis. E o seu
poder aquisitivo devia ser bem elevado, pois, como me
dizia Phil, com apenas cinco sóis se podia comprar um
maço de vinte cigarros, da melhor marca. Portanto, o
vício do cigarro ainda perdurava. Retirei dois mil
solares para mim e dei-lhe um recibo. O dinheiro seria
pago depois ou depositado no nome de Phil Holding.
Agora teria de mergulhar.
Antes de vestir o traje de proteção submarina em
cima de meu terno, mandei que o grumete cortasse meu
cabelo. Minha cabeleira comprida, que durante 69 anos
não viu tesoura, ia desaparecendo. Estava agora com os
cabelos aparados e com uma leve ondulação. Aplicou-
me também um creme para erradicar a barba. Parecia já
mais civilizado. Surpreendi-me sorrindo diante do
espelho. A jornada até a tona parecia muito
interessante. As rações e os medicamentos não estavam
mais na mochila.
Assim equipado, deixei o submarino através da
escotilha de pesca. Depois de emergir, ainda fiquei
boiando, esperando que ficasse um pouco mais escuro.
Estava bem próximo do litoral.
Por trás do Cabo da Roca, se via o clarão da
iluminação noturna de Lisboa. Uma sensação
maravilhosa de segurança, de libertação de imagens
angustiantes e de viver uma nova aventura, tomou
conta de mim.
Não houve guerra nenhuma. Melhor ainda. Pisei em
terra, perto de um pequeno bosque, quase à beira da
estrada. Escondi meu traje de mergulho numa cavidade
na desembocadura de um riacho. Minha única arma era
ainda o radiador hipnopsíquico. No entanto, já tinha
tomado a resolução de, logo após a escapada para
Lisboa, voltar para minha cúpula submarina, para os
últimos preparativos.
Fui a pé até o caminho e consegui que um carro
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parasse para mim. Um carro de construção esquisita. O
fornecimento de energia era provavelmente regulado
por uma espécie de banco de carga.
O motorista português acreditou na história que lhe
contei e me levou. Em questão de quinze minutos,
fazíamos as belas curvas das autoestradas da capital.
Ali eu tive as primeiras impressões das grandes
realizações que se efetuaram nestes 69 anos.
Agradeci muito e saltei em frente a um hotel, num
grande arranha-céu. A recepção era totalmente
robotizada. Um autômato, de sorriso permanente no
rosto de plástico, perguntava apenas pelo nome do
hóspede. Quarto 123 foi a resposta eletrônica. Depois
que o autômato reagiu normalmente ao toque da palma
da minha mão, fiquei sabendo que, sem a minha
vontade, se registraram novas vibrações.
“Bobo!” foi à reação do meu sexto sentido, contra
mim mesmo.
Fiquei parado, refletindo no luxuoso salão. De
cabeça fria, fiquei pensando que no espaço de duas
horas já havia cometido duas burrices. Talvez, meu
instinto que jamais se enganava, ainda não estava bem
apto para funcionar. Quem sabe ainda sentia os efeitos
da longa hibernação. Podia haver várias razões.
Assim, por exemplo, havia esquecido de destruir,
antes de sair do submarino, as comprometedoras
radiografias. Ainda estavam no laboratório. O grande
perigo, porém, teria sua fase aguda somente depois de
quatro semanas. Além disso, podia voltar ao submarino
à hora que quisesse, para apanhar o esquecido.
Deixei a solução deste assunto para mais tarde.
Certamente, mais urgente do que a questão das
radiografias era o caso do registro de minhas vibrações
corporais. A fechadura do meu quarto estava
programada de acordo com estas vibrações. Não fosse
assim, não teria reagido ao simples toque da mão.
Sentei-me numa poltrona que parecia muito
confortável e que realmente ultrapassou toda
expectativa. Ao receber o corpo, ele se adaptava
automaticamente às formas do mesmo. Os habitantes
do planeta Terra tinham alcançado um bom grau de
tecnologia. Meio desconfiado, comecei a examinar o
banheiro. Havia até um dispositivo automático de
massagem. O robô especializado da cúpula submarina
não lhe era nada superior.
Cada vez crescia mais a ânsia de chegar a uma
livraria pública, pois não seria prudente ficar fazendo
perguntas a todo mundo. Podia causar suspeitas. Se eu
soubesse que existia uma “Enciclopédia Terrana”,
onde estava toda a história do planeta a partir de 1.971,
já teria saído do hotel de Lisboa. Então saberia também
que num volume extra, estava exposto um assunto
muito misterioso, chamado comumente de Exército de
Mutantes.
Acabei deitando para descansar.
Os esforços e preocupações do dia se faziam sentir.
Confiei demais no meu sexto sentido. A história da
Humanidade a partir de 1.971 era muito confusa e
maior do que eu pensava. Começava com a construção
da Terceira Potência na desolada solidão do deserto
centro-asiático de Gobi. Soube de coisas que primeiro
me deixaram envergonhado e depois pálido de
indignação.
Perry Rhodan parecia ser não somente um lutador
de extrema determinação e de decisões rápidas, mas
principalmente um homem ponderado, mentalmente
ágil, que sabia sempre com exatidão onde estava a
maior vantagem para ele. A tudo isso acrescia o fato de
que se identificava pessoalmente com a Humanidade.
Uma coisa me deixou preocupado: Rhodan, com
algumas espaçonaves conquistadas em luta, penetrou
nas profundezas das Galáxias, embora soubesse que a
Terra não estava em condições de se defender. E o
mais admirável é que, apesar disso, acabou
desnorteando os mercadores galácticos e o Império
Arcônida.
A “Enciclopédia Terrana” classifica o ano 1.984
como a segunda e mais importante etapa na escalada
ascendente da Terra. Rhodan deu um golpe de
inteligência ao fazer que todos os habitantes das
Galáxias acreditassem que a Terra tinha sido destruída
por uma frota invasora. Todos os seres inteligentes da
Via Láctea acreditavam mesmo que Rhodan tinha
sumido em combate.
A partir deste ano, pôde então se dedicar à
construção e ao fortalecimento da Terra, sem se
preocupar com ataques de outros mundos. Lá fora, no
espaço, todos julgavam que a Terra não existia mais.
Assim, este planeta se tornou a maior potência do
Universo.
Tomei residência fixa no hotel e providenciei
roupas mais adequadas. Meus estudos diários na
Biblioteca Pública começaram a dar na vista. Apesar
de todo o serviço automático da Biblioteca, havia
sempre aqui e ali pessoas de cuja atenção eu não
conseguia escapar.
4
17
Assim, falei um dia, em conversa, que precisava de
uma obra de consulta para meus exames. O assunto era
muito amplo para ser assimilado em poucos dias. É
claro que me interessei acima de tudo pela
reconstrução militar e político-econômica. O Império
Solar se compunha dos nove planetas do Sol.
Marte, Vênus e algumas luas de Júpiter, estavam
ocupados por colonizadores. Principalmente Vênus,
que já formava uma boa colônia dentro do Império.
A navegação espacial tinha atingido o clímax.
Havia uma enorme frota comercial, além das
belonaves, cujas reproduções na Enciclopédia me
deixavam de boca aberta.
Ao deixar a Biblioteca, no quarto dia, sabia que não
tinha nada mais a procurar na Terra. Embora aceitasse
as conclusões do capítulo final da Enciclopédia, sem
restrições, as informações sobre o Império Estelar dos
Arcônidas me pareciam falsas. Era inaceitável que o
poder do grande Império estivesse nas mãos de um
robô.
Ao penetrar no heliporto da Biblioteca, para pegar
um táxi aéreo, senti o primeiro aviso. Aquela sensação
de alguma coisa que rebusca a parte posterior do
cérebro, já me era conhecida. Instintivamente bloqueei
meu conteúdo mental. Havia alguém tentando por via
telepática penetrar em meu pensamento.
Meu sexto sentido estava de prontidão. Fiquei
parado junto do parapeito do terraço da Biblioteca,
olhando para o belo panorama das sinuosas
autoestradas. Ali terminavam as pistas de alta
velocidade que rasgavam todo o país.
Os impulsos penetrantes vinham de trás, do lado
direito. Senti a confusão no fluxo tateante do
desconhecido telepata. Por uns minutos, ele desistiu de
penetrar minha mente. Daí a pouco tentou de novo,
com maior intensidade. Devia ser um telepata fraco.
Não conseguiu penetrar-me.
Dirigi-me para um táxi que estava pousando
naquele momento. O telepata era ainda jovem, de
cabelos escuros. Passei tão perto dele, que, sem querer,
deu um passo para trás. Entrei na espaçosa cabina do
táxi aéreo, com muita calma, introduzi um solar na
fenda do cobrador automático.
— Hotel Escorial! — disse eu alto e bem
pronunciado.
O piloto-robô confirmou com um movimento de
cabeça e a porta se fechou. O aparelho de voo para
curta distância recebia sua energia elétrica por micro-
ondas. Concentrei-me no forte zumbido do motor e agi
como se o telepata não me interessasse. Ele fez mais
uma tentativa, antes de desistir. Finalmente, meu
pequeno aparelho ganhou altura.
“Teve muita sorte”, constatou meu sexto sentido.
“Se lhe tivessem mandado um telepata mais forte, você
estaria perdido.”
Sabia que não podia mais voltar para o hotel, então
me inclinei para frente, para perto do microfone:
— Quero descer do outro lado do Tejo, em Almada.
— Em que lugar de Almada?
— O velho cais dos pescadores.
O aparelho deu uma guinada para o sul. Abaixo de
mim cintilavam os anúncios no alto dos arranha-céus.
Num destes luminosos havia uma sigla muito repetida
por toda parte: CGC, três letras importantes:
“Companhia Geral do Cosmo.” Devia ser uma
organização imensa. Conforme a Enciclopédia, a CGC
tinha sido criada por Rhodan.
O nome Rhodan me impressionava cada vez mais.
Quando estávamos quase na desembocadura do Tejo e
já víamos ao longe as luzes de Almada, meu sexto
sentido me alertou de novo de que não devia perder um
segundo. Já estavam atrás de mim, do contrário o
telepata não me teria seguido com tanta insistência.
Naturalmente, tudo poderia ser um simples serviço
de rotina da polícia, o que meu bom senso acabou
excluindo. Por mais despreparado que fosse o telepata
não era um zé-ninguém. Se um homem desta categoria
foi destacado para sondar meus pensamentos, era
porque desconfiavam de algo.
Na hipótese de não se tratar de um serviço de rotina
da policia, surgiria uma pergunta: Como e por que
chegaram a suspeitar de mim?
O registro das vibrações no hotel? Impossível! Isso
poderia acontecer caso tivessem dados a meu respeito.
Na Terra, não havia mais fronteiras entre os diversos
estados. Sou igual a todo mundo, não poderia ter
chamado a atenção de ninguém. Onde estava o
mistério? Fiquei matutando até que uma ideia me fez
tremer dos pés à cabeça.
“O submarino!”, dizia meu sexto sentido.
Acabei concordando com a ideia. Era a única
explicação plausível. Ao deixar a tripulação no fundo
do oceano, não sabia ainda da existência do corpo de
mutantes. Naturalmente o submarino estava sendo
considerado como perdido. Até que, com os meios
modernos de localização, chegaram a encontrá-lo.
Além disso, o trânsito marítimo era muito intenso, de
18
forma que a localização do submarino poderia até ter
sido casual. Mas tudo isso não tinha importância
alguma. Foi encontrado e acabou.
Não devia estar preocupado assim, pois a tripulação
se mantinha em estado de forte bloqueio hipnótico.
Pela primeira vez, o conceito de exército de mutantes
foi tomando forma definida no meu pensamento.
Pessoas dotadas de poderes parapsicológicos
haveriam de conseguir romper o bloqueio hipnótico
provocado por mim. E aí, o pessoal do submarino
soltou o que sabia. O quadro estava completo, as peças
estavam se casando bem. Agora é que estava
percebendo a gravidade das radiografias esquecidas a
bordo do submarino. Se caíram em mãos competentes,
então já estavam a par da minha existência.
Recostei-me na poltrona macia de espuma de
borracha.
Ainda bem que não sabiam nada da minha antiga
moradia, a cúpula da fossa oceânica dos Açores. Do
contrário não teriam designado para me seguir um
telepata jovem, de poderes insuficientes. Mas, com
toda certeza, possuíam grandes pistas.
O piloto automático precisou de mais uma moeda
para me levar até ao cais dos pescadores em Almada.
Coloquei um solar e imediatamente veio o troco de
dois sóis.
Liguei o envoltório magnético e ouvi, com esforço,
alguns impulsos telepáticos. Não se compreendia nada.
A noite que estava chegando tinha um céu suave e
cheio de estrelas. No pequeno cais, havia o cheiro
indefinido de algas, cordames e peixes. Era tudo como
antes, embora não se usasse mais o alcatrão.
Passei por pessoas alegres e fui à procura de um
barco. Meu traje de mergulho de profundidade estava
do outro lado da desembocadura do Tejo. Encontrei um
barco, cujo proprietário o estava acabando de encostar.
Não podia me demorar com explicações, o tempo não
dava para isto. Ninguém percebeu o jato de raios da
minha psico-pistola. Atingiu os três homens,
obrigando-os a fazer o que eu mandasse.
Cinco minutos depois, estava bem longe do cais. O
barco tinha um bom motor elétrico, abastecido pelo
banco de carga. Quase não fazia ruído.
Atravessamos o Tejo, que nesta parte era bem largo
e nos encaminhamos para o local em que a autoestrada
chegava bem perto do litoral. Saltei, apliquei mais um
bloqueio hipnótico nos pescadores e me dirigi para a
estrada. Novamente, entrou em ação meu radiador. Um
carro parou perto de mim. A dona do carro, uma
senhora já de idade, me levou uns quinze quilômetros
para o oeste. Encontrei com facilidade o trecho de
floresta. Fiquei olhando pensativo para a pequena
viatura da senhora que já ia longe. Parecia tudo tão
simples. Mas a preocupação crescia sempre.
Meu traje de proteção estava intacto. Vesti-o,
regulei o gerador de gravidade e penetrei no mar,
conservando-me sempre na superfície, para evitar que
me localizassem. Fiquei atento na escuta. Uma vez fui
apanhado pelo farol giratório de um navio. Deixei-me
cair a pique, imediatamente, ficando uns dez minutos
debaixo d’água, para depois emergir com cautela.
Ao chegar até o submarino, dei uma volta bem
grande em torno dele. Suspeitava que estivessem à
minha espera. Se fossem homens inteligentes,
haveriam de ter certeza de que as radiografias que eu
esquecera me dariam muita dor de cabeça.
Estava sorrindo, abri um pouco o traje de proteção,
deixando que a água fresca me banhasse o rosto.
Depois, com uma velocidade de 250 quilômetros por
hora, o vibrador de ondas me levou para o oeste.
Os rapazes vão esperar à toa no fundo do mar. O
que eu sentia é que as radiografias estavam nas mãos
deles. Mas, não se podia fazer nada.
Enquanto me dirigia para o oeste, ia estudando o
que devia fazer. Tornava-se urgente alterar as
frequências de minhas vibrações, pois, certamente, já
haviam tomado meus dados no hotel de Lisboa.
Quando aparecesse de novo, ninguém me reconheceria.
Além disso, ainda tinha que fortalecer meu corpo
enfraquecido. Isto exigia, pelo menos, um treino de
quatro semanas em minha cúpula. A instalação
adequada para isto, o próprio Rico podia montar. Se
tudo corresse bem, no princípio de maio de 2.040, eu
apareceria em Terrânia como um cientista muito bem
formado, equipado com os melhores diplomas. Tinha
intenção de trabalhar como engenheiro energético,
porque este ramo era realmente minha especialidade.
Ria bastante dentro da água que eu cortava em
grande velocidade. A vida estava magnífica e a questão
de Rhodan começou a me interessar. Quem sabe, a esta
altura, ele já sabia com quem estava lidando?
Se ele fosse realmente inteligente, não me haveria
de considerar simplesmente um inimigo da
Humanidade. E de fato, eu não era, nem nunca fui isto.
Gostava muito destes pequenos selvagens, orgulhosos
e de grande determinação, que agora estavam atingindo
as estrelas.
Depois de algum tempo, surgiram os Açores e com
isso eu já estava em segurança. Agora era mister
prestar atenção para que não me confundissem de novo
com um peixe estranho. Provavelmente, aquele trecho
em que o submarino me encontrara devia ser até zona
interdita à pesca.
Com muita cautela, mergulhei para o abismo.
Deixei-me cair bem rapidamente, a uma média de 20
graus, até às profundezas do fundo do mar. Ali
embaixo, eu estava em casa. Sentia-me tão bem como
qualquer peixe.
De fato, a região em volta da Ilha de São Miguel
estava coalhada de submarinos. Portanto minha teoria
estava certa. Escorreguei pelas fendas do solo, até que
fui localizado pelo cérebro robotizado da cúpula.
29
19
Deixei-me sugar pela abertura da escotilha.
Rico estava no seu posto. Protegi imediatamente
minha “moradia” contra localização submarina e, com
o sugador a jato puxei um montão de lama e lodo de
encontro à cúpula.
A partir daí, estava enclausurado por quatro
semanas. Os homens maliciosos de Terrânia, a capital
do Império Solar, que me procurassem.
Era o dia 24 de abril do ano 2040. Estava sentado
numa confortável poltrona da sala de espera do
aeroporto de São Francisco esperando o clíper para
Terrânia. Há sete semanas, havia começado o jogo que
me levaria para o lugar desejado. Levei apenas três
semanas para completar minha instalação e para
devolver ao meu corpo sua antiga musculatura.
Estava mais do que claro que eu não podia aparecer
em Terrânia como um cidadão qualquer. Eu precisava
chegar a uma posição tal, que me desse livre trânsito
nos círculos competentes, para comprar naves espaciais
do menor tamanho possíveis, completamente
automatizadas e quanto possível mais velozes que a
luz. Portanto, tinha que me apresentar como cientista
ou técnico com diplomas absolutamente em ordem.
Nem com tudo isso, seria aconselhável uma ida
para Terrânia e lá, com um sorriso amarelo no rosto,
ficar suplicando um posto de chefia.
Por este motivo, seguindo o protocolo geral de
serviço, entrei, há duas semanas, com um
requerimento, acompanhado de todos os documentos
atinentes. Ontem chegou a resposta pela qual eu tanto
esperava. Devia me apresentar em Terrânia ao
Departamento do Pessoal, levando todos os diplomas
no original.
Estava agora olhando para a minha pasta de
documentos onde guardava tudo que eu havia
conquistado nas semanas anteriores.
Um cidadão de Terrânia deve, a qualquer momento
poder provar onde ele nasceu e de quem é filho. Sendo
assim, escolhi a pequena Greenville, no Estado de
Maine, como minha cidade natal e com o radiador
hipnótico consegui que os documentos legítimos de
nascimento fossem registrados e tombados com datas
anteriores, no arquivo municipal.
Os funcionários da pequena repartição não
compreenderam bem o que fizeram. De qualquer
maneira, podiam jurar que eu nascera em Greenville,
na extremidade sul do Lago Mosehead.
O próximo passo fora com a Universidade de
Portland, onde convenci o velho diretor e dois outros
professores de que eu tinha sido o melhor aluno. Os
raios hipnóticos me arranjaram todos os diplomas. Em
matemática, por exemplo, tinha sido magna cum laude.
A terceira fase não foi tão simples assim, pois desta
vez, tinha que tratar com cientistas e com um
complicado plano didático de uma grande academia
espacial. A Academia para Voo Espacial da Califórnia
— CASF — já existia antes, mas agora estava
reorganizada de acordo com os padrões dos arcônidas.
Rhodan também tinha passado por esta academia, se
bem que já há muitos anos.
Escolhi esta academia, porque, sem dúvida alguma,
era a mais afamada do mundo. Quem viesse de lá,
podia contar com simpatia geral. Somente a Academia
de Terrânia era considerada superior, nela eram
treinados somente os que já haviam concluído os
estudos normais. Outra coisa também, eu não iria usar
os raios hipnóticos em Terrânia. Haveriam de me
descobrir em pouco tempo.
Levei uns quinze dias para conseguir os
documentos com datas de anos atrás. Tive que
influenciar hipnoticamente mais de dez cientistas para
conseguir nos documentos originais a data desejada.
Munido destes documentos, podia comprovar que
havia cursado 15 semestres, especialização — Técnica
da Alta-Energia e Matérias em Geral: — Matemática
Superdimensional. Fui, supostamente, promovido e
recebi o grau de doutor em 2034.
Foi difícil manter contato com todos os professores
e estudantes. Mas tive que fazê-lo para me familiarizar
com os apelidos — qualidades extraordinárias dos
colegas e mestres e — com a vida acadêmica em geral.
Assim, bem preparado, tinha aberto o caminho para um
campo de ação de seis anos. Estava frequentando um
professor particular podre de rico que, de acordo com o
que se dizia, pertencia ao grupo daqueles cientistas que
em sua mocidade tinham tomado parte com Perry
Rhodan nas últimas incursões contra Árcon. Este
senhor, já de idade avançada, tinha cinco assistentes, os
quais eu influenciei com facilidade. Do professor
Steinemann, especialista em Teoria de campo de cinco
dimensões, recebi atestados maravilhosos referentes a
uma atividade de seis anos contínuos.
De todos estes documentos, mandei fotocópias
autenticadas para Terrânia. Em “O Sistema Solar”,
conhecida publicação especializada, foi aberta a
20
inscrição para o concurso de Diretor de Banca
Examinadora. Eu me inscrevi e ontem, como já disse
antes, chegou-me a resposta.
Até o presente momento, tudo corria às mil
maravilhas. Já tinha despachado a mala pelo serviço
automático direto do aeroporto. Na minha pasta de
mão, estavam somente os papéis importantes, meus
documentos pessoais e dinheiro. As vendas de uns
maravilhosos rubis do meu tesouro da cúpula deram-
me o montante de 15.820 solares. O dinheiro estava
depositado num banco particular de São Francisco.
Calculei bem e consegui que, com meus merecimentos
confirmados pelo professor Steinemann, esta quantia,
relativamente elevada, pudesse ser poupada. Tinha
inventado algumas coisas que me deram algum
dinheiro.
Estava convencido de não haver cometido nenhum
erro substancial, já que as frequências de minhas
vibrações celulares tinham sido alteradas. Portanto, não
podia mais ser identificado através dos dados do hotel
de Lisboa. Não mandei mudar a cor nem dos cabelos,
nem dos olhos. Conhecia muito bem os homens e seus
pensamentos. Provavelmente iriam supor que eu me
apresentasse com máscara. E exatamente por este
motivo é que permaneci como era. Meus cabelos
louros eram normais para o tipo nórdico. Tinha apenas
que ter cuidado com os olhos, cujo brilho avermelhado
me podia trair. Consegui modificá-los, quando, por
ocasião de uma leve conjuntivite, consultei o médico.
Naturalmente, tive que influenciá-lo com os raios
hipnóticos.
Estava me sentindo um pouco cansado e abatido.
Meu subconsciente aflorava constantemente à tona do
meu espírito com leves censuras. Talvez, pudesse
encontrar em qualquer outro aeroporto da Terra um
aparelho mais veloz do que a luz. Mas alguma coisa
me dizia que isto seria possível somente na capital do
Império Solar. Em outro lugar não havia aqueles
aparelhos ultrarrápidos, usados pela patrulha espacial
de Rhodan.
Havia me informado com detalhes sobre os
diversos tipos. Um moderno Space-Jet era a construção
mais adequada para mim. Um ronco ensurdecedor me
arrancou dos devaneios. O chamado Gobi-cliper estava
aterrissando. Fiquei observando as manobras de
aterrissagem do aparelho vindo da Europa. Era um
projétil comprido e estreito com reduzida superfície de
sustentação, em forma de um delta, com dois possantes
reatores que serviam também para a decolagem
vertical. Exatamente no ponto preto, no meio do
círculo vermelho, o aparelho tocou o solo tão
suavemente que não se notou o menor solavanco nos
amortecedores.
Uma voz robotizada começou a lançar no ar umas
instruções de rotina:
— Clíper do Extremo Oriente Zacho, Voo 23-1712
para Terrânia, partida às 20:03 h. Favor tomarem seus
lugares, o aparelho permanece no aeroporto somente
10 minutos.
Estava na hora. Peguei minha pasta, ajeitei os
óculos escuros e caminhei para os controles
automáticos. Um pequeno helicóptero levou a mim e
os outros passageiros para o distante aparelho. O bojo
devia ter uns cem metros de comprimento. Pesados
robôs de carga transportavam a bagagem para os
porões do aparelho.
Achei meu lugar numa poltrona reclinável, mais ou
menos no centro do delta de sustentação. A decolagem
foi suave. Sabia que aqueles aparelhos trabalhavam
com neutralizadores de pressão. Depois da suave
subida vertical, a pressão de aceleração atingia pelo
menos dez graus. Apesar disso, não se notava nada de
desagradável. Na frente do nariz pontiagudo do
aparelho, via-se o espaço. O voo para Terrânia levava
meia hora, agora as manobras de aterrissagem duravam
outro tanto.
A metrópole que surgia a meus olhos quase me
tirou a respiração. Como o antigo deserto se
transformou! Terrânia devia ter 14 milhões de
habitantes. Quem vivia e trabalhava ali tinha sempre
alguma relação com a navegação espacial. Da pequena
base de 1.971, cristalizou-se a soberba capital da Terra
e do Império Solar. Grande, bela e poderosa.
Aquele quadro me impressionou.
Entrementes o clíper já havia pousado. Um jovem
oficial se dirigiu a mim. Estava armado e no lado
esquerdo do ombro tinha um emblema: um cometa
atravessado por uma seta.
— O senhor é o Dr. Skörld Gonardson? —
perguntou em voz um tanto alta.
Fiz um gesto de confirmação.
— Bem-vindo doutor. Estou incumbido de levá-lo a
seu alojamento. Meu carro está atrás da galeria. Posso
pedir-lhe a passagem?
Entreguei-lhe a estreita tira plástica. Tudo parecia
bem mais organizado. Um tremendo zumbido me
obrigou instintivamente a virar para trás. Bem afastado,
um monstro redondo galgava os céus de Gobi. Quando
as ondas sonoras chegaram, a espaçonave já tinha
desaparecido. Acompanhei com os olhos embevecidos
o gigantesco aparelho.
— É apenas um cruzador pesado do tipo Terra —
disse o tenente sorrindo. — É somente uma escolta
para o comboio regular de transporte para o sistema
Vega. Nós não temos coragem de deixar voar pelo
espaço afora estes cargueiros desarmados.
Piscou um olho e sorriu feliz. Tive que voltar meu
pensamento para a “Enciclopédia Terrana”. Conforme
ela, Rhodan estava morto desde o ano 1.984 e a Terra
tinha sido destruída. Que bela destruição foi esta! A
Galáxia inteira se deixou iludir por um único homem.
— Vamos — disse eu. — Que calor horrível faz
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aqui!
— Espere então o mês de junho — sorriu o jovem
com naturalidade. — Então, pessoas gordas fritam-se
na própria gordura.
Olhou para mim com tanta insistência que tive de
rir, sem querer. Como se eu tivesse alguma grama de
gordura a mais.
— Não há perigo, o senhor tem boa aparência —
continuou ele sorrindo. — Quer um cigarro?
— Obrigado, não fumo. Considero o cigarro um
mau hábito.
Fechou um pouco a fisionomia e guardou o maço
de cigarros.
— Muita gente diz isto, doutor. Já que fui
incumbido de cuidar do seu bem-estar, vou controlar
meu vício.
Fiquei gostando do rapaz, tinha uma naturalidade
muito cordial.
— Cuidar do meu bem-estar?
Com a ponta do dedo indicador, levantou um pouco
a pala do boné e olhando para mim calmamente, disse:
— Conforme alguns caprichos dos meus
superiores; simplesmente terei que bancar de vez em
quando o guarda de vigilância no setor da banca
examinadora. Já que o senhor será o chefe da T-18 será
interessante não aborrecê-lo muito.
Franzi a testa e instintivamente peguei minha pasta.
Era uma revelação sensacional.
Sorriu contente, e continuou a me examinar.
— Parece que o senhor não sabe ainda de sua
grande sorte, não é? Quando chamamos candidatos
para a capital, quer dizer que já estão aceitos. Do
contrário não viriam diretamente para Terrânia.
— Ah! — disse eu. — E por que é interessante não
me aborrecer?
Olhou assustado em volta, antes de aproximar sua
boca de meu ouvido:
— Afirma-se que o conteúdo do tanque de óleo
lubrificante na ala 18 se compõe dos ossos dos tenentes
que se tornaram desagradáveis. Um colega meu ficou
três horas em movimento espiral, indo à Lua e
voltando, só porque se recusou a engraxar as botas do
chefe de física.
Confirmava com acenos da cabeça, muito
compenetrado, até que a admiração estampada no meu
rosto o obrigou a uma sonora gargalhada. Eu também
comecei a rir.
Os terranos tinham muito senso de humor. Talvez
fosse isso um componente essencial do seu sucesso.
Aquele tenente, por exemplo, parecia à própria alegria
de viver. Certamente, se transformaria em excelente
lutador, na hora necessária. Gentes do seu tipo, na hora
decisiva, são verdadeiros heróis.
Lembro-me de um homem que conheci há muito
tempo. Deu-me seu último pedaço de pão, porém,
quando soube quem eu era, queria me matar. Perguntei
pelo nome do jovem tenente. Chamava-se Tombe
Gmuna, tinha 21 anos e estava acabando de sair da
academia. Como ele mesmo disse, tinha 52 cursos por
hipnose em Galatonáutica, estudos de Alta-Energia e
de Armas. Mais um motivo para aumentar minha
inquietação, que já era grande.
Gente como eu nota logo quando alguém joga
verde para, colher maduro, isto é, quer nos sondar.
Mas o rosto de Gmuna, preto como o ébano, irradiava
uma alegria e uma naturalidade juvenil, onde não cabia
nenhuma segunda intenção. Ria muito e alto, era
sincero, bem-humorado e prestativo. Apesar disso, de
vez em quando fazia certas observações que me
traziam uma tensão de nervos, lembrando-me as
semanas anteriores. Já tinha sido testado antes mesmo
de subir no helicóptero.
Daí em diante, estava certo de que ele não era um
simples oficial da frota espacial. Se o pessoal de
Rhodan era todo tão perigoso assim, então eu teria, no
máximo, oito dias de tempo. Se, dentro deste período,
não tivesse desaparecido, era sinal de que as coisas
estavam bem. Meu instinto me dizia que devia, no
máximo, chegar até seis dias só. Com toda certeza, não
permitiriam a ninguém de entrar no espaçoporto, antes
de conhecê-lo a fundo.
Minhas respostas pareciam satisfazer a Gmuna. O
pequeno vestígio de um princípio de nervosismo havia
desaparecido. Daí para frente sentia-me mais natural.
Tive a impressão de que sua tarefa já estava cumprida.
Saímos com o pequeno helicóptero do aeroporto e
minutos depois surgia no horizonte a bolha
incandescente de uma cúpula energética. Já a conhecia
da “Enciclopédia Terrana”. Foi o ponto onde, há 69
anos, pousou o módulo lunar, comandado por Rhodan.
O espaçoporto, que estava debaixo de nós, era uma
coisa gigantesca. Apesar da altura bem grande em que
nos encontrávamos, não conseguia ver seus limites.
Via galerias de dimensões fantásticas. Pelo menos,
para mim, eram assustadoras.
— Centro de acabamento das belonaves —
explicou-me meu companheiro. — Imponente, não é?
Concordei com plena convicção.
— Muito imponente!
Sobrevoamos o espaçoporto e tivemos que nos
desviar de uma gigantesca esfera que aterrissava.
Passamos depois sobre arranha-céus em que estavam
instalados setores de administração.
De Terrânia mesmo, não se podia ver muita coisa.
Aqui imperava a frota espacial solar. No comando
desta, estava um homem, cujo nome, atualmente só se
podia pronunciar com muita cautela. Estava
convencido de que Perry Rhodan era um psicólogo
muitíssimo inteligente. Ocultava-se no manto do
silêncio, vivia em constante retiro e muito raramente
aparecia diante das câmaras da Terravisão. Era a força
operante que agia nos bastidores. É claro que não tinha
4
34 35
22
a vaidade de querer aparecer.
O fato era que havia uma fantástica propaganda
oral e uma justa glorificação de seus feitos. Eu tinha,
porém, a certeza de que, cercado por seus
colaboradores, Rhodan continuava sempre ativo. Era
um homem, cuja fibra não permitia abandonar a obra
imensa que criara.
Alguns segundos antes que um aviso de rádio desse
a ordem para que todos os aparelhos descessem
imediatamente, aterrissamos no amplo terraço de um
edifício de cem andares.
Ao descer do helicóptero, com as pernas
enrijecidas, Gmuna me puxou para o abrigo do nosso
pequeno aparelho que ficou preso por grandes
eletroímãs fixados na laje de cimento armado.
— Não olhe para dentro — gritou-me o oficial bem
alto.
Primeiro não compreendi o que ele queria dizer.
Depois fomos atingidos pelas ondas de som.
Mais para o sul, quase na linha do horizonte, surgia
uma espaçonave, incandescente, despejando raios de
fogo. Cresceu para um imenso balão, passando sobre
nós numa velocidade incrível. Um grande clarão
iluminou o antigo deserto, hoje transformado num
imenso canteiro industrial, raramente interrompido por
pequenas manchas verdes.
Perplexo, acompanhava o rastro de fogo. Não eram
fagulhas provenientes dos reatores de propulsão, mas
tão-somente partículas superaquecidas da atmosfera na
decolagem do monstro espacial.
Estava realmente atônito.
— É uma nave do tipo Stardust? — perguntei quase
gaguejando.
— Maior muito maior — explicou-me Gmuna. —
Do tipo Império, com 1.500 metros de diâmetro. É a
grande novidade. Deve ser um vôo experimental, creio
eu. Venha, por favor.
Meio aturdido, segui o rapaz. Nem reparei nos
controles robotizados do elevador de alta velocidade
em que descíamos. Ainda estava pensando nas
dimensões daquela espaçonave, que há pouco se
projetara no espaço. Mil e quinhentos metros de
diâmetro! Isto eu nunca tinha visto nem ouvido falar.
Tive que me dominar para não fazer a pergunta se
aquele gigante tinha sido construído na Terra.
É claro que sim. Não havia outra possibilidade.
Estava muito confuso, principalmente incrédulo e
disposto a acreditar que tudo não passava de uma bem
montada miragem. Mas, minha lógica repetia com
firmeza que Rhodan, desde 1.984, tinha tido 56 anos
para se dedicar com exclusividade ao progresso da
Terra, com toda calma e sem ser perturbado por
nenhum inimigo. Desta forma, surgira aquele poderio
tremendo, graças à visão inteligente de Rhodan.
Não, não podia mais odiar estes pequenos terranos.
Pequenos, mas tão fortes. De outro lado, me sentia
impaciente e desanimado. Eles, os terranos, não tinham
o direito de saírem vendendo pelo cosmo afora o que
descobriram por acaso. Se Rhodan, quando da sua
primeira ida à Lua, não tivesse achado os escombros de
uma espaçonave arcônida, a situação seria bem outra.
Por muito favor, a Terra teria apenas chegado ao nível
de uma pequena navegação espacial dentro do sistema
solar.
Não podia estar satisfeito com o destino que me
fizera dormir durante os anos mais importantes do
progresso da Humanidade.
Havia ainda outra coisa que me fazia morrer de
curiosidade. Qual era, propriamente, a idade de Perry
Rhodan? Quando aparecia uma vez ou outra na
televisão, sua postura atlética o colocava na quadra dos
trinta anos. Mas isto tinha que ser uma máscara, sim
uma máscara. Minhas pesquisas com o professor
Steinemann provaram que Perry Rhodan nasceu a 8 de
junho de 1936. Portanto deveria estar agora
completando 104 anos. Mesmo que tivesse usado toda
técnica biológica de Árcon, já tinha de estar muito
velho e acabado. Eu lhe daria, no máximo, mais dez
anos de vida, com todos os recursos modernos.
Um simples cálculo de aritmética provava que
Rhodan tinha toda razão de viver assim retirado e
quase escondido. Um homem de 104 anos não pode
mais ter força nem disposição para nada, nem mental,
nem física.
Estava rindo sozinho. A “Enciclopédia Terrana”
não dava explicação nenhuma para esta questão.
Deixava a massa popular na crença de que Rhodan era
um prodígio da natureza. De vez em quando, surgiam
vozes falando de uma relativa imortalidade, o que não
deixava de ser uma grande asneira.
Despertei dos meus sonhos. Tombe Gmuna estava
falando comigo:
— O doutor possui os originais de seus diplomas?
— Como? Sim, é claro. Já estamos no
Departamento do Pessoal?
— Não. Primeiro vem o da Defesa Solar.
Sorriu ingenuamente para mim, mas seus olhos
pretos investigavam alguma coisa. Sentia aquela leve
inquietação que mesmo pessoas íntegras sentem
perante os representantes da lei.
— Mais isso ainda — observei. — Pois bem,
vamos! Você já refletiu que um homem da minha
estatura também pode ter fome? A viagem foi
cansativa.
Gmuna começou a rir de novo. Sua suspeita parecia
ter sumido. Caminhei através de portas deslizantes. Se
me colocassem agora diante de um aparelho de raios X,
estaria tudo acabado. Era a incógnita em minha
equação. Minha pistola de raios hipnóticos estava
naturalmente na mala que despachei separadamente.
Não podia me arriscar a trazê-la quando dos meus
primeiros contatos.
36
23
Estava, pois, desprotegido. Tinha que esperar o
exame médico. Este deveria ser feito logo após minha
chegada. Se me dessem ao menos o prazo de um dia,
estaria salvo. Meu equipamento especial estava num
armário automático da cidade. A mala comum ainda
encontrava-se em São Francisco. Estava tudo muito
bem pensado, apenas a sorte é que não podia se
esquecer de mim. Achava-me preparado para enfrentar
os mutantes. Tinham de ser, naturalmente, telepatas.
Embora soubesse que Rhodan se utilizasse dos
mutantes para missões especiais no espaço, havia ainda
a possibilidade de que quisessem me testar. Para isso,
estava preparado, pois eu só permitia sair o
pensamento que eu quisesse manifestar.
Assim, eu era o Dr. Skörld Gonardson e nunca
estivera em contato mais íntimo com um submarino de
pesca.
Atrás da escrivaninha se levantou um homem de
ombros largos, com uniforme do Império Solar. Era um
militar graduado.
— Kosnow — disse, se apresentando. — Sente-se,
por favor, doutor. Cigarro?
Um estojo de metal de Zalos se abriu e Kosnow me
contemplava com um sorriso amável. Recusei,
agradecendo, sabendo já que este oficial tinha estado
pelo menos uma vez no planeta do Império Arcônida
chamado Zalit, pois somente lá é que havia daquele
metal zalos.
Olhei com curiosidade para o lindo material de
fluorescência esverdeada. Daria muito na vista se eu
não estranhasse a bela peça de arte.
— Obrigado, não fumo. Diga-me, por favor, que
material é este? Posso vê-lo?
O tenente-general pigarreou e com um simples
aceno de cabeça pediu que o tenente Gmuna deixasse o
aposento.
— Naturalmente. Não conheci ainda nenhum
cientista que não perguntasse pela procedência do
material. Mas, por favor, acomode-se.
Meu sexto sentido se apresentou “Muito bem, isto
foi um teste. Estão estudando você. Foi muito bem
arquitetado. Você tem que se dominar mais ainda”.
Estava diante de um homem que pertencia ao
estreito círculo dos colaboradores íntimos de Rhodan.
Kosnow era Ministro da Defesa.
Esperei até que Evelyn Tunics acabasse de enfiar
no automático a fita de programação. Ainda tinha cinco
minutos.
Fazia exatamente uma hora que minha manobra de
falsificação com o estudante de medicina Flynn tinha
sido descoberta. Naturalmente, o médico-chefe do
Serviço de Defesa não sabia que esteve sob o bloqueio
hipnótico durante toda a consulta. Sem ninguém notar,
consegui escapar da radioscopia. Um médico
assistente, sob coação, foi obrigado a ficar diante do
raio X e assim foi possível dar a chapa torácica deste
estudante de medicina, como se fosse a minha. Ainda
não podia compreender como hoje, seis dias depois da
consulta, tinham descoberto a mistificação. Recebi
apenas um aviso de Afonso Bonkun de que tinha
havido de repente uma verificação.
Bonkun era um auxiliar de laboratório, influenciado
por mim. Informou-me através de uma microemissora.
Disse ainda que a comissão examinadora estava sob a
direção de uma telepata. Nesta altura, a ligação foi
cortada.
Estava sentado no porão de controle da Banca
Examinadora T-18. Evelyn Tunics fazia o papel de
matemática de programação. Há quatro horas,
havíamos recebido a incumbência de examinar com
exatidão uma espaçonave do tipo Space-Jet,
completamente automatizada.
A lista de controle para a disposição positrônica
tinha sido cortada. Minha função era fazer com que as
instalações de alta energia funcionassem perfeitamente.
Há duas horas, foram tomadas medidas especiais de
precaução. Primeiro, supus que me estavam seguindo a
todo passo. Quando estava para empreender a já bem
preparada fuga, apareceu aquele homem, cujo nome já
me provocava sonhos terríveis. Meu estado de
confusão na frente dele era tremendo. Somente os
olhos dele me desmontavam todo. Parecia que seu
olhar era uma radioscopia. Se havia alguém capaz de
conhecer as pessoas do meu tipo, era ele.
Este temor contribuiu um pouco para a perda do
meu autodomínio. Porém, havia ainda outra coisa que
24
me preocupava.
Perry Rhodan, o administrador do Império Solar,
era, ou um fiel sósia do verdadeiro Rhodan, ou era o
próprio Rhodan em carne e osso.
O homem que acabava de entrar para a banca
examinadora jamais podia ter 104 anos. Era um terrano
de compleição atlética, cheio de energia, movimentos
elásticos, pele esticada e olhos claros. Era tão alto
como eu, apenas de ombros mais largos.
— Por que você me olha tão fixamente assim? —
perguntou ele.
— Estou me lembrando da data do seu aniversário,
senhor — respondi gaguejando.
Raramente vi um homem rir de modo tão franco
assim. Virou a cabeça para trás e a sua gargalhada tinha
um timbre de tanta espontaneidade que não pude deixar
de acompanhá-lo.
Depois disso, precisei de duas horas para me
recuperar da dolorosa surpresa. Gente do meu tipo
pode se prejudicar com emoções tais, quanto à saúde.
Quando me senti em condições, ele ainda estava na
banca examinadora. Ele se interessava, pessoalmente,
pelas máquinas vitais das naves.
Logo depois, a jovem matemática me comunicou
que o chefe pretendia decolar pessoalmente com o
Space-Jet. Isto queria dizer que tínhamos de rever os
pontos prescritos do bloco de controle, pelo menos
duas vezes.
Foi realmente uma coincidência muito infeliz, que
exatamente neste momento a Defesa Espacial estava
descobrindo minha falsificação com a radiografia.
Alguém havia desconfiado. Quem sabe, os dois
estudantes de medicina me haviam traído.
No momento, Perry Rhodan estava deixando a
grande banca examinadora. Meus olhos o seguiram
febrilmente. Será que este homem podia ter 104 anos?
“Impossível” eu pensei, ou talvez o verdadeiro Rhodan
já estivesse morto há tempo e — por motivos políticos
— tinham que prolongar a sua imagem.
Nas telas do porão, resplandeceu o aparelho, novo
em folha. Uma construção soberba, de conformação
elíptica, com propulsão acima da velocidade da luz, e
com transição automática. Há seis dias, minha única
preocupação era encontrar uma nave assim. Agora,
tinham colocado a espaçonave dos meus sonhos
diretamente diante do meu nariz, dando-me até a
possibilidade de examiná-la.
Se tudo desse certo, na próxima noite eu
desapareceria com o Space-Jet. Mas agora era o
próprio Rhodan quem ia dirigir. Os preparativos davam
a entender que ele haveria de ir além do sistema solar.
Dependia apenas da experiência com os motores de
propulsão.
Tinha ainda dois minutos.
— Pronto — disse Evelyn.
Comprimi automaticamente os botões do
telecomando.
O conjunto dos motores se pôs a funcionar no bojo
do aparelho. Quando elevei a força do empuxo para 40
mil toneladas, Evelyn reforçou o campo energético.
Estava chegando a hora. Nas duas pequenas telas
para observação do lado de fora, podia-se perceber
alguns homens. Vinham como que casualmente para a
antecâmara da banca examinadora. Atrás deles,
aparecia uma mulher de porte esbelto, de cabelos
louros. Nunca a vi antes, mas a postura tensa de sua
cabeça, como quem quer ouvir algo ao longe, me dava
a certeza de que se tratava de uma pessoa de faculdades
transcendentais.
Evelyn estava ocupada com a segunda fita de
programação. Levantei-me depressa e me dirigi para as
pesadas portas blindadas do porão. Antes de abri-la,
liguei o gerador de deflexão. Estava pendurado no meu
pescoço, ao lado do ativador celular. No entanto, sua
função era outra.
O desvio da luminosidade me tornava invisível para
olhos normais. Uma localização por via energética era
totalmente impossível, porquanto eu usava uma
voltagem muito baixa. Meu campo de desvio da
luminosidade era coberto pelos numerosos motores em
volta.
Esgueirei-me pelo vão da porta, corri para a parede
abaulada do corredor central e alcancei com uns bons
pulos a entrada da galeria da tubulação de ar
condicionado. A simples fechadura não resistiu,
empurrei a grade para cima, entrei e fechei novamente,
ficando depois parado.
Por cima de mim, era a confusão de tubos do
sistema de refrigeração do ar. Mais ao longe estrugiam
os motores de um daqueles aparelhos, pelo qual eu
daria a vida.
Momentos depois eles chegaram, uniformizados,
com armas energéticas na mão. No meio deles havia
uma mulher loura. O tenente-general Kosnow estava
também presente.
Ao ver, mais ao longe, o estudante de medicina,
meio perturbado; cheguei à conclusão de que foi por
meio dele que eu fui desmascarado.
— Você consegue identificá-lo? — perguntou
Kosnow, em voz baixa.
A jovem senhora sacudiu a cabeça. Estava em trajes
civis, mas eu tinha certeza de que pertencia ao corpo de
mutantes de Rhodan. Estava muito atento ao meu
envoltório magnético, pois se eu me traísse com um
único impulso, estaria tudo perdido. Apesar do campo
de desvio, não conseguiria me livrar dela.
Foram para frente, com muita cautela, como
percebi. Dois robôs arcônidas tomaram posição diante
da entrada da galeria de ventilação.
Momentos depois, atingi a parte superior da galeria,
subindo os degraus existentes ali. A galeria terminava
exatamente ao lado de um amplo portão de entrada
25
para o porão de controle subterrâneo. Mais para frente
se erguia do chão a poderosa laje de cimento armado
da sala de exames. A uns dez metros dali, eles haviam
deixado seus helicópteros. Era realmente como eu
supunha: com as grandes distâncias, não era
interessante usar carros.
Com muito cuidado, tirei de trás do ventilador de
sucção, onde a havia guardado há quatro dias, minha
pistola de raios energéticos. Se meus cálculos não
falhassem, dentro de três minutos o inferno
escancararia suas portas. Até então já deviam ter
percebido que eu não estava mais no porão de controle.
A trava de mola da portinhola voltou ao seu lugar
sem nenhum estalo. Inclusive, eu havia até lubrificado
a dobradiça. Fui saindo sem o menor ruído. Lá fora, o
primeiro aparelho estava desocupado. Junto dos outros
helicópteros havia guardas; eram quatro. Tudo corria
dentro do planejado. As dificuldades começariam
agora.
Entrei pela porta meio aberta e sentei diretamente
no posto do piloto. Meu sexto sentido se manifestou:
“Você deve voltar. A cova do leão ainda é o melhor
esconderijo. Você vai ver!”
Os raios sugestores começaram a trabalhar. Os
quatro guardas se viraram, olharam com alguma
hesitação para mim, e colocaram suas terríveis armas
no chão, no momento em que as sirenes de alarme
começaram tocar no porão.
Era a hora. Liguei o motor e puxei o helicóptero
vertical. Esperei um segundo, como mandava a lógica
do meu plano, pois eles tinham de ver que quem fugia
era eu. Estava calmo e equilibrado quando me inclinei
no sentido da porta aberta. A uma altura de vinte
metros, abri fogo contra os dois robôs que vinham
correndo pelo portão de entrada.
Na sala da banca examinadora ecoou o ronco do
motor do helicóptero. Depois, o breve silêncio foi
cortado pelo reflexo dos raios energéticos e, por fim,
pela explosão de dois aparelhos igualmente atingidos.
Com a mão esquerda, liguei o campo de desvio da
luz. Aconteceu que alguns homens da tropa de
investigação surgiram.
Reconheceram-me imediatamente, porém não
reagiram, pois a região toda estava sob meu fogo e os
aparelhos estacionados eram um montão de chamas.
Para mim era suficiente o fato de eles me terem visto.
Com um último olhar, percebi que não havia ferido
ninguém. Não era mesmo minha intenção, pois tinha
certeza de que ninguém me considerava um inimigo,
que tivesse de ser exterminado a qualquer preço. Por
que, então, tinha eu que matá-los?
Sobrevoei três quilômetros de zona de segurança,
entre a seção das bancas examinadoras T-18 e os
gigantescos estaleiros onde eram fabricadas as
espaçonaves mais leves, tipo Gazela.
Antes que alguém lá embaixo soubesse do que
havia acontecido do outro lado da zona de segurança,
eu já estava aterrissando.
Meu macacão azul-claro indicava que eu era
engenheiro da diretoria. Conduzi o aparelho por entre
as torres antigravitacionais do estaleiro, saltei e deixei
o helicóptero ali mesmo, gritando para os homens:
— Deixem tudo como está e fechem as portas.
Houve um atentado no T-18. Onde encontro o
engenheiro de serviço?
A reação foi rápida. Estes rapazes valorosos e
inteligentes se deixaram iludir por uns instantes, e isto
me era suficiente.
— Está no centro de ligações, senhor — gritou um
homem.
Correu e alarmou a todos os outros.
Acenei com a mão direita e desapareci atrás da
primeira torre de gravitação, onde um possante reator
catalítico estava à espera de transporte. Assim que me
senti protegido dos olhares alheios, liguei de novo meu
campo de desvio da luz, que me dava a certeza de estar
completamente invisível.
Daí em diante, meu plano era cronometrado. Tinha
que conseguir fazer em trinta minutos o caminho
percorrido pelo helicóptero. A partida de Rhodan
estava marcada para as 13:30 h. Parecia-me improvável
que ele fosse adiar a partida. Como Evelyn me havia
dito, devia se tratar de um caso especial.
Agora, não era realmente difícil vencer três
quilômetros em meia hora. Mesmo assim, tinha que
contar com dificuldades e imprevistos. Iniciei uma
corrida quase de resistência, saltando barreiras e
passando por entre pessoas nervosas que acabavam de
ser informadas por um oficial da segurança, todo
banhado de suor, de que o procurado se fazia
desaparecer com o desvio da luz. Ninguém o podia ver.
O oficial era Tombe Gmuna. Passei tão perto dele.
Quase nos encostamos. Claro que não me viu.
Ninguém teria de voltar a pé para o lugar de onde havia
fugido há poucos minutos. Mas era a chance que se me
oferecia. Tinha de aproveitá-la enquanto ainda existia.
Gente do meu tipo não hesita, nestas horas.
Diante da cerca divisória do trecho interditado,
fiquei parado, meditando. Numa atividade sem
precedentes, todos estavam à minha procura. Diante de
mim, aquela extensão enorme de cimento armado, sem
o menor vestígio de vegetação. Ali estava a saliência
abobadada das instalações subterrâneas da banca
examinadora. Cada vez mais, os aparelhos aterrissavam
no local. Comandos e comandos de robôs pareciam ao
longe pequenos pontos escuros.
Não ia poder manter por muito tempo minha
preciosa arma, pois haveria certamente um
rastreamento energético. Muito preocupado, coloquei-a
próxima à cerca e continuei minha corrida. Não tinha
mais tempo para procurar os esconderijos onde havia
guardado uma grande parte de meu equipamento
26
especializado. As coisas que ainda estavam comigo
eram o gerador do desvio da luz e a hipno-pistola, que
contra os mutantes era totalmente inoperante. Mesmo
homens de mente firme conseguiam se defender de sua
influência.
Do ponto de vista prático, só dispunha mesmo do
meu instinto de conservação que, no momento, me
aconselhava a arranjar um mapa. Pois, bem perto de
mim, havia um aparelho preparado, de construção
correspondente aos meus planos, já que não me foi
possível me apossar de um Space-Jet.
O caminho para alcançar o meu intento era muito
longo. Para conseguir vencê-lo havia necessidade de
instrumentos funcionando perfeitamente, gêneros
alimentícios e água fresca. Precisaria também de uma
bem montada positrônica a fim de calcular os saltos
para a navegação nas Galáxias e também de algumas
horas com o intento de colocar as coordenadas nas fitas
de programação.
Estava chegando ao fim do meu caminho, dos meus
objetivos, tinha apenas que contar com um fator, aliás,
muito importante. Este fator se chamava Perry Rhodan.
Um trágico destino me levou de encontro ao homem
mais perigoso da Terra, exatamente no momento em
que não me interessava de maneira alguma este
encontro.
Durante minha desabalada corrida, surpreendi-me
sorrindo sozinho. O sujeito me agradara, realmente,
este bárbaro de olhos claros, de gestos sempre
comedidos. Pertencia ao tipo de homens que a gente ou
ama, ou odeia. Certamente, seria um amigo fantástico,
quando queria.
Como inimigo, eu o respeitava mais ainda,
contando, naturalmente que Rhodan ainda era o mesmo
de 69 anos atrás, quando iniciou seu plano arrojado.
Pois, alguma coisa dentro de mim me dizia que Rhodan
ainda era o mesmo.
Com isto, foi se esclarecendo para mim o grande
enigma, isto é, como este homem tinha conseguido
chegar aos 104 anos fisicamente jovem e com o
espírito ágil e sadio. Se não soubesse, por estudos, o
dia de seu nascimento, teria que lhe dar, no máximo,
37 anos.
Atingi o porão exatamente depois de 15 minutos.
Daí para frente tinha de me esgueirar por entre os robôs
que vinham de todos os lados. Foi mais fácil do que eu
pensava, pois ninguém esperava minha volta. Seria
realmente uma ideia maluca. Um pouco mais longe,
parecia que todos os técnicos e engenheiros dos
estaleiros de Terrânia estavam reunidos em assembleia.
O céu, acima das gigantescas instalações, estava
coberto por espaçonaves.
Com a maior calma, continuei andando ao longo da
muralha de cimento armado, até descobrir a pequena
pista para decolagem de espaçonaves leves. Estava
num rebaixamento artificial do solo, equipado com
grandes elevadores. Era daqui que partiam os voos de
experiência.
Diante do aparelho estava Rhodan, cercado de
cientistas e oficiais. A senhora loura não estava mais
com eles. Talvez tivesse sido requisitada para a grande
caçada à minha pessoa. No presente momento, o lugar
mais seguro era realmente ao lado deste grande
homem, que estava ali, tão simplesmente, ao lado de
seus mais íntimos colaboradores. O tenente-general
Kosnow também estava presente.
Cheguei ainda mais perto, até que consegui passar
entre os trens de aterrissagem do Space-Jet. Devido sua
conformação elíptica, suas medidas externas eram 35
metros por 20.
Fiquei parado, bem debaixo da escotilha de serviço,
tentando ouvir possíveis ruídos, pois era provável que
havia gente dentro do aparelho. Rhodan estava a menos
de cinco metros de mim. Seu rosto, normalmente um
tanto anguloso e duro, estava mais relaxado. Tive a
impressão de que ele não se preocupava nem um pouco
com minha fuga. Em compensação, quem estava muito
nervoso era Kosnow, o Ministro de Segurança. Ouvi-o
falar alto e depressa. Rhodan não dava uma palavra.
Vez por outra, contraía os lábios e voltava com uma
expressão de amável ironia nos olhos, examinando o
excitado Ministro de Segurança.
— Determine o bloqueio do espaçoporto, Peter —
disse Rhodan com voz calma. — Ele veio para cá com
o intuito de arranjar uma espaçonave. Chame-o
abertamente pelo rádio e peça que ele se comunique
com você.
Acho que nunca vi um homem tão desconcertante
em minha vida. Kosnow ficou pálido.
— Por favor... será que...
— Exatamente isto. Por que vocês pretendem matá-
lo? Ofereçam-lhe toda hospitalidade, em meu nome, e
peçam-lhe que espere até meu regresso. Apenas
impeçam que ele arranje uma espaçonave. Não
precisam fazer mais do que isto.
— Mas, senhor, eu sou de opinião de que...
Rhodan olhou tranquilo para o relógio. Já estava
com o traje espacial.
— Não me torne a vida mais difícil, Peter. Ele está
sozinho e desesperado. Sua atuação até hoje é muito
interessante. É admirável a precisão com que tem
trabalhado, para conseguir todos estes diplomas. Tudo
isto tem de ter um sentido. Peça para ele se apresentar.
Depois, veremos o resto. Em três dias, estarei de volta.
Chame seu pessoal para fora do aparelho.
Afastei-me depressa da escotilha, quando doze
rapazes uniformizados pularam para fora do aparelho.
Um jovem capitão fazia a comunicação em voz alta e
eu comecei a sorrir quando ele dizia que o procurado
não estava dentro do aparelho.
Rhodan acenou confirmando, despedindo-se
pessoalmente de cada um. Aproveitei estes rápidos
27
segundos para subir pela escada de bordo feita de
material plástico. O único esforço que fazia era para
não provocar o menor ruído. A escotilha estava aberta
e atrás dela havia um pequeno corredor em semicírculo
que conduzia para a central de comando. Apesar de
suas dimensões, o aparelho era chato, em forma de um
disco, com quatro reatores para decolagem vertical e
para aterrissagem. O mecanismo de propulsão estava
bem no centro. Passei através da forte parede blindada
para a central e dei uma olhada em volta. As telas
panorâmicas já estavam em funcionamento. Era como
se a gente estivesse diante de uma parede transparente.
Rhodan desapareceu sob o bojo chato do aparelho.
Estava na hora de eu agir.
Atrás da central, saía o corredor que levava para os
aposentos da tripulação. Lá, naturalmente, seria
descoberto logo. Escolhi, pois, para meu esconderijo,
um armário de parede. Achei nele quatro trajes
espaciais, iguais ao que Rhodan estava usando. As
mochilas continham microrreatores para produção de
energia para refrigeração e para o dispositivo de
purificação do ar. Fora disso, os uniformes possuíam
um projetor do campo de proteção, para a formação do
envoltório magnético.
Pulei para dentro do armário de parede, estudei bem
o ambiente e fechei a porta. Momentos depois, Rhodan
entrou na nave.
Meu coração batia calmo e normal. Depois de
apalpar todo o armário, encontrei uma pistola
energética, o que me deixou bem mais tranquilo. A
poucos metros de mim, o homem mais misterioso do
sistema solar se preparava para decolar. Talvez fosse
uma viagem de inspeção a uma base comercial ou
militar fundada por ele no Império. Rhodan era o tipo
do homem que se preocupava com tudo.
Cinco minutos depois, começou a funcionar o
conjunto de instalações para fornecimento necessário
dos campos energéticos. Instantes após, senti um leve
puxar do campo de neutralização da gravidade e... já
estávamos longe.
O som cavernoso dos reatores me encheu de grande
contentamento. Minha memória fotográfica estava
repleta de imagens dos tempos antigos. Imagens belas
e promissoras. Rhodan pessoalmente me estava
proporcionando, sem o querer, a oportunidade por que
esperei tanto tempo.
“Mas você perdeu 69 anos dormindo”, dizia-me
meu sexto sentido.
Fiquei irritado com a ideia. Sempre as mesmas
admoestações. Mas desta vez tinha dado certo.
As dores eram terríveis e insuportáveis.
Começaram na cabeça e pouco depois foram para a
coluna vertebral. Agora era o corpo todo que me doía.
Depois da transição através do hiperespaço, sentia-me
aniquilado dentro do armário. A minha sorte foi que
Rhodan não percebeu nada do que se passava, devido
ao tremendo ronco dos motores.
Realmente, estava sofrendo bastante. A dor era
tanta que parecia tomar todo meu corpo. Sentia uma
vontade louca de gritar, mas era imperioso que não o
fizesse. Com as últimas forças do meu ser, consegui
me dominar um pouco, reconhecendo que realmente
havia subestimado a pessoa de Rhodan. Devia ter a
saúde de um homem primitivo, e o treinamento de um
atleta de grandes performances.
Logo após a primeira rematerialização, comecei a
gemer de dores. E uns cinco minutos depois, Rhodan já
estava na segunda transição. Agora, depois do terceiro
salto, minhas forças chegaram ao fim.
Não estava acostumado a viajar pelo espaço desta
maneira. Logo após a decolagem no espaçoporto de
Gobi, consegui, apesar da escuridão reinante no
armário, achar e vestir um traje espacial.
Sentia-me preparado para qualquer eventualidade.
Era meu plano aguardar até que Rhodan tivesse
conseguido a primeira transição e depois, obrigá-lo,
sob a mira da arma, a fazer o que eu queria. Poderia ter
feito isto, já desde o início, mas, não sei por que,
preferi esperar um pouco. Talvez fosse porque,
conforme meus cálculos errados, estivéssemos ainda
muito próximos da Terra Com isso, perdi uma ótima
oportunidade. Naturalmente, não poderia imaginar que
haveria de me sentir tão mal após a primeira transição,
que não tinha mais força para levantar a mão. Agora,
estava eu ali, me contorcendo de dores e cheio de
remorsos, num esconderijo indigno. Seria um golpe
errado, em tais circunstâncias, querer ameaçar um
homem que estava acostumado com todos estes efeitos.
Mesmo com a possibilidade de tudo virar contra mim,
ainda teria de esperar. Bastaria que ele simplesmente e
4 45
28
por acaso abrisse agora o armário, para que eu caísse
em suas mãos.
Assim, fiquei ali, bem quieto, crente de que minha
rápida ativação celular me deixaria em boas condições
dentro de uma hora. Naturalmente tudo estaria na
dependência de que este bárbaro de olhos claros me
desse realmente os 60 minutos.
Além das dores físicas, fui acometido também de
uma terrível psicose de fobia. Rhodan havia saltado
três vezes através do espaço. A julgar pela dor sofrida
na rematerialização, teria ele, em cada salto, percorrido
uma distância muito grande. Para onde é que me estava
levando? Estaria eu ainda em condições de achar meu
caminho entre as estrelas? O que aconteceria se ele me
levasse para uma região que me fosse completamente
desconhecida?
Tinha que usar de todas as forças para dominar a
revolta dos meus instintos. Se ao menos, gente do meu
tipo, pudesse não sentir esta terrível dor da
rematerialização!
Quando as máquinas voltaram novamente a
funcionar a toda força, e, portanto, com maior ruído,
aproveitei o ensejo para gemer de dor, um pouco mais
alto. Não adiantou muito, mas ao menos pude ouvir
minha própria voz.
Procurei através de um equilíbrio emocional ter
ódio de Rhodan. Mas por mais que me esforçasse não
me foi possível achar motivos para odiá-lo. Alguma
coisa em meu íntimo me impedia de ver maldade ou
injustiça neste homem. Portanto, jamais poderia odiá-
lo. O máximo que podia fazer, nesta situação, era
lamentar as dores de cabeça que eu estava suportando.
Ele não tinha culpa.
“Rhodan não tem nada que ver com isto, seu bobo”,
dizia meu sexto sentido.
Comecei a esperar e a desejar que os minutos
passassem mais depressa. Cada minuto era para mim a
ameaça de uma nova transição, que me faria sofrer
ainda mais. Depois de passar uma meia hora sem
novidade, concluí que Rhodan estava chegando ao seu
objetivo. Eu calculava que ele estivesse descendo em
qualquer sistema solar por aí, com velocidade não
superior à da luz. Se não fosse assim, com os
fantásticos equipamentos que possui, já teria dado
outros saltos.
Após uma hora, minha dor de cabeça começou a
diminuir e um pouco depois a regeneração do meu
sistema nervoso estava concluída. A pulsação do meu
ativador era forte. Sentia um novo vigor e um bem-
estar geral. O microdispositivo, como sempre, ligara
automaticamente. Trabalhava com plena carga. Caí
numa gostosa sonolência, acordando de repente, após
uns quinze minutos. O ronco dos reatores estava agora
mais forte, podendo ser somente a inversão dos
motores para uma forte frenagem. Rhodan estava
realmente se preparando para aterrissagem.
O pensamento nos perigos, que a nova situação me
traria, me fez estremecer todo. Podia me encontrar em
qualquer lugar, apenas não num mundo onde teria todo
apoio. Aí, eu não teria chance nenhuma. Levantei-me
afobado, apanhando a arma. Minhas ideias começaram
a se atropelar. Que devia mesmo fazer?
O zumbido era infernal: ronco cavernoso misturado
com silvos agudos. Era os quatro reatores que
abrandavam a queda. Nervosamente procurei pela
fechadura da portinhola. Tudo, menos descer, tudo
menos aterrissar, é o que martelava em minha cabeça.
Destravei a porta e a abri. A menos de três metros de
mim, estava a poltrona do piloto, virada um pouco para
o lado.
Rhodan olhou-me imóvel. O cano cintilante de sua
pistola energética apontava para mim, pois já estava
informado sobre minha presença a bordo, antes mesmo
de eu me ter anunciado com tanto ruído. Eu estava
realmente perplexo, como foi que percebeu minha
presença?
“Sua mente, seu bobo, você esqueceu”, disse
novamente meu sexto sentido.
Aí é que fiquei sabendo que meu adversário possuía
também poderes telepáticos. Ele me localizou
mentalmente na hora em que relaxei minha defesa
mental.
— Deponha a arma, arcônida, e volte para o
armário.
Aquelas palavras, ditas com tanta calma me
chocaram. Rhodan agia friamente, como uma máquina.
Não parecia nem surpreendido, nem assustado. Além
disso, percebeu imediatamente qual era o tipo de
clandestino que tinha a bordo. Para ele não havia
dúvida nenhuma de que eu era o fugitivo do deserto de
Gobi. Nunca havia encontrado um habitante da Terra
tão perigoso assim. Rhodan era um lutador com
excelentes reflexos.
Já que eu não dava mostras de querer obedecer à
sua ordem, ele apertou um botão. O choque da
gravidade de, pelo menos, 5 gravos, me atirou no chão.
Caí com tanta força, que quase perdi os sentidos.
Ouvi sua risada sonora, aumentando mais ainda
meu rancor. Aquele pequeno bárbaro se atreveu, com
um truque ridículo, a fazer cair por terra um almirante
da frota arcônida e cientista do Grande Império! Uma
fúria tremenda se apoderou de mim, deixou-me
obcecado e surdo, fazendo-me esquecer de toda dor e
dando-me forças incríveis.
Nas telas panorâmicas, brilhava a superfície de um
planeta deserto. Estávamos ainda a 200 metros dele,
quando me preparei para saltar. Rhodan, naquele
instante, estava ocupado com os controles. Quando
olhou para trás, eu já o havia atingido. Vi seu olhar
assustado, provavelmente me julgava incapacitado para
lutar. Se ele, em contato com meu povo, já tinha sua
experiência formada, comigo ele se enganava. Se,
29
conforme a “Enciclopédia Terrana”, todos os arcônidas
eram fracos e desajeitados, eu, pelo menos, possuía
outros dotes.
Puxei-o da poltrona, pelas costas, atirei-o ao chão
com um pesado soco no ombro, peguei sua perna no ar
e a comprimi contra a barriga.
A reação de Rhodan foi muito rápida, pois girando
o corpo, escapou de um segundo golpe, ficando,
porém, ainda deitado no chão. Atirei-me contra ele,
para lhe aplicar o golpe de Dagor, isto é, comprimir
perto da laringe a artéria que irriga o cérebro, até que a
pessoa perca os sentidos. Se ele não tivesse experiência
neste golpe, em poucos segundos teria que ficar
inconsciente. Suas mãos atingiram minha nuca, mas eu
sabia deste golpe.
“Assim não vai não, seu bárbaro”, pensei.
Quando triunfante comecei dar minha gargalhada
da vitória, aconteceu o que era inevitável, devido ao
meu gesto impensado.
A espaçonave chocou-se com um barulho horroroso
de encontro ao solo do planeta. Olhei rapidamente para
as telas que mostravam apenas altas labaredas e nuvens
de poeira.
Uma força irresistível arrancou-me da posição de
ajoelhado, desmanchou-me o golpe que estava
aplicando e jogou-me de costas. Rhodan sumiu de
repente. Devia ter sido atirado para qualquer canto.
Percebi logo que o aparelho havia batido relativamente
com pouca força e num ângulo bem favorável. Teria
sido mais ou menos, uma aterrissagem forçada.
Estava meio aturdido e minha ira violenta já estava
desaparecendo, tão depressa como chegou. Meio
desesperado, tentei libertar minhas pernas que estavam
presas em alguma coisa. Ao tentar me levantar, senti
um forte estampido, seguido por um chiado agudo de
ar que escapava. O automático do meu traje espacial
estava bom. O capacete abriu na frente, antes que a
descompressão do ar me arrancasse todo ar dos
pulmões. Fiquei sabendo então que estávamos num
mundo sem camada atmosférica.
Densa nuvem de fumaça irrompia das fendas
abertas no assoalho e o grupo principal de propulsão
estava em chamas. As terríveis descargas elétricas
pareciam sair dos acumuladores do sistema de
reversão, eram restos de energia que, por alguma
brecha, estavam escapando.
A instalação de refrigeração, que estava perfeita,
começou com seu alarme estridente, indicando que já
era tempo de abandonar a nave em chamas. Em plena
lucidez de espírito, eu me perguntei como era possível
pegar fogo, num lugar onde não havia ar. Não havia
um grama de oxigênio. Impressionou-me o fato de que
o alarme continuava forte. Os tanques com o oxigênio
líquido deviam estar arrebentados. Já que eles estavam
na parte inferior do aparelho, o fogo encontrava o
alimento necessário. Independente disso era suficiente
às pesadas descargas elétricas, que produziam chamas
intensas, capazes de derreter parcialmente a pequena
espaçonave.
Surgiu uma figura na minha frente, irreconhecível,
naturalmente, pela fumaça azul-escuro, mas só podia
ser Rhodan. Senti suas mãos, quando, com esforço
incrível, me libertou da incômoda posição em que
estava. Meus pés estavam livres.
Rhodan desapareceu, parece que subindo para a
escotilha de emergência. O dispositivo de aquecimento
do meu traje espacial começou também a dar alarme.
Não podia absorver calor superior a 150 graus Celsius.
Apesar disso, ainda estava procurando minha arma.
Sem o radiador energético, não queria sair da nave,
onde alguém certamente me esperava, e desta vez, sem
estar preocupado com os controles na nave. O alarme
era cada vez mais forte e lá no lugar onde meus pés
estavam presos, irrompeu um fogo muito impetuoso.
Sem o traje espacial estaria carbonizado ou asfixiado.
Tateando, consegui alcançar o início da escada de
emergência, e arrastei-me para cima. A escotilha, da
largura de um homem, não tinha comporta. Sua
finalidade era só para casos de emergência. Subi mais
um pouco e deixei-me escorregar no próprio aparelho,
que estava meio inclinado. O metal estava praticamente
incandescente. Caí bem na frente da proa do aparelho,
que de fato estava inutilizado.
Por uns instantes, continuei deitado na areia, onde
caíra, até que abrindo os olhos, dei com Rhodan. Ele
não me fez nada. Fiquei olhando para o céu, de um
azul-escuro, com um sol amarelado, que me parecia
muito grande. Parecia o olho traiçoeiro de um gigante
sanguinário.
Ergui a arma e dei uma olhada em volta.
Rhodan já ia muito longe. Havia me libertado da
má posição em que eu ficara preso na queda, mas
depois me deixou entregue à minha própria sorte. Foi
realmente muito nobre por parte dele. Quando percebi
seu plano, comecei a dar risada.
Longe de nós, talvez uns dois quilômetros,
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sobressaía do deserto uma grande cúpula de aço. Só
podia ser uma base dos terranos. Liguei o rádio do meu
capacete e disse bem calmo no microfone:
— Alô, bárbaro, eu o tenho na minha pontaria.
Você acredita que eu vou deixá-lo entrar na cúpula?
Disparei a arma. O tiro ofuscante pôde ser bem
ouvido, sinal de que ainda havia por aqui um restinho
de uma antiga camada de ar. A dez metros de Rhodan
se abriu a cratera da explosão e havia em torno uma
nuvem de pó de pedra.
Ouvi-o praguejar, através do meu receptor de
capacete. Portanto estava com seu aparelho ligado.
— Muito obrigado, bárbaro, agora estamos quites.
Você me libertou da poltrona e eu, de propósito, atirei
para não pegar em você.
Comecei novamente a rir, pois ainda podia rir.
Ao perceber que não dava para salvar mais nada da
espaçonave, Rhodan resolveu incendiá-la, tirando-me
assim um excelente abrigo. Através desta sua última
atitude, o duelo entre nós dois estava muito
desfavorável para mim. Tive que fazer muito esforço
para sair a tempo das proximidades dos destroços que
começavam a explodir. Seguindo o bom senso,
estabeleci meu esconderijo de tal modo que os
escombros da nave ficavam entre mim e Rhodan. Só
assim poderia escapar de seus tiros.
Somente agora é que estava compreendendo bem o
que eu tinha arranjado com isso. Meus olhos se abriram
e eu percebi que este frio calculista contava com uma
reação de minha parte. Tinha realmente de mudar de
posição. Porém, a maneira como mudei é que são elas.
Rhodan achava-se de posse de uma posição muito
melhor. Primeiro, estava mais próximo da grande
cúpula de aço e depois se encontrando atrás da cúpula,
eu não o tinha ao meu alcance.
Em linha reta entre ele e mim, avultava o monte
fumegante dos escombros do que foi uma maravilhosa
espaçonave. Já que eu estava bem perto dos restos da
nave, estes mesmos escombros encobriam não somente
a cúpula, mas também o próprio Rhodan. Não levei
mais de um minuto, até chegar a uma solução
definitiva. Se é que eu conhecia bem meu adversário
logo após seus tiros devastadores teria ele corrido para
chegar imediatamente ao edifício provido de
pressurização. Ainda não eram passados dez segundos,
depois de minha afobada mudança de lugar, quando fui
tomado por uma ideia luminosa. Não tive mais
dúvidas. Talvez, estivesse superestimando Rhodan. Se
fosse assim, logo depois de eu ter saltado, seus raios
energéticos me teriam fuzilado.
Peguei a arma e fui me arrastando olhando para um
ponto de melhor proteção à frente. Em meio à subida,
havia uns blocos de pedra de onde teria uma boa visão.
Pulei para cima da pedra e fiquei farejando. Depois
começou a corrida, uma corrida louca que a gente
consegue fazer só em momentos de grande perigo e de
desespero. Com seis pulos, tinha resolvido à questão da
visibilidade. Enquanto corria, vi, bem para trás um
outro homem.
Era Perry Rhodan que fez uma coisa da qual só me
conscientizei momentos depois. Quando eu ainda
estava deitado na areia, ofegante, desviando os olhos
do metal incandescente, Perry já estava agindo. Engoli
uma praga e cedi ao meu instinto que me aconselhava,
antes de tudo, arranjar uma proteção. Isto queria dizer
que eu tinha de correr, mais uns duzentos metros.
Durante este tempo, Rhodan também avançou 200
metros. Mas ele não podia correr essa distância melhor
do que eu.
É verdade que resistia às transições muito melhor
do que eu, o que não significava nada em relação à
força física. Choques do hipersalto atuam
profundamente no sistema nervoso. Conheci homens
fortíssimos, que num pequeno salto espacial se sentiam
sempre quebrados.
Estas ponderações passavam com toda clareza por
minha mente, enquanto eu corria. Com o rabo do olho
procurava por novas possibilidades de um abrigo.
Porém, minha grande atenção mesmo era para Rhodan,
que em tempo de corredor bem treinado disparava pelo
deserto quase que plano.
Era um esforço tremendo correr tão depressa com o
pesado traje espacial. Ainda estávamos mais ou menos
em forma. Mas que aconteceria se cada um descobrisse
o plano do adversário, tão depressa que um não
conseguisse pegar o outro?
Neste momento houve mais uma comunicação do
meu sexto sentido:
“Bobo, deite no chão, respire três vezes e atire. Ele
está sem proteção.”
Claro que isto era também uma alternativa. Rhodan
ainda não havia virado para trás, nem uma vez. Apesar
de tudo, não me deitei no chão para melhor atirar.
Conhecia minhas limitações e sabia também que, com
mãos trêmulas e com o coração em elevada pulsação,
não conseguiria boa pontaria. Puxar o gatilho era muito
simples, mas acertar eram outros quinhentos. Se eu
errasse o primeiro tiro, ele certamente procuraria um
abrigo. Haveria de achar, certamente, uma pequena
elevação do solo, em qualquer lugar, e então eu ficaria
mais exposto do que ele. Quem teria no caso mais
chances? Cheguei à conclusão de que era ele, por isso
continuei a correr.
Se ele, por descuido, me desse tempo de atingir os
blocos de pedra, minha situação melhoraria muito.
Aumentei meu tempo e fiquei admirado como os
miseráveis 200 metros tornavam-se tão longos. Meus
pulmões estavam estourando quando alcancei a
pequena elevação e me atirei ao chão entre dois
poderosos rochedos.
Não compreendia como meu corpo bem treinado,
podia sentir-se cansado numa corrida mínima. Diante
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31
dos meus olhos sonhadores dançavam os círculos
olímpicos... Levei alguns segundos até poder ver de
novo com clareza. Instantes depois minha vontade
firmou-se. Não iria mais dar tiro só para espantar,
Rhodan era mesmo meu inimigo. Se ele conseguisse
chegar à cúpula antes de mim, eu estaria perdido.
Com toda certeza, a base devia estar muito bem
munida. Logicamente disporia também de aparelhagem
de rádio, para pedir socorro. Simplesmente o fato de,
chegando antes de mim, ter tempo de ligar o envoltório
de proteção, decidiria meu destino. Na pior das
hipóteses, ele me poderia deixar morrer de sede no
árido deserto. Tinha na mochila somente dois litros de
água.
Caso eu chegasse antes dele na cúpula, o quadro
estaria invertido. Os limites estavam bem delineados:
era um caso de vida ou morte. Já estava com arma
engatilhada e o visor não precisava de regulagem. Um
raio térmico ultrarrápido tinha sempre uma trajetória
reta, jamais podendo ser prejudicada pela força da
gravidade ou por fortes ventos ou ainda por simples
resistência do ar. Quando ele me estivesse sob a mira,
não haveria mais dúvida. Num planeta de rara
atmosfera, a exatidão do tiro seria absoluta.
Escolhi bem o ângulo e atirei. Um verdadeiro
trovão soou no meu ouvido, a arma deu um forte coice
e o cano se levantou um pouco. Mas o tiro já tinha
saído. Bem rente ao homem que corria, surgiu uma
cratera de lava incandescente e Rhodan foi atirado para
o lado, caindo de rosto no chão. Se eu tivesse contado
mais com sua fantástica capacidade de reação, teria
evitado o próximo erro. Levei dois segundos, para,
com meus olhos ofuscados pelo clarão, poder ver bem
a mira.
Exatamente neste meio tempo, Rhodan deu um
salto para o alto, de tal modo que não pude mais
interromper o tiro. No lugar onde ele estava antes,
bateu a nova carga, abrindo de novo um buraco na
areia. Atirei mais uma vez, mas o diabo do homem já
havia desaparecido, tinha realmente achado um abrigo.
E apesar de minha localização mais elevada, eu não o
avistava.
De respiração tensa, fiquei aguardando. A distância
seria mais ou menos uns 400 metros, o que não
representava nada para uma arma energética de amplo
alcance.
A parte de transmissão do meu aparelho de rádio
estava desligada há tempo. O receptor, porém, estava
ligado. Aumentei o volume e fiquei na escuta, com
toda atenção. Fora dos ruídos normais de estática, não
se ouvia nada. Aí, comecei a cismar que Rhodan
também havia desligado o transmissor. Certamente
estaria procurando controlar a respiração.
Comecei a rir para mim mesmo, até que foi
surgindo um pensamento que me inquietou. Por que
Rhodan não foi atingido com o primeiro tiro? Foi um
disparo bem certeiro. Minha memória fotográfica me
lembrou de que estes modernos trajes espaciais
possuem um gerador de campo. Naturalmente, no calor
da refrega, tinha me esquecido de ligar o envoltório de
proteção.
Tive de fazer um grande esforço para não ficar
furioso comigo mesmo. Quem sabe se o envoltório não
aguentaria mesmo um tiro em cheio, mas normalmente
devia ser à prova de ferimentos mortais. Tentei então
recuperar o que havia perdido.
A lâmpada de controle, acesa na região torácica do
uniforme, indicava que tudo estava em ordem. O leve
cintilar era quase imperceptível. Fiquei perplexo
quando li o indicador do registro: como poderia eu, nos
poucos momentos desde a aterrissagem, ter consumido
24 quilowatts-hora? Olhei mais uma vez, à procura de
um possível engano, quando ouvi de repente um estalo
no alto-falante do capacete. Fiquei a princípio
assustado, procurando encontrar a transmissão. Mas, só
pelo ouvido, não era possível. Não se podia supor que
Rhodan trabalhasse com raios dirigidos em feixe.
Talvez ele estivesse irradiando em todas as direções.
Por via de dúvidas, examinei a instalação da antena no
capacete. Não, não estava regulada para raios dirigidos
em feixe.
Continuou aumentando o número de estalos. De
súbito, se podia ouvir a respiração de alguém. Soava
regular e equilibrada. Na chapa espelhada do meu
capacete percebi que meus lábios se contraíam para um
sorriso. Se este rapaz estava pensando que ia me
desconcertar com truques psicológicos, estaria
enganado pela segunda vez, e redondamente. De
qualquer maneira, o pensamento não era nada mau,
querer deixar o inimigo na dúvida quanto ao paradeiro
certo.
— Alô, arcônida, você está me ouvindo? — soou
alto demais e eu abaixei o volume imediatamente.
Então comecei a respirar com muita calma e liguei o
transmissor.
— Estou ouvindo, bárbaro. Que quer? Está
implorando piedade? Você está sob a minha pontaria,
vou apertar o gatilho daqui a dois minutos.
A gargalhada de Rhodan me fez morder os lábios
de raiva. Ele sabia que eu não podia vê-lo, que mal
conhecia sua direção.
— Seu bobo — respondeu ele com voz suave. —
Em minhas incursões em Árcon liquidei centenas de
pessoas iguais a você de uma vez só.
Fiquei trêmulo de ira. Sabia onde me queria atingir.
Para me dominar, tinha que fingir tornar-se indiferente.
Como se não ligasse, esforçando-me até para rir. Mas
era difícil, não estava em minha natureza. De qualquer
maneira, estava ficando mais fácil quando eu pensava
que ele dizia aquelas palavras ofensivo para me
desmoralizar ou para me obrigar a um gesto
impensado. Custou, mas fui me tornando indiferente às
32
ofensas.
Rhodan continuava rindo. Interrompi-o, dizendo:
— Economize seu ar, bárbaro. Se eu o deixar sair
vivo daqui, será para levá-lo para uma corte marcial do
Império.
A afirmativa era um tanto ousada. Tinha o fim,
apenas, de obrigá-lo a um pouco mais de ponderação.
Parece que mordeu a isca.
— É interessante mesmo. Você é um agente cômico
do Império.
É claro que não era nenhum agente, mas isto não
era da conta dele.
— O que você pensa, hein? Um pouco tarde, é
verdade, mas descobrimos que sua prolongada morte
em 1984 foi um simples truque. Agora temos você e
seu ridículo Reino Planetário, que num criminoso
atrevimento chama de Império, em nosso poder.
Vamos ajustar as contas logo, seu bárbaro.
Havia cometido um erro, só não sabia qual era.
Rhodan gargalhava gostosamente e desta vez havia
sinceridade total em sua voz.
— Arcônida, ninguém no Império de Árcon poderia
saber que no tempo de minha suposta morte, a Terra
estava no ano 1984.
— É! — disse eu em tom de zombaria.
— Você também não vem diretamente dos três
planetas, seu sonhador. A “Enciclopédia Terrânia” lhe
contou muita coisa sobre a evolução da Humanidade,
mas isto não basta para você querer me enganar.
Estava realmente me deixando confuso.
Naturalmente, teria sabido por intermédio do general
Kosnow, de que maneira eu havia aparecido entre os
homens, pela primeira vez.
— Nós não dependemos de sua enciclopédia. Basta
afirmar que eu o encontrei.
— Você serviria a um robô e receberia ordens dele?
— perguntou, enraivecido.
Eu estava indignado profundamente. Era muito
comum fazerem tais considerações. E ele repetiu:
— Você seria escravo de um robô?
Eu batia com os dentes, de tanta ira.
Que palavra terrível: escravo de um robô... Ouvi
uns ruídos, depois que a gargalhada de Rhodan
terminou.
— Está certo, arcônida. Está tudo muito claro.
Quando uma pessoa fica tão excitada e nervosa como
você, é um sinal que não é um arcônida. Já há muitos
anos que o Império está sob a regência absoluta de um
cérebro positrônico, sob cujo chicote até o sereníssimo
imperador tem que dançar.
— Mentira deslavada — gritei fora de mim.
— Não me importo, entende? Não se pode ajudar a
quem não quer ver a realidade. Está certo. Sei que você
é um pobre solitário. Quer me dizer seu nome?
Concentrei-me bem depressa. Ele estava a par de
toda a minha mentira. Jamais conseguiria que ele
ficasse nervoso.
— Meu nome é Atlan, comandante da frota do
Grande Império, cientista e técnico de primeira classe,
nos ramos de Colonização do Cosmo e de Técnica de
Superenergia. Vou transformar seu sistema solar em
nossa colônia, seu bárbaro.
Houve um silêncio e eu me senti contente de que
ele agora sabia com quem estava tratando.
— Não deixa de ser um orgulho ridículo,
ilustríssimo — foi à resposta irônica. — Minha atual
esposa também falava assim, há muito tempo atrás. O
nome Thora, da estirpe dos Zoltral, representa alguma
coisa para você?
— Sim, é claro. Conheço o nome apenas pelo
estudo da história.
— Ela casou comigo, um terrano. Temos um filho.
Você não acha que esta arcônida de sangue nobre teve
motivos suficientes para casar com um terrano?
Novamente comecei a morder os lábios. Era um
problema que nunca me passou pela cabeça. Não
respondi nada.
— Está certo, é bom pensar um pouco. Atlan, não é
assim seu nome? Bem, Atlan, agora preste atenção.
Eu me surpreendi já com uma risada sardônica.
Agora chegaria naturalmente o momento das
ponderações para eu depor a arma.
— Sabendo que o Grande Império Arcônida está
chegando ao fim, Thora aceitou meu pedido de
casamento. Hoje não existem fronteiras raciais e seu
orgulho não tem mais razão de ser. Ofereço-lhe, pois,
uma rendição honrosa.
— Rendição? — respondi revoltado.
— Naturalmente. Ou você acha que vou deixá-lo
voltar sem mais nem menos para Árcon, para você
espalhar para meio mundo o que está acontecendo aqui
em nosso pequeno planeta, tido como completamente
destruído? De maneira alguma. Tente compreender isto
e saia de seu esconderijo de mãos ao alto.
Parecia muita petulância e eu não aceitei.
— Quero ser seu amigo e não seu prisioneiro, seu
bárbaro.
Rhodan sorria serenamente.
— Muito esquisito Atlan! Como se pode chamar de
bárbaro alguém que se deseja para amigo?
Olhei aborrecido para a direção do seu esconderijo.
Realmente, ele tinha razão.
— Agradeça aos céus que eu não o chamo de
monstro — respondi-lhe em tom mais amistoso.
Houve silêncio, nesse duelo suigeneris. Finalmente,
falou com grande calma:
— Atlan, se você não quer se entregar, eu me sinto
obrigado a destruí-lo. E isto se torna para mim
grandemente doloroso, mas você não me dá outra
opção.
— Experimente fazê-lo.
— Vou fazê-lo. Nossa água não dá para muitas
33
horas. Daqui a 72 horas os microrreatores não mais
funcionarão. Este planeta fica muito distanciado da
Terra. Nós o chamamos de Hellgate, porque é
realmente a porta do inferno. Você já deu uma olhada
para o termômetro externo?
Realmente, não havia me preocupado com isso até
então. Foi aí que reparei como a aparelhagem técnica
do meu traje espacial tinha consumido tanta energia.
Tive então calma para observar o chiado da instalação
de ar condicionado. Há tempo que a luzinha vermelha,
indicadora de carga deficiente, estava acesa. A
temperatura externa, ao sol, era de 148,3 graus Celsius.
Só agora pude compreender por que aquela correria de
apenas 200 metros me cansou tanto. Meu traje espacial
já estava há muito tempo além dos limites de sua
capacidade.
Logo depois comecei a sentir pontadas nos
pulmões. O ar que respirava estava demasiadamente
quente. Conforme o termômetro, a temperatura interna
era de 41,7 graus Celsius. Pessoas do meu tipo, em
geral, não transpiram. No entanto, eu já estava banhado
em suor. Estando bem próximo do sol, o calor neste
planeta era assombroso, fazendo jus ao nome de
Hellgate, ou seja, “Porta do Inferno”.
— Então, arcônida? — continuava a pergunta de
Rhodan. Sem o querer, estava colocando à minha
disposição uma arma psicológica.
— Ótimo — disse eu com muita pose e entonação.
— Uma temperatura muito boa para a saúde, não é,
bárbaro? Sempre senti frio em seu mundo gelado. Você
deve saber que o sol de Árcon, muitas vezes maior que
o da Terra, é também muito mais quente que o seu
solzinho de doze meses. Cresci com aquele sol
inclemente na cabeça. Ainda estarei cem por cento
quando você estiver se afogando no próprio suor.
Talvez você vá-se transformar em carne-seca.
Ele me chamou de doido varrido e eu só pude rir.
— Minha proposta, seu bárbaro: se entregue logo,
eu não lhe farei mal algum. Se você realmente for
inteligente...
— Sem comentário — interrompeu-me ele. — Pois
bem, Atlan, considere, então, que daqui em diante
estamos em estado de guerra.
— Aceito, selvagem. Olhe muito para sua água.
Estes miseráveis dois litros, você os consumirá em
pouco tempo. A temperatura externa para você também
é de 148,3 graus, não é? Formidável, formidável, como
isso faz bem ao meu metabolismo. Isto é que é um
calor de verdade. Quer que lhe ceda um litro de
líquido? Atlan está com tudo, bárbaro. Topo qualquer
parada.
Rhodan não disse uma palavra. Tinha certeza de tê-
lo atingido com meus argumentos convincentes. Nós os
arcônidas aguentamos de fato o calor com muito mais
facilidade do que os habitantes da Terra. Minha grande
sorte foi que Rhodan não sabia há quanto tempo eu já
estava na Terra e que meu organismo estava mais
adaptado às condições climáticas deste planeta.
Minha garganta estava completamente ressecada,
pois estivera quase uma hora exposto ao sol. Olhei
pesaroso para a direção dos rochedos. Do outro lado
deles, haveria sombra. Porém ficaria ao alcance de
Rhodan. Diante de meus olhos, aros de fogo
começaram a dançar.
— Estamos, pois, em estado de beligerância, —
foram as últimas palavras de Rhodan antes de desligar
o microfone.
Eu também desliguei o meu. Um silêncio fúnebre
se estendeu sobre o deserto de areia e de pedras do
planeta apelidado “Porta do Inferno”, como um mar
sem fim.
Levando a mão em pala e piscando muito, tentei
olhar para o alto, desejando que a noite viesse o quanto
antes. O calor teria então que diminuir. Finalmente,
afastei-me um pouco das pedras escaldantes e desliguei
meu campo energético, para economizar energia. O
diminuto transformador térmico já estava há muito em
sobrecarga e o envoltório de proteção não adiantava
nada contra a irradiação solar.
Do outro lado, nada se movia. Rhodan não se
atrevia a sair de seu abrigo. E assim começou a longa
vigília: um espreitando o outro. Era o início de uma
lenta agonia.
De um momento para o outro, todos os meus
sentidos desapareceram, como se alguém me tivesse
injetado nos pulmões um gás entorpecente. Quando
acordei com dores alucinantes nas vias respiratórias,
haviam se passado apenas dois minutos. O desmaio foi,
pois, muito curto, mas não deixou de ser um alarme
importante.
Já eram decorridas quase doze horas desde que
Rhodan se comunicara pela última vez. Neste tempo
todo, Rhodan não deu sinal de si, pois certamente
queria provocar um suspense quanto ao seu estado
físico. Também eu não me manifestei. Já havia
consumido um litro de água. Era necessário um
57
34
autodomínio fantástico para retirar da boca o
canudinho de sucção, quando o nível da água chegava
ao ponto determinado pela prudência. Ultrapassá-lo
seria uma loucura. Já há três horas que meu
subconsciente trabalhava apenas em função do
fantasma da água. Era um desfile de quadros de um só
assunto: líquido, líquido de todos os tipos,
principalmente sob a forma de água comum.
Durante seis horas, transpirei sem parar. Estava
chegando a fase do ressecamento. Era como se meu
organismo não tivesse mais uma gota de líquido.
Se conseguisse, com o máximo de autodomínio,
conter o desejo irresistível de água, procuraria depois
refletir um pouco sobre a situação. Estava deitado sob
o sol, sem nenhuma proteção. A temperatura externa
continuava a mesma, cerca de 148,5 graus Celsius. A
areia do deserto estava ainda mais quente.
Assim, para minorar a situação, comecei a mudar
de posição em intervalos de no máximo de três
minutos, para dar vazão ao calor proveniente do chão
causticante. Deitava-me de barriga para baixo, depois
de lado e finalmente de costas. Este movimento
constante, porém, exigia muita energia. Com cada
mudança de posição, notei que as forças iam
diminuindo e minha resistência ia chegando a zero.
Estas doze horas se transformaram numa
eternidade. Estava chegando ao ponto que muitos
homens e arcônidas tinham conseguido superar antes
de mim. É o momento crítico em que a lógica e o
pensamento claro desaparecem. Dá-se um curto-
circuito na central de comando do cérebro. Estes
segundos de pânico transformaram, em todos os
tempos da história, simples cidadãos em heróis e
tornaram covardes, guerreiros destemidos que
enfrentaram a morte com denodo.
Sabia que não ia aguentar por muito tempo esta
situação. Minha aparelhagem de refrigeração — cuja
finalidade não era apenas eliminar a umidade natural
do corpo, mas também e principalmente absorver os
terríveis raios do sol inclemente — já estava
começando a pifar.
A instalação para fornecimento de oxigênio e
purificação do ar não funcionava mais. A capacidade
máxima de resistência do traje espacial era de 150
graus Celsius. Dei ainda, por minha conta, uma
margem de segurança de 5 graus, mas com isto a
instalação devia mesmo ter chegado ao fim.
Meu microrreator tinha uma potência de 50
quilowatts por hora, isto calculado como boa margem
de segurança, pois nunca se precisaria de tanta energia.
Mas até este aparelho estava em sobrecarga. Só o
campo de reflexão da instalação de ar condicionado
necessitava de 45 Kw para poder funcionar
normalmente.
A filtragem do ar carecia de 2 mil Watts e o sistema
de refrigeração comia 3 mil Watts por hora. Tudo isto
dava um montante de consumo de energia tal que as
reduzidas baterias e transformadores mal podiam
cobrir.
No envoltório de proteção para defesa contra
corpos materiais e contra irradiações energéticas ou
ionizantes nem era bom pensar. Mesmo em condições
normais, ele já consumia 50 quilowatts.
Se pudesse encontrar um material condutor, teria
chegado à ideia maluca de adaptar o microconversor de
impulsos de minha pistola térmica. Mas não encontrei
nos bolsos do traje nem um pedacinho de fio metálico.
Minha garganta não estava aceitando a abundante
alimentação concentrada, empacotada na mochila do
traje espacial. Também não tinha fome.
Mas, meu maior sofrimento era provocado quando
respirava o ar escaldante. A temperatura interna havia
subido para 50,8 graus. Mais ou menos da mesma
temperatura era a horrível mistura de oxigênio com
hélio. Tinha ar para 72 horas, mas com toda a certeza
minha vida não iria tão longe assim.
Chegou a hora de outra fase de desmaio. Num
esforço ingente, tentei concentrar a atenção em alguma
coisa e fiquei olhando para o ponto onde Perry Rhodan
devia também estar deitado na areia ardente. Ainda
podia ver a mancha vitrificada do meu último disparo
energética, no chão de areia. Pelos meus cálculos, aliás,
sempre bem feitos, Rhodan não podia estar a mais de
30 metros daquele local. Não podia ter caminhado mais
do que isto, em todo este tempo.
Tinha que vigiar uma extensão de uns sessenta
metros de raio em torno de mim, para não ser apanhado
de surpresa pelo adversário. Com a luneta de mira de
minha pistola energética, varria constantemente o
terreno em volta, sem nada encontrar. Talvez não
houvesse mesmo nenhuma reentrância no solo arenoso
onde Rhodan pudesse se abrigar ou ir se arrastando.
Por muito tempo, fiquei refletindo sobre a
conveniência ou não de varrer com disparos
energéticos aquela pequena área. Mas cheguei à
conclusão de que era muito improvável atingir meu
adversário, talvez abrigado numa saliência rochosa. Os
prós e os contras deste plano apresentavam um quadro
negativo. Caso não encontrasse, em pouco tempo, o
paradeiro de Rhodan, ele me teria facilmente sob a
mira de sua arma. Já no meu primeiro tiro, ele
certamente localizou bem minha direção.
Desisti, pois, da ideia maluca e fiquei esperando
que o bárbaro perdesse a paciência. Pelo rastro na areia
do meu último disparo, Rhodan poderia perceber muito
bem que eu estava numa pequena elevação.
Podia também determinar a direção, pois o disparo
deixara uma cratera bem alongada. Uma angulação
perfeita, porém, não seria possível, pois estava a mais
de 30 metros de mim. Se existisse só uma elevação,
seria uma maravilha para Rhodan. Mas eram três e eu
poderia estar em qualquer uma delas.
35
Por este mesmo motivo, Rhodan não iria atirar, pois
sabia que com isso eu iria descobrir seu paradeiro.
Nesta luta de trincheira, de um ficar espreitando o
outro, tudo dependia de quem cometesse o primeiro
erro. Para encontrar um abrigo conveniente, teria que
passar por campo aberto. Mais para trás, cerca de um
quilômetro, estendia-se um trecho mais montanhoso,
calcinado pelo sol. Lá em cima haveria não somente
esplêndidos pontos de defesa, mas, sobretudo trechos
de sombra.
Estava mordendo meus super-ressecados lábios,
quando meus olhos indecisos perceberam uma caverna
funda e escura. Estava fresco lá dentro; um tanto mais
fresco. No máximo cem graus de calor... Inebriei-me
com uma temperatura que normalmente me seria
insuportável. Os apenas cem graus de calor me
pareciam um suave lenitivo. A instalação de ar
condicionado poderia descansar um pouco. O reator
também funcionaria melhor.
Nuvens incandescentes começaram, de repente, a
dançar na minha frente. Do meio delas, saltou
subitamente a figura de Rhodan. Passou correndo na
minha frente, dando uma enorme gargalhada e me
atirando areia com chutes de suas botas.
Consegui me controlar no último instante. O cano
de minha arma já estava saindo do vão das pedras,
quando despertei da alucinação.
O fantasma de Perry Rhodan se desfez diante de
mim, restando apenas o deserto, uma superfície
desesperadora de areia clara e ofuscante, com milhões
e milhões de cristais reverberando a luz e o calor.
Queria gritar um pesado palavrão, mas minha garganta
não conseguiu emitir som. De novo a vontade louca de
tomar água. Ainda me restava um litro. Encolhi o
corpo e dei um soco no capacete pressurizado. Só o
pensamento de que Rhodan estava passando pelo
mesmo sofrimento é que me dava um pouco de alento.
Tinha, porém, o pressentimento de que alguma coisa
haveria de acontecer.
Senti, de súbito, um impulso do meu sexto sentido.
Um calafrio me percorreu a espinha dorsal.
“Ele tem dons telepáticos! Não descuide de seu
bloqueio mental!”
Senti-me mais resistente a alucinações. No reflexo
do vidro da viseira do capacete, reparei na palidez do
meu semblante. É claro que não devia relaxar minha
defesa mental, mesmo que isto fosse muito difícil
devido ao meu estado físico depauperado. Se Rhodan
me captasse o pensamento, também descobriria meu
paradeiro. E então, não teria mais força para resistir.
Comecei a praguejar em voz alta, mas saía apenas
um chiado rouco. Porém de qualquer maneira, era
minha voz e isto me estava encorajando. Fiquei de
repente bem lúcido e minha visão mais nítida.
Aquilo tinha sido planejado. Planejado
psicologicamente à base da necessidade louca de água
que martiriza a pobre criatura. Todo meu pensamento
agora tinha que ser sem muita profundidade. Eu não
podia formar em mim ideias lúcidas.
Poderia apelar somente para os instintos mais
primitivos, e nada mais. Sentimentos e desejos do
subconsciente jamais chegam, em geral, a ser
expressos por palavras formais. Resumindo, somente
devia admitir conceitos referentes à avidez de água
para o corpo ressecado.
De um momento para o outro, tentei a lucidez de
pensamento. Uma esperança nova me arrancou da
letargia e deu forma ao meu plano. Já estava pronto.
Rhodan devia fazer com que eu percebesse o local do
seu esconderijo. O modo de conseguir isto, não me
interessava. Para o quê eu me formara em
Cosmopsicologia? Conhecia muito bem os homens.
Com muita ponderação, dominando toda avidez,
sorvi um pouco de água. Em cada gole, gargarejava
bastante, até que o líquido fosse bem absorvido pelos
tecidos ressecados. Não queria propriamente beber,
mas avivar um pouco minhas cordas vocais. Depois de
cada gole, dizia alguma coisa em voz alta e bem
articulada. Quanto mais água penetrava na garganta,
tanto melhor ficava minha voz. Estava correndo o risco
de desperdiçar meu resto de água.
Depois de ter bebido quase meio litro, minha voz
estava perfeita. Comecei a cantar com voz média uma
modinha popular, até ter a certeza de poder cantar
também os sons agudos. Após o exercício da voz, veio
mais um gole. Este era mesmo para beber.
A seguir, comecei a ajeitar o texto imaginário.
Parecia uma coisa boba, mas tinha sua finalidade.
Tratava-se dos conceitos “água” e “beber”. Somente
isso. As duas palavras deviam aparecer o mais
frequente possível no “texto”.
Fiz ainda um teste geral da minha voz e da canção.
Finalmente liguei o transmissor do capacete. Podia me
arriscar a isto, pois seu consumo era apenas de 5 Watts.
— Alô, bárbaro, como vai? — disse eu com a
maior naturalidade e voz descansada no pequeno
microfone.
Isso devia deixar Rhodan meio maluco e
desorientado. Naturalmente sua garganta não iria ter
som algum e não seria homem para falar com voz
deficiente. Mas haveria de me ouvir e era isto que me
interessava.
Dei uma gargalhada de pulmão cheio.
— Alô, bárbaro! Estou com lágrimas nos olhos de
tanto rir. Puxa, meu rosto está todo molhado e o
culpado é você. Por que me provoca o riso desta
maneira?
Parei de falar e fiquei na escuta. Primeiramente foi
a palavrinha “molhado”. Tinha que agir com técnica
para que afrouxasse um pouco a vigilância e
cochilasse. Talvez estivesse sentindo muito mais sede
do que eu, pois um homem não pode aguentar tanto
36
sem água como um arcônida. Se meus cálculos não me
falham, devia ter ainda, no máximo, algumas gotas,
apesar de todo seu autodomínio. Tudo de uma vez, não
poderia ter bebido. Um homem do tipo de Rhodan não
faria isso.
— Alô, bárbaro! Por que não responde? —
exclamei mais alto ainda. — Será que devo lhe dar um
pouco do meu “tanque”? Até agora tomei poucos
goles. Então, Rhodan, como vão as coisas? Nenhuma
resposta, hein? Já vi muitos terranos morrerem de sede.
Qual é a sua situação? Quer se render agora?
Cumprirei minha palavra, não o matarei. Alô,
responda, por favor...
Comecei a rir de novo em voz alta, sabendo que ele
não ia mesmo responder. Mesmo que quisesse, a voz
não lhe obedeceria. Comecei então a pôr em prática o
meu plano. Devia ser horrível para ele. Certamente
ainda estaria pensando nas minhas lágrimas “úmidas”.
— Alô, bárbaro! Vou cantar uma linda canção em
sua homenagem. Você conhece a melodia. É para
distraí-lo um pouco, nesta solidão sem fim. Preste bem
atenção no texto, é de minha lavra, do amigo Atlan,
aquele que você não quis ouvir.
E comecei a cantar:
A água é divina,
É uma coisa fina.
Como é bom beber
A água a correr.
Água da mina
Que vai pra piscina,
Vem refrescar
Minha triste sina.
Poesia com fins psicológicos, ridícula e boba, onde,
porém, a rima tem um efeito de bomba sentimental.
Continuei a cantar, sempre a mesma coisa. “A água é
divina, é uma coisa fina, como é bom beber.”
Tinha certeza de que ele estava ouvindo e não teria
força para desligar o receptor, preso que estava aos
desejos subconscientes. Talvez até sentisse
alucinações.
Continuei cantando, sempre as mesmas palavras,
até ficar com a garganta completamente seca de novo.
Já estava aceitando o fracasso irremediável de todo o
meu plano, quando aconteceu o inesperado.
Ouvi um ruído horroroso no alto-falante do meu
capacete. Alguém queria gritar, mas a garganta não
funcionava. A apenas uns 400 metros houve um clarão
amarelado. A trajetória incandescente dos raios
energéticos veio bater no flanco de uma pequena
elevação, a uns trinta metros de mim, produzindo uma
cratera de areia candente.
Era isso mesmo. O coitado tinha perdido o controle
do sistema nervoso e atirado. Fixei bem o ponto de
onde veio o tiro. Depois do seu segundo disparo, eu
comecei também a atirar. A arma saltou de minha mão
e escorregou para o lado.
Do outro front vinha fogo cerrado e destruidor. Mas
cessou de repente. Eu dei mais de vinte tiros na direção
de onde vieram seus disparos, parando somente quando
o dispositivo automático deu sinal de alarme. A arma
atingira a temperatura limite. Agora tinha de esfriar.
Do outro lado só se via uma enorme cratera de
pedras e areia incandescentes. Rhodan não estava mais
vivo.
Abobalhado e apático fiquei olhando para lá. Sabia
que havia matado um homem que poderia ter sido meu
maior amigo. Com muita dificuldade, fui caminhando,
sem direção certa. A grande cúpula, com seus tesouros
tentadores, ficava a uma distância de um quilômetro e
meio. A elevação que lhe servia de pedestal ficava
próxima. Meu caminhar por aquela areia escaldante
não tinha mais sentido nenhum. Pareciam mortos todos
os meus sentimentos e anseios. Ele me salvou da
aeronave em chamas. Se não tivesse feito isto, não teria
tido tanto aborrecimento. Minha consciência estava
pesada. Tomei as últimas gotas de água. Haveria de
vencer aquela pequena distância.
Para os mil metros até os pés do morro, cuja altura
oscilava em torno de uns cinquenta metros, gastaram
quase uma hora. Ao chegar à sombra do pequeno
morro, deixei-me cair para descansar. Deitei de braço e
pernas abertas. Joguei a arma para o lado, como se não
precisasse mais dela.
Ao virar a cabeça, depois de algum tempo de
repouso, vi um fantasma caminhando pelo deserto.
Comecei a rir desta alucinação, até que a aparição se
ajoelhou na minha frente e começou a gingar a metade
superior do corpo. Levantou um dos braços ao ar e
qualquer coisa metálica reluzia em sua mão.
Eu estava paralisado, de olhos fixos naquele objeto
cintilante, quando dele começaram a sair jatos de fogo,
a uns dez metros da minha cabeça. Pedaços de rocha
incandescentes sibilavam próximas do meu corpo. E o
fantasma continuava atirando, mesmo depois de se
levantar. Pôs-se em movimento, atirando sempre, até
desaparecer atrás de uma rocha.
Minha alucinação tinha sido naturalmente Rhodan,
que logo depois que eu comecei a caminhar para o
morro, também mudou de abrigo. Certamente ele
estava me vendo durante todo o tempo que eu
descansava e não atirou em mim. Por que motivo?
Bondade pessoal dele? Ou por que meu choque
“psicológico” o arrasou emocionalmente?
Não, certamente não. Simplesmente ele não tinha
mais força para atirar. Quando se está extenuado, até
um palito de fósforo pesa mais do que um saco de
farinha. Somente agora, depois que eu virei o rosto
para ele, é que começou a atirar contra mim, sem
atingir nem mesmo a direção onde me encontrava.
Não estava mais me preocupando em saber como
este infeliz ainda estava vivo. No fundo, eu o estava
admirando, admirando cada vez mais.
37
Instantes após, lá ia eu desaparecendo entre as
rochas, levando comigo ainda a arma. O calor estava
tenaz e não tinha mais uma gota de água. E, no entanto
a cúpula da esperança achava-se a 400 metros, com
uma estrada de suave aclive e muito cômoda.
Tivemos mais oito horas de vigilância e espreita
mútua. Quase todos os truques imagináveis foram
empregados para deixar o adversário fora de combate.
Os menores detalhes eram vitais, pois qualquer erro
teria consequências fatais. A luta era para valer.
Mutuamente nos xingamos, gritamos e nos ameaçamos.
Ambos exigimos a rendição do adversário, mas
ninguém cedia, e não podia ceder mesmo.
Éramos como água e fogo. Quando ele atirava, suas
mãos estavam trêmulas e os olhos confusos. E, quando
eu o tinha sob minha mira, ao mudar de posição, fazia
uma série de disparos, mas sem atingi-lo. Parecia até
que a retícula da mira telescópica da arma estava
trabalhando contra mim. Quando eu tinha Rhodan no
centro da pontaria, a imagem se transformava em rodas
de fogo, e o tiro se perdia.
Dentro do traje espacial, o termômetro acusava 59,3
graus Celsius. A esperança de poder me refrescar um
pouco numa caverna menos quente do morro, foi
frustrada por Rhodan. Rhodan não tinha dó.
Certamente, ele está, mais uma vez, identificado com
sua querida Humanidade, a quem ele trairia no
momento em que permitisse minha entrada na cúpula.
Parece que este pensamento lhe dava forças
descomunais, transformando-o, por assim dizer, num
mártir da Humanidade. Quando julgava ter descoberto
um caminho para a base, imediatamente era coberto
por uma saraivada de tiros. Este bárbaro não sabia o
que era repouso. Talvez estivesse mesmo meio
inconsciente. Talvez não tivesse uma gota d’água,
depois desta caminhada toda pelo deserto escaldante.
Já havia renunciado há muito tempo à explicação
de um fenômeno que no começo me preocupava muito:
como é que Rhodan podia ainda estar vivo e resistindo
daquela maneira... Esgotado, exausto física e
mentalmente, muito além da força humana. Se
demorássemos apenas mais uma hora, nenhum dos dois
conseguiria chegar até a cúpula. Estávamos tão
alquebrados pelo ressecamento interno, pelo cansaço,
sob o fogo inclemente do sol, que não chegaríamos
mais, com as próprias forças, aos pés da base.
Tive um desmaio de alguns minutos. Quando
recuperei os sentidos, minha vista não estava
funcionando. Apalpei a procura de minha arma e não a
achei mais. Além disso, já não tinha forças para
carregá-la. Minha cabeça também estava falhando.
Com muito esforço, ainda consegui ouvir um impulso
muito débil do meu sexto sentido, que me sussurrava:
“Desistir. Ele também está obrigado a isto. Vá se
arrastando até a cúpula.”
Levei muitos minutos até conseguir me levantar.
Com o tubinho na boca sugava desesperadamente. Mas
não havia mais nada no recipiente d’água. Braços e
pernas pareciam galhos mortos de uma árvore caída.
Não sei de onde me veio à força que moveu meus pés e
joelhos, para me arrastar rumo à base.
Depois de muito tempo, havia progredido um
metro. Faltavam ainda sete. Queria dar expansão ao
meu desespero, mas a garganta não conseguiu produzir
nenhum som, a não ser um chiado oco.
O equipamento de refrigeração também já estava
pifando. O ar que me entrava no pulmão parecia ser
feito agulhas em brasa. Os reforços metálicos das
articulações do queixo e dos braços estavam fervendo.
Não recebendo mais a refrigeração necessária,
queimavam minha pele. Não podia nem gritar. Sentia
apenas a dor horrível e uma ânsia desesperada de
poder, ainda, no último instante, atingir a alavanca do
automático do mecanismo de abertura.
Percebi, ao meu lado, um vulto que também se
arrastava na direção da rocha escaldante. A cabeça
esticada para frente. Perry Rhodan se havia igualmente
desfeito da arma. Assim, nos arrastamos lado a lado
para a entrada da escotilha de ar, pintada de vermelho-
berrante.
Para cada metro, precisávamos de dez minutos.
Através do transmissor do capacete ouvíamos o chiar
das respirações ofegantes. E aí ficamos sabendo que
cada um tinha tentado sempre enganar o outro.
Não conseguia mais reconhecer as coisas. A única
coisa que ainda prendia minha atenção era a porta
vermelha, que parecia exercer uma atração mágica. A
presença de Rhodan era para mim uma coisa nebulosa,
mais imaginada do que propriamente vista Depois de
uma hora de um sacrifício desesperado, estava Rhodan
diante da escotilha. A mim, faltavam ainda 30
centímetros. Tinha perdido a parada. Fiquei parado,
inerte, esperando a morte. Tudo, tudo perdido...
sacrifício inútil! Passaram-se muitos minutos, até que
comecei a ouvir um grunhido de voz humana no alto-
63
38
falante, sons ocos e inarticulados.
Rhodan estava deitado diante da porta, sem ter
força para comprimir para baixo a alavanca da
fechadura, pintada de amarelo-claro. E ele estava me
chamando, chamando a mim, seu inimigo figadal. Se
ele realmente soubesse que eu nunca fui seu inimigo...
Foi questão apenas de legítima defesa, pois eu também
amo a Terra, que considero como meu povo.
Sua voz me chamando mobilizou minhas últimas
forças. Necessitava ainda de 10 minutos para vencer os
últimos 30 centímetros. Quando cheguei perto dele,
tentei levantar a mão com muito esforço. A gravitação
tão reduzida do pequeno planeta Hellgate parecia de
repente ter se centuplicado. Não sei com que esforço
ingente minha mão alcançou a alavanca, chegando a se
encostar com os dedos de Rhodan e juntos tentamos
puxá-la.
Os duelantes haviam se encontrado novamente,
buscando num esforço conjunto abaixar a alavanca
salvadora. Conseguimos, depois de alguns segundos
que pareciam uma eternidade. A campainha começou a
tocar enquanto a porta se abria, liberando a entrada da
escotilha da base. Levamos ainda uns dez minutos nos
arrastando no corredor estreito. Quando eu e Rhodan
conseguimos acionar o mecanismo para o fechamento
da porta, estava quase desmaiando. Tinha a impressão
de estar dentro de uma centrífuga. Sentia uma dor
imensa na garganta, incapaz agora de fazer os
movimentos de deglutição.
Ouvia, porém, o sibilar do vento fresco na direção
da escotilha. Ao cessar o ruído e quando a segunda
porta se abriu automaticamente, tive ainda força para
tocar com a mão o interruptor que estava à altura de
seus ombros. Meu capacete se abriu para trás e um ar
maravilhoso acariciou meu rosto ressecado. Na
primeira respiração completa, perdi os sentidos. Era
como se eu tivesse engolido pedaços de gelo.
Acordei de repente. Ao meu lado havia o barulho
típico da chuva. Quando abri os olhos, vi os pés
metálicos de um robô e tentei virar o corpo para o
outro lado. Os olhos me ficaram mais claros,
desaparecendo as últimas sombras. O robô tinha nas
mãos um vaso com água e o despejava na cabeça de
um homem. O rosto de Rhodan estava cheio de
queimaduras horríveis. Mas ele sorria. Nunca vi em
minha vida um homem, fosse terrano ou arcônida, que
soubesse rir tão espontânea e serenamente.
Porém nada disso tinha importância agora. Todo o
meu consciente e subconsciente falava apenas em água,
esta água que o robô jogava sobre o rosto de Rhodan.
Não estava compreendendo bem o que se passava, mas
meus ouvidos funcionavam bem, do contrário não teria
ouvido suas palavras serenas, acompanhadas sempre de
um leve sorriso:
— Você foi um osso duro de roer, meu irmão —
disse Rhodan pensativo. — Abra bem a boca, que o
robô vai lhe dar água. Minha performance foi por dez
segundos melhor que a sua arcônida.
Ao pingarem nos meus lábios as primeiras gotas,
julgava que estava bebendo não água, mas um néctar
muito mais precioso. Rhodan se manteve calado.
Deixou que eu me recuperasse totalmente. Bebia e
bebia sem parar. Meu corpo parecia uma esponja
ressecada. De vez em quando o robô interrompia o
fluxo de água, a fim de o organismo poder assimilar
melhor. Já estava me sentindo outro, mais disposto e
com a garganta em condições de falar normalmente.
Rhodan sorria. Parecia que estava muito ausente
daquela cúpula, como se seus pensamentos estivessem
bem longe.
— Incrível e incompreensível — disse ele como
que pensando em voz alta. — Um sujeito assim quase
que ia matando um imortal.
Cuspi para fora o líquido que mantinha na boca
fechada. De repente comecei a compreender como este
homem se conservava sempre jovem e elástico.
Imortal! Então tinham fundamento os boatos sobre
uma misteriosa ducha celular que lhe garantia a eterna
juventude.
Minha boca se escancarou para uma estrondosa
gargalhada. Era tragicômico. Rhodan não podia saber o
motivo desta gargalhada esquisita e eu também não lhe
iria dizer. Imortal!
— Haverei de descobrir tudo — disse ele, com os
olhos vivos e pesquisadores.
Eu, naturalmente, tomei minhas providências para
que minha mente não fosse invadida por sua telepatia.
Comecei também a sorrir para ele, dando-lhe tempo
para quebrar a cabeça. Percebi também a pistola de
raios energéticos apontada para mim. É claro que não
ia cometer nenhuma loucura mais. Ele havia ganhado à
parada. Recuperara os sentidos um pouco antes de
mim. Estava tudo tão esquisito e confuso. Essa
aventura toda me parecia um pesadelo.
— Quanto tempo nós estivemos lá fora? —
perguntei com a garganta ainda arranhando um pouco.
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Sentia realmente dores.
— Graças à sua teimosia, cerca de vinte e quatro
horas — afirmou ele. — Agora você está de novo sob
meu poder.
— Você teve foi muita sorte, isso sim — respondi
contra minha própria convicção.
Realmente não foi nada de sorte, foi sua fantástica
determinação.
Ele me penetrava todo com seu olhar sereno, onde
transluzia sempre um sabor de ironia.
— Seu truque psicológico não foi nada mau, Atlan.
A estrofe meio idiota sobre a água, quase me deixou
maluco. Como é que você arranjou esta ideia?
Sacudi os ombros. Já estava me sentindo muito
bem. Com algum cuidado procurei ficar sentado,
apoiando as costas na parede metálica. Ele também
estava sentado do mesmo jeito. Estava conseguindo ver
uma boa parte do interior da cúpula. Devia ser uma
base muito bem organizada.
— Como você chegou mesmo à ideia dos versos
psicológicos?
— Veio por si mesma. Não tinha outro meio de
provocá-lo para dar uns tiros.
Olhava para ele estupefato e a minha curiosidade
estava em marcha progressiva. O cano da arma
continuava apontado para cima.
— Calma! — disse ele.
Fiz apenas um gesto de assentimento:
— Não sou louco. Além disso, seu robô está de
prontidão. Apenas uma pergunta, bárbaro: Como foi
que você escapou do meu tiro?
Ria agora com toda naturalidade, com toda
cordialidade. Não era sem razão que, depois do
sentimento de admiração, passei a sentir grande
simpatia por ele. Não queria, porém, que ele o
percebesse.
— Seu primeiro tiro passou a um metro de mim.
Naturalmente você ficou ofuscado por seu próprio tiro.
Perdi o esconderijo e tive que procurar outro, logo
depois. Era uma pequena caverna, protegida por fortes
rochas.
Como parecia tão simples tudo isto. E certamente
não o foi. Deve ter pulado de um canto para o outro,
como um felino acuado.
— E depois, você deve me ter seguido, não é?
Confirmou com a cabeça.
— Você não olhou para trás. Eu lhe poderia ter
dado um tiro pelas costas.
— Não faria isto! — disse eu rindo. — Teve sorte
de ainda poder sair correndo.
Ele apenas sacudiu os ombros. E estava tudo dito.
— Agora, gostaria de saber como foi que veio parar
na Terra e o que andou procurando por lá? — o
indagou de repente, com uma calma absoluta.
— Adivinhe você mesmo — disse com ar
provocador.
— Não estou com disposição para brincadeiras de
adivinhações. Meu rádio já foi enviado. Estamos aqui
num planeta desabitado que está mais ou menos a doze
mil anos-luz da Terra.
— Se soubesse disso... — disse resignado — teria
deixado você aterrissar calmamente, para começar a
agir depois.
— Azar seu, arcônida. Um pequeno cruzador de
minha frota estará aqui dentro de três horas. Até lá terei
de saber o que fazer com você. Não permitimos
estranhos no Império.
— No assim chamado Império — corrigi eu. —
Vocês não são tão importantes assim. O que eu quero é
voltar para casa, nada mais.
— Sei disso. Acho que eu também sei pensar um
pouco — disse ele em tom de ironia. — Parece-me que
há muito tempo que está afastado de Árcon, pois ainda
não acredita na regência do cérebro robotizado.
Quando foi, pois, que chegou a Terra?
— Já há algum tempo — foi a minha evasiva.
Naturalmente não lhe podia mencionar minha base
submarina nos Açores, na mais profunda fossa do
Atlântico. De qualquer maneira, ele estava muito
desconfiado. Não me recusaria a ter que depor perante
pessoas com faculdades parapsicológicas.
Ficamos conversando e discutindo até que lá fora se
ouviu o estrondo surdo de uma espaçonave que
aterrissava. Era o pequeno cruzador, cujo comandante
logo depois apareceu na cúpula acompanhado de cinco
soldados bem armados. Levantei-me do chão ainda
com cuidado. O robô havia tratado minhas
queimaduras e me aplicara uma injeção para diminuir
as dores.
Rhodan já estava cem por cento. Era um homem de
uma fibra extraordinária.
O comandante do cruzador não fez muita
cerimônia, tirou do bolso um par de algemas e
prendeu-me as mãos.
— Tem alguma coisa contra? — perguntou meio
sem jeito.
Eu apenas esbocei um sorriso forçado. Rhodan
estava bem no fundo, quando disse:
— Há alguma coisa errada em você: seguirá
arrastando um segredo inútil pela vida afora. Voltarei
em poucos dias, só então conversaremos mais
seriamente. No momento, disponho de pouco tempo.
Reflita um pouco, e veja se não é bom para você dizer
toda a verdade.
Os soldados trouxeram um traje espacial, do
mesmo tipo do que eu tinha usado antes. Franzi as
sobrancelhas, dizendo:
— Mais isso ainda? Vocês não têm um tanque
pressurizado ou coisa equivalente?
— O cavalheiro ainda deseja mais alguma coisa?
— resmungou-me o comandante um tanto irritado.
Rhodan não pôde deixar de sorrir. Devia conhecer
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muito bem seu pessoal. Neste momento, resolvi lançar-
lhe uma indireta, para que me respeitasse mais.
Levantei os dois braços e apontando com os olhos para
as algemas, disse:
— Sabe de uma coisa, bárbaro? — falava
pausadamente — as coisas não mudaram tanto assim
nos tempos modernos. Parece que estamos ainda na
Idade Média durante as guerras religiosas. Nos tempos
de Wallenstein e Gustavo Adolfo, as algemas eram um
pouquinho mais largas.
pouquinho mais largas.
Rhodan deve ter se enfurecido com isso.
Empalideceu de repente e me fitou longamente. Ele, o
imortal... e no entanto tão facilmente vulnerável, quase
perdera o controle.
— Sem parar, marche! — gritou o comandante.
Fui sorrindo para a escotilha. Por que motivo
aquele homem gritou tão alto nos meus ouvidos?
Apesar das bem sucedidas campanhas de Perry Rhodan nas Galáxias, sua obra
estava ainda incompleta. Sua luta pelo reconhecimento da Humanidade no Universo
esbarrava sempre nos poucos recursos da Terra, em relação aos padrões cósmicos.
Desde a aparente destruição da Terra em 1984, já se passaram 56 anos. Há uma
nova geração. Da Terceira Potência surgiu o governo mundial. Assim, depois de fortalecida
esta Terceira Potência, aparece à organização do IMPÉRIO SOLAR. Marte, Vênus e as luas
de Júpiter e Saturno já estão povoados. Os outros planetas inadequados para serem
habitados se transformam em inesgotáveis fornecedores de matérias-primas. Não foram
descobertos outros seres inteligentes no sistema solar. Os terranos são, pois, senhores
absolutos do Grande Império Solar. A capital é Terrânia e o líder permanente é Perry
Rhodan. Com este Império Solar bem armado, pensa Rhodan em novas conquistas fora do
nosso sistema.
Em O Soro da Vida, título da próxima aventura de Perry, novos episódios
emocionantes vão acontecer.
41
Nº 51
De Kurt Brand
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes
A pesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo
poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por
Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a
Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinquenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que
teria ocorrido no ano de 1.984.
Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos, a
Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se
ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno
foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização
são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os
terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é
formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e
civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em
condições de enfrentar qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a
dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles
mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em
quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana.
Será que os dois agentes enviados a Tolimon obedecem a estas instruções, no
momento em que dão início à busca d’o Soro da Vida...?
Enquanto o cruzador leve deixava o planeta Hellgate,
levando a bordo, como prisioneiro, o solitário do tempo,
Atlan, dirigindo-se ao planeta Terra, situado a 12.348 anos-
luz, Perry Rhodan tomou lugar diante da memória do
hipercomunicador. Só agora teve tempo para deixar desfilar
diante de si as mensagens dos últimos meses, expedidas
pelos agentes que se encontravam no planeta Tolimon.
Por enquanto, notícias de terceira categoria lhe feriam o
ouvido. Rhodan mal prestava atenção. Lançou os olhos para
fora da abóbada de aço, que era o único lugar daquele
planeta supersaturado de calor em que a vida humana podia
manter-se, e contemplou o deserto
que tremeluzia sob os raios amarelo-
pálido do sol ZW-2536-K-957.
Rhodan escolhera Hellgate, o
único astro que gravitava em torno
desse sol, e que constituía um mundo
inútil e sem vida, para servir de base
secreta situada nos limites extremos
do Império de Árcon, a fim de ficar o
mais próximo possível do planeta
Tolimon. A oitenta e um anos-luz de
Hellgate esse planeta gravitava,
como segundo de um grupo de seis
mundos, em torno da estrela Revnur,
um sol do tipo G.
Há um ano — mais precisamente,
em maio de 2.039 — Perry Rhodan
tivera pela primeira vez sua atenção
despertada para Tolimon. Estava
interessado mais do que nunca em
saber o que estariam fazendo os aras,
os mais geniais dentre os médicos
galácticos. E Tolimon era um mundo
dos aras. Talvez ocupasse uma
posição sem par no seio da imensa
Galáxia: era formado por um único zoológico.
Rhodan chegou a uma conclusão lógica: médicos
galácticos, mais zoológico, igual à pesquisa. A conclusão
levou-o a empregar seus agentes em Tolimon. E há essa
hora o telepata John Marshall e a mutante Laury Marten
encontravam-se há oito meses nesse mundo dos aras,
empenhados na solução de um problema específico. E
Rhodan deixava desfilar diante de si justamente os
comunicados que os agentes haviam enviado a intervalos
irregulares para Hellgate por meio do hipercomunicador.
O dispositivo de memória estava reproduzindo uma
mensagem transmitida três semanas atrás. A voz de John
Marshall era inconfundível. Apenas disse três frases. E cada
uma dessas frases continha uma informação negativa. John
Marshall e Laury Marten não estavam conseguindo nada
em Tolimon.
Depois disso, a memória do aparelho emudeceu.
Perry Rhodan desligou. Para ele, o longo tempo de
espera começaria. Acontece que não dispunha de tempo
para esperar muito.
O que estava em jogo era a vida de Thora, sua esposa, e
de Crest. Os dois estavam envelhecendo de repente. A arte
médica, que até então conseguira deter o processo,
começava a revelar-se ineficaz. Um novo soro, produzido
na Terra, também não conseguiu retardar a decadência
biológica. E no planeta Peregrino, o mundo da vida eterna,
aquilo recusava a ducha celular aos dois arcônidas.
O fim natural parecia aproximar-se inexoravelmente,
quando seus agentes chegaram à Terra com boatos que
falavam num certo planeta Tolimon, um mundo pertencente
aos médicos galácticos. Segundo esses boatos, há séculos
alguns seres humanos estariam sendo
conservados num zoológico dos aras
existente em Tolimon, sem apresentar
qualquer sinal de envelhecimento.
Será que a notícia não passava de
boato? Ou seria algo mais que isso?
O amor que sentia pela esposa e por
seu amigo Crest fez com que recorresse
aos mutantes John Marshall e Laury
Marten para encontrar a resposta a essa
pergunta, enviando-os a Tolimon.
Será que os médicos galácticos, os
aras, haviam descoberto um soro
prolongador da vida, cuja eficácia era
muitíssimo superior ao dos arcônidas?
Se é que esse soro existia, Perry
Rhodan tinha que apoderar-se dele; era o
mínimo que poderia fazer por Thora e
Crest. Por isso, encontrava-se em
Hellgate, sob a proteção da abóbada de
aço, aguardando que, depois de tanto
tempo, John Marshall e Laury Marten
finalmente conseguissem aproximar-se
do objetivo.
O saltador Ixt saiu de seu luxuoso escritório, situado na
Rua do Grande Mo, no centro recém-construído da cidade
de Trulan, e entrou discretamente no salão amplo e
moderno destinado às vendas.
Um ara de ombros largos regateava em voz alta com
dois vendedores.
— Isso não é nenhum preço; é uma extorsão. Em
qualquer lugar consigo os gegerutavis pela metade. Amigos
eu estou disposto a pagar cento e oitenta. De acordo?
— Cento e oitenta por peça! — disse Futgris, o melhor
vendedor de Ixt, com um sorriso amável para o ara
enfurecido.
— Cento e oitenta, o casal — fungou este. — Em
2
1
Personagens principais deste episódio:
John Marshall — Que se instalou em
Tolimon sob o disfarce de um mercador
de animais.
Laury Marten — A linda filha dos
mutantes Anne Sloane e Ralf Marten.
Rohun — Um mercador galáctico.
Huxul — Funcionário do Serviço de
Vigilância de Estrangeiros.
Otznam — Que usa o mesmo disfarce
de um mascarado.
Man Regg — Um genial médico ara.
Futgris — Que se sente muito feliz por
ter o privilégio de trabalhar para Ixt.
Conde Rodrigo de Berceo — Um
jovem do ano de 1652.
43
Aralon estes bichos são vendidos a quarenta, o casal.
Futgris sorriu.
— É verdade. Compramos os gegerutavis em Aralon.
Acontece que de Aralon para Tolimon temos as despesas de
transporte: são cerca de dez mil anos-luz.
— É o cúmulo da sem-vergonhice — disse o ara
enfurecido, batendo com o punho numa gaiola. Um dos
hiobargulus, que dormiam nesta, assustou-se e fez um
barulho tremendo.
No mesmo instante, o ara deu um enorme salto, fitou a
pequena gaiola da qual vinha o barulho infernal e, depois
que o hiobargulu se tinha acalmado, gaguejou:
— Isso é um truque para levar seus fregueses a pagar os
preços extorsivos pedidos pelo senhor?
Futgris respondeu com o maior sangue-frio:
— Vendemos os hiobargulus muito barato: apenas vinte
por peça. Para o casal, fazemos o preço de trinta e cinco.
Dão cria oito vezes por ano; são seis filhotes de cada vez.
O ara não deixava de ter seu senso de humor.
Subitamente um largo sorriso cobriu seu rosto.
— Pode embrulhar um casal, desde que garanta que
estes bichos fazem este barulho infernal toda vez que são
assustados.
— Ora — apressou-se Futgris em asseverar. — Não há
problema. Não sabe que uma das características destas
criaturas é a de que só não fazem barulho enquanto estão
dormindo? No momento, colocamos estes bichos num
estado de profunda sonolência; por isso estão quietos.
Permite que pergunte qual é a experiência que pretende
realizar com os hiobargulus?
O ara sorriu e esfregou as mãos.
— Que experiência, que nada! — exclamou. — Trata-se
de presente. Minha sogra faz anos amanhã. Em vez de um
casal de gegerutavis cantores eu lhe dou estas crias do
inferno. Será que o senhor poderia pôr os animais para
dormir, de tal forma que só comecem a fazer barulho
amanhã ao meio-dia? Será muito divertido!
Futgris teve o atrevimento de perguntar:
— Será que o senhor não está exagerando com a
senhora sua sogra?
O ara logo desanimou. Acenou gravemente com a
cabeça e disse em tom deprimido:
— Talvez o senhor tenha razão. Embrulhe também um
casal de gegerutavis, para qualquer emergência.
Mas resolveu experimentar de novo. Bateu com o punho
sobre a gaiola e, mais uma vez, ouviu-se o barulho infernal.
Afetado visivelmente pela nova orgia de sons, o homem
atreveu-se a olhar para dentro da gaiola. Um animalzinho
azul e peludo, de cerca de dez centímetros de comprimento,
com os olhos azuis superdimensionados e uma pelanca
bamboleante no pescoço, estava agachado num canto,
apoiado sobre três barbatanas, e fitava-o com os olhos
sonolentos. Outro animalzinho dormia sob o efeito dos
narcóticos, com a cabeça enfiada na pelanca.
— O que é isso? — gritou a voz potente do ara, que
lançou um olhar desconfiado para Futgris e voltou a bater
na gaiola. — Não venha me dizer que um bichinho como
este faz um ruído tão infernal...
O barulho recomeçou.
O homem ainda estava meio surdo quando saiu da
grande casa de animais de Ixt, carregando seu minizôo.
Todos os vendedores seguiram-no com os olhos,
inclusive Ixt, que se mantivera discretamente nos fundos.
Não havia nada em seu rosto que revelasse a enorme
preocupação que o afligia. Não havia nenhum sinal que
traísse o fato de que não era um saltador, que desse a
perceber que seu aspecto exterior era apenas um excelente
disfarce. Quando atravessou a grande sala de exposições e
vendas para voltar ao seu luxuoso escritório, cumprimentou
os empregados que se encontravam à direita e à esquerda,
conforme costumava fazer todas as manhãs.
Os pensamentos de Ixt estavam longe dali. Pensava no
ara que acabara de comprar um casal de hiobargulus e um
casal dos caríssimos gegerutavis com o dinheiro do
governo.
Ixt lia todos os pensamentos do ara, que vivia
maldizendo a tarefa absurda de vigiar esse saltador, só
porque os dados sobre o lugar do nascimento e o clã por ele
fornecido, apresentavam alguns pontos obscuros, que,
apesar de todas as indagações, não puderam ser
esclarecidos.
Depois de ter fechado a porta atrás de si, Ixt resmungou:
— Parece que na Terra alguém cometeu um erro.
Teria que tomar suas providências até a manhã do dia
seguinte. Achou que seria muito arriscado usar o sistema de
comunicações da cidade de Trulan para entrar em contato
com Rohun, um comandante dos saltadores.
Dali a dez minutos, ao retirar-se da casa, disse de
passagem a Futgris:
— Só voltarei à tarde. Represente-me condignamente.
— Sim senhor — asseverou o vendedor com os olhos
radiantes de alegria. Nunca tivera um chefe como Ixt.
Sentia verdadeiro prazer em trabalhar na firma.
Depois de ter dado dez passos na rua, John Marshall já
se esquecera de que era dono de uma grande casa de
animais, que se encontrava entre as mais sofisticadas de
Trulan.
Naquele momento, só tinha um problema: chegar ao
esconderijo, no bairro dos cortiços, sem ser percebido.
* * *
— Arga — disse Gege Moge em tom contrariado,
apontando nervosamente para o ser estendido sobre a mesa
estofada. — Ainda não percebeu que mais uma vez nos
encontramos diante de um choque anafilático? Quantas
vezes ainda terei de lhe dizer que, no estágio das
experiências preliminares, estas reações violentas não
devem surgir em nenhuma hipótese? Agora corremos o
risco de perder todo o trabalho das experiências
preliminares. Mande levar o binn imediatamente ao setor de
dissecação. A pesquisa terá de revelar por que esse ser é
supersensível ao próprio soro. Por que o soro U-1f54,
44
extraído do binn, não pode ser empregado nas categorias de
inteligência situadas abaixo do grupo C, enquanto pode ser
usado sem receio e com os melhores resultados nos grupos
B e F? Avise o setor de dissecação de que preciso do
resultado amanhã de manhã. Vamos, providencie logo!
O médico ara seguiu a estudante arcônida Arga Slim
com um olhar contrariado. Depois disso, fitou o binn.
Tratava-se de um ser que nenhum homem seria capaz de
classificar. Tratava-se de um ser situado entre os reinos
animal e vegetal; absorvia o ar à maneira das plantas, mas
no que dizia respeito à comida e à bebida apresentava
traços animais inconfundíveis. Apesar disso, o binn não era
nem planta nem animal, mas um ser dotado de inteligência,
muito embora esta fosse bastante limitada, situando-o na
categoria do quociente C.
Gege Moge contemplou com olhos de cientista o
cadáver chato como uma folha, dotado de cinco membros,
que serviam tanto à locomoção quanto à apreensão de
objetos e ao trabalho. O binn tinha menos de um metro de
altura e pesava cerca de quarenta quilos. A cabeça em
forma de caule de flor fechara as dobras que escondiam os
órgãos dos sentidos. Não se via absolutamente nada da
boca, da abertura destinada ao sentido de orientação ou dos
olhos. A criatura de sangue quente estava estendida sobre o
leito duro, fria e enrijecida; morrera do soro produzido por
seu próprio corpo.
— Coitado! — disse o cientista ara com certa emoção.
— Já o conheço há mais de trezentos anos, e de repente sua
vida termina de uma hora para outra. É uma pena, binn.
Sempre gostei de trabalhar com você.
Saiu da sala e, no corredor, voltou a encontrar-se com a
estudante arcônida Arga Slim. Dirigiu-se a ela.
— Vá ao zoológico ainda hoje e escolha dois dos novos
binns. Preciso deles para amanhã de manhã.
— Não tenho permissão para entrar na parte reservada
do zoológico, Moge — ponderou a estudante.
Seus lindos olhos brilhantes fitaram-no com uma
expressão de expectativa.
Enquanto se afastava, o médico ara respondeu:
— Providenciarei para que a administração lhe conceda
uma permissão perpétua. De qualquer maneira, dirija-se à
administração antes de ir ao zoológico, para verificar se
está tudo em ordem.
“O homem não está mentindo”, pensou a estudante de
Árcon. “Realmente diz apenas o que pensa. Finalmente
estou em condições de comunicar um pequeno êxito a John
Marshall.”
Laury Marten, disfarçada numa estudante arcônida,
sabia ler os pensamentos dos outros, tal qual John Marshall.
Pensativa, caminhou em direção ao elevador
antigravitacional, que a levou ao pavimento em que residia
há vários meses.
Seus pensamentos já estavam formulando o texto do
comunicado que pretendia transmitir a John Marshall.
* * *
O comandante dos saltadores, Rohun, nunca poderia
trair John Marshall e Laury Marten. Tinha-se relacionado
muito profundamente com os agentes de Perry Rhodan para
que lhe fosse possível recuar. E, no fundo, não era o tipo do
traidor; Marshall controlara muitas vezes seus pensamentos
e nunca encontrara motivo para desconfianças.
Agora estava sentado diante dele. Quando o saltador
estava insistindo para que Marshall abandonasse seu
negócio de animais — em vez de procurar ocultar-se nos
gigantescos cortiços de Trulan — o rosto do chefe dos
mutantes, subitamente assumiu uma expressão rígida, que o
mercador galáctico já observara mais de uma vez.
John Marshall acabara de transformar-se num receptor
telepático.
Laury Marten, filha de Ralf Marten e Anne Sloane,
estava transmitindo seu primeiro êxito de maior
importância.
— Ixt — disse Rohun, inclinando-se para frente — o
senhor ainda me ouve?
Marshall fez um ligeiro gesto de impaciência. Rohun
compreendeu que deveria ter calma e voltou a reclinar-se.
Concentrado ao extremo, com os olhos semicerrados e
sem fazer o menor movimento, Marshall mantinha-se em
atitude rígida. A seguir transmitiu a Laury Marten, por via
telepática, a ordem de, durante sua visita ao zoológico, não
deixar de certificar-se se ali realmente eram mantidos
homens terranos atrás de grades de radiações.
— Procure descobrir a nacionalidade, o ano do
nascimento e o sexo, Laury Marten. Recorra à
desintegração sempre que isso se torne necessário. Em
hipótese alguma, deixe de estabelecer contato com eles.
Existem vários relatórios de nossos agentes, segundo os
quais no zoológico são mantidos homens. Laury, a senhora
tem de descobri-los. Entendido?
— Entendido — foi o impulso mental de. Laury Marten
que ele captou. Após isso, o contato entre os dois humanos
foi interrompido.
John Marshall parecia um homem despertando de um
leve cochilo. Atirou a cabeça para trás, abriu os olhos e
descontraiu-se.
Retomou o fio da palestra no mesmo ponto em que
interrompera o mercador galáctico.
— Não pretendo desistir do comércio de animais,
Rohun. Enquanto o serviço secreto dos aras realiza
investigações, ainda não existe um perigo concreto. Apenas
preciso saber se numa emergência poderei contar com seu
auxílio. Foi por isso que resolvi procurá-lo. O que me diz?
Marshall controlou automaticamente os pensamentos do
comandante dos saltadores. Rohun aborrecera-se com a
pergunta de seu interlocutor.
— Não tenho nada a dizer — resmungou. — Não
arrisquei o pescoço juntamente com meu clã? Assim que
der o alarma, meus agentes mais capazes serão colocados
em campo para tirá-lo do aperto. Se for necessário,
arriscarei até minha nave.
Mais uma vez Marshall fez um movimento brusco com
45
a cabeça. Por um instante seus olhos refletiram a
preocupação, mas logo a máscara apática dos saltadores
voltou a surgir.
— Rohun — disse — os serviços de defesa dos aras não
dormem. Daqui a pouco o senhor deverá receber uma visita.
O mesmo ara que apareceu na minha firma hoje de manhã
já se encontra na nave e está a caminho de seu camarote.
Existe algum lugar em que possa esconder-me?
O mercador, homem impetuoso e calculista, soltou
alguns sons desconexos. Já tivera várias oportunidades de
constatar que Marshall possuía um tipo de sexto sentido
para o perigo. Mas o fato de que esse sentido lhe dava a
capacidade de perceber nitidamente acontecimentos futuros,
constituía novidade para ele.
— Saia por aqui! — exclamou Rohun em tom exaltado,
colocando-se junto a uma porta estreita.
— Não. Prefiro ficar no seu camarote. O ara não sabe
que me encontro a bordo. Veja logo onde posso esconder-
me. Rápido!
Rohun estava bastante desconfiado. Tal quais todos os
mercadores galácticos, não dava muito valor às percepções
extrassensoriais, e aquilo que Marshall lhe estava
oferecendo era exatamente uma percepção desse tipo. Mas
acabou cedendo diante do olhar hipnotizante do outro, não
voluntariamente, mas com certa relutância.
— Não torne o homem desconfiado — preveniu
Marshall. — Ele não fará muitas perguntas.
Com estas palavras, Marshall estirou-se de frente e
enfiou-se embaixo do leito de Rohun, que o encobria
completamente.
Pouco depois um membro do clã entrou no camarote do
mercador galáctico e perguntou-lhe se concordava em
receber Huxul, funcionário do Serviço de Vigilância de
Estrangeiros.
— Não tenho outra alternativa — respondeu Rohun.
Huxul, o ara que comprara um casal de gegerutavis e
um de hiobargulus na firma de Ixt, entrou no camarote.
— O senhor é o comandante dos saltadores, Rohun? Se
for, eu lhe digo que não acredito nessa mentira do defeito
do transmissor audiovisual. Digo-lhe mais...
Embora o mercador não se sentisse satisfeito com a
visita do funcionário do serviço secreto dos aras, não
conhecia o medo e nunca toleraria um atrevimento desse
tipo.
Interrompeu o visitante em tom áspero:
— Acredite no que quiser! Se não estiver disposto a
falar em tom civilizado, eu o expulso da nave. Faça o favor
de sentar ali.
Ofereceu a Huxul a poltrona em que John Marshall
estivera sentado há pouco.
Mal Huxul acomodou-se, perguntou com um sorriso
matreiro:
— Onde está a pessoa que esteve sentada nesta poltrona
há poucos instantes?
Rohun não pestanejou.
— Huxul, não sou um ara. Sou um mercador galáctico.
Minha nave é um mundo, por si. O comandante é a única
pessoa que faz perguntas aqui. O comandante sou eu, mas
nunca me daria na cabeça formular uma pergunta idiota e
estúpida como a sua.
— O senhor interpretou mal as minhas palavras —
respondeu Huxul apressadamente e com uma amabilidade
desconcertante.
Transformara-se de uma hora para outra: de repente,
apresentava-se como um homem cortês, amável e pouco
interessado no seu trabalho. Rohun ficou surpreso.
Nem desconfiava da existência do projetor mental de
John Marshall, que irradiava toda sua potência sobre o
agente dos aras, sugestionando-o para que considerasse sua
missão como cumprida e transformasse o tempo restante de
sua permanência na nave numa palestra amável.
A modificação começou a assustar Rohun. De repente,
John Marshall ouviu que o comandante dos saltadores se
tornava enérgico.
— Huxul, diga logo por que veio até aqui! Qual é a
suspeita que pesa sobre mim?
No mesmo instante, Marshall aliviou a pressão
sugestiva que irradiava sobre o ara. O homem do serviço
secreto não desconfiou de nada quando disse toda a
verdade. Muito interessado e com a mente tensa, Rohun
prestava atenção às suas palavras. Finalmente reclinou-se
confortavelmente na poltrona, riu gostosamente e
respondeu:
— Vejo que sua visita não é nada amigável, Huxul.
Sim, estou lembrado do tal do Ixt. É um homem inteligente,
um perito na área da zoologia. Aliás, a zoologia também é
um hobby meu. É por isso que consigo lembrar-me de Ixt.
Se não me engano, tomou a nave no terceiro planeta do sol
J5457-K1, e veio a Tolimon em voo direto. Meu caro
Huxul, nós, os mercadores galácticos, aproveitamos
qualquer negócio que aparece e muitas vezes
transformamos nossas naves em veículos turísticos, para
levar os passageiros de um mundo para outro, mediante
uma paga adequada, evidentemente. Mas essa história já é
bastante antiga. O que é que eu tenho a ver com Ixt?
John Marshall, no seu esconderijo, obrigou o agente dos
aras a mais uma vez dizer a verdade. Huxul nem se deu
conta de que com isso estava adotando um comportamento
inadmissível para um agente secreto. Aludiu ao controle
rotineiro exercido pelo cérebro positrônico instalado em
Tolimon, e disse que esse aparelho infalível, ao examinar os
dados relativos à Ixt, descobrira alguns erros.
— E desde ontem, isto é, a partir de ontem, tenho de
ocupar-me com essas ninharias — disse Huxul, concluindo
suas explicações. — Estou muito mais interessado em
descobrir quem, apesar do controle dos robôs, conseguiu
roubar na fábrica de soro G-F 45 o processo mais recente de
conservação do soro imunizador X-1076. Nunca houve um
roubo como este Rohun. E tive que desistir de uma tarefa
dessas, para andar espionando o negociante de animais Ixt.
É claro que o senhor não me pode dar qualquer informação
sobre ele, não é?
46
Com o rosto mais sincero deste mundo, Rohun
respondeu:
— Como poderia ter informações sobre ele?
Com o maior prazer deu a mão a Huxul, que se
despediu, e sentiu um prazer ainda maior quando viu o
homem do serviço secreto dos aras retirar-se.
Marshall e Rohun voltaram a ficar sentados frente a
frente.
— Gostaria de comprar os dados sobre o processo de
conservação — disse Marshall.
Rohun sacudiu a cabeça.
— Por estranho que possa parecer desta vez nem eu
nem meus agentes temos qualquer coisa a ver com isso.
Mas acho que sei quem arranjou isso. Quer que entre em
contato com o outro clã, por ordem e conta do senhor?
Quanto está disposto a pagar pelo processo?
— Não dou mais de quinze mil — respondeu Marshall.
— Quando poderei saber se o outro grupo está disposto a
fazer o negócio?
— Amanhã — disse Rohun.
— Está bem — disse Marshall. — Amanha de manhã
precisarei de um sósia de primeira linha. Para isso
arranjarei uma máscara. O senhor dispõe de três fabricantes
de máscaras. Avise seus homens para que reproduzam meu
aspecto exterior no objeto que lhes será apresentado, de tal
forma que eu mesmo fique sem saber quem é o verdadeiro
Ixt.
— Trata-se de alguma missão perigosa? — perguntou
Rohun com um triste pressentimento. Aos poucos a
iniciativa de Ixt começava a amedrontá-lo.
— Amanhã de manhã Huxul voltará a aparecer na
minha casa de animais para restituir o casal de hiobargulus
e, ao mesmo tempo, tentar gravar com sua gaiola meu
modelo de vibrações cerebrais.
Rohun levantou-se de um salto. De repente aquele
homem encanecido, de quase dois metros de altura, sentiu
medo. Sacudiu a cabeça, num gesto de recusa.
— Por que pronunciou a palavra gaiola com tamanha
ênfase, Ixt?
— Porque Huxul aparecerá com uma gaiola especial,
que não permitirá que o berreiro infernal dos hiobargulus
chegue ao exterior. Mas na realidade, a mesma conterá um
aparelho destinado ao registro de vibrações cerebrais.
Os olhos de Rohun iluminaram-se.
— O que acontecerá depois, Ixt?
John Marshall sorriu.
— Quando estiver sentado diante de sua mesa de
trabalho, Huxul ficará dando tratos à bola para descobrir o
motivo por que não captou meu modelo de vibrações
cerebrais. E, para escapar a outra repreensão de seu chefe,
inventará um relatório que não passará de uma grande
fraude.
— O senhor consegue enxergar o futuro? — perguntou
Rohun em tom desconfiado. — Ixt, à medida que o tempo
passa o senhor me assusta cada vez mais. Se me lembro de
como Huxul se tornou amável de repente... O que andou
fazendo com o homem enquanto estava deitado embaixo de
minha cama?
— O que poderia ter feito? — disse Marshall,
esquivando-se à pergunta. — Quem será a pessoa que o
senhor me mandará amanhã com a minha máscara, Rohun?
— Otznam. Tem a estatura do senhor. Ixt, o senhor está
fazendo um jogo muito arriscado. Está na hora de dizer o
que pretende descobrir em Tolimon. Será que pretende
libertar alguém que se encontra no zoo galáctico? Se sua
intenção for essa, eu o previno para que tenha cuidado. Os
aras equiparam o zoológico com todos os dispositivos de
segurança. Por que não me coloca a par dos planos? Será
que não confia em mim e nos meus agentes?
— Não quero expô-los a um risco desnecessário. A
situação ainda se tornará muito perigosa, e quando isso
acontecer, quanto menos saibam, melhor será para todos.
Dali a meia hora, John Marshall saiu da nave cilíndrica
do comandante dos saltadores Rohun. Estava satisfeito com
os resultados da visita que acabara de fazer ao mercador
galáctico. Tomando todas as precauções, levou duas horas
para chegar ao seu esconderijo, situado nos gigantescos
cortiços de Trulan.
Tolimon, o segundo planeta da estrela de Revnur,
recebia tamanha profusão de luz de seu astro rei, que a
temperatura média ao meio-dia chegava a 45 graus na
sombra. Isso acontecia em Trulan, capital de Tolimon, não
na área em que os aras haviam instalado um zoológico de
dimensões fantásticas.
Em meio a um gigantesco deserto de pedra e areia,
cortado por uma cadeia de montanhas nuas e poeirentas, os
aras haviam realizado algo que não tinha igual em toda a
Galáxia.
Um areal do tamanho da França, da Bélgica e dos Países
Baixos, fora transformado num jardim zoológico em que
cada ser dispunha de boa área para mover-se livremente. As
condições reinantes no ambiente nativo haviam sido
reproduzidas artificialmente, e tudo fora feito para reduzir
ao mínimo a pressão psicológica resultante do
aprisionamento.
Laury Marten, uma moça de vinte e três anos, de cabelo
escuro e corpo fascinante, filha de Ralf Marten e Anne
Sloane; penetrara pela primeira vez nesse zoológico,
usando um caminho que não era acessível ao público.
A administração já anunciara sua chegada. Depois de
um ligeiro controle, no qual foi confirmada sua identidade
como a da arcônida Arga Slim, pôde atravessar a barreira
de radiações. Um ara muito gentil colocou um carro à sua
disposição, explicando-lhe o funcionamento do indicador
automático de rota.
O ara nunca vira uma arcônida que irradiasse tamanho
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charme. Não se cansava de admirar os olhos, que tendiam
para o formato oblíquo, e o rosto oval. Laury percebeu
tudo. Um dos pontos fundamentais do treinamento dos
agentes do Exército de Mutantes de Perry Rhodan consistia
na aquisição da capacidade de perceber imediatamente qual
era a impressão que causava nos outros.
Laury ficou satisfeita com o resultado de suas
observações. Como telepata que era, lia os pensamentos do
ara como se fossem palavras escritas num livro aberto. O
jovem ara apresentou-se com o nome de Lo Pirr.
Laury Marten desenvolveu todos os seus encantos, sem
ultrapassar os limites da conveniência, a fim de
transformar-se numa criatura inesquecível para Lo Pirr. Era
bem possível que ainda tivesse muitos contatos com o
mesmo.
Quando seu carro disparou pela faixa de rolamento,
sentiu que o olhar dele a seguia.
* * *
Trulan, a capital planetária de Tolimon e o maior porto
espacial desse mundo, constituía, pela forma desordenada
de sua construção, a expressão patente de evolução
precipitada.
Já fazia oito meses que John Marshall se mantinha
oculto nessa cidade sob o disfarce de mercador galáctico.
Porém a metrópole sempre o impressionava.
Além de servir de ponto de encontro das raças
galácticas, Trulan era o trampolim para o espaço
desconhecido. O poderio do Império Arcônida não chegava
além do sistema de Revnur. Naquele setor, Tolimon era o
último dos mundos governados pelo cérebro positrônico de
Árcon.
John Marshall compreendia perfeitamente que os aras
precisavam de um organismo mastodôntico para exercerem
controle, mesmo superficial, sobre todos os estrangeiros
que permaneciam no planeta por alguns dias ou semanas.
Estes últimos faziam negócios normais ou escusos,
estabeleciam contatos decentes ou clandestinos, para depois
de tudo isso desaparecerem nas profundezas da Via Láctea.
Uma coincidência traiçoeira arrastara-o para dentro das
engrenagens do cérebro positrônico infalível. Ao que tudo
indicava, ainda havia um erro nos documentos galácticos
falsificados que lhe haviam sido entregues. Certamente esse
erro fora cometido por alguma pessoa negligente que se
encontrava na Terra. Por enquanto acreditava que o perigo
não era muito grave.
Mesmo sob o disfarce de mercador galáctico John
Marshall tinha o aspecto de um homem de trinta e cinco
anos. E não se sentia mais velho que isso, embora já tivesse
noventa e quatro anos de vida.
Fora a ducha celular do planeta Peregrino, o mundo do
imortal, que realizara esse milagre biológico. Após isso, a
decadência celular fora detida por mais de seis decênios por
uma forma incompreensível. A idade de noventa e quatro
anos era apenas uma indicação numérica ligada à pessoa de
Marshall, que não resistiria a qualquer exame médico de
sua constituição orgânica.
Será que neste mundo de Tolimon não existiam
milagres parecidos?
O milagre da vida eterna.
Era nisso que estava pensando quando o elevador radial
o deixou nos confins da cidade, e ele atravessou a pé o
limite para a zona dos cortiços.
O calor da tarde sufocava os desfiladeiros formados
pelas ruas e vielas. O fedor saturava o ar. À medida que
John Marshall penetrava na área dos cortiços, a miséria e a
sujeira iam aumentando.
Agora pegou uma entrada. Atravessou um restaurante e
desapareceu num toalete que possuía três saídas. Marshall
não era o único que o usava para enganar eventuais
perseguidores. Diante dele, um arcônida maltrapilho olhou
ligeiramente para trás, passou pela segunda porta e
desapareceu por uma área nos fundos.
Marshall usou a terceira saída.
Entrou num corredor escuro que cheirava a mofo,
atirou-se no elevador antigravitacional e subiu oito andares.
Uma vez lá em cima executou um giro rápido, viu-se
diante de outro poço e deixou-se cair três andares.
O corredor em forma de hall estava deserto. O terceiro
quarto da esquerda acolheu-o. Um sujeito velho e
esfarrapado, deitado num leito, virou-se à sua entrada e
exibiu um sorriso familiar. Marshall colocou uma cédula
sobre a mesa e desapareceu na pequena peça contígua sem
dizer uma palavra. Uma vez lá, trocou de roupa com alguns
movimentos rápidos. Seu traje distinto foi colocado num
esconderijo muito bem instalado. Estava usando alguns
trapos. Um espelho de radiações mostrou-lhe que se parecia
com um saltador em ruína.
Colocou as mãos contra uma parede estreita que ligava
a porta ao armário. A mesma recuou silenciosamente,
deixando livre um corredor no qual Marshall entrou.
Um elevador antigravitacional muito estreito, que mal
dava para um saltador corpulento, levou-o ao porão.
Passando por entre o lixo e os objetos abandonados à luz
mortiça das luminárias, seguiu seu caminho com segurança
absoluta, até atingir uma escada.
Trinta e seis degraus da escada em caracol levaram-no
para cima. Ao pisar no último degrau, parou e aguçou o
ouvido. Depois afastou com os braços uma pilha de roupas
usadas, esgueirou-se e viu-se entre as fileiras de cabides de
uma loja de confecções.
Fazendo o papel de um homem que não consegue
decidir-se a respeito de uma compra, Marshall saiu da loja
aberta com uma hesitação fingida. Sudf, o dono barbudo da
loja, piscou às escondidas quando cruzou por ele.
Encontrava-se num beco que ficava três andares abaixo
da entrada do estranho restaurante. Quatro quadras adiante,
ficou diante da fachada arruinada do prédio, sob cujo
telhado se encontrava seu esconderijo. Ao virar-se, viu
surgir no fim do beco, por cima dos telhados e junto à
coluna esguia do Grande Mo, uma peça de aço de trezentos
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metros de altura, que na base só tinha um metro de
diâmetro. A construção não possuía juntas nem soldas, e
nela, a palavra Mo estava escrita em caracteres luminosos
arcônidas.
Mo era um gênio médico, que há mais de três mil anos
morrera numa experiência que fizera no próprio corpo. Em
Tolimon, tal qual nas outras bases dos aras, era venerado
como uma divindade.
O alojamento de Marshall, situado no 15o andar, logo
abaixo do telhado, parecia tão sujo como todas as peças
situadas naquele corredor escuro. Mas a porta, feita de
chapa fina de aço arcônida, era mais que a entrada imunda
de um quarto abafado que possuía apenas uma pequena
claraboia.
Dispositivos de segurança dos mais sofisticados
impediam que qualquer pessoa forçasse a entrada.
Quando John se aproximou da porta, sentiu um impulso
quase imperceptível, que provocou um formigamento de
sua pele. Era o sinal de que ninguém tentara penetrar por ali
na sua ausência. Abriu o fecho e esperou que a porta
recuasse. Depois entrou e fechou-a atrás de si.
Descerrou a pequena claraboia, abriu a torneira de água
quente e deixou que o líquido jorrasse. Atirou-se à cama,
cruzou as mãos sob a nuca e assobiou a melodia de uma
canção da moda dos saltadores.
Naquele instante, o hipercomunicador instalado
embaixo do telhado, fora do quarto, começou a esquentar.
Ao mesmo tempo, o dispositivo de memória ligou-se
automaticamente.
A água continuava a jorrar. A claraboia não devia ser
fechada. O sinal acústico era necessário para ligar o
hipercomunicador, e o minúsculo alto-falante do
hipercomunicador estava embutido no relógio que Marshall
trazia no pulso esquerdo.
Tanto ele como Laury Marten haviam sido equipados
para esta missão com os instrumentos mais sofisticados
que, em muitos pontos, constituíam novidade até mesmo
para os aras e os arcônidas.
John Marshall ouviu um sinal breve saído do
hipercomunicador. Sentiu a necessidade de respirar
profundamente.
O chefe encontrava-se no planeta quente de Hellgate,
aguardando notícias sobre os resultados de seu trabalho.
Marshall refletiu ligeiramente.
Se há pouco, parte de seu relógio se transformara no
alto-falante do hipercomunicador, agora, a outra parte, tão
minúscula quanto a anterior, passou a servir de microfone,
depois que Marshall comprimiu um botão quase invisível,
embutido na caixa do relógio.
O deformador e o condensador estavam funcionando.
John Marshall resumiu em oito frases o primeiro êxito
alcançado por Laury Marten. Omitiu o fato de que o serviço
secreto dos aras andava no seu encalço.
Fechou a torneira de água quente e a claraboia, fez
saltar o botão embutido na caixa do relógio e, com isso,
apagou todas as pistas que poderiam conduzir ao seu
hipercomunicador.
Ficou sentado na cama em atitude pensativa. Refletiu
detidamente sobre todos os problemas. Em hipótese alguma
deveria permitir que seu esconderijo fosse descoberto. O
pequeno quarto representava o último elo que o ligava a
Perry Rhodan.
Marshall estava prestes a sair de seu alojamento quando
foi atingido pelo impulso emitido por Laury Marten. Parou
com a mão estendida em direção à porta. Seu rosto
iluminou-se e de seus lábios saiu uma exclamação:
— Até que enfim!
* * *
O indicador de rota instalado no carro fizera com que,
apesar da grande distância, Laury Marten logo encontrasse
o areal dos binns. Porém viu-se diante da barreira de
radiações, que formava um obstáculo invencível.
Lançou os olhos em torno, à procura de um frogh, e
estremeceu ao lembrar-se do momento em que, pela
primeira vez, se vira diante de um desses seres em forma de
cobra, com seis metros de comprimento.
Também desta vez teve de esforçar-se para ver nos
froghs seres inteligentes, e não animais repugnantes. Muitos
froghs dominavam, além do intercosmo, vários dialetos
arcônidas. Para comunicar-se entre si recorriam ao
vocabulário riquíssimo de sua língua materna. Eram os
amigos mais fiéis dos aras e os guardas mais temidos pelos
habitantes do zoológico. Até então nenhuma das
inteligências trancadas ali conseguira escapar. Os froghs
sempre alcançavam os fugitivos nos confins do deserto,
cujas dimensões eram planetárias.
Laury Marten caminhou lentamente junto à barreira de
radiações. Não sabia explicar por que o frogh não aparecia
para perguntar o que desejava. Subiu uma pequena
elevação, lançou os olhos em torno e viu o ser em forma de
cobra envolvido numa palestra com um jovem ara.
Este sentiu o olhar de Laury Marten, virou a cabeça e
fitou-a com uma expressão de espanto.
No mesmo instante, o frogh virou-se abruptamente.
Com uma voz que tinha um tom surpreendentemente
humano perguntou o que Laury desejava. Esta lhe pediu
que abrisse a barreira de radiações por um instante, para
que pudesse escolher dois binns no interior do areal.
Enquanto ainda conversava com o frogh, que erguera o
terço anterior de seu musculoso corpo de cobra e a fitava
com os olhos rígidos, o ara aproximou-se.
O homem esbelto, de rosto intelectualizado, avaro nos
menores movimentos e reticente nas palavras, era o
primeiro ara que falava um arcônida refinado, dentre todos
aqueles com que Laury já havia se defrontado. Esta logo se
interessou por ele e fez com que se estabelecesse uma
palestra animada.
Dedicou palavras corteses à informação de que Laury
estudava zoologia. O fato de encontrar-se em Tolimon para
preparar-se para os exames finais obrigou-o a desejar-lhe
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muitas felicidades nas provas. No entanto, quando Laury
Marten passou, com uma indiferença fingida, do fenômeno
do artus ao tema da necrose e exprimiu sua dúvida de que
uma parte morta do organismo, restrita a uma área limitada,
pudesse ser restituída à vida por meio de ativadores, o ara
subitamente demonstrou o maior interesse.
O médico galáctico não poderia mesmo desconfiar de
que essa jovem, treinada por meio dos métodos hipnóticos
mais eficientes dos arcônidas, além de ser entendida em
zoologia, também possuía um saber médico muito extenso.
O ara apresentou-se como Man Regg.
Laury Marten prosseguiu no seu jogo. Lia os
pensamentos de seu interlocutor e não tinha a menor
intenção de tomar a iniciativa. Qualquer idéia importante
teria que vir de Man Regg.
Man Regg, o ara, não era apenas um dos cem mil
médicos que atuavam nesse mundo. Man Regg era o ara
que, na qualidade de chefe, controlava a produção do soro
prolongador da vida.
E Laury Marten lançou sua isca. Um segundo depois,
dizia aquilo que seu interlocutor acabava de pensar, mas
sob seus próprios pontos de vista. Nos casos em que Man
Regg demonstrava dúvida, exprimia uma dúvida ainda
maior, e quando acreditava poder formular um juízo seguro,
mostrava-se reticente em suas ideias.
Um dos crânios mais inteligentes de Tolimon estava
sendo manipulado pelas artes telepáticas de uma jovem do
planeta Terra.
E Man Regg caiu no blefe.
Quando perguntou onde e com quem trabalhava, Laury
Marten leu em seus pensamentos a intenção de ordenar que
essa mulher de inteligência extraordinária fosse incluída em
sua equipe de pesquisas.
Subitamente Laury Marten virou-se para o frogh. O
olhar rígido daquele ser, em forma de cobra incomodou-a.
Pensou aflita:
“Será que os froghs também são telepatas?”
Com um grande susto, teve de constatar que não estava
informada sobre este ponto.
Mas logo surgiu a indagação de Man Regg sobre se
estaria interessada em concluir os preparativos para o
exame sob a orientação dele.
Laury Marten já se imaginava de posse do processo de
fabricação do soro prolongador da vida. Teve de esforçar-se
para não exprimir seu júbilo por meio da luminosidade dos
olhos.
— Muito bem, Arga Slim — disse Man Regg. —
Tomarei todas as providências e tenho certeza de poder
cumprimentá-la amanhã na divisão X-p.
Com dois binns dóceis, seu carro disparou em direção
ao limite do zoológico.
Quando voou em direção a Trulan, com os dois binns a
bordo, irradiou para John Marshall a notícia do êxito que
acabara de alcançar. Sentiu-se orgulhosa ao perceber o
alívio que havia no “até que enfim!” de Marshall.
John Marshall ficou grudado nos calcanhares de
Otznam, agente dos saltadores, em meio ao burburinho das
ruas de Trulan. No seu íntimo admirava o comandante
Rohun e seu clã, pois o que os fabricantes de máscaras
haviam feito de Otznam era uma coisa inacreditável. John
Marshall teve de reprimir constantemente o desejo de fitar
seu próprio rosto a fim de verificar que impressão causaria
nos outros sob o disfarce de um saltador.
O mercador galáctico Ixt não era ele, mas Otznam, que
sob seu disfarce caminhava pela Rua do Grande Mo, sem
desconfiar de que o verdadeiro Ixt lhe seguia todos os
passos, transformado num astronauta robusto e barbudo.
John Marshall leu os pensamentos do outro. O homem
praguejava contra sua missão com a mesma violência com
que Huxul o fizera no momento em que saía da casa de
animais com um casal de hiobargulus e gegerutavis, para
voltar à sua repartição.
Otznam estava preocupado por ainda não ter recebido
instruções precisas sobre a maneira de conduzir-se na firma
de Ixt. Quando Marshall iniciou o tratamento com o
projetor mental, não percebeu nada.
Depois de poucos segundos, o agente dos saltadores
familiarizou-se com os rostos de todos os funcionários de
Ixt. Conhecia seus nomes e sabia quais as funções que cada
um devia desempenhar. Otznam não se surpreendeu com o
fato de conhecer, em linhas gerais, o escritório do chefe.
Entrou na loja pela entrada principal, tal qual Ixt costumava
fazer todas as manhãs.
Acenou para a direita e a esquerda, recebeu os
cumprimentos de Futgris e fez esta observação:
— Tudo bem, Futgris?
Marshall também entrou em sua loja e, com uma
observação áspera, afastou o vendedor que se aproximou
solicitamente.
— Vou dar uma olhada no que existe por aqui. Se
resolver comprar alguma coisa, avisarei.
Enquanto dizia estas palavras, John Marshall observou
discretamente seu vendedor tão ativo e controlou os seus
pensamentos. Verificou que não estava identificando a voz
disfarçada de seu chefe, nem seus movimentos.
Tranquilizado, Marshall voltou a dedicar sua atenção a
Otznam, agente dos saltadores, fazendo-o dizer a Futgris:
— Se houver algo de importante, estou no escritório.
— Perfeitamente — confirmou Futgris e dirigiu-se ao
grande depósito, onde estava sendo descarregada uma
remessa de animais vinda do planeta Oka.
Nem desconfiou de que o chefe, disfarçado num
astronauta barbudo, exercia uma influência hipnótica sobre
ele, enviando-o ao depósito e ordenando-lhe que, em
hipótese alguma, procurasse o chefe em seu escritório.
Dali a dez minutos, John Marshall saiu de sua loja e
ficou perambulando nas proximidades. Aguardava a
chegada de Huxul.
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Sua paciência foi submetida a uma prova muito dura.
Por mais que tateasse em busca dos impulsos mentais de
Huxul, nada percebeu. Só pelo meio-dia captou-os
repentinamente.
Fervendo de raiva, Huxul caminhou em direção à casa
de animais.
Marshall entrou antes dele na ampla sala de exposição
com a profusão desconcertante de animais. Escondeu-se
atrás de uma grande jaula, junto aos encantadores kikkis,
animais em forma de macaco. Acabara de afastar um
vendedor insistente quando o agente dos aras entrou no
recinto, com uma gaiola especial na mão.
Futgris era o homem competente para resolver sobre a
troca de animais. Teve de ser chamado no depósito.
Futgris riu ao reconhecer o homem que, com os
hiobargulus, queria pregar uma peça à sogra. Subitamente
seu rosto assumiu uma feição séria. Marshall acabara de
transmitir-lhe a ordem, reforçada por meios
hipnomecânicos, de determinar que o chefe decidisse sobre
a troca.
Huxul exibiu um largo sorriso enquanto resmungava seu
“de acordo”. Segurou a gaiola especial com ambas as mãos,
encostou-a ao peito e colocou-a numa posição em que uma
das faces apontava ligeiramente para cima.
Marshall perscrutou os pensamentos de Huxul. O agente
dos aras ainda fervia de raiva. Lembrava-se da bronca que
tivera de agüentar no dia anterior, ao regressar da nave
cilíndrica de Rohun. Acusaram-no de negligência no
desempenho de suas funções e de uma conduta
injustificável, arrasando com ele em questão de capacidade.
Também foi recriminado por ter adquirido os animais tão
caros, muito embora a idéia não tivesse partido dele, mas
do chefe.
Naquele instante, estava Futgris saindo do escritório,
juntamente com o falso Ixt.
John Marshall ativou o contato do projetor mental
escondido em seu bolso. Tratava-se de versão miniaturizada
do conhecido aparelho dos arcônidas, que funcionava
somente porque John Marshall reforçava sua ação por meio
do dom telepático de que era dotado. Por isso mesmo não
havia o menor perigo de que o miniprojetor mental fosse
descoberto.
Huxul descansou a gaiola entre as paredes acústicas
onde estavam guardados os hiobargulus com sua voz
potente. Ixt recusou-se a aceitar os animais de volta.
Mostrou-se interessado na gaiola acústica. O agente dos
aras foi a amabilidade em pessoa e concordou plenamente
quando Otznam, sob o disfarce de Ixt, pegou a gaiola para
examiná-la mais detidamente. Ao fazê-lo, executou um giro
de cento e oitenta graus.
Através de Huxul, John Marshall ficara sabendo em que
ponto se localizava o contato destinado à captação do
modelo de vibrações cerebrais. O agente dos aras implorou
para que Ixt aceitasse os animais de volta e devolvesse o
dinheiro. Disse que desde a manhã daquele dia a sogra não
o deixava em paz. Estava arrependido da brincadeira de
mau gosto e não sabia como acalmar a velha.
Otznam, disfarçado como Ixt, teve tempo para registrar
o modelo de vibrações cerebrais de Huxul. No momento em
que colocou a gaiola no chão por ordem de Marshall, este
lhe deu ordem de aceitar os bichinhos de volta. Futgris saiu
apressadamente com a gaiola, desapareceu no depósito e,
logo a seguir, há trouxe de volta vazia.
Huxul recebeu de volta o preço da compra, agradeceu
com a maior amabilidade, pegou a gaiola vazia e saiu da
loja com uma pressa surpreendente.
O falso Ixt voltou ao escritório, e Futgris ao depósito.
Assim, John Marshall considerou concluída sua
intervenção, mas Huxul ainda precisaria de tratamento
intensivo.
Seguiu-o lentamente, esgueirando-se por entre o tráfego
da trepidante Rua do Grande Mo. Aos poucos, foi
alcançando o agente dos aras.
Seguiu-o com um olhar pensativo quando este entrou no
gigantesco edifício do serviço secreto dos aras, segurando a
gaiola como se fosse um objeto extremamente frágil.
* * *
Huxul esperou que o laboratório lhe fornecesse o
modelo de vibrações cerebrais com uma interpretação
completa. Enquanto isso pretendia redigir o relatório, mas
havia alguma coisa em sua cabeça que o impedia de
conceber qualquer ideia clara. Tornou-se cada vez mais
difícil lembrar o que havia acontecido há uma hora na casa
de animais de Ixt.
Finalmente a fita rolante trouxe o modelo de vibrações
cerebrais acompanhado da respectiva interpretação.
O círculo estrelado que se via no canto inferior esquerdo
representava o sinal de que o modelo passara pelo cérebro
positrônico.
Entusiasmado, acenou com a cabeça, quando descobriu
o número de código.
— O que é isso? Ixt já está registrado aqui e tem um
número de identificação dos aras — disse Huxul em tom de
espanto e passou a mão pela testa.
Subitamente passou a desenvolver uma atividade
intensa. Entrou em contato com a divisão positrônica H. Era
ali que estavam armazenados todos os algarismos de
identificação dos aras. Transmitiu o número de código.
Quase no mesmo instante, a tela que se encontrava sobre
sua escrivaninha iluminou-se.
Levou alguns segundos para compreender que aquilo
que estava lendo eram seus próprios dados pessoais. E
levou mais cinco segundos para compreender que já não
compreendia mais nada.
Logo se lembrou das ameaças que os dois chefes a que
estava subordinado haviam formulado no dia anterior.
Isso bastou para uma ação precipitada.
Huxul redigiu um relatório que, em nenhum dos seus
detalhes, correspondia à verdade dos fatos. Porém, por
enquanto, isto o livraria de uma repreensão ainda mais
intensa dos chefes. Evidentemente esse relatório era
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extremamente favorável ao mercador galáctico Ixt, que
explorava o comércio de animais numa loja da Rua do
Grande Mo. As divergências insignificantes em seus dados
pessoais foram atribuídas a um lapso.
Apenas, Huxul se esquecia, ao redigir seu relatório
fictício, que inevitavelmente haveria de chegar o momento
em que o grande cérebro positrônico examinaria o relatório
sob o aspecto da coerência lógica. Aí então, a mentira
fatalmente seria descoberta.
John Marshall, que continuava parado diante do
edifício, controlando os pensamentos de Huxul, lembrou-se
desse fato. Mas nem por isso ficou preocupado. Não estava
em condições de impedir a investigação, que se encontrava
em curso, sobre sua pessoa. Porém cada dia que
conseguisse ganhar dava a ele e a Laury Marten novas
chances de atingir o objetivo a que se tinham proposto.
Em Hellgate, a cerca de oitenta e um anos-luz de
Tolimon, Perry Rhodan, protegido pela abóbada de aço,
aguardava o resultado de seus esforços.
* * *
Aquilo que Man Regg, o médico dos aras, designara
diante da barreira energética como X-p, surgiu diante dos
olhos de Laury Marten como uma construção gigantesca. E,
pelo que sabia da arquitetura dos médicos galácticos, supôs
que o complexo penetraria na terra numa profundidade
equivalente a três vezes sua altura.
Por cima da entrada principal, via-se esta inscrição
singela: X-p.
X-p ficava praticamente no centro do zoológico
continental, bem longe das áreas acessíveis aos curiosos,
em meio a um desolado deserto de pedras, aquecido dia
após dia pelos raios causticantes do sol.
O edifício de oito pavimentos, que parecia fundido
numa única peça, estendia-se a uma distância de vários
quilômetros.
Laury teve dificuldade em determinar o formato da
construção. À primeira vista, pensou num cano
superdimensionado de extremidades arredondadas, mas
agora, que se encontrava bem diante do mesmo,
contemplando a fachada tingida num azul-pálido, não teve
tanta certeza.
Sentiu o coração palpitar ligeiramente quando penetrou
no setor de controle. Tratava-se de ampla sala decorada
com um luxo discreto, de cores sóbrias e com uma
atmosfera agradavelmente refrigerada. Os tapetes abafavam
os sons.
Qualquer controle envolvia o perigo de que, graças à
sua constituição orgânica, Laury fosse desmascarada como
não-arcônida. Muito embora na Terra houvessem sido
tomadas todas as providências possíveis para que o fato não
pudesse ser revelado por meio de simples radioscopia, não
se deveria esquecer que havia uma diferença enorme entre a
tecnologia de Árcon e a dos aras.
A evolução milenar dos médicos galácticos, tal qual a
dos mercadores galácticos, ambos descendentes da raça dos
arcônidas, processara-se por trilhas próprias. O simples fato
de que o abastecimento de medicamentos aos mundos
dominados por Árcon fosse feito pelos aras, se transformara
numa ideia consagrada e bastava para deixar claro o
caminho extraordinário tomado pela evolução autônoma
dos médicos galácticos. Formavam uma população de
bilhões de habitantes que corporificava um saber ao qual os
arcônidas nada poderiam contrapor na área da medicina.
Foi só graças ao cérebro gigante positronizado instalado em
Árcon, que numa função autárquica decidia sobre a
existência de todos e em todos os sentidos, que a tentativa
de apoderar-se do Império de Árcon, realizada há muito
tempo pelos aras, terminara num fracasso.
Foram essas as ideias que passaram pela cabeça de
Laury Marten enquanto a mesma se encontrava no setor de
controle, onde foi testada pelas lentes de cristal.
O sinal azul-claro de liberação, que surgiu
repentinamente diante dela, aliviou-a da tensão. No mesmo
instante, pôs-se em movimento e não se espantou quando a
grande porta transparente P II recuou silenciosamente
diante dela, deixando livre o interior de X-p.
Uma abóbada radiante estendia-se acima de sua cabeça.
Uma abóbada no interior da construção em forma de tubo?
Avançou a passos hesitantes. A luz fosforescente que saía
das aberturas do teto e se refletia palidamente em torno do
centro do soalho compacto deixou-a confusa. O saber
hipnótico que lhe fora ministrado não conseguia explicar
esses reflexos luminosos.
Uma voz sonora mandou que se aproximasse do círculo
luminoso desenhado no centro do soalho e caminhasse uma
vez por sua periferia. Só mais tarde ficou sabendo que dessa
forma a parte exterior de seu corpo seria libertada de
germes.
Surpresa, Laury obedeceu. Não sentiu nada enquanto
caminhava de um feixe luminoso a outro. Mas mal havia
concluído o giro, a mesma voz indagou sobre seus desejos.
Em voz baixa, Laury declarou ter sido transferida para
X-p por ordem de Man Regg. A seguir, pronunciou seu
nome arcônida, Arga Slim, e aguardou novas ordens.
Já fazia cinco minutos que se encontrava no interior do
edifício, e até então não havia visto um único ara ou robô.
À sua direita, a parede da abóbada abriu-se em forma de
diafragma. Surgiu uma abertura circular e, pela última vez,
ouviu a voz sonora, que lhe ordenou que atravessasse a
abertura e deixasse o resto por conta da fita transportadora.
Mais uma vez, Laury Marten sentiu um formigamento
que já se apossara dela quando atravessou a entrada do
edifício.
Espantou-se ao perceber que entrara numa sala fechada.
Não viu nenhuma fita. Apenas, o chão começou a trepidar
ligeiramente assim que, atrás dela, o diafragma se fechou
silenciosamente.
Pensou na possibilidade de outro controle. Afinal, X-p
era o lugar em que era produzido o maior segredo dos
médicos galácticos: o soro prolongador da vida.
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Laury Marten espantou-se com o próprio nervosismo
quando a parede que se encontrava diante dela subitamente
se abriu para os lados e ela se viu diante de Man Regg, o
homem que conhecera no dia anterior.
Seus olhos exprimiram certo orgulho quando notou a
perturbação da moça. Depois de cumprimentá-la, disse:
— Nós, os aras, não progredimos apenas no terreno da
medicina. A tecnologia, que tem sido negligenciada por
muito tempo, experimentou novo impulso entre nós, Arga.
Sentaram-se frente a frente.
Mais uma vez, Laury Marten fez o jogo do gato e do
rato com Man Regg. Lia seus pensamentos e formulava as
respostas de acordo com os mesmos.
Recorria ao genial saber do cientista para fazer seus
blefes contra o mesmo. Isso só lhe foi possível porque,
antes de lhe ser confiada a missão, boa parte do saber
médico dos arcônidas lhe fora transmitido por meio de um
processo de aprendizagem hipnótica. Especializara-se
principalmente nas áreas da zoologia galáctica e da
soroterapia.
De repente, uma expressão de desconfiança surgiu nos
olhos de Man Regg.
Laury Marten se descuidara. Exprimira seus
pensamentos de forma quase inalterada. Mas o pior não era
isso. O fato era que nenhum arcônida poderia dispor desse
conhecimento, por se tratar de um dos numerosos segredos
cuidadosamente guardados de X-p.
Apesar da falha a mutante teve sorte. A lição que Perry
Rhodan vivia inoculando nos seus homens transformou-se
em sua salvação.
O erro que acabara de cometer não a deixou perturbada.
De repente, Laury Marten se tornou fria, isenta de qualquer
influência emocional; transformou-se no protótipo do
homem lógico.
Tomado por um princípio de desconfiança, Man Regg
formulou em pensamento as linhas gerais do processo que,
para seu espanto, a arcônida mencionara como que por
acaso.
Sua pergunta terminante e inequívoca ainda pendia no
ar, mas Laury Marten já preparara a resposta.
Sorriu. Inclinou-se para frente. Jogou com todo charme
que possuía, e brilhou com seu saber.
— O problema resume-se numa sequencia de
conclusões lógicas, Man... — principiou, e passou a expor
sua opinião.
Com um sorriso nos lábios, observou o efeito que suas
palavras produziam no rosto de Regg. Ao lado da
desconfiança, viu o espanto e a admiração, que acabaram
por prevalecer. O cientista, geralmente tão prosaico, acabou
por entusiasmar-se com a lógica tão bem elaborada de
Laury Marten, a ponto de exclamar impulsivamente:
— Estou pensando em outra coisa, Arga. A senhora
gostaria de trabalhar na minha equipe pessoal?
Ao concordar, Laury Marten acreditava encontrar-se
próxima ao objetivo.
* * *
John Marshall captou a mensagem telepática de Laury
Marten quando se encontrava a caminho da nave de Rohun,
o comandante dos saltadores. Sua exposição otimista
forneceu-lhe certo estímulo moral. A disposição eufórica
perdurou até que atingisse o gigantesco espaçoporto de
Trulan e procurasse em vão localizar a nave cilíndrica de
Rohun.
Rohun decolara sem avisá-lo!
No mesmo instante, John Marshall — ainda sob a
máscara de um barbudo — colocou seu espírito num estado
de alarma rigorosíssimo.
Naquele instante, recebeu o impulso de Laury Marten.
O movimento intenso do espaçoporto desapareceu
diante dos olhos de Marshall. Não via decolar e pousar as
naves e não deu a menor atenção ao que se passava em
torno dele. Apenas perscrutou-se, a fim de ouvir o relato da
mutante.
John Marshall enfureceu-se! Acabara de conhecer os
menores detalhes do que se passara entre Laury Marten e
Man Regg. Soube inclusive de sua resposta leviana e sua
tentativa de livrar-se da situação embaraçosa em que se
encontrava através de novas peripécias com o saber de Man
Regg.
Ainda pertencia ao círculo de colaboradores pessoais do
cientista, mas no espírito de Man Regg haviam surgido
dúvidas sobre a pessoa de Laury Marten.
Em X-p, Man Regg entrara em contato não só com a
Divisão de Segurança, mas também com o serviço secreto
sediado em Trulan, pedindo-lhe que realizasse um exame
acurado da estudante de zoologia Arga Slim. O argumento
de maior peso, que Man Regg formulou em apoio a suas
suspeitas, culminou nestas palavras:
— Como estudante de zoologia, a arcônida Arga Slim
dispõe de um saber que infelizmente tenho procurado em
vão entre os meus médicos.
O rosto de John Marshall assumiu uma expressão rígida.
Lembrou-se de suas preocupações, que desde o início
giravam em torno de Laury Marten. Ainda lhe faltava a
prática, o último retoque da personalidade, que faria com
que não superestimasse suas próprias habilidades e,
principalmente, a necessária visão global das coisas. Ainda
era capaz de embriagar-se com um êxito momentâneo, e
essa embriaguez a levava a cometer erros.
“Se nos dados de Laury também houver alguma
divergência, todo o mundo de Tolimon se colocará em
nosso encalço”, pensou e teve uma sensação de
desconforto.
Arrancou-se violentamente em meio às suas
preocupações. Antes de tudo, precisava descobrir por que
Rohun decolara com a nave.
Marshall encontrava-se sobre a fita-guia, que levava ao
setor G-8 do espaçoporto. Era o lugar em que ainda ontem
estivera estacionada a nave de Rohun. Mais uma vez passou
os olhos pelo enorme campo de pouso. Viu que uma nave
arcônida com sua típica forma esférica rompeu
silenciosamente a delgada camada de nuvens e pousou
53
suave. Virou-se em direção ao distribuidor, um sistema de
elevadores antigravitacionais, a fim de que este o
conduzisse à via elevada, onde tomaria uma condução que
o levasse de volta ao centro da cidade.
Finalmente descobriu, em meio à confusão, Egmon, um
dos agentes de Rohun estacionados em Tolimon.
Aquele saltador mais se parecia com um arcônida. Seus
cabelos louro-claros chamavam a atenção de qualquer um.
Mas havia em Egmon outro detalhe ainda mais estranho,
que sempre voltava a fascinar Marshall: o aspecto dos olhos
do agente mudava constantemente, da mesma forma que
um camaleão muda a cor da pele.
— Egmon — disse Marshall, ao passar por ele.
O agente dos saltadores ouvira seu nome, mas não
conhecia o barbudo que lhe dirigira a palavra.
John dirigiu-se a um dos numerosos robôs de
informações. Indicou o número da nave de Rohun e
procurou saber para onde se dirigira o mercador galáctico.
— Não posso dar nenhuma informação — rangeu, um
tanto mecanizada, a voz do robô.
Marshall não esperara outra coisa. Sentiu que alguém se
encontrava bem atrás dele. No mesmo instante, usou seu
dom telepático para alcançar os pensamentos desse alguém.
Os pensamentos de Egmon podiam ser tudo, menos
pacíficos. O agente de Rohun via naquele sujeito um espião
dos aras e, para estar preparado para qualquer iniciativa,
mantinha engatilhado o radiador de impulsos que trazia no
bolso.
Ao virar-se, Marshall cochichou:
— Se eu fosse você, não apertaria o gatilho, Egmon.
O saltador ainda estava desconfiado, porém havia na
voz de Marshall alguma coisa que lhe parecia conhecida.
Mas Egmon só se tranquilizou quando o mutante citou seu
nome.
— O que o torna irreconhecível não é a barba, mas os
ombros largos — disse Egmon em tom perplexo. — Por
todas as estrelas, Ixt, estou esperando pelo senhor há várias
horas. Nosso chefe recebeu más notícias. Por isso decolou e
encontra-se a meio caminho entre Tolimon e Hellgate, onde
aguarda o desenrolar dos acontecimentos.
— Que acontecimentos?
— Um homem do clã de Estgal foi apanhado e
submetido à lavagem cerebral.
Marshall não sabia quem era Estgal, patriarca dos
saltadores.
— O clã de Estgal vive contrabandeando medicamentos
dos aras. Os aras sabem disso, mas nunca conseguiram
pegar Estgal em flagrante ou desmontar sua organização
que age na superfície. Caso Estgal se tivesse mantido no
mesmo ramo, poderia ter ficado muito velho.
— Estgal está morto?! — indagou admirado, Marshall.
De repente, passou a interessar-se por esse desconhecido
patriarca.
— Há três ou quatro horas foi destruído em pleno
espaço com dezoito naves, por uma formação bélica dos
aras. É por isso que este lugar está cheio de espiões dos
aras.
Egmon, que Marshall tinha na lembrança como um
agente de Rohun, fechado e de poucas palavras, estava
desenvolvendo uma verbosidade irritante enquanto
apresentava seu relatório. Foi só graças ao treinamento a
que eram submetidos os colaboradores de Rhodan que
Marshall conseguiu dominar-se:
— Faça o favor de limitar-se ao essencial, Egmon. O
que foi que Estgal quis arranjar?
— Já havia arranjado — cochichou o agente louro-
claro. — Por meio de um ara subornado, conseguiu arranjar
na fábrica de soro G-F 45 o processo de conservação do
soro imunizador X-1076...
Estas palavras pareciam familiares a Marshall.
Lembrou-se de ter lido os pensamentos de Kuxul, que
também se haviam ocupado com esse processo e seu
desaparecimento.
— E depois?
— Na última noite Hduzz, membro do clã de Estgal, foi
preso e submetido à lavagem cerebral. Depois disso,
também o ara corrupto foi preso e submetido ao mesmo
tratamento. Quando tudo isso terminou, o dia já estava
amanhecendo. Estgal recebeu um aviso e fugiu para o
espaço com suas naves. Mas as naves de guerra dos aras já
o esperavam e destruíram seus veículos cilíndricos. Já
compreende por que meu chefe resolveu deslocar-se para
um ponto situado a quarenta anos-luz deste planeta?
Marshall deixou a pergunta sem resposta.
— Vocês mantiveram contatos muito estreitos com os
agentes de Estgal?
— Essa informação só pode ser dada por Tulin ou
Otznam — respondeu o saltador, enquanto a cor de seus
olhos mudou de novo.
Marshall realizou um exame rápido para verificar se
Egmon estava dizendo a verdade. Não descobriu nenhuma
mentira em seus pensamentos. Limitou-se a pedir:
— Amanhã a esta hora quero encontrar-me com Tulin
neste lugar. Será que você poderia avisá-lo?
— Ele poderá estar aqui dentro de uma hora — disse
Egmon, enquanto seus olhos emitiram um brilho
esverdeado.
— Será amanhã! — disse Marshall em tom decidido.
Fez um gesto quase imperceptível para Egmon e
desapareceu em meio à confusão dos transeuntes.
Entrou no distribuidor, ou seja, o lugar através do qual
se atingiam as diversas ruas por meio dos elevadores
antigravitacionais. Subiu e, uma vez na via elevada número
quatro, tomou o expresso radial que corria velozmente em
direção ao centro da cidade.
Seus pensamentos estavam absortos na missão que
Perry Rhodan havia confiado a ele e a Laury Marten.
Respirava pesadamente. A missão parecia-lhe quase
insolúvel.
* * *
54
Man Regg sacudiu a cabeça pela terceira vez, mas não
interrompeu o relatório do ara de sua Divisão de Segurança.
Com a paciência de um homem bem equilibrado, ouvia-o
atentamente.
Man Regg, o médico genial dos aras, não era o único
ouvinte. Três colegas encontravam-se em sua companhia, e
estes também não interrompiam o relatório.
— Pode retirar-se! — com estas palavras, Man Regg
dispensou o chefe da Divisão de Segurança de X-p.
Quando se viu sozinho com os colegas, perguntou:
— Então?
Três vezes ouviu esta opinião:
— Tudo perfeito, mas...
O mas, três vezes repetido, dizia respeito à Laury
Marten.
O serviço secreto dos aras penetrara até o centro do
império estelar dos arcônidas, por meio do
hipercomunicador, em busca do passado de Laury Marten.
A central de Trulan seguira outros caminhos que os da
Divisão de Segurança do conjunto X-p, mas ambas
chegaram ao mesmo resultado.
Arga Slim era uma arcônida de vinte e três anos, vinda
do planeta Dewen. Era estudante de zoologia e, dentro em
breve, teria de prestar os exames finais. Segundo a opinião
dos professores, era dotada de um talento médico
extraordinário.
Não havia o que objetar nos dados. O retrato recebido
de Dewen pelo hipercomunicador correspondia
aproximadamente ao aspecto de Laury Marten. A diferença
devia provir da falta de nitidez da transmissão.
Apesar disso, Man Regg não estava satisfeito com o
resultado obtido por dois caminhos diferentes. Estava
formulando uma sugestão. Era claro que, sendo o chefe, só
ouviria aplausos à mesma.
Gelte, um zoólogo ara, examinaria Arga Slim em
presença dos seus colegas Kelisse e Assa. Man Regg
permaneceria na sala contígua, onde acompanharia tudo
pelo sistema de comunicação audiovisual.
Man Regg dirigiu-se à sala contígua. Arga Slim — ou
melhor, Laury Marten — recebeu ordem para apresentar-se
ao chefe. Os três cientistas aras acreditaram que tivessem
diante de si uma arcônida desprevenida. Laury deixou que
permanecessem nessa convicção. Sabia do que se tratava.
Entrou com um sorriso amável nos lábios e fingiu-se
espantada quando em vez de Man Regg notou três aras
desconhecidos à sua frente. Sentou e logo se viu envolvida
num exame bastante duro.
Precisou lançar mão de toda energia e concentração de
que era capaz para não cair do extremo da estudante
superdotada para o extremo oposto, pois isto seria uma
tolice fora do comum.
O saber médico arcônida que lhe fora transmitido
durante o processo de aprendizagem hipnótica não lhe teria
adiantado muito. Mas, da mesma forma que aproveitara o
saber de Man Regg para brilhar, valeu-se dos
conhecimentos dos três examinadores para escapar sã e
salva de todos os obstáculos e armadilhas do caminho.
Embora fosse telepata e pudesse ler pensamentos, via-se
obrigada a realizar um trabalho de mestre para controlar
três cérebros, concentrar-se nas respostas e continuar a
oferecer a imagem de uma arcônida segura e confiante.
Subitamente sentiu-se perturbada por um impulso mais
intenso, vindo da sala contígua.
Isso aconteceu no momento exato em que seus
examinadores formularam uma pergunta importante.
Laury Marten recorreu ao meio empregado em todas as
estrelas, dizendo que não havia entendido a pergunta. Dessa
forma, ganhou tempo para descobrir quem se encontrava na
sala contígua e concentrava seus pensamentos sobre ela. Ao
mesmo tempo, aproveitou o novo lapso de tempo para
formular a resposta.
De repente, tornou-se confiante demais. Os
examinadores começaram a ver nela um verdadeiro
fenômeno médico. Passou a responder às perguntas por
meio dos pensamentos de Man Regg, mas ela o fez de tal
forma que apontou como observações menos corretas tudo
aquilo que Regg considerava certo, apresentando três
argumentos que representavam os pontos mais fracos da
série de pesquisas de Man Regg.
— Será que Árcon já avançou tanto no campo da
pesquisa genética que os estímulos genéticos, os quais até
agora não se tornaram conhecidos dos médicos, já passaram
à categoria de informações que são do domínio público? —
surpreso, Assa exclamou de modo interrogativo.
Laury Marten respondeu com a maior amabilidade:
— Dos dados a respeito de minha pessoa consta a prova
de que durante um ano fui assistente de Moguld, que
também em Tolimon goza de certa fama.
— Acontece que não nos consta que Moguld se ocupe
com a biologia da hereditariedade, Arga Slim.
Arga continuou amável como antes.
— Será que no Império de Árcon se conhecem todas as
pesquisas que já foram realizadas nos mundos dos aras?
— Isso não é argumento — falou Assa em tom furioso.
— Será que a teoria de Moguld representa um forte
argumento, quando este afirma que o segredo da vida eterna
se encontra nos cromossomos?
— Tolice! — resmungou Assa.
— Será que ainda se pode falar em tolice se
aumentarmos artificialmente o número dos cromossomos
ligados à espécie e obrigarmos os cromossomos adicionais
a suspenderem a divisão indireta das células?
Laury Marten sorriu, mas por dentro fervilhava.
Naquele instante, Kelisse, Assa e Gelte não passavam de
um feixe de receios. Viram que o mais importante dos seus
segredos havia sido descoberto. Até esse ponto, haviam
refletido sobre o problema, e Laury Marten rogava aos
deuses para que um deles refletisse sobre o problema em
seu aspecto global, para revelar o processo sofisticado de
produção do soro prolongador da vida. Quando isso
acontecesse, o problema estaria resolvido. Perry Rhodan
ficaria livre da tensão psicológica insuportável causada pelo
55
fato de que Thora, a mulher amada que se encontrava a seu
lado, envelhecia a cada dia, enquanto Crest, o amigo
arcônida, se transformava num ancião.
Leu novos pensamentos. Eram apenas fragmentos, mas
bastaram para que reconhecesse que os três aras que tinha
diante de si pretendiam alcançar um prolongamento infinito
da vida sem recorrer a qualquer soro. E, ao que parecia, não
se encontravam muito longe do objetivo.
Tentou influenciar os aras hipnoticamente para esse fim,
mas nesse instante Man Regg veio da sala contígua e
felicitou-a.
Lamentou a interrupção. As reflexões dos três médicos
aras haviam revelado parte do segredo sobre a maneira pela
qual pretendiam alcançar a imortalidade.
Conseguiu enrubescer com o elogio de Man Regg e, ao
mesmo tempo, felicitou no seu íntimo o Serviço de Defesa
do Sistema Solar por ter forjado seus dados pessoais com
tanto cuidado. Enquanto Laury Marten elogiava os homens
de Terrânia, John Marshall os repreendia por suas
negligências. Ambos não sabiam que o Serviço de Defesa
do Sistema Solar nunca teria sido capaz de fornecer dados
tão precisos, se não contasse com a cooperação de certos
mercadores galácticos.
Os dados sobre Moguld eram corretos. E também era
verdade que existia uma estudante de zoologia arcônida
chamada Arga Slim. Mas só Rhodan e um comandante dos
saltadores sabiam que a verdadeira Arga Slim se encontrava
há mais de oito meses numa nave cilíndrica, realizando em
mundos distantes estudos zoológicos in loco.
Mais uma vez, Laury teve que realizar uma obra-prima
da telepatia, mesmo sob a desconfiança de Assa. Apesar de
tudo, conduziu uma conversação especializada fluente,
intercalando vez por outra algumas observações científicas
de alto gabarito, que deixavam os aras perplexos.
Se John Marshall participasse da palestra, teria colocado
uma poderosa barreira mental, para que Laury Marten com
seu espírito um tanto infantil não se deslocasse para o
terreno das areias movediças.
— Sugiro — disse Man Regg, encerrando a reunião —
que Arga Slim passe a trabalhar na Divisão de
Geomorfismo. Ou será que pensam de forma diferente?
A Divisão de Geomorfismo estudava as alterações
trópicas da pele do rosto de inteligências jovens, que muitas
vezes adquiria o aspecto envelhecido, apesar do uso do soro
prolongador da vida.
Nenhum dos três médicos teve qualquer objeção contra
a sugestão do chefe. Nem mesmo Assa.
O hipercomunicador instalado no luxuoso escritório de
Ixt não representava nada de extraordinário. Era uma das
ferramentas de um negociante em grande escala de animais
raros. Nos últimos meses fizera várias compras de animais
esquisitos pelo rádio, enquanto a nave dos saltadores que os
trazia a bordo ainda se encontrava no espaço, a milhares de
anos-luz, e muitas vezes, levava semanas para chegar a
Tolimon.
Naquela manhã, John Marshall esquentou seu
hipercomunicador. Futgris estava sentado à sua frente e
deveria socorrê-lo com seus conhecimentos especializados
se isso se tornasse necessário.
Tulin, um dos agentes de Rohun, lhe contara no dia
anterior que Bet, um saltador, se aproximava de Tolimon,
com metade da nave cheia de animais dos tipos mais
estranhos.
Chamou a Bet-765 pelo hipercomunicador. John
Marshall pretendia entrar no negócio a todo vapor. O
encontro — que no dia anterior tivera no espaçoporto com
Tulin, um ruivo impetuoso — fornecera-lhe estímulo para
isso. Uma frase dita ao acaso transformara-se subitamente
num impulso muito intenso.
“Quanto mais estreitamente a gente colabora com os
aras, mais confiantes eles se tornam.”
E a experiência de oito meses ensinara a Marshall que a
melhor isca para os médicos galácticos eram os animais que
ainda não fossem conhecidos em Tolimon.
A Bet-765 respondeu. Na tela, surgiu o rosto de Bet, um
saltador jovem e robusto.
Bet sorriu ligeiramente ao ouvir o motivo pelo qual Ixt,
um negociante de animais, estabelecido em Trulan, estava
entrando em contato com ele.
— Tudo que tive de fazer foi carregar os animais de um
planeta que em cada canto exala um cheiro diferente.
Aposto que nem um único destes animais é conhecido no
Império de Árcon. Pretendia fornecer toda a carga aos aras,
mas se o senhor me pagar um preço aceitável, eu os vendo
ao senhor, Ixt. Um instante! Vou mostrar-lhe meu
zoológico de bordo.
A imagem de Bet desapareceu. Logo a seguir, os
animais começaram a surgir na tela. John Marshall, que
durante as ações desempenhadas em muitos planetas já se
acostumara às coisas mais estranhas e monstruosas, reteve a
respiração.
Bet tinha uma coleção de monstros terríveis a bordo.
Eram lagartos, morcegos gigantes, anfíbios e outros seres
que não poderiam ser enquadrados em qualquer categoria.
Ixt lançou um olhar indagador para Futgris. Este
também não sabia o que fazer, mas em seus olhos brilhava
a chama do entusiasmo.
As negociações consumiram meia hora.
Depois, o negócio tomou um fim. Futgris ficou perplexo
quando o chefe voltou a confirmar o preço da compra.
Eram 1,3 milhões.
O contato pelo hipercomunicador não foi interrompido.
Enquanto a Bet-765 ainda se encontrava a 5.299 anos-
luz do planeta Tolimon, John Marshall catalogou, com o
auxílio de Futgris, os animais que se encontravam a bordo
da nave cilíndrica de Bet.
5
56
Quando o último dos animais acabara de ser fixado
fotograficamente, Marshall pediu que até o meio-dia o
vendedor lhe entregasse trinta exemplares do catálogo.
Dali a duas horas, os trinta exemplares estavam sobre a
mesa de John Marshall. Futgris foi brindado com um elogio
todo especial. Depois disso, o ara estaria disposto a fazer
pelo chefe tudo que estivesse ao seu alcance. Felicitava-se
constantemente por ter resolvido há oito meses entrar para o
serviço da firma recémfundada.
* * *
Divisão de Compras.
Era lá que se encontrava John Marshall. Passara por
cima de dezoito instâncias competentes, apontando para seu
robô de trabalho, que carregava trinta catálogos. Naquele
momento, encontrava-se sentado diante de Kolex, um velho
ara, curvado pelos anos, mas que nem por isso deixava de
ser uma raposa esperta. Numa atitude de espreita, seus
olhos fitavam John Marshall. Deixou que falasse. Sua boca
permaneceu fechada, mas seus dedos não ficaram quietos
nem por um segundo.
John sabia o que a velha raposa estava fazendo com os
dedos, pois lia os pensamentos de Kolex. Estava pondo em
polvorosa todos os setores do gigantesco aparelho, que
poderiam estar interessados na aquisição de animais
desconhecidos.
A palestra estava sendo vista e ouvida em mais de vinte
lugares. Apenas o catálogo ainda não havia sido
apresentado. O robô de trabalho de Ixt ainda mantinha os
exemplares seguros nas mãos de aço, mantendo-se imóvel
atrás do chefe.
Kolex comprimiu mais uma tecla para estabelecer outra
comunicação. John Marshall conteve-se para não deixar
perceber o triunfo. O biomédico Man Regg acabara de ser
colocado na linha.
— Um catálogo! — pediu Marshall, dirigindo-se ao
robô.
Colocou-o exatamente diante da lente de cristal do
projetor de campo. No mesmo instante a sala foi escurecida
automaticamente. A imagem do primeiro animal foi
projetada sobre a tela de radiações com uma dimensão de
quatro metros por cinco.
John Marshall armou-se de paciência. A única coisa em
que estava interessado eram os pensamentos de Kolex.
Enquanto se mantinha de olhos semicerrados, lia-os.
Aquilo que o chefe da Divisão de Compras dos aras
ocultava, acabava sendo revelado através dos seus
pensamentos. Vivia lutando contra a tendência de irromper
em demonstrações de entusiasmo. Estava reprimindo o
desejo de levantar-se de um salto para exprimir seu espanto.
Fazia mais de oitocentos anos de Tolimon que exercia as
funções de chefe da Divisão de Compras, mas em todos
esses séculos nunca vira tamanha profusão de coisas
terrificantes, novas e extraordinárias.
A projeção durou nada menos que uma hora. Quando
terminou, a luz ofuscante do sol voltou a encher a sala.
O mutante de Perry Rhodan disse o preço. Pediu 2,1
milhões. Não se sentiu embaraçado ao indicar a soma.
Conhecia os pensamentos de Kolex. E este estava disposto
a chegar até lá.
Mas em vez de aceitar a pretensão de Marshall, o ara
formulou uma ameaça velada:
— Esses seres ainda não chegaram às suas mãos, Ixt.
Pelo que diz, o negócio foi fechado pelo hipercomunicador.
Acredita que eu teria algum problema em descobrir qual é o
saltador que tem essa carga a bordo e negociar diretamente
com ele? Posso perfeitamente dar a entender, de forma
diplomática, que terá dificuldade se não fizer o negócio
conosco...
Era exatamente o que Kolex estava pensando.
John Marshall, sob o disfarce da extraordinária máscara
de saltador, respondeu com um sorriso condescendente.
— Ora, Kolex, faça-me o favor!
Não disse mais nada.
A atitude de espreita nos olhos de seu interlocutor
tornou-se mais intensa. Pediu apressadamente uma ligação
com o serviço de vigilância de hipercomunicação.
A ligação foi completada. Um ara prometeu fornecer
num instante os dados solicitados.
Mas esse instante não chegou.
O sorriso condescendente de John Marshall tornou-se
mais intenso.
— Kolex — disse em tom enfático. — Eu sou um
saltador. Meu hipercomunicador foi construído pelos
saltadores.
Com estas palavras, deu a entender que o serviço de
vigilância de hipercomunicações de Tolimon não estava em
condições de verificar com quem havia falado.
Quase no mesmo instante, veio a resposta da Divisão de
Vigilância de Hipercomunicações, dada em tom modesto,
de que não era possível fornecer a informação solicitada.
Kolex ainda teve o atrevimento de formular uma
pergunta:
— O senhor acha que em Tolimon é permitido o uso de
hipercomunicadores desse tipo?
John Marshall resolveu falar grosso:
— Será que estou aqui para ser interrogado ou para
tratar de negócios? O senhor sabe perfeitamente que os
mercadores galácticos negociam com todos os povos do
Império; tenho outros interessados além do senhor. Vamos
dar a palestra por encerrada. De acordo?
O calor do meio do dia, que chegava a quarenta e cinco
graus à sombra, pendia sobre Trulan, quando a Divisão de
Compras dos aras e Ixt, o mercador galáctico, fecharam o
contrato para o fornecimento de animais, no valor de dois
milhões.
Quando John Marshall se despediu de Kolex, os dois se
haviam tornado bons amigos.
* * *
57
Dois dias depois, a Bet-765 pousou no espaçoporto de
Trulan. A chegada da nave provocara sensação, pois nunca
se vira tamanha quantidade de jaulas transportáveis.
Também em Trulan não faltavam os curiosos. Mas,
quando a grande comporta da Bet-765 se abriu, deixando à
mostra o depósito F, a multidão fugiu em disparada, e quem
possuísse um sentido de olfato humano tapava o nariz e
lutava desesperadamente para reprimir as náuseas causadas
pelo terrível fedor.
Marshall logo colocou seu aparelho de respiração,
respirou profundamente algumas vezes e enxugou o suor
que lhe cobria a testa.
A onda olfativa — espalhada como uma densa neblina e
reforçada incessantemente pelo cheiro que saía do interior
do depósito da Bet-765 — era de intensidade inigualável.
Alguns zoólogos dos aras, que já estavam acostumados
a muita coisa em matéria de mau cheiro, haviam
desmaiado. Outros fugiam junto com o grupo de curiosos.
Só depois de uma hora, quando a onda olfativa penetrante
se aproximava inexoravelmente do gigantesco edifício da
recepção do espaçoporto, a descarga dos animais pôde ser
iniciada.
Kolex, que estava parado ao lado de Marshall junto à
grande rampa, viu um monstro de dez metros, com o
formato de pólipo, ser agarrado pelos raios de tração que o
colocaram atrás da grade energética da jaula destinada ao
transporte.
— Estes animais respiram oxigênio e espalham um
fedor destes! — suspirou Kolex, em tom exaltado. — Tal
fato já constitui uma novidade. Diga-me uma coisa: Por que
todos esses seres exalam um cheiro tão insuportável?
— Se eu soubesse disso — disse John Marshall,
bancando o mercador galáctico em toda extensão — não
teríamos feito o negócio por dois milhões.
Esta observação fez Kolex lembrar-se de que procurara
exercer pressão sobre o mercador de animais. Na intenção
de reparar alguma coisa, disse:
— Nosso negócio se tornou conhecido em toda cidade,
Ixt. Ontem recebi a visita do pessoal do serviço secreto. O
senhor já fez alguma coisa contrária às nossas leis no
mundo dos aras? O funcionário quis saber com todas as
minúcias como foi que fechamos o negócio. Confie em
mim, Ixt, e procurarei ajudar. Minha influência junto ao
serviço secreto é bem considerada.
John Marshall sentiu um calafrio. Exerceu um controle
instantâneo dos pensamentos de Kolex. O chefe da Divisão
de Compras dos aras estava dizendo o que pensava.
— Eu? — disse Marshall em tom de espanto. — Não
me lembro de ter violado qualquer lei. O funcionário não
explicou o motivo de sua visita?
— Explicou Ixt. Diz que os dados relativos à sua pessoa
não são corretos. É bem verdade que existe um mercador
galáctico de animais, mas pelo que dizem este reside em
Xylon, no sistema de Hogur. Ixt, quando olho para a beleza
que o senhor nos vendeu, meu coração se abre. Mesmo que
fosse um agente, faria tudo para ajudá-lo. Confie em mim,
saltador!
John Marshall surpreendeu-se porque o chão não se
abriu sob seus pés para engoli-lo.
Não poderia deixar de responder a uma observação
como esta. Mas nesse exato momento foi atingido pela
mensagem telepática de Laury Marten.
— Daqui a pouco! — telepatou de volta. — Agora não!
Daqui a dez minutos, se for necessário, mas não agora,
Laury!
— Acontece que encontrei humanos trancados no
zoológico, sobre os quais correm boatos entre os
saltadores, Marshall. Tenho necessidade absoluta...
Até mesmo um palavrão pode ser transmitido por via
telepática. John Marshall não se importou com o fato de
que Laury Marten era mulher. Era o chefe do comando, e
proibia a perturbação telepática de Laury.
Respirou profundamente.
Fitou Kolex.
— Qual foi a expressão que o senhor usou, Kolex? —
riu. — Obrigado — prosseguiu. — Não me esquecerei do
que o senhor se dispôs a fazer por mim, mas nunca haverá
necessidade disso. Todavia, tenho um pedido. Gostaria de
saber por que o serviço secreto está interessado na minha
pessoa. Eu sou Ixt, logo se conclui que o tal do Ixt, que se
encontra em Xylon, é um trapaceiro.
— De qualquer maneira, o senhor nos vendeu o lote de
animais mais sensacional do milênio, Ixt — respondeu
Kolex num tom que, além de ser ambíguo e reticente,
encerrava uma advertência.
Marshall examinou os pensamentos do ara. Não
encontrou nada de importante além daquilo que o mesmo
lhe dissera. Qual seria então o motivo da advertência
inequívoca de Kolex? Estaria agindo por intuição?
* * *
Ao passar por uma ondulação do terreno em que ficava
o zoológico continental, Laury Marten viu subitamente uma
construção parecida com uma casa de camponeses suecos.
Dirigia-se à grade, atrás da qual eram mantidos os
bombos. Tratava-se de seres semelhantes a macacos, que
tinham cabeça dupla e, além de possuírem braços curtos em
formato humano, sabiam falar, ler e escrever.
O controle de rota de seu veículo fora regulado para
essa grade e foi por simples coincidência que conseguiu ver
a casa camponesa sueca. A quinhentos metros do lugar em
que se encontrava, cercada de alamos prateados, com o
telhado de palha que quase tocava o chão, parecia uma
lembrança do planeta Terra.
Freou subitamente e imobilizou o veículo. Desceu e
aproximou-se da grade energética, enquanto olhava em
torno para ver se havia algum frogh por perto.
Até onde alcançava a vista, não via nenhum frogh.
Quando Laury esbarrou contra a parede energética e foi
atirada para trás uns trinta centímetros, sua decisão havia
sido tomada.
Não era apenas telepata. Também possuía o dom da
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desintegração, que lhe permitia dissolver aglomerações
moleculares pela simples força de sua vontade. Essa
faculdade incrível lhe permitia transpor paredes compactas
e barreiras energéticas, sem que sua vida corresse o menor
perigo.
Estendeu a mão em direção à barreira energética
invisível, concentrou-se, fez sua vontade atuar sobre uma
área reduzida da barreira. Como se o desejo tivesse
atravessado uma lente, sentiu a resistência da barreira,
reforçou a concentração da mente. Deu um passo amplo e
sorriu aliviada. A barreira energética encontrava-se atrás
dela. Estava intacta; não deixaria passar mais ninguém.
A parte do zoológico em que se encontrava ficava a
mais de duzentos quilômetros da área acessível ao público.
Por onde quer que passasse, notava que os aras se
esforçavam em manter seus prisioneiros num ambiente que
correspondia ao mundo do qual haviam vindo.
A casa de campo sueca da qual Laury se aproximava
poderia perfeitamente estar na Suécia. Não havia nada de
diferente. Todos os detalhes haviam sido incluídos naquela
construção.
Estacou diante dela.
“Qual será a idade desta casa?”, pensou espantada.
Sacudiu a cabeça ao ver a maçaneta desajeitada, feita de
ferro forjado, e as dobradiças, que tinham quase um
centímetro de grossura.
Quando resolveu lançar um olhar para o interior da casa
viu um fogo aberto e, pendurado num tripé, um tacho de
cobre enegrecido pela fuligem.
“Estamos em plena Idade Média”, pensou perplexa e
procurou descobrir os habitantes da casa. Mas nem mesmo
com suas energias telepáticas conseguiu encontrar qualquer
pessoa.
Virou-se apressadamente e voltou a examinar o terreno,
para ver se descobria algum dos ligeiros froghs, sempre
desconfiados. Sorriu aliviada. Nenhuma das criaturas em
formato de cobra estava à vista. Correu em torno da casa. Já
agora a construção e os alamos prateados a encobriam.
Passou a andar mais devagar. A trilha estreita,
perfeitamente visível, subia por um barranco. Aguardava
outra surpresa, mas o quadro que se ofereceu diante de seus
olhos obrigou-a a ficar parada.
Perplexa, fitou um edifício construído em estilo asteca.
Seriam astecas?
As ideias de Laury Marten desfilaram pelas fases da
história.
Os astecas, habitantes indígenas da América Central,
foram subjugados por Cortez, de 1.519 a 1.521. Ao mesmo
tempo, verificou-se a destruição de sua cultura e o
extermínio da religião cruel e sanguinária que praticavam...
Esses dados resumiam tudo que sabia a respeito dos
astecas. E agora, a construção que via diante de si — um
palácio — lembrava os espetáculos relativos à cultura
asteca que conhecia.
Seria o século dezessete?
Será que a casa de campo sueca era do século
dezessete?
Subitamente estremeceu. Um homem saiu da grande
porta lateral do palácio asteca. Laury Marten sentiu o
coração palpitar.
Um homem, que nem desconfiava de sua presença, saíra
do palácio e caminhava para o lado esquerdo, em direção à
casa achatada que se parecia com a cobertura de um poço.
Como caminhava! Seu passo era majestático. E
majestática também eram sua figura e sua postura.
Era alto e de ombros largos. Os cabelos sedosos e
brilhantes desciam em cachos escuros. Sentou no muro
baixo. A mutante foi caminhando devagar. O homem ainda
não a havia notado. De repente, Laury tropeçou. Uma pedra
bateu na outra. O silêncio propagou o som.
O homem levantou a cabeça, viu-a, levantou, colocou a
mão direita sobre a espada e com a esquerda tirou o chapéu
de aba larga. Deu um pequeno passo para trás e executou
uma mesura profunda e elegante. Voltou a endireitar o
corpo.
E Laury Marten viu-se frente a frente com o conde
Rodrigo de Berceo!
Fitou-o boquiaberta, como uma mocinha inexperiente.
Era um mestiço. A união do sangue asteca com o sangue
espanhol havia feito do conde Rodrigo um exemplar de
beleza masculina.
Como chamejavam seus olhos! E como era altiva a
expressão da boca!
O tamanho do nariz era um tanto exagerado, mas era
justamente o ligeiro excesso desse órgão que conferia ao
rosto másculo o feitio do combatente fogoso, do homem
altivo.
O jovem homem sorriu para ela. Laury viu o tremor das
narinas e notou o olhar, em que se lia uma veneração
extraordinária.
— Quem é o senhor? — Laury Marten formulou a
pergunta na língua dos aras, falando como uma mocinha
tímida.
— Sou o conde Rodrigo de Berceo, filho da princesa
asteca Uxatelxin e do conde espanhol Juan de Berceo.
Nasci no ano da graça de mil seiscentos e cinquenta e dois e
com a idade de vinte e dois anos fui raptado e levado para
Tolimon. Deseja mais alguma informação?
Nascido em mil seiscentos e cinquenta e dois!
A Terra já estava no mês de maio do ano de dois mil e
quarenta e dois!
Aquele homem, que tinha o aspecto de pessoa de trinta
anos, vivera quatrocentos anos?
Quando Laury Marten teve a ideia de usar suas
faculdades telepáticas em relação ao conde Rodrigo, vários
minutos haviam sido consumidos em perguntas formuladas
e respondidas às pressas, que provocavam um espanto cada
vez maior na moça.
Não se cansava de olhá-lo, e à medida que o
contemplava familiarizava-se com suas vestes medievais:
botas de cano estreito e revirado que chegavam até os
quadris, a calça bem justa feita por um material que se
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parecia com o veludo. O colete curto e sem mangas estava
cingido por um cinto largo. O colarinho de renda caía
elegantemente por cima do colete. As mangas largas da
camisa branca também terminavam em preciosas rendas. O
cinturão brilhava e a espada presa a uma corrente de prata
balançava de um lado para outro. O chapéu era de aba
larga, e o penacho preso ao mesmo era agitado pelo vento.
A pesada corrente de ouro que trazia ao pescoço não
parecia uma peça de ostentação. Formava parte integrante
da vestimenta do século XVII, tal qual o amuleto que
representava o Deus Sol dos astecas.
Laury Marten teve a impressão de que seria um crime
investigar os pensamentos do conde Rodrigo. Mas lembrou-
se de sua missão; apesar disso, ela o fez com grande
relutância. Parecia mudada; não sabia o que estava
acontecendo com ela.
Numa fração de segundo enxergou tudo com a maior
clareza.
Este homem de trinta anos realmente nascera no
México, em 1.652!
“Devo avisar Marshall”, foi este seu único pensamento.
Enquanto o conde Rodrigo a admirava à distância,
conseguiu estabelecer contato com John Marshall, que se
encontrava em Trulan.
Mas o contato durou poucos segundos. Marshall só
estava disposto a ouvir sua mensagem mais tarde.
Acontecia que precisava informá-lo sobre a descoberta que
acabara de fazer; procurou convencê-lo da importância do
fato. Mas, no mesmo instante, captou sua resposta: uma
repreensão áspera. E logo depois John Marshall “desligou”.
Rodrigo pensou que o susto de Laury Marten tivesse
sido causado por sua pessoa e pela admiração que estava
demonstrando.
Subitamente aquele homem do século XVII ajoelhou-se
diante dela, segurou sua mão, comprimiu os lábios contra a
mesma, num beijo gentil, e pediu perdão pelo fogo que
sentia no coração.
Em qualquer outra oportunidade, essa fala talvez teria
provocado um sorriso de compaixão em Laury Marten,
filha do século XXI. Mas agora só via nela a homenagem
de um homem que receava ter ido longe demais nas
manifestações de entusiasmo por uma bela jovem.
Laury Marten não retirou a mão.
* * *
John Marshall encontrou-se no pavilhão dos sonhos
com Egmon e Tulin, agentes de Rohun, conforme
combinara com este último.
Não poderia haver um ponto de encontro mais discreto
que esse local mal afamado, que era proibido para todo e
qualquer ara. Ali se encontrava tudo quanto era
entorpecente. Tudo aquilo que o inferno tivesse descoberto
para intoxicar o homem, no pavilhão dos sonhos não
haveria o menor problema para ser encontrado...
John Marshall fechou a grade de radiações. Há pouco
ainda se encontrara num gigantesco salão. Agora, porém,
estava invisível para qualquer pessoa que ali penetrasse; tal
qual acontecera com ele há pouco, o visitante apenas veria
o vazio da gigantesca abóbada.
Deitou no chão. A droga herfnis estava ao seu lado. Não
tinha a menor intenção de esfregá-la entre as mãos para
entregar-se aos efeitos da toxina, que o faria enxergar uma
verdadeira orgia de cores.
Sua energia telepática atravessou a grade de radiações e,
na entrada principal do edifício, captou os pensamentos dos
seres viciados, que acorriam ao lugar à procura de
distrações e davam o primeiro passo que os conduziria ao
abismo.
A repugnância deixou-o arrepiado. Amaldiçoou a ideia
de encontrar-se no Palácio dos Sonhos, quando captou os
pensamentos de Tulin e Egmon, que não eram viciados nem
sentiam o desejo de brincar com o entorpecente.
Tulin, o impetuoso, cochichou para Egmon:
— Como poderemos encontrá-lo num lugar como este?
John Marshall recorreu ao projetor mental e obrigou-os
a atravessar o labirinto de cabines de radiações, parando
diante da barreira que o protegia.
Abriu a grade de radiações por alguns segundos. Egmon
e Tulin olharam-no perplexos, sorriram ao vê-lo deitado no
chão e sentaram a seu lado, já que não havia outro lugar em
que pudessem acomodar-se.
Os saltadores atiraram alguns grãos no canto. Tulin
mandou uma praga junto com eles.
— Tenho pena do dinheiro que gastei. Pérolas de sonho;
era só o que me faltava para acrescentar aos meus
pesadelos.
Marshall não sabia o que eram pérolas de sonho, mas
estava interessado nos pesadelos de Tulin.
— Meu pesadelo são os novos robôs dos aras que foram
colocados nas fábricas de soro, Ixt — explicou em tom
contrariado. — Já sabemos por que o clã de Estgal deixou
de existir. Os aras sempre inventam novas infâmias para
dificultar nosso trabalho. Colocaram robôs de controle entre
os robôs de trabalho; por fora uns não se distinguem dos
outros, mas o que há dentro dos controladores é de pasmar.
São vigias positrônicos. Um alarma vivo. Trabalham tal
qual os outros, mas sua tarefa consiste em avisar qualquer
incidente ocorrido durante o processo de produção, por
mais insignificante que seja. Pelo amor dos deuses, Ixt, será
que aqui ninguém pode ouvir-nos?
— Ninguém — garantiu Marshall.
— Tomara que realmente não haja ninguém — disse
Egmon, um homem louro introvertido, e voltou a mergulhar
em suas meditações.
— Pois bem. O ara que conseguimos subornar fracassou
por culpa de um robô de controle, quando procurou roubar
o processo de conservação...
— Mas este processo não é parte do processo de
produção! — interveio John Marshall em tom enérgico.
Tulin cocou a cabeça ruiva.
— Pois nesse caso, os espias positrônicos estão em toda
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parte, Ixt. É verdade! Não podem deixar de estar em toda
parte, e com isso nosso negócio, que até agora tem sido tão
próspero, foi paralisado. É uma vergonha!
John Marshall não conseguiu achar graça nessas
palavras. Não estava interessado em saber se os agentes dos
saltadores enganavam os aras ou não. Acontece que a
utilização dos robôs de controle também representava o
fracasso definitivo de sua missão.
Laury Marten poderia interromper os estudos que estava
realizando no zoológico continental. Se os agentes dos
saltadores, que já haviam passado por tudo quanto era
experiência, confessavam abertamente que no momento
estavam com as mãos atadas, o máximo que os dois
mutantes poderiam conseguir era que os aras os
desmascarassem como seres terranos. E, há mais de cinco
decênios, o planeta Terra deixara de existir para o Império
Arcônida, tendo sido transformado num sol.
De repente Egmon, que continuava absorto em suas
reflexões, levantou a cabeça:
— Hoje de noite receberei cinco mil shaks!
John Marshall também levantou a cabeça e fitou
Egmon. As palavras que o saltador louro acabara de
proferir desmentiam as informações de Tulin.
Este proferiu uma ameaça indisfarçada contra seu irmão
de clã:
— Egmon, se você...
— É com isto! — disse Egmon, tirando do bolso um
diapasão, ou melhor, o instrumento que na Terra é
designado por este nome, regozijou com o espanto de seus
interlocutores. — É bom que os aras tratem de fazer suas
diabruras médicas — prosseguiu — e deixem de aventurar-
se no terreno da construção de robôs. Os controladores têm
um ponto fraco. Os aras ainda não descobriram.
Seu sorriso tornou-se mais acentuado.
— Será que hoje em dia ainda se consegue adquirir em
Trulan um único diapasão do tipo antiquado?
John Marshall confessou que não estava
compreendendo mais nada. Egmon piscou os olhos.
— Os controladores têm uma alergia toda especial para
o tom da nota si. Não sei o que acontece com seu aparelho
positrônico quando ouvem esse tom, mas o fato é que,
assim que a nota atinge seu ouvido, caem por terra sem
avisar sequer a central sobre o defeito surgido em seu
mecanismo. É por isso que hoje de noite receberei os cinco
mil shaks.
As pastilhas shaks eram o único remédio contra a
doença de ferm, uma alergia traiçoeira provocada pela
transição das naves espaciais, que matava dentro de poucos
meses.
— Você quer dizer que com isso se consegue
neutralizar um robô? — Tulin ainda não estava acreditando
no que Egmon acabara de dizer. Egmon insistia em sua
afirmativa.
Antes que a troca de palavras pudesse degenerar em
discussão, Marshall lembrou-os da finalidade do encontro.
— Ainda tenho outro motivo que me traz pesadelos —
disse Tulin, lançando o olhar para além de John Marshall.
— Estamos trabalhando com dezoito agentes, Ixt. Por
pouco Egmon não foi preso. Fiquei aguentando a mulher de
Huxul durante duas horas. Enquanto isso, Huxul sofreu um
acidente. Está internado no hospital. Os aras já devem ter
descoberto nosso truque, mas só daqui a dez dias
conseguirão despertar Huxul.
— Foi atacado? — perguntou Marshall em tom áspero.
Teve uma sensação desconfortável, pois conhecia Tulin.
Por algum motivo, que aquele homem de trinta anos nunca
chegara a explicar, o mesmo odiava todos os aras e, sempre
que usasse os meios mais radicais na luta contra eles,
Marshall temia pelo pior.
— Não foi atacado — resmungou Tulin. — Apenas
recebeu um jato de gerf.
— O que vem a ser gerf? — indagou Marshall.
— É uma substância que o serviço secreto dos aras
também usa nos seus serviços. Quando esse narcótico entra
no sangue de alguém, a pessoa dorme durante dez dias e
tem de ser alimentada artificialmente, senão...
— Para que serve um recurso tão primário? — Marshall
sentiu-se tomado de um tremendo nervosismo. Os agentes
de Rohun haviam procedido como crianças, e, dessa forma,
o perigo tornara-se ainda maior.
A essa hora, o serviço secreto dos aras não poderia
deixar de perceber que alguma coisa não estava em ordem
com eles.
— Pois é... — desta vez foi Egmon, que deu uma risada
gostosa. Espantado, Marshall pegou a ficha que este lhe
ofereceu.
— O que é isto? — perguntou sem desconfiar de nada.
— É a prova chegada às mãos dos aras, segundo a qual
o senhor não é o mesmo Ixt que reside em Xylon, no
sistema de Hogur. Afinal, quem é mesmo o senhor?
— Também estou curioso para descobrir isso —
interveio Tulin. — Se não soubesse que Rhodan e a Terra
não existem mais, diria que o senhor é um ser vindo
daquele planeta e...
— Felizmente esse sujeito não existe mais e a Terra foi
transformada num sol escaldante — retrucou Marshall com
o maior cinismo, embora no seu íntimo se sentisse
angustiado.
Apressou-se em controlar os pensamentos dos agentes
dos saltadores. O resultado do exame deixou-o um pouco
mais tranquilo. Não estavam acreditando em suas próprias
insinuações. Fazia mais de cinco decênios que Perry
Rhodan desaparecera com a Titan em qualquer lugar do
espaço e a Terra se transformara numa fornalha nuclear sob
a ação das bombas arcônidas.
Marshall ainda não compreendia por que a ficha que
segurava na mão seria tão importante como Egmon queria
fazer crer.
— Ixt — disse Egmon, falando devagar e em tom
cativante. — Se Rohun não nos tivesse pedido que
fizéssemos tudo para atender aos seus desejos, eu não teria
arriscado uma coisa dessas. A ficha que o senhor tem na
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mão representa a interpretação positrônica do resultado das
investigações sobre sua pessoa, realizadas pelo serviço
secreto dos aras.
— Devem notar a falta desta ficha! — Marshall sabia de
que maneira os aras faziam sua guerra de papéis. O
procedimento não era menos complicado e preciso que o
seguido na Terra.
— Trabalhamos com dezoito agentes, Ixt — ponderou
Tulin. — Três deles trabalham no Serviço de Vigilância de
Estrangeiros. Em Tolimon, não existe qualquer outro
registro sobre sua pessoa. Será que isso não basta?
Subitamente todas as grades de radiações entraram em
colapso no interior do pavilhão dos sonhos.
Arcônidas, saltadores, humanoides vindos de mundos
distantes, que estavam prestes a entregar-se ao vício,
irromperam em ruidosos protestos. Em toda parte, viam-se
pessoas embriagadas jogadas no chão. As barreiras
energéticas que as tornavam invisíveis haviam
desaparecido. A segurança do Palácio dos Sonhos, tão
afamada, deixara de existir.
Uma voz retumbante saiu do gigantesco alto-falante:
— O Serviço de Vigilância de Estrangeiros dos aras
ocupou todas as saídas. Ninguém poderá abandonar o
Palácio dos Sonhos.
Tulin e Egmon fitaram John Marshall. Em seus rostos,
lia-se uma idéia: desta vez nos agarraram!
Com a maior tranquilidade, John Marshall enfiou a
ficha no bolso e levantou-se. Fez um sinal para os dois
agentes dos saltadores. Bem perto deles, um grupo de
mercadores galácticos gesticulava exaltadamente. Numa
atitude indiferente, John Marshall juntou-se ao grupo. Tulin
e Egmon seguiram-no, pois pouco lhes importava em que
lugar estivessem no momento em que fossem revistados.
Enquanto Marshall oferecia o aspecto de saltador que
escutava atentamente a conversa que se desenvolvia em
torno dele, concentrou-se ao máximo para lembrar quantas
saídas possuía o Palácio dos Sonhos.
Eram oito!
Controlou rapidamente uma saída após a outra. Quando
chegou à quinta, sorriu.
Fez um sinal discreto para que Tulin e Egmon o
seguissem.
Caminharam em direção à saída número cinco como
pessoas que estivessem entorpecidas. Também esta estava
ocupada por seis elementos do serviço secreto. Eram aras
armados. Três deles estavam muito contrariados com a
missão que tinham que desempenhar. Pois esta lhes
estragara o programa daquele dia. Ao projetar o controle,
Marshall havia captado sua raiva.
E esses aras já se transformaram em vítimas do projetor
mental quando o grupo ainda se encontrava no meio do
Palácio dos Sonhos. Marshall passou a agir sobre os três
aras bem dispostos para o serviço. Egmon tentou perturbá-
lo, mas sua ação não passou da tentativa. Marshall brindou-
o com um olhar tão furioso que, de tão assustado, Egmon
mudou a cor dos olhos e ficou um passo atrás dos outros.
O projetor mental irradiava ininterruptamente a vontade
de Marshall sobre os aras. Transmitiu-lhes a ordem de
deixá-los passar depois de fingir um controle rigoroso.
Enquanto em três das saídas, especialmente na
principal, o barulho e os protestos se tornavam cada vez
mais intensos, os seis aras que se encontravam na saída
número cinco praticamente não tinham nada a fazer.
Com uma expressão de curiosidade, fitaram o grupo que
se aproximava.
Tulin disse com um suspiro:
— Tenho comigo três projetores diferentes. Vou jogá-
los fora e...
— O senhor não vai jogar fora coisa alguma! — disse
Marshall e conseguiu introduzir um intervalo ligeiríssimo
no tratamento hipnótico que estava dispensando aos aras.
Tulin calou-se sob a força do olhar de Marshall.
Chegaram à saída número cinco.
Cada um dos mercadores galácticos tornou-se alvo das
atenções de dois aras. John Marshall foi revistado por dois
funcionários furiosos. Tulin transpirou por todo o corpo.
Encontrava-se logo atrás de Marshall e viu a ficha do
cérebro positrônico na mão de um dos aras. Lembrou-se
dos três radiadores que trazia no bolso.
Naquele instante, as armas passaram às mãos dos aras.
“Está tudo no fim”, pensou Tulin. Não se atrevia a
respirar. Os aras voltaram a enfiar os radiadores em seu
bolso.
— Podem passar — rangeu a voz de um dos aras, que
ainda os brindou com uma maldição.
Egmon e Tulin alegraram-se, como crianças, por terem
conservado a liberdade, embora não compreendessem por
que haviam escapado dessa forma.
— Vocês querem saber por que o serviço secreto
encenou a batida no Palácio dos Sonhos? — perguntou
Marshall depois que, do lado de fora, se haviam misturado
à multidão.
— Não deve ter sido por nossa causa — disse Tulin em
tom não muito confiante, lembrando-se dos três radiadores
que os aras haviam descoberto ao revistá-lo, sem que,
contudo, reagissem ao achado e o prendessem.
— Foi por causa de Egmon — disse John Marshall,
fitando-os um por um. — Os aras devem ter colocado seus
robôs de controle em todos os lugares ao mesmo tempo.
Um deles viu quando Egmon pegou a ficha do cérebro
positrônico e deu o alarma.
O saltador alto e louro empalideceu. Imaginava as
conseqüências de seu ato. Mas Tulin, o ruivo impetuoso,
era de um feitio muito diferente. Lançou um olhar
desconfiado para Marshall.
— Ixt, à medida que o tempo passa o senhor me deixa
cada vez mais apavorado. Por que recorre a uma mentira
infame como essa para exercer pressão contra nós?
Merecemos um tratamento como este?
Tulin tinha motivo de sobra para formular a pergunta.
Partia do pressuposto que o negociante dos animais nada
sabia da ação em grande escala que haviam lançado contra
62
o serviço secreto dos aras. Por isso mesmo, a afirmativa de
que Egmon havia sido observado por um robô de controle
quando se encontrava nas proximidades do cérebro
positrônico só poderia ser uma mentira rematada.
— Cuidado! — cochichou Marshall no último instante.
Mal teve tempo para dedicar sua atenção a um ara do
serviço secreto, que podia ser identificado por seu rosto frio
de burocrata. Naquele instante, aproximava-se rapidamente,
vindo de um lado onde a multidão era mais rala.
Num instante, o ara viu-se diante do saltador louro. O
volume do bolso no qual enfiara a mão mostrava que tinha
a arma de radiações engatilhada e apontada para Egmon.
— Egmon do clã de Rohun... — chiou o ara, estendendo
a mão em sua direção.
Num gesto quase automático, John Marshall conseguiu
dar uma pancada no braço levantado do ruivo Tulin. Este
soltou uma praga típica dos saltadores. Mas logo se sentiu
esbaforido, pois a frieza do rosto do ara cedera lugar a uma
expressão de amabilidade. O gesto violento da mão
terminou numa batidinha no ombro de Egmon, seguida
destas palavras:
— Tive um prazer imenso em revê-lo. Até a próxima e
muitas felicidades.
Despedindo-se com um aceno de cabeça, tirou a mão do
bolso em que estava guardada a arma.
Os dois saltadores, perplexos, perguntaram:
— Ixt, o senhor é um sujeito medonho. O que fez com o
ara para que ele mudasse de atitude tão depressa?
— Da próxima vez provavelmente não teremos tanta
sorte — disse John Marshall, esquivando-se da pergunta. —
Egmon, o senhor já acredita que um robô de controle o viu
quando se encontrava diante do cérebro positrônico?
Correram por entre a massa de gente, em direção ao
distribuidor que os levou a uma das ruas situadas mais
abaixo, onde tomariam qualquer condução que os levasse o
mais depressa possível para fora do centro de Trulan. Só
depois de alguns minutos, Egmon teve oportunidade para
formular sua pergunta:
— Por todas as estrelas, Ixt, como foi que o senhor
soube disso?
Mais uma vez, John Marshall ficou devendo a resposta.
— O que pretende fazer, Egmon?
Egmon resmungou:
— Rohun terá de chegar até aqui para me recolher a
bordo. Um homem caçado pelos aras sempre acaba
capturado. O negócio dos cinco mil shaks caiu na água.
O mutante de Perry Rhodan não pôde deixar de admirar
o sangue-frio do agente dos saltadores.
Durante dois dias o mutante viveu numa tensão
ininterrupta. De um instante para outro, aguardava uma
ação fulminante do serviço secreto dos aras. Como nada
acontecesse, voltou a acalmar-se.
A segunda visita que fez a Kolex, chefe da Divisão de
Compras dos aras, não foi uma simples visita de cortesia.
Esperava que aquele homem influente o ajudasse a entrar
em contato com o círculo dos médicos galácticos que
lidavam com a produção do soro prolongador da vida. Fora
justamente por esse motivo que se dirigira em primeiro
lugar a Kolex, para oferecer-lhe o lote de animais
desconhecidos vindos do planeta do fedor. Pouco lhe
interessava o fato de com isso ter feito um bom negócio.
Kolex revelou-se de uma amabilidade cativante. Sua
conversa naturalmente girou em torno desses animais.
— ...a designação não é correta — retificou Kolex. —
Só oito exemplares pertencem à classe dos animais. Os
demais são inteligências, Ixt. Alguns deles chegam a ser
mais inteligentes que nossos froghs. A maior sensação foi
esta. O senhor nem imagina quantos elogios tenho recebido
por ter arriscado esta compra de dois milhões.
Kolex estava radiante, e seus pensamentos, controlados
pelo mutante, eram um hino de louvor a Marshall.
— Será que esses estranhos não são uns coitados? —
perguntou John.
Com estas palavras tocara num ponto sensível. Kolex
protestou. Seu gênio descontrolou-se. Começou a falar em
pesquisas, nos diversos fabricantes de soro.
— ...se não dispusermos de portadores de soro, nossas
mãos estarão atadas, Ixt! E o portador de soro tem de ser
uma criatura sadia, pois do contrário a doença conduz a um
resultado falho. Garanto-lhe uma coisa. Não existe nenhum
lugar no Universo em que as inteligências prisioneiras
passem tão bem como em nosso zoológico.
— Será que as inteligências vindas do planeta do fedor
também foram trancadas atrás de grades energéticas?
Kolex manteve-se fiel à verdade.
— Por enquanto sim, Ixt. Não posso falar demais a este
respeito, mas há uma ordem de âmbito galáctico que nos
obriga a agir dessa forma. Nós, os aras, somos verdadeiros
artistas na área da medicina, mas não podemos fazer
milagres, e... Ixt, não me olhe desse jeito; até parece que
quer recriminar-me e desafiar-me. Sei perfeitamente o que
está pensando. O senhor deve conhecer a lei do regente
positrônico de Árcon tão bem quanto eu... Ixt, quando se
trata de algo extremamente importante, até mesmo a
violação da lei encontra justificativa.
— Hum — respondeu o mutante e leu os pensamentos
de Kolex, que pensava incessantemente no soro
prolongador da vida. Segundo seus pensamentos, a
produção do mesmo dependia de inteligências cujos
quocientes intelectuais os incluíssem nas classes C, B e
mesmo A. Tal procedimento dos aras transgredia uma das
leis mais rigorosas de Árcon. A revelação do crime que
estavam cometendo ao abusarem de seres dotados de
inteligência elevada, utilizando-os como portadores de soro,
poderia significar a destruição total dos mundos dos aras.
O cérebro robotizado de Árcon não conhecia emoções.
Sua atuação resumia-se na lógica mais pura, traçada pela
6
63
programação.
Com suas insinuações, Kolex revelara tantos dados que
não poderia deixar de ser considerado um irresponsável. E
seus pensamentos revelavam muito mais.
A reunião das duas séries de dados permitiu que
Marshall concluísse que o projeto dos aras já passara da
fase experimental. O soro prolongador da vida estava sendo
fabricado em grandes quantidades.
“Tomara que não surja nenhum incidente com o serviço
secreto dos aras”, foi tudo que John Marshall desejou
depois que se tinha despedido de Kolex e, passando pela
Rua do Grande Mo, caminhava em direção à firma.
* * *
Quatro homens do século XVII do planeta Terra viviam
no gigantesco zoológico de Tolimon, presos atrás de uma
grade energética intransponível.
Laury Marten conhecera todos eles: Mutumbo, um
africano supersticioso e Alf Tornsten, o camponês sueco
que vivia apaticamente seu dia-a-dia, deprimido pelo fato
de que não envelhecia.
A terceira pessoa era Nara, uma mongol velha e gasta,
cuja tenda fora erguida atrás da grade. Era uma doente
mental incapaz de articular uma palavra sensata.
Mutumbo e Alf Tornsten arranhavam o intercosmo e a
língua arcônida. Já o conde Rodrigo de Berceo brilhava
nessas línguas. Quando Laury Marten o visitou pela terceira
vez às escondidas, conversaram no arcônida dos “primeiros
dez mil”.
O palácio asteca encerrava um segredo que representava
a felicidade de dois seres humanos: Laury Marten e o conde
Rodrigo amavam-se.
Aquilo desabara sobre ela com a força de um dilúvio:
foi impetuoso, violento e belo. Os quatro séculos que os
separavam eram transpostos pela força do amor.
A mutante bela e apaixonada esquecia constantemente
que Perry Rhodan a enviara a Tolimon para cumprir uma
missão de cujo êxito dependia a vida de Thora e de Crest. A
compaixão transformara-se em amor.
Seu bem-amado contou-lhe que, quando tinha vinte e
dois anos, certo dia estava passeando a cavalo quando viu
alguma coisa cilíndrica baixar das nuvens. Teve medo e
fugiu, mas um pequeno objeto voador alcançou-o e levou-o
a bordo. Os saltadores trancaram-no num camarote no qual
já se encontravam três humanos: Mutumbo, Alf Tornsten e
Nara. Quase não se ocuparam com eles até o momento em
que foram descarregados em Trulan, onde passaram a viver
no zoológico como se fossem animais.
Laury preferiu não explicar-lhe o significado da palavra
zoológico. Mas, por ocasião de sua segunda visita, não se
esquecera de perguntar a Rodrigo de Berceo por que nesses
quatro séculos só envelhecera alguns anos.
Ao responder, Rodrigo lhe falara num imenso palácio.
À medida que se demorava na descrição do mesmo, Laury
reconheceu nele o setor X-p. Lá dentro fora apresentado
inúmeras vezes a médicos aras. Consumiram alguns dias no
exame de seu organismo e finalmente deram-lhe uma
injeção de soro prolongador da vida.
— Há de chegar o dia em que provarei aos aras, com a
minha espada, que não sou nenhum asteca arruinado, mas o
conde Rodrigo. Olhe, minha flor, contemple esta lâmina
fulgurante, que se tingirá de vermelho com o sangue dos
homens que me maltrataram.
Num gesto teatral, que no século XVII talvez
representasse um costume da corte, arrancou a espada curta
da bainha.
Laury Marten, uma moça prosaica do século XXI,
amava. E o amor transformava todas as coisas como que
por encanto. Ser chamada de minha flor, fitar os olhos
chamejantes do bem-amado, sentir o braço forte que a
enlaçava, tudo isso fez com que se sentisse muito feliz.
Seus pensamentos moviam-se exclusivamente em torno do
desejo de libertar Rodrigo das garras dos aras.
Rodrigo não pôde dar uma indicação precisa sobre o dia
em que recebera pela última vez a injeção do soro
revitalizador. Pelo calendário terrano, devia fazer cerca de
noventa anos.
E noventa anos não significavam nada para os aras, que
graças aos recursos de sua medicina muitas vezes viviam
mais de oito séculos.
As informações, que Laury obteve através de Rodrigo,
tornavam-se importantes porque confirmavam o fato de que
em X-p estava sendo fabricado o soro.
Laury Marten percebia constantemente no íntimo a
advertência que lhe fazia lembrar o motivo de sua vinda a
Tolimon. Eram horas de autorrecriminação e censura. Cada
vez que isso acontecia tomava a decisão de, por ocasião do
primeiro contato telepático que mantivesse com John
Marshall, confessar o amor que sentia por Rodrigo de
Berceo.
Até então, John Marshall ainda não sabia.
* * *
Laury desprendeu-se violentamente dos braços de
Rodrigo. Passara mais de duas horas de Tolimon em sua
companhia.
Usando o dom desintegratório de que era dotada,
atravessou a barreira energética e dirigiu-se ao veículo.
Naquele instante, a cabeça de um frogh saiu da fenda
comprida e profunda que se encontrava à sua esquerda e
fitou-a com olhos viperinos.
Laury Marten sentiu-se grudada ao solo. O desespero
tomou conta de sua mente. Tentou em vão captar os
pensamentos do frogh. De tão nervosa que estava, não
conseguiu descobrir a frequência em que funcionava o
cérebro dessa criatura.
— Arga Slim, os aras estarão muito interessados em
saber que a senhora consegue atravessar uma barreira
energética sem que a mesma tenha sido desativada — disse
o frogh com a voz fria.
O brilho dos olhos dele foi ainda mais frio.
Seu primeiro impulso foi o de destruir o frogh com seu
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radiador, mas a lei de Perry Rhodan, segundo a qual só se
devia matar em legítima defesa, estava por demais
enraizada em sua mente.
Encontrava-se numa situação de legítima defesa, mas a
mesma fora provocada por sua própria negligência. Ainda
teve energia para não mentir a si mesma. Mas sentiu-se
exausta; enfiou a mão no bolso e tirou o concentrado
energético. Engoliu-o.
O efeito foi imediato e tão patente, que o frogh lançou
uma pergunta:
— O que é isso que a senhora acaba de tomar, Arga
Slim?
Arga disse o que era, enquanto procurava
desesperadamente descobrir uma saída.
— Permite que eu experimente o concentrado?
A víbora centuplica saiu da fenda no solo, aproximou-se
rapidamente, colocou-se diante de Laury Marten e estendeu
um dos braços dotados de mãos preênseis.
Para ganhar tempo, Laury entregou um tablete ao frogh.
Não acreditava que fosse adiantar alguma coisa. O frogh
engoliu o concentrado e enrijeceu. A mutante teve medo da
cobra gigante. Enfiou discretamente a mão no bolso em que
se encontrava o radiador. Estava decidida a matar o frogh.
A risada penetrante dele a fez recuar alguns passos. A
gargalhada do frogh tornou-se mais sonora. A criatura
levantou o terço anterior do corpo e passou a contemplar a
agente de Perry Rhodan a uma altura de dois metros.
— Eu lhe meti medo, Arga Slim? Queira desculpar.
Apenas pretendia agradecer-lhe.
— Quer agradecer pela oportunidade de me entregar aos
aras? — disse Laury em tom furioso.
Sentia que o frogh estava escarnecendo de sua
perplexidade.
— Ora, Arga Slim! — disse o frogh e sua voz
transformou-se num cochicho. — Nunca falarei sobre isso
se amanhã a senhora me trouxer mil tabletes destes. Se fizer
isso por mim, serei o servo mais fiel que a senhora já teve
— a estranha proposta terminou num riso borbulhante.
De repente, Laury descobriu a disposição de ânimo do
frogh. O concentrado provocara-lhe um estado de euforia;
transformara-se num estimulante, que provocava uma
alegria exagerada.
O estado do frogh tornava-se cada vez mais perturbador.
A expressão viperina desapareceu de seus olhos, que
pareciam irradiar uma bondade quase humana. Voltou a
implorar que amanhã ou depois Laury lhe trouxesse uma
quantidade maior do concentrado.
— Posso pensar nisso, desde que possa confiar em sua
discrição, Agzt — disse Laury.
O frogh respondeu:
— Posso até desligar qualquer barreira energética para a
senhora, Arga Slim. Acho que isso já poderia servir de base
a um estado de confiança recíproca.
Ao anoitecer, quando Laury Marten terminou sua
jornada diária no setor X-p, nenhuma informação do frogh
Agzt sobre a travessia da barreira energética havia sido
recebida naquele setor.
Aos poucos, começou a acreditar que as intenções de
Agzt eram sinceras.
John Marshall acabava de expedir de seu escritório a
quinta mensagem de telecomunicação destinada a Hellgate.
Agora estava mudando para a faixa de Rohun.
Não tinha o menor receio de que o serviço secreto dos
aras pudesse interceptar sua mensagem. O transmissor
especial de que se servia da mesma forma que aquele
instalado em seu quartel-general na área dos cortiços,
dispunha de dispositivo especial que evitava a escuta,
mesmo que a estação receptora só dispusesse de um
hipercomunicador comum. Apesar de tudo, Marshall e
Rohun acoplaram um condensador e um deformador de
mensagens, uma vez completada a ligação.
— Rohun, eu estou precisando de minha nave. Quem
poderia trazê-la até aqui? Otznam?
O rosto do comandante dos saltadores transformou-se
numa careta.
— Ixt — disse, prevenindo Marshall — já está na hora
de desistir do jogo perigoso que está realizando com os
aras. As notícias que acabo de receber de Egmon me
fizeram envelhecer cem anos. Se as coisas continuarem
nesse ritmo, acabarei figurando na lista dos aras. O senhor
sabe perfeitamente o que significaria isso.
Isso significaria o desaparecimento total, a morte, a
destruição.
Marshall não se impressionou com o aviso que Rohun
acabara de lhe dar.
— Quando souber que a nave chegou, eu me sentirei
muito melhor, Rohun. Quando poderei contar com a
chegada? É Otznam que vai trazê-la, não é?
— Está certo. Mas não quero que Otznam participe da
ação — exigiu Rohun. — Quando é que o senhor se dignará
a explicar as coisas esquisitas que aconteceram em sua loja
quando o tal do Huxul, um ara do Serviço de Vigilância de
Estrangeiros, apareceu com a jaula com os dois hiobargulus
e procurou devolver os animais? Se não tivesse passado por
coisa semelhante com o tal do Huxul, já teria entregado
Otznam a um hospital dos aras para submetê-lo a um exame
de sanidade mental.
Marshall preferiu não responder. Tranquilizou o
comandante dos saltadores.
— Prometo-lhe que Otznam não participará da ação,
Rohun. Mas acho que poderei contar com aquilo que o
senhor me prometeu, isto é, com sua ajuda irrestrita quando
eu o chamar.
— Ixt, fique sabendo que não sou nenhum ara, mas um
mercador galáctico — berrou Rohun para dentro do
microfone que se encontrava a quarenta anos-luz. —
Otznam partirá imediatamente em sua nave. Há alguns dias
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dei uma olhada naquilo: é um verdadeiro couraçado! Onde
é que essas naves são construídas, Ixt?
Mais uma vez, o mutante fez como se não tivesse
entendido.
— Onde está Tulin, Rohun? Não consigo encontrá-lo
aqui em Trulan.
— Está aqui! — exclamou Rohun. — Mas voltará com
Otznam, pois tenho uma tarefa para ele. O senhor não
poderá utilizá-lo na execução de seu plano.
— Está com medo? — perguntou John Marshall em tom
lacônico.
— Antes ter medo que transformar-se em cobaia dos
aras.
Mais uma vez, tivera de ouvir uma alusão desse tipo.
Agora partira de Rohun, comandante dos saltadores.
— Cobaia dos aras! Apesar das leis de Árcon! Fim,
Rohun! — disse Marshall ao mercador galáctico e desligou.
A mensagem telepática de Laury Marten estava
interferindo na palestra pelo telecomunicador.
Marshall perscrutou seu interior.
Uma hora depois, foi transmitida a sexta mensagem
condensada de hipercomunicação destinada a Hellgate,
onde Rhodan esperava protegido por uma abóbada de aço.
Laury Marten descobrira uma sala do setor X-p onde
estava guardada uma ampola do soro revitalizador, que
dentro em breve seria utilizada numa experiência.
Quando Futgris entrou no escritório do chefe, Ixt estava
debruçado sobre o primeiro relatório enviado por Kolex.
Este relatório continha informações sobre a escala
intelectual em que deviam ser incluídas as criaturas por ele
vendidas ao zoológico.
Vinte e uma espécies, totalmente diferentes no aspecto
exterior, pertenciam à escala intelectual A-l.
Era o grupo ao qual pertenciam os arcônidas, os aras e
os mercadores galácticos.
Quando levantou os olhos e reconheceu Futgris, John
Marshall teve de recuperar-se do abalo que sofrera.
Sentia-se como um homem que acabara de cometer um
crime. Os seres que, em virtude de seu aspecto terrificante,
haviam sido considerados animais, possuíam o grau mais
elevado de inteligência; e ele os transformara em peças de
exibição do zoológico. Colocara-os nas mãos dos aras. A
exclamação de Rohun ressoava no ouvido de Marshall:
“Antes ter medo que transformar-se em cobaia dos
aras.”
Lançou um olhar indagador para Futgris.
O ara, que admirava e venerava o chefe, procurou
ocultar o tremor da voz:
— Chefe — disse com os olhos errantes — três
funcionários do serviço secreto querem falar com o senhor.
— Ah, é? — respondeu John Marshall sem trair o
nervosismo. Foi empurrando para o lado o relatório que
acabara de receber de Kolex. — Convide-os a entrarem,
Futgris. Nunca se deve fazer esperar um funcionário do
serviço secreto.
* * *
Agzt, o frogh, parou na beira da estrada quando Laury
Marten se aproximou velozmente com seu veículo, freou e
desceu. Entregou-lhe uma sacola, que a mão preênsil
segurou avidamente. Examinou o conteúdo.
— Mais uma vez, apenas cinquenta cápsulas de
concentrado? — perguntou em tom decepcionado.
Laury, que perdera todo medo do corrupto monstro
viperino, colocou a mão no pescoço do mesmo. A pele do
frogh parecia couro. Laury notou seu estado eufórico e
advertiu-o:
— Em cada visita eu lhe trarei cinquenta cápsulas, Agzt;
nada mais. Não quero que este preparado, que é totalmente
inofensivo para os aras e os arcônidas, transforme você
num doente ou num viciado. Gaste suas reservas com muita
parcimônia, pois poderá acontecer que vários dias se
passem entre uma visita e outra.
A sacola com os tabletes estava no interior da enorme
mão preênsil. O frogh saltitava sobre seus inúmeros pés e
voltava a asseverar ininterruptamente que não era nenhum
ingrato.
Tal qual fizera por ocasião de suas visitas anteriores,
Laury pediu-lhe que prestasse atenção e a avisasse
imediatamente assim que qualquer outro veículo se
aproximasse desse setor do zoológico. Depois, recorreu ao
dom da desintegração, atravessou a barreira energética
como se esta não existisse e saiu correndo.
Do alto da elevação pôde ver o palácio asteca. Como
sempre, Rodrigo estava parado junto à enorme entrada
principal, mas hoje não abanou o chapéu de penacho em
sua direção.
Olhou-a sem dizer uma palavra e seu rosto permaneceu
imóvel quando Laury se encontrava diante dele.
— Aconteceu alguma coisa, querido?
Rodrigo de Berceo se mantinha rígido.
Seu olhar vagou ao longe. A boca estava reduzida a um
traço e os olhos chispavam de indignação. Laury enlaçou-o
e implorou que falasse.
— Amanhã terei de ir ao lugar em que estão os aras!
Para Laury, isso equivaleria ao fim do mundo de
Tolimon.
— Não, Rodrigo! Não é possível! Oh, não... — o
desespero apertou-lhe a garganta. Foi sacudida por um
soluço sem lágrimas.
Mas logo se controlou. E com a calma recuperou a
capacidade de raciocinar. Seu plano estava formado.
— Rodrigo, quando os aras virão buscá-lo? —
perguntou apressadamente.
— Amanhã. Mas não receie por minha vida. Eu, o
conde...
— Amanhã, quando? De manhã? A que hora?
O conde Rodrigo de Berceo falava o arcônida e o
intercosmo, mas não tinha conhecimento do que seria
“hora”.
Só depois de muitas perguntas, Laury conseguiu
descobrir a hora aproximada em que Berceo seria levado
para submeter-se à experiência.
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— Ouça — disse e o triunfo estava escrito em seus
olhos. — Amanhã os aras encontrarão esta grade vazia.
Fugirei com os quatro humanos que estão aqui. Vamos
pedir aos outros que se preparem.
Laury Marten não se deu conta de que naquele instante
estava renunciando aos ensinamentos que recebera como
agente do Exército dos Mutantes. Seu plano não era apenas
uma obra de diletantismo, mas uma temeridade, pois
obrigaria John Marshall a praticar atos que nunca teriam
entrado nas cogitações desse mutante extremamente
ponderado.
Alf Tornsten, o camponês sueco, foi o primeiro que
recusou. Nara, a velha mongol, nem compreendeu o que a
moça desejava e limitou-se a fazer soar sua risada de louca.
Mutumbo, o africano, apenas a brindou com um palavrão e
deixou-a falando só.
Rodrigo não esperara outra coisa. E comentou de modo
altivo:
— Nem me sentiria bem na presença desses idiotas.
A moça respondeu com uma frieza na voz:
— Peço-lhe que procure compreender que, hoje em dia,
na Terra, um conde não vale mais que o mais miserável dos
homens. Rodrigo, quatrocentos anos se passaram, e você
terá que dar um salto por cima desse tempo. Por favor,
permita que eu o ajude! Esqueça-se de que é o conde de
Berceo. Comece com isso e...
Mais uma vez, a moça sucumbiu ao charme do conde,
ao seu sorriso e ao seu amor. Seu beijo a fez calar-se.
Sentiu-se segura nos seus braços, até que a realidade cruel
evocasse o amanhã em seu espírito.
— Rodrigo, você não estará mais aqui amanhã, quando
chegarem os aras! — com essa jura solene despediu-se e,
após poucos minutos, seu veículo corria vertiginosamente
em direção ao setor X-p.
Durante a viagem estabeleceu contato telepático com
John Marshall.
— Não perturbe! — foi a resposta que captou.
Laury Marten estava tão preocupada com o destino de
Rodrigo que nem chegara a sentir a agitação furiosa da
mente de Marshall.
Como que num estado de transe penetrou no setor X-p,
atravessou os feixes de luz que a desinfetaram e entrou em
seu gabinete. Só viu o médico ara Assa quando já estava
sentada atrás de sua escrivaninha, olhando
desesperadamente para frente.
— O que está sentindo, Arga?
A pergunta a fez estremecer.
— Dor de cabeça — respondeu.
No mesmo instante compreendeu que, ao proferir estas
palavras, pronunciara sua sentença de morte.
Nos mundos pertencentes ao Império de Árcon, quer
fossem eles habitados pelos arcônidas, pelos aras e pelos
saltadores, a dor de cabeça era desconhecida. O cérebro
dessas raças tão semelhantes nunca experimentara esse mal.
Por outro lado, porém, nesse mesmo instante Laury
Marten voltara a transformar-se na agente de Rhodan.
Não perdeu o autocontrole. Com o maior sangue-frio,
deu jogo à sua capacidade telepática para revolver a mente
de Assa.
Este revistara o gabinete durante sua ausência.
E pela segunda vez, mandara espiões atrás dela para
descobrir por que ia tantas vezes ao zoológico.
Não confiava nela.
E a esta hora nem acreditava que fosse uma arcônida.
Fez reviver suas lembranças. Aí encontrou Perry Rhodan,
os aras, o planeta da medicina, Aralon, a lua Laros. Sim,
depois disso houve a destruição da Terra, o planeta de Perry
Rhodan, e o desaparecimento deste juntamente com a
gigantesca Titan.
De repente, Assa achou que a suspeita de que essa
jovem pudesse manter contato com Perry Rhodan era
ridícula. Mas as dores de cabeça?
Quem seria essa mulher?
Laury Marten leu tudo isso num espaço de poucos
segundos e controlou seu procedimento de acordo com
esses pensamentos. Partiu para o ataque. Com um gesto
discreto, ligou o aparelho de comunicação audiovisual e
disse:
— Informarei Man Regg de que o senhor andou
revistando este gabinete na minha ausência.
O trunfo com que estava jogando era muito perigoso,
mas produziu efeito. O ara gritou sem refletir:
— Como soube disso? Quem con...? — a última sílaba
não chegou a ser formada. Assa recuperara totalmente o
controle de si mesmo.
— Obrigada — disse Laury Marten com um sorriso,
apontando para o audiovisual ligado. Não havia a menor
dúvida de que ao menos cem aras haviam ouvido o diálogo.
Laury Marten não precisaria de outras testemunhas.
Foi-se levantando.
— Sei perfeitamente que não consegui grangear sua
simpatia, Assa, mas possuo bons amigos. Quer que eu lhe
diga onde estive hoje no zoológico? Dessa forma eu lhe
pouparia o trabalho de mandar espiões atrás de mim pela
terceira vez...
Soltou uma risada cristalina quando Assa se retirou com
o rosto pálido, chiando alguma coisa que não conseguiu
ouvir direito. Mas leu pensamentos dele, e estes se
resumiam num feixe de receios de que Laury pudesse
realizar sua ameaça de informar Man Regg sobre os
incidentes.
Mas este já soubera de tudo através da comunicação
audiovisual.
Meia hora depois um robô procurou Assa por ordem de
Man Regg e lhe deu ordem para que deixasse o setor X-p
num prazo extremamente curto e se apresentasse
imediatamente para trabalhar em Durrha.
Durrha figurava no catálogo estelar de Árcon como o
planeta que trazia maior número de sinais de advertência.
Era ali que os aras estudavam as epidemias para as quais
ainda não conheciam antídoto. Quem pusesse os pés
naquele mundo, nunca mais sairia dali.
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Assa dirigiu-se ao espaçoporto, acompanhado por dois
robôs. Estes robôs permaneceram a seu lado até o momento
em que entrou na nave. Depois disso, ficaram parados junto
à entrada da mesma até o momento da decolagem. Após o
pouso em Durrha, essa nave seria transformada em sucata.
* * *
John Marshall viu os três homens do serviço secreto dos
aras chegarem e saírem.
Tal qual Huxul e muitos outros acabaram por ser
atingidos pela combinação entre a telepatia e a ação do
projetor mental, feita pelo chefe dos mutantes. Apesar disso
Marshall não se entregou à ilusão de que o perigo tivesse
sido eliminado.
Era exatamente o contrário. O perigo teria que desabar
sobre ele com a força de uma avalanche assim que ficassem
livres da influência hipnótica. De qualquer maneira, a visita
não deixara de trazer sua vantagem. Marshall ficou sabendo
por que o serviço secreto dos aras o assediava tanto. A
destruição dos dados não poderia eliminar a memória dos
dois funcionários, que eram os chefes de Huxul.
Os três aras tinham vindo unicamente para realizar mais
um exame minucioso de todos os dados ligados à sua
pessoa. Pediram os documentos e pretendiam gravar o
modelo das vibrações cerebrais dele. Porém acabaram
retirando-se depois de três horas sem que tivessem feito o
registro. Mas no dia seguinte, pelo meio-dia, a influência
hipnótica devia cessar, e então se dariam conta de que algo
de inexplicável havia acontecido por ocasião da visita ao
estabelecimento de Ixt.
Marshall sabia perfeitamente que essa conjunção de
fatos inexplicáveis provocaria o grau mais elevado de
alarma no serviço secreto dos aras. E quem ponderasse
todos os aspectos dessa situação, chegaria à conclusão de
que a única alternativa que restava ao serviço secreto era a
ação brutal.
Essas reflexões foram interrompidas por um chamado
do sistema de comunicações locais. Era Otznam, que se
encontrava no espaçoporto. Há poucos minutos havia
pousado com a pequena nave de John Marshall. O mutante
esteve a ponto de formular outra pergunta quando Otznam
desligou.
“Pode deixar”, pensou e concentrou a mente. Chamou
Laury Marten. Esta pretendia entrar em contato com ele no
momento em que exercia sua influência hipnótica sobre os
três aras que se encontravam em seu escritório.
Laury Marten não respondeu!
Voltou a tentar, intensificou a concentração de sua
mente, e finalmente a encontrou. Mas desta vez a mutante
pediu que não a perturbasse.
Marshall logo reduziu a intensidade de sua transmissão
telepática. Procurou identificar o que conseguira entender
em seu breve contato telepático com Laury Marten.
O que estaria ela procurando no setor X-p? A energia
telepática da moça atingira-o com a força de um curto-
circuito, não com a intenção de absorver seus pensamentos,
mas de os repelir.
O Setor X-p nunca funcionava em ponto morto.
Isso resultava do próprio conteúdo de suas atribuições, e
os aras aceitavam a situação com a maior boa vontade.
Neste ponto todos eles pareciam loucos. Em todos eles
ardia a chama do desejo de desvendar os últimos segredos
da vida. Mas, embora tantas vezes acreditassem encontrar-
se no limiar do objetivo, sempre se viam diante de terras
novas, ainda desconhecidas, banhadas pela luz do mistério.
O trabalho de Laury Marten estava concluído. O
episódio com Assa, que ocorrera há três horas, mergulhou
no esquecimento. Rodrigo de Berceo, o mexicano jovem e
altivo, ocupava todos os pensamentos da moça. Mas
naquele instante, devia esquecê-lo para concentrar-se em
seu plano.
Estendida no leito, com os olhos fechados e as mãos
entrelaçadas sob a cabeça, fez sua energia telepática
perambular por todos os recintos do setor X-p que em sua
opinião se destinavam à produção do soro revitalizador.
“Vamos à sala seguinte. Três aras. Seus pensamentos?
Nada. Outra sala. Vazia? Não; só havia robôs.”
Apesar da concentração de sua mente lembrou-se da
advertência de Marshall relativa aos robôs de controle
recentemente colocados em serviço.
“Outra sala...”
As horas passaram. O sol desceu sob a linha do
horizonte. A noite cobriu o setor X-p e o zoológico
continental.
Laury Marten não desistiu. Procedeu assim para salvar
Rodrigo, e poder aparecer diante de Perry Rhodan. Não
queria ser a primeira mulher do Exército de Mutantes que,
por uma questão de amor, falhasse no desempenho de sua
missão.
Nada, nada... Em todos os lugares, nada.
Não encontrou a menor indicação sobre o lugar em que
poderia encontrar as informações sobre o processo de
fabricação do soro.
Já era meia-noite. Laury Marten continuava estendida
sobre o leito, concentrada ao máximo. Não se cansava de
procurar. Mas foi em vão.
Estava banhada em suor. Levantou. Devia entrar em
contato com Marshall?
Decidiu outra coisa. Tomou banho, mudou de roupa e
saiu do apartamento.
O elevador antigravitacional levou-a ao quinto
pavimento do subsolo. Quando procurou abrir a porta que
dava para essa área, a mesma não se movia.
Para Laury Marten, isso não representava qualquer
problema. Possuía o dom da desintegração. Sabia
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neutralizar as ligações moleculares, transformando qualquer
parede, fosse qual fosse o material de que era feita, numa
simples nebulosa que atravessava sem a menor dificuldade.
Mantendo-se no mesmo lugar no interior do elevador,
eliminou a barreira representada pela porta. Depois que a
atravessou, esta voltou a adquirir sua configuração estável.
À sua frente estendeu-se o corredor monótono, que
tinha o mesmo aspecto em todos os pavimentes e áreas do
setor X-p.
Neutralizou duas barreiras de radiações. O alarma que
deveria ter desencadeado não surgiu. O corredor estendia-se
à sua frente, vazio e ameaçador. Não se perturbou com a
solidão, nem com a extensão do caminho que teve de
percorrer. Intensificou seu tato telepático, à procura de aras.
Estes permaneciam atrás das portas pelas quais passava,
debruçados sobre o trabalho. Ninguém deu a menor atenção
ao ruído de seus passos.
Adiante! Nunca desempenhara uma tarefa com tamanha
tranquilidade.
Subitamente lembrou-se de Thora, esposa de Perry
Rhodan. Antes que ela e John Marshall partissem para a
missão, Perry Rhodan explicara-lhes objetivamente o que
estava em jogo.
De repente Thora e Crest, os arcônidas, começaram a
apresentar sinais de envelhecimento que não podiam ser
detidos por nenhum dos meios empregados. O preparado
produzido na Terra teve um efeito que pouco durou. Os
soros dos arcônidas também não detinham o processo de
envelhecimento. Ele ou Aquilo, o Ser de Peregrino, o
planeta da vida eterna, recusara a ducha celular aos
arcônidas. Ao que tudo indicava, o destino de Thora e Crest
estava selado. Mas logo certos boatos sobre um soro
revitalizador, capaz de prolongar a vida, começaram a
circular entre os mercadores galácticos. Este soro era
produzido pelos aras. Com isso Perry Rhodan recuperou a
esperança. Naquele instante, Laury Marten se encontrava a
caminho da sala de paredes grossas onde uma porção desse
soro estava sendo guardada num frasco. E os dois arcônidas
tanto precisavam desse revitalizador.
Bem longe, uma porta abriu-se. Um ara saiu para o
corredor, lançou um olhar indiferente para a moça e uns dez
metros à sua frente entrou num laboratório.
O passo da mutante não se tornara mais lento, nem
revelava qualquer insegurança.
Ro-dri-go, soavam seus passos. Esse nome dava-lhe
uma força imensa. E ela bem que precisava dessa força.
Aquela área do setor X-p, situada cinco pavimentos
abaixo do solo, abrigava os centros de pesquisa mais
secretos dos aras. Todo o resto era coisa de segunda ou
terceira categoria. Aqui a vida estava guardada em ampolas.
Quem recebesse uma injeção desse soro poderia continuar a
viver; os outros teriam de morrer.
Laury Marten pôs a mão no bolso. Estava vazio.
Acabara de tomar banho, mudara de roupa e se esquecera
de tirar o diapasão do bolso do jaleco. Por que pensara tanto
em Rodrigo? Devia voltar?
Ro-dri-go, diziam seus passos. Não voltou. Sentiu que
só esta hora lhe poderia trazer a felicidade.
Teria de percorrer mais trinta passos.
Mais dez passos...
Mais dois! Viu-se diante da porta.
Tateou com sua energia telepática. O laboratório devia
estar vazio, pois não encontrou impulsos de pensamentos.
A porta perdeu a coesão molecular. Sob o efeito
desintegratório das energias da mutante transformou-se em
um nada. Laury atravessou-a. Sabia onde estava guardada a
ampola. O ara que hoje a guardara ali era um sujeito
pedante. Ao largá-la, ficou refletindo sobre se realmente
esse seria o lugar mais seguro. E Laury absorvera-lhe os
pensamentos como uma esponja.
O laboratório brilhava na profusão das luzes. Num tom
suave, os relês batiam, as espulas zumbiam, os líquidos
pulsavam através de condutos transparentes, alguma coisa
fervia e borbulhava.
A mutante parou de costas para a porta, que logo
recuperou sua coesão molecular.
Três robôs estavam observando o curso da experiência.
O alarma soou na mente de Laury Marten. Qual dos três
robôs seria o controlador?
Pôs a mão no bolso. Os dedos cingiram a coronha do
radiador. Os olhos procuraram em vão localizar qualquer
sinal que distinguisse as máquinas. Ouviu as juntas
metálicas rangerem levemente, viu os movimentos quase
humanos e continuou parada junto à porta.
Teria de passar por todos os três. A ampola com o soro
estava do outro lado.
“Como é que fui esquecer o diapasão?”, pensou,
recriminando-se. Sabia perfeitamente quanto trabalho
custara fabricar nas oficinas do setor X-p um diapasão que
soasse exatamente a nota si.
De repente, teve a impressão de que estava vendo o
rosto de Rodrigo e ouvia sua voz, que repetia estas
palavras:
— ...mas amanhã não me darão nenhuma injeção de
soro revitalizador. Em vez disso terei de respirar um gás
que precipita o processo de envelhecimento. O ara, que me
disse isso com uma risada, há vários anos fez a mesma
experiência com Nara, a mongol. Quando vieram buscá-la,
era uma moça alegre; quando voltou, transformara-se numa
velha idiota.
Laury Marten não hesitou mais. Sabia como haviam
sido programados os robôs do setor X-p, e fazia votos de
que nessa área não houvesse nenhuma exceção.
Passou pelos três homens mecânicos. Estes nem sequer
levantaram a cabeça.
Virada de lado, a mutante estendeu a mão em direção à
ampola. Esperara encontrar um recipiente pequeno. Seus
dedos fecharam-se em torno da ampola quando leu a
anotação junto ao suporte. Eram apenas umas poucas
palavras:
Hutwasd — C-3 — 0,75 cudd...
Hutwasd era um dos ocupantes do zoológico dos aras.
69
Com exceção da cabeça, monstruosa, tinha um aspecto
bastante humano. No que dizia respeito à inteligência,
situava-se acima dos homens. Apesar disso, os aras o
haviam enquadrado na categoria C-3, que era aquela na
qual também Rodrigo estava catalogado.
0,75 cudd correspondiam a três centímetros cúbicos.
Laury Marten não conseguiu prosseguir na leitura. Um
dos robôs virara-se em sua direção.
Era o controlador!
Em sua testa metálica achatada, um diafragma abriu-se
por uma fração de segundo, deixando a descoberto uma
lente fluorescente dirigida exatamente sobre Laury.
Naquele instante, não só o alarma estava soando no
setor de Defesa de X-p, mas até seu retrato estava sendo
apresentado. Dentro de alguns minutos, todos os aras que se
encontravam no gigantesco centro de pesquisas saberiam
que a arcônida Arga Slim fora observada quando estava
furtando uma porção do soro secreto.
O disparo da arma de radiações contra o robô foi um
movimento de puro reflexo. O raio derreteu seu cérebro
positrônico. Laury saltou para o lado, segurando a ampola
de soro na mão, e o corpo metálico caiu ao chão,
produzindo um ruído enorme.
O alarma não estava soando?
O próximo disparo de Laury Marten desfez o aparelho
de comunicação audiovisual. Laury examinou o teto, enfiou
a ampola num bolso interno, correu em direção à porta,
subiu ao armário que se encontrava junto desta e fez com
que o teto perdesse a coesão molecular. A mutante passou
as mãos por este, segurou-se nas bordas estáveis e puxou o
corpo para cima.
Viu-se diante de um velho ara que tremia que nem vara
verde. O homem não conseguia compreender como a moça
conseguiu atravessar o soalho do laboratório. Laury
colocou-se de joelhos e apontou a arma de radiações para o
ara.
— Vire-se! — gritou. Subiu a uma mesa e, dali, escalou
outro armário. Mais uma vez fez com que o teto se tornasse
“transparente” e viu-se diante de Sagala, que viera da sala
contígua por ter sua atenção despertada por um ruído.
Laury Marten só havia visto o chefe do zoológico
galáctico uma única vez e só trocara poucas palavras com
ele. Enquanto Laury Marten apontava-lhe o radiador,
Sagala respirava com dificuldade. Naquele instante era
apenas a agente de Rhodan, fria e bem treinada.
— Sagala — ordenou ao chefe do zoológico, que na
escala hierárquica ficava ainda acima de Man Regg. —
Acho que o senhor me ajudará a sair deste edifício. Ou será
que prefere morrer neste instante?
Sagala não respondeu, não fez o menor movimento,
apenas fitou a moça que estava com a arma na mão.
No setor X-p, as sereias de alarma continuavam a uivar.
Os alto-falantes transmitiram a advertência do Centro de
Defesa:
— Todas as saídas estão bloqueadas por robôs de
combate. Quem se atrever a sair do setor X-p será
destruído.
Num tom que quase chegava a ser gentil Laury
perguntou a Sagala:
— Não quer ter a bondade de acompanhar-me a uma
das saídas? É justamente na sua presença que me sinto mais
segura. Por favor, Sagala!
O chefe do zoológico cedeu à ameaça da arma.
Enquanto passou por ela, dirigindo-se à porta, chiou:
— A senhora não irá longe, sua espiã arcônida!
Descreveu uma curva enorme em torno do lugar em que
Laury penetrara pelo soalho. Não confiava na resistência
daquela área. Quando se virou e viu que a mulher passava
tranquilamente por ali, empalideceu.
Quando chegou à porta, seu rosto adquiriu a cor da cera,
pois Laury Marten lhe gritara uma advertência:
— Sagala, antes que o senhor possa dar o alarma,
apertarei o gatilho.
Sagala nem desconfiava de que a moça lia seus
pensamentos, mas a advertência reforçada pela ameaça
roubou-lhe o resto de disposição máscula. Tremendo de
covardia saiu para o corredor, seguido de perto por Laury.
* * *
John Marshall sobressaltou-se em meio ao sono
profundo.
A mensagem telepática expedida por Laury Marten
atingiu-o com uma intensidade tremenda.
Quais seriam as notícias que pretendia dar-lhe?
Uma fuga através do zoológico? Quem estava com ela?
O conde Rodrigo de Berceo? O que acontecera? Naquele
instante, o setor X-p estava alarmando todo o planeta e
mobilizava os guardas do zoológico, os terríveis froghs.
— Não poderia deixá-lo na mão, John Marshall. Neste
momento estamos fugindo na direção sul sudoeste e
procuramos mergulhar no deserto com o carro.
John Marshall soltou uma praga e vestiu-se
apressadamente. Sua partida parecia agora uma fuga
precipitada. Apesar de tudo, não perdeu a visão de conjunto
da situação. Sempre que se lembrava de Laury Marten,
fervia por dentro. O que haveria com essa moça? Estaria
apaixonada por Rodrigo de Berceo? Só agora estava
sabendo disso!
— Está ficando maluca! — desabafou John Marshall,
mas esse desabafo em nada alterava o fato de que o alarma
estava soando em todo o planeta dos aras e todo um mundo
estava saindo à caça da mutante Laury Marten e de
Rodrigo.
John Marshall teria esbravejado ainda mais se soubesse
que caminho Laury Marten havia tomado para sair do setor
X-p.
Mal atingira o pavimento térreo, sempre acompanhado
de Sagala, quando três robôs de combate surgiram diante da
saída do elevador antigravitacional, seguidos por mais de
uma dezena de aras muito exaltados.
— Está aqui! — gritou Sagala num gesto de desespero,
70
esperando ser morto pela arcônida, quando subitamente não
havia mais ninguém atrás dele. Graças à sua força
desintegradora Laury Marten atravessou as paredes do setor
X-p, atravessou laboratórios e outras instalações,
transformando-se num fantasma para muitos aras, que a
viam sair da parede, atravessar a sala e desaparecer na
parede oposta.
Finalmente atingiu o ar livre, bem longe das saídas
vigiadas. Logo encontrou um veículo à luz das estrelas.
Saiu em disparada, penetrando no zoológico galáctico, em
direção ao lugar em que há quatro séculos seres humanos
estavam sendo mantidos presos atrás de grades de
radiações, como se fossem animais.
Agzt, o frogh que levitava num estado eufórico,
desligou a barreira energética quando viu Laury aproximar-
se com o carro. O monstro viperino, que se agitava numa
alegria tumultuosa, nem percebeu que com isso pronunciara
sua sentença de morte. Os froghs, despertados pelo alarma,
acorreram de todos os lados e viram com seus penetrantes
olhos de notívagos que um dos ocupantes do zoológico
estava entrando num carro. Perceberam como a fuga se
tornara possível, e a vida de Agzt cessou.
Laury Marten acelerou o carro ao máximo, dirigindo-se
para sul-sudoeste a fim de sair do zoológico e mergulhar no
deserto juntamente com Rodrigo.
* * *
John Marshall nunca achara o caminho até o
espaçoporto de Trulan tão longo como nessa noite.
Finalmente chegou ao distribuidor. Marshall saiu ligeiro
do trem expresso, atirou-se no antígravo, abriu caminho
entre a confusão de gente e de inteligências humanoides e
por fim se conteve, para não chamar a atenção em virtude
da pressa.
Seu pequeno veículo espacial, que Otznam acabara de
trazer da nave cilíndrica de Rohun, encontrava-se na
extremidade oposta do espaçoporto de Trulan.
Entrou no apertado distribuidor. Tratava-se de um
sistema de elevadores que penetrava no subsolo, onde as
faixas rolantes se cruzavam em vários níveis, passando por
baixo do campo de pouso nas direções mais diversas, a fim
de que os tripulantes e passageiros das naves pudessem
atingir os veículos espaciais pelo caminho mais rápido.
John Marshall, o mais antigo dos mutantes de Rhodan,
sentiu-se um pouco mais tranquilo. No entanto, não deveria
pensar no comportamento incompreensível de Laury
Marten.
O simples fato de que ela se apaixonara por Rodrigo não
o abalou; não podia haver nada que fosse mais humano.
Acontece que Laury só o informara sobre isso num
pedido de socorro telepático, e era isso que Marshall não
compreendia.
Era um abuso de confiança. Isso mesmo! E quem sabe
se a moça ainda lhe ocultava outras coisas?
Quando chegou ao fim da estrada deslizante e foi levado
para cima por um elevador antigravitacional, viu-se
sozinho. Olhou para todos os lados e saiu do elevador.
Apenas o centro do porto espacial estava inundado pelas
luzes, além das três áreas onde se situavam os gigantescos
estaleiros nos quais podia ser reparada qualquer nave, por
maior que fosse.
John Marshall enxugou o suor da testa. Mesmo à meia-
noite, Tolimon era uma mundo tão quente que qualquer
esforço se transformava num martírio.
Sem deter-se e sem ser observado atingiu a pequena
nave. Mesmo ao olhar de uma pessoa desconfiada, a nave
pareceria um simples veículo de passeio. Na verdade,
porém, era aquilo que Rohun, com certo exagero, designara
como um couraçado. Era uma nave super-rápida e bem
armada, que possuía a qualidade de poder ser manobrada
nas camadas mais densas da atmosfera com a mesma
facilidade com que o era no espaço vazio.
O propulsor estava esquentando. A localização, o
aparelho de radiocomunicação, tudo estava entrando em
funcionamento. John Marshall olhou para o relógio. Mais
cinco minutos. Depois poderia decolar.
Três dos alto-falantes de microfone captaram
mensagens.
O inferno estava às soltas em Tolimon.
O aparelho de localização confirmou o fato. Tudo
quanto era nave policial estacionada nesse mundo dos aras
encontrava-se no ar e disparou na direção sul sudoeste.
E John Marshall teria que penetrar nesse montão de
naves empenhadas na busca, para encontrar Laury Marten e
Rodrigo, recolhê-los a bordo e fugir.
Os últimos cinco minutos do tempo de aquecimento
haviam passado.
Marshall soltou uma praga e decolou. Estava
empenhado numa missão na qual as chances dele e de
Laury Marten eram inferiores a um por cento.
* * *
— Rodrigo, guarde a espada! Esse brinquedo me deixa
nervosa — pediu Laury Marten, pela terceira vez, em tom
enérgico, enquanto seu veículo desenvolvia a velocidade
máxima, penetrando cada vez mais profundamente naquele
triste deserto de pedra. Descreveu uma curva, subindo uma
imensa encosta, e dobrou repentinamente à esquerda, para
desviar-se de um desfiladeiro.
Com isso, aproximava-se dos froghs que encetavam a
perseguição pelo sul. A resistência desses monstros
viperinos dotados de muita inteligência a fez suar de medo.
Já compreendera que, mais tempo ou menos tempo, cairia
nas garras desses guardas zoológicos, a não ser que John
Marshall viesse em seu auxílio.
Os froghs ganhavam terreno ininterruptamente. Estavam
chegando mais perto.
— Segure-se, Rodrigo!
O filho de um nobre espanhol e de uma princesa asteca,
que fora mantido por quatrocentos anos numa jaula
energética, só uma única vez, quando foi raptado na Terra,
71
tivera oportunidade de entrar em contato direto com a
tecnologia dos mundos de Árcon. Para ele, o veículo em
que se encontrava devia ser uma obra do diabo.
Não se segurou. Sua reação veio tarde. A cabeça
tombou para frente no momento em que Laury freou para
desviar-se de uma pedra, descrevendo uma curva arriscada.
Rodrigo de Berceo não chegou a ouvir o grito angustiado
de Laury Marten:
— Rodrigo!
O corpo inconsciente estava pendurado no cinto; a
cabeça balançava de um lado para outro.
A noite passou. O dia estava raiando em Tolimon. O
alvorecer cinzento surgiu e, também, a mensagem telepática
de Marshall.
Queria que ela lhe desse sua posição.
Laury Marten não sabia em que ponto do deserto se
encontrava.
O carro estava penetrando num vale estreito. As
montanhas gastas pelo tempo aproximaram-se,
transformando o vale num desfiladeiro. Naquele instante
um raio azul-pálido penetrou naquela estreita passagem,
algumas centenas de metros à sua frente. A energia
mortífera gaseificou a rocha.
Eram as naves policiais dos aras!
A caçada estava sendo feita também pelo ar.
John Marshall devia ser capaz de localizar o
desprendimento de energia.
Enquanto o veículo freado começou a derrapar,
passando rente ao paredão, Laury ainda teve sangue-frio
para informar Marshall sobre o ataque da nave dos aras.
— Já consegui — foi a resposta.
Poucos segundos depois, um minúsculo sol surgiu sobre
o deserto do planeta Tolimon. O fogo deste consumiu a
nave dos aras cujo raio azul-pálido só errara a nave de
Laury por algumas centenas de metros.
Em meio a essa orgia de luzes, surgiu a nave de John
Marshall, enfiou-se no vale estreito, sobrevoou a rocha que
continuava a fervilhar, pousou a menos de vinte metros de
Laury Marten. Marshall já estava de pé na pequena
comporta, gesticulando para que a moça se apressasse.
O conde inconsciente representava uma carga excessiva
para Laury Marten. John Marshall saltou e correu. Tirou o
homem inconsciente dos braços da moça e berrou:
— Vamos embora!
A vinte metros do lugar em que se encontravam, a
pequena nave transformou-se numa nuvem gasosa. Um raio
energético vindo do céu cinzento atingiu a nave, chegou a
alcançar o carro, onde provocou um chiado e um borbulhar.
Não havia mais nenhum veículo, apenas três seres
humanos, dois dos quais corriam para salvar a vida.
Corriam de volta, na mesma direção da qual vinham os
froghs!
— Vamos! — gritou John Marshall para Laury Marten e
Rodrigo. — Os froghs ainda estão atrás de nós. Este foi o
terceiro e...
Viu a expressão de pavor nos olhos de Laury. Virou-se
instantaneamente.
O quadro com que se deparou apertou-lhe a garganta.
Os froghs vinham de três lados. Aproximavam-se das
vítimas numa velocidade tresloucada.
O conde Rodrigo de Berceo, já refeito, passou
rapidamente por cima do barranco e, com a espada
desembainhada, correu ao encontro de um dos froghs.
— Que idiota! — esbravejou Marshall, e suas armas de
impulsos chiaram.
Mas o quinto frogh ainda estava vivo. E Rodrigo corria
em sua direção. John e Laury não poderiam atirar sem
colocar a vida de Rodrigo em perigo.
— Para trás! — berrou Marshall num tremendo
desespero.
Era tarde.
Marshall fechou os olhos. Não queria assistir à morte do
conde.
Laury soltou um grito estridente:
— Está dando outro golpe de espada.
O conde Rodrigo de Berceo, nascido em 1.652, no
México, estava provando que era o melhor espadachim de
seu século.
O corpo gigantesco do frogh girou, o monstro soltou um
berro, ergueu o terço anterior do corpo, as oito ou dez
“pernas” dobraram-se e o animal rolou de lado para não se
mexer nunca mais.
— Será que este sujeito ficou maluco? — gemeu
Marshall quando viu o conde Rodrigo de Berceo
aproximar-se daquela criatura, para logo em seguida dar um
enorme salto para trás a fim de escapar à boca do frogh que
procurou agarrá-lo.
Foi o último movimento do inimigo subjugado. John
Marshall sentiu a expressão de felicidade no olhar da
mutante. Olhou para Laury.
— Se este conde soubesse adaptar-se à nossa técnica
com a mesma habilidade com que maneja a espada e
emprega sua coragem, talvez teríamos uma chance de sair
vivos disto aqui.
Olhou Laury Marten.
— Por que fica mexendo nesse bolso? — perguntou em
tom contrariado. A duração da fuga, a sede que torturava
todos eles, as lutas diurnas e noturnas com os froghs, tudo
isso contribuiu para criar uma tensão extrema.
— Quer saber o que tenho no bolso? É isto.
Tirou a grande ampola com o soro revitalizador.
John Marshall fitou o cilindro de vidro, depois passou a
olhar a mutante. Naquele momento, Rodrigo já voltara a
juntar-se a eles. Só então o telepata conseguiu gaguejar:
— É só agora que a senhora me conta isso? Santo Deus,
9
72
Laury Marten, isso só representa metade do caminho
andado? Como pôde esquecer de me avisar?
Laury guardou cuidadosamente a ampola e disse:
— Pois eu lhe transmiti a informação de que conhecia o
lugar em que estava guardado o soro...
— Mas só agora me comunicou que a senhora já o
conseguiu, Laury. É uma diferença considerável.
Para remate da confusão, Rodrigo achou que devia
assumir o papel de protetor. Falando em tom enfático,
disse:
— Quando tivermos voltado ao México, Laury levará
uma vida digna de sua condição no castelo dos meus
antepassados. Será venerada pelas damas da corte e pelos
pajens, será admirada...
— Coitado... — interrompeu-o John Marshall,
sacudindo a cabeça. — Temos que prosseguir no nosso
caminho. Se não encontrarmos água até hoje de noite,
estaremos perdidos.
* * *
Já era noite, e nada de água. As montanhas desérticas
irradiavam um calor igual ao do meio-dia. O ar era seco e
escaldante. De todos os lados, o vento tangia nuvens de pó.
Três seres humanos cambaleavam através do vale,
subiram pesadamente a primeira montanha, desceram aos
tropeções, caíram, voltaram a pôr-se de pé, começaram a
enxergar alucinações, soltavam gritos nervosos...
Estavam sendo golpeados pelo deserto selvagem e
desolado de Tolimon. E os golpes eram mais cruéis que os
dos aras e dos froghs.
Laury Marten foi a primeira que ficou parada e caiu.
Também Rodrigo caiu de joelhos. Quando Marshall se
virou para ver por que ninguém o seguia, suas forças
também haviam chegado ao fim.
A sede os enlouquecia. Os lábios rachados e os olhos
inflamados deixavam-nos desesperados. Enquanto
cambaleava para trás, Marshall descobriu a caverna.
Uma esperança nascida do desespero surgiu em sua
mente. Associou a palavra caverna à ideia de água.
Realmente encontraram água.
A poça refletiu a luz da lanterna. Era uma poça de cerca
de cinco centímetros de profundidade e três metros de
diâmetro.
— Água! — balbuciou Rodrigo e deixou-se cair de
joelhos para sorver o líquido. Naquele instante um radiador
de impulsos chiou a seu lado e numa fração de segundo
evaporou o líquido da poça.
John Marshall sentira o mau cheiro e agira sem perda de
tempo.
Com um grito tresloucado, o conde atirou-se sobre o
telepata. O punho de John Marshall teve mais força que o
do nobre, pois este ainda continuava debilitado. Rodrigo
caiu sem dizer uma palavra. John sentiu o olhar
desesperado de Laury e logo ouviu seus soluços secos e
desinibidos.
Será que o fim seria ali, numa caverna cuja temperatura
era suficientemente baixa para restituir a três homens, sem
que eles o percebessem, apenas a força suficiente para que
pudessem raciocinar?
“Hipercomunicador” cochichou alguma coisa num
incerto local do cérebro de Marshall. E, depois de longa
espera, novamente: “Hipercomunicador.”
Acontece que por ocasião da destruição de sua nave
também o hipercomunicador fora gaseificado. Foi só graças
à sua precaução que estavam equipados ao menos com um
bom sortimento de armas de radiações. Se não as tivesse
levado quando pretendia recolher Laury e Rodrigo, o
resultado da caçada dos froghs teria sido bem diferente.
— Descobri! — gritou John Marshall. As paredes da
caverna devolveram o eco. — Não perguntem nada... não
perguntem nada — cochichou, antes que pudessem investir
contra ele com perguntas. — Preciso concentrar-me...
concentrar-me ao máximo...
Estava quase louco de sede. Apesar disso, devia
transmitir seus impulsos telepáticos com a potência
máxima, devia realizar alguma coisa que mesmo em
condições normais representaria um máximo de
desempenho. Se qualquer processo de mentalização exige
certo dispêndio de energia, o impulso telepático representa
um múltiplo dessa energia.
Rohun teria que ajudá-los. Rohun devia aparecer. Neste
instante, Rohun devia cumprir sua promessa.
Concentração... Não conseguiu realizá-la.
Dispunha de um meio de entrar em contato com Rohun,
comandante dos saltadores. O hipercomunicador.
— Só falta um copo de água, John Marshall. — O
martírio da sede retornara à sua mente, roubando-lhe as
últimas reservas de energia. — Beber, beber apenas um
gole de líquido fresco!
Bateu com as mãos na cabeça. Procurou espantar o
martírio da sede. Concentrar-se. Concentrar-se ao máximo.
Não desistiu. Perry Rhodan nunca desistira. Não poderia
abandonar Perry Rhodan. Este nunca abandonara seus
colaboradores quando se encontravam em situação difícil.
Agora... Mas nada, nada. Outra tentativa. Mais outra.
Isso!
O impulso telepático chegara ao destino. Teria sido
bastante forte para ligar o fantástico aparelho suplementar
instalado sob o telhado de seu alojamento situado num
cortiço?
Apalpar... apalpar em direção a Trulan, para certificar-
se de que não se entregava a qualquer ilusão.
O hipercomunicador estava funcionando. Tinha certeza.
Certeza absoluta.
Novo impulso energético dirigido ao aparelho
suplementar. A regulagem telepática para a faixa de Rohun.
De repente, John Marshall sentiu-se forte. Superara a
loucura da sede.
Ouviu a voz do comandante dos saltadores.
Sim, e agora... agora o aparelho estava processando os
impulsos telepáticos, transformando-os em palavras. O
condensador e o deformador foram intercalados. Nenhum
73
ara seria capaz de acompanhar a troca de mensagens.
— Irei até aí, Ixt! — foram estas as últimas palavras de
Rohun.
Esperaram.
* * *
Rohun estava furioso. Contemplou Otznam e Tulin com
os palavrões mais fortes de seu repertório. John Marshall,
Laury Marten e Rodrigo assistiram à demonstração de fúria
sem dizer uma palavra. Otznam e Tulin nem conseguiram
falar.
— Será que vocês estão sendo cavalgados por todos os
demônios das galáxias? Como puderam trazer essa gente a
bordo? Coloque-nos na nave auxiliar, e desçam com eles
para Tolimon. Quem terá sido o idiota que concebeu uma
idéia como esta?
Mas para que tantas palavras? Levem-nos de volta para
Tolimon. Levem-nos ao lugar que escolherem, mas não
assumam qualquer risco. Não estou com vontade de ser
transformado numa nuvem de gases juntamente com todas
as naves de meu clã. Fora!
Marshall já se encontrava junto à escotilha quando o
saltador o chamou de volta. O mercador galáctico lutava
com o patife que havia dentro dele.
— Ixt — disse em tom deprimido. — Mantenho minha
palavra. Otznam e Tulin...
— Está bem — interrompeu John Marshall. — Se os
agentes do senhor nos levarem sãos e salvos até Tolimon
continuaremos amigos.
Estava sendo sincero, pois era quem melhor podia
avaliar o que o mercador galáctico arriscara para salvá-los.
Seria uma desfaçatez pedir que Rohun fizesse mais do que
isso, pois traria o perigo de ele e seu clã serem destruídos
por um golpe implacável dos aras.
Dali a pouco, estavam os cinco na pequena nave
auxiliar, que os levaria de volta para Tolimon, um mundo
dos aras.
* * *
Trulan, capital de Tolimon, estava do lado diurno.
Otznam preferiu não arriscar a aproximação por esse lado.
— O ar está fervilhando de impulsos de localização —
disse em tom desanimado e apontou para os instrumentos
que reagiam constantemente.
Marshall estava acomodado no assento do co-piloto.
Não via nenhuma possibilidade de pousar sem ser notado.
Devia haver outra circunstância que desencadeara novo
alarma no mundo dos aras. Naquela altura, nem desconfiara
de que ele mesmo era o motivo desse alarma.
Mais uma vez, Tulin olhou-o de lado. O olhar despertou
a atenção do telepata e fez com que este lesse os
pensamentos do agente dos saltadores.
Por coincidência, Tulin se encontrava ao lado do
comandante Rohun quando o mercador recebeu o pedido de
socorro de Marshall. Nem o comandante nem ele mesmo
haviam reconhecido a voz de Marshall. Apenas a senha lhes
deu certeza de que a mensagem não era uma armadilha.
— O que houve com o senhor? — indagou o telepata ao
agente ruivo.
— Fico me perguntando todo o tempo onde está o
hipercomunicador com que nos chamou Ixt. Quando
pousamos junto à caverna, o senhor não tinha nenhum
hipercomunicador. Além disso, quando recebemos o
chamado, até parecia que as palavras estivessem sendo
pronunciadas por um cérebro positrônico. O que Rohun e
eu ouvimos não foi uma voz humana.
— Aqui está meu hipercomunicador — mentiu Marshall
com o maior sangue-frio, exibindo seu cronômetro. — Isto
é o alto-falante, e esta saliência pequenina contém o
microfone. Nem sempre um hipercomunicador tem que ser
um aparelho gigantesco.
Marshall sabia perfeitamente que estava usando um
blefe infame, mas não tinha outra alternativa.
Os dois saltadores arregalaram os olhos.
— O hipercomunicador está dentro daquilo?
Otznam não acreditava numa palavra do que Marshall
acabara de contar. Este leu o que pretendia dizer quando
surgiu uma nave dos aras e tomou a direção do ponto em
que se encontravam.
— Oba! — gritou o saltador. — Agora é para valer!
Antes que Marshall pudesse esboçar qualquer reação,
Otznam colocou a minúscula nave de cabeça para baixo e
disparou numa velocidade infernal em direção ao planeta
Tolimon.
Marshall compreendeu as intenções do agente.
Otznam dirigia-se ao espaçoporto policial dos aras. O
tráfego por ali era intensíssimo. E esse tráfego era sua única
chance de escaparem aos aparelhos de localização,
mergulhando em meio à confusão de naves que decolavam
e pousavam.
A atmosfera, que já se tornara mais densa, começou a
uivar em torno da nave. Otznam desceu numa velocidade
medonha. A nave dos aras que os perseguia não esperara a
manobra e demorara demais para modificar a rota. O agente
dos saltadores ganhou alguns segundos muito preciosos.
— Preparem-se para saltar! — gritou John Marshall,
dirigindo-se a Laury Marten e Rodrigo. Tal quais os outros,
também o homem do século XVII estava enfiado num traje
espacial arcônida de boa qualidade. Laury Marten vivia
tentando explicar a Rodrigo o que era um campo de
deflexão, como se voava num traje espacial, o que vinha a
ser a gravidade e como a mesma podia ser neutralizada. O
conde não compreendia nada.
— Muito obrigado, saltadores! — gritou Marshall para
Tulin e Otznam quando, seguindo os companheiros, se
enfiou na pequena comporta e fechou-a atrás de si.
A cinquenta quilômetros de altura os três abandonaram
a nave.
O conde Rodrigo de Berceo flutuava entre os outros.
Mais uma vez acreditava que se tratasse de uma arte do
demônio quando viu que pouco acima deles Otznam, o
agente dos saltadores, girou a nave e disparou para o
74
espaço. Desceram na vertical. Marshall e Laury Marten
sabiam que suas presenças podiam ser constatadas pelas
estações de superfície. Quanto mais depressa chegassem até
ela, maiores seriam suas chances.
Rodrigo se debatia, pendurado num cabo de plástico.
Acreditava ter chegado ao fim da vida e pensava que estava
descendo às profundezas do inferno. Perdera a noção do
tempo. Soltou um grito de pavor quando uma pressão
invisível ameaçou esmagá-lo. Nesse instante, Marshall
soltou um “graças a Deus”.
Pousaram a menos de um quilômetro do espaçoporto
policial e junto a uma estrada.
— Saiam dos trajes espaciais! — ordenou Marshall. —
Enquanto usarmos estes trajes, todo mundo desconfiará de
nós.
Esconderam os preciosos trajes arcônidas na moita mais
próxima. Marshall lançou os olhos pela noite, para
examinar o espaçoporto policial profusamente iluminado.
Brincava cada vez mais intensamente com a ideia de
arriscar, a partir dali, o salto para Trulan. Laury, que
conhecia seus pensamentos, entusiasmou-se com o plano.
Quando disse:
— Dentro de três horas será dia. Marshall respondeu
num tom que quase chegava a ser ameaçador:
— Nessa hora, já estaremos em Trulan! Dali a uma
hora, haviam chegado ao espaçoporto policial dos aras mas,
por mais que lançassem os olhos em torno, não descobriram
nenhuma nave que pudesse servir aos seus propósitos.
Finalmente uma pequena nave-correio surgiu da
escuridão e pousou no campo espacial. Levava dois
homens. Um dos aras saiu da nave. O piloto cochilava no
seu assento.
John Marshall e Laury Marten dividiram a presa. Laury
encarregou-se do ara, que entrou num carro e foi levado ao
edifício da administração. Marshall já estava trabalhando o
piloto com seu projetor mental. Depois disso, o homem não
poderia ficar admirado ao ver três pessoas entrarem no
aparelho e pedirem que as levasse a Trulan.
Laury Marten ficou perplexa com os pensamentos que
extraiu do cérebro do oficial ara.
O tumulto reinante em Tolimon fora provocado por
John Marshall. Era ele que estava sendo procurado
febrilmente pelos aras. Estes dispunham de provas cabais
de que o mutante de forma alguma poderia ser Ixt, o
mercador galáctico.
— Tudo pronto, Laury Marten! — disse Marshall e
levantou-se. — Encareça ao conde a necessidade de não
dizer uma única palavra, aconteça o que acontecer. Laury, a
senhora responde por ele.
Mais uma vez, caminharam com o conde entre eles.
Laury cochichava ininterruptamente para ele.
Encontraram-se com três aras. Passaram a menos de três
metros. Dois tratamentos hipnóticos de curta duração
influenciaram os médicos galácticos pela forma desejada. A
nave-correio surgiu diante deles. A comporta estava aberta
e a rampa havia sido descida. O piloto nem sequer se virou
quando John Marshall parou junto à comporta interna para
deixar que Rodrigo e Laury Marten passassem à sua frente.
— Tudo pronto? — perguntou o ara que se encontrava
no assento do piloto.
As escotilhas da comporta fecharam-se com um chiado.
— Tudo pronto! — respondeu John Marshall com a
maior tranquilidade, embora tremesse por dentro.
Será que o serviço de controle do espaçoporto não
ficaria desconfiado ao notar que uma nave decolava sem
aviso?
Corriam atrás da noite que deslizava pelo planeta de
Tolimon. Quando Trulan surgiu à sua frente, o crepúsculo
começava a descer sobre a capital planetária.
Foi quando o serviço de controle constatou sua
presença. Exigiu informações sobre as características da
nave. O piloto identificou o aparelho. No mesmo instante o
ara que se encontrava no setor de controle do espaçoporto
de Trulan demonstrou uma gentileza extraordinária.
— Reservamos a posição de estacionamento número
onze para o senhor e mandaremos um carro.
Marshall e Laury Marten trocaram um olhar ligeiro.
Jogariam seu jogo atrevido até o fim.
Por que andar se insistiam em levá-los de carro? E onde
poderiam estar mais seguros que num veículo da policia ou
do serviço secreto dos aras?
O piloto — que fora influenciado apenas no setor da
inteligência, para não se preocupar com o destino do vôo e
a identidade dos passageiros e retornar imediatamente ao
espaçoporto policial — pousou levemente na posição
número 11.
O carro já os esperava.
Os mutantes não perderam nem um segundo.
Submeteram o motorista e o oficial do serviço secreto à
força sugestiva.
Mais uma vez, Marshall foi o último a entrar, com o
radiador de impulsos engatilhado no bolso.
E mais uma vez, não aconteceu coisa alguma.
— Aonde vamos? — perguntou o motorista, virando-se
para os passageiros, enquanto o ara do serviço secreto
olhava fixamente para frente, sem tomar conhecimento da
presença deles.
— Para a Rua do Grande Mo — respondeu Marshall.
Foi quando surgiu o incidente com o qual não
contavam.
A central do serviço secreto dos aras chamou justamente
o carro em que iam.
O motorista e o oficial não reagiram ao chamado.
O chamado foi repetido. Marshall decidiu levar o
atrevimento ao grau de uma insolência inacreditável.
Obedecendo à ordem de Marshall, reforçada pelo
projetor mental, o motorista gritou para dentro do
microfone:
— Viatura KK-107 em missão especial. Objetivo tem
de ser mantido em segredo, porque existe perigo de escuta.
Voltarei a chamar dentro de meia hora. Fim.
— Desligue o transmissor — ordenou Marshall.
75
O motorista desligou.
Com a segurança de um sonâmbulo, o piloto fazia a
viatura policial correr em direção à Rua do Grande Mo.
John Marshall não se interessava nem pela confusão do
tráfego, nem pelos movimentos da multidão. Procurou
captar os pensamentos de Futgris, para descobrir as
novidades ocorridas durante sua ausência.
Futgris não estava mais na loja dos animais.
Não havia nenhum vendedor por lá!
Em compensação, havia aras. Eram nove elementos do
serviço secreto, que naquele instante revistavam
cuidadosamente o escritório.
“Acabarão encontrando o novo aparelho de
telecomunicação!”, foi esta a primeira ideia que acudiu a
Marshall.
— Onde devo parar? — perguntou o motorista
hipnotizado em meio às suas reflexões.
— Aqui não — respondeu Marshall laconicamente. —
Novo destino da viagem: a coluna do Grande Mo.
O motorista não se espantou. O oficial sentado a seu
lado olhava fixamente para frente. O projetor mental de
Laury Marten mantinha-os em estado hipnótico.
John Marshall não via nem ouvia mais nada.
Concentrou-se. Pensava em seu escritório. Pensou na
pequena bomba incendiaria que havia no interior do
mesmo. Encontrava-se sobre a escrivaninha e, sem o
envoltório que a camuflava, não era maior que uma noz.
— Deflagrar! — ordenaram seus pensamentos.
Aquela impressão voltou a surgir atrás de sua testa. Era
algo de indefinível; parecia que um contato se fechava.
Marshall respirava pesadamente; reclinou-se no assento.
Tinha certeza de ter conseguido. Dali a pouco, as sereias de
alarma soariam na Rua do Grande Mo e a casa de animais
de Ixt ficaria queimada até os alicerces. O fato de que, dali
a alguns dias, os aras ainda se esforçariam para descobrir
por que aquele fogo, parecendo tão inofensivo, não pôde ser
apagado de forma alguma, não o preocupava nem um
pouco.
Mais uma vez, a central do serviço secreto dos aras
chamou:
— Viatura KK-107, responda imediatamente e...
De repente, John Marshall teve um sexto sentido para o
perigo.
— Pare! — disse ao motorista.
O carro ainda estava andando quando Marshall saltou,
puxou Laury Marten e arrastou Rodrigo. Naquele instante,
viu duas viaturas do serviço policial pararem do outro lado.
Dali a quatro horas, quando a porta de aço arcônida se
fechou atrás deles, Rodrigo de Berceo contemplou o
alojamento de Marshall com um olhar de desprezo e Laury
Marten sorriu pela primeira vez. Naquele instante, John
Marshall sabia perfeitamente que a caçada dos aras ainda
não havia chegado ao fim.
A pista que tinham deixado era muito nítida.
Esta pista se chamava Rodrigo de Berceo, o homem que
usava botas cujos canos iam até os quadris, calça apertada
no corpo, colete sem mangas com rendas no decote e
chapéu de aba larga encimado por um penacho balouçante.
Rodrigo de Berceo levaria os aras ao esconderijo na
área dos cortiços.
— Temos uma bela perspectiva diante de nós — disse
Marshall, absorto em seus pensamentos, e sacudiu a cabeça
ao olhar para Laury Marten.
Esta não resistiu ao olhar. Sentada sobre a cama, baixou
a cabeça.
* * *
Perry Rhodan aguçou os ouvidos. O hipercomunicador
da abóbada de aço de Hellgate chamou.
Era outra mensagem de John Marshall.
Desta vez foi uma mensagem mais longa. À medida que
Perry Rhodan ouvia, seu rosto tornava-se mais sério. Só
uma vez exprimiu uma alegria imensa; foi quando Marshall
o informou sobre a ampola de soro.
— E os saltadores? — perguntou em tom áspero.
John Marshall não conseguia estabelecer contato com
eles. Haviam-se retirado. O assunto era muito arriscado.
— Nesse caso irei pessoalmente. Não faça mais nada.
Cuide bem do soro. Aguente até minha chegada, Marshall.
Demorarei alguns dias. Fim.
John Marshall e Laury Marten, dois agentes cósmicos enviados a Tolimon — um
dos mundos dos aras — conseguiram um êxito parcial quando se apoderaram do soro
revitalizador.
Mas não conseguiram sair de Tolimon.
Mais uma vez Perry Rhodan se vê obrigado a intervir pessoalmente. Chegará
acompanhado de Gucky, como O Pseudo.
O Pseudo, é este o titulo do próximo volume da série Perry Rhodan.
76
Nº 52
De
Clark Darlton
Tradução Richard Paul Neto Digitalização Vitório Nova revisão e formato W.Q. Moraes
Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo
reconhecimento cósmico da Humanidade, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de
ficar incompleto, pois os recursos de que o homem podia dispor na época eram insuficientes face
aos padrões cósmicos.
Cinquenta e seis anos se passaram desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no
ano de 1.984.
Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira
Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou. Formava
agora o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os
mundos do sistema solar que não se prestavam à colonização são utilizados como bases terranas
ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma, os terranos são os
soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Este reino planetário, que alcançou elevado grau de evolução tecnológica e civilizatória,
evidentemente possui uma poderosa frota espacial, capaz de enfrentar qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o
manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles membros do célebre exército
de mutantes — continuam a ser instruídos para, em quaisquer circunstâncias, manter em segredo
sua origem terrana. Em Tolimon, um dos mundos dos aras, alguma coisa parece não ter dado
certo durante o desempenho de uma missão muito importante. Acompanhado de Gucky, Perry
Rhodan aparece em cena para tirar seus agentes dos apuros. Perry Rhodan é O Pseudo.
77
Ainda havia gente que não conhecia Gucky, o rato-
castor. Para muitos deles, isso não representava nenhuma
tragédia; apenas ficavam privados do prazer de apreciar um
pequeno milagre. Mas outros, que nunca haviam ouvido
falar a seu respeito e, de repente, se encontravam com ele,
poderiam experimentar uma surpresa nada agradável.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com os colonos
revoltados do planalto ao sul de Vênus City. Sabiam por
experiência própria que o governo mundial de seu planeta
de origem não costumava enviar expedições punitivas para
sufocar rebeliões no nascedouro. Por isso, resolveram
romper os laços que os ligavam à Terra, dos quais
resultavam tributos insignificantes, para adquirir a
independência.
Como Perry Rhodan se encontrasse
em algum lugar nas profundezas do
Universo, e não houvesse meio de
entrar em contato com ele, o governo
mundial terrano agiu por conta própria
e incumbiu Gucky de verificar o que
estava acontecendo em Vênus.
Com o maior prazer, Gucky passou
a desincumbir-se da missão.
Os colonos revoltados riram
gostosamente quando um belo dia
surgiu diante deles àquela criatura que
se parecia com o ratinho Jerry. Riram
ainda mais quando a figura engraçada
afirmou que vinha por ordem do
Império Solar, para restabelecer a
ordem.
Só pararam de rir quando aquele
animal esquisito, que falava um inglês
impecável, lançou mão de suas forças
ocultas. Nenhum pensamento dos
cabeças lhe ficou oculto, pois Gucky
era telepata. Encontrava-se nos mais
variados lugares ao mesmo tempo, pois também possuía o
dom da teleportação. E, para coroar a obra, todo o arsenal
de armas dos colonos foi erguido, ficou reunido bem acima
do planalto e caiu num lago profundo. É que Gucky
também era telecineta.
Depois disso, os colonos voltaram a agir razoavelmente.
Desculparam-se com muitas palavras bonitas e juraram
obediência para o futuro, prometendo pagar pontualmente
os tributos a que se haviam obrigado.
Na noite daquele dia agitado, Gucky foi homenageado
por sua generosidade. O chefe da revolta sufocada
convidara-o e lhe oferecera verduras frescas e vinhos da
estação. A festa foi muito alegre e o rato-castor, muito
animado, começou a esquecer das boas maneiras. Com sua
voz aguda, cantou algumas canções grosseiras que ouvira
de Bell. Os homens acompanharam-no com as vozes
roucas.
Os animais que residiam nas matas vizinhas à colônia
espantaram-se com o barulho descomunal e ficaram em
silêncio. Nunca tinham ouvido um rato-castor cantar. Um
porco-espinho assustou-se e enfiou-se mais profundamente
em sua caverna, resolvendo que ao raiar do dia procuraria
um novo lar. Até mesmo um verme-parafuso quase surdo
enfiou-se apressadamente no chão, para livrar-se da orgia
de ruídos pouco agradáveis.
Em poucas palavras, Gucky sentia-se feliz como um
porco em meio às abóboras.
É bem verdade que vez por outra teve a impressão de
que seu subconsciente estava sendo atingido por débeis
impulsos mentais que não provinham dos colonos, cujos
cérebros estavam envoltos nas névoas alcoólicas. Mas não
deu atenção ao fenômeno. Afinal, fizera um trabalho bem
feito e merecia uma noite alegre. O
que tinha ele a ver com a
guarnição terrana de Port Vênus, a
capital do planeta? Aquela gente
poderia perfeitamente esperar até o
dia seguinte.
Gucky continuou a cantar e a
receber as homenagens.
Bem mais tarde, quando estava
descansando em uma macia cama
na casa do prefeito, procurando
espantar os anéis coloridos e as
paredes que balançavam, os
impulsos voltaram.
— Gucky! Aqui é o comando
do exército de mutantes.
Responda! O que aconteceu?
A mensagem era tão clara que
não poderia passar despercebida.
Pelo tipo das vibrações só poderia
ser Betty Toufry, cuja capacidade
telepática muitas vezes provocara
a admiração de Gucky. Era Betty
quem dirigia o comando do
exército de mutantes destacado para Vênus. A ela fora
confiada à incumbência de sufocar a revolta dos colonos.
Gucky suspirou e fez um esforço para vencer a
embriaguez.
— Minha doçura! — pensou, despertando aos poucos.
— Meu estado é excelente. Apenas estou um tanto
carregado.
— Carregado?
O rato-castor sorriu. Como é que aquela criatura
ingênua poderia saber o que carregara? Não conhecia o
vocabulário de Bell tão bem quanto ele.
— Estou carregado de vinho — explicou laconicamente.
— Um vinho delicioso. A revolução acabou-se. Amanhã
estarei aí e lhe darei um beijo.
Betty não parecia sentir-se muito feliz com a promessa.
— Você vai voltar, mas é já! Tenho outra tarefa para
você.
Personagens principais deste episódio:
Perry Rhodan — Que em Tolimon
assume o papel do inspetor Tristol.
Gucky — Que não gosta nem um pouco
do papel de criado pessoal.
John Marshall — Comandante do
exército dos mutantes de Rhodan.
Laury Marten — Uma moça de 23 anos,
filha dos mutantes Ralf Marten e Anne
Sloane.
Conde Rodrigo de Berceo — Um
homem apaixonado por Laury — e,
também, pela espada.
Glogol — Um inspetor que, por melhor
que seja, não pode incutir respeito quando
aparece de cueca.
1
78
O rato-castor continuou deitado, sacudindo o sono que
ameaçava envolvê-lo. Quem sabe se realmente não havia
bebido demais?
— O que é? — perguntou.
Começou a sentir-se mal.
— Trata-se de uma missão especial, meu chapa! — foi a
resposta telepática que veio imediatamente. — Você terá
que partir amanhã de manhã.
Gucky soltou um gemido e ergueu-se na cama.
Encostou-se à parede. A luz vinda da rua provocou um
reflexo branco na pele da barriga.
— Partir amanhã? Será que esta vida de cigano nunca
terá fim?
Betty começou a impacientar-se.
— Ou você vem imediatamente, Gucky, ou eu aviso
Rhodan que você recusou obediência a uma ordem. Ele
exigiu expressamente a sua presença e...
Gucky despertou imediatamente. O cansaço e o mal-
estar desapareceram como que por encanto. Com um salto,
pôs-se de pé ao lado da cama.
— Então foi Rhodan? Ele quer minha presença? Que
chefe adorável! Não se esqueceu de mim — a emoção
quase chegou a dominá-lo, mas acabou por controlar-se. —
Dentro de cinco minutos estarei aí. É no espaçoporto?
— Está certo. Ande depressa!
— Já estou a caminho — respondeu Gucky e começou a
vestir-se. Numa letra delicada escreveu um bilhete de
agradecimentos aos colonos e recomendou-lhes que nunca
mais pensassem em revoltas.
Depois, concentrou-se em seu destino e saltou.
De início, o ar começou a tremeluzir em torno dele.
Subitamente desapareceu. No mesmo instante, voltou a
materializar-se no lugar combinado, em Port Vênus.
Betty Toufry nem chegou a assustar-se.
Estava sentada na cama. Trazia um robe sobre a roupa
de dormir, que devia ser muito fina. Em Vênus o dia e a
noite eram medidos pelos padrões terranos, pois face à
rotação do segundo planeta, só a verdadeira noite durava
cento e vinte horas.
A parede do quarto era formada de telas e controles. Era
aqui que se reuniam todos os fios das teias urdidas em
Vênus. E a partir dali, era controlada a ação dos mutantes.
Enquanto John Marshall, chefe do exército de mutantes,
estava ausente, as funções eram exercidas por Betty.
— Será que isso não poderia esperar até amanhã? —
perguntou Gucky, mas logo se lembrou de quem o tinha
chamado. — Foi Rhodan em pessoa que exigiu minha
presença? Por que não me chamou logo?
A moça, que continuava jovem graças à ducha celular
do planeta Peregrino, aplicada aos membros mais
importantes do exército de mutantes, sacudiu a cabeça
diante de tamanha falta de lógica.
— Faz poucas horas que recebi a mensagem de Rhodan
pelo hipercomunicador. Confiou-nos uma tarefa muito
estranha, que tinha de ser cumprida antes de qualquer outra
coisa. Só depois disso, tive tempo para pensar em você, que
é parte do equipamento solicitado.
— Você acha que eu sou uma peça de equipamento? —
disse Gucky em tom indignado, acomodando-se na
poltrona. — Foi o chefe que disse isso?
— É claro que não usou essa expressão. Mas fez
questão de que mandássemos você.
— É porque sabe apreciar minhas qualidades — disse o
rato-castor em tom de regozijo.
— Talvez — disse a moça, que pelo aspecto podia ter
tanto dezoito como trinta anos. Na verdade Betty Toufry
tinha mais de sessenta anos. — De qualquer maneira, você
voará para Hellgate amanhã, logo depois do período de
sono.
Gucky empertigou-se e levantou as grandes orelhas. Por
entre os lábios, surgiu o dente roedor, que podia ser
considerado o barômetro de seu humor. Quando aparecia,
podia-se falar tranquilamente com Gucky.
— Hellgate! — sacudiu a cabeça de espanto. — Logo
esse planeta do calor. Será que o chefe não poderia ter
inventado nada melhor?
— Hellgate é uma base muito importante que dispõe de
uma estação de rádio. É o único planeta de um sol pequeno
e insignificante, que consta dos catálogos dos arcônidas sob
a designação ZW-2536-K-957. Hellgate dista exatamente
12.348 anos-luz da Terra. O planeta pertence ao Império de
Árcon. Ninguém se interessa por ele, especialmente os
arcônidas.
— Obrigado pela explicação — chiou Gucky em tom de
desprezo. — Eu poderia ter encontrado essas informações
num livro. O que vou fazer em Hellgate?
— Faça essa pergunta a Rhodan; ele deve saber. Não
tenho a menor ideia do que aconteceu por lá — Betty
ajeitou o robe e cobriu os joelhos, embora não houvesse o
menor perigo de que Gucky ligasse o joelho humano
feminino a qualquer tipo de erotismo. — Também não faço
a menor ideia do que Rhodan pretende fazer com o iate
espacial de luxo.
— Com o quê? — perguntou Gucky perplexo.
— É um veículo feito sob encomenda — disse Betty,
participando do espanto de Gucky. — Um iate especial para
milionários. Os arcônidas costumavam utilizá-lo. Você vai
levar a pequena nave para Hellgate, onde está Rhodan.
— E depois disso vou voltar a pé? — perguntou Gucky.
— Dificilmente. Se fosse assim, não teria dito
expressamente que quer você como piloto. Tomara que
você saiba dirigir aquilo.
O rato-castor empertigou-se, o que quase chegou a
provocar o riso de Betty.
— Isso não é nada. Afinal, fui treinado com todos os
tipos de nave, inclusive com esse ridículo iate de luxo.
Quando devo partir?
— O equipamento ainda está sendo colocado a bordo.
Infelizmente a longa noite de Vênus começou há pouco,
mas você não se importa de decolar no escuro. Será dentro
de dez horas. Se quiser, pode dormir mais um pouco. O
pessoal de Port Vênus está a par de tudo e fará o possível
79
para apressar os preparativos. Rhodan o aguarda para daqui
a vinte horas.
Gucky exibiu o dente roedor e lançou os olhos em
torno.
— Será que posso dormir aqui? — perguntou com a
cara mais inocente do Universo e lançou um olhar ansioso
para a cama de Betty.
Mas esta não tinha a menor vontade de acariciar o rato-
castor para pô-lo a dormir. Tirou o robe, enfiou-se sob a
coberta de penas e sacudiu a cabeça.
— Na sala ao lado há um sofá. Boa noite.
Desapontado, Gucky ficou mais alguns minutos na
poltrona. Depois teleportou-se para a peça contígua.
Ainda se encontrava sob os efeitos do vinho. Por isso,
logo esqueceu seus problemas e adormeceu.
* * *
O veículo espacial de luxo pertencia a uma classe toda
especial.
Envolvido pela luz ofuscante dos holofotes, estava
pousado no pavimento de concreto, junto ao cruzador leve
que o trouxera da Terra.
Sobre o corpo prateado da nave lia-se em caracteres
negros a designação arcônida Koos-Nor.
Assemelhava-se a um gigantesco ovo, com trinta e
cinco metros de comprimento e quase vinte de diâmetro na
parte central.
Uma escotilha oval conduzia para a comporta de ar e
dali para o interior do iate. Seu raio de ação era
praticamente ilimitado, desde que não se desse importância
às revisões regulamentares.
Gucky e Betty Toufry encontravam-se diante da
maravilha reluzente.
— Isso deve custar um bom dinheiro — constatou
Gucky. — Nunca imaginei que um dia viria a comandar
uma maravilha dessas.
A moça olhou para o relógio.
— Você conhece as coordenadas, Gucky. O engenheiro-
chefe voltou a explicar todos os detalhes. O que está
esperando?
— É verdade, Betty. Vou zarpar.
Betty riu.
— Você está exagerando para menos, coisa que não
costuma fazer. Dê lembranças minhas a Rhodan e aos
outros. E boa sorte.
— Você acha que precisaremos?
— Sem dúvida. Rhodan falou numa missão muito
arriscada.
Gucky sorriu. Parecia satisfeito.
— Ainda bem que esta espera enjoada chegou ao fim.
Todos os mutantes estão participando de comandos
especiais. Eu sou o único que se encontra aqui em Vênus
para acalmar colonos inofensivos cujo único defeito
consiste em não querer pagar impostos.
— Bem, ainda não existe nenhum imposto para os ratos-
castores — disse Betty com um sorriso e recuou um passo.
— Faça um trabalho bem feito, Gucky.
Gucky sorriu e, com um ligeiro salto, subiu os poucos
metros que o separavam da escotilha de entrada. A escada
que se revelara desnecessária encolheu-se automaticamente.
Gucky acenou e desapareceu no interior da comporta. A
pesada escotilha, iluminada pelas lâmpadas, fechou-se.
Poucos minutos depois, um tremor sacudiu o vulto em
forma de ovo. Levantou-se e subiu lentamente ao céu
escuro, seguido pela luz dos holofotes.
Betty caminhou até a beira do campo de pouso. Quando
parou e lançou mais um olhar para o céu enegrecido, não
viu mais nada da nave. Parecia que a mesma se
desmaterializara.
* * *
E foi isso mesmo. Gucky estava decidido a aproveitar
todas as possibilidades da nave de luxo arcônida.
Os veículos espaciais do tipo da Koos-Nor eram dotados
de um campo amortizador especial, que reduzia a um
mínimo os efeitos das hiperentradas e saídas sobre a
estrutura espacial contígua. Por isso, essas naves tinham o
direito de ingressar no hiperespaço dentro do setor espacial
ocupado por um sistema solar, ou reingressar no espaço
normal nesse mesmo setor. O custo de um equipamento
desse tipo era o único fator que impedia sua instalação em
todas as naves. O gerador de campo amortizador não era
rentável — a não ser para iates de luxo, com os quais os
inspetores irradiavam o poder e esplendor de Árcon...
O rato-castor ligou o gerador de campo de amortização
assim que a Koos-Nor rompeu a camada de nuvens branco-
amarelenta de Vênus.
Naquele instante, o Universo deixou de existir para
Gucky. Ou melhor, o rato-castor e todo o iate de luxo
deixaram de existir para o Universo normal.
Transformaram-se e passaram a existir sob a forma de um
impulso energético de categoria superior.
Essa situação perdurou até o momento da
rematerialização.
Quando a dor tão conhecida, provocada por esse
processo, se desvaneceu, Gucky contemplou os quadros
estelares, subitamente modificados.
Escorregou para fora do assento do piloto e resolveu dar
uma olhada mais detida pela nave. Sentia-se martirizado
pelo desejo de saber o que Rhodan pretendia fazer com esse
veículo de luxo. Por que não solicitara um cruzador, em vez
desse lindo brinquedinho? Com este iate, poderia não se
sair bem numa aventura perigosa.
No porão de carga, viam-se as caixas fechadas vindas da
Terra. Acontece que uma fechadura não representava
nenhum problema para Gucky, o telecineta, e assim não era
de admirar que o rato-castor inspecionasse o equipamento
especial de Rhodan sem que isso lhe doesse na consciência.
Dez minutos depois, voltou à sala de comando da Koos-
Nor e deixou-se cair no assento.
Os olhos arregalados fitaram a profusão de estrelas
desconhecidas.
— Gostaria de saber o que Rhodan vai fazer num baile
80
de máscaras — sussurrou.
* * *
Hellgate realmente parecia ser o portão do inferno,
conforme dizia o nome. Ninguém seria capaz de imaginar
um planeta mais solitário e desolado que aquele. Ali,
Rhodan travara a primeira luta terrível contra Atlan, o
solitário do tempo.
Hellgate...
Era um deserto de areia e rocha, inundado pelo sol e
privado de qualquer vida ou esperança. Nenhuma criatura
sensata conceberia a idéia de fixar-se ali, pois não havia
nada com que pudesse alimentar-se. O sol solitário ficava
longe de todas as rotas espaciais e tinha menos importância
que uma partícula de pó suspensa na atmosfera de qualquer
planeta habitado da Via Láctea.
Hellgate...
Justamente esse mundo infernal fora escolhido por
Rhodan para servir de base e posição avançada contra o
Império dos Arcônidas. Ninguém suspeitaria de que
estivesse ali, se é que alguém soubesse da sua existência. E
isso era pouco provável. Há quase seis décadas
considerava-se a Terra como um planeta destruído, e todo
mundo acreditava que Rhodan e sua gigantesca nave, a
Titan, tivessem desaparecido.
Em Hellgate, Rhodan construiu a cúpula de aço, em
cujo interior existiam condições de vida terranas. A partir
dali poderia, a qualquer momento, estabelecer contato pelo
hipercomunicador com os postos espalhados pelos quatro
cantos do Universo. No hangar subterrâneo havia uma nave
rápida, preparada para tirá-lo dali caso houvesse
necessidade.
Já fazia muito tempo que se encontrava em Hellgate,
mas ainda não havia atingido seu objetivo.
Exatamente a oitenta e um anos-luz ficava um sol de
luminosidade débil do tipo G, que estava registrado nos
catálogos dos arcônidas com o nome de estrela de Revnur.
Lembrava o sol terrano e facilmente poderia ser confundido
com o mesmo. Seis planetas gravitavam em torno da estrela
de Revnur, mas só o segundo deles era habitado. Os aras,
descendentes dos saltadores e dos arcônidas, o descobriram
e colonizaram em tempos idos. Os saltadores viviam
principalmente do comércio, motivo por que também eram
conhecidos como os mercadores galácticos. Já os aras
exerciam outras especialidades: eram os médicos
galácticos, e seu meio de vida consistia na venda de soros
por eles produzidos e na vigilância médica de outras raças e
dos mundos por elas habitados.
Para esse fim mantinham no segundo planeta de Revnur
o único zoo galáctico. Haviam descoberto um elixir da vida,
e era mais que compreensível que o mesmo despertasse o
interesse de Rhodan. Havia dois mutantes, John Marshall e
Laury Marten, que trabalhavam como agentes em Tolimon,
nome pelo qual era conhecido o planeta do zoológico. Há
menos de uma semana Marshall avisara pelo rádio a
existência de uma situação de grave emergência e solicitara
auxílio. A partir dali tudo indicava que estava desaparecido.
Todavia, Rhodan sabia que Laury conseguira retirar uma
ampola do elixir da vida de um dos laboratórios dos aras.
Teria que dirigir-se pessoalmente a Tolimon, para livrar
seus agentes de um perigo grave. Foi este o motivo da
partida inesperada de Gucky.
A cúpula de aço estava sendo castigada pelo calor
tremeluzente de Hellgate. Mas em seu interior havia um
clima igual ao das zonas temperadas da Terra.
Rhodan estava no banho.
Nos dias anteriores, voltara a ouvir todas as mensagens
de hipercomunicação armazenadas automaticamente por
sua estação receptora. Com isso adquiriu uma visão de
conjunto dos acontecimentos que se desenrolaram no
interior e no exterior do Império Arcônida. O cérebro
robotizado, que governava o Império, conseguira
restabelecer a paz e a ordem. E a paz reinante no Império
era respeitada tanto pelos aras quanto pelos saltadores.
Ninguém mais falava da Terra destruída. E também um
certo Perry Rhodan, que em certa época representara um
perigo imenso para o Império, estava totalmente esquecido.
Rhodan sorriu e esticou o corpo. Os campos
gravitacionais embutidos na banheira faziam com que
levitasse sobre a superfície da água verde-azulada. O
líquido brincava em torno do corpo, deixando livre apenas a
cabeça. Rhodan boiava sem executar o menor movimento,
gozando em cheio as delícias do banho gravitacional.
A perspectiva do voo para Tolimon não o deixava nada
satisfeito.
Já não tinha motivo para temer sua redescoberta pelo
Império Arcônida, mas estava interessado em adiá-la até o
momento em que conhecesse o segredo do prolongamento
da vida. Por isso teria de usar um disfarce durante a visita a
Tolimon.
Na sala de controle soou uma campainha e logo se
ouviu um zumbido penetrante.
Rhodan fez alguns movimentos de natação e saiu da
banheira. O jato de ar quente enxugou seu corpo dentro de
poucos segundos. Vestiu um robe e desceu até a sala de
controle. Pelos instrumentos constatou que uma pequena
nave circulava em torno de Hellgate e procurava entrar em
contato com sua estação.
Seria Gucky?
Dali a um minuto, a tela iluminou-se, mostrando o rosto
sorridente de Gucky em tamanho natural, a começar pelas
orelhas superdimensionadas, a testa enrugada, os olhos fiéis
e o dente roedor reluzente. Enfim, a gola verde do uniforme
espacial.
— Olá, chefe! Posso pousar?
Rhodan sacudiu a cabeça, num gesto de recriminação.
— Você está com sorte, pois por uma questão de
precaução desliguei o dispositivo de defesa automático. Se
não fosse assim, não encontraríamos mais nada de você.
— Você não me esperava?
Rhodan suspirou.
— Sua leviandade chega a ser lendária, Gucky. Pois
bem, pode pousar. A barreira visual foi desativada; você
81
não terá a menor dificuldade em encontrar a cúpula. Ligue
os campos gravitacionais, para que a nave possa ser
introduzida. Vou abrir a comporta.
Voltou a cumprimentar o rato-castor e desligou a
instalação. Vestiu-se rapidamente, colocou o traje
pressurizado e foi até a comporta do hangar, onde estava
guardada sua nave. Dali a dois minutos pisava a areia
escaldante do planeta infernal. O aparelho de refrigeração
de seu traje espacial reduziu a temperatura a um nível
suportável.
Gucky estava pousando.
— Fique na sala de comando! — pensou Rhodan com a
maior intensidade. Sabia que o rato-castor, que era telepata,
não teria a menor dificuldade em captar e decifrar seus
impulsos mentais. — Ligue os campos. Levarei a nave para
dentro da comporta.
Gucky compreendeu imediatamente. A Koos-Nor
perdeu seu peso, tornando-se mais leve que uma folha de
papel. O raio de tração de matéria permitiu a Rhodan que
levasse a nave de trinta e cinco metros de comprimento
para o interior da comporta, fechasse a escotilha, fizesse
entrar o ar e a colocasse no hangar. Enquanto saía do
levíssimo traje espacial, a pequena escotilha oval da nave
abriu-se e Gucky, com um único salto, colocou-se nos
braços de Perry.
— Estou tão feliz em revê-lo, chefe — chilreou num
tom que quase chegava a ser carinhoso e enlaçou o pescoço
de Rhodan com os braços fininhos. — Trago lembranças de
todos, especialmente de Betty.
— Está bem, pequeno — disse Rhodan comovido e
acariciou o amigo. Havia uma estranha amizade entre o
homem mais poderoso do sistema solar e o “animal”
peludo, que, além de possuir a inteligência de um homem
superdotado, era o mais versátil dos mutantes. — Também
estou feliz por tê-lo comigo.
— Você bem que poderia ter-me chamado mais cedo.
— Acontece que só agora surgiu a necessidade, e nem
sempre podemos dar atenção aos nossos sentimentos.
Trouxe tudo que eu pedi?
— Não faço a menor ideia. Quem cuidou disso foi
Betty.
— Nesse caso deve estar tudo certo. Mais tarde daremos
uma olhada. Vamos até a sala de comando. Ali, lhe
explicarei os meus planos. Mas desde logo posso adiantar
uma coisa: será um trabalho muito perigoso.
— Que bom! — disse Gucky com um sorriso e saltou
para o chão. — Já me chateei bastante na Terra e em Vênus.
— Você ficará admirado — disse Rhodan com um
sorriso e envolveu seus pensamentos com uma barreira,
para que Gucky não pudesse ler os mesmos. Embora ele
mesmo possuísse uma capacidade telepática muito
reduzida, já percebera a curiosidade do amigo. Chegaram à
sala de controle semicircular da cúpula e sentaram.
— Preste atenção, meu caro — principiou Rhodan. —
Você já sabe que John e Laury foram enviados para
Tolimon a fim de tirar dos aras o segredo do elixir da vida.
Conseguiram uma garrafa do líquido, mas estão em
dificuldades. Não sei o que aconteceu, mas sei que
precisam do meu auxílio. Aliás, você levou muito tempo
para chegar aqui.
O rato-castor fez a cara mais inocente do mundo.
— Betty disse que você só precisava de mim após
decorridas dez horas. Por isso voei mais devagar que a luz e
realizei apenas três transições. Não quis chegar antes da
hora.
— Quer dizer que Betty levou muito ao pé da letra a
minha indicação de que não precisava de mais de seis dias.
Não disse que preferiria que fossem quatro ou cinco. Bem,
o que passou, passou. De qualquer maneira, você está aqui.
Podemos começar.
— Começar com quê?
— Com os nossos preparativos. Vamos mascarar-nos.
Você não. É claro, pois isso não adiantaria nada. Por aqui
ninguém o conhece. Dificilmente alguém o ligará à minha
pessoa. Quanto a mim, farei o papel de arcônida, mais
precisamente, o de inspetor.
— Inspetor? — perguntou Gucky, arregalando os olhos
de espanto.
— Isso mesmo: de inspetor. Pelas mensagens do
cérebro robotizado de Árcon captadas por nossa estação
soube que o mesmo envia a espaços regulares inspetores
aos diversos mundos do Império, para verificar se está tudo
em ordem. Todo o poderio de Árcon está atrás desses
funcionários. Quer dizer que, se eu aparecer em Tolimon na
qualidade de inspetor, todas as portas se abrirão diante de
mim, e as pessoas me tributarão o devido respeito. Nos
últimos seis decênios, o prestígio dos arcônidas voltou a
crescer. Ao que parece, a raça degenerada voltou a
recuperar-se. Seja como for: você trouxe o equipamento de
que preciso para mascarar-me.
— E eu?
Rhodan exibiu um sorriso matreiro.
— Tolimon é um mundo todo especial, meu caro.
Costuma ser designado como o zoo da Galáxia. Ali
colecionam-se principalmente seres semi-inteligentes, que
já ultrapassaram a fase animalesca, mas não podem ser
considerados como inteligências plenamente desenvolvidas.
Donde se conclui que em Tolimon você despertará mais
interesse que eu.
— Eles se interessarão por mim? — chiou Gucky, que
teve um terrível pressentimento. — Quer dizer que... Essa
não! Você não poderá exigir que eu me preste a um papel
destes.
— Por que não? Para todos os efeitos, eu serei o
poderoso inspetor de Árcon, enquanto você será um ser
peludo inofensivo e de pouca inteligência, que me serve de
criado. Verá como os aras se interessarão por sua pessoa.
Você representa a peça que falta em seu zoológico. Por isso
mesmo darão menos atenção à minha pessoa.
— Está bem. Mas será que eu terei que assumir o papel
de idiota? Para falar com franqueza, não estou gostando da
ideia.
82
— Pouco importa que você goste ou não, Gucky. A
coisa é muito séria, pois não sabemos o que aconteceu com
Marshall e Laury. Talvez se encontrem em grande perigo.
Se aparecermos por lá, a atenção dos aras será desviada
deles. E você desviará sua atenção da minha pessoa. Se tem
qualquer dúvida em fazer o papel de idiota, é bom que se
lembre de uma coisa: só a criatura verdadeiramente
inteligente não se importa de parecer mais tola do que
realmente é. Já o tolo sempre quer aparentar uma
inteligência maior que a real. Isso decorre da própria
natureza das coisas.
Gucky inclinou a cabeça.
— Isso é um trecho de filosofia terrana que já conheço.
Mesmo assim, a perspectiva de fazer o papel de animal
doméstico não é nada agradável.
— Meu animal doméstico e meu criado pessoal —
completou Rhodan. — Afinal, sou um arcônida
extravagante, riquíssimo. Não seja um desmancha-prazeres,
Gucky. Se você não quiser entrar no jogo, terei de
arrepender-me de querer justamente você.
— Por que não leva Bell? Este não precisa fingir para
fazer o papel do idiota — Gucky sorriu com a lembrança,
mas seu rosto logo voltou a ficar sério. — Está bem, vamos
ao trabalho. Quando decolaremos com destino a esse
estranho planeta zoológico?
— Exatamente dentro de dez horas. É o tempo
necessário aos nossos preparativos. Ainda lhe fornecerei
instruções mais detalhadas.
— O que aconteceu com Marshall e Laury?
— Pelas últimas notícias que recebemos deles,
conseguiram uma amostra do soro e se encontram numa
situação extremamente perigosa. É só o que sabemos. É
possível que a falha seja do emissor, mas o súbito silêncio
pode ter outros motivos. Não demoraremos, a saber.
Gucky endireitou o corpo. Em seus olhos castanhos
ainda havia um restinho de recriminação, porém já
revelavam certa alegria pelo que estava por vir.
Quem sabe se a aventura afinal não seria muito
divertida...
* * *
O sinal de despertar ressoou pela cúpula de aço.
As dez horas haviam se esgotado. Rhodan e Gucky
tiveram um sono breve, mas reparador. Estava tudo
preparado. A missão “mascarada” poderia ter início.
— Os inspetores de Árcon sempre costumam voar em
iates de luxo? — indagou Gucky, alisando o pelo castanho.
— Aliás, sem o uniforme e o radiador de impulsos tenho a
sensação de estar nu.
— Um animal estúpido tem que andar nu — ponderou
Rhodan e deu uma piscadela. — E você é muito estúpido.
Nunca se esqueça disso!
— Isso é uma injustiça que clama aos céus, chefe. Você
tem de prometer que ninguém saberá das circunstâncias em
que estamos executando esta missão; especialmente Bell.
Sabe lá o que eu terei de ouvir se ele souber?
— Isso fica entre nós — tranquilizou-o Rhodan. — Até
mesmo Marshall dificilmente perceberá qualquer coisa,
pois assim que o tivermos encontrado, nosso papel
praticamente terá chegado ao fim. Tudo pronto para a
decolagem?
Gucky confirmou com um gesto distraído. Não se
fartava de contemplar Rhodan, que envergava um uniforme
dourado cheio de insígnias. A estatura esbelta de Rhodan
fazia com que o mesmo se assemelhasse com os arcônidas
das velhas famílias dominantes. O branco dos seus olhos
brilhava num tom avermelhado, graças a uma tintura de
ótima qualidade, e o cabelo branco não permitia a menor
dúvida de que se tratava de um arcônida de boa cepa.
— Tudo pronto! — chiou o rato-castor, acomodando-se
no assento do copiloto, ao lado de seu amigo e senhor. —
Por mim, podemos começar.
— É o que vamos fazer — disse Rhodan e pôs as mãos
nos controles.
A Koos-Nor, que já se encontrava fora da cúpula,
ergueu-se levemente e subiu devagar. Rhodan estudara
detidamente a planta de construção do iate, o que lhe
permitia conhecer os menores detalhes da pequena nave. A
direção da mesma era relativamente simples.
Preferiu não realizar um voo prolongado com
velocidade inferior à da luz. Ligou o compensador
estrutural e com um salto colocou a nave bem no meio da
Via Láctea. Um segundo impulso colocou-a perto de
Árcon. Uma vez chegado lá, girou-a, desligou o
compensador que o protegia da localização e saltou de volta
em direção a Tolimon.
Qualquer pessoa que acompanhasse o voo pelos
rastreadores estruturais teria a impressão de que a nau se
aproximava da estrela de Revnur, vinda de Árcon. Era
exatamente o que Rhodan pretendia. Queria que os aras
estabelecidos em Tolimon soubessem que alguém pretendia
visitá-los, mas não teriam tempo de realizar qualquer
investigação. A estrela de Revnur ficava a boa distância de
Árcon, podendo ser comparada a uma posição avançada do
Império. Era mesmo de supor que os habitantes de Tolimon
não fizessem muita questão de manter contatos com os
arcônidas, especialmente com um dos temidos e pouco
apreciados inspetores do Império.
A última transição levou a Koos-Nor diretamente para o
centro do sistema dos seis planetas da estrela de Revnur. O
abalo da estrutura espaço-temporal, provocado pela
rematerialização, não poderia deixar de ser percebido. Por
isso não era de admirar que, dentro de poucos minutos, se
fizessem ouvir os primeiros chamados nos receptores de
bordo.
Rhodan fez com que a nave deslizasse em direção a
Tolimon com velocidade ligeiramente inferior à da luz.
Dedicou sua atenção aos aparelhos de comunicação,
enquanto Gucky, encolhido na poltrona, fervilhava por
dentro, porque tinha de treinar o papel do animal estúpido
que, de forma alguma, correspondia à sua natureza.
— Forneça sua identificação! — soou a voz potente que
sobrepujou todas as outras. — Qual é o prefixo da nave?
83
— As coisas estão começando a ficar sérias —
resmungou Rhodan e ligou o transmissor.
— Aqui fala Tristol, inspetor de Árcon — anunciou
Rhodan, esforçando-se para dar à voz um tom nasal e
arrogante. — Venho por ordem do regente de Árcon, a fim
de realizar a inspeção de rotina. Forneça as coordenadas do
pouso!
De uma hora para outra, todas as mensagens cessaram.
A identificação de Rhodan devia ter sido captada e
entendida por todas as naves. Até parecia que a surpresa
estava deixando os tolimonenses sem fala. Provavelmente o
telerretrato da nave a essa hora já estava sendo enviado para
todas as estações, e a central de identificações estaria
empenhada em localizá-la e identificá-la em seus catálogos.
Talvez o nome do inspetor, Tristol, também estivesse sendo
procurado. Se fosse assim, o azar seria deles, pois o nome
fora escolhido ao acaso. Mas devia haver muitos inspetores.
— Aqui fala a central espacial de Tolimon. Licença de
pouso concedida. Pouse no campo de Trulan. Enviaremos
um raio direcional sem telecontrole. Já tomamos todos os
preparativos para recebê-lo. Fim da mensagem.
— Vou pousar — respondeu Rhodan e desligou o
transmissor. Olhou Gucky de lado, com um ligeiro sorriso
nos lábios. — Então, o que me diz? Que tal me acha no
papel de arcônida?
O rato-castor fez uma cara como se alguém lhe tivesse
roubado a última cenoura.
— Você está se saindo muito bem como arcônida. De
qualquer maneira, está muito melhor que eu no meu papel
de estúpido. Não viverei para ver chegar o fim...
— Quanto mais estúpido você for, maior será sua
expectativa de sobreviver — explicou Rhodan, deixando
que a Koos-Nor descesse em direção ao segundo planeta.
Dali a poucos minutos teriam a decisão.
Alguns dos cientistas e líderes políticos eminentes
fizeram questão de receber o inspetor no porto espacial.
Haviam descido de seus veículos e, ao se aproximarem do
iate, formavam uma procissão colorida. Como aras e
descendentes dos saltadores, eram absolutamente
humanoides; tinham o aspecto de homens assustadoramente
magros. Seus trajes diferiam bastante. Os cientistas usavam
capas longas e brancas, do mesmo tipo das que eram usadas
pelos médicos nos planetas-hospitais. Já os políticos
preferiam os uniformes e os trajes à paisana bastante
coloridos. Ao que parecia, não havia ninguém que estivesse
armado.
Uma vez diante da Koos-Nor, ficaram parados numa
atitude de expectativa.
Rhodan observara a chegada da delegação e aproveitara
a oportunidade de pedir a Gucky que observasse os
pensamentos dos tolimonenses. Não percebeu nada além de
expectativa curiosa misturada com um pouquinho de medo,
que não tinha sua origem na consciência menos tranquila,
mas na reação perfeitamente normal de um ser inteligente
que se vê diante de uma pessoa de categoria bastante
superior.
— Não faça tolices — voltou a prevenir Rhodan e deu
uma palmadinha no traseiro muito largo do rato-castor. —
Você me seguirá assim que receber meu comando mental.
Não se esqueça de que pertence à classe das chamadas
semi-inteligências.
— Você quer que eu faça o papel do tolo, mas não quer
que faça tolices — resmungou Gucky e escorregou do sofá
para baixo. — Nem mesmo uma inteligência total
conseguiria compreender o seu raciocínio. Até logo mais!
Rhodan levantou o dedo num gesto de advertência. De
uma hora para outra o sorriso alegre desapareceu de seu
rosto. Enquanto fez a escotilha externa abrir-se,
transformou-se numa máscara de arrogância. Treinara
muito bem o seu papel.
A escada foi escamoteada automaticamente e obrigou os
tolimonenses, que se haviam aproximado demais, a dar
alguns saltos para trás. Rhodan fez um gesto quase
imperceptível em direção aos rostos voltados para cima.
Desceu os poucos degraus e viu-se no solo do planeta
Tolimon, que também costumava ser designado como o zoo
galáctico.
Sem dizer uma palavra, esperava que alguém dissesse
alguma coisa.
Um oficial com o peito cheio de condecorações
adiantou-se, fez menção de executar uma mesura e disse
num arcônida impecável.
— Bem-vindo em Tolimon, inspetor Tristol. Faremos
tudo para que sua permanência em nosso mundo seja muito
agradável, para que seu dever grave e pesado não se
transforme num fardo excessivo. Permite que pergunte
quanto tempo pretende ficar?
Rhodan lançou-lhe um olhar de desprezo.
— Isso depende das circunstâncias. Segundo consta,
surgiram algumas falhas na administração do zoológico.
Como inspetor tenho a obrigação de verificar o que
aconteceu e relatar tudo ao regente.
— Deve ter havido um engano — disse o oficial em tom
assustado e empalideceu. — Nos últimos dois decênios não
recebemos qualquer queixa. Não compreendo...
Realmente não estava compreendendo, segundo
constatou Rhodan por via telepática. Admirou-se de estar
captando os pensamentos de seu interlocutor com tamanha
nitidez. Será que Gucky estava ajudando?
— Farei uma verificação — disse, interrompendo o
oficial. Com um olhar de esguelha para as outras pessoas
que se encontravam por ali, disse: — Quem é essa gente?
Por favor, não quero muita sensação.
— Para nós, qualquer desejo do senhor é uma ordem —
apressou-se em asseverar um ara muito alto e magro. —
Acreditávamos que estaríamos correspondendo aos seus
desejos ao enviar uma delegação do governo para recebê-lo.
Assim estaríamos em condições de saber quais são os seus
desejos, e logo poderíamos satisfazê-los.
Rhodan estreitou os olhos e respondeu em tom frio:
— Quando chegar a hora, os senhores conhecerão os
meus desejos. Há outra coisa que quero deixar bem clara: a
84
alguns anos-luz daqui um couraçado do regente aguarda
minhas instruções.
— O senhor não terá necessidade do mesmo — disse
um dos oficiais para agradá-lo. — Somos amigos fiéis do
Império e nada temos a recear. Permite que o levemos à sua
residência?
— Onde fica essa residência? — perguntou Rhodan em
tom arrogante.
— Na periferia da cidade de Trulan. É um palácio,
senhor...
— Não desejo nenhum palácio — disse Rhodan para
espanto da delegação. — Coloque um carro à minha
disposição, para que eu mesmo possa procurar um
alojamento. Não preciso de criado, pois trouxe o meu.
Virou-se para a escotilha e gritou:
— Gucky, venha cá!
Todos os olhares dirigiram-se para a escotilha, como se
esperassem que o regente em pessoa surgisse por lá. Mas
quem apareceu foi apenas o rato-castor, que disse com a
voz aguda:
— Quer que leve a mala, senhor?
— Naturalmente, seu animal estúpido! — respondeu
Rhodan com uma ironia insolente. — Ande depressa, para
que possa ligar a barreira automática.
Gucky desapareceu; compreendera a senha. Com alguns
movimentos da mão ativou a barreira que impediria
qualquer criatura de penetrar na nave. Além disso, o
aparelho de tele direção permaneceu em recepção. A
qualquer hora Rhodan poderia trazer a Koos-Nor para junto
de si, fosse qual fosse o lugar em que se encontrasse.
Finalmente Gucky pegou a mala pesada, aliviou a carga
por meio de sua capacidade telecinética, saiu para a escada-
passadiço e deixou-se escorregar para baixo. Atrás dele, a
escotilha fechou-se automaticamente.
— Inspetor Tristol, o senhor tem um criado bastante
estranho — atreveu-se a observar um dos cientistas. —
Nunca vimos um animal desse tipo. Ainda não o temos em
nossa coleção.
Gucky inclinou a cabeça e fez uma cara inocente e
estúpida. Era de espantar que isso lhe ficasse tão fácil.
Rhodan resolveu no seu íntimo que oportunamente o
avisaria sobre isso. Mas no momento não havia tempo para
isso.
— Vem de um planeta muito distante e completamente
isolado, que descobri por acaso em uma das minhas
viagens. Peguei um exemplar e descobri que é muito dócil.
Acredito que meu criado Gucky merece mais confiança que
qualquer outro criado, ou mesmo um robô.
— Tem alguma faculdade especial? — perguntou um
dos aras em tom curioso.
— Não, mas é muito discreto e fiel — disse Rhodan. —
Agora gostaria de receber meu carro. Amanhã poderemos
conversar.
Olhou em torno e a algumas centenas de metros de
distância descobriu um veículo. Tinha um formato estranho.
Mantinha-se equilibrado segundo o velho princípio do
giroscópio e corria sobre uma única roda situada no centro.
— Que tal aquele carro ali? — perguntou.
Um dos oficiais acenou fortemente com a cabeça e
correu em direção ao veículo estacionado. Daí a poucos
segundos, o giro parou diante de Rhodan. O oficial desceu.
— O veículo está à sua disposição, inspetor Tristol. Mas
não acha que seria preferível que um funcionário o
acompanhasse para providenciar um hotel condigno? Nesta
cidade existem muitos estabelecimentos deste tipo e sentir-
nos-emos felizes...
— Obrigado! — interrompeu Rhodan com a voz fria e
passou a mão pelos cabelos brancos, num gesto de
arrogância. — Prefiro permanecer incógnito e alojar-me no
lugar que melhor me aprouver. Amanhã entrarei em contato
com os senhores.
Cumprimentou o grupo com um ligeiro aceno de cabeça
e dirigiu-se a Gucky:
— Coloque a mala no carro. Ande logo!
Gucky ficou furioso.
“Se as coisas continuarem assim, eu quero que você vá
para o inferno”, pensou. Mas obedeceu.
Pegou a mala e colocou-a na cabine situada atrás do
assento do motorista. Depois segurou a porta do veículo,
para que Rhodan pudesse entrar. Quando viu Rhodan
sentado junto aos controles bastante simples, entrou
desajeitadamente.
Enquanto se afastavam, Rhodan procurou examinar os
pensamentos dos membros da delegação. Desta vez Gucky
funcionava oficialmente como estação retransmissora, que
reforçava os impulsos mentais. Teve uma alegre surpresa
que apenas um dos oficiais se interessava por ele.
Os demais se espantavam sobre o animal tão dócil, que
o pretenso inspetor transformara em criado.
— Gucky — disse com um sorriso de mofa para o rato-
castor, que se acomodara, muito contrariado, junto à mala,
na parte traseira do veículo. — Você tem uma carreira
bastante promissora. Há esta hora sua fama já é maior que a
minha. Se não estou enganado, os tolimonenses estarão
dispostos a pagar um ótimo preço por você. É bem possível
que consiga fazer um bom negócio.
Gucky não respondeu.
Olhou tranquilamente pela janela e, num processo
heroico de autossugestão, pensou com toda força:
“Você tem que permanecer calmo, muito calmo, meu
Gucky. Não se exalte. Rhodan não sabe o que está dizendo.
Perdoe-lhe. Fique calmo, muito calmo.”
Depois de ligeira pausa mental, tornou a pensar:
“Se eu estourar, deuses do Universo perdoem se eu
sujar este carro...”
— Chega! — disse Rhodan, que evidentemente não
poderia ter deixado de perceber os pensamentos de Gucky.
— Até agora tudo deu certo. O resto será simples, se
conseguirmos encontrar Marshall.
— Isso mesmo — dignou-se Gucky a dizer. — Se
encontrarmos...
85
Graças à sua situação periférica, o planeta Tolimon era
o ponto de partida de numerosas expedições intergalácticas,
e por isso constituía um lugar de transbordo de primeira
ordem. As fabulosas instalações do gigantesco zoológico
atraíam visitantes de outros sistemas solares, e membros de
todas as raças se haviam fixado definitivamente em Trulan,
para passar o resto da vida num dolce far niente.
Por isso mesmo a capital Trulan transformara-se num
verdadeiro cadinho, inclusive em matéria de arquitetura das
construções.
Rhodan teve dificuldade em orientar-se nessa confusão
de surpresas arquitetônicas. Orientava-se principalmente
pelos pensamentos dos transeuntes, que praticamente não
davam a menor atenção ao seu veículo. Provavelmente os
aras, que o haviam cumprimentado no porto espacial, ainda
não haviam anunciado oficialmente a sua chegada.
Rhodan bem que gostava que fosse assim.
Chegaram mesmo a pará-lo e pedir seus documentos.
Quando o policial lançou um olhar para as credenciais
muito bem imitadas e só então viu o uniforme espalhafatoso
do inspetor arcônida, por pouco não abre um buraco no
chão e some. Desculpou-se com um palavreado profuso e
ofereceu sua assistência. Rhodan afastou-o com um gesto e
voltou a colocar seu veículo em movimento. Pouco lhe
importava que naquele momento quase atropela o oficial.
Num lugar afastado da rua principal, encontraram um
hotel tranquilo, meio escondido e próximo a um parque.
Rhodan alugou dois quartos. Fez um depósito vultoso e deu
ordem para que sua permanência no hotel ficasse em
segredo. Supunha que no mesmo instante o governo
descobrisse seu paradeiro, mas isso pouco lhe importava.
Importava-se apenas que os aras supusessem que não fazia
questão de recepções oficiais, preferindo realizar suas
investigações com a maior discrição.
Uma vez no quarto, Gucky deixou cair a mala.
— Quer que lhe diga uma coisa, chefe? Para mim esse
negócio já está fedendo!
Suspirando de satisfação, Rhodan deixou-se cair numa
poltrona macia que ficava junto à janela, permitindo uma
boa visão sobre a cidade.
— Fedendo por quê? Acho que o papel lhe fica muito
bem. E eu como inspetor não me estou saindo nada mal...
— Acho que temos uma missão séria a cumprir. Onde
está Marshall? O que aconteceu com ele e Laury?
Rhodan acenou calmamente com a cabeça.
— Então? Você acredita que já teríamos chegado mais
longe se tivéssemos pousado aqui sem máscara e sem que
estivéssemos devidamente preparados? Ninguém deve
saber antes da hora que a Terra, há tanto tempo esquecida,
ainda existe. Se usássemos a força para salvar nossa gente,
toda a Galáxia ficaria sabendo. Por isso só podemos
recorrer à astúcia.
— Astúcia para cá, astúcia para lá — queixou-se Gucky
e sentou sobre a mala, pois tinha preguiça de subir na outra
poltrona. — Já estou enjoado de bancar o idiota. Afinal, sou
muito mais inteligente do que qualquer desses talismãs
poderia supor...
— Eles se chamam de tolimonenses — retificou
Rhodan.
— Está bem, está bem! — disse Gucky. — De qualquer
maneira, já constatei num desses capas-brancas do
espaçoporto a intenção de raptar-me e enfiar-me no
zoológico. Quer que me conforme com uma coisa dessas?
— Excelente! — disse Rhodan. Parecia muito satisfeito.
— Era exatamente o que eu queria. Estão começando a
interessar-se por você e a esquecer minha pessoa. Alguém
poderia ter a ideia de entrar em contato com Árcon para
colher informações sobre o inspetor Tristol. Mas isso
dificilmente acontecerá se julgarem que você é mais
importante que eu.
— Eu vou para o zoológico? — perguntou Gucky em
tom indignado, mas finalmente soltou um suspiro. — Está
bem; concordo. Mas quando vamos iniciar a busca?
— Seria preferível perguntar por onde vamos começar.
Não disponho de qualquer ponto de referência. Estavam nas
montanhas, mas é perfeitamente possível que a esta hora já
se encontrem na cidade de novo. Se o transmissor de
Marshall estiver quebrado, teremos de tentar a via
telepática. Emitiremos chamados a intervalos regulares e
concentraremos a mente para captar uma eventual resposta.
Dessa forma não poderemos deixar de localizar Marshall e
Laury.
Alguém bateu na porta. Rhodan lançou um olhar rápido
para Gucky. O rato-castor sacudiu os ombros num gesto de
resignação, saltou de cima da mala e correu em direção à
porta. Ao abri-la, fez uma mesura.
Do lado de fora, estavam dois aras.
Um deles usava os trajes nobres das classes abastadas,
enquanto outro envergava um uniforme. Assustaram-se
quando viram o rato-castor, mas quando viram a atitude
submissa de Gucky logo se controlaram.
— O que houve? — disse Rhodan com uma forte dose
de desprezo, — Quem se atreve a perturbar meu descanso
tão merecido?
Já sabia, mas evidentemente os aras nunca deveriam
saber que ele lia seus pensamentos.
— Soubemos que um inspetor de Árcon está em nosso
planeta para verificar se está tudo em ordem — principiou o
ara uniformizado e adiantou-se um passo. — Pensamos que
fosse uma boa oportunidade de denunciar algumas das
injustiças que costumam ser praticadas em Tolimon. Meu
superior, o cabo Koplad, trabalha para seu próprio bolso,
negligenciando seus deveres para com Árcon. Minha
promoção, que já está muito atrasada, vem sendo adiada
constantemente, porque todos sabem que sou amigo de
Árcon. Além disso...
— Não fiz todo o caminho de Árcon para cá para
resolver ninharias desse tipo — interrompeu-o Rhodan, que
2
86
olhava pela janela com uma expressão de tédio no rosto. —
E o senhor?
O oficial recuou perplexo e deu lugar ao outro. O
paisano bem vestido perdera parte de sua autoconfiança. Já
não parecia tão convencido da justiça de sua causa. Muito
embaraçado, ora se apoiava num pé, ora noutro.
— Senhor — principiou em tom pouco seguro.
— Então? — perguntou Rhodan com a voz impaciente.
— O assunto é importante? Seus problemas pessoais não
me interessam, e não estou disposto a imiscuir-me nos
assuntos internos de Tolimon. Fale somente se quiser
denunciar falhas políticas de muita gravidade.
O paisano sacudiu a cabeça; parecia assustado.
— Desculpe se o incomodamos senhor. O assunto não é
tão importante assim. Desejamos-lhe uma longa vida,
senhor.
Quando a porta voltou a fechar-se, Gucky sacudiu a
cabeça.
— Veja só! Tenho de fazer mesuras diante de idiotas
desse tipo, apenas porque sou seu criado. Não sobreviverei
a isso. Quem dera que já estivesse morto!
Rhodan demorou em responder. Inclinou ligeiramente a
cabeça e concentrou-se com os olhos fechados. Voltou a
abri-los e fitou o rato-castor com uma expressão séria.
— É possível que seu desejo se cumpra — disse com a
voz baixa. — Num lugar não muito distante, provavelmente
no hall do hotel, há algumas pessoas que pretendem
capturá-lo. Querem narcotizá-lo e levá-lo ao zoológico.
Estão cumprindo ordens de uma autoridade bastante
elevada. Se você oferecer resistência, ou se chegarem à
conclusão de que é uma criatura perigosa, esses homens
têm plena liberdade para matá-lo. Conforme vê, seu desejo
de uma morte rápida está a caminho da realização.
Nos minutos anteriores, Gucky concentrara-se
exclusivamente no seu papel de retransmissor, motivo por
que não percebera o atentado que se planejara contra sua
vida e liberdade.
Recuperou o tempo perdido e pôs-se a esbravejar:
— Pretendem capturar-me como se fosse um animal
selvagem! E querem fazer uma coisa dessas logo comigo, o
criado pessoal do venerando inspetor de Árcon! Não é uma
atitude incompreensível. Será que posso... será que posso
dar uma lição nesses caras, chefe? Eles merecem, não acha?
— Não há dúvida de que merecem. Mas como é que
você poderia conhecer seus planos se não fosse um
telepata? Receio que terá de esperar até que eles traiam suas
intenções. Vamos ver se conseguimos localizar Marshall.
Os domadores de animais terão que ficar para depois.
— Domadores de animais? — resmungou Gucky em
tom zangado, saltou para a cama de lençóis brancos, deitou
e cruzou os braços embaixo da nuca. — Se Bell souber
disso, nunca mais terei um minuto de descanso. Este é o
planeta da vergonha.
— Não se preocupe com os bobalhões que caíram na
nossa conversa. É preferível que me ajude a procurar
Marshall, Laury e Berceo. E, se estiverem pensando,
devemos ser capazes de captar os impulsos de seus
cérebros.
— Será que esse esquisitão chamado conde Rodrigo de
Berceo também pensa?
Por um instante, uma sombra tomou o lugar do sorriso
de Rhodan, mas finalmente este acenou lentamente com a
cabeça.
— Acredito que sim, embora receie que não pense em
outra coisa senão em nossa boa Laury. Foi justamente isso
que nos meteu na situação que estamos enfrentando.
— Está certo, está certo — filosofou Gucky. Tinha um
aspecto temível. — O amor é culpado de tudo. Nunca me
apaixonarei.
— Não sei em quem você poderia apaixonar-se —
observou Rhodan.
O rato-castor não fez mais nenhum comentário. Passou
a concentrar-se na tarefa de localizar as vibrações mentais
de Marshall.
* * *
Rhodan fechou os olhos, descontraiu-se e reclinou-se na
poltrona. Concentrou-se sobre os impulsos que estava
captando, mas logo se deu conta de que só mesmo uma
coincidência pouco provável poderia levá-los ao objetivo.
Sentiu-se como um radioamador que procura localizar o
transmissor de seu parceiro entre milhares de outros, e isso
sem qualquer código.
Era impossível calcular o número de impulsos mentais
que se contavam pelos milhares ou dezenas de milhares e,
muito mais, identificá-los.
Em compensação Gucky conseguiu descobrir outras
coisas, não menos interessantes. Os impulsos eram muito
intensos e ocupavam-se principalmente com sua pessoa.
Pela força, concluía-se que o autor dos respectivos
pensamentos já devia encontrar-se no hotel.
— Estão chegando — disse Gucky. Rhodan arregalou
os olhos de espanto, mas limitou-se a fitar o amigo de lado.
Seus pensamentos tateavam muito ao longe, sem que
tivessem encontrado o menor vestígio de Marshall ou
Laury.
— Quem está chegando?
— Ora, esses sujeitos que querem enfiar um inocente
rato-castor em seu zoológico. Farei com que voem pela
janela, mesmo que se disfarcem em funcionários do
governo.
Rhodan já estava captando os mesmos impulsos.
— Você não vai fazer nada disso, meu caro. Será que
você assume algum risco se deixar que o surpreendam?
Não! Pelo contrário; acho que isso nos poderá ser muito
útil. Talvez dessa forma você descubra alguma coisa a
respeito de Marshall. Afinal, sempre podemos permanecer
em contacto, e se surgir qualquer perigo você poderá
recorrer à teleportação. Como vê nada lhe pode acontecer.
— Nada, absolutamente nada — confessou Gucky em
tom contrariado. — Mas não é disso que se trata.
— Então, qual é o problema?
— É a vergonha que vou passar. Eu, que sou o mais
87
inteligente dos ratos-castores, tenho que ser mais tolo do
que a polícia permite. Ao menos, a polícia terrana. É
possível que por aqui as condições sejam diferentes, mas
um tolo sempre é um tolo.
— Quem consegue alguma coisa fingindo-se de tolo é
mais inteligente que as pessoas enganadas.
O rato-castor engoliu um bolo imaginário.
— Você tem um torrão de açúcar para qualquer
remédio, por mais amargo que seja — disse. — Mas quero
que me prometa que Bell nunca ficará sabendo disso.
— Já prometi — confirmou Rhodan.
— Está bem. Os aras não voarão, mas vão capturar o
idiota do rato-castor que estão seguindo. Daqui a pouco,
deverão chegar. Aliás, estão com um medo tremendo de
você.
— Não é de admirar. Estão pensando no couraçado que
posso chamar a qualquer momento. O regente robotizado
deve ter tomado medidas muito enérgicas nos últimos 56
anos. Só assim posso explicar o medo que essa gente tem
de Árcon.
— Já chegaram! — cochichou Gucky, e acrescentou por
via telepática: — E agora, senhoras e senhores, terão a
oportunidade de ver Gucky, a estrela de fama mundial, no
papel do idiota. O show vai começar.
Realmente começou.
Alguém bateu à porta. Rhodan voltou a exibir sua cara
pretensiosa de arcônida, fez um gesto preguiçoso para
Gucky e disse de maneira suficientemente alta para ser
ouvido do lado de fora.
— Gucky, dê uma olhada para ver quem se atreve desta
vez a perturbar meu sossego. Ao que tudo indica, Tolimon
é um planeta muito tumultuado, ou então estão ansiosos
para que eu inicie imediatamente as minhas investigações.
Gucky arrastou-se até a porta, fez uma cara
desavergonhadamente ingênua e abriu. A mesura que
executou foi muito esquisita. Três homens entraram no
recinto. Não deram a menor atenção ao rato-castor, embora
seus pensamentos girassem exclusivamente em torno do
mesmo. Adiantaram-se alguns passos e pararam diante de
Rhodan. Inclinaram-se num gesto de veneração.
— Pedimos muitas desculpas — disse o homem do
meio, puxando o paletó colorido numa atitude de embaraço.
— Talvez estejamos sendo importunos, mas...
— Não os chamei; logo, só podem ser importunos —
confirmou Rhodan numa tranquila arrogância, que
provavelmente teria causado pavor em qualquer dos seus
amigos. Gucky continuava a fazer mesuras, para que
ninguém pudesse ver seu rosto risonho.
— Trata-se... trata-se dum convite do governo —
prosseguiu o ara, que parecia mais assustado que
embaraçado. — Hoje será realizada uma recepção de gala
para o alto inspetor de Árcon. Queremos pedir sua
presença.
Rhodan examinou os pensamentos da pessoa que lhe
dirigira a palavra e descobriu a intenção de sequestrar
Gucky enquanto estivesse ausente do hotel. Um comando
especial de captura já estava a caminho. Reclinou-se
ligeiramente e fez como se tivesse que refletir.
— O chefe do governo também comparecerá à
recepção? — indagou.
— Naturalmente, meu senhor. Foi ele que deu a ideia, e
sentir-se-á muito honrado se o senhor quiser participar da
recepção.
— Quando será?
— Bem... naturalmente virão buscá-lo, meu senhor.
Logo após o pôr do sol.
— Muito bem. Comparecerei. E meu criado?
O ara parecia assustado.
— Seu criado? O que quer dizer com isso?
— Também está convidado?
— É claro que não. Só personalidades de categoria
elevada comparecerão à recepção. Ninguém levará seu
criado.
— Ah, sim. Nesse caso meu criado ficará no hotel.
Os três enviados conseguiram dominar-se muito bem.
Não fizeram nenhum gesto que pudesse revelar o
contentamento provocado pela decisão que Rhodan acabara
de anunciar. Em compensação, os pensamentos recônditos
deles eram dos mais triunfantes.
Gucky, que se mantinha junto à porta, parecia ter
esquecido seu triste papel. O rato-castor percebeu que tinha
de esforçar-se para manter o dente roedor sob controle e
reprimir a alegria que a brincadeira começava a causar-lhe.
Afinal, não era todos os dias que capturavam “pessoas”
para fins de internamento num zoológico. Ao que tudo
indicava, já se esquecera do aborrecimento que essa
perspectiva lhe causara dez minutos antes.
— O carro chegará pontualmente — disse o ara que se
encontrava no centro do grupo. A seguir, os enviados
retiraram-se em meio a inúmeras mesuras, lançando um
olhar guloso sobre o rato-castor.
Gucky fechou a porta e riu baixinho.
— Hi-hi, que idiotas. Já estão me vendo na sua rede.
— E você entrará na rede deles — enfatizou Rhodan. —
Não se esqueça do que combinamos. Irei à festa, mas
ficarei apenas uma hora. Usarei uma desculpa qualquer para
despedir-me e voltarei imediatamente ao hotel. Faço votos
de que até lá os seus sequestradores tenham concluído sua
tarefa com pleno êxito. Permaneceremos em contato.
Naturalmente darei pela sua falta e darei o alarma. Vejamos
o que acontece depois disso.
— O que pode acontecer? Aquela gente não saberá de
nada e procurará inventar uma desculpa.
— Em compensação acho que você ficará sabendo de
alguma coisa. Talvez você entre em contato com as mesmas
pessoas que perseguiram Marshall e talvez tenham chegado
a capturá-lo.
— Veremos — disse Gucky. — Apenas quero avisar
uma coisa. Se tentarem trancar-me numa jaula, darei o fora.
— Talvez você possa dar o fora antes disso, Gucky.
Tudo depende das circunstâncias.
— Hum — fez o rato-castor e subiu para o sofá
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baixinho que se encontrava num canto. — Veremos. De
qualquer maneira hoje você terá o mais tolo dos ratos-
castores de todo o Universo.
— Faço votos de que seja assim — disse Rhodan com
um sorriso e voltou a esforçar-se para localizar Marshall e
Laury Marten.
* * *
Depois de Rhodan ter saído, Gucky viu-se só e começou
a preparar-se para a aventura que o esperava. A rigor, não
via no acontecimento uma aventura, mas antes uma
brincadeira, no que não deixava de ter sua razão. A
expedição de captura não lhe traria maiores perigos, desde
que se mostrasse bastante submisso e estúpido.
Os primeiros impulsos surgiram menos de dez minutos
depois. O sequestro sem dúvida fora bem preparado e
estava sendo realizado com o consentimento dos escalões
mais elevados do governo, o que não era de admirar. Para
os aras estabelecidos em Tolimon não havia problema mais
importante que a obtenção de seres vivos adequados às suas
experiências. O zoológico desempenhava uma função
puramente de acessório, pois se destinava como atração e
ponto de encontro de turistas que trouxessem dinheiro.
Cinco homens exibiram suas credenciais ao dono do
hotel. Gucky seguiu a palestra com o maior interesse e
voltou a certificar-se de que a porta não estava trancada.
Subiu ao sofá e estendeu-se confortavelmente sobre o
mesmo, agindo exatamente da forma como um criado
costuma agir quando o senhor não está em casa. Ao menos
muitos criados costumavam agir dessa forma.
Fechou os olhos e fez de conta que estava dormindo.
Os cinco homens pararam diante da porta e prepararam-
se para arrombar a fechadura caso a vítima não se
dispusesse a abrir. Mas um deles fez uma tentativa e
constatou que a porta não estava trancada.
— Que animal ingênuo! — cochichou e foi entrando. —
Para mim não serviria como criado; é muito leviano e
estúpido.
“Você verá uma coisa!”, pensou Gucky e continuou a
fazer de conta que dormia profundamente. “Não tenha a
menor dúvida! Basta esperar.”
A alegria que a perspectiva lhe causava fez com que se
empenhasse ainda mais na execução do seu papel. Esperou
calmamente que os cinco homens entrassem e fez de conta
que estava acordando. Piscou os olhos castanhos, abriu-os
de vez e contemplou os intrusos com uma expressão de
espanto. Viu que um deles carregava um radiador de
impulsos, que era um artefato mortífero. Contavam com
alguma resistência. Bem, estavam enganados.
— Boa noite — disse Gucky com a voz aguda. —
Infelizmente meu senhor, o alto inspetor, saiu. Posso ser-
lhes útil em alguma coisa?
Um dos captores de animais foi à porta e saiu para o
corredor. Um instante depois voltou com uma caixa
gradeada. Um sorriso gentil brilhava em seu rosto
astucioso.
— Não queremos falar com seu amo — disse em tom
suave. Provavelmente estava interessado em captar a
confiança de Gucky. — Apenas queremos pedir que venha
conosco.
— Para onde? — perguntou Gucky com a cara mais
inocente do Universo. — Não posso sair do hotel sem
licença de meu dono.
— Seu dono já foi avisado — disse outro dos aras com
ligeira recriminação na voz. — É claro que concorda em
que você seja apresentado ao Conselho Científico de
Tolimon, que nunca teve oportunidade de examinar um
animal inteligente como você.
— Querem levar-me numa jaula? — disse Gucky,
apontando com cara de nojo para a caixa gradeada. —
Acham que sou alguma fera?
— Bem... é... é por causa do povo — gaguejou outro e
adiantou-se rapidamente, para segurar o “objeto de
experiências” tão cobiçado, pela nuca. — Não queremos
que seja molestado.
Gucky esforçou-se para não explodir. Em condições
normais, aquele sujeito desavergonhado teria sido atirado
para o teto por meio da energia telecinética. Mas nada lhe
aconteceu. Um tanto assustado e totalmente desorientado, o
rato-castor ficou agachado sobre o sofá e não ofereceu a
menor resistência quando foi levantado.
— É um lindo exemplar — disse um dos homens e
abriu a caixa. — Enfie-o logo nesta jaula, antes que mude
de ideia. O inspetor acreditará que saiu e se perdeu pela
cidade.
Um impulso bastante violento colocou Gucky no
interior da jaula, cuja porta logo se fechou. Os captores já
se sentiam seguros, e deixaram cair às máscaras.
— Vamos embora logo! — disse um deles em tom
apressado. — Quando esse arcônida voltar, não deverá
encontrar qualquer pista.
— Vocês não disseram que o inspetor está a par? —
chiou Gucky, fingindo-se de assustado. — Não acham que
estão me dispensando um tratamento bastante estranho?
— Cale a boca! — gritou um dos aras, o que
representou outra provação dura para Gucky. Seria fácil
libertar-se, mas não devia fazê-lo. Devia bancar o fraco, a
criatura incrivelmente estúpida. Como é que Rhodan foi
exigir uma coisa dessas?
Os homens cobriram a jaula com um pano preto e
saíram do quarto. Uma vez no corredor, foram andando
mais depressa, passaram pelo hall de recepção sem que
ninguém os detivesse e saíram à rua. Gucky sentiu que a
jaula foi colocada num carro com um movimento nada
suave. Poucos segundos depois, o veículo foi colocado em
movimento. Os homens não diziam mais nada, mas seus
pensamentos eram bastante reveladores para Gucky.
Foi levado ao Ministério Zoológico. Sabia que o zôo era
uma instituição estatal submetida a um ministério especial,
no qual trabalhavam principalmente médicos e cientistas.
Talvez também houvesse alguns psicólogos. Ali seria
examinado e interrogado, antes de ser levado para a área
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cercada.
Área cercada! Gucky sorriu, a fim de aplacar a cólera.
Para ele não havia o menor perigo, mas ficar bancando o
idiota... E logo Gucky, que sempre encontrara o maior
prazer em demonstrar sua superioridade às inteligências
humanoides. E agora se via obrigado...
Era de estourar!
A viagem foi bastante demorada. Pelos pensamentos de
seus acompanhantes concluiu que o museu ficava na área
periférica da cidade, onde esperavam realizar as
experiências necessárias sem que ninguém os perturbasse.
Ainda constatou que as intenções de quem concebera o
sequestro no fundo não eram más. Desconfiavam de que o
inspetor jamais cederia espontaneamente seu criado tão
engraçadinho, mas estavam loucos para trancafiar esse
exemplar raro e semi-inteligente no zoológico. Um rato-
castor que sabia falar seria uma verdadeira sensação. Talvez
conseguissem mesmo saber onde ficava o planeta de
origem desse animal tão estranho. Uma coluna dessas
criaturas seria...
Os aras se perdiam nas suas fantasias. Gucky bem que
estava satisfeito por estar oculto sob o pano negro. Só assim
ninguém via seu sorriso galhofeiro.
Ainda mostraria algo a eles. Logo que pudesse.
* * *
Para Rhodan não foi muito fácil acompanhar o
sequestro de Gucky enquanto conversava com os políticos
mais influentes de Tolimon. Não demorou muito. Logo se
despediu. Desculpou-se com o cansaço da viagem, dizendo
que precisava repousar. Uma vez que, naquela altura, o
comando de captura já se apoderara do rato-castor, não lhe
opuseram maiores dificuldades. O carro levou-o de volta ao
hotel.
Conforme o programa sentiu falta de seu criado e
perguntou ao pessoal do hotel se não o haviam visto. Mas
todos, inclusive o gerente, afirmavam de pés juntos que não
haviam notado nada de suspeito.
Rhodan aguardou mais trinta minutos; depois avisou a
polícia. Esclareceu que seu criado não costumava sair de
hotel sem permissão. Exigiu energicamente uma operação
de busca para localizar a criatura desaparecida.
A polícia prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance.
Era claro que estava mentindo; agia de comum acordo com
os sequestradores.
A seguir Rhodan deitou na cama, depois de ter trancado
a porta e colocado o radiador de impulsos portátil embaixo
do travesseiro.
Voltou a dedicar-se à tarefa, bastante difícil face à
potência reduzida de suas faculdades telepáticas, de
localizar os impulsos mentais de Marshall, sem esquecer o
contato com Gucky.
Naquele instante Gucky encontrava-se diante dos seus
examinadores.
* * *
A sala reluzia de limpeza.
As luzes ofuscantes embutidas no teto branco
iluminavam até o último canto, não permitindo que surgisse
qualquer sombra. Atrás da mesa em ferradura, estavam
sentados treze homens de capas brancas, que era o traje
profissional dos aras. Todos os olhares estavam dirigidos
para o pequeno prisioneiro, que os contemplava com o
rosto muito ingênuo. Nos fundos da sala dois homens
equipados com radiadores paralisantes mantinham-se à
espreita. Vigiavam a única saída da sala.
O homem que se encontrava no centro usava barba. Daí
concluía-se que era um mercador galáctico. Inclinou-se para
frente e lançou um olhar penetrante sobre Gucky.
— Você é o criado do inspetor de Árcon? — perguntou.
— Sou sim — piou Gucky, assustado, embora sua alma
estivesse fervendo. — Meu senhor lhes dirá o que acha do
procedimento de quem sequestra seu criado.
— Nós perguntamos e você responde! —
interromperam-no. — Onde aprendeu o arcônida? Será que
em seu planeta nativo falavam a língua do Império?
— Foi meu senhor que me ensinou.
— Quer dizer que sua língua não é esta?
— É claro que não. Costumamos comunicar-nos por
meio de uma série de assobios melódicos. Um tom
extremamente agudo, por exemplo, indica uma grande
excitação, enquanto um zumbido...
— E seu planeta nativo? — interrompeu o barbudo, que
não parecia estar muito interessado na linguagem de
assobios dos ratos-castores. — Você pode descrever a
situação do mesmo?
Gucky acenou com a cabeça; parecia muito seguro de si.
— Naturalmente. Um pouco à direita do saco de carvão.
— Heim? — o barbudo inclinou-se para a frente, com
os olhos arregalados. Seu rosto era de interrogação. — O
saco de carvão? O que vem a ser isso?
Gucky leu os pensamentos de seu interlocutor e
percebeu que os aras costumam designar as nuvens escuras
como poeira de absorção. Mas não tinha a menor intenção
de ajudá-los. Que quebrassem a cabeça para descobrir o
sentido da expressão terrana, que para eles era totalmente
desconhecida.
— Um saco de carvão — disse em tom solene — é um
saco de carvão. Será que me exprimi com suficiente
clareza?
O barbudo sacudiu a cabeça.
— Precisamos de dados mais exatos. Vamos apagar a
luz e mostraremos um mapa estelar visto de Tolimon. Você
nos mostrará onde fica seu planeta nativo.
A escuridão tomou conta da sala e a imagem reduzida,
mas exata, do céu estrelado, surgiu no teto. Muito satisfeito,
Gucky percebeu que as áreas escuras estavam fielmente
reproduzidas. Soltou um grito de triunfo e apontou para o
alto.
— Ali, o saco de carvão. É à direita do mesmo.
Quinze pares de olhos fitaram a projeção à procura do
saco de carvão, sem que soubessem o que era um saco de
90
carvão. Mas suas reflexões logo foram interrompidas por
um assobio estridente de Gucky, que soltou uma
exclamação:
— Não, é o outro! Ali à esquerda, no canto! — depois
de uma ligeira pausa: — É possível que seja o do meio. Não
sabia que existem tantos sacos de carvão.
— Provavelmente os sacos de que você fala são as
nuvens de absorção — conjeturou cautelosamente o
barbudo. — É claro que sua raça não dispõe de qualquer
treinamento científico, mas de qualquer forma vocês
possuem certo quociente intelectual.
— O que é isso? — perguntou Gucky, levantando uma
das orelhas. — Nunca me disseram que nós temos uma
coisa dessas.
Dois ou três dos aras riram às escondidas. Houve uma
ligeira pausa, que Gucky aproveitou para pensar
intensamente:
— Ei, Rhodan. Está ouvindo? Isto não é divertido a
valer?
A resposta surpreendeu Gucky.
— Deixe de palhaçadas e procure descobrir alguma
coisa a respeito de Marshall e Laury. Use de habilidade,
formulando certas perguntas...
— Como é que um idiota como eu pode usar de
habilidade...?
Rhodan não enviou nenhuma resposta, pois o barbudo
interrompeu a palestra mental.
— Como é que você foi parar em mãos dos arcônidas?
Foram buscá-lo no seu mundo?
Gucky deixou cair a orelha.
— Quem dera que eu soubesse... Faz tanto tempo!
— Quanto tempo?
As luzes voltaram a acender-se, mas a projeção do céu
noturno não desapareceu do teto. Subitamente, a voz do
barbudo demonstrou muito interesse. Gucky percebeu que
essa seria a chance de levar os pensamentos dos
inquisidores ao tema que o interessava.
— Quanto tempo? — murmurou, fitando os olhos
dirigidos para ele com uma expressão de ingenuidade. —
Devem ser algumas centenas de anos.
— Você já é tão velho?
— Velho por quê? — perguntou Gucky com um enorme
espanto na voz. — Sou um jovem, sou um rapaz, se me
permitem essa palavra. As moças de todos os mundos que o
inspetor e eu costumamos visitar...
O barbudo não estava interessado nas moças. Tinha
outros problemas.
— Será que no seu mundo todos atingem essa idade?
— Naturalmente. Vocês não chegam aos mil anos?
O barbudo respirava com dificuldade. Arregalou os
olhos para o rato-castor. Os outros aras também pareciam
muito assustados. Seus pensamentos estavam cheios de
perguntas tão diversificadas que Gucky não pôde absorvê-
los todos ao mesmo tempo. Fazia votos de que Rhodan
estivesse escutando e ajudasse.
— Mil anos...? — o barbudo esforçou-se para aparentar
calma. — Descobriram algum elixir que prolonga a vida?
Foi a vez de Gucky mostrar-se espantado.
— Um elixir? Para quê? Mil anos bastam,
especialmente para mim, que sou um simples criado.
Depois de minha morte meu senhor, o inspetor, terá de
procurar outro criado, e depois...
— O quê? — berraram dois ou três aras ao mesmo
tempo, enquanto empalideceram visivelmente. — Seu amo
também vive tanto tempo? Não é arcônida?
Gucky sentiu que quase chegara a cometer um erro.
Esforçou-se para adquirir um aspecto ainda mais estúpido.
— O que poderia ser se não isso? — perguntou em tom
ingênuo.
O barbudo não respondeu. Pensou: “Será que
anteriormente alguém veio a Tolimon e roubou o soro, tal
qual fez esse saltador que conseguiu escapar? Ou a moça
que estava com ele? Ou será que outras inteligências
realizaram pesquisas e chegaram ao mesmo resultado?”
Gucky suspirou aliviado. Era a primeira indicação
relativa à Marshall. Acontece que, ao que tudo indicava, os
próprios aras não sabiam onde o mesmo se encontrava
naquele instante. Quer dizer que toda a encenação fora
inútil. Ou será que não?
— Você, que acompanha o inspetor para todos os lados,
tem visto muita coisa nesta Galáxia — voltou a falar o
barbudo. — Vocês costumam visitar todos os mundos do
Império e, conforme diz, vêm fazendo isso há vários
séculos. Já encontraram algum mundo habitado por
humanoides cujo grau de evolução fica no nível C?
Gucky aguçou o ouvido. O mundo ao qual se referia era
a Terra! A Terra, com a classificação que lhe caberia há
duzentos ou trezentos anos. Categoria C. Foi no século
XVII que uma das naves por acaso encontrou a Terra e
raptou alguns homens, que foram trancados no zoológico,
onde ainda viviam. Apenas o conde Rodrigo de Berceo
conseguira fugir com o auxílio de Marshall.
— Humanoides do nível de evolução C? — repetiu
Gucky e parecia refletir atentamente. Depois de algum
tempo, sacudiu a cabeça. — Não; tenho certeza que nunca
encontramos um mundo destes. Por quê? Será que este
mundo existe?
Mais uma vez não obteve resposta, mas os pensamentos
dos aras revelaram o que precisava saber.
Sim, um mundo destes já existiu, há algumas centenas
de anos. Haviam-no encontrado e por uma série de
circunstâncias infelizes as coordenadas foram perdidas.
Todavia, haviam trazido quatro exemplares daquela raça
primitiva, que receberam o soro revitalizador e foram
trancados no zoológico. Um deles fugira. Malditos
saltadores! Que interesse poderiam ter naquele prisioneiro?
Seria por causa do elixir da vida? Só pensavam em
negócios...
Não houve a menor indicação sobre o lugar em que
Marshall se encontrava no momento. Os aras haviam
perdido as pistas dos fugitivos. Parecia que tinham
desaparecido da superfície de Tolimon.
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Gucky aproveitou a pausa e “chamou” Rhodan:
— Está ouvindo, chefe? Estamos bem perto, não é? Não
podemos chegar mais perto. Já posso dar o fora?
— Nada disso, meu caro! O que pensarão esses caras se
você se dissolver no ar sem mais aquela? Aguarde outra
oportunidade.
— Está bem; vou aguardar. Mas não aguardarei muito
tempo. Prefiro procurar Marshall e Laury numa série de
saltos de teleportação que cubra todo o planeta. Antes isso
que ser considerado o maior idiota do Universo. Fim. A
coisa vai continuar...
Se Gucky pensava que poderia descobrir outra coisa,
estava enganado.
— Acho que podemos dispensar o teste de inteligência
— disse o barbudo, dirigindo-se aos colegas. — Sugiro que
seja incluído na classe C. Só falta o exame médico, que fica
marcado para amanhã. Ei, guarda! Leve o prisioneiro à
jaula.
Dirigindo-se a Gucky, acrescentou:
— Aqui você será tratado muito bem.
Com estas palavras levantou-se, dando o sinal para a
debandada geral. Não deu mais um olhar sequer para o rato-
castor e parecia tê-lo esquecido por completo. Gucky viu os
dois guardas aproximarem-se e sentiu quando o seguraram
pelos braços e o levaram. Não deu a menor atenção a isso.
Ainda notava o barbudo, que o tratara com tamanho
desprezo, vendo nele apenas um animal mais evoluído.
Pensou fazendo uma reflexão: “Quem sabe se amanhã a
situação será tão favorável, se é que ainda estarei aqui.
Uma pequena lição não lhe faria mal. O importante é que a
suspeita não caia em mim.”
O que poderia fazer? Não dispunha de muito tempo.
Gucky não era nenhum hipno; não podia impor sua
vontade a ninguém. Mas dominava muito bem a telecinese,
e com ela poderia fazer alguma coisa.
Ao lado do barbudo caminhava outro ara, que
conversava animadamente com os colegas. Subitamente
enfiou a mão no bolso. Uma expressão de espanto surgiu
em seu rosto, tirou uma tesoura e cortou a longa barba
grisalha do chefe da comissão de investigações. O
movimento foi tão rápido que ninguém pôde impedi-lo,
especialmente o homem que o executara. Também o chefe
geral ficou tão perplexo ao ver a dignidade de seus anos
cair ao chão que pisou nela antes de compreender o que
havia acontecido.
Estacou repentinamente e viu o colega desavergonhado
guardar a tesoura, após o quê, começou a tremer por todo o
corpo.
— Gragnor! — berrou com uma voz terrificante o
homem que já não era barbudo. — O que é que o senhor
está pensando? Será que ficou louco? Irei...
— Misericórdia, Kluhg! — choramingou o barbeiro
improvisado, totalmente abatido, e caiu de joelhos. — Não
sei como pôde acontecer uma coisa destas. O espírito mal
deve ter segurado minha mão e...
— Quando muito o espírito mal perturbou sua
inteligência. Está dispensado. Providenciarei para que seja
devidamente punido — a mão tateou sobre os restos da
barba. — A divisão de laboratório ficará satisfeita em
receber um novo objeto de experiências...
Virou-se de repente e saiu andando, deixando para trás
Gragnor, totalmente demolido, e os outros aras, que não
cabiam em si de espanto.
Gucky deixou que o levassem; não ofereceu a menor
resistência. Ficou com os lábios cerrados. O rosto parecia o
de um pobre pecador que está sendo levado ao cadafalso
sem reconhecer a menor parcela de culpa.
A cela era um cubículo com um banco de madeira, uma
mesa frágil e uma abertura gradeada, que devia ser o fim de
um conduto de ventilação. Quando os dois guardas
trancaram a porta do lado de fora, a luz apagou-se.
Gucky suspirou e procurou localizar Rhodan; logo
descobriu os impulsos mentais do chefe. Poucos segundos
depois, materializou-se no quarto de hotel.
— Faça o que quiser, mas não voltarei àquele buraco —
disse a Rhodan, que estava mudando de roupa. — Quero
que esses idiotas quebrem a cabeça para descobrir como fiz
para fugir.
Rhodan não se perturbou. Vestiu o pijama.
— Nem quero que você volte. Descobrimos tudo que
eles sabem. Uma coisa é certa: nossos agentes não estão em
suas mãos. Marshall e Laury devem encontrar-se em algum
lugar neste planeta ou então... estão mortos. O fato de que
não conseguimos captar nenhum pensamento deles deixa-
me bastante preocupado.
— Amanhã iniciarei a busca — prometeu Gucky e
bocejou ao ver o sofá do qual os sequestradores o haviam
retirado. — Seria ridículo se não conseguíssemos descobrir
nenhuma pista.
* * *
Depois da noite tranquila e do desjejum reforçado,
Rhodan se fez anunciar às autoridades e disse que pretendia
realizar uma inspeção na administração do zoológico.
Quando o carro chegou para levar Rhodan ao centro da
cidade, Gucky deu início à busca.
Saiu do hotel e ficou passeando pela rua, vestido apenas
na sua pele natural. Trulan era um ponto de encontro de
todas as raças da Galáxia, e por isso não era de admirar que
ninguém lhe desse muita atenção. Naquela confusão de
criaturas estranhas, o rato-castor não despertava maior
atenção que a provocada por um bassê peludo numa
exposição de cães. Havia os berenícios, que eram
quadrúpedes com corpo de inseto provido de uma
blindagem formada por placas quadráticas, que
demonstravam certa predileção pelas cores vivas; os
respiradores de cloro de Gradosima, que se moviam em
trajes espaciais fechados e tratavam os transeuntes com
uma arrogância assustadora. Gucky também se encontrou
com os gatos-panteras do sistema de Sagitário; fugiu
apressadamente, pois não sabia como os mesmos reagiriam
diante de sua figura.
Os aras e os saltadores não lhe davam a menor atenção.
92
Para eles, a visão de inteligências estranhas não tinha nada
de extraordinário, e poucos deles haviam posto os olhos no
criado pessoal do inspetor.
Gucky mantinha a mente em recepção, a fim de sondar
os pensamentos de todos os seres que encontrava pelo
caminho. Encontrou muita coisa que numa situação
diferente o teria divertido bastante, mas hoje não tinha
tempo para isso. Uma única vez intrometeu-se nos assuntos
internos de Tolimon. Foi quando descobriu intenções
assassinas num ara muito robusto. O sujeito pretendia matar
a esposa. Gucky obrigou o homem, por via telecinética, a
dar uma vigorosa bofetada no oficial de patrulha mais
próximo, o que levou este a prender o ara.
Por enquanto o preso não poderia transformar suas
intenções em realidade, e quando fosse solto a raiva que
sentia pela esposa provavelmente já teria se desvanecido.
Satisfeito com a boa ação que acabara de praticar,
Gucky prosseguiu em sua caminhada.
Chegou às áreas mais pobres e começou a sentir os
pezinhos. Não tinha a menor predileção por passeios
extensos. Gostaria de teleportar-se para o telhado de uma
das casas, a fim de recuperar-se da canseira. Mas não havia
a menor dúvida de que um rato-castor voador provocaria
certo escândalo. Por isso continuou a arrastar os pés, até
encontrar lugar num restaurante.
Se Marshall dispusesse de um esconderijo na cidade,
este deveria ficar na área dos cortiços, onde seria mais fácil
mergulhar na multidão. E Marshall não poderia dispensar
um esconderijo, pois não sabia colocar-se em segurança por
meio de um salto, conforme costumava fazer Gucky.
Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas Gucky
teve sorte. Encontrou lugar junto à parede. Pediu um prato
de legumes e um suco de frutas. Só comia carne quando
alguém o obrigasse a isso.
Alguns dos frequentadores lançaram olhares curiosos
em sua direção. Já haviam visto muitas criaturas estranhas,
mas nunca se tinham deparado com um rato-castor. Gucky
respondeu com um sorriso gentil; leu apenas uma
curiosidade inocente nos pensamentos dos outros. Passou a
dedicar-se às verduras e frutas de Tolimon, que lhe
causavam um agrado extraordinário. Era outra coisa bem
diferente que as eternas cenouras, que já o deixavam
enjoado face às constantes apostas em que costumava
ganhá-las.
O sol brilhava e espalhava seus raios tépidos. Nenhuma
nuvem cobria o céu azul, que lembrava o do planeta Terra.
Por um instante Gucky esqueceu suas preocupações, até
que um incidente despertou sua atenção.
Na mesa ao lado alguns aras juntaram-se e puseram-se a
cochichar, apontando nervosamente para a rua, onde dois
transeuntes muito estranhos deviam ter despertado sua
atenção.
Gucky procurou enxergar melhor.
Eram duas criaturas de ao menos seis metros de altura,
que se pareciam com gigantescos vermes. O que mais
chamava a atenção eram as numerosas pernas, muito curtas,
sobre as quais se locomoviam à maneira das centopeias
terranas. O terço anterior do corpo estava levantado.
Possuíam cabeça de inseto e, logo abaixo da mesma, dois
vigorosos braços preênseis.
Eram froghs!
Os aras os usavam como guardas do zoológico. Se um
dos ocupantes tentasse a fuga, os froghs entravam em ação.
Usando todas as pernas, chegavam a atingir a velocidade de
duzentos quilômetros por hora. Marshall transmitira
informações a respeito desses guardas depois que ele, Laury
e o conde libertado haviam escapado à sua perseguição.
O que estariam fazendo os froghs na cidade, e logo
neste bairro mal-afamado?
Gucky levantou-se um pouco para contemplar as
estranhas inteligências mais de perto. Sabia que eram
capazes de falar. Logo, em sua mente havia pensamentos
lógicos.
Gucky “ligou” a telepatia.
Estavam à procura de três humanos. Era um saltador,
que lhes causara muitas dificuldades, uma bela mulher que
roubara um recipiente de vidro com o elixir da vida e um
prisioneiro fugido, que havia sido retirado do zoológico
pelas pessoas já referidas.
Eram Marshall, Laury e o conde!
Gucky acabara de descobrir a pista!
* * *
Tratar de qualquer assunto com as autoridades sempre é
uma coisa muito enfadonha; Rhodan descobriu isso durante
a primeira hora. O Ministério Zoológico, situado na
periferia da cidade, era uma verdadeira mina de atas e
formulários. Os registros abrangiam cada uma das regiões
em que se dividia o parque natural situado na estepe e
cercado por montanhas. Havia dados, sobre a origem, modo
de vida, hábitos e características médicas de cada ocupante
do zoológico. Também as experiências realizadas com
todos eles haviam sido registradas com a maior precisão.
Rhodan realizou um exame por amostragem e, quanto
ao mais, exibiu uma arrogância tão irritante que a raiva dos
tolimonenses por Árcon crescia a cada minuto. Estava
convencido que um eventual sucessor seu não teria vida
nada fácil no planeta. No entanto, os funcionários
mantiveram uma cortesia inalterada, embora por dentro
desejassem que o espia nojento fosse para as profundezas
do inferno.
Pelo meio-dia, fez uma pausa e pediu que o carro o
levasse à cantina dos funcionários do ministério.
Reservaram-lhe uma mesa, na qual poderia tomar sua
refeição sem que ninguém o perturbasse. E, em virtude do
caráter interestelar de Trulan, serviram-lhe uma coisa
realmente comestível.
Estava na hora de entrar em contato com Gucky.
Procurou e logo sentiu os sinais que lhe chegavam. Não era
muito fácil concentrar-se em meio aos numerosos
frequentadores da cantina, que o contemplavam com uma
expressão de respeito.
93
— Sim, Gucky, tenho o contato. O que houve?
— Encontrei a pista. Dois froghs estão à procura de
Marshall. Acreditam que se encontre na cidade. Conhecem
o lugar em que costumava permanecer.
— Onde está você?
— Na área dos cortiços. Será que Marshall já morou
aqui?
— Procure descobrir. Talvez consiga alguma indicação.
— Combinado, mestre. Como vai você?
— Obrigado. Sinto-me satisfeito por não ser um
funcionário público.
No cérebro de Rhodan, surgiu a imagem do dente
roedor de Gucky, o que significava que o mesmo se divertia
a valer. Depois disso o contato telepático cessou.
* * *
Os dois froghs deslocavam-se velozmente pelas ruas
sinuosas. Gucky teve que esforçar-se ao máximo para
segui-los no seu andar arrastado. Praguejou violentamente
porque não lhe era permitido teleportar-se. Se o fizesse, não
poderia deixar de chamar a atenção. Em todos os lugares os
transeuntes, atemorizados pela visão dos guardas do
zoológico, comprimiam-se contra as paredes dos prédios e
suspiravam aliviados depois que os froghs passavam. Ao
que tudo indicava ninguém tinha a consciência tranquila,
mas Gucky não conseguiu descobrir por que todo mundo
temia as centopeias. Talvez o simples aspecto dos froghs
incomodasse as pessoas.
Subitamente os froghs pararam.
Gucky não entendia sua língua, mas podia ler seus
pensamentos, que não dependiam da linguagem. Por isso
conseguiu acompanhar a conversa que se desenrolava do
outro lado da rua.
— Se nossas informações são corretas, deve ser por
aqui.
— Vamos dar uma olhada e perguntar aos moradores
dos prédios. Talvez um deles tenha visto os três.
— Está bem. Começarei por esta coisa. Você pode
pegar o outro lado.
Separaram-se.
Gucky parou. Seus pelos arrepiaram-se quando um dos
froghs atravessou a rua estreita, lançou-lhe um ligeiro olhar
desconfiado e desapareceu num dos prédios, para iniciar a
busca.
Deviam ter encontrado uma pista de Marshall, embora
Gucky tivesse certeza de que o Chefe dos mutantes não se
encontrava nas proximidades, pois do contrário teria
captado seus impulsos mentais. Provavelmente a pista que
os froghs estavam seguindo era falsa.
Mas, por que não realizar as investigações por sua
própria conta?
Não hesitou. Desmaterializou-se, pois esperava que os
poucos transeuntes estivessem ocupados em observar os
froghs e por isso não lhe dariam a menor atenção.
Concentrou-se num trajeto reduzido e viu-se num quarto
escassamente mobiliado, bem às costas de uma mulher
pobremente vestida, que mexia numa panela.
Deu outro salto, subindo mais um andar.
Nada.
Depois de ter dado vinte saltos, acabou num depósito
desabitado. Aproveitou a oportunidade para descansar um
pouco. Evidentemente aquela busca ao acaso não passava
de absurdo rematado. Mas Marshall e a moça ainda há
pouco deviam ter morado numa casa situada naquela rua, a
não ser que os froghs fossem uns idiotas.
Gucky suspirou e deu outro salto.
Uma hora depois, materializou-se numa mansarda
situada no décimo quinto andar. Estava vazia e, ao que tudo
indicava, ninguém morava ali, pois o armário estava aberto
e nele não havia qualquer peça de roupa. A cama
desarrumada não tinha lençóis. Do outro lado ainda havia
dois sofás. Parecia que tinham sido colocados no quarto
depois dos outros móveis. Gucky sentiu um cheiro familiar.
Gucky lançou os olhos em torno e já ia retirar-se,
quando subitamente estacou.
Sobre uma penteadeira rústica havia um copo quebrado.
Ao lado deste, havia um vidrinho.
Os olhos de Gucky estreitaram-se quando caminhou em
direção à penteadeira, segurou o vidrinho entre as patas e o
cheirou. Faltava-lhe a tampa, mas ainda se via um
pouquinho de líquido amarelo no fundo.
Gucky farejou, silvou satisfeito, hesitou um instante, e
derramou os pingos que ainda havia no vidro sobre o peito
peludo. Voltou a colocar o vidro sobre a penteadeira,
refletiu mais um pouco e foi à janela. Sorriu e atirou-o para
fora.
O vidro não caiu verticalmente para a rua. Foi atingido
pelos fluxos de energia telecinética que o arrastaram em
direção ao céu azul. Subiu tão alto que Gucky não o via
mais. Só depois disso recuou da janela.
Sabia que o vidrinho não resistiria à queda. Ninguém
conseguiria identificar os fragmentos, ainda mais que o
vidro não continha nenhuma indicação de procedência.
— Essas mulheres levianas! — chilreou em tom
contrariado. Refestelou-se com o perfume do pelo de seu
peito e revirou os olhos de prazer. — Não há a menor
dúvida: é o perfume predileto de Laury. Foi muita gentileza
sua deixar essa lembrança para mim. Quer dizer que
moraram aqui.
Começou a revistar o quarto.
Só se sobressaltou quando os impulsos mentais se
tornaram mais nítidos. Alguém subia pela escada. E agora
rastejava pelo corredor e parava diante da porta.
Seria Marshall?
Não, não era Marshall. Era um frogh. Gucky ainda
reconheceu a identidade do ser, que se encontrava lá fora,
em tempo de dar um salto e colocar-se em segurança. A
porta aberta do armário escondia-o dos olhares do monstro,
que foi entrando bem devagar enquanto lançava os olhos
traiçoeiros em torno.
Gucky olhou cautelosamente por trás da porta e
estremeceu. Não era possível. Como é que a natureza tão
94
bondosa podia criar um monstro daqueles? Em comparação
com ele, os horríveis porcos rastejantes de Vênus eram
criaturas verdadeiramente adoráveis. O Universo estava
cheio de seres dos mais estranhos. Todavia, o frogh, além
do mais, para usarmos uma expressão suave, possuía uma
expressão pouco amistosa. E isso o tornava muito
antipático.
Acontece que Gucky não gostava nem um pouco das
criaturas antipáticas de sua época. E, para dar uma
demonstração evidente dessa aversão, muitas vezes
esquecia a cautela que devia guardar.
Esperou que o frogh fechasse a porta. Depois, saiu de
trás do armário e perguntou em tom gentil:
— Está procurando alguma coisa?
O frogh virou-se abruptamente. Por pouco o movimento
não o faz perder o equilíbrio. Arregalou os olhos e abriu as
garras, fitando a aparição inesperada como se fosse um
fantasma. Ao que tudo indicava, não sabia o que fazer com
o rato-castor, embora no zoológico já tivesse tido
oportunidade de sobra para conhecer semi-inteligências dos
tipos mais variados.
— O que... quem...? — balbuciou numa língua que
Gucky só compreendeu em virtude de sua capacidade
telepática.
— Quero saber o que está fazendo aqui. — repetiu
Gucky, utilizando-se da língua arcônida, que todos
compreendiam. — Isto aqui é minha residência.
Ao que parecia, o frogh estava recuperando o
autocontrole.
— Venho por ordem do governo — anunciou. —
Recentemente um saltador ocupou este quarto?
— Quem foi que lhe meteu isso na cabeça? E quem é o
senhor?
O verme-inseto fez uma cara tão espantada que Gucky
soltou uma gostosa gargalhada. Isso parecia provocar ainda
mais a fúria daquela criatura sem senso de humor. Soltou
um chiado e avançou para o rato-castor, estendendo os
braços preênseis como se quisesse estrangulá-lo.
— Eu sou um frogh, seu bicho nojento. Se não estou
muito enganado, seu lugar é no zoológico. Não permitirei
que fique em liberdade. Vou levá-lo.
— Mantenha distância! — advertiu Gucky e recuou um
passo, para não entrar em contato com aquela massa
horrível. — Quanto ao zoológico, você vai sofrer uma
decepção. É verdade que não temos muita intimidade, mas
podemos continuar a tratar-nos por você. Mais uma coisa.
Faça o favor de responder às minhas perguntas, sua
chaminé ambulante.
Ao que parecia, o frogh estava acostumado a ser tratado
com mais respeito e temor. Dificilmente compreenderia que
alguém pudesse adotar um comportamento desses em sua
presença. Respirava com dificuldade.
— Você vai se arrepender, seu bicho nojento! — ao que
parecia era este seu insulto predileto. — Ainda hoje será
apresentado à administração do zoológico. Sabe o que
acontecerá depois disso?
— Isso não me interessa nem um pouco — respondeu
Gucky sem abalar-se. — Se você não responder
imediatamente às minhas perguntas, eu o atiro contra a
parede e depois o farei voar pela janela.
O frogh começou a tremer por todo o corpo, e havia
muita massa para tremer. O verme enchia quase todo o
quarto. Com um grande interesse, Gucky percebeu que o
corpo em forma de cobra começou a adquirir uma
tonalidade rosada. Aquela devia ser a cor da pele de um
jovem tenente no momento em que o recruta lhe recomenda
que ele mesmo engraxe suas botas.
— Seu miserável! — chiou o furioso guardador do
zoológico. — Você se atreve...
— Você está atrás de um saltador — prosseguiu Gucky
sem demonstrar o menor respeito. — Por que justamente
aqui? Responda, senão você vai ver o que é bom.
O rato-castor estava percebendo a impaciência do verme
gigante. Além disso, sentiu que a essa altura não poderia
recuar. O frogh teria que ser eliminado de qualquer
maneira. Antes devia fazê-lo contar o que sabia.
— O saltador? — perguntou o frogh. — O que sabe a
respeito do saltador que estou procurando?
— Quem faz perguntas sou eu! Entendido? Quem lhe
deu esta pista?
O frogh não estava disposto a revelar seu segredo, mas
felizmente pensou no caso. Para Gucky, isso foi suficiente.
— Ah, então é isso! — disse em tom tranquilo. — Foi
outro saltador que lhes contou. Vocês o torturaram?
Morreu? Vocês são assassinos! Acontece que ele lhes
contou uma mentira, pois neste quarto não há ninguém a
não ser eu.
O frogh lançou um olhar de pavor sobre o rato-castor,
que estava extraindo os pensamentos de sua mente. Seus
impulsos mentais tornaram-se cada vez mais confusos, até
convergirem na intenção de apoderar-se do inimigo
medonho que tinha diante de si.
O frogh deu um passo rápido para frente e estendeu o
braço em direção a Gucky. Não soube exatamente o que lhe
aconteceu, mas sentiu-se atingido por uma força invisível
que o atirou contra a penteadeira. Caiu ao chão, mas logo
voltou a levantar-se.
Mais uma vez precipitou-se sobre Gucky, mas ao que
tudo indicava o rato-castor já estava cansado da discussão.
Engajou toda a energia telecinética de que dispunha,
levantou o frogh deixando-o suspenso no centro do quarto.
A centopeia apavorada começou a emitir silvos agudos,
enquanto seu corpo adquiriu uma cor violeta. As inúmeras
pernas balançavam desesperadamente no ar, à procura de
apoio.
Mas o susto ainda aumentou quando se viu planar em
direção à janela, que se abriu como que pela mão de um
fantasma. Lá embaixo ficavam as pedras duras do
calçamento.
Gucky não perdeu mais tempo. Sabia tudo que o frogh
sabia, e o guardador implacável do zoológico fazia por
merecer a morte. Marshall estava com os agentes dos
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saltadores, que haviam instalado uma central secreta em
Tolimon. Ali se encontrava relativamente seguro.
O frogh passou pela janela, por mais que se esforçasse
para segurar-se no peitoril.
E foi assim que os habitantes do bairro pobre de Trulan
tiveram oportunidade de presenciar um espetáculo
inacreditável. Viram um frogh voador. Aquela criatura
detestada saiu planando elegantemente da janela da
mansarda, descreveu uma ou duas piruetas perfeitas, subiu
verticalmente até chegar aos trezentos metros de altura. Por
fim, caiu na vertical.
A queda provocou a sensação que era de esperar,
embora o mistério da centopeia voadora nunca tivesse sido
solucionado.
Enquanto ocorria o acidente, Gucky saltava para o
quarto do hotel, onde esperou por Rhodan, que já fora
informado telepaticamente sobre os acontecimentos.
O círculo em torno de Marshall e seus companheiros
fechavam-se cada vez mais.
Era só uma questão de tempo, e seriam encontrados.
Gucky esticou-se sobre a cama e fechou os olhos.
Subitamente ele foi atingido por um impulso mental,
claro e intenso, que lhe martelava a consciência,
despertando-o num instante.
Era um impulso que estava chegando com uma força
extraordinária:
— Pelas nebulosas da Galáxia! Se Rhodan não aparecer
logo, essa gente ainda acaba tirando minha última camisa...!
Gucky assobiou uma melodia desafinada e entrou em
contato com Marshall.
A sala estava mergulhada na penumbra. A única luz
provinha de uma lâmpada muito fraca e de alguns raios de
sol que penetravam obliquamente pela pequena janela
gradeada.
Cinco pessoas estavam reunidas em torno da tosca mesa
de madeira. Ao que tudo indicava, formavam dois grupos
distintos, pois os dois homens robustos e barbudos estavam
sentados lado a lado e contemplavam os três restantes com
uma expressão pouco amistosa.
John Marshall leu os pensamentos dos saltadores
barbudos e sabia que dali em diante a sociedade não seria
mais tão fácil e barata. A alma dos mercadores galácticos
despertara nos aliados, e para ela até mesmo a amizade não
passava de um negócio.
Ao lado de John, via-se Laury Marten, uma moça de
vinte e três anos que era filha dos mutantes Arme Sloane e
Ralf Marten. Herdara dos pais o dom da telepatia, mas,
além disso, era uma desintegradora. Graças às suas energias
mentais podia modificar a estrutura molecular da matéria
sólida, o que lhe permitia atravessar muralhas e paredes. A
descendência japonesa do pai deixara vestígios em seu
rosto. E foram justamente os olhos em forma de amêndoa
que tanto cativaram o conde Rodrigo de Berceo.
Rodrigo era filho de uma princesa asteca e de um
membro da nobreza espanhola. Fazia quase trezentos anos
que vivia no zoológico de Tolimon. No século XVII fora
sequestrado com mais três homens terrenos por uma nave
espacial. O misterioso elixir da vida conferira-lhe a
imortalidade. Sua figura imponente não poderia deixar de
impressionar Laury. Até um cego não deixaria de ver que
os dois estavam apaixonados. E foi graças a isso que
Rodrigo conseguiu fugir do zoológico.
Não havia dúvida de que sua vestimenta era um tanto
estranha. A costureira do zoológico a fizera como uma
réplica exata das roupagens do século XVII. As botas de
cano revirado que iam até os quadris escondiam as calças
justas, enquanto um cinto largo cingia o colete curto e sem
mangas. A gola larga da camisa cobria a parte superior da
jaqueta com suas rendas. Carregava constantemente a
bainha com a espada bem afiada. O chapéu de aba larga
com o penacho balouçante descansava no colo. Sobre o
colete brilhava uma corrente de ouro com o amuleto do
deus do sol dos astecas.
Ninguém convencia Rodrigo de desistir de suas
vestimentas estranhas e da arma branca. Isso já havia dado
origem a complicações, pois o conde era um homem
corajoso e esquentado, que sabia prezar a honra e a altivez.
Estava acariciando a mão de Laury.
— Tenha calma, meu amor, mostraremos uma coisa a
eles. Conseguimos livrar-nos dos froghs e também
saberemos enfrentar essas almas de mercadores.
Marshall lançou-lhe um olhar de advertência. Sentia-se
arrasado. A espera por qualquer notícia de Rhodan era
interminável, e a ideia dos perigos que constantemente o
espreitavam desgastava suas energias. A partir do momento
em que haviam abandonado seu alojamento no bairro pobre
da cidade nunca mais se sentira seguro. O pior era que,
conforme revelava a palestra que estavam mantendo, já não
podiam confiar nos saltadores.
Fez um gesto para o mais idoso dos saltadores.
— Está bem, Berzan, podemos conversar sobre a oferta
que você acaba de formular. Vocês estão metidos na mesma
enrascada que nós, e por isso temos uma base para
negociar. Se nos entregarem às autoridades, vocês trairão a
si mesmos. Isso não resolveria nada, nem para vocês, nem
para nós. Os aras são inimigos nossos e de vocês. Vocês
querem dinheiro para continuar a ajudar-nos. Acontece que
não temos dinheiro. Mas dentro de poucos dias, poderemos
dar-lhes mais do que vocês conseguiriam gastar, mesmo
que vivessem mais cem anos.
Berzan, um velho de barba grisalha, piscou os olhos
astuciosos.
— Onde é que vocês vão arranjar esse dinheiro? —
indagou. — Quem me garante que não estão mentindo?
Tulin e Egmon já nos preveniram. Dizem que vocês sabem
ler pensamentos.
— Quer afirmar que eu sou um telepata? Isso é ridículo!
3
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Se fosse, já saberia há tempo da traição que estão
planejando. Nesse caso teria vindo até aqui para pedir
auxílio? Não, Berzan, a informação de seus amigos é um
absurdo.
— Foi o que eu lhes disse, meu caro. Mas, seja como
for, pedimos um pagamento mais condigno, pois
correremos um grande perigo se lhes dermos proteção.
Metade do planeta está atrás de vocês. A polícia segue
todas as pistas. É bem possível que uma delas os traga até
aqui, e se isso acontecer o trabalho de algumas décadas terá
sido em vão.
— Se aparecerem, vocês poderão contar com nosso
auxílio — disse Marshall, mas sabia perfeitamente que as
preocupações do saltador eram totalmente justificadas. —
Dentro de mais alguns dias ficarão livres de nós.
O mais jovem dos dois saltadores inclinou-se para frente
e fitou Marshall.
— Para onde pretendem ir? E quem lhes arranjará o
dinheiro de uma hora para outra?
Marshall leu os pensamentos de Rodrigo: a impaciência
crescia a cada segundo que passava. Não demoraria muito,
e o conde impetuoso saltaria sobre os dois chantagistas de
espada em punho. E isso não poderia acabar bem para ele,
pois os saltadores estavam armados com radiadores de
impulsos.
— Faran, vocês terão de satisfazer-se com o fato de que
ficaremos aqui até a chegada de nosso elemento de ligação,
que trará o dinheiro. Tenham mais um pouco de paciência
— virando-se para o conde, disse: — Você também,
Rodrigo.
Os dois homens já eram bons amigos, e costumavam
deixar de lado todo e qualquer formalismo. E o conde
conhecia os dons telepáticos de Marshall e Laury. Por isso
tirou a mão da espada, acenou lentamente com a cabeça e,
usando o espanhol, por cautela disse:
— Bem que gostaria de espetá-los, mas se você preferir,
não ponho a mão neles.
— O que é que ele está dizendo? — perguntou Berzan
em tom desconfiado.
— Ele acredita que nosso elemento de ligação deve
aparecer ainda hoje.
— Tomara — resmungou Berzan e levantou os olhos
para a janela. — Vamos sair, mas não pense em tolices. A
casa está muito bem vigiada. Qualquer tentativa de fuga
seria inútil, pois alarmaríamos imediatamente a polícia de
Trulan. Dispomos de outros esconderijos além deste, e por
isso não encontrariam nossa pista. Mas não deixariam de
pegar vocês.
Levantou-se juntamente com Faran e saiu da sala. A
porta fechou-se com um baque. Uma chave pesada girou na
fechadura.
Estavam sós.
— Pelos deuses do sol de minha mãe! — disse Rodrigo,
tremendo por todo o corpo. — Por que não damos uma
lição a esses gananciosos ladrões estelares?
— Porque temos de ser mais inteligentes que eles —
preveniu Marshall, dando alguns passos pela sala. — Quem
dera que soubesse em que área de Trulan nos encontramos.
Trouxeram-nos para cá no meio da noite.
— Pelo que sei, estamos num subúrbio — interveio
Laury, que até então se mantivera calada. Segurou a mão
fina do conde e lançou-lhe um olhar de ternura. — Para nós
não importa o lugar em que estejamos. Até aqui podemos
ser felizes, não é mesmo?
Marshall parou abruptamente.
— Laury! — disse em tom áspero. — Não tenho nada
contra sua felicidade, mas, antes de qualquer coisa, temos
de entregar o soro a Rhodan. A paixão de vocês roubou-nos
todas as chances de conseguir a fórmula do elixir.
— Em compensação temos uma amostra do soro
maravilhoso — respondeu a moça, enrubescendo e batendo
levemente no cinto do uniforme. — É verdade que é apenas
um pequeno frasco, mas não deixa de ser uma amostra. É
bem possível que nossos cientistas consigam analisá-la.
— Se conseguirmos chegar a eles com a amostra —
objetou Marshall. De repente mudou de assunto. — Por que
não recebemos nenhuma notícia de Rhodan? Não
compreendo.
— Até agora quase não tivemos oportunidade de emitir
impulsos mentais mais intensos, John. Quase nunca ficamos
a sós e constantemente tivemos de fugir. Nossos impulsos
mergulham no oceano de outros, emitidos pelos habitantes
de Trulan. Além disso, a capacidade telepática de Rhodan é
pouco intensa. Se pensarmos com maior concentração,
talvez consigamos estabelecer contato. Rhodan já deve
estar em Tolimon. Afinal, oito dias se passaram desde
nosso último pedido de socorro — concluiu Laury.
— Isso mesmo. A seguir, o transmissor entrou em pane
— disse Marshall em tom amargo. — Vamos aproveitar o
tempo para chamar Rhodan. Talvez tenhamos sorte.
Quando os saltadores voltarem, será tarde. Nem de noite
nos deixam em paz.
— É verdade! — suspirou Rodrigo em tom amargurado
e estreitou Laury ao seu corpo.
Seus lábios encontraram-se num beijo fugaz. Marshall
praguejou e voltou-se discretamente, dizendo:
— Rodrigo, quem sabe se você não quer ter a gentileza
de deixar Laury em paz por um instante? Ela deve
concentrar-se, a não ser que queiramos passar o resto dos
nossos dias neste buraco. Mesmo que Rhodan fique dia e
noite na “escuta”, para receber nossos impulsos, ele nunca
conseguirá captá-los se estes não o atingirem em feixes
compactos. Terá de identificar nossos impulsos em meio a
milhares, e isso nunca será possível se não nos
concentrarmos nele. Nem mesmo Gucky conseguiria, se
estivesse aqui. Infelizmente não está.
Laury desprendeu-se suavemente dos braços do homem
amado.
— Ele tem razão, Rod. Nosso amor pode ficar para
depois. O que importa no momento é nossa segurança e a
entrega do soro. Se não o conseguirmos, tudo que fizemos
terá sido em vão.
97
Marshall virou-se.
— A senhora é uma mocinha muito sensata. Isso me dá
novas esperanças.
Rodrigo levantou-se e franziu a testa.
— Se você não fosse meu amigo, John, eu deveria ficar
zangado com você. Mas reconheço que devemos dar
atenção antes de tudo à nossa tarefa. O que vou fazer
enquanto vocês estiverem telepatizando?
Marshall suspirou aliviado e sorriu.
— Nada, Rod. Sente naquela cama e fique refletindo. Se
preferir pode dormir. Laury e eu pensaremos na nossa
situação, com o máximo de concentração e em todas as
direções. Quem dera que soubéssemos em que área de
Trulan nos encontramos! Isso facilitaria nosso trabalho.
O conde sentou cerimoniosamente. A espada impedia-
lhe os movimentos, mas não sabia separar-se da arma.
— Vou dormir, pois estou cansado. Acordem-me assim
que haja alguma novidade.
Estendeu-se sobre a cama. Logo se ouviram seus roncos
regulares.
Marshall e Laury concentraram-se na tarefa.
* * *
Rhodan dispensou o carro e foi imediatamente ao hotel.
Ainda encontrou Gucky.
— Já estava na hora de você chegar — disse este. —
Marshall está aguardando auxílio de nossa parte. Já
conheço a direção; é claro que não tenho meios de avaliar a
distância. Terei de saltar.
— Isso seria muito perigoso — respondeu Rhodan. —
Também consegui estabelecer contato e prometi que
apareceríamos dentro em breve. Tive muito trabalho para
recusar o convite do presidente para uma visita ao
zoológico. Pretendia ir até lá hoje de noite, para que
dispuséssemos de todo o dia de amanhã para a inspeção.
Quase chego a ter a impressão de que querem fazer amizade
com o pretenso inspetor. Ao que tudo indica, não estão com
a consciência muito tranquila.
— Como poderíamos encontrar Marshall se eu não
saltar? — perguntou Gucky sem responder às palavras de
Rhodan. — Terei que teleportar-me. No momento em que
os impulsos chegarem, só precisaremos examinar a última
parte do trajeto.
— E eu? Vou ficar no hotel?
— É claro que sim.
O rosto de Rhodan assumiu uma expressão séria no
momento em que disse:
— Meu caro, receio que você não esteja avaliando
corretamente a situação. É verdade que cheguei aqui com
um disfarce excelente, e até agora ninguém desconfia de
nada. Mas tive oportunidade de ouvir a conversa de dois
oficiais. O governo de Tolimon dirigiu uma consulta oficial
para Árcon, a fim de descobrir se o inspetor Tristol
realmente existe. Acho que não preciso explicar o que isso
significa.
Também Gucky tornou-se muito sério.
— A resposta já chegou?
— É claro que não. O registrador de Árcon não
funciona com tanta rapidez, mas tenho certeza de que o
regente robotizado já deve ter percebido alguma coisa. Não
podemos demorar muito em dar o fora. Por isso prefiro
acompanhá-lo.
— Vamos tentar os saltos de teleportação em conjunto?
— É claro que não. Tomarei um táxi, de preferência um
dos veículos aéreos mais rápidos, e seguirei suas etapas de
deslocamento. Permaneceremos em contato; quanto a
Marshall, basta que ele continue a pensar normalmente.
Agora não o perderemos mais. Talvez acreditem que vou
realizar uma inspeção durante a qual prefiro permanecer
incógnito. Ninguém se atreverá a impedir-me.
Gucky suspirou e escorregou para fora da cama.
— Marshall, está ouvindo? — pensou. — Avançaremos
na sua direção. Continue a pensar. Para mim é indiferente
que pense em salsichas bem quentinhas ou em cenouras. Se
preferirem podem contar piadas. O que importa é que
continuem acordados. Entendido?
— Entendido! — foi à resposta que veio duplicada.
Laury também estava pensando. — Apressem-se. Estão
trazendo dinheiro para dar aos saltadores?
O pelo da nuca de Gucky arrepiou-se.
— Dinheiro para esses gatunos?
Rhodan resolveu intervir.
— Distraia os saltadores até que nós nos encontremos
com vocês. Saberei lidar com essa gente.
Gucky deu de ombros e colocou seu uniforme na mala
de Rhodan.
— Você e sua política de pacificação. Ela ainda lhe
trará muitos problemas.
— Não trará mais problemas que sua predileção pelas
demonstrações de capacidade que você gosta de realizar no
lugar errado. Sugiro que você nem apareça enquanto
estivermos negociando com os agentes dos saltadores.
Afinal, certo rato-castor já penetrou na consciência dos
saltadores de forma pouco agradável. Não estou interessado
em reavivar a lembrança dessa aparição.
— Isso não passa de uma vingança mesquinha —
indignou-se Gucky. — Depois de fazer o papel de idiota
por tanto tempo ainda tenho que manter-me de lado quando
nossos amigos vão ser libertados. O que é que miss Laury
vai pensar de mim? E mesmo esse conde esquisito que foi
libertado do zoológico? Nada disso; irei com você.
Rhodan ergueu as sobrancelhas, num gesto de espanto.
— Você é um sujeito muito decidido, pequenino. Você
quer colocar todo o grupo em perigo?
— Isso não! Mas se minha aparição não despertou
nenhuma lembrança entre os aras, isso provavelmente
também não deverá acontecer com os saltadores, que por
certo nunca ouviram falar do planeta Terra ou de Gucky.
Acho que sua precaução é exagerada.
Rhodan era homem de não recuar em suas decisões, mas
sabia ceder vez ou outra diante de um argumento mais
forte. Para que deixar Gucky ainda mais aborrecido?
98
Provavelmente o rato-castor estava com a razão: ninguém
se lembraria de sua figura. Já fazia muito tempo.
Concordou com um aceno de cabeça.
— Está bem, Gucky. Você ganhou. Trabalharemos em
conjunto.
O rato-castor não demonstrou sua satisfação; era muito
inteligente para isso. Limitou-se a esboçar um sorriso alegre
e ajudou seu chefe a fazer a mala, exibindo logo o rosto do
servo fiel.
— Oh, meu chefe e senhor — chiou em tom teatral,
inclinando-se até quase tocar o chão com a cabeça. — Quer
que carregue as malas para fora, ou prefere que as teleporte
até nossa boa nave Koos-Nor?
— Pode teleportar, verme miserável — respondeu
Rhodan no mesmo tom teatral e esperou que Gucky
desaparecesse juntamente com a mala. Aproveitou o tempo
para examinar os instrumentos de controle remoto, que
trazia no bolso. Ainda não desconfiava da importância que
os mesmos viriam a desempenhar ainda antes do pôr do sol.
Gucky voltou e informou:
— Tudo em ordem a bordo. A nave permanece no
espaçoporto, sem que ninguém a tocasse ou a molestasse.
Apenas notei alguns cruzadores ligeiros, que se postaram
discretamente nas proximidades.
— É estranho — murmurou Perry Rhodan. —
Realmente, é muito estranho. Não é possível que já tenham
recebido notícias de Árcon. Se tiverem, ainda deverão estar
na suposição de que existe um inspetor chamado Tristol.
Não demonstrarão abertamente sua desconfiança.
— E se demonstrarem? — resmungou Gucky cheio de
impaciência. — O que estamos esperando? Quero conhecer
o tal do conde Rodi... ri... rigo.
— Rodrigo — corrigiu Rhodan. — É um membro da
velha nobreza espanhola do século dezessete. Na sua época,
era um homem bastante conhecido. Mas é bom que tenha
cuidado. O sujeito é muito esquentado e talvez chegue
mesmo a ser um pouco supersticioso. Não brinque com ele.
Em sua era, um nobre vingava qualquer ofensa com um
duelo mortal. E tenho lá minhas dúvidas quanto suas
habilidades no manejo da espada.
— Por que está falando em ofensa? — perguntou Gucky
perplexo. — Nem pensei em ofendê-lo, apenas pretendo
mexer um pouco com ele...
— Pois terá uma surpresa — profetizou Rhodan e
caminhou em direção à porta. — Vamos embora; não temos
tempo a perder. Dentro de três ou quatro horas estará
escuro, e até lá precisamos encontrá-lo.
— Pode ficar tranquilo! — disse Gucky com um sorriso
e caminhou atrás do seu senhor.
Uma vez no corredor, voltou a transformar-se no criado
submisso. Com uma cara ingênua e estúpida, esforçou-se
para acompanhar Rhodan, o que só conseguiu em parte.
Gucky só recuperou a desvantagem porque Rhodan pediu
um táxi aéreo, o que o fez esperar na rua.
— Você bem que poderia andar um pouco mais devagar
— fungou o rato-castor, quando se viu diante do hotel, ao
lado de Rhodan. Um veículo de cabine desceu
silenciosamente sobre o gramado muito bem tratado. — Da
próxima vez, vou-me teleportar e farei com que você corra
atrás de mim.
— Não se atreva a fazer uma coisa dessas — preveniu-o
Rhodan e entrou na cabine. Gucky seguiu-o. O piloto
assustou-se quando viu o uniforme do inspetor e por pouco
não afunda embaixo do painel de controle de seu veículo
aéreo.
— E agora faça o favor de calar a boca e comportar-se
como um criado submisso, pois do contrário esta será a
última vez em que trabalhamos juntos.
A ameaça telepática deixou Gucky tão assustado que o
rato-castor se recolheu silenciosamente no assento traseiro e
bloqueou seus pensamentos. Rhodan desconfiava de que os
mesmos não seriam muito lisonjeiros para sua pessoa, mas
no momento isso não importava nem um pouco. Era
necessário dar uma ducha fria na petulância de Gucky.
— Voe devagar e exatamente na direção norte —
ordenou ao piloto junto ao qual se sentara. — Só modifique
a rota quando eu mandar. Não voe muito alto. Quero
examinar a cidade com toda a calma.
— Farei o que ordenar, venerando inspetor.
Rhodan não respondeu. Olhou para a frente, enquanto a
nave subia a cinquenta metros de altura. Nessa altitude, não
havia nenhuma torre ou arranha-céu, motivo por que não
existia o risco de colisão.
Os impulsos mentais de Laury já haviam silenciado. Só
Marshall continuava a “transmitir”. Pensava em tudo
quanto fosse possível para manter-se acordado, embora
fosse dia claro. Rhodan concluiu que os fugitivos deveriam
estar por demais cansados.
— Não é necessário saltar — disse a Gucky, usando a
língua inglesa para que o piloto não o entendesse. —
Continuaremos a voar nesta direção até que os impulsos
venham de baixo. Nesse instante, estaremos sobre o lugar
em que Marshall se encontra.
E foi o que fizeram.
* * *
O conde Rodrigo acordou quando Marshall o sacudiu.
Laury estava sentada esfregando os olhos.
— Estão exatamente em cima de nós. São Gucky e
Rhodan — Marshall apontou para o teto. — Encontramo-
nos numa casa solitária situada na periferia da cidade. Está
cercada por um grande parque. Deve ser um dos quartéis-
generais dos saltadores.
— Gucky também veio? — Laury acordou
imediatamente. — Que sorte! Gucky é o maior herói que já
vi.
A estima de que o rato-castor gozava junto às criaturas
do sexo feminino era bem conhecida, mas Rodrigo ainda
não sabia quem era Gucky. Levantou-se devagar, lançando
um olhar de espanto para Laury.
— Que herói é este? — perguntou, esticando as
palavras. Sua mão aproximou-se instintivamente da espada.
— Se alguém tem o direito de protegê-la, sou eu. Será que
99
tenho um rival no seu coração?
Marshall exibiu um ligeiro sorriso e lançou um olhar de
advertência para Laury.
— Tenha cuidado com Gucky — disse apressadamente.
— Laury tem razão: realmente é um herói. Não conheço
nenhuma mulher que não goste dele. Não sei por que Laury
devia ser uma exceção. Você terá de conformar-se com este
fato, Rod.
— Jamais — disse Rodrigo, levantando-se e
caminhando furiosamente de um lado para outro. — Jamais
tolerarei a existência de um rival. Terá que bater-se comigo
em duelo.
— Você levará a pior — preveniu Marshall com a cara
mais séria do mundo. Sabia que Gucky estava
acompanhando a palestra e esperava que o encontro do
rato-castor com Rod lhe proporcionasse uma pequena
distração. — Gucky é um dos melhores mutantes que
temos.
— Mais um desses sujeitos dotados de capacidades
supersensoriais? — perguntou o conde em tom de
decepção. — Ao que parece muita coisa mudou na Terra. O
mundo está sendo governado por feiticeiros.
— Aguardemos — disse Marshall e voltou a concentrar-
se.
Também Laury parecia ter esquecido o conde. Entrara
em contato com Rhodan.
— Pousaremos com o planador bem perto da casa —
anunciou Rhodan. — Não precisamos do piloto. O que
devo fazer com ele?
— Traga-o com você — respondeu Marshall. —
Fugiremos com o táxi aéreo e trancaremos o ara nesta casa.
É muito simples.
— E os saltadores que estão vigiando vocês? Bem,
aparecerei na minha qualidade oficial de inspetor. Isso os
intimidará.
— Talvez já tenham ido embora.
— Talvez.
Mais quinze minutos passaram-se. Mantiveram a
ligação telepática, mas não estabeleceram mais nenhum
contato direto. O conde Rodrigo mantinha um silêncio
obstinado e, vez por outra, lançava um olhar sombrio para
Marshall.
Assustaram-se quando de repente a porta abriu-se
violentamente e Berzan penetrou no recinto em que
estavam presos.
— É o inspetor de Árcon! — fungou. — Pousou no
parque e está caminhando em direção a casa. Vocês têm
uma ideia do que deseja de nós?
Marshall manteve a calma; acenou lentamente com a
cabeça.
— Talvez, Berzan, talvez. Nesta hora não seria
conveniente se chegássemos a um acordo?
— Pois foi o que fizemos o tempo todo — retrucou o
saltador, que fez uma cara um tanto assustada. — É claro
que não dissemos ao arcônida que vocês estavam aqui.
Como é que ele ficou sabendo da presença de vocês?
— Isso mesmo — disse Marshall com a maior
tranquilidade. — Como poderia saber?
Rodrigo parecia convencido de que, naquele instante,
somente uma demonstração de bravura poderia convencer a
querida Laury de que ele era o único cavaleiro digno de seu
coração. Num movimento fulminante tirou a espada da
bainha, adiantou-se alguns passos e colocou a ponta afiada
sobre o peito de Berzan, que ficou perplexo.
— Patife miserável! — exclamou em tom dramático e
decidido. — Você muda de opinião tão depressa, como o
vento que infla as velas muda de direção. Pois é bom que
saiba que podemos fazer a mesma coisa. Daqui por diante,
dispensamos a proteção de seu clã; logo, não receberão
qualquer paga. E, quanto ao inspetor, traga-o à nossa
presença. Rápido, senão lhe farei cócegas com minha
espada.
— Espere aí! — interveio Marshall. — É preferível que
Berzan nos leve para cima. Iremos juntos para
cumprimentar o ilustre visitante.
O saltador preferira não sacar a arma. Não tinha a
intenção de fechar aquela fonte de dinheiro, que parecia tão
promissora. Naquele momento a visita do arcônida
representava um perigo para todos. Depois que esse perigo
tivesse passado, veriam adiante...
Sem preocupar-se com Rodrigo, virou-se, abriu a porta
e caminhou à frente dos outros. Marshall e os outros
seguiram-no. Sabiam qual era a surpresa que aguardava os
saltadores, e também sabiam que a situação desagradável
em que se encontravam logo chegaria ao fim.
Infelizmente se esqueciam da circunstância
desfavorável, que já estragara muitos cálculos bem
elaborados.
Era a circunstância que geralmente costuma ser
designada como o acaso.
Glogol, inspetor-chefe do Império de Árcon,
encontrava-se numa viagem de rotina. Naquele instante,
aproximava-se do sistema solar da estrela de Revnur, a fim
de visitar o segundo planeta, denominado Tolimon.
Estava acompanhado de dois cruzadores pesados, que
dariam a necessária ênfase às exigências que viesse a
formular. Glogol, acompanhado apenas de alguns criados e
da tripulação habitual, viajava num iate de luxo que tinha
uma espantosa semelhança com certa nave designada pelo
nome Koos-Nor.
Glogol era um arcônida das classes dominantes. Suas
enormes faculdades mentais e sua capacidade de decisão
levaram o regente robotizado a confiar nele. Era alto, tinha
cabelos brancos e olhos avermelhados: tinha exatamente o
aspecto de Rhodan no seu disfarce atual. O vistoso
uniforme também era uma duplicata do de Perry.
Fez um sinal ao telegrafista.
4
100
— Entre em contato com Tolimon. Anuncie nossa
visita. Quero uma recepção de chefe de Estado, um
alojamento condigno e um corpo de criados. Os
representantes do governo devem comparecer ao
espaçoporto.
— Perfeitamente, inspetor — respondeu o telegrafista
solícito e desapareceu na sala de rádio. Menos de dois
minutos depois, voltou com uma expressão de enorme
espanto.
— Inspetor...! — gaguejou assustado. — As autoridades
espaciais de Tolimon querem falar com o senhor antes de
conceder a permissão de pousar.
Glogol levou quase dez segundos sem conseguir
proferir uma única palavra; depois disso quase explodiu.
— O quê? Querem recusar obediência às ordens de um
inspetor? Será que os aras querem revoltar-se de novo? Que
insolência!
— Dizem que se trata da medida VB-17 — interrompeu
o telegrafista sem compreender nada.
O comportamento de Glogol mudou de um instante para
o outro.
— Por que não disse isso logo, seu idiota? É claro que
com isso as coisas mudam de figura — levantou-se. —
Vamos logo; mostre onde fica o microfone.
Glogol não estava muito versado em assuntos técnicos,
mas afinal isso não fazia parte de sua profissão. De
qualquer maneira, viu na tela o rosto de um ara que lhe
lançava um olhar desconfiado. O espanto era sincero.
— Será que o senhor realmente é um arcônida? —
gaguejou o homem na tela, como se tivesse esperado outra
coisa. — Por que será que nos mandam dois inspetores ao
mesmo tempo?
Glogol parecia ter levado um choque. Desconfiou
imediatamente.
— Dois inspetores? O que quer dizer com isso?
— Desde ontem o inspetor Tristol encontra-se em
Tolimon, senhor. Recebeu instruções de inspecionar a
administração do zoológico.
— Ah, é? — disse Glogol e inclinou a cabeça. —
Tristol? — parecia refletir. Subitamente um sorriso brincou
em torno de seus lábios. — Espero que esse Tristol esteja
presente no espaçoporto quando minhas naves pousarem.
— No momento, está realizando um voo de inspeção.
Não temos meios de entrar em contato com ele.
Glogol sentiu escapar-lhe a perspectiva de um prazer e
reconheceu o perigo em potencial representado por um
falso inspetor. Não havia tempo para brincadeiras.
Precisava agir.
— O inspetor Tristol é um impostor — disse em tom
frio. — Prenda-o. Pousarei imediatamente. As formalidades
ficarão para depois. Enquanto isso, eu enviarei uma
consulta ao regente robotizado.
— Isso já foi providenciado. Esperamos a resposta
ainda hoje. De qualquer maneira, seria conveniente
formular outra consulta para termos certeza absoluta.
Glogol sentiu a desconfiança. Empalideceu. Soltou uma
praga, levantou-se e voltou ao seu gabinete. Pensou:
“Malditos médicos! Não acreditam que eu seja o
verdadeiro inspetor. Bem, hão de pagar por isso!”
Mas, por outro lado, não pôde deixar de reconhecer que
a desconfiança ainda era preferível à credulidade e à
leviandade.
Nunca ouvira falar em Tristol, embora o Império só
tivesse dez inspetores. E ele os conhecia todos.
Deu o alarma. Os dois cruzadores que comboiavam sua
nave entraram em regime de prontidão de combate e
penetraram na atmosfera de Tolimon juntamente com o iate
de Glogol.
Quase no mesmo instante, chegou a Trulan a resposta
expedida por Árcon.
Não existia nenhum inspetor chamado Tristol.
* * *
Rhodan e Gucky saíram do táxi aéreo e olharam em
torno.
O parque era formado principalmente por um extenso
gramado no qual se viam alguns arbustos. Só na periferia as
árvores isolavam a área do mundo exterior. A mansão
ficava numa rua tranquila da zona periférica norte de
Trulan.
O piloto inclinou o corpo, para fora da cabine.
— Quer que espere pelo senhor, inspetor?
— Você virá conosco — anunciou Rhodan. — Quero
ter certeza de que não terei de voltar a pé.
— Mas, senhor... — principiou o piloto em tom de
recriminação, mas logo se viu interrompido por Gucky.
— Desça logo! Quando meu senhor dá uma ordem,
deve-se obedecer sem discutir. Já ouviu falar no centro de
experiências do zoológico? Está com vontade de terminar
seus dias por lá?
O piloto tremeu por todo o corpo e com um salto
arriscado caiu no capim.
Rhodan caminhava à frente dos outros. Nada se movia
na casa, que parecia deserta. Os impulsos mentais de
Marshall puderam ser captados com toda nitidez.
— Estamos saindo, chefe. Os saltadores estão
desconfiados e resolveram ir conosco.
— Saberão respeitar um inspetor — respondeu Rhodan.
Quando se encontravam a vinte metros da casa, a porta
abriu-se e um homem barbudo veio ao seu encontro. Pelo
aspecto exterior, poderia ter cerca de sessenta anos, mas
isso não significava nada. Fez um sinal para trás, como se
quisesse evitar que alguém o seguisse. Sozinho e armado
somente com o costumeiro radiador manual preso no
coldre, veio ao encontro do grupo de Rhodan. Por alguns
segundos, pousou um olhar pensativo e espantado sobre
Gucky, mas logo voltou a dedicar sua atenção a Rhodan.
— Inspetor de Árcon — resmungou. — Vejo que
nossos amigos não mentiram.
— Meu nome é Tristol — disse Rhodan, usando um
pouco menos de arrogância que em outras oportunidades.
— O senhor prestou auxílio aos meus homens e está
101
exigindo uma paga adequada. O senhor receberá a
recompensa assim que estejamos fora de perigo. Acredita
em mim?
O barbudo acenou a cabeça de forma quase
imperceptível.
— Meu nome é Berzan, inspetor. Uma pergunta: o
senhor realmente é um inspetor?
Rhodan leu a desconfiança no rosto do saltador. Não
compreendia a ligação que poderia existir entre os
prisioneiros e aquele arcônida.
— O senhor tem alguma dúvida? — perguntou Rhodan,
fingindo-se de espantado. — Os espiões de Árcon estão em
toda parte. Meus homens agiram por ordem do regente
robotizado. Há alguma coisa de extraordinário nisso?
Como por acaso, Berzan colocou a mão sobre a arma,
embora não tivesse a intenção de sacá-la. Gucky logo
percebeu o movimento, mas não fez nada. Porém estava
alertado.
— De fato tudo isso é muito estranho, senhor. Há menos
de duas horas, a polícia de segurança de Trulan deu o
alarma. Árcon respondeu à consulta formulada por
Tolimon. Não existe nenhum inspetor chamado Tristol.
Logo, trata-se de um impostor que está sendo procurado. E
não demorará muito até que a polícia encontre a pista que
conduz a esta casa.
Rhodan reagiu imediatamente à nova situação. Viu o
espanto no rosto do piloto de táxi, mas não se preocupou.
Sorriu.
— É verdade, Berzan. Não sou nenhum inspetor dos
arcônidas. Acontece que o senhor não gosta deles, Berzan.
Sei disso. Logo, não tem nenhum motivo para entregar-me.
Os arcônidas e os aras não são nossos inimigos comuns?
Berzan não se interessou por esse tipo de conversa.
— Faço o contrabando de medicamentos; meu negócio
é este. O chefe do clã é Rohun, comandante dos saltadores.
Não gosto dos arcônidas, mas reconheço seu Império. O
senhor é um inimigo do Império, e não posso continuar a
colaborar com o senhor ou com seus amigos. Para usar de
franqueza, isso é muito perigoso para mim. Pague sua
dívida, pegue seu pessoal e dê o fora.
Rhodan ficou surpreso com a sinceridade daquele
saltador barbudo, que não lhe era antipático. Sabia que seria
inútil tentar convencê-lo a adotar outra atitude.
— Muito bem. O senhor receberá o pagamento a que
faz jus. Onde está meu pessoal?
Berzan virou-se e fez um sinal em direção à casa.
— Faran, traga os estranhos; estão livres.
Rhodan pegou uma sacola com moedas e entregou-a ao
velho. Este a examinou ligeiramente e soltou um assobio.
Estava mais que satisfeito com a recompensa.
Faran saiu da casa, seguido por Marshall, Laury e pelo
conde.
Berzan puxou Faran para o lado e falou com ele em voz
baixa. Rhodan não teve tempo para ocupar-se com ele.
Sabia que naquele instante não tinha receio de qualquer
traição, se é que em algum momento esta pudesse ocorrer.
Marshall aproximou-se de Rhodan e, muito satisfeito,
apertou-lhe a mão.
— Já estava chegando ao fim, chefe. Não sei por quanto
tempo estaríamos seguros por aqui. Os saltadores já não
tinham vontade de queimar os dedos. Desculpe, Laury
deseja cumprimentá-lo. Além disso, quero apresentar-lhe o
conde Rodrigo de Berceo...
Laury enrubesceu, pois sabia perfeitamente que Rhodan
estava informado de sua paixão pelo conde. Com um gesto
hesitante estendeu-lhe a mão, que Rhodan pegou com um
ligeiro sorriso, retribuindo a pressão dos dedos.
Só depois, dedicou sua atenção ao conde.
Rodrigo tirara o chapéu de aba larga e o sacudia com
uma mesura impecável, que teria honrado qualquer nobre
do século XVII. Depois se adiantou e, fazendo outra
mesura, declinou seu nome e o de seus nobres. Asseverou:
— Sinto-me muito satisfeito em conhecer o grande
amigo de minha companheira, e fico honrado em saber que
o senhor, Rho...
— Nada de nomes! — advertiu Rhodan em tom áspero.
— Sou o chefe; apenas isso.
Rodrigo ficou corado, mas soube dominar-se muito
bem.
— Perdão, chefe. Quase me esqueço das cautelas que
devemos tomar.
Lançou os olhos em torno, como se estivesse
procurando alguma coisa, fitou ligeiramente o rato-castor e
dirigiu-se a Marshall.
— Onde está esse legendário herói e sedutor de
mulheres de que você me falou? Não o vejo.
— Gucky?
— Sim, acho que o nome é este. Gostaria de dizer-lhe o
que penso dele.
— Ora, Rod, basta abrir os olhos. Gucky está na sua
frente.
Laury abaixara-se para acariciar o pequeno rato-castor.
— Como vai, meu amiguinho? — perguntou com o
mais gentil dos sorrisos. — Você seria capaz de imaginar
que Rod tem ciúmes de você?
Gucky não respondeu.
Continuava perplexo, fitando o conde, que por sua vez
arregalava os olhos, contemplando o rato-castor com uma
expressão de incredulidade.
— Ui! — piou o rato-castor, respirando com
dificuldade. — Onde é o baile de carnaval que esse titio
esquisito pretende ir?
O “titio esquisito” compreendeu imediatamente. Recuou
dois passos.
— Este é o tal do Gucky? — perguntou, dirigindo-se a
Marshall.
— Quem poderia ser senão ele?
Rodrigo estreitou os olhos e voltou a dedicar sua
atenção ao rato-castor, que começava a recuperar-se do
espanto.
— Você é Gucky? — voltou a perguntar Rodrigo,
apontando para Gucky.
102
O rato-castor descansou o corpo sobre o largo traseiro.
— Alguma objeção? — perguntou em tom gentil. — Se
eu fosse como você, não andaria fazendo perguntas idiotas.
Isso reforça a impressão que a gente tem ao ver você pela
primeira vez.
Num movimento instantâneo, Rodrigo sacou a espada e
recuou dois passos.
— Defenda-se ou eu o mato ignominiosamente!
Laury soltou um grito estridente e colocou-se entre os
contendores. Rhodan lançou um olhar para os saltadores.
Estes examinaram o conteúdo da bolsa com o dinheiro e
pareciam não estar interessados no que se passava no
parque. Faziam de conta que tinham esquecido tudo que se
passava pelo mundo.
Gucky começou a gritar de alegria. Saltitava
alegremente sobre as perninhas curtas. O dente roedor
solitário brilhava aos raios do sol.
— Entre nós só as velhas usam agulhas de crochê desse
tamanho! — disse Gucky com um assobio desafinado. —
Eu lhe imporei respeito com a pata esquerda.
Rodrigo esqueceu a boa educação.
Com um grito furioso, saltou sobre o rato-castor, que se
limitou a endireitar ligeiramente o corpo e fitá-lo. No
momento em que o conde pretendia golpeá-lo, sentiu uma
pancada no pulso. A dor foi tão violenta que deixou cair a
espada. Para seu espanto, a arma adquiriu a independência,
descreveu uma curva e foi fincar-se numa árvore, onde
ficou tremendo depois de ter penetrado mais de vinte
centímetros.
Rodrigo ficou perplexo. Fitou ora Gucky, ora a espada
que continuava a balançar.
Gucky fez um gesto de triunfo e saltitou em direção a
Laury, segurando sua mão.
— Diga a verdade — disse com um chiado carinhoso.
— Você não pode estar apaixonada por esse palhaço, não
é?
Mas Laury soltou-se da mão dele.
— Você é um sujeito horrível, Gucky! — disse entre
soluços e foi para junto do homem amado, colocando a mão
sobre o ombro do mesmo. — Não se exalte Rod. Gucky não
tem a intenção de ofendê-lo. Apenas gosta dessas
brincadeiras estúpidas. Perdoe-lhe, se puder.
O conde Rodrigo provou que sabia ser generoso.
Acariciou o braço de Laury e dirigiu-se ao rato-castor.
— Esse feitiço foi uma brincadeira deliciosa, Gucky.
Quero que oportunamente você me ensine o truque. Vamos
fazer as pazes.
Gucky segurou a mão do conde entre as patas.
— De acordo. Quanto ao truque...
Ninguém dera a menor atenção ao piloto do táxi aéreo,
que por ocasião dos cumprimentos de Berzan soubera da
falsa identidade do inspetor. O ara recuara e, aproveitando-
se da confusão geral, entrou na cabine de seu veículo. Antes
que alguém pudesse impedi-lo, subiu na vertical.
Rhodan foi o primeiro a perceber. Gucky, o segundo.
— Trarei o sujeito para cá — sugeriu e começou a
concentrar-se sobre o ligeiro salto. Rhodan, porém, sacudiu
a cabeça.
— Deixe para lá, Gucky. Deixe que ele alarme os
habitantes de Trulan. Vamos dar o fora. Quando
aparecerem por aqui, verão que estão procurando no lugar
errado.
Calou-se. Um terceiro saltador saiu da casa. Era um
homem de cabelos ruivos que usava uma barba enorme e
tinha o corpo de campeão de luta livre. Lançou um olhar
perscrutador sobre Rhodan e aproximou-se do grupo.
— Então o senhor é o falso inspetor? — disse, olhando
para o uniforme de Rhodan como quem contempla um
animal raro.
Rhodan leu os pensamentos de seu interlocutor e ficou
assustado.
Não era nenhuma novidade. Mas soube controlar-se.
— Alguma objeção, amigo?
— Pelo contrário — disse o ruivo com uma gostosa
gargalhada. — Não tenho nada a ver com a armadilha em
que o senhor se meteu — esperou até que os outros
prestassem atenção às suas palavras. Aquilo que tinha a
dizer interessava a todos. — Sugiro que procure outro
esconderijo, e muito depressa. Há poucos minutos pousou
no espaçoporto de Trulan um iate de luxo acompanhado de
dois cruzadores pesados do Império. O inspetor Glogol terá
muito prazer em encontrar seu colega em Tolimon.
Rhodan sorriu amavelmente para o ruivo.
— Obrigado pelo conselho, amigo. Acho que chegou a
hora da despedida. Tem mais algum desejo?
— Não — disse Tulin em tom áspero. — O único
desejo que tenho é que o senhor dê o fora quanto antes. A
polícia não demorará em saber que um táxi o trouxe até
aqui. E não quero que encontrem ninguém quando
aparecerem por aqui. Entendido?
— O senhor não é muito gentil, mas em compensação
apresenta uma sinceridade reconfortadora — elogiou-o
Rhodan e fez um sinal ao seu grupo. — Venham, meus
amigos. Conde, não se esqueça de tirar a espada da árvore.
Temos um longo passeio diante de nós. Portanto, devemos
apressar-nos — cumprimentou os saltadores com um gesto.
— Mais uma vez, muito obrigado pelo auxílio que nos têm
prestado. Não podemos exigir mais que isso. Passem bem.
Um tanto desorientados, Laury e Rodrigo seguiram
Rhodan, que caminhava à sua frente. Gucky fechava o
grupo com seu andar arrastado. Pelos impulsos mentais que
desabavam sobre ele percebeu nitidamente que Trulan
parecia um ninho de marimbondos espantados.
A caçada já fora iniciada.
* * *
Quando os tolimonenses souberam que haviam caído
nas malhas de um impostor atrevido, a vergonha pela
humilhação misturou-se à raiva dos enganados. Os serviços
de segurança e de controle de estrangeiros lançaram mãos
de todas as forças disponíveis para capturar o inspetor,
embora não soubessem com que finalidade poderia ter
103
agido esse personagem desaparecido.
Glogol contribuiu com suas medidas. Expediu uma
mensagem de alarma destinada ao regente de Árcon. A
resposta consistiu no envio de uma frota de guerra. O
espaço em torno de Tolimon foi fechado estrategicamente.
Fortes unidades militares dirigiram-se ao espaçoporto e,
por não conseguirem penetrar no iate de luxo do falso
inspetor, cercaram-no. Preferiram não destruir a valiosa
nave. Nem havia necessidade disso, pois não havia nenhum
tripulante a bordo.
Evidentemente estavam cometendo um engano, mas
isso não fazia a menor diferença.
A cidade foi revistada pelos quatro cantos. A polícia
iniciou as buscas na área central e foi avançando lentamente
em direção aos distritos periféricos. Quando chegou à
mansão dos saltadores, não encontrou nada de suspeito. Até
mesmo o piloto do táxi, trazido às pressas, ficou perplexo
ao ver-se diante de um funcionário aposentado da
administração do zoológico, que se sentia indignado porque
o haviam importunado e disse que iria queixar-se ao
governo.
Foram adiante sem terem conseguido nada.
* * *
Os fugitivos atravessaram os primeiros campos
cultivados dos subúrbios e atingiram a proteção de uma
pequena floresta, onde fizeram uma pausa.
O conde Rodrigo fungava de raiva.
— Por que temos de nos esconder que nem índios
amedrontados? Não dispomos de armas suficientes para
colocá-los em fuga?
— Dispomos — confirmou Rhodan em tom tranquilo.
— Mas o que adiantaria isso? Não podemos lutar contra um
planeta, e nem estamos interessados nisso. Já provocamos
muitas suspeitas. Temos de dar o fora sem deixar vestígio.
Um dia voltaremos para buscar a fórmula do elixir da vida,
se for necessário. Temos uma amostra do soro; talvez esta
seja suficiente.
— E como vamos dar o fora daqui? — perguntou
Marshall, que conhecia perfeitamente as condições
reinantes em Tolimon. Lembrava-se dos terríveis froghs e
da velocidade com que estes se deslocavam. — Nossa única
possibilidade de fuga está estacionada no espaçoporto.
— É isso mesmo! — confirmou Rhodan. — Gucky vai
até lá para dar uma olhada e verificar se podemos buscar a
nave. Se a teledireção ainda estiver funcionando, não
haverá problema. Mas preciso saber se o iate não está preso
ao solo. Nesse caso, a decolagem poderia provocar avarias
graves no casco. Gucky terá de soltar as amarras antes que
eu possa trazer a nave.
O rato-castor apontou as orelhas. Outra missão?
— Irei imediatamente, chefe.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Tenha cuidado, meu velho. A cidade está cheia de
policiais. E também estão atrás de você. Em hipótese
alguma poderá aparecer. Dificilmente conseguirá vencer a
distância num único salto, pois não conhecemos a distância
exata.
— Basta concentrar-me na nave. Descreva a sala de
comando, Perry. Não tenho a menor dúvida de que assim...
Rhodan fechou os olhos. Não teve a menor dificuldade
em rememorar o interior da nave. É claro que Gucky
também não tinha a menor dificuldade. Porém achava que
era preferível andar seguro.
— O painel de instrumentos forma um pequeno
semicírculo e, por cima dele, há cinco telas equipadas com
os necessários controles em forma de botões giratórios. As
duas poltronas encontram-se na frente desse painel,
enquanto à direita ficam as instalações de rádio...
— Já foi embora — disse Marshall, enquanto o conde
Rodrigo soltou um grito de espanto e murmurou alguma
coisa que soava como bruxaria. Nunca vira um
teleportador. Laury manteve-se em silêncio. Estava sentada
no chão macio, junto ao conde. Encontravam-se cercados
por moitas espessas e árvores frondosas. Só se enxergava o
céu. O sol já se aproximava da linha do horizonte. Até
parecia que teriam de passar a noite ao ar livre.
Rhodan abriu os olhos e observou:
— Tomara que não erre o salto, aterrissando em meio a
um destacamento policial. Não poderão fazer-lhe nada, mas
seria preferível que não o vissem.
Voltou a fechar os olhos.
— Gucky, onde está você? — pensou intensamente.
Marshall também captou a resposta telepática do rato-
castor.
— O segundo salto levou-me ao interior da nave. O
espaçoporto até parece um formigueiro; está cheio de
soldados e policiais. Neste instante, o verdadeiro inspetor
está aparecendo aqui para examinar a Koos-Nor. O que
devo fazer?
— A nave está ancorada ou presa de outra forma?
— Nada disso. Eles nem desconfiam de que temos a
teledireção.
— Excelente — transmitiu Rhodan muito satisfeito. —
Volte imediatamente.
Gucky não se apressou.
Encontrava-se na pequena sala de comando e, pelo
periscópio, acompanhava os acontecimentos que se
desenrolavam no campo de pouso. Sentia-se absolutamente
seguro no interior da nave, mas talvez fosse conveniente
que pudesse levar algumas informações a Rhodan.
Penetrou cautelosamente nos pensamentos do inspetor,
que passeava no seu uniforme colorido em torno da Koos-
Nor, especulando sobre a maneira pela qual o impostor se
poderia ter apoderado desse artefato especial. Os iates de
luxo desse tipo estavam reservados exclusivamente aos
inspetores do Império e às pessoas mais ricas da classe
dominante. Um deles devia ter usado um nome falso. Quem
poderia ter sido?
É claro que Glogol não encontrou resposta às suas
indagações, pois, por nenhum instante, lhe ocorreu a
possibilidade de que o impostor pudesse ser uma criatura
104
que não pertencesse à raça dos arcônidas. Com um gesto
arrogante, dirigiu-se ao Ministro da Segurança de Tolimon,
que se encontrava a seu lado.
— Já prenderam o impostor?
O homem ao qual foram dirigidas essas palavras
encolheu-se de susto.
— Ainda não, senhor inspetor, mas nossos homens
estão vasculhando toda a cidade de Trulan. Ninguém
conseguirá escapar. O criminoso deve ter seus cúmplices
em nosso mundo, e nós os encontraremos.
— Não estou interessado nos cúmplices! — berrou
Glogol para o homem, que parecia petrificado. — Quero
desmascarar o patife que se atreveu a enganar o regente
robotizado.
— Naturalmente, inspetor — o ministro inclinou o
corpo. — Já dei as respectivas instruções. Ele morrerá e...
— Eu o quero vivo — berrou Glogol fora de si. — Pelas
fontes do planeta do inferno de Hradchir! O que poderei
fazer com um impostor morto? Ele não nos poderia dar
nenhuma informação.
O ministro saiu solícito, animado principalmente pelo
desejo de afastar-se do inspetor. Glogol seguiu-o com os
olhos e pensou várias coisas que Gucky absorveu com o
maior prazer.
“Esse sujeito arrogante é o tipo do arcônida”, pensou.
“Se bem que é totalmente diferente de Crest e Thora.”
Gucky pigarreou e viu que Glogol chamou alguns
tolimonenses e falou com eles. Apontou várias vezes para a
Koos-Nor.
De repente, o rato-castor começou a tremer de raiva,
pois sua consciência percebeu as ordens dadas pelo
inspetor.
Queria que técnicos especializados abrissem o casco do
iate a maçarico. Glogol esperava que, no interior da mesma,
pudesse encontrar algumas indicações sobre a identidade de
seu possuidor.
Teria sido simples para Gucky saltar de volta para
Rhodan, que acionaria imediatamente a teledireção. Mas
geralmente Gucky não aceitava as soluções simples.
Preferia complicar as situações, dando um curso todo
especial aos acontecimentos.
Não gostava do tal do Glogol. Precisava de uma lição,
mas era necessário não despertar suspeitas. O melhor seria
expor o inspetor ao ridículo, pois nesse caso ninguém se
preocuparia seriamente com as causas do incidente.
Gucky sorriu no momento em que se concentrou e
dirigiu suas energias telecinéticas para o arcônida.
Glogol ainda estava falando aos técnicos quando
subitamente sentiu uma pressão estranha na altura do
estômago. Teve a impressão de que alguém puxava suas
calças de almirante, listradas em cores vivas. Perplexo,
lançou os olhos corpo abaixo, mas não descobriu ninguém
que tivesse tido o atrevimento de despertar sua atenção por
essa forma.
Mas a força que lhe puxava as calças tornava-se cada
vez mais intensa. Com um estalo, o cinto bordado de ouro
rompeu-se, caindo ao chão juntamente com o coldre da
pistola. A arma engatilhada disparou com um chiado e a
força do recuo arremessou-a muito além da beira do campo
de pouso.
Enquanto isso, a calça de Glogol escorregou e adquiriu
sua independência de uma forma bastante estranha.
Descrevendo uma curva graciosa, desapareceu na direção
do complexo de edifícios.
Glogol usava ceroulas compridas. E um arcônida
arrogante de ceroulas é uma figura ainda mais ridícula que
um terrano que use a mesma vestimenta. A dignidade do
inspetor se desvanecera. Arregalando os olhos e tremendo
que nem vara verde, Glogol acompanhou com os olhos a
calça que se afastava pelos ares, calça esta da qual saíra de
forma tão surpreendente, sem que tivesse colaborado no
fenômeno. Os tolimonenses que o cercavam compreendiam
tanto — ou tão pouco — quanto ele, mas confiavam no que
viam. E aquilo que tinham diante dos olhos em nada
lembrava um inspetor arcônida. Apenas viam uma figura
ridícula com ceroulas cor-de-rosa e meias furadas. Apenas a
túnica cheia de condecorações lembrava o esplendor da
figura de inspetor.
Alguns dos policiais soltaram estrondosas gargalhadas.
De início Glogol não ouviu, mas logo seu rosto se
tornou vermelho de raiva. Virou-se furioso e gritou para o
grupamento. O resultado foi bem o contrário do que
esperava.
Os soldados e oficiais, bem como o Ministro da
Segurança, que regressara ao local, e outros representantes
do governo, deixaram cair o medo e as reservas. Um
inspetor de ceroulas não os atemorizava nem lhes inspirava
respeito. Era um homem como eles, e um homem muito
esquisito. Tirava as calças sem mais aquela em pleno
campo espacial!
Glogol cambaleou quando se sentiu atingido pelas
gargalhadas. Procurou apoio e segurou-se num dos criados
que constantemente ficavam a seu lado.
— Vocês pagarão por isso! — gritou com a voz rouca.
— Estão ofendendo o Império. O regente robotizado não
deixará que essa vergonha passe em brancas nuvens.
Tomarei todas as providências para que isso não aconteça.
De uma hora para outra, transformou-se num homem
frio e tranquilo. A voz recuperou o tom habitual, embora o
tom de arrogância da mesma não convencesse mais
ninguém. Dirigindo-se aos técnicos que se contorciam de
tanto rir, disse:
— Vamos logo! Ponham-se a trabalhar. Dentro de dez
minutos, quero entrar na nave.
Depois, ordenou ao criado que tirasse as calças.
* * *
Gucky ainda estava sorrindo quando, dez minutos
depois da ordem de Rhodan, voltou a materializar-se no
esconderijo situado na floresta. Mal seu vulto adquiriu os
contornos definitivos, caiu no chão de folhas macias,
completamente exausto e quase estourando de tanto rir.
105
Rhodan, que acompanhara os acontecimentos por via
telepática, um tanto contrafeito, só não interveio nestes
porque repentinamente se dera conta de que poderiam ter
consequências de grande alcance. Uma vez abalado o
prestígio do inspetor, a fuga de Tolimon se tornaria muito
mais fácil.
Marshall e Laury também estavam informados sobre os
acontecimentos. Apenas o conde Rodrigo levou um susto
quase mortal quando Gucky surgiu repentinamente em
meio ao grupo. O que menos compreendia eram os sorrisos
dos dois homens, de Gucky e da moça.
— O que aconteceu? — indagou.
Rhodan explicou. O rosto do nobre também se cobriu
com um sorriso alegre. Ao que tudo indicava, sabia
imaginar perfeitamente como devia ser um conde de cuecas
e, face à sua reação, parecia que nem mesmo um homem
terreno do século XVII infundiria muito respeito se usasse
esse tipo de vestimenta.
— Bem feito, meu pajem — disse, inclinando-se para
Gucky e acariciando-o.
— Os homens de Trulan ficarão tão alegres que se
esquecerão de procurar-nos.
— Mas não se esquecerão de nossa nave — disse
Rhodan com espírito mais realista e pegou o aparelho de
teledireção.
— Está na hora de pensarmos em nossa segurança. Se
dermos oportunidade para Glogol, ele impedirá nossa fuga,
apesar da vergonha pela qual passou. Aliás, neste instante
está usando as calças de um dos seus criados, segundo
deduzo através dos pensamentos de alguns dos
circunstantes. Coitado!
— Quem? O criado? — procurou certificar-se o conde
Rodrigo.
— Tolice! Só pode ser Glogol. As calças que está
usando não são listradas — Marshall sorriu enquanto
proferia estas palavras.
Rhodan girou algumas rodinhas e ponteiros, apontou a
antena fininha na direção do espaçoporto e puxou uma
pequena chave, que se movia facilmente para todos os
lados.
A pequena tela de orientação não se acendeu, pois não
se prestava ao controle numa distância tão reduzida.
— Será que a nave não será perseguida se decolar de
repente? — perguntou Marshall em tom preocupado. —
Nunca conseguiremos embarcar com a mesma rapidez com
que cairão em cima de nós.
Rhodan dirigiu-se para Laury.
— Me entregue à ampola com o soro, Laury. Teremos
que apressar-nos, e eu não quero que a senhora a perca.
Pegou o frasquinho, contemplou-o atentamente por um
instante e enfiou-o no bolso. Só depois disso respondeu à
pergunta de Marshall.
— É verdade, John. Assim que nossa nave pousar,
temos que embarcar e decolar quanto antes. A polícia a
seguirá até aqui. Talvez seria conveniente se realizássemos
uma manobra de despistamento. Aguardemos para ver o
que vai acontecer.
A Koos-Nor surgiu na periferia da cidade e passou a
pouca velocidade pouco acima das últimas mansões.
Dirigia-se diretamente para a floresta.
Rhodan viu perfeitamente os três ou quatro pontos
reluzentes que se aproximavam dos lados e procuraram
atacar a nave.
— Era o que eu imaginava — disse. — Gucky, salte
para dentro da Koos-Nor e informe o que puder ver.
Dirigirei a nave de acordo com as indicações que você me
fornecer. Entendido?
— Perfeitamente! — disse o rato-castor e
desmaterializou-se.
Perplexo, o conde Rodrigo fitou o lugar vazio deixado
por Gucky e achegou-se a Laury. Para ele, a telepatia e a
teleportação continuavam a ser uma bruxaria inconcebível,
por mais que tentassem explicar-lhe os segredos desses
dons.
— Estou na sala de comando. Ativei os campos
defensivos. Os aras estão atacando — Gucky fez uma
ligeira pausa. Depois prosseguiu no seu relato: — Também
liguei o receptor. O inspetor mandou que seus cruzadores
entrassem em ação. Querem destruir a Koos-Nor. O que
devo fazer?
Rhodan moveu a chave do aparelho de teledireção.
Marshall e Laury viram a nave descrever uma curva
fechada e afastar-se em direção ao sol que já se encontrava
no ocaso.
— Avise assim que avistar o mar, Gucky. Continue na
nave, aconteça o que acontecer. Para você, não haverá o
menor perigo.
Sem que o quisesse, Rhodan falara alto, o que o conde,
como nãotelepata que era, apreciou muito. A resposta de
Gucky, porém, veio em silêncio, tornando-se compreensível
apenas para Rhodan, Marshall e Laury:
— Perigo? O que vem a ser isso?
Rhodan sorriu, mas logo voltou a assumir um ar sério.
Seguiu com os olhos as naves dos aras, que também
corriam em direção ao sol. Uma surpresa estava reservada
para estas.
Dali a menos de dois minutos, Gucky anunciou:
— O mar está embaixo de mim.
— Muito bem — respondeu Rhodan. — Você
descreverá uma curva elegante e cairá para desaparecer sob
a água. Amarre-se, para que nada lhe aconteça. Será
exatamente dentro de dez segundos.
Gucky não deu resposta direta, mas Rhodan
acompanhou seus pensamentos e ficou sabendo que o rato-
castor havia compreendido e seguia suas instruções. Mais
uma vez, a chave do aparelho de teledireção foi acionada. A
Koos-Nor, que se encontrava a mais de duzentos
quilômetros de Perry, reagia a qualquer impulso, por mais
ligeiro que fosse. Subiu quase na vertical, ficou parada por
um instante e caiu que nem uma pedra.
Qualquer observador teria a impressão de que o
mecanismo de propulsão e de direção havia falhado. E
106
vários pares de olhos seguiram os acontecimentos com um
máximo de atenção. Trinta segundos depois, Glogol ficou
sabendo que o iate caíra ao mar juntamente com o piloto.
Com isso, a fuga do falso inspetor fora cortada. Encontrava-
se em algum lugar dentro da cidade.
Trulan foi fechada estrategicamente. Ninguém podia
sair da cidade.
Outra busca foi iniciada, mais rigorosa que a anterior.
Os agentes e os contrabandistas que trabalhavam para os
mercadores galácticos passariam daqui para frente por maus
momentos.
Quando a Koos-Nor começou a cair, o corpo de Gucky
perdeu o peso.
O rato-castor estava bem seguro no assento do piloto. O
método de mergulhar uma nave espacial nas águas do mar
não era novo. Para os ocupantes não representava nenhum
perigo, desde que o casco não vazasse.
A nave bateu na superfície da água. Os campos de
absorção reduziram a pressão do impacto a zero no interior
da nave.
— A nave está afundando! — transmitiu Gucky para
Rhodan. Examinou as telas iluminadas, nas quais o verde
foi assumindo tonalidades cada vez mais escuras. Depois de
algum tempo, a tela tornou-se negra. — Já devo estar bem
fundo.
— Vou deter a nave — respondeu Rhodan — para que a
pressão não se torne muito intensa. As naves que estavam
atrás de você desapareceram. Se quiser pode voltar para
junto de nós.
— Não poderia ficar mais um pouco? Aí na floresta
estamos completamente isolados do mundo exterior, mas
aqui disponho do receptor. Posso ouvir as instruções de
Glogol. Dessa forma saberemos que medidas pretendem
tomar contra nós.
Rhodan hesitou um pouco, mas logo pensou:
— Está bem. Mas dentro de exatamente trinta minutos
você deverá estar aqui.
Gucky deixou o campo livre e bloqueou seu cérebro.
Desatou os cintos e saltitou alegremente pelo corredor,
dirigindo-se à despensa.
Até mesmo o estômago de um rato-castor vez por outra
precisa de um reforço.
O rádio estava funcionando a todo volume. Os avisos
dos grupos de busca chegavam ininterruptamente.
Conseguiram localizar um esconderijo de contrabandistas,
mas os criminosos lograram fugir sem serem reconhecidos.
Alguém confirmou que Árcon havia enviado certo número
de couraçados que bloqueavam Tolimon. Essa medida
parecia superada, já que a nave do falso inspetor caíra ao
mar. Todavia, sabia-se que o impostor não se encontrava no
interior do iate. Ainda devia encontrar-se em Trulan
juntamente com seu estranho criado.
Gucky cresceu uns cinco centímetros quando ouviu que
também estava sendo citado nos comunicados oficiais.
Subitamente teve uma ideia.
Por que não iria deixar os tolimonenses e o tal do
Glogol absolutamente seguros de que ele e Rhodan ainda se
encontravam na cidade? Dessa forma as operações de busca
se concentrariam ainda mais em Trulan, limitando-se a uma
área restrita. Dessa forma Rhodan poderia aguardar
calmamente em seu esconderijo até que chegasse a
escuridão.
Não julgou necessário informar Rhodan sobre a decisão
que acabara de tomar. Efetuou um salto cego em direção a
Trulan. O fato de que havia quase quinhentos metros de
água acima dele não o incomodava nem um pouco.
Gucky rematerializou no seu antigo alojamento situado
na área dos cortiços, pois era o lugar que melhor podia
evocar em sua lembrança. Nada havia mudado. Ao que
parecia, o frogh que fora morto era a única criatura que
conhecia o esconderijo.
O rato-castor foi até a janela e olhou para a rua. O lugar
parecia abandonado. Havia apenas viaturas policiais
correndo de um lado para outro, cuspindo verdadeiras
legiões de policiais uniformizados, que penetravam
rapidamente nas casas. Era de supor que nem mesmo um
rato lhes poderia escapar.
Gucky concentrou-se sobre a Praça do Grande Mo, que
ficava a cerca de um quilômetro de distância, e saltou.
A teleportação era uma capacidade estranha e excelente.
Bastava pensar no ponto de destino, concentrar-se sobre o
mesmo e desmaterializar-se, para vencer a distância sem a
menor perda de tempo. Uma vez no destino, a gente voltava
a rematerializar.
Foi o que Gucky fez.
Naturalmente o salto envolvia um grande risco. Era bem
verdade que não havia o perigo de materializar-se no
interior de outra porção de matéria. Mas se a gente voltasse
ao espaço normal no meio de um grupo de inimigos, e se
estes reagissem com suficiente rapidez...
Felizmente para Gucky, não o fizeram.
O rato-castor surgiu quase no centro da praça e viu-se
rodeado por uma multidão de paisanos, olhando todos na
mesma direção. O exército patrulhava a área, com as armas
engatilhadas nas mãos. Tangendo os transeuntes para o
interior das casas, as viaturas policiais corriam, com as
sereias ligadas, pela larga via principal.
Gucky espreitou em torno. Encontrou olhares
espantados, nos quais a compreensão começou a despontar
aos poucos. Seu retrato devia ter sido espalhado por todos
os cantos juntamente com o do arcônida.
Quando os primeiros dedos apontaram-no, Gucky
começou a correr.
Logo o inferno ficou às soltas.
As pessoas corriam atrás dele, balbuciavam palavras
desconexas e caíam por cima de obstáculos surgidos não se
sabe de onde. Para Gucky não foi nada fácil livrar-se dos
5
107
perseguidores com suas pernas curtas, ainda mais que a
polícia já notara algo de estranho e quis saber a causa do
tumulto.
— É o criado do falso inspetor! — gritou alguém com a
voz rouca e na corrida derrubou um policial. Por isso outro
policial o segurou, impedindo-o de agarrar o fugitivo.
Quando o engano foi esclarecido, Gucky já se encontrava
na extremidade da praça.
O grito do paisano propagou-se pela multidão. As forças
armadas começaram a agir imediatamente. O bairro foi
bloqueado e uma busca geral foi iniciada.
Gucky preferiu não desaparecer pura e simplesmente
diante das vistas dos tolimonenses. Deviam ter a impressão
de que se escondera no interior da casa. Alguns saltos
curtos não chamavam a atenção de ninguém, e valia a pena
executá-los, mesmo que só o fizessem avançar alguns
metros de cada vez.
Encontrou um espaço livre e atravessou a rua correndo,
passando entre os veículos em movimento e os policiais
exaltados. Antes que alguém compreendesse o que estava
acontecendo, chegou até a frente dos prédios.
Agora tinha tempo.
Foi caminhando tranquilamente, balançando o corpo,
como se nada tivesse que ver com aquela caçada. Menos de
dez segundos depois, voltaram a descobri-lo. Armas foram
levantadas, gritos soaram, comandos foram berrados. Um
oficial aproximou-se correndo.
Gucky descreveu uma curva elegante para a esquerda e
desapareceu numa ampla porta. Quando viu que não havia
mais ninguém por perto, teleportou-se para o telhado do
edifício. Dali observou o resultado de sua ação por meio da
telepatia. Avançou cautelosamente até a beira do telhado e
olhou para baixo.
A área que se estendia diante da entrada do prédio
parecia um campo de treinamento militar.
A notícia de sua aparição devia ter corrido com a
velocidade do vento, pois naquele instante um carro aberto,
vindo da praça, aproximou-se velozmente. Os freios
chiaram e o inspetor desceu.
Glogol trouxera uma calça de reserva, pois mais uma
vez os circunstantes contemplaram a figura colorida do
almirante da frota espacial dos arcônidas. Brandindo o
radiador, abriu caminho e viu-se diante do oficial que
comandava as buscas.
Gucky “ouviu” cada palavra trocada lá embaixo.
— Estava se referindo ao criado do falso inspetor?
Onde está ele?
— Fugiu para dentro deste prédio. Meus soldados estão
à sua procura.
— O prédio tem alguma saída pelos fundos?
— Todas as saídas estão sendo vigiadas.
Glogol pigarreou.
— Avise assim que consiga pôr as mãos no sujeito.
Quero interrogá-lo pessoalmente.
— Nós o prenderemos. Não pode estar longe. As
pessoas que o viram dizem que se desloca com muita
dificuldade. Trata-se de um animal de reduzido grau de
inteligência, que devia estar no zoológico e não...
O oficial não conseguiu prosseguir.
Seu boné parecia ter sido agarrado por alguma mão
mágica: desceu e cobriu-lhe o rosto. Subitamente viu-se no
escuro. Glogol, que não compreendia mais nada,
contemplou a feitiçaria, que naquele instante não poderia
deixar de provocar seu espanto. Mas logo lembrou-se do
que acontecera com sua calça. Olhou cautelosamente para
todos os lados, guardou a pistola e usou ambas as mãos
para segurar essa peça de sua vestimenta.
Parecia que tudo era possível naquele planeta maluco.
— Deixe de tolices e procure aquele gatuno! — disse
com uma calma surpreendente e voltou ao carro, deixando-
se cair no assento com uma atitude de alivio. Nada mais lhe
poderia acontecer. — E não se esqueça: eu o quero vivo.
O carro afastou-se.
O oficial pôs o boné em ordem, contemplou-o por
alguns segundos, sacudiu a cabeça e voltou a colocá-lo.
Correu para dentro do prédio suspeito, a fim de animar seus
homens a trabalharem com maior disposição.
Uma coisa era certa: as pessoas que estavam procurando
deviam estar por aqui.
E seriam encontradas!
* * *
Rhodan olhou para o relógio e franziu a testa.
— Gucky já devia ter chegado. Os trinta minutos já
passaram. Daqui a duas horas, começará a ficar escuro.
— Deve estar ouvindo rádio — conjeturou Marshall. —
Por isso, não é de admirar que bloqueie os pensamentos e
se esqueça do tempo.
Tudo estava em silêncio em torno deles. Nos campos e
nos prados, não havia uma única pessoa. As patrulhas
policiais que andavam por entre as mansões de repente
desapareceram em direção ao centro da cidade. Procediam
sistematicamente, mas não se interessavam pela floresta.
— Ao que parece, realmente acreditam que estamos em
Trulan — disse Rhodan aliviado.
Marshall fechou os olhos e ficou “em recepção”. Não
foi fácil cristalizar alguns impulsos definitivos em meio aos
pensamentos que o atingiam e entendê-los. Mas conseguiu.
— Novas diretivas! — cochichou como que para si
mesmo. — Uma das pessoas procuradas foi vista na Praça
do Grande Mo — de repente, abriu os olhos e fitou Rhodan
com uma impressão de espanto. — Foi o criado do falso
inspetor!
Rhodan suspirou.
— É Gucky! Só pode ser ele. Seu aspecto é singular;
não pode ser confundido com ninguém.
— A não ser com outro rato-castor — obtemperou
Marshall.
— O único rato-castor que existe fora de Vagabundo, o
planeta do sol moribundo, é Gucky. Só pode ter sido ele.
Saiu da Koos-Nor e andou fazendo das suas — Rhodan
ficou muito sério. — Esperem até que ele volte, que eu lhe
108
digo o que acho do seu procedimento. É uma...
— Pois não — piou Gucky com a consciência não
muito tranqüila e recuou quando Rhodan se virou
abruptamente em sua direção. — Apenas quis...
— O que foi que você quis Guck? — quando Rhodan
omitia o y, isso era mau sinal. — Vamos logo, fale! Por que
não seguiu minhas instruções?
— Você mesmo disse em certa ocasião que, se eu
conseguir alguma coisa boa com um procedimento
arbitrário, sempre me perdoará.
— Ah, é? E daí? Isso modifica alguma coisa no fato de
você aparecer bem no centro de Trulan e tocar a polícia
para cima de nós?
— Pelo contrário, chefe, eu a toquei para um lugar em
que não estamos. Para a Praça do Grande Mo...
— Está bem, está bem! — disse Rhodan para encerrar o
debate, pois já compreendera tudo. — Mas quero que no
futuro você me informe sobre os trabalhos autônomos que
pretende realizar. Qual foi o resultado dos seus esforços?
— Fui visto no centro da cidade, onde estão revistando
casa por casa. Ninguém pensa nesta floresta.
Rhodan olhou para a cidade. Não se via mais ninguém
na zona periférica. Os comandos deviam estar a caminho
das zonas centrais.
Voltou a dirigir-se a Gucky.
— Está bem, meu caro. Vamos fechar um olho.
— Por que não fecha os dois? — sugeriu Gucky.
Rhodan sorriu e voltou a sentar.
— Vamos esperar até que escureça.
* * *
Depois do pôr do sol, o tráfego aeroespacial diminuía
consideravelmente. Só vez por outra, uma unidade menor
sobrevoava as zonas periféricas de Trulan e iluminava a
área com seus holofotes.
Mesmo nas altitudes maiores, viam-se de quando em
quando as luzes dos veículos atmosféricos. A frota do
Império devia estar estacionada numa região mais afastada
do espaço, a fim de capturar qualquer fugitivo que
conseguisse romper o primeiro anel.
Rhodan contava com essa possibilidade quando, pela
meia-noite, pegou o aparelho de teledireção e ligou-o.
O conde Rodrigo estava dormindo. Laury, que estava
deitada a seu lado, também dormia.
“Aquelas duas criaturas parecem feitas uma para a
outra”, pensou Rhodan, “mas várias eras os separam.”.
O que diria Rodrigo da Terra do século vinte e um?
Conseguiria adaptar-se a ela?
Marshall se mexeu. Estava recostado no tronco de uma
árvore. Gucky, que estava deitado no seu colo, cochilava e
murmurava coisas incompreensíveis. Num momento
assobiou baixinho e voltou a encolher-se.
Rhodan sorriu. Seus olhos já se haviam acostumado à
escuridão. Percebia todos os detalhes. Os controles do
aparelho de teledireção emitiam um brilho suave. Lá estava
ele com seu grupo, num planeta estranho e em meio a uma
verdadeira malta de habitantes hostis, praticamente sem
armas e contando apenas com a nave de luxo submersa.
Mas possuía aliados cujo valor excedia qualquer arma.
Podia contar com Gucky, o mutante de três dons, e
Marshall, o telepata, seu grande amigo. Quanto a Laury...
bem, no momento não poderia contar muito com ela, mas
afinal ela lhe conseguira o soro. E ainda havia o conde
Rodrigo de Berceo, um homem muito hábil no manejo da
espada.
Sem fazer o menor ruído, o iate de luxo desceu sobre a
folhagem e pousou suavemente na pequena clareira.
Rhodan aguçou o ouvido para todos os lados e procurou
estabelecer contato com qualquer cérebro que se achasse
nas proximidades. Mas, por mais que se esforçasse, não
encontrou nada. Ninguém percebera o fenômeno.
Deixou que seus companheiros dormissem e dirigiu-se à
pequena nave que, naquela clareira, tinha o aspecto de uma
gigantesca baleia. O envoltório prateado reluzia sob a luz
das estrelas distantes. Estava molhado com a água do mar.
Rhodan abriu a escotilha externa. Só após isso, foi
acordar os amigos.
Menos de cinco minutos depois, o planeta mergulhou no
espaço e penetrou no dia eterno do infinito. Tolimon
transformou-se numa foice prateada. Trulan era
perfeitamente visível sob a forma de um diadema cintilante
cravado na face noturna do planeta. Ainda continuavam a
procurar o falso inspetor e seu estranho criado.
Rhodan fixou os controles e virou-se.
— Rodrigo, a esta hora o senhor não pode fazer nada.
Laury lhe mostrará seu camarote. Procure dormir. Não
sabemos o que nos aguarda, e, por isso mesmo, é preferível
que o senhor esteja descansado. Laury também pode ir para
a cama.
Esperou que os dois se afastassem, acompanhados por
um sorriso de Gucky. Marshall lançou um olhar indagador
para Rhodan.
— E nós?
— Quero que fiquem aqui até que realizemos a primeira
transição. Para isso precisamos desenvolver a velocidade da
luz, que só será atingida dentro de dez minutos. Esses dez
minutos representam a fase mais crítica do
empreendimento. Marshall ocupe os controles do
desintegrador pesado e destrua qualquer atacante que se
aproxime demais. Desde logo lhe dou permissão para abrir
fogo.
Marshall confirmou com um gesto e dirigiu-se à cabine
apertada do comando de fogo. Gucky seguiu-o com um
olhar pensativo.
— E eu? — lamentou-se. — O que é que eu vou fazer?
— Deite e aguarde. Observe as telas. Manipule os
controles de radar. Vendo qualquer nave se aproximar,
avise-me. Como vê, há muita coisa a fazer. Se não estou
enganado, daqui a pouco vai acontecer muita coisa.
Rhodan não estava enganado.
Na tela de radar, surgiu uma mancha verde e oval, que
se aproximava obliquamente à linha de sua trajetória. Os
109
algarismos desfilavam sobre os quadros luminosos
retangulares, fornecendo indicações sobre a distância, a
velocidade e as dimensões do objeto.
Rhodan parecia pensativo; fez “hum” e disse:
— E um cruzador pesado. Será preferível darmos o fora
quanto antes. No momento nossa velocidade é pouco
inferior a 0,8 luz. Vai demorar mais um pouco. Que pena!
— Marshall pode dar cabo dele — resmungou Gucky.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Muitas missões já falharam porque os homens que as
executavam superestimaram suas forças e habilidades. Não
estou disposto a assumir este risco. Não estamos em
condições de enfrentar um cruzador pesado. Teremos sorte
se nosso campo repulsor aguentar, isto é, se o cruzador não
o estourar na primeira tentativa.
— Não quero ser estourado. Afinal, não sou nenhuma
bolha de sabão — disse Gucky.
— Não é mesmo — confirmou Rhodan com o rosto
mais sério do mundo. Examinou os controles. — A
velocidade é de 0,89 luz. Daqui a pouco estará na hora —
pegou o microfone do intercomunicador. — Marshall,
espere até que o inimigo abra fogo. Quando isso acontecer,
responda imediatamente.
— Combinado, chefe — respondeu Marshall
tranquilamente.
A nave também se tornou perceptível nas telas visuais.
Era um dos veículos esféricos de duzentos metros de
diâmetro que Rhodan incluíra nas unidades da classe Terra.
Rhodan não tinha o menor interesse em destruir uma
nave do Império Arcônida, que já fora seu aliado e
provavelmente voltaria a sê-lo.
0,94 da velocidade da luz. Faltavam poucos segundos.
Gucky já ligara o receptor. Girou os controles.
Subitamente uma voz potente abafou todos os ruídos.
Estava sendo transmitida em todas as faixas e era evidente
que vinha da outra nave, que descrevia uma curva para
adaptar sua rota à do iate.
O cruzador pesado e a Koos-Nor atravessavam o espaço
lado a lado. De ambos os lados, as peças de artilharia
estavam em posição de disparo, mas o gigante espacial
ainda hesitava em partir para o ataque.
A voz tornou-se mais nítida.
— ...em nome do Império intimamos o senhor a fazer
cessar imediatamente a aceleração. Renda-se, pois do
contrário abriremos fogo. O regente do Império quer falar
com o senhor. Responda!
Rhodan fez um sinal para Gucky. O rato-castor
confirmou com um gesto e ligou o transmissor para a faixa
adequada.
Então o cérebro robotizado de Árcon estava interessado
em conhecer o arcônida que se atrevera a desempenhar o
papel de inspetor. Rhodan sorriu, pois compreendia as
razões que animavam a lógica do robô positrônico que
controlava um império estelar. Para dar conta da tarefa
quase impossível, a máquina precisava de recursos
humanos, especialmente da iniciativa humana. Um arcônida
que conseguisse enganar todo um mundo para passar por
inspetor também seria capaz de executar tarefas positivas.
Por isso, o cérebro robotizado dera ordem para que o
malfeitor não fosse morto. Rhodan poderia ficar tranqüilo.
Em hipótese alguma o cruzador pesado abriria fogo.
Assim, sentiu-se bem mais calmo quando falou ao
microfone:
— Mensagem entendida. Quem é o senhor?
Fazia questão de ganhar tempo. No momento em que
penetrasse no hiperespaço, estaria irremediavelmente fora
do alcance de seus perseguidores. O compensador já havia
sido ligado. Ninguém notaria o menor abalo do complexo
espaço-temporal, portanto não seria possível localizá-los. O
iate de luxo desapareceria nas profundezas do espaço
intergaláctico sem deixar o menor vestígio.
— Aqui fala RO-867, representante do regente. Renda-
se!
Então era um robô! O cruzador pesado estava sendo
dirigido por um robô de combate dos arcônidas. Isso
tornava a situação muito mais fácil, pois um robô em
hipótese alguma poderia afastar-se das diretivas fornecidas
pelo regente. No homem, sempre havia o elemento da
capacidade de decisão, que poderia proporcionar surpresas.
Com um robô, as coisas eram diferentes. Depois de ter
reconhecido os motivos que animavam o regente
robotizado, Rhodan percebeu que sua vida não corria o
menor perigo. O robô recebera instruções para capturá-lo
vivo, e ele se ateria rigidamente a essas instruções, mesmo
que dessa forma a presa lhe escapasse.
— Preciso ter certeza de que o senhor não está blefando,
RO-867. Forneça sua sigla de identificação.
O estratagema não era muito convincente, pois o
velocímetro já indicava 0,98 luz. Faltavam apenas dez
segundos.
— Dou-lhe mais cinco segundos — disse o alto-falante.
No mesmo instante, vários relampejos surgiram na zona
equatorial da outra nave.
Os feixes de raios ofuscantes cruzaram a trajetória da
Koos-Nor, mas não produziram o menor efeito. Rhodan já
não tinha tanta certeza: não sabia se aquilo eram disparos
de advertência, ou se era um fogo mal dirigido.
Colocou a mão sobre a chave do dispositivo de
hipersalto.
Faltavam dois segundos. Executariam um salto às cegas
para outra dimensão. Voltariam a materializar-se em algum
lugar, num raio de cem a duzentos anos-luz.
— É tarde, RO-867! — disse com a voz tranquila e
puxou a chave.
O gigantesco veículo esférico desapareceu. No mesmo
segundo, o lugar em que se encontrava foi ocupado por
estranhas constelações, que antes não se encontravam lá.
Rhodan examinou uma escala.
— Cento e vinte e três anos-luz — murmurou. —
Conseguimos.
Gucky escorregou do sofá para o chão. Estava radiante.
— Pois vamos para a Terra, chefe. Tenho que resolver
110
um assunto com Bell. Foi por causa dele que em Vênus
alguns colonos miseráveis...
— Por enquanto nem pense na Terra — disse Rhodan,
sacudindo a cabeça. — Temos que esperar mais um pouco.
Você sabe o que aconteceu nos últimos seis decênios?
Quem sabe se não estão em condições de determinar a
localização dos saltos, mesmo que o compensador esteja
ligado? Pois então! Se isso acontecesse, eles nos seguiriam
e encontrariam a Terra. Vamos passar algumas semanas no
espaço. Andaremos por aí e procuraremos um planeta
isolado. De lá ficaremos captando os sons do Universo e
esperaremos até que a situação fique mais tranquila. O
procedimento que adotamos em Tolimon deve despertar
algumas lembranças nos bancos de dados do regente
robotizado. Mais dia menos dia, o cérebro se lembrará de
Rhodan.
— Um mundo isolado? — Gucky contorceu a boca e
fez desaparecer o dente roedor. — Onde será isso?
— Em qualquer lugar — disse Rhodan e partiu para a
segunda transição.
* * *
Depois de quatro transições executadas a esmo, a Koos-
Nor materializou-se diante de um estranho sistema solar.
Uma gigantesca estrela vermelha estava acompanhada
de um anão azulado que possuía um planeta próprio. A
estrela principal tinha dois.
Um sistema solar geminado, cujos sóis só distavam
poucos minutos-luz um do outro.
O receptor de rádio permaneceu mudo. Era quase certo
que nessa parte do Universo não havia seres inteligentes.
Por isso, era de supor que os três planetas não fossem
habitados. Por enquanto não se poderia saber se o ser
humano poderia sobreviver em algum deles.
Gucky lançou um olhar desconfiado para os dois sóis.
Rhodan leu seus pensamentos. Um sorriso amargo
esboçou-se em seu rosto.
— É isso mesmo, Gucky! Se qualquer desses planetas
tiver um ambiente apropriado, passaremos por aqui nossas
férias. Ninguém nos procurará nesta área. Assim que o
ambiente estiver mais tranquilo na Via Láctea, rastejaremos
de volta à Terra.
O rosto de Gucky era um modelo de decepção
— Férias? Lá embaixo não deve haver cinema, nenhum
Bell para chatear, nenhuma moça...
— Não diga tolices! — Rhodan parecia contrariado.
Ligou o aparelho de análises espectrais para examinar os
três planetas. — Acorde o pessoal.
Gucky arrastou-se em direção à porta, olhou para o
relógio e virou-se.
— Por que vamos acordá-los? Nem tiveram tempo para
dormir. Ao menos, Laury e o titio espadachim não tiveram.
Rhodan levantou a cabeça e lançou um olhar
prolongado para o rato-castor.
— Bloqueie sua mente quando quiser pensar uma coisa
dessas, Gucky — disse em tom sério. — Laury é uma moça
decente e o conde também...
— Sim — disse Gucky e teve a cautela de ir até a porta,
abri-la e sair ao corredor antes de prosseguir. — É uma
moça decente, mas também é uma moça apaixonada.
Depois de dizer estas palavras, desapareceu.
Rhodan olhou para a porta fechada e aguardou
pacientemente os resultados das análises espectrais
automáticas dos três planetas.
Quando Marshall entrou na sala de comando, ainda
sonolento, a decisão já havia sido tomada.
A Koos-Nor deslocava-se à velocidade da luz em
direção ao planeta solitário do sol azul.
— Gucky falou em férias — disse Marshall. — Será
que o senhor estava falando sério?
— É mais ou menos isso, John. Serão férias pagas.
Ainda não sabemos quem vai pagar a conta. Faço votos de
que não seja eu.
A porta voltou a abrir-se. Gucky entrou, segurando
cautelosamente a espada do conde. Saltou para o sofá e
colocou a arma assassina ao seu lado.
— Atirou-a contra mim — murmurou com a voz
preocupada. — Este conde é um homem muito esquentado.
Afinal, eu não poderia saber...
— Você não é telepata? — disse Rhodan com uma
recriminação bem perceptível na voz.
Marshall disse em tom sarcástico:
— Seu invejoso de uma figa!
— Hum — chilreou Gucky e passou a dedicar um
interesse surpreendente ao planeta que se aproximava.
O acaso pode estragar o melhor dos planos.
Foi o que aconteceu em Tolimon, um dos mundos dos aras, onde Perry Rhodan, o pretenso
inspetor de Árcon, subitamente se confronta com um fato novo: a existência do inspetor
verdadeiro. Perry Rhodan e seus companheiros conseguiram deixar o perigoso planeta. Acontece
que o mundo em que foram abrigar-se não é menos perigoso que este. Em Os Condenados de
Isan, Perry volta a correr novos riscos.
111
Nº 53
De
Kurt Mahr
Tradução Richard Paul Neto Digitalização Vitório Nova revisão e formato W.Q. Moraes
Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo
reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente
teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram
insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinquenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido
no ano de 1984.
Uma nova geração de homens surgiu.
E, da mesma forma que em outros tempos, a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no
governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas
de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à
colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar, não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os
soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória,
evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar
qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o
manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército
— continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua
origem terrana.
Em Isan, os sobreviventes da guerra nuclear, confinados em abrigos subterrâneos, estão
prestes a destruir-se mutuamente. Conseguirá Rhodan infundir-lhes novas esperanças?
112
Ivsera lançou um olhar pensativo para a fileira de
objetos brilhantes e reluzentes.
“Devia estar triste”, pensou. “Quem dera que tivesse um
único vestido, uma calça ou um casaco!”
Mas não havia nada disso. Nem vestido, nem calça, nem
casaco. Nada além das poucas peças de roupa que trazia no
corpo.
Ivsera não conseguia ficar triste por isso. Há dias os
preciosos aparelhos estavam parados. E há dias não eram
fornecidas peças de roupa cujas fibras
orgânicas pudessem ser convertidas em
alimentos sintéticos. Há dias os
ocupantes do abrigo de Fenomat viviam
de um pequeno estoque de provisões,
que estaria esgotado amanhã ou depois.
Virou-se. Irvin estava atrás dela,
encostado a uma mesa, mas com o rosto
sério.
— Está triste? — perguntou.
Ivsera sacudiu a cabeça.
— Não. Já não me importo com
mais nada.
— Você devia avisar Havan, não
acha?
Ivsera lançou um olhar de
perplexidade para o jovem.
— Havan? Já está informado. Há
dez dias.
Irvin empurrou-se da mesa e
aproximou-se alguns passos. Usava
uma calça muito curta, que começava
abaixo do umbigo e chegava até a metade da coxa. No
abrigo de Fenomat, nenhum homem podia possuir outra
roupa além desta.
— Não se lembrará — afirmou Irvin.
— Mas...
Irvin levantou a mão num gesto tranquilizador.
— Não há nenhum, mas acho que não preciso dizer-lhe
que tipo de homem é Havan. Ou será que preciso?
Ivsera baixou a cabeça.
— Você não poderia ir em meu lugar e contar-lhe? —
perguntou.
Irvin sacudiu a cabeça.
— Prefiro não ir. Não ganharia nada com isso. Havan
gritaria para mim e explicaria que a química chefa lhe devia
prestar estas informações pessoalmente.
Ivsera respondeu com um suspiro:
— Você tem razão, Irvin — levantou a cabeça, fitou o
jovem e em seu rosto surgiu um sorriso forçado. — Acho
que é preferível liquidar isto logo.
Irvin fez um gesto afirmativo.
— Fico torcendo por você.
Ivsera abriu a porta e saiu para o corredor. O ar
sufocante, morno e malcheiroso tirou-lhe a respiração.
Olhou para os lados e ficou satisfeita ao notar que ninguém
a via.
Caminhou depressa os cinquenta metros que a
separavam do elevador. Chamou a cabina, entrou e apertou
o botão do pavimento inferior. A cabina começou a
movimentar-se lentamente e aos arrancões, o que era um
sinal de que as válvulas de ar comprimido já não
funcionavam bem.
“Nada está funcionando”, pensou Ivsera. “A renovação
de ar não funciona, não se encontra nada para comer e
beber.”
Depois balbuciou:
— Quem dera que pudéssemos subir!
E continuou pensando:
“Subir para as paragens onde há oito
anos não vive mais ninguém. Para as
áreas em que a tormenta tange nuvens
de poeira radiativa e cada pingo de
chuva contém uma quantidade de veneno
que daria para matar dez pessoas. Para
o lugar em que uma extensão de dez
quilômetros de rocha derretida e
vitrificada assinala o ponto zero, local
onde a bomba fora arremessada quando
da mais terrível guerra de todos os
tempos.”
Ivsera procurou calcular quantas
pessoas teriam sobrevivido. Seis mil
haviam procurado refúgio no abrigo de
Fenomat. Após oito anos, haviam
passado a dez mil. Fenomat era a capital
do país, motivo por que num subúrbio
havia outro abrigo, o abrigo de Sallon. Sua capacidade era
igual à do abrigo de Fenomat.
Em todo o país existia um total de cinco abrigos dessa
espécie. Supondo que o inimigo dispunha de igual número
no outro continente, concluir-se-ia que cerca de cem mil
pessoas teriam sobrevivido à grande guerra de Isan.
Ivsera pensou admirada: “Cem mil num total de três
bilhões!”
O elevador parou. A moça abriu a porta.
Do lado de fora, estendia-se um corredor igual àquele de
que Ivsera acabara de sair. A jovem dirigiu-se para a
esquerda, passou por algumas portas com placas e parou à
frente da penúltima delas.
— Havan! — chamou em voz alta.
Teve de esforçar-se para pronunciar este nome. Havan
era o homem que dois dias depois da morte de Ofaran
acreditara que Ivsera se ligaria a ele. O homem que lhe
causava dificuldades sempre que podia, somente porque ela
lhe dissera que pretendia guardar ao menos um ano de luto
durante o qual viveria só. Falara-lhe também que nem em
dez mil anos um homem como Havan seria capaz de apagar
Personagens principais deste episódio:
Rhodan — Administrador do
Império Solar.
Marshall — Chefe do Exército de
Mutantes.
Laury — A bela mutante.
Ivsera — Uma jovem cientista.
Havan — Chefe do abrigo
subterrâneo de Fenomat.
Belal — Chefe do abrigo
subterrâneo de Sallon.
1
113
a imagem de Ofaran em sua memória.
Havan respondeu em tom mal-humorado:
— Entre!
Ivsera abriu a porta. Ele estava sentado atrás de uma
pesada mesa de imitação de pedra e olhava para ela.
Nenhum músculo de seu rosto grosseiro e desagradável se
contraiu ao reconhecê-la.
— Então, o que houve? — perguntou.
— Estamos sem mantimentos — respondeu Ivsera
laconicamente.
Havan empertigou-se.
— Por que só agora fico sabendo disso? — perguntou.
Os olhos de Ivsera estreitaram-se.
— Já avisei a dez dias que estávamos sem matéria-
prima.
Havan respondeu em tom áspero.
— E daí? — perguntou. — Como membro do Conselho
eu tenho o direito de ser mantido constantemente a par —
bateu com a mão aberta sobre a mesa. — Se não aprender a
cumprir seu dever, mandarei destituí-la.
Vendo que Havan se esforçava ao máximo para
humilhá-la e ofendê-la, Ivsera recuperou a calma.
— Não se esqueça de que neste abrigo não cabe
exclusivamente ao senhor decidir sobre as pessoas que
devem ocupar os postos — retrucou tranquilamente. —
Temos um Conselho, e só deixarei meu cargo quando este
decidir assim.
Virou-se, abriu a porta e saiu. Enquanto fechava a porta
atrás de si, ainda ouviu Havan gritar em tom furioso:
— Por enquanto, temos um Conselho... Não
compreendeu o resto, e nem estava interessada em
compreender.
No elevador, encontrou-se com Killarog. Tal qual
Havan, também era membro do Conselho. Era um dos
elementos mais jovens que participavam do órgão e, na
opinião de Ivsera, era um dos que conseguiram um pouco
de honra e de dignidade naqueles difíceis anos de pós-
guerra.
Ivsera ia passar com um ligeiro cumprimento.
Mas Killarog parou e segurou-a pelo braço.
— Tem algum problema? — perguntou em tom
lacônico, mas que nem por isso chegava a ser áspero.
Ivsera olhou-o.
— Quem não tem problemas numa época como esta? —
perguntou.
Killarog continuou sério, embora em seus olhos
houvesse um brilho de ironia.
— Conforme sabe — disse em tom propositadamente
professoral — sou presidente da Comissão de Questões
Pessoais e Psicológicas. Se alguma coisa a preocupa, a
senhora tem o dever de me informar a respeito.
Enquanto falava, levantou o dedo. Mas o ar sério logo o
abandonou. Voltou a segurar Ivsera pelo braço e levou-a
para o corredor de onde havia vindo.
— O que houve minha filha? Os mantimentos estão no
fim? O Conselho sabe disso há dez dias. Não há motivo
para preocupações.
Ivsera soltou uma risada amarga.
— Acontece que justamente o presidente da Comissão
de Alimentação e Vestuário não sabe de nada — respondeu.
Killarog soltou uma gargalhada.
— Havan? Sabe, sim. Há poucas horas discutimos o
assunto.
Ivsera contou o que havia acontecido. Killarog abriu a
porta de seu gabinete e deixou que entrasse à sua frente.
Convidou-a a sentar. Enquanto caminhava em torno da
mesa de imitação de pedra para acomodar-se em sua
poltrona, fez um gesto de desprezo.
— Não acredite em nada do que Havan lhe disse —
exclamou. — Especialmente quando está falando com a
senhora. Além disso, Havan cairia no ridículo se propusesse
ao Conselho a destituição da senhora.
Contemplou Ivsera por cima da mesa larga. O olhar
tranqüilizou a moça, que perdeu parte do ressentimento
trazido desde que visitara Havan.
— Vamos mudar de assunto — principiou Killarog de
repente. — O que vamos fazer quando não tivermos mais
nada para comer?
Ivsera fez um gesto de perplexidade.
— Se soubesse, eu lhe diria — respondeu. — Talvez
possamos sair do abrigo e dar uma olhada lá em cima, para
ver se encontramos comida.
Ivsera proferiu estas palavras em tom casual. Por isso
assustou-se quando Killarog se levantou de repente atrás da
mesa, estreitou os olhos e perguntou:
— Quem lhe deu esta idéia? A senhora deve saber que
não é possível sair do abrigo.
Ivsera parecia confusa.
— Desculpe. Não imaginei que estas palavras pudessem
assustá-lo. Ninguém me deu a idéia; foi exclusivamente
minha. Acho que não é tão difícil a gente lembrar-se desta
possibilidade.
Killarog voltou a sentar e suspirou.
— Esqueça — murmurou. Parecia cansado e abatido. —
Sou eu que lhe peço desculpas.
Colocou o rosto nas mãos, e olhou para Ivsera entre os
dedos abertos.
— O fato é — disse, esticando as palavras — que
estivemos lá em cima.
Ivsera levantou-se de um salto.
— Estiveram...
Killarog interrompeu-a com um gesto.
— Não fale tão alto. Ninguém deve saber do caso, senão
todo mundo desejará subir. Foi por isso que fiz a pergunta.
Aliás, suas esperanças não têm fundamento.
Ivsera quase não conseguiu respirar.
— Por quê?
— Lá em cima não há nada para comer. Nem uma
batata cresceu nestes oito anos na área urbana de Fenomat,
e numa área de quinhentos quilômetros em torno da mesma
está tudo contaminado. Não conseguimos ir mais longe.
— Está certo; mas...
114
— Não há nenhum, mas! — Killarog levantou-se. De
repente seu rosto estava muito sério. — Quer ver uma
coisa, minha filha? Uma coisa interessante, excitante e...
decepcionante?
Ivsera respondeu com um gesto afirmativo.
— Venha comigo.
Saíram do gabinete. Killarog dirigiu-se para a esquerda.
Passaram pelo gabinete de Havan. Antes de chegar à última
porta do corredor, Killarog parou junto à parede cinza-clara.
Pegou uma chave, enfiou-a na fechadura e abriu a porta.
Ivsera viu uma sala vazia, com uma abertura na parede
oposta. A luz tinha a mesma tonalidade fria que a das outras
salas.
— Esta sala não é ocupada por ninguém — disse ele em
voz baixa, ao ver que Ivsera o olhava e hesitava. — Pode
entrar sem susto.
Entrou. Killarog seguiu-a e trancou cuidadosamente a
porta. Atravessou a sala e abriu outra porta.
Com os olhos arregalados de pavor, Ivsera fitou um
corredor estreito e baixo, que evidentemente não pertencia
ao abrigo propriamente dito. As paredes eram de rocha nua,
que mais para o fundo brilhava de umidade. A cada poucos
metros uma barra de metal apoiava o teto.
Uma lufada de ar frio saiu do corredor, o que constituía
uma verdadeira bênção na atmosfera superaquecida e
poluída do abrigo.
Killarog falou em tom penetrante:
— A senhora terá que guardar exclusivamente para si
tudo que vai ver daqui por diante. Nem pense em falar com
qualquer pessoa a este respeito. As consequências não lhe
seriam nada agradáveis.
Ivsera confirmou com um gesto, sem tirar os olhos do
misterioso corredor.
— Irei à frente — sugeriu Killarog.
Ivsera deixou-o passar. Seguiu-o e fechou a porta atrás
de si. Mais adiante havia uma série de lâmpadas, cuja luz
era suficiente para que se percebessem os acidentes do
terreno.
Killarog caminhava rapidamente; Ivsera teve de
esforçar-se para não ficar para trás.
O corredor era mais comprido do que ela acreditara.
Andaram durante quinze minutos e as lâmpadas, que
ficavam adiante deles, demoraram a se aproximarem.
Quando Killarog finalmente parou junto à primeira, haviam
caminhado ao menos trinta minutos. Face à velocidade com
que ele marchava isso significava que haviam percorrido
mais de um quilômetro.
— Pode andar mais um pouco? — perguntou Killarog
em tom preocupado.
Ivsera fez um gesto afirmativo.
Killarog continuou a andar. As lâmpadas tornavam-se
cada vez mais numerosas. A luz da última delas, Ivsera
descobriu um vulto que parecia estar deitado,
completamente imóvel.
Killarog pisou com força no chão. O vulto moveu-se.
Ivsera viu uma cabeça levantar-se e um par de olhos
desconfiados fitar os recém-chegados.
Ivsera não se lembrava de ter visto o homem diante do
qual Killarog estava parado. O que chamava a atenção era
que vestia roupa completa, e não apenas a calça curta que
os homens deveriam usar.
— Alguma novidade, Thér? — perguntou Killarog.
Thér fez que sim.
— Sim. Estão avançando.
— Quanto tempo ainda nos resta?
Thér ergueu os ombros e abriu as mãos.
— Uns dois ou três dias. O que esta moça veio fazer
aqui?
— Quero que esteja a par de tudo — respondeu
Killarog.
Ivsera recuperou-se do espanto e perguntou:
— Por que este homem anda por aí com a roupa
completa, Killarog? As peças que carrega inutilmente
dariam para produzir ao menos cinco refeições completas.
Thér fitou-a perplexo. Killarog soltou uma gargalhada.
— Ela é nossa nutricionista — explicou, dirigindo-se a
Thér. — A maior parte do que você comeu nestes últimos
anos saiu de suas retortas.
Dirigindo-se a Ivsera, prosseguiu:
— Sabe lá o que aconteceria a Thér se tivesse de ficar
deitado por aí quase nu?
— Bem — disse Ivsera em tom de espanto — ele
costuma ficar deitado por aí?
Killarog fez que sim.
— Ele e dois outros. Cada um fica dez horas por dia.
Não é nada fácil aguentar esse tempo.
— O que ficam fazendo por aqui?
Killarog apontou para o chão.
— Mostre Thér — ordenou.
Thér levantou-se. Só agora Ivsera viu que havia vários
instrumentos espalhados em torno dele. Viu caixinhas
negras com chaves, botões e escalas.
Dali a poucos metros o corredor chegava ao fim.
Thér prendeu um cabo fino a um dos instrumentos. Na
outra extremidade do fio havia um funil igual aos que
Ivsera costumava ver nos telefones. Thér colocou o
aparelho propriamente dito no ângulo esquerdo formado
pelo chão e pela parede. Ivsera notou que a caixinha
descansava sobre finos suportes metálicos.
Thér entregou-lhe o cabo com o funil.
— Ouça — pediu.
Um tanto medrosa Ivsera comprimiu o funil contra o
ouvido. Ouviu um ruído monótono. Depois de alguns
minutos ainda não havia ouvido outra coisa. Fez menção de
devolver o funil a Thér. Mas naquele instante escutou um
ribombo surdo que parecia provir de um tambor enorme e
muito distante. O ruído cresceu, chegou ao ponto máximo e
foi diminuindo.
Ivsera ficou muito assustada. Pretendia indagar sobre a
origem do som, quando voltou a ouvi-lo.
— Ah! — disse Thér com uma risada furiosa. — Nem
precisamos mais do amplificador. Ouço sem ele.
115
Ivsera tirou o funil do ouvido e perguntou:
— O que é isso?
Killarog respondeu com outra pergunta:
— Quando irrompeu a guerra, a senhora ainda era uma
menina. Sabe embaixo de que área de Fenomat nos
encontramos?
Ivsera procurou recordar o que sabia a respeito do
abrigo. A entrada principal ficava sob o centro da cidade,
mas as galerias avançavam vários quilômetros, estendendo-
se às vezes para além dos limites da cidade.
As galerias principais começavam no centro e corriam
em direção ao norte, leste, sul e oeste. O trecho em que
viviam os membros do Conselho pertencia à galeria
principal do leste.
— Acho que estamos mais ou menos embaixo do
subúrbio de Sallon — disse com a voz tímida.
Killarog confirmou com um gesto.
— Exatamente. O ponto em que nos encontramos fica a
pouco mais de trezentos metros da extremidade oeste das
galerias do abrigo de Sallon.
Ivsera procurou compreender as relações que poderiam
existir entre esse fato e o tambor que acabara de ouvir.
— Conforme já disse — prosseguiu Killarog —
estivemos lá em cima com alguns homens e demos uma
olhada pelos arredores. Encontramo-nos com um grupo de
gente estranha. Talvez sejam de Sallon, mas também é
possível que tenham vindo de mais longe. De qualquer
maneira, começaram a atirar assim que nos viram. Tivemos
de fugir, pois as armas de que dispúnhamos eram
insuficientes.
Ivsera parecia assustada.
— E aqui — disse, apontando para a parede da esquerda
— os homens de Sallon estão tentando atingir o abrigo de
Fenomat por baixo. Thér afirma que dispomos de apenas
dois ou três dias para preparar-nos para visita deles. É o
tempo que levarão para chegar aqui.
* * *
Ivsera não demorou a compreender. Em sua memória,
os habitantes do abrigo de Sallon continuavam a ser o que
haviam sido antes da guerra: cidadãos comuns que não
quiseram a batalha, mas que se sentiam gratos pelo abrigo
que lhes dava proteção.
Killarog afirmara não haver dúvida de que os estranhos
com os quais seu grupo se havia defrontado eram pessoas
vindas de Sallon. Em sua opinião, numa situação como
aquela em que se encontravam, ninguém se arriscaria a ficar
na superfície por mais tempo que o absolutamente
necessário, e o abrigo mais próximo ficava a quase dois mil
quilômetros.
Por outro lado, os abalos eram evidentes. Thér e seus
dois companheiros os vinham observando há várias
semanas. Os instrumentos ultrassensíveis registravam as
ondas de pressão, certamente provocadas por explosões.
Vinham da direção do abrigo de Sallon e, no correr das
semanas, haviam avançado até as imediações dos
corredores mais afastados do abrigo de Fenomat.
Ivsera ainda conservou alguma esperança de que as
intenções das pessoas de Sallon talvez não fossem hostis,
mas Killarog disse em tom áspero e lacônico:
— Não diga isso! É claro que apenas pretendem roubar
nossos mantimentos. Se não encontrarem nada, talvez até
resolvam nos comer.
* * *
Os prognósticos de Killarog sobre o confronto que se
aproximava eram sombrios.
— O grupo com que nossos homens se encontraram
estava tão bem armado que parecia um destacamento da
polícia secreta. Provavelmente esvaziaram o grande
depósito de Sallon Norte. Enquanto isso, nós possuímos um
total de cinquenta armas portáteis. Na maior parte trata-se
de pistolas antiquadas. E a munição é muito escassa. Se os
habitantes de Sallon conseguirem introduzir mais de vinte
homens em nossas galerias, sua cabeça-de-ponte estará
praticamente garantida. Quanto ao resto, não adiantará nada
ficar pensando.
O que impressionou Ivsera foi à resposta que Killarog
lhe deu quando perguntou sobre a finalidade da construção
da galeria em que Thér se encontrava de vigia:
— Será que a senhora ainda não adivinhou? É que nós
pretendíamos roubar os mantimentos dos ocupantes do
abrigo de Sallon. Infelizmente tivemos o azar de que eles
não demoraram em ter a mesma ideia, e, além disso, estão
mais bem armados. Mas — levantou a mão e de repente
recuperou o bom humor — se conseguirmos rechaçá-los e
persegui-los, economizaremos um bom tempo de trabalho.
E, nesse caso, os homens de Sallon terão construído uma
galeria para nós.
Ela lançou-lhe um olhar apavorado. Ele riu com uma
expressão de amargura e exclamou:
— A senhora já devia ter compreendido. Oito anos
depois da última guerra travada em Isan, só nos resta
devorarmos ou sermos devorados. Estas palavras podem ser
interpretadas literalmente.
Killarog tinha um plano.
Era um plano ousado, que envolvia riscos consideráveis.
Por isso precisou de toda a força de persuasão para levar o
Conselho a aceitar a ideia.
O Conselho concedeu-lhe oito homens que o
acompanhariam, nove trajes à prova de radiações e quase
metade das armas do abrigo de Fenomat. Além disso,
segundo as instruções de Killarog, três homens foram
destacados para montar guarda na comporta superior do
abrigo. Os três homens e o grupo de Killarog receberam um
radiotransmissor portátil que dispunha de seu próprio
suprimento de energia.
2
116
O objetivo de Killarog era a comporta de superfície do
abrigo de Sallon. Hora do ataque: o momento em que
recebesse comunicação pelo rádio de que os homens de
Sallon estavam penetrando na parte inferior do abrigo de
Fenomat.
O Conselho impôs uma condição a Killarog: se notasse
que sua missão não seria bem sucedida, devia voltar
imediatamente. Nesse caso, suas armas seriam mais
necessárias em Fenomat que na comporta de superfície de
Sallon.
Killarog escolheu os homens que o acompanhariam.
Mesmo sendo muito jovem, gozava de grande prestígio em
todos os setores do abrigo. Apesar da indolência que
costumava caracterizar os sobreviventes da grande guerra
de Isan, todos se mostraram dispostos a acompanhá-lo na
missão perigosa.
Três horas depois da sessão do Conselho, Killarog havia
reunido seus homens. Mas, meia hora antes, Ivsera soubera
do plano por intermédio de Irvin, que era um dos oito
escolhidos.
Procurou Killarog e conseguiu convencê-lo, depois de
algum tempo de discussão, de que teria de acompanhá-lo na
expedição, em substituição a um dos homens. Seu
argumento principal foi o seguinte: se conseguissem
penetrar no abrigo de Sallon, deveria haver alguém capaz
de identificar imediatamente tudo que fosse comestível.
Se Irvin não tivesse intervindo a seu favor, era bem
possível que, apesar do argumento, Ivsera não tivesse
conseguido seu intento.
— Leve-a, Killarog! — recomendou. — Senão essa
moça nunca mais terá sossego. Desisto em favor dela.
Irvin podia dar-se ao luxo de um gesto deste, pois ele
era conhecido como uma exceção humana ao ambiente de
indolência e passividade generalizada.
Killarog acabou por concordar. Meio zangado, meio
divertido disse:
— Minha filha, desconfio de que a senhora ainda
carrega certas ideias românticas sobre as regras
humanitárias e sobre as qualidades adoráveis daquela
gentinha. Se levar um tiro enquanto estiver acenando com
uma bandeira branca para os ocupantes de Sallon, atribuirei
a infelicidade à sua falta de instinto.
Ivsera não revelou o verdadeiro motivo de seu gesto. Na
verdade, estava cansada de se manter inativa no abrigo e
assistir impassível ao que acontecia. Era de opinião que,
qualquer pessoa que ainda dispusesse de um pouco de
energia, tinha a obrigação de fazer alguma coisa. Não era
necessário que fosse uma coisa bem sucedida. Bastava que
a ação infundisse a convicção de que os sobreviventes da
grande guerra não seriam simples joguetes do destino.
* * *
Era noite quando Killarog e seu grupo, depois de uma
hora de viagem de elevador através do poço de dois
quilômetros de altura, chegaram à comporta de superfície
do abrigo de Fenomat.
No interior da comporta, colocaram os trajes à prova de
radiações. Killarog mandou realizar os controles, e Ivsera
viu um bom sinal no fato de que tudo deu certo na primeira
verificação.
Ele fez questão de cercar a saída da comporta de modo
áspero e com ordens proferidas em tom rude, a fim de
reprimir qualquer laivo de sentimentalismo. Para cinco
pessoas do grupo de nove era a primeira vez que nestes oito
anos voltavam a pisar na superfície de seu mundo natal,
Isan.
Ao oeste, pouco acima da linha do horizonte, Ivsera viu
a gigantesca bola vermelha do sol. Procurou recordar, para
verificar se Isan havia mudado depois da guerra. Mas o sol
Vilan continuava grande e vermelho como sempre. Vários
pontos da superfície pareciam apresentar cicatrizes, e a bola
vermelha espalhava mais calor que claridade.
O céu vermelho-escuro estava salpicado de estrelas.
Ivsera viu algumas nebulosas tênues. Sabia que essas
nebulosas eram formadas por estrelas, e que juntamente
com estas formavam um sistema designado pelos
astrônomos como a Via Nebulosa.
Ivsera mal conseguiu controlar o nervosismo. Apelou
para a razão e procurou convencer-se de que mesmo depois
de oito anos de vida subterrânea não havia nada de
extraordinário em ver algumas estrelas.
Não conseguiu. Que nem uma sonâmbula tropeçou pelo
deserto de escombros no qual as bombas e o vento haviam
transformado sua altiva cidade, Fenomat. Killarog teve de
adverti-la três vezes para que controlasse seus sentimentos
e se concentrasse na tarefa a cumprir.
* * *
A caminhada do poço principal até a comporta de
superfície de Sallon era de oito quilômetros. Há oito anos
essa distância teria sido percorrida num ônibus ou táxi, e
não se gastariam mais que poucos minutos no percurso.
Mas, no terreno perigoso e inóspito e com os pesados trajes
espaciais, a caminhada consumiria um dia.
Depois de quatro horas de marcha, Killarog ordenou o
primeiro descanso. Encontravam-se num setor do deserto
de destroços em que, por estranho que pudesse parecer, o
nível de radiações correspondia apenas à metade dos
valores registrados nos demais pontos. Ninguém sabia
explicar o fenômeno, mas de qualquer maneira o lugar era
ideal para um descanso.
Na linha do horizonte, ao sul, surgiu o primeiro alvor do
novo dia. A cor mortiça de Vilan e a torrente poderosa de
luz azul que se derramava sobre o horizonte, vinda do sul,
misturavam-se no céu, formando uma tonalidade estranha.
As estrelas foram empalidecendo sob a luz de Vilanet, o
pequeno sol azul-claro que era a verdadeira estrela central
de Isan.
— Percorremos aproximadamente metade do caminho
— disse Killarog. — Daqui para diante, teremos de ficar
com os olhos bem abertos. Pelo que ouvimos, devemos
concluir que os homens de Sallon não são bobos. É bem
117
possível que lhes ocorra a ideia de que poderíamos atacá-
los por cima.
Enquanto a claridade aumentava, Ivsera procurou
descobrir em que parte da antiga cidade se encontrava.
Sabia que a meio caminho entre o centro e o subúrbio de
Sallon ficava a rua com as lojas mais caras e sofisticadas,
onde sua mãe costumava fazer compras duas vezes por ano:
no aniversário de seu casamento e no aniversário da própria
Ivsera. Sabia que por ali houvera casas largas, maciças e
antigas.
Agora nem sequer se viam os alicerces. A cidade fora
aplainada ao nível do solo. Blocos de pedra estavam
espalhados por todos os lados, mas não se poderia dizer se
eram formados de rocha natural ou se provinham das
paredes das construções.
O chão estava coberto de capim. Mas que capim! Os
talos, que antigamente eram lindos e esguios, passaram a
ser grossos e desajeitados. Atingiam metade da altura de
um homem e formavam verdadeiras copas.
“É um fenômeno de mutação”, pensou Ivsera. “As
radiações produziram alterações na massa genética do
capim.”
Não apenas do mato. Pouco antes de iniciarem a
marcha, viram um besouro gigantesco rastejar entre o
capim sobre as longas pernas. Conseguiram vê-lo, embora o
capim lhes chegasse até o umbigo. É que as pernas do
besouro elevavam o corpo alongado e esguio a mais de um
metro de altura, embora estivessem dobradas duas vezes, à
maneira dos insetos. O corpo tinha um metro de
comprimento.
O maior besouro, que existia em Isan antes da guerra,
mal poderia cobrir a palma da mão.
Um dos homens levantou a arma para matar o monstro
repugnante. Mas Killarog bateu sobre o cano e gritou:
— Pare com isso, seu idiota! Quer revelar nossa
presença com o barulho?
Partindo do local de descanso, Killarog tomou a direção
nordeste. Não pretendia dirigir-se diretamente a Sallon,
porque o risco lhe parecia ser muito grande. Fez um desvio
de duas horas para atingir o abrigo de Sallon de um lado em
que não os esperariam.
Até então o rádio portátil se mantivera mudo, com
exceção da mensagem ligeira transmitida por Thér:
— Agora já os ouvimos perfeitamente sem o
amplificador. Vocês dispõem no máximo de cinco ou seis
horas. Depois disso estarão aqui. Pelo que calculo, sairão
em algum ponto no pavimento inferior.
Ivsera lembrou-se de Havan. A idéia de que, se não
conseguisse fugir, seria uma das primeiras pessoas
capturadas pelos homens de Sallon, não a deixava nem um
pouco satisfeita, apesar do velho ressentimento que nutria
por aquele homem.
Após a mensagem de Thér, Killarog insistiu em que se
apressassem. Perguntou várias vezes sobre o bem-estar de
Ivsera. Esta, depois que decidira manobrar seu próprio
destino, já não conhecia o cansaço.
Vilanet subiu pelo céu branco e espalhou um calor que
se tornou ainda mais insuportável, pois, na planície coberta
de capim em que antigamente ficara a cidade, não havia
uma única sombra.
Mais ou menos pelas nove da manhã, depois de outro
descanso intercalado na marcha, Killarog impôs o silêncio
total. Era verdade que os transmissores e receptores
embutidos nos capacetes à prova de radiações funcionavam
numa frequência extremamente elevada. Só por milagre os
homens de Sallon poderiam descobrir essa frequência e
captar as mensagens. Mas essa possibilidade não podia ser
desprezada.
Killarog mandou que os membros do grupo só se
comunicassem para transmitir informações de
extraordinária importância. Mesmo nesse caso, deviam
evitar na medida do possível a utilização do rádio,
comunicando-se diretamente de capacete a capacete.
O terreno tornou-se uma ladeira. Ivsera lembrou-se de
que o subúrbio de Sallon ficara na encosta sudoeste de uma
colina.
“Ainda bem que as bombas não conseguiram arrasar as
montanhas”, pensou satisfeita.
Pelo meio-dia atingiram a linha da cumeeira da colina,
sem que tivessem visto uma única pessoa do abrigo de
Sallon, fato que deixou Killarog muito satisfeito. Já Ivsera
ficou desconfiada. Mas, como em relação à tática do
combate de guerrilhas confiasse mais em Killarog que em si
mesma, ficou calada.
A entrada e, portanto, a comporta de superfície do
abrigo de Sallon era na encosta nordeste da colina. Ao
contrário dos demais abrigos, no de Sallon as entradas
secundárias não desciam na vertical em direção aos
corredores do abrigo, mas atravessavam a colina em sentido
horizontal.
A escotilha de superfície de Sallon era assinalada por
uma espécie de construção de pedra, que se levantava
solitária em meio ao tremeluzir do meio-dia de Vilanet. O
ar tremulava sob os raios de sol. O terreno tinha o aspecto
de uma terra que ficara abandonada há oito anos. No flanco
nordeste da colina, o capim era amarelo e um pouco mais
baixo do que o que haviam encontrado na área urbana. A
leste, junto à linha do horizonte, o rio Ovial seguia sinuoso.
As florestas que antigamente haviam marcado seu curso
tinham desaparecido. A estepe estendia-se até onde a vista
alcançava.
Killarog não se interessou pelo singular panorama.
Através da lâmina do visor de seu capacete, Ivsera notou
que os olhos dele brilharam quando viu aquela construção
de superfície de Sallon.
— Chegamos! — disse em voz tão alta que Ivsera,
deitada a seu lado, ouviu as palavras que tinham de
atravessar dois capacetes. — Assim que recebermos o sinal
de Thér, daremos nosso golpe.
* * *
Há poucas horas num outro lugar de Isan, num ponto
118
não muito distante de Fenomat, uma nave espacial elíptica
pousara em meio à ampla estepe coberta de capim.
A tripulação da nave constatou que o solo, o ar e os
mares do planeta continham uma dose perigosa de
radiatividade. Em vários pontos da superfície, notaram
vestígios de aglomerações humanas e descobriram que esse
mundo havia sido destruído por uma guerra nuclear, e que
os habitantes deviam ter sido quase todos eliminados.
A nave elíptica havia pousado num ponto situado numa
pequena área em que a dose de emanações radiativas
chegava apenas a um décimo da média do planeta. Era bem
verdade que os quatro tripulantes possuíam equipamentos
protetores de radiações muito mais aperfeiçoados que, por
exemplo, os de Killarog e seu grupo, movendo-se a quinze
quilômetros dali, sem que tivessem notado a presença da
nave. Acontece que o comandante do veículo espacial tinha
por hábito guiar-se em suas decisões pelo princípio da
maior segurança e do menor risco. E, em virtude desse
princípio, não pousaria numa área em que a dose de
radiações chegasse a cem rens por hora, se depois de uma
ligeira busca encontraria outra área em que essa dose estava
reduzida pelo quociente dez.
A nave, que media trinta e cinco por vinte metros,
possuía equipamentos tão sofisticados que, se alguém
perguntasse a Killarog ou a Ivsera, estes só poderiam ter
respondido que nunca acreditariam que uma coisa dessas
jamais poderia existir na história das inteligências
galácticas.
Havia um aparelho que não se incluía nesse
equipamento sofisticado, embora fosse bastante complicado
e por certo teria provocado a admiração de qualquer técnico
em alta frequência de Isan. Era um localizador de impulsos,
que classificava automaticamente segundo a respectiva
frequência qualquer transmissão captada pelo receptor
acoplado ao aparelho, e ainda fornecia dados à calculadora
eletrônica que, em conformidade com os mesmos, decifrava
a transmissão captada. Caso o material verbal fosse
suficiente, traduzia a mensagem de uma língua estranha
para aquela dos tripulantes da nave.
Dessa forma, as comunicações entre Killarog e os
membros de seu grupo haviam sido registradas e traduzidas.
Constatou-se que a língua de Isan — ou ao menos a que
acabavam de ouvir — apresentava forte semelhança com
outra que, embora não fosse a dos tripulantes, era-lhes
bastante conhecida.
O comandante da nave aproveitou o tempo de que
acreditava poder dispor para, mediante um aparelho que
pertencia à classe das maravilhas da técnica, aperfeiçoar
seus conhecimentos e, principalmente, familiarizar-se com
a língua usada por Killarog e pelos membros de seu grupo.
* * *
As horas passaram numa lentidão insuportável. Vez por
outra, Ivsera percebia que os olhos, dirigidos
ininterruptamente sobre a construção de pedra que dava
acesso à comporta de superfície, começaram a iludi-la,
fazendo crer ora que esta se levantava no ar, ora que
afundava no chão.
A única coisa agradável que aconteceu durante a longa
espera foi que o calor ia diminuindo. Vilanet havia passado
pelo zênite e deslocou-se em direção ao norte. O capim
começou a proporcionar um pouco de sombra.
O fato de que nem uma única pessoa do abrigo de
Sallon apareceu junto à comporta deixou Ivsera
desconfiada. Transmitiu suas suspeitas a Killarog e, para
ser entendida melhor, assumiu um risco, levantando o
capacete.
Killarog repeliu seus temores com um gesto e sorriu.
— Não tenha medo, minha filha — disse. — Nas
proximidades da comporta de Fenomat não se viu uma
única pessoa num espaço de oito anos. Por que teríamos de
encontrar alguém em Sallon, justamente durante as poucas
horas que estamos aqui?
Ivsera esteve a ponto de responder que não havia a
menor dúvida de que os ocupantes do abrigo de Sallon
eram muito mais ativos que os de Fenomat. Afinal, há
poucos dias um grupo de Fenomat teve que fugir de certo
número de homens de Sallon, bem armados. Sallon não
podia ser comparado com Fenomat.
Mas preferiu ficar calada. Ainda se sentia constrangida
em dar opinião sobre assuntos que pertenciam
exclusivamente aos homens.
Vilanet baixou em direção ao horizonte e a esfera
vermelha de Vilan subiu, de início fraca, mas tornando-se
cada vez mais nítida. As estrelas começaram a brilhar, e seu
número crescia a cada segundo que passava, até que
cobriram o céu noturno como um tecido fino.
Finalmente Thér deu o sinal. Ivsera ouviu-lhe a voz
exaltada no receptor:
— Conseguiram passar. Saíram no pavimento inferior,
conforme esperávamos. Estão armados até os dentes. Não
sabemos por quanto tempo iremos detê-los. Vejam o que
podem fazer por Fenomat.
Essas palavras não eram muito encorajadoras, mas
Killarog não parecia incomodar-se com isso. Levantou-se e
gritou para que todos ouvissem, mesmo sem o rádio:
— Vamos, rapazes!
Tropeçavam mais do que corriam pela suave encosta
abaixo. A construção da comporta de superfície ergueu-se
em meio à escuridão. Durante as últimas horas, já a haviam
perdido de vista.
A edificação não tinha janelas. Não havia meio de
verificar se estava ocupada, ou se realmente o pessoal do
abrigo de Sallon não tinha a menor ideia do que o esperava.
Killarog não perdeu tempo em verificar. Ivsera achava
que isso era uma leviandade incompreensível. Colocou
cargas explosivas de ambos os lados da pesada porta
metálica e, na ânsia de lutar, recuou apenas alguns passos
antes que as mesmas explodissem.
A porta foi empurrada para dentro. Em meio ao
estrondo das explosões, ouviu-se o ruído das pesadas peças
de aço que batiam no chão.
119
Killarog avançou em meio à fumaça, com a arma
apontada para frente. Voltou a ligar o transmissor de
capacete e gritou:
— Vamos! A comporta está vazia! Avante!
Aquele recinto era menor que o de Fenomat. A escotilha
foi aberta sem dificuldade. Killarog entrou apressado. Pediu
aos que vinham por último que voltassem a fechar a porta.
Killarog soltou um grito de triunfo quando olhou para a
fileira de botões do elevador e viu que o mesmo se
encontrava na altura da comporta.
“Era o que bastava para abrir a porta que fica do lado
oposto do recinto”, pensou.
Ivsera viu-o pegar a chave.
— Espere aí! — gritou. — Pense um pouco antes de
precipitar-se na desgraça. Isto só pode ser uma armadilha.
Estivemos aqui o dia todo e não vimos uma única pessoa;
entretanto o elevador está aqui em cima.
— Que nada! — interrompeu Killarog em tom áspero.
— Não me faça perder tempo, moça. Daqui a alguns
minutos, o abrigo será nosso.
Moveu a chave e a porta do elevador deslizou para o
lado.
Killarog esteve a ponto de precipitar-se para o interior.
Mas, depois de ter dado um passo, parou como se
esbarrasse numa muralha invisível.
Soltou um grito rouco, levantou a pistola destravada que
trazia na mão, e disparou contra um grupo de homens que
se encontravam no elevador, já com as armas apontadas.
Não foi longe. Estes logo responderam ao fogo, e
Killarog caiu sob as rajadas cruzadas das pistolas
automáticas.
Os tiros disparados naquele recinto apertado feriram
mais cinco dos homens de Fenomat. Ivsera viu-os cair. Os
dois últimos de seus acompanhantes que permaneceram de
pé atiraram as armas ao chão e, gritando, correram para
junto da parede.
Ivsera ficou parada, com o cano da arma apontada para
o chão.
— Parem seus idiotas! — gritou em tom furioso para os
homens de Sallon. — Já foi derramado muito sangue. Nós
nos entregamos.
Naquele instante, ouviu a escotilha externa da comporta
abrir-se. Virou-se e viu do lado de fora um segundo grupo
de homens de Sallon.
— Tudo em ordem? — perguntou o que se encontrava à
frente.
— Quase tudo — respondeu um dos homens que se
achavam no elevador. — Este idiota matou Ifers e feriu
gravemente Holran. Mas a moça diz que quer entregar-se.
— A moça? — disse o homem que estava junto à
escotilha e soltou uma risada. — Será que em Fenomat não
existem mais homens?
Ivsera não respondeu. Sentiu-se tomada de cólera. A
cólera dirigia-se contra Killarog, que com sua cega
impetuosidade provocara o desastre.
— Quantos homens de Fenomat ainda vêm atrás de
você? — perguntaram a Ivsera.
— Nenhum — respondeu.
— Não acredito.
— Pois então não acredite.
— Escute aí, moça, se você acredita...
— Cale-se! — ordenou uma voz áspera. — A moça será
interrogada lá embaixo. Vocês ficarão lá fora, até que
tenhamos certeza de que mais ninguém vem de Fenomat. A
demora não será muita. Garok avisa que está progredindo
bem.
“Garok” pensou Ivsera, “deve ser o homem que dirige o
ataque subterrâneo contra Fenomat.”
Tudo indicava que quem falara por último na cabina do
elevador era o chefe da turma de superfície. Os outros
obedeceram imediatamente. A entrada da comporta voltou
a ser trancada. O segundo grupo retornou aos lugares de
antes.
“— O capim constitui um ótimo abrigo” — dissera
Killarog.
“Tanto para os homens de Sallon como para nós”,
completou Ivsera, agora em pensamento.
Killarog foi arrastado para dentro da cabina, tal qual os
feridos. Dois destes já estavam imóveis. Os dois homens
não feridos, que haviam atirado fora suas armas, foram
trazidos atrás dos feridos.
— Entregue sua arma — disse o chefe do grupo,
dirigindo-se a Ivsera.
A jovem obedeceu sem dizer uma palavra. O homem
estendeu a mão. Mas Ivsera deixou a arma cair ao chão.
Ficou espantada ao ouvir que o homem ria baixinho.
— É orgulhosa, hein, moça? Vocês não têm motivo para
isso.
Fitou-o pela primeira vez. Pelo visor do capacete viu um
rosto inteligente, que já não era muito jovem. Ao que
parecia, o homem havia perdido seu sorriso gentil sob a
força das circunstâncias.
Ivsera achou que devia dar uma resposta.
— Se tivessem feito o que eu queria — disse — talvez
há esta hora tivéssemos algum motivo para orgulhar-nos.
O homem fez um gesto sério, mas amável. Depois de
fechar a porta do elevador, comprimiu o botão
correspondente a um dos pavimentes inferiores.
* * *
O elevador levou uma hora para chegar ao destino. Por
isso Ivsera teve tempo para refletir sobre sua situação.
Quanto mais o elevador descia, mais improvável se
tornava que Thér ainda conseguisse alcançá-la com seu
transmissor de potência reduzida. Não mais dera qualquer
aviso, e Ivsera não teve a menor dúvida em ver nisso um
mau sinal.
Lembrou-se do que Killarog lhe dissera sobre as armas
à disposição dos homens de Sallon, em comparação com as
que se encontravam no abrigo de Fenomat. Notou que os
homens à sua frente eram mais ativos e corajosos do que
aqueles conhecidos em Fenomat.
120
Seus rostos estavam marcados pela fome. Talvez fosse
isso que lhes dava coragem.
Na metade do caminho, os trajes à prova de radiações
foram tirados do corpo. Ivsera suspirou aliviada quando
deixou cair a pesada vestimenta ombro abaixo.
Ficou espantada ao notar que os homens de Sallon
usavam roupas melhores que os de Fenomat. Até chegavam
a usar mais vestimentas que ela, uma mulher.
O homem com quem havia falado começou a falar.
— Meu nome é Feriar — disse com uma ligeira mesura.
— Sinto muito que tenha sido atingida tão cruelmente pelo
destino. Quanto a mim, apenas pretendia aprisioná-los. Esse
homem — apontou para Killarog — é o único culpado.
Colocara tamanha ênfase na expressão “quanto a mim”,
que Ivsera teve sua atenção despertada para o fato. A essa
hora já recuperara a naturalidade.
— Quanto ao senhor? Quem mais poderia estar ligado a
isso?
Feriar soltou uma risada triste.
— Sou apenas uma pequena engrenagem do
mecanismo. Com o correr dos anos, os dentes desta
engrenagem se desgastaram. Por isso muita gente já se
pergunta se essa engrenagem não deveria ser retirada do
mecanismo para ser substituída por outra, de dentes mais
afiados.
Lançou um olhar indagador para Ivsera, a fim de
verificar se havia entendido a alegoria. Ivsera fez um gesto
afirmativo e Feriar prosseguiu em voz baixa:
— Prepare-se. Em Sallon, quanto maiores as
engrenagens, mais afiados são os dentes. Nem sempre as
coisas serão tão amenas como estão sendo comigo. Terei de
entregá-la assim que chegarmos lá embaixo.
Ivsera agradeceu com um sorriso. Depois sentou num
canto do elevador, sobre seu traje especial, a fim de
suportar melhor o restante da viagem. Olhava fixamente
para a frente. Estava mergulhada em profundas reflexões.
Um acordo tácito parecia ter sido estabelecido entre ela
e Feriar. Este, que durante quarenta e cinco minutos não
falara com seus subordinados, agora parecia não ter outra
coisa a fazer senão dar-lhes tudo quanto era ordem, e gritar-
lhes quando não as executavam com a necessária rapidez.
O elevador continuou a descer.
Ivsera sondou a situação. O braço estendido de Killarog
com a pistola na mão direita chegava perto de seus pés.
Provavelmente não seria fácil abrir os dedos crispados para
tirar-lhe a arma. Além disso, alguém poderia desconfiar se
esta desaparecesse de repente.
À direita de Ivsera, estava deitado um dos feridos.
Achava-se com os olhos fechados e respirava debilmente.
Não conseguira tirar a pistola do coldre. Encontrava-se
pendurada no suporte de plástico na altura da junção do
cano com o cabo.
Depois de algum tempo, Ivsera sentou de modo a
aproximar-se melhor do ferido. Abaixou-se para examinar o
traje sobre a qual estava sentada.
Quando viu que ninguém estava notando, fez uma
terceira investida. Num movimento rápido, tirou a pistola
do coldre e escondeu-a sob o cinto da jaqueta que constituía
a peça principal de sua vestimenta.
“Ninguém reparou?”, pensou, indagando-se.
“Ninguém?”
Talvez Feriar. Mas este fez de conta que não havia
percebido nada. Apenas parou de transmitir comandos a
seus subordinados.
* * *
Na saída do elevador, os prisioneiros foram transferidos
a outro grupo de homens armados. Feriar mal teve tempo
para fazer um gesto animador para Ivsera.
Os prisioneiros foram tangidos para dentro da galeria
que, partindo do poço do elevador, avançava para o leste.
Marcharam durante uma hora. Ivsera aprendeu a cerrar
os dentes para aguentar o passo. Felizmente, com o tempo,
os soldados também começaram a cansar-se e passaram a
andar mais devagar.
Muita gente cruzou com o triste grupo. A moça notou
que todos eles, tanto homens como mulheres, estavam mais
bem vestidos que as pessoas que ocupavam o abrigo de
Fenomat. Ivsera ficou quebrando a cabeça a este respeito.
Depois de uma série de teorias temerárias, lembrou-se do
motivo que provavelmente seria o mais plausível.
“Os ocupantes do abrigo de Sallon não dispunham de
nenhum químico que soubesse transformar roupas em
alimentos. Por isso não havia necessidade de desfazer-se
das roupas”, pensou.
Mas só o diabo poderia saber de que teriam vivido
durante todo esse tempo.
Finalmente os soldados levaram os três prisioneiros para
uma galeria secundária, mais estreita, que seguia para a
esquerda. Avançaram mais uns cem metros. Pararam diante
de uma porta que, ao contrário das que geralmente são
encontradas nos abrigos, quase chegava a ter a largura de
um portal.
As duas metades deslizaram para o lado sem que
qualquer dos soldados tivesse movido um dedo.
“Provavelmente”, pensou Ivsera, “o comandante do
abrigo de Sallon se dava ao luxo de um olho mágico e de
mecanismo elétrico que abria a porta.”
Os soldados enrijeceram assim que a porta se abriu por
completo. Ivsera ouviu uma voz clara e enérgica, que disse
em tom rangedor:
— Entrem!
Os soldados fizeram continência e entraram, acertando o
passo. Os prisioneiros seguiram-nos. Ao que parecia, os
dois homens de Fenomat sentiam medo e curiosidade ao
mesmo tempo. Já Ivsera andava relaxadamente e o mais
devagar possível, para mostrar ao povo de Sallon que nada
do que eles possuíam a impressionava.
No entanto, o homem que infundia tamanho respeito
nos soldados não deixou de impressioná-la. Pelo tom de
voz acreditara que encontraria um tipo de oficial alto e
rígido. Mas a figura com que se defrontou foi a de um
121
homem ainda jovem, pequeno e gordo, em cujo rosto
brilhava uma expressão presunçosa.
Os soldados pararam diante da enorme mesa, atrás da
qual estava sentado.
— Retirem-se! — ordenou o gorducho. — Esperem lá
fora.
Os soldados desapareceram. O oficial contemplou um a
um os três prisioneiros.
Só no caso da jovem parecia satisfeito com o resultado
da inspeção. Sorriu e com um gesto relaxado mandou que
os dois homens de Fenomat se encostassem à parede. Fez
outro gesto para dar a entender a Ivsera que devia
aproximar-se, mas esta não reagiu.
Ele parecia aborrecido.
— Ei, moça! — gritou. — Aproxime-se.
Ivsera olhou em torno. Fez de conta que só agora o
estava notando.
— Está falando comigo? — perguntou aparentemente
surpresa.
— Claro — resmungou o gorducho. — Com quem
poderia ser?
Ivsera não respondeu. Limitou-se a fitá-lo com uma
expressão séria. Isso o deixou nervoso, e o nervosismo fez
aumentar sua raiva.
— Eu disse que você deve se aproximar! — gritou
depois de algum tempo.
Ivsera não se moveu. Belal levantou-se fungando, saiu
de trás da escrivaninha e fez menção de puxar Ivsera pelo
braço.
— Pense antes de fazer qualquer coisa — recomendou
Ivsera tranquilamente. — É bem possível que acabe
recebendo uma bofetada.
O gorducho estacou, deixou cair a mão, cerrou os olhos
e exclamou:
— Espere aí, minha filha. Vou domá-la. Guardas!
A porta abriu-se, e os soldados voltaram a entrar.
— Levem estes indivíduos. Coloquem-nos no campo de
trabalho C. Nos próximos cinco dias ficarão sem alimento.
São muito gordos.
Os homens de Fenomat não esboçaram a menor
resistência ao serem levados. A porta voltou a fechar-se
atrás dos soldados e dos prisioneiros por eles conduzidos.
O oficial ficou a sós com Ivsera. Esta receava que não
demoraria a chegar o momento em que teria de fazer uso da
arma de que se apoderara às escondidas.
Ele sorriu.
— Agora estamos a sós, moça — disse em voz baixa.
— Você sabe o que isso significa?
— A única coisa que sei — respondeu Ivsera em tom
seco — é que o Conselho do abrigo de Sallon, ou outro tipo
de governo que o senhor tenha, não deixará de chamá-lo à
responsabilidade por violação das leis da guerra.
O oficial escutou com uma expressão de espanto no
rosto. Finalmente soltou uma estrondosa gargalhada.
— As leis de guerra — disse entre os risos — já têm
mais de cem anos. Hoje ninguém mais se lembra delas. Ora
essa, moça! Você é minha, tal qual o abrigo de Sallon. Não
existe ninguém que me possa chamar a responsabilidade.
Ivsera não pôde deixar de observar:
— Pelo que vejo, Sallon pertence a um sujeito muito
desagradável.
No mesmo instante, o gorducho perdeu o bom humor.
Aproximou-se de Ivsera e chiou:
— Não me faça ficar zangado. Estou disposto a
oferecer-lhe um estilo de vida que atualmente nenhuma
mulher em Isan desfruta. Por outro lado, poderei dar-lhe um
tipo de vida que faça você lamentar-se de ter vindo a este
mundo. Entendeu?
Ivsera não perdeu a calma.
— Antes de mais nada, não me trate de “você”; trate-me
de “senhora” — respondeu. — Além disso, dispenso o
estilo de vida que o senhor me quer proporcionar. Prefiro
estar morta que juntar-me a um tipo como o senhor.
Não sabia por quê, mas estava interessada em ofendê-lo.
E conseguiu.
O homem espumou de raiva. Segurando-a pelo braço
esquerdo, sacudiu-a com tamanha violência que os cabelos
voaram de um lado para outro. Pôs-se a gritar:
— Você vai obedecer. Implorará para que lhe poupe a
vida. Até hoje ninguém se opôs a Belal por mais que alguns
minutos.
Face ao nervosismo do gorducho, Ivsera não teve a
menor dificuldade em tirar a pistola. Empurrou o botão da
trava e fez pontaria com toda calma, a fim de não errar o
alvo.
Apenas cometeu um erro. Avaliou a agilidade do gordo
com base no volume de seu corpo.
Belal viu a arma, deixou-se cair para o lado e na queda
bateu na mão da jovem, que soltou a pistola. Ivsera gritou
de raiva e decepção. Ele rolou rapidamente pelo chão,
pegou a arma e levantou-se com um sorriso de deboche.
— Então é isso! — exclamou. — E as leis da guerra?
Será que uma prisioneira pode ameaçar a segurança do
abrigo inimigo com uma arma escondida?
A moça perdera totalmente o autocontrole:
— Mate-me logo! — gritou. — Vamos, atire!
Belal limitou-se a sacudir a cabeça.
— Não, minha filha. Você continuará a viver.
Ivsera investiu sobre ele, levantando as mãos para
golpeá-lo, mas Belal empurrou-a para trás com a maior
facilidade. A jovem caiu e bateu com as costas contra a
parede.
Até parecia que Ivsera acionara um contato invisível.
No momento do choque, a porta abriu-se.
Belal, que até então parecia dedicar todo seu interesse a
ela, levantou a cabeça, espantado.
Ivsera fitou o homem alto e de vestes estranhas que
parou a entrada e, depois de olhar ligeiramente em torno,
penetrou na sala. A porta voltou a fechar-se atrás dele.
“Este homem tem olhos brancos”, pensou Ivsera
apavorada. “Quem já viu um par de olhos desse tipo?”
Os de Ivsera e de todas as pessoas conhecidas eram
122
avermelhados.
Belal recuperou o autocontrole.
— Quem é você? — gritou para o desconhecido. — E
como se atreve a entrar...
O desconhecido interrompeu-o com um gesto
indiferente.
— Não perca seu tempo, meu caro — respondeu em
tom tranquilo. — Não me atrevo a coisa alguma. Ouvi sua
gritaria lá no corredor, e pensei que possivelmente alguém
estaria precisando de auxílio.
Belal perdeu o fôlego. O desconhecido teve tempo de
inclinar-se sobre Ivsera e levantá-la antes que Belal
recuperasse a fala.
— Espere aí, rapaz! Logo espantarei essa sua audácia.
Comprimiu uma fileira de botões presos à escrivaninha.
O ruído abafado das sereias de alarma penetrou pela porta
fechada.
O desconhecido aguçou o ouvido.
— Está chamando sua gente, gorducho? Ainda bem! Só
assim verão que seu comandante é um velhaco.
— Você está louco! — gritou Belal em tom histérico.
— Daqui a pouco estará morto.
O desconhecido acenou com a cabeça.
— Talvez seja você — respondeu tranquilamente.
Belal empalideceu. Sua segurança desvaneceu-se.
Apoiou-se sobre a borda da escrivaninha e perguntou:
— Quem... quem é você?
— O que lhe adiantará saber meu nome? — retrucou o
desconhecido. — Pode chamar-me de Perry; é quanto basta.
Naquele instante, a porta abriu-se. Uma horda de
homens armados até os dentes dispôs-se a penetrar no
gabinete.
— Matem-no! — berrou Belal. — Ele me ofendeu.
Ivsera viu o desconhecido que se identificara pelo nome
de Perry virar-se abruptamente. Levantou o braço direito,
do qual parecia emanar uma força misteriosa. Os soldados
pareciam grudados ao limiar da porta. Até mesmo a voz
esganiçada de Belal morreu.
— Não se apressem — recomendou o desconhecido
com toda a tranquilidade. — Belal está mentindo. Molestou
esta moça, que é uma prisioneira de guerra.
Belal soltou uma risada de deboche. Estava acostumado
a não ver levado a sério qualquer acusação dirigida contra
sua pessoa. Tudo que fazia revertia em proveito imediato
do abrigo de Sallon. Dessa ideia derivava a posição de força
que o oficial desfrutava.
Mas, pela primeira vez, viu seus soldados com os rostos
embaraçados. Não se atreviam a olhar nem para ele, nem
para o desconhecido.
— Voltem rapazes! — ordenou o desconhecido. —
Aqui está sendo julgado um homem que durante vários
anos cometeu crimes e ficou impune.
Ivsera não acreditou no que seus olhos viam. Os
soldados fizeram meia-volta e retornaram ao corredor. A
porta fechou-se atrás deles.
Voltara a ficar a sós com Belal e o desconhecido
chamado Perry.
O gorducho afundara em sua cadeira, incapaz de
pronunciar uma única palavra.
— Viu? — disse Perry com um sorriso. — É o que
acontece com quem muito se gaba.
— Isso... isso... — balbuciou Belal.
— Isso é impossível? Foi o que você quis dizer? Não,
não está havendo nenhuma bruxaria.
Belal lembrou-se de ter ouvido uma alusão a qualquer
julgamento. Sentiu o poder apavorante do desconhecido e
percebeu que, se não fizesse alguma coisa, sua vida poderia
correr perigo.
— Eu... eu... poupe minha vida! — implorou. — Não
farei nada de que você não goste.
Perry soltou uma risada irônica.
— De repente? Não perca tempo, Belal, e não se
preocupe. Poderá ficar com sua vida imunda. Tirarei a
moça daqui e levá-la-ei a Fenomat. Já que demonstra
tamanha boa vontade em fazer-me um favor, eu lhe darei
uma dica. Não ponha as mãos em Fenomat, senão você se
arrependerá.
Ivsera viu o sorriso de deboche que por uma fração de
segundo passou pelo rosto de Belal. Será que o
desconhecido havia visto?
Quase como um sonho, sentiu Perry segurar sua mão.
— Venha comigo — disse. — Vamos retirar-nos e
deixar nosso amigo a sós com seus problemas.
A porta abriu-se. Ivsera e Perry saíram para o corredor.
A jovem olhou para trás e viu que Belal permanecia imóvel
atrás de sua escrivaninha. Ainda continuava paralisado pelo
susto ou então era cauteloso demais para executar qualquer
movimento rápido e revelar suas intenções antes do tempo.
Perry caminhou pelo corredor com a tranquilidade de
quem não tem um único inimigo em todo o Universo.
Algum tempo passou-se até que Ivsera se recuperasse da
surpresa o bastante para falar.
Até então haviam-se encontrado apenas com alguns
homens sem armas, que os fitaram, mas não esboçaram o
menor gesto hostil.
No corredor principal, as coisas seriam diferentes. Por lá
havia mais soldados que civis.
— O senhor... — disse Ivsera, trêmula — o senhor
acredita que conseguiremos sair sem sermos molestados?
Perry virou o rosto em sua direção e sorriu.
— Tenho certeza — respondeu tranquilamente.
Foi só o que disse. E foi pouco para satisfazer a enorme
curiosidade de Ivsera.
— De onde veio o senhor? Não é nenhum dos ocupantes
do abrigo de Sallon, não é? E ainda menos é de Fenomat.
Será que é de Othahey?
Othahey era o país com que Heyatha entrara em conflito
3
123
antes que irrompesse a guerra. E Heyatha era a nação que
tinha Fenomat por capital.
Perry sacudiu a cabeça.
— Não, não venho de Othahey. Se viesse, não poderia
estar tão bem informado sobre os dois abrigos desta cidade.
Um pouquinho do velho espírito de contradição de
Ivsera voltou a manifestar-se.
— Não seria totalmente impossível — respondeu. —
Não acredito que os habitantes de Othahey tenham sido
estúpidos a ponto de não manterem um serviço de
espionagem.
Perry soltou uma risada alegre.
— Talvez tenha razão. Acontece que realmente não sou
de Othahey.
Não contou de onde tinha vindo.
Dali a dois minutos entraram no corredor principal.
Perry seguiu para a direita, em direção ao elevador. Aquilo
que Ivsera temera aconteceu. Com faixas brancas no braço,
uma patrulha militar formada de cinco soldados fortemente
armados barrou o caminho de Perry. Este só parou quando
esbarrou no primeiro soldado e além do mais se pôs a
gritar:
— Seu pateta! Será que você não sabe sair do caminho?
O soldado parecia ter senso de humor. Levantou a arma,
recuou um passo e contemplou Perry, que era muito mais
alto que ele, dos pés à cabeça. Finalmente disse com uma
risada:
— Queira desculpar, general. Será que apesar dos
pesares o senhor não me poderia contar quem é o senhor?
Ou será que possui algum documento?
Perry sacudiu a cabeça.
— Não, meu amigo, eu não possuo nenhum documento.
Seu superior é o capitão Feriar, não é? Leve-me à presença
dele.
Ivsera sentiu-se espantada, e o soldado também. Em
Sallon os soldados não usavam uniformes. Uma pessoa que
não os conhecesse não estaria em condições de adivinhar
quem era o oficial que comandava cada um, mesmo que
conhecesse os homens.
A patrulha fez meia-volta e, com Perry na ponta,
marchou pelo corredor principal, em direção ao elevador.
Ivsera seguiu-os de perto. O desconhecido passou a
infundir-lhe pavor.
O gabinete de Feriar ficava próximo ao elevador.
Quatro soldados postaram-se junto à porta, enquanto o
quinto conduziu Perry e Ivsera para dentro do pequeno
recinto.
Feriar levantou-se de um salto quando reconheceu
Ivsera. Não deu a menor atenção a Perry.
— Santo Deus! — disse muito espantado. — Como
conseguiu livrar-se tão depressa de Belal?
Ivsera fez um gesto e apontou para Perry. Feriar
examinou o homem alto à sua frente.
— Quem é o senhor? — perguntou em tom desconfiado.
Perry sorriu.
— Sou um homem que não possui nenhum documento,
mas faz questão de sair deste abrigo sem ser molestado, e
com esta senhorita.
Feriar respirava com dificuldade.
— Acontece que é uma prisioneira! — disse, arfando.
Abriu a boca para chamar os guardas, mas Perry
interrompeu-o com um gesto.
— Deixe de gritaria — disse em tom enérgico. — Pelo
que vejo o senhor é um homem sensato. Por que vai
trabalhar para um sujeito imundo como esse Belal?
Feriar ficou com a boca escancarada.
— O senhor vê que...
— Exatamente. O senhor sente repugnância pelo
governo autocrático de Belal, não apenas por uma questão
de princípio, mas também porque o ditador vem usando os
poderes de que dispõe em proveito próprio — falava
rapidamente, não deixando que Feriar respondesse. —
Faço-lhe uma proposta. Venha comigo a Fenomat. Garanto
que nada lhe acontecerá.
Estas palavras pareceram exercer uma estranha coação
sobre Feriar. O tom de sua voz não demonstrava muita
convicção, quando procurou formular uma objeção:
— Mas Fenomat está...
— Já sei. Vamos reconquistar o lugar. Será que a tarefa
seria de seu agrado?
Feriar fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. Irei com o senhor.
Ivsera teve a impressão de que estava sonhando. Uma
coisa dessas não podia existir. Um homem solitário e, ao
que parecia desarmado, andava livremente num abrigo cujo
comandante acabara de ofender mortalmente. Para vencer
qualquer obstáculo, apenas dizia algumas palavras e levava
os oficiais à deserção.
Acontece que era exatamente isso. Feriar pegou a arma
e disse aos guardas que levaria os estranhos de volta para
Belal. Depois se dirigiu para a direita, onde ficava o
elevador.
A cabina demorou quinze minutos em chegar. Quando a
porta se abriu, estava vazia. Perry deixou que Ivsera e
Feriar entrassem antes dele. Viu este último estender a mão
em direção ao botão de cima, e exclamou:
— É o contrário, meu amigo. Vamos descer.
Feriar lançou-lhe um olhar perplexo.
— Não pretendo caminhar horas a fio por uma área
contaminada — disse Perry. — Se passarmos pela galeria
recém-aberta, a caminhada será mais fácil.
Feriar obedeceu. Comprimiu o botão de baixo.
Quando haviam descido quatro pavimentos, um sinal
vermelho acendeu-se na parede dos fundos do elevador,
junto ao teto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um zumbido e, lá
fora, o uivo estridente das inúmeras sereias.
Feriar estremeceu.
— É o alarma! — fungou.
Perry fez um gesto de indiferença.
— O que esperava? Que Belal nos deixasse escapar sem
mais aquela?
Logo depois, uma voz metálica soou no alto-falante
124
instalado no elevador:
— Atenção! Alarma em todos os pavimentos! Dois
prisioneiros muito importantes acabam de fugir: uma
mulher vinda do abrigo de Fenomat e um desconhecido que
surgiu não se sabe de onde. Ambos foram condenados à
morte por sentença regular do tribunal de guerra e por isso
terão de ser recapturados, vivos ou mortos.
Seguiu-se uma descrição dos dois prisioneiros. Cabia
ressaltar que, em relação a Perry, Belal, que por certo fora o
autor da descrição, se enganara um pouco. Ao menos,
Ivsera não acreditava que alguém o pudesse reconhecer
com base apenas nos dados vagos fornecidos por Belal.
Feriar começou a inquietar-se.
— Sabe quantas pessoas temos em armas em Sallon?
Perry sorriu.
— Espere... cinco mil e quinhentos, não é? Isso
corresponde a quase oitenta por cento da população
masculina entre quinze e cinquenta anos.
Feriar ficou perplexo.
— Sabe onde essa gente nos procurará? — prosseguiu
Perry. — Lá em cima, na comporta de superfície.
* * *
Perry teve razão. O elevador chegou ao pavimento
inferior, sem que ninguém os molestasse. O corredor que se
estendia diante deles estava vazio.
Sem a menor hesitação, Perry seguiu o caminho que
dava para a direita.
— Guarde a arma — recomendou a Feriar. — Poderei
cuidar de nós três. Na medida do possível, quero evitar o
derramamento de sangue.
Feriar obedeceu sem dizer uma palavra. Desde o
momento em que vira Perry pela primeira vez, Ivsera
começou a acreditar que esse homem possuía um estranho
poder. Será que ele sabia controlar os pensamentos e
desejos de seus semelhantes?
Procurou examinar sua própria mente, mas não
percebeu qualquer alteração.
Subitamente o corredor terminou numa parede cinzenta
e nua. Mas isso não causou o menor embaraço a Perry.
Abriu-a do lado direito e, para surpresa de Ivsera, atrás se
estendia um recinto que tinha o mesmo aspecto do
compartimento de Fenomat, que Killarog lhe havia
mostrado e, tal qual este, possuía duas portas.
A capacidade de orientação de Perry era espantosa.
Dirigiu-se sem a menor hesitação aos dois homens que
montavam guarda junto à segunda porta e disse:
— Deixem-nos passar. Temos de ir a Fenomat para
executar uma tarefa muito importante.
Ao que tudo indicava um dos guardas não teve a menor
dúvida. Mas o outro baixou o fuzil, fechando o acesso à
porta, e disse em tom desconfiado:
— O comandante Belal está procurando uma mulher e
um homem que foram condenados à morte. Conheço o
capitão Feriar. Mas será que vocês não são os fugitivos?
Perry pôs a mão no bolso. Ele o fez numa atitude
indiferente, como quem já está cansado de exibir seus
documentos. E, ao que parecia, os dois guardas pensavam
que se tratasse da identidade de Perry.
Acontece que Perry acabou por tirar um objeto que
tinha certa semelhança com uma pequena pistola. Ivsera
não chegou a ver o que Perry fez com o objeto, mas no
instante em que sentiu uma dor cruciante na cabeça, os dois
soldados caíram imóveis. Nem tiveram tempo para soltar
um grito.
Ivsera teve um calafrio.
— Vamos! — disse Perry em tom tranquilo. — É uma
pena que foram tão desconfiados. Levarão duas horas para
recuperar a consciência. Mas antes disso alguém os
encontrará... e então já saberão onde procurar-nos.
— Não estão... mortos? — gaguejou Ivsera, enquanto
Perry abria a porta.
Perry riu.
— Não. Como já disse, não derramo sangue enquanto
tenho um meio de evitá-lo.
O corredor pelo qual seguiram era mais largo e alto que
aquele que Killarog mandou abrir em prosseguimento ao
abrigo de Fenomat. Ivsera começou a compreender que a
“guerra dos túneis”, nome que costumava dar ao conflito,
fora preparada há muito tempo por parte de Sallon. Deviam
ter levado pelo menos um ano para abrir uma galeria desse
tipo numa extensão de alguns quilômetros.
O corredor estava profusamente iluminado. Percebia-se
que, além dos dois guardas inconscientes, não havia
ninguém por perto. Ivsera achou que isso era um mau sinal
para Fenomat. Se ainda estivesse havendo luta, a galeria se
encontraria repleta de gente armada.
Perry caminhava vigorosamente. Ivsera percebeu que
Feriar examinava repetidas vezes o homem desconhecido,
como se procurasse compreender com quem lidava. Porém,
nada estava conseguindo, pois, de vez em quando, sacudia a
cabeça, bastante contrariado, e murmurava palavras
incompreensíveis. Ivsera o entendia, porque com ela estava
acontecendo a mesma coisa. O desconhecido livrara-a de
uma situação muito perigosa e, ao que tudo indicava, estava
prestes a impor respeito ao regime despótico de Sallon.
Portanto, deviam sentir-se gratos. De outro lado, porém,
começava a apavorá-la por causa dos seus conhecimentos e
capacidades.
Assim, por exemplo, a arma com que acabara de reduzir
os dois guardas à inação. O que seria aquilo? Não os
matara; apenas lhes roubara a consciência. Ivsera tinha
certeza absoluta de que em Isan jamais existira um aparelho
daquele tipo.
A conclusão que se poderia extrair dali era um pouco
arriscada: o desconhecido não era de Isan. Vinha de outro
mundo.
Antes que tivesse início a guerra em Isan, os dois
Estados rivais, Othahey e Heyatha, realizavam esforços
para conquistar o espaço. Em virtude da inimizade que
reinava entre os dois Estados, esses esforços assumiram a
feição de uma corrida obstinada. Depois que vários satélites
125
gravitavam em torno do planeta, o lançamento do primeiro
foguete espacial estava iminente de ambos os lados. E, em
ambos os casos, o destino do foguete seria Vilan II, o
planeta que tinha uma órbita entre dois outros que giravam
em torno de Vilan.
Mas sobreveio a guerra e destruiu tudo que havia sido
criado. Havia uma única coisa que não conseguira destruir:
o saber dos homens, que lhes dizia ser a navegação espacial
não só possível, como necessária, pois em outros mundos
poderia haver outros seres, talvez inteligentes, e que se
deveria tentar entrar em contato com eles.
Será que Perry era um desses seres?
* * *
Depois de uma marcha de três horas, durante a qual se
haviam encontrado com alguns soldados que não criaram o
menor problema, Perry deu outra prova de seus
conhecimentos sobrenaturais. Parou e perguntou:
— A senhora não disse que em Fenomat abriram outra
galeria em direção a Sallon?
A pergunta foi dirigida a Ivsera. A jovem assustou-se.
Tinha certeza absoluta de que nunca havia falado sobre essa
galeria. A não ser com Killarog, que estava morto.
“Será que Perry sabia ler pensamentos?”, pensou.
— Não... — respondeu em tom hesitante — não disse
nada disso. Mas de qualquer maneira essa galeria existe.
Perry sorriu.
— Onde?
Ivsera descreveu a situação da galeria com a maior
exatidão possível. Por algum tempo, Perry parecia bastante
pensativo. Finalmente apontou para a parede da esquerda
do corredor e disse:
— Se neste ponto abrirmos uma galeria que desça dez
graus em relação à horizontal, devemos encontrar a galeria
de Fenomat numa distância de cem metros, não é?
Ivsera não sabia. Além disso, a observação lhe parecia
ser puramente teórica.
“Quem poderia abrir uma galeria numa hora dessas, e
para que poderia servir a mesma?”, refletiu.
— Será preferível que desapareçamos por algum tempo
— apressou-se Perry em explicar. — Uma porção de gente
está atrás de nós.
Ivsera e Feriar olharam para trás. Mas a galeria que se
estendia às costas deles continuava vazia como estivera até
então.
Perry pôs a mão no bolso e tirou a pequena arma com
que fizera desmaiar os dois guardas; entregou-a a Feriar.
Depois fez um gesto em direção à galeria.
— Se aparecer alguma coisa por aí — explicou —
aponte o cano da arma nessa direção e aperte o botão
vermelho. Isso nos livrará dessa gente. Convém olhar de
vez em quando para o outro lado. Provavelmente Belal
procurará agarrar-nos num movimento insinuante.
Não houve a menor objeção. Feriar pegou
cautelosamente a estranha arma e examinou-a. Ivsera
colocou-se a seu lado e, de tão curiosa que estava, nem
percebeu de onde Perry tirou o instrumento comprido que
dirigiu contra a parede esquerda do corredor.
Mas viu que do cano do aparelho saiu um raio luminoso
esverdeado que se alargou em forma de funil e atingiu a
parede. Dentro de poucos segundos surgiu um buraco
profundo. A rocha abriu-se para ambos os lados, como se
tivesse sido transformada em nuvens de gás.
Perry concentrou-se exclusivamente no seu trabalho.
Apesar disso parecia notar os olhares espantados de Ivsera e
Feriar.
— Tome cuidado, Feriar! — recomendou. — Senão de
repente estarão aqui sem que percebamos qualquer coisa.
O misterioso raio verde trabalhava silenciosamente e
com uma rapidez inacreditável. Ivsera assistia com o maior
espanto, mas de repente sua atenção foi desviada.
Uma gritaria e o ruído de passos invadiram o abrigo de
Sallon. À luz das lâmpadas, viam-se soldados que corriam
apressadamente pelo corredor. Ao que parecia Perry os
percebera, embora já tivesse penetrado bem longe para
dentro da parede. Gritou para Feriar:
— Detenha-os apenas por um instante; daqui a pouco
tudo estará resolvido.
Tremendo de medo, não dos soldados, mas da arma
desconhecida, Feriar dirigiu o cano curto sobre os soldados
de Sallon, que já o haviam reconhecido juntamente com
Ivsera e se aproximavam em meio a uma gritaria furiosa.
— Atire! — exclamou Ivsera assustada.
Feriar apertou o botão. Os efeitos do tiro foram muito
maiores do que imaginaria. Até parecia que os homens
haviam batido numa parede: tombaram, ficando imóveis.
Os homens que vinham na retaguarda não sabiam o que
tinha acontecido aos outros, mas compreenderam o perigo.
Abrigaram-se atrás dos corpos dos homens inconscientes e
apontaram os fuzis. Feriar hesitou.
— Cuidado! — gritou Ivsera. — Deite!
No mesmo instante em que os fuzis começaram a
espocar, deixou-se cair para a frente. Feriar continuou de pé
e voltou a levantar a arma. Comprimiu o botão e silenciou
outro grupo dos soldados de Sallon. Só vez por outra, um
ruído soava pelo corredor.
Ivsera ouviu os projéteis baterem contra as paredes e
cantarem ricocheteando.
Algumas peças de metal reluzente caíram bem à sua
frente, continuaram a rolar e imobilizaram-se. Incrédula,
Ivsera pegou uma delas. Era um projétil de fuzil; alguma
força misteriosa fizera com que interrompesse sua trajetória
e caísse ao chão.
Ouviu a voz de Perry, que parecia vir através de uma
parede muito espessa:
— Venham! Já consegui.
Feriar continuava de pé, com os olhos fitos nos homens
inconscientes que estavam jogados no corredor. Ivsera teve
de empurrá-lo suavemente para dentro da galeria lateral que
acabara de ser aberta por Perry.
Com um espanto enorme, ela percebeu que neste meio
tempo a galeria já havia avançado cinquenta metros. De pé
126
no fim do túnel, Perry lhes fez um sinal com a mão.
— Vamos fechar-lhes o caminho — disse. — Andem
depressa!
Feriar despertou do torpor em que se encontrava e
começou a caminhar vigorosamente.
— Cheguem bem perto! — pediu Perry. Dirigiu o cano
comprido de sua arma contra o teto da galeria que acabara
de perfurar. Concentrando os raios num feixe finíssimo,
cortou fendas estreitas na rocha. Dentro de alguns
segundos, fez com que sua entrada desmoronasse.
Prosseguiu na operação, até que a galeria secundária ficasse
obstruída numa extensão de cerca de trinta metros.
— Isso! — disse Perry com uma risada. — Acho que
levarão pelo menos três dias para remover o entulho.
Prosseguiu no seu trabalho e, logo depois, abriu-se o
último pedaço de rocha que dava acesso à galeria do abrigo
de Fenomat.
A fuga fora bem sucedida. O corredor estava vazio.
Talvez os ocupantes do subsolo de Sallon ainda não o
haviam descoberto; ou então, o que era mais provável, não
se interessaram por ele, porque de nada lhes poderia servir.
* * *
Para sua surpresa, no pavimento inferior do abrigo de
Fenomat só encontraram dois guardas, postados na saída do
corredor de Sallon, que dava diretamente para o antigo
gabinete de Havan. Ivsera pensou na cara que este deveria
ter feito quando de repente a parede desmoronou atrás dele
e os soldados de Sallon se precipitaram pela abertura.
Perry liquidou os dois guardas com um único tiro e,
ajudado por Feriar, levou-os a uma sala vizinha. Disse que
a energia do disparo era suficiente para deixá-los
inconscientes por dois dias, e que seria preferível não serem
descobertos antes disso.
Depois dessas palavras, Feriar olhou Perry com uma
expressão séria. Hesitou por um instante e disse:
— Nós lhe devemos muitos agradecimentos, e sabemos
perfeitamente que em Isan deve ser considerado como um
tipo de ser superior. Mas ficaríamos muito mais à vontade
se quisesse dizer-nos o que pretende fazer e,
principalmente, por que pretende fazê-lo.
Perry fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. A resposta à primeira pergunta é fácil.
Pretendo reconquistar o abrigo de Fenomat. Para dar uma
resposta parcial à segunda pergunta, direi o seguinte: se
Belal conservar em seu poder no abrigo de Fenomat, isso
representará o primeiro passo da escalada que fará dele a
potência número um de Isan. Pelo que sei, aqui não existe
nenhum lugar em que haja dois abrigos que fiquem tão
próximos um do outro. Portanto, não haverá ninguém com
maior domínio que Belal. Depois desse passo, o gorducho
fará o possível para dominar todo o planeta; e, uma vez que
será o maior poder, deverá conseguir.
Perry fez uma ligeira pausa e prosseguiu em tom
ligeiramente irônico.
— Uma vez que Belal pretende instalar o sistema
ditatorial em Isan, deveremos estragar seus planos.
Feriar fez um gesto afirmativo; parecia muito sério.
— E a outra parte da resposta? — perguntou Ivsera.
— Deveremos estar juntos por mais algum tempo antes
que eu possa dar a resposta integral. Por enquanto, nada
posso adiantar.
Feriar interveio:
— O senhor dispõe de uma série de armas que lhe
garante uma superioridade absoluta sobre qualquer inimigo.
Mas será que conseguirá dominar a guarnição do abrigo,
que deve ser superior a mil homens? Convém não esquecer
que estas instalações são muito complicadas. Para uma
pessoa isolada é praticamente impossível orientar-se por
aqui.
Perry exibiu um sorriso condescendente.
— Para mim não haverá o menor problema; pode
acreditar — respondeu.
Perry pôs a mão num dos bolsos de seu traje esquisito.
Tirou um objeto quadrado, achatado e que, de tão pequeno,
facilmente poderia ser escondido na palma da mão de
qualquer pessoa.
Ivsera ouviu-o dizer algumas palavras, enquanto
encostava o pequeno aparelho à boca. Não compreendeu
essas palavras.
Mas, em Isan havia uma única língua, motivo por que o
conceito de idioma estrangeiro era totalmente desconhecido
dos habitantes do planeta. Por isso Ivsera viu no fato de não
ter entendido a fala de Perry mais uma prova de que o
mesmo provinha de um mundo desconhecido.
Ao que parecia Feriar ainda estava longe de chegar a
uma conclusão desse tipo. Fitou-o com uma expressão
incrédula enquanto Perry falava para dentro do minúsculo
aparelho. Mas, quando de repente, ouviu uma voz saindo
desse aparelho, e que tal qual Perry emitia sons de uma
língua estranha, ficou apavorado.
* * *
John Marshall ocupou o lugar de Perry Rhodan,
enquanto este foi verificar o resultado do empreendimento
do qual tivera conhecimento por meio da escuta das
palestras de Killarog.
E a transmissão que tanto espanto causou em Ivsera e
Feriar, fora dirigida a Marshall. E este captou um ligeiro
relato da situação e obteve estas instruções:
— Arme-se com um desintegrador e um radiador de
impulsos térmicos e venha até aqui. Vamos atacar o abrigo
simultaneamente de dois lados. Laury ficará com Rodrigo.
Entendido?
— Perfeitamente. Permanecerei em contato com o
senhor.
— Está bem — concluiu Rhodan. — Faça o possível
para não matar ninguém.
* * *
A reconquista do abrigo de Fenomat não passou de uma
farsa. Perry atravessou os corredores e deixou todo mundo
127
inconsciente com a arma misteriosa. Caberia a Feriar e
Ivsera separar os homens de Fenomat dos de Sallon. Os
primeiros ficariam estendidos no chão até que recuperassem
os sentidos; os outros seriam amarrados.
Antes do início da operação, Perry fechara às
extremidades de ambas as galerias, a fim de impossibilitar a
remessa de reforços de homens e materiais para Fenomat,
ao menos por via subterrânea.
O abrigo de Fenomat era formado de um total de cem
pavimentos. Face à arma de grande alcance de que
dispunha Perry não demorou mais de uma hora na operação
de limpeza de cada um. Vez por outra, recorria ao aparelho
quadrado para conversar com alguém numa língua estranha.
Quanto ao conteúdo das palestras, apenas disse a Ivsera e
Feriar que um amigo seu havia iniciado a limpeza do
abrigo, começando da parte de cima e que, dentro em breve,
se encontrariam com ele na altura do quinquagésimo
pavimento.
Uma coisa que quase chegava a ser mais espantosa que
a série de acontecimentos foi a persistência com a qual
Rhodan se dedicou à tarefa. Depois de concluída a limpeza
de dez pavimentos, Feriar teve de ser substituído por um
elemento de Fenomat, já que não conseguia manter-se de pé
de tão cansado que estava. Ivsera desistiu depois de mais
dois pavimentos, após ter providenciado um substituto
saído das fileiras dos homens que já haviam despertado.
Quanto a Perry, este não demonstrou o menor sinal de
cansaço. Tinha o aspecto de quem acabava de acordar de
um sono reparador. Ivsera sentiu vergonha, mas enquanto
ainda estava com vergonha adormeceu.
Quando abriu os olhos, um silêncio total reinava em
torno dela. A maioria das pessoas inconscientes havia
recuperado os sentidos. Como estas não tivessem a menor
idéia do que acontecera, mantinham-se em silêncio. Os
prisioneiros vez por outra faziam um esforço de livrar-se
das amarras ou sair dos calabouços fechados com portas de
aço, mas não conseguiram nem uma coisa nem outra.
Assim, acabaram por conformar-se com o destino.
Alguns se lembraram de terem visto Ivsera em
companhia do homem que com sua arma havia criado toda
a confusão. Por isso, a mesma foi assediada com perguntas
logo que se levantou. Mas em vez de responder correu em
direção ao elevador e subiu a fim de procurar Perry.
Encontrou-o no quadragésimo oitavo pavimento. Ao seu
lado estava Feriar e mais um homem que tinha olhos
brancos que nem Perry e trazia na mão uma arma igual à
que este usara.
Perry sorriu para a jovem.
— Tudo liquidado — disse. — O abrigo está em nosso
poder. Ivsera, este é meu amigo Marshall. Se não fosse ele,
teríamos mais algumas horas de trabalho.
Ivsera inclinou a cabeça para Marshall. Este a
cumprimentou com um sorriso alegre.
— Imagine! — prosseguiu Perry. — Ainda havia um
foco de resistência em Fenomat. Um punhado de jovens
defendia-se com as poucas armas de que dispunha contra as
investidas dos homens de Sallon. Estavam entrincheirados
nos laboratórios químico-biológicos.
Ivsera aguçou o ouvido.
— Sabe os nomes deles? — indagou.
— Sei os nomes de dois. Um se chama Thér e o outro
Irvin.
Ivsera soltou um grito de alegria.
— Thér e Irvin. Coitados!
— Sim, quase não conseguiam manter-se de pé de tão
famintos que estavam. Logo lhes dei alguma coisa para
comer. Aliás, ao que parece a questão dos abastecimentos
está se transformando no problema mais grave deste abrigo.
Todos os ocupantes estão subnutridos. Não têm
mantimentos?
Ivsera fez um gesto de desânimo.
— Não, mais nada.
Perry não se impressionou.
— Bem, nesse caso teremos de arranjar alguma coisa.
A tarefa de conseguir mantimentos para mais de dez mil
famintos não causava a menor dor de cabeça a Rhodan.
Feriar tomou a palavra.
— Perry pretende apoderar-se também de Sallon. O que
acha disso?
Ivsera abriu os dedos.
— Se quisesse poderia conquistar todos os abrigos de
Isan.
— Não estou interessado nos abrigos; apenas em Belal
— disse Perry, sacudindo a cabeça.
Ivsera sentiu que naquela altura as questões políticas já
não exigiam sua presença. Um ser mais poderoso assumira
a regência, e qualquer tentativa de ajudar ou oferecer
resistência só poderia conduzir ao ridículo.
Depois de obter a concordância de Perry, ela instruiu
alguns homens de Fenomat a tirarem as roupas dos
prisioneiros, com exceção do estritamente necessário, e as
levarem ao laboratório. Pelos seus cálculos, isso lhe
permitiria fabricar uma ração completa de um dia para cada
cidadão de Fenomat. Dessa forma, poderiam resistir até que
Perry lhes trouxesse um auxílio que resolvesse a situação
em definitivo.
No laboratório encontrou-se com Irvin e Thér. Irvin
abraçou-a de tão eufórico que se sentiu. Antes, nunca se
teria permitido esse tipo de liberdade.
— Moça, como estou satisfeito em revê-la! —
exclamou.
Ivsera desprendeu-se dos braços de Irvin e fitou-o.
Achava-se bastante mudado depois que o vira pela última
vez. Ao que parecia, só faltara a luta para transformar o
rapaz num homem de verdade.
— Pelo que ouvi dizer, você se transformou num herói
— disse Ivsera.
Irvin riu.
— Não foi por minha vontade — respondeu. — Este
feitor de escravos — prosseguiu, apontando para Thér —
apareceu de repente com três homens, colocou um fuzil na
minha mão e gritou: “O pessoal de Sallon está chegando!
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Atire neles, senão atirarão em você!” Atiramos em quatro.
Não tive outra alternativa. Com os produtos químicos que
temos aqui, fizemos granadas de mão e limpamos a área.
Poderíamos resistir indefinidamente, se não fosse a fome.
Mas aquele milagreiro desconhecido chegou bem na hora.
Aliás, quem é?
Ivsera explicou que sabia tanto quanto ele mesmo.
— A esta hora está fazendo uma limpeza em Sallon, não
é? — resmungou Thér de repente. — Tomara que encontre
Havan, o traidor.
Ivsera virou-se abruptamente.
— O quê? Havan é um traidor?
— Então você ainda não sabia? — perguntou Irvin. —
Há vários anos está compactuando com os homens de
Sallon. Pelo que dizem Belal lhe prometeu que depois da
conquista de Fenomat, Havan seria uma espécie de
governador. Não foi por acaso que a galeria escavada pelos
ocupantes de Sallon saiu justamente no gabinete dele.
Ivsera soltou um gemido. Havan, um traidor! Há muito
tempo ela o tinha na conta de um homem egoísta,
arrogante, intrigante e mais uma porção de coisas. Mas
nunca imaginaria que poderia transformar-se num traidor.
Subitamente lembrou-se de algumas palavras ditas por
ele:
“— Por enquanto ainda temos um Conselho...”
Então foi isso que ele quis dizer.
Ivsera estremeceu ao pensar no destino que aguardaria
Havan se conseguissem prendê-lo. Segundo as leis de
guerra que prevaleciam em todos os abrigos, a pena pela
traição era uma só: a morte.
Sacudiu esses pensamentos e passou os olhos pelas
fileiras de instrumentos reluzentes. Seu olhar recaiu sobre o
monte de roupas tomadas dos prisioneiros, que os coletores
estavam empilhando num canto.
— Vamos ao trabalho! — disse, dirigindo-se a Irvin. —
Precisamos comer alguma coisa.
Perry Rhodan não tivera a intenção de interferir nos
acontecimentos que se desenrolavam em Isan.
Acompanhado de Gucky, o rato-castor, dos mutantes
Laury Marten e John Marshall, e finalmente do conde
Rodrigo de Berceo, libertado do zôo galático, Rhodan teve
muito trabalho em escapar no seu jato espacial de Tolimon,
o mundo dos aras. Marshall e Laury haviam recebido a
incumbência de procurar descobrir em Tolimon o segredo
do medicamento que retardava a decadência das células,
exercendo as funções de um verdadeiro elixir da vida.
Laury conseguira obter permissão para penetrar no zoo
galáctico, no qual os aras haviam internado seres de todos
os setores conhecidos da Galáxia. Um dos ocupantes do
zoológico, que segundo a classificação arcônida pertencia
ao grau de inteligência C, era o conde Rodrigo de Berceo,
um terreno do século XVII. Laury cometeu o erro de
apaixonar-se por esse homem. No fogo da paixão, fez certas
coisas que provocaram a desconfiança dos aras. Rhodan
teve de intervir. Não conseguiu encontrar a fórmula
estrutural do elixir da vida. Mas fugiu de Tolimon em
companhia dos dois mutantes e do infeliz Rodrigo. Além
disso, Laury conseguiu subtrair uma garrafa do precioso
elixir.
Uma série de saltos de transição levou o jato espacial
para além do alcance das naves que o perseguiam e para o
interior do coração da Galáxia. O veículo espacial
encontrava-se fora das rotas da navegação cósmica. Rhodan
pretendia passar uns trinta dias no acompanhante do sol
azul do astro geminado, esperando que nesse tempo a
caçada fosse suspensa.
Sabia perfeitamente que os acontecimentos de Tolimon
poderiam provocar o interesse da central positrônica do
Império Arcônida. Se as informações sobre o incidente de
Tolimon que chegassem ao seu conhecimento fossem
suficientes, havia o risco de concluir que só Rhodan poderia
ser responsável pelos mesmos. E Perry era considerado
como morto pelo cérebro positrônico. E a crença de que há
mais de cinquenta anos a Terra fora destruída e a
Humanidade eliminada por um ataque dos saltadores teria
que ser mantida viva.
Só essa manobra desviacionista permitira à Terra chegar
ao fim do século XX sem ser atingida pelas perseguições
dos saltadores e pelos ciúmes do cérebro positrônico. E
agora, cinquenta e seis anos depois da manobra, o êxito
desta poderia ser frustrado.
Será que cinquenta e seis anos foram suficientes para
transformar a Terra num mundo que pudesse afirmar-se no
confronto das potências galácticas? Já teria chegado a hora
de suspender o jogo de esconder?
Rhodan acreditava que sim, mas não tinha tanta certeza.
Por isso achou preferível que os perseguidores perdessem
sua pista.
Durante o pouso em Isan os instrumentos constataram
uma radiatividade extraordinária na atmosfera do planeta.
As ruínas existentes nos dois continentes faziam concluir
pela ocorrência de uma guerra nuclear que deveria ter sido
travada há alguns anos.
Depois do pouso do jato espacial, Rhodan acompanhou
a troca de mensagens entre Killarog e seus companheiros.
Mandou que Gucky, o rato-castor, procurasse localizar
outros sobreviventes na superfície do planeta. Para executar
a tarefa, Gucky recorreu aos seus dons parapsicológicos e
paramecânicos: a teleportação e a telepatia.
Rhodan pôs-se a caminho para examinar os dois abrigos
mais próximos. Nessa oportunidade, viu-se numa situação
que o obrigou a intervir nos acontecimentos.
E agora, dois dias de Isan depois de sua primeira
aparição, mantinha os dois abrigos firmemente em suas
mãos e recebera de Gucky a notícia de que em Isan havia
um total de onze abrigos intactos. Outros cinco, que
4
129
ficavam exatamente no centro das explosões nucleares, não
haviam resistido ao impacto.
A conquista do abrigo de Sallon correu sem incidentes,
mas o resultado da operação não foi satisfatório para
Rhodan e Marshall, pois não encontraram Belal nem
Havan, o traidor.
Estavam desaparecidos e, conforme Rhodan soube de
várias pessoas, com eles desapareceram cerca de cem
homens fortemente armados.
De início, Rhodan acreditou que não teria a menor
dificuldade em localizar Belal e Havan e obrigá-los a
capitularem. Mas constatou-se que não estavam escondidos
em nenhum dos dois abrigos, nem em qualquer lugar na
superfície.
Rhodan convencera-se de que o abrigo de Sallon
disporia de uma galeria secundária ou de um corredor
situado bem embaixo da superfície e que levava a esta.
Sobre a existência deste refúgio, apenas algumas poucas
pessoas estavam informadas. E nenhuma dessas ficou para
trás, conforme se apurou num rigoroso interrogatório dos
prisioneiros.
Por isso, Rhodan teria de contar com os próprios
recursos a fim de descobrir o caminho pelo qual Belal e
Havan haviam fugido.
Por enquanto não pensava nem de longe que a fuga de
Belal poderia representar um perigo para ele. Acontecia,
porém, que sua permanência em Isan seria limitada, e assim
queria providenciar para que mesmo depois de sua partida,
Havan e Belal não pudessem colocar em perigo a
democracia dos dois abrigos.
* * *
Belal não dava a perceber que se encontrava em
situação difícil. Para ele, uma situação só se torna
desesperadora quando está com a faca sobre o peito e as
mãos amarradas. E essa atitude face ao destino era um dos
motivos por que Belal era um inimigo muito perigoso.
— Então, o que me diz? — perguntou em tom áspero ao
homem de meia-idade que se encontrava à sua frente.
O homem era Malanal, um cientista e um gênio em sua
especialidade, as ciências naturais. Desde o início, Belal
acreditara que um dia poderia precisar dele. Por isso
interessou-se por sua pessoa e, valendo-se dos recursos
existentes no abrigo, mandara construir um amplo
laboratório equipado com instrumentos valiosos. As salas
em que foi instalado o laboratório haviam sido escavadas na
rocha cerca de um ano depois da guerra e obtiveram dois
acessos secretos. Alguns dos homens que trabalharam na
obra pertenciam à guarda pessoal de Belal, na qual o
mesmo confiava irrestritamente, e outros desapareceram em
algum campo de trabalho, de onde nunca retornaram.
Quando surgiu a intervenção do desconhecido chamado
Perry, Belal percebeu que sua precaução não fora supérflua.
Retirou-se para o laboratório juntamente com sua guarda
pessoal e alguns elementos de confiança, e teve certeza de
que por enquanto não seria descoberto.
Esse “por enquanto” lhe bastava. Belal não pretendia
reconhecer Perry por muito tempo como o dono da
situação. Malanal desempenhava um papel importantíssimo
em seus planos.
O cientista abriu os dedos, para dar a entender que não
estava em condições de fornecer informações minuciosas e
fidedignas.
— Mandei que dois dos seus homens subissem Belal...
— Tomara que não tenham andado por aí de maneira a
serem vistos do veículo — interrompeu Belal em tom
zangado.
— Não. Agiram com todo o cuidado. Lá em cima não
saíram ao ar livre. Do buraco atiraram algumas pedras
contra o veículo.
Belal franziu a testa.
— Que bobagem é essa?
— A alguns metros do casco do veículo as pedras
ricochetearam, como se tivessem batido numa parede
invisível, e caíram ao chão. Vemo-nos diante do mesmo
fenômeno relatado pelas pessoas que perseguiram a
prisioneira Ivsera e o capitão Feriar. Os desconhecidos
sabem envolver-se por um campo protetor no qual nenhum
tipo de matéria consegue penetrar.
Belal olhou fixamente para frente.
— Quer dizer que seria totalmente inútil tentar atacar o
veículo? — perguntou depois de algum tempo.
Malanal sacudiu a cabeça. Belal impacientou-se.
— Fale logo!
Malanal inclinou ligeiramente o corpo.
— Num certo momento, esse desconhecido que atende
ao nome de Perry desejará voltar ao veículo — explicou. —
Uma vez que também é feito de matéria, não poderá entrar
se os campos defensivos não forem desativados por um
instante. Se no mesmo instante submetermos a nave a um
bombardeiro cerrado, provavelmente conseguiremos
destruí-la.
Belal contorceu o rosto.
— Não quero destruir a nave — exclamou. — Apenas
quero danificá-la, pois pretendo retirar-lhe alguns
instrumentos.
Malanal fez um gesto de concordância.
— Perfeitamente, Belal. Isso depende da intensidade do
bombardeio. Este ponto não é da minha competência.
Belal levantou-se.
— Muito bem. Tomarei todas as providências. Acredito
que dois lança-foguetes de três polegadas serão suficientes
para danificar a nave e matar os desconhecidos ou colocá-
los fora de combate. Mandarei que os homens assumam
imediatamente seus postos na entrada da superfície. Foi
uma sorte o desconhecido ter pousado justamente nesse
lugar.
Saiu da sala sem dignar-se de dirigir outra palavra a
Malanal.
O setor secreto em que ficava o laboratório do abrigo de
Sallon consistia num único corredor com vinte salas. Cinco
delas serviam de residência aos cientistas, enquanto as
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demais eram ocupadas pelo laboratório.
Nos sete anos decorridos desde a instalação do
laboratório, os cientistas haviam adiantado as pesquisas e
alcançaram resultados que, segundo acreditava Belal, não
foram atingidos em qualquer outro abrigo.
Assim, Belal garantiu uma superioridade absoluta para o
dia em que os habitantes de Isan pudessem voltar à
superfície de seu mundo e começassem vida nova.
Numa das vinte salas do abrigo de Sallon, Havan
instalara-se juntamente com três guarda-costas que Belal
colocara à sua disposição. Não o fez porque receasse pela
vida de Havan, mas por acreditar que o caráter deste se
assemelhava tanto ao seu e, assim, não deveria confiar nele.
Nos dias que se passaram depois da queda do abrigo de
Sallon, Havan parecia muito mais abatido que Belal. Este
começou a acreditar que no entender do traidor a situação
realmente era desesperadora.
Essa situação lhe convinha, e por isso só transmitiu
pequena parte da conversa que manteve com Malanal e das
esperanças que este lhe infundira.
Havan fez um gesto melancólico. Belal retirou-se para
fazer uma ligeira sesta em seu quarto.
O traidor deu-se ao trabalho de ficar com a porta aberta
e certificar-se de que Belal não voltaria. Depois se dirigiu
aos guarda-costas.
— Ele não me contou tudo. Vocês não perceberam?
Malanal disse mais que isso. Provavelmente existe uma
possibilidade de enfrentar os desconhecidos. — Preciso
saber disso. Procurem descobrir! Já sabem qual é a
recompensa que receberão.
Os guarda-costas confirmaram com um aceno de
cabeça. Por certo, Belal não teria dormido tão
tranquilamente se soubesse que Havan sabia conquistar a
dedicação de seus próprios subordinados por meio de um
jogo de promessas e ameaças. Naquela hora já não se
sentiam empolgados pelas funções que Belal lhes havia
atribuído, pois Havan prometeu que lhes colocaria à
disposição um abrigo com os ocupantes. Isto aconteceria
quando o desconhecido e Belal tivessem sido subjugados e
quando todos os abrigos de Heyatha e talvez também os de
Othahey tivessem caído nas mãos de Havan através das
artes técnicas de Malanal.
Por enquanto havia um ponto fraco no plano tático de
Havan: o cientista Malanal. O traidor constatara que a
equipe científica estava inteiramente dedicada ao velho.
Não havia como obter acesso aos segredos do laboratório
sem a cooperação de Malanal.
Acontece que Malanal era um homem que sabia guardar
distância. Havan tinha a impressão de que Malanal não
concordava com Belal em todos os pontos. Mas, quando o
traidor pensou que poderia aproveitar esse fato como ponto
de partida para minar as boas relações existentes entre o
ditador e o cientista e conquistar o apoio do segundo,
defrontou-se com a resistência deste. Na oportunidade,
Malanal explicou-lhe que jamais trabalharia para Belal ou
para Havan, mas apenas para a ciência.
Todavia, declarou-se disposto a não revelar a Belal o
conteúdo da palestra que mantivera com Havan.
* * *
Perry Rhodan pretendia utilizar Gucky na operação de
busca que visava à descoberta de Belal e Havan, assim que
o rato-castor regressasse da viagem de inspeção.
Gucky era teleportador. Era capaz de saltar ao acaso
pelos arredores do abrigo, o que lhe permitiria encontrar o
esconderijo.
No entanto, dois dias depois da conquista de Sallon,
Laury informou numa mensagem transmitida em tom
exaltado que Gucky voltara para o jato espacial,
inconsciente e gravemente ferido. O salto que o trouxera de
volta à pequena nave espacial consumira suas últimas
energias. Sangrava de várias feridas que, segundo as
informações de Laury, haviam sido produzidas por simples
tiros de fuzil. A mutante era bem versada em enfermagem,
motivo por que Rhodan podia deixar Gucky entregue aos
seus cuidados. Laury garantiu que dentro de alguns dias o
rato-castor estaria em perfeita forma.
Por enquanto ninguém sabia o que lhe havia acontecido.
Como também possuísse o dom da telepatia, dificilmente
poderia ter sido atingido por qualquer atirador. Teria
adivinhado os pensamentos do atacante. Talvez tivesse
caído numa armadilha mecânica. Face à desconfiança que
os sobreviventes da grande guerra de Isan nutriam uns para
com os outros era perfeitamente possível que nos abrigos
houvesse dispositivos automáticos de tiro ou outros
mecanismos semelhantes. E Gucky estaria indefeso diante
dos mesmos, caso se arriscasse demais.
Para Rhodan os ferimentos sofridos por Gucky
representavam um inconveniente muito sério. Havia
necessidade absoluta de encontrar Belal e Havan, pois do
contrário todos os esforços em prol do estabelecimento de
uma nova ordem nos dois abrigos provavelmente teriam
sido realizados em vão.
Os ocupantes dos abrigos de Fenomat e Sallon
consumiram metade dos alimentos concentrados que o jato
espacial trazia a bordo. Face à natureza destes a sensação de
saciedade duraria cerca de trinta dias. Rhodan esperava que
nesse tempo conseguiria obter alimentos naturais não
concentrados. Do contrário teria de chamar uma nave
terrana com mantimentos.
* * *
No dia seguinte, Marshall fez uma descoberta
importante. Depois de concluída a operação a dois na
conquista nos abrigos, permaneceu em Sallon, onde
procurava descobrir a pista de Belal e Havan.
Revistou cuidadosamente o abrigo e acabou parando na
usina que gerava a energia necessária à iluminação, à
renovação do ar e a várias outras finalidades.
Foi por simples acaso que nessa oportunidade Marshall
fez a descoberta. O acaso consistia no fato de que ao
mesmo tempo em que o chefe dos mutantes se encontrava
131
na usina energética, Malanal realizava no laboratório
secreto uma experiência que consumia uma quantidade
considerável de energia elétrica.
Marshall realizara um cálculo aproximado e chegara à
conclusão de que o abrigo consumia, em média, um total de
duzentos mil quilowats. Estava tão convencido de seu
conhecimento que não admitia uma variação acima de
cinquenta por cento.
Ao ler o quadro do cabo principal da usina, constatou
que a energia fornecida naquele momento atingia mais de
um milhão de quilowatts. Pelos seus cálculos, isso era
impossível.
Chamou Rhodan, pois tinha certeza de ter descoberto
uma pista. Rhodan veio imediatamente. Mandou que por
alguns minutos todos os pontos de consumo de energia do
abrigo propriamente dito fossem desligados. Com isso o
desempenho da usina teria de baixar para zero. No entanto,
ainda subsistiu um fornecimento de pouco menos de
oitocentos mil quilowatts, ou seja, o quádruplo do que,
segundo os cálculos de Marshall, representava o gasto total
do abrigo. E essa força fluía para algum canal secreto.
Rhodan levou quinze minutos para localizar a série de
cabos pelos quais corria a energia. Dali a pouco o consumo
extraordinário diminuiu de repente para cem quilowatts.
Rhodan estava satisfeito.
— Está bem — disse, dirigindo-se a Marshall. —
Espere aqui. Irei à nave e trarei um desintegrador de
tamanho grande. Se seguirmos os cabos, encontraremos o
esconderijo de Belal.
Sorriu ligeiramente e acrescentou:
— Belal não foi muito hábil, pois do contrário teria
instalado uma usina energética autônoma no abrigo.
Gostaria de saber o que faz com os oitocentos mil
quilowatts.
Rhodan voltou à superfície pelo caminho mais rápido. O
traje que usava, e que tanto chamara a atenção de Ivsera,
representava um aperfeiçoamento do traje transportador
arcônida. Não chamava tanto a atenção, mas em
compensação a potência de seu gerador antigravitacional
era dez vezes maior. O campo de deflexão e o campo
defensivo trabalhavam com circuitos independentes; cada
um dispunha de suprimento de energia em quantidade
suficiente. No caso de numerosos impactos de projéteis, já
não seria necessário renunciar à invisibilidade para evitar a
penetração dos mesmos.
Assim que saiu da comporta de superfície, Perry subiu
ao ar e, deslocando-se em alta velocidade pouco acima do
capim, tomou a direção do jato espacial.
Já era noite.
“Uma noite muito estranha”, pensou Rhodan.
A bola vermelho-escura do sol Vilan brilhava no
horizonte, e inúmeras estrelas salpicavam o céu tingido de
vermelho.
Rhodan levou apenas alguns minutos para chegar à nave
espacial. Usou o pequeno transmissor que sempre trazia
para enviar o sinal codificado automático que desativava os
campos defensivos por um instante, permitindo seu
ingresso na nave.
* * *
De início Belal pretendera executar o golpe sozinho.
Mas Havan insistiu tanto que acabou concordando com a
sua companhia. O que o levou a tomar esta decisão foi
principalmente a informação dos três guarda-costas de
Havan, segundo a qual acabaria caindo na melancolia se
não houvesse logo uma variação em sua rotina de vida.
Belal estava firmemente decidido a eliminar Havan o
quanto antes, para que este não pudesse interferir em seus
planos. No entanto, por ora convinha que o traidor
acreditasse que era um elemento útil, tratado de igual para
igual. Havia vários motivos para isso. Um deles consistia
no fato de que Havan dispunha de vários adeptos em
Fenomat, que no caso de um confronto se guiariam
exclusivamente por sua palavra.
Belal considerou tão importante a neutralização do
veículo inimigo, do qual a essa altura também Malanal
acreditava tratar-se de um tipo de nave espacial, que
resolveu postar-se pessoalmente na saída do setor secreto
do laboratório, em companhia de Havan e dois elementos
de toda confiança. Os dois soldados colocaram os lança-
foguetes em posição de tiro. No momento decisivo, bastaria
abrir a portinhola e fazer fogo.
Um tipo de telescópio, cuja objetiva saía apenas alguns
centímetros acima do nível do solo, garantia a visão perfeita
do estranho veículo. A objetiva era de formato irregular e
possuía o aspecto de uma pedra que se encontrasse ali por
acaso. Belal tinha quase certeza de que os ocupantes do
veículo — se é que no momento havia alguém a bordo —
não perceberiam nada.
* * *
Laury não tinha mãos a medir. O rato-castor,
gravemente ferido, precisava de cuidados constantes. Era
bem verdade que o uso dos medicamentos que o jato
espacial trazia a bordo eliminara por completo o risco de
infecção. Mas Gucky estava bastante debilitado, e a
reconstituição de suas energias seria levada a efeito
progressivamente.
O rato-castor já recuperara a consciência. Contou a
Laury o que lhe havia acontecido. Conforme supusera
Rhodan, caíra numa armadilha mecânica enquanto
examinava um abrigo do lado de dentro. Não havia ligado o
campo defensivo, pois estava protegido pelo campo de
deflexão e acreditava ter todos os motivos para pensar que
ninguém atiraria contra uma criatura invisível. Enganara-se
e agora, cheio de arrependimento, lembrava-se do conselho
de Rhodan, que lhe recomendara que não assumisse o
menor risco e, principalmente, que em hipótese alguma
penetrasse num abrigo.
Além de Gucky, o conde Rodrigo de Berceo exigia os
cuidados de Laury.
Rodrigo dera a entender, de forma pertinaz e
132
inequívoca, que “o arranjo dos assuntos pessoais” de um
homem deve ter primazia sobre o amor. Assim a paixão de
Laury pelo conde asteca-espanhol diminuíra um pouco.
Além disso constatou-se que para um homem raptado na
Terra em pleno século XVII e mantido numa espécie de
museu zoológico, longe do processo tecnológico, o salto
para o mundo do século XXI estava ligado a dificuldades
consideráveis que por vezes chegava a abalar os alicerces
de suas estruturas mentais. Dali em diante, o resto da
paixão desvanecera-se, cedendo lugar a uma afetuosa
compaixão.
Laury conseguiu convencer Rodrigo de que seria
ridículo andar por aí de botas de cano alto, cachecol,
chapéu de penacho e mangas de renda. Rodrigo passou a
usar o macacão dos astronautas terranos. É bem verdade
que levou mais algum tempo para dispensar a espada.
Laury ainda conseguiu fazer com que Rodrigo deixasse de
acreditar que o mundo teria que curvar-se ante ele
unicamente porque era descendente de nobres. Mostrara-lhe
que hoje em dia, especialmente para quem se encontrasse
numa situação como aquela com a qual o jato espacial se
defrontara durante a fuga de Tolimon, a única coisa que
importava era ser mais inteligente e forte que os outros.
Mas Laury esquecera um detalhe. Um conjunto de
opiniões firmemente enraizadas não pode ser extirpado de
um dia para o outro. Em Face disso, uma estranha mistura
de concepções passou a reinar no cérebro de Rodrigo, e a
cada dia que passava maior era a dificuldade de adaptar-se
ao novo ambiente.
Assim, por exemplo, fez esforços comovedores para
compreender de que tipo era o veículo em que se
encontrava. Tomara conhecimento de que se tratava de uma
nave espacial com a qual se podia voar em meio às estrelas.
Acontece que para ele o mundo da tecnologia terminava na
máquina a vapor, cujo princípio de movimento lhe fora
explicado por Laury. Depois procurou entender o motor a
vapor a partir do momento em que pela primeira vez vira o
jato espacial em ação. Mas ninguém conseguiu explicar-lhe
que a geração da energia necessária a uma astronave se
processava por um princípio inteiramente diferente.
Rodrigo aprendeu a manipular este ou aquele botão.
Sabia que devia apertar em tal e tal lugar para ligar as telas
ou colocar em funcionamento o sistema de
condicionamento de ar. Mas não sabia como funcionavam
esses aparelhos, e Laury tinha certeza de que nunca
aprenderia.
Por isso tinha algum trabalho em convencer Rodrigo a
não revistar o jato espacial ou realizar experiências por
conta própria.
Certa noite, depois de ter cuidado de Gucky, Laury
encontrou o conde no poço de instrumentos. Com uma
chave, havia retirado à tampa do gerador que alimentava o
campo defensivo e, à luz de sua potente lanterna de mão,
seguia o curso dos controles pressurizados coloridos.
Ao ouvir os passos de Laury, Rodrigo virou-se e sorriu
para a moça.
— Acho que nunca acharei a máquina a vapor — disse
um tanto triste.
A mutante ficou muito zangada.
— Você vai é demolir a nave — respondeu. — Vamos
embora! Você sabe perfeitamente que não pode vir aqui
sozinho.
Rodrigo confirmou com um gesto.
Imediatamente subiu à frente de Laury pela estreita
escada de plástico. No momento em que chegou à sala de
comando, ouviu-se um zumbido vindo do quadro de
controle central.
— Ligue a tela — ordenou Laury. — Acho que é o
chefe que está chegando.
Rodrigo obedeceu imediatamente. A tela panorâmica,
cobrindo uma das paredes, iluminou-se e exibiu o quadro
vermelho-escuro da planície de capim iluminada pela luz da
noite, que se estendia para todos os lados em torno do jato
espacial.
Perry Rhodan encontrava-se a cerca de cinquenta
metros da comporta principal. Rodrigo viu quando retirou
um pequeno aparelho do bolso e passou a manipular o
mesmo.
A tela tremeluziu ligeiramente. Rhodan começou a
caminhar em direção à comporta.
* * *
Belal só viu o desconhecido quando este se encontrava a
poucos metros do veículo. Achara preferível não girar a
objetiva, para não ser descoberto.
— Atenção! — balbuciou. — Está na hora.
Os dois soldados sabiam o que fazer. Um deles abaixou-
se sob a portinhola, fazendo com que ela descansasse sobre
seus ombros. O outro segurou o lança-foguetes, pronto para
empurrá-lo para a borda da saída.
Belal não sabia se os campos defensivos de que Malanal
lhe falara já haviam sido desativados. Aguardou até que o
desconhecido chamado de Perry chegasse ao veículo.
Tremendo de tensão viu uma escotilha abrir-se na parede do
veículo. Num lugar em que antes só havia o metal liso e
sem emendas, uma porta abriu-se silenciosamente. Desta
saiu uma faixa luminosa que tocou o solo junto aos pés de
Perry.
Este pisou na faixa e deixou que a mesma o levasse em
direção à abertura.
— Já! — gritou Belal. — Fogo!
A portinhola rangeu ao abrir-se. Com um gemido, o
soldado empurrou o pesado cano para cima e colocou-o na
borda da saída.
O outro se deixou cair e ligou a ignição. Chiando e
soltando chispas, o primeiro projétil saiu do cano, soltando
uma nuvem de fumaça, e dirigindo-se para o veículo
espacial.
* * *
No momento em que ia entrar na comporta, Perry sentiu
pensamentos estranhos. Virou-se e imediatamente viu que a
133
uns cem metros de distância alguma coisa comprida e
arrendondada saía de um buraco no chão.
Não hesitou. No mesmo instante em que o primeiro
disparo de Belal uivava ao sair do cano do lança-foguetes,
deixou-se cair para o lado da fita transportadora.
* * *
Rodrigo sentia-se tolhido; não sabia o que fazer. Laury
soltou um grito de pavor, mas seu grito morreu em meio ao
estrondo que fez balançar a nave, apagando a tela
panorâmica.
Laury caminhou em direção ao quadro de comando
central.
— Ligue os campos defensivos! — gritou para o conde.
Acontece que Rodrigo não sabia o que vinha a ser um
campo defensivo, muito menos seria capaz de ligá-lo ou
desligá-lo.
Um fogo branco correu sobre a tela apagada. Outra
explosão fez tremer a nave. Laury foi sacudida e caiu.
Avançou engatinhando.
Antes que Laury pudesse ligar o campo defensivo, o
jato espacial recebeu um terceiro impacto.
A tela não voltou a iluminar-se. Mostrava um reflexo
débil toda vez que um dos projéteis traiçoeiros vinha em
direção à nave e explodia de encontro ao campo defensivo
sem produzir qualquer dano. A tela continuava apagada.
A nave havia sido danificada.
De repente, Rodrigo voltou a controlar-se.
— Rhodan está em perigo! — gritou. — Preciso sair.
Laury não teve tempo para detê-lo.
— Ele saberá cuidar de si — objetou. Com alguns
passos apressados, Rodrigo colocou-se junto à comporta,
acionou o mecanismo de abertura e passou pela escotilha
antes que a mesma se abrisse numa extensão de cinquenta
centímetros.
Na ânsia em que se encontrava não percebeu que estava
sem arma; nem sequer trouxera a espada. Apenas pretendia
ajudar, conforme era de seu feitio. Mal teve paciência para
esperar até que a escotilha interna da comporta voltasse a
fechar-se.
A escotilha externa abriu-se automaticamente. Rodrigo
precipitou-se, desceu pela fita transportadora e saiu
correndo pela planície.
— Rhodan! — gritou. — Rhodan, onde está o senhor?
Os campos defensivos não impediam a passagem de
uma pessoa que viesse de dentro. Rodrigo os ultrapassou.
Abandonou o escudo protetor e aos gritos foi pelo campo
afora.
* * *
— Aí vem alguém! — gritou Belal. Estava deitado na
borda da saída. O lança-foguetes deixara de disparar desde
o momento em que os projéteis explodiam contra uma
parede invisível, longe do veículo inimigo.
Belal sempre andava com a pistola. Fez pontaria e
esperou até que o desconhecido que saíra do veículo,
gritando e olhando em torno, tivesse chegado mais
próximo.
Apertou o gatilho.
Rodrigo apenas ouviu o tiro. Alguma coisa bateu em seu
peito com uma força terrível.
Tombou e morreu antes que seu corpo tocasse o chão.
* * *
O primeiro impacto atirou Rhodan para longe. O campo
defensivo de seu traje protegia-o contra os efeitos diretos do
disparo, e o gerador antigravitacional fez com que não
caísse ao solo, mas descesse suavemente.
Porém a pressão causada pela explosão atirou-o a cerca
de duzentos metros do jato espacial. Levou algum tempo
para sacar o pequeno aparelho com o qual há pouco
desligara o campo defensivo da nave espacial. Alguns
segundos preciosos passaram-se. Felizmente Laury
conseguiu ativar os campos.
No momento em que transmitiu o sinal codificado,
Rhodan viu um dos foguetes explodir bem longe do jato
espacial. Com um suspiro de alívio desceu ao solo e, para
não chamar a atenção, retornou a pé o trecho pelo qual a
explosão o arremessara.
Viu Rodrigo sair da nave e ouviu-o chamar. Respondeu,
mas Rodrigo não o escutou. Viu que um homem saiu do
buraco aberto no chão e apontou a pistola para Rodrigo.
Rhodan puxou sua arma e, sem fazer pontaria, disparou
contra o atirador atocaiado.
Mas o feixe energético superaquecido passou por cima
do alvo, enquanto Rodrigo, atingido pelo tiro de pistola,
tombava.
* * *
— Vamos embora! — gritou Belal apavorado. — Ali
vem aquele desconhecido.
Ouvira o silvo do tiro que passara poucos metros acima
de sua cabeça e descobrira a figura de Perry. Os dois
soldados fizeram menção de puxar o cano comprido para
dentro da galeria e fechar a portinhola, mas Belal mandou
que debandassem.
— Não temos tempo a perder — fungou. — Vamos
embora!
Correram apressadamente pela galeria; Havan ia na
frente. Muito nervoso Belal não percebeu que Havan, que
nos últimos dias apresentara tamanha letargia, subitamente
dava mostras de uma agilidade surpreendente.
Depois de um quilômetro a galeria descreveu uma curva
fechada. Belal parou atrás da curva e mandou que Havan e
os dois soldados continuassem a correr. Após afastarem-se
o bastante para não o verem mais, Belal pegou uma
pequena argola que se encontrava meio escondida no teto
da galeria. Puxou-a, e uma fina corrente metálica saiu do
teto. Quando soltou, a corrente e a argola voltaram à
posição primitiva.
Belal aguardou pacientemente. Dali a alguns segundos
ouviu um ribombar que atravessava o solo. Além da curva,
a galeria desmoronou. Nuvens de pó levantaram-se e
envolveram Belal.
134
Este voltou-se e correu atrás de Havan e dos dois
soldados. Não seria nada fácil para os desconhecidos
removerem o entulho derrubado pela explosão e encontrar a
pista que os levaria ao laboratório secreto.
Apesar disso, assim que chegou acompanhado por
Havan e pelos dois soldados à entrada propriamente dita do
laboratório, Belal postou ali vinte homens e ordenou-lhes
que ficassem com os olhos bem abertos.
Depois de voltar ao alojamento, Belal recebeu o relato
de seu elemento de ligação, ao qual cabia mantê-lo
informado sobre os acontecimentos que se desenrolavam no
abrigo.
A situação era favorável. O elemento de ligação
informou que havia uma única pessoa estranha no abrigo.
Belal não acreditava que essa pessoa poderia representar
um perigo para ele.
Mandou que seus homens se preparassem para sair.
Havan ouviu falar nisso e procurou Belal.
— O que pretende fazer? — indagou.
— Danificamos o veículo deles — disse Belal. — E
agora vamos pôr as mãos nos tripulantes.
— Pelo espírito universal — gemeu Havan. — O senhor
acha que isso será tão simples? Esses desconhecidos têm
armas que...
Belal interrompeu-o com um gesto.
— Pare com esse pessimismo. Não viu o desconhecido
que matei diante da nave? Não parecia completamente
louco? Acho que durante todo este tempo tivemos mais
respeito por essa gente do que merecia. Está certo, eles
dispõem de armas superiores às nossas. Mas a tripulação é
reduzida, e se for atingida num lugar decisivo, perde a
cabeça. Não, Havan, nossas chances são muito boas. Daqui
a dois dias, voltaremos a controlar a situação.
Havan retirou-se sem dizer mais uma única palavra.
Ainda fingia acreditar que os planos não tinham a menor
possibilidade de sucesso. Mas, no seu íntimo, acreditava
que Belal estava com a razão.
Porém, se assim fosse, estava na hora de eliminar Belal.
Em hipótese alguma devia esperar até que o ditador
conseguisse subjugar os desconhecidos. O triunfo que
colheria e as armas que cairiam em suas mãos o colocariam
numa posição tal que não mais poderia ser posto de lado.
Havan fez seus preparativos.
* * *
Os danos que os três foguetes causaram ao jato espacial
foram mais graves do que Rhodan supusera. As explosões
avariaram os sistemas de propulsão a tal ponto que não
poderiam ser utilizados sem uma série de reparos de monta.
Parte do suprimento de energia fora eliminado. O jato
espacial não estava em condições de gerar campos
gravitacionais ou de prover seu interior de uma iluminação
suficiente. E os sistemas óticos também haviam sido
destruídos.
Mas, o que pareceu mais grave a Rhodan foi que os
geradores do campo defensivo, que voltaram a funcionar
satisfatoriamente logo após os impactos, com o tempo se
tornaram cada vez mais fracos e foram falhando um após o
outro. Um estilhaço de bomba havia perfurado o
revestimento dos geradores e causado avarias consideráveis
em seu interior.
Com isso a nave espacial estava quase indefesa. Com
exceção do grande radiador térmico, única arma que
permanecera intacta, não tinha nenhum meio de defender-se
de um ataque.
Laury Marten aceitou a morte de Rodrigo com toda
resignação. Rhodan sentia-se satisfeito com a atitude da
mutante porque muito antes já reconhecera que sua súbita
paixão pelo conde asteca-espanhol não passara de uma
loucura de menina. Se não fosse assim, não teria como
consolar Laury pela perda na situação em que se
encontravam.
Rhodan tinha certeza de que o inimigo não se limitaria
ao ataque tão habilmente lançado contra a nave. Juntamente
com Laury levou o rato-castor ferido ao abrigo de Fenomat,
pois acreditava que lá as condições de segurança seriam
melhores. Laury permaneceu em companhia de Gucky, para
continuar a cuidar dele.
O próximo passo de Rhodan consistiu em examinar a
saída da galeria pela qual Belal, Havan e os dois soldados
se haviam aproximado do jato espacial. Não perdeu tempo
com a portinhola, que possuía um fecho bastante
complicado; removeu o obstáculo com o desintegrador.
Verificou que do outro lado da portinhola a galeria
estava obstruída numa extensão de pelo menos cem metros.
Para o desintegrador esses metros de entulho não
representavam nada. Mas Rhodan tinha certeza de que
Belal postara seus homens do outro lado dos escombros.
Por isso preferiu voltar para junto de Marshall que,
depois de sua descoberta na usina energética do abrigo de
Sallon, não abandonara seu posto.
O jato espacial ficou vazio e sem vigilância. Mas
Rhodan gastara o tempo necessário em expedir uma
mensagem de hiper-rádio à Terra, para solicitar o envio de
uma nave espacial. A mensagem, fortemente condensada,
ficou limitada a uma duração de dois milionésimos de
segundo. A probabilidade de que alguma pessoa a
decodificasse indevidamente era praticamente igual a zero.
Em sua mensagem, Rhodan indicou a posição galáctica de
Isan e pediu que uma nave viesse carregada de mantimentos
até o limite de sua capacidade.
* * *
De pé diante da retorta de destilação, Feriar
contemplava o líquido marrom-esverdeado que borbulhava
ininterruptamente sobre uma chama de gás. Vapores
escuros eram expelidos para a serpentina de condensação.
5
135
Do outro lado do aparelho, um líquido límpido e inodoro
caía numa vasilha.
Ivsera estava muito ocupada. Feriar interessava-se pela
química, especialmente por uma química tão nutritiva como
a que estava sendo praticada ali, e bem que gostaria de
formular algumas perguntas.
Acontece que nenhum dos peritos, que eram Irvin e
Ivsera, tinha tempo para ele. Thér talvez tivesse, embora
continuasse a martirizar-se, classificando as peças de roupa
e empilhando-as aqui e ali. Porém Thér entendia tão pouco
de química quanto o próprio capitão.
Enquanto Feriar ainda contemplava o líquido
borbulhante, a porta do laboratório abriu-se e alguém
gritou:
— Aqui está uma pessoa que quer dialogar com um
estranho chamado Perry. Caso não seja possível localizá-lo,
o homem quer falar com Feriar ou Ivsera.
Ivsera respondeu sem interromper o trabalho.
— Mande-o falar com Feriar. Feriar, o senhor quer fazer
isso por mim?
Feriar estava curioso. Foi até a porta e viu do lado de
fora a pessoa que o chamara. Tratava-se de um homem
robusto de rosto zangado. Envergava as poucas vestes que
eram usadas por todos os homens de Fenomat e
ultimamente também de Sallon.
Não trazia nenhuma arma. Feriar nunca o havia visto.
— Sabe onde está o estranho? — perguntou o homem.
O capitão sacudiu a cabeça.
— Não; mas posso descobrir.
O homem robusto tirou e entregou a Feriar uma folha de
papel de dentro do único bolso de sua vestimenta, que
parecia uma bermuda.
— Pois procure — disse em tom áspero. — Leia isto e
conclua por si mesmo se o assunto é importante.
Antes que Feriar pudesse recuperar-se do espanto, o
homem robusto deu-lhe as costas e foi-se afastando pelo
corredor. Feriar desdobrou o papel e leu:
Hoje de noite, às 29 horas, Belal tentará apoderar-se do
veículo dos estranhos juntamente com sua tripulação.
Estas palavras haviam sido gravadas por uma máquina
de escrever cartas. O papel não trazia assinatura.
Feriar leu o texto duas vezes. Depois procurou descobrir
o mensageiro que lhe trouxera o bilhete.
— Onde está? — perguntou perplexo.
— Desceu por ali — respondeu o homem.
— Vá atrás dele e traga-o de volta — ordenou Feriar.
O homem saiu correndo.
Feriar voltou ao laboratório e mostrou o bilhete a Ivsera
que leu e imediatamente interrompeu a destilação já
iniciada.
— Precisamos localizar Perry — disse em tom sério. —
Isto é muito importante. Pelo que sei, sua nave sofreu
avarias graves. Quase não tem armas para defender-se.
— Está certo — admitiu Feriar. — Mas onde
poderemos encontrá-lo?
— Provavelmente na nave.
— E se não estiver lá? Nesse caso um de nós ficará por
lá e esperará até que Belal apareça e o prenda?
Ivsera pôs-se a refletir.
— Em Sallon há um amigo dele chamado Marshall. Se
conseguirmos avisá-lo, ele se comunicará com Perry —
disse a química.
Feriar concordou com um gesto.
— Muito bem. Continue no seu trabalho. Procurarei
encontrar Marshall.
Naquele instante, entrou o homem que Feriar mandara
atrás do mensageiro.
— O homem desapareceu — falou arfando.
O capitão tranqüilizou-o com um gesto.
— Está bem. Devia ter-me lembrado disso antes.
Thér acompanhara a palestra. Interrompeu seu trabalho
e aproximou-se de Feriar.
— Não sei, não — disse em tom contrariado. — Tenho
a impressão de que qualquer pessoa saberá classificar e
empilhar roupas melhor que eu. Não quer deixar que eu vá
a Sallon?
Feriar franziu a testa.
— O senhor nem sequer tem uma arma. O que
acontecerá se alguma coisa não der certo em Sallon?
— É verdade — disse Thér com um sorriso irônico. —
Poderia dar-me sua arma.
Ivsera sorriu.
— Vão os dois — aconselhou. — Provavelmente terão
de procurar Marshall, e quatro olhos sempre enxergam mais
que dois.
Thér fez uma mesura irônica.
— Desde que a conheço sei que a senhora é uma
menina inteligente — disse em tom solene.
* * *
— Daqui em diante continua em linha reta! —
exclamou Marshall.
Rhodan descansou a pesada arma e olhou para dentro do
canal com os cabos que o último tiro do desintegrador
pusera à mostra.
— Qual é a direção? — perguntou. Marshall pôs-se a
refletir.
— Já conheço a planta da situação do abrigo de cor.
Diria que, se o tubo com os cabos não descreve outra curva,
o esconderijo de Belal fica dois quilômetros ao nordeste da
galeria principal, perto do rio Ovial.
— Por que justamente lá? — perguntou Rhodan
perplexo.
Não teve necessidade de aguardar a resposta, pois
percebeu nitidamente os pensamentos de Marshall:
— Porque Belal precisa de abastecimento de água. E
este será tanto mais fácil quanto mais perto estiver do rio.
Rhodan mediu o tubo do elevador. Era retangular e
achatado, com cerca de cinquenta centímetros de largura
por dez de altura. Teria que ser ampliado antes de dar
passagem ao esconderijo de Belal.
— Será que não seria melhor aguardarmos a chegada de
136
nossa nave de guerra? — perguntou Rhodan. — Se
calcularmos todos os imprevistos, a demora será de um dia
e meio, no máximo. Gostaria de dispor de mais algumas
pessoas antes de atravessar dois quilômetros de terra.
Marshall fez um gesto afirmativo.
— Acontece que não sabemos o que Belal poderá
tramar nesse meio tempo, não acha?
Rhodan sorriu.
— Exatamente; e não devemos esquecer-nos de Havan.
* * *
— Vinte e oito horas — resmungou Thér. — Já é tempo
de encontrarmos Marshall.
Feriar olhou em torno, muito nervoso. Já haviam
recebido quinze informações diferentes sobre o paradeiro
de Marshall, seguiram todas elas e não o encontraram.
Parecia ter desaparecido. Nas últimas duas horas,
ninguém vira nem a ele, nem a Perry.
Já haviam subido do primeiro pavimento do abrigo até o
35o. Lamentavam que Perry não julgara necessário
entregar-lhes um dos rádios que usava para comunicar-se
com seus homens.
Estavam caminhando por uma estreita galeria
secundária, pouco iluminada, quando Thér subitamente
pegou o braço de Feriar, que caminhava à frente, e o puxou
até a parede.
— O quê...? — reclamou Feriar.
— Quieto! — cochichou Thér. — Olhe ali na frente.
Thér enxergava melhor que Feriar. Vira a fenda estreita
que de repente se abriu na parede do lado direito.
Juntamente com Feriar viu esta ampliar-se numa abertura
que tinha a altura de um homem em pé; ainda notou que
dois homens bem armados saíam cautelosamente da
abertura.
Thér e Feriar mantinham-se junto à parede, na sombra
de duas lâmpadas fracas.
Encontravam-se pelo menos a cinquenta metros da
misteriosa abertura. Thér tinha certeza de que os dois
homens não poderiam vê-los.
Um dos soldados virou-se e fez um sinal para dentro da
abertura. Foi para o lado e deixou que mais cinquenta
homens armados passassem por ele e entrassem no
corredor.
O último era um homem baixo, gordo e calvo: Belal.
Thér sentiu que Feriar tremia atrás dele.
— Calma! — cochichou. — Por aqui não podemos
fazer nada contra ele.
Caminhando em meio aos seus soldados, o ditador
marchou na direção oposta. Thér e Feriar acompanharam-
no com os olhos, até que o grupo desapareceu numa curva.
Poucos segundos depois, ouviram-se gritos violentos,
um matraquear metálico e o som de tiros.
— Belal está abrindo caminho! — fungou Thér. —
Quem dera que soubéssemos onde está o estranho.
* * *
Marshall havia alargado o tubo de cabos numa extensão
de cem metros o suficiente para que um homem alto
pudesse caminhar em seu interior. Quando Rhodan o
chamou, estava fazendo uma pausa para descansar os
braços que seguravam o desintegrador.
O chefe dos mutantes correu o caminho de volta.
— Preste atenção! — pediu Rhodan no momento em
que Marshall descia do tubo de cabos para o recinto amplo
que abrigava a usina energética. — Não está percebendo
nada?
Marshall concentrou-se. Sentiu que nas proximidades
alguém pensava nele ansiosa e intensamente.
— Alguém está à minha procura — disse em tom de
espanto.
Rhodan confirmou com um gesto.
— Acho que é o homem chamado de Thér. Parece que
tem uma informação importante para mim. Chame-o.
Marshall abriu a porta e saiu para o corredor. Ouviu
passos deslocando-se por uma galeria secundária que
começava a poucos metros do lugar em que se encontrava.
Chamou-o pelo nome.
Dali a um instante, Thér apareceu do corredor, fungando
e suando. Reconheceu Marshall e pôs as mãos para o alto.
— Graças a Deus! — exclamou. — Finalmente
conseguimos encontrá-lo.
Mas logo estacou.
— O senhor não acaba de me chamar pelo nome?
* * *
Marshall fez um gesto.
— Deixemos isso para depois. O que houve?
Feriar passou ao lado de Thér. Segurava na mão o
bilhete que o mensageiro lhe entregara.
— Achamos que talvez o senhor poderia ajudar-nos a
encontrar Perry. É muito importante. Leia!
Marshall leu as palavras escritas no bilhete e ergueu as
sobrancelhas.
— Venham comigo — pediu. — Perry está perto daqui.
Rhodan leu a informação com toda atenção. Depois
perguntou a Feriar:
— Tem certeza de que não é uma cilada que estão
armando para nós?
Feriar deu de ombros.
— Não faço a menor ideia. Apenas quis entregar-lhe o
bilhete. A decisão terá que ser sua.
Rhodan franziu o cenho.
— Quem mandou este bilhete? — perguntou.
— Não sei.
— Pois eu sei: foi Havan.
Feriar arregalou os olhos.
— Havan? — perguntou em tom de espanto. — Mas
Havan e Belal estão trabalhando de mãos dadas.
Rhodan sorriu.
— Será mesmo? Mas quem poderia conhecer as
intenções de Belal, se não fosse Havan?
137
Feriar não respondeu. Thér relatou a observação que
acabara de fazer na galeria lateral.
— O grupo de Belal levará cerca de quarenta e cinco
minutos a pé para percorrer a distância da saída do abrigo
até o veículo — disse. — Com o armamento de que
dispõem não terão o menor trabalho em abrir caminho. Eles
estarão lá o mais tardar às vinte e nove horas.
Rhodan confirmou com um gesto.
— Muito bem. Vamos estragar a brincadeira deles. Bem
que precisaremos de auxílio quando tivermos colocado
Belal e seu grupo fora de ação.
* * *
A planície apresentava o quadro vermelho-escuro de
sempre, quando Marshall e Rhodan se deslocavam em seus
trajes transportadores a baixa altura, mas a grande
velocidade, em direção ao jato espacial.
Ligaram os campos de deflexão, para que Belal não
tivesse a menor chance de descobri-los antes que eles
mesmos julgassem convenientes.
Belal e seu grupo tinham uma vantagem considerável.
Marshall e Rhodan só os alcançaram cem metros antes do
jato espacial, quando já se agrupavam para o ataque.
Rhodan viu que carregavam fuzis e morteiros leves. Os
morteiros eram operados por dois homens. Estes
empilhavam a munição no capim e colocavam os morteiros
de forma a terem a linha de tiro livre.
Marshall e Rhodan precipitaram-se pela comporta
aberta e entraram na nave. O mutante ficou deitado na
comporta para manter Perry a par do que se passava lá fora,
já que a aparelhagem ótica não estava funcionando.
Enquanto isso Rhodan preparou o pesado radiador térmico
e ficou aguardando as indicações de Marshall.
Essas indicações não seriam muito precisas. Ninguém
conseguiria dirigir uma arma desse tipo a olho nu de tal
forma que acertasse exatamente no alvo. Mas no caso do
radiador de impulsos não era necessário que a pontaria
fosse muito exata. O raio térmico poderia abrir-se para
cobrir uma área maior. Além disso, o inimigo não possuía
armas equivalentes. Mesmo que não fosse posto fora de
ação com o primeiro tiro, o risco não seria muito grande.
* * *
Feriar e Thér viram de que maneira Belal e seu grupo
abriram caminho pelo abrigo.
Quando Rhodan e Marshall conquistaram o abrigo de
Sallon, Belal soubera esconder em tempo as armas mais
potentes juntamente com a guarda pessoal no setor secreto
em que ficava o laboratório. No abrigo propriamente dito,
só deixaram alguns fuzis e pistolas antiquadas.
Quando os ocupantes do abrigo de Sallon viram Belal
surgir com metade de sua guarda pessoal, alguns homens
mais arrojados procuraram detê-lo. Havia um prêmio pela
prisão de Belal, e não era só isto; Rhodan soubera
esclarecer os homens sobre o perigo que um ditador como
Belal representaria para a nova civilização de Isan.
Mas Belal abriu caminho a tiros sem mostrar a menor
contemplação. Os poucos fuzis existentes em Sallon não
estavam em condições de enfrentar as armas automáticas
trazidas pelos seus homens. Houve alguns mortos e um
grande número de feridos. Depois, ninguém se atreveu a
cruzar o caminho de Belal, quanto mais detê-lo.
Quando Feriar e Thér procuraram subir no elevador
principal para seguir Rhodan e Marshall, que haviam ido na
frente, houve um contratempo: todas as cabinas achavam-se
ocupadas e em viagem. Demorou quinze minutos até que
conseguissem entrar numa que os levasse para cima.
Na comporta de superfície, estavam os dois guardas que
Rhodan mandara colocar ali porque receava que Belal
procurasse apoderar-se do abrigo de Sallon.
Belal e os homens de seu grupo não deram a menor
atenção aos guardas. Passaram tranquilamente. Os dois nem
pensaram em impedi-los. Caso interferissem, o resultado
não teria sido nada agradável para eles.
Feriar e Thér saíram da construção que abrigava a
comporta e subiram a colina em linha oblíqua, tomando a
direção em que ficava a nave espacial. Thér aguçou o
ouvido, mas não ouvia o menor sinal de luta.
— Gostaria de saber... — disse em tom irritado, mas
não conseguiu completar a frase, porque a surpresa o
deixou sem fôlego.
Haviam chegado ao topo da colina e dispunham-se a
ultrapassá-lo para descer do outro lado, passando ao lado da
antiga cidade de Fenomat, quando, sem fazer o menor
ruído, alguns homens se ergueram em meio ao capim.
No primeiro instante Thér pensou que pertencessem ao
grupo de Belal. Mas depois ouviu uma risada esquisita e na
luz vermelho-escura da noite viu um homem pequeno e
magro caminhar em sua direção.
— Vejam só! Quem está aqui! — admirou-se o
magricela em tom irônico, aproximando-se. — Ah, é nosso
querido Thér, o amigo do peito do antigo e célebre membro
do Conselho Killarog...
— Tome cuidado! — retrucou Thér furioso. — Alguma
coisa poderá acontecer com você.
O magricela recuou um passo e gritou:
— Amarrem os dois!
Os homens precipitaram-se sobre Thér e Feriar. Feriar
logo percebeu que não adiantava resistir. Mas Thér
debateu-se furiosamente. Teria de agir contra sua natureza
se quisesse deixar que o prendessem sem oferecer qualquer
resistência. Afastou alguns homens a socos e, por um
instante, conseguiu abrir espaço em torno de si. Mas a
superioridade do inimigo era muito grande. Thér sentiu as
cordas cingirem seus braços e pernas.
— Então? — perguntou o magricela. — Ainda está tão
arrogante?
Thér lançou-lhe um olhar furioso.
— Você não perde por esperar, Havan. Um dia ainda
ajustarei contas com você.
Ao que parecia a ameaça não o impressionava.
Dirigindo-se para os homens de seu grupo, disse:
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— Vamos levá-los. Façam com que não andem muito
devagar. Temos de estar lá por volta de meia-noite.
* * *
— Gire ligeiramente para a direita, senhor! — gritou
Marshall. — Se abrir bem o raio, poderá atingir dois
morteiros ao mesmo tempo.
Rhodan não se apressou. Sabia o que poderia acontecer
se atirasse antes da hora. Belal reconheceria a situação e se
retiraria apressadamente. E isso não correspondia aos
planos de Rhodan. Era necessário reduzir Belal à
inatividade.
— Avise quando estiverem a vinte metros — disse,
dirigindo-se a Marshall.
* * *
Belal viu o veículo em forma de lentilha brilhar à luz
vermelha. Ao pensar no que pretendia fazer, chegou à
conclusão de que não poderia haver nenhum imprevisto ou
surpresa desagradável. No seu avanço já haviam deixado
para trás o limite diante do qual o estranho de nome Perry
parará a fim de ligar o campo defensivo do veículo.
Portanto, a parede invisível tinha deixado de existir, pois do
contrário não poderiam ter avançado até o ponto em que se
encontravam.
Bastaria permanecer no lugar em que estavam apontar
com os morteiros e arrebentar o veículo.
Fariam exatamente isso, se Belal não tivesse a intenção
de prender os estranhos vivos e apoderar-se dos
instrumentos existentes no interior do veículo.
“Poderia haver alguma dificuldade em rastejar até a
nave e dirigir-se aos tripulantes com as armas em punho,
pedindo-lhes que se rendessem?”, pensou o ditador, depois
monologou:
— Não, não poderia haver nenhuma dificuldade.
Assim mesmo, porém, Belal não se sentia muito bem.
De repente teve suas dúvidas sobre se poderia avaliar os
estranhos por aquele idiota nervoso e desmiolado que na
noite anterior matara sem o menor esforço.
O ditador espantou suas indecisões com uma praga
pesada.
— Adiante! — gritou para seus homens. — Vamos
avançar o último trecho.
Quando deu essa ordem, não se encontravam a mais de
trinta metros da nave. Passaram a rastejar mais depressa e
com muito menos cautela.
Belal olhou para trás e viu bem perto de si os canos
grossos de dois morteiros que avançavam acima do capim.
Sentiu-se satisfeito. Ao menor sinal de resistência, os
morteiros entrariam em ação.
Faltavam vinte metros.
A abertura escura da comporta desenhava-se em meio à
parede da nave. Não compreendia por que a deixaram
aberta, mas não viu nisso um sinal de perigo.
Mais quinze metros!
Ergueu ligeiramente o corpo e contemplou, com os
olhos arregalados, o veículo estranho. Subitamente um raio
branco e ofuscante de vinte centímetros de diâmetro saiu de
uma abertura que ainda não havia visto.
Belal não teve tempo de fechar os olhos. A terrível
claridade cegou-o. Círculos coloridos dançavam diante de
seus olhos. Não enxergava nada.
Apavorado, deixou-se cair para frente e ficou deitado no
capim. Mas no mesmo instante, ouviu-se um ribombar e o
chão foi sacudido. A pressão levantou Belal e atirou-o
alguns metros para o lado. Os estilhaços assobiavam pelo ar
e batiam no solo em torno dele.
Belal ouviu gritos apavorados assim que o ruído cessou.
Alguém disse que dois morteiros haviam explodido
juntamente com a munição. A seguir, houve outra
detonação, pois o raio energético branco e escaldante
atingiu mais um morteiro e a respectiva munição.
Belal sentiu-se tomado pelo desespero. Levantou-se e
continuou a correr na mesma direção de onde havia
rastejado. Segurava uma pistola automática e atirava
loucamente em torno de si, até esvaziar o pente.
Ouviu gritos. Não sabia se vinham dos homens de seu
grupo ou dos estranhos. Não via nada.
Corria, cambaleava e tropeçava até que sua cabeça
bateu uma coisa dura e fria. O impacto atirou-o ao chão.
Por algum tempo, ficou quase inconsciente.
Quando tentou erguer-se, teve a impressão de que uma
bomba explodia no seu cérebro. Viu um raio ofuscante,
sentiu um estrondo e, logo após, Belal estava fora de
combate.
* * *
A luta havia chegado ao fim. Belal ficara inconsciente
com um tiro certeiro da arma de choque disparado por
Marshall. Rhodan fez ir para os ares o último dos quatro
morteiros juntamente com a munição.
Depois que os morteiros deixaram de representar um
perigo, Rhodan abandonou seu posto e saiu pela comporta.
Disse que queria falar com uma pessoa autorizada a
negociar com ele. Uma vez que, naquele momento, Belal
não estava em condições de pôr em prática seu gênio
obstinado, o desejo de Perry encontrou ressonância
imediata.
Rhodan foi bastante lacônico. Pediu aos homens do
grupo de Belal que escolhessem entre a capitulação e o
aniquilamento. Resolveram aceitar a capitulação; não
levaram mais de cinco minutos para tomar essa decisão.
Belal, que provavelmente não teria concordado,
continuava inconsciente.
Os soldados largaram as armas e, vigiados por Rhodan e
Marshall, que empunhavam as suas, sentaram bem
próximos uns dos outros no capim ressequido.
Quando a porta do laboratório se abriu, Ivsera mal
levantou a cabeça. Só o grito de surpresa de Irvin lhe
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139
despertou a atenção.
Ergueu-se da banqueta e fitou os dois homens que
apareceram na porta.
Um deles ela nunca havia visto. Parecia um idiota. Mas
a pistola automática destravada que apoiava no braço
proibia a qualquer pessoa que risse de sua estupidez.
Já o outro homem Ivsera conhecia até bem demais.
Fitava-a, seguia todos os seus movimentos com os olhos
atentos e exibia o sorriso presunçoso e debochado que a
química tanto odiava nele.
Era Havan!
Havan viu que Ivsera se assustou.
— Não há nenhum motivo para ter medo — gritou em
voz alta. — A senhora sabe perfeitamente o que pode fazer
pela sua segurança.
Ela sabia. Mas, naquele momento, ainda estava certa de
que não precisaria pedir nada ao traidor. Perry estava por
perto. Thér também. Até Feriar poderia vir em seu auxílio.
— Dê o fora o mais rápido que puder! — gritou furiosa
para Havan. — Do contrário será executado.
O rosto de Havan contorceu-se numa careta.
— Será mesmo? — perguntou e entrou no laboratório.
— Esperei para fazer esta visita até ter certeza de que todo
o abrigo está em meu poder. Olhe!
Fez um sinal para o soldado parado à porta. O soldado
transmitiu o sinal a outra pessoa, e dali a alguns segundos
Thér e Feriar foram empurrados para dentro do laboratório,
amarrados.
Ivsera empalideceu. Naquele momento, não pensava em
Perry: era um estranho, e ninguém sabia o que pretendia
fazer. Mas Irvin era um homem forte e inteligente. Sob sua
proteção, sentia-se segura. Por isso pedira-lhe que
permanecesse no laboratório, separando a roupa.
Havan prendera Thér e Feriar.
“Segundo afirma”, pensou, “todo o abrigo encontra-se
em seu poder. Será que ainda resta alguma esperança?”
Não revelou o que se passava em sua mente. Continuou
parada tranquila enquanto Havan caminhava em sua
direção.
— Vá para o inferno! — gritou furiosa.
O traidor parou e fez um sinal para o soldado.
— Amarre-a! — ordenou laconicamente.
* * *
Laury se sentiria muito mais à vontade se conhecesse
algumas das pessoas que agora a rodeavam. Todos
pareciam preocupados com ela e com o rato-castor ferido.
Mas, a cada instante, via um rosto novo e estranho, e isso a
deixava irritada.
Não ficou muito surpresa quando um homem armado
entrou no recinto e a examinou atentamente.
— O que houve? — perguntou.
O homem armado continuou a olhá-la.
— Pare de me olhar desse jeito! — gritou. — O que está
procurando por aqui?
Laury não passara pelo ligeiro treinamento especial que
permitia a Rhodan falar a língua desse mundo sem o menor
sotaque. Laury expressava-se em um arcônida polido que se
usava em quase toda a Galáxia. Mas o homem
compreendeu.
Estou procurando a senhora — respondeu o homem.
— Por quê?
— Para prendê-la.
Laury levantou-se de um salto. No último instante,
lembrou-se da arma que trazia consigo. Mas antes que
pudesse mover a mão, o homem apontou-lhe a pistola e
disse:
— Fique bem quieta, senão atiro!
Laury obedeceu. Lançou um olhar desesperado para o
rato-castor, que jazia imóvel sobre uma espécie de leito, no
fundo do recinto. Gucky dormia o sono de um ser
completamente esgotado e não estava percebendo nada do
que se passava ao redor.
Laury não sabia que se encontrava em poder de Havan.
O traidor era agora o senhor absoluto do abrigo de
Fenomat.
* * *
Rhodan começou a impacientar-se porque Feriar e Thér
não compareceram na hora combinada.
— Tenho uma sensação desagradável — disse em
inglês, dirigindo-se a Marshall.
— Não devemos esquecer esse Havan. Quem sabe o que
não andou tramando?
— Hum — fez Marshall, olhando para o lado. —
Podemos mandar embora essa gente. Sem arma não
representarão perigo para ninguém.
Rhodan levantou-se de um salto.
— Está bem. Avise-os. Tentarei entrar em contato com
Laury.
Marshall logo se desincumbiu de sua tarefa. Encostou o
capacete de seu traje transportador contra o capacete do
prisioneiro que se encontrava mais próximo e disse:
— Deem o fora, gente. Vocês estão livres. Procurem
não aparecer mais em má companhia.
O homem transmitiu a notícia aos companheiros por
meio do rádio de capacete. Hesitaram um instante, pois não
acreditavam na sua boa sorte. Mas, depois de algum tempo,
saíram correndo e desapareceram em meio à noite
vermelha.
Marshall não se preocupou com eles. Procurariam
chegar a um dos abrigos sem serem vistos e ali se
misturariam aos demais ocupantes. Uma vez que não
tinham armas, poderiam dar-se por satisfeitos caso ninguém
os reconhecesse como membros da guarda pessoal de Belal.
O que devia causar maior preocupação era o fato de que
Rhodan não conseguia entrar em contato com a mutante
pelo telecomunicador. Laury não respondia.
Rhodan enfiou no bolso o pequeno aparelho de
telecomunicação e procurou atingir Laury por via
telepática. Laury era telepata, tal qual Rhodan, que só
possuía o dom em circunstâncias extremamente favoráveis
e em extensão reduzida; Marshall também possuía essa
140
faculdade. O chamado de Rhodan chegou-lhe apesar das
camadas de terra e concreto que teve de vencer.
Dali a cinco minutos, Rhodan e Marshall sabiam o que
estava acontecendo no abrigo.
Laury, Gucky e os outros prisioneiros mais importantes
de Havan foram trancados no laboratório químico-
biológico. Não era proibido conversar. Thér e Feriar
contaram o que Havan lhes havia dito no caminho.
Havan convencera Belal a ceder-lhe metade de sua
guarda pessoal, para que pudesse apoderar-se do abrigo de
Fenomat. Belal achara que o plano era útil e viável. Além
disso, tinha certeza de que metade de sua guarda pessoal
seria suficiente para conquistar o estranho veículo.
Belal não sabia que o inimigo havia sido informado
sobre seu plano. O bilhete entregue pelo mensageiro de
Havan preenchera duas finalidades distintas: Belal foi
eliminado, e os estranhos estavam fora do abrigo, o que
permitia a Havan agir livremente.
As comunicações entre as duas cidades subterrâneas
foram interrompidas. Em Fenomat, Havan dominava a
situação, e Laury soubera que o traidor pretendia enviar um
emissário a Rhodan, que negociaria as condições para a
libertação dos prisioneiros mais importantes.
Perry pediu a Laury que fizesse o que estava ao seu
alcance para libertar-se juntamente com os demais
prisioneiros. A mutante não possuía nenhuma arma, mas
em compensação tinha o dom paramecânico da
desintegração. Rhodan recomendou o seguinte:
— Tenho certeza absoluta de que Havan e seus homens
nunca ouviram falar em dons parapsicológicos e coisas
semelhantes. Sua guerra nuclear ocorreu há apenas oito
anos, um tempo insuficiente para a formação de mutantes.
Mas não se esqueça de que mesmo um mutante não é imune
aos efeitos das balas. Procure não irritar Havan ou qualquer
dos seus homens. Arranje-se juntamente com os outros
prisioneiros. No momento, não podemos fazer nada por
eles. Havan os mandaria matar assim que soubesse que
penetramos no abrigo. Só nos resta esperar o auxílio que
deverá vir da Terra.
* * *
Laury ficou conjeturando. Teve uma porção de ideias,
refletiu sobre as mesmas, abandonou-as e procurou outras.
Só aos poucos, um plano começou a surgir em sua mente.
A maior dificuldade consistia no fato de que no próprio
laboratório havia três guardas. Ninguém estava impedido de
falar com os outros prisioneiros, mas os guardas faziam
questão de ouvir o que se conversava.
Laury deitou de lado, para se aproximar de Ivsera. Por
meio de olhares comunicou-lhe que pretendia dizer-lhe
alguma coisa que o guarda não devia ouvir. A química
respondeu com outro olhar. Parecia um tanto surpresa e
desconfiada.
A mutante voltou a deitar de costas, fechou os olhos e
concentrou-se.
Imaginou encontrar-se diante da parede que separava o
laboratório do corredor. Procurou ver com os olhos de sua
mente as saliências e reentrâncias do concreto e do
revestimento cinzento da parede. Imaginou fresta após
fresta, e finalmente ordenou ao cérebro que ativasse o
mecanismo que liberava as energias paramecânicas de seu
apêndice cerebral.
O efeito foi tremendo.
Na parede surgiu um furo da espessura de uma agulha.
A tremenda pressão das massas de terra logo o ampliou,
transformando-o numa fenda. Dali a alguns segundos, a
parede cedeu numa extensão de dez metros. Com um
enorme estrondo, os blocos de concreto caíram no corredor,
seguidos pelo farfalhar da terra úmida e fria.
Imediatamente os três guardas dirigiram-se à porta.
Laury viu a terra marrom entrar no corredor, só parando
alguns metros adiante. A terra obstruía metade da entrada.
Os guardas engatinharam para fora e gritaram por socorro.
Laury voltou a deitar de lado.
— Procure fazer com que alguém a leve até Havan —
cochichou para Ivsera. — Converse com ele, faça-lhe uma
proposta. Quero que sua atenção seja desviada ao menos
por quinze minutos. Faça o possível para que não deixe
entrar ninguém no gabinete enquanto a senhora estiver com
ele. Entendido?
A química fez um gesto afirmativo. Em seu rosto havia
uma expressão matreira. A tarefa, que Laury lhe atribuíra,
foi a mais repugnante possível.
Mas não se opôs. Aquela mulher desconhecida seguia
um objetivo bem definido. Embora Ivsera não tivesse sido
familiarizada com o plano, estava plenamente convencida
de ter de cumprir o que estava sendo pedido.
A salvação dependia disso; e na situação em que se
encontravam a salvação só poderia vir de uma pessoa
desconhecida.
* * *
Os três guardas voltaram depois de algum tempo.
Haviam constatado que as comunicações com o resto do
abrigo não foram interrompidas. A terra que irrompeu no
corredor só o obstruiu até a metade da altura.
Um grupo de prisioneiros estava carregando a terra em
carrinhos e removendo-a. Ninguém sabia informar do
desmoronamento parcial.
Ivsera chamou um dos guardas.
— Diga a Havan que quero fazer-lhe uma oferta! —
exclamou.
O soldado sorriu.
— Qualquer pessoa pode vir com esta conversa — disse
em tom ingênuo.
— Faça o que ela está pedindo — interveio um dos
outros.
O guarda retirou-se. Voltou depois de algum tempo,
soltou as amarras de Ivsera sem dizer uma única palavra e
ajudou-a a levantar-se.
— Venha comigo — ordenou.
A jovem química lançou um olhar para a mulher
141
desconhecida. Laury deu uma piscadela. Ivsera deixou que
a levassem.
O quartel-general ficava no mesmo corredor, a cinco
portas de distância. Conforme ela supunha, estava cercado
por uma espécie de guarda pessoal. Mas, assim que foi
introduzida no gabinete, Havan mandou todos saírem
juntamente com a guarda que a trouxera.
Sorriu e convidou a jovem a sentar. Ele mesmo
levantou-se e aproximou-se.
— Pelo que vejo andou pensando no assunto — disse.
Ivsera deu de ombros.
— Não sei — respondeu. — O que exige para libertar as
pessoas que foram presas juntamente comigo?
Havan soltou uma gargalhada.
— Exijo a senhora.
Sentiu um calafrio. Controlou-se e perguntou com a
maior calma:
— Quem me garante que o senhor cumprirá o acordo?
Ele excitou-se.
— Se quiser poderemos celebrar o acordo por escrito e
assiná-lo na presença de testemunhas.
“Ah, velhaco!”, pensou Ivsera enojada. “As testemunhas
seriam seus subordinados, e nunca se atreveriam a abrir a
boca caso deixasse de cumprir o acordo.”
Mas fez de conta que estava refletindo sobre a proposta.
Em algum lugar do abrigo ouviu-se um leve ribombo,
mas nem Havan nem Ivsera interessaram-se pelo ruído.
“Quinze minutos”, pensou Ivsera, concentrando-se ao
máximo. “Terei que distraí-lo por quinze minutos.”
Subitamente a porta abriu-se e um guarda armado
entrou correndo. Antes que pudesse abrir a boca para
transmitir seu relato, Havan gritou furiosamente:
— Saia! Quem lhe disse que pode entrar aqui sem fazer-
se anunciar? Fora!
O guarda hesitou, mas quando Havan puxou a arma e
apontou-a para ele, virou-se e saiu correndo.
* * *
Assim que o guarda levou Ivsera, Laury pôs-se a
trabalhar.
Fez desmoronar a parede lateral direita do laboratório.
Os dois guardas que ali permaneciam puseram-se a gritar e
saíram precipitadamente para o corredor.
Na parede do laboratório havia uma abertura que dava
passagem a uma pessoa adulta e permitia a visão da sala
contígua.
Laury ainda fez desmoronar parte da parede oposta.
Depois soltou as amarras que a prendiam, fazendo
simplesmente com que as mesmas se dissolvessem. Os dois
guardas ainda não haviam voltado. Só os prisioneiros viram
Laury levantar-se e atravessar a abertura que dava para a
sala contígua.
Laury sentiu os pensamentos angustiados de Ivsera. Não
podia estar longe. Provavelmente encontrava-se umas três
ou quatro salas adiante. Laury atravessou a abertura da
parede oposta e entrou num recinto escuro, que parecia
estar vazio.
Ouviu gritos vindos de fora. Encostou o ouvido à outra
parede e percebeu que do outro lado tudo estava em
silêncio.
Laury concentrou-se e fez uma terceira abertura, através
da qual penetrou em outro recinto, que também estava
escuro e vazio.
Os pensamentos da química tornaram-se mais nítidos.
Esta acabou acenando com a cabeça:
— Acho que posso concordar — respondeu um tanto
insegura, pois certamente era o que Havan esperava dela.
— Quer redigir o acordo?
Ele ficou radiante. Pegou a mão de Ivsera, e esta se
deixou tocar a contragosto e cheia de repugnância.
— Nunca pensava que a senhora ainda chegaria a essa
conclusão — balbuciou Havan muito feliz. — Agora...
Soltou a mão e correu para a escrivaninha atrás da qual
estivera sentado. Impaciente, abriu uma gaveta e tirou uma
pilha de folhas de papel, atirando-a sobre a escrivaninha.
Pôs a mão no bolso, procurando uma caneta.
Ivsera assustou-se tanto quanto o próprio Havan quando
de repente surgiu uma fenda na parede da direita. A brecha
estendeu-se do chão ao teto e, poucos segundos depois, a
parede desmoronou com um enorme estrondo. Uma nuvem
de poeira levantou-se e pedaços da parede voavam pelo ar.
A jovem levantou-se de um salto e pôs-se a gritar de
medo. Havan deixou-se cauda cadeira e rolou até a parede
do lado oposto. Olhando através da poeira, Ivsera viu que
protegia a cabeça com os braços.
Sobre os destroços da parede surgiu Laury, a mulher
desconhecida.
Ivsera fitou-a perplexa. Viu Laury fazer um sinal, mas
não compreendia o que ela queria.
Laury apontou para Havan, que continuava deitado no
chão, completamente imóvel. Seus gestos tornaram-se cada
vez mais impacientes.
Finalmente Ivsera compreendeu. Com dois ou três
passos rápidos, colocou-se atrás de Havan. Antes que este
percebesse o que estava acontecendo, tirou a pistola de seu
cinto, destravou-a e apontou-a contra ele.
— Levante! — gritou. — Seu jogo está definitivamente
findado.
O resto foi fácil. Em meio à confusão geral Laury não
teve a menor dificuldade em libertar os outros prisioneiros
que se encontravam no laboratório. Thér, o velho
impetuoso subjugou o guarda que tirara a arma de choque
da mutante. Só pelo ataque de Thér percebeu-se que alguma
coisa não estava em ordem com os prisioneiros.
Thér usou a arma de choque, seguindo as instruções de
Laury. Os guardas que acorreram ao local desmaiaram na
porta do laboratório.
Desistiram da tentativa de apoderar-se novamente dos
prisioneiros. A notícia de que o próprio Havan se
encontrava em poder destes quebrou as últimas resistências
entre os revoltosos. Perceberam que estavam perdendo o
controle da situação e procuraram exceder-se em
142
demonstrações de boa vontade para compensar o prejuízo
que lhes poderia advir do fato de se terem juntado a Havan.
Para vencer a rebelião não houve necessidade de
espalhar a sensacional notícia. Um veículo aéreo gigantesco
e nunca visto estava pousando sobre a área urbana de
Fenomat, para ajudar Laury e os demais ex-prisioneiros a
assumirem o controle total da situação.
* * *
A Terra enviara a Drusus, uma nave que acabara de
entrar em serviço. Era um veículo espacial esférico e seu
diâmetro media mil e quinhentos metros. Nunca antes se
vira em Isan um engenho gigantesco como este.
Seguindo as instruções de Rhodan, o comandante da
Drusus só trouxera a tripulação indispensável e o
armamento essencial. O resto do espaço disponível foi
ocupado com caixas de mantimentos.
A bordo havia vinte mil megatons de alimentos.
Aproximadamente metade dessa quantidade consistia em
preparados alimentícios altamente concentrados. Era fácil
calcular que essas provisões dariam para nutrir os cem mil
habitantes de Isan pelo menos durante um século.
E um século era um tempo suficiente para que mesmo
as radiações perigosas e duradouras do estrôncio-90
baixassem a um nível inofensivo. Dentro de um século, os
habitantes de Isan poderiam iniciar sem o menor risco a
produção de alimentos naturais. Até lá teriam de contentar-
se com o presente recebido da Terra.
A Drusus trouxe outra coisa: más notícias. O
comandante Harrings, que conduzira a enorme nave da
Terra ao centro da Via Láctea, imediatamente após o pouso
solicitou uma entrevista com Rhodan, que logo lhe foi
concedida.
Perry foi informado de que em todos os setores da
Galáxia as patrulhas terranas haviam descoberto uma
atividade extraordinária das naves de Árcon e de outras
procedências. A movimentação foi registrada segundo a
rota e a data e os dados foram introduzidos no grande
cérebro positrônico de Terrânia. O gigantesco aparelho, que
também dispunha dos últimos relatórios que Rhodan
enviara de Tolimon, concluiu com uma alta dose de
probabilidade que o Império Arcônida tivera sua atenção
despertada pelos acontecimentos, e que ligava os mesmos a
uma pessoa chamada Rhodan, subitamente desaparecida há
meio século. Na opinião do cérebro positrônico, os
acontecimentos que se desenrolaram em Tolimon, e
especialmente a maneira pela qual estes se sucederam,
bastaram para que o sistema de combinação de dados de
Árcon chegasse à conclusão quase inequívoca de que seu
causador fora Rhodan.
A pausa de descanso que Perry Rhodan havia
conseguido há cinquenta anos para si e para a Terra,
induzindo em erro a frota dos saltadores, havia chegado ao
fim.
O Império saíra novamente em busca da Terra.
* * *
Para Rhodan essa descoberta significava que teria de
encerrar quanto antes sua permanência em Isan e pôr-se a
caminho da Terra.
A despedida precipitada foi muito difícil para ele.
Depois de envolver-se por acaso nos acontecimentos de
Isan, tinha na mente mais alguns planos, que incluíam a
estabilização da situação em condições humanas e dignas.
Além disso, Rhodan desejava satisfazer sua curiosidade.
No primeiro dia, sentira-se surpreendido ao notar que os
habitantes de Isan falavam o arcônida, embora fosse um
arcônida arcaico. Supunha que fossem descendentes dos
emigrantes arcônidas, que na primeira fase da colonização,
ou seja, há cerca de dez mil anos, penetraram até o centro
da Via Láctea. Provavelmente as comunicações com o
mundo de origem foram interrompidas pouco depois. A
maravilhosa tecnologia arcônida caiu no esquecimento e a
população de Isan regrediu à barbárie. No início da grande
guerra, atingira aproximadamente o mesmo nível cultural
em que a Terra se encontrava há cem anos.
Rhodan tinha certeza de que nos arquivos dos abrigos
haveria alguma informação sobre a ascendência do homem
de Isan. Mas não possuía tempo para vasculhar arquivos. A
Terra chamava.
Rhodan mandou que duas naves auxiliares saíssem da
Drusus e fossem tripuladas com dez homens cada uma. Os
pequenos veículos espaciais foram equipados com armas
que garantiam à pequena tripulação uma superioridade
absoluta sobre tudo que vivia em Isan. Os vinte homens
ainda se encarregaram de providenciar a distribuição justa e
sensata dos mantimentos trazidos pela Drusus.
Rhodan designou Feriar, Thér e Ivsera como
comissários-chefes dos abrigos de Fenomat e Sallon, e
ordenou aos tripulantes das duas naves auxiliares que
fizessem tudo que estivesse ao alcance deles para apoiá-los
no desempenho de suas funções. Encareceu aos três chefes
que se esforçassem a fim de não se perpetuarem no
governo, mas fossem substituídos quanto antes por um
conselho eleito regularmente. Ivsera disse:
— Quando o senhor apareceu, eu estava cansada de não
fazer nada e não me conformava mais com a ideia de que a
mulher não deve intrometer-se na política. Mas nunca teria
sonhado com a possibilidade de que, dentro de poucos dias,
poderia atingir o posto de chefe do abrigo.
Rhodan sorriu. Antes que pudesse responder, Thér
interveio na palestra:
— Não seja tão convencida, minha filha. Afinal, a
senhora não está sozinha.
— Nem quero continuar nisso por muito tempo —
exclamou Ivsera. — Basta que tenha chegado até lá.
Rhodan sorriu.
— Quer saber de uma coisa? — disse. — Tenho a
impressão de que talvez a senhora possua uma visão um
tanto romântica de tudo isto. Não quero interferir em sua
vida privada, mas acho bem provável que a senhora sinta
falta de um homem que, vez por outra, lhe endireite as
ideias e lhe mostre como realmente são as coisas.
143
Ivsera baixou a cabeça e olhou para o chão.
— É o que vivo dizendo! — disse Thér.
— De alguns dias para cá, ou seja, desde o dia em que
me tratou como um escravo no laboratório, procuro atrair
sua atenção para minha pessoa. Acha que se dignou a olhar-
me uma única vez com uma expressão amável?
A cena terminou numa série de estrondosas gargalhadas
partidas de Rhodan e Feriar. Thér e Ivsera continuaram tão
sérios como parecia ser a intenção das últimas palavras
ditas por ele.
* * *
Poucas horas depois, a Drusus decolou.
No momento em que a Drusus penetrou no hiperespaço,
Rhodan deixou para trás um mundo e uma experiência que
já pertenciam ao passado. Tinha agora coisas muito mais
importantes pela frente.
Já os homens de Isan haviam assistido a um milagre.
A população do planeta chegara ao estágio da extinção.
Foi graças a um punhado de desconhecidos que o
extermínio pôde ser evitado e a população teve as
esperanças renovadas. Era um punhado de desconhecidos
que dispunha de recursos misteriosos e apavorantes, e que
não recuava diante de nenhum esforço para alcançar as
soluções justas.
Instalaram a ordem e acabaram com a fome. Coisas que
poucas semanas antes qualquer um consideraria impossível
tornaram-se possíveis: fizeram com que o planeta
despertasse para uma vida nova carregada de esperanças.
Isan nunca se esqueceria dos desconhecidos.
A veneração incluiu o morto cujo túmulo solitário
ficava no lugar em que a nave espacial dos estranhos
pousou pela primeira vez, e que nada tinha a ver com os
acontecimentos que se desenrolaram em Isan. Era o conde
Rodrigo de Berceo, o homem que correu para a morte
quando tentava ajudar Rhodan.
Após solucionar o problema Isan, Rhodan terá de pensar com todo o cuidado no futuro da
Terra, pois Árcon a está procurando...
Em O Duelo, título do próximo volume, Perry viverá outra estupenda aventura.
144
Nº 54
De
K. H. Scheer
Tradução Richard Paul Neto Digitalização Arlindo San Nova revisão e formato W.Q. Moraes
Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo
reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente
teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram
insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinquenta e seis anos se passaram desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no
ano de 1984.
Uma nova geração de homens surgiu.
E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no
governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas
de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à
colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os
soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória,
evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar
qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o
manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército
— continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua
origem terrana.
Atlan vê aproximar-se a realização de seus desejos. Só um obstáculo interpõe-se em seu
caminho: Perry Rhodan, o administrador do Império Solar.
145
Foram muito gentis, amáveis e, dentro dos limites das
suas normas de serviço, até se mostraram tolerantes. E isso
significava alguma coisa, quando se tratava de membros da
defesa solar.
Muitos deles eram cientistas uniformizados. Outros
soldados da frota espacial, calejados nas lutas. Conforme
explicaram, haviam arriscado tudo pela Terra.
Para eles, eu era um ser totalmente estranho, tanto sob o
aspecto biológico como do ponto de vista político-social.
Nunca chegaram a empregar a expressão “raça estranha”,
fato que só concorria para confirmar minha opinião relativa
ao grau de amadurecimento ético da Humanidade. Já não
eram intolerantes como antigamente, quando perseguiam
pessoas que adotavam crenças diferentes
das suas e executavam os adversários
políticos. Haviam amadurecido, mas isso
não os impedia de verem um inimigo em
minha pessoa.
— Não temos absolutamente nada
contra o senhor, meu caro — declarou o
general Kosnow em tom jovial.
Por isso, formulei uma pergunta
inteiramente lógica: por que não me
deixavam ir em paz? Quando me lembrei
do sorriso azedo de Kosnow, senti a
preocupação fermentar em minha mente.
Só nos raros momentos de equilíbrio
psíquico esse fato me divertia.
Era claro que não poderiam soltar-me,
depois que eu irrompera em seu círculo
de vida em circunstâncias tão misteriosas.
Não sabiam nada a respeito da minha cúpula
pressurizada, situada nas profundezas do Oceano Atlântico.
Por outro lado, não lhes revelei que no ano de 1.971
resolvera colocar-me em segurança, porque temia a
irrupção de uma guerra nuclear.
Dali a sessenta e nove anos, quando as instalações
médicas robotizadas de minha base me despertaram do
estado de hibernação biológica, tive de constatar que não
houve guerra.
Pude ver o que a Humanidade havia realizado dentro
desses sessenta e nove anos.
Recorrendo a todos os meios de que consegui lançar
mão, cheguei a Terrânia, onde travei conhecimento com o
homem mais importante da fase recente da história.
Seu nome era Perry Rhodan. Durante o tempo em que
eu dormira, ele havia criado um pequeno império
planetário, ao qual dera o nome de Império Solar.
Na Galáxia habitada, ninguém parecia desconfiar de que
na pessoa de Rhodan surgira um conquistador audacioso e
cheio de astúcia.
Levei algum tempo para avaliar aquele homem. E isso
quase chegou a transformar-se na minha perdição.
Embora conhecesse a dureza, a pertinácia e a
capacidade de ação dos humanos, não dei o devido valor a
Rhodan.
Tentei fugir numa pequena espaçonave do tipo jato
espacial, pois, após um longo afastamento, tinha vontade de
chegar em casa. Esperei por muito, muito tempo que o
desenvolvimento tecnológico dos humanos chegasse ao
estágio da navegação espacial.
Quando finalmente conseguiram, cometi a tolice de
fugir para as profundezas do oceano. Dessa forma, perdi a
oportunidade representada pelo grande salto.
Quando por ocasião do primeiro voo tripulado à Lua,
Rhodan descobriu o cruzador danificado dos arcônidas.
Naquela oportunidade, uma ação precipitada me fez perder
a maior chance de minha existência.
Enquanto eu estava mergulhado no profundo sono
biológico, o antigo major da Força Espacial
adquiriu o saber arcônida e realizou seus
projetos com base no mesmo.
Quem cruza nestas condições o
caminho de um homem, que há decênios
vê o próprio sentido da vida em tudo
quanto é dificuldade e risco, quase sempre
se expõe a uma catástrofe.
Fugi! Entrei numa nave espacial
pilotada pelo próprio Rhodan. Em
Hellgate, houve o duelo no deserto.
Ele me mandou prender e algemar.
Durante a luta tive uma oportunidade de
matá-lo. O motivo por que não o fiz, mas
preferi errar o alvo, constituiu parte
substancial das minhas reflexões
autocríticas do momento.
Por que não o matei? Teria sido porque
antes ele me ajudara a sair da nave em chamas?
Não. Esse motivo não tinha qualquer fundamento
lógico. O homem que resolve poupar seu inimigo não está
certo de que este venha a adotar o mesmo modo de agir
quando surgir uma situação idêntica.
Apesar disso, senti que devia ser-lhe grato. Poupei sua
vida de propósito e avisei-o pelo rádio de que agora
estávamos quites. Poucas horas depois iria arrepender-me
do gesto.
Após a salvação realizada no último instante, ele me fez
contemplar a boca de sua arma. Fiquei sabendo que, entre
nós, surgira uma estranha amizade fundada no ódio.
Admirei-o a contragosto. Ele, que se considerava
imortal, mas que poderia ser atingido com tamanha
facilidade via em mim um objeto de estudo muito
interessante.
Rhodan era muito inteligente e experimentado nas
coisas da vida e talvez até desconfiasse de que eu não fosse
um verdadeiro arcônida. Provavelmente, foi só por isso que
me mandou levar à Terra num cruzador leve. E desde o dia
10 de maio de 2040 estou detido neste planeta, como
prisioneiro da defesa solar.
Personagens principais deste episódio:
Atlan — O personagem
principal que conta a história
em primeira pessoa. Trata-se de
um prisioneiro arcônida.
Marlis Gentner — Uma
estudante de olhos escuros
nascida em Vênus.
Gunter Viesspahn — Um colono
barbudo de gestos grosseiros.
Perry Rhodan — Administrador
do Império Solar.
1
146
Meu relacionamento com essa gente transformou-se
numa tragicomédia de primeira categoria. Evidentemente
sabiam muito bem que a vida de seu ídolo estivera em
minhas mãos. E também sabiam que eu não era um
verdadeiro inimigo da Humanidade.
Os homens da defesa solar eram psicólogos. Por isso,
meu comportamento colocava-os diante de uma verdadeira
muralha de enigmas, cuja solução dificilmente seria
possível para quem não possuísse a chave adequada.
Quem tinha a chave era eu; também sobre este ponto
estavam informados. Não haveria nada mais natural que
procurar arrancar-me esse conhecimento.
Quando foram buscar-me para realizar o primeiro
interrogatório, tive um pouco de medo. Talvez poderiam
reincidir nos seus antigos vícios.
Pensava num tratamento grosseiro. À porta da sala em
que seria realizado o interrogatório, minha lembrança muito
viva me mostrara coisas feitas em tempos passados, por
homens ainda não humanizados.
Não me fizeram nada. Os cientistas uniformizados
apenas puderam ameaçar-me com seus rostos zangados o
que, uma vez vencido o primeiro choque, quase nem
chegou a impressionar-me.
Há dias estávamos brincando uns com os outros.
Recorreram a todos os truques puramente psicológicos que
conheciam. Tive de prestar muita atenção. Mas, afinal, eu
era um conhecedor mais profundo da mente. Não
dispunham das mesmas experiências que eu, nem estavam
informados sobre as coisas que eu mesmo experimentara
pessoalmente no correr do tempo.
Era um paradoxo que eu, um arcônida, conhecesse os
homens melhor do que eles mesmos se conheciam. Para
mim, o fato de que vezes seguidas me ofereciam
oportunidade de deixá-los perplexos com o volume das
minhas experiências representava uma fonte de
divertimento.
Era esta a situação quando vieram buscar-me no dia 16
de junho de 2.040, para o vigésimo segundo interrogatório
psicológico.
O tenente Tombe Gmuna era o oficial de escolta. Eu
gostava do africano, sempre risonho, que costumava
demonstrar uma franqueza reconfortante.
Cederam-me uma pequena casa, situada nas
proximidades do centro administrativo de Terrânia. Não
tinha janelas gradeadas ou outras instalações convencionais
destinadas a evitar a fuga.
Possuía três robôs de serviço que funcionavam
impecavelmente. Mas nem mesmo estes poderiam ajudar-
me a vencer a barreira energética de minha “prisão”.
A cerca radiante tinha cinco metros de altura. Não
poderia saltar sobre ela, nem teria outro meio de vencê-la.
As instalações energéticas e de comando ficavam fora da
área circular delimitada pela mesma. Via perfeitamente a
casinha do transformador com o projetor que criava o
campo energético circular, mas não poderia atingi-la.
Sempre que levado para fora através de uma abertura
feita por uma série de manipulações, era acompanhado ao
menos por três homens do serviço de defesa. Portavam
armas, cujo efeito era relativamente inofensivo, mas muito
doloroso. Durante o tempo em que estive preso, nunca quis
assumir o risco de entrar em contato com o fulgurante raio
energético desencadeado pelo choque.
Desta vez, o tenente Gmuna trazia uma pistola de
verdade no cinto do uniforme. Notei que se tratava de um
radiador de impulsos térmicos, cujos efeitos eram mortais.
Seu rosto franco parecia um tanto matreiro. Os olhos
escuros exprimiam certa dose de contrariedade. Ao ver meu
olhar recriminador, disse em tom seco:
— São ordens, almirante.
Desde que ficaram sabendo que já exercera as funções
de comandante de uma frota arcônida, passaram a dar-me o
tratamento de Sir ou almirante. Nos últimos dias, fiquei
refletindo sobre a espécie de truque psicológico que estaria
ligado a esse procedimento. Será que pensavam que com
isso conseguiriam levar-me para seu lado?
Não fazia muita questão do título. Há muito tempo que
dirigira uma poderosa flotilha do comando de colonização
arcônida. Porém não conseguia pensar no fato sem que uma
sensação de desalento se apossasse de mim. E a melancolia
de meu espírito nunca cessava.
— Que ordem, Gmuna? — perguntei.
— É a arma de impulsos — disse com um gesto de
contrariedade. — Chegou outro homem. Daqui em diante,
seu oficial de escolta terá que levar um radiador.
Olhei-o da cabeça aos pés. Demorou um pouco até que
seu rosto se descontraísse.
— Bem, não podemos fazer nada. Não pense na tolice
de querer fugir. O senhor conseguiu isso uma vez, mas não
vai repetir o ato.
— Daquela vez me tornei invisível — afirmei.
— O senhor gosta de um esclarecimento total, não é?
Limitei-me a fazer um gesto afirmativo e fiz um esforço
para não demonstrar a inquietação que me atormentava.
O tenente abriu a porta do carro oficial muito simples.
Sentei no banco do meio, bastante desconfortável. Gmuna
ocupou o lugar ao lado do motorista. Atrás de mim, os
pesados radiadores de choque dos dois soldados me
ameaçavam. Era uma escolta digna de um antigo almirante,
que já desistira de pensar no passado grandioso.
Durante os vinte e um interrogatórios pelos quais já
passei, haviam apresentado provas cabais de que os dados
relativos aos arcônidas, constantes da Enciclopédia
Terrânia, correspondiam à verdade. De acordo com esses
dados, meu povo venerando se encontrava num estágio de
degenerescência física e mental que o tornava incapaz de
enfrentar as adversidades da vida. Não compreendi como
isso poderia ter acontecido num espaço de tempo tão curto.
2
147
De qualquer maneira os homens da defesa solar
quebraram minha arrogância nascida do sentimento de
superioridade. Mas não conseguiram roubar minha altivez.
Afinal, mesmo um Perry Rhodan aprendera com os
cientistas de meu povo. Se nossa nave exploradora não
tivesse realizado um pouso de emergência na lua terrana,
nos idos de 1.971, a navegação espacial interestelar não
surgiria na Terra.
Ninguém poderia privar-me da consciência desses fatos.
Aliás, nem pretendiam negar que fomos seus mestres.
Era bem verdade que em alguns pontos pareciam ter
ultrapassado os arcônidas. Mostraram-me algumas naves
espaciais construídas e equipadas na Terra, cujos detalhes
estruturais me deixaram perplexo.
Foram estes os meios que utilizavam para torturar-me.
Já não eram primitivos a ponto de encostar ferro em brasa
aos meus pés.
O jovem Tombe Gmuna era um exemplo frisante do
novo comportamento do homem. Era tolerante, de mente
limpa, e sempre estava disposto a reconhecer as qualidades
de outro ser. Tomara uma atitude tão franca para comigo
que não pude deixar de identificá-lo com a nova espécie de
homem.
Eram os tipos arrojados de conquistadores, que meu
povo também possuíra no período áureo. Isso parecia
pertencer ao passado, e essa circunstância me precipitava
num caos psíquico. Já me encontrava longe de casa há tanto
tempo que não estava em condições de formar opinião
própria sobre o que realmente teria acontecido.
A arma mais eficiente utilizada contra mim foi a alusão
constantemente repetida ao gigantesco robô que, segundo
diziam, administrava o império estelar criado por meus
antepassados.
Para ser sincero comigo mesmo, tive de perguntar-me
por que estava empenhando todos os meus anseios e minha
capacidade de ação em chegar aos três planetas
sincronizados de Árcon, apesar de tudo que teria
acontecido.
Seria o sentimento que os homens designavam como
saudade? Em pessoas do meu tipo uma manifestação do
inconsciente como esta seria um fato inconcebível. Afinal,
sempre conseguira controlar-me, desde o momento em que
deixara minha nave capitania, a fim de pisar pela primeira
vez no planeta verde, a Terra.
Talvez os numerosos amigos de verdade encontrados
entre os humanos nem permitiriam que pudesse sofrer um
repentino acesso de saudades.
Provavelmente, o desejo de ir para casa, acontecesse o
que acontecesse, nascera principalmente do orgulho ferido.
Foi terrível ter de constatar, assim que despertei do
profundo sono biológico, que os pequenos bárbaros do
planeta Terra já se haviam tornado adultos.
A essa hora, só sentia o desejo de verificar pessoalmente
se as informações que o serviço de defesa fornecera sobre
meu povo correspondiam à verdade. Se isso acontecesse,
talvez voltaria para estender a mão a Rhodan e selar o pacto
de amizade com o mesmo.
Enquanto o veículo se deslocava em direção às
instalações não muito distantes do serviço de defesa, pensei
em Perry Rhodan. Estava desaparecido há cerca de trinta
dias. Gmuna fizera algumas observações, segundo as quais
Rhodan voltara a arriscar muita coisa. De qualquer maneira,
no momento, meu inimigo mais implacável não se
encontrava na Terra.
Meu inimigo? Soltei uma risadinha ao analisar o
conceito. Sim, fora meu inimigo até o momento em que
dera ordem ao seu robô para que me desse água. Quando
isso aconteceu, percebi que nunca mais conseguiria matá-
lo.
Gmuna levou-me ao elevador antigravitacional mais
próximo. Os jovens lidavam com o artefato como se
tivessem passado por uma evolução tecnológica milenar.
Tudo aquilo se transformara numa coisa natural. Ao que
parecia, nem chegaram a refletir sobre o tempo que os
cientistas de meu povo dispenderam no controle das forças
gravitacionais. Eles, os humanos, simplesmente receberam
a tecnologia de nosso povo.
Quando pensava nesses detalhes, lutei contra a sensação
de raiva que começava apossar-se de mim. Seria bom que
não se esquecessem de quem eles tinham diante de si.
Quem lhes dava o direito de mandar conduzir-me por um
grupo de soldados armados, como se fosse um criminoso?
Era este detalhe que não me permitia fazer vistas grossas
para tudo, num gesto de verdadeira generosidade.
Se tivessem mais experiência, nunca teriam a ideia de
algemar ou vigiar um homem como eu. Minha palavra lhes
bastaria.
Mas, ao que tudo indicava, não conheciam o elevado
código de honra da velha frota arcônida.
Por isso, cometeram o erro de minar constantemente a
disposição de revelar integralmente os fatos, que vez por
outra surgia em minha mente. Despertaram todo o volume
de resistências desencadeadas pelas sensações do
subconsciente. Achei preferível não informá-los sobre este
detalhe.
Parei por um instante no corredor do 86o pavimento,
prestando atenção aos últimos ecos do trovão causado pela
decolagem de uma grande espaçonave. Para mim não
poderia haver ruído mais agradável. Olhei para Gmuna.
— É uma nave da classe Império? — perguntei em tom
curioso.
— É a nave Drusus, almirante. O chefe solicitou sua
presença pelo hiper-rádio. Caso o oficial de artilharia aperte
os botões, ela poderá causar o fim do mundo.
Seu entusiasmo mais que compreensível me fez rir. O
coração de um jovem não poderia deixar de bater mais
aceleradamente quando uma gigantesca esfera espacial de
1.500 metros de diâmetro disparava em direção ao espaço.
Dali a alguns segundos, as portas de correr blindadas
abriram-se. Entrei nas salas de trabalho do setor especial da
defesa solar.
Como de costume, havia mais de dez pessoas. Já as
148
conhecia.
Na minha escala de avaliação, o general Kosnow
ocupava um lugar todo especial. Conforme Gmuna certa
vez cochichara ao meu ouvido, este homem seria muito
velho. Talvez pertencesse ao grupo de oficiais de grande
mérito, que juntamente com Perry Rhodan haviam criado e
desenvolvido a antiga Terceira Potência. Dizia-se que Perry
Rhodan tinha a possibilidade de proporcionar um
prolongamento biomédico da vida aos homens que julgasse
dignos desse benefício. Não possuía a menor ideia sobre a
maneira pela qual conseguia isso. Em nenhum dos homens
pertencentes ao círculo de seus colaboradores mais
chegados, percebera qualquer fenômeno que, segundo as
minhas concepções, pudesse contribuir para a estabilização
biológica e a renovação constante das células.
De qualquer maneira, não podia deixar de haver um
núcleo de verdade nesses boatos, pois Perry Rhodan não
envelhecera.
Quando vi o homem baixo, parei imediatamente.
Virou em minha direção o rosto que chamava a atenção
pela pele lisa e pela ausência quase completa de barba, que
parecia dominado por dois olhos azuis. Aparentava ser tão
corriqueiro e inofensivo que não poderia deixar de
despertar desde logo minha desconfiança. Seria este o
homem novo, do qual Gmuna me havia falado?
Se fosse eu quem estivesse no comando, teria dado
ordem para que o jovem oficial usasse uma arma realmente
mortífera. Isto não concorreu para tornar o desconhecido
mais simpático aos meus olhos.
O general Kosnow levantou-se atrás da enorme
escrivaninha. Cumprimentou-me com um gesto de cabeça.
— Como vai, almirante?
Inclinei a cabeça num gesto comedido, esforçando-me
para demonstrar certa dignidade.
— Permita que lhe apresente o marechal-solar Allan D.
Mercant, almirante.
“Cuidado! Perigo!”, sinalizou meu supercérebro. Senti
nitidamente os impulsos telepáticos expedidos pela mente
do marechal.
Minha memória fotográfica entrou em funcionamento.
Allan D. Mercant? O nome não me era estranho. Lembrei-
me de tê-lo lido na Enciclopédia Terrânia. Segundo os
dados constantes da mesma, em 1971 Mercant fora chefe de
um serviço secreto de âmbito mundial, conhecido pelo
nome Conselho Internacional de Defesa.
Depois que Rhodan regressou da Lua, o chefe do CID
passou a simpatizar com o major. Posteriormente passou a
trabalhar com exclusividade para Rhodan. E, agora aquele
homenzinho ocupava o posto de marechal-solar.
Provavelmente exercia as funções de chefe do Serviço
Solar de Segurança. Tinha certeza absoluta de que Rhodan
não poderia ter encontrado melhor elemento para
desempenhar as funções.
Mercant, que além do mais parecia dispor de faculdades
telepáticas limitadas, também se levantou. O gesto com que
me cumprimentou foi um tanto desajeitado, mas não deixei
que esse fato me iludisse. Mercant correspondia àquilo que
meus antepassados costumavam designar como o punhal de
ponta envenenada: de aspecto inofensivo, era uma mortífera
arma de ataque.
— Muito prazer. Por favor, não se esforce em vão, Sir
— disse em tom formal. — Já houve telepatas melhores que
o senhor que tentaram romper minha psique. Estou em
condições de bloquear o conteúdo da minha mente.
O homenzinho de cabeça quase totalmente calva, que
usava óculos antiquados de aros de ouro, parecia
embaraçado.
— Queira desculpar — disse Mercant em tom
lamentoso, mas seus olhos claros falavam uma linguagem
diferente...
Percebi que minha avaliação fora correta. Sua conduta
aparente era apenas a máscara que ele usava. Tinha certeza
absoluta de que não sofria complexos de inferioridade.
Por outro lado, não podia haver a menor dúvida sobre
suas qualidades psicológicas. Se Rhodan o havia escolhido
para chefiar uma entidade importantíssima como a defesa
solar, Mercant devia ser dotado de uma capacidade
extraordinária.
— Faça o favor de sentar — disse em tom amável.
Sua mão apontou gentilmente para uma cadeira
confortável, colocada à frente das escrivaninhas dispostas
em ferradura. Sentei.
Raras vezes estivera tão atento. Se não estava muito
enganado, a tática que Mercant usaria durante o
interrogatório seria muito diferente daquela empregada por
seus subordinados.
Foi como eu esperava. Começou instantaneamente, em
forma de assalto. O fato de que não recorria a palavras
supérfluas constituía uma vantagem.
— O senhor está na Terra pelo menos há setenta anos,
almirante — principiou com a voz tranquila.
Esforcei-me ao máximo para manter o autocontrole.
Como poderia saber disso? Mantive-me em silêncio.
— Tive o trabalho de examinar alguns documentos
antigos da OTAN — disse com um sorriso. — Em abril de
1970, o chefe científico de um instituto de pesquisas
particular empregou certo Olaf Peterson, que assinou um
contrato. Esse homem foi o senhor. Após quatro meses,
passou a chefiar um setor próprio. Ali desenvolveu num
tempo espantosamente curto um aparelho chamado projetor
de campos estruturais, destinado a campos de compressão
que exigem um elevado desempenho energético. Num
artigo escrito pelo senhor, diz-se que o mesmo poderia
substituir perfeitamente as câmaras de combustão
convencionais e os bocais de jato submetidos a uma
solicitação térmica excessiva. Dali a mais três meses, o
senhor passou a ocupar-se com a elaboração de um
minirreator destinado ao abastecimento de energia para as
espaçonaves. Tratava-se de um reator de fusão dotado de
controle automático capaz de fornecer quinhentos
quilowatts por hora. Estes fatos são um tanto
surpreendentes, não são?
149
Mercant fitou-me com uma expressão de curiosidade.
Percebi que seria inútil negar.
— É verdade — disse em tom de tédio. — Naquela
época, usava o nome de Olaf Peterson. Pretendia apoiar os
bárbaros nos seus esforços desesperados de conquistar o
espaço. A gente se assustava ao ver os problemas que os
aborreciam. Quanto a mim, apenas utilizei dados
publicamente expostos nos museus de meu povo.
Fiquei satisfeito ao notar o choque causado nos homens
que me ouviam atentamente. Por pouco, não soltei uma
estrondosa gargalhada. Mercant parecia divertir-se.
— Obrigado pela franqueza, almirante.
— Não há por que, Sir. Um homem inteligente não
continua a mentir quando percebe que está
irremediavelmente desmascarado.
O chefe de segurança fez um gesto pensativo.
Repentinamente mudou de assunto.
— Acreditamos que o senhor seja um agente cósmico
no desempenho de missão independente. Crest e Thora,
nossos amigos arcônidas, não sabem nada a seu respeito.
Uma coisa é certa. O senhor veio à Terra por simples acaso.
— Não diga! — respondi.
Um sorriso disfarçado surgiu no rosto de Kosnow.
Havia uma pequena dose de malícia em seus olhos. Ao que
parecia, gostava de ver Mercant sofrer um pequeno revés.
— Qual é sua idade, almirante? — foi a pergunta
seguinte.
— Procure adivinhar.
Estavam se aproximando de meu segredo. O chefe de
defesa seguira um caminho bem diferente. Seus dedos
brincavam nervosamente com uma velha espátula feita de
marfim.
— É o que faremos — prometeu em tom gentil. — O
senhor tem um aspecto surpreendentemente jovem. Diria
que calculo sua idade em trinta e cinco anos. Como
podemos harmonizar essa circunstância com sua presença
prolongada na Terra? Além disso, segundo as informações
de que dispomos, um oficial da frota arcônida que ocupa o
alto posto do senhor nunca tem menos de quarenta anos da
contagem de tempo terrana. Ninguém se torna almirante aos
trinta anos.
— O senhor está com toda razão — disse em tom sério.
Descansou a espátula com uma lentidão acintosa. Senti
que teve de esforçar-se para manter o autocontrole.
“Prepare-se!”, foi a mensagem transmitida por meu
cérebro. Sabia o que viria em seguida.
— O senhor possui um aparelho muito estranho,
almirante. Atendendo a seus pedidos, deixamos de abrir o
envoltório em forma de ovo. Ainda insiste na afirmativa de
que não se trata de uma arma?
— Perfeitamente.
— O senhor ponderou que o aparelho tinha alguma
relação com seu bem-estar físico. Uma vez que não lhe
pretendemos fazer mal, não lhe tiramos o mesmo. Mas isso
pode mudar, almirante!
Se até então ninguém me ameaçara, Allan D. Mercant o
estava fazendo.
Pensei nas terríveis cicatrizes que trazia na região do
estômago, devidas exclusivamente ao ativador celular a que
Mercant acabara de aludir.
Envolvi-me num silêncio total. A situação parecia
tornar-se desagradável para os psicólogos que se
encontravam presentes.
O chefe do serviço de defesa não se deixou perturbar.
Desconfiei até onde pretendia chegar. Era mais que
perigoso.
— Trouxe alguns cálculos logísticos — acrescentou em
tom casual. — Supondo que esse aparelho realmente
assume uma importância vital para o senhor, e que sempre
deve ser trazido junto ao seu corpo, os matemáticos
concluíram que, no curso de seu passado bastante agitado, o
senhor deve ter sido obrigado várias vezes a engolir o micro
conjunto. O fato explicaria as suas numerosas cicatrizes.
Foi só por isso que acreditei nas suas declarações, segundo
as quais o senhor não deve ser separado do aparelho.
Evidentemente essa circunstância nos leva a tirar
conclusões da maior gravidade.
— E daí? — perguntei em tom irônico.
— O senhor se encontra na Terra há muito mais tempo
do que está disposto a confessar. Verificaremos os nomes
com que tem aparecido no curso da história da
Humanidade.
— Fique à vontade. Não terá muita sorte.
Tornou-se um pouco mais impaciente.
— Atlan, o senhor deveria dizer a verdade. Um homem
com a sua inteligência já teria percebido que não adianta
negar os fatos. O que espera conseguir com isso?
— Quero ir para casa — disse em tom tranquilo.
— O senhor sabe perfeitamente que não podemos
aceder a esse desejo. Por aí pensasse que a Terra foi
destruída e que Perry Rhodan está morto. Se permitíssemos
que o senhor fosse ao sistema de Árcon, isso representaria
um perigo para a Humanidade.
— Se as informações que me forneceram sobre a
decadência do Império de Árcon correspondem à realidade,
não direi uma palavra.
— O senhor não seria capaz disso. Árcon está sendo
governado por um regente robotizado. Além disso, achamos
sua pretensão um tanto absurda. Como poderíamos
acreditar na sua promessa, se até aqui se obstina em manter
silêncio sobre os fatos?
Allan D. Mercant era muito inteligente. Mas, nem ele
mesmo se dera conta de que minha palavra representaria
muito mais que uma simples promessa. Chamei sua atenção
para essa circunstância.
— As informações que possuímos sobre as concepções
morais dos oficiais da frota arcônida são muito escassas,
Sir. Os tempos estão mudados. Diga francamente quem é,
de onde veio, quando veio e por que veio. Depois
poderemos falar sobre o resto. Por enquanto, o senhor é um
“fator” desconhecido, que pode ser totalmente inofensivo,
mas também pode ser muito perigoso.
150
No meu íntimo confessei que seu raciocínio era claro e
lógico. Apesar disso, não estava disposto a revelar de uma
hora para outra meu grande segredo. Provavelmente não
acreditariam em mim, o que tornaria minha situação ainda
pior.
Além desse raciocínio, o orgulho bastante ferido ainda
me impedia de revelar os fatos. Afinal, quem eram esses
terranos? Meus antepassados viram neles selvagens do
tempo da Idade da Pedra, e agora um cientista e
comandante de esquadra arcônida recebia deles um péssimo
tratamento.
Senti que me aproximava de um dilema. Já não
conseguia vencer a fraqueza determinada por fatores
raciais. Meu supercérebro dizia que os terranos eram
amigos, mas minha memória fotográfica revelava o
pequeno número de amigos que havia encontrado entre
eles.
— O senhor me ofendeu — respondi em tom áspero. —
Se não quiser confiar na minha palavra, não terá outra
alternativa senão manter-me preso. Recuso-me a depor.
É um direito que as leis terranas me conferem.
— Voltamos à estaca zero, Sir — observou o general
Kosnow.
Sabia o que queriam dizer. Os homens mais capazes do
serviço de defesa já haviam percebido por ocasião dos
interrogatórios anteriores que em certo estágio um curto-
circuito emocional ocorria em minha mente, Até agora,
Kosnow sempre suspendera o inquérito ao chegar a este
ponto.
Mercant não se afastou da regra. Levantou-se,
cumprimentou-me com um gesto da cabeça e disse:
— Pois não; fique à vontade, almirante. Hoje de tarde
voltaremos a conversar. Até lá disporemos de outros dados
sobre sua pessoa. Se houver qualquer prova de que
desenvolveu alguma atividade de agente, terá de enfrentar
um tribunal. O senhor não está com a ficha muito limpa,
senhor Atlan.
Este modo de falar fez com que ele fechasse
desesperadamente os olhos. Já se tornavam muito menos
corteses, o que não lhes poderia levar a mal. Perguntei
seriamente a mim mesmo o que faria se estivesse em seu
lugar. Talvez não fosse tão tolerante para com um
misterioso desconhecido.
Mercant saiu. O general Kosnow seguiu-o com um
olhar pensativo. Depois que a porta se fechou, virou a
cabeça para mim.
O traço em torno dos seus lábios parecia exprimir
preocupação.
— O senhor ainda não conhece Mercant, Sir — disse
em tom de súplica. — Por que insiste em não falar? Está
certo; dar-lhe-emos mais algumas horas para refletir.
Concorda em conversar também hoje com os estudantes do
último semestre?
Controlei-me para não revelar minha alegria. Desde o
dia 12 de maio de 2.040, surgira o hábito de levar-me todos
os dias ao grande auditório da Academia Espacial, onde as
novas gerações de cientistas me faziam inúmeras perguntas.
Geralmente tratava-se de problemas médico-biológicos ou
de questões de tática colonial solucionadas no curso da
política expansionista dos arcônidas.
Os estudantes de engenharia estavam curiosos para
saber que tipos de propulsores e máquinas usávamos
naquele tempo, enquanto os astronautas esperavam que
confirmasse a exatidão de longos cálculos relativos a
hipersaltos.
Os futuros oficiais da Frota Espacial Estratégica
estavam interessados em conhecer a forma pela qual os
colonizadores arcônidas costumavam tratar os povos
estranhos.
As discussões eram agradáveis. Na verdade, o interesse
pelo passado grandioso de meu venerável povo me deixava
feliz.
Mais uma vez concordei, embora hoje nem pensasse em
utilizar o saber imenso armazenado na minha memória
fotográfica no benefício exclusivo dos estudantes da
academia.
Meus cálculos incluíam um fator, que nas últimas
semanas fora incluído na categoria dos desconhecidos.
Tratava-se de um ser humano, cujas reações constituiriam a
chave negativa ou positiva da minha equação: uma jovem
estudante de cosmobiologia chamada Marlis Gentner, que
não nascera na Terra.
Marlis era descendente dos colonos que pousaram em
Vênus cerca de sessenta anos atrás. Evidentemente
orgulhava-se dos seus antepassados, que conseguiram
arrancar da selva de Vênus tudo de que o homem precisa
para sua subsistência.
Sabia que entre os colonos de Vênus e os terranos
existiam certas tensões. Para mim, as ligeiras divergências
eram normais e inevitáveis. A história grandiosa de meu
povo demonstrara repetidas vezes que, uma vez vencidas as
dificuldades iniciais, toda colônia anseia pelo autogoverno.
As consequências sempre são desagradáveis para ambas
às partes. É bem verdade que os problemas econômicos e
sócio-políticos podem ser solucionados satisfatoriamente
através de negociações. Mas, até o momento do acordo
definitivo, sempre existe uma diferença de princípios e de
concepções.
Marlis Gentner era uma defensora ardorosa da justiça.
Em sua opinião, o jovem Estado venusiano fora prejudicado
em seu desenvolvimento. Não lhe expliquei que os colonos
sempre são dessa opinião. Um pioneiro inteiramente
satisfeito constitui um fenômeno impossível.
Travei conhecimento com ela no dia 15 de maio,
durante uma preleção. Poucos dias depois, ela dissera numa
discussão pública que minha prisão constituía uma
indignidade.
Há três dias resolvi colocar todas as chances numa carta.
Num cochicho informei-a sobre o lugar em que havia
escondido meu equipamento especial.
Em princípios de maio, quando cheguei a Terrânia, tive
o cuidado de guardar adequadamente os aparelhos que
151
assumiam importância vital para mim. Por ocasião de
minha fuga precipitada na nave espacial de Rhodan, parte
dos micros instrumentos havia ficado para trás.
Se conseguisse apossar-me de certa cápsula, os dias de
prisão teriam chegado ao fim. Meus cálculos eram
inatacáveis. Não havia a menor possibilidade de falha,
desde que o fator desconhecido representado por Marlis
Gentner reagisse de forma positiva.
Os dois guardas armados voltaram a aparecer. Num
gesto rotineiro, apontaram para a porta atrás da qual havia
um elevador que conduzia ao heliporto situado na cobertura
do edifício.
Ainda bem! Um ato de rotina sempre embota a mente,
adormecendo o sentimento de vigilância. Até mesmo
Tombe Gmuna, sempre desconfiado, não suspeitou de nada
quando penetrou ao meu lado no campo energético.
Livres da ação da gravidade, subimos ao lugar em que o
aparelho de rotores do serviço de defesa nos aguardava.
A maior e a mais importante das academias espaciais do
Império Solar ficavam fora da área do gigantesco
espaçoporto.
Bem longe dali, ao leste, vi as coberturas reluzentes dos
arranha-céus. Terrânia, a capital da Terra e do pequeno
império planetário, fundada há sessenta anos, já tinha mais
de 14 milhões de habitantes.
Era uma cidade que impressionava o observador. Por
certo, ocuparia um lugar de destaque na Galáxia, assim que
as inteligências da Via Láctea a conhecessem. Por
enquanto, Perry Rhodan ainda se fingia de morto. Mas, em
minha opinião, isso não duraria muito.
Não poderia deixar de ser descoberta durante a missão
arriscada que estava executando. Quando isso acontecesse,
preferia não estar na Terra. Meu lugar era no palácio de
cristal de Árcon I, o mundo que dominava o Universo
conhecido.
Ao entrar na máquina, lembrei-me de como meu auxílio
discreto seria útil para a Humanidade. Deveria ter explicado
aos homens do serviço de defesa que eu, Atlan, estava
imbuído da intenção honesta de, a partir de Árcon, apoiar a
Humanidade em ascensão?
Ninguém teria acreditado nas minhas palavras, ainda
mais que segundo a opinião oficial todos os arcônidas eram
degenerados. Não podia conformar-me. Precisava ir para
casa, custasse o que custasse.
Minha preleção sobre a política colonial arcônida e a
psicologia das raças estranhas durou duas horas.
A seguir, os estudantes de várias especialidades
apresentaram-se para discutir o assunto. Era a hora da
descontração e do descanso.
Marlis Gentner, uma moça alta, de cabelos escuros e um
jeito obstinado, resolvera não participar da guerra de
palavras. Interpretei sua surpreendente reserva como um
sinal positivo, o que evidentemente poderia ser um
raciocínio errôneo.
Várias vezes vi seu rosto surgir entre muitos outros
como se fosse uma mancha branca. Uma ocasião tive a
impressão de que me examinava com os olhos críticos de
psiquiatra.
Sempre que pensava nela, experimentava um
sentimento de carinhosa simpatia. Quase chegava a sentir
vergonha por tê-la induzido a trair sua raça.
Seria a doença infantil de todos os pioneiros; não havia
a menor dúvida. E fora injusto da minha parte deixar de
esclarecê-la a este respeito. Ainda acontecia que não se
podia pensar numa ligação entre a moça e minha pessoa.
Era jovem, bela e inteligente. Já eu era um homem
muito velho, que não tinha o direito de atar a venusiana,
que mal começava a despertar para a vida.
Enquanto respondia às indagações dos universitários,
meu sexto sentido lógico, que geralmente funcionava de
forma impecável, me disse que por enquanto não havia
acontecido nada. Além disso, não pretendia recorrer ao
auxílio de Marlis para prejudicar a Humanidade. Apenas
desejava ir para casa. Queria escapar à vergonha da prisão.
Era só isso.
Ao meio-dia e dez, o tenente Gmuna interrompeu a
longa discussão. Encontrava-se entre os estudantes, dos
quais alguns falavam excitadamente, enquanto outros
ouviam em silêncio. Naquele momento, discutiam se uma
raça mais desenvolvida no terreno técnico e científico tem o
direito de enquadrar os habitantes dos mundos primitivos
no seu esquema colonizador.
Os prós e os contras esquentavam os ânimos jovens.
Diverti-me ao notar como a juventude mergulhava num
tema que já ocupara as cabeças dirigentes do Império
Arcônida.
A inquietação que começava a tomar conta de mim, me
fez ficar nervoso e distraído. Esforcei-me ao máximo para
dar respostas claras e objetivas. Se procedesse de outra
forma, Gmuna desconfiaria imediatamente.
Demorou alguns minutos até que eu visse Marlis ao
meu lado. Gmuna não poderia impedir que, durante a
discussão tão animada, vez por outra, alguém esbarrasse em
mim. Todos os dias tinham sido a mesma coisa: queriam
ver de perto o estranho vindo das profundezas da Via
Láctea.
Subitamente, vi os olhos de Marlis. Eram grandes e
escuros que nem um lago nas montanhas, em cujo fundo
arde um fogo eterno. Esses olhos continuavam a indagar, e
a perscrutar. Percebi lutar consigo mesma, uma
circunstância que provava que os objetos os quais eu
precisava se encontravam em seu poder.
Só deveria olhar ligeiramente para ela.
Naquele instante, Gmuna estava empurrando os
estudantes para trás. A moça aproveitou a oportunidade.
Ouvi sua voz, que soava baixo e abafada.
— O senhor me escreverá?
3
152
Fiz um gesto quase imperceptível com a cabeça. A
tensão psíquica quase chegava a dilacerar-me. Mercant
prometera interrogar-me de novo durante a tarde. Poderia
haver cenas muito desagradáveis.
— Faça o favor de afastar-se — berrou Gmuna a plenos
pulmões. — Do contrário nunca mais ouvirá uma preleção.
— Darei notícias — disse apressadamente, dirigindo-me
à moça.
— Não lutará contra minha gente?
— Dou-lhe minha palavra, Marlis. Preciso ir para casa.
Procure compreender!
— Encontramo-nos em Port Vênus. Interromperei os
meus estudos. Combinado?
Senti um nó na garganta. De repente, a tensão
abandonou-a. Brindou-me com um sorriso franco. Embaixo
de sua pasta, surgiu um recipiente chato de cerca de 20
centímetros de comprimento. Agarrei-o apressadamente,
mas ninguém notou o gesto.
Com um ligeiro movimento da mão, introduzi o estojo
sob a blusa folgada. Senti as duas ventosas entrarem em
contato com a pele através da camisa.
Mais uma vez parecia uma pessoa estranha entre os
jovens que discutiam, e que finalmente abandonavam o
campo.
O tenente Gmuna aproximou-se furioso. Sorri
tranquilamente para ele. Marlis desaparecera.
Provavelmente fizera muito mais pela Humanidade do que
poderia imaginar naquele instante. Quanto a mim, estava
decidido a não voltar para a grade energética.
Meu equipamento de emergência não oferecia grandes
possibilidades. Quando me encontrasse no interior da casa
hermeticamente fechada, o defletor de ondas luminosas não
me poderia ser útil.
— Faça o favor de acompanhar-me — disse Gmuna em
voz bastante alta. — A partir de amanhã mandarei isolar
seu lugar. Assim não é possível.
Quando comecei a rir, Gmuna contorceu o rosto numa
expressão de contrariedade.
— O senhor sabe perfeitamente que todas as simpatias
estão do seu lado. Não pense em tolices. É verdade: amanhã
mandarei fechar o auditório.
Gmuna nem parecia desconfiar de que essa decisão
vinha tarde. Olhei para trás para ver Marlis mais uma vez,
mas não consegui descobri-la. Provavelmente, há esta hora,
já se estaria recriminando pesadamente. Não tive
possibilidade de apoiar sua ação numa conversa franca e
prolongada. A moça só me conhecia das discussões.
Gmuna empurrou-me para a saída. Os dois guardas
reapareceram.
Pegamos o pequeno elevador comum que ficava atrás da
parede de comandos do moderno auditório. Lancei um
ligeiro olhar para as câmeras de televisão embutidas. As
minhas preleções costumavam ser transmitidas, pois a sala
não comportava mais de mil pessoas.
Fomos para a cobertura, onde Gmuna havia estacionado
o helicóptero. Naquele instante, minha calma e equilíbrio
interior tornaram-se completos.
“Na cobertura, pedirão autógrafos a você”, avisou meu
sexto sentido. Quase cheguei a confirmar com um gesto.
Até então, sempre fora assim. Os estudantes são uma turma
bastante engenhosa. Sabiam como pregar uma peça às
autoridades.
Comecei a preparar-me para a fuga.
Quando saímos do elevador, não consegui ver a larga
área de concreto do heliporto de cobertura. Mais de mil
universitários haviam comparecido para ver uma criatura
misteriosa como eu.
Eram os estudantes que não conseguiram entrar no
auditório. Com certeza não ficaram muito satisfeitos em
assistir à palestra pela televisão, principalmente porque
dessa forma não poderiam intervir nos debates. E agora
possibilitariam minha fuga.
Os guardas de Gmuna avançaram com os fuzis
atravessados. Não conseguiram afastar as pessoas,
geralmente jovens, vindas de todos os continentes da Terra
e dos diversos planetas habitados. Antes que Gmuna se
desse conta do que estava acontecendo, nos vimos rodeados
por gente excitada falando em altas vozes.
Olhei para o arco assimétrico do portão, sob o qual
começavam as diversas faixas transportadoras da via
elevada. Precisava atingi-lo.
Alguém me entregou um grande quadro, no qual
identifiquei, para meu espanto, minha própria pessoa.
Canetas foram tiradas dos bolsos. Autógrafos foram
solicitados. Contra minha vontade vi-me transformado
numa espécie de ídolo. Eu, que fora tão comum,
transformara-me numa figura conhecida de todos. Não
gostei disso, pois o fato me traria problemas bastante
difíceis.
Gmuna distribuiu cotoveladas, até que dois gigantes
risonhos o seguraram pelos braços. O estojo metálico, que
poucos segundos antes se encontrara preso à minha pele, já
se achava no bolso externo de minha blusa. Seria fácil abrir
o fecho magnético e tatear até encontrar o defletor de ondas
luminosas, um artefato achatado.
Quando Gmuna conseguiu respirar e alguns
representantes da polícia comum acudiram correndo, minha
hora havia chegado.
Bem atrás de mim, ficava a parede de concreto na qual
se abriam os poços dos elevadores. Quase todos os
estudantes que participavam da manifestação de protesto
estavam à minha frente. Teria de passar pelos poucos
mantidos junto à parede sem que estes o percebessem.
Aguardei calmamente até que Gmuna voltasse a soprar
o apito. Apertei a chave do instrumento para baixo.
De uma hora para outra o defletor de ondas luminosas
tornou-me invisível aos olhos comuns. Via tudo, mas para
os outros desaparecera de uma hora para outra.
O campo de deflexão adaptava-se automaticamente aos
contornos de meu corpo.
Dei mais três saltos para trás e passei por alguns
153
estudantes enfurecidos. Foi quando vi o rosto perplexo de
Gmuna.
Há poucos segundos ainda era a própria encarnação da
calma; mas agora me sentia tangido pelos acontecimentos.
Evidentemente desencadeariam o alarma geral. Se ainda me
achasse no espaçoporto, a fuga seria impossível. Mas, na
situação em que me encontrava por certo conseguiria
mergulhar no formigueiro da gigantesca Terrânia.
Contornei o compacto grupo de estudantes e vi algumas
aberturas em meio à massa, que me permitiram avançar
mais um pouco.
Ouvi um trovão atrás de mim. Parei em meio ao salto e
virei-me apressadamente. Não era possível que Gmuna,
tomado de pânico, estivesse atirando contra aquela gente.
Não, não estava atirando. Em compensação, o ar
aquecido pelos raios do sol estava entrecortado por dedos
luminosos das forças atômicas liberadas.
Tombe Gmuna atirava para o alto, provocando a fuga
desabalada dos estudantes assustados. O jovem tenente do
serviço de defesa sabia como agir numa emergência.
Esperava que a confusão me proporcionasse alguns minutos
de vantagem. E agora conseguira fazer-se ouvir com uma
rapidez surpreendente, além do que emitira um sinal de
alarma inconfundível.
Reprimi uma praga, orientei-me ligeiramente e voltei a
correr.
Cheguei ao grande portão que ficava junto à beira da
cobertura antes dos grupos de estudantes. Aqui começavam
as faixas transportadoras que, apoiadas em elegantes
colunas de sustentação, passavam por cima de toda a cidade
de Terrânia.
Perto de algumas moças que gritavam a plenos pulmões
saltei para a fita de baixa velocidade. Dali passei com
alguns saltos rápidos para a via expressa que se deslocava a
cinquenta quilômetros por hora. Em virtude da série de
saltos precipitados, caí pesadamente sobre o piso elástico.
Continuei deitado, observando os arredores.
A fita movimentava-se a uma velocidade um tanto
elevada. Afastava-me do foco dos acontecimentos mais
rapidamente do que Gmuna poderia gostar.
Antes de ser carregado para a curva ampla situada entre
o edifício da academia e um dos edifícios da administração,
vi alguns helicópteros da polícia aérea surgirem
ruidosamente.
A grande caçada estava começando. Se conseguissem
agarrar-me de novo, meu jogo estaria perdido.
Tive o cuidado de não entrar em contato com as raras
pessoas que se encontravam sobre a fita transportadora.
Escolhera este meio de fuga não tanto por sua rapidez, mas
principalmente porque oferecia uma garantia quase absoluta
contra a descoberta. Evidentemente os passageiros, que se
valiam desse meio de transporte rápido, não se moviam
sobre o mesmo. Quem conseguisse colocar-se sobre a fita
ficava parado, para resistir à pressão do vento. Nem sequer
se arriscava a utilizar a comunicação direta.
Logo depois, desliguei meu espírito. Que procurassem à
vontade. Continuaria invisível enquanto o microcarregador
fornecesse energia.
Prestei muita atenção aos grandes painéis luminosos que
avisavam os passageiros com a necessária antecedência
sobre o lugar onde deveriam sair da fita para encontrar esta
ou aquela estação.
Quando vi à grande distância a inscrição “Campo de
Pouso”, modifiquei meu plano original. Face à reação
surpreendentemente rápida de Gmuna, a penetração na área
do grande espaçoporto, além de perigosa, seria inútil. Se
estivesse no lugar de Kosnow, a esta hora já teria emitido
uma proibição geral de decolagem.
Passei pela ramificação. Meu destino era a grande
estação ferroviária. Os grandes comboios de longa distância
raras vezes eram utilizados pelos viajantes. Não teria
dificuldade em encontrar lugar num vagão de carga.
Sentei, cruzei os braços por cima dos joelhos e ri alto e
alegre para o vento.
A correnteza de ar era tépida. Refrescava muito pouco.
A próxima chuva fora anunciada para a noite seguinte.
Tirei o estojo do bolso e retirei o pequeno projetor
mental. Era uma versão reduzida da arma psicológica
altamente eficiente, cujas emanações eliminavam o
pensamento consciente. O aparelho não era perigoso, nem
prejudicava a saúde. Não pretendia matar nem ferir esses
bárbaros selvagens, mas tão bem-sucedidos, que habitavam
o planeta Terra.
Deram-me um tratamento decente. Uma moça de sua
raça chegara mesmo a apaixonar-se por mim. Por que não
confiavam em mim? As coisas poderiam ser muito mais
simples e os riscos menores. Prometi a mim mesmo que
depois de chegar a Árcon nunca mencionaria a Terra, o
Império Solar ou o nome de Perry Rhodan. Esta palavra de
honra foi dada a mim mesmo segundo o sagrado código de
honra da frota espacial dos arcônidas. Não poderia voltar
atrás, mesmo que mais tarde viesse a desejá-lo. Decidi
justamente fazer esse juramento para evitar que fatores
sentimentais posteriores pudessem demover-me do meu
intento. Estava indissoluvelmente ligado ao mesmo.
Livre da carga das autorrecriminações e com o
pensamento voltado para Marlis Gentner, eu preparei-me
para saltar para a fita mais lenta. Precisava dar certo. Não
poderia esbarrar em ninguém.
Bem à minha frente vi, em letras luminosas menores, a
expressão “Estação de Carga”.
Por certo, a área também seria bloqueada, mas não com
o mesmo cuidado do aeroporto intercontinental. Em
Terrânia, dificilmente havia alguém que usasse as
antiquadas vias férreas.
154
Minha fuga no trem de carga foi um verdadeiro
martírio. Abri sem hesitar a porta de correr de uma pesada
locomotiva atômica, que recebera o sinal de partida no
momento em que estava chegando à estação. Pouco me
importava a que lugar da Ásia ou da Europa estaria
destinado o trem. A única coisa que me interessava era sair
de Terrânia quanto antes, a fim de escapar à operação de
busca em grande escala.
Exausto, escondi-me no transformador da gigantesca
locomotiva, mas dez minutos após a partida o trem foi
detido. O serviço de defesa agira com uma rapidez
inacreditável.
Dali em diante, eu comecei com o jogo arriscado. Os
policiais empenhados na busca sabiam que teriam de
procurar uma criatura invisível. O problema seria
praticamente insolúvel pelos meios naturais. Por isso, o
trem ficou parado durante duas horas em pleno deserto, até
que chegasse um comando especial com instrumentos de
localização.
O lugar mais seguro para esconder-me continuava a ser
o transformador, onde a corrente de 30 mil volts gerada
pelos reatores seria convertida para a voltagem com que
trabalhava a máquina.
Uma vez que me encontrava muito próximo aos trilhos
condutores de energia, os campos energéticos por eles
gerados superavam bastante as débeis irradiações de meu
defletor de ondas luminosas. Face a isso, a localização
energética seria impossível.
Acontece que tive de pagar por essa vantagem com um
perigo constante para minha vida. Saltitava entre os
condutores reluzentes e, muito excitado, procurava calcular
a que distância poderia saltar um raio que transformaria
meu corpo numa massa carbonizada.
Foram minutos terríveis. A sala de transformadores só
foi submetida a uma busca ligeira.
Depois que a composição partiu, percebi que avançava
cada vez mais pelo desolado deserto do Gobi Central. Os
vagões de carga estavam vazios. Concluí que o trem se
destinava a um lugar em que os mesmos seriam carregados.
As horas foram passando. Desenvolvendo uma
velocidade de 200 km/h, a composição correu
vertiginosamente pela China Ocidental, até que as
montanhas do maciço do Himalaia surgissem à nossa
frente.
A máquina foi ocupada por dois maquinistas novos, mas
isso não representou qualquer alívio para mim. Preferi não
influenciar os homens com o projetor mental para conseguir
ao menos um gole de água e um pouco de alimento. Se
fossem examinados pelos mutantes de Rhodan na estação
de destino, o bloqueio hipnótico não deixaria de ser
constatado. E então já conheceriam o local aproximado em
que eu poderia ser encontrado.
Tive de suportar as horas que se seguiram num estado
de esgotamento total. Atravessamos várias cadeias
montanhosas, até que chegamos à bacia gigantesca do rio
Bramaputra.
O segundo revezamento representou um risco enorme
para mim, pois a máquina voltou a ser revistada. Ao que
parecia, novas ordens haviam chegado de Terrânia.
Quando finalmente entramos na grande estação de carga
de Calcutá, cambaleei ao tanque de água mais próximo,
sem dar atenção aos riscos ligados a esse procedimento.
Dali em diante, o martírio foi diminuindo. No aeroporto
da metrópole indiana, descobri um transportador aéreo
destinado a Telaviv. Desta vez, vi-me obrigado a
influenciar o controlador com o projetor mental, pois
dependia de sua cabine pressurizada. Embora o aparelho
desenvolvesse apenas seis vezes a velocidade do som,
voava a trinta quilômetros de altitude. Se permanecesse nos
compartimentos de carga, eu morreria sufocado.
Em Telaviv, comecei a notar o enfraquecimento
progressivo da capacidade da bateria. Estava na hora de
desligar o pequeno defletor de ondas luminosas.
Por isso, nem saí do aeroporto de Telaviv. Procurei
outra aeronave. Na cantina do pessoal de superfície, pude
saciar a fome que me martirizava.
Peguei um pequeno avião-transporte pertencente a uma
empresa estatal de lubrificantes e cheguei a Trípoli. Aí,
encontrei o aparelho particular de um funcionário libanês
estacionado no aeroporto.
Quando o mesmo chegou num helicóptero de ligação,
deduzi da palestra que travou com o piloto que se
encontrava numa viagem de serviço, pois era esperado em
Casablanca, onde participaria de uma conferência de
técnicos de irrigação. Tratava-se da construção de uma
grande estação de recalque. O resto não me interessava. A
cidade de Casablanca, situada na costa ocidental da África,
era um local muito favorável para a realização do meu
projeto.
Decolamos ao escurecer. Sentei bem ao lado do libanês,
que ficou submetido totalmente à influência do projetor
mental. O piloto também reagira de acordo com os meus
desejos.
Recorri às abundantes provisões da dispensa de bordo
do veículo de luxo para saciar a fome e a sede e preparei-
me para o próximo salto.
As transmissões de rádio e televisão relativas à minha
fuga se sucediam. Limitei-me a ouvir apenas o que os
locutores oficiais tinham a dizer.
Nunca ouvira uma descrição tão exata de minha pessoa.
A televisão terrana chegou mesmo a transmitir séries
inteiras de fotografias, com base nas quais até mesmo uma
pessoa quase cega conseguiria reconhecer-me.
Recorriam a todos os meios para procurar-me, mas do
noticiário depreendia-se sem a menor sombra de dúvida que
haviam perdido minha pista. Agora me felicitava pela
decisão de saltar sobre o trem de carga que partira naquele
momento.
4
155
Provavelmente os matemáticos do serviço de defesa
calcularam cada segundo. Se não pudessem reconstituir
exatamente meu roteiro de fuga, os dados finais não seriam
corretos. Por isso, a ideia do trem de carga não poderia
ocorrer-lhes.
Os aparelhos de localização supereficientes produziram
um resultado negativo. Ao que tudo indicava, supunham
que ainda me encontrava em Terrânia. Para mim, isso era
mais que conveniente.
— Pousaremos dentro de dez minutos, Sir — disse o
piloto sem que ninguém lhe perguntasse. Dera-lhe a ordem
correspondente por via hipnótica.
Arrumei a cabine, guardei os mantimentos não
consumidos e ordenei aos dois homens que esquecessem
minha presença.
Sob a luz fraca do projetor mental, vi que seus rostos se
tornavam ainda mais apáticos. Acabara de aplicar-lhes um
poderoso bloqueio hipnótico.
O campo de pouso de Casablanca continuava
mergulhado numa escuridão total. Havíamos corrido pela
noite. Passava pouco das duas horas da madrugada,
bastante cedo para que pudesse prosseguir na execução do
meu projeto.
Poucas semanas atrás, quando fizera a primeira
tentativa, escondera o traje pressurizado de profundidade
numa caverna da costa alcantilada. O local ficava perto da
cidade de Tanger, que poderia ser atingida antes do
amanhecer.
Nosso piloto preparou o pouso. Vi-o girar os
propulsores de radiações presos às asas, dirigindo os fluxos
de partículas para baixo.
Tocamos o chão suavemente, como se estivéssemos
num helicóptero, deslizamos alguns metros e paramos. Abri
a porta, saltei e fechei-a atrás de mim, antes que o avião
começasse a deslizar novamente na pista.
Com alguns saltos, desapareci na escuridão. Pouco
depois, descansei atrás de um hangar em que não havia
ninguém.
Bem longe dali o funcionário saiu de um pequeno
aparelho. Vi que um carro o esperava. Estava tudo em
ordem.
Levei uma hora para descobrir um meio de prosseguir
viagem. Uma pessoa do meu tipo não recua diante da
perspectiva de penetrar na cova do leão.
Aproximei-me furtivamente do helicóptero ligeiro da
guarda costeira e esperei até que os dois funcionários
destacados para o patrulhamento aéreo aparecessem.
Quando entraram, já me encontrava no compartimento
de carga. Depois da decolagem, só levei alguns segundos
para submetê-los à influência do projetor mental. O
enrijecimento de seus rostos demonstrava que já não
possuíam vontade própria. Esgueirei-me pela estreita porta
e acomodei-me no banco traseiro.
O vôo levava-nos para o norte. Bem abaixo de nós,
brilhavam as ondas brancas do Atlântico Sul.
— Siga diretamente pela rota de Tanger — ordenei em
voz lacônica. — Se sua estação de controle fizer qualquer
pergunta, diga que notou a presença de alguns veículos
expressos na via expressa litorânea, e que pretende revistá-
los um por um. Entendido?
— Entendido, Sir — disse o piloto.
O tenente, que se encontrava a seu lado, olhava para a
frente, com uma expressão apática no rosto.
— Centro Blanca para patrulha seis, favor responder.
— Patrulha seis, tenente El Habid. Pode falar.
Quando ouvi o som do radiofone, estremeci. Se a
tripulação recebesse ordens definidas, que a obrigassem a
sair da rota por mim desejada, a situação poderia
complicar-se.
— Atenção, patrulha seis — soou a voz forte vinda do
alto-falante. — Voe pela linha da costa e procure um iate
ligeiro que segue a rota de Mechra el Hade. O nome da
embarcação é Almeria, e usa a bandeira espanhola.
Controle a tripulação e procure encontrar a pessoa que está
sendo procurada. Desligo.
— Entendido, centro de Blanca. Seguiremos pela linha
costeira. Desligo.
O oficial da patrulha aérea desligou. Examinei o
reluzente mapa em relevo junto ao painel de instrumentos.
A localidade de Mechra el Hade situava-se entre
Casablanca e Tanger, bem na rota que desejava seguir. Uma
vez que a cidade de Tanger ficava apenas a cerca de 300
quilômetros em linha reta, poderia checar dentro de trinta
minutos.
Transmiti minhas instruções ao piloto. O transformador
do pequeno reator de fusão que ficava atrás de mim
começou a zumbir com mais força. O rotor, que corria em
ponto morto, produziu um matraquear superado pelo
trovejar do propulsor de radiações térmicas.
Voávamos a 600 km/h em direção ao lugar dos meus
sonhos. Não houve nenhum incidente, até que bem à nossa
frente surgissem as luzes da grande cidade de Tanger.
Mandei que o piloto se dirigisse para a praia deserta
situada entre Tanger e o subúrbio de Arcila. Saí do aparelho
ao sul da Via expressa litorânea.
Muito tenso, segui com os olhos a máquina que se
afastava, até vê-la desaparecer na escuridão. Era possível
que viessem, a surgir complicações, se o chefe da patrulha
não conseguisse explicar por que resolvera voar até Tanger.
Até lá teria que manter-me num lugar onde em hipótese
alguma pudesse ser encontrado.
Enquanto pensava assim, meu supercérebro transmitiu
uma mensagem formada por uma única ideia.
“Cansado, seu idiota!”
Era claro que estava cansado, mesmo exausto. Nos
esconderijos em que me encontrara até então, poucas vezes
consegui dormir de verdade. Teria de passar o dia na
caverna bem camuflada e aguardar a noite seguinte para
prosseguir na execução do meu plano. Se o destino
trabalhasse contra mim, os soldados da patrulha, por mim
influenciados, colocariam a defesa solar na minha pista. No
momento, não sabia como faria nesse caso para voar no
156
meu traje especial pelo mar aberto até os Açores. Não se
devia subestimar a raça ativa dos terranos.
Cheguei ao esconderijo pouco antes do amanhecer. A
caverna ficava no paredão entrecortado e batido pelo sol.
Ninguém conseguiria vê-lo de cima.
Verifiquei os equipamentos cuidadosamente guardados,
bebi e comi alguma coisa e deitei-me para dormir.
Meu traje pressurizado de profundidade estava em
perfeita ordem, e também o equipamento de voo. Antes de
mergulhar num sono pesado, entrecortado por sonhos
terríveis, voltei a refletir sobre meu projeto.
Ninguém sabia da existência de minha cúpula blindada,
situada no fundo do mar. As máquinas e instrumentos ali
instalados permitiam uma transformação completa de
minha pessoa. Era um fator que o serviço de defesa não
poderia incluir em seus planos.
Teria que descobrir um astronauta terrano que se
assemelhasse a mim na estatura e na expressão do rosto.
Quando este homem se encontrasse na minha base, seria
relativamente fácil imitar seu corpo. Depois ocuparia seu
lugar de tripulante num veículo espacial destinado a Vênus.
Ao pensar no planeta Vênus, tive a impressão de ver
Marlis Gentner à minha frente. Disse que me esperaria em
Port Vênus.
No grande espaçoporto do segundo planeta do sistema
solar, costumavam ser despachadas as naves intergalácticas.
Ali talvez conseguisse encontrar um meio de viajar para o
sistema de Vega. Quando me encontrasse fora da área
submetida à influência imediata da Terra, encontraria um
meio de prosseguir.
No sistema de Vega estavam estacionadas unidades da
frota espacial solar. Sem dúvida conseguiria apoderar-me
de uma Gazela de velocidade superior à da luz, que me
levaria para casa.
Para casa! A ideia de Árcon, do Grande Árcon, me
causou um calafrio. O que poderia fazer se meu povo
venerando realmente estivesse degenerado?
“Chamar Rhodan!”, disse meu supercérebro. “Voltar à
Terra.”
Bastante contrariado, virei-me para o outro lado e fechei
os olhos com força. O setor lógico de meu ser poderia
adivinhar à vontade. Se pretendesse voltar à Terra, seria
absurdo prosseguir na fuga.
* * *
A noite estava escura e não havia uma única estrela no
céu. Regulei o aparelho de absorção de gravidade para 0,1
por cento do valor terrano.
O campo energético pressurizado de alta potência de
meu traje de profundidade iluminou-se assim que entrou em
contato com as águas escuras e encapeladas do Atlântico.
Meu voo decorrera sem o menor incidente. Mantive-me
bem perto da superfície da água, senão seria praticamente
impossível localizar-me por meio de aparelho.
No momento em que mergulhei no mar, em algum
ponto ao sul da ilha de São Miguel, meu goniômetro
registrou o impacto de impulsos de radar transmitidos em
onda curta, que provavelmente estariam sendo emitidos por
uma aeronave que se deslocava em grande altitude. Quando
desapareci nas águas, o chiado agudo cessou.
Deixei-me baixar com uma força de 3 G, até que o
fundo entrecortado do mar surgisse embaixo de mim.
Aqui era tudo silêncio e solidão. Os únicos ruídos que
perturbavam o ambiente solene eram o zumbido do meu
transformador e os estalidos agudos do projetor. A pressão
do vibrador de ondas me fez deslizar sobre as grandes
reentrâncias do fosso dos Açores, que começava neste
ponto. Fiz a antena submarina emitir o primeiro sinal de
identificação.
Até então, a tripulação de robôs de minha cúpula
mostrara-se infalível. E foi também o que aconteceu desta
vez. Depois de emitido o terceiro sinal, ouvi os sons
inconfundíveis dos raios vetores, que indicavam a direção
exata. Dentro de poucos minutos, descobri o fosso profundo
em que estava escondida minha edificação de aço. Desci,
parei numa saliência da encosta e contemplei a montanha
de lama que ocultava a forma semiesférica.
A luz infravermelha do meu holofote de capacete voltou
a atrair os peixes de formas bizarras que habitavam as
águas profundas, e que desde longos tempos haviam sido
meus únicos amigos.
Esperei até que o raio energético deixasse livre a
pequena comporta. A lama levantada pela turbulência
assentou devagar. Quando consegui enxergar um pouco
melhor, percorri as poucas centenas de metros que me
separavam da escotilha aberta.
Antes de entrar na câmara da comporta, voltei a olhar
em torno. Encontrava-me a 2.852 metros de profundidade.
Aqui só poderia ser descoberto por um submarino, mas
estes não costumavam arriscar-se a entrar nas estreitas
fendas do fundo do mar.
Há poucos meses alguém me havia confundido com um
peixe. Hoje o fato parece engraçado, mas na época foi uma
experiência terrível.
Entrei na comporta, fechei a pesada escotilha blindada
de aço arcônida e aguardei a operação de esvaziamento.
Acima de minha cabeça, as bombas potentes começaram a
trabalhar ruidosamente. Logo depois, a água altamente
pressurizada foi recalcada para fora da comporta.
O uivo produzido pelo ar que penetrava no recinto me
fez fechar os olhos, muito satisfeito. Só agora me
encontrava em segurança. Só agora poderia realmente
iniciar a fuga.
O campo energético pressurizado, que me protegera
contra a pressão da água, foi desativado automaticamente.
Uma luz forte penetrou pela escotilha interna que se abria.
Como sempre, o rosto de bioplástico de Rico exibia um
sorriso gentil. Numa atitude elegante e ágil, meu criado
robotizado penetrou na comporta.
— Seja bem-vindo, senhor — disse a voz metálica, à
qual não conseguíramos conferir uma modulação humana.
O fato de subitamente ser chamado de senhor deixou-
157
me emocionado. Tinha a impressão de que de uma hora
para outra penetrara num mundo diferente. E era isso
mesmo, conforme meu sexto sentido lógico avisou
imediatamente.
Nessa cúpula dormira muitos anos. Era tão velha quanto
boa parte da história da Humanidade.
Estava prestes a revelar meu grande segredo perante
minha própria mente depois que me mantivera calado por
semanas a fio, suportando o martírio íntimo dos inquéritos
psicológicos.
Rico ajudou-me a tirar o desajeitado traje protetor.
— Cansado, senhor? — perguntou. A voz devia soar
preocupada. Mas, mesmo tratando-se de uma máquina de
alta precisão, o robô não era capaz de dar expressão real a
esse tipo de emoção.
— Não — respondi em tom áspero.
Rico sorriu. Ninguém conseguiria ofendê-lo.
— Preparei um banho, senhor.
— Espere um pouco.
Com o corpo ereto desci pelo corredor estreito, tomei o
elevador antigravitacional e subi à cúpula abobadada. Parei
diante da porta de aço pintada de vermelho.
Rico não disse mais nada. Calculara que estava
dominado por emoções que um robô não conseguiria
compreender.
Atrás da porta vermelha ficava meu museu particular.
Seu valor era muito superior ao de um lugar destinado à
guarda de objetos antigos. Até então só subira para lá
quando um estado de comoção psíquica me obrigasse a
tanto.
Com as mãos, acionei a fechadura de impulsos. A
escotilha abriu-se silenciosamente. A luz indireta veio do
teto.
A passos hesitantes penetrei na grande sala, separada
por paredes internas.
Ali estavam depositadas as testemunhas mudas do meu
passado, que tanto interessariam a Allan D. Mercant e que
simplesmente resolvi omitir.
Parei diante da grande espada afiada de ambos os lados,
que pertencera a Carlos, o Corajoso, da Borgonha. Num
gesto pensativo, pesei-a com a mão. Certa noite, quando o
duque se encontrava na tenda de campanha, martirizado
pelas dores pedira-me que lhe desse o golpe de misericórdia
com essa arma.
Minha intenção era operá-lo, embora suas úlceras de
estômago já se tivessem transformado num câncer. No dia
seguinte, Carlos, o Corajoso, tombou em combate. Vi os
confederados embriagados queimarem a tenda majestosa.
Prossegui, mergulhado em recordações. Não havia
ninguém neste planeta que estivesse tão bem informado
sobre os inúmeros segredos do passado. E ninguém
conhecia melhor as falsificações da história. Não havia
quem soubesse dizer tão bem quanto eu por que o príncipe
Eugênio conseguira infligir uma derrota tão fulminante aos
turcos.
O chapéu de Wallenstein com o penacho surgiu à minha
frente. Bem ao lado do mesmo estava o trabuco que
Colombo disparara.
Mais adiante encontrei a armadura de Ricardo, Coração
de Leão. Certa vez, dissera que eu era seu vassalo mais fiel,
e me prometera uma herdade na Inglaterra.
Sem querer, sorri ao descobrir a pequena luva de ferro.
Joana d’Arc havia usado a mesma quando juntos tomamos
de assalto à fortaleza de Orleans.
Fui mergulhando no passado, à medida que andava pela
sala repleta de objetos da história. Sempre gostara de topar
repentinamente com uma testemunha de tempos idos. Não
apreciava a ordem rigorosa. Preferia ser surpreendido.
Ali estava o canhão de tiro rápido, primitivo mas
eficiente, que construíra juntamente com Leonardo da
Vinci. Considerava-o um homem muito importante, motivo
por que lhe ensinei uma porção de coisas.
Bem ao lado do mesmo, estava o Colt 44 da marinha,
cuja coronha usara para abater o assassino de Abraham
Lincoln, infelizmente com um segundo de atraso.
Enquanto caminhava entre os objetos, parecia estar
mergulhado num sonho.
De repente, Rico arrastou-me de volta para a realidade
áspera.
— O cérebro o aguarda senhor.
Caminhando na ponta dos pés, abandonei a sala do
passado. Lá fora, junto da porta vermelha, dei testemunho
de mim mesmo.
Não; nunca fiz nada que pudesse prejudicar a
Humanidade. Sempre me empenhei em estimular seu
desenvolvimento científico e tecnológico, que um dia a
levaria a dominar a navegação espacial.
Naquele tempo, já tinha o desejo de voltar para casa.
Mas, quando um homem chamado Perry Rhodan deu início
à navegação espacial, fui idiota a ponto de fugir
apressadamente para minha fortaleza submarina, a fim de
escapar a uma guerra nuclear que não aconteceu. Dessa
forma, dormi durante a fase mais importante da evolução
dos pequenos bárbaros.
Dali a dez minutos eu me vi diante da tela diagramada
do computador robotizado da cúpula, que aguardava minha
programação.
— Preciso de uma construção semiorgânica encerrada
num corpo, que se pareça com um esqueleto humano. Num
exame de raios X, deverá ter o aspecto de um verdadeiro
homem. É necessário embutir refletores em forma de
coração e pulmão, a fim de transmitir a imagem perfeita do
organismo humano. Será possível realizar uma construção
desse tipo?
O grande autômato começou a zumbir. Cinco gerações
de técnicos haviam trabalhado em sua construção.
— Solicito dados mais precisos, senhor — respondeu o
computador.
Com esta resposta fiquei sabendo que minha própria
excursão à superfície já não correria o risco de transformar-
se num fracasso em virtude da falta de uma simples
fotografia de raios X.
158
Nevada Space Port, era este o nome do maior
espaçoporto dos dois continentes americanos. Dali partiam
as espaçonaves destinadas às luas e aos planetas do sistema
solar.
As enormes naves de longo curso, cujos
hiperpropulsores lhes permitiam vencer os anos-luz em
poucos segundos, decolavam em noventa e nove por cento
dos casos de um espaçoporto ainda maior: Terrânia.
De qualquer maneira, os Nevada Fields, como também
costumavam ser designados, tinham sua história.
Foi dali que Perry Rhodan decolou em 19 de junho de
1.971, para realizar a primeira viagem tripulada à Lua, onde
viria a descobrir a tripulação de uma nave exploradora dos
arcônidas, que realizara um pouso de emergência.
Em atitude pensativa, contemplei o foguete original com
o qual Rhodan arriscara, há sessenta e nove anos, o grande
salto. Pelo que diziam antigamente a Stardust ficara
depositada no deserto de Gobi, até que Rhodan mandou
levá-la ao lugar onde seus primitivos propulsores atômicos
rugiram pela primeira vez.
Não era o único que se encontrava no grande museu de
astronáutica de Nevada Fields: cerca de duzentos
emigrantes deixariam a Terra com destino a Vênus.
Olhei discretamente em torno. Entrara em meio a um
verdadeiro enxame de pessoas. Depois das investigações
cautelosas por mim realizadas, resolvi desistir da ideia
primitiva de “imitar” um piloto de nave espacial.
Seria muito difícil enganar os numerosos amigos e
conhecidos de um homem desse tipo. Lembrei-me dos
colonos que diariamente partiam em direção ao espaço.
Aproximei-me de um indivíduo louro e robusto que,
quando muito, contaria trinta e oito anos de idade. Tinha a
mesma compleição que eu. Uma investigação mais detida
revelou que era o sexto filho de um lavrador da Alemanha
do Norte. Seu nome era Hinrich Volkmar. Viera sozinho,
depois de formular uma série de pedidos de licença para
emigrar.
Hinrich era meu objetivo. Naquele momento,
encontrava-se em um profundo sono biológico nas
profundezas do mar, bem velado pelos meus robôs.
Ordenara a Rico que dali a um ano, o mais tardar, o
acordasse e o largasse na Espanha, depois de entregar-lhe
pedras preciosas no valor de cem mil solares.
Além disso, elaborei um relatório escrito destinado a
Perry Rhodan e ao Serviço Solar de Segurança, que poderia
ser apresentado por Hinrich, depois que o mesmo fosse
acordado.
Ninguém poderia acusar o jovem, uma vez que agira
sob a influência de meu projetor mental. Fizera tudo para
que não tivesse maiores problemas, mesmo que eu morresse
de uma hora para outra.
Depois do interrogatório hipnótico realizado no interior
de minha cúpula, armazenei seus dados individuais em
minha memória fotográfica. Além disso, tinha em mãos
seus documentos, inclusive a licença de emigração, que já
me haviam permitido penetrar na área reservada.
Não tivera de mascarar-me muito. Meus robôs
especializados apenas realizaram alguns transplantes de
bioplástico e removeram a coloração avermelhada dos meus
olhos.
De resto nada havia sido mudado em meu corpo. Meu
inglês tinha a tonalidade de um dialeto alemão, e meu
comportamento era descontraído, franco e ingênuo, motivo
por que até então ninguém desconfiara de mim.
A bagagem de Hinrich consistia numa mochila elástica,
que continha exatamente cinquenta quilos de objetos de uso
pessoal. Era o máximo que os emigrantes poderiam levar,
para não sobrecarregar as naves. Pelo que dizia, no segundo
planeta solar estava tudo preparado para receber os colonos
de Vênus.
Se minha ideia a respeito de Rhodan fosse correta, Perry
realmente deveria ter tomado todas as providências. No
contrato de Hinrich, lia-se que o Império Solar lhe
forneceria gratuitamente uma área de cinquenta hectares e
as máquinas necessárias ao desmatamento, ao preparo do
solo e ao plantio.
Rhodan elaborara um programa social de alto alcance.
A instalação de uma fazenda em Vênus, realizada por um
emigrante terrano, custava cerca de 150 mil solares ao
governo.
Há três dias transformara-se num homem jovem de
cabelos louros, lábios risonhos e uma grande saudade no
coração. Queria sair para o espaço, dar as costas à mãe-terra
e dedicar-se ao trabalho, a fim de que um belo dia pudesse
escrever aos seus: consegui; estou procurando uma
companheira para minha vida. Quanto dinheiro devo
mandar?
Era assim que pensava o verdadeiro Hinrich Volkmar, e
também era assim que pensavam os outros emigrantes
vindos de todos os quadrantes. A nave transportadora
deveria decolar ainda hoje.
Estávamos no dia 13 de julho de 2.040. Pude realizar
um trabalho rápido, mas meticuloso. Menos de trinta dias se
haviam passado a partir de minha fuga de Terrânia. A ação
de busca ainda prosseguia.
Acontece que, ao que tudo indicava, haviam
subestimado os meios de que dispunha. Naquele momento,
felicitava-me a mim mesmo pelo silêncio obstinado
mantido até então, e que impedira a descoberta da cúpula
submarina.
Na opinião do serviço de defesa, devia ser totalmente
impossível que o fugitivo escapasse à rede armada para sua
captura. E seria isso mesmo, se não possuísse os aparelhos
eficientíssimos, cuja existência era ignorada por meus
perseguidores.
No momento em que cheguei a Nevada Fields,
disfarçado em Hinrich, foi realizado um exame de raios X.
5
159
Qualquer pessoa só poderia penetrar na área reservada
depois de passar pelas objetivas.
Evidentemente recorriam a essa medida para neutralizar
qualquer ação por mim concebida. O esqueleto de
bioplástico, destinado a enganar o médico sobre a
verdadeira constituição de minha ossatura, foi reconhecido
como genuíno.
Dessa forma, a partir do dia 11 de julho de 2.040
portava o distintivo luminoso de cerca de dez centímetros,
no qual estavam gravados em relevo os dados relativos à
minha pessoa. Nos fios magnéticos embutidos, estava
armazenada uma série de dados adicionais bem codificados
sob a forma de impulsos, relativos à minha pessoa e às
provas por mim realizadas. Estava tudo na mais perfeita
ordem.
Recebi o número 211. A nave espacial que me levaria a
Vênus juntamente com outros colonos era a Glória. Estava
guardada num edifício alongado, que os funcionários do
serviço de emigração, num acesso de humor feroz, haviam
batizado com o nome de casa dos cheiros. O odor
penetrante dos desinfetantes, usados numa profusão
exagerada, impregnava minhas vestes, feitas de fio sintético
resistente e confortável, mas pouco vistoso.
Os colonos destinados a Vênus eram muito bem
equipados, porém não se fazia questão de que fossem
elegantes. O trabalho frio do setor de colonização não tinha
lugar para ganhos extras.
Já conhecia a nave que me transportaria. Era um
pequeno veículo esférico, de apenas cinquenta metros de
diâmetro, pertencente à série planetária. Não possuía armas
e não estava equipada com propulsores que lhe permitissem
desenvolver velocidade superior à da luz. Destinava-se
exclusivamente ao transporte entre os mundos do sistema
solar.
O voo até Vênus duraria oito horas. Era um tempo
bastante longo, ainda mais que as poucas cabines destinadas
aos emigrantes só continham filas de poltronas muito
apertadas. As camas ou outros tipos de instalações
confortáveis foram dispensados. Na opinião das
autoridades, qualquer pessoa poderia permanecer sentada
durante oito horas.
A Glória, uma nave de mais de trinta anos, viajava
constantemente entre Vênus e Terra e vice-versa. Todo
segundo dia de cada mês, decolava com uma carga humana
destinada a Vênus, além do quê, transportava boa
quantidade de mercadorias de todas as espécies.
Os tripulantes dessas naves não gozavam de prestígio
muito elevado. Os astronautas altamente qualificados dos
veículos espaciais, que desenvolviam velocidade superior à
da luz, olhavam-nos de cima para baixo.
Os vaivens planetários ocupavam aproximadamente o
mesmo lugar dos antigos navios fluviais, que nunca se
comparariam a uma embarcação de alto-mar.
Diverti-me a valer com a enfatização da diferença.
Neste ponto, os terranos não eram diferentes dos indivíduos
de meu povo. E, há menos de noventa e nove anos, esses
bárbaros encantadores se rejubilaram de admiração quando
um Perry Rhodan conseguiu realizar o salto ridículo até a
lua terrana. Não havia como negar que evoluíram muito
depressa. A essa altura, os homens que pilotavam as
hipernaves de longo curso sentiam-se indignados quando se
encontravam com uma dessas lesmas planetárias.
Esqueciam-se completamente de que essas lesmas sempre
percorriam o espaço a uma velocidade apenas dez por cento
inferior à da luz.
Ao meio-dia em ponto, fui ao grande refeitório coletivo,
repleto de emigrantes que riam e discutiam animadamente.
Procurei um canto afastado, devorei um enorme bife com
vagens e batatas fritas e observei com cuidado os arredores.
Eram todos iguais, esses jovens para quem Vênus, o
planeta das selvas, continuava a ser um paraíso, apesar de
todas as informações em contrário que deveriam ter
recebido.
Vi famílias inteiras dispostas a arriscar o grande salto.
Sonhavam com a aventura e a riqueza, com a
independência e com grandes festas na borda da mata.
Ainda não conheciam as picadas dos mosquitos
venusianos nem os sáurios vorazes que, com umas poucas
pisadas, destruíam suas culturas. E não faziam uma idéia
adequada dos pequenos répteis venenosos e da temperatura
de estufa reinante na superfície do planeta.
Pelas 12:30 h os alto-falantes soaram.
— Colonos destinados a Vênus, voo 118. Apresentem-
se no portão sul. Levem a bagagem e mantenham os
documentos em suas mãos. Apressem-se.
Era uma chamada pouco convencional. Cerca de
duzentas e cinquenta pessoas levantaram-se das cadeiras
duras de plástico. Alguns correram diretamente para o
portão norte, onde os funcionários apáticos e os pilotos
sorridentes lhes apontavam o caminho correto.
Foi um berreiro e uma correria; até se tinha a impressão
de que o mundo estava para acabar. Resolvi entrar na
confusão. Dali a alguns segundos, também estava gritando.
Devo portar-me como um emigrante, era este o meu lema.
Um comando da policia recebeu-nos sob o sol
escaldante do verão.
O sol provocou-me uma sensação muito desagradável;
nos homens do serviço de segurança não foi tanto. Atrás
deles, encontravam-se os caminhões com as grandes
plataformas de carga. Ao que tudo indicava, seríamos
submetidos a outro controle antes que nos levassem à nave
transportadora.
As mulheres e crianças tiveram permissão para subir
imediatamente aos carros. Apenas os homens enfileiraram-
se para esperar. Encontrava-me no meio da fila formada por
emigrantes nervosos. Os homens gritavam de impaciência.
Tudo iria recomeçar.
Meu equipamento especial, um volume muito reduzido,
fora escondido bem nos fundos da mochila padronizada.
Ainda que me obrigassem a abri-la, teriam que procurar
muito para encontrar alguma coisa. Até mesmo o precioso
ativador celular fora retirado juntamente com a corrente.
160
Não poderia demorar muito em pendurá-lo ao pescoço, pois
do contrário haveria problemas.
— O que houve? — perguntou um homem baixo e
moreno. Virei-me e dei de ombros.
Era um mexicano, que queria fugir da Terra com sua
família de cinco pessoas. Seu nome era Miguel Hosta. Não
era a primeira vez que nos encontrávamos. Talvez fosse
recomendável entreter uma conversa com esse terrano cheio
de vida.
— Não faço a menor ideia — disse com uma risada. —
Apenas sei que não deixarei que me mandem de volta. Pelo
que dizem, há pouco tempo retiraram alguém da nave,
pouco antes da decolagem. O sujeito tinha um pouco de
febre.
— Santo Deus! — gemeu o moreno num assomo de
desespero. — Acho que também estou com febre. Será que
vão medir?
Os homens que se encontravam à minha frente e atrás
de mim soltaram uma gargalhada. As piadas e observações
dirigidas ao policial que realizava o exame tornavam-se
mordazes, à medida que nos aproximávamos da mesa
improvisada.
O que mais me incomodava era o aparelho de raios X
sobre rodas que, segundo tudo indicava, realizava um
exame “automático” de cada emigrante. Ao lado da
respectiva tela, havia um médico do serviço de defesa.
Assim que fazia um movimento relaxado com a mão, o
colono que acabara de ser submetido ao controle poderia
dirigir-se ao carro. Evidentemente o pretenso exame
médico era um absurdo. Não havia mais nenhuma lista a
elaborar.
Estavam procurando um almirante arcônida que
evidentemente não poderia ser dotado de um esqueleto
humano.
Meus olhos começaram a ficar úmidos, o que provava
meu nervosismo. Se o médico que se encontrava junto ao
aparelho prestasse muita atenção, talvez pudesse notar a
diferença mínima no reflexo dos órgãos embutidos em meu
corpo.
“Conserve a calma!”, disse meu sexto sentido. Naquele
momento, cheguei a odiar o setor de lógica do meu cérebro.
O homem à minha frente era um terrano gigantesco do
Estado Federal da África. Colocou-se diante do aparelho
com as pernas bem abertas, abriu a blusa, na altura do peito
e pôs o dedo sobre o coração.
— Aqui, soldados! — berrou a plenos pulmões.
O médico estremeceu, enquanto um sorriso largo cobriu
o rosto do tenente sentado atrás da mesa. E eu perguntei-me
se aquele rapaz de pele escura já teria ouvido falar nos onze
oficiais de Schill fuzilados pelos soldados de Napoleão.
O médico fez um gesto para que se calasse. O gigante,
que ria às gargalhadas, correu em direção ao carro. Depois
chegou minha vez.
— O atestado de vacina, por favor — disse o
funcionário com a voz cansada. Quando levantou os olhos,
acordou de um instante para o outro. Pôs a mão na arma.
Lançou-me um olhar penetrante. Mas finalmente uma
expressão de insegurança surgiu em seus olhos; virou-se
para seus soldados.
— Nome? — perguntou em tom áspero.
Lancei-lhe um olhar ingênuo.
— Hinrich Volkmar, senhor tenente — respondi em voz
trovejante. — Sou filho de Pieter Volkmar, inspetor de
diques.
O jovem oficial voltou a sentar. Sem dizer uma palavra
apontou com o polegar em direção ao aparelho de raios X.
Sabia perfeitamente que minha radiografia já fora tirada.
— É uma semelhança surpreendente, Sir — disse um
dos soldados em tom apressado.
Coloquei-me diante da tela e tirei a mochila. Desta vez
o médico examinou com maior atenção a imagem projetada
pelo aparelho.
— Aí estão as costelas, Tommey; não existe a menor
dúvida — disse com a garganta ressequida. — Vamos
acabar logo com isto, senão terei uma insolação.
Ainda bem que o homem sofria tanto com o calor. Não
havia examinado a radioscopia com a atenção devida.
O tenente lançou mais um olhar perscrutador para
minha pessoa, mas, por fim, soltou um suspiro e colocou o
carimbo no formulário.
— Aqui. Leve isto e guarde bem. O senhor se parece
com uma pessoa com a qual gostaríamos de ter uma
conversa. Vamos logo; o próximo.
Esperei pelo pequeno mexicano, que se sentiu muito
satisfeito por passar pelo exame.
O terrano de pele negra puxou-nos para cima da
plataforma do veículo. Dirigindo-se a mim, riu e exclamou:
— Ei, o que queriam de você, meu caro? Venha para
junto do meu coração.
Ao que parecia, o gigante parecia preocupar-se
constantemente com o coração. Apertou-me nos braços e
empurrou-me para um lugar vazio. Miguel Hosta espremeu-
se para caber a meu lado.
“São uns sujeitos formidáveis!”, disse meu sexto
sentido. Desta vez, concordei com o setor lógico de minha
mente. Com gente desse tipo, Rhodan poderia
perfeitamente construir um império estelar.
— Ainda tenho dois tabletes de chocolate no bolso —
disse. — Alguém quer um pedaço? Perdi o apetite. Estão
procurando uma pessoa que se parece comigo.
Miguel recusou com um gesto de horror. O homem de
pele escura, cujo nome era Embros Tcheda, aceitou. Sorriu
e disse:
— Quer saber de uma coisa, meu caro? Isso não devia
preocupá-lo. Quando estivermos em Vênus, começaremos
vida nova. Você entende de economia agrícola? O que
pretende plantar?
— Ainda não resolvi. Entendo de EA. Você não?
Embros fez um gesto negativo e uma careta.
— Muito bem; nesse caso devíamos tornar-nos vizinhos
— disse. — Não consigo lidar com as bactérias do solo.
Você entende do assunto?
161
— Em bactérias, sou uma cobra. Farei as análises e você
dirá o que devemos plantar.
Tive de esforçar-me para resistir ao seu vigoroso aperto
de mão. Naquele momento, indaguei a mim mesmo por que
estava arriscando a vida para chegar em casa.
Nas veias dessa raça humana jovem corria sangue
arcônida. Eu mesmo autorizara vários casamentos entre
meus subordinados e mulheres terranas. Afinal, onde era
meu lar?
Port Vênus era uma cidade supermoderna, cuja
arquitetura adaptava-se às exigências desse mundo
escaldante fustigado pelas tormentas.
A rotação de Vênus em tomo de seu eixo polar era
bastante lenta. A extensa zona de penumbra, que ficava no
limite entre a face diurna e a noturna, sofria constantemente
os efeitos de terríveis furacões. Nos momentos em que as
povoações humanas se encontravam na zona de turbulência,
as ruas transformavam-se em tubos de compressão, nos
quais as fúrias desencadeadas tocavam um concerto
infernal.
Não era nada simples morar nesse planeta, quanto mais
estabelecer-se comercialmente. Quando a camada de
nuvens do segundo mundo solar se abria para despejar a
chuva, a água descia abruptamente, como se estivesse
sendo despejada por baldes. Quem não encontrasse
imediatamente uma elevação poderia ser arrastado nas
torrentes.
Port Vênus ficava num extenso platô de rocha, situado
na costa elevada do oceano equatorial, Era nessa área que
talvez se localizasse o centro de computação que meu povo
construíra há muito tempo no planeta Vênus.
Rhodan apossara-se da gigantesca máquina e
controlava-lhe o funcionamento, embora de direito isso não
lhe coubesse.
Naquele momento, estaria disposto a conceder-lhe
autorização a posteriori. Afinal, fizera alguma coisa naquele
mundo selvático.
Cerca de oitocentos metros abaixo do platô começava a
mata escaldante e infestada de febres. Não era de
surpreender que o Instituto de Doenças Cósmicas
Infecciosas, ocupasse o maior e o mais importante dos
edifícios da cidade. Aqui se travava uma luta encarniçada
contra a natureza poderosa e cruel.
Quase todas as semanas descobriam-se doenças novas,
ainda desconhecidas, e geralmente contagiosas. Os colonos
vindos comigo haviam recebido mais de trinta vacinas antes
de partirem da Terra.
Minha imunidade era quase completa, pois me
abastecera com os soros arcônidas.
Fazia cinco dias que a Glória penetrara na densa
atmosfera venusiana, com os jatos chamejantes. O
espaçoporto de Port Vênus ficava a apenas cinqüenta
metros acima do nível do mar. Esse dado nos revelou desde
logo as verdadeiras condições reinantes em Vênus.
Embros Tcheda, que fez questão de ser o primeiro a sair
da nave, por pouco não morre afogado nas torrentes de água
despejadas do céu. Dentro de poucos segundos, o extenso
espaçoporto assumiu o aspecto de um rio caudaloso.
Com grande dificuldade conseguimos agarrar Embros.
As águas turbilhonantes quase o arrastaram para perto dos
jatos incandescentes de uma nave de longo curso que estava
de partida.
Foi esta a primeira má impressão. Dali a dez minutos, o
céu assumiu o aspecto “límpido” que era uma característica
de Vênus. Raras vezes a camada de nuvens compactas
permitia que se visse o sol.
Os vapores quentes, que subiam das placas de plástico
blindado do revestimento do espaçoporto, deixavam os
homens deprimidos. Até parecia que nos encontrávamos
numa grande lavanderia.
Quando saímos da comporta constatamos que a
temperatura era de exatamente 53,4 graus centígrados.
Embora as pessoas que se encontravam ali fossem
superselecionadas e tivessem passado por centenas de
testes, duas mulheres ficaram inconscientes. O calor era
suportável, mas não o elevado teor de umidade do ar. Era
ele que tornava o clima mortífero.
Na linha do horizonte, via-se a mata virgem. Já a
conhecia de tempos idos, por isso não me envolvi nas
mesmas ilusões dos colonos.
Dali a duas horas, uma frota de potentes helicópteros
levou-nos a Port Vênus. A cidade ficava 850 metros acima
do nível do mar. Acontece que o extenso platô de rocha
onde fora construída não oferecia espaço para o porto
espacial.
O exame dos nossos documentos foi uma cerimônia
enervante. Altos funcionários e oficiais da selva disseram
palavras que ora pareciam patéticas, ora duras. Falava-se
constantemente em doenças, feras, répteis venenosos,
preparo do solo e condições climáticas. Meus amigos
6
162
vindos pela velha Glória nem sabiam o que os esperava.
Hoje recebi licença pela primeira vez. Logo após a
minha chegada escrevera algumas linhas, confiando-as ao
correio de Vênus que, segundo tudo indicava, funcionava
muito bem.
Por uma questão de cautela, expedi a carta para a posta-
restante. Se Marlis Gentner já tivesse chegado,
provavelmente iria todos os dias à agência dos correios.
Fiquei numa espera ansiosa até poucas horas atrás,
quando a notícia me foi entregue em mãos.
Meu velho amigo Gunter Viesspahn, que chegara a
Vênus antes de mim, convidou-me para dar um giro em
Port Vênus.
No momento em que a carta me foi entregue, um
sargento do serviço de segurança pediu esclarecimento
sobre a origem da ligação.
Mostrei-lhe a carta. Minha explicação, que falava num
amigo de escola, revelara-se bem plausível. Era bem
possível que, por aqui, houvesse um conhecido que
imigrara antes de mim.
Encontrava-me no monotrilho que ligava a sede da
administração do espaçoporto com o centro da cidade.
Mesmo com o aparelho de ar condicionado funcionando
perfeitamente, comecei a transpirar. O esqueleto de
bioplástico colado à pele atrapalhava a transpiração. Já
estava na hora de livrar-me desse produto de minha oficina
robotizada, pois não voltaria a ser submetido a um exame
de raios X.
Meu sexto sentido prevenia-me sempre quanto ao
sargento excessivamente curioso do serviço de segurança.
Por que teria demonstrado tamanho interesse por uma carta
inofensiva?
Teria de descobrir quanto antes se a operação de busca
que visava minha pessoa também se estendia a Vênus. Era
bem possível que, após a decolagem da Glória, o oficial
incumbido do controle em Nevada Space Port ainda
andasse desconfiado. Talvez tivesse expedido um aviso
pelo rádio.
Interrompi minhas reflexões angustiantes. Se Marlis
houvesse realizado um trabalho bem feito, não teria motivo
para preocupações. Poderia ir para a selva, como colono, a
fim de aguardar uma oportunidade favorável para a fuga.
Talvez conseguisse encontrar em Vênus uma Gazela capaz
de desenvolver velocidade superior à da luz, e esta me
levaria ao sistema de Árcon. O raio de ação dos modelos
mais recentes desse tipo de nave era limitado
exclusivamente pela necessidade de revisão periódica dos
propulsores.
Saí do metrô, subindo pela escada rolante. Poucas
vezes, vira reunidos no mesmo lugar terranos com vestes
tão diferentes.
A Praça Tomisenkow, cujo nome homenageava um
comandante russo de divisão que há muitos anos procurara
conquistar o planeta para sua pátria, era o centro de Port
Vênus.
Aqui se situavam os edifícios amplos e resistentes que
abrigavam o governo colonial venusiano. A rua Nova
Iorque praticamente dividia a cidade. Nela ficavam os
escritórios e as lojas.
Neste mundo quente e úmido, podia-se comprar
qualquer coisa. Por muito tempo acreditara-se que sua
atmosfera não continha oxigênio. Todavia, conseguia-se
respirar muito bem no segundo planeta solar, que parecia
esconder-se da estrela-mãe sob uma espessa camada de
nuvens.
Junto à plataforma houve uma confusão. Dois sujeitos
barbudos e pálidos, que há anos não viam um raio de sol,
brigavam por uma questão fútil.
A intervenção dos policiais, que acorreram
imediatamente, foi bastante rude. Ameaçaram com os fuzis
de choques elétricos e fizeram dois disparos de advertência
para o alto. Os dois elementos logo se acalmaram.
Os habitantes do planeta pareciam ser rudes; era uma
população pioneira, que sabia lidar com as armas. Vi
muitos colonos caminharem pelas ruas com os radiadores
energéticos a tiracolo. Ao lembrar-me do ambiente hostil
que ameaçava a cidade, compreendi por que os visitantes
andavam tão bem armados.
Peguei um táxi de modelo antigo movido a turbina de
gás, que me tirou da confusão, levando-me para uma área
mais tranquila. Procurei gravar as ruas que atravessamos
antes de pararmos diante do edifício imponente do Museu
Terrano.
Ao descer, apalpei os objetos que compunham meu
equipamento especial. Carregava tudo aquilo que antes
escondera com tamanho cuidado. Se fosse obrigado a fugir,
não poderia voltar aos alojamentos de imigrantes.
Seria perigoso carregar as armas. Ainda não havia
recebido o respectivo porte.
O ativador celular, imprescindível à minha vida, estava
pendurado ao peito. Por dentro do traje pouco elegante
usado pelos colonos, levava o potente defletor de raios
luminosos, que era do tipo cujo funcionamento dependia do
microcarregador.
Meu projetor mental tinha um alcance de dois
quilômetros. Guardei a arma psicológica em forma de
bastão no bolso direito da calça.
Paguei e saí do carro. Caminhei lentamente em direção
às pesadas portas blindadas de plástico de aço do museu.
Era ali que meu velho amigo iria esperar-me.
Inúmeras pessoas saíam e entravam incessantemente.
Notei muitos colonos cujas vestes grosseiras de fibra
sintética os distinguiam dos trajes bem mais elegantes dos
funcionários da instituição.
Dois policiais em posição descontraída guardavam a
larga porta de entrada. Ao passar por eles, ouvi uma
risadinha.
— Ei, calouro, já está com saudades da Terra?
Virei-me e fitei os homens que riam de mim. Usavam
pesados fuzis de choque e grandes capacetes de rádio. Ao
que parecia, mantinham contato ininterrupto com a central.
Calouro era o nome pelo qual me haviam chamado. Era
163
o apelido dos colonos recém-chegados.
— Aqui sempre faz tanto calor? — perguntei com a voz
queixosa.
Sua risada tornou-se mais forte. Calei-me e prossegui
sem dizer mais uma palavra. Subitamente vi um homem de
cabelo preto e barba ondulante. Usava roupa de colono e
um radiador energético de aspecto atemorizante.
Reconheceu-me imediatamente. Entre os fios da barba
hirsuta surgiu a boca. Gritou expressando contentamento.
Senti-me abalado. Marlis me mandara um sujeito um
tanto maluco.
Bateu com tanta força nos meus ombros que, por vários
dias, o local ficou dolorido. Além disso, aquela fúria em
pessoa gritou nomes carinhosos e felicitações chorosas ao
meu ouvido, e isso com tamanha força que tive medo de
ficar surdo.
— Sou Gunter Viesspahn — disse em voz baixa entre
dois gritos. — Vamos logo; temos que dar o fora.
Segurou-me pelo braço e saiu cantando a plenos
pulmões.
— Abram caminho, seus vermes ordinários da cidade;
não estão vendo que um homem quer passar? — gritou meu
novo amigo para os policiais.
Estes deram uma resposta impublicável. O tom que se
usava por ali era terrível. Senti-me apavorado, mas logo me
lembrei de que isso constituía uma das características de um
jovem planeta colonial.
O barbudo arrastou-me para dentro do museu em cujo
subterrâneo, segundo dizia, havia um restaurante no qual a
temperatura seria bastante agradável.
— Desconfiaram de você? — perguntou em voz baixa.
— Não sei. Leram sua carta. Não tive outra alternativa
— respondi em tom apressado.
— Isso é mau, meu filho. O que contou aos espias?
Ficou satisfeito com minha explicação. Orientara-me
pelas indicações disfarçadas que lera entre as linhas. De
acordo com as mesmas Gunter Viesspahn chegara a Vênus
há dois anos. Era da Frísia, onde nos conhecêramos há
algum tempo.
No local reinava uma temperatura agradável. Porém não
passava de uma terrível espelunca cheia de colonos, que se
divertiam contando bravatas. Não me senti à vontade.
— Vamos tomar um purly e dar o fora — disse
Viesspahn. — Não olhe tão desconfiado. Está tudo em
ordem. Marlis está à sua espera. Tomamos todas as
precauções.
Não tinha muita certeza disso. Essa gente não conhecia
a defesa solar. Fiz uma pergunta lacônica:
— Alguém sabe que você conhece Marlis?
— Ora essa! — disse com uma risada. — Acontece que
Marlis é minha irmã.
Vi as maiores complicações aproximarem-se ainda mais
de mim.
Em Terrânia havia uma Divisão de Logística que
contava com as cabeças mais inteligentes e os
computadores mais eficientes do Universo.
Marlis era uma das estudantes que me haviam visto no
dia da fuga. Não havia a menor dúvida de que o serviço de
defesa já teria verificado quem se encontrava perto de mim
quando surgiu a confusão no auditório. Marlis foi uma
delas. Depois interrompeu os estudos e voltou para Vênus.
Era uma das pessoas que defendiam os direitos daquele
planeta e, durante as discussões, dissera publicamente que
em sua opinião minha prisão representava uma indignidade.
Grande pista... e o general Kosnow não deixaria de
percebê-la!
Após isso, em Nevada Fields suspeitou-se de um
homem louro, mas verificou-se que o mesmo possuía
esqueleto humano. E junto a esses pequenos elementos de
suspeita ainda existia outro: após chegar a Vênus esse
homem escreveu uma carta e recebeu resposta.
Se fizessem uma investigação para apurar se dois
colonos chamados Volkmar e Viesspahn se conheciam na
Terra, o resultado só poderia ser negativo.
A tudo isso, ainda acrescia que um irmão da estudante
Marlis Gentner me esperara. Se esses elementos fossem
concatenados, o serviço de defesa de Rhodan desferiria seu
golpe dentro de uma hora.
Meu instinto me disse que já estava sendo esperado nos
alojamentos dos imigrantes. Em hipótese alguma, deveria
voltar para lá. Meu esqueleto de bioplástico não resistiria a
um exame médico minucioso.
Lembrei-me dos policiais equipados com rádio de
capacete. Será que na Central de Defesa de Vênus já sabiam
que me encontrara com Viesspahn? Alguém me teria
observado enquanto me dirigia ao museu? Em caso
afirmativo, por que não fora detido?
“Antes de tudo, procure descobrir seus elementos de
ligação”, disse meu sexto sentido. “Talvez ainda poderão
ajudá-lo.”
Era isso mesmo! A cada segundo que passava meu
nervosismo crescia. Pedi que saíssemos imediatamente do
local.
— Bobagem! — disse o barbudo em tom indignado. —
Quando dois velhos conhecidos se encontram em Vênus, a
primeira coisa que fazem é procurar o bar mais próximo.
Aqui é um ponto de encontro dos colonos, uma vez que os
mesmos costumam frequentar vez por outra o museu
terrano. Acho que ninguém o seguiu, não é?
Fitou-me com uma expressão de contrariedade. Sacudi a
cabeça e beberiquei o líquido forte.
— Então, por que tanta preocupação? — disse Gunter
em tom tranquilizador. — Afinal, o que foi que você andou
fazendo? Marlis não disse uma palavra.
Apontou para baixo, como se a Terra ficasse bem a seus
pés.
— Isso não importa — respondi.
— Importa, sim. Afinal, se você estiver envolvido em
algo muito grave, estarei arriscando o pescoço. O amor
fraternal não pode ir tão longe, não acha? Ao que parece,
Marlis anda louquinha por você.
Mais uma vez a desconfiança começou a brilhar em
164
seus olhos escuros.
— Onde você nasceu? — perguntei.
Meus piores receios confirmaram-se. Gunter Viesspahn
era um venusiano genuíno, e eu dissera a um sargento que
havíamos sido colegas de escola na Terra.
Desesperado, cerrei os olhos. Marlis, por onde andava
sua inteligência? Você errou desde o começo.
Mas tive o cuidado de não deixar o barbudo ainda mais
irritado. No momento em que acreditasse estar numa
situação de perigo real, bateria em retirada. E eu não
poderia dispensar as ligações. Minha observação cautelosa
sobre nossa velha amizade apenas o fez dar de ombros.
— E daí? Como poderiam saber. Você viajou com
documentos falsos, não viajou?
— Naturalmente. Mas existem alguns aspectos que
vocês...
— Bobagem! Arranjaremos tudo. Você irá à minha
fazenda, localizada no rio Hondo, quinze quilômetros acima
das cataratas de Marshall. Lá o rio se precipita numa
profundidade de cinco quilômetros, e sua largura também é
esta. Um quadro inesquecível! Trata-se de uma excelente
região, que fica a pouco mais de duzentos quilômetros ao
norte de Port Vênus. Ali poderá estar tranquilo até que
Marlis descubra uma nave para você.
Esta explicação quase me fez desistir da fuga. Se a
moça fora imprudente a ponto de revelar a seu irmão
minhas ligações com o sistema de Vega, poderia entregar
os pontos.
De uma hora para outra, modifiquei meus planos. Seria
inútil continuar a esperar por uma hipernave destinada a
Vega. Tentaria sair da cidade quanto antes.
Pus a mão no bolso e tirei uma grande pérola. Os olhos
de meu interlocutor começaram a brilhar. Sabia quanto
valia o tesouro que tinha na mão. As pérolas eram uma das
raras coisas preciosas que não podiam ser produzidas
sinteticamente.
— Isto aqui é uma pérola legítima, no valor de cinco mil
solares — disse com uma calma enfática. — Preste atenção,
meu caro. Você descreverá exatamente o lugar em que
Marlis está esperando por mim. Irei até lá sozinho.
Enquanto isso você pegará seu avião... você tem avião, não
tem?
— É claro que sim; todo mundo tem.
— Muito bem. Você pegará seu avião e irá a algum
lugar onde seja fácil encontrá-lo. Uma vez lá, esperará por
mim. Não quero que sejamos vistos com Marlis.
Fez algumas objeções, mas não pôde resistir à tentação
da pérola. Acabou descrevendo exatamente um lugar bem
afastado, situado na periferia da cidade, onde um amigo seu
possuía um pequeno bar. Não seria difícil chegar lá.
A essa hora, só estava interessado em conservar Gunter
Viesspahn, para poder recorrer a ele se precisasse. Para
fazer isso, teria que despedir-me dele em público. Talvez o
deixassem em paz.
Deu-me o endereço de Marlis. A moça esperava por
mim em casa de uma velha tia, cujo finado marido fora
dono de uma casa de armas. Atualmente o negócio era
dirigido pela idosa dama que, segundo diziam, era muito
enérgica. Marlis fora criada pelo tio. Seus pais haviam
morrido na selva muitos anos atrás.
Paguei a conta. Uma vez fora do museu, olhei
cautelosamente em torno. Os dois policiais continuavam no
mesmo lugar, mas não receberam reforços. Mas isso não
significava nada nessa época de comunicações pelo rádio.
Despedi-me de meu velho amigo em voz alta, mas sem
chamar a atenção. Disse que voltaria aos alojamentos dos
imigrantes.
Formulou várias objeções, até que o táxi por mim
chamado parou à nossa frente. Os dois policiais pareciam
não nos dar maior atenção.
Entrei no carro, que era de construção moderna. Antes
de fechar a porta, disse em voz alta ao motorista para onde
deveria levar-me.
Alguém devia ter ouvido. O carro deu partida. Gunter
Viesspahn dirigiu-se ao heliporto do museu.
Uma vez dobrada a primeira esquina, que me colocou
fora das vistas dos guardas, comecei a agir. Seria absurdo
continuar a depender da sorte.
Apertei o botão do defletor de ondas luminosas e tornei-
me invisível. Antes que o motorista percebesse qualquer
coisa, foi atingido pelo feixe de raios do projetor mental.
Sua postura tornou-se mais rígida.
— Dobre a primeira esquina, pare e laça de conta que
está aborrecido porque seu passageiro desapareceu de
repente. Abra todas as portas e pergunte às pessoas que
estiverem por lá se viram alguém saltar pela porta traseira.
— Sim senhor — respondeu o motorista em tom
indiferente.
Abri a porta e deixei-a balançar. O motorista parou
antes do primeiro cruzamento e começou o jogo que
poderia custar-me o pescoço.
Correu em torno de seu carro, olhou para o interior
vazio do mesmo e perguntou às pessoas que riam a
bandeiras despregadas se haviam visto o patife que saíra
sem pagar a corrida.
Enquanto isso saí do veículo e, sem provocar o menor
ruído, subi sobre a carroçaria do mesmo, onde fiquei
deitado.
Poucos segundos depois, aconteceu aquilo que eu
esperara. Um veículo preto e muito moderno, usando
campos deslizantes antigravitacionais no lugar das rodas
antiquadas, parou ao lado do táxi. Dois homens saltaram do
mesmo e exibiram distintivos reluzentes ao motorista.
Quer dizer que fora perseguido! O joguinho de Marlis,
tão bem intencionado mas tão mal executado, já fora
desmascarado. A defesa solar voltara a agir.
O interrogatório do motorista foi muito rápido. Os dois
homens apalparam todos os ângulos dos bancos. Fiquei
sabendo que esperavam ter de lidar com uma pessoa
invisível.
Quando se despediram, deixando o exaltado dono de
táxi a sós na rua, voltei a entrar no veículo.
165
Sentindo-me livre do pesadelo, ordenei ao motorista que
se dirigisse à rua Tóquio, que ficava na parte antiga da
cidade. Assim que chegamos perto do destino, saí do táxi,
depois de ter ordenado ao motorista que se dirigisse ao
ponto de estacionamento mais próximo e esquecesse tudo.
Comecei a caminhar sob a proteção do campo defletor.
A pequena casa de armas da velha senhora Gentner não
podia ficar longe.
“Seu idiota!”, disse meu sexto sentido, conforme
costumava fazer sempre que estava prestes a cometer uma
asneira.
Era claro que Marlis já havia sido descoberta.
Provavelmente fora interrogada na Terra por um dos
telepatas do Exército de Mutantes de Rhodan. Talvez já
tivessem até descoberto que a moça me entregara meu
equipamento especial que mantive por tanto tempo
escondido.
Rhodan, que já devia encontrar-se na Terra, não
interviera. Eu conhecia o curso do raciocínio desse homem
extraordinariamente inteligente.
Marlis não sabia como e quando pretendia chegar a
Vênus. Sentia-me feliz porque no momento em que
encetara a fuga eu mesmo ainda não sabia.
Por isso, Rhodan só tinha uma. coisa a fazer: esperar.
Naquele momento, já poderia ter sido informado pelo rádio
de que o suspeito desaparecera de repente de um táxi.
Parei num portão e pus-me a refletir. Não; não fora
totalmente inútil chegar a Vênus em condições tão difíceis.
Aqui seria mais fácil desaparecer que na Terra densamente
povoada com sua estonteante rede de transportes e
comunicações. A selva de Vênus era grande e misteriosa.
Além disso, conhecia os perigos que me aguardavam lá
fora.
A informação do setor lógico de minha mente, segundo
a qual Rhodan só não me prendera porque esperava que eu
o levasse aos meus elementos de ligação também fora
errônea.
Era exatamente o contrário. Dispunha de provas
suficientes contra Marlis Gentner, talvez mesmo contra seu
irmão. Talvez, o barbudo já estivesse sendo interrogado por
um mutante.
Rhodan apenas aguardara até que Marlis recebesse uma
carta pela posta-restante. Com isso, as pedras começaram a
encaixar-se.
Uma vez que usei o pseudônimo, o serviço de defesa
não conseguiu apurar desde logo quem fora o remetente.
Mesmo a correspondência que me fora dirigida por Gunter
Viesspahn ainda poderia ser considerada inofensiva, pois
muitos dos colonos recém-chegados costumavam receber
cartas.
De qualquer maneira, se eu fosse Rhodan, teria agido
imediatamente. Fiquei refletindo a este respeito, até que a
ideia certa me ocorreu. Se o oficial de Nevada Fields ainda
não tivesse avisado nada, eu mesmo entrara na armadilha.
Ninguém sabia quem chegara a Vênus sob o disfarce de
Hinrich Volkmar. Só o encontro com o irmão de Marlis
havia colocado o serviço de defesa na minha pista.
Se o barbudo já estivesse sob observação, as coisas
teriam sido bem mais fáceis para os homens de Rhodan. E
muito me admiraria se já não me tivessem prendido.
Provavelmente sentiam-se muito seguros de que o jogo
tão bem urdido não seria desvendado tão depressa.
Meu nervosismo foi diminuindo. Uma “risadinha” me
fez estremecer, mas logo percebi que o ruído provinha de
mim mesmo.
A esta hora não gostaria de pertencer ao serviço de
defesa local. Se minha ideia sobre Rhodan fosse correta, já
estaria pessoalmente a caminho de Vênus.
Prossegui devagar e com a maior cautela, tendo sempre
o máximo cuidado para fechar perfeitamente o monobloco
destinado à defesa contra pesquisas telepáticas. Bastaria
que minha mente irradiasse um único impulso para que um
mutante pudesse localizar-me.
Senti que desta vez atirariam para matar. Rhodan não
poderia assumir o risco de deixar que eu desaparecesse na
selva de Vênus. Um belo dia, a vigilância no espaçoporto
diminuiria, e então minha chance teria chegado.
E Rhodan sabia disso; não havia a menor dúvida. Esse
bárbaro de olhos cinzentos sabia raciocinar.
Evidentemente seria uma loucura procurar entrar em
contato com Marlis. Estava sob observação, ou então não
queria chamar-me Atlan.
Tranquilizei meu instinto de autoconservação que
ameaçava entrar em revolta, dizendo a mim mesmo que,
sem uma arma energética mortal, não poderia penetrar na
selva. Os sáurios venusianos dificilmente se deixariam
afetar por um pequeno radiador de choques. E qual seria o
melhor lugar para encontrar a tal arma senão em uma casa
especializada?
Prossegui, até que vi o letreiro numa rua lateral.
Não notei ninguém, e nem esperava outra coisa.
Ansiava por Marlis, por um único olhar e um sorriso de
seus lábios cercados de amargura. A moça arriscara muito.
E não poderia culpá-la por ter cometido erros graves.
Afinal, não era uma agente treinada, mas apenas uma
criatura impulsiva, capaz de ainda entusiasmar-se pela voz
do coração.
Se não tivesse percebido nada do interrogatório
realizado pelos mutantes, que sem dúvida fora
extremamente suave, não se poderia imputar-lhe qualquer
culpa, por mais leve que fosse. Só poderia pensar que me
encontrasse em segurança absoluta. Se sua opinião fosse
outra, teria deixado de procurar a posta-restante.
Além do mais, perdera minha gigantesca pérola.
Evidentemente Gunter Viesspahn já não me poderia ser útil.
Encontrava-me numa situação bastante desfavorável.
166
Calculei e planejei, martirizando o cérebro dolorido em
busca de uma solução satisfatória; mas sua aparição
repentina abalou-me profundamente.
Parecia que uma força desconhecida paralisava meus
nervos. Uma pessoa do meu tipo sabe odiar ou amar além
de qualquer medida; sentir a alegria ou o desencanto, desde
que não seja privada do equilíbrio psíquico.
O vulto esbelto de Perry Rhodan produziu em minha
alma o efeito de uma ducha de ácido. Era bastante difícil
para a mente absorver sua presença. Um estranho
formigamento espalhou-se na zona da nuca. Demorei algum
tempo para superar o revés moral.
Encontrava-me atrás de um arbusto, e não podia ser
visto. Porém tive a impressão de que seus olhos me fitavam
com uma expressão perscrutadora. Tinha total certeza de
que não me poderia ter visto, pois meu defletor de ondas
luminosas funcionava impecavelmente.
E a localização energética também não era possível,
uma vez que as potentes armas energéticas de seus
acompanhantes e os motores atômicos das naves
estacionadas geravam campos muito mais potentes que o
emitido pelo meu aparelho.
Fazia apenas dez minutos que eu chegara, depois de ter
visto Marlis Gentner. Arrisquei-me a entrar na casa de
armas e encontrei-a numa sala dos fundos.
Tal qual os policiais do serviço de segurança venusiano
que se encontravam à espreita, escondidos do lado de fora,
não notara minha presença.
Não sabia que havia sido interrogada na Terra.
Envergonhei-me por não me ter informado a este respeito.
Mas não comentei o fato por uma questão de segurança
pessoal.
Quando me dei a conhecer, parou em atitude rígida
diante da pequena janela.
— É você? — perguntou com os lábios trêmulos.
Manteve um perfeito autocontrole, mas já estava perdida.
Minha única esperança era aplacar o ânimo de Perry
Rhodan. Marlis não devia ser castigada.
Cochichei ao seu ouvido, informando-a de que tinha de
fugir imediatamente para a selva, uma vez que surgiram
dificuldades. Em hipótese alguma poderia entrar em contato
com seu irmão, pois desconfiava de que o mesmo estivesse
sendo observado.
Ainda disse à moça que me comunicaria com um amigo
que conhecera na nave Glória. Não citei qualquer nome. Os
agentes do serviço de defesa poderiam quebrar a cabeça se
quisessem.
O fato de não informá-la foi um truque da minha parte.
Só poderia contar-lhe aquilo que o serviço de defesa
poderia saber. Não tinha a menor dúvida de que eslava
sendo vigiada pelos telepatas. Por isso não poderia saber
que eu descobrira tudo.
Durante o tempo em que permaneci na velha casa, corri
certo perigo. Se naquele momento tivesse sido realizada
uma vigilância telepática na moça, minha presença teria
sido revelada.
Tive sorte. No interior da casa de armas, achei o que
queria: o cofre de armas. Nele se encontravam os pesados
radiadores energéticos, que costumavam ser usados em
Vênus para abater os gigantescos sáurios. Tratava-se de
artefatos maciços, com fortes campos direcionais
alimentados por processos de fusão nuclear de elevada
potência. A incandescência dessa arma derrubaria sem a
menor dificuldade os gigantescos animais do mundo
primitivo.
Escapei sem ninguém o perceber, e Marlis foi de
opinião que ninguém ficaria sabendo de minha ligeira
visita.
Após isso, fiz exatamente o contrário do que lhe dissera.
Dirigi-me ao restaurante situado fora da zona urbana, onde
Gunter Viesspahn me esperaria.
Depois, voltei a modificar meus planos. Minha ação
devia ser cheia de variáveis, para impossibilitar o cálculo
logístico-esquemático de meus passos. Além disso, a ideia
de voltar à cova do leão não deixava de ter seus encantos.
Assim que cheguei, descobri Viesspahn. Encontrava-se
no interior da velha taberna, conversando com alguns
colonos de aspecto embrutecido que haviam feito compras
na loja ao lado.
Viesspahn ainda não fora preso! Nem desconfiava do
que havia acontecido.
Quanto a mim, calculava com a inteligência do inimigo.
Depois que me despedi tão apressadamente de Viesspahn, à
saída do museu, os homens do serviço de defesa deveriam
ter seguido o curso de raciocínio por mim desejado. Um
homem do meu tipo nunca volta para junto do conhecido
que sabe estar em perigo.
Até parecia que minhas previsões haviam sido corretas.
O serviço de segurança estava deixando o barbudo em paz.
Quando me deleitava nas mais belas esperanças,
subitamente um grande helicóptero da defesa solar pousou
nas proximidades. O susto que senti ao ver Perry Rhodan
descer foi infinito.
Uma vez que ele mesmo se encarregara da operação de
busca, teria que triplicar meus cuidados. Apareceu com
poucos acompanhantes. E fez de conta que nem se
interessava por Viesspahn.
Cumprimentou ligeiramente os colonos e disse em tom
bem-humorado que apenas viera para rever o lugar onde
quase encontrara a morte quando pela primeira vez pousou
em Vênus.
Contou uma história inventada sobre uma furiosa cobra
dos pântanos, conquistando os aplausos dos pioneiros
endurecidos. Dessa forma, meu grande inimigo deu uma
explicação plausível de seu súbito aparecimento.
A seguir, Rhodan colocou-se atrás do edifício. Um
homem do serviço de defesa saiu com o helicóptero. Tudo
parecia muito pacato. Os colonos que se encontravam no
interior da loja mantinham-se em atitude discreta. Quase
7
167
chegaram a curvar-se, mostrando grande veneração.
Angustiado, fiquei atrás do arbusto de folhas largas que
escolhera como refúgio ainda antes da chegada de Rhodan.
Não me atrevia a fazer o menor movimento. O botequim
com sua barulheira ficava a mais de cinquenta metros. Os
risos e a cantoria dos alegres pioneiros da selva formavam
uma cortina sonora muito tênue, que não era sufocada pelo
farfalhar das folhas.
Era uma situação martirizante, pois os inúmeros insetos
não se incomodavam com o defletor de ondas luminosas.
Penetravam nele às cegas, e eu tornava-me vítima de suas
picadas violentas. Além disso, as pontas metálicas do anel
de escapamento de gases da câmara de fusão da minha arma
incomodavam-me constantemente. Estava comprimida
contra a omoplata direita.
Aguardei impaciente e fiz votos de não ser surpreendido
por uma das terríveis trovoadas de Vênus.
Vi-me libertado mais depressa do que esperava. É bem
verdade que por pouco não me traí, pois não contava com a
aparição.
A menos de cinco metros do lugar em que me
encontrava, o ar superúmido começou a tremeluzir. Do
nada surgiu uma coisa que contemplei com um espanto
infinito e com uma inquietação cada vez maior.
O ser tinha o aspecto de um rato gigante com a cauda
grossa, muito parecida com a de um castor terrano.
A estranha criatura parou sobre as curtas patas traseiras
que lhe permitiam um andar ereto à maneira dos humanos.
Os braços finos com as delicadas garras estavam cruzados
sobre o peito de sua vestimenta semelhante a um uniforme.
Seria um animal?
Examinei mais detidamente a aparição, e tive que
retificar minha opinião. Um animal não carrega radiadores
energéticos. O rosto pontudo de camundongo com as lindas
orelhas normalmente me teria obrigado a sorrir. Mas na
situação em que me encontrava, aquele ser coberto de pelo
delicado me causou um tremendo susto.
De onde teria vindo? Levei alguns segundos até que
minha memória fotográfica se lembrasse de um ser
inteligente que, segundo diziam, ocupava lugar de destaque
no Exército de Mutantes de Rhodan. Ouvira falar dele em
Terrânia.
Gucky; era este o nome que Rhodan costumava dar ao
ser peludo. Evidentemente tratava-se de uma inteligência
vinda de algum planeta desconhecido. Ao que parecia, o
pequenino era um teleportador. Só assim se explicaria sua
súbita materialização.
Apertei fortemente a coronha de minha arma energética.
A rigidez provocada pelo pavor começava a abandonar meu
corpo.
— Saiam daí — chilreou o rato gigante.
— Por aqui poderão esperar o resto da vida. Esteve com
a moça e disse-lhe que iria à selva, onde ficaria na fazenda
de um amigo. O serviço de segurança daqui deveria ser
atirado no pântano mais próximo. Não entende nada do
negócio.
Perry Rhodan saiu de trás do depósito. Seu rosto dava a
impressão de indiferença. Apenas as pequenas rugas em
torno dos olhos pareciam mais profundas. Passou tão perto
de mim que acreditei ter sido descoberto.
A pequena inteligência peluda pôs à mostra um enorme
dente roedor. Um coronel do serviço de segurança de
Vênus, que eu não conhecia, abriu a boca, perplexo.
Um jovem tenente, que provavelmente ainda não tivera
oportunidade de conhecer Gucky, tossiu de forma bastante
estranha. O dente roedor do pequenino ser desapareceu
atrás do “nariz” franzido.
— Suas toupeiras! — piou com a maior falta de
respeito. — Por que não me chamaram logo? De qualquer
maneira, tinha o que fazer em Vênus. Por que não o
prenderam assim que recebeu a carta do tal do Viesspahn?
A testa de Rhodan franziu-se; mostrava preocupação.
— Sim, por quê? — disse o chefe do Império Solar,
repetindo a pergunta de seu estranho amigo.
O coronel empertigou-se.
— Sir, peço licença para ponderar que havíamos
recebido dados insuspeitos sobre todos os passageiros da
Glória. O indivíduo, que se identificou pelo nome de
Hinrich Volkmar, submeteu-se a dois exames de raios X na
Terra.
— Mas o senhor devia saber que o irmão da estudante
foi escolhido para receber o arcônida. Os interrogatórios
telepáticos à distância informaram-nos a este respeito.
Deviam ter posto as mãos no homem assim que a carta de
Viesspahn chegasse ao alojamento.
— Não tivemos muita certeza, Sir — respondeu o
coronel, que transpirava abundantemente. — O elemento
que procuramos mostrou a carta a um sargento do serviço
de segurança, e o conteúdo era totalmente “Inofensivo”.
Além disso, conforme já ressaltei, o homem foi...
— ...submetido a dois exames de raios X —
interrompeu Rhodan em tom irônico. Meus parabéns; os
senhores fizeram um trabalho bem feito.
— Tinha a intenção de prendê-lo depois que se
encontrasse com Viesspahn no museu.
O ridículo ser soltou uma risada aguda e estridente.
Subitamente pôs-se nas patas traseiras, girou em torno de
seu eixo e gritou:
— Quem andou pensando que sou um sujeito ridículo?
Quem foi?
Assustado, acionei o bloqueio mental que, ao alegrar-
me com o incidente, abrira por uma fração de segundo.
Então esse projeto de rato ainda era um telepata!
Provavelmente absorvera o conteúdo da mente de Marlis
logo depois que me despedi dela.
De repente, o jovem tenente começou a girar no ar. O
pequeno ser peludo ria a bandeiras despregadas, parado nas
patas traseiras, olhando para o oficial que soltava gritos de
pavor.
— Se você não pedir desculpas imediatamente, farei
com que caia de cabeça naquele pântano — gritou Gucky.
— Pare imediatamente! — ordenou Rhodan em tom
168
áspero.
O rato gigante baixou a cabeça sob o olhar gelado do
chefe. O tenente pousou de forma suave sobre o rotor de
um helicóptero estacionado.
Rhodan não perdeu mais tempo. No íntimo, não pude
deixar de admirá-lo. Seria um inimigo muito difícil.
— Coronel, averigue imediatamente com quem o
elemento que procuramos fez amizade. Todos os colonos
recém-chegados que ainda não partiram para seu destino
deverão permanecer no acampamento. Aqueles que já
receberam suas fazendas deverão ser imediatamente
visitados por um comando especial. Obrigado; por
enquanto é só. Faça o favor de chamar meu helicóptero.
Rhodan encostou o dedo no boné, ajeitou o cinto com o
pesado radiador energético e caminhou a passos duros em
direção no pequeno campo de pouso.
— O que vamos fazer com o tal do Viesspahn?
Rhodan respondeu sem virar o rosto. Em sua voz,
vibrava uma raiva contida.
— O senhor já deveria ter adivinhado coronel. É claro
que não vamos prendê-lo. Faça de conta que nunca ouviu
falar nele. Se acreditar que o fugitivo ainda entrará em
contato com ele, o senhor estará me ofendendo. Pode
imaginar por quê?
Rhodan girou no calcanhar.
— Lutei contra este homem, e tive que fazer o máximo
para vencer na última hora. Por isso peço-lhe o favor de não
pensar que é um idiota.
Naquele momento, não sabia o que pensar. Por pouco,
não desliguei o defletor num súbito gesto de resignação e
caminhei para frente.
Controlei-me no último instante. Meus olhos ardentes
seguiram o mais encarniçado dos meus inimigos. Por que
não atirava nele? Sem dúvida poderia mergulhar na mata
próxima.
Vi o tenente do serviço de segurança apontar para o
helicóptero pintado de vermelho. Era o aparelho de
Viesspahn. Ao que parece, Rhodan pedira informações a
este respeito.
A seguir, entrou no grande veículo oficial. Era uma
versão moderna com propulsor de impulsos e canhão
energético de montagem rígida. Verifiquei que, de repente,
Rhodan tomava lugar no assento do piloto.
Depois que decolou e desapareceu no horizonte
brumoso, arrisquei-me a sair detrás do arbusto e caminhar
em direção ao helicóptero vermelho. Acontecera aquilo que
eu pretendia conseguir com minha ação arriscada: Rhodan
não acreditava que ainda fosse encontrar-me com o irmão
de Marlis.
Parei alguns minutos junto à escotilha do
compartimento de carga e olhei para a loja. Não vi o
barbudo. Em compensação, escutei suas gargalhadas.
Abri calmamente a escotilha e pus o pé na escada
embutida. Quando pretendia enfiar o corpo no
compartimento apertado, ouvi o ruído de um helicóptero em
mergulho.
O zumbido suave cresceu num uivo estridente. O
aparelho que descia devia encontrar-se próximo à barreira
do som.
Olhei para cima. Reconheci um objeto reluzente. Saía
em voo arriscado de trás da muralha formada pela mata,
apontou o “focinho” para baixo e dirigiu-se em voo
vertiginoso ao lugar em que me encontrava naquele
instante.
Foi meu sexto sentido que mandou minhas pernas
correrem. Corri como nunca. Com um salto desesperado
rolei para dentro de uma poça de água malcheirosa.
Ouvi o rugido terrificante do canhão energético. No
mesmo instante, cessou o uivo da máquina que acabara de
ultrapassar a barreira do som. Em compensação, ouviu-se o
ribombar das massas de ar comprimidas, que fulguraram
sob a ação do raio energético.
Menos de cinquenta metros atrás de mim, as energias
atômicas liberadas atingiram o solo venusiano, que
imediatamente entrou em ebulição. O aparelho de Gunter
Viesspahn, pintado de forma tão espalhafatosa, foi
transformado numa bola de fogo, que explodiu. De uma
hora para outra, o dia sombrio parecia iluminado por um
pequeno sol. O canhão energético lançava uma luz
fulgurante, que prenunciava desastre.
A sucção produzida pelo aparelho que passou rente à
poça em que me encontrava por pouco não me arranca da
mesma. A menos de dez metros do lugar em que me
encontrava o solo fervia.
Rhodan traçara um canal retilíneo de lava no solo.
As ondas sonoras chegaram dali a poucos segundos.
Mais uma vez parecia o fim do planeta. Comprimi as mãos
contra os ouvidos martirizados e, ofuscado pela luz,
cambaleei em direção ao grande depósito. Uma vez lá,
deixei-me cair ao chão, completamente exausto.
Um soluço seco me apertava a garganta. Uma raiva
desarrazoada começava a dominar minha mente. Tive
vontade de gritar face às declarações de meu supercérebro.
Senti-me humilhado e rebaixado.
Rhodan partira, mas voltara. Numa reflexão fria abrira
fogo contra o aparelho de Viesspahn.
Esse maldito bárbaro de olhos cinzentos, apesar de tudo
o que se passara, contara com a possibilidade de que eu
pudesse entrar em contato com o barbudo. As instruções e
advertências que gritara para o coronel destinavam-se a um
“invisível” que se encontrasse nas proximidades.
Se tivesse esperado mais trinta segundos antes de voltar,
me encontraria no interior do compartimento de carga.
Nesse caso, a reação instantânea da fuga teria sido inútil.
Tive de esforçar-me ao máximo para conservar o
autocontrole quando vi o veículo policial pousar pela
segunda vez. Rhodan saiu da cabina e aproximou-se o mais
que pôde do metal ardente.
Levantei-me instintivamente. Queria ouvir o que tinha a
dizer. Aproximei-me tanto dos colonos que acorreram às
pressas que quase cheguei a tocar num homem.
Pálido como cera, Gunter Viesspahn encontrava-se ao
169
lado do ser mais poderoso do Império Solar. O coronel
plantara-se nas proximidades de Rhodan.
— Esse helicóptero foi seu, senhor Viesspahn? —
perguntou o coronel.
Meu amigo confirmou com um gesto perturbado.
Lançou um olhar assustado para os homens do serviço de
defesa.
— Sinto muito — disse Rhodan em tom Irônico. — Foi
um pequeno engano. Peço sua compreensão. Infelizmente
não posso dar maiores explicações. Naturalmente o governo
lhe pagará outro helicóptero. Faça o favor de informar ao
oficial sobre a natureza de sua carga. A indenização será
paga dentro de uma hora. Providencie imediatamente,
coronel Fasting.
Viesspahn soltou uma risada embaraçada na qual,
segundo parecia, também havia certo alívio.
Rhodan despediu-o com um gesto e voltou a contemplar
a aeronave que ainda estava ardendo.
— Coronel!
O coronel, que se afastava, parou e ficou em posição de
sentido. A voz de Rhodan tinha um tom impessoal.
— Assim que os destroços tiverem esfriado, providencie
um exame científico dos mesmos. É possível que os restos
mortais de um ser humano sejam descobertos nos mesmos.
Quero ser informado imediatamente sobre os resultados da
análise. Obrigado; é só.
Afastou-se, depois de confirmar novamente ao nervoso
Viesspahn que ele, Rhodan, lhe mandaria entregar dentro
de uma hora um helicóptero novinho em folha.
Quanto a mim, encontrava-me em campo aberto,
tremendo por todo corpo. As costas de Rhodan surgiram na
mira luminosa de minha arma. Bastaria apertar o botão para
realizar nele aquilo que pretendera fazer comigo.
Baixei a pesada arma de radiações. Não; nunca seria
capaz de alvejá-lo pelas costas.
Em saltos largos, voltei para junto do depósito. Os
colonos conversavam animadamente. Ninguém sabia o que
estava acontecendo. Apenas Gunter Viesspahn parecia ter
uma ideia, mas preferiu ficar calado.
Vi Rhodan entrar no helicóptero da polícia. Desta vez,
não ocupou o lugar do piloto.
Esse bárbaro se atrevera a destruir um helicóptero em
perfeito estado, com base; num raciocínio elementar. Não
sabia se realmente me encontrava no interior do mesmo.
Por isso, ele preferia aguardar, para que eu tivesse tempo de
entrar.
Contara com todas as eventualidades e guiara-se pelo
método de que sempre é preferível andar seguro.
Tive vontade de arrancar pedaços de meu corpo face à
minha imprudência fenomenal. O fato de que Rhodan
deixara um homem do serviço de segurança na loja deveria
ter chamado minha atenção.
Evidentemente o soldado recebera ordens de impedir
que qualquer pessoa fosse ao campo de pouso. Rhodan
queria ter o campo livre para atirar. Seu alvo era eu, apenas
eu.
Mal e mal consegui controlar minha perturbação.
Esse bárbaro magro só poderia encontrar-se em Vênus
há poucas horas, mas já me causara mais problemas que
aqueles que tivera de enfrentar com todo o serviço de
defesa durante seis dias no planeta Terra. Agora as coisas
começavam a ficar sérias. Tinha certeza absoluta de que
esse homem não cometeria qualquer erro de lógica
***
Dali a exatamente uma hora e treze minutos, o novo
helicóptero de Viesspahn desceu no campo de pouso que se
encontrava próximo ao restaurante na selva. Rhodan
cumprira sua palavra. Era medonho de ver como sabia agir
depressa.
O piloto não era outro senão o maldito rato gigante de
uniforme. Haviam feito um buraco no uniforme do ser
extraterreno, para que o mesmo pudesse tocar o chão com a
cauda de castor. E agora, aquela criatura ainda usava na
cabeça uma coisa parecida com um capacete-rádio, sob o
qual sobressaía o focinho pontudo com o dente roedor.
O “sujeitinho” de menos de um metro de altura plantou-
se solenemente à frente do estúpido Viesspahn e informou
ao barbudo em voz alta sobre os direitos e os deveres dos
colonos.
No íntimo, sabia que minha raiva por aquele rato
uniformizado era injusta. Estava sendo dominado pelos
sentimentos exaltados, que me diziam que esse “sujeitinho”
ridículo era mais estranho no sistema solar que eu mesmo.
Por que falava de modo tão altivo?
Dominado por uma raiva incontrolável e absurda,
abaixei-me, peguei um pedaço de madeira podre e atirei-o
com toda força contra o focinho da criatura arrogante.
Pelos deuses da antiguidade terrana, nunca deveria ter
feito uma coisa dessas.
Meu ódio desvaneceu-se imediatamente.
Poucos segundos depois, fugi a toda. Ainda bem que o
rato gigante, imediatamente possuído pela raiva, não me via
nem podia localizar-me por via telepática.
Era horrível de ver-se o que o ser peludo fez com os
colonos totalmente inocentes. O ser extraterreno devia ser
um grande telecineta; caso contrário, não teria conseguido
atirar os colonos, que soltavam gritos horríveis, para dentro
da poça, e depois deixar as criaturas banhadas de lama nas
copas das árvores altíssimas.
A seguir, o animal sentou-se no concreto do campo de
pouso e riu como nunca ouvira rir uma inteligência
galáctica.
Gunter Viesspahn foi o único homem poupado pela
fúria do ser peludo, que provavelmente vira que o pedaço
de madeira não fora arremessado por suas mãos. Ao menos
fiquei sabendo o que poderia esperar do amigo de Rhodan.
Viesspahn inclinou o corpo num gesto humilde quando
o “sujeitinho” desapareceu como se nunca tivesse aparecido
por ali.
— Vou mostrar uma coisa a vocês! — gritou antes de
desaparecer.
170
Caminhei tranquilamente em direção ao novo
helicóptero. Quando o colono decolou, encontrava-me no
banco traseiro. Meu sexto sentido me dizia que Rhodan não
voltaria a atacar.
Provavelmente a esta hora estaria mobilizando mais
alguns membros do seu Exército de Mutantes. Qual deles
poderia representar um perigo para mim? Os telepatas não,
conforme já ficara provado. A qual deles Rhodan teria de
recorrer para localizar-me apesar do bloqueio mental e do
defletor de ondas luminosas?
Não encontrei a solução, pois não sabia qual o trunfo
mantido de reserva pelo bárbaro.
Nesse momento já me arrependia por não ter atirado
nele. Como poderia chegar ao sistema de Árcon, se
poupasse Rhodan toda vez que surgisse uma oportunidade
de matá-lo? Era uma atitude absurda. Afinal, era o grande
inimigo de meu venerável povo, ou não?
O furacão parecia enlouquecer as feras. Fazia cerca de
cinco minutos que as duas torres feitas de carne e ossos
haviam saído da mata próxima para executar uma dança
estranha nos campos bem cuidados de Viesspahn.
Eram dois lagartos-corredores, nome que se costumava
dar a esses animais em Vênus. Possuíam aproximadamente
a forma de canguru terrano, apenas os crânios alongados
que terminavam num focinho chato erguiam-se uns trinta
metros acima do solo.
Os lagartos-corredores pertenciam a espécime dos
animais mais perigosos desse mundo primitivo. Em certos
lugares, sua blindagem córnea atingia uma grossura de
quarenta e cinco centímetros. Desenvolviam uma
velocidade tremenda. Antes da chegada do homem,
pertenciam ao grupo dos monarcas não coroados do
planeta.
Ambos perseguiam um pisoteador gigante que saíra da
mata em fuga desabalada. O quadrúpede vegetariano
devastou os campos, de Viesspahn numa questão de
segundos. Nos lugares em que havia colocado as enormes
patas, surgiram profundas crateras lamacentas.
No momento em que atingiram a clareira junto às
barrancas do rio Hondo, os dois lagartos-corredores
resolveram desistir da perseguição do pisoteador.
Por alguns minutos, permaneceram eretos no terreno,
antes de iniciarem a “dança”.
Viesspahn estava sentado na cabine de comando de sua
fazenda ultramoderna. Esforçava-se para trazer de volta os
tratores robotizados teleguiados, antes que os mesmos
fossem descobertos e atacados pelos lagartos.
Ouvi as terríveis pragas que soltava, pois voltara à
central energética. Há três dias encontrava-me na fazenda,
mas Viesspahn nem desconfiava disso. Não tinha o menor
interesse em informar este homem que não merecia maior
confiança sobre minha presença naquele lugar. Era bem
verdade que, com o tempo, se espantaria com o
desaparecimento de seus mantimentos. Até lá teria que
encontrar uma solução.
Atrás de mim, uma chave de segurança automática de
quinhentos ampères desligou-se: Pertencia ao circuito de
força da grade de alta-tensão do setor sul, e não
representara nenhum obstáculo sério para o pisoteador que
acabara de invadir a fazenda.
As luzes vermelhas piscaram cada vez mais depressa,
até que permaneceram acesas de vez. Por três vezes, a
chave automática de quinhentos ampères foi girada para a
posição de contato pelo campo energético eletrônico. Por
três vezes, desligaram-se com um forte estalo. O circuito
fora inutilizado; ao que parecia, a grade de alta-tensão
entrara em curto-circuito.
Viesspahn começou a praguejar cada vez mais alto.
Retirei-me para a sala dos isoladores. Atrás da pesada porta
de aço, zumbia o transformador do reator de alta potência.
Viesspahn possuía um modelo de fusão moderno, cujo
desempenho máximo era de mil quilowatts-hora. Tal
potência era suficiente para abastecer a fazenda. Os tratores
de múltiplas finalidades possuíam suprimento de energia
próprio.
Olhei pelas lâminas de plástico blindado que fechavam
a estação de controle.
Dentro de poucos segundos, o furacão chegou ao auge.
Sabia que a longa noite de Vênus estava para chegar. A
escuridão reinaria durante cerca de doze dias terranos. A
translação do planeta aproximava-nos da temível zona de
penumbra, na qual não fazia sol nem era completamente
escuro. Essa zona também resultava da rotação lenta de
Vênus.
As tormentas começaram com o início do prolongado
crepúsculo. Chovia demais, dando a impressão de que a
água estava sendo despejada por um balde gigantesco. Mas
o súbito resfriamento do ar não refrescava o ambiente.
As pragas de Viesspahn perderam-se nos uivos do
furacão. Porém conseguiu levar as máquinas para as
garagens subterrâneas.
Já não me sentia bem na apertada sala dos isoladores,
situada no pedestal de uma robusta torre de concreto. Todas
as fazendas de Vênus possuíam uma torre de energia desse
tipo, cuja parte superior estava coberta por uma cúpula de
chapas blindadas transparentes.
Dali se via a área da fazenda e as residências adjacentes.
No segundo planeta solar, essas construções pertenciam à
classe do absolutamente indispensável. Quando os
gigantescos animais da selva se aproximassem, não havia
outra possibilidade senão rechaçá-los em tempo.
E neste ponto, a zona da penumbra era mais temida.
Parecia que a súbita modificação climática produzia uma
espécie de embriaguez nos lagartos. Tornavam-se
descontrolados e agressivos.
O fazendeiro barbudo passou ligeiro e aos tropeços
8
171
junto ao meu esconderijo provisório. Abriguei-me
instintivamente quando sua mão fechada bateu contra a
chave do pequeno canhão energético giratório, montado no
alto da cúpula transparente. Para usar uma arma dessa
potência, tornava-se necessária uma licença especial do
governo. Só eram fornecidas em sua feição estacionaria e
os funcionários de Port Vênus controlavam-nas a intervalos
regulares.
Enquanto Viesspahn subia pela íngreme escada em
caracol, saí cautelosamente da desconfortável sala dos
isoladores. Acima de minha cabeça, ouvi as pisadas de seus
sapatos pesados. Chegou à pequena plataforma na qual era
manipulado o canhão.
Vi que utilizava ambos dispositivos de mira. Tratava-se
de um aparelho de ondas infravermelhas acoplado com um
equipamento goniométrico. Por mais escura que fosse a
noite, Viesspahn identificaria perfeitamente o alvo.
Perplexo, indaguei a mim mesmo se seria recomendável
confiar um instrumento de destruição desse tipo aos
colonos eternamente rebelados. Seria fácil modificar um
canhão de pequeno porte como este, retirá-lo de seu
embasamento e dar-lhe outro emprego.
Sentei na poltrona giratória que ficava à frente das
chaves de telecomando dos tratores e aguardei as coisas que
viriam. Lá fora, já estava quase totalmente escuro. O vento
uivante tangia verdadeiras cascatas contra as janelas de
plástico blindado. Parecia que este mundo tão jovem seria
tragado pelas águas.
O anemômetro mostrava que a velocidade do vento era
de cento e oitenta quilômetros por hora. Nessas condições,
era altamente recomendável não sair do seguro abrigo.
Gunter Viesspahn mantinha-se à espreita no assento
giratório de sua arma energética. Os dois lagartos
encontravam-se a cerca de duzentos metros. Apesar da
distância pareciam torres de igreja. Suas terríveis caudas
levantavam muitos metros cúbicos do precioso solo arável,
arrancando-o do chão subitamente encharcado.
Ao que parecia, o furacão não afetava os gigantes de
mais de trinta metros de altura. Saltavam pelo terreno,
atiravam-se contra o vento e soltavam um berreiro que me
fazia cingir fortemente a arma.
Não me separei por um minuto sequer do único seguro
de vida existente neste inferno selvático. Era bem verdade
que retirara dos estoques de Viesspahn um potente radiador
de choques, mas portátil. Sendo assim, num caso
verdadeiramente grave de nada adiantaria. Contra um
lagarto-corredor, só mesmo uma arma superpotente poderia
revelar-se eficaz.
Quando as feras aproximaram-se ainda mais, Gunter
Viesspahn começou a disparar. Tive o cuidado de virar o
rosto para o outro lado, mas assim mesmo a incandescência
fulgurante doeu nos meus olhos.
Um trovejar irreal superou o ruído da tormenta. Um raio
energético da grossura de um braço humano precipitou-se
para o ambiente infernal. Ao longo do fluxo incandescente
surgiu um fenômeno fascinante. Parecia que alguém
escavara um túnel nas massas de água que se precipitavam
do céu. Densas nuvens de vapor espalharam-se, quando o
furacão as atingiu.
Viesspahn fez boa pontaria. Entre as curtas pernas
dianteiras do lagarto surgiu uma mancha incandescente, que
se dissolveu numa série de relâmpagos. A parte da energia,
que não foi absorvida pelo corpo do animal, escapou pelas
costas sob a forma de descargas luminosas.
Vi o corpo gigantesco tombar. O animal fora atingido
mortalmente, mas seus reflexos prosseguiram por mais
algum tempo. E era terrível de ver com que força revolvia o
solo enlameado.
O outro sáurio saiu aos berros e desapareceu atrás da
muralha de água caída do céu.
Um tanto perplexo, olhei para Viesspahn. Ao que tudo
indicava, voltara a dedicar-se ao praguejar. Era uma das
características daquele homem que eu não apreciava nem
um pouco.
Estive a ponto de retirar-me para o depósito contíguo,
quando a trovoada irrompeu lá fora. O ribombar dos
trovões me fez comprimir as mãos contra os ouvidos. Este
mundo nunca poderia ser conquistado por criaturas pacatas.
Sem dúvida, precisava-se de homens como Gunter
Viesspahn para domar este planeta no correr do tempo.
Perto da cúpula, algumas árvores estavam em chamas.
Ardiam apesar da chuva e do ambiente superúmido. Na
Terra, nunca havia visto um temporal como este.
Viesspahn continuava sentado atrás do canhão
energético. Tive a sensação de que se embriagava com o
poder que tinha nas mãos.
Quando pretendia retirar-me, vi o brilho reluzente. Bem
atrás do colono, que começara a ficar nervoso, um corpo
surgiu do nada. Quando os contornos assumiram formas
estáveis, percebi que eram dois os seres que haviam
aparecido de repente.
Desta vez, não me senti dominado pelo pavor. Já
conhecia esse maldito rato gigante com a cauda de castor.
Mantive-me imóvel, embora com aquele furacão ninguém
pudesse ouvir qualquer ruído.
Num movimento quase inconsciente, pus a mão no
radiador de choques que trazia no cinto. Tive a impressão
de que meu sexto sentido manifestava uma revolta
sarcástica. Por que não me dispunha a atacar os amigos de
Rhodan com uma arma mortal, já que me via obrigado a
lutar contra eles? Era um paradoxo, e o setor lógico de
minha mente me informou sobre isso através de uma série
de impulsos dolorosos.
O outro ser sem dúvida era um terrano. Soltou-se das
costas da criatura extraterrana que, por certo, havia
transportado o homem robusto. Perplexo, constatei que
subestimara as faculdades do ser inumano. Se conseguia
levar mais um corpo dentro de seu campo de
desmaterialização, as energias que podia concentrar deviam
ser imensas.
Ligeiramente encurvado, mantive-me atrás do quadro de
telecomando das máquinas agrícolas. Era uma caixa imensa
172
de quase dois metros de altura, que me tiraria da visão dos
mutantes mesmo que não fosse invisível.
Viesspahn não notou a presença dos intrusos.
Continuava sentado em atitude de espreita, praguejando em
altas vozes para dar vazão ao seu descontentamento.
O ridículo ser estranho, que Rhodan costumava chamar
pelo nome de Gucky, parecia examinar a mente do
fazendeiro. De repente, compreendi que Rhodan iniciara a
operação de controle. A esta hora, felicitava-me por não ter
informado Viesspahn. Uma vez que não sabia da minha
presença, não poderia trair-me, nem consciente, nem
inconscientemente.
Um sorriso sarcástico brincava em torno dos meus
lábios. Olhei tranquilamente para a pequena plataforma do
canhão e tive vontade de rir quando Gucky fez um gesto
aborrecido. O rato gigante acabara de constatar que o
colono não conhecia meu paradeiro.
Resignado, o terrano que viera em companhia de Gucky
deu de ombros. Segundo acreditei, significava que
pretendia retirar-se dali.
Foi nesse instante que aconteceu uma coisa
inacreditável.
De repente, o terrano levantou a mão e apontou
exatamente para o lugar em que me encontrava. Ao mesmo
tempo, sua boca abriu-se. Ao que parecia, gritava. Mas não
pude ouvir por causa do furacão. Apenas sabia que o
desconhecido me descobrira, apesar do campo de deflexão
e do excelente abrigo atrás do qual me ocultara.
Acontecera! Era inacreditável. Haveria alguém que
fosse capaz de enxergar através de paredes compactas e de
um campo de deflexão de raios luminosos?
Meu sangue parecia ter uma tendência irresistível de
contrariar todas as leis naturais e concentrar-se
exclusivamente no cérebro. A surpresa produziu um choque
que poderia causar um esgotamento psíquico total em
pessoas de meu tipo, reduzindo-as à inatividade. Apenas
percebi o impulso de meu segundo cérebro, que
imediatamente entrou em funcionamento.
“O pequeno!”
Fiz pontaria com o radiador de choques. Naquele
momento o rato gigante girava o corpo com uma agilidade
extraordinária, virando o rosto para meu lado. Uma vez que
eu fora descoberto, o ser extraterreno representava o perigo
mais grave. Vira sua maneira de lidar com os colonos.
O terrano voltou a gritar alguma coisa e pôs a mão na
arma energética manual. Foi quando puxei o gatilho.
Ouvi o estrondo do raio paralisante. Vi confusamente a
luminosidade intensa, uma vez que o acúmulo de sangue no
cérebro prejudicava-me a visão.
O corpo do extraterrano foi envolvido pelo raio de
choque. Vi a boca de Gucky abrir-se num grito antes que
caísse ao chão com os músculos enrijecidos e os reflexos
amortecidos. Ficaria fora de ação pelo menos por uma hora.
O segundo disparo de minha arma de choque coincidiu
com o ataque do terrano, cujas intenções eram muito mais
sérias que as minhas.
Senti o hálito escaldante do fino raio térmico, que a
menos de dois metros do lugar onde me encontrava atingia
o encosto da poltrona giratória, reduzindo-o a uma massa
de fogo.
O desconhecido atirara apressadamente, enquanto eu
acertara mais uma vez. Seu corpo contorceu-se e caiu.
Reuniu as últimas forças e voltou a puxar o gatilho de
sua arma. O raio energético atravessou o piso de metal leve
da plataforma e com um chuvisco de fogo atingiu a caixa de
fusíveis da grade eletrificada.
Já me recuperara do perigoso momento de susto. No
instante em que as chapas de revestimento expeliam os
raios, já me encontrava na entrada da sala dos isoladores.
Com a boca escancarada, Gunter Viesspahn fitava os
vultos imóveis. Levou algum tempo para descer da
plataforma, pegar um extintor e apagar o princípio de
incêndio. Logo debelou as chamas. Retirei-me satisfeito.
Viesspahn estava fora de si. Seus olhos assustados
rolavam nas órbitas. Parecia perguntar constantemente a si
mesmo de onde haviam vindo os dois disparos de arma
paralisante.
Saí da sala enfumaçada, produzindo o menor ruído
possível. O braço esquerdo do terrano paralisado pendia da
plataforma do canhão. Vi perfeitamente que a pequena luz
de chamada do microrrádio preso ao seu pulso começou a
piscar.
Concluí que os dois agentes não estavam sós. Se não me
enganara, Perry Rhodan devia estar próximo.
Provavelmente viera com um destacamento do serviço de
defesa. Um homem do seu feitio só realizava um golpe de
surpresa em boa forma.
Sabia que não tinha um segundo a perder.
Com a maior rapidez, mas tranqüilo e perfeitamente
equilibrado, retirei-me para o pequeno depósito onde
dormira nos últimos dias. Peguei a mochila na qual
colocara boa quantidade de alimentos concentrados,
pendurei-a nos ombros e prestei atenção para que fosse
atingida pelo campo de deflexão.
Realizei as últimas regulagens de precisão, examinei a
pesada arma de impulsos e abri o alçapão da galeria de
emergência que Viesspahn construíra há um ano.
A galeria descia íngreme. Terminava num degrau, e de
lá seguia diretamente para o rio Hondo.
Havia outra galeria subterrânea que ia até a sala dos
reatores, ligando a torre energética com a residência.
Se Rhodan avançasse para esse lado, não me encontraria
mais. O caminho até o conjunto de edifícios residenciais
certamente já fora bloqueado.
Foi em virtude de uma sequencia de conclusões lógicas
que escolhi o túnel pouco confortável.
Prestei atenção aos ruídos vindos de baixo antes de
bater a pesada tampa-alçapão. Fechei a tramela interna,
embora soubesse que um ligeiro disparo energético bastaria
para destruí-la juntamente com o alçapão. No entanto, de
acordo com um calculo rápido, seria necessário um
esfriamento de pelo menos quinze minutos antes que
173
alguém pudesse seguir-me pelo tampão fundido.
A galeria era circular e não tinha mais de um metro de
altura. Tive que abaixar-me bastante e segurar a pesada
arma energética em posição inclinada. Minha lâmpada
recarregável emitia uma luz forte, que iluminava
profusamente as paredes vitrificadas pela fusão.
Já andara várias vezes por esse caminho. Sabia que
tinha pouco menos de seiscentos metros. Desta vez, não fiz
nenhuma pausa para deitar e descontrair as costas doloridas.
Rhodan não pertencia à classe de pessoas que, numa
situação crítica, costumam presentear alguém com
segundos preciosos.
Gucky era um ótimo telepata. Rhodan também possuía
esse dom, mas em grau bem menor. Por isso, já devia saber
que seu pequeno amigo havia sido colocado fora de ação.
Enquanto prosseguia apressadamente, fiquei refletindo
com a necessária frieza sobre como o terrano me poderia ter
visto. Ao que tudo indicava, tratava-se de um homem
pertencente ao Exército de Mutantes de Rhodan. Se é que o
desconhecido conseguira romper o campo de deflexão com
a vista, também seria capaz de superar camadas de matéria
compacta.
Mas, segundo parecia, não possuía qualquer outro dom.
Agira acertadamente ao colocar fora de ação em primeiro
lugar o rato gigante.
O rosto largo do mutante desconhecido surgiu na minha
imaginação. Depois que os telepatas de Rhodan falharam
por completo em virtude de meu bloqueio mental,
transformara-se no mais perigoso dos meus inimigos.
Provavelmente Rhodan mandaria seu espia aos lugares
mais críticos. Assim que me localizasse, as pessoas que
estivessem em sua companhia poderiam abrir fogo, ou
atacar-me com recursos extrassensoriais.
“Você deveria tê-lo matado, seu idiota!”, disse meu
supercérebro.
Cerrei os lábios, respirei profundamente e prossegui
mais depressa. Sem qualquer pausa a longa caminhada
transformou-se num martírio. Mas não poderia perder
tempo.
Quando finalmente cheguei ao alargamento da galeria,
ouvi as águas do Hondo rugirem atrás de uma porta de aço.
O furacão continuava a uivar. Na zona da penumbra, as
tormentas são muito prolongadas.
Abri a porta de pouco menos de dois metros de altura e
olhei cautelosamente para o setor da galeria, cujo solo já
estava coberto pela água. Mais adiante, o barco de plástico
blindado pertencente à Viesspahn balançava nas ondas.
Era uma embarcação inteiramente estável e coberta. O
maquinismo trabalhava segundo o princípio da
retropropulsão: a água aspirada por uma potente turbo-
bomba era expelida sob alta pressão através de um bocal
móvel, que tornava dispensável o leme convencional.
Tivera a cautela de familiarizar-me com o manejo de barco,
fato que agora me seria muito útil.
Subi pela estreita escada de alumínio, que levava a um
pedestal de rocha. Quando abri a escotilha do barco, à
prova de água, a pequena luz sobre a roda do leme acendeu-
se.
Estava tudo em ordem. Abri a tampa da máquina e
certifiquei-me de que o dispositivo de voo unipessoal, que
escondera há dois dias, ainda se encontrava no mesmo
lugar. Durante esse tempo, Viesspahn não se interessara
pelo barco.
Coloquei minha arma sobre o banco dianteiro, ativei o
minirreator, do tamanho de uma garrafa, e empurrei a chave
do potente motor da bomba para a direita.
O barco arrancou com um solavanco, reagindo
imediatamente à pressão do leme. Sabia que, naquele lugar,
o rio Hondo com seus cinco quilômetros de largura devia
parecer-se com um oceano fustigado pela tempestade. Mas
não tive outra alternativa senão utilizar este caminho para
afastar-me da área de perigo.
Comprimi os pés contra a parede dianteira e regulei a
máquina para a velocidade máxima. O barco deu um salto
para a frente, rompeu a vegetação aquática que margeava o
barranco e disparou para a grande baía.
O furor primitivo da tormenta envolveu-me. Acima das
margens íngremes e elevadas, um grupo de demônios
parecia lutar pelo domínio do ambiente.
Enquanto me encontrava sob a proteção da baía, não
tive maiores dificuldades. Estas começaram quando atingi
as águas abertas.
De repente, o pequeno e largo turbo-barco foi atingido
pelas ondas. Até parecia que avançara para o mar aberto.
Antes de dar-me conta do que estava acontecendo, a
cobertura de plástico blindado estava sendo lavada pelas
ondas espumantes.
Quase não dei a menor atenção à fúria dos elementos.
Uma vez que o vento soprava da esquerda, tive de usar toda
a força do motor para evitar que o barco fosse tangido para
a margem. Pretendia afastar-me o mais possível do
barranco, a fim de que o barco fosse envolvido pelo
negrume que cobria o centro da corrente. Seria de admirar
se lá ainda conseguissem localizar-me pelo radar.
Dentro de poucos segundos, o veículo aquático,
balançando e jogando em todas as direções, saiu do abrigo
que os barrancos ofereciam contra o vento. Não via mais
nada. Em torno, as águas geralmente tão tranquilas
borbulhavam como se um grupo de monstros invisíveis
estivesse empenhado em rasgar o leito do rio.
A seguir, comecei a acreditar que escapara às forças
que, sem dúvida, haviam pousado nas proximidades. Mal a
ideia aflorou em minha mente, um inferno foi desencadeado
atrás de mim.
O barulho do furacão não me permitiu ouvir o ribombar
dos disparos. Em compensação, vi a luz branquicenta dos
fluxos energéticos, que atingiam a água de um e outro lado
do barco saltitante, produzindo torvelinhos fumegantes.
Mantive-me absolutamente tranquilo e inabalável. Um
arcônida da minha época não entra em pânico quando surge
um fenômeno já esperado. Apenas me esforcei para fazer o
barco indomável dançar ainda mais furiosamente.
174
Dali a alguns segundos, os disparos atingiam a água a
distâncias cada vez maiores. Ao que tudo indicava, as miras
automáticas passaram a localizar troncos flutuantes.
Depois do último lampejo, percebi que me encontrava
aproximadamente no meio do rio. Deixei o barco entregue à
corrente impetuosa que, juntamente com a tormenta vinda
de trás, me afastava da zona de perigo. Seria difícil avaliar a
velocidade, mesmo aproximadamente. Vez por outra, a
quilha arranhava em obstáculos. No Hondo, havia
numerosos baixios, e apenas poderia fazer votos de escapar
aos mesmos.
Lancei o aparelho de imagem infravermelha, que me
proporcionaria ao menos uma ligeira visão dos arredores. O
rio parecia uma gigantesca panela em ebulição. Minha
segurança era apenas relativa, pois Rhodan sabia
perfeitamente que durante a tormenta suas aeronaves seriam
inúteis. Por isso, esperava que o furacão ainda durasse
bastante, muito embora o vento que vinha em rajadas
indicasse que as fúrias da natureza estavam próximas do
fim.
Pelo que sabia, as célebres cataratas de Marshall
ficavam cerca de treze quilômetros abaixo do lugar do qual
partira. Ali, as águas do Hondo se precipitavam de uma
altura de quase cinco quilômetros. Evidentemente não
poderia arriscar um salto desses.
Vi que havia subestimado a velocidade do barco. Antes
que pudesse elaborar meu plano, ouvi um rugido que
superava o da tormenta que já diminuía.
Bem à minha frente, observei algumas rochas cheias de
arestas que se erguiam em meio às águas. Pouco abaixo
delas, as águas começavam a cair. Como a força da
correnteza fosse terrível, tomei imediatamente o rumo da
margem ainda distante.
No último instante, consegui escapar à sucção das
águas. A quilha tocou em algo. Houve um estalo que
parecia indicar desastre. O barco encalhara justamente num
trecho rochoso da margem do rio.
Desliguei o motor e esforcei-me para ouvir os ruídos
vindos de fora. Bem ao leste, o céu já começava a clarear na
medida em que isso era possível na zona de penumbra. Se
quisesse aproveitar a semiescuridão e as últimas rajadas de
vento, teria que agir com a maior rapidez.
Antes de sair da escotilha da cabine, coloquei o aparelho
de voo, formado por dois minúsculos rotores de três paletas
que giravam em sentido oposto, e que se abriam com a
força centrífuga.
No momento, as paletas elásticas estavam reduzidas a
um pacotezinho, que mal aparecia em cima da mochila,
juntamente com o minúsculo reator.
Depois que desci, fui recebido pelo vento. A tormenta
era muito mais forte do que supusera no interior da cabine.
Girei a popa do barco para o lado do rio, inclinei-me bem
para frente, empurrei a chave do motor para a velocidade
máxima e deixei que a embarcação se precipitasse água
adentro.
Com os olhos pensativos, contemplei o barco que se
afastava em alta velocidade. Logo foi levado pela
correnteza. Dentro de poucos instantes, desapareceu em
meio às vagas.
Restava saber se Rhodan acreditaria no acidente que
acabara de encenar.
“Tanto faz; procure ganhar tempo!”, disse o setor
lógico de minha mente.
Confirmei com um gesto. Não havia a menor dúvida de
que um pequeno ganho de tempo assumia a maior
importância. Rhodan teria o cuidado de examinar os
destroços do barco e procurar meu cadáver. Não tive a
menor dúvida de que se lembraria da perigosa catarata.
Seria perfeitamente lógico contemplar a possibilidade de
uma queda.
Era um estranho na região, estava fugindo e, além disso,
a tormenta rugia em torno de mim. Não haveria nada mais
natural do que a suposição de que poderia ter ocorrido um
acidente.
Esperei sob a proteção do barranco até que a tormenta
amainasse. Quando tive a impressão de que o tempo já era
suportável, abri a alavanca telescópica que servia para
controlar a direção e a velocidade do voo. A pequena
mochila que carregava nas costas transformou-se num
aparelho de voo.
O zumbido do motor energético embutido na cabeça dos
rotores foi superado pelo matraquear agudo destes que se
abriam. Subia suavemente ao ar brumoso e úmido, mas
preferi manter-me abaixo das copas das árvores que, se
necessário, me ofereceriam um abrigo facilmente
alcançável.
Dali a poucos segundos, a maior queda d’água até então
descoberta em Vênus espumejava embaixo de mim. Senti
um calafrio ao lembrar-me de que nessa altura poderia estar
lá embaixo, com o corpo esmigalhado.
Regulei a alavanca para a progressão do voo.
Desenvolvendo cerca de cento e cinquenta quilômetros por
hora, deslizei tão perto da água que, vez por outra,
levantava, os pés para evitar os blocos de pedra que
surgiam de repente.
Meu destino era Port Vênus. Num gesto de resignação,
desisti de bancar o “desaparecido”. Um homem como Perry
Rhodan não se deixaria enganar tão facilmente.
Há poucas horas namorara a ideia de assumir o controle
do grande centro de computação de Vênus. Conhecia
perfeitamente as instalações, e sabia como fazer para atingir
as cavernas através das galerias de emergência.
Mas agora, que Rhodan procedera com tamanha
coerência para descobrir meu paradeiro, todos os planos se
haviam frustrado. Esse bárbaro de olhos cinzentos pensaria
antes de tudo, no cérebro positrônico que poderia estar
exposto a um perigo. Por isso, não tinha a menor dúvida de
que o precioso centro de computação estava sendo
submetido a uma vigilância extremamente rigorosa.
Minha grande chance só poderia ficar no centro dos
acontecimentos, ou seja, em Port Vênus. Já percebera que o
melhor esconderijo para um homem na minha situação era
175
uma grande cidade com sua turbulência. Em algum
momento, surgiria a oportunidade de apoderar-me de uma
nave capaz de desenvolver velocidade superior à da luz,
estacionada no espaçoporto, ou de penetrar num veículo
espacial de grandes dimensões sem ser percebido.
Nos últimos dias, poupara meu defletor de ondas
luminosas. Voltei a ligá-lo, porque agora havia o risco de
ser descoberto.
Não ouvi as aeronaves de Rhodan. Provavelmente, o
soberano do sistema solar ainda estaria ocupado no
interrogatório, embora Viesspahn nada pudesse esclarecer.
Voltei a ter ânimo. De repente, a
situação já não parecia tão desesperadora:
chegaria a Port Vênus.
“Aonde irá?”, indagou o setor lógico
de minha mente. “Pretende procurar
Marlis?”
Não; para mim a moça passara a ser
tabu. Quando muito poderia contemplá-la
de longe.
Enquanto prosseguia pelo leito do rio,
aproveitando tudo que pudesse representar
um abrigo, resolvi escrever a Perry
Rhodan a fim de pedir clemência para
Marlis. Sem dúvida, esse bárbaro
inteligente já percebera que a mesma só
havia desempenhado um papel secundário.
“Aonde irá em Port Vênus?”, voltou a
perguntar meu segundo cérebro.
Procurei lembrar-me das várias
possibilidades, até que o grande museu
terrano me veio à mente. Era isso mesmo!
Por que não me esconderia ali? As salas eram amplas e
difíceis de serem abrangidas com a vista. Se realmente
aparecesse aquele estranho mutante com sua capacidade
visual, ainda poderia escapar. De qualquer maneira, seria
uma posição favorável para agir prontamente assim que
chegasse o momento. Provavelmente teria que matá-lo.
Bastaria que demorasse alguns segundos a fim de
concentrar sua mente para que eu tivesse uma boa
possibilidade de atacá-lo. Um homem do meu tipo não se
impressiona com coisas aparentemente sobrenaturais.
Mesmos os mutantes de Rhodan eram apenas seres
humanos com seus defeitos e fraquezas.
O plano que previa minha permanência no museu
terrano deixava-me cada vez mais feliz. Talvez a ideia
fundava-se menos na lógica que no sentimento.
Ninguém conhecia o passado da Terra tão bem quanto
eu. Já vivia quando os primeiros mercadores romanos se
dirigiram à Germânia para trocar as armas de ferro por ouro
e âmbar. Levei Leif Erikson a prosseguir na sua viagem
para o Ocidente, até que atingisse a costa americana.
Os numerosos objetos que deviam estar guardados nesse
museu atraíam-me e fascinavam minha mente. Além disso,
no subsolo do edifício existia um restaurante, que garantiria
a alimentação.
A ideia tranquilizava minha consciência. Meu segundo
cérebro permaneceu quieto. Ao que tudo indicava percebera
que havia atingido certo estágio de esgotamento.
Provavelmente, em algum canto recôndito de minha
mente, já havia fluxos emocionais que me faziam perceber
a inutilidade de prosseguir na fuga.
Era jovem de corpo e de alma, mas os séculos passados
não poderiam ser deixados de lado. Trouxeram-me um
cabedal enorme de experiências e decepções. Meu saber, os
sofrimentos pelos quais havia passado e as alegrias de que
desistira a contragosto atavam-me à Humanidade com uma
força muito maior do que eu mesmo estava
disposto a reconhecer.
Por que procurava escapar desses
bárbaros adoráveis? Seria a teimosia, o
orgulho ou o sentimento do tradicional que
me fazia agir assim? Talvez fosse certa
presunção gerada pela minha elevada
ascendência. Por dez milênios, fora um
mestre para a Humanidade. Dirigira as
grandes cabeças e promovera a ocorrência de
fatos que a historiografia considerava
estranhos e quase inacreditáveis. Até hoje os
historiadores costumam indagar como os
elefantes de Aníbal conseguiram atravessar
os Alpes. Na época pretendia destruir o
poderio romano, pois não estava interessado
na existência de um império parado no
tempo.
Quando quase esbarrei num galho que
boiava, chamei-me à ordem. Essas reflexões
eram absurdas. Por enquanto, pretendia ir
para casa, onde seria meu lugar. Provavelmente meu
venerável povo também precisaria de auxílio.
Logo após o anoitecer, camadas de nuvens grossas e
pretas como veludo estenderam-se sobre Port Vênus. O
movimento nos salões do museu terrano foi diminuindo, até
cessar por completo.
Durante a longa noite de Vênus, os colonos
costumavam permanecer em suas fazendas, a fim de
espantar os monstros que agiam na escuridão.
Quando os últimos visitantes desapareceram e as luzes
acenderam-se em Port Vênus, voltei a ativar meu defletor
de ondas luminosas. Estava na hora de tomar precauções
contra os seres que ali poderiam penetrar de surpresa, e que
só seriam vistos depois de se terem materializado.
Voltei a transformar-me num ser invisível, o que entre
outras coisas me levou a vagar calmamente pelos enormes
salões. Muitos dos objetos aqui expostos, e que
simbolizavam o grande passado da Terra, não eram
genuínos. Todos os esforços foram feitos para que as
imitações fossem as mais fiéis possíveis, mas nem sempre
9
176
esses esforços foram bem-sucedidos.
O salão em que estavam expostas as armas da Germânia
antiga e dos países nórdicos deixou-me bastante chocado.
Em parte, as espadas afiadas de ambos os lados eram muito
grandes e pesadas. Até parecia que naquela época só
existiam gigantes e atletas. Na verdade, os homens da
Antiguidade geralmente eram menores e mais fracos que os
de hoje.
Em toda parte, encontrava falsificações históricas, mas
ainda assim encontrei muita coisa boa e bela. Não me
cansava de contemplar as testemunhas mudas do passado
turbulento.
Fazia cerca de vinte horas que ninguém aparecia no
museu. Os portões ficaram fechados e os grandes tubos
luminosos foram desligados. Apesar disso, a luz era
suficiente para que se pudesse examinar e tocar
cautelosamente os objetos expostos.
Port Vênus estava dormindo. Os homens haviam trazido
da Terra os seus hábitos de vida. Uma vez que o sono era
biologicamente condicionado, não havia como adaptar-se
aos longos períodos diurnos e noturnos daquele mundo
estranho. Dormia-se e trabalhava-se a intervalos prefixados,
quer fizesse sol ou não.
A angústia me martirizava. Há várias horas chegara ao
museu, são e salvo, e desde então não enfrentara a menor
dificuldade.
No subsolo, retirei minha ração de alimentos do
autômato. Não peguei nada de ninguém, com exceção de
uma pesada arma portátil que tirei do cinto de um colono
embriagado. Só posteriormente notei que se tratava de uma
arma fornecida gratuitamente pelo governo.
O fato representava um risco, pois o homem certamente
notificaria a autoridade em relação ao objeto de que se vira
privado. Acontece que seria desagradável continuar
carregando constantemente o desajeitado fuzil energético.
Por outro lado, não desejava ficar sem uma arma e, naquela
altura, não considerava o radiador de choques uma arma na
verdadeira acepção do termo.
Quando os grandes portões se fecharam lá embaixo, o
sentimento da solidão começou a dominar-me. Levantei-me
nervosamente do leito, que consistia na réplica da cama de
luxo de Luís XIV.
Há uma hora vagava pelos diversos setores. Parava num
e noutro lugar, mergulhado em recordações, até que voltei
ao salão com os objetos da Germânia.
Bem atrás, havia um barco dos vikings. Não media mais
de quinze metros, o que não condizia com os objetos
colocados no mesmo. Os barcos do século IX eram
maiores.
Os bonecos de plástico deveriam representar vikings
noruegueses. As vestimentas e as armas eram
aproximadamente corretas. Apenas, os capacetes pontudos
enfeitados com chifres haviam sido providos de protetores
de nariz e orelhas feitos de ferro. Isso não correspondia à
verdade. Já havia visto um capacete desse tipo, mas o
mesmo provinha de uma oficina pertencente a Carlos
Magno.
Parei diante do boneco que representava um enorme
viking. Sua mão direita segurava uma espada afiada de
ambos os lados e a esquerda, um escudo redondo.
Sim, era mais ou menos assim que foram aqueles
homens rudes e destemidos do Norte. Recuei para examinar
melhor o boneco.
Porém, ouvi o ruído produzido pela ponta de lança que
penetrava no boneco. A haste do artefato, arremessado com
uma força terrível, balançava...
O ferro cravara-se bem no peito do boneco. O objeto de
plástico começou a cambalear e finalmente tombou
lentamente, como que a contragosto. A lança caiu
ruidosamente ao solo.
Parei estupefato. Ouvi o rufo de tambores. Levei algum
tempo para compreender que eram as batidas de meu
coração.
Virei lentamente a cabeça, tendo o cuidado de não tirar
os pés do chão. Não vi ninguém. O salão, perfeitamente
visível em todos os cantos, estava vazio como nas horas
precedentes.
Havia alguém, mas não vi nenhuma criatura humana.
Quem me teria golpeado com minhas próprias armas?
Continuei a confiar no campo de deflexão, motivo por
que não saí do lugar. Se algum mutante tivesse penetrado
ali, não seria o espia, pois o mesmo não possuía o dom da
teleportação. Quem teria penetrado ali, e de que forma teria
arremessado à lança?
— Se eu fosse você, já teria mudado de lugar, arcônida
— disse um homem em tom irônico.
Comprimi as mãos contra a boca, para reprimir um
gemido. Por um instante, meus pés pareciam paralisados.
Quando procurei movê-los, recusaram-se a obedecer.
A voz era inconfundível.
— Estou adivinhando seus pensamentos, arcônida —
soou a voz de Rhodan, que ressoava pelo amplo salão.
O tom irônico em que foram proferidas estas palavras
fizeram meu sangue ferver. A estupefação diminuiu
rapidamente. Logo recuperei o autocontrole. Porém achei
preferível não mudar de posição, a fim de não produzir
qualquer ruído que pudesse trair-me. Talvez fosse por
simples coincidência que a lança atingira o boneco tão perto
do lugar onde me encontrava.
Não respondi. Por um instante, o silêncio foi total.
Subitamente ouvi a risadinha de Rhodan. A cólera
apoderou-se de minha mente. Quem dera que esse homem
não demonstrasse uma arrogância tão repugnante!
— Poderia tê-lo matado, oh, imortal — disse meu
inimigo invisível. — É estranho, não é? Como é que um
imortal pode ser tão vulnerável? Já sei o que vem a ser o
aparelho que você costuma carregar no peito. Examinei
certos relatórios do século dezessete. Um médico de
Gustavo Adolfo, rei dos suecos, deixou um manuscrito no
qual relata uma operação bastante estranha. Um homem
alto e louro vindo do norte deu-lhe instruções exatas sobre a
maneira de realizar a intervenção. O médico falou num
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“recipiente brilhante” com uma agulha na ponta. O oficial
louro espetou-se com a mesma e depois disso perdeu a
sensação da dor. O médico teve que retirar de seu estômago
um objeto vermelho e brilhante em formato de ovo. Foi
você, arcônida. Será que pretende negar?
Não respondi. Pois bem; haviam descoberto meu
segredo. Meu raciocínio embrutecera tanto que o fato não
provocou a menor sensação em minha mente.
— Pode contar. — voltou a falar a voz. — Tenho sua
imagem na tela do localizador individual. Como sabe,
possuímos todos os dados relativos à frequência de suas
vibrações orgânicas. Não haveria nada mais natural que
construir um aparelho especialmente adaptado às mesmas,
não é? Em parte, as vibrações de suas células desenvolvem-
se na quinta dimensão. Por isso não são absorvidas pelo
campo de deflexão. Não acha que somos inteligentes?
“Inteligentes demais”, avisou meu segundo cérebro.
Isso mesmo! Rhodan acabara de cometer um erro.
Conhecia as irradiações de meu organismo. Eram mínimas
e só poderiam ser captadas se o receptor estivesse
perfeitamente ajustado. Bastaria dar alguns passos para
colocar-me fora do alcance do localizador. Depois que me
procurasse, esse bárbaro de olhos frios.
Saí correndo. Foram os saltos do desespero que me
fizeram passar por cima do barco e abrigar-me atrás do
mesmo. Deitei no chão e procurei um alvo para minha
arma.
Esforcei-me para ouvir a respiração de Rhodan. Teria de
encontrá-lo, mesmo que estivesse usando um defletor de
ondas luminosas igual ao meu. Provavelmente mandara
retirar o aparelho de um traje arcônida. Por que não me
lembrara dessa possibilidade?
— Não adianta — gritou.
Os sons pareciam vir do lado da porta, mas era possível
que estivesse enganado. Neste recinto as ondas sonoras
sofriam numerosas interferências.
— Não adianta mesmo — enfatizou Rhodan. — Este
salão possui uma única porta, e meus homens estão de
guarda. Vim sozinho para provar que o poder que você quer
encarnar já não é o mesmo de mil anos atrás. Entregue-se,
arcônida!
Quase cheguei a trair-me. Rhodan principiara com uma
campanha psicológica. Provavelmente procurava colocar-
me outra vez na tela de seu localizador. Viera só porque
não havia outra possibilidade. Talvez um teleportador o
tivesse colocado diretamente diante da porta. Duvidava de
que seus homens se encontrassem do lado de fora. Rhodan
costumava lidar em pessoa com os assuntos difíceis.
Quanto mais esperava, maiores seriam suas chances de
bloquear o museu.
De repente, o achei odioso. Sempre fora a barreira que
se opunha ao curso das minhas ações.
O silêncio começava a tornar-se penoso. Meu instinto
dizia-me que o jogo devia irritá-lo. Conhecia as pessoas do
tipo de Rhodan. Deixam passar uma boa chance, apenas
para satisfazer a vaidade pessoal. Deveria ao menos ter-me
ferido com a lança quando ainda não tinha a menor ideia da
sua presença.
Estava procurando outro abrigo quando outro objeto
atravessou o ar com um chiado. Antes que esfacelasse as
tábuas do barco, reconheci a direção do voo. Devia
encontrar-se ao lado direito da porta.
Levantei o radiador de impulsos; mas preferi não atirar.
No último instante, lembrei-me dos efeitos devastadores
que um incêndio de grandes proporções causaria naquele
local. Talvez nem conseguisse sair do salão.
Hesitei. Rangi os dentes de raiva, baixei a arma e
procurei pegar a arma de choque, relativamente inofensiva.
Ao que parecia, Rhodan também sabia por que atirava
lanças.
Ouvi sua risadinha. Descobrira-me.
— Você está preso ao passado, não é? Seria uma pena
queimar todas estas coisas bonitas. Você está novamente na
minha tela, arcônida. Vejo-o atrás do barco dos vikings. Já
percebeu que poderia matá-lo com um tiro energético?
Perdi o autocontrole. A calma de Rhodan e o tom de
superioridade ao pronunciar aquelas palavras despertaram
em minha mente o orgulho desarrazoado e teimoso, que
sem o menor fundamento lógico exige uma autoafirmação.
Esse traço emocional, bastante pronunciado nos
arcônidas da minha linhagem, já me colocara várias vezes
em perigo de vida.
Saí de trás do meu abrigo, apenas para provar que
dispensava conscientemente a compaixão oferecida.
— Que gesto heroico! — disse a voz de meu inimigo
invisível. — Não faça tolices. Meus homens realmente
estão lá fora, e Wuriu Sengu o verá imediatamente, mesmo
que consiga chegar à porta.
Sabia que estava blefando. Não havia ninguém lá fora.
O orgulho vão e a vaidade ferida fizeram-me dar um
passo que, naquele momento, poderia parecer absurdo.
Acontece que vi nele minha última chance.
Nunca poderia acertá-lo, porque depois de cada
arremesso de lança mudava de posição. Devia fazê-lo
abandonar sua posição favorável antes da chegada dos
homens que poderiam ajudá-lo. Se resolvesse atirar, estaria
perdido. Confiei nos traços de seu caráter, que
provavelmente não lhe permitiriam atirar contra um homem
indefeso. No meu íntimo, declarei-lhe a guerra psicológica.
Com um baque surdo, minhas armas caíram ao chão.
Rhodan riu.
Depois lhe disse com uma ironia igual à que vinha
usando comigo:
— Pode atirar seu bárbaro de uma figa. Devo estar bem
visível. É uma pena que poucos dias atrás não puxei o
gatilho. Você estava na minha mira, depois que teve a ideia
idiota de destruir o helicóptero vermelho de Viesspahn.
Será que você realmente acreditava que não percebi suas
intenções? Encontrava-me a seu lado quando deu ordem
para revistar os destroços.
Desta vez fui eu quem riu. Ao que parecia, minhas
palavras roubaram-lhe a fala. De repente, o jogo me
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estimulava. Avancei mais um passo, desligando meu campo
de deflexão. Tornei-me visível.
Quando me abaixei para tirar a espada da mão de
plástico do boneco viking derrubado, só poderia fazer votos
de que Rhodan não tivesse um radiador de choques.
Dificilmente atiraria com o mortífero radiador energético.
Coloquei-o diante de um difícil problema de
consciência, calculando tranquila e minuciosamente os
diversos fatores e considerando suas fraquezas. Se tivesse a
imprudência de aceitar meu desafio...
Pesei a espada na mão direita, levantei-a e dirigi-me
lentamente à porta que ficava a menos de quarenta metros.
Rhodan continuava calado. Todos os sentimentos
pareciam ter morrido em minha mente. Meu sexto sentido
envolveu-me numa letargia dolorosa. Nem um único
impulso conseguiu romper o bloqueio.
Caminhei lentamente sobre o forro brilhante de plástico
que revestia o soalho. Meus sapatos rangiam. Afastava-me
cada vez mais das armas realmente eficientes que deixara
no chão.
Num escudo polido, percebi que meus lábios se haviam
contorcido num sorriso sarcástico. Transformara-me no
desafio em pessoa. Só mesmo um patife sem o menor
sentimento de decência atiraria contra mim de uma posição
absolutamente segura.
Quando alcancei o centro do salão, já sabia que ele não
tinha nenhuma arma de choque. Sem dúvida, refletia
febrilmente sobre o meio de colocar-me fora de ação.
Se seus homens se encontrassem do outro lado da porta,
não deixaria de chamá-los numa situação como essa.
Afinal, eu não estava mais invisível. Afinal, seu orgulho e
espírito humanitário não iriam ao ponto de dar uma boa
chance a um elemento perigoso como eu.
— Pare! — disse. — Se der mais um passo, serei
obrigado a matá-lo. Não pense que escapará depois de tanto
trabalho para descobri-lo. Arcônida cometeu um erro ao vir
a este museu. Meus psicólogos calcularam que este edifício
seria um local de permanência muito atraente para você.
Além disso, roubou a arma de um colono. Encontramos
suas impressões digitais no coldre, que evidentemente foi
examinado assim que o homem denunciou a perda.
As palavras foram sendo pronunciadas cada vez mais
apressadamente. Rhodan encontrava-se num beco sem
saída. Desconfiei de que a denúncia do furto da arma fora
dada com alguma demora. Talvez, antes disso, o colono
procurou descobrir pessoalmente a preciosa arma. Ninguém
saberia dizer quais foram as pessoas de quem chegou a
suspeitar.
— Foi uma ótima ideia, homem das cavernas. Depois
você veio imediatamente, não é?
Escutei minhas próprias palavras. Enquanto isso eu
caminhava tranquilamente em direção à porta. Estaria
percebendo minha tensão interna?
Será que sabia, ou ao menos imaginava que como
gladiador eu enfrentei na arena romana os homens mais
hábeis no manejo da espada?
Em caso afirmativo, nunca se deixaria levar a enfrentar-
me com esse tipo de arma. Até onde conseguira investigar
meu passado? Apenas até o tempo de Gustavo Adolfo?
Naquele tempo, já se lutava com outro tipo de espada. Será
que seu orgulho e autoconfiança seriam suficientemente
fortes para incutir-lhe a ideia de que estaria em condições
de bater-se comigo? Se já tivesse recebido lições de
esgrima, dificilmente deixaria de ter essa ideia, ainda mais
que eu tanto o provocava.
Qual teria sido o currículo de Rhodan? Será que naquele
tempo a esgrima constava do programa da academia
espacial? Não sabia, mas a conduta, que ele adotasse dali
em diante, me esclareceria a este respeito.
Quando me encontrava a vinte passos da porta, uma
lança germânica saiu do suporte. Mais adiante estavam
expostas armas alemãs.
Metade da lança desapareceu no campo de deflexão de
Rhodan. Apenas a ponta larga continuava visível. Foi
levantada. Estava assumindo a posição de arremesso.
— Pare! — advertiu em tom apressado. Sua voz
vibrava. Rhodan encontrava-se sob os efeitos do flagelo
psicológico. Esse homem não atiraria contra mim com uma
arma atômica, Meus cálculos foram corretos.
— Você sabe atirar, bárbaro — disse com um sorriso.
Depois arremessou para valer. Vi a ponta reluzente da
lança deslocar-se rapidamente para trás. Estava tomando
impulso. Quando o projétil cortou o ar, desviei- me com um
salto rápido. Minha gargalhada sarcástica acompanhou a
lança que acabara de errar o alvo.
Continuei a caminhar em direção à porta. Conforme
esperava, Rhodan tornou-se visível de um instante para
outro. Usava um uniforme simples. Com o corpo encurvado
e a pistola apontada para mim, mantinha-se junto à coleção
de armas germânicas. Seus olhos chamejavam. O problema
de consciência martirizava-o.
— Se fosse você já teria atirado bárbaro — disse em
tom tranquilo.
Um suspiro profundo e raivoso saiu de seu peito. A
arma de impulsos desapareceu no coldre. Com um
movimento rápido, pegou uma espada.
— Seu rebento arrogante do Império! — exclamou. —
Se você pensa que eu...
— Apenas penso que já teria atirado. Lamento não ter
usado suas costas como um alvo — interrompi-o com nova
menção do fato de ter poupado sua vida. Essa observação
arrasava-o moralmente, mas no estado de exaltação em que
se encontrava não descobriu a finalidade de minhas
palavras.
Dali a alguns segundos, vimo-nos frente a frente.
Estendeu a espada pesada para frente, à maneira dos
esgrimistas. Não se lembrou do fato de que, com um
instrumento pesado como este, não se devem fazer
brincadeiras dessa espécie.
Golpeava como se segurasse uma lâmina leve. Não
aguentaria mais que dois minutos: seu braço perderia a
força.
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Defendi-me sem maiores dificuldades, saltitando para o
lado. Depois de meu primeiro golpe, que lhe arranhou o
braço, percebeu que cometera um engano fatal.
Notei a rigidez de seu rosto. Investia contra mim sem
dizer uma palavra. A cena era igual à que se costuma ver
em filmes de terceira categoria. Defendia-me dos seus
golpes furiosos, até que consegui acertar um golpe contra
seu tornozelo direito.
No último instante, girei a espada. Assim, sua perna só
foi atingida pela parte larga da lâmina. Apesar disso, soltou
um grito e tombou ao chão. Antes que Rhodan conseguisse
reprimir os gemidos, a ponta de minha lâmina exercia uma
pressão sensível contra sua garganta. Com o pé, retirei o
radiador energético do coldre aberto.
Subitamente Rhodan calou-se. Seu rosto tornou-se
abatido; os cabelos desgrenhados cobriam sua testa.
Nossos olhos encontraram-se. Apertei mais um pouco.
— Então, seu barbarozinho — disse baixinho e sem
qualquer entonação. — Acho que você só sabe lidar com
canhões de radiação.
— Eu o odeio, arcônida! — disse.
Não se atrevia a mover um dedo.
— Foi o que o gladiador romano Marco Vinício me
disse quando sentiu a ponta de minha espada em sua
garganta. Vinício caíra no desagrado de Nero, por ter feito
algumas observações infelizes sobre o imperador divino.
Nero baixou o polegar. Quem será que deve dar o sinal no
presente caso? Como é que a gente pode cair numa destas?
É claro que seus comandos não estão por aqui.
Rhodan fechou os olhos e conteve a respiração.
Aumentei a pressão. Quando as primeiras gotas de sangue
afloraram-lhe no pescoço e suas mãos começaram a tremer
na angústia inconsciente da morte, retirei a arma.
Dei vazão ao meu nervosismo através de uma risada
estridente e histérica. Ainda estava rindo quando Rhodan já
se sentara e esfregava o tornozelo.
Não; eu não queria mais fugir. Não tinha forças! E
minha vitória sobre Rhodan confirmara tudo aquilo que já
sentira. Sabia que estava desperdiçando um tempo precioso.
De um instante para outro, poderia receber auxílio. Tivera a
intenção de levá-lo a envolver-se na luta para tornar-me
invisível e desaparecer.
Preferi não agir assim. Tudo se tornara muito absurdo.
Mesmo que conseguisse escapar, dali a poucos dias os
agentes do serviço de defesa de Vênus usariam centenas de
localizadores individuais. Nunca conseguiria entrar numa
nave espacial sem que ninguém o percebesse. Decerto, já
notara que minha fuga chegara a um beco sem saída. Tanta
coisa estava mudada.
Atirei a espada para o lado, abaixei-me e apalpei sua
perna. Rhodan ficou calado. Apenas seus lábios tremiam.
— Você deveria tirar uma radiografia, meu caro —
disse em tom tranquilo. — Tive que golpear para fazê-lo
cair. É possível que o osso esteja fraturado.
Depois disso ficamos sentados lado a lado, olhando-nos.
Passado algum tempo respondeu em voz baixa:
— Não gostaria de defrontar-me com você na época
áurea do Império, Atlan. Qual é a sua idade?
— Pouco mais de dez mil anos terranos — respondi
também em voz baixa. — O centro de computação de
Vênus foi construído sob minha direção.
Em seus olhos, surgiu um brilho no qual reconheci, num
acesso de alegria, uma expressão de respeito. Por que
tivemos a intenção de matar-nos?
— Ainda quer ir para casa? — perguntou.
Sacudi lentamente a cabeça. Não, já não queria ir para
casa. O que iria fazer no planeta Árcon?
— Não menti. O Grande Império se encontra numa
situação extremamente difícil. Ajude-me a substituir o
regente. Nós, os humanos, precisamos de gente como você.
Sorri sem dizer uma palavra. Esses bárbaros pequeninos
e tão ambiciosos sempre necessitaram do meu auxílio.
Senti a mão de Rhodan pousada no meu ombro. Ainda
se encontrava lá quando o rato gigante subitamente
materializou-se em meio à sala de armas antigas. Vi que o
“sujeitinho” segurava uma arma energética. Ao ver-nos
reunidos em atitude tão pacífica, sua boca abriu-se numa
careta de espanto. O cano da arma apontou para o chão.
— Olá — disse o rato gigante em voz estridente. — Isso
deve ser um espetáculo especial, não é?
— Fora! — ordenou Rhodan em tom tranquilo. — Saia
logo, senão ele voltará a atingi-lo com os raios paralisantes.
Chame alguns robôs enfermeiros. Acho que meu tornozelo
está fraturado. Não, nada disso. Quero que você dê o fora;
não quero que faça perguntas.
Fechei os olhos, apavorado, quando o ser extraterreno se
pôs a esbravejar. Rhodan escancarou a boca de tão
espantado que ficasse com o vocabulário de seu “estranho”
amigo.
— Ainda ajustaremos contas! — esbravejou o ser
peludo antes de desaparecer num salto de teleportação.
Apesar da dor, Rhodan soltou uma risada. Arrependi-me
de ter golpeado. Muito abatido, pedi desculpas.
— OK; esqueça-se disso — disse com um gesto de
desprezo. — Lá no espaço o inferno está às soltas. Receio
que não demorarão em desmascarar a história de minha
pretensa morte. Teria algumas tarefas para você, almirante.
Um sentimento estranho apossou-se de mim. Voltei
devagar a cabeça em sua direção.
— Você estaria disposto a confiar-me uma nave
espacial?
Confirmou com um gesto.
— Se necessário confio-lhe uma frota. Se você ama seu
povo, terá que fazer causa comum com os humanos. Que
diabo! Onde estarão os robôs enfermeiros?
Chegaram dali a poucos minutos e colocaram Rhodan
numa maca. Um oficial do serviço de defesa fez
continência. Já era meu conhecido. Tratava-se do general
Kosnow em pessoa.
Caminhei ereto entre os homens do comando terrano
que chegou momentos depois. O tenente Gmuna era um
deles. Ria com os olhos alegres.
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Dali em diante eles seriam dos meus, ou eu seria um
deles, conforme se quisesse.
Depois que Rhodan foi colocado no aparelho, também
entrei no grande helicóptero.
— Certa Marlis Gentner o espera na chefatura —
cochichou Gmuna.
— Chegou ontem e implorou para que tivéssemos
compaixão pelo senhor. Será que isso não poderia ser
evitado?
— Poderia meu filho — respondi em tom tranquilo. —
Acontece que, segundo me parece, uma pessoa de meu tipo
precisa de certo tipo de autoafirmação. Eu mesmo não sei
dizer exatamente do que se trata.
A máquina decolou. A meu lado estava deitado um
homem cujos lábios vez por outra se contorciam de dor.
Mas, quando ria, sua risada era franca e alegre. Afinal,
Perry Rhodan era mesmo uma criatura digna de minha
estima.
— Você deve ter muita coisa para contar — disse.
Respondi com um gesto pensativo. Poderia contar
histórias por anos a fio. Os milênios haviam proporcionado
o assunto.
Atlan já não representa perigo para a existência do Império Solar, pois o arcônida percebeu que
qualquer oposição aos planos de Rhodan seria insensata... Torna-se aliado de Perry.
No próximo livro da série, A Sombra do Supercrânio, surge um acontecimento com o qual
ninguém contava: os mutantes se revoltam.
181
Nº 55/56/57/58/59
De
Clark Darlton Kurt Mahr e Kurt Brand
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os
terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro
é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e
civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em
condições de enfrentar qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a
dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles
mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em
quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana. Porém as coisas
tornam-se complicadas quando dois deles fazem-se traidores...
A Sombra do Supercrânio – Volume 12
2º CICLO – ATLAN E ÁRCON
VOLUME 12
P-55 - 59