181
2º CICLO ATLAN E ÁRCON VOLUME 11 P-50 - 54

Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Aqui começa uma nova série de aventuras de Perry Rhodan. São passados 60 anos após a guerra atômica que não houve e 56 anos após a falsa destruição da Terra.Agora, o primeiro obstáculo que Rhodan tem pela frente é superar Atlan, o arcônida que, além de possuir o dom do sexto sentido, carrega o ativador celular...

Citation preview

Page 1: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

1º CICLO - A TERCEIRA POTÊNCIA

VOLUME 9

P-41 - 45

2º CICLO – ATLAN E ÁRCON

VOLUME 11

P-50 - 54

Page 2: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

2

Os Condenados de Isan

Volume 53

O Duelo

Volume 54

O Soro da Vida

Volume 51

O Pseudo

Volume 52

Atlan. O Solitário do Tempo

Volume 50

O Herdeiro do

Universo

O Herdeiro do

Universo

O Herdeiro do

Universo

O Herdeiro do

Universo

O Herdeiro do

Universo

Page 3: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

3

Atlan, O Solitário do Tempo

O Soro da Vida

O Pseudo

Os Condenados de Isan

O Duelo

2º Ciclo – Atlan e Árcon

Volume 10

Episódios: 50 - 54 de 50/99

O Herdeiro do

Universo

Page 4: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

4

Nº 50

De K. H. Scheer

Tradução

Richard Paul Neto Digitalização

Denise Bartolo Revisão e novo formato W.Q. Moraes

Aqui começa uma nova série de aventuras de Perry Rhodan. São passados 60

anos após a guerra atômica que não houve e 56 anos após a falsa destruição da

Terra.

Agora, o primeiro obstáculo que Rhodan tem pela frente é superar Atlan, o

arcônida que, além de possuir o dom do sexto sentido, carrega o ativador

celular...

Page 5: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

O sussurro tornou-se uma autêntica gargalhada.

Alguém dizia que uma besteira tão grande jamais havia

sido ouvida. Entrando na conversa uma voz

frágil de mulher, a gargalhada terminou de

repente.

— Com licença? — perguntou um

homem assustado. — Você está afirmando

que isto é apenas uma sombra da verdade?

Havia irritação na voz feminina. Depois

a gargalhada estrondosa continuou.

Somente podia ser Hiob. Ninguém ria tão

alto e por qualquer ninharia, como ele.

— Conversa fiada — disse outra voz,

mais objetiva.

— Alucinação, ou seja, lá o que for.

Devem ter sido obrigados a uma

aterrissagem forçada. Vocês sabem como

estas coisas acontecem por lá.

Ouviu-se novamente o gargalhar de

Hiob. Se ao menos conseguisse dominar um

pouco sua risada estrondosa e sem motivo!

Nunca o pude suportar, muito menos agora.

Era um tipo arredondado, de faces avermelhadas e olhos

frios. Se, no meu setor, acontecia alguma coisa errada,

Hiob Malvers estava certamente por trás dos bastidores.

— Silêncio — disse eu furioso. — Diabos de gente

calem a boca! Primeiro, é completamente indiferente para

nós se a aterrissagem foi voluntária ou não.

— Está certo — resmungou Billy Plichter. — Bom,

então comecemos tudo de novo. Como aconteceu, então,

Olavo? Como é que pode ter dado tudo errado? Que é que

há, então, Olavo? Por que o negócio não está certo,

Olavo... Olavo...!

O barulho aumentou. Tinha a impressão de que

campainhas minúsculas começaram a tocar ao mesmo

tempo dentro de minha cabeça. Escutava a minha resposta,

apesar de não estar falando.

Olavo era eu. Sem dúvida nenhuma era meu nome

que estavam gritando, constantemente, cada vez mais

alto. Sentia que a dor de cabeça aumentava. Billy

Plichter não tinha dó, não parava de insistir. E eu

precisava de descanso e merecia o descanso.

Alguém começou a falar e demorei um pouco a

compreender suas palavras. Vinham de minha própria

boca. Queria rir, mas a dor não deixava.

Ao meu lado houve um ruído. O movimento que

fizeram com minha coxa foi rápido. Um calor

agradável invadiu meu corpo e fiquei admirado de que

o médico me tivesse dado a injeção na presença de

outras pessoas.

Fiquei com vergonha. Ali na sala estava Willy

Fergusen. Como me poderiam dar uma injeção na

presença deles? Certamente, viram minha coxa!

Diante dos meus olhos, pairava uma neblina

afogueada e as dores no meu cérebro se transformaram

em pontadas dolorosas. Não estava quase aguentando.

Quando a minha visão ficou mais clara, percebi que

Willy Fergusen não poderia ter estado na sala. Hiob

estava rindo novamente, mas também

ele não estava na sala. Na minha frente

cintilava uma grande tela, bem clara.

Estava olhando admirado para o

belo quadro colorido. Meus

colaboradores conversavam sobre

coisas que me eram muito familiares,

estava no meio deles, e,

paradoxalmente, encontrava-me aqui!

A tela ficou mais nítida de repente.

Apareceu nela um relógio muito

moderno para medição dos anos e

alguém anunciou muito solenemente:

— O tempo acabou meu amo.

Quando foi que alguém me chamou

pela última vez de “meu amo”? Com

muito esforço consegui virar a cabeça.

— Como, por favor? — perguntei

com muita dificuldade.

— O tempo acabou meu amo.

Era a mesma voz que penetrava no meu ouvido,

desta vez, porém, com menos solenidade, mas com

mais vibração metálica.

O rosto plástico de Rico se contraiu em rugas.

Estava sorrindo. Levantei a cabeça em sua direção, até

encontrar seus olhos parados.

— Alô, é Rico.

— Sim, é Rico, meu amo. O tempo acabou, estava

obrigado a acordá-lo. Exatamente sessenta e nove anos,

meu amo.

Não estava gostando desta expressão cerimoniosa.

Não se devia permitir que robôs tão aperfeiçoados

assim, repetissem a toda hora uma expressão tão servil.

Mas o que havia com os tais sessenta e nove anos?

O pensamento sobre isso me deixou aturdido. Tudo

se encontrava como sempre foi. A consciência ia

chegando, porém com muita dor. Tentei me levantar.

Rico interveio imediatamente. Senti a rigidez do aço

5

Personagens principais deste episódio:

Perry Rhodan — Primeiro Administrador do Império Solar.

Atlan — Um arcônida que já se encontrava na Terra quando da quase deflagração da guerra atômica.

Tombe Gmuna — Jovem tenente de Terrânia. General Peter Kosnow —

Ministro da Defesa do Império Solar.

Page 6: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

6

sob o revestimento leve de plástico de sua mão.

Consegui sufocar meus gemidos, mas minhas

articulações pareciam enferrujadas. Acabei dando com

os olhos novamente no relógio de medição dos anos, na

tela.

— Somente sessenta e nove anos? Tinha regulado

pra setenta. Que houve então?

Rico era tão cabeçudo, como costumam ser todas as

máquinas.

— Somente sessenta e nove anos, meu amo —

disse imóvel. — Recebi o telecomando exatamente há

trinta e seis horas, três minutos e dezoito segundos.

Quer dizer então que desta vez levaram 36 horas

para me acordar do biossono, uma espécie de

hibernação letárgica.

“Muito tempo, muito tempo”, dizia meu cérebro.

Perguntei, então, a mim mesmo, por que um

pequeno erro de regulagem causou uma diferença de

tempo de um ano? Certamente foi minha culpa. O

negócio foi tão rápido naquela época, quando

começaram, lá em cima, com a loucura da bomba

atômica.

Surgiu uma unidade especial de som, que me

deixou muito espantado. O grande relógio desapareceu

da tela. O videotape havia realmente desempenhado

sua função, pois pessoas do meu tipo tinham

necessidade de impressões óticas e acústicas do tempo

imediatamente anterior ao começo do processo do

grande sono biomédico. Agora estava me lembrando de

que eu mesmo havia colocado no aparelho de som e

imagem a fita muito bem preparada do videotape.

O insistente gargalhar de Hiob me ajudou muito.

Talvez sem ele, não teria recuperado minha alegria.

Apareceu na minha frente a cabeça plástica e

redonda de Rico. Rico pertencia aos poucos robôs

fabricados especialmente para o controle e a

manutenção das máquinas da cúpula. Sua capacidade

de falar era um jogo positronicologístico com um setor

ultrarrápido de aproveitamento e conversão de dados

matemáticos em sons inteligíveis. Era um meio para

provocar os sentidos que paulatinamente iam

recuperando a vivacidade natural. Mas agora sentia

necessidade de falar, de me comunicar, mesmo que

fosse com uma máquina positrônica. Além do mais, o

vocabulário de Rico era mais ou menos reduzido.

À direita da cama, estava à ducha de ativação tele

controlada pelo computador central. O local parecia

uma sala de operação moderna, com a única diferença

de que ali não existiam médicos. Os estimulantes

bioquímicos que atuavam sobre minhas células, ou

eram injetados ou transmitidos na forma das mais

diversas radiações. Na minha cabeça, ainda estava a

touca cintilante do gerador de vibrações que me havia

transmitido aos sentidos as primeiras impressões.

Fiquei uma hora parado, pensando nos motivos que

me levaram a este sono profundo.

Exatamente há 69 anos, princípios de julho de

1971, os responsáveis pelos três blocos das grandes

potências perderam a cabeça. Quando começaram a

serem lançados da Ásia os primeiros mísseis atômicos,

ainda consegui fugir para minha cúpula submarina.

Escapei da estúpida e inútil destruição. O que

aconteceu, porém, com todos os homens dos

continentes da Terra? Só o fato de querer recordar o

terrível destino de bilhões de homens, fria e

objetivamente, era uma coisa insuportável. Neste

momento, eu apenas sabia que era o único homem na

Terra.

— Homem! — disse eu rindo.

Rico se aproximou. Quando a aparelhagem

mecânica da visão percebia alguma coisa, sua reação

era instantânea. Continuei sentado, sentindo as mãos

macias de plástico dos muitos braços da máquina de

massagem. A fisioterapia era indispensável para que eu

começasse a obter o controle sobre o corpo. Ainda

levaria umas horas para poder me levantar. Uma

corrente de ar comprimido jorrava dos poros da

espuma de borracha. O colchão no qual, pela posição

de meu corpo durante 69 anos, haviam surgido

pequenas deformações, voltou a ficar normal.

Nu, ainda completamente enfraquecido e abalado

por sentimentos confusos, fui levado por Rico para fora

do quarto. Na antecâmara, um ambiente alegre e

aconchegante, estava funcionando o órgão de cores.

Desenhos suaves e tranquilizantes inundavam as

paredes, enquanto que sons maviosos de velhas

composições penetravam em meus ouvidos.

Os poucos metros foram terrivelmente cansativos.

Gemendo, deixei-me cair nas almofadas macias da

poltrona vibratória, que continuava de uma maneira

muito mais suave, a massagem pesada feita pelas mãos

do robô.

Rico ministrou-me os primeiros alimentos líquidos.

Meu estômago ainda não aceitava substâncias sólidas.

De qualquer maneira, ainda eram necessários três ou

quatro dias para me sentir mais ou menos bem.

Rico puxou mais para perto o grande espelho

colorido e ajeitou a cama. Eu não havia emagrecido

sinal de que meu corpo reagira muito bem à

hibernação. Fiz um sinal com a mão e vi como ele

empurrou o espelho para uma cavidade na parede. Aí,

o robô ficou ao meu lado. O rosto de Rico seria muito

mais humano se não fosse aquela palidez que parecia

cera.

— Amigo, não sei o que poderia dar em troca, se,

em lugar de você, estivesse aqui um ser humano de

verdade. Como vão as coisas lá em cima?

— Muita água, meu amo — respondeu meu criado

particular diplomaticamente.

Fiquei observando-o mais a fundo. Sua resposta

teria sido um truque psicológico para dar vazão a

sentimentos de ira reprimidos ou ele não sabia mesmo

Page 7: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

7

outra coisa?

— Naturalmente muita água. Estamos no fundo do

Oceano Atlântico, ao sul da ilha açoriana São Miguel.

Aqui começam as célebres fossas oceânicas de uma

profundidade enorme. Portanto, acima de nós, há

somente água. No entanto, eu quero saber como está o

continente europeu. Como é que terminou a guerra

atômica na França e na Espanha.

— Não sei meu amo.

O sangue me subiu então à cabeça. O sorriso

plástico, submisso, de Rico me pareceu de repente

como uma máscara de escárnio.

— Como assim? — exclamei em tom interrogativo.

Minhas cordas vocais começaram a funcionar

corretamente. — Por que razão não se realizou a

observação da superfície que eu determinei?

— Por culpa sua, meu amo. Todas as três estações

de televisão foram destruídas pelos aviões. Fomos

informados ainda de que o lançamento dos satélites

seria inútil e sem sentido, pois a atmosfera do planeta

estava coalhada de máquinas de guerra. Recebemos

realmente suas ordens.

Decepção, medo e cólera contra minha própria

imprevidência se abateram contra mim. Naturalmente

os robôs não poderiam ter agido de outra forma, depois

que eu, apressado e estúpido, havia dado as instruções

para observação dos continentes mais importantes.

Após o plano a minha intenção era despertar, ficar a

par de tudo o que acontecera durante a guerra.

Agora estava completamente aéreo, separado de

tudo. Não era apenas o ente mais solitário da Terra,

mas também o mais ignorante. Acima da abóbada de

aço da minha cúpula pressurizada nas profundezas do

Atlântico, pesava uma tremenda muralha de água. É

claro que esta muralha me havia preservado das

radiações mortíferas dos inúmeros reatores nucleares,

mas isto não me adiantou nada.

Uma ânsia premente de ao menos uma palavra

saída de boca humana me avassalou de tal maneira

que comecei a me sentir mal.

Levantei-me gemendo e vi, sem querer, as

horríveis cicatrizes da operação, espalhadas por todos

os cantos do ventre. Não podia fazer mais nada contra

isso, principalmente pelo fato de que perguntas

curiosas me teriam sido mais do que desagradáveis.

Além disso, onde estaria o médico para corrigir os

encaroçamentos e rugas da horrível intervenção

cirúrgica? Certamente não existiria mais em toda a

Terra nenhum cirurgião à altura. A catástrofe atômica

se abatera sobre a humanidade há 69 anos. Os

médicos recém-formados na época, já deviam ter

morrido há tempo, mesmo na hipótese de haverem

sobrevivido, por circunstâncias milagrosas, à

hecatombe geral, que foi a destruição do mundo.

— Minhas roupas — disse eu ao robô.

— Quais? Meu amo.

— As últimas que estava usando antes de

hibernação.

— O senhor ainda está muito fraco, meu amo.

Agora é que começa a segunda fase da convalescença.

Tinha que ficar resignado. Não se pode fazer nada

contra as conclusões lógicas de uma máquina tão

preciosa e perfeita.

Com a ajuda de Rico, meus dedos atingiram as

teclas do painel de controle e eu passei para uma

confortável cadeira giratória. Ponto por ponto, fui

percorrendo todas as fases da convalescença

programada. Surgiam na grande tela as diversas seções

de minha cúpula de aço à prova de bombas, pousada no

fundo do mar. Aqui embaixo não se notou nada da

guerra atômica. O fornecimento de energia foi sempre

motivo de muita preocupação. Os reatores II e III

estavam desligados e o I funcionava com apenas 20 por

cento de sua força total.

Liguei a câmara de observação submarina. Os

sensores infravermelhos, montados fora da cúpula

mostravam uma imagem clara e penetrante de minha

habitação no fundo do mar. Diante da escotilha de

saída do lado sul, havia se amontoado uma grande

quantidade de lodo. A abertura de cima, porém, estava

normal. Fiz com que o reator I funcionasse com a

velocidade total, para armazenar a energia suficiente

para a projeção.

Pela primeira vez em 69 anos, as grandes máquinas

estavam funcionando. Muito abaixo de meus pés, o

ruído era tremendo. O ronco surdo me penetrava nos

nervos. Lá fora, enorme quantidade de lodo estava se

desprendendo da carcaça.

Um jato

concentrado de uma

pressão de quarenta

mil toneladas por

metro cúbico resolveu

a questão. Em poucos

minutos, a escotilha

sul estava livre de

qualquer sujeira.

Em seguida,

procurei entrar em

contato com meu

satélite de

televisionamento,

através do rádio. O

corpo esférico de

apenas dois metros de

diâmetro, antes do

início da guerra

atômica, estava em

órbita de duas horas

em torno da Terra. As

7

Page 8: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

8

instalações eram tão perfeitas que permitiam

ampliações muito nítidas. Qualquer objeto do tamanho

do corpo humano podia ser visto com clareza. Mas não

consegui ligação nenhuma. O minicomputador

embutido no satélite não se manifestou.

— O TEK-1 foi lançado naquela época, meu amo

— explicou Rico objetivamente. — Isto foi cerca de

uns dois dias depois do início de sua hibernação. Um

caça da defesa espacial soviética tomou nosso satélite

como se fosse de origem americana.

Ouvia tudo sem dizer uma palavra. Fazia censuras a

mim mesmo. Realmente cometi muitos erros quando,

com medo louco de morrer, me escondi afobadamente

nas profundezas do Atlântico.

Estava também separado da superfície. Informei-

me no computador central sobre o estado de coisa em

volta de mim. Se os continentes estavam contaminados

pela radioatividade, então era muito natural que

também as correntes marítimas contivessem partículas

nocivas.

— Nenhum perigo nas imediações contíguas com a

cúpula — constatou o cérebro positrônico de minha

residência submarina. Os hipersensores, no entanto,

acusam grande fonte de radiação na fossa do

arquipélago de Açores. O valor oscila, conforme a

profundidade, entre seis e meio e trinta e cinco

miliroentgen. Fim.

Suspirei abatido. Trinta e cinco miliroentgen era

extremamente perigoso, pois encontrava-me a uma

profundidade de 285 metros abaixo da superfície do

mar.

Procurei fazer um quadro comparativo da

intensidade de radiação entre o mar e a terra firme. Se

lá embaixo já havia trinta e cinco miliroentgen, então

mais para cima a coisa devia ser assustadora.

Que tipo de isótopos radioativos devem ter sidos

empregados? Conforme meus cálculos, a duração

média do tempo de validade da maioria dos isótopos

era tão curta, que não se podia mais contar com o poder

de radiação após 69 anos.

Depois de ter examinado todas as instalações de

minha cúpula, cheguei à conclusão de que devia subir à

tona o mais depressa possível. Quem sabe ainda

poderia ajudar muitos sobreviventes com alimentos e

remédios? Encontrava-me com bastantes provisões.

Poderia alimentar vestir e instruir pelo menos mil

pessoas. Em certo sentido, eu poderia dar à

Humanidade uma nova possibilidade de ressurgimento.

Tratava-se apenas de saber até que ponto a radiação

nociva havia atingido os sobreviventes. Talvez tivesse

havido mesmo grandes alterações, físicas ou psíquicas.

Com a cabeça cheia de preocupações, saí do setor

de controle da minha cúpula de aço. Uma coisa estava

certa, tinha que voltar à tona o mais depressa possível,

para ver o que tinha acontecido aos homens.

“Socorrer”! — Ecoava no meu cérebro. Estava

pensando agora nos meus amigos e conhecidos.

Mesmo Hiob Malvers estava entre eles, apesar de me

ter deixado muitas vezes irritado. Apesar de tudo, eu

tinha saudade de sua gargalhada estridente!

A composição das coisas necessárias para meu

abrigo submarino foi questão de simples cálculo

matemático ou de bom senso. Num local

completamente ermo não há necessidade nem de armas

especiais de ataque nem de meios sofisticados de

defesa.

No entanto, fiz tudo para ter uma proteção eficiente

contra a radioatividade e carreguei ao máximo o reator

do meu uniforme de mergulho. O ativador oval estava

pendurado na altura do peito nu. Além disso, estava

com o traje pesado e incômodo de proteção contra

radiações, com o qual esperava poder vencer a pesada

camada de água. Minha única arma de defesa era o

inofensivo raio psicológico, cujo efeito hipno sugestivo

era mais do que suficiente para demover qualquer

adversário de suas intenções. Mais do que isto, não era

necessário.

Na mochila do uniforme de elevada pressurização,

carregava alimentos concentrados e medicamentos

especiais para neutralização da radiação. Em caso de

necessidade, eu teria que trazer para minha cúpula

submarina os sobreviventes em estado grave, vítimas

desta guerra maluca. Certamente, não poderia tratá-los

convenientemente na superfície. Afinal de contas, não

faria mal a ninguém deixar entrar em meu abrigo

àqueles pobres coitados, mutilados ou abobalhados

descendentes da geração da guerra. Certamente não me

poderiam causar nenhum dano.

Fazia cinco dias que havia sido despertado pelo

robô. Estava bem melhor e já podia tentar a subida para

a tona. E examinei o funcionamento de todo o material.

O dispositivo antigravitacional funcionava

normalmente. Com a maior facilidade, levantei-me do

chão da cúpula.

Rico, com seus olhos mecânicos, frios,

11

Page 9: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

9

acompanhava o que eu estava fazendo. Na grande tela,

ainda se liam as notícias e as imagens, que há 69 anos

eram coisas atuais.

Antes de deixar a cúpula, dirigi-me pela última vez

para a grande tela. Li com pesar as notícias de um

jornal americano, segundo o qual havia chegado à Lua

o primeiro aparelho tripulado. O comandante da

operação foi um tal de Perry Rhodan, major e piloto de

provas da Força Espacial Americana.

Antes de este homem ter partido para a Lua, eu o

examinei atentamente. Minha impressão foi a melhor

possível. Apenas, naquela ocasião — isto foi a 15 de

julho de 1971 — não podia imaginar que exatamente

este major da Força Espacial Americana, haveria de

provocar, ao menos indiretamente, a guerra atômica.

Sei apenas que havia encontrado na Lua uma

substância extremamente preciosa para os grandes

grupos políticos da Terra. Rhodan se recusara a

entregar o achado. Foi com sua nave lunar para o

deserto de Gobi e aí começou tudo.

As últimas notícias falavam de envoltórios

energéticos que Rhodan havia inventado para sua nave

lunar. Pelo desenrolar precipitado dos acontecimentos,

não tive mais oportunidade de constatar a veracidade

das notícias, em parte sensacionais, dos jornais e da

televisão.

Depois de uma rápida fuga do meu laboratório para

construção de naves espaciais com propulsão atômica,

ainda antes de entrar para a cúpula submarina, já

haviam partido da Ásia os primeiros mísseis bélicos.

Os nervos dos homens não aguentaram e

instintivamente veio o golpe de morte: apertar o botão

das armas nucleares. Todas as nações pensavam que

Rhodan teria uma importância decisiva no

desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Todos

se sentiam prejudicados e todos desconfiavam de

Rhodan. Assim se chegou a uma guerra, que nada foi

capaz de evitar.

Para escapar destas explosões, desci para as

profundezas do mar. E agora estava diante da tela,

tentando arranjar uma explicação lógica para minha

hesitação. Adiava minha saída do mar, embora meu

instinto me dissesse que eu tinha de dar uma olhada lá

fora. Atrás de mim, soou a cigarra. Poderia ir.

O último olhar foi para uma foto feita por

teleobjetiva. Talvez tirada de uma nave espacial. Em

meio à areia escaldante do deserto de Gobi, repousava

um corpo brilhante, recoberto por um clarão

fosforescente.

Olhava muito para aquela fotografia, tinha algo de

misterioso. Pelo menos, para os meus conceitos, era

inexplicável como um foguete primitivo daquele tipo,

de combustível líquido, tinha de permanecer protegido

por um envoltório energético.

Interrompi os pensamentos, pois não tinha mais

sentido quebrar a cabeça por coisas tão afastadas no

tempo. A Humanidade tinha cavado sua própria

sepultura. O próprio major Perry Rhodan, que, sem o

desejar, tinha botado lenha na fogueira, já devia estar

morto há muito tempo. Naquela época, tinha mais ou

menos 30 anos.

A tela apagou. Dei ainda algumas instruções para

outras programações e me dirigi para a escotilha

corrediça.

Rico não deu mais uma palavra. Estava sozinho na

parte inferior da cúpula. Quem sabe também estaria

sozinho lá em cima, fora d’água? Liguei o campo

magnético de meu traje de proteção, esperando até que

o dispositivo de sincronização desse o sinal verde de

compensação de pressão e depois ligasse,

automaticamente, os registros da água.

Das fendas do chão da câmara, a água se projetou

espumante, sob alta pressão. Em questão de segundos,

a comporta estava cheia. Cessou o ruído esfuziante do

ar expulso pela forte entrada da água. Cessou também a

correnteza e o redemoinho que me lançaram de

encontro à parede da câmara, apesar do meu esforço

em ficar onde estava. Aliás, aquela câmara fora

planejada somente para saída de emergência. Meu

envoltório de proteção funcionava muito bem. Podia

me mover com facilidade e segurança dentro da

cápsula cilíndrica, cuja reserva de ar seria suficiente

para o trajeto até em cima.

Regulei meu dispositivo de gravitação no máximo,

pois em virtude do impulso natural, fui lançado de

encontro ao teto da comporta. Só depois de alguns

minutos de uma regulagem mais calma, fiquei em bom

equilíbrio. Sem nenhum ruído, a porta externa se abriu.

Diante de mim estava o insondável fundo do mar, com

seus misteriosos seres vivos.

Saí com cautela. Já que meu envoltório de proteção

não era flexível, e sim rígido, seria impossível tentar

nadar. Caminhava num trecho de chão macio, onde

tinha que vencer apenas a resistência da água.

A luz infravermelha do meu capacete estava acesa.

Por meio de óculos especiais, tinha uma boa visão que

alcançava uns cem metros, como se lá embaixo

também houvesse a luz do sol. Ainda renunciando ao

transporte automático, atingi o planalto de uma grande

rocha. Atrás de mim ainda se via a meia esfera de

minha cúpula de aço, já mergulhando na escuridão.

Era um silêncio de rebentar os nervos. Com certeza,

nunca houve homem em situação de tão completa

solidão, como eu. Sessenta e nove anos sozinho.

A menos de 200 metros da câmara d’água,

começava a grande fossa oceânica. Cheguei até sua

beira e inclinei a cabeça para frente, fazendo com que a

lanterna do capacete a iluminasse. Curioso, um peixe

fosforescente chegou bem perto. Já sabia há muito

tempo que a luz infravermelha era estimulante para

muitos animais. Foi interessante ver quando seres vivos

das formas mais esquisitas começaram a dançar, como

Page 10: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

10

que inebriados pela luz infravermelha. Tudo no maior

silêncio. Silêncio este que agora passava de angustiante

para alegre e colorido. Quem sabe era minha

peculiaridade reagir desta forma, bem diferente da

maioria dos homens?

— Alô, caro amigo! — disse-lhe eu.

Ouvi minhas próprias palavras e botei na cabeça

que o peixe me tinha compreendido. Começou a se

balançar até que chegou a dar impressão de estar

dançando. Por fim, tive que afastá-lo com um

movimento rápido da mão, pois estava se aproximando

demais do meu envoltório energético e eu não podia

matá-lo. Num planeta destruído, nada era mais sagrado

e precioso do que os últimos sinais de vida. Este

pensamento me arrancou do grande abatimento.

Consultei os instrumentos. Estava tudo em ordem.

Não havia nenhum indício de radioatividade. Talvez

fossem apenas os sensores da cúpula que a podiam

descobrir.

Liguei o circuito de turbulência, aumentei em

0,025% o campo de gravitação e assim comecei a

subir. Passei com facilidade por sobre a garganta da

tremenda fossa. Sabia que meu corpo dava a impressão

de um cilindro brilhante de alta intensidade. Os peixes

se reuniam cada vez mais em torno de mim. Flutuei

umas milhas para o norte, até encontrar o rochedo que

subia íngreme. Era à base da ilha dos Açores. Daí em

diante começou a subir a cinco metros por segundo.

Outros peixes vieram. De vez em quando, meu

refletor dava com pontas de rocha saliente. As

primeiras plantas das regiões mais fundas foram

aparecendo. Eram espécies desconhecidas da ciência.

Os homens penetrando no espaço, sem conhecer bem

os mistérios do próprio planeta.

Era tudo tão lindo, que estava sorrindo feliz, até que

me veio à cabeça de novo a lembrança da catástrofe

atômica, desaparecendo então o sorriso de meus lábios.

Neste momento, a instalação de alarme do meu

pequeno rastreador começou a soar. Sentia os impulsos

que vinham de encontro ao envoltório de proteção.

Este os acusava com exatidão devido a sua estabilidade

estrutural. Nos primeiros instantes, estava escutando

um pouco assustado o zumbido que vinha da instalação

de alarme, cada vez mais forte. Cheguei até a pensar

em monstros do fundo do mar que têm a faculdade de

descobrir suas vítimas por meio de ondas ultrassonoras.

Era um recurso que a natureza dava a estes gigantes

das trevas submarinas para encontrarem alimento.

Fiquei de espreita, preparado para o que desse e

viesse. Aos poucos, cheguei à conclusão de que este

zumbido jamais poderia vir de um peixe. Depois de

algum tempo, não precisava mais da instalação de

alarme. Os impulsos emitidos por um instrumento de

orientação submarina de alta frequência é que estava

causando o tal ruído agudo.

Por algum tempo, fiquei como que petrificado.

Estava acontecendo algo de incrível. Uma coisa que já

não devia existir mais. O setor de recordações do meu

subconsciente se manifestava. Gente como eu, jamais

esquece estas coisas. Numa evidência berrante,

lembrei-me de uma coisa que até então não me viera à

cabeça.

“Submarinos atômicos, sobreviventes! Cuidado!”

— foi o que pensei.

De maneira completamente irracional, comecei a

nadar com movimento descoordenado de pés e mãos.

Meu frágil circuito de turbulência submarina me

proporcionava uma velocidade de, no máximo, dez

milhas por hora. Era suficiente para um avanço normal

e agradável, nunca, porém para escapar de submarinos

de propulsão nuclear.

Gotas de suor escorriam pela minha face, sinal de

que meus sentidos estavam exaltados. Os impulsos

recebidos estavam cada vez mais intensos. Antes de

conseguir chegar à fenda mais próxima da rocha, fui

atingido por refletores ofuscantes. Ouvia-se o ronco

cavernoso de um forte motor. A partir daí, cheguei à

conclusão de que meus meios de defesa eram ridículos.

Interrompi os movimentos de natação e fiquei

olhando para o foco de luz intensa Talvez julgassem

que eu fosse um animal aquático. Aliás, não podiam

pensar de outro jeito, pois, fora de mim, não havia

ninguém na Terra que possuísse um traje com proteção

contra radioatividade.

Meu cérebro trabalhava com muita lógica. Lutar

seria mera loucura, ainda mais que eu não tinha nada

para atacar este peixe de aço. Também estaria fora de

meus interesses ferir de qualquer maneira os

sobreviventes da guerra nuclear. O que me interessava,

realmente, era chegar são e salvo no interior do

submarino.

Reduzi a velocidade, sabendo muito bem que, na

melhor das hipóteses, meu corpo seria tomado como

uma sombra. A carcaça do meu cilindro tinha um

brilho muito forte para permitir uma visão suficiente do

interior.

Meu sistema nervoso até que estava em ordem. Não

sentia medo. O ronco do motor se tornava cada vez

mais forte. Daí a uns segundos começaria a dançar na

frente da luz como os peixes atraídos pela claridade.

Esperava, porém, que ninguém atirasse um arpão de

pesca submarina contra o meu envoltório de proteção.

Ainda sabia muito bem como era a pesca submarina

antes da guerra. Fortes descargas elétricas seriam

funestas para a estabilidade do envoltório de proteção.

Estavam me perseguindo, não havia dúvida. Uma

vez ou outra, podia perceber os contornos de um

pequeno submarino de águas profundas. Isto se dava

quando conseguia fugir do refletor. Quando notei que

estava próximo de uma caverna estreita e funda, já era

tarde. Não se pode provocar um pescador, nem torná-lo

desconfiado. Pode-se enganá-lo, mas não

Page 11: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

11

grosseiramente, como eu estava fazendo de modo

inconsciente. Talvez pensassem que eu iria desaparecer

imediatamente naquela caverna escura.

Ouviu-se um silvo curto e agudo.

“Tiro de ar comprimido”, gritou-me meu sexto

sentido. Fiquei parado, imóvel, à espera do choque.

Não teria nenhum sentido procurar escapar de um tiro

teledirigido.

Um fantasma flamejante veio certeiro ao meu

encontro. Atingiu-me em cheio, exatamente depois de

dois segundos e meio. Vi a ponta de contato do arpão

de alta voltagem penetrar no meu envoltório e explodir.

Um clarão de grande intensidade envolveu-me todo.

No microrreator de minha mochila, começou o

zumbido de alarme e a lâmpada vermelha de

emergência do meu pulso direito começou a brilhar.

Sobrecarga no circuito. Choques elétricos bem

doloridos açoitavam-me o corpo. Curvei-me todo de

dor, tentando desesperadamente ficar livre da câimbra

nervosa.

Com o resto de força que me sobrou, apertei o

botão para ligar o circuito de rádio dentro d’água, e

com voz interrompida tentei falar no microfone preso

no pescoço:

— Parem com essa loucura. Eu me rendo sem

resistência.

Certamente o receptor deles estava em outra

frequência. Quem poderia saber a quanto tempo estes

homens estariam neste submarino, com o qual talvez

teriam escapado da guerra nuclear?

Um segundo torpedo de alta voltagem atingiu-me

novamente. Novas descargas e choques me arquearam

novamente o corpo dolorido. O envoltório de proteção

não existia mais. Não resistiu ao segundo impacto,

maior que o primeiro.

Uma escuridão total me envolveu e para os meus

ouvidos havia um bramido como se fossem águas a

rolarem de uma cascata.

“Cascatas, nas profundezas do mar? Ridículo.”

Foi um impulso do subconsciente que penetrou no

meu cérebro já entorpecido. Claro que no meio do mar

não podia haver queda d’água.

Parecia o ciciar do vento no cordame de um barco à

vela. Antes de minha fuga para as profundezas do

oceano, gostava muito de enfrentar as forças da

natureza. Mas desta vez, não estava a bordo de um

barco à vela, para ficar apreciando o movimento das

nuvens Era diferente, muito diferente.

Eram quatro ou cinco. O que julgava ser o ciciar do

vento, não era outra coisa senão palavras pronunciadas

depressa e em voz alta.

Julgavam que estivesse ainda desacordado e eu

fazia questão de que continuassem com esta impressão.

Assim, percebi pela conversa deles que me julgaram

realmente um peixe desconhecido, das profundezas do

oceano, com uma fosforescência nunca vista. Atiraram

contra mim arpões de pesca e no momento do

rompimento do envoltório de proteção puxaram-me por

raios de tração para a escotilha de pesca do submarino.

Foi minha sorte, ou minha desgraça.

Num piscar de olhos, percebi que estava numa

grande sala, sobre uma mesa. Talvez fosse um

laboratório, onde os seres das profundezas do mar eram

estudados.

Falavam inglês. Mas o assunto de sua conversa me

deixava confuso. O setor especial de lógica do meu

cérebro me dizia com toda insistência que os

sobreviventes de uma guerra nuclear deviam se

preocupar com outras coisas. Não deveriam mergulhar

com um submarino especial nas profundezas do

Atlântico, perto dos Açores, para ali curtirem as

aventuras de uma pesca numa das maiores fossas do

mar.

Se tivessem falado que esta pesca era para o

sustento de suas vidas ou para a alimentação do povo,

eu teria compreendido. Mas só por divertimento...

Estava deitado, completamente imóvel, quando

dedos macios começaram a apalpar meu rosto e a nuca.

Uma voz masculina, de timbre grosso, disse irritada:

— Que droga! Não há sinal nenhum de brânquias.

Não é apenas um animal de respiração pulmonar, mas

simplesmente um homem.

— Cubra-o — disse o outro. — Dora está chegando

4

Page 12: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

12

aí.

Puxaram um cobertor de lã para cobrir minha

nudez. Sentia cócegas na pele banhada de suor e tive

que fazer um esforço muito grande para não retirar a

coberta de cima do estômago. Desde a última operação,

esta parte do corpo me era muito sensível.

— Ele já está acordado? — disse uma mulher,

demasiadamente alta.

Um hálito quente atingiu meu rosto. O perfume de

um cabelo bem tratado penetrou em minhas narinas.

Daí em diante, comecei a pensar que o negócio da

guerra nuclear não poderia ter sido tão sério assim,

como eu havia imaginado o tempo todo. Se já estavam

fabricando perfumes tão caros assim...

— Um jovem de classe, hein! — disse alguém em

tom de zombaria. — Pelo menos uns oitenta e oito

anos, figura de atleta, nenhuma grama de gordura a

mais, cabeleira loura, como um deus nórdico.

Outros dois homens davam gargalhadas. No meu

íntimo, estava começando a me envergonhar.

Certamente era gente que não ligava muita importância

à boa educação e às boas maneiras. Estavam me

tratando como um animal precioso, sobre o qual

podiam dizer a bobagem que quisessem.

Já estava com vontade de me levantar, quando

aconteceu o que eu esperava instintivamente. Um

homem, que chamaram de doutor, penetrou na sala.

Cumprimentou mui educadamente, mais ou menos

como um jovem recém-formado em medicina

cumprimenta pessoas ricas e muito influentes.

— Ah! O senhor trouxe as radiografias? —

perguntou o homem de voz grossa.

— Claro, meu senhor. Aliás, muito esquisitas, devo

dizer.

— É um homem-peixe ou não? — perguntou a

mulher impaciente.

— De maneira alguma, minha senhora, mas

também não é homem. Gostaria de mostrar-lhes as

radiografias.

— Passe para cá, logo — exclamou alguém

deseducadamente.

— Que diabo! Que é isto? Não tem costelas?

Senti que todos se afastaram de mim, receosos.

— Deixe o revólver na cintura, por favor — disse a

mulher. — Não pode ser tão perigoso assim. É

maravilhoso. O senhor pode acordá-lo, doutor?

— Dificilmente, em poucas horas, minha senhora.

Recebeu choques fortes demais.

A mão de alguém tirou a coberta de meu peito.

Devia ser o médico.

— Olhe aqui a cicatriz, minha senhora.

— Horrível — disse ela. — Eu sempre me

interessei muito pela medicina. Quem foi o

“remendão” que fez isso?

— Não tenho ideia, minha senhora Trata-se

aparentemente de operação do estômago.

— Como aparentemente? — insistiu o homem de

voz grossa. — O senhor é médico ou não? Deve,

portanto saber se houve ou não operação no estômago.

O médico estava em apuros. E era para ficar, pois o

pessoal era mesmo sem educação.

— Senhor, com esta estrutura especial do esqueleto,

não se pode fazer uma afirmação categórica. A caixa

torácica toda se compõe de chapas de osso contínuas e

extremamente estáveis. Este... ah... este homem deve

ser levado imediatamente para uma grande clínica.

Minhas possibilidades são limitadas.

— Quem? As possibilidades ou o senhor? —

zombeteou o de voz grossa.

— Meu amigo, eu vou lhe dizer uma coisa. Se isto

não é nem um monstro, nem um ser humano, então o

negócio é muito sério. Seu aparecimento torna-se mais

do que esquisito.

— Foi com envoltório energético, eu já disse.

— É também minha opinião, John. Já lidei muito

com campos energéticos. Parece mesmo que o sujeito

não nasceu na Terra. Extremamente se assemelha

muito conosco. Por dentro é muito diferente. Isto é um

caso para o Departamento de Defesa Aérea. Sabe Deus

o que nós acabamos de encontrar. Passe um rádio para

o Ministério da Segurança, em Terrânia. Em caso de

necessidade, a Administração também deve ser

avisada. Eu quero ficar fora deste caso.

— Mas, papai — disse a mulher aborrecida. —

Talvez seja um animal raro das profundezas do mar.

Imagine o que vai...

— Bobagem — interrompeu o homem. — Que

animal das profundezas o quê! Você vai fazer o que eu

achar melhor. O sujeito será levado para o

Departamento de Defesa Aérea. Capitão; interrompo

aqui a excursão. Suba à tona e providencie o rádio para

Terrânia. Devem mandar um aparelho bem rápido.

Com isso acaba para mim todo o prazer do esporte

submarino.

Continuaram discutindo, sem suspeitarem de que eu

estava ouvindo cada palavra. A comichão foi se

tornando insuportável na região das cicatrizes do

estômago. Tinha vontade de coçar com todos os dedos.

Além disso, a situação estava ficando perigosa para

mim. O homem de voz grossa parecia não somente o

chefe de todo o submarino, mas principalmente um

homem enérgico.

Devagar comecei a coordenar os pensamentos.

Examinei os dados que havia anotado nesta longa

conversa. Minha capacidade de raciocinar se recusava

a aceitar o incrível. Meu cérebro parecia estar em

greve. Sentia grande dificuldade para tirar a conclusão

mais simples deste mundo.

Tudo dava a entender que lá em cima não tinha

havido nenhuma guerra nuclear. Falou-se de uma

Defesa Aérea, portanto deviam existir também naves

espaciais.

Page 13: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

13

Se era possível se dirigir a um Ministério da

Segurança e solicitar um aparelho veloz, então tudo

isso não significava outra coisa senão o fato de eu estar

caindo num erro muito grande. Mas que tipo de erro?

Tinha plena certeza de que, no momento de minha

fuga, haviam sido lançados da Ásia os primeiros

mísseis nucleares.

Será que este major da Força Aérea Americana teve

alguma participação em tudo isso? De qualquer

maneira, devia ter descoberto, em sua aterrissagem na

Lua, coisas importantes, que eu desconhecia

totalmente.

“Perdeu 69 anos dormindo inutilmente, seu burro”,

é o que me dizia meu sexto sentido.

Comecei então a pensar que talvez tivesse sido

destruída apenas uma parte da Terra. O fato de o

pessoal a bordo não ter falado nada a respeito, devia

ser pelos longos anos já decorridos. Mas ainda assim,

saía de minha cabeça um mau pressentimento: as

cicatrizes de uma guerra nuclear não desaparecem

totalmente em 69 anos.

Continuei a ouvir a conversa. Tudo que falavam era

a meu respeito. Pude saber então tudo que aconteceu.

— Vamos botar um ponto final em tudo isto —

disse o chefe um pouco zangado. — Tenho bom faro

para estas coisas. O Império Solar não pode permitir a

presença de estranhos no planeta principal e este —

senti um dedo bater no meu peito — e este sujeito não

é daqui. Vá para a superfície, capitão. E você, John,

está armado?

— Tenho um revólver antigo — disse alguém

hesitando.

— É suficiente. Fique de guarda no laboratório de

pesca e vigie os movimentos do rapaz. Ou você está

com medo?

O homem de nome John confirmou muito afobado

que não tinha medo nenhum. A mulher deu uma

gargalhada estridente. Parecia histérica.

Muitos homens deixavam a sala. Ouvi um ruído

metálico e em seguida um homem que praguejava em

voz baixa. Depois foi o estalo de um cilindro de

revólver. Aparentemente, tinha puxado para fora o

tambor para saber se a arma estava carregada.

— Por quanto tempo ainda ficará inconsciente? —

perguntou John, gritando para os homens que se

retiravam e o deixavam com o desconhecido.

Não obteve resposta. Fiquei sozinho com um

homem de sistema nervoso, talvez, muito fraco.

Continuei calmo, respirando profundamente.

Conhecia gente desse tipo de John. Com certeza ao

primeiro movimento que eu fizesse, receberia uma bala

no peito.

Desviei-me do assunto. Estava ainda soando no

meu ouvido o sintagma “Império Solar”. Que

significaria isto? Quando desapareci na minha cúpula,

há 69 anos, havia na Terra três grandes potências. Não

se podia pensar ainda num governo único para toda a

Terra. E muito menos ainda, numa confederação

política abrangendo o sistema, a que se pudesse dar o

nome de “Império Solar”.

Sentia-me calmo e compenetrado. Gente do meu

tipo recupera num instante a capacidade de raciocinar

objetivamente. Estava bem claro que havia cometido

um grande erro, provocado em última análise pelos

meus conhecimentos deficientes da natureza humana.

Quando, há 69 anos, alguém apertou os botões dos

mísseis nucleares, eu estava crente de que as demais

pessoas normais também ficariam doidas e cometeriam

o mesmo erro.

Mas me enganei. E porque tudo aconteceu assim,

era fácil de se deduzir. Minhas ponderações se

concentravam no nome de Perry Rhodan. Este piloto

espacial era a chave para o grande enigma.

Esperei até que meu vigia ficasse mais calmo.

Depois de alguns minutos, se encaminhou para a

antepara. Ouvi-o manejando os pesados ferrolhos. A

porta se abriu lentamente.

Levantei um pouco a cabeça. O primeiro olhar

consciente abrangeu a sala. Era de fato um laboratório.

John estava na porta entreaberta, olhando para fora.

Usava camisa de mangas curtas e calças bem apertadas,

em cuja cintura estava o revólver.

— Tragam-me ao menos alguma coisa para comer

— gritava o rapaz.

Alguém respondeu, mas tão baixo que não consegui

entender. Minha primeira experiência deu resultado.

Tinha absorvido bem o choque das radiações. À minha

esquerda estava meu traje de proteção radioativa.

Parece que examinaram tudo, mas não se deram por

contentes. Na parte superior da perna direita do traje

observei a saliência alongada da minha pistola

hipnopsíquica. Não se deram ao trabalho de retirar as

armas.

John continuava gritando. Acho que não tinha fome

alguma. Queria é que alguém ficasse perto dele.

Sem nenhum ruído e rapidamente, saí da mesa.

Com dois passos largos, estava atrás do rapaz magro.

Pulei em suas costas, travando seus braços com minhas

pernas. Podia ainda respirar, mas meus dedos que

comprimiam fortemente à direita e à esquerda da

laringe, impediam a passagem do sangue da artéria

para o cérebro. Sem o menor movimento de reação,

caiu e ficou inerte no chão. Depois de uns três minutos;

voltaria a si. Eu não tinha, pois, tempo para perder.

Duas coisas aconteceram naquele instante.

Primeiro, os possantes motores do submarino

começaram a roncar e, a seguir, ouviram-se passos que

se aproximavam.

Ao conseguir reconhecer o homem, a pistola

hipnopsíquica já estava em minha mão. Foi atingido

pelos raios finíssimos do radiador hipnopsíquico antes

mesmo de notar o que se passava. Eu mesmo senti na

Page 14: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

14

cabeça a leve vibração da arma silenciosa que

paralisava por uns instantes a atuação da vontade. Já

estava então realizado o contato de transmissão para a

vítima selecionada. Nem precisava falar, bastava que

eu pensasse intensamente, e a pessoa obedecia.

O homem parou no meio da sala. Seus olhos

pareciam de vidro.

— Vá para o laboratório de pesca e fique lá

esperando até que eu o chame! — foi o meu comando

hipnótico.

Sem dizer uma palavra, pôs-se em movimento,

passou pela minha frente e desapareceu no aposento

contíguo. Esperei até que o outro, que estava

inconsciente, voltasse a si. Recebeu a mesma ordem.

Meu radiador tinha um alcance de dois mil metros.

Se regulasse o feixe de raios para uma extensão maior,

seria possível cobrir uma ampla área num só disparo.

Não estava pensando mesmo em ir de aposento em

aposento, procurando um por um da tripulação, o que

seria, aliás, muito perigoso. Regulei a arma para toda a

extensão do submarino. Depois de alguns minutos

foram chegando. Todos os tripulantes estavam sob meu

comando. Na frente estava um homem corpulento, que

eu julguei ser o da voz grossa. Atrás dele mais quatro

pessoas, entre as quais uma jovem de cabelos tingidos

de um verde-berrante.

Reuniram-se no laboratório, onde os prendi, dando-

lhes a ordem de não saírem dali, por motivo algum.

Seminu, como estava, percorri o submarino. Atrás

de um camarote de grande luxo, havia um salão com

telas panorâmicas ligadas. O submarino já estava há

muito em movimento, porém mantendo a profundidade

de dois mil metros. Atrás do salão, estava o posto de

comando. Ao lado, o alojamento da tripulação e o

porão dos reatores e dos transformadores.

Ninguém olhou para mim, quando passava pelas

diversas divisões do barco. Chegando ao posto de

comando, fiquei de pé atrás do capitão. Era um senhor

idoso, de cabelos brancos e pele muito branca.

Os timoneiros seguiam minhas ordens sem

hesitação. O primeiro oficial se dirigiu à calculadora

para determinar a rota por mim indicada.

— Siga pelo litoral de Portugal. Em frente ao Cabo

Roca, pouse o submarino no fundo do mar. Qual é sua

velocidade de cruzeiro?

— Oitenta milhas marítimas, no máximo —

respondeu o comandante, sem nenhuma flexão na voz.

— Bem, mantenha a velocidade de setenta milhas e

com o piloto automático.

As ligações foram feitas. Dos aparelhos da cabine

de rádio, ouvia-se o ruído típico. O radar eletrônico

acusou a presença de outro submarino e a operação de

desvio se deu automaticamente.

Um mapa luminoso anunciava que nos estávamos

aproximando de uma linha de navegação submarina de

intenso tráfego. Surgiam cada vez mais linhas

vermelhas com indicação de profundidade. Isto

comprovava novamente que eu estava mesmo

enganado. Não havia nenhum indício de guerra

nuclear.

Resolvi fazer uma pergunta meio fora do assunto.

— Houve uma guerra nuclear em 1.971, em que a

Terra foi devastada?

— Não, respondeu o comandante com voz fria.

— Qual é sua idade?

— Sessenta e cinco anos.

— Sua data de nascimento?

— 23 de abril de 1.975.

— Quer dizer que estamos no ano 2.040?

— Perfeitamente.

— Como foi que não se chegou a uma guerra

nuclear? Isto é ensinado nas escolas?

— Sim. A Terceira Potência, sob a presidência de

Perry Rhodan, impediu a eclosão da guerra, por

intermédio da supertécnica dos arcônidas.

Senti que minhas pernas iam começar a tremer.

Provavelmente meu rosto estava pálido como cera.

— Técnica arcônida? — repeti com voz vacilante.

— Quer dizer então que Perry Rhodan se aliou com os

arcônidas? Em caso positivo, quando, como e onde foi

isto, responda.

Ele estava sob a influência do meu radiador

psicológico. Suas respostas tinham de ser

absolutamente verdadeiras.

— Perry Rhodan descobriu, depois da sua primeira

aterrissagem na Lua, uma nave espacial de exploração

de fabricação arcônida, que ali descera em pouso de

emergência. Perry os ajudou e mais tarde foi auxiliado

por eles. Impediu a guerra nuclear. Surgiu depois a

Terceira Potência.

A informação foi inútil para mim, pois o homem só

podia responder o que era perguntado expressamente.

Deixei de lado um longo período.

— Como está a Terra atualmente? Que é Perry

Rhodan hoje? Que forma de governo vocês têm?

— A Terra é grande, ampla e bela. Os desertos

foram aproveitados e nós controlamos o tempo. Não

existem mais doenças. Perry Rhodan é hoje o

administrador-geral do Império Solar. O IS foi fundado

em 1990, depois de ter surgido o governo mundial.

Procurei uma cadeira para sentar. As revelações

eram fortes demais. Tinha passado bobamente 69 anos

na cúpula, enquanto a Terra fazia progressos incríveis.

Ainda fiquei fazendo perguntas por quase uma

hora. Fiquei sabendo o suficiente.

Aquele piloto espacial, rude e ousado, tinha tido a

coragem de enfrentar, outrora, as grandes potências.

Depois, em empreendimentos espaciais que pareciam

verdadeira loucura, foi arranjando poderosos

cruzadores e belonaves, com os quais foi penetrando

cuidadosamente na imensa Galáxia. Deve ter estado até

Page 15: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

15

em Árcon.

Com esta ideia, interrompeu-se a sequencia de meu

pensamento. Desde quando podiam estes pequenos

selvagens chegar até Árcon? Com uma única frota, eu

teria tocado para o hiperespaço as poucas naves de

Rhodan.

— Como é que Rhodan foi recebido em Árcon?

Sabe-se algo a respeito?

— Sim, sabemos. O grande Império sob a soberania

de Árcon se esfacelou. Atualmente Árcon é governado

por um robô, por um cérebro positrônico. Os arcônidas

são preguiçosos, degenerados, imprestáveis para a

vida.

Meu subconsciente tomou conta de mim. Dei um

salto e agarrei com as duas mãos a garganta do homem.

Gritava como um doido. Como é que este sujeito se

atrevia a falar assim dos arcônidas?

Não se defendeu, ao ser sacudido por mim. Só

segundos depois é que me contive.

— Não diga isto outra vez, nunca mais, ouviu?

— Sim! — disse o homem apático. — Nunca mais.

Não fiz mais perguntas. Fui até a proa, onde estava

o laboratório de pesca. Os homens me apresentaram os

documentos, que examinei cuidadosamente, vinham

dos Estados Unidos, um estado de federação, passando

oficialmente por terranos. Não havia mais dúvida

nenhuma de que este tal Rhodan havia realizado o

sonho dos grandes idealistas do passado.

Mandei que os homens se apresentassem em fila e

os fui examinando. Um deles, que se chamava Phil

Holding, tinha mais ou menos a minha compleição.

Mesmo no rosto, parecia comigo, embora houvesse

diferenças marcantes. Na minha primeira saída lá fora,

para a aparentemente supercivilizada Humanidade, eu

teria que ser Phil Holding. Era diretor-comercial de

uma fábrica de conservas de legumes.

Levei-o para sua cabina e pedi que me explicasse o

uso de cada terno. Eram calças muito apertadas com

paletós compridos em cores berrantes, classificadas por

Phil como a última palavra da moda. Vesti-me e me

olhei no espelho. Não havia tanta diferença assim da

moda de outrora.

Daí para frente, meu plano já estava bem delineado.

Primeiramente tinha que procurar uma boa livraria e

estudar a história da Terra nos últimos 69 anos.

Utilizando-me da memória fotográfica, seria um

trabalho para 24 horas.

Nesse ínterim, o submarino, com sua tripulação,

desaparecia. Informei-me com o primeiro oficial sobre

o estoque de provisões. Era mais do que suficiente.

Tinham alimentos para quatro semanas. Água potável e

ar eram produzidos por máquinas robotizadas.

Portanto, podia dar-lhes ordem de permanecerem

quatro semanas nas profundezas do oceano. Só

poderiam vir à tona após este período. Afinal de

contas, não podia matá-los de fome.

Atingimos o litoral português após cautelosas

manobras. Reuni no grande salão toda a tripulação e os

passageiros. Utilizando-me ainda do radiador

hipnopsíquico, dei as últimas instruções. Ficariam

parados no local e na profundidade determinados, até

que acabassem os alimentos. Depois disso deveriam

emergir e esquecer o incidente.

Sem fazer nenhuma objeção, retiraram-se para seus

abrigos. Examinei mais uma vez as instalações

robotizadas do barco. Achei que estavam em ordem.

Vesti o terno que Phil me recomendou como o mais

elegante. Seus documentos passaram para minha nova

carteira. O dinheiro abundante me era desconhecido.

Eram cédulas laváveis de um plástico de alta

qualidade. Microfios embutidos imantados com

impulsos magnéticos tornavam a falsificação quase

impossível. Havia acabado o tempo que o mundo tinha

uma quantidade enorme de moedas diferentes. Em toda

a Terra, como também em todo o sistema solar, ou

Império Solar, como era o nome, funcionava uma única

moeda — o solar. Um solar tinha cem sóis. E o seu

poder aquisitivo devia ser bem elevado, pois, como me

dizia Phil, com apenas cinco sóis se podia comprar um

maço de vinte cigarros, da melhor marca. Portanto, o

vício do cigarro ainda perdurava. Retirei dois mil

solares para mim e dei-lhe um recibo. O dinheiro seria

pago depois ou depositado no nome de Phil Holding.

Agora teria de mergulhar.

Antes de vestir o traje de proteção submarina em

cima de meu terno, mandei que o grumete cortasse meu

cabelo. Minha cabeleira comprida, que durante 69 anos

não viu tesoura, ia desaparecendo. Estava agora com os

cabelos aparados e com uma leve ondulação. Aplicou-

me também um creme para erradicar a barba. Parecia já

mais civilizado. Surpreendi-me sorrindo diante do

espelho. A jornada até a tona parecia muito

interessante. As rações e os medicamentos não estavam

mais na mochila.

Assim equipado, deixei o submarino através da

escotilha de pesca. Depois de emergir, ainda fiquei

boiando, esperando que ficasse um pouco mais escuro.

Estava bem próximo do litoral.

Por trás do Cabo da Roca, se via o clarão da

iluminação noturna de Lisboa. Uma sensação

maravilhosa de segurança, de libertação de imagens

angustiantes e de viver uma nova aventura, tomou

conta de mim.

Não houve guerra nenhuma. Melhor ainda. Pisei em

terra, perto de um pequeno bosque, quase à beira da

estrada. Escondi meu traje de mergulho numa cavidade

na desembocadura de um riacho. Minha única arma era

ainda o radiador hipnopsíquico. No entanto, já tinha

tomado a resolução de, logo após a escapada para

Lisboa, voltar para minha cúpula submarina, para os

últimos preparativos.

Fui a pé até o caminho e consegui que um carro

Page 16: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

16

parasse para mim. Um carro de construção esquisita. O

fornecimento de energia era provavelmente regulado

por uma espécie de banco de carga.

O motorista português acreditou na história que lhe

contei e me levou. Em questão de quinze minutos,

fazíamos as belas curvas das autoestradas da capital.

Ali eu tive as primeiras impressões das grandes

realizações que se efetuaram nestes 69 anos.

Agradeci muito e saltei em frente a um hotel, num

grande arranha-céu. A recepção era totalmente

robotizada. Um autômato, de sorriso permanente no

rosto de plástico, perguntava apenas pelo nome do

hóspede. Quarto 123 foi a resposta eletrônica. Depois

que o autômato reagiu normalmente ao toque da palma

da minha mão, fiquei sabendo que, sem a minha

vontade, se registraram novas vibrações.

“Bobo!” foi à reação do meu sexto sentido, contra

mim mesmo.

Fiquei parado, refletindo no luxuoso salão. De

cabeça fria, fiquei pensando que no espaço de duas

horas já havia cometido duas burrices. Talvez, meu

instinto que jamais se enganava, ainda não estava bem

apto para funcionar. Quem sabe ainda sentia os efeitos

da longa hibernação. Podia haver várias razões.

Assim, por exemplo, havia esquecido de destruir,

antes de sair do submarino, as comprometedoras

radiografias. Ainda estavam no laboratório. O grande

perigo, porém, teria sua fase aguda somente depois de

quatro semanas. Além disso, podia voltar ao submarino

à hora que quisesse, para apanhar o esquecido.

Deixei a solução deste assunto para mais tarde.

Certamente, mais urgente do que a questão das

radiografias era o caso do registro de minhas vibrações

corporais. A fechadura do meu quarto estava

programada de acordo com estas vibrações. Não fosse

assim, não teria reagido ao simples toque da mão.

Sentei-me numa poltrona que parecia muito

confortável e que realmente ultrapassou toda

expectativa. Ao receber o corpo, ele se adaptava

automaticamente às formas do mesmo. Os habitantes

do planeta Terra tinham alcançado um bom grau de

tecnologia. Meio desconfiado, comecei a examinar o

banheiro. Havia até um dispositivo automático de

massagem. O robô especializado da cúpula submarina

não lhe era nada superior.

Cada vez crescia mais a ânsia de chegar a uma

livraria pública, pois não seria prudente ficar fazendo

perguntas a todo mundo. Podia causar suspeitas. Se eu

soubesse que existia uma “Enciclopédia Terrana”,

onde estava toda a história do planeta a partir de 1.971,

já teria saído do hotel de Lisboa. Então saberia também

que num volume extra, estava exposto um assunto

muito misterioso, chamado comumente de Exército de

Mutantes.

Acabei deitando para descansar.

Os esforços e preocupações do dia se faziam sentir.

Confiei demais no meu sexto sentido. A história da

Humanidade a partir de 1.971 era muito confusa e

maior do que eu pensava. Começava com a construção

da Terceira Potência na desolada solidão do deserto

centro-asiático de Gobi. Soube de coisas que primeiro

me deixaram envergonhado e depois pálido de

indignação.

Perry Rhodan parecia ser não somente um lutador

de extrema determinação e de decisões rápidas, mas

principalmente um homem ponderado, mentalmente

ágil, que sabia sempre com exatidão onde estava a

maior vantagem para ele. A tudo isso acrescia o fato de

que se identificava pessoalmente com a Humanidade.

Uma coisa me deixou preocupado: Rhodan, com

algumas espaçonaves conquistadas em luta, penetrou

nas profundezas das Galáxias, embora soubesse que a

Terra não estava em condições de se defender. E o

mais admirável é que, apesar disso, acabou

desnorteando os mercadores galácticos e o Império

Arcônida.

A “Enciclopédia Terrana” classifica o ano 1.984

como a segunda e mais importante etapa na escalada

ascendente da Terra. Rhodan deu um golpe de

inteligência ao fazer que todos os habitantes das

Galáxias acreditassem que a Terra tinha sido destruída

por uma frota invasora. Todos os seres inteligentes da

Via Láctea acreditavam mesmo que Rhodan tinha

sumido em combate.

A partir deste ano, pôde então se dedicar à

construção e ao fortalecimento da Terra, sem se

preocupar com ataques de outros mundos. Lá fora, no

espaço, todos julgavam que a Terra não existia mais.

Assim, este planeta se tornou a maior potência do

Universo.

Tomei residência fixa no hotel e providenciei

roupas mais adequadas. Meus estudos diários na

Biblioteca Pública começaram a dar na vista. Apesar

de todo o serviço automático da Biblioteca, havia

sempre aqui e ali pessoas de cuja atenção eu não

conseguia escapar.

4

Page 17: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

17

Assim, falei um dia, em conversa, que precisava de

uma obra de consulta para meus exames. O assunto era

muito amplo para ser assimilado em poucos dias. É

claro que me interessei acima de tudo pela

reconstrução militar e político-econômica. O Império

Solar se compunha dos nove planetas do Sol.

Marte, Vênus e algumas luas de Júpiter, estavam

ocupados por colonizadores. Principalmente Vênus,

que já formava uma boa colônia dentro do Império.

A navegação espacial tinha atingido o clímax.

Havia uma enorme frota comercial, além das

belonaves, cujas reproduções na Enciclopédia me

deixavam de boca aberta.

Ao deixar a Biblioteca, no quarto dia, sabia que não

tinha nada mais a procurar na Terra. Embora aceitasse

as conclusões do capítulo final da Enciclopédia, sem

restrições, as informações sobre o Império Estelar dos

Arcônidas me pareciam falsas. Era inaceitável que o

poder do grande Império estivesse nas mãos de um

robô.

Ao penetrar no heliporto da Biblioteca, para pegar

um táxi aéreo, senti o primeiro aviso. Aquela sensação

de alguma coisa que rebusca a parte posterior do

cérebro, já me era conhecida. Instintivamente bloqueei

meu conteúdo mental. Havia alguém tentando por via

telepática penetrar em meu pensamento.

Meu sexto sentido estava de prontidão. Fiquei

parado junto do parapeito do terraço da Biblioteca,

olhando para o belo panorama das sinuosas

autoestradas. Ali terminavam as pistas de alta

velocidade que rasgavam todo o país.

Os impulsos penetrantes vinham de trás, do lado

direito. Senti a confusão no fluxo tateante do

desconhecido telepata. Por uns minutos, ele desistiu de

penetrar minha mente. Daí a pouco tentou de novo,

com maior intensidade. Devia ser um telepata fraco.

Não conseguiu penetrar-me.

Dirigi-me para um táxi que estava pousando

naquele momento. O telepata era ainda jovem, de

cabelos escuros. Passei tão perto dele, que, sem querer,

deu um passo para trás. Entrei na espaçosa cabina do

táxi aéreo, com muita calma, introduzi um solar na

fenda do cobrador automático.

— Hotel Escorial! — disse eu alto e bem

pronunciado.

O piloto-robô confirmou com um movimento de

cabeça e a porta se fechou. O aparelho de voo para

curta distância recebia sua energia elétrica por micro-

ondas. Concentrei-me no forte zumbido do motor e agi

como se o telepata não me interessasse. Ele fez mais

uma tentativa, antes de desistir. Finalmente, meu

pequeno aparelho ganhou altura.

“Teve muita sorte”, constatou meu sexto sentido.

“Se lhe tivessem mandado um telepata mais forte, você

estaria perdido.”

Sabia que não podia mais voltar para o hotel, então

me inclinei para frente, para perto do microfone:

— Quero descer do outro lado do Tejo, em Almada.

— Em que lugar de Almada?

— O velho cais dos pescadores.

O aparelho deu uma guinada para o sul. Abaixo de

mim cintilavam os anúncios no alto dos arranha-céus.

Num destes luminosos havia uma sigla muito repetida

por toda parte: CGC, três letras importantes:

“Companhia Geral do Cosmo.” Devia ser uma

organização imensa. Conforme a Enciclopédia, a CGC

tinha sido criada por Rhodan.

O nome Rhodan me impressionava cada vez mais.

Quando estávamos quase na desembocadura do Tejo e

já víamos ao longe as luzes de Almada, meu sexto

sentido me alertou de novo de que não devia perder um

segundo. Já estavam atrás de mim, do contrário o

telepata não me teria seguido com tanta insistência.

Naturalmente, tudo poderia ser um simples serviço

de rotina da polícia, o que meu bom senso acabou

excluindo. Por mais despreparado que fosse o telepata

não era um zé-ninguém. Se um homem desta categoria

foi destacado para sondar meus pensamentos, era

porque desconfiavam de algo.

Na hipótese de não se tratar de um serviço de rotina

da policia, surgiria uma pergunta: Como e por que

chegaram a suspeitar de mim?

O registro das vibrações no hotel? Impossível! Isso

poderia acontecer caso tivessem dados a meu respeito.

Na Terra, não havia mais fronteiras entre os diversos

estados. Sou igual a todo mundo, não poderia ter

chamado a atenção de ninguém. Onde estava o

mistério? Fiquei matutando até que uma ideia me fez

tremer dos pés à cabeça.

“O submarino!”, dizia meu sexto sentido.

Acabei concordando com a ideia. Era a única

explicação plausível. Ao deixar a tripulação no fundo

do oceano, não sabia ainda da existência do corpo de

mutantes. Naturalmente o submarino estava sendo

considerado como perdido. Até que, com os meios

modernos de localização, chegaram a encontrá-lo.

Além disso, o trânsito marítimo era muito intenso, de

Page 18: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

18

forma que a localização do submarino poderia até ter

sido casual. Mas tudo isso não tinha importância

alguma. Foi encontrado e acabou.

Não devia estar preocupado assim, pois a tripulação

se mantinha em estado de forte bloqueio hipnótico.

Pela primeira vez, o conceito de exército de mutantes

foi tomando forma definida no meu pensamento.

Pessoas dotadas de poderes parapsicológicos

haveriam de conseguir romper o bloqueio hipnótico

provocado por mim. E aí, o pessoal do submarino

soltou o que sabia. O quadro estava completo, as peças

estavam se casando bem. Agora é que estava

percebendo a gravidade das radiografias esquecidas a

bordo do submarino. Se caíram em mãos competentes,

então já estavam a par da minha existência.

Recostei-me na poltrona macia de espuma de

borracha.

Ainda bem que não sabiam nada da minha antiga

moradia, a cúpula da fossa oceânica dos Açores. Do

contrário não teriam designado para me seguir um

telepata jovem, de poderes insuficientes. Mas, com

toda certeza, possuíam grandes pistas.

O piloto automático precisou de mais uma moeda

para me levar até ao cais dos pescadores em Almada.

Coloquei um solar e imediatamente veio o troco de

dois sóis.

Liguei o envoltório magnético e ouvi, com esforço,

alguns impulsos telepáticos. Não se compreendia nada.

A noite que estava chegando tinha um céu suave e

cheio de estrelas. No pequeno cais, havia o cheiro

indefinido de algas, cordames e peixes. Era tudo como

antes, embora não se usasse mais o alcatrão.

Passei por pessoas alegres e fui à procura de um

barco. Meu traje de mergulho de profundidade estava

do outro lado da desembocadura do Tejo. Encontrei um

barco, cujo proprietário o estava acabando de encostar.

Não podia me demorar com explicações, o tempo não

dava para isto. Ninguém percebeu o jato de raios da

minha psico-pistola. Atingiu os três homens,

obrigando-os a fazer o que eu mandasse.

Cinco minutos depois, estava bem longe do cais. O

barco tinha um bom motor elétrico, abastecido pelo

banco de carga. Quase não fazia ruído.

Atravessamos o Tejo, que nesta parte era bem largo

e nos encaminhamos para o local em que a autoestrada

chegava bem perto do litoral. Saltei, apliquei mais um

bloqueio hipnótico nos pescadores e me dirigi para a

estrada. Novamente, entrou em ação meu radiador. Um

carro parou perto de mim. A dona do carro, uma

senhora já de idade, me levou uns quinze quilômetros

para o oeste. Encontrei com facilidade o trecho de

floresta. Fiquei olhando pensativo para a pequena

viatura da senhora que já ia longe. Parecia tudo tão

simples. Mas a preocupação crescia sempre.

Meu traje de proteção estava intacto. Vesti-o,

regulei o gerador de gravidade e penetrei no mar,

conservando-me sempre na superfície, para evitar que

me localizassem. Fiquei atento na escuta. Uma vez fui

apanhado pelo farol giratório de um navio. Deixei-me

cair a pique, imediatamente, ficando uns dez minutos

debaixo d’água, para depois emergir com cautela.

Ao chegar até o submarino, dei uma volta bem

grande em torno dele. Suspeitava que estivessem à

minha espera. Se fossem homens inteligentes,

haveriam de ter certeza de que as radiografias que eu

esquecera me dariam muita dor de cabeça.

Estava sorrindo, abri um pouco o traje de proteção,

deixando que a água fresca me banhasse o rosto.

Depois, com uma velocidade de 250 quilômetros por

hora, o vibrador de ondas me levou para o oeste.

Os rapazes vão esperar à toa no fundo do mar. O

que eu sentia é que as radiografias estavam nas mãos

deles. Mas, não se podia fazer nada.

Enquanto me dirigia para o oeste, ia estudando o

que devia fazer. Tornava-se urgente alterar as

frequências de minhas vibrações, pois, certamente, já

haviam tomado meus dados no hotel de Lisboa.

Quando aparecesse de novo, ninguém me reconheceria.

Além disso, ainda tinha que fortalecer meu corpo

enfraquecido. Isto exigia, pelo menos, um treino de

quatro semanas em minha cúpula. A instalação

adequada para isto, o próprio Rico podia montar. Se

tudo corresse bem, no princípio de maio de 2.040, eu

apareceria em Terrânia como um cientista muito bem

formado, equipado com os melhores diplomas. Tinha

intenção de trabalhar como engenheiro energético,

porque este ramo era realmente minha especialidade.

Ria bastante dentro da água que eu cortava em

grande velocidade. A vida estava magnífica e a questão

de Rhodan começou a me interessar. Quem sabe, a esta

altura, ele já sabia com quem estava lidando?

Se ele fosse realmente inteligente, não me haveria

de considerar simplesmente um inimigo da

Humanidade. E de fato, eu não era, nem nunca fui isto.

Gostava muito destes pequenos selvagens, orgulhosos

e de grande determinação, que agora estavam atingindo

as estrelas.

Depois de algum tempo, surgiram os Açores e com

isso eu já estava em segurança. Agora era mister

prestar atenção para que não me confundissem de novo

com um peixe estranho. Provavelmente, aquele trecho

em que o submarino me encontrara devia ser até zona

interdita à pesca.

Com muita cautela, mergulhei para o abismo.

Deixei-me cair bem rapidamente, a uma média de 20

graus, até às profundezas do fundo do mar. Ali

embaixo, eu estava em casa. Sentia-me tão bem como

qualquer peixe.

De fato, a região em volta da Ilha de São Miguel

estava coalhada de submarinos. Portanto minha teoria

estava certa. Escorreguei pelas fendas do solo, até que

fui localizado pelo cérebro robotizado da cúpula.

29

Page 19: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

19

Deixei-me sugar pela abertura da escotilha.

Rico estava no seu posto. Protegi imediatamente

minha “moradia” contra localização submarina e, com

o sugador a jato puxei um montão de lama e lodo de

encontro à cúpula.

A partir daí, estava enclausurado por quatro

semanas. Os homens maliciosos de Terrânia, a capital

do Império Solar, que me procurassem.

Era o dia 24 de abril do ano 2040. Estava sentado

numa confortável poltrona da sala de espera do

aeroporto de São Francisco esperando o clíper para

Terrânia. Há sete semanas, havia começado o jogo que

me levaria para o lugar desejado. Levei apenas três

semanas para completar minha instalação e para

devolver ao meu corpo sua antiga musculatura.

Estava mais do que claro que eu não podia aparecer

em Terrânia como um cidadão qualquer. Eu precisava

chegar a uma posição tal, que me desse livre trânsito

nos círculos competentes, para comprar naves espaciais

do menor tamanho possíveis, completamente

automatizadas e quanto possível mais velozes que a

luz. Portanto, tinha que me apresentar como cientista

ou técnico com diplomas absolutamente em ordem.

Nem com tudo isso, seria aconselhável uma ida

para Terrânia e lá, com um sorriso amarelo no rosto,

ficar suplicando um posto de chefia.

Por este motivo, seguindo o protocolo geral de

serviço, entrei, há duas semanas, com um

requerimento, acompanhado de todos os documentos

atinentes. Ontem chegou a resposta pela qual eu tanto

esperava. Devia me apresentar em Terrânia ao

Departamento do Pessoal, levando todos os diplomas

no original.

Estava agora olhando para a minha pasta de

documentos onde guardava tudo que eu havia

conquistado nas semanas anteriores.

Um cidadão de Terrânia deve, a qualquer momento

poder provar onde ele nasceu e de quem é filho. Sendo

assim, escolhi a pequena Greenville, no Estado de

Maine, como minha cidade natal e com o radiador

hipnótico consegui que os documentos legítimos de

nascimento fossem registrados e tombados com datas

anteriores, no arquivo municipal.

Os funcionários da pequena repartição não

compreenderam bem o que fizeram. De qualquer

maneira, podiam jurar que eu nascera em Greenville,

na extremidade sul do Lago Mosehead.

O próximo passo fora com a Universidade de

Portland, onde convenci o velho diretor e dois outros

professores de que eu tinha sido o melhor aluno. Os

raios hipnóticos me arranjaram todos os diplomas. Em

matemática, por exemplo, tinha sido magna cum laude.

A terceira fase não foi tão simples assim, pois desta

vez, tinha que tratar com cientistas e com um

complicado plano didático de uma grande academia

espacial. A Academia para Voo Espacial da Califórnia

— CASF — já existia antes, mas agora estava

reorganizada de acordo com os padrões dos arcônidas.

Rhodan também tinha passado por esta academia, se

bem que já há muitos anos.

Escolhi esta academia, porque, sem dúvida alguma,

era a mais afamada do mundo. Quem viesse de lá,

podia contar com simpatia geral. Somente a Academia

de Terrânia era considerada superior, nela eram

treinados somente os que já haviam concluído os

estudos normais. Outra coisa também, eu não iria usar

os raios hipnóticos em Terrânia. Haveriam de me

descobrir em pouco tempo.

Levei uns quinze dias para conseguir os

documentos com datas de anos atrás. Tive que

influenciar hipnoticamente mais de dez cientistas para

conseguir nos documentos originais a data desejada.

Munido destes documentos, podia comprovar que

havia cursado 15 semestres, especialização — Técnica

da Alta-Energia e Matérias em Geral: — Matemática

Superdimensional. Fui, supostamente, promovido e

recebi o grau de doutor em 2034.

Foi difícil manter contato com todos os professores

e estudantes. Mas tive que fazê-lo para me familiarizar

com os apelidos — qualidades extraordinárias dos

colegas e mestres e — com a vida acadêmica em geral.

Assim, bem preparado, tinha aberto o caminho para um

campo de ação de seis anos. Estava frequentando um

professor particular podre de rico que, de acordo com o

que se dizia, pertencia ao grupo daqueles cientistas que

em sua mocidade tinham tomado parte com Perry

Rhodan nas últimas incursões contra Árcon. Este

senhor, já de idade avançada, tinha cinco assistentes, os

quais eu influenciei com facilidade. Do professor

Steinemann, especialista em Teoria de campo de cinco

dimensões, recebi atestados maravilhosos referentes a

uma atividade de seis anos contínuos.

De todos estes documentos, mandei fotocópias

autenticadas para Terrânia. Em “O Sistema Solar”,

conhecida publicação especializada, foi aberta a

Page 20: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

20

inscrição para o concurso de Diretor de Banca

Examinadora. Eu me inscrevi e ontem, como já disse

antes, chegou-me a resposta.

Até o presente momento, tudo corria às mil

maravilhas. Já tinha despachado a mala pelo serviço

automático direto do aeroporto. Na minha pasta de

mão, estavam somente os papéis importantes, meus

documentos pessoais e dinheiro. As vendas de uns

maravilhosos rubis do meu tesouro da cúpula deram-

me o montante de 15.820 solares. O dinheiro estava

depositado num banco particular de São Francisco.

Calculei bem e consegui que, com meus merecimentos

confirmados pelo professor Steinemann, esta quantia,

relativamente elevada, pudesse ser poupada. Tinha

inventado algumas coisas que me deram algum

dinheiro.

Estava convencido de não haver cometido nenhum

erro substancial, já que as frequências de minhas

vibrações celulares tinham sido alteradas. Portanto, não

podia mais ser identificado através dos dados do hotel

de Lisboa. Não mandei mudar a cor nem dos cabelos,

nem dos olhos. Conhecia muito bem os homens e seus

pensamentos. Provavelmente iriam supor que eu me

apresentasse com máscara. E exatamente por este

motivo é que permaneci como era. Meus cabelos

louros eram normais para o tipo nórdico. Tinha apenas

que ter cuidado com os olhos, cujo brilho avermelhado

me podia trair. Consegui modificá-los, quando, por

ocasião de uma leve conjuntivite, consultei o médico.

Naturalmente, tive que influenciá-lo com os raios

hipnóticos.

Estava me sentindo um pouco cansado e abatido.

Meu subconsciente aflorava constantemente à tona do

meu espírito com leves censuras. Talvez, pudesse

encontrar em qualquer outro aeroporto da Terra um

aparelho mais veloz do que a luz. Mas alguma coisa

me dizia que isto seria possível somente na capital do

Império Solar. Em outro lugar não havia aqueles

aparelhos ultrarrápidos, usados pela patrulha espacial

de Rhodan.

Havia me informado com detalhes sobre os

diversos tipos. Um moderno Space-Jet era a construção

mais adequada para mim. Um ronco ensurdecedor me

arrancou dos devaneios. O chamado Gobi-cliper estava

aterrissando. Fiquei observando as manobras de

aterrissagem do aparelho vindo da Europa. Era um

projétil comprido e estreito com reduzida superfície de

sustentação, em forma de um delta, com dois possantes

reatores que serviam também para a decolagem

vertical. Exatamente no ponto preto, no meio do

círculo vermelho, o aparelho tocou o solo tão

suavemente que não se notou o menor solavanco nos

amortecedores.

Uma voz robotizada começou a lançar no ar umas

instruções de rotina:

— Clíper do Extremo Oriente Zacho, Voo 23-1712

para Terrânia, partida às 20:03 h. Favor tomarem seus

lugares, o aparelho permanece no aeroporto somente

10 minutos.

Estava na hora. Peguei minha pasta, ajeitei os

óculos escuros e caminhei para os controles

automáticos. Um pequeno helicóptero levou a mim e

os outros passageiros para o distante aparelho. O bojo

devia ter uns cem metros de comprimento. Pesados

robôs de carga transportavam a bagagem para os

porões do aparelho.

Achei meu lugar numa poltrona reclinável, mais ou

menos no centro do delta de sustentação. A decolagem

foi suave. Sabia que aqueles aparelhos trabalhavam

com neutralizadores de pressão. Depois da suave

subida vertical, a pressão de aceleração atingia pelo

menos dez graus. Apesar disso, não se notava nada de

desagradável. Na frente do nariz pontiagudo do

aparelho, via-se o espaço. O voo para Terrânia levava

meia hora, agora as manobras de aterrissagem duravam

outro tanto.

A metrópole que surgia a meus olhos quase me

tirou a respiração. Como o antigo deserto se

transformou! Terrânia devia ter 14 milhões de

habitantes. Quem vivia e trabalhava ali tinha sempre

alguma relação com a navegação espacial. Da pequena

base de 1.971, cristalizou-se a soberba capital da Terra

e do Império Solar. Grande, bela e poderosa.

Aquele quadro me impressionou.

Entrementes o clíper já havia pousado. Um jovem

oficial se dirigiu a mim. Estava armado e no lado

esquerdo do ombro tinha um emblema: um cometa

atravessado por uma seta.

— O senhor é o Dr. Skörld Gonardson? —

perguntou em voz um tanto alta.

Fiz um gesto de confirmação.

— Bem-vindo doutor. Estou incumbido de levá-lo a

seu alojamento. Meu carro está atrás da galeria. Posso

pedir-lhe a passagem?

Entreguei-lhe a estreita tira plástica. Tudo parecia

bem mais organizado. Um tremendo zumbido me

obrigou instintivamente a virar para trás. Bem afastado,

um monstro redondo galgava os céus de Gobi. Quando

as ondas sonoras chegaram, a espaçonave já tinha

desaparecido. Acompanhei com os olhos embevecidos

o gigantesco aparelho.

— É apenas um cruzador pesado do tipo Terra —

disse o tenente sorrindo. — É somente uma escolta

para o comboio regular de transporte para o sistema

Vega. Nós não temos coragem de deixar voar pelo

espaço afora estes cargueiros desarmados.

Piscou um olho e sorriu feliz. Tive que voltar meu

pensamento para a “Enciclopédia Terrana”. Conforme

ela, Rhodan estava morto desde o ano 1.984 e a Terra

tinha sido destruída. Que bela destruição foi esta! A

Galáxia inteira se deixou iludir por um único homem.

— Vamos — disse eu. — Que calor horrível faz

32

Page 21: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

21

aqui!

— Espere então o mês de junho — sorriu o jovem

com naturalidade. — Então, pessoas gordas fritam-se

na própria gordura.

Olhou para mim com tanta insistência que tive de

rir, sem querer. Como se eu tivesse alguma grama de

gordura a mais.

— Não há perigo, o senhor tem boa aparência —

continuou ele sorrindo. — Quer um cigarro?

— Obrigado, não fumo. Considero o cigarro um

mau hábito.

Fechou um pouco a fisionomia e guardou o maço

de cigarros.

— Muita gente diz isto, doutor. Já que fui

incumbido de cuidar do seu bem-estar, vou controlar

meu vício.

Fiquei gostando do rapaz, tinha uma naturalidade

muito cordial.

— Cuidar do meu bem-estar?

Com a ponta do dedo indicador, levantou um pouco

a pala do boné e olhando para mim calmamente, disse:

— Conforme alguns caprichos dos meus

superiores; simplesmente terei que bancar de vez em

quando o guarda de vigilância no setor da banca

examinadora. Já que o senhor será o chefe da T-18 será

interessante não aborrecê-lo muito.

Franzi a testa e instintivamente peguei minha pasta.

Era uma revelação sensacional.

Sorriu contente, e continuou a me examinar.

— Parece que o senhor não sabe ainda de sua

grande sorte, não é? Quando chamamos candidatos

para a capital, quer dizer que já estão aceitos. Do

contrário não viriam diretamente para Terrânia.

— Ah! — disse eu. — E por que é interessante não

me aborrecer?

Olhou assustado em volta, antes de aproximar sua

boca de meu ouvido:

— Afirma-se que o conteúdo do tanque de óleo

lubrificante na ala 18 se compõe dos ossos dos tenentes

que se tornaram desagradáveis. Um colega meu ficou

três horas em movimento espiral, indo à Lua e

voltando, só porque se recusou a engraxar as botas do

chefe de física.

Confirmava com acenos da cabeça, muito

compenetrado, até que a admiração estampada no meu

rosto o obrigou a uma sonora gargalhada. Eu também

comecei a rir.

Os terranos tinham muito senso de humor. Talvez

fosse isso um componente essencial do seu sucesso.

Aquele tenente, por exemplo, parecia à própria alegria

de viver. Certamente, se transformaria em excelente

lutador, na hora necessária. Gentes do seu tipo, na hora

decisiva, são verdadeiros heróis.

Lembro-me de um homem que conheci há muito

tempo. Deu-me seu último pedaço de pão, porém,

quando soube quem eu era, queria me matar. Perguntei

pelo nome do jovem tenente. Chamava-se Tombe

Gmuna, tinha 21 anos e estava acabando de sair da

academia. Como ele mesmo disse, tinha 52 cursos por

hipnose em Galatonáutica, estudos de Alta-Energia e

de Armas. Mais um motivo para aumentar minha

inquietação, que já era grande.

Gente como eu nota logo quando alguém joga

verde para, colher maduro, isto é, quer nos sondar.

Mas o rosto de Gmuna, preto como o ébano, irradiava

uma alegria e uma naturalidade juvenil, onde não cabia

nenhuma segunda intenção. Ria muito e alto, era

sincero, bem-humorado e prestativo. Apesar disso, de

vez em quando fazia certas observações que me

traziam uma tensão de nervos, lembrando-me as

semanas anteriores. Já tinha sido testado antes mesmo

de subir no helicóptero.

Daí em diante, estava certo de que ele não era um

simples oficial da frota espacial. Se o pessoal de

Rhodan era todo tão perigoso assim, então eu teria, no

máximo, oito dias de tempo. Se, dentro deste período,

não tivesse desaparecido, era sinal de que as coisas

estavam bem. Meu instinto me dizia que devia, no

máximo, chegar até seis dias só. Com toda certeza, não

permitiriam a ninguém de entrar no espaçoporto, antes

de conhecê-lo a fundo.

Minhas respostas pareciam satisfazer a Gmuna. O

pequeno vestígio de um princípio de nervosismo havia

desaparecido. Daí para frente sentia-me mais natural.

Tive a impressão de que sua tarefa já estava cumprida.

Saímos com o pequeno helicóptero do aeroporto e

minutos depois surgia no horizonte a bolha

incandescente de uma cúpula energética. Já a conhecia

da “Enciclopédia Terrana”. Foi o ponto onde, há 69

anos, pousou o módulo lunar, comandado por Rhodan.

O espaçoporto, que estava debaixo de nós, era uma

coisa gigantesca. Apesar da altura bem grande em que

nos encontrávamos, não conseguia ver seus limites.

Via galerias de dimensões fantásticas. Pelo menos,

para mim, eram assustadoras.

— Centro de acabamento das belonaves —

explicou-me meu companheiro. — Imponente, não é?

Concordei com plena convicção.

— Muito imponente!

Sobrevoamos o espaçoporto e tivemos que nos

desviar de uma gigantesca esfera que aterrissava.

Passamos depois sobre arranha-céus em que estavam

instalados setores de administração.

De Terrânia mesmo, não se podia ver muita coisa.

Aqui imperava a frota espacial solar. No comando

desta, estava um homem, cujo nome, atualmente só se

podia pronunciar com muita cautela. Estava

convencido de que Perry Rhodan era um psicólogo

muitíssimo inteligente. Ocultava-se no manto do

silêncio, vivia em constante retiro e muito raramente

aparecia diante das câmaras da Terravisão. Era a força

operante que agia nos bastidores. É claro que não tinha

4

34 35

Page 22: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

22

a vaidade de querer aparecer.

O fato era que havia uma fantástica propaganda

oral e uma justa glorificação de seus feitos. Eu tinha,

porém, a certeza de que, cercado por seus

colaboradores, Rhodan continuava sempre ativo. Era

um homem, cuja fibra não permitia abandonar a obra

imensa que criara.

Alguns segundos antes que um aviso de rádio desse

a ordem para que todos os aparelhos descessem

imediatamente, aterrissamos no amplo terraço de um

edifício de cem andares.

Ao descer do helicóptero, com as pernas

enrijecidas, Gmuna me puxou para o abrigo do nosso

pequeno aparelho que ficou preso por grandes

eletroímãs fixados na laje de cimento armado.

— Não olhe para dentro — gritou-me o oficial bem

alto.

Primeiro não compreendi o que ele queria dizer.

Depois fomos atingidos pelas ondas de som.

Mais para o sul, quase na linha do horizonte, surgia

uma espaçonave, incandescente, despejando raios de

fogo. Cresceu para um imenso balão, passando sobre

nós numa velocidade incrível. Um grande clarão

iluminou o antigo deserto, hoje transformado num

imenso canteiro industrial, raramente interrompido por

pequenas manchas verdes.

Perplexo, acompanhava o rastro de fogo. Não eram

fagulhas provenientes dos reatores de propulsão, mas

tão-somente partículas superaquecidas da atmosfera na

decolagem do monstro espacial.

Estava realmente atônito.

— É uma nave do tipo Stardust? — perguntei quase

gaguejando.

— Maior muito maior — explicou-me Gmuna. —

Do tipo Império, com 1.500 metros de diâmetro. É a

grande novidade. Deve ser um vôo experimental, creio

eu. Venha, por favor.

Meio aturdido, segui o rapaz. Nem reparei nos

controles robotizados do elevador de alta velocidade

em que descíamos. Ainda estava pensando nas

dimensões daquela espaçonave, que há pouco se

projetara no espaço. Mil e quinhentos metros de

diâmetro! Isto eu nunca tinha visto nem ouvido falar.

Tive que me dominar para não fazer a pergunta se

aquele gigante tinha sido construído na Terra.

É claro que sim. Não havia outra possibilidade.

Estava muito confuso, principalmente incrédulo e

disposto a acreditar que tudo não passava de uma bem

montada miragem. Mas, minha lógica repetia com

firmeza que Rhodan, desde 1.984, tinha tido 56 anos

para se dedicar com exclusividade ao progresso da

Terra, com toda calma e sem ser perturbado por

nenhum inimigo. Desta forma, surgira aquele poderio

tremendo, graças à visão inteligente de Rhodan.

Não, não podia mais odiar estes pequenos terranos.

Pequenos, mas tão fortes. De outro lado, me sentia

impaciente e desanimado. Eles, os terranos, não tinham

o direito de saírem vendendo pelo cosmo afora o que

descobriram por acaso. Se Rhodan, quando da sua

primeira ida à Lua, não tivesse achado os escombros de

uma espaçonave arcônida, a situação seria bem outra.

Por muito favor, a Terra teria apenas chegado ao nível

de uma pequena navegação espacial dentro do sistema

solar.

Não podia estar satisfeito com o destino que me

fizera dormir durante os anos mais importantes do

progresso da Humanidade.

Havia ainda outra coisa que me fazia morrer de

curiosidade. Qual era, propriamente, a idade de Perry

Rhodan? Quando aparecia uma vez ou outra na

televisão, sua postura atlética o colocava na quadra dos

trinta anos. Mas isto tinha que ser uma máscara, sim

uma máscara. Minhas pesquisas com o professor

Steinemann provaram que Perry Rhodan nasceu a 8 de

junho de 1936. Portanto deveria estar agora

completando 104 anos. Mesmo que tivesse usado toda

técnica biológica de Árcon, já tinha de estar muito

velho e acabado. Eu lhe daria, no máximo, mais dez

anos de vida, com todos os recursos modernos.

Um simples cálculo de aritmética provava que

Rhodan tinha toda razão de viver assim retirado e

quase escondido. Um homem de 104 anos não pode

mais ter força nem disposição para nada, nem mental,

nem física.

Estava rindo sozinho. A “Enciclopédia Terrana”

não dava explicação nenhuma para esta questão.

Deixava a massa popular na crença de que Rhodan era

um prodígio da natureza. De vez em quando, surgiam

vozes falando de uma relativa imortalidade, o que não

deixava de ser uma grande asneira.

Despertei dos meus sonhos. Tombe Gmuna estava

falando comigo:

— O doutor possui os originais de seus diplomas?

— Como? Sim, é claro. Já estamos no

Departamento do Pessoal?

— Não. Primeiro vem o da Defesa Solar.

Sorriu ingenuamente para mim, mas seus olhos

pretos investigavam alguma coisa. Sentia aquela leve

inquietação que mesmo pessoas íntegras sentem

perante os representantes da lei.

— Mais isso ainda — observei. — Pois bem,

vamos! Você já refletiu que um homem da minha

estatura também pode ter fome? A viagem foi

cansativa.

Gmuna começou a rir de novo. Sua suspeita parecia

ter sumido. Caminhei através de portas deslizantes. Se

me colocassem agora diante de um aparelho de raios X,

estaria tudo acabado. Era a incógnita em minha

equação. Minha pistola de raios hipnóticos estava

naturalmente na mala que despachei separadamente.

Não podia me arriscar a trazê-la quando dos meus

primeiros contatos.

36

Page 23: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

23

Estava, pois, desprotegido. Tinha que esperar o

exame médico. Este deveria ser feito logo após minha

chegada. Se me dessem ao menos o prazo de um dia,

estaria salvo. Meu equipamento especial estava num

armário automático da cidade. A mala comum ainda

encontrava-se em São Francisco. Estava tudo muito

bem pensado, apenas a sorte é que não podia se

esquecer de mim. Achava-me preparado para enfrentar

os mutantes. Tinham de ser, naturalmente, telepatas.

Embora soubesse que Rhodan se utilizasse dos

mutantes para missões especiais no espaço, havia ainda

a possibilidade de que quisessem me testar. Para isso,

estava preparado, pois eu só permitia sair o

pensamento que eu quisesse manifestar.

Assim, eu era o Dr. Skörld Gonardson e nunca

estivera em contato mais íntimo com um submarino de

pesca.

Atrás da escrivaninha se levantou um homem de

ombros largos, com uniforme do Império Solar. Era um

militar graduado.

— Kosnow — disse, se apresentando. — Sente-se,

por favor, doutor. Cigarro?

Um estojo de metal de Zalos se abriu e Kosnow me

contemplava com um sorriso amável. Recusei,

agradecendo, sabendo já que este oficial tinha estado

pelo menos uma vez no planeta do Império Arcônida

chamado Zalit, pois somente lá é que havia daquele

metal zalos.

Olhei com curiosidade para o lindo material de

fluorescência esverdeada. Daria muito na vista se eu

não estranhasse a bela peça de arte.

— Obrigado, não fumo. Diga-me, por favor, que

material é este? Posso vê-lo?

O tenente-general pigarreou e com um simples

aceno de cabeça pediu que o tenente Gmuna deixasse o

aposento.

— Naturalmente. Não conheci ainda nenhum

cientista que não perguntasse pela procedência do

material. Mas, por favor, acomode-se.

Meu sexto sentido se apresentou “Muito bem, isto

foi um teste. Estão estudando você. Foi muito bem

arquitetado. Você tem que se dominar mais ainda”.

Estava diante de um homem que pertencia ao

estreito círculo dos colaboradores íntimos de Rhodan.

Kosnow era Ministro da Defesa.

Esperei até que Evelyn Tunics acabasse de enfiar

no automático a fita de programação. Ainda tinha cinco

minutos.

Fazia exatamente uma hora que minha manobra de

falsificação com o estudante de medicina Flynn tinha

sido descoberta. Naturalmente, o médico-chefe do

Serviço de Defesa não sabia que esteve sob o bloqueio

hipnótico durante toda a consulta. Sem ninguém notar,

consegui escapar da radioscopia. Um médico

assistente, sob coação, foi obrigado a ficar diante do

raio X e assim foi possível dar a chapa torácica deste

estudante de medicina, como se fosse a minha. Ainda

não podia compreender como hoje, seis dias depois da

consulta, tinham descoberto a mistificação. Recebi

apenas um aviso de Afonso Bonkun de que tinha

havido de repente uma verificação.

Bonkun era um auxiliar de laboratório, influenciado

por mim. Informou-me através de uma microemissora.

Disse ainda que a comissão examinadora estava sob a

direção de uma telepata. Nesta altura, a ligação foi

cortada.

Estava sentado no porão de controle da Banca

Examinadora T-18. Evelyn Tunics fazia o papel de

matemática de programação. Há quatro horas,

havíamos recebido a incumbência de examinar com

exatidão uma espaçonave do tipo Space-Jet,

completamente automatizada.

A lista de controle para a disposição positrônica

tinha sido cortada. Minha função era fazer com que as

instalações de alta energia funcionassem perfeitamente.

Há duas horas, foram tomadas medidas especiais de

precaução. Primeiro, supus que me estavam seguindo a

todo passo. Quando estava para empreender a já bem

preparada fuga, apareceu aquele homem, cujo nome já

me provocava sonhos terríveis. Meu estado de

confusão na frente dele era tremendo. Somente os

olhos dele me desmontavam todo. Parecia que seu

olhar era uma radioscopia. Se havia alguém capaz de

conhecer as pessoas do meu tipo, era ele.

Este temor contribuiu um pouco para a perda do

meu autodomínio. Porém, havia ainda outra coisa que

Page 24: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

24

me preocupava.

Perry Rhodan, o administrador do Império Solar,

era, ou um fiel sósia do verdadeiro Rhodan, ou era o

próprio Rhodan em carne e osso.

O homem que acabava de entrar para a banca

examinadora jamais podia ter 104 anos. Era um terrano

de compleição atlética, cheio de energia, movimentos

elásticos, pele esticada e olhos claros. Era tão alto

como eu, apenas de ombros mais largos.

— Por que você me olha tão fixamente assim? —

perguntou ele.

— Estou me lembrando da data do seu aniversário,

senhor — respondi gaguejando.

Raramente vi um homem rir de modo tão franco

assim. Virou a cabeça para trás e a sua gargalhada tinha

um timbre de tanta espontaneidade que não pude deixar

de acompanhá-lo.

Depois disso, precisei de duas horas para me

recuperar da dolorosa surpresa. Gente do meu tipo

pode se prejudicar com emoções tais, quanto à saúde.

Quando me senti em condições, ele ainda estava na

banca examinadora. Ele se interessava, pessoalmente,

pelas máquinas vitais das naves.

Logo depois, a jovem matemática me comunicou

que o chefe pretendia decolar pessoalmente com o

Space-Jet. Isto queria dizer que tínhamos de rever os

pontos prescritos do bloco de controle, pelo menos

duas vezes.

Foi realmente uma coincidência muito infeliz, que

exatamente neste momento a Defesa Espacial estava

descobrindo minha falsificação com a radiografia.

Alguém havia desconfiado. Quem sabe, os dois

estudantes de medicina me haviam traído.

No momento, Perry Rhodan estava deixando a

grande banca examinadora. Meus olhos o seguiram

febrilmente. Será que este homem podia ter 104 anos?

“Impossível” eu pensei, ou talvez o verdadeiro Rhodan

já estivesse morto há tempo e — por motivos políticos

— tinham que prolongar a sua imagem.

Nas telas do porão, resplandeceu o aparelho, novo

em folha. Uma construção soberba, de conformação

elíptica, com propulsão acima da velocidade da luz, e

com transição automática. Há seis dias, minha única

preocupação era encontrar uma nave assim. Agora,

tinham colocado a espaçonave dos meus sonhos

diretamente diante do meu nariz, dando-me até a

possibilidade de examiná-la.

Se tudo desse certo, na próxima noite eu

desapareceria com o Space-Jet. Mas agora era o

próprio Rhodan quem ia dirigir. Os preparativos davam

a entender que ele haveria de ir além do sistema solar.

Dependia apenas da experiência com os motores de

propulsão.

Tinha ainda dois minutos.

— Pronto — disse Evelyn.

Comprimi automaticamente os botões do

telecomando.

O conjunto dos motores se pôs a funcionar no bojo

do aparelho. Quando elevei a força do empuxo para 40

mil toneladas, Evelyn reforçou o campo energético.

Estava chegando a hora. Nas duas pequenas telas

para observação do lado de fora, podia-se perceber

alguns homens. Vinham como que casualmente para a

antecâmara da banca examinadora. Atrás deles,

aparecia uma mulher de porte esbelto, de cabelos

louros. Nunca a vi antes, mas a postura tensa de sua

cabeça, como quem quer ouvir algo ao longe, me dava

a certeza de que se tratava de uma pessoa de faculdades

transcendentais.

Evelyn estava ocupada com a segunda fita de

programação. Levantei-me depressa e me dirigi para as

pesadas portas blindadas do porão. Antes de abri-la,

liguei o gerador de deflexão. Estava pendurado no meu

pescoço, ao lado do ativador celular. No entanto, sua

função era outra.

O desvio da luminosidade me tornava invisível para

olhos normais. Uma localização por via energética era

totalmente impossível, porquanto eu usava uma

voltagem muito baixa. Meu campo de desvio da

luminosidade era coberto pelos numerosos motores em

volta.

Esgueirei-me pelo vão da porta, corri para a parede

abaulada do corredor central e alcancei com uns bons

pulos a entrada da galeria da tubulação de ar

condicionado. A simples fechadura não resistiu,

empurrei a grade para cima, entrei e fechei novamente,

ficando depois parado.

Por cima de mim, era a confusão de tubos do

sistema de refrigeração do ar. Mais ao longe estrugiam

os motores de um daqueles aparelhos, pelo qual eu

daria a vida.

Momentos depois eles chegaram, uniformizados,

com armas energéticas na mão. No meio deles havia

uma mulher loura. O tenente-general Kosnow estava

também presente.

Ao ver, mais ao longe, o estudante de medicina,

meio perturbado; cheguei à conclusão de que foi por

meio dele que eu fui desmascarado.

— Você consegue identificá-lo? — perguntou

Kosnow, em voz baixa.

A jovem senhora sacudiu a cabeça. Estava em trajes

civis, mas eu tinha certeza de que pertencia ao corpo de

mutantes de Rhodan. Estava muito atento ao meu

envoltório magnético, pois se eu me traísse com um

único impulso, estaria tudo perdido. Apesar do campo

de desvio, não conseguiria me livrar dela.

Foram para frente, com muita cautela, como

percebi. Dois robôs arcônidas tomaram posição diante

da entrada da galeria de ventilação.

Momentos depois, atingi a parte superior da galeria,

subindo os degraus existentes ali. A galeria terminava

exatamente ao lado de um amplo portão de entrada

Page 25: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

25

para o porão de controle subterrâneo. Mais para frente

se erguia do chão a poderosa laje de cimento armado

da sala de exames. A uns dez metros dali, eles haviam

deixado seus helicópteros. Era realmente como eu

supunha: com as grandes distâncias, não era

interessante usar carros.

Com muito cuidado, tirei de trás do ventilador de

sucção, onde a havia guardado há quatro dias, minha

pistola de raios energéticos. Se meus cálculos não

falhassem, dentro de três minutos o inferno

escancararia suas portas. Até então já deviam ter

percebido que eu não estava mais no porão de controle.

A trava de mola da portinhola voltou ao seu lugar

sem nenhum estalo. Inclusive, eu havia até lubrificado

a dobradiça. Fui saindo sem o menor ruído. Lá fora, o

primeiro aparelho estava desocupado. Junto dos outros

helicópteros havia guardas; eram quatro. Tudo corria

dentro do planejado. As dificuldades começariam

agora.

Entrei pela porta meio aberta e sentei diretamente

no posto do piloto. Meu sexto sentido se manifestou:

“Você deve voltar. A cova do leão ainda é o melhor

esconderijo. Você vai ver!”

Os raios sugestores começaram a trabalhar. Os

quatro guardas se viraram, olharam com alguma

hesitação para mim, e colocaram suas terríveis armas

no chão, no momento em que as sirenes de alarme

começaram tocar no porão.

Era a hora. Liguei o motor e puxei o helicóptero

vertical. Esperei um segundo, como mandava a lógica

do meu plano, pois eles tinham de ver que quem fugia

era eu. Estava calmo e equilibrado quando me inclinei

no sentido da porta aberta. A uma altura de vinte

metros, abri fogo contra os dois robôs que vinham

correndo pelo portão de entrada.

Na sala da banca examinadora ecoou o ronco do

motor do helicóptero. Depois, o breve silêncio foi

cortado pelo reflexo dos raios energéticos e, por fim,

pela explosão de dois aparelhos igualmente atingidos.

Com a mão esquerda, liguei o campo de desvio da

luz. Aconteceu que alguns homens da tropa de

investigação surgiram.

Reconheceram-me imediatamente, porém não

reagiram, pois a região toda estava sob meu fogo e os

aparelhos estacionados eram um montão de chamas.

Para mim era suficiente o fato de eles me terem visto.

Com um último olhar, percebi que não havia ferido

ninguém. Não era mesmo minha intenção, pois tinha

certeza de que ninguém me considerava um inimigo,

que tivesse de ser exterminado a qualquer preço. Por

que, então, tinha eu que matá-los?

Sobrevoei três quilômetros de zona de segurança,

entre a seção das bancas examinadoras T-18 e os

gigantescos estaleiros onde eram fabricadas as

espaçonaves mais leves, tipo Gazela.

Antes que alguém lá embaixo soubesse do que

havia acontecido do outro lado da zona de segurança,

eu já estava aterrissando.

Meu macacão azul-claro indicava que eu era

engenheiro da diretoria. Conduzi o aparelho por entre

as torres antigravitacionais do estaleiro, saltei e deixei

o helicóptero ali mesmo, gritando para os homens:

— Deixem tudo como está e fechem as portas.

Houve um atentado no T-18. Onde encontro o

engenheiro de serviço?

A reação foi rápida. Estes rapazes valorosos e

inteligentes se deixaram iludir por uns instantes, e isto

me era suficiente.

— Está no centro de ligações, senhor — gritou um

homem.

Correu e alarmou a todos os outros.

Acenei com a mão direita e desapareci atrás da

primeira torre de gravitação, onde um possante reator

catalítico estava à espera de transporte. Assim que me

senti protegido dos olhares alheios, liguei de novo meu

campo de desvio da luz, que me dava a certeza de estar

completamente invisível.

Daí em diante, meu plano era cronometrado. Tinha

que conseguir fazer em trinta minutos o caminho

percorrido pelo helicóptero. A partida de Rhodan

estava marcada para as 13:30 h. Parecia-me improvável

que ele fosse adiar a partida. Como Evelyn me havia

dito, devia se tratar de um caso especial.

Agora, não era realmente difícil vencer três

quilômetros em meia hora. Mesmo assim, tinha que

contar com dificuldades e imprevistos. Iniciei uma

corrida quase de resistência, saltando barreiras e

passando por entre pessoas nervosas que acabavam de

ser informadas por um oficial da segurança, todo

banhado de suor, de que o procurado se fazia

desaparecer com o desvio da luz. Ninguém o podia ver.

O oficial era Tombe Gmuna. Passei tão perto dele.

Quase nos encostamos. Claro que não me viu.

Ninguém teria de voltar a pé para o lugar de onde havia

fugido há poucos minutos. Mas era a chance que se me

oferecia. Tinha de aproveitá-la enquanto ainda existia.

Gente do meu tipo não hesita, nestas horas.

Diante da cerca divisória do trecho interditado,

fiquei parado, meditando. Numa atividade sem

precedentes, todos estavam à minha procura. Diante de

mim, aquela extensão enorme de cimento armado, sem

o menor vestígio de vegetação. Ali estava a saliência

abobadada das instalações subterrâneas da banca

examinadora. Cada vez mais, os aparelhos aterrissavam

no local. Comandos e comandos de robôs pareciam ao

longe pequenos pontos escuros.

Não ia poder manter por muito tempo minha

preciosa arma, pois haveria certamente um

rastreamento energético. Muito preocupado, coloquei-a

próxima à cerca e continuei minha corrida. Não tinha

mais tempo para procurar os esconderijos onde havia

guardado uma grande parte de meu equipamento

Page 26: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

26

especializado. As coisas que ainda estavam comigo

eram o gerador do desvio da luz e a hipno-pistola, que

contra os mutantes era totalmente inoperante. Mesmo

homens de mente firme conseguiam se defender de sua

influência.

Do ponto de vista prático, só dispunha mesmo do

meu instinto de conservação que, no momento, me

aconselhava a arranjar um mapa. Pois, bem perto de

mim, havia um aparelho preparado, de construção

correspondente aos meus planos, já que não me foi

possível me apossar de um Space-Jet.

O caminho para alcançar o meu intento era muito

longo. Para conseguir vencê-lo havia necessidade de

instrumentos funcionando perfeitamente, gêneros

alimentícios e água fresca. Precisaria também de uma

bem montada positrônica a fim de calcular os saltos

para a navegação nas Galáxias e também de algumas

horas com o intento de colocar as coordenadas nas fitas

de programação.

Estava chegando ao fim do meu caminho, dos meus

objetivos, tinha apenas que contar com um fator, aliás,

muito importante. Este fator se chamava Perry Rhodan.

Um trágico destino me levou de encontro ao homem

mais perigoso da Terra, exatamente no momento em

que não me interessava de maneira alguma este

encontro.

Durante minha desabalada corrida, surpreendi-me

sorrindo sozinho. O sujeito me agradara, realmente,

este bárbaro de olhos claros, de gestos sempre

comedidos. Pertencia ao tipo de homens que a gente ou

ama, ou odeia. Certamente, seria um amigo fantástico,

quando queria.

Como inimigo, eu o respeitava mais ainda,

contando, naturalmente que Rhodan ainda era o mesmo

de 69 anos atrás, quando iniciou seu plano arrojado.

Pois, alguma coisa dentro de mim me dizia que Rhodan

ainda era o mesmo.

Com isto, foi se esclarecendo para mim o grande

enigma, isto é, como este homem tinha conseguido

chegar aos 104 anos fisicamente jovem e com o

espírito ágil e sadio. Se não soubesse, por estudos, o

dia de seu nascimento, teria que lhe dar, no máximo,

37 anos.

Atingi o porão exatamente depois de 15 minutos.

Daí para frente tinha de me esgueirar por entre os robôs

que vinham de todos os lados. Foi mais fácil do que eu

pensava, pois ninguém esperava minha volta. Seria

realmente uma ideia maluca. Um pouco mais longe,

parecia que todos os técnicos e engenheiros dos

estaleiros de Terrânia estavam reunidos em assembleia.

O céu, acima das gigantescas instalações, estava

coberto por espaçonaves.

Com a maior calma, continuei andando ao longo da

muralha de cimento armado, até descobrir a pequena

pista para decolagem de espaçonaves leves. Estava

num rebaixamento artificial do solo, equipado com

grandes elevadores. Era daqui que partiam os voos de

experiência.

Diante do aparelho estava Rhodan, cercado de

cientistas e oficiais. A senhora loura não estava mais

com eles. Talvez tivesse sido requisitada para a grande

caçada à minha pessoa. No presente momento, o lugar

mais seguro era realmente ao lado deste grande

homem, que estava ali, tão simplesmente, ao lado de

seus mais íntimos colaboradores. O tenente-general

Kosnow também estava presente.

Cheguei ainda mais perto, até que consegui passar

entre os trens de aterrissagem do Space-Jet. Devido sua

conformação elíptica, suas medidas externas eram 35

metros por 20.

Fiquei parado, bem debaixo da escotilha de serviço,

tentando ouvir possíveis ruídos, pois era provável que

havia gente dentro do aparelho. Rhodan estava a menos

de cinco metros de mim. Seu rosto, normalmente um

tanto anguloso e duro, estava mais relaxado. Tive a

impressão de que ele não se preocupava nem um pouco

com minha fuga. Em compensação, quem estava muito

nervoso era Kosnow, o Ministro de Segurança. Ouvi-o

falar alto e depressa. Rhodan não dava uma palavra.

Vez por outra, contraía os lábios e voltava com uma

expressão de amável ironia nos olhos, examinando o

excitado Ministro de Segurança.

— Determine o bloqueio do espaçoporto, Peter —

disse Rhodan com voz calma. — Ele veio para cá com

o intuito de arranjar uma espaçonave. Chame-o

abertamente pelo rádio e peça que ele se comunique

com você.

Acho que nunca vi um homem tão desconcertante

em minha vida. Kosnow ficou pálido.

— Por favor... será que...

— Exatamente isto. Por que vocês pretendem matá-

lo? Ofereçam-lhe toda hospitalidade, em meu nome, e

peçam-lhe que espere até meu regresso. Apenas

impeçam que ele arranje uma espaçonave. Não

precisam fazer mais do que isto.

— Mas, senhor, eu sou de opinião de que...

Rhodan olhou tranquilo para o relógio. Já estava

com o traje espacial.

— Não me torne a vida mais difícil, Peter. Ele está

sozinho e desesperado. Sua atuação até hoje é muito

interessante. É admirável a precisão com que tem

trabalhado, para conseguir todos estes diplomas. Tudo

isto tem de ter um sentido. Peça para ele se apresentar.

Depois, veremos o resto. Em três dias, estarei de volta.

Chame seu pessoal para fora do aparelho.

Afastei-me depressa da escotilha, quando doze

rapazes uniformizados pularam para fora do aparelho.

Um jovem capitão fazia a comunicação em voz alta e

eu comecei a sorrir quando ele dizia que o procurado

não estava dentro do aparelho.

Rhodan acenou confirmando, despedindo-se

pessoalmente de cada um. Aproveitei estes rápidos

Page 27: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

27

segundos para subir pela escada de bordo feita de

material plástico. O único esforço que fazia era para

não provocar o menor ruído. A escotilha estava aberta

e atrás dela havia um pequeno corredor em semicírculo

que conduzia para a central de comando. Apesar de

suas dimensões, o aparelho era chato, em forma de um

disco, com quatro reatores para decolagem vertical e

para aterrissagem. O mecanismo de propulsão estava

bem no centro. Passei através da forte parede blindada

para a central e dei uma olhada em volta. As telas

panorâmicas já estavam em funcionamento. Era como

se a gente estivesse diante de uma parede transparente.

Rhodan desapareceu sob o bojo chato do aparelho.

Estava na hora de eu agir.

Atrás da central, saía o corredor que levava para os

aposentos da tripulação. Lá, naturalmente, seria

descoberto logo. Escolhi, pois, para meu esconderijo,

um armário de parede. Achei nele quatro trajes

espaciais, iguais ao que Rhodan estava usando. As

mochilas continham microrreatores para produção de

energia para refrigeração e para o dispositivo de

purificação do ar. Fora disso, os uniformes possuíam

um projetor do campo de proteção, para a formação do

envoltório magnético.

Pulei para dentro do armário de parede, estudei bem

o ambiente e fechei a porta. Momentos depois, Rhodan

entrou na nave.

Meu coração batia calmo e normal. Depois de

apalpar todo o armário, encontrei uma pistola

energética, o que me deixou bem mais tranquilo. A

poucos metros de mim, o homem mais misterioso do

sistema solar se preparava para decolar. Talvez fosse

uma viagem de inspeção a uma base comercial ou

militar fundada por ele no Império. Rhodan era o tipo

do homem que se preocupava com tudo.

Cinco minutos depois, começou a funcionar o

conjunto de instalações para fornecimento necessário

dos campos energéticos. Instantes após, senti um leve

puxar do campo de neutralização da gravidade e... já

estávamos longe.

O som cavernoso dos reatores me encheu de grande

contentamento. Minha memória fotográfica estava

repleta de imagens dos tempos antigos. Imagens belas

e promissoras. Rhodan pessoalmente me estava

proporcionando, sem o querer, a oportunidade por que

esperei tanto tempo.

“Mas você perdeu 69 anos dormindo”, dizia-me

meu sexto sentido.

Fiquei irritado com a ideia. Sempre as mesmas

admoestações. Mas desta vez tinha dado certo.

As dores eram terríveis e insuportáveis.

Começaram na cabeça e pouco depois foram para a

coluna vertebral. Agora era o corpo todo que me doía.

Depois da transição através do hiperespaço, sentia-me

aniquilado dentro do armário. A minha sorte foi que

Rhodan não percebeu nada do que se passava, devido

ao tremendo ronco dos motores.

Realmente, estava sofrendo bastante. A dor era

tanta que parecia tomar todo meu corpo. Sentia uma

vontade louca de gritar, mas era imperioso que não o

fizesse. Com as últimas forças do meu ser, consegui

me dominar um pouco, reconhecendo que realmente

havia subestimado a pessoa de Rhodan. Devia ter a

saúde de um homem primitivo, e o treinamento de um

atleta de grandes performances.

Logo após a primeira rematerialização, comecei a

gemer de dores. E uns cinco minutos depois, Rhodan já

estava na segunda transição. Agora, depois do terceiro

salto, minhas forças chegaram ao fim.

Não estava acostumado a viajar pelo espaço desta

maneira. Logo após a decolagem no espaçoporto de

Gobi, consegui, apesar da escuridão reinante no

armário, achar e vestir um traje espacial.

Sentia-me preparado para qualquer eventualidade.

Era meu plano aguardar até que Rhodan tivesse

conseguido a primeira transição e depois, obrigá-lo,

sob a mira da arma, a fazer o que eu queria. Poderia ter

feito isto, já desde o início, mas, não sei por que,

preferi esperar um pouco. Talvez fosse porque,

conforme meus cálculos errados, estivéssemos ainda

muito próximos da Terra Com isso, perdi uma ótima

oportunidade. Naturalmente, não poderia imaginar que

haveria de me sentir tão mal após a primeira transição,

que não tinha mais força para levantar a mão. Agora,

estava eu ali, me contorcendo de dores e cheio de

remorsos, num esconderijo indigno. Seria um golpe

errado, em tais circunstâncias, querer ameaçar um

homem que estava acostumado com todos estes efeitos.

Mesmo com a possibilidade de tudo virar contra mim,

ainda teria de esperar. Bastaria que ele simplesmente e

4 45

Page 28: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

28

por acaso abrisse agora o armário, para que eu caísse

em suas mãos.

Assim, fiquei ali, bem quieto, crente de que minha

rápida ativação celular me deixaria em boas condições

dentro de uma hora. Naturalmente tudo estaria na

dependência de que este bárbaro de olhos claros me

desse realmente os 60 minutos.

Além das dores físicas, fui acometido também de

uma terrível psicose de fobia. Rhodan havia saltado

três vezes através do espaço. A julgar pela dor sofrida

na rematerialização, teria ele, em cada salto, percorrido

uma distância muito grande. Para onde é que me estava

levando? Estaria eu ainda em condições de achar meu

caminho entre as estrelas? O que aconteceria se ele me

levasse para uma região que me fosse completamente

desconhecida?

Tinha que usar de todas as forças para dominar a

revolta dos meus instintos. Se ao menos, gente do meu

tipo, pudesse não sentir esta terrível dor da

rematerialização!

Quando as máquinas voltaram novamente a

funcionar a toda força, e, portanto, com maior ruído,

aproveitei o ensejo para gemer de dor, um pouco mais

alto. Não adiantou muito, mas ao menos pude ouvir

minha própria voz.

Procurei através de um equilíbrio emocional ter

ódio de Rhodan. Mas por mais que me esforçasse não

me foi possível achar motivos para odiá-lo. Alguma

coisa em meu íntimo me impedia de ver maldade ou

injustiça neste homem. Portanto, jamais poderia odiá-

lo. O máximo que podia fazer, nesta situação, era

lamentar as dores de cabeça que eu estava suportando.

Ele não tinha culpa.

“Rhodan não tem nada que ver com isto, seu bobo”,

dizia meu sexto sentido.

Comecei a esperar e a desejar que os minutos

passassem mais depressa. Cada minuto era para mim a

ameaça de uma nova transição, que me faria sofrer

ainda mais. Depois de passar uma meia hora sem

novidade, concluí que Rhodan estava chegando ao seu

objetivo. Eu calculava que ele estivesse descendo em

qualquer sistema solar por aí, com velocidade não

superior à da luz. Se não fosse assim, com os

fantásticos equipamentos que possui, já teria dado

outros saltos.

Após uma hora, minha dor de cabeça começou a

diminuir e um pouco depois a regeneração do meu

sistema nervoso estava concluída. A pulsação do meu

ativador era forte. Sentia um novo vigor e um bem-

estar geral. O microdispositivo, como sempre, ligara

automaticamente. Trabalhava com plena carga. Caí

numa gostosa sonolência, acordando de repente, após

uns quinze minutos. O ronco dos reatores estava agora

mais forte, podendo ser somente a inversão dos

motores para uma forte frenagem. Rhodan estava

realmente se preparando para aterrissagem.

O pensamento nos perigos, que a nova situação me

traria, me fez estremecer todo. Podia me encontrar em

qualquer lugar, apenas não num mundo onde teria todo

apoio. Aí, eu não teria chance nenhuma. Levantei-me

afobado, apanhando a arma. Minhas ideias começaram

a se atropelar. Que devia mesmo fazer?

O zumbido era infernal: ronco cavernoso misturado

com silvos agudos. Era os quatro reatores que

abrandavam a queda. Nervosamente procurei pela

fechadura da portinhola. Tudo, menos descer, tudo

menos aterrissar, é o que martelava em minha cabeça.

Destravei a porta e a abri. A menos de três metros de

mim, estava a poltrona do piloto, virada um pouco para

o lado.

Rhodan olhou-me imóvel. O cano cintilante de sua

pistola energética apontava para mim, pois já estava

informado sobre minha presença a bordo, antes mesmo

de eu me ter anunciado com tanto ruído. Eu estava

realmente perplexo, como foi que percebeu minha

presença?

“Sua mente, seu bobo, você esqueceu”, disse

novamente meu sexto sentido.

Aí é que fiquei sabendo que meu adversário possuía

também poderes telepáticos. Ele me localizou

mentalmente na hora em que relaxei minha defesa

mental.

— Deponha a arma, arcônida, e volte para o

armário.

Aquelas palavras, ditas com tanta calma me

chocaram. Rhodan agia friamente, como uma máquina.

Não parecia nem surpreendido, nem assustado. Além

disso, percebeu imediatamente qual era o tipo de

clandestino que tinha a bordo. Para ele não havia

dúvida nenhuma de que eu era o fugitivo do deserto de

Gobi. Nunca havia encontrado um habitante da Terra

tão perigoso assim. Rhodan era um lutador com

excelentes reflexos.

Já que eu não dava mostras de querer obedecer à

sua ordem, ele apertou um botão. O choque da

gravidade de, pelo menos, 5 gravos, me atirou no chão.

Caí com tanta força, que quase perdi os sentidos.

Ouvi sua risada sonora, aumentando mais ainda

meu rancor. Aquele pequeno bárbaro se atreveu, com

um truque ridículo, a fazer cair por terra um almirante

da frota arcônida e cientista do Grande Império! Uma

fúria tremenda se apoderou de mim, deixou-me

obcecado e surdo, fazendo-me esquecer de toda dor e

dando-me forças incríveis.

Nas telas panorâmicas, brilhava a superfície de um

planeta deserto. Estávamos ainda a 200 metros dele,

quando me preparei para saltar. Rhodan, naquele

instante, estava ocupado com os controles. Quando

olhou para trás, eu já o havia atingido. Vi seu olhar

assustado, provavelmente me julgava incapacitado para

lutar. Se ele, em contato com meu povo, já tinha sua

experiência formada, comigo ele se enganava. Se,

Page 29: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

29

conforme a “Enciclopédia Terrana”, todos os arcônidas

eram fracos e desajeitados, eu, pelo menos, possuía

outros dotes.

Puxei-o da poltrona, pelas costas, atirei-o ao chão

com um pesado soco no ombro, peguei sua perna no ar

e a comprimi contra a barriga.

A reação de Rhodan foi muito rápida, pois girando

o corpo, escapou de um segundo golpe, ficando,

porém, ainda deitado no chão. Atirei-me contra ele,

para lhe aplicar o golpe de Dagor, isto é, comprimir

perto da laringe a artéria que irriga o cérebro, até que a

pessoa perca os sentidos. Se ele não tivesse experiência

neste golpe, em poucos segundos teria que ficar

inconsciente. Suas mãos atingiram minha nuca, mas eu

sabia deste golpe.

“Assim não vai não, seu bárbaro”, pensei.

Quando triunfante comecei dar minha gargalhada

da vitória, aconteceu o que era inevitável, devido ao

meu gesto impensado.

A espaçonave chocou-se com um barulho horroroso

de encontro ao solo do planeta. Olhei rapidamente para

as telas que mostravam apenas altas labaredas e nuvens

de poeira.

Uma força irresistível arrancou-me da posição de

ajoelhado, desmanchou-me o golpe que estava

aplicando e jogou-me de costas. Rhodan sumiu de

repente. Devia ter sido atirado para qualquer canto.

Percebi logo que o aparelho havia batido relativamente

com pouca força e num ângulo bem favorável. Teria

sido mais ou menos, uma aterrissagem forçada.

Estava meio aturdido e minha ira violenta já estava

desaparecendo, tão depressa como chegou. Meio

desesperado, tentei libertar minhas pernas que estavam

presas em alguma coisa. Ao tentar me levantar, senti

um forte estampido, seguido por um chiado agudo de

ar que escapava. O automático do meu traje espacial

estava bom. O capacete abriu na frente, antes que a

descompressão do ar me arrancasse todo ar dos

pulmões. Fiquei sabendo então que estávamos num

mundo sem camada atmosférica.

Densa nuvem de fumaça irrompia das fendas

abertas no assoalho e o grupo principal de propulsão

estava em chamas. As terríveis descargas elétricas

pareciam sair dos acumuladores do sistema de

reversão, eram restos de energia que, por alguma

brecha, estavam escapando.

A instalação de refrigeração, que estava perfeita,

começou com seu alarme estridente, indicando que já

era tempo de abandonar a nave em chamas. Em plena

lucidez de espírito, eu me perguntei como era possível

pegar fogo, num lugar onde não havia ar. Não havia

um grama de oxigênio. Impressionou-me o fato de que

o alarme continuava forte. Os tanques com o oxigênio

líquido deviam estar arrebentados. Já que eles estavam

na parte inferior do aparelho, o fogo encontrava o

alimento necessário. Independente disso era suficiente

às pesadas descargas elétricas, que produziam chamas

intensas, capazes de derreter parcialmente a pequena

espaçonave.

Surgiu uma figura na minha frente, irreconhecível,

naturalmente, pela fumaça azul-escuro, mas só podia

ser Rhodan. Senti suas mãos, quando, com esforço

incrível, me libertou da incômoda posição em que

estava. Meus pés estavam livres.

Rhodan desapareceu, parece que subindo para a

escotilha de emergência. O dispositivo de aquecimento

do meu traje espacial começou também a dar alarme.

Não podia absorver calor superior a 150 graus Celsius.

Apesar disso, ainda estava procurando minha arma.

Sem o radiador energético, não queria sair da nave,

onde alguém certamente me esperava, e desta vez, sem

estar preocupado com os controles na nave. O alarme

era cada vez mais forte e lá no lugar onde meus pés

estavam presos, irrompeu um fogo muito impetuoso.

Sem o traje espacial estaria carbonizado ou asfixiado.

Tateando, consegui alcançar o início da escada de

emergência, e arrastei-me para cima. A escotilha, da

largura de um homem, não tinha comporta. Sua

finalidade era só para casos de emergência. Subi mais

um pouco e deixei-me escorregar no próprio aparelho,

que estava meio inclinado. O metal estava praticamente

incandescente. Caí bem na frente da proa do aparelho,

que de fato estava inutilizado.

Por uns instantes, continuei deitado na areia, onde

caíra, até que abrindo os olhos, dei com Rhodan. Ele

não me fez nada. Fiquei olhando para o céu, de um

azul-escuro, com um sol amarelado, que me parecia

muito grande. Parecia o olho traiçoeiro de um gigante

sanguinário.

Ergui a arma e dei uma olhada em volta.

Rhodan já ia muito longe. Havia me libertado da

má posição em que eu ficara preso na queda, mas

depois me deixou entregue à minha própria sorte. Foi

realmente muito nobre por parte dele. Quando percebi

seu plano, comecei a dar risada.

Longe de nós, talvez uns dois quilômetros,

Page 30: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

30

sobressaía do deserto uma grande cúpula de aço. Só

podia ser uma base dos terranos. Liguei o rádio do meu

capacete e disse bem calmo no microfone:

— Alô, bárbaro, eu o tenho na minha pontaria.

Você acredita que eu vou deixá-lo entrar na cúpula?

Disparei a arma. O tiro ofuscante pôde ser bem

ouvido, sinal de que ainda havia por aqui um restinho

de uma antiga camada de ar. A dez metros de Rhodan

se abriu a cratera da explosão e havia em torno uma

nuvem de pó de pedra.

Ouvi-o praguejar, através do meu receptor de

capacete. Portanto estava com seu aparelho ligado.

— Muito obrigado, bárbaro, agora estamos quites.

Você me libertou da poltrona e eu, de propósito, atirei

para não pegar em você.

Comecei novamente a rir, pois ainda podia rir.

Ao perceber que não dava para salvar mais nada da

espaçonave, Rhodan resolveu incendiá-la, tirando-me

assim um excelente abrigo. Através desta sua última

atitude, o duelo entre nós dois estava muito

desfavorável para mim. Tive que fazer muito esforço

para sair a tempo das proximidades dos destroços que

começavam a explodir. Seguindo o bom senso,

estabeleci meu esconderijo de tal modo que os

escombros da nave ficavam entre mim e Rhodan. Só

assim poderia escapar de seus tiros.

Somente agora é que estava compreendendo bem o

que eu tinha arranjado com isso. Meus olhos se abriram

e eu percebi que este frio calculista contava com uma

reação de minha parte. Tinha realmente de mudar de

posição. Porém, a maneira como mudei é que são elas.

Rhodan achava-se de posse de uma posição muito

melhor. Primeiro, estava mais próximo da grande

cúpula de aço e depois se encontrando atrás da cúpula,

eu não o tinha ao meu alcance.

Em linha reta entre ele e mim, avultava o monte

fumegante dos escombros do que foi uma maravilhosa

espaçonave. Já que eu estava bem perto dos restos da

nave, estes mesmos escombros encobriam não somente

a cúpula, mas também o próprio Rhodan. Não levei

mais de um minuto, até chegar a uma solução

definitiva. Se é que eu conhecia bem meu adversário

logo após seus tiros devastadores teria ele corrido para

chegar imediatamente ao edifício provido de

pressurização. Ainda não eram passados dez segundos,

depois de minha afobada mudança de lugar, quando fui

tomado por uma ideia luminosa. Não tive mais

dúvidas. Talvez, estivesse superestimando Rhodan. Se

fosse assim, logo depois de eu ter saltado, seus raios

energéticos me teriam fuzilado.

Peguei a arma e fui me arrastando olhando para um

ponto de melhor proteção à frente. Em meio à subida,

havia uns blocos de pedra de onde teria uma boa visão.

Pulei para cima da pedra e fiquei farejando. Depois

começou a corrida, uma corrida louca que a gente

consegue fazer só em momentos de grande perigo e de

desespero. Com seis pulos, tinha resolvido à questão da

visibilidade. Enquanto corria, vi, bem para trás um

outro homem.

Era Perry Rhodan que fez uma coisa da qual só me

conscientizei momentos depois. Quando eu ainda

estava deitado na areia, ofegante, desviando os olhos

do metal incandescente, Perry já estava agindo. Engoli

uma praga e cedi ao meu instinto que me aconselhava,

antes de tudo, arranjar uma proteção. Isto queria dizer

que eu tinha de correr, mais uns duzentos metros.

Durante este tempo, Rhodan também avançou 200

metros. Mas ele não podia correr essa distância melhor

do que eu.

É verdade que resistia às transições muito melhor

do que eu, o que não significava nada em relação à

força física. Choques do hipersalto atuam

profundamente no sistema nervoso. Conheci homens

fortíssimos, que num pequeno salto espacial se sentiam

sempre quebrados.

Estas ponderações passavam com toda clareza por

minha mente, enquanto eu corria. Com o rabo do olho

procurava por novas possibilidades de um abrigo.

Porém, minha grande atenção mesmo era para Rhodan,

que em tempo de corredor bem treinado disparava pelo

deserto quase que plano.

Era um esforço tremendo correr tão depressa com o

pesado traje espacial. Ainda estávamos mais ou menos

em forma. Mas que aconteceria se cada um descobrisse

o plano do adversário, tão depressa que um não

conseguisse pegar o outro?

Neste momento houve mais uma comunicação do

meu sexto sentido:

“Bobo, deite no chão, respire três vezes e atire. Ele

está sem proteção.”

Claro que isto era também uma alternativa. Rhodan

ainda não havia virado para trás, nem uma vez. Apesar

de tudo, não me deitei no chão para melhor atirar.

Conhecia minhas limitações e sabia também que, com

mãos trêmulas e com o coração em elevada pulsação,

não conseguiria boa pontaria. Puxar o gatilho era muito

simples, mas acertar eram outros quinhentos. Se eu

errasse o primeiro tiro, ele certamente procuraria um

abrigo. Haveria de achar, certamente, uma pequena

elevação do solo, em qualquer lugar, e então eu ficaria

mais exposto do que ele. Quem teria no caso mais

chances? Cheguei à conclusão de que era ele, por isso

continuei a correr.

Se ele, por descuido, me desse tempo de atingir os

blocos de pedra, minha situação melhoraria muito.

Aumentei meu tempo e fiquei admirado como os

miseráveis 200 metros tornavam-se tão longos. Meus

pulmões estavam estourando quando alcancei a

pequena elevação e me atirei ao chão entre dois

poderosos rochedos.

Não compreendia como meu corpo bem treinado,

podia sentir-se cansado numa corrida mínima. Diante

49

Page 31: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

31

dos meus olhos sonhadores dançavam os círculos

olímpicos... Levei alguns segundos até poder ver de

novo com clareza. Instantes depois minha vontade

firmou-se. Não iria mais dar tiro só para espantar,

Rhodan era mesmo meu inimigo. Se ele conseguisse

chegar à cúpula antes de mim, eu estaria perdido.

Com toda certeza, a base devia estar muito bem

munida. Logicamente disporia também de aparelhagem

de rádio, para pedir socorro. Simplesmente o fato de,

chegando antes de mim, ter tempo de ligar o envoltório

de proteção, decidiria meu destino. Na pior das

hipóteses, ele me poderia deixar morrer de sede no

árido deserto. Tinha na mochila somente dois litros de

água.

Caso eu chegasse antes dele na cúpula, o quadro

estaria invertido. Os limites estavam bem delineados:

era um caso de vida ou morte. Já estava com arma

engatilhada e o visor não precisava de regulagem. Um

raio térmico ultrarrápido tinha sempre uma trajetória

reta, jamais podendo ser prejudicada pela força da

gravidade ou por fortes ventos ou ainda por simples

resistência do ar. Quando ele me estivesse sob a mira,

não haveria mais dúvida. Num planeta de rara

atmosfera, a exatidão do tiro seria absoluta.

Escolhi bem o ângulo e atirei. Um verdadeiro

trovão soou no meu ouvido, a arma deu um forte coice

e o cano se levantou um pouco. Mas o tiro já tinha

saído. Bem rente ao homem que corria, surgiu uma

cratera de lava incandescente e Rhodan foi atirado para

o lado, caindo de rosto no chão. Se eu tivesse contado

mais com sua fantástica capacidade de reação, teria

evitado o próximo erro. Levei dois segundos, para,

com meus olhos ofuscados pelo clarão, poder ver bem

a mira.

Exatamente neste meio tempo, Rhodan deu um

salto para o alto, de tal modo que não pude mais

interromper o tiro. No lugar onde ele estava antes,

bateu a nova carga, abrindo de novo um buraco na

areia. Atirei mais uma vez, mas o diabo do homem já

havia desaparecido, tinha realmente achado um abrigo.

E apesar de minha localização mais elevada, eu não o

avistava.

De respiração tensa, fiquei aguardando. A distância

seria mais ou menos uns 400 metros, o que não

representava nada para uma arma energética de amplo

alcance.

A parte de transmissão do meu aparelho de rádio

estava desligada há tempo. O receptor, porém, estava

ligado. Aumentei o volume e fiquei na escuta, com

toda atenção. Fora dos ruídos normais de estática, não

se ouvia nada. Aí, comecei a cismar que Rhodan

também havia desligado o transmissor. Certamente

estaria procurando controlar a respiração.

Comecei a rir para mim mesmo, até que foi

surgindo um pensamento que me inquietou. Por que

Rhodan não foi atingido com o primeiro tiro? Foi um

disparo bem certeiro. Minha memória fotográfica me

lembrou de que estes modernos trajes espaciais

possuem um gerador de campo. Naturalmente, no calor

da refrega, tinha me esquecido de ligar o envoltório de

proteção.

Tive de fazer um grande esforço para não ficar

furioso comigo mesmo. Quem sabe se o envoltório não

aguentaria mesmo um tiro em cheio, mas normalmente

devia ser à prova de ferimentos mortais. Tentei então

recuperar o que havia perdido.

A lâmpada de controle, acesa na região torácica do

uniforme, indicava que tudo estava em ordem. O leve

cintilar era quase imperceptível. Fiquei perplexo

quando li o indicador do registro: como poderia eu, nos

poucos momentos desde a aterrissagem, ter consumido

24 quilowatts-hora? Olhei mais uma vez, à procura de

um possível engano, quando ouvi de repente um estalo

no alto-falante do capacete. Fiquei a princípio

assustado, procurando encontrar a transmissão. Mas, só

pelo ouvido, não era possível. Não se podia supor que

Rhodan trabalhasse com raios dirigidos em feixe.

Talvez ele estivesse irradiando em todas as direções.

Por via de dúvidas, examinei a instalação da antena no

capacete. Não, não estava regulada para raios dirigidos

em feixe.

Continuou aumentando o número de estalos. De

súbito, se podia ouvir a respiração de alguém. Soava

regular e equilibrada. Na chapa espelhada do meu

capacete percebi que meus lábios se contraíam para um

sorriso. Se este rapaz estava pensando que ia me

desconcertar com truques psicológicos, estaria

enganado pela segunda vez, e redondamente. De

qualquer maneira, o pensamento não era nada mau,

querer deixar o inimigo na dúvida quanto ao paradeiro

certo.

— Alô, arcônida, você está me ouvindo? — soou

alto demais e eu abaixei o volume imediatamente.

Então comecei a respirar com muita calma e liguei o

transmissor.

— Estou ouvindo, bárbaro. Que quer? Está

implorando piedade? Você está sob a minha pontaria,

vou apertar o gatilho daqui a dois minutos.

A gargalhada de Rhodan me fez morder os lábios

de raiva. Ele sabia que eu não podia vê-lo, que mal

conhecia sua direção.

— Seu bobo — respondeu ele com voz suave. —

Em minhas incursões em Árcon liquidei centenas de

pessoas iguais a você de uma vez só.

Fiquei trêmulo de ira. Sabia onde me queria atingir.

Para me dominar, tinha que fingir tornar-se indiferente.

Como se não ligasse, esforçando-me até para rir. Mas

era difícil, não estava em minha natureza. De qualquer

maneira, estava ficando mais fácil quando eu pensava

que ele dizia aquelas palavras ofensivo para me

desmoralizar ou para me obrigar a um gesto

impensado. Custou, mas fui me tornando indiferente às

Page 32: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

32

ofensas.

Rhodan continuava rindo. Interrompi-o, dizendo:

— Economize seu ar, bárbaro. Se eu o deixar sair

vivo daqui, será para levá-lo para uma corte marcial do

Império.

A afirmativa era um tanto ousada. Tinha o fim,

apenas, de obrigá-lo a um pouco mais de ponderação.

Parece que mordeu a isca.

— É interessante mesmo. Você é um agente cômico

do Império.

É claro que não era nenhum agente, mas isto não

era da conta dele.

— O que você pensa, hein? Um pouco tarde, é

verdade, mas descobrimos que sua prolongada morte

em 1984 foi um simples truque. Agora temos você e

seu ridículo Reino Planetário, que num criminoso

atrevimento chama de Império, em nosso poder.

Vamos ajustar as contas logo, seu bárbaro.

Havia cometido um erro, só não sabia qual era.

Rhodan gargalhava gostosamente e desta vez havia

sinceridade total em sua voz.

— Arcônida, ninguém no Império de Árcon poderia

saber que no tempo de minha suposta morte, a Terra

estava no ano 1984.

— É! — disse eu em tom de zombaria.

— Você também não vem diretamente dos três

planetas, seu sonhador. A “Enciclopédia Terrânia” lhe

contou muita coisa sobre a evolução da Humanidade,

mas isto não basta para você querer me enganar.

Estava realmente me deixando confuso.

Naturalmente, teria sabido por intermédio do general

Kosnow, de que maneira eu havia aparecido entre os

homens, pela primeira vez.

— Nós não dependemos de sua enciclopédia. Basta

afirmar que eu o encontrei.

— Você serviria a um robô e receberia ordens dele?

— perguntou, enraivecido.

Eu estava indignado profundamente. Era muito

comum fazerem tais considerações. E ele repetiu:

— Você seria escravo de um robô?

Eu batia com os dentes, de tanta ira.

Que palavra terrível: escravo de um robô... Ouvi

uns ruídos, depois que a gargalhada de Rhodan

terminou.

— Está certo, arcônida. Está tudo muito claro.

Quando uma pessoa fica tão excitada e nervosa como

você, é um sinal que não é um arcônida. Já há muitos

anos que o Império está sob a regência absoluta de um

cérebro positrônico, sob cujo chicote até o sereníssimo

imperador tem que dançar.

— Mentira deslavada — gritei fora de mim.

— Não me importo, entende? Não se pode ajudar a

quem não quer ver a realidade. Está certo. Sei que você

é um pobre solitário. Quer me dizer seu nome?

Concentrei-me bem depressa. Ele estava a par de

toda a minha mentira. Jamais conseguiria que ele

ficasse nervoso.

— Meu nome é Atlan, comandante da frota do

Grande Império, cientista e técnico de primeira classe,

nos ramos de Colonização do Cosmo e de Técnica de

Superenergia. Vou transformar seu sistema solar em

nossa colônia, seu bárbaro.

Houve um silêncio e eu me senti contente de que

ele agora sabia com quem estava tratando.

— Não deixa de ser um orgulho ridículo,

ilustríssimo — foi à resposta irônica. — Minha atual

esposa também falava assim, há muito tempo atrás. O

nome Thora, da estirpe dos Zoltral, representa alguma

coisa para você?

— Sim, é claro. Conheço o nome apenas pelo

estudo da história.

— Ela casou comigo, um terrano. Temos um filho.

Você não acha que esta arcônida de sangue nobre teve

motivos suficientes para casar com um terrano?

Novamente comecei a morder os lábios. Era um

problema que nunca me passou pela cabeça. Não

respondi nada.

— Está certo, é bom pensar um pouco. Atlan, não é

assim seu nome? Bem, Atlan, agora preste atenção.

Eu me surpreendi já com uma risada sardônica.

Agora chegaria naturalmente o momento das

ponderações para eu depor a arma.

— Sabendo que o Grande Império Arcônida está

chegando ao fim, Thora aceitou meu pedido de

casamento. Hoje não existem fronteiras raciais e seu

orgulho não tem mais razão de ser. Ofereço-lhe, pois,

uma rendição honrosa.

— Rendição? — respondi revoltado.

— Naturalmente. Ou você acha que vou deixá-lo

voltar sem mais nem menos para Árcon, para você

espalhar para meio mundo o que está acontecendo aqui

em nosso pequeno planeta, tido como completamente

destruído? De maneira alguma. Tente compreender isto

e saia de seu esconderijo de mãos ao alto.

Parecia muita petulância e eu não aceitei.

— Quero ser seu amigo e não seu prisioneiro, seu

bárbaro.

Rhodan sorria serenamente.

— Muito esquisito Atlan! Como se pode chamar de

bárbaro alguém que se deseja para amigo?

Olhei aborrecido para a direção do seu esconderijo.

Realmente, ele tinha razão.

— Agradeça aos céus que eu não o chamo de

monstro — respondi-lhe em tom mais amistoso.

Houve silêncio, nesse duelo suigeneris. Finalmente,

falou com grande calma:

— Atlan, se você não quer se entregar, eu me sinto

obrigado a destruí-lo. E isto se torna para mim

grandemente doloroso, mas você não me dá outra

opção.

— Experimente fazê-lo.

— Vou fazê-lo. Nossa água não dá para muitas

Page 33: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

33

horas. Daqui a 72 horas os microrreatores não mais

funcionarão. Este planeta fica muito distanciado da

Terra. Nós o chamamos de Hellgate, porque é

realmente a porta do inferno. Você já deu uma olhada

para o termômetro externo?

Realmente, não havia me preocupado com isso até

então. Foi aí que reparei como a aparelhagem técnica

do meu traje espacial tinha consumido tanta energia.

Tive então calma para observar o chiado da instalação

de ar condicionado. Há tempo que a luzinha vermelha,

indicadora de carga deficiente, estava acesa. A

temperatura externa, ao sol, era de 148,3 graus Celsius.

Só agora pude compreender por que aquela correria de

apenas 200 metros me cansou tanto. Meu traje espacial

já estava há muito tempo além dos limites de sua

capacidade.

Logo depois comecei a sentir pontadas nos

pulmões. O ar que respirava estava demasiadamente

quente. Conforme o termômetro, a temperatura interna

era de 41,7 graus Celsius. Pessoas do meu tipo, em

geral, não transpiram. No entanto, eu já estava banhado

em suor. Estando bem próximo do sol, o calor neste

planeta era assombroso, fazendo jus ao nome de

Hellgate, ou seja, “Porta do Inferno”.

— Então, arcônida? — continuava a pergunta de

Rhodan. Sem o querer, estava colocando à minha

disposição uma arma psicológica.

— Ótimo — disse eu com muita pose e entonação.

— Uma temperatura muito boa para a saúde, não é,

bárbaro? Sempre senti frio em seu mundo gelado. Você

deve saber que o sol de Árcon, muitas vezes maior que

o da Terra, é também muito mais quente que o seu

solzinho de doze meses. Cresci com aquele sol

inclemente na cabeça. Ainda estarei cem por cento

quando você estiver se afogando no próprio suor.

Talvez você vá-se transformar em carne-seca.

Ele me chamou de doido varrido e eu só pude rir.

— Minha proposta, seu bárbaro: se entregue logo,

eu não lhe farei mal algum. Se você realmente for

inteligente...

— Sem comentário — interrompeu-me ele. — Pois

bem, Atlan, considere, então, que daqui em diante

estamos em estado de guerra.

— Aceito, selvagem. Olhe muito para sua água.

Estes miseráveis dois litros, você os consumirá em

pouco tempo. A temperatura externa para você também

é de 148,3 graus, não é? Formidável, formidável, como

isso faz bem ao meu metabolismo. Isto é que é um

calor de verdade. Quer que lhe ceda um litro de

líquido? Atlan está com tudo, bárbaro. Topo qualquer

parada.

Rhodan não disse uma palavra. Tinha certeza de tê-

lo atingido com meus argumentos convincentes. Nós os

arcônidas aguentamos de fato o calor com muito mais

facilidade do que os habitantes da Terra. Minha grande

sorte foi que Rhodan não sabia há quanto tempo eu já

estava na Terra e que meu organismo estava mais

adaptado às condições climáticas deste planeta.

Minha garganta estava completamente ressecada,

pois estivera quase uma hora exposto ao sol. Olhei

pesaroso para a direção dos rochedos. Do outro lado

deles, haveria sombra. Porém ficaria ao alcance de

Rhodan. Diante de meus olhos, aros de fogo

começaram a dançar.

— Estamos, pois, em estado de beligerância, —

foram as últimas palavras de Rhodan antes de desligar

o microfone.

Eu também desliguei o meu. Um silêncio fúnebre

se estendeu sobre o deserto de areia e de pedras do

planeta apelidado “Porta do Inferno”, como um mar

sem fim.

Levando a mão em pala e piscando muito, tentei

olhar para o alto, desejando que a noite viesse o quanto

antes. O calor teria então que diminuir. Finalmente,

afastei-me um pouco das pedras escaldantes e desliguei

meu campo energético, para economizar energia. O

diminuto transformador térmico já estava há muito em

sobrecarga e o envoltório de proteção não adiantava

nada contra a irradiação solar.

Do outro lado, nada se movia. Rhodan não se

atrevia a sair de seu abrigo. E assim começou a longa

vigília: um espreitando o outro. Era o início de uma

lenta agonia.

De um momento para o outro, todos os meus

sentidos desapareceram, como se alguém me tivesse

injetado nos pulmões um gás entorpecente. Quando

acordei com dores alucinantes nas vias respiratórias,

haviam se passado apenas dois minutos. O desmaio foi,

pois, muito curto, mas não deixou de ser um alarme

importante.

Já eram decorridas quase doze horas desde que

Rhodan se comunicara pela última vez. Neste tempo

todo, Rhodan não deu sinal de si, pois certamente

queria provocar um suspense quanto ao seu estado

físico. Também eu não me manifestei. Já havia

consumido um litro de água. Era necessário um

57

Page 34: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

34

autodomínio fantástico para retirar da boca o

canudinho de sucção, quando o nível da água chegava

ao ponto determinado pela prudência. Ultrapassá-lo

seria uma loucura. Já há três horas que meu

subconsciente trabalhava apenas em função do

fantasma da água. Era um desfile de quadros de um só

assunto: líquido, líquido de todos os tipos,

principalmente sob a forma de água comum.

Durante seis horas, transpirei sem parar. Estava

chegando a fase do ressecamento. Era como se meu

organismo não tivesse mais uma gota de líquido.

Se conseguisse, com o máximo de autodomínio,

conter o desejo irresistível de água, procuraria depois

refletir um pouco sobre a situação. Estava deitado sob

o sol, sem nenhuma proteção. A temperatura externa

continuava a mesma, cerca de 148,5 graus Celsius. A

areia do deserto estava ainda mais quente.

Assim, para minorar a situação, comecei a mudar

de posição em intervalos de no máximo de três

minutos, para dar vazão ao calor proveniente do chão

causticante. Deitava-me de barriga para baixo, depois

de lado e finalmente de costas. Este movimento

constante, porém, exigia muita energia. Com cada

mudança de posição, notei que as forças iam

diminuindo e minha resistência ia chegando a zero.

Estas doze horas se transformaram numa

eternidade. Estava chegando ao ponto que muitos

homens e arcônidas tinham conseguido superar antes

de mim. É o momento crítico em que a lógica e o

pensamento claro desaparecem. Dá-se um curto-

circuito na central de comando do cérebro. Estes

segundos de pânico transformaram, em todos os

tempos da história, simples cidadãos em heróis e

tornaram covardes, guerreiros destemidos que

enfrentaram a morte com denodo.

Sabia que não ia aguentar por muito tempo esta

situação. Minha aparelhagem de refrigeração — cuja

finalidade não era apenas eliminar a umidade natural

do corpo, mas também e principalmente absorver os

terríveis raios do sol inclemente — já estava

começando a pifar.

A instalação para fornecimento de oxigênio e

purificação do ar não funcionava mais. A capacidade

máxima de resistência do traje espacial era de 150

graus Celsius. Dei ainda, por minha conta, uma

margem de segurança de 5 graus, mas com isto a

instalação devia mesmo ter chegado ao fim.

Meu microrreator tinha uma potência de 50

quilowatts por hora, isto calculado como boa margem

de segurança, pois nunca se precisaria de tanta energia.

Mas até este aparelho estava em sobrecarga. Só o

campo de reflexão da instalação de ar condicionado

necessitava de 45 Kw para poder funcionar

normalmente.

A filtragem do ar carecia de 2 mil Watts e o sistema

de refrigeração comia 3 mil Watts por hora. Tudo isto

dava um montante de consumo de energia tal que as

reduzidas baterias e transformadores mal podiam

cobrir.

No envoltório de proteção para defesa contra

corpos materiais e contra irradiações energéticas ou

ionizantes nem era bom pensar. Mesmo em condições

normais, ele já consumia 50 quilowatts.

Se pudesse encontrar um material condutor, teria

chegado à ideia maluca de adaptar o microconversor de

impulsos de minha pistola térmica. Mas não encontrei

nos bolsos do traje nem um pedacinho de fio metálico.

Minha garganta não estava aceitando a abundante

alimentação concentrada, empacotada na mochila do

traje espacial. Também não tinha fome.

Mas, meu maior sofrimento era provocado quando

respirava o ar escaldante. A temperatura interna havia

subido para 50,8 graus. Mais ou menos da mesma

temperatura era a horrível mistura de oxigênio com

hélio. Tinha ar para 72 horas, mas com toda a certeza

minha vida não iria tão longe assim.

Chegou a hora de outra fase de desmaio. Num

esforço ingente, tentei concentrar a atenção em alguma

coisa e fiquei olhando para o ponto onde Perry Rhodan

devia também estar deitado na areia ardente. Ainda

podia ver a mancha vitrificada do meu último disparo

energética, no chão de areia. Pelos meus cálculos, aliás,

sempre bem feitos, Rhodan não podia estar a mais de

30 metros daquele local. Não podia ter caminhado mais

do que isto, em todo este tempo.

Tinha que vigiar uma extensão de uns sessenta

metros de raio em torno de mim, para não ser apanhado

de surpresa pelo adversário. Com a luneta de mira de

minha pistola energética, varria constantemente o

terreno em volta, sem nada encontrar. Talvez não

houvesse mesmo nenhuma reentrância no solo arenoso

onde Rhodan pudesse se abrigar ou ir se arrastando.

Por muito tempo, fiquei refletindo sobre a

conveniência ou não de varrer com disparos

energéticos aquela pequena área. Mas cheguei à

conclusão de que era muito improvável atingir meu

adversário, talvez abrigado numa saliência rochosa. Os

prós e os contras deste plano apresentavam um quadro

negativo. Caso não encontrasse, em pouco tempo, o

paradeiro de Rhodan, ele me teria facilmente sob a

mira de sua arma. Já no meu primeiro tiro, ele

certamente localizou bem minha direção.

Desisti, pois, da ideia maluca e fiquei esperando

que o bárbaro perdesse a paciência. Pelo rastro na areia

do meu último disparo, Rhodan poderia perceber muito

bem que eu estava numa pequena elevação.

Podia também determinar a direção, pois o disparo

deixara uma cratera bem alongada. Uma angulação

perfeita, porém, não seria possível, pois estava a mais

de 30 metros de mim. Se existisse só uma elevação,

seria uma maravilha para Rhodan. Mas eram três e eu

poderia estar em qualquer uma delas.

Page 35: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

35

Por este mesmo motivo, Rhodan não iria atirar, pois

sabia que com isso eu iria descobrir seu paradeiro.

Nesta luta de trincheira, de um ficar espreitando o

outro, tudo dependia de quem cometesse o primeiro

erro. Para encontrar um abrigo conveniente, teria que

passar por campo aberto. Mais para trás, cerca de um

quilômetro, estendia-se um trecho mais montanhoso,

calcinado pelo sol. Lá em cima haveria não somente

esplêndidos pontos de defesa, mas, sobretudo trechos

de sombra.

Estava mordendo meus super-ressecados lábios,

quando meus olhos indecisos perceberam uma caverna

funda e escura. Estava fresco lá dentro; um tanto mais

fresco. No máximo cem graus de calor... Inebriei-me

com uma temperatura que normalmente me seria

insuportável. Os apenas cem graus de calor me

pareciam um suave lenitivo. A instalação de ar

condicionado poderia descansar um pouco. O reator

também funcionaria melhor.

Nuvens incandescentes começaram, de repente, a

dançar na minha frente. Do meio delas, saltou

subitamente a figura de Rhodan. Passou correndo na

minha frente, dando uma enorme gargalhada e me

atirando areia com chutes de suas botas.

Consegui me controlar no último instante. O cano

de minha arma já estava saindo do vão das pedras,

quando despertei da alucinação.

O fantasma de Perry Rhodan se desfez diante de

mim, restando apenas o deserto, uma superfície

desesperadora de areia clara e ofuscante, com milhões

e milhões de cristais reverberando a luz e o calor.

Queria gritar um pesado palavrão, mas minha garganta

não conseguiu emitir som. De novo a vontade louca de

tomar água. Ainda me restava um litro. Encolhi o

corpo e dei um soco no capacete pressurizado. Só o

pensamento de que Rhodan estava passando pelo

mesmo sofrimento é que me dava um pouco de alento.

Tinha, porém, o pressentimento de que alguma coisa

haveria de acontecer.

Senti, de súbito, um impulso do meu sexto sentido.

Um calafrio me percorreu a espinha dorsal.

“Ele tem dons telepáticos! Não descuide de seu

bloqueio mental!”

Senti-me mais resistente a alucinações. No reflexo

do vidro da viseira do capacete, reparei na palidez do

meu semblante. É claro que não devia relaxar minha

defesa mental, mesmo que isto fosse muito difícil

devido ao meu estado físico depauperado. Se Rhodan

me captasse o pensamento, também descobriria meu

paradeiro. E então, não teria mais força para resistir.

Comecei a praguejar em voz alta, mas saía apenas

um chiado rouco. Porém de qualquer maneira, era

minha voz e isto me estava encorajando. Fiquei de

repente bem lúcido e minha visão mais nítida.

Aquilo tinha sido planejado. Planejado

psicologicamente à base da necessidade louca de água

que martiriza a pobre criatura. Todo meu pensamento

agora tinha que ser sem muita profundidade. Eu não

podia formar em mim ideias lúcidas.

Poderia apelar somente para os instintos mais

primitivos, e nada mais. Sentimentos e desejos do

subconsciente jamais chegam, em geral, a ser

expressos por palavras formais. Resumindo, somente

devia admitir conceitos referentes à avidez de água

para o corpo ressecado.

De um momento para o outro, tentei a lucidez de

pensamento. Uma esperança nova me arrancou da

letargia e deu forma ao meu plano. Já estava pronto.

Rhodan devia fazer com que eu percebesse o local do

seu esconderijo. O modo de conseguir isto, não me

interessava. Para o quê eu me formara em

Cosmopsicologia? Conhecia muito bem os homens.

Com muita ponderação, dominando toda avidez,

sorvi um pouco de água. Em cada gole, gargarejava

bastante, até que o líquido fosse bem absorvido pelos

tecidos ressecados. Não queria propriamente beber,

mas avivar um pouco minhas cordas vocais. Depois de

cada gole, dizia alguma coisa em voz alta e bem

articulada. Quanto mais água penetrava na garganta,

tanto melhor ficava minha voz. Estava correndo o risco

de desperdiçar meu resto de água.

Depois de ter bebido quase meio litro, minha voz

estava perfeita. Comecei a cantar com voz média uma

modinha popular, até ter a certeza de poder cantar

também os sons agudos. Após o exercício da voz, veio

mais um gole. Este era mesmo para beber.

A seguir, comecei a ajeitar o texto imaginário.

Parecia uma coisa boba, mas tinha sua finalidade.

Tratava-se dos conceitos “água” e “beber”. Somente

isso. As duas palavras deviam aparecer o mais

frequente possível no “texto”.

Fiz ainda um teste geral da minha voz e da canção.

Finalmente liguei o transmissor do capacete. Podia me

arriscar a isto, pois seu consumo era apenas de 5 Watts.

— Alô, bárbaro, como vai? — disse eu com a

maior naturalidade e voz descansada no pequeno

microfone.

Isso devia deixar Rhodan meio maluco e

desorientado. Naturalmente sua garganta não iria ter

som algum e não seria homem para falar com voz

deficiente. Mas haveria de me ouvir e era isto que me

interessava.

Dei uma gargalhada de pulmão cheio.

— Alô, bárbaro! Estou com lágrimas nos olhos de

tanto rir. Puxa, meu rosto está todo molhado e o

culpado é você. Por que me provoca o riso desta

maneira?

Parei de falar e fiquei na escuta. Primeiramente foi

a palavrinha “molhado”. Tinha que agir com técnica

para que afrouxasse um pouco a vigilância e

cochilasse. Talvez estivesse sentindo muito mais sede

do que eu, pois um homem não pode aguentar tanto

Page 36: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

36

sem água como um arcônida. Se meus cálculos não me

falham, devia ter ainda, no máximo, algumas gotas,

apesar de todo seu autodomínio. Tudo de uma vez, não

poderia ter bebido. Um homem do tipo de Rhodan não

faria isso.

— Alô, bárbaro! Por que não responde? —

exclamei mais alto ainda. — Será que devo lhe dar um

pouco do meu “tanque”? Até agora tomei poucos

goles. Então, Rhodan, como vão as coisas? Nenhuma

resposta, hein? Já vi muitos terranos morrerem de sede.

Qual é a sua situação? Quer se render agora?

Cumprirei minha palavra, não o matarei. Alô,

responda, por favor...

Comecei a rir de novo em voz alta, sabendo que ele

não ia mesmo responder. Mesmo que quisesse, a voz

não lhe obedeceria. Comecei então a pôr em prática o

meu plano. Devia ser horrível para ele. Certamente

ainda estaria pensando nas minhas lágrimas “úmidas”.

— Alô, bárbaro! Vou cantar uma linda canção em

sua homenagem. Você conhece a melodia. É para

distraí-lo um pouco, nesta solidão sem fim. Preste bem

atenção no texto, é de minha lavra, do amigo Atlan,

aquele que você não quis ouvir.

E comecei a cantar:

A água é divina,

É uma coisa fina.

Como é bom beber

A água a correr.

Água da mina

Que vai pra piscina,

Vem refrescar

Minha triste sina.

Poesia com fins psicológicos, ridícula e boba, onde,

porém, a rima tem um efeito de bomba sentimental.

Continuei a cantar, sempre a mesma coisa. “A água é

divina, é uma coisa fina, como é bom beber.”

Tinha certeza de que ele estava ouvindo e não teria

força para desligar o receptor, preso que estava aos

desejos subconscientes. Talvez até sentisse

alucinações.

Continuei cantando, sempre as mesmas palavras,

até ficar com a garganta completamente seca de novo.

Já estava aceitando o fracasso irremediável de todo o

meu plano, quando aconteceu o inesperado.

Ouvi um ruído horroroso no alto-falante do meu

capacete. Alguém queria gritar, mas a garganta não

funcionava. A apenas uns 400 metros houve um clarão

amarelado. A trajetória incandescente dos raios

energéticos veio bater no flanco de uma pequena

elevação, a uns trinta metros de mim, produzindo uma

cratera de areia candente.

Era isso mesmo. O coitado tinha perdido o controle

do sistema nervoso e atirado. Fixei bem o ponto de

onde veio o tiro. Depois do seu segundo disparo, eu

comecei também a atirar. A arma saltou de minha mão

e escorregou para o lado.

Do outro front vinha fogo cerrado e destruidor. Mas

cessou de repente. Eu dei mais de vinte tiros na direção

de onde vieram seus disparos, parando somente quando

o dispositivo automático deu sinal de alarme. A arma

atingira a temperatura limite. Agora tinha de esfriar.

Do outro lado só se via uma enorme cratera de

pedras e areia incandescentes. Rhodan não estava mais

vivo.

Abobalhado e apático fiquei olhando para lá. Sabia

que havia matado um homem que poderia ter sido meu

maior amigo. Com muita dificuldade, fui caminhando,

sem direção certa. A grande cúpula, com seus tesouros

tentadores, ficava a uma distância de um quilômetro e

meio. A elevação que lhe servia de pedestal ficava

próxima. Meu caminhar por aquela areia escaldante

não tinha mais sentido nenhum. Pareciam mortos todos

os meus sentimentos e anseios. Ele me salvou da

aeronave em chamas. Se não tivesse feito isto, não teria

tido tanto aborrecimento. Minha consciência estava

pesada. Tomei as últimas gotas de água. Haveria de

vencer aquela pequena distância.

Para os mil metros até os pés do morro, cuja altura

oscilava em torno de uns cinquenta metros, gastaram

quase uma hora. Ao chegar à sombra do pequeno

morro, deixei-me cair para descansar. Deitei de braço e

pernas abertas. Joguei a arma para o lado, como se não

precisasse mais dela.

Ao virar a cabeça, depois de algum tempo de

repouso, vi um fantasma caminhando pelo deserto.

Comecei a rir desta alucinação, até que a aparição se

ajoelhou na minha frente e começou a gingar a metade

superior do corpo. Levantou um dos braços ao ar e

qualquer coisa metálica reluzia em sua mão.

Eu estava paralisado, de olhos fixos naquele objeto

cintilante, quando dele começaram a sair jatos de fogo,

a uns dez metros da minha cabeça. Pedaços de rocha

incandescentes sibilavam próximas do meu corpo. E o

fantasma continuava atirando, mesmo depois de se

levantar. Pôs-se em movimento, atirando sempre, até

desaparecer atrás de uma rocha.

Minha alucinação tinha sido naturalmente Rhodan,

que logo depois que eu comecei a caminhar para o

morro, também mudou de abrigo. Certamente ele

estava me vendo durante todo o tempo que eu

descansava e não atirou em mim. Por que motivo?

Bondade pessoal dele? Ou por que meu choque

“psicológico” o arrasou emocionalmente?

Não, certamente não. Simplesmente ele não tinha

mais força para atirar. Quando se está extenuado, até

um palito de fósforo pesa mais do que um saco de

farinha. Somente agora, depois que eu virei o rosto

para ele, é que começou a atirar contra mim, sem

atingir nem mesmo a direção onde me encontrava.

Não estava mais me preocupando em saber como

este infeliz ainda estava vivo. No fundo, eu o estava

admirando, admirando cada vez mais.

Page 37: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

37

Instantes após, lá ia eu desaparecendo entre as

rochas, levando comigo ainda a arma. O calor estava

tenaz e não tinha mais uma gota de água. E, no entanto

a cúpula da esperança achava-se a 400 metros, com

uma estrada de suave aclive e muito cômoda.

Tivemos mais oito horas de vigilância e espreita

mútua. Quase todos os truques imagináveis foram

empregados para deixar o adversário fora de combate.

Os menores detalhes eram vitais, pois qualquer erro

teria consequências fatais. A luta era para valer.

Mutuamente nos xingamos, gritamos e nos ameaçamos.

Ambos exigimos a rendição do adversário, mas

ninguém cedia, e não podia ceder mesmo.

Éramos como água e fogo. Quando ele atirava, suas

mãos estavam trêmulas e os olhos confusos. E, quando

eu o tinha sob minha mira, ao mudar de posição, fazia

uma série de disparos, mas sem atingi-lo. Parecia até

que a retícula da mira telescópica da arma estava

trabalhando contra mim. Quando eu tinha Rhodan no

centro da pontaria, a imagem se transformava em rodas

de fogo, e o tiro se perdia.

Dentro do traje espacial, o termômetro acusava 59,3

graus Celsius. A esperança de poder me refrescar um

pouco numa caverna menos quente do morro, foi

frustrada por Rhodan. Rhodan não tinha dó.

Certamente, ele está, mais uma vez, identificado com

sua querida Humanidade, a quem ele trairia no

momento em que permitisse minha entrada na cúpula.

Parece que este pensamento lhe dava forças

descomunais, transformando-o, por assim dizer, num

mártir da Humanidade. Quando julgava ter descoberto

um caminho para a base, imediatamente era coberto

por uma saraivada de tiros. Este bárbaro não sabia o

que era repouso. Talvez estivesse mesmo meio

inconsciente. Talvez não tivesse uma gota d’água,

depois desta caminhada toda pelo deserto escaldante.

Já havia renunciado há muito tempo à explicação

de um fenômeno que no começo me preocupava muito:

como é que Rhodan podia ainda estar vivo e resistindo

daquela maneira... Esgotado, exausto física e

mentalmente, muito além da força humana. Se

demorássemos apenas mais uma hora, nenhum dos dois

conseguiria chegar até a cúpula. Estávamos tão

alquebrados pelo ressecamento interno, pelo cansaço,

sob o fogo inclemente do sol, que não chegaríamos

mais, com as próprias forças, aos pés da base.

Tive um desmaio de alguns minutos. Quando

recuperei os sentidos, minha vista não estava

funcionando. Apalpei a procura de minha arma e não a

achei mais. Além disso, já não tinha forças para

carregá-la. Minha cabeça também estava falhando.

Com muito esforço, ainda consegui ouvir um impulso

muito débil do meu sexto sentido, que me sussurrava:

“Desistir. Ele também está obrigado a isto. Vá se

arrastando até a cúpula.”

Levei muitos minutos até conseguir me levantar.

Com o tubinho na boca sugava desesperadamente. Mas

não havia mais nada no recipiente d’água. Braços e

pernas pareciam galhos mortos de uma árvore caída.

Não sei de onde me veio à força que moveu meus pés e

joelhos, para me arrastar rumo à base.

Depois de muito tempo, havia progredido um

metro. Faltavam ainda sete. Queria dar expansão ao

meu desespero, mas a garganta não conseguiu produzir

nenhum som, a não ser um chiado oco.

O equipamento de refrigeração também já estava

pifando. O ar que me entrava no pulmão parecia ser

feito agulhas em brasa. Os reforços metálicos das

articulações do queixo e dos braços estavam fervendo.

Não recebendo mais a refrigeração necessária,

queimavam minha pele. Não podia nem gritar. Sentia

apenas a dor horrível e uma ânsia desesperada de

poder, ainda, no último instante, atingir a alavanca do

automático do mecanismo de abertura.

Percebi, ao meu lado, um vulto que também se

arrastava na direção da rocha escaldante. A cabeça

esticada para frente. Perry Rhodan se havia igualmente

desfeito da arma. Assim, nos arrastamos lado a lado

para a entrada da escotilha de ar, pintada de vermelho-

berrante.

Para cada metro, precisávamos de dez minutos.

Através do transmissor do capacete ouvíamos o chiar

das respirações ofegantes. E aí ficamos sabendo que

cada um tinha tentado sempre enganar o outro.

Não conseguia mais reconhecer as coisas. A única

coisa que ainda prendia minha atenção era a porta

vermelha, que parecia exercer uma atração mágica. A

presença de Rhodan era para mim uma coisa nebulosa,

mais imaginada do que propriamente vista Depois de

uma hora de um sacrifício desesperado, estava Rhodan

diante da escotilha. A mim, faltavam ainda 30

centímetros. Tinha perdido a parada. Fiquei parado,

inerte, esperando a morte. Tudo, tudo perdido...

sacrifício inútil! Passaram-se muitos minutos, até que

comecei a ouvir um grunhido de voz humana no alto-

63

Page 38: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

38

falante, sons ocos e inarticulados.

Rhodan estava deitado diante da porta, sem ter

força para comprimir para baixo a alavanca da

fechadura, pintada de amarelo-claro. E ele estava me

chamando, chamando a mim, seu inimigo figadal. Se

ele realmente soubesse que eu nunca fui seu inimigo...

Foi questão apenas de legítima defesa, pois eu também

amo a Terra, que considero como meu povo.

Sua voz me chamando mobilizou minhas últimas

forças. Necessitava ainda de 10 minutos para vencer os

últimos 30 centímetros. Quando cheguei perto dele,

tentei levantar a mão com muito esforço. A gravitação

tão reduzida do pequeno planeta Hellgate parecia de

repente ter se centuplicado. Não sei com que esforço

ingente minha mão alcançou a alavanca, chegando a se

encostar com os dedos de Rhodan e juntos tentamos

puxá-la.

Os duelantes haviam se encontrado novamente,

buscando num esforço conjunto abaixar a alavanca

salvadora. Conseguimos, depois de alguns segundos

que pareciam uma eternidade. A campainha começou a

tocar enquanto a porta se abria, liberando a entrada da

escotilha da base. Levamos ainda uns dez minutos nos

arrastando no corredor estreito. Quando eu e Rhodan

conseguimos acionar o mecanismo para o fechamento

da porta, estava quase desmaiando. Tinha a impressão

de estar dentro de uma centrífuga. Sentia uma dor

imensa na garganta, incapaz agora de fazer os

movimentos de deglutição.

Ouvia, porém, o sibilar do vento fresco na direção

da escotilha. Ao cessar o ruído e quando a segunda

porta se abriu automaticamente, tive ainda força para

tocar com a mão o interruptor que estava à altura de

seus ombros. Meu capacete se abriu para trás e um ar

maravilhoso acariciou meu rosto ressecado. Na

primeira respiração completa, perdi os sentidos. Era

como se eu tivesse engolido pedaços de gelo.

Acordei de repente. Ao meu lado havia o barulho

típico da chuva. Quando abri os olhos, vi os pés

metálicos de um robô e tentei virar o corpo para o

outro lado. Os olhos me ficaram mais claros,

desaparecendo as últimas sombras. O robô tinha nas

mãos um vaso com água e o despejava na cabeça de

um homem. O rosto de Rhodan estava cheio de

queimaduras horríveis. Mas ele sorria. Nunca vi em

minha vida um homem, fosse terrano ou arcônida, que

soubesse rir tão espontânea e serenamente.

Porém nada disso tinha importância agora. Todo o

meu consciente e subconsciente falava apenas em água,

esta água que o robô jogava sobre o rosto de Rhodan.

Não estava compreendendo bem o que se passava, mas

meus ouvidos funcionavam bem, do contrário não teria

ouvido suas palavras serenas, acompanhadas sempre de

um leve sorriso:

— Você foi um osso duro de roer, meu irmão —

disse Rhodan pensativo. — Abra bem a boca, que o

robô vai lhe dar água. Minha performance foi por dez

segundos melhor que a sua arcônida.

Ao pingarem nos meus lábios as primeiras gotas,

julgava que estava bebendo não água, mas um néctar

muito mais precioso. Rhodan se manteve calado.

Deixou que eu me recuperasse totalmente. Bebia e

bebia sem parar. Meu corpo parecia uma esponja

ressecada. De vez em quando o robô interrompia o

fluxo de água, a fim de o organismo poder assimilar

melhor. Já estava me sentindo outro, mais disposto e

com a garganta em condições de falar normalmente.

Rhodan sorria. Parecia que estava muito ausente

daquela cúpula, como se seus pensamentos estivessem

bem longe.

— Incrível e incompreensível — disse ele como

que pensando em voz alta. — Um sujeito assim quase

que ia matando um imortal.

Cuspi para fora o líquido que mantinha na boca

fechada. De repente comecei a compreender como este

homem se conservava sempre jovem e elástico.

Imortal! Então tinham fundamento os boatos sobre

uma misteriosa ducha celular que lhe garantia a eterna

juventude.

Minha boca se escancarou para uma estrondosa

gargalhada. Era tragicômico. Rhodan não podia saber o

motivo desta gargalhada esquisita e eu também não lhe

iria dizer. Imortal!

— Haverei de descobrir tudo — disse ele, com os

olhos vivos e pesquisadores.

Eu, naturalmente, tomei minhas providências para

que minha mente não fosse invadida por sua telepatia.

Comecei também a sorrir para ele, dando-lhe tempo

para quebrar a cabeça. Percebi também a pistola de

raios energéticos apontada para mim. É claro que não

ia cometer nenhuma loucura mais. Ele havia ganhado à

parada. Recuperara os sentidos um pouco antes de

mim. Estava tudo tão esquisito e confuso. Essa

aventura toda me parecia um pesadelo.

— Quanto tempo nós estivemos lá fora? —

perguntei com a garganta ainda arranhando um pouco.

Page 39: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

39

Sentia realmente dores.

— Graças à sua teimosia, cerca de vinte e quatro

horas — afirmou ele. — Agora você está de novo sob

meu poder.

— Você teve foi muita sorte, isso sim — respondi

contra minha própria convicção.

Realmente não foi nada de sorte, foi sua fantástica

determinação.

Ele me penetrava todo com seu olhar sereno, onde

transluzia sempre um sabor de ironia.

— Seu truque psicológico não foi nada mau, Atlan.

A estrofe meio idiota sobre a água, quase me deixou

maluco. Como é que você arranjou esta ideia?

Sacudi os ombros. Já estava me sentindo muito

bem. Com algum cuidado procurei ficar sentado,

apoiando as costas na parede metálica. Ele também

estava sentado do mesmo jeito. Estava conseguindo ver

uma boa parte do interior da cúpula. Devia ser uma

base muito bem organizada.

— Como você chegou mesmo à ideia dos versos

psicológicos?

— Veio por si mesma. Não tinha outro meio de

provocá-lo para dar uns tiros.

Olhava para ele estupefato e a minha curiosidade

estava em marcha progressiva. O cano da arma

continuava apontado para cima.

— Calma! — disse ele.

Fiz apenas um gesto de assentimento:

— Não sou louco. Além disso, seu robô está de

prontidão. Apenas uma pergunta, bárbaro: Como foi

que você escapou do meu tiro?

Ria agora com toda naturalidade, com toda

cordialidade. Não era sem razão que, depois do

sentimento de admiração, passei a sentir grande

simpatia por ele. Não queria, porém, que ele o

percebesse.

— Seu primeiro tiro passou a um metro de mim.

Naturalmente você ficou ofuscado por seu próprio tiro.

Perdi o esconderijo e tive que procurar outro, logo

depois. Era uma pequena caverna, protegida por fortes

rochas.

Como parecia tão simples tudo isto. E certamente

não o foi. Deve ter pulado de um canto para o outro,

como um felino acuado.

— E depois, você deve me ter seguido, não é?

Confirmou com a cabeça.

— Você não olhou para trás. Eu lhe poderia ter

dado um tiro pelas costas.

— Não faria isto! — disse eu rindo. — Teve sorte

de ainda poder sair correndo.

Ele apenas sacudiu os ombros. E estava tudo dito.

— Agora, gostaria de saber como foi que veio parar

na Terra e o que andou procurando por lá? — o

indagou de repente, com uma calma absoluta.

— Adivinhe você mesmo — disse com ar

provocador.

— Não estou com disposição para brincadeiras de

adivinhações. Meu rádio já foi enviado. Estamos aqui

num planeta desabitado que está mais ou menos a doze

mil anos-luz da Terra.

— Se soubesse disso... — disse resignado — teria

deixado você aterrissar calmamente, para começar a

agir depois.

— Azar seu, arcônida. Um pequeno cruzador de

minha frota estará aqui dentro de três horas. Até lá terei

de saber o que fazer com você. Não permitimos

estranhos no Império.

— No assim chamado Império — corrigi eu. —

Vocês não são tão importantes assim. O que eu quero é

voltar para casa, nada mais.

— Sei disso. Acho que eu também sei pensar um

pouco — disse ele em tom de ironia. — Parece-me que

há muito tempo que está afastado de Árcon, pois ainda

não acredita na regência do cérebro robotizado.

Quando foi, pois, que chegou a Terra?

— Já há algum tempo — foi a minha evasiva.

Naturalmente não lhe podia mencionar minha base

submarina nos Açores, na mais profunda fossa do

Atlântico. De qualquer maneira, ele estava muito

desconfiado. Não me recusaria a ter que depor perante

pessoas com faculdades parapsicológicas.

Ficamos conversando e discutindo até que lá fora se

ouviu o estrondo surdo de uma espaçonave que

aterrissava. Era o pequeno cruzador, cujo comandante

logo depois apareceu na cúpula acompanhado de cinco

soldados bem armados. Levantei-me do chão ainda

com cuidado. O robô havia tratado minhas

queimaduras e me aplicara uma injeção para diminuir

as dores.

Rhodan já estava cem por cento. Era um homem de

uma fibra extraordinária.

O comandante do cruzador não fez muita

cerimônia, tirou do bolso um par de algemas e

prendeu-me as mãos.

— Tem alguma coisa contra? — perguntou meio

sem jeito.

Eu apenas esbocei um sorriso forçado. Rhodan

estava bem no fundo, quando disse:

— Há alguma coisa errada em você: seguirá

arrastando um segredo inútil pela vida afora. Voltarei

em poucos dias, só então conversaremos mais

seriamente. No momento, disponho de pouco tempo.

Reflita um pouco, e veja se não é bom para você dizer

toda a verdade.

Os soldados trouxeram um traje espacial, do

mesmo tipo do que eu tinha usado antes. Franzi as

sobrancelhas, dizendo:

— Mais isso ainda? Vocês não têm um tanque

pressurizado ou coisa equivalente?

— O cavalheiro ainda deseja mais alguma coisa?

— resmungou-me o comandante um tanto irritado.

Rhodan não pôde deixar de sorrir. Devia conhecer

Page 40: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

40

muito bem seu pessoal. Neste momento, resolvi lançar-

lhe uma indireta, para que me respeitasse mais.

Levantei os dois braços e apontando com os olhos para

as algemas, disse:

— Sabe de uma coisa, bárbaro? — falava

pausadamente — as coisas não mudaram tanto assim

nos tempos modernos. Parece que estamos ainda na

Idade Média durante as guerras religiosas. Nos tempos

de Wallenstein e Gustavo Adolfo, as algemas eram um

pouquinho mais largas.

pouquinho mais largas.

Rhodan deve ter se enfurecido com isso.

Empalideceu de repente e me fitou longamente. Ele, o

imortal... e no entanto tão facilmente vulnerável, quase

perdera o controle.

— Sem parar, marche! — gritou o comandante.

Fui sorrindo para a escotilha. Por que motivo

aquele homem gritou tão alto nos meus ouvidos?

Apesar das bem sucedidas campanhas de Perry Rhodan nas Galáxias, sua obra

estava ainda incompleta. Sua luta pelo reconhecimento da Humanidade no Universo

esbarrava sempre nos poucos recursos da Terra, em relação aos padrões cósmicos.

Desde a aparente destruição da Terra em 1984, já se passaram 56 anos. Há uma

nova geração. Da Terceira Potência surgiu o governo mundial. Assim, depois de fortalecida

esta Terceira Potência, aparece à organização do IMPÉRIO SOLAR. Marte, Vênus e as luas

de Júpiter e Saturno já estão povoados. Os outros planetas inadequados para serem

habitados se transformam em inesgotáveis fornecedores de matérias-primas. Não foram

descobertos outros seres inteligentes no sistema solar. Os terranos são, pois, senhores

absolutos do Grande Império Solar. A capital é Terrânia e o líder permanente é Perry

Rhodan. Com este Império Solar bem armado, pensa Rhodan em novas conquistas fora do

nosso sistema.

Em O Soro da Vida, título da próxima aventura de Perry, novos episódios

emocionantes vão acontecer.

Page 41: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

41

Nº 51

De Kurt Brand

Tradução

Richard Paul Neto Digitalização

Vitório Revisão e novo formato W.Q. Moraes

A pesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo

poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por

Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a

Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinquenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que

teria ocorrido no ano de 1.984.

Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos, a

Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se

ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno

foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização

são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os

terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é

formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e

civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em

condições de enfrentar qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a

dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles

mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em

quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana.

Será que os dois agentes enviados a Tolimon obedecem a estas instruções, no

momento em que dão início à busca d’o Soro da Vida...?

Page 42: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

Enquanto o cruzador leve deixava o planeta Hellgate,

levando a bordo, como prisioneiro, o solitário do tempo,

Atlan, dirigindo-se ao planeta Terra, situado a 12.348 anos-

luz, Perry Rhodan tomou lugar diante da memória do

hipercomunicador. Só agora teve tempo para deixar desfilar

diante de si as mensagens dos últimos meses, expedidas

pelos agentes que se encontravam no planeta Tolimon.

Por enquanto, notícias de terceira categoria lhe feriam o

ouvido. Rhodan mal prestava atenção. Lançou os olhos para

fora da abóbada de aço, que era o único lugar daquele

planeta supersaturado de calor em que a vida humana podia

manter-se, e contemplou o deserto

que tremeluzia sob os raios amarelo-

pálido do sol ZW-2536-K-957.

Rhodan escolhera Hellgate, o

único astro que gravitava em torno

desse sol, e que constituía um mundo

inútil e sem vida, para servir de base

secreta situada nos limites extremos

do Império de Árcon, a fim de ficar o

mais próximo possível do planeta

Tolimon. A oitenta e um anos-luz de

Hellgate esse planeta gravitava,

como segundo de um grupo de seis

mundos, em torno da estrela Revnur,

um sol do tipo G.

Há um ano — mais precisamente,

em maio de 2.039 — Perry Rhodan

tivera pela primeira vez sua atenção

despertada para Tolimon. Estava

interessado mais do que nunca em

saber o que estariam fazendo os aras,

os mais geniais dentre os médicos

galácticos. E Tolimon era um mundo

dos aras. Talvez ocupasse uma

posição sem par no seio da imensa

Galáxia: era formado por um único zoológico.

Rhodan chegou a uma conclusão lógica: médicos

galácticos, mais zoológico, igual à pesquisa. A conclusão

levou-o a empregar seus agentes em Tolimon. E há essa

hora o telepata John Marshall e a mutante Laury Marten

encontravam-se há oito meses nesse mundo dos aras,

empenhados na solução de um problema específico. E

Rhodan deixava desfilar diante de si justamente os

comunicados que os agentes haviam enviado a intervalos

irregulares para Hellgate por meio do hipercomunicador.

O dispositivo de memória estava reproduzindo uma

mensagem transmitida três semanas atrás. A voz de John

Marshall era inconfundível. Apenas disse três frases. E cada

uma dessas frases continha uma informação negativa. John

Marshall e Laury Marten não estavam conseguindo nada

em Tolimon.

Depois disso, a memória do aparelho emudeceu.

Perry Rhodan desligou. Para ele, o longo tempo de

espera começaria. Acontece que não dispunha de tempo

para esperar muito.

O que estava em jogo era a vida de Thora, sua esposa, e

de Crest. Os dois estavam envelhecendo de repente. A arte

médica, que até então conseguira deter o processo,

começava a revelar-se ineficaz. Um novo soro, produzido

na Terra, também não conseguiu retardar a decadência

biológica. E no planeta Peregrino, o mundo da vida eterna,

aquilo recusava a ducha celular aos dois arcônidas.

O fim natural parecia aproximar-se inexoravelmente,

quando seus agentes chegaram à Terra com boatos que

falavam num certo planeta Tolimon, um mundo pertencente

aos médicos galácticos. Segundo esses boatos, há séculos

alguns seres humanos estariam sendo

conservados num zoológico dos aras

existente em Tolimon, sem apresentar

qualquer sinal de envelhecimento.

Será que a notícia não passava de

boato? Ou seria algo mais que isso?

O amor que sentia pela esposa e por

seu amigo Crest fez com que recorresse

aos mutantes John Marshall e Laury

Marten para encontrar a resposta a essa

pergunta, enviando-os a Tolimon.

Será que os médicos galácticos, os

aras, haviam descoberto um soro

prolongador da vida, cuja eficácia era

muitíssimo superior ao dos arcônidas?

Se é que esse soro existia, Perry

Rhodan tinha que apoderar-se dele; era o

mínimo que poderia fazer por Thora e

Crest. Por isso, encontrava-se em

Hellgate, sob a proteção da abóbada de

aço, aguardando que, depois de tanto

tempo, John Marshall e Laury Marten

finalmente conseguissem aproximar-se

do objetivo.

O saltador Ixt saiu de seu luxuoso escritório, situado na

Rua do Grande Mo, no centro recém-construído da cidade

de Trulan, e entrou discretamente no salão amplo e

moderno destinado às vendas.

Um ara de ombros largos regateava em voz alta com

dois vendedores.

— Isso não é nenhum preço; é uma extorsão. Em

qualquer lugar consigo os gegerutavis pela metade. Amigos

eu estou disposto a pagar cento e oitenta. De acordo?

— Cento e oitenta por peça! — disse Futgris, o melhor

vendedor de Ixt, com um sorriso amável para o ara

enfurecido.

— Cento e oitenta, o casal — fungou este. — Em

2

1

Personagens principais deste episódio:

John Marshall — Que se instalou em

Tolimon sob o disfarce de um mercador

de animais.

Laury Marten — A linda filha dos

mutantes Anne Sloane e Ralf Marten.

Rohun — Um mercador galáctico.

Huxul — Funcionário do Serviço de

Vigilância de Estrangeiros.

Otznam — Que usa o mesmo disfarce

de um mascarado.

Man Regg — Um genial médico ara.

Futgris — Que se sente muito feliz por

ter o privilégio de trabalhar para Ixt.

Conde Rodrigo de Berceo — Um

jovem do ano de 1652.

Page 43: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

43

Aralon estes bichos são vendidos a quarenta, o casal.

Futgris sorriu.

— É verdade. Compramos os gegerutavis em Aralon.

Acontece que de Aralon para Tolimon temos as despesas de

transporte: são cerca de dez mil anos-luz.

— É o cúmulo da sem-vergonhice — disse o ara

enfurecido, batendo com o punho numa gaiola. Um dos

hiobargulus, que dormiam nesta, assustou-se e fez um

barulho tremendo.

No mesmo instante, o ara deu um enorme salto, fitou a

pequena gaiola da qual vinha o barulho infernal e, depois

que o hiobargulu se tinha acalmado, gaguejou:

— Isso é um truque para levar seus fregueses a pagar os

preços extorsivos pedidos pelo senhor?

Futgris respondeu com o maior sangue-frio:

— Vendemos os hiobargulus muito barato: apenas vinte

por peça. Para o casal, fazemos o preço de trinta e cinco.

Dão cria oito vezes por ano; são seis filhotes de cada vez.

O ara não deixava de ter seu senso de humor.

Subitamente um largo sorriso cobriu seu rosto.

— Pode embrulhar um casal, desde que garanta que

estes bichos fazem este barulho infernal toda vez que são

assustados.

— Ora — apressou-se Futgris em asseverar. — Não há

problema. Não sabe que uma das características destas

criaturas é a de que só não fazem barulho enquanto estão

dormindo? No momento, colocamos estes bichos num

estado de profunda sonolência; por isso estão quietos.

Permite que pergunte qual é a experiência que pretende

realizar com os hiobargulus?

O ara sorriu e esfregou as mãos.

— Que experiência, que nada! — exclamou. — Trata-se

de presente. Minha sogra faz anos amanhã. Em vez de um

casal de gegerutavis cantores eu lhe dou estas crias do

inferno. Será que o senhor poderia pôr os animais para

dormir, de tal forma que só comecem a fazer barulho

amanhã ao meio-dia? Será muito divertido!

Futgris teve o atrevimento de perguntar:

— Será que o senhor não está exagerando com a

senhora sua sogra?

O ara logo desanimou. Acenou gravemente com a

cabeça e disse em tom deprimido:

— Talvez o senhor tenha razão. Embrulhe também um

casal de gegerutavis, para qualquer emergência.

Mas resolveu experimentar de novo. Bateu com o punho

sobre a gaiola e, mais uma vez, ouviu-se o barulho infernal.

Afetado visivelmente pela nova orgia de sons, o homem

atreveu-se a olhar para dentro da gaiola. Um animalzinho

azul e peludo, de cerca de dez centímetros de comprimento,

com os olhos azuis superdimensionados e uma pelanca

bamboleante no pescoço, estava agachado num canto,

apoiado sobre três barbatanas, e fitava-o com os olhos

sonolentos. Outro animalzinho dormia sob o efeito dos

narcóticos, com a cabeça enfiada na pelanca.

— O que é isso? — gritou a voz potente do ara, que

lançou um olhar desconfiado para Futgris e voltou a bater

na gaiola. — Não venha me dizer que um bichinho como

este faz um ruído tão infernal...

O barulho recomeçou.

O homem ainda estava meio surdo quando saiu da

grande casa de animais de Ixt, carregando seu minizôo.

Todos os vendedores seguiram-no com os olhos,

inclusive Ixt, que se mantivera discretamente nos fundos.

Não havia nada em seu rosto que revelasse a enorme

preocupação que o afligia. Não havia nenhum sinal que

traísse o fato de que não era um saltador, que desse a

perceber que seu aspecto exterior era apenas um excelente

disfarce. Quando atravessou a grande sala de exposições e

vendas para voltar ao seu luxuoso escritório, cumprimentou

os empregados que se encontravam à direita e à esquerda,

conforme costumava fazer todas as manhãs.

Os pensamentos de Ixt estavam longe dali. Pensava no

ara que acabara de comprar um casal de hiobargulus e um

casal dos caríssimos gegerutavis com o dinheiro do

governo.

Ixt lia todos os pensamentos do ara, que vivia

maldizendo a tarefa absurda de vigiar esse saltador, só

porque os dados sobre o lugar do nascimento e o clã por ele

fornecido, apresentavam alguns pontos obscuros, que,

apesar de todas as indagações, não puderam ser

esclarecidos.

Depois de ter fechado a porta atrás de si, Ixt resmungou:

— Parece que na Terra alguém cometeu um erro.

Teria que tomar suas providências até a manhã do dia

seguinte. Achou que seria muito arriscado usar o sistema de

comunicações da cidade de Trulan para entrar em contato

com Rohun, um comandante dos saltadores.

Dali a dez minutos, ao retirar-se da casa, disse de

passagem a Futgris:

— Só voltarei à tarde. Represente-me condignamente.

— Sim senhor — asseverou o vendedor com os olhos

radiantes de alegria. Nunca tivera um chefe como Ixt.

Sentia verdadeiro prazer em trabalhar na firma.

Depois de ter dado dez passos na rua, John Marshall já

se esquecera de que era dono de uma grande casa de

animais, que se encontrava entre as mais sofisticadas de

Trulan.

Naquele momento, só tinha um problema: chegar ao

esconderijo, no bairro dos cortiços, sem ser percebido.

* * *

— Arga — disse Gege Moge em tom contrariado,

apontando nervosamente para o ser estendido sobre a mesa

estofada. — Ainda não percebeu que mais uma vez nos

encontramos diante de um choque anafilático? Quantas

vezes ainda terei de lhe dizer que, no estágio das

experiências preliminares, estas reações violentas não

devem surgir em nenhuma hipótese? Agora corremos o

risco de perder todo o trabalho das experiências

preliminares. Mande levar o binn imediatamente ao setor de

dissecação. A pesquisa terá de revelar por que esse ser é

supersensível ao próprio soro. Por que o soro U-1f54,

Page 44: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

44

extraído do binn, não pode ser empregado nas categorias de

inteligência situadas abaixo do grupo C, enquanto pode ser

usado sem receio e com os melhores resultados nos grupos

B e F? Avise o setor de dissecação de que preciso do

resultado amanhã de manhã. Vamos, providencie logo!

O médico ara seguiu a estudante arcônida Arga Slim

com um olhar contrariado. Depois disso, fitou o binn.

Tratava-se de um ser que nenhum homem seria capaz de

classificar. Tratava-se de um ser situado entre os reinos

animal e vegetal; absorvia o ar à maneira das plantas, mas

no que dizia respeito à comida e à bebida apresentava

traços animais inconfundíveis. Apesar disso, o binn não era

nem planta nem animal, mas um ser dotado de inteligência,

muito embora esta fosse bastante limitada, situando-o na

categoria do quociente C.

Gege Moge contemplou com olhos de cientista o

cadáver chato como uma folha, dotado de cinco membros,

que serviam tanto à locomoção quanto à apreensão de

objetos e ao trabalho. O binn tinha menos de um metro de

altura e pesava cerca de quarenta quilos. A cabeça em

forma de caule de flor fechara as dobras que escondiam os

órgãos dos sentidos. Não se via absolutamente nada da

boca, da abertura destinada ao sentido de orientação ou dos

olhos. A criatura de sangue quente estava estendida sobre o

leito duro, fria e enrijecida; morrera do soro produzido por

seu próprio corpo.

— Coitado! — disse o cientista ara com certa emoção.

— Já o conheço há mais de trezentos anos, e de repente sua

vida termina de uma hora para outra. É uma pena, binn.

Sempre gostei de trabalhar com você.

Saiu da sala e, no corredor, voltou a encontrar-se com a

estudante arcônida Arga Slim. Dirigiu-se a ela.

— Vá ao zoológico ainda hoje e escolha dois dos novos

binns. Preciso deles para amanhã de manhã.

— Não tenho permissão para entrar na parte reservada

do zoológico, Moge — ponderou a estudante.

Seus lindos olhos brilhantes fitaram-no com uma

expressão de expectativa.

Enquanto se afastava, o médico ara respondeu:

— Providenciarei para que a administração lhe conceda

uma permissão perpétua. De qualquer maneira, dirija-se à

administração antes de ir ao zoológico, para verificar se

está tudo em ordem.

“O homem não está mentindo”, pensou a estudante de

Árcon. “Realmente diz apenas o que pensa. Finalmente

estou em condições de comunicar um pequeno êxito a John

Marshall.”

Laury Marten, disfarçada numa estudante arcônida,

sabia ler os pensamentos dos outros, tal qual John Marshall.

Pensativa, caminhou em direção ao elevador

antigravitacional, que a levou ao pavimento em que residia

há vários meses.

Seus pensamentos já estavam formulando o texto do

comunicado que pretendia transmitir a John Marshall.

* * *

O comandante dos saltadores, Rohun, nunca poderia

trair John Marshall e Laury Marten. Tinha-se relacionado

muito profundamente com os agentes de Perry Rhodan para

que lhe fosse possível recuar. E, no fundo, não era o tipo do

traidor; Marshall controlara muitas vezes seus pensamentos

e nunca encontrara motivo para desconfianças.

Agora estava sentado diante dele. Quando o saltador

estava insistindo para que Marshall abandonasse seu

negócio de animais — em vez de procurar ocultar-se nos

gigantescos cortiços de Trulan — o rosto do chefe dos

mutantes, subitamente assumiu uma expressão rígida, que o

mercador galáctico já observara mais de uma vez.

John Marshall acabara de transformar-se num receptor

telepático.

Laury Marten, filha de Ralf Marten e Anne Sloane,

estava transmitindo seu primeiro êxito de maior

importância.

— Ixt — disse Rohun, inclinando-se para frente — o

senhor ainda me ouve?

Marshall fez um ligeiro gesto de impaciência. Rohun

compreendeu que deveria ter calma e voltou a reclinar-se.

Concentrado ao extremo, com os olhos semicerrados e

sem fazer o menor movimento, Marshall mantinha-se em

atitude rígida. A seguir transmitiu a Laury Marten, por via

telepática, a ordem de, durante sua visita ao zoológico, não

deixar de certificar-se se ali realmente eram mantidos

homens terranos atrás de grades de radiações.

— Procure descobrir a nacionalidade, o ano do

nascimento e o sexo, Laury Marten. Recorra à

desintegração sempre que isso se torne necessário. Em

hipótese alguma, deixe de estabelecer contato com eles.

Existem vários relatórios de nossos agentes, segundo os

quais no zoológico são mantidos homens. Laury, a senhora

tem de descobri-los. Entendido?

— Entendido — foi o impulso mental de. Laury Marten

que ele captou. Após isso, o contato entre os dois humanos

foi interrompido.

John Marshall parecia um homem despertando de um

leve cochilo. Atirou a cabeça para trás, abriu os olhos e

descontraiu-se.

Retomou o fio da palestra no mesmo ponto em que

interrompera o mercador galáctico.

— Não pretendo desistir do comércio de animais,

Rohun. Enquanto o serviço secreto dos aras realiza

investigações, ainda não existe um perigo concreto. Apenas

preciso saber se numa emergência poderei contar com seu

auxílio. Foi por isso que resolvi procurá-lo. O que me diz?

Marshall controlou automaticamente os pensamentos do

comandante dos saltadores. Rohun aborrecera-se com a

pergunta de seu interlocutor.

— Não tenho nada a dizer — resmungou. — Não

arrisquei o pescoço juntamente com meu clã? Assim que

der o alarma, meus agentes mais capazes serão colocados

em campo para tirá-lo do aperto. Se for necessário,

arriscarei até minha nave.

Mais uma vez Marshall fez um movimento brusco com

Page 45: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

45

a cabeça. Por um instante seus olhos refletiram a

preocupação, mas logo a máscara apática dos saltadores

voltou a surgir.

— Rohun — disse — os serviços de defesa dos aras não

dormem. Daqui a pouco o senhor deverá receber uma visita.

O mesmo ara que apareceu na minha firma hoje de manhã

já se encontra na nave e está a caminho de seu camarote.

Existe algum lugar em que possa esconder-me?

O mercador, homem impetuoso e calculista, soltou

alguns sons desconexos. Já tivera várias oportunidades de

constatar que Marshall possuía um tipo de sexto sentido

para o perigo. Mas o fato de que esse sentido lhe dava a

capacidade de perceber nitidamente acontecimentos futuros,

constituía novidade para ele.

— Saia por aqui! — exclamou Rohun em tom exaltado,

colocando-se junto a uma porta estreita.

— Não. Prefiro ficar no seu camarote. O ara não sabe

que me encontro a bordo. Veja logo onde posso esconder-

me. Rápido!

Rohun estava bastante desconfiado. Tal quais todos os

mercadores galácticos, não dava muito valor às percepções

extrassensoriais, e aquilo que Marshall lhe estava

oferecendo era exatamente uma percepção desse tipo. Mas

acabou cedendo diante do olhar hipnotizante do outro, não

voluntariamente, mas com certa relutância.

— Não torne o homem desconfiado — preveniu

Marshall. — Ele não fará muitas perguntas.

Com estas palavras, Marshall estirou-se de frente e

enfiou-se embaixo do leito de Rohun, que o encobria

completamente.

Pouco depois um membro do clã entrou no camarote do

mercador galáctico e perguntou-lhe se concordava em

receber Huxul, funcionário do Serviço de Vigilância de

Estrangeiros.

— Não tenho outra alternativa — respondeu Rohun.

Huxul, o ara que comprara um casal de gegerutavis e

um de hiobargulus na firma de Ixt, entrou no camarote.

— O senhor é o comandante dos saltadores, Rohun? Se

for, eu lhe digo que não acredito nessa mentira do defeito

do transmissor audiovisual. Digo-lhe mais...

Embora o mercador não se sentisse satisfeito com a

visita do funcionário do serviço secreto dos aras, não

conhecia o medo e nunca toleraria um atrevimento desse

tipo.

Interrompeu o visitante em tom áspero:

— Acredite no que quiser! Se não estiver disposto a

falar em tom civilizado, eu o expulso da nave. Faça o favor

de sentar ali.

Ofereceu a Huxul a poltrona em que John Marshall

estivera sentado há pouco.

Mal Huxul acomodou-se, perguntou com um sorriso

matreiro:

— Onde está a pessoa que esteve sentada nesta poltrona

há poucos instantes?

Rohun não pestanejou.

— Huxul, não sou um ara. Sou um mercador galáctico.

Minha nave é um mundo, por si. O comandante é a única

pessoa que faz perguntas aqui. O comandante sou eu, mas

nunca me daria na cabeça formular uma pergunta idiota e

estúpida como a sua.

— O senhor interpretou mal as minhas palavras —

respondeu Huxul apressadamente e com uma amabilidade

desconcertante.

Transformara-se de uma hora para outra: de repente,

apresentava-se como um homem cortês, amável e pouco

interessado no seu trabalho. Rohun ficou surpreso.

Nem desconfiava da existência do projetor mental de

John Marshall, que irradiava toda sua potência sobre o

agente dos aras, sugestionando-o para que considerasse sua

missão como cumprida e transformasse o tempo restante de

sua permanência na nave numa palestra amável.

A modificação começou a assustar Rohun. De repente,

John Marshall ouviu que o comandante dos saltadores se

tornava enérgico.

— Huxul, diga logo por que veio até aqui! Qual é a

suspeita que pesa sobre mim?

No mesmo instante, Marshall aliviou a pressão

sugestiva que irradiava sobre o ara. O homem do serviço

secreto não desconfiou de nada quando disse toda a

verdade. Muito interessado e com a mente tensa, Rohun

prestava atenção às suas palavras. Finalmente reclinou-se

confortavelmente na poltrona, riu gostosamente e

respondeu:

— Vejo que sua visita não é nada amigável, Huxul.

Sim, estou lembrado do tal do Ixt. É um homem inteligente,

um perito na área da zoologia. Aliás, a zoologia também é

um hobby meu. É por isso que consigo lembrar-me de Ixt.

Se não me engano, tomou a nave no terceiro planeta do sol

J5457-K1, e veio a Tolimon em voo direto. Meu caro

Huxul, nós, os mercadores galácticos, aproveitamos

qualquer negócio que aparece e muitas vezes

transformamos nossas naves em veículos turísticos, para

levar os passageiros de um mundo para outro, mediante

uma paga adequada, evidentemente. Mas essa história já é

bastante antiga. O que é que eu tenho a ver com Ixt?

John Marshall, no seu esconderijo, obrigou o agente dos

aras a mais uma vez dizer a verdade. Huxul nem se deu

conta de que com isso estava adotando um comportamento

inadmissível para um agente secreto. Aludiu ao controle

rotineiro exercido pelo cérebro positrônico instalado em

Tolimon, e disse que esse aparelho infalível, ao examinar os

dados relativos à Ixt, descobrira alguns erros.

— E desde ontem, isto é, a partir de ontem, tenho de

ocupar-me com essas ninharias — disse Huxul, concluindo

suas explicações. — Estou muito mais interessado em

descobrir quem, apesar do controle dos robôs, conseguiu

roubar na fábrica de soro G-F 45 o processo mais recente de

conservação do soro imunizador X-1076. Nunca houve um

roubo como este Rohun. E tive que desistir de uma tarefa

dessas, para andar espionando o negociante de animais Ixt.

É claro que o senhor não me pode dar qualquer informação

sobre ele, não é?

Page 46: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

46

Com o rosto mais sincero deste mundo, Rohun

respondeu:

— Como poderia ter informações sobre ele?

Com o maior prazer deu a mão a Huxul, que se

despediu, e sentiu um prazer ainda maior quando viu o

homem do serviço secreto dos aras retirar-se.

Marshall e Rohun voltaram a ficar sentados frente a

frente.

— Gostaria de comprar os dados sobre o processo de

conservação — disse Marshall.

Rohun sacudiu a cabeça.

— Por estranho que possa parecer desta vez nem eu

nem meus agentes temos qualquer coisa a ver com isso.

Mas acho que sei quem arranjou isso. Quer que entre em

contato com o outro clã, por ordem e conta do senhor?

Quanto está disposto a pagar pelo processo?

— Não dou mais de quinze mil — respondeu Marshall.

— Quando poderei saber se o outro grupo está disposto a

fazer o negócio?

— Amanhã — disse Rohun.

— Está bem — disse Marshall. — Amanha de manhã

precisarei de um sósia de primeira linha. Para isso

arranjarei uma máscara. O senhor dispõe de três fabricantes

de máscaras. Avise seus homens para que reproduzam meu

aspecto exterior no objeto que lhes será apresentado, de tal

forma que eu mesmo fique sem saber quem é o verdadeiro

Ixt.

— Trata-se de alguma missão perigosa? — perguntou

Rohun com um triste pressentimento. Aos poucos a

iniciativa de Ixt começava a amedrontá-lo.

— Amanhã de manhã Huxul voltará a aparecer na

minha casa de animais para restituir o casal de hiobargulus

e, ao mesmo tempo, tentar gravar com sua gaiola meu

modelo de vibrações cerebrais.

Rohun levantou-se de um salto. De repente aquele

homem encanecido, de quase dois metros de altura, sentiu

medo. Sacudiu a cabeça, num gesto de recusa.

— Por que pronunciou a palavra gaiola com tamanha

ênfase, Ixt?

— Porque Huxul aparecerá com uma gaiola especial,

que não permitirá que o berreiro infernal dos hiobargulus

chegue ao exterior. Mas na realidade, a mesma conterá um

aparelho destinado ao registro de vibrações cerebrais.

Os olhos de Rohun iluminaram-se.

— O que acontecerá depois, Ixt?

John Marshall sorriu.

— Quando estiver sentado diante de sua mesa de

trabalho, Huxul ficará dando tratos à bola para descobrir o

motivo por que não captou meu modelo de vibrações

cerebrais. E, para escapar a outra repreensão de seu chefe,

inventará um relatório que não passará de uma grande

fraude.

— O senhor consegue enxergar o futuro? — perguntou

Rohun em tom desconfiado. — Ixt, à medida que o tempo

passa o senhor me assusta cada vez mais. Se me lembro de

como Huxul se tornou amável de repente... O que andou

fazendo com o homem enquanto estava deitado embaixo de

minha cama?

— O que poderia ter feito? — disse Marshall,

esquivando-se à pergunta. — Quem será a pessoa que o

senhor me mandará amanhã com a minha máscara, Rohun?

— Otznam. Tem a estatura do senhor. Ixt, o senhor está

fazendo um jogo muito arriscado. Está na hora de dizer o

que pretende descobrir em Tolimon. Será que pretende

libertar alguém que se encontra no zoo galáctico? Se sua

intenção for essa, eu o previno para que tenha cuidado. Os

aras equiparam o zoológico com todos os dispositivos de

segurança. Por que não me coloca a par dos planos? Será

que não confia em mim e nos meus agentes?

— Não quero expô-los a um risco desnecessário. A

situação ainda se tornará muito perigosa, e quando isso

acontecer, quanto menos saibam, melhor será para todos.

Dali a meia hora, John Marshall saiu da nave cilíndrica

do comandante dos saltadores Rohun. Estava satisfeito com

os resultados da visita que acabara de fazer ao mercador

galáctico. Tomando todas as precauções, levou duas horas

para chegar ao seu esconderijo, situado nos gigantescos

cortiços de Trulan.

Tolimon, o segundo planeta da estrela de Revnur,

recebia tamanha profusão de luz de seu astro rei, que a

temperatura média ao meio-dia chegava a 45 graus na

sombra. Isso acontecia em Trulan, capital de Tolimon, não

na área em que os aras haviam instalado um zoológico de

dimensões fantásticas.

Em meio a um gigantesco deserto de pedra e areia,

cortado por uma cadeia de montanhas nuas e poeirentas, os

aras haviam realizado algo que não tinha igual em toda a

Galáxia.

Um areal do tamanho da França, da Bélgica e dos Países

Baixos, fora transformado num jardim zoológico em que

cada ser dispunha de boa área para mover-se livremente. As

condições reinantes no ambiente nativo haviam sido

reproduzidas artificialmente, e tudo fora feito para reduzir

ao mínimo a pressão psicológica resultante do

aprisionamento.

Laury Marten, uma moça de vinte e três anos, de cabelo

escuro e corpo fascinante, filha de Ralf Marten e Anne

Sloane; penetrara pela primeira vez nesse zoológico,

usando um caminho que não era acessível ao público.

A administração já anunciara sua chegada. Depois de

um ligeiro controle, no qual foi confirmada sua identidade

como a da arcônida Arga Slim, pôde atravessar a barreira

de radiações. Um ara muito gentil colocou um carro à sua

disposição, explicando-lhe o funcionamento do indicador

automático de rota.

O ara nunca vira uma arcônida que irradiasse tamanho

3

Page 47: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

47

charme. Não se cansava de admirar os olhos, que tendiam

para o formato oblíquo, e o rosto oval. Laury percebeu

tudo. Um dos pontos fundamentais do treinamento dos

agentes do Exército de Mutantes de Perry Rhodan consistia

na aquisição da capacidade de perceber imediatamente qual

era a impressão que causava nos outros.

Laury ficou satisfeita com o resultado de suas

observações. Como telepata que era, lia os pensamentos do

ara como se fossem palavras escritas num livro aberto. O

jovem ara apresentou-se com o nome de Lo Pirr.

Laury Marten desenvolveu todos os seus encantos, sem

ultrapassar os limites da conveniência, a fim de

transformar-se numa criatura inesquecível para Lo Pirr. Era

bem possível que ainda tivesse muitos contatos com o

mesmo.

Quando seu carro disparou pela faixa de rolamento,

sentiu que o olhar dele a seguia.

* * *

Trulan, a capital planetária de Tolimon e o maior porto

espacial desse mundo, constituía, pela forma desordenada

de sua construção, a expressão patente de evolução

precipitada.

Já fazia oito meses que John Marshall se mantinha

oculto nessa cidade sob o disfarce de mercador galáctico.

Porém a metrópole sempre o impressionava.

Além de servir de ponto de encontro das raças

galácticas, Trulan era o trampolim para o espaço

desconhecido. O poderio do Império Arcônida não chegava

além do sistema de Revnur. Naquele setor, Tolimon era o

último dos mundos governados pelo cérebro positrônico de

Árcon.

John Marshall compreendia perfeitamente que os aras

precisavam de um organismo mastodôntico para exercerem

controle, mesmo superficial, sobre todos os estrangeiros

que permaneciam no planeta por alguns dias ou semanas.

Estes últimos faziam negócios normais ou escusos,

estabeleciam contatos decentes ou clandestinos, para depois

de tudo isso desaparecerem nas profundezas da Via Láctea.

Uma coincidência traiçoeira arrastara-o para dentro das

engrenagens do cérebro positrônico infalível. Ao que tudo

indicava, ainda havia um erro nos documentos galácticos

falsificados que lhe haviam sido entregues. Certamente esse

erro fora cometido por alguma pessoa negligente que se

encontrava na Terra. Por enquanto acreditava que o perigo

não era muito grave.

Mesmo sob o disfarce de mercador galáctico John

Marshall tinha o aspecto de um homem de trinta e cinco

anos. E não se sentia mais velho que isso, embora já tivesse

noventa e quatro anos de vida.

Fora a ducha celular do planeta Peregrino, o mundo do

imortal, que realizara esse milagre biológico. Após isso, a

decadência celular fora detida por mais de seis decênios por

uma forma incompreensível. A idade de noventa e quatro

anos era apenas uma indicação numérica ligada à pessoa de

Marshall, que não resistiria a qualquer exame médico de

sua constituição orgânica.

Será que neste mundo de Tolimon não existiam

milagres parecidos?

O milagre da vida eterna.

Era nisso que estava pensando quando o elevador radial

o deixou nos confins da cidade, e ele atravessou a pé o

limite para a zona dos cortiços.

O calor da tarde sufocava os desfiladeiros formados

pelas ruas e vielas. O fedor saturava o ar. À medida que

John Marshall penetrava na área dos cortiços, a miséria e a

sujeira iam aumentando.

Agora pegou uma entrada. Atravessou um restaurante e

desapareceu num toalete que possuía três saídas. Marshall

não era o único que o usava para enganar eventuais

perseguidores. Diante dele, um arcônida maltrapilho olhou

ligeiramente para trás, passou pela segunda porta e

desapareceu por uma área nos fundos.

Marshall usou a terceira saída.

Entrou num corredor escuro que cheirava a mofo,

atirou-se no elevador antigravitacional e subiu oito andares.

Uma vez lá em cima executou um giro rápido, viu-se

diante de outro poço e deixou-se cair três andares.

O corredor em forma de hall estava deserto. O terceiro

quarto da esquerda acolheu-o. Um sujeito velho e

esfarrapado, deitado num leito, virou-se à sua entrada e

exibiu um sorriso familiar. Marshall colocou uma cédula

sobre a mesa e desapareceu na pequena peça contígua sem

dizer uma palavra. Uma vez lá, trocou de roupa com alguns

movimentos rápidos. Seu traje distinto foi colocado num

esconderijo muito bem instalado. Estava usando alguns

trapos. Um espelho de radiações mostrou-lhe que se parecia

com um saltador em ruína.

Colocou as mãos contra uma parede estreita que ligava

a porta ao armário. A mesma recuou silenciosamente,

deixando livre um corredor no qual Marshall entrou.

Um elevador antigravitacional muito estreito, que mal

dava para um saltador corpulento, levou-o ao porão.

Passando por entre o lixo e os objetos abandonados à luz

mortiça das luminárias, seguiu seu caminho com segurança

absoluta, até atingir uma escada.

Trinta e seis degraus da escada em caracol levaram-no

para cima. Ao pisar no último degrau, parou e aguçou o

ouvido. Depois afastou com os braços uma pilha de roupas

usadas, esgueirou-se e viu-se entre as fileiras de cabides de

uma loja de confecções.

Fazendo o papel de um homem que não consegue

decidir-se a respeito de uma compra, Marshall saiu da loja

aberta com uma hesitação fingida. Sudf, o dono barbudo da

loja, piscou às escondidas quando cruzou por ele.

Encontrava-se num beco que ficava três andares abaixo

da entrada do estranho restaurante. Quatro quadras adiante,

ficou diante da fachada arruinada do prédio, sob cujo

telhado se encontrava seu esconderijo. Ao virar-se, viu

surgir no fim do beco, por cima dos telhados e junto à

coluna esguia do Grande Mo, uma peça de aço de trezentos

Page 48: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

48

metros de altura, que na base só tinha um metro de

diâmetro. A construção não possuía juntas nem soldas, e

nela, a palavra Mo estava escrita em caracteres luminosos

arcônidas.

Mo era um gênio médico, que há mais de três mil anos

morrera numa experiência que fizera no próprio corpo. Em

Tolimon, tal qual nas outras bases dos aras, era venerado

como uma divindade.

O alojamento de Marshall, situado no 15o andar, logo

abaixo do telhado, parecia tão sujo como todas as peças

situadas naquele corredor escuro. Mas a porta, feita de

chapa fina de aço arcônida, era mais que a entrada imunda

de um quarto abafado que possuía apenas uma pequena

claraboia.

Dispositivos de segurança dos mais sofisticados

impediam que qualquer pessoa forçasse a entrada.

Quando John se aproximou da porta, sentiu um impulso

quase imperceptível, que provocou um formigamento de

sua pele. Era o sinal de que ninguém tentara penetrar por ali

na sua ausência. Abriu o fecho e esperou que a porta

recuasse. Depois entrou e fechou-a atrás de si.

Descerrou a pequena claraboia, abriu a torneira de água

quente e deixou que o líquido jorrasse. Atirou-se à cama,

cruzou as mãos sob a nuca e assobiou a melodia de uma

canção da moda dos saltadores.

Naquele instante, o hipercomunicador instalado

embaixo do telhado, fora do quarto, começou a esquentar.

Ao mesmo tempo, o dispositivo de memória ligou-se

automaticamente.

A água continuava a jorrar. A claraboia não devia ser

fechada. O sinal acústico era necessário para ligar o

hipercomunicador, e o minúsculo alto-falante do

hipercomunicador estava embutido no relógio que Marshall

trazia no pulso esquerdo.

Tanto ele como Laury Marten haviam sido equipados

para esta missão com os instrumentos mais sofisticados

que, em muitos pontos, constituíam novidade até mesmo

para os aras e os arcônidas.

John Marshall ouviu um sinal breve saído do

hipercomunicador. Sentiu a necessidade de respirar

profundamente.

O chefe encontrava-se no planeta quente de Hellgate,

aguardando notícias sobre os resultados de seu trabalho.

Marshall refletiu ligeiramente.

Se há pouco, parte de seu relógio se transformara no

alto-falante do hipercomunicador, agora, a outra parte, tão

minúscula quanto a anterior, passou a servir de microfone,

depois que Marshall comprimiu um botão quase invisível,

embutido na caixa do relógio.

O deformador e o condensador estavam funcionando.

John Marshall resumiu em oito frases o primeiro êxito

alcançado por Laury Marten. Omitiu o fato de que o serviço

secreto dos aras andava no seu encalço.

Fechou a torneira de água quente e a claraboia, fez

saltar o botão embutido na caixa do relógio e, com isso,

apagou todas as pistas que poderiam conduzir ao seu

hipercomunicador.

Ficou sentado na cama em atitude pensativa. Refletiu

detidamente sobre todos os problemas. Em hipótese alguma

deveria permitir que seu esconderijo fosse descoberto. O

pequeno quarto representava o último elo que o ligava a

Perry Rhodan.

Marshall estava prestes a sair de seu alojamento quando

foi atingido pelo impulso emitido por Laury Marten. Parou

com a mão estendida em direção à porta. Seu rosto

iluminou-se e de seus lábios saiu uma exclamação:

— Até que enfim!

* * *

O indicador de rota instalado no carro fizera com que,

apesar da grande distância, Laury Marten logo encontrasse

o areal dos binns. Porém viu-se diante da barreira de

radiações, que formava um obstáculo invencível.

Lançou os olhos em torno, à procura de um frogh, e

estremeceu ao lembrar-se do momento em que, pela

primeira vez, se vira diante de um desses seres em forma de

cobra, com seis metros de comprimento.

Também desta vez teve de esforçar-se para ver nos

froghs seres inteligentes, e não animais repugnantes. Muitos

froghs dominavam, além do intercosmo, vários dialetos

arcônidas. Para comunicar-se entre si recorriam ao

vocabulário riquíssimo de sua língua materna. Eram os

amigos mais fiéis dos aras e os guardas mais temidos pelos

habitantes do zoológico. Até então nenhuma das

inteligências trancadas ali conseguira escapar. Os froghs

sempre alcançavam os fugitivos nos confins do deserto,

cujas dimensões eram planetárias.

Laury Marten caminhou lentamente junto à barreira de

radiações. Não sabia explicar por que o frogh não aparecia

para perguntar o que desejava. Subiu uma pequena

elevação, lançou os olhos em torno e viu o ser em forma de

cobra envolvido numa palestra com um jovem ara.

Este sentiu o olhar de Laury Marten, virou a cabeça e

fitou-a com uma expressão de espanto.

No mesmo instante, o frogh virou-se abruptamente.

Com uma voz que tinha um tom surpreendentemente

humano perguntou o que Laury desejava. Esta lhe pediu

que abrisse a barreira de radiações por um instante, para

que pudesse escolher dois binns no interior do areal.

Enquanto ainda conversava com o frogh, que erguera o

terço anterior de seu musculoso corpo de cobra e a fitava

com os olhos rígidos, o ara aproximou-se.

O homem esbelto, de rosto intelectualizado, avaro nos

menores movimentos e reticente nas palavras, era o

primeiro ara que falava um arcônida refinado, dentre todos

aqueles com que Laury já havia se defrontado. Esta logo se

interessou por ele e fez com que se estabelecesse uma

palestra animada.

Dedicou palavras corteses à informação de que Laury

estudava zoologia. O fato de encontrar-se em Tolimon para

preparar-se para os exames finais obrigou-o a desejar-lhe

Page 49: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

49

muitas felicidades nas provas. No entanto, quando Laury

Marten passou, com uma indiferença fingida, do fenômeno

do artus ao tema da necrose e exprimiu sua dúvida de que

uma parte morta do organismo, restrita a uma área limitada,

pudesse ser restituída à vida por meio de ativadores, o ara

subitamente demonstrou o maior interesse.

O médico galáctico não poderia mesmo desconfiar de

que essa jovem, treinada por meio dos métodos hipnóticos

mais eficientes dos arcônidas, além de ser entendida em

zoologia, também possuía um saber médico muito extenso.

O ara apresentou-se como Man Regg.

Laury Marten prosseguiu no seu jogo. Lia os

pensamentos de seu interlocutor e não tinha a menor

intenção de tomar a iniciativa. Qualquer idéia importante

teria que vir de Man Regg.

Man Regg, o ara, não era apenas um dos cem mil

médicos que atuavam nesse mundo. Man Regg era o ara

que, na qualidade de chefe, controlava a produção do soro

prolongador da vida.

E Laury Marten lançou sua isca. Um segundo depois,

dizia aquilo que seu interlocutor acabava de pensar, mas

sob seus próprios pontos de vista. Nos casos em que Man

Regg demonstrava dúvida, exprimia uma dúvida ainda

maior, e quando acreditava poder formular um juízo seguro,

mostrava-se reticente em suas ideias.

Um dos crânios mais inteligentes de Tolimon estava

sendo manipulado pelas artes telepáticas de uma jovem do

planeta Terra.

E Man Regg caiu no blefe.

Quando perguntou onde e com quem trabalhava, Laury

Marten leu em seus pensamentos a intenção de ordenar que

essa mulher de inteligência extraordinária fosse incluída em

sua equipe de pesquisas.

Subitamente Laury Marten virou-se para o frogh. O

olhar rígido daquele ser, em forma de cobra incomodou-a.

Pensou aflita:

“Será que os froghs também são telepatas?”

Com um grande susto, teve de constatar que não estava

informada sobre este ponto.

Mas logo surgiu a indagação de Man Regg sobre se

estaria interessada em concluir os preparativos para o

exame sob a orientação dele.

Laury Marten já se imaginava de posse do processo de

fabricação do soro prolongador da vida. Teve de esforçar-se

para não exprimir seu júbilo por meio da luminosidade dos

olhos.

— Muito bem, Arga Slim — disse Man Regg. —

Tomarei todas as providências e tenho certeza de poder

cumprimentá-la amanhã na divisão X-p.

Com dois binns dóceis, seu carro disparou em direção

ao limite do zoológico.

Quando voou em direção a Trulan, com os dois binns a

bordo, irradiou para John Marshall a notícia do êxito que

acabara de alcançar. Sentiu-se orgulhosa ao perceber o

alívio que havia no “até que enfim!” de Marshall.

John Marshall ficou grudado nos calcanhares de

Otznam, agente dos saltadores, em meio ao burburinho das

ruas de Trulan. No seu íntimo admirava o comandante

Rohun e seu clã, pois o que os fabricantes de máscaras

haviam feito de Otznam era uma coisa inacreditável. John

Marshall teve de reprimir constantemente o desejo de fitar

seu próprio rosto a fim de verificar que impressão causaria

nos outros sob o disfarce de um saltador.

O mercador galáctico Ixt não era ele, mas Otznam, que

sob seu disfarce caminhava pela Rua do Grande Mo, sem

desconfiar de que o verdadeiro Ixt lhe seguia todos os

passos, transformado num astronauta robusto e barbudo.

John Marshall leu os pensamentos do outro. O homem

praguejava contra sua missão com a mesma violência com

que Huxul o fizera no momento em que saía da casa de

animais com um casal de hiobargulus e gegerutavis, para

voltar à sua repartição.

Otznam estava preocupado por ainda não ter recebido

instruções precisas sobre a maneira de conduzir-se na firma

de Ixt. Quando Marshall iniciou o tratamento com o

projetor mental, não percebeu nada.

Depois de poucos segundos, o agente dos saltadores

familiarizou-se com os rostos de todos os funcionários de

Ixt. Conhecia seus nomes e sabia quais as funções que cada

um devia desempenhar. Otznam não se surpreendeu com o

fato de conhecer, em linhas gerais, o escritório do chefe.

Entrou na loja pela entrada principal, tal qual Ixt costumava

fazer todas as manhãs.

Acenou para a direita e a esquerda, recebeu os

cumprimentos de Futgris e fez esta observação:

— Tudo bem, Futgris?

Marshall também entrou em sua loja e, com uma

observação áspera, afastou o vendedor que se aproximou

solicitamente.

— Vou dar uma olhada no que existe por aqui. Se

resolver comprar alguma coisa, avisarei.

Enquanto dizia estas palavras, John Marshall observou

discretamente seu vendedor tão ativo e controlou os seus

pensamentos. Verificou que não estava identificando a voz

disfarçada de seu chefe, nem seus movimentos.

Tranquilizado, Marshall voltou a dedicar sua atenção a

Otznam, agente dos saltadores, fazendo-o dizer a Futgris:

— Se houver algo de importante, estou no escritório.

— Perfeitamente — confirmou Futgris e dirigiu-se ao

grande depósito, onde estava sendo descarregada uma

remessa de animais vinda do planeta Oka.

Nem desconfiou de que o chefe, disfarçado num

astronauta barbudo, exercia uma influência hipnótica sobre

ele, enviando-o ao depósito e ordenando-lhe que, em

hipótese alguma, procurasse o chefe em seu escritório.

Dali a dez minutos, John Marshall saiu de sua loja e

ficou perambulando nas proximidades. Aguardava a

chegada de Huxul.

4

Page 50: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

50

Sua paciência foi submetida a uma prova muito dura.

Por mais que tateasse em busca dos impulsos mentais de

Huxul, nada percebeu. Só pelo meio-dia captou-os

repentinamente.

Fervendo de raiva, Huxul caminhou em direção à casa

de animais.

Marshall entrou antes dele na ampla sala de exposição

com a profusão desconcertante de animais. Escondeu-se

atrás de uma grande jaula, junto aos encantadores kikkis,

animais em forma de macaco. Acabara de afastar um

vendedor insistente quando o agente dos aras entrou no

recinto, com uma gaiola especial na mão.

Futgris era o homem competente para resolver sobre a

troca de animais. Teve de ser chamado no depósito.

Futgris riu ao reconhecer o homem que, com os

hiobargulus, queria pregar uma peça à sogra. Subitamente

seu rosto assumiu uma feição séria. Marshall acabara de

transmitir-lhe a ordem, reforçada por meios

hipnomecânicos, de determinar que o chefe decidisse sobre

a troca.

Huxul exibiu um largo sorriso enquanto resmungava seu

“de acordo”. Segurou a gaiola especial com ambas as mãos,

encostou-a ao peito e colocou-a numa posição em que uma

das faces apontava ligeiramente para cima.

Marshall perscrutou os pensamentos de Huxul. O agente

dos aras ainda fervia de raiva. Lembrava-se da bronca que

tivera de agüentar no dia anterior, ao regressar da nave

cilíndrica de Rohun. Acusaram-no de negligência no

desempenho de suas funções e de uma conduta

injustificável, arrasando com ele em questão de capacidade.

Também foi recriminado por ter adquirido os animais tão

caros, muito embora a idéia não tivesse partido dele, mas

do chefe.

Naquele instante, estava Futgris saindo do escritório,

juntamente com o falso Ixt.

John Marshall ativou o contato do projetor mental

escondido em seu bolso. Tratava-se de versão miniaturizada

do conhecido aparelho dos arcônidas, que funcionava

somente porque John Marshall reforçava sua ação por meio

do dom telepático de que era dotado. Por isso mesmo não

havia o menor perigo de que o miniprojetor mental fosse

descoberto.

Huxul descansou a gaiola entre as paredes acústicas

onde estavam guardados os hiobargulus com sua voz

potente. Ixt recusou-se a aceitar os animais de volta.

Mostrou-se interessado na gaiola acústica. O agente dos

aras foi a amabilidade em pessoa e concordou plenamente

quando Otznam, sob o disfarce de Ixt, pegou a gaiola para

examiná-la mais detidamente. Ao fazê-lo, executou um giro

de cento e oitenta graus.

Através de Huxul, John Marshall ficara sabendo em que

ponto se localizava o contato destinado à captação do

modelo de vibrações cerebrais. O agente dos aras implorou

para que Ixt aceitasse os animais de volta e devolvesse o

dinheiro. Disse que desde a manhã daquele dia a sogra não

o deixava em paz. Estava arrependido da brincadeira de

mau gosto e não sabia como acalmar a velha.

Otznam, disfarçado como Ixt, teve tempo para registrar

o modelo de vibrações cerebrais de Huxul. No momento em

que colocou a gaiola no chão por ordem de Marshall, este

lhe deu ordem de aceitar os bichinhos de volta. Futgris saiu

apressadamente com a gaiola, desapareceu no depósito e,

logo a seguir, há trouxe de volta vazia.

Huxul recebeu de volta o preço da compra, agradeceu

com a maior amabilidade, pegou a gaiola vazia e saiu da

loja com uma pressa surpreendente.

O falso Ixt voltou ao escritório, e Futgris ao depósito.

Assim, John Marshall considerou concluída sua

intervenção, mas Huxul ainda precisaria de tratamento

intensivo.

Seguiu-o lentamente, esgueirando-se por entre o tráfego

da trepidante Rua do Grande Mo. Aos poucos, foi

alcançando o agente dos aras.

Seguiu-o com um olhar pensativo quando este entrou no

gigantesco edifício do serviço secreto dos aras, segurando a

gaiola como se fosse um objeto extremamente frágil.

* * *

Huxul esperou que o laboratório lhe fornecesse o

modelo de vibrações cerebrais com uma interpretação

completa. Enquanto isso pretendia redigir o relatório, mas

havia alguma coisa em sua cabeça que o impedia de

conceber qualquer ideia clara. Tornou-se cada vez mais

difícil lembrar o que havia acontecido há uma hora na casa

de animais de Ixt.

Finalmente a fita rolante trouxe o modelo de vibrações

cerebrais acompanhado da respectiva interpretação.

O círculo estrelado que se via no canto inferior esquerdo

representava o sinal de que o modelo passara pelo cérebro

positrônico.

Entusiasmado, acenou com a cabeça, quando descobriu

o número de código.

— O que é isso? Ixt já está registrado aqui e tem um

número de identificação dos aras — disse Huxul em tom de

espanto e passou a mão pela testa.

Subitamente passou a desenvolver uma atividade

intensa. Entrou em contato com a divisão positrônica H. Era

ali que estavam armazenados todos os algarismos de

identificação dos aras. Transmitiu o número de código.

Quase no mesmo instante, a tela que se encontrava sobre

sua escrivaninha iluminou-se.

Levou alguns segundos para compreender que aquilo

que estava lendo eram seus próprios dados pessoais. E

levou mais cinco segundos para compreender que já não

compreendia mais nada.

Logo se lembrou das ameaças que os dois chefes a que

estava subordinado haviam formulado no dia anterior.

Isso bastou para uma ação precipitada.

Huxul redigiu um relatório que, em nenhum dos seus

detalhes, correspondia à verdade dos fatos. Porém, por

enquanto, isto o livraria de uma repreensão ainda mais

intensa dos chefes. Evidentemente esse relatório era

Page 51: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

51

extremamente favorável ao mercador galáctico Ixt, que

explorava o comércio de animais numa loja da Rua do

Grande Mo. As divergências insignificantes em seus dados

pessoais foram atribuídas a um lapso.

Apenas, Huxul se esquecia, ao redigir seu relatório

fictício, que inevitavelmente haveria de chegar o momento

em que o grande cérebro positrônico examinaria o relatório

sob o aspecto da coerência lógica. Aí então, a mentira

fatalmente seria descoberta.

John Marshall, que continuava parado diante do

edifício, controlando os pensamentos de Huxul, lembrou-se

desse fato. Mas nem por isso ficou preocupado. Não estava

em condições de impedir a investigação, que se encontrava

em curso, sobre sua pessoa. Porém cada dia que

conseguisse ganhar dava a ele e a Laury Marten novas

chances de atingir o objetivo a que se tinham proposto.

Em Hellgate, a cerca de oitenta e um anos-luz de

Tolimon, Perry Rhodan, protegido pela abóbada de aço,

aguardava o resultado de seus esforços.

* * *

Aquilo que Man Regg, o médico dos aras, designara

diante da barreira energética como X-p, surgiu diante dos

olhos de Laury Marten como uma construção gigantesca. E,

pelo que sabia da arquitetura dos médicos galácticos, supôs

que o complexo penetraria na terra numa profundidade

equivalente a três vezes sua altura.

Por cima da entrada principal, via-se esta inscrição

singela: X-p.

X-p ficava praticamente no centro do zoológico

continental, bem longe das áreas acessíveis aos curiosos,

em meio a um desolado deserto de pedras, aquecido dia

após dia pelos raios causticantes do sol.

O edifício de oito pavimentos, que parecia fundido

numa única peça, estendia-se a uma distância de vários

quilômetros.

Laury teve dificuldade em determinar o formato da

construção. À primeira vista, pensou num cano

superdimensionado de extremidades arredondadas, mas

agora, que se encontrava bem diante do mesmo,

contemplando a fachada tingida num azul-pálido, não teve

tanta certeza.

Sentiu o coração palpitar ligeiramente quando penetrou

no setor de controle. Tratava-se de ampla sala decorada

com um luxo discreto, de cores sóbrias e com uma

atmosfera agradavelmente refrigerada. Os tapetes abafavam

os sons.

Qualquer controle envolvia o perigo de que, graças à

sua constituição orgânica, Laury fosse desmascarada como

não-arcônida. Muito embora na Terra houvessem sido

tomadas todas as providências possíveis para que o fato não

pudesse ser revelado por meio de simples radioscopia, não

se deveria esquecer que havia uma diferença enorme entre a

tecnologia de Árcon e a dos aras.

A evolução milenar dos médicos galácticos, tal qual a

dos mercadores galácticos, ambos descendentes da raça dos

arcônidas, processara-se por trilhas próprias. O simples fato

de que o abastecimento de medicamentos aos mundos

dominados por Árcon fosse feito pelos aras, se transformara

numa ideia consagrada e bastava para deixar claro o

caminho extraordinário tomado pela evolução autônoma

dos médicos galácticos. Formavam uma população de

bilhões de habitantes que corporificava um saber ao qual os

arcônidas nada poderiam contrapor na área da medicina.

Foi só graças ao cérebro gigante positronizado instalado em

Árcon, que numa função autárquica decidia sobre a

existência de todos e em todos os sentidos, que a tentativa

de apoderar-se do Império de Árcon, realizada há muito

tempo pelos aras, terminara num fracasso.

Foram essas as ideias que passaram pela cabeça de

Laury Marten enquanto a mesma se encontrava no setor de

controle, onde foi testada pelas lentes de cristal.

O sinal azul-claro de liberação, que surgiu

repentinamente diante dela, aliviou-a da tensão. No mesmo

instante, pôs-se em movimento e não se espantou quando a

grande porta transparente P II recuou silenciosamente

diante dela, deixando livre o interior de X-p.

Uma abóbada radiante estendia-se acima de sua cabeça.

Uma abóbada no interior da construção em forma de tubo?

Avançou a passos hesitantes. A luz fosforescente que saía

das aberturas do teto e se refletia palidamente em torno do

centro do soalho compacto deixou-a confusa. O saber

hipnótico que lhe fora ministrado não conseguia explicar

esses reflexos luminosos.

Uma voz sonora mandou que se aproximasse do círculo

luminoso desenhado no centro do soalho e caminhasse uma

vez por sua periferia. Só mais tarde ficou sabendo que dessa

forma a parte exterior de seu corpo seria libertada de

germes.

Surpresa, Laury obedeceu. Não sentiu nada enquanto

caminhava de um feixe luminoso a outro. Mas mal havia

concluído o giro, a mesma voz indagou sobre seus desejos.

Em voz baixa, Laury declarou ter sido transferida para

X-p por ordem de Man Regg. A seguir, pronunciou seu

nome arcônida, Arga Slim, e aguardou novas ordens.

Já fazia cinco minutos que se encontrava no interior do

edifício, e até então não havia visto um único ara ou robô.

À sua direita, a parede da abóbada abriu-se em forma de

diafragma. Surgiu uma abertura circular e, pela última vez,

ouviu a voz sonora, que lhe ordenou que atravessasse a

abertura e deixasse o resto por conta da fita transportadora.

Mais uma vez, Laury Marten sentiu um formigamento

que já se apossara dela quando atravessou a entrada do

edifício.

Espantou-se ao perceber que entrara numa sala fechada.

Não viu nenhuma fita. Apenas, o chão começou a trepidar

ligeiramente assim que, atrás dela, o diafragma se fechou

silenciosamente.

Pensou na possibilidade de outro controle. Afinal, X-p

era o lugar em que era produzido o maior segredo dos

médicos galácticos: o soro prolongador da vida.

Page 52: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

52

Laury Marten espantou-se com o próprio nervosismo

quando a parede que se encontrava diante dela subitamente

se abriu para os lados e ela se viu diante de Man Regg, o

homem que conhecera no dia anterior.

Seus olhos exprimiram certo orgulho quando notou a

perturbação da moça. Depois de cumprimentá-la, disse:

— Nós, os aras, não progredimos apenas no terreno da

medicina. A tecnologia, que tem sido negligenciada por

muito tempo, experimentou novo impulso entre nós, Arga.

Sentaram-se frente a frente.

Mais uma vez, Laury Marten fez o jogo do gato e do

rato com Man Regg. Lia seus pensamentos e formulava as

respostas de acordo com os mesmos.

Recorria ao genial saber do cientista para fazer seus

blefes contra o mesmo. Isso só lhe foi possível porque,

antes de lhe ser confiada a missão, boa parte do saber

médico dos arcônidas lhe fora transmitido por meio de um

processo de aprendizagem hipnótica. Especializara-se

principalmente nas áreas da zoologia galáctica e da

soroterapia.

De repente, uma expressão de desconfiança surgiu nos

olhos de Man Regg.

Laury Marten se descuidara. Exprimira seus

pensamentos de forma quase inalterada. Mas o pior não era

isso. O fato era que nenhum arcônida poderia dispor desse

conhecimento, por se tratar de um dos numerosos segredos

cuidadosamente guardados de X-p.

Apesar da falha a mutante teve sorte. A lição que Perry

Rhodan vivia inoculando nos seus homens transformou-se

em sua salvação.

O erro que acabara de cometer não a deixou perturbada.

De repente, Laury Marten se tornou fria, isenta de qualquer

influência emocional; transformou-se no protótipo do

homem lógico.

Tomado por um princípio de desconfiança, Man Regg

formulou em pensamento as linhas gerais do processo que,

para seu espanto, a arcônida mencionara como que por

acaso.

Sua pergunta terminante e inequívoca ainda pendia no

ar, mas Laury Marten já preparara a resposta.

Sorriu. Inclinou-se para frente. Jogou com todo charme

que possuía, e brilhou com seu saber.

— O problema resume-se numa sequencia de

conclusões lógicas, Man... — principiou, e passou a expor

sua opinião.

Com um sorriso nos lábios, observou o efeito que suas

palavras produziam no rosto de Regg. Ao lado da

desconfiança, viu o espanto e a admiração, que acabaram

por prevalecer. O cientista, geralmente tão prosaico, acabou

por entusiasmar-se com a lógica tão bem elaborada de

Laury Marten, a ponto de exclamar impulsivamente:

— Estou pensando em outra coisa, Arga. A senhora

gostaria de trabalhar na minha equipe pessoal?

Ao concordar, Laury Marten acreditava encontrar-se

próxima ao objetivo.

* * *

John Marshall captou a mensagem telepática de Laury

Marten quando se encontrava a caminho da nave de Rohun,

o comandante dos saltadores. Sua exposição otimista

forneceu-lhe certo estímulo moral. A disposição eufórica

perdurou até que atingisse o gigantesco espaçoporto de

Trulan e procurasse em vão localizar a nave cilíndrica de

Rohun.

Rohun decolara sem avisá-lo!

No mesmo instante, John Marshall — ainda sob a

máscara de um barbudo — colocou seu espírito num estado

de alarma rigorosíssimo.

Naquele instante, recebeu o impulso de Laury Marten.

O movimento intenso do espaçoporto desapareceu

diante dos olhos de Marshall. Não via decolar e pousar as

naves e não deu a menor atenção ao que se passava em

torno dele. Apenas perscrutou-se, a fim de ouvir o relato da

mutante.

John Marshall enfureceu-se! Acabara de conhecer os

menores detalhes do que se passara entre Laury Marten e

Man Regg. Soube inclusive de sua resposta leviana e sua

tentativa de livrar-se da situação embaraçosa em que se

encontrava através de novas peripécias com o saber de Man

Regg.

Ainda pertencia ao círculo de colaboradores pessoais do

cientista, mas no espírito de Man Regg haviam surgido

dúvidas sobre a pessoa de Laury Marten.

Em X-p, Man Regg entrara em contato não só com a

Divisão de Segurança, mas também com o serviço secreto

sediado em Trulan, pedindo-lhe que realizasse um exame

acurado da estudante de zoologia Arga Slim. O argumento

de maior peso, que Man Regg formulou em apoio a suas

suspeitas, culminou nestas palavras:

— Como estudante de zoologia, a arcônida Arga Slim

dispõe de um saber que infelizmente tenho procurado em

vão entre os meus médicos.

O rosto de John Marshall assumiu uma expressão rígida.

Lembrou-se de suas preocupações, que desde o início

giravam em torno de Laury Marten. Ainda lhe faltava a

prática, o último retoque da personalidade, que faria com

que não superestimasse suas próprias habilidades e,

principalmente, a necessária visão global das coisas. Ainda

era capaz de embriagar-se com um êxito momentâneo, e

essa embriaguez a levava a cometer erros.

“Se nos dados de Laury também houver alguma

divergência, todo o mundo de Tolimon se colocará em

nosso encalço”, pensou e teve uma sensação de

desconforto.

Arrancou-se violentamente em meio às suas

preocupações. Antes de tudo, precisava descobrir por que

Rohun decolara com a nave.

Marshall encontrava-se sobre a fita-guia, que levava ao

setor G-8 do espaçoporto. Era o lugar em que ainda ontem

estivera estacionada a nave de Rohun. Mais uma vez passou

os olhos pelo enorme campo de pouso. Viu que uma nave

arcônida com sua típica forma esférica rompeu

silenciosamente a delgada camada de nuvens e pousou

Page 53: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

53

suave. Virou-se em direção ao distribuidor, um sistema de

elevadores antigravitacionais, a fim de que este o

conduzisse à via elevada, onde tomaria uma condução que

o levasse de volta ao centro da cidade.

Finalmente descobriu, em meio à confusão, Egmon, um

dos agentes de Rohun estacionados em Tolimon.

Aquele saltador mais se parecia com um arcônida. Seus

cabelos louro-claros chamavam a atenção de qualquer um.

Mas havia em Egmon outro detalhe ainda mais estranho,

que sempre voltava a fascinar Marshall: o aspecto dos olhos

do agente mudava constantemente, da mesma forma que

um camaleão muda a cor da pele.

— Egmon — disse Marshall, ao passar por ele.

O agente dos saltadores ouvira seu nome, mas não

conhecia o barbudo que lhe dirigira a palavra.

John dirigiu-se a um dos numerosos robôs de

informações. Indicou o número da nave de Rohun e

procurou saber para onde se dirigira o mercador galáctico.

— Não posso dar nenhuma informação — rangeu, um

tanto mecanizada, a voz do robô.

Marshall não esperara outra coisa. Sentiu que alguém se

encontrava bem atrás dele. No mesmo instante, usou seu

dom telepático para alcançar os pensamentos desse alguém.

Os pensamentos de Egmon podiam ser tudo, menos

pacíficos. O agente de Rohun via naquele sujeito um espião

dos aras e, para estar preparado para qualquer iniciativa,

mantinha engatilhado o radiador de impulsos que trazia no

bolso.

Ao virar-se, Marshall cochichou:

— Se eu fosse você, não apertaria o gatilho, Egmon.

O saltador ainda estava desconfiado, porém havia na

voz de Marshall alguma coisa que lhe parecia conhecida.

Mas Egmon só se tranquilizou quando o mutante citou seu

nome.

— O que o torna irreconhecível não é a barba, mas os

ombros largos — disse Egmon em tom perplexo. — Por

todas as estrelas, Ixt, estou esperando pelo senhor há várias

horas. Nosso chefe recebeu más notícias. Por isso decolou e

encontra-se a meio caminho entre Tolimon e Hellgate, onde

aguarda o desenrolar dos acontecimentos.

— Que acontecimentos?

— Um homem do clã de Estgal foi apanhado e

submetido à lavagem cerebral.

Marshall não sabia quem era Estgal, patriarca dos

saltadores.

— O clã de Estgal vive contrabandeando medicamentos

dos aras. Os aras sabem disso, mas nunca conseguiram

pegar Estgal em flagrante ou desmontar sua organização

que age na superfície. Caso Estgal se tivesse mantido no

mesmo ramo, poderia ter ficado muito velho.

— Estgal está morto?! — indagou admirado, Marshall.

De repente, passou a interessar-se por esse desconhecido

patriarca.

— Há três ou quatro horas foi destruído em pleno

espaço com dezoito naves, por uma formação bélica dos

aras. É por isso que este lugar está cheio de espiões dos

aras.

Egmon, que Marshall tinha na lembrança como um

agente de Rohun, fechado e de poucas palavras, estava

desenvolvendo uma verbosidade irritante enquanto

apresentava seu relatório. Foi só graças ao treinamento a

que eram submetidos os colaboradores de Rhodan que

Marshall conseguiu dominar-se:

— Faça o favor de limitar-se ao essencial, Egmon. O

que foi que Estgal quis arranjar?

— Já havia arranjado — cochichou o agente louro-

claro. — Por meio de um ara subornado, conseguiu arranjar

na fábrica de soro G-F 45 o processo de conservação do

soro imunizador X-1076...

Estas palavras pareciam familiares a Marshall.

Lembrou-se de ter lido os pensamentos de Kuxul, que

também se haviam ocupado com esse processo e seu

desaparecimento.

— E depois?

— Na última noite Hduzz, membro do clã de Estgal, foi

preso e submetido à lavagem cerebral. Depois disso,

também o ara corrupto foi preso e submetido ao mesmo

tratamento. Quando tudo isso terminou, o dia já estava

amanhecendo. Estgal recebeu um aviso e fugiu para o

espaço com suas naves. Mas as naves de guerra dos aras já

o esperavam e destruíram seus veículos cilíndricos. Já

compreende por que meu chefe resolveu deslocar-se para

um ponto situado a quarenta anos-luz deste planeta?

Marshall deixou a pergunta sem resposta.

— Vocês mantiveram contatos muito estreitos com os

agentes de Estgal?

— Essa informação só pode ser dada por Tulin ou

Otznam — respondeu o saltador, enquanto a cor de seus

olhos mudou de novo.

Marshall realizou um exame rápido para verificar se

Egmon estava dizendo a verdade. Não descobriu nenhuma

mentira em seus pensamentos. Limitou-se a pedir:

— Amanhã a esta hora quero encontrar-me com Tulin

neste lugar. Será que você poderia avisá-lo?

— Ele poderá estar aqui dentro de uma hora — disse

Egmon, enquanto seus olhos emitiram um brilho

esverdeado.

— Será amanhã! — disse Marshall em tom decidido.

Fez um gesto quase imperceptível para Egmon e

desapareceu em meio à confusão dos transeuntes.

Entrou no distribuidor, ou seja, o lugar através do qual

se atingiam as diversas ruas por meio dos elevadores

antigravitacionais. Subiu e, uma vez na via elevada número

quatro, tomou o expresso radial que corria velozmente em

direção ao centro da cidade.

Seus pensamentos estavam absortos na missão que

Perry Rhodan havia confiado a ele e a Laury Marten.

Respirava pesadamente. A missão parecia-lhe quase

insolúvel.

* * *

Page 54: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

54

Man Regg sacudiu a cabeça pela terceira vez, mas não

interrompeu o relatório do ara de sua Divisão de Segurança.

Com a paciência de um homem bem equilibrado, ouvia-o

atentamente.

Man Regg, o médico genial dos aras, não era o único

ouvinte. Três colegas encontravam-se em sua companhia, e

estes também não interrompiam o relatório.

— Pode retirar-se! — com estas palavras, Man Regg

dispensou o chefe da Divisão de Segurança de X-p.

Quando se viu sozinho com os colegas, perguntou:

— Então?

Três vezes ouviu esta opinião:

— Tudo perfeito, mas...

O mas, três vezes repetido, dizia respeito à Laury

Marten.

O serviço secreto dos aras penetrara até o centro do

império estelar dos arcônidas, por meio do

hipercomunicador, em busca do passado de Laury Marten.

A central de Trulan seguira outros caminhos que os da

Divisão de Segurança do conjunto X-p, mas ambas

chegaram ao mesmo resultado.

Arga Slim era uma arcônida de vinte e três anos, vinda

do planeta Dewen. Era estudante de zoologia e, dentro em

breve, teria de prestar os exames finais. Segundo a opinião

dos professores, era dotada de um talento médico

extraordinário.

Não havia o que objetar nos dados. O retrato recebido

de Dewen pelo hipercomunicador correspondia

aproximadamente ao aspecto de Laury Marten. A diferença

devia provir da falta de nitidez da transmissão.

Apesar disso, Man Regg não estava satisfeito com o

resultado obtido por dois caminhos diferentes. Estava

formulando uma sugestão. Era claro que, sendo o chefe, só

ouviria aplausos à mesma.

Gelte, um zoólogo ara, examinaria Arga Slim em

presença dos seus colegas Kelisse e Assa. Man Regg

permaneceria na sala contígua, onde acompanharia tudo

pelo sistema de comunicação audiovisual.

Man Regg dirigiu-se à sala contígua. Arga Slim — ou

melhor, Laury Marten — recebeu ordem para apresentar-se

ao chefe. Os três cientistas aras acreditaram que tivessem

diante de si uma arcônida desprevenida. Laury deixou que

permanecessem nessa convicção. Sabia do que se tratava.

Entrou com um sorriso amável nos lábios e fingiu-se

espantada quando em vez de Man Regg notou três aras

desconhecidos à sua frente. Sentou e logo se viu envolvida

num exame bastante duro.

Precisou lançar mão de toda energia e concentração de

que era capaz para não cair do extremo da estudante

superdotada para o extremo oposto, pois isto seria uma

tolice fora do comum.

O saber médico arcônida que lhe fora transmitido

durante o processo de aprendizagem hipnótica não lhe teria

adiantado muito. Mas, da mesma forma que aproveitara o

saber de Man Regg para brilhar, valeu-se dos

conhecimentos dos três examinadores para escapar sã e

salva de todos os obstáculos e armadilhas do caminho.

Embora fosse telepata e pudesse ler pensamentos, via-se

obrigada a realizar um trabalho de mestre para controlar

três cérebros, concentrar-se nas respostas e continuar a

oferecer a imagem de uma arcônida segura e confiante.

Subitamente sentiu-se perturbada por um impulso mais

intenso, vindo da sala contígua.

Isso aconteceu no momento exato em que seus

examinadores formularam uma pergunta importante.

Laury Marten recorreu ao meio empregado em todas as

estrelas, dizendo que não havia entendido a pergunta. Dessa

forma, ganhou tempo para descobrir quem se encontrava na

sala contígua e concentrava seus pensamentos sobre ela. Ao

mesmo tempo, aproveitou o novo lapso de tempo para

formular a resposta.

De repente, tornou-se confiante demais. Os

examinadores começaram a ver nela um verdadeiro

fenômeno médico. Passou a responder às perguntas por

meio dos pensamentos de Man Regg, mas ela o fez de tal

forma que apontou como observações menos corretas tudo

aquilo que Regg considerava certo, apresentando três

argumentos que representavam os pontos mais fracos da

série de pesquisas de Man Regg.

— Será que Árcon já avançou tanto no campo da

pesquisa genética que os estímulos genéticos, os quais até

agora não se tornaram conhecidos dos médicos, já passaram

à categoria de informações que são do domínio público? —

surpreso, Assa exclamou de modo interrogativo.

Laury Marten respondeu com a maior amabilidade:

— Dos dados a respeito de minha pessoa consta a prova

de que durante um ano fui assistente de Moguld, que

também em Tolimon goza de certa fama.

— Acontece que não nos consta que Moguld se ocupe

com a biologia da hereditariedade, Arga Slim.

Arga continuou amável como antes.

— Será que no Império de Árcon se conhecem todas as

pesquisas que já foram realizadas nos mundos dos aras?

— Isso não é argumento — falou Assa em tom furioso.

— Será que a teoria de Moguld representa um forte

argumento, quando este afirma que o segredo da vida eterna

se encontra nos cromossomos?

— Tolice! — resmungou Assa.

— Será que ainda se pode falar em tolice se

aumentarmos artificialmente o número dos cromossomos

ligados à espécie e obrigarmos os cromossomos adicionais

a suspenderem a divisão indireta das células?

Laury Marten sorriu, mas por dentro fervilhava.

Naquele instante, Kelisse, Assa e Gelte não passavam de

um feixe de receios. Viram que o mais importante dos seus

segredos havia sido descoberto. Até esse ponto, haviam

refletido sobre o problema, e Laury Marten rogava aos

deuses para que um deles refletisse sobre o problema em

seu aspecto global, para revelar o processo sofisticado de

produção do soro prolongador da vida. Quando isso

acontecesse, o problema estaria resolvido. Perry Rhodan

ficaria livre da tensão psicológica insuportável causada pelo

Page 55: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

55

fato de que Thora, a mulher amada que se encontrava a seu

lado, envelhecia a cada dia, enquanto Crest, o amigo

arcônida, se transformava num ancião.

Leu novos pensamentos. Eram apenas fragmentos, mas

bastaram para que reconhecesse que os três aras que tinha

diante de si pretendiam alcançar um prolongamento infinito

da vida sem recorrer a qualquer soro. E, ao que parecia, não

se encontravam muito longe do objetivo.

Tentou influenciar os aras hipnoticamente para esse fim,

mas nesse instante Man Regg veio da sala contígua e

felicitou-a.

Lamentou a interrupção. As reflexões dos três médicos

aras haviam revelado parte do segredo sobre a maneira pela

qual pretendiam alcançar a imortalidade.

Conseguiu enrubescer com o elogio de Man Regg e, ao

mesmo tempo, felicitou no seu íntimo o Serviço de Defesa

do Sistema Solar por ter forjado seus dados pessoais com

tanto cuidado. Enquanto Laury Marten elogiava os homens

de Terrânia, John Marshall os repreendia por suas

negligências. Ambos não sabiam que o Serviço de Defesa

do Sistema Solar nunca teria sido capaz de fornecer dados

tão precisos, se não contasse com a cooperação de certos

mercadores galácticos.

Os dados sobre Moguld eram corretos. E também era

verdade que existia uma estudante de zoologia arcônida

chamada Arga Slim. Mas só Rhodan e um comandante dos

saltadores sabiam que a verdadeira Arga Slim se encontrava

há mais de oito meses numa nave cilíndrica, realizando em

mundos distantes estudos zoológicos in loco.

Mais uma vez, Laury teve que realizar uma obra-prima

da telepatia, mesmo sob a desconfiança de Assa. Apesar de

tudo, conduziu uma conversação especializada fluente,

intercalando vez por outra algumas observações científicas

de alto gabarito, que deixavam os aras perplexos.

Se John Marshall participasse da palestra, teria colocado

uma poderosa barreira mental, para que Laury Marten com

seu espírito um tanto infantil não se deslocasse para o

terreno das areias movediças.

— Sugiro — disse Man Regg, encerrando a reunião —

que Arga Slim passe a trabalhar na Divisão de

Geomorfismo. Ou será que pensam de forma diferente?

A Divisão de Geomorfismo estudava as alterações

trópicas da pele do rosto de inteligências jovens, que muitas

vezes adquiria o aspecto envelhecido, apesar do uso do soro

prolongador da vida.

Nenhum dos três médicos teve qualquer objeção contra

a sugestão do chefe. Nem mesmo Assa.

O hipercomunicador instalado no luxuoso escritório de

Ixt não representava nada de extraordinário. Era uma das

ferramentas de um negociante em grande escala de animais

raros. Nos últimos meses fizera várias compras de animais

esquisitos pelo rádio, enquanto a nave dos saltadores que os

trazia a bordo ainda se encontrava no espaço, a milhares de

anos-luz, e muitas vezes, levava semanas para chegar a

Tolimon.

Naquela manhã, John Marshall esquentou seu

hipercomunicador. Futgris estava sentado à sua frente e

deveria socorrê-lo com seus conhecimentos especializados

se isso se tornasse necessário.

Tulin, um dos agentes de Rohun, lhe contara no dia

anterior que Bet, um saltador, se aproximava de Tolimon,

com metade da nave cheia de animais dos tipos mais

estranhos.

Chamou a Bet-765 pelo hipercomunicador. John

Marshall pretendia entrar no negócio a todo vapor. O

encontro — que no dia anterior tivera no espaçoporto com

Tulin, um ruivo impetuoso — fornecera-lhe estímulo para

isso. Uma frase dita ao acaso transformara-se subitamente

num impulso muito intenso.

“Quanto mais estreitamente a gente colabora com os

aras, mais confiantes eles se tornam.”

E a experiência de oito meses ensinara a Marshall que a

melhor isca para os médicos galácticos eram os animais que

ainda não fossem conhecidos em Tolimon.

A Bet-765 respondeu. Na tela, surgiu o rosto de Bet, um

saltador jovem e robusto.

Bet sorriu ligeiramente ao ouvir o motivo pelo qual Ixt,

um negociante de animais, estabelecido em Trulan, estava

entrando em contato com ele.

— Tudo que tive de fazer foi carregar os animais de um

planeta que em cada canto exala um cheiro diferente.

Aposto que nem um único destes animais é conhecido no

Império de Árcon. Pretendia fornecer toda a carga aos aras,

mas se o senhor me pagar um preço aceitável, eu os vendo

ao senhor, Ixt. Um instante! Vou mostrar-lhe meu

zoológico de bordo.

A imagem de Bet desapareceu. Logo a seguir, os

animais começaram a surgir na tela. John Marshall, que

durante as ações desempenhadas em muitos planetas já se

acostumara às coisas mais estranhas e monstruosas, reteve a

respiração.

Bet tinha uma coleção de monstros terríveis a bordo.

Eram lagartos, morcegos gigantes, anfíbios e outros seres

que não poderiam ser enquadrados em qualquer categoria.

Ixt lançou um olhar indagador para Futgris. Este

também não sabia o que fazer, mas em seus olhos brilhava

a chama do entusiasmo.

As negociações consumiram meia hora.

Depois, o negócio tomou um fim. Futgris ficou perplexo

quando o chefe voltou a confirmar o preço da compra.

Eram 1,3 milhões.

O contato pelo hipercomunicador não foi interrompido.

Enquanto a Bet-765 ainda se encontrava a 5.299 anos-

luz do planeta Tolimon, John Marshall catalogou, com o

auxílio de Futgris, os animais que se encontravam a bordo

da nave cilíndrica de Bet.

5

Page 56: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

56

Quando o último dos animais acabara de ser fixado

fotograficamente, Marshall pediu que até o meio-dia o

vendedor lhe entregasse trinta exemplares do catálogo.

Dali a duas horas, os trinta exemplares estavam sobre a

mesa de John Marshall. Futgris foi brindado com um elogio

todo especial. Depois disso, o ara estaria disposto a fazer

pelo chefe tudo que estivesse ao seu alcance. Felicitava-se

constantemente por ter resolvido há oito meses entrar para o

serviço da firma recémfundada.

* * *

Divisão de Compras.

Era lá que se encontrava John Marshall. Passara por

cima de dezoito instâncias competentes, apontando para seu

robô de trabalho, que carregava trinta catálogos. Naquele

momento, encontrava-se sentado diante de Kolex, um velho

ara, curvado pelos anos, mas que nem por isso deixava de

ser uma raposa esperta. Numa atitude de espreita, seus

olhos fitavam John Marshall. Deixou que falasse. Sua boca

permaneceu fechada, mas seus dedos não ficaram quietos

nem por um segundo.

John sabia o que a velha raposa estava fazendo com os

dedos, pois lia os pensamentos de Kolex. Estava pondo em

polvorosa todos os setores do gigantesco aparelho, que

poderiam estar interessados na aquisição de animais

desconhecidos.

A palestra estava sendo vista e ouvida em mais de vinte

lugares. Apenas o catálogo ainda não havia sido

apresentado. O robô de trabalho de Ixt ainda mantinha os

exemplares seguros nas mãos de aço, mantendo-se imóvel

atrás do chefe.

Kolex comprimiu mais uma tecla para estabelecer outra

comunicação. John Marshall conteve-se para não deixar

perceber o triunfo. O biomédico Man Regg acabara de ser

colocado na linha.

— Um catálogo! — pediu Marshall, dirigindo-se ao

robô.

Colocou-o exatamente diante da lente de cristal do

projetor de campo. No mesmo instante a sala foi escurecida

automaticamente. A imagem do primeiro animal foi

projetada sobre a tela de radiações com uma dimensão de

quatro metros por cinco.

John Marshall armou-se de paciência. A única coisa em

que estava interessado eram os pensamentos de Kolex.

Enquanto se mantinha de olhos semicerrados, lia-os.

Aquilo que o chefe da Divisão de Compras dos aras

ocultava, acabava sendo revelado através dos seus

pensamentos. Vivia lutando contra a tendência de irromper

em demonstrações de entusiasmo. Estava reprimindo o

desejo de levantar-se de um salto para exprimir seu espanto.

Fazia mais de oitocentos anos de Tolimon que exercia as

funções de chefe da Divisão de Compras, mas em todos

esses séculos nunca vira tamanha profusão de coisas

terrificantes, novas e extraordinárias.

A projeção durou nada menos que uma hora. Quando

terminou, a luz ofuscante do sol voltou a encher a sala.

O mutante de Perry Rhodan disse o preço. Pediu 2,1

milhões. Não se sentiu embaraçado ao indicar a soma.

Conhecia os pensamentos de Kolex. E este estava disposto

a chegar até lá.

Mas em vez de aceitar a pretensão de Marshall, o ara

formulou uma ameaça velada:

— Esses seres ainda não chegaram às suas mãos, Ixt.

Pelo que diz, o negócio foi fechado pelo hipercomunicador.

Acredita que eu teria algum problema em descobrir qual é o

saltador que tem essa carga a bordo e negociar diretamente

com ele? Posso perfeitamente dar a entender, de forma

diplomática, que terá dificuldade se não fizer o negócio

conosco...

Era exatamente o que Kolex estava pensando.

John Marshall, sob o disfarce da extraordinária máscara

de saltador, respondeu com um sorriso condescendente.

— Ora, Kolex, faça-me o favor!

Não disse mais nada.

A atitude de espreita nos olhos de seu interlocutor

tornou-se mais intensa. Pediu apressadamente uma ligação

com o serviço de vigilância de hipercomunicação.

A ligação foi completada. Um ara prometeu fornecer

num instante os dados solicitados.

Mas esse instante não chegou.

O sorriso condescendente de John Marshall tornou-se

mais intenso.

— Kolex — disse em tom enfático. — Eu sou um

saltador. Meu hipercomunicador foi construído pelos

saltadores.

Com estas palavras, deu a entender que o serviço de

vigilância de hipercomunicações de Tolimon não estava em

condições de verificar com quem havia falado.

Quase no mesmo instante, veio a resposta da Divisão de

Vigilância de Hipercomunicações, dada em tom modesto,

de que não era possível fornecer a informação solicitada.

Kolex ainda teve o atrevimento de formular uma

pergunta:

— O senhor acha que em Tolimon é permitido o uso de

hipercomunicadores desse tipo?

John Marshall resolveu falar grosso:

— Será que estou aqui para ser interrogado ou para

tratar de negócios? O senhor sabe perfeitamente que os

mercadores galácticos negociam com todos os povos do

Império; tenho outros interessados além do senhor. Vamos

dar a palestra por encerrada. De acordo?

O calor do meio do dia, que chegava a quarenta e cinco

graus à sombra, pendia sobre Trulan, quando a Divisão de

Compras dos aras e Ixt, o mercador galáctico, fecharam o

contrato para o fornecimento de animais, no valor de dois

milhões.

Quando John Marshall se despediu de Kolex, os dois se

haviam tornado bons amigos.

* * *

Page 57: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

57

Dois dias depois, a Bet-765 pousou no espaçoporto de

Trulan. A chegada da nave provocara sensação, pois nunca

se vira tamanha quantidade de jaulas transportáveis.

Também em Trulan não faltavam os curiosos. Mas,

quando a grande comporta da Bet-765 se abriu, deixando à

mostra o depósito F, a multidão fugiu em disparada, e quem

possuísse um sentido de olfato humano tapava o nariz e

lutava desesperadamente para reprimir as náuseas causadas

pelo terrível fedor.

Marshall logo colocou seu aparelho de respiração,

respirou profundamente algumas vezes e enxugou o suor

que lhe cobria a testa.

A onda olfativa — espalhada como uma densa neblina e

reforçada incessantemente pelo cheiro que saía do interior

do depósito da Bet-765 — era de intensidade inigualável.

Alguns zoólogos dos aras, que já estavam acostumados

a muita coisa em matéria de mau cheiro, haviam

desmaiado. Outros fugiam junto com o grupo de curiosos.

Só depois de uma hora, quando a onda olfativa penetrante

se aproximava inexoravelmente do gigantesco edifício da

recepção do espaçoporto, a descarga dos animais pôde ser

iniciada.

Kolex, que estava parado ao lado de Marshall junto à

grande rampa, viu um monstro de dez metros, com o

formato de pólipo, ser agarrado pelos raios de tração que o

colocaram atrás da grade energética da jaula destinada ao

transporte.

— Estes animais respiram oxigênio e espalham um

fedor destes! — suspirou Kolex, em tom exaltado. — Tal

fato já constitui uma novidade. Diga-me uma coisa: Por que

todos esses seres exalam um cheiro tão insuportável?

— Se eu soubesse disso — disse John Marshall,

bancando o mercador galáctico em toda extensão — não

teríamos feito o negócio por dois milhões.

Esta observação fez Kolex lembrar-se de que procurara

exercer pressão sobre o mercador de animais. Na intenção

de reparar alguma coisa, disse:

— Nosso negócio se tornou conhecido em toda cidade,

Ixt. Ontem recebi a visita do pessoal do serviço secreto. O

senhor já fez alguma coisa contrária às nossas leis no

mundo dos aras? O funcionário quis saber com todas as

minúcias como foi que fechamos o negócio. Confie em

mim, Ixt, e procurarei ajudar. Minha influência junto ao

serviço secreto é bem considerada.

John Marshall sentiu um calafrio. Exerceu um controle

instantâneo dos pensamentos de Kolex. O chefe da Divisão

de Compras dos aras estava dizendo o que pensava.

— Eu? — disse Marshall em tom de espanto. — Não

me lembro de ter violado qualquer lei. O funcionário não

explicou o motivo de sua visita?

— Explicou Ixt. Diz que os dados relativos à sua pessoa

não são corretos. É bem verdade que existe um mercador

galáctico de animais, mas pelo que dizem este reside em

Xylon, no sistema de Hogur. Ixt, quando olho para a beleza

que o senhor nos vendeu, meu coração se abre. Mesmo que

fosse um agente, faria tudo para ajudá-lo. Confie em mim,

saltador!

John Marshall surpreendeu-se porque o chão não se

abriu sob seus pés para engoli-lo.

Não poderia deixar de responder a uma observação

como esta. Mas nesse exato momento foi atingido pela

mensagem telepática de Laury Marten.

— Daqui a pouco! — telepatou de volta. — Agora não!

Daqui a dez minutos, se for necessário, mas não agora,

Laury!

— Acontece que encontrei humanos trancados no

zoológico, sobre os quais correm boatos entre os

saltadores, Marshall. Tenho necessidade absoluta...

Até mesmo um palavrão pode ser transmitido por via

telepática. John Marshall não se importou com o fato de

que Laury Marten era mulher. Era o chefe do comando, e

proibia a perturbação telepática de Laury.

Respirou profundamente.

Fitou Kolex.

— Qual foi a expressão que o senhor usou, Kolex? —

riu. — Obrigado — prosseguiu. — Não me esquecerei do

que o senhor se dispôs a fazer por mim, mas nunca haverá

necessidade disso. Todavia, tenho um pedido. Gostaria de

saber por que o serviço secreto está interessado na minha

pessoa. Eu sou Ixt, logo se conclui que o tal do Ixt, que se

encontra em Xylon, é um trapaceiro.

— De qualquer maneira, o senhor nos vendeu o lote de

animais mais sensacional do milênio, Ixt — respondeu

Kolex num tom que, além de ser ambíguo e reticente,

encerrava uma advertência.

Marshall examinou os pensamentos do ara. Não

encontrou nada de importante além daquilo que o mesmo

lhe dissera. Qual seria então o motivo da advertência

inequívoca de Kolex? Estaria agindo por intuição?

* * *

Ao passar por uma ondulação do terreno em que ficava

o zoológico continental, Laury Marten viu subitamente uma

construção parecida com uma casa de camponeses suecos.

Dirigia-se à grade, atrás da qual eram mantidos os

bombos. Tratava-se de seres semelhantes a macacos, que

tinham cabeça dupla e, além de possuírem braços curtos em

formato humano, sabiam falar, ler e escrever.

O controle de rota de seu veículo fora regulado para

essa grade e foi por simples coincidência que conseguiu ver

a casa camponesa sueca. A quinhentos metros do lugar em

que se encontrava, cercada de alamos prateados, com o

telhado de palha que quase tocava o chão, parecia uma

lembrança do planeta Terra.

Freou subitamente e imobilizou o veículo. Desceu e

aproximou-se da grade energética, enquanto olhava em

torno para ver se havia algum frogh por perto.

Até onde alcançava a vista, não via nenhum frogh.

Quando Laury esbarrou contra a parede energética e foi

atirada para trás uns trinta centímetros, sua decisão havia

sido tomada.

Não era apenas telepata. Também possuía o dom da

Page 58: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

58

desintegração, que lhe permitia dissolver aglomerações

moleculares pela simples força de sua vontade. Essa

faculdade incrível lhe permitia transpor paredes compactas

e barreiras energéticas, sem que sua vida corresse o menor

perigo.

Estendeu a mão em direção à barreira energética

invisível, concentrou-se, fez sua vontade atuar sobre uma

área reduzida da barreira. Como se o desejo tivesse

atravessado uma lente, sentiu a resistência da barreira,

reforçou a concentração da mente. Deu um passo amplo e

sorriu aliviada. A barreira energética encontrava-se atrás

dela. Estava intacta; não deixaria passar mais ninguém.

A parte do zoológico em que se encontrava ficava a

mais de duzentos quilômetros da área acessível ao público.

Por onde quer que passasse, notava que os aras se

esforçavam em manter seus prisioneiros num ambiente que

correspondia ao mundo do qual haviam vindo.

A casa de campo sueca da qual Laury se aproximava

poderia perfeitamente estar na Suécia. Não havia nada de

diferente. Todos os detalhes haviam sido incluídos naquela

construção.

Estacou diante dela.

“Qual será a idade desta casa?”, pensou espantada.

Sacudiu a cabeça ao ver a maçaneta desajeitada, feita de

ferro forjado, e as dobradiças, que tinham quase um

centímetro de grossura.

Quando resolveu lançar um olhar para o interior da casa

viu um fogo aberto e, pendurado num tripé, um tacho de

cobre enegrecido pela fuligem.

“Estamos em plena Idade Média”, pensou perplexa e

procurou descobrir os habitantes da casa. Mas nem mesmo

com suas energias telepáticas conseguiu encontrar qualquer

pessoa.

Virou-se apressadamente e voltou a examinar o terreno,

para ver se descobria algum dos ligeiros froghs, sempre

desconfiados. Sorriu aliviada. Nenhuma das criaturas em

formato de cobra estava à vista. Correu em torno da casa. Já

agora a construção e os alamos prateados a encobriam.

Passou a andar mais devagar. A trilha estreita,

perfeitamente visível, subia por um barranco. Aguardava

outra surpresa, mas o quadro que se ofereceu diante de seus

olhos obrigou-a a ficar parada.

Perplexa, fitou um edifício construído em estilo asteca.

Seriam astecas?

As ideias de Laury Marten desfilaram pelas fases da

história.

Os astecas, habitantes indígenas da América Central,

foram subjugados por Cortez, de 1.519 a 1.521. Ao mesmo

tempo, verificou-se a destruição de sua cultura e o

extermínio da religião cruel e sanguinária que praticavam...

Esses dados resumiam tudo que sabia a respeito dos

astecas. E agora, a construção que via diante de si — um

palácio — lembrava os espetáculos relativos à cultura

asteca que conhecia.

Seria o século dezessete?

Será que a casa de campo sueca era do século

dezessete?

Subitamente estremeceu. Um homem saiu da grande

porta lateral do palácio asteca. Laury Marten sentiu o

coração palpitar.

Um homem, que nem desconfiava de sua presença, saíra

do palácio e caminhava para o lado esquerdo, em direção à

casa achatada que se parecia com a cobertura de um poço.

Como caminhava! Seu passo era majestático. E

majestática também eram sua figura e sua postura.

Era alto e de ombros largos. Os cabelos sedosos e

brilhantes desciam em cachos escuros. Sentou no muro

baixo. A mutante foi caminhando devagar. O homem ainda

não a havia notado. De repente, Laury tropeçou. Uma pedra

bateu na outra. O silêncio propagou o som.

O homem levantou a cabeça, viu-a, levantou, colocou a

mão direita sobre a espada e com a esquerda tirou o chapéu

de aba larga. Deu um pequeno passo para trás e executou

uma mesura profunda e elegante. Voltou a endireitar o

corpo.

E Laury Marten viu-se frente a frente com o conde

Rodrigo de Berceo!

Fitou-o boquiaberta, como uma mocinha inexperiente.

Era um mestiço. A união do sangue asteca com o sangue

espanhol havia feito do conde Rodrigo um exemplar de

beleza masculina.

Como chamejavam seus olhos! E como era altiva a

expressão da boca!

O tamanho do nariz era um tanto exagerado, mas era

justamente o ligeiro excesso desse órgão que conferia ao

rosto másculo o feitio do combatente fogoso, do homem

altivo.

O jovem homem sorriu para ela. Laury viu o tremor das

narinas e notou o olhar, em que se lia uma veneração

extraordinária.

— Quem é o senhor? — Laury Marten formulou a

pergunta na língua dos aras, falando como uma mocinha

tímida.

— Sou o conde Rodrigo de Berceo, filho da princesa

asteca Uxatelxin e do conde espanhol Juan de Berceo.

Nasci no ano da graça de mil seiscentos e cinquenta e dois e

com a idade de vinte e dois anos fui raptado e levado para

Tolimon. Deseja mais alguma informação?

Nascido em mil seiscentos e cinquenta e dois!

A Terra já estava no mês de maio do ano de dois mil e

quarenta e dois!

Aquele homem, que tinha o aspecto de pessoa de trinta

anos, vivera quatrocentos anos?

Quando Laury Marten teve a ideia de usar suas

faculdades telepáticas em relação ao conde Rodrigo, vários

minutos haviam sido consumidos em perguntas formuladas

e respondidas às pressas, que provocavam um espanto cada

vez maior na moça.

Não se cansava de olhá-lo, e à medida que o

contemplava familiarizava-se com suas vestes medievais:

botas de cano estreito e revirado que chegavam até os

quadris, a calça bem justa feita por um material que se

Page 59: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

59

parecia com o veludo. O colete curto e sem mangas estava

cingido por um cinto largo. O colarinho de renda caía

elegantemente por cima do colete. As mangas largas da

camisa branca também terminavam em preciosas rendas. O

cinturão brilhava e a espada presa a uma corrente de prata

balançava de um lado para outro. O chapéu era de aba

larga, e o penacho preso ao mesmo era agitado pelo vento.

A pesada corrente de ouro que trazia ao pescoço não

parecia uma peça de ostentação. Formava parte integrante

da vestimenta do século XVII, tal qual o amuleto que

representava o Deus Sol dos astecas.

Laury Marten teve a impressão de que seria um crime

investigar os pensamentos do conde Rodrigo. Mas lembrou-

se de sua missão; apesar disso, ela o fez com grande

relutância. Parecia mudada; não sabia o que estava

acontecendo com ela.

Numa fração de segundo enxergou tudo com a maior

clareza.

Este homem de trinta anos realmente nascera no

México, em 1.652!

“Devo avisar Marshall”, foi este seu único pensamento.

Enquanto o conde Rodrigo a admirava à distância,

conseguiu estabelecer contato com John Marshall, que se

encontrava em Trulan.

Mas o contato durou poucos segundos. Marshall só

estava disposto a ouvir sua mensagem mais tarde.

Acontecia que precisava informá-lo sobre a descoberta que

acabara de fazer; procurou convencê-lo da importância do

fato. Mas, no mesmo instante, captou sua resposta: uma

repreensão áspera. E logo depois John Marshall “desligou”.

Rodrigo pensou que o susto de Laury Marten tivesse

sido causado por sua pessoa e pela admiração que estava

demonstrando.

Subitamente aquele homem do século XVII ajoelhou-se

diante dela, segurou sua mão, comprimiu os lábios contra a

mesma, num beijo gentil, e pediu perdão pelo fogo que

sentia no coração.

Em qualquer outra oportunidade, essa fala talvez teria

provocado um sorriso de compaixão em Laury Marten,

filha do século XXI. Mas agora só via nela a homenagem

de um homem que receava ter ido longe demais nas

manifestações de entusiasmo por uma bela jovem.

Laury Marten não retirou a mão.

* * *

John Marshall encontrou-se no pavilhão dos sonhos

com Egmon e Tulin, agentes de Rohun, conforme

combinara com este último.

Não poderia haver um ponto de encontro mais discreto

que esse local mal afamado, que era proibido para todo e

qualquer ara. Ali se encontrava tudo quanto era

entorpecente. Tudo aquilo que o inferno tivesse descoberto

para intoxicar o homem, no pavilhão dos sonhos não

haveria o menor problema para ser encontrado...

John Marshall fechou a grade de radiações. Há pouco

ainda se encontrara num gigantesco salão. Agora, porém,

estava invisível para qualquer pessoa que ali penetrasse; tal

qual acontecera com ele há pouco, o visitante apenas veria

o vazio da gigantesca abóbada.

Deitou no chão. A droga herfnis estava ao seu lado. Não

tinha a menor intenção de esfregá-la entre as mãos para

entregar-se aos efeitos da toxina, que o faria enxergar uma

verdadeira orgia de cores.

Sua energia telepática atravessou a grade de radiações e,

na entrada principal do edifício, captou os pensamentos dos

seres viciados, que acorriam ao lugar à procura de

distrações e davam o primeiro passo que os conduziria ao

abismo.

A repugnância deixou-o arrepiado. Amaldiçoou a ideia

de encontrar-se no Palácio dos Sonhos, quando captou os

pensamentos de Tulin e Egmon, que não eram viciados nem

sentiam o desejo de brincar com o entorpecente.

Tulin, o impetuoso, cochichou para Egmon:

— Como poderemos encontrá-lo num lugar como este?

John Marshall recorreu ao projetor mental e obrigou-os

a atravessar o labirinto de cabines de radiações, parando

diante da barreira que o protegia.

Abriu a grade de radiações por alguns segundos. Egmon

e Tulin olharam-no perplexos, sorriram ao vê-lo deitado no

chão e sentaram a seu lado, já que não havia outro lugar em

que pudessem acomodar-se.

Os saltadores atiraram alguns grãos no canto. Tulin

mandou uma praga junto com eles.

— Tenho pena do dinheiro que gastei. Pérolas de sonho;

era só o que me faltava para acrescentar aos meus

pesadelos.

Marshall não sabia o que eram pérolas de sonho, mas

estava interessado nos pesadelos de Tulin.

— Meu pesadelo são os novos robôs dos aras que foram

colocados nas fábricas de soro, Ixt — explicou em tom

contrariado. — Já sabemos por que o clã de Estgal deixou

de existir. Os aras sempre inventam novas infâmias para

dificultar nosso trabalho. Colocaram robôs de controle entre

os robôs de trabalho; por fora uns não se distinguem dos

outros, mas o que há dentro dos controladores é de pasmar.

São vigias positrônicos. Um alarma vivo. Trabalham tal

qual os outros, mas sua tarefa consiste em avisar qualquer

incidente ocorrido durante o processo de produção, por

mais insignificante que seja. Pelo amor dos deuses, Ixt, será

que aqui ninguém pode ouvir-nos?

— Ninguém — garantiu Marshall.

— Tomara que realmente não haja ninguém — disse

Egmon, um homem louro introvertido, e voltou a mergulhar

em suas meditações.

— Pois bem. O ara que conseguimos subornar fracassou

por culpa de um robô de controle, quando procurou roubar

o processo de conservação...

— Mas este processo não é parte do processo de

produção! — interveio John Marshall em tom enérgico.

Tulin cocou a cabeça ruiva.

— Pois nesse caso, os espias positrônicos estão em toda

Page 60: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

60

parte, Ixt. É verdade! Não podem deixar de estar em toda

parte, e com isso nosso negócio, que até agora tem sido tão

próspero, foi paralisado. É uma vergonha!

John Marshall não conseguiu achar graça nessas

palavras. Não estava interessado em saber se os agentes dos

saltadores enganavam os aras ou não. Acontece que a

utilização dos robôs de controle também representava o

fracasso definitivo de sua missão.

Laury Marten poderia interromper os estudos que estava

realizando no zoológico continental. Se os agentes dos

saltadores, que já haviam passado por tudo quanto era

experiência, confessavam abertamente que no momento

estavam com as mãos atadas, o máximo que os dois

mutantes poderiam conseguir era que os aras os

desmascarassem como seres terranos. E, há mais de cinco

decênios, o planeta Terra deixara de existir para o Império

Arcônida, tendo sido transformado num sol.

De repente Egmon, que continuava absorto em suas

reflexões, levantou a cabeça:

— Hoje de noite receberei cinco mil shaks!

John Marshall também levantou a cabeça e fitou

Egmon. As palavras que o saltador louro acabara de

proferir desmentiam as informações de Tulin.

Este proferiu uma ameaça indisfarçada contra seu irmão

de clã:

— Egmon, se você...

— É com isto! — disse Egmon, tirando do bolso um

diapasão, ou melhor, o instrumento que na Terra é

designado por este nome, regozijou com o espanto de seus

interlocutores. — É bom que os aras tratem de fazer suas

diabruras médicas — prosseguiu — e deixem de aventurar-

se no terreno da construção de robôs. Os controladores têm

um ponto fraco. Os aras ainda não descobriram.

Seu sorriso tornou-se mais acentuado.

— Será que hoje em dia ainda se consegue adquirir em

Trulan um único diapasão do tipo antiquado?

John Marshall confessou que não estava

compreendendo mais nada. Egmon piscou os olhos.

— Os controladores têm uma alergia toda especial para

o tom da nota si. Não sei o que acontece com seu aparelho

positrônico quando ouvem esse tom, mas o fato é que,

assim que a nota atinge seu ouvido, caem por terra sem

avisar sequer a central sobre o defeito surgido em seu

mecanismo. É por isso que hoje de noite receberei os cinco

mil shaks.

As pastilhas shaks eram o único remédio contra a

doença de ferm, uma alergia traiçoeira provocada pela

transição das naves espaciais, que matava dentro de poucos

meses.

— Você quer dizer que com isso se consegue

neutralizar um robô? — Tulin ainda não estava acreditando

no que Egmon acabara de dizer. Egmon insistia em sua

afirmativa.

Antes que a troca de palavras pudesse degenerar em

discussão, Marshall lembrou-os da finalidade do encontro.

— Ainda tenho outro motivo que me traz pesadelos —

disse Tulin, lançando o olhar para além de John Marshall.

— Estamos trabalhando com dezoito agentes, Ixt. Por

pouco Egmon não foi preso. Fiquei aguentando a mulher de

Huxul durante duas horas. Enquanto isso, Huxul sofreu um

acidente. Está internado no hospital. Os aras já devem ter

descoberto nosso truque, mas só daqui a dez dias

conseguirão despertar Huxul.

— Foi atacado? — perguntou Marshall em tom áspero.

Teve uma sensação desconfortável, pois conhecia Tulin.

Por algum motivo, que aquele homem de trinta anos nunca

chegara a explicar, o mesmo odiava todos os aras e, sempre

que usasse os meios mais radicais na luta contra eles,

Marshall temia pelo pior.

— Não foi atacado — resmungou Tulin. — Apenas

recebeu um jato de gerf.

— O que vem a ser gerf? — indagou Marshall.

— É uma substância que o serviço secreto dos aras

também usa nos seus serviços. Quando esse narcótico entra

no sangue de alguém, a pessoa dorme durante dez dias e

tem de ser alimentada artificialmente, senão...

— Para que serve um recurso tão primário? — Marshall

sentiu-se tomado de um tremendo nervosismo. Os agentes

de Rohun haviam procedido como crianças, e, dessa forma,

o perigo tornara-se ainda maior.

A essa hora, o serviço secreto dos aras não poderia

deixar de perceber que alguma coisa não estava em ordem

com eles.

— Pois é... — desta vez foi Egmon, que deu uma risada

gostosa. Espantado, Marshall pegou a ficha que este lhe

ofereceu.

— O que é isto? — perguntou sem desconfiar de nada.

— É a prova chegada às mãos dos aras, segundo a qual

o senhor não é o mesmo Ixt que reside em Xylon, no

sistema de Hogur. Afinal, quem é mesmo o senhor?

— Também estou curioso para descobrir isso —

interveio Tulin. — Se não soubesse que Rhodan e a Terra

não existem mais, diria que o senhor é um ser vindo

daquele planeta e...

— Felizmente esse sujeito não existe mais e a Terra foi

transformada num sol escaldante — retrucou Marshall com

o maior cinismo, embora no seu íntimo se sentisse

angustiado.

Apressou-se em controlar os pensamentos dos agentes

dos saltadores. O resultado do exame deixou-o um pouco

mais tranquilo. Não estavam acreditando em suas próprias

insinuações. Fazia mais de cinco decênios que Perry

Rhodan desaparecera com a Titan em qualquer lugar do

espaço e a Terra se transformara numa fornalha nuclear sob

a ação das bombas arcônidas.

Marshall ainda não compreendia por que a ficha que

segurava na mão seria tão importante como Egmon queria

fazer crer.

— Ixt — disse Egmon, falando devagar e em tom

cativante. — Se Rohun não nos tivesse pedido que

fizéssemos tudo para atender aos seus desejos, eu não teria

arriscado uma coisa dessas. A ficha que o senhor tem na

Page 61: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

61

mão representa a interpretação positrônica do resultado das

investigações sobre sua pessoa, realizadas pelo serviço

secreto dos aras.

— Devem notar a falta desta ficha! — Marshall sabia de

que maneira os aras faziam sua guerra de papéis. O

procedimento não era menos complicado e preciso que o

seguido na Terra.

— Trabalhamos com dezoito agentes, Ixt — ponderou

Tulin. — Três deles trabalham no Serviço de Vigilância de

Estrangeiros. Em Tolimon, não existe qualquer outro

registro sobre sua pessoa. Será que isso não basta?

Subitamente todas as grades de radiações entraram em

colapso no interior do pavilhão dos sonhos.

Arcônidas, saltadores, humanoides vindos de mundos

distantes, que estavam prestes a entregar-se ao vício,

irromperam em ruidosos protestos. Em toda parte, viam-se

pessoas embriagadas jogadas no chão. As barreiras

energéticas que as tornavam invisíveis haviam

desaparecido. A segurança do Palácio dos Sonhos, tão

afamada, deixara de existir.

Uma voz retumbante saiu do gigantesco alto-falante:

— O Serviço de Vigilância de Estrangeiros dos aras

ocupou todas as saídas. Ninguém poderá abandonar o

Palácio dos Sonhos.

Tulin e Egmon fitaram John Marshall. Em seus rostos,

lia-se uma idéia: desta vez nos agarraram!

Com a maior tranquilidade, John Marshall enfiou a

ficha no bolso e levantou-se. Fez um sinal para os dois

agentes dos saltadores. Bem perto deles, um grupo de

mercadores galácticos gesticulava exaltadamente. Numa

atitude indiferente, John Marshall juntou-se ao grupo. Tulin

e Egmon seguiram-no, pois pouco lhes importava em que

lugar estivessem no momento em que fossem revistados.

Enquanto Marshall oferecia o aspecto de saltador que

escutava atentamente a conversa que se desenvolvia em

torno dele, concentrou-se ao máximo para lembrar quantas

saídas possuía o Palácio dos Sonhos.

Eram oito!

Controlou rapidamente uma saída após a outra. Quando

chegou à quinta, sorriu.

Fez um sinal discreto para que Tulin e Egmon o

seguissem.

Caminharam em direção à saída número cinco como

pessoas que estivessem entorpecidas. Também esta estava

ocupada por seis elementos do serviço secreto. Eram aras

armados. Três deles estavam muito contrariados com a

missão que tinham que desempenhar. Pois esta lhes

estragara o programa daquele dia. Ao projetar o controle,

Marshall havia captado sua raiva.

E esses aras já se transformaram em vítimas do projetor

mental quando o grupo ainda se encontrava no meio do

Palácio dos Sonhos. Marshall passou a agir sobre os três

aras bem dispostos para o serviço. Egmon tentou perturbá-

lo, mas sua ação não passou da tentativa. Marshall brindou-

o com um olhar tão furioso que, de tão assustado, Egmon

mudou a cor dos olhos e ficou um passo atrás dos outros.

O projetor mental irradiava ininterruptamente a vontade

de Marshall sobre os aras. Transmitiu-lhes a ordem de

deixá-los passar depois de fingir um controle rigoroso.

Enquanto em três das saídas, especialmente na

principal, o barulho e os protestos se tornavam cada vez

mais intensos, os seis aras que se encontravam na saída

número cinco praticamente não tinham nada a fazer.

Com uma expressão de curiosidade, fitaram o grupo que

se aproximava.

Tulin disse com um suspiro:

— Tenho comigo três projetores diferentes. Vou jogá-

los fora e...

— O senhor não vai jogar fora coisa alguma! — disse

Marshall e conseguiu introduzir um intervalo ligeiríssimo

no tratamento hipnótico que estava dispensando aos aras.

Tulin calou-se sob a força do olhar de Marshall.

Chegaram à saída número cinco.

Cada um dos mercadores galácticos tornou-se alvo das

atenções de dois aras. John Marshall foi revistado por dois

funcionários furiosos. Tulin transpirou por todo o corpo.

Encontrava-se logo atrás de Marshall e viu a ficha do

cérebro positrônico na mão de um dos aras. Lembrou-se

dos três radiadores que trazia no bolso.

Naquele instante, as armas passaram às mãos dos aras.

“Está tudo no fim”, pensou Tulin. Não se atrevia a

respirar. Os aras voltaram a enfiar os radiadores em seu

bolso.

— Podem passar — rangeu a voz de um dos aras, que

ainda os brindou com uma maldição.

Egmon e Tulin alegraram-se, como crianças, por terem

conservado a liberdade, embora não compreendessem por

que haviam escapado dessa forma.

— Vocês querem saber por que o serviço secreto

encenou a batida no Palácio dos Sonhos? — perguntou

Marshall depois que, do lado de fora, se haviam misturado

à multidão.

— Não deve ter sido por nossa causa — disse Tulin em

tom não muito confiante, lembrando-se dos três radiadores

que os aras haviam descoberto ao revistá-lo, sem que,

contudo, reagissem ao achado e o prendessem.

— Foi por causa de Egmon — disse John Marshall,

fitando-os um por um. — Os aras devem ter colocado seus

robôs de controle em todos os lugares ao mesmo tempo.

Um deles viu quando Egmon pegou a ficha do cérebro

positrônico e deu o alarma.

O saltador alto e louro empalideceu. Imaginava as

conseqüências de seu ato. Mas Tulin, o ruivo impetuoso,

era de um feitio muito diferente. Lançou um olhar

desconfiado para Marshall.

— Ixt, à medida que o tempo passa o senhor me deixa

cada vez mais apavorado. Por que recorre a uma mentira

infame como essa para exercer pressão contra nós?

Merecemos um tratamento como este?

Tulin tinha motivo de sobra para formular a pergunta.

Partia do pressuposto que o negociante dos animais nada

sabia da ação em grande escala que haviam lançado contra

Page 62: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

62

o serviço secreto dos aras. Por isso mesmo, a afirmativa de

que Egmon havia sido observado por um robô de controle

quando se encontrava nas proximidades do cérebro

positrônico só poderia ser uma mentira rematada.

— Cuidado! — cochichou Marshall no último instante.

Mal teve tempo para dedicar sua atenção a um ara do

serviço secreto, que podia ser identificado por seu rosto frio

de burocrata. Naquele instante, aproximava-se rapidamente,

vindo de um lado onde a multidão era mais rala.

Num instante, o ara viu-se diante do saltador louro. O

volume do bolso no qual enfiara a mão mostrava que tinha

a arma de radiações engatilhada e apontada para Egmon.

— Egmon do clã de Rohun... — chiou o ara, estendendo

a mão em sua direção.

Num gesto quase automático, John Marshall conseguiu

dar uma pancada no braço levantado do ruivo Tulin. Este

soltou uma praga típica dos saltadores. Mas logo se sentiu

esbaforido, pois a frieza do rosto do ara cedera lugar a uma

expressão de amabilidade. O gesto violento da mão

terminou numa batidinha no ombro de Egmon, seguida

destas palavras:

— Tive um prazer imenso em revê-lo. Até a próxima e

muitas felicidades.

Despedindo-se com um aceno de cabeça, tirou a mão do

bolso em que estava guardada a arma.

Os dois saltadores, perplexos, perguntaram:

— Ixt, o senhor é um sujeito medonho. O que fez com o

ara para que ele mudasse de atitude tão depressa?

— Da próxima vez provavelmente não teremos tanta

sorte — disse John Marshall, esquivando-se da pergunta. —

Egmon, o senhor já acredita que um robô de controle o viu

quando se encontrava diante do cérebro positrônico?

Correram por entre a massa de gente, em direção ao

distribuidor que os levou a uma das ruas situadas mais

abaixo, onde tomariam qualquer condução que os levasse o

mais depressa possível para fora do centro de Trulan. Só

depois de alguns minutos, Egmon teve oportunidade para

formular sua pergunta:

— Por todas as estrelas, Ixt, como foi que o senhor

soube disso?

Mais uma vez, John Marshall ficou devendo a resposta.

— O que pretende fazer, Egmon?

Egmon resmungou:

— Rohun terá de chegar até aqui para me recolher a

bordo. Um homem caçado pelos aras sempre acaba

capturado. O negócio dos cinco mil shaks caiu na água.

O mutante de Perry Rhodan não pôde deixar de admirar

o sangue-frio do agente dos saltadores.

Durante dois dias o mutante viveu numa tensão

ininterrupta. De um instante para outro, aguardava uma

ação fulminante do serviço secreto dos aras. Como nada

acontecesse, voltou a acalmar-se.

A segunda visita que fez a Kolex, chefe da Divisão de

Compras dos aras, não foi uma simples visita de cortesia.

Esperava que aquele homem influente o ajudasse a entrar

em contato com o círculo dos médicos galácticos que

lidavam com a produção do soro prolongador da vida. Fora

justamente por esse motivo que se dirigira em primeiro

lugar a Kolex, para oferecer-lhe o lote de animais

desconhecidos vindos do planeta do fedor. Pouco lhe

interessava o fato de com isso ter feito um bom negócio.

Kolex revelou-se de uma amabilidade cativante. Sua

conversa naturalmente girou em torno desses animais.

— ...a designação não é correta — retificou Kolex. —

Só oito exemplares pertencem à classe dos animais. Os

demais são inteligências, Ixt. Alguns deles chegam a ser

mais inteligentes que nossos froghs. A maior sensação foi

esta. O senhor nem imagina quantos elogios tenho recebido

por ter arriscado esta compra de dois milhões.

Kolex estava radiante, e seus pensamentos, controlados

pelo mutante, eram um hino de louvor a Marshall.

— Será que esses estranhos não são uns coitados? —

perguntou John.

Com estas palavras tocara num ponto sensível. Kolex

protestou. Seu gênio descontrolou-se. Começou a falar em

pesquisas, nos diversos fabricantes de soro.

— ...se não dispusermos de portadores de soro, nossas

mãos estarão atadas, Ixt! E o portador de soro tem de ser

uma criatura sadia, pois do contrário a doença conduz a um

resultado falho. Garanto-lhe uma coisa. Não existe nenhum

lugar no Universo em que as inteligências prisioneiras

passem tão bem como em nosso zoológico.

— Será que as inteligências vindas do planeta do fedor

também foram trancadas atrás de grades energéticas?

Kolex manteve-se fiel à verdade.

— Por enquanto sim, Ixt. Não posso falar demais a este

respeito, mas há uma ordem de âmbito galáctico que nos

obriga a agir dessa forma. Nós, os aras, somos verdadeiros

artistas na área da medicina, mas não podemos fazer

milagres, e... Ixt, não me olhe desse jeito; até parece que

quer recriminar-me e desafiar-me. Sei perfeitamente o que

está pensando. O senhor deve conhecer a lei do regente

positrônico de Árcon tão bem quanto eu... Ixt, quando se

trata de algo extremamente importante, até mesmo a

violação da lei encontra justificativa.

— Hum — respondeu o mutante e leu os pensamentos

de Kolex, que pensava incessantemente no soro

prolongador da vida. Segundo seus pensamentos, a

produção do mesmo dependia de inteligências cujos

quocientes intelectuais os incluíssem nas classes C, B e

mesmo A. Tal procedimento dos aras transgredia uma das

leis mais rigorosas de Árcon. A revelação do crime que

estavam cometendo ao abusarem de seres dotados de

inteligência elevada, utilizando-os como portadores de soro,

poderia significar a destruição total dos mundos dos aras.

O cérebro robotizado de Árcon não conhecia emoções.

Sua atuação resumia-se na lógica mais pura, traçada pela

6

Page 63: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

63

programação.

Com suas insinuações, Kolex revelara tantos dados que

não poderia deixar de ser considerado um irresponsável. E

seus pensamentos revelavam muito mais.

A reunião das duas séries de dados permitiu que

Marshall concluísse que o projeto dos aras já passara da

fase experimental. O soro prolongador da vida estava sendo

fabricado em grandes quantidades.

“Tomara que não surja nenhum incidente com o serviço

secreto dos aras”, foi tudo que John Marshall desejou

depois que se tinha despedido de Kolex e, passando pela

Rua do Grande Mo, caminhava em direção à firma.

* * *

Quatro homens do século XVII do planeta Terra viviam

no gigantesco zoológico de Tolimon, presos atrás de uma

grade energética intransponível.

Laury Marten conhecera todos eles: Mutumbo, um

africano supersticioso e Alf Tornsten, o camponês sueco

que vivia apaticamente seu dia-a-dia, deprimido pelo fato

de que não envelhecia.

A terceira pessoa era Nara, uma mongol velha e gasta,

cuja tenda fora erguida atrás da grade. Era uma doente

mental incapaz de articular uma palavra sensata.

Mutumbo e Alf Tornsten arranhavam o intercosmo e a

língua arcônida. Já o conde Rodrigo de Berceo brilhava

nessas línguas. Quando Laury Marten o visitou pela terceira

vez às escondidas, conversaram no arcônida dos “primeiros

dez mil”.

O palácio asteca encerrava um segredo que representava

a felicidade de dois seres humanos: Laury Marten e o conde

Rodrigo amavam-se.

Aquilo desabara sobre ela com a força de um dilúvio:

foi impetuoso, violento e belo. Os quatro séculos que os

separavam eram transpostos pela força do amor.

A mutante bela e apaixonada esquecia constantemente

que Perry Rhodan a enviara a Tolimon para cumprir uma

missão de cujo êxito dependia a vida de Thora e de Crest. A

compaixão transformara-se em amor.

Seu bem-amado contou-lhe que, quando tinha vinte e

dois anos, certo dia estava passeando a cavalo quando viu

alguma coisa cilíndrica baixar das nuvens. Teve medo e

fugiu, mas um pequeno objeto voador alcançou-o e levou-o

a bordo. Os saltadores trancaram-no num camarote no qual

já se encontravam três humanos: Mutumbo, Alf Tornsten e

Nara. Quase não se ocuparam com eles até o momento em

que foram descarregados em Trulan, onde passaram a viver

no zoológico como se fossem animais.

Laury preferiu não explicar-lhe o significado da palavra

zoológico. Mas, por ocasião de sua segunda visita, não se

esquecera de perguntar a Rodrigo de Berceo por que nesses

quatro séculos só envelhecera alguns anos.

Ao responder, Rodrigo lhe falara num imenso palácio.

À medida que se demorava na descrição do mesmo, Laury

reconheceu nele o setor X-p. Lá dentro fora apresentado

inúmeras vezes a médicos aras. Consumiram alguns dias no

exame de seu organismo e finalmente deram-lhe uma

injeção de soro prolongador da vida.

— Há de chegar o dia em que provarei aos aras, com a

minha espada, que não sou nenhum asteca arruinado, mas o

conde Rodrigo. Olhe, minha flor, contemple esta lâmina

fulgurante, que se tingirá de vermelho com o sangue dos

homens que me maltrataram.

Num gesto teatral, que no século XVII talvez

representasse um costume da corte, arrancou a espada curta

da bainha.

Laury Marten, uma moça prosaica do século XXI,

amava. E o amor transformava todas as coisas como que

por encanto. Ser chamada de minha flor, fitar os olhos

chamejantes do bem-amado, sentir o braço forte que a

enlaçava, tudo isso fez com que se sentisse muito feliz.

Seus pensamentos moviam-se exclusivamente em torno do

desejo de libertar Rodrigo das garras dos aras.

Rodrigo não pôde dar uma indicação precisa sobre o dia

em que recebera pela última vez a injeção do soro

revitalizador. Pelo calendário terrano, devia fazer cerca de

noventa anos.

E noventa anos não significavam nada para os aras, que

graças aos recursos de sua medicina muitas vezes viviam

mais de oito séculos.

As informações, que Laury obteve através de Rodrigo,

tornavam-se importantes porque confirmavam o fato de que

em X-p estava sendo fabricado o soro.

Laury Marten percebia constantemente no íntimo a

advertência que lhe fazia lembrar o motivo de sua vinda a

Tolimon. Eram horas de autorrecriminação e censura. Cada

vez que isso acontecia tomava a decisão de, por ocasião do

primeiro contato telepático que mantivesse com John

Marshall, confessar o amor que sentia por Rodrigo de

Berceo.

Até então, John Marshall ainda não sabia.

* * *

Laury desprendeu-se violentamente dos braços de

Rodrigo. Passara mais de duas horas de Tolimon em sua

companhia.

Usando o dom desintegratório de que era dotada,

atravessou a barreira energética e dirigiu-se ao veículo.

Naquele instante, a cabeça de um frogh saiu da fenda

comprida e profunda que se encontrava à sua esquerda e

fitou-a com olhos viperinos.

Laury Marten sentiu-se grudada ao solo. O desespero

tomou conta de sua mente. Tentou em vão captar os

pensamentos do frogh. De tão nervosa que estava, não

conseguiu descobrir a frequência em que funcionava o

cérebro dessa criatura.

— Arga Slim, os aras estarão muito interessados em

saber que a senhora consegue atravessar uma barreira

energética sem que a mesma tenha sido desativada — disse

o frogh com a voz fria.

O brilho dos olhos dele foi ainda mais frio.

Seu primeiro impulso foi o de destruir o frogh com seu

Page 64: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

64

radiador, mas a lei de Perry Rhodan, segundo a qual só se

devia matar em legítima defesa, estava por demais

enraizada em sua mente.

Encontrava-se numa situação de legítima defesa, mas a

mesma fora provocada por sua própria negligência. Ainda

teve energia para não mentir a si mesma. Mas sentiu-se

exausta; enfiou a mão no bolso e tirou o concentrado

energético. Engoliu-o.

O efeito foi imediato e tão patente, que o frogh lançou

uma pergunta:

— O que é isso que a senhora acaba de tomar, Arga

Slim?

Arga disse o que era, enquanto procurava

desesperadamente descobrir uma saída.

— Permite que eu experimente o concentrado?

A víbora centuplica saiu da fenda no solo, aproximou-se

rapidamente, colocou-se diante de Laury Marten e estendeu

um dos braços dotados de mãos preênseis.

Para ganhar tempo, Laury entregou um tablete ao frogh.

Não acreditava que fosse adiantar alguma coisa. O frogh

engoliu o concentrado e enrijeceu. A mutante teve medo da

cobra gigante. Enfiou discretamente a mão no bolso em que

se encontrava o radiador. Estava decidida a matar o frogh.

A risada penetrante dele a fez recuar alguns passos. A

gargalhada do frogh tornou-se mais sonora. A criatura

levantou o terço anterior do corpo e passou a contemplar a

agente de Perry Rhodan a uma altura de dois metros.

— Eu lhe meti medo, Arga Slim? Queira desculpar.

Apenas pretendia agradecer-lhe.

— Quer agradecer pela oportunidade de me entregar aos

aras? — disse Laury em tom furioso.

Sentia que o frogh estava escarnecendo de sua

perplexidade.

— Ora, Arga Slim! — disse o frogh e sua voz

transformou-se num cochicho. — Nunca falarei sobre isso

se amanhã a senhora me trouxer mil tabletes destes. Se fizer

isso por mim, serei o servo mais fiel que a senhora já teve

— a estranha proposta terminou num riso borbulhante.

De repente, Laury descobriu a disposição de ânimo do

frogh. O concentrado provocara-lhe um estado de euforia;

transformara-se num estimulante, que provocava uma

alegria exagerada.

O estado do frogh tornava-se cada vez mais perturbador.

A expressão viperina desapareceu de seus olhos, que

pareciam irradiar uma bondade quase humana. Voltou a

implorar que amanhã ou depois Laury lhe trouxesse uma

quantidade maior do concentrado.

— Posso pensar nisso, desde que possa confiar em sua

discrição, Agzt — disse Laury.

O frogh respondeu:

— Posso até desligar qualquer barreira energética para a

senhora, Arga Slim. Acho que isso já poderia servir de base

a um estado de confiança recíproca.

Ao anoitecer, quando Laury Marten terminou sua

jornada diária no setor X-p, nenhuma informação do frogh

Agzt sobre a travessia da barreira energética havia sido

recebida naquele setor.

Aos poucos, começou a acreditar que as intenções de

Agzt eram sinceras.

John Marshall acabava de expedir de seu escritório a

quinta mensagem de telecomunicação destinada a Hellgate.

Agora estava mudando para a faixa de Rohun.

Não tinha o menor receio de que o serviço secreto dos

aras pudesse interceptar sua mensagem. O transmissor

especial de que se servia da mesma forma que aquele

instalado em seu quartel-general na área dos cortiços,

dispunha de dispositivo especial que evitava a escuta,

mesmo que a estação receptora só dispusesse de um

hipercomunicador comum. Apesar de tudo, Marshall e

Rohun acoplaram um condensador e um deformador de

mensagens, uma vez completada a ligação.

— Rohun, eu estou precisando de minha nave. Quem

poderia trazê-la até aqui? Otznam?

O rosto do comandante dos saltadores transformou-se

numa careta.

— Ixt — disse, prevenindo Marshall — já está na hora

de desistir do jogo perigoso que está realizando com os

aras. As notícias que acabo de receber de Egmon me

fizeram envelhecer cem anos. Se as coisas continuarem

nesse ritmo, acabarei figurando na lista dos aras. O senhor

sabe perfeitamente o que significaria isso.

Isso significaria o desaparecimento total, a morte, a

destruição.

Marshall não se impressionou com o aviso que Rohun

acabara de lhe dar.

— Quando souber que a nave chegou, eu me sentirei

muito melhor, Rohun. Quando poderei contar com a

chegada? É Otznam que vai trazê-la, não é?

— Está certo. Mas não quero que Otznam participe da

ação — exigiu Rohun. — Quando é que o senhor se dignará

a explicar as coisas esquisitas que aconteceram em sua loja

quando o tal do Huxul, um ara do Serviço de Vigilância de

Estrangeiros, apareceu com a jaula com os dois hiobargulus

e procurou devolver os animais? Se não tivesse passado por

coisa semelhante com o tal do Huxul, já teria entregado

Otznam a um hospital dos aras para submetê-lo a um exame

de sanidade mental.

Marshall preferiu não responder. Tranquilizou o

comandante dos saltadores.

— Prometo-lhe que Otznam não participará da ação,

Rohun. Mas acho que poderei contar com aquilo que o

senhor me prometeu, isto é, com sua ajuda irrestrita quando

eu o chamar.

— Ixt, fique sabendo que não sou nenhum ara, mas um

mercador galáctico — berrou Rohun para dentro do

microfone que se encontrava a quarenta anos-luz. —

Otznam partirá imediatamente em sua nave. Há alguns dias

7

Page 65: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

65

dei uma olhada naquilo: é um verdadeiro couraçado! Onde

é que essas naves são construídas, Ixt?

Mais uma vez, o mutante fez como se não tivesse

entendido.

— Onde está Tulin, Rohun? Não consigo encontrá-lo

aqui em Trulan.

— Está aqui! — exclamou Rohun. — Mas voltará com

Otznam, pois tenho uma tarefa para ele. O senhor não

poderá utilizá-lo na execução de seu plano.

— Está com medo? — perguntou John Marshall em tom

lacônico.

— Antes ter medo que transformar-se em cobaia dos

aras.

Mais uma vez, tivera de ouvir uma alusão desse tipo.

Agora partira de Rohun, comandante dos saltadores.

— Cobaia dos aras! Apesar das leis de Árcon! Fim,

Rohun! — disse Marshall ao mercador galáctico e desligou.

A mensagem telepática de Laury Marten estava

interferindo na palestra pelo telecomunicador.

Marshall perscrutou seu interior.

Uma hora depois, foi transmitida a sexta mensagem

condensada de hipercomunicação destinada a Hellgate,

onde Rhodan esperava protegido por uma abóbada de aço.

Laury Marten descobrira uma sala do setor X-p onde

estava guardada uma ampola do soro revitalizador, que

dentro em breve seria utilizada numa experiência.

Quando Futgris entrou no escritório do chefe, Ixt estava

debruçado sobre o primeiro relatório enviado por Kolex.

Este relatório continha informações sobre a escala

intelectual em que deviam ser incluídas as criaturas por ele

vendidas ao zoológico.

Vinte e uma espécies, totalmente diferentes no aspecto

exterior, pertenciam à escala intelectual A-l.

Era o grupo ao qual pertenciam os arcônidas, os aras e

os mercadores galácticos.

Quando levantou os olhos e reconheceu Futgris, John

Marshall teve de recuperar-se do abalo que sofrera.

Sentia-se como um homem que acabara de cometer um

crime. Os seres que, em virtude de seu aspecto terrificante,

haviam sido considerados animais, possuíam o grau mais

elevado de inteligência; e ele os transformara em peças de

exibição do zoológico. Colocara-os nas mãos dos aras. A

exclamação de Rohun ressoava no ouvido de Marshall:

“Antes ter medo que transformar-se em cobaia dos

aras.”

Lançou um olhar indagador para Futgris.

O ara, que admirava e venerava o chefe, procurou

ocultar o tremor da voz:

— Chefe — disse com os olhos errantes — três

funcionários do serviço secreto querem falar com o senhor.

— Ah, é? — respondeu John Marshall sem trair o

nervosismo. Foi empurrando para o lado o relatório que

acabara de receber de Kolex. — Convide-os a entrarem,

Futgris. Nunca se deve fazer esperar um funcionário do

serviço secreto.

* * *

Agzt, o frogh, parou na beira da estrada quando Laury

Marten se aproximou velozmente com seu veículo, freou e

desceu. Entregou-lhe uma sacola, que a mão preênsil

segurou avidamente. Examinou o conteúdo.

— Mais uma vez, apenas cinquenta cápsulas de

concentrado? — perguntou em tom decepcionado.

Laury, que perdera todo medo do corrupto monstro

viperino, colocou a mão no pescoço do mesmo. A pele do

frogh parecia couro. Laury notou seu estado eufórico e

advertiu-o:

— Em cada visita eu lhe trarei cinquenta cápsulas, Agzt;

nada mais. Não quero que este preparado, que é totalmente

inofensivo para os aras e os arcônidas, transforme você

num doente ou num viciado. Gaste suas reservas com muita

parcimônia, pois poderá acontecer que vários dias se

passem entre uma visita e outra.

A sacola com os tabletes estava no interior da enorme

mão preênsil. O frogh saltitava sobre seus inúmeros pés e

voltava a asseverar ininterruptamente que não era nenhum

ingrato.

Tal qual fizera por ocasião de suas visitas anteriores,

Laury pediu-lhe que prestasse atenção e a avisasse

imediatamente assim que qualquer outro veículo se

aproximasse desse setor do zoológico. Depois, recorreu ao

dom da desintegração, atravessou a barreira energética

como se esta não existisse e saiu correndo.

Do alto da elevação pôde ver o palácio asteca. Como

sempre, Rodrigo estava parado junto à enorme entrada

principal, mas hoje não abanou o chapéu de penacho em

sua direção.

Olhou-a sem dizer uma palavra e seu rosto permaneceu

imóvel quando Laury se encontrava diante dele.

— Aconteceu alguma coisa, querido?

Rodrigo de Berceo se mantinha rígido.

Seu olhar vagou ao longe. A boca estava reduzida a um

traço e os olhos chispavam de indignação. Laury enlaçou-o

e implorou que falasse.

— Amanhã terei de ir ao lugar em que estão os aras!

Para Laury, isso equivaleria ao fim do mundo de

Tolimon.

— Não, Rodrigo! Não é possível! Oh, não... — o

desespero apertou-lhe a garganta. Foi sacudida por um

soluço sem lágrimas.

Mas logo se controlou. E com a calma recuperou a

capacidade de raciocinar. Seu plano estava formado.

— Rodrigo, quando os aras virão buscá-lo? —

perguntou apressadamente.

— Amanhã. Mas não receie por minha vida. Eu, o

conde...

— Amanhã, quando? De manhã? A que hora?

O conde Rodrigo de Berceo falava o arcônida e o

intercosmo, mas não tinha conhecimento do que seria

“hora”.

Só depois de muitas perguntas, Laury conseguiu

descobrir a hora aproximada em que Berceo seria levado

para submeter-se à experiência.

Page 66: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

66

— Ouça — disse e o triunfo estava escrito em seus

olhos. — Amanhã os aras encontrarão esta grade vazia.

Fugirei com os quatro humanos que estão aqui. Vamos

pedir aos outros que se preparem.

Laury Marten não se deu conta de que naquele instante

estava renunciando aos ensinamentos que recebera como

agente do Exército dos Mutantes. Seu plano não era apenas

uma obra de diletantismo, mas uma temeridade, pois

obrigaria John Marshall a praticar atos que nunca teriam

entrado nas cogitações desse mutante extremamente

ponderado.

Alf Tornsten, o camponês sueco, foi o primeiro que

recusou. Nara, a velha mongol, nem compreendeu o que a

moça desejava e limitou-se a fazer soar sua risada de louca.

Mutumbo, o africano, apenas a brindou com um palavrão e

deixou-a falando só.

Rodrigo não esperara outra coisa. E comentou de modo

altivo:

— Nem me sentiria bem na presença desses idiotas.

A moça respondeu com uma frieza na voz:

— Peço-lhe que procure compreender que, hoje em dia,

na Terra, um conde não vale mais que o mais miserável dos

homens. Rodrigo, quatrocentos anos se passaram, e você

terá que dar um salto por cima desse tempo. Por favor,

permita que eu o ajude! Esqueça-se de que é o conde de

Berceo. Comece com isso e...

Mais uma vez, a moça sucumbiu ao charme do conde,

ao seu sorriso e ao seu amor. Seu beijo a fez calar-se.

Sentiu-se segura nos seus braços, até que a realidade cruel

evocasse o amanhã em seu espírito.

— Rodrigo, você não estará mais aqui amanhã, quando

chegarem os aras! — com essa jura solene despediu-se e,

após poucos minutos, seu veículo corria vertiginosamente

em direção ao setor X-p.

Durante a viagem estabeleceu contato telepático com

John Marshall.

— Não perturbe! — foi a resposta que captou.

Laury Marten estava tão preocupada com o destino de

Rodrigo que nem chegara a sentir a agitação furiosa da

mente de Marshall.

Como que num estado de transe penetrou no setor X-p,

atravessou os feixes de luz que a desinfetaram e entrou em

seu gabinete. Só viu o médico ara Assa quando já estava

sentada atrás de sua escrivaninha, olhando

desesperadamente para frente.

— O que está sentindo, Arga?

A pergunta a fez estremecer.

— Dor de cabeça — respondeu.

No mesmo instante compreendeu que, ao proferir estas

palavras, pronunciara sua sentença de morte.

Nos mundos pertencentes ao Império de Árcon, quer

fossem eles habitados pelos arcônidas, pelos aras e pelos

saltadores, a dor de cabeça era desconhecida. O cérebro

dessas raças tão semelhantes nunca experimentara esse mal.

Por outro lado, porém, nesse mesmo instante Laury

Marten voltara a transformar-se na agente de Rhodan.

Não perdeu o autocontrole. Com o maior sangue-frio,

deu jogo à sua capacidade telepática para revolver a mente

de Assa.

Este revistara o gabinete durante sua ausência.

E pela segunda vez, mandara espiões atrás dela para

descobrir por que ia tantas vezes ao zoológico.

Não confiava nela.

E a esta hora nem acreditava que fosse uma arcônida.

Fez reviver suas lembranças. Aí encontrou Perry Rhodan,

os aras, o planeta da medicina, Aralon, a lua Laros. Sim,

depois disso houve a destruição da Terra, o planeta de Perry

Rhodan, e o desaparecimento deste juntamente com a

gigantesca Titan.

De repente, Assa achou que a suspeita de que essa

jovem pudesse manter contato com Perry Rhodan era

ridícula. Mas as dores de cabeça?

Quem seria essa mulher?

Laury Marten leu tudo isso num espaço de poucos

segundos e controlou seu procedimento de acordo com

esses pensamentos. Partiu para o ataque. Com um gesto

discreto, ligou o aparelho de comunicação audiovisual e

disse:

— Informarei Man Regg de que o senhor andou

revistando este gabinete na minha ausência.

O trunfo com que estava jogando era muito perigoso,

mas produziu efeito. O ara gritou sem refletir:

— Como soube disso? Quem con...? — a última sílaba

não chegou a ser formada. Assa recuperara totalmente o

controle de si mesmo.

— Obrigada — disse Laury Marten com um sorriso,

apontando para o audiovisual ligado. Não havia a menor

dúvida de que ao menos cem aras haviam ouvido o diálogo.

Laury Marten não precisaria de outras testemunhas.

Foi-se levantando.

— Sei perfeitamente que não consegui grangear sua

simpatia, Assa, mas possuo bons amigos. Quer que eu lhe

diga onde estive hoje no zoológico? Dessa forma eu lhe

pouparia o trabalho de mandar espiões atrás de mim pela

terceira vez...

Soltou uma risada cristalina quando Assa se retirou com

o rosto pálido, chiando alguma coisa que não conseguiu

ouvir direito. Mas leu pensamentos dele, e estes se

resumiam num feixe de receios de que Laury pudesse

realizar sua ameaça de informar Man Regg sobre os

incidentes.

Mas este já soubera de tudo através da comunicação

audiovisual.

Meia hora depois um robô procurou Assa por ordem de

Man Regg e lhe deu ordem para que deixasse o setor X-p

num prazo extremamente curto e se apresentasse

imediatamente para trabalhar em Durrha.

Durrha figurava no catálogo estelar de Árcon como o

planeta que trazia maior número de sinais de advertência.

Era ali que os aras estudavam as epidemias para as quais

ainda não conheciam antídoto. Quem pusesse os pés

naquele mundo, nunca mais sairia dali.

Page 67: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

67

Assa dirigiu-se ao espaçoporto, acompanhado por dois

robôs. Estes robôs permaneceram a seu lado até o momento

em que entrou na nave. Depois disso, ficaram parados junto

à entrada da mesma até o momento da decolagem. Após o

pouso em Durrha, essa nave seria transformada em sucata.

* * *

John Marshall viu os três homens do serviço secreto dos

aras chegarem e saírem.

Tal qual Huxul e muitos outros acabaram por ser

atingidos pela combinação entre a telepatia e a ação do

projetor mental, feita pelo chefe dos mutantes. Apesar disso

Marshall não se entregou à ilusão de que o perigo tivesse

sido eliminado.

Era exatamente o contrário. O perigo teria que desabar

sobre ele com a força de uma avalanche assim que ficassem

livres da influência hipnótica. De qualquer maneira, a visita

não deixara de trazer sua vantagem. Marshall ficou sabendo

por que o serviço secreto dos aras o assediava tanto. A

destruição dos dados não poderia eliminar a memória dos

dois funcionários, que eram os chefes de Huxul.

Os três aras tinham vindo unicamente para realizar mais

um exame minucioso de todos os dados ligados à sua

pessoa. Pediram os documentos e pretendiam gravar o

modelo das vibrações cerebrais dele. Porém acabaram

retirando-se depois de três horas sem que tivessem feito o

registro. Mas no dia seguinte, pelo meio-dia, a influência

hipnótica devia cessar, e então se dariam conta de que algo

de inexplicável havia acontecido por ocasião da visita ao

estabelecimento de Ixt.

Marshall sabia perfeitamente que essa conjunção de

fatos inexplicáveis provocaria o grau mais elevado de

alarma no serviço secreto dos aras. E quem ponderasse

todos os aspectos dessa situação, chegaria à conclusão de

que a única alternativa que restava ao serviço secreto era a

ação brutal.

Essas reflexões foram interrompidas por um chamado

do sistema de comunicações locais. Era Otznam, que se

encontrava no espaçoporto. Há poucos minutos havia

pousado com a pequena nave de John Marshall. O mutante

esteve a ponto de formular outra pergunta quando Otznam

desligou.

“Pode deixar”, pensou e concentrou a mente. Chamou

Laury Marten. Esta pretendia entrar em contato com ele no

momento em que exercia sua influência hipnótica sobre os

três aras que se encontravam em seu escritório.

Laury Marten não respondeu!

Voltou a tentar, intensificou a concentração de sua

mente, e finalmente a encontrou. Mas desta vez a mutante

pediu que não a perturbasse.

Marshall logo reduziu a intensidade de sua transmissão

telepática. Procurou identificar o que conseguira entender

em seu breve contato telepático com Laury Marten.

O que estaria ela procurando no setor X-p? A energia

telepática da moça atingira-o com a força de um curto-

circuito, não com a intenção de absorver seus pensamentos,

mas de os repelir.

O Setor X-p nunca funcionava em ponto morto.

Isso resultava do próprio conteúdo de suas atribuições, e

os aras aceitavam a situação com a maior boa vontade.

Neste ponto todos eles pareciam loucos. Em todos eles

ardia a chama do desejo de desvendar os últimos segredos

da vida. Mas, embora tantas vezes acreditassem encontrar-

se no limiar do objetivo, sempre se viam diante de terras

novas, ainda desconhecidas, banhadas pela luz do mistério.

O trabalho de Laury Marten estava concluído. O

episódio com Assa, que ocorrera há três horas, mergulhou

no esquecimento. Rodrigo de Berceo, o mexicano jovem e

altivo, ocupava todos os pensamentos da moça. Mas

naquele instante, devia esquecê-lo para concentrar-se em

seu plano.

Estendida no leito, com os olhos fechados e as mãos

entrelaçadas sob a cabeça, fez sua energia telepática

perambular por todos os recintos do setor X-p que em sua

opinião se destinavam à produção do soro revitalizador.

“Vamos à sala seguinte. Três aras. Seus pensamentos?

Nada. Outra sala. Vazia? Não; só havia robôs.”

Apesar da concentração de sua mente lembrou-se da

advertência de Marshall relativa aos robôs de controle

recentemente colocados em serviço.

“Outra sala...”

As horas passaram. O sol desceu sob a linha do

horizonte. A noite cobriu o setor X-p e o zoológico

continental.

Laury Marten não desistiu. Procedeu assim para salvar

Rodrigo, e poder aparecer diante de Perry Rhodan. Não

queria ser a primeira mulher do Exército de Mutantes que,

por uma questão de amor, falhasse no desempenho de sua

missão.

Nada, nada... Em todos os lugares, nada.

Não encontrou a menor indicação sobre o lugar em que

poderia encontrar as informações sobre o processo de

fabricação do soro.

Já era meia-noite. Laury Marten continuava estendida

sobre o leito, concentrada ao máximo. Não se cansava de

procurar. Mas foi em vão.

Estava banhada em suor. Levantou. Devia entrar em

contato com Marshall?

Decidiu outra coisa. Tomou banho, mudou de roupa e

saiu do apartamento.

O elevador antigravitacional levou-a ao quinto

pavimento do subsolo. Quando procurou abrir a porta que

dava para essa área, a mesma não se movia.

Para Laury Marten, isso não representava qualquer

problema. Possuía o dom da desintegração. Sabia

8

Page 68: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

68

neutralizar as ligações moleculares, transformando qualquer

parede, fosse qual fosse o material de que era feita, numa

simples nebulosa que atravessava sem a menor dificuldade.

Mantendo-se no mesmo lugar no interior do elevador,

eliminou a barreira representada pela porta. Depois que a

atravessou, esta voltou a adquirir sua configuração estável.

À sua frente estendeu-se o corredor monótono, que

tinha o mesmo aspecto em todos os pavimentes e áreas do

setor X-p.

Neutralizou duas barreiras de radiações. O alarma que

deveria ter desencadeado não surgiu. O corredor estendia-se

à sua frente, vazio e ameaçador. Não se perturbou com a

solidão, nem com a extensão do caminho que teve de

percorrer. Intensificou seu tato telepático, à procura de aras.

Estes permaneciam atrás das portas pelas quais passava,

debruçados sobre o trabalho. Ninguém deu a menor atenção

ao ruído de seus passos.

Adiante! Nunca desempenhara uma tarefa com tamanha

tranquilidade.

Subitamente lembrou-se de Thora, esposa de Perry

Rhodan. Antes que ela e John Marshall partissem para a

missão, Perry Rhodan explicara-lhes objetivamente o que

estava em jogo.

De repente Thora e Crest, os arcônidas, começaram a

apresentar sinais de envelhecimento que não podiam ser

detidos por nenhum dos meios empregados. O preparado

produzido na Terra teve um efeito que pouco durou. Os

soros dos arcônidas também não detinham o processo de

envelhecimento. Ele ou Aquilo, o Ser de Peregrino, o

planeta da vida eterna, recusara a ducha celular aos

arcônidas. Ao que tudo indicava, o destino de Thora e Crest

estava selado. Mas logo certos boatos sobre um soro

revitalizador, capaz de prolongar a vida, começaram a

circular entre os mercadores galácticos. Este soro era

produzido pelos aras. Com isso Perry Rhodan recuperou a

esperança. Naquele instante, Laury Marten se encontrava a

caminho da sala de paredes grossas onde uma porção desse

soro estava sendo guardada num frasco. E os dois arcônidas

tanto precisavam desse revitalizador.

Bem longe, uma porta abriu-se. Um ara saiu para o

corredor, lançou um olhar indiferente para a moça e uns dez

metros à sua frente entrou num laboratório.

O passo da mutante não se tornara mais lento, nem

revelava qualquer insegurança.

Ro-dri-go, soavam seus passos. Esse nome dava-lhe

uma força imensa. E ela bem que precisava dessa força.

Aquela área do setor X-p, situada cinco pavimentos

abaixo do solo, abrigava os centros de pesquisa mais

secretos dos aras. Todo o resto era coisa de segunda ou

terceira categoria. Aqui a vida estava guardada em ampolas.

Quem recebesse uma injeção desse soro poderia continuar a

viver; os outros teriam de morrer.

Laury Marten pôs a mão no bolso. Estava vazio.

Acabara de tomar banho, mudara de roupa e se esquecera

de tirar o diapasão do bolso do jaleco. Por que pensara tanto

em Rodrigo? Devia voltar?

Ro-dri-go, diziam seus passos. Não voltou. Sentiu que

só esta hora lhe poderia trazer a felicidade.

Teria de percorrer mais trinta passos.

Mais dez passos...

Mais dois! Viu-se diante da porta.

Tateou com sua energia telepática. O laboratório devia

estar vazio, pois não encontrou impulsos de pensamentos.

A porta perdeu a coesão molecular. Sob o efeito

desintegratório das energias da mutante transformou-se em

um nada. Laury atravessou-a. Sabia onde estava guardada a

ampola. O ara que hoje a guardara ali era um sujeito

pedante. Ao largá-la, ficou refletindo sobre se realmente

esse seria o lugar mais seguro. E Laury absorvera-lhe os

pensamentos como uma esponja.

O laboratório brilhava na profusão das luzes. Num tom

suave, os relês batiam, as espulas zumbiam, os líquidos

pulsavam através de condutos transparentes, alguma coisa

fervia e borbulhava.

A mutante parou de costas para a porta, que logo

recuperou sua coesão molecular.

Três robôs estavam observando o curso da experiência.

O alarma soou na mente de Laury Marten. Qual dos três

robôs seria o controlador?

Pôs a mão no bolso. Os dedos cingiram a coronha do

radiador. Os olhos procuraram em vão localizar qualquer

sinal que distinguisse as máquinas. Ouviu as juntas

metálicas rangerem levemente, viu os movimentos quase

humanos e continuou parada junto à porta.

Teria de passar por todos os três. A ampola com o soro

estava do outro lado.

“Como é que fui esquecer o diapasão?”, pensou,

recriminando-se. Sabia perfeitamente quanto trabalho

custara fabricar nas oficinas do setor X-p um diapasão que

soasse exatamente a nota si.

De repente, teve a impressão de que estava vendo o

rosto de Rodrigo e ouvia sua voz, que repetia estas

palavras:

— ...mas amanhã não me darão nenhuma injeção de

soro revitalizador. Em vez disso terei de respirar um gás

que precipita o processo de envelhecimento. O ara, que me

disse isso com uma risada, há vários anos fez a mesma

experiência com Nara, a mongol. Quando vieram buscá-la,

era uma moça alegre; quando voltou, transformara-se numa

velha idiota.

Laury Marten não hesitou mais. Sabia como haviam

sido programados os robôs do setor X-p, e fazia votos de

que nessa área não houvesse nenhuma exceção.

Passou pelos três homens mecânicos. Estes nem sequer

levantaram a cabeça.

Virada de lado, a mutante estendeu a mão em direção à

ampola. Esperara encontrar um recipiente pequeno. Seus

dedos fecharam-se em torno da ampola quando leu a

anotação junto ao suporte. Eram apenas umas poucas

palavras:

Hutwasd — C-3 — 0,75 cudd...

Hutwasd era um dos ocupantes do zoológico dos aras.

Page 69: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

69

Com exceção da cabeça, monstruosa, tinha um aspecto

bastante humano. No que dizia respeito à inteligência,

situava-se acima dos homens. Apesar disso, os aras o

haviam enquadrado na categoria C-3, que era aquela na

qual também Rodrigo estava catalogado.

0,75 cudd correspondiam a três centímetros cúbicos.

Laury Marten não conseguiu prosseguir na leitura. Um

dos robôs virara-se em sua direção.

Era o controlador!

Em sua testa metálica achatada, um diafragma abriu-se

por uma fração de segundo, deixando a descoberto uma

lente fluorescente dirigida exatamente sobre Laury.

Naquele instante, não só o alarma estava soando no

setor de Defesa de X-p, mas até seu retrato estava sendo

apresentado. Dentro de alguns minutos, todos os aras que se

encontravam no gigantesco centro de pesquisas saberiam

que a arcônida Arga Slim fora observada quando estava

furtando uma porção do soro secreto.

O disparo da arma de radiações contra o robô foi um

movimento de puro reflexo. O raio derreteu seu cérebro

positrônico. Laury saltou para o lado, segurando a ampola

de soro na mão, e o corpo metálico caiu ao chão,

produzindo um ruído enorme.

O alarma não estava soando?

O próximo disparo de Laury Marten desfez o aparelho

de comunicação audiovisual. Laury examinou o teto, enfiou

a ampola num bolso interno, correu em direção à porta,

subiu ao armário que se encontrava junto desta e fez com

que o teto perdesse a coesão molecular. A mutante passou

as mãos por este, segurou-se nas bordas estáveis e puxou o

corpo para cima.

Viu-se diante de um velho ara que tremia que nem vara

verde. O homem não conseguia compreender como a moça

conseguiu atravessar o soalho do laboratório. Laury

colocou-se de joelhos e apontou a arma de radiações para o

ara.

— Vire-se! — gritou. Subiu a uma mesa e, dali, escalou

outro armário. Mais uma vez fez com que o teto se tornasse

“transparente” e viu-se diante de Sagala, que viera da sala

contígua por ter sua atenção despertada por um ruído.

Laury Marten só havia visto o chefe do zoológico

galáctico uma única vez e só trocara poucas palavras com

ele. Enquanto Laury Marten apontava-lhe o radiador,

Sagala respirava com dificuldade. Naquele instante era

apenas a agente de Rhodan, fria e bem treinada.

— Sagala — ordenou ao chefe do zoológico, que na

escala hierárquica ficava ainda acima de Man Regg. —

Acho que o senhor me ajudará a sair deste edifício. Ou será

que prefere morrer neste instante?

Sagala não respondeu, não fez o menor movimento,

apenas fitou a moça que estava com a arma na mão.

No setor X-p, as sereias de alarma continuavam a uivar.

Os alto-falantes transmitiram a advertência do Centro de

Defesa:

— Todas as saídas estão bloqueadas por robôs de

combate. Quem se atrever a sair do setor X-p será

destruído.

Num tom que quase chegava a ser gentil Laury

perguntou a Sagala:

— Não quer ter a bondade de acompanhar-me a uma

das saídas? É justamente na sua presença que me sinto mais

segura. Por favor, Sagala!

O chefe do zoológico cedeu à ameaça da arma.

Enquanto passou por ela, dirigindo-se à porta, chiou:

— A senhora não irá longe, sua espiã arcônida!

Descreveu uma curva enorme em torno do lugar em que

Laury penetrara pelo soalho. Não confiava na resistência

daquela área. Quando se virou e viu que a mulher passava

tranquilamente por ali, empalideceu.

Quando chegou à porta, seu rosto adquiriu a cor da cera,

pois Laury Marten lhe gritara uma advertência:

— Sagala, antes que o senhor possa dar o alarma,

apertarei o gatilho.

Sagala nem desconfiava de que a moça lia seus

pensamentos, mas a advertência reforçada pela ameaça

roubou-lhe o resto de disposição máscula. Tremendo de

covardia saiu para o corredor, seguido de perto por Laury.

* * *

John Marshall sobressaltou-se em meio ao sono

profundo.

A mensagem telepática expedida por Laury Marten

atingiu-o com uma intensidade tremenda.

Quais seriam as notícias que pretendia dar-lhe?

Uma fuga através do zoológico? Quem estava com ela?

O conde Rodrigo de Berceo? O que acontecera? Naquele

instante, o setor X-p estava alarmando todo o planeta e

mobilizava os guardas do zoológico, os terríveis froghs.

— Não poderia deixá-lo na mão, John Marshall. Neste

momento estamos fugindo na direção sul sudoeste e

procuramos mergulhar no deserto com o carro.

John Marshall soltou uma praga e vestiu-se

apressadamente. Sua partida parecia agora uma fuga

precipitada. Apesar de tudo, não perdeu a visão de conjunto

da situação. Sempre que se lembrava de Laury Marten,

fervia por dentro. O que haveria com essa moça? Estaria

apaixonada por Rodrigo de Berceo? Só agora estava

sabendo disso!

— Está ficando maluca! — desabafou John Marshall,

mas esse desabafo em nada alterava o fato de que o alarma

estava soando em todo o planeta dos aras e todo um mundo

estava saindo à caça da mutante Laury Marten e de

Rodrigo.

John Marshall teria esbravejado ainda mais se soubesse

que caminho Laury Marten havia tomado para sair do setor

X-p.

Mal atingira o pavimento térreo, sempre acompanhado

de Sagala, quando três robôs de combate surgiram diante da

saída do elevador antigravitacional, seguidos por mais de

uma dezena de aras muito exaltados.

— Está aqui! — gritou Sagala num gesto de desespero,

Page 70: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

70

esperando ser morto pela arcônida, quando subitamente não

havia mais ninguém atrás dele. Graças à sua força

desintegradora Laury Marten atravessou as paredes do setor

X-p, atravessou laboratórios e outras instalações,

transformando-se num fantasma para muitos aras, que a

viam sair da parede, atravessar a sala e desaparecer na

parede oposta.

Finalmente atingiu o ar livre, bem longe das saídas

vigiadas. Logo encontrou um veículo à luz das estrelas.

Saiu em disparada, penetrando no zoológico galáctico, em

direção ao lugar em que há quatro séculos seres humanos

estavam sendo mantidos presos atrás de grades de

radiações, como se fossem animais.

Agzt, o frogh que levitava num estado eufórico,

desligou a barreira energética quando viu Laury aproximar-

se com o carro. O monstro viperino, que se agitava numa

alegria tumultuosa, nem percebeu que com isso pronunciara

sua sentença de morte. Os froghs, despertados pelo alarma,

acorreram de todos os lados e viram com seus penetrantes

olhos de notívagos que um dos ocupantes do zoológico

estava entrando num carro. Perceberam como a fuga se

tornara possível, e a vida de Agzt cessou.

Laury Marten acelerou o carro ao máximo, dirigindo-se

para sul-sudoeste a fim de sair do zoológico e mergulhar no

deserto juntamente com Rodrigo.

* * *

John Marshall nunca achara o caminho até o

espaçoporto de Trulan tão longo como nessa noite.

Finalmente chegou ao distribuidor. Marshall saiu ligeiro

do trem expresso, atirou-se no antígravo, abriu caminho

entre a confusão de gente e de inteligências humanoides e

por fim se conteve, para não chamar a atenção em virtude

da pressa.

Seu pequeno veículo espacial, que Otznam acabara de

trazer da nave cilíndrica de Rohun, encontrava-se na

extremidade oposta do espaçoporto de Trulan.

Entrou no apertado distribuidor. Tratava-se de um

sistema de elevadores que penetrava no subsolo, onde as

faixas rolantes se cruzavam em vários níveis, passando por

baixo do campo de pouso nas direções mais diversas, a fim

de que os tripulantes e passageiros das naves pudessem

atingir os veículos espaciais pelo caminho mais rápido.

John Marshall, o mais antigo dos mutantes de Rhodan,

sentiu-se um pouco mais tranquilo. No entanto, não deveria

pensar no comportamento incompreensível de Laury

Marten.

O simples fato de que ela se apaixonara por Rodrigo não

o abalou; não podia haver nada que fosse mais humano.

Acontece que Laury só o informara sobre isso num

pedido de socorro telepático, e era isso que Marshall não

compreendia.

Era um abuso de confiança. Isso mesmo! E quem sabe

se a moça ainda lhe ocultava outras coisas?

Quando chegou ao fim da estrada deslizante e foi levado

para cima por um elevador antigravitacional, viu-se

sozinho. Olhou para todos os lados e saiu do elevador.

Apenas o centro do porto espacial estava inundado pelas

luzes, além das três áreas onde se situavam os gigantescos

estaleiros nos quais podia ser reparada qualquer nave, por

maior que fosse.

John Marshall enxugou o suor da testa. Mesmo à meia-

noite, Tolimon era uma mundo tão quente que qualquer

esforço se transformava num martírio.

Sem deter-se e sem ser observado atingiu a pequena

nave. Mesmo ao olhar de uma pessoa desconfiada, a nave

pareceria um simples veículo de passeio. Na verdade,

porém, era aquilo que Rohun, com certo exagero, designara

como um couraçado. Era uma nave super-rápida e bem

armada, que possuía a qualidade de poder ser manobrada

nas camadas mais densas da atmosfera com a mesma

facilidade com que o era no espaço vazio.

O propulsor estava esquentando. A localização, o

aparelho de radiocomunicação, tudo estava entrando em

funcionamento. John Marshall olhou para o relógio. Mais

cinco minutos. Depois poderia decolar.

Três dos alto-falantes de microfone captaram

mensagens.

O inferno estava às soltas em Tolimon.

O aparelho de localização confirmou o fato. Tudo

quanto era nave policial estacionada nesse mundo dos aras

encontrava-se no ar e disparou na direção sul sudoeste.

E John Marshall teria que penetrar nesse montão de

naves empenhadas na busca, para encontrar Laury Marten e

Rodrigo, recolhê-los a bordo e fugir.

Os últimos cinco minutos do tempo de aquecimento

haviam passado.

Marshall soltou uma praga e decolou. Estava

empenhado numa missão na qual as chances dele e de

Laury Marten eram inferiores a um por cento.

* * *

— Rodrigo, guarde a espada! Esse brinquedo me deixa

nervosa — pediu Laury Marten, pela terceira vez, em tom

enérgico, enquanto seu veículo desenvolvia a velocidade

máxima, penetrando cada vez mais profundamente naquele

triste deserto de pedra. Descreveu uma curva, subindo uma

imensa encosta, e dobrou repentinamente à esquerda, para

desviar-se de um desfiladeiro.

Com isso, aproximava-se dos froghs que encetavam a

perseguição pelo sul. A resistência desses monstros

viperinos dotados de muita inteligência a fez suar de medo.

Já compreendera que, mais tempo ou menos tempo, cairia

nas garras desses guardas zoológicos, a não ser que John

Marshall viesse em seu auxílio.

Os froghs ganhavam terreno ininterruptamente. Estavam

chegando mais perto.

— Segure-se, Rodrigo!

O filho de um nobre espanhol e de uma princesa asteca,

que fora mantido por quatrocentos anos numa jaula

energética, só uma única vez, quando foi raptado na Terra,

Page 71: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

71

tivera oportunidade de entrar em contato direto com a

tecnologia dos mundos de Árcon. Para ele, o veículo em

que se encontrava devia ser uma obra do diabo.

Não se segurou. Sua reação veio tarde. A cabeça

tombou para frente no momento em que Laury freou para

desviar-se de uma pedra, descrevendo uma curva arriscada.

Rodrigo de Berceo não chegou a ouvir o grito angustiado

de Laury Marten:

— Rodrigo!

O corpo inconsciente estava pendurado no cinto; a

cabeça balançava de um lado para outro.

A noite passou. O dia estava raiando em Tolimon. O

alvorecer cinzento surgiu e, também, a mensagem telepática

de Marshall.

Queria que ela lhe desse sua posição.

Laury Marten não sabia em que ponto do deserto se

encontrava.

O carro estava penetrando num vale estreito. As

montanhas gastas pelo tempo aproximaram-se,

transformando o vale num desfiladeiro. Naquele instante

um raio azul-pálido penetrou naquela estreita passagem,

algumas centenas de metros à sua frente. A energia

mortífera gaseificou a rocha.

Eram as naves policiais dos aras!

A caçada estava sendo feita também pelo ar.

John Marshall devia ser capaz de localizar o

desprendimento de energia.

Enquanto o veículo freado começou a derrapar,

passando rente ao paredão, Laury ainda teve sangue-frio

para informar Marshall sobre o ataque da nave dos aras.

— Já consegui — foi a resposta.

Poucos segundos depois, um minúsculo sol surgiu sobre

o deserto do planeta Tolimon. O fogo deste consumiu a

nave dos aras cujo raio azul-pálido só errara a nave de

Laury por algumas centenas de metros.

Em meio a essa orgia de luzes, surgiu a nave de John

Marshall, enfiou-se no vale estreito, sobrevoou a rocha que

continuava a fervilhar, pousou a menos de vinte metros de

Laury Marten. Marshall já estava de pé na pequena

comporta, gesticulando para que a moça se apressasse.

O conde inconsciente representava uma carga excessiva

para Laury Marten. John Marshall saltou e correu. Tirou o

homem inconsciente dos braços da moça e berrou:

— Vamos embora!

A vinte metros do lugar em que se encontravam, a

pequena nave transformou-se numa nuvem gasosa. Um raio

energético vindo do céu cinzento atingiu a nave, chegou a

alcançar o carro, onde provocou um chiado e um borbulhar.

Não havia mais nenhum veículo, apenas três seres

humanos, dois dos quais corriam para salvar a vida.

Corriam de volta, na mesma direção da qual vinham os

froghs!

— Vamos! — gritou John Marshall para Laury Marten e

Rodrigo. — Os froghs ainda estão atrás de nós. Este foi o

terceiro e...

Viu a expressão de pavor nos olhos de Laury. Virou-se

instantaneamente.

O quadro com que se deparou apertou-lhe a garganta.

Os froghs vinham de três lados. Aproximavam-se das

vítimas numa velocidade tresloucada.

O conde Rodrigo de Berceo, já refeito, passou

rapidamente por cima do barranco e, com a espada

desembainhada, correu ao encontro de um dos froghs.

— Que idiota! — esbravejou Marshall, e suas armas de

impulsos chiaram.

Mas o quinto frogh ainda estava vivo. E Rodrigo corria

em sua direção. John e Laury não poderiam atirar sem

colocar a vida de Rodrigo em perigo.

— Para trás! — berrou Marshall num tremendo

desespero.

Era tarde.

Marshall fechou os olhos. Não queria assistir à morte do

conde.

Laury soltou um grito estridente:

— Está dando outro golpe de espada.

O conde Rodrigo de Berceo, nascido em 1.652, no

México, estava provando que era o melhor espadachim de

seu século.

O corpo gigantesco do frogh girou, o monstro soltou um

berro, ergueu o terço anterior do corpo, as oito ou dez

“pernas” dobraram-se e o animal rolou de lado para não se

mexer nunca mais.

— Será que este sujeito ficou maluco? — gemeu

Marshall quando viu o conde Rodrigo de Berceo

aproximar-se daquela criatura, para logo em seguida dar um

enorme salto para trás a fim de escapar à boca do frogh que

procurou agarrá-lo.

Foi o último movimento do inimigo subjugado. John

Marshall sentiu a expressão de felicidade no olhar da

mutante. Olhou para Laury.

— Se este conde soubesse adaptar-se à nossa técnica

com a mesma habilidade com que maneja a espada e

emprega sua coragem, talvez teríamos uma chance de sair

vivos disto aqui.

Olhou Laury Marten.

— Por que fica mexendo nesse bolso? — perguntou em

tom contrariado. A duração da fuga, a sede que torturava

todos eles, as lutas diurnas e noturnas com os froghs, tudo

isso contribuiu para criar uma tensão extrema.

— Quer saber o que tenho no bolso? É isto.

Tirou a grande ampola com o soro revitalizador.

John Marshall fitou o cilindro de vidro, depois passou a

olhar a mutante. Naquele momento, Rodrigo já voltara a

juntar-se a eles. Só então o telepata conseguiu gaguejar:

— É só agora que a senhora me conta isso? Santo Deus,

9

Page 72: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

72

Laury Marten, isso só representa metade do caminho

andado? Como pôde esquecer de me avisar?

Laury guardou cuidadosamente a ampola e disse:

— Pois eu lhe transmiti a informação de que conhecia o

lugar em que estava guardado o soro...

— Mas só agora me comunicou que a senhora já o

conseguiu, Laury. É uma diferença considerável.

Para remate da confusão, Rodrigo achou que devia

assumir o papel de protetor. Falando em tom enfático,

disse:

— Quando tivermos voltado ao México, Laury levará

uma vida digna de sua condição no castelo dos meus

antepassados. Será venerada pelas damas da corte e pelos

pajens, será admirada...

— Coitado... — interrompeu-o John Marshall,

sacudindo a cabeça. — Temos que prosseguir no nosso

caminho. Se não encontrarmos água até hoje de noite,

estaremos perdidos.

* * *

Já era noite, e nada de água. As montanhas desérticas

irradiavam um calor igual ao do meio-dia. O ar era seco e

escaldante. De todos os lados, o vento tangia nuvens de pó.

Três seres humanos cambaleavam através do vale,

subiram pesadamente a primeira montanha, desceram aos

tropeções, caíram, voltaram a pôr-se de pé, começaram a

enxergar alucinações, soltavam gritos nervosos...

Estavam sendo golpeados pelo deserto selvagem e

desolado de Tolimon. E os golpes eram mais cruéis que os

dos aras e dos froghs.

Laury Marten foi a primeira que ficou parada e caiu.

Também Rodrigo caiu de joelhos. Quando Marshall se

virou para ver por que ninguém o seguia, suas forças

também haviam chegado ao fim.

A sede os enlouquecia. Os lábios rachados e os olhos

inflamados deixavam-nos desesperados. Enquanto

cambaleava para trás, Marshall descobriu a caverna.

Uma esperança nascida do desespero surgiu em sua

mente. Associou a palavra caverna à ideia de água.

Realmente encontraram água.

A poça refletiu a luz da lanterna. Era uma poça de cerca

de cinco centímetros de profundidade e três metros de

diâmetro.

— Água! — balbuciou Rodrigo e deixou-se cair de

joelhos para sorver o líquido. Naquele instante um radiador

de impulsos chiou a seu lado e numa fração de segundo

evaporou o líquido da poça.

John Marshall sentira o mau cheiro e agira sem perda de

tempo.

Com um grito tresloucado, o conde atirou-se sobre o

telepata. O punho de John Marshall teve mais força que o

do nobre, pois este ainda continuava debilitado. Rodrigo

caiu sem dizer uma palavra. John sentiu o olhar

desesperado de Laury e logo ouviu seus soluços secos e

desinibidos.

Será que o fim seria ali, numa caverna cuja temperatura

era suficientemente baixa para restituir a três homens, sem

que eles o percebessem, apenas a força suficiente para que

pudessem raciocinar?

“Hipercomunicador” cochichou alguma coisa num

incerto local do cérebro de Marshall. E, depois de longa

espera, novamente: “Hipercomunicador.”

Acontece que por ocasião da destruição de sua nave

também o hipercomunicador fora gaseificado. Foi só graças

à sua precaução que estavam equipados ao menos com um

bom sortimento de armas de radiações. Se não as tivesse

levado quando pretendia recolher Laury e Rodrigo, o

resultado da caçada dos froghs teria sido bem diferente.

— Descobri! — gritou John Marshall. As paredes da

caverna devolveram o eco. — Não perguntem nada... não

perguntem nada — cochichou, antes que pudessem investir

contra ele com perguntas. — Preciso concentrar-me...

concentrar-me ao máximo...

Estava quase louco de sede. Apesar disso, devia

transmitir seus impulsos telepáticos com a potência

máxima, devia realizar alguma coisa que mesmo em

condições normais representaria um máximo de

desempenho. Se qualquer processo de mentalização exige

certo dispêndio de energia, o impulso telepático representa

um múltiplo dessa energia.

Rohun teria que ajudá-los. Rohun devia aparecer. Neste

instante, Rohun devia cumprir sua promessa.

Concentração... Não conseguiu realizá-la.

Dispunha de um meio de entrar em contato com Rohun,

comandante dos saltadores. O hipercomunicador.

— Só falta um copo de água, John Marshall. — O

martírio da sede retornara à sua mente, roubando-lhe as

últimas reservas de energia. — Beber, beber apenas um

gole de líquido fresco!

Bateu com as mãos na cabeça. Procurou espantar o

martírio da sede. Concentrar-se. Concentrar-se ao máximo.

Não desistiu. Perry Rhodan nunca desistira. Não poderia

abandonar Perry Rhodan. Este nunca abandonara seus

colaboradores quando se encontravam em situação difícil.

Agora... Mas nada, nada. Outra tentativa. Mais outra.

Isso!

O impulso telepático chegara ao destino. Teria sido

bastante forte para ligar o fantástico aparelho suplementar

instalado sob o telhado de seu alojamento situado num

cortiço?

Apalpar... apalpar em direção a Trulan, para certificar-

se de que não se entregava a qualquer ilusão.

O hipercomunicador estava funcionando. Tinha certeza.

Certeza absoluta.

Novo impulso energético dirigido ao aparelho

suplementar. A regulagem telepática para a faixa de Rohun.

De repente, John Marshall sentiu-se forte. Superara a

loucura da sede.

Ouviu a voz do comandante dos saltadores.

Sim, e agora... agora o aparelho estava processando os

impulsos telepáticos, transformando-os em palavras. O

condensador e o deformador foram intercalados. Nenhum

Page 73: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

73

ara seria capaz de acompanhar a troca de mensagens.

— Irei até aí, Ixt! — foram estas as últimas palavras de

Rohun.

Esperaram.

* * *

Rohun estava furioso. Contemplou Otznam e Tulin com

os palavrões mais fortes de seu repertório. John Marshall,

Laury Marten e Rodrigo assistiram à demonstração de fúria

sem dizer uma palavra. Otznam e Tulin nem conseguiram

falar.

— Será que vocês estão sendo cavalgados por todos os

demônios das galáxias? Como puderam trazer essa gente a

bordo? Coloque-nos na nave auxiliar, e desçam com eles

para Tolimon. Quem terá sido o idiota que concebeu uma

idéia como esta?

Mas para que tantas palavras? Levem-nos de volta para

Tolimon. Levem-nos ao lugar que escolherem, mas não

assumam qualquer risco. Não estou com vontade de ser

transformado numa nuvem de gases juntamente com todas

as naves de meu clã. Fora!

Marshall já se encontrava junto à escotilha quando o

saltador o chamou de volta. O mercador galáctico lutava

com o patife que havia dentro dele.

— Ixt — disse em tom deprimido. — Mantenho minha

palavra. Otznam e Tulin...

— Está bem — interrompeu John Marshall. — Se os

agentes do senhor nos levarem sãos e salvos até Tolimon

continuaremos amigos.

Estava sendo sincero, pois era quem melhor podia

avaliar o que o mercador galáctico arriscara para salvá-los.

Seria uma desfaçatez pedir que Rohun fizesse mais do que

isso, pois traria o perigo de ele e seu clã serem destruídos

por um golpe implacável dos aras.

Dali a pouco, estavam os cinco na pequena nave

auxiliar, que os levaria de volta para Tolimon, um mundo

dos aras.

* * *

Trulan, capital de Tolimon, estava do lado diurno.

Otznam preferiu não arriscar a aproximação por esse lado.

— O ar está fervilhando de impulsos de localização —

disse em tom desanimado e apontou para os instrumentos

que reagiam constantemente.

Marshall estava acomodado no assento do co-piloto.

Não via nenhuma possibilidade de pousar sem ser notado.

Devia haver outra circunstância que desencadeara novo

alarma no mundo dos aras. Naquela altura, nem desconfiara

de que ele mesmo era o motivo desse alarma.

Mais uma vez, Tulin olhou-o de lado. O olhar despertou

a atenção do telepata e fez com que este lesse os

pensamentos do agente dos saltadores.

Por coincidência, Tulin se encontrava ao lado do

comandante Rohun quando o mercador recebeu o pedido de

socorro de Marshall. Nem o comandante nem ele mesmo

haviam reconhecido a voz de Marshall. Apenas a senha lhes

deu certeza de que a mensagem não era uma armadilha.

— O que houve com o senhor? — indagou o telepata ao

agente ruivo.

— Fico me perguntando todo o tempo onde está o

hipercomunicador com que nos chamou Ixt. Quando

pousamos junto à caverna, o senhor não tinha nenhum

hipercomunicador. Além disso, quando recebemos o

chamado, até parecia que as palavras estivessem sendo

pronunciadas por um cérebro positrônico. O que Rohun e

eu ouvimos não foi uma voz humana.

— Aqui está meu hipercomunicador — mentiu Marshall

com o maior sangue-frio, exibindo seu cronômetro. — Isto

é o alto-falante, e esta saliência pequenina contém o

microfone. Nem sempre um hipercomunicador tem que ser

um aparelho gigantesco.

Marshall sabia perfeitamente que estava usando um

blefe infame, mas não tinha outra alternativa.

Os dois saltadores arregalaram os olhos.

— O hipercomunicador está dentro daquilo?

Otznam não acreditava numa palavra do que Marshall

acabara de contar. Este leu o que pretendia dizer quando

surgiu uma nave dos aras e tomou a direção do ponto em

que se encontravam.

— Oba! — gritou o saltador. — Agora é para valer!

Antes que Marshall pudesse esboçar qualquer reação,

Otznam colocou a minúscula nave de cabeça para baixo e

disparou numa velocidade infernal em direção ao planeta

Tolimon.

Marshall compreendeu as intenções do agente.

Otznam dirigia-se ao espaçoporto policial dos aras. O

tráfego por ali era intensíssimo. E esse tráfego era sua única

chance de escaparem aos aparelhos de localização,

mergulhando em meio à confusão de naves que decolavam

e pousavam.

A atmosfera, que já se tornara mais densa, começou a

uivar em torno da nave. Otznam desceu numa velocidade

medonha. A nave dos aras que os perseguia não esperara a

manobra e demorara demais para modificar a rota. O agente

dos saltadores ganhou alguns segundos muito preciosos.

— Preparem-se para saltar! — gritou John Marshall,

dirigindo-se a Laury Marten e Rodrigo. Tal quais os outros,

também o homem do século XVII estava enfiado num traje

espacial arcônida de boa qualidade. Laury Marten vivia

tentando explicar a Rodrigo o que era um campo de

deflexão, como se voava num traje espacial, o que vinha a

ser a gravidade e como a mesma podia ser neutralizada. O

conde não compreendia nada.

— Muito obrigado, saltadores! — gritou Marshall para

Tulin e Otznam quando, seguindo os companheiros, se

enfiou na pequena comporta e fechou-a atrás de si.

A cinquenta quilômetros de altura os três abandonaram

a nave.

O conde Rodrigo de Berceo flutuava entre os outros.

Mais uma vez acreditava que se tratasse de uma arte do

demônio quando viu que pouco acima deles Otznam, o

agente dos saltadores, girou a nave e disparou para o

Page 74: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

74

espaço. Desceram na vertical. Marshall e Laury Marten

sabiam que suas presenças podiam ser constatadas pelas

estações de superfície. Quanto mais depressa chegassem até

ela, maiores seriam suas chances.

Rodrigo se debatia, pendurado num cabo de plástico.

Acreditava ter chegado ao fim da vida e pensava que estava

descendo às profundezas do inferno. Perdera a noção do

tempo. Soltou um grito de pavor quando uma pressão

invisível ameaçou esmagá-lo. Nesse instante, Marshall

soltou um “graças a Deus”.

Pousaram a menos de um quilômetro do espaçoporto

policial e junto a uma estrada.

— Saiam dos trajes espaciais! — ordenou Marshall. —

Enquanto usarmos estes trajes, todo mundo desconfiará de

nós.

Esconderam os preciosos trajes arcônidas na moita mais

próxima. Marshall lançou os olhos pela noite, para

examinar o espaçoporto policial profusamente iluminado.

Brincava cada vez mais intensamente com a ideia de

arriscar, a partir dali, o salto para Trulan. Laury, que

conhecia seus pensamentos, entusiasmou-se com o plano.

Quando disse:

— Dentro de três horas será dia. Marshall respondeu

num tom que quase chegava a ser ameaçador:

— Nessa hora, já estaremos em Trulan! Dali a uma

hora, haviam chegado ao espaçoporto policial dos aras mas,

por mais que lançassem os olhos em torno, não descobriram

nenhuma nave que pudesse servir aos seus propósitos.

Finalmente uma pequena nave-correio surgiu da

escuridão e pousou no campo espacial. Levava dois

homens. Um dos aras saiu da nave. O piloto cochilava no

seu assento.

John Marshall e Laury Marten dividiram a presa. Laury

encarregou-se do ara, que entrou num carro e foi levado ao

edifício da administração. Marshall já estava trabalhando o

piloto com seu projetor mental. Depois disso, o homem não

poderia ficar admirado ao ver três pessoas entrarem no

aparelho e pedirem que as levasse a Trulan.

Laury Marten ficou perplexa com os pensamentos que

extraiu do cérebro do oficial ara.

O tumulto reinante em Tolimon fora provocado por

John Marshall. Era ele que estava sendo procurado

febrilmente pelos aras. Estes dispunham de provas cabais

de que o mutante de forma alguma poderia ser Ixt, o

mercador galáctico.

— Tudo pronto, Laury Marten! — disse Marshall e

levantou-se. — Encareça ao conde a necessidade de não

dizer uma única palavra, aconteça o que acontecer. Laury, a

senhora responde por ele.

Mais uma vez, caminharam com o conde entre eles.

Laury cochichava ininterruptamente para ele.

Encontraram-se com três aras. Passaram a menos de três

metros. Dois tratamentos hipnóticos de curta duração

influenciaram os médicos galácticos pela forma desejada. A

nave-correio surgiu diante deles. A comporta estava aberta

e a rampa havia sido descida. O piloto nem sequer se virou

quando John Marshall parou junto à comporta interna para

deixar que Rodrigo e Laury Marten passassem à sua frente.

— Tudo pronto? — perguntou o ara que se encontrava

no assento do piloto.

As escotilhas da comporta fecharam-se com um chiado.

— Tudo pronto! — respondeu John Marshall com a

maior tranquilidade, embora tremesse por dentro.

Será que o serviço de controle do espaçoporto não

ficaria desconfiado ao notar que uma nave decolava sem

aviso?

Corriam atrás da noite que deslizava pelo planeta de

Tolimon. Quando Trulan surgiu à sua frente, o crepúsculo

começava a descer sobre a capital planetária.

Foi quando o serviço de controle constatou sua

presença. Exigiu informações sobre as características da

nave. O piloto identificou o aparelho. No mesmo instante o

ara que se encontrava no setor de controle do espaçoporto

de Trulan demonstrou uma gentileza extraordinária.

— Reservamos a posição de estacionamento número

onze para o senhor e mandaremos um carro.

Marshall e Laury Marten trocaram um olhar ligeiro.

Jogariam seu jogo atrevido até o fim.

Por que andar se insistiam em levá-los de carro? E onde

poderiam estar mais seguros que num veículo da policia ou

do serviço secreto dos aras?

O piloto — que fora influenciado apenas no setor da

inteligência, para não se preocupar com o destino do vôo e

a identidade dos passageiros e retornar imediatamente ao

espaçoporto policial — pousou levemente na posição

número 11.

O carro já os esperava.

Os mutantes não perderam nem um segundo.

Submeteram o motorista e o oficial do serviço secreto à

força sugestiva.

Mais uma vez, Marshall foi o último a entrar, com o

radiador de impulsos engatilhado no bolso.

E mais uma vez, não aconteceu coisa alguma.

— Aonde vamos? — perguntou o motorista, virando-se

para os passageiros, enquanto o ara do serviço secreto

olhava fixamente para frente, sem tomar conhecimento da

presença deles.

— Para a Rua do Grande Mo — respondeu Marshall.

Foi quando surgiu o incidente com o qual não

contavam.

A central do serviço secreto dos aras chamou justamente

o carro em que iam.

O motorista e o oficial não reagiram ao chamado.

O chamado foi repetido. Marshall decidiu levar o

atrevimento ao grau de uma insolência inacreditável.

Obedecendo à ordem de Marshall, reforçada pelo

projetor mental, o motorista gritou para dentro do

microfone:

— Viatura KK-107 em missão especial. Objetivo tem

de ser mantido em segredo, porque existe perigo de escuta.

Voltarei a chamar dentro de meia hora. Fim.

— Desligue o transmissor — ordenou Marshall.

Page 75: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

75

O motorista desligou.

Com a segurança de um sonâmbulo, o piloto fazia a

viatura policial correr em direção à Rua do Grande Mo.

John Marshall não se interessava nem pela confusão do

tráfego, nem pelos movimentos da multidão. Procurou

captar os pensamentos de Futgris, para descobrir as

novidades ocorridas durante sua ausência.

Futgris não estava mais na loja dos animais.

Não havia nenhum vendedor por lá!

Em compensação, havia aras. Eram nove elementos do

serviço secreto, que naquele instante revistavam

cuidadosamente o escritório.

“Acabarão encontrando o novo aparelho de

telecomunicação!”, foi esta a primeira ideia que acudiu a

Marshall.

— Onde devo parar? — perguntou o motorista

hipnotizado em meio às suas reflexões.

— Aqui não — respondeu Marshall laconicamente. —

Novo destino da viagem: a coluna do Grande Mo.

O motorista não se espantou. O oficial sentado a seu

lado olhava fixamente para frente. O projetor mental de

Laury Marten mantinha-os em estado hipnótico.

John Marshall não via nem ouvia mais nada.

Concentrou-se. Pensava em seu escritório. Pensou na

pequena bomba incendiaria que havia no interior do

mesmo. Encontrava-se sobre a escrivaninha e, sem o

envoltório que a camuflava, não era maior que uma noz.

— Deflagrar! — ordenaram seus pensamentos.

Aquela impressão voltou a surgir atrás de sua testa. Era

algo de indefinível; parecia que um contato se fechava.

Marshall respirava pesadamente; reclinou-se no assento.

Tinha certeza de ter conseguido. Dali a pouco, as sereias de

alarma soariam na Rua do Grande Mo e a casa de animais

de Ixt ficaria queimada até os alicerces. O fato de que, dali

a alguns dias, os aras ainda se esforçariam para descobrir

por que aquele fogo, parecendo tão inofensivo, não pôde ser

apagado de forma alguma, não o preocupava nem um

pouco.

Mais uma vez, a central do serviço secreto dos aras

chamou:

— Viatura KK-107, responda imediatamente e...

De repente, John Marshall teve um sexto sentido para o

perigo.

— Pare! — disse ao motorista.

O carro ainda estava andando quando Marshall saltou,

puxou Laury Marten e arrastou Rodrigo. Naquele instante,

viu duas viaturas do serviço policial pararem do outro lado.

Dali a quatro horas, quando a porta de aço arcônida se

fechou atrás deles, Rodrigo de Berceo contemplou o

alojamento de Marshall com um olhar de desprezo e Laury

Marten sorriu pela primeira vez. Naquele instante, John

Marshall sabia perfeitamente que a caçada dos aras ainda

não havia chegado ao fim.

A pista que tinham deixado era muito nítida.

Esta pista se chamava Rodrigo de Berceo, o homem que

usava botas cujos canos iam até os quadris, calça apertada

no corpo, colete sem mangas com rendas no decote e

chapéu de aba larga encimado por um penacho balouçante.

Rodrigo de Berceo levaria os aras ao esconderijo na

área dos cortiços.

— Temos uma bela perspectiva diante de nós — disse

Marshall, absorto em seus pensamentos, e sacudiu a cabeça

ao olhar para Laury Marten.

Esta não resistiu ao olhar. Sentada sobre a cama, baixou

a cabeça.

* * *

Perry Rhodan aguçou os ouvidos. O hipercomunicador

da abóbada de aço de Hellgate chamou.

Era outra mensagem de John Marshall.

Desta vez foi uma mensagem mais longa. À medida que

Perry Rhodan ouvia, seu rosto tornava-se mais sério. Só

uma vez exprimiu uma alegria imensa; foi quando Marshall

o informou sobre a ampola de soro.

— E os saltadores? — perguntou em tom áspero.

John Marshall não conseguia estabelecer contato com

eles. Haviam-se retirado. O assunto era muito arriscado.

— Nesse caso irei pessoalmente. Não faça mais nada.

Cuide bem do soro. Aguente até minha chegada, Marshall.

Demorarei alguns dias. Fim.

John Marshall e Laury Marten, dois agentes cósmicos enviados a Tolimon — um

dos mundos dos aras — conseguiram um êxito parcial quando se apoderaram do soro

revitalizador.

Mas não conseguiram sair de Tolimon.

Mais uma vez Perry Rhodan se vê obrigado a intervir pessoalmente. Chegará

acompanhado de Gucky, como O Pseudo.

O Pseudo, é este o titulo do próximo volume da série Perry Rhodan.

Page 76: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

76

Nº 52

De

Clark Darlton

Tradução Richard Paul Neto Digitalização Vitório Nova revisão e formato W.Q. Moraes

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo

reconhecimento cósmico da Humanidade, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de

ficar incompleto, pois os recursos de que o homem podia dispor na época eram insuficientes face

aos padrões cósmicos.

Cinquenta e seis anos se passaram desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no

ano de 1.984.

Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira

Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou. Formava

agora o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os

mundos do sistema solar que não se prestavam à colonização são utilizados como bases terranas

ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma, os terranos são os

soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Este reino planetário, que alcançou elevado grau de evolução tecnológica e civilizatória,

evidentemente possui uma poderosa frota espacial, capaz de enfrentar qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o

manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles membros do célebre exército

de mutantes — continuam a ser instruídos para, em quaisquer circunstâncias, manter em segredo

sua origem terrana. Em Tolimon, um dos mundos dos aras, alguma coisa parece não ter dado

certo durante o desempenho de uma missão muito importante. Acompanhado de Gucky, Perry

Rhodan aparece em cena para tirar seus agentes dos apuros. Perry Rhodan é O Pseudo.

Page 77: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

77

Ainda havia gente que não conhecia Gucky, o rato-

castor. Para muitos deles, isso não representava nenhuma

tragédia; apenas ficavam privados do prazer de apreciar um

pequeno milagre. Mas outros, que nunca haviam ouvido

falar a seu respeito e, de repente, se encontravam com ele,

poderiam experimentar uma surpresa nada agradável.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com os colonos

revoltados do planalto ao sul de Vênus City. Sabiam por

experiência própria que o governo mundial de seu planeta

de origem não costumava enviar expedições punitivas para

sufocar rebeliões no nascedouro. Por isso, resolveram

romper os laços que os ligavam à Terra, dos quais

resultavam tributos insignificantes, para adquirir a

independência.

Como Perry Rhodan se encontrasse

em algum lugar nas profundezas do

Universo, e não houvesse meio de

entrar em contato com ele, o governo

mundial terrano agiu por conta própria

e incumbiu Gucky de verificar o que

estava acontecendo em Vênus.

Com o maior prazer, Gucky passou

a desincumbir-se da missão.

Os colonos revoltados riram

gostosamente quando um belo dia

surgiu diante deles àquela criatura que

se parecia com o ratinho Jerry. Riram

ainda mais quando a figura engraçada

afirmou que vinha por ordem do

Império Solar, para restabelecer a

ordem.

Só pararam de rir quando aquele

animal esquisito, que falava um inglês

impecável, lançou mão de suas forças

ocultas. Nenhum pensamento dos

cabeças lhe ficou oculto, pois Gucky

era telepata. Encontrava-se nos mais

variados lugares ao mesmo tempo, pois também possuía o

dom da teleportação. E, para coroar a obra, todo o arsenal

de armas dos colonos foi erguido, ficou reunido bem acima

do planalto e caiu num lago profundo. É que Gucky

também era telecineta.

Depois disso, os colonos voltaram a agir razoavelmente.

Desculparam-se com muitas palavras bonitas e juraram

obediência para o futuro, prometendo pagar pontualmente

os tributos a que se haviam obrigado.

Na noite daquele dia agitado, Gucky foi homenageado

por sua generosidade. O chefe da revolta sufocada

convidara-o e lhe oferecera verduras frescas e vinhos da

estação. A festa foi muito alegre e o rato-castor, muito

animado, começou a esquecer das boas maneiras. Com sua

voz aguda, cantou algumas canções grosseiras que ouvira

de Bell. Os homens acompanharam-no com as vozes

roucas.

Os animais que residiam nas matas vizinhas à colônia

espantaram-se com o barulho descomunal e ficaram em

silêncio. Nunca tinham ouvido um rato-castor cantar. Um

porco-espinho assustou-se e enfiou-se mais profundamente

em sua caverna, resolvendo que ao raiar do dia procuraria

um novo lar. Até mesmo um verme-parafuso quase surdo

enfiou-se apressadamente no chão, para livrar-se da orgia

de ruídos pouco agradáveis.

Em poucas palavras, Gucky sentia-se feliz como um

porco em meio às abóboras.

É bem verdade que vez por outra teve a impressão de

que seu subconsciente estava sendo atingido por débeis

impulsos mentais que não provinham dos colonos, cujos

cérebros estavam envoltos nas névoas alcoólicas. Mas não

deu atenção ao fenômeno. Afinal, fizera um trabalho bem

feito e merecia uma noite alegre. O

que tinha ele a ver com a

guarnição terrana de Port Vênus, a

capital do planeta? Aquela gente

poderia perfeitamente esperar até o

dia seguinte.

Gucky continuou a cantar e a

receber as homenagens.

Bem mais tarde, quando estava

descansando em uma macia cama

na casa do prefeito, procurando

espantar os anéis coloridos e as

paredes que balançavam, os

impulsos voltaram.

— Gucky! Aqui é o comando

do exército de mutantes.

Responda! O que aconteceu?

A mensagem era tão clara que

não poderia passar despercebida.

Pelo tipo das vibrações só poderia

ser Betty Toufry, cuja capacidade

telepática muitas vezes provocara

a admiração de Gucky. Era Betty

quem dirigia o comando do

exército de mutantes destacado para Vênus. A ela fora

confiada à incumbência de sufocar a revolta dos colonos.

Gucky suspirou e fez um esforço para vencer a

embriaguez.

— Minha doçura! — pensou, despertando aos poucos.

— Meu estado é excelente. Apenas estou um tanto

carregado.

— Carregado?

O rato-castor sorriu. Como é que aquela criatura

ingênua poderia saber o que carregara? Não conhecia o

vocabulário de Bell tão bem quanto ele.

— Estou carregado de vinho — explicou laconicamente.

— Um vinho delicioso. A revolução acabou-se. Amanhã

estarei aí e lhe darei um beijo.

Betty não parecia sentir-se muito feliz com a promessa.

— Você vai voltar, mas é já! Tenho outra tarefa para

você.

Personagens principais deste episódio:

Perry Rhodan — Que em Tolimon

assume o papel do inspetor Tristol.

Gucky — Que não gosta nem um pouco

do papel de criado pessoal.

John Marshall — Comandante do

exército dos mutantes de Rhodan.

Laury Marten — Uma moça de 23 anos,

filha dos mutantes Ralf Marten e Anne

Sloane.

Conde Rodrigo de Berceo — Um

homem apaixonado por Laury — e,

também, pela espada.

Glogol — Um inspetor que, por melhor

que seja, não pode incutir respeito quando

aparece de cueca.

1

Page 78: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

78

O rato-castor continuou deitado, sacudindo o sono que

ameaçava envolvê-lo. Quem sabe se realmente não havia

bebido demais?

— O que é? — perguntou.

Começou a sentir-se mal.

— Trata-se de uma missão especial, meu chapa! — foi a

resposta telepática que veio imediatamente. — Você terá

que partir amanhã de manhã.

Gucky soltou um gemido e ergueu-se na cama.

Encostou-se à parede. A luz vinda da rua provocou um

reflexo branco na pele da barriga.

— Partir amanhã? Será que esta vida de cigano nunca

terá fim?

Betty começou a impacientar-se.

— Ou você vem imediatamente, Gucky, ou eu aviso

Rhodan que você recusou obediência a uma ordem. Ele

exigiu expressamente a sua presença e...

Gucky despertou imediatamente. O cansaço e o mal-

estar desapareceram como que por encanto. Com um salto,

pôs-se de pé ao lado da cama.

— Então foi Rhodan? Ele quer minha presença? Que

chefe adorável! Não se esqueceu de mim — a emoção

quase chegou a dominá-lo, mas acabou por controlar-se. —

Dentro de cinco minutos estarei aí. É no espaçoporto?

— Está certo. Ande depressa!

— Já estou a caminho — respondeu Gucky e começou a

vestir-se. Numa letra delicada escreveu um bilhete de

agradecimentos aos colonos e recomendou-lhes que nunca

mais pensassem em revoltas.

Depois, concentrou-se em seu destino e saltou.

De início, o ar começou a tremeluzir em torno dele.

Subitamente desapareceu. No mesmo instante, voltou a

materializar-se no lugar combinado, em Port Vênus.

Betty Toufry nem chegou a assustar-se.

Estava sentada na cama. Trazia um robe sobre a roupa

de dormir, que devia ser muito fina. Em Vênus o dia e a

noite eram medidos pelos padrões terranos, pois face à

rotação do segundo planeta, só a verdadeira noite durava

cento e vinte horas.

A parede do quarto era formada de telas e controles. Era

aqui que se reuniam todos os fios das teias urdidas em

Vênus. E a partir dali, era controlada a ação dos mutantes.

Enquanto John Marshall, chefe do exército de mutantes,

estava ausente, as funções eram exercidas por Betty.

— Será que isso não poderia esperar até amanhã? —

perguntou Gucky, mas logo se lembrou de quem o tinha

chamado. — Foi Rhodan em pessoa que exigiu minha

presença? Por que não me chamou logo?

A moça, que continuava jovem graças à ducha celular

do planeta Peregrino, aplicada aos membros mais

importantes do exército de mutantes, sacudiu a cabeça

diante de tamanha falta de lógica.

— Faz poucas horas que recebi a mensagem de Rhodan

pelo hipercomunicador. Confiou-nos uma tarefa muito

estranha, que tinha de ser cumprida antes de qualquer outra

coisa. Só depois disso, tive tempo para pensar em você, que

é parte do equipamento solicitado.

— Você acha que eu sou uma peça de equipamento? —

disse Gucky em tom indignado, acomodando-se na

poltrona. — Foi o chefe que disse isso?

— É claro que não usou essa expressão. Mas fez

questão de que mandássemos você.

— É porque sabe apreciar minhas qualidades — disse o

rato-castor em tom de regozijo.

— Talvez — disse a moça, que pelo aspecto podia ter

tanto dezoito como trinta anos. Na verdade Betty Toufry

tinha mais de sessenta anos. — De qualquer maneira, você

voará para Hellgate amanhã, logo depois do período de

sono.

Gucky empertigou-se e levantou as grandes orelhas. Por

entre os lábios, surgiu o dente roedor, que podia ser

considerado o barômetro de seu humor. Quando aparecia,

podia-se falar tranquilamente com Gucky.

— Hellgate! — sacudiu a cabeça de espanto. — Logo

esse planeta do calor. Será que o chefe não poderia ter

inventado nada melhor?

— Hellgate é uma base muito importante que dispõe de

uma estação de rádio. É o único planeta de um sol pequeno

e insignificante, que consta dos catálogos dos arcônidas sob

a designação ZW-2536-K-957. Hellgate dista exatamente

12.348 anos-luz da Terra. O planeta pertence ao Império de

Árcon. Ninguém se interessa por ele, especialmente os

arcônidas.

— Obrigado pela explicação — chiou Gucky em tom de

desprezo. — Eu poderia ter encontrado essas informações

num livro. O que vou fazer em Hellgate?

— Faça essa pergunta a Rhodan; ele deve saber. Não

tenho a menor ideia do que aconteceu por lá — Betty

ajeitou o robe e cobriu os joelhos, embora não houvesse o

menor perigo de que Gucky ligasse o joelho humano

feminino a qualquer tipo de erotismo. — Também não faço

a menor ideia do que Rhodan pretende fazer com o iate

espacial de luxo.

— Com o quê? — perguntou Gucky perplexo.

— É um veículo feito sob encomenda — disse Betty,

participando do espanto de Gucky. — Um iate especial para

milionários. Os arcônidas costumavam utilizá-lo. Você vai

levar a pequena nave para Hellgate, onde está Rhodan.

— E depois disso vou voltar a pé? — perguntou Gucky.

— Dificilmente. Se fosse assim, não teria dito

expressamente que quer você como piloto. Tomara que

você saiba dirigir aquilo.

O rato-castor empertigou-se, o que quase chegou a

provocar o riso de Betty.

— Isso não é nada. Afinal, fui treinado com todos os

tipos de nave, inclusive com esse ridículo iate de luxo.

Quando devo partir?

— O equipamento ainda está sendo colocado a bordo.

Infelizmente a longa noite de Vênus começou há pouco,

mas você não se importa de decolar no escuro. Será dentro

de dez horas. Se quiser, pode dormir mais um pouco. O

pessoal de Port Vênus está a par de tudo e fará o possível

Page 79: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

79

para apressar os preparativos. Rhodan o aguarda para daqui

a vinte horas.

Gucky exibiu o dente roedor e lançou os olhos em

torno.

— Será que posso dormir aqui? — perguntou com a

cara mais inocente do Universo e lançou um olhar ansioso

para a cama de Betty.

Mas esta não tinha a menor vontade de acariciar o rato-

castor para pô-lo a dormir. Tirou o robe, enfiou-se sob a

coberta de penas e sacudiu a cabeça.

— Na sala ao lado há um sofá. Boa noite.

Desapontado, Gucky ficou mais alguns minutos na

poltrona. Depois teleportou-se para a peça contígua.

Ainda se encontrava sob os efeitos do vinho. Por isso,

logo esqueceu seus problemas e adormeceu.

* * *

O veículo espacial de luxo pertencia a uma classe toda

especial.

Envolvido pela luz ofuscante dos holofotes, estava

pousado no pavimento de concreto, junto ao cruzador leve

que o trouxera da Terra.

Sobre o corpo prateado da nave lia-se em caracteres

negros a designação arcônida Koos-Nor.

Assemelhava-se a um gigantesco ovo, com trinta e

cinco metros de comprimento e quase vinte de diâmetro na

parte central.

Uma escotilha oval conduzia para a comporta de ar e

dali para o interior do iate. Seu raio de ação era

praticamente ilimitado, desde que não se desse importância

às revisões regulamentares.

Gucky e Betty Toufry encontravam-se diante da

maravilha reluzente.

— Isso deve custar um bom dinheiro — constatou

Gucky. — Nunca imaginei que um dia viria a comandar

uma maravilha dessas.

A moça olhou para o relógio.

— Você conhece as coordenadas, Gucky. O engenheiro-

chefe voltou a explicar todos os detalhes. O que está

esperando?

— É verdade, Betty. Vou zarpar.

Betty riu.

— Você está exagerando para menos, coisa que não

costuma fazer. Dê lembranças minhas a Rhodan e aos

outros. E boa sorte.

— Você acha que precisaremos?

— Sem dúvida. Rhodan falou numa missão muito

arriscada.

Gucky sorriu. Parecia satisfeito.

— Ainda bem que esta espera enjoada chegou ao fim.

Todos os mutantes estão participando de comandos

especiais. Eu sou o único que se encontra aqui em Vênus

para acalmar colonos inofensivos cujo único defeito

consiste em não querer pagar impostos.

— Bem, ainda não existe nenhum imposto para os ratos-

castores — disse Betty com um sorriso e recuou um passo.

— Faça um trabalho bem feito, Gucky.

Gucky sorriu e, com um ligeiro salto, subiu os poucos

metros que o separavam da escotilha de entrada. A escada

que se revelara desnecessária encolheu-se automaticamente.

Gucky acenou e desapareceu no interior da comporta. A

pesada escotilha, iluminada pelas lâmpadas, fechou-se.

Poucos minutos depois, um tremor sacudiu o vulto em

forma de ovo. Levantou-se e subiu lentamente ao céu

escuro, seguido pela luz dos holofotes.

Betty caminhou até a beira do campo de pouso. Quando

parou e lançou mais um olhar para o céu enegrecido, não

viu mais nada da nave. Parecia que a mesma se

desmaterializara.

* * *

E foi isso mesmo. Gucky estava decidido a aproveitar

todas as possibilidades da nave de luxo arcônida.

Os veículos espaciais do tipo da Koos-Nor eram dotados

de um campo amortizador especial, que reduzia a um

mínimo os efeitos das hiperentradas e saídas sobre a

estrutura espacial contígua. Por isso, essas naves tinham o

direito de ingressar no hiperespaço dentro do setor espacial

ocupado por um sistema solar, ou reingressar no espaço

normal nesse mesmo setor. O custo de um equipamento

desse tipo era o único fator que impedia sua instalação em

todas as naves. O gerador de campo amortizador não era

rentável — a não ser para iates de luxo, com os quais os

inspetores irradiavam o poder e esplendor de Árcon...

O rato-castor ligou o gerador de campo de amortização

assim que a Koos-Nor rompeu a camada de nuvens branco-

amarelenta de Vênus.

Naquele instante, o Universo deixou de existir para

Gucky. Ou melhor, o rato-castor e todo o iate de luxo

deixaram de existir para o Universo normal.

Transformaram-se e passaram a existir sob a forma de um

impulso energético de categoria superior.

Essa situação perdurou até o momento da

rematerialização.

Quando a dor tão conhecida, provocada por esse

processo, se desvaneceu, Gucky contemplou os quadros

estelares, subitamente modificados.

Escorregou para fora do assento do piloto e resolveu dar

uma olhada mais detida pela nave. Sentia-se martirizado

pelo desejo de saber o que Rhodan pretendia fazer com esse

veículo de luxo. Por que não solicitara um cruzador, em vez

desse lindo brinquedinho? Com este iate, poderia não se

sair bem numa aventura perigosa.

No porão de carga, viam-se as caixas fechadas vindas da

Terra. Acontece que uma fechadura não representava

nenhum problema para Gucky, o telecineta, e assim não era

de admirar que o rato-castor inspecionasse o equipamento

especial de Rhodan sem que isso lhe doesse na consciência.

Dez minutos depois, voltou à sala de comando da Koos-

Nor e deixou-se cair no assento.

Os olhos arregalados fitaram a profusão de estrelas

desconhecidas.

— Gostaria de saber o que Rhodan vai fazer num baile

Page 80: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

80

de máscaras — sussurrou.

* * *

Hellgate realmente parecia ser o portão do inferno,

conforme dizia o nome. Ninguém seria capaz de imaginar

um planeta mais solitário e desolado que aquele. Ali,

Rhodan travara a primeira luta terrível contra Atlan, o

solitário do tempo.

Hellgate...

Era um deserto de areia e rocha, inundado pelo sol e

privado de qualquer vida ou esperança. Nenhuma criatura

sensata conceberia a idéia de fixar-se ali, pois não havia

nada com que pudesse alimentar-se. O sol solitário ficava

longe de todas as rotas espaciais e tinha menos importância

que uma partícula de pó suspensa na atmosfera de qualquer

planeta habitado da Via Láctea.

Hellgate...

Justamente esse mundo infernal fora escolhido por

Rhodan para servir de base e posição avançada contra o

Império dos Arcônidas. Ninguém suspeitaria de que

estivesse ali, se é que alguém soubesse da sua existência. E

isso era pouco provável. Há quase seis décadas

considerava-se a Terra como um planeta destruído, e todo

mundo acreditava que Rhodan e sua gigantesca nave, a

Titan, tivessem desaparecido.

Em Hellgate, Rhodan construiu a cúpula de aço, em

cujo interior existiam condições de vida terranas. A partir

dali poderia, a qualquer momento, estabelecer contato pelo

hipercomunicador com os postos espalhados pelos quatro

cantos do Universo. No hangar subterrâneo havia uma nave

rápida, preparada para tirá-lo dali caso houvesse

necessidade.

Já fazia muito tempo que se encontrava em Hellgate,

mas ainda não havia atingido seu objetivo.

Exatamente a oitenta e um anos-luz ficava um sol de

luminosidade débil do tipo G, que estava registrado nos

catálogos dos arcônidas com o nome de estrela de Revnur.

Lembrava o sol terrano e facilmente poderia ser confundido

com o mesmo. Seis planetas gravitavam em torno da estrela

de Revnur, mas só o segundo deles era habitado. Os aras,

descendentes dos saltadores e dos arcônidas, o descobriram

e colonizaram em tempos idos. Os saltadores viviam

principalmente do comércio, motivo por que também eram

conhecidos como os mercadores galácticos. Já os aras

exerciam outras especialidades: eram os médicos

galácticos, e seu meio de vida consistia na venda de soros

por eles produzidos e na vigilância médica de outras raças e

dos mundos por elas habitados.

Para esse fim mantinham no segundo planeta de Revnur

o único zoo galáctico. Haviam descoberto um elixir da vida,

e era mais que compreensível que o mesmo despertasse o

interesse de Rhodan. Havia dois mutantes, John Marshall e

Laury Marten, que trabalhavam como agentes em Tolimon,

nome pelo qual era conhecido o planeta do zoológico. Há

menos de uma semana Marshall avisara pelo rádio a

existência de uma situação de grave emergência e solicitara

auxílio. A partir dali tudo indicava que estava desaparecido.

Todavia, Rhodan sabia que Laury conseguira retirar uma

ampola do elixir da vida de um dos laboratórios dos aras.

Teria que dirigir-se pessoalmente a Tolimon, para livrar

seus agentes de um perigo grave. Foi este o motivo da

partida inesperada de Gucky.

A cúpula de aço estava sendo castigada pelo calor

tremeluzente de Hellgate. Mas em seu interior havia um

clima igual ao das zonas temperadas da Terra.

Rhodan estava no banho.

Nos dias anteriores, voltara a ouvir todas as mensagens

de hipercomunicação armazenadas automaticamente por

sua estação receptora. Com isso adquiriu uma visão de

conjunto dos acontecimentos que se desenrolaram no

interior e no exterior do Império Arcônida. O cérebro

robotizado, que governava o Império, conseguira

restabelecer a paz e a ordem. E a paz reinante no Império

era respeitada tanto pelos aras quanto pelos saltadores.

Ninguém mais falava da Terra destruída. E também um

certo Perry Rhodan, que em certa época representara um

perigo imenso para o Império, estava totalmente esquecido.

Rhodan sorriu e esticou o corpo. Os campos

gravitacionais embutidos na banheira faziam com que

levitasse sobre a superfície da água verde-azulada. O

líquido brincava em torno do corpo, deixando livre apenas a

cabeça. Rhodan boiava sem executar o menor movimento,

gozando em cheio as delícias do banho gravitacional.

A perspectiva do voo para Tolimon não o deixava nada

satisfeito.

Já não tinha motivo para temer sua redescoberta pelo

Império Arcônida, mas estava interessado em adiá-la até o

momento em que conhecesse o segredo do prolongamento

da vida. Por isso teria de usar um disfarce durante a visita a

Tolimon.

Na sala de controle soou uma campainha e logo se

ouviu um zumbido penetrante.

Rhodan fez alguns movimentos de natação e saiu da

banheira. O jato de ar quente enxugou seu corpo dentro de

poucos segundos. Vestiu um robe e desceu até a sala de

controle. Pelos instrumentos constatou que uma pequena

nave circulava em torno de Hellgate e procurava entrar em

contato com sua estação.

Seria Gucky?

Dali a um minuto, a tela iluminou-se, mostrando o rosto

sorridente de Gucky em tamanho natural, a começar pelas

orelhas superdimensionadas, a testa enrugada, os olhos fiéis

e o dente roedor reluzente. Enfim, a gola verde do uniforme

espacial.

— Olá, chefe! Posso pousar?

Rhodan sacudiu a cabeça, num gesto de recriminação.

— Você está com sorte, pois por uma questão de

precaução desliguei o dispositivo de defesa automático. Se

não fosse assim, não encontraríamos mais nada de você.

— Você não me esperava?

Rhodan suspirou.

— Sua leviandade chega a ser lendária, Gucky. Pois

bem, pode pousar. A barreira visual foi desativada; você

Page 81: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

81

não terá a menor dificuldade em encontrar a cúpula. Ligue

os campos gravitacionais, para que a nave possa ser

introduzida. Vou abrir a comporta.

Voltou a cumprimentar o rato-castor e desligou a

instalação. Vestiu-se rapidamente, colocou o traje

pressurizado e foi até a comporta do hangar, onde estava

guardada sua nave. Dali a dois minutos pisava a areia

escaldante do planeta infernal. O aparelho de refrigeração

de seu traje espacial reduziu a temperatura a um nível

suportável.

Gucky estava pousando.

— Fique na sala de comando! — pensou Rhodan com a

maior intensidade. Sabia que o rato-castor, que era telepata,

não teria a menor dificuldade em captar e decifrar seus

impulsos mentais. — Ligue os campos. Levarei a nave para

dentro da comporta.

Gucky compreendeu imediatamente. A Koos-Nor

perdeu seu peso, tornando-se mais leve que uma folha de

papel. O raio de tração de matéria permitiu a Rhodan que

levasse a nave de trinta e cinco metros de comprimento

para o interior da comporta, fechasse a escotilha, fizesse

entrar o ar e a colocasse no hangar. Enquanto saía do

levíssimo traje espacial, a pequena escotilha oval da nave

abriu-se e Gucky, com um único salto, colocou-se nos

braços de Perry.

— Estou tão feliz em revê-lo, chefe — chilreou num

tom que quase chegava a ser carinhoso e enlaçou o pescoço

de Rhodan com os braços fininhos. — Trago lembranças de

todos, especialmente de Betty.

— Está bem, pequeno — disse Rhodan comovido e

acariciou o amigo. Havia uma estranha amizade entre o

homem mais poderoso do sistema solar e o “animal”

peludo, que, além de possuir a inteligência de um homem

superdotado, era o mais versátil dos mutantes. — Também

estou feliz por tê-lo comigo.

— Você bem que poderia ter-me chamado mais cedo.

— Acontece que só agora surgiu a necessidade, e nem

sempre podemos dar atenção aos nossos sentimentos.

Trouxe tudo que eu pedi?

— Não faço a menor ideia. Quem cuidou disso foi

Betty.

— Nesse caso deve estar tudo certo. Mais tarde daremos

uma olhada. Vamos até a sala de comando. Ali, lhe

explicarei os meus planos. Mas desde logo posso adiantar

uma coisa: será um trabalho muito perigoso.

— Que bom! — disse Gucky com um sorriso e saltou

para o chão. — Já me chateei bastante na Terra e em Vênus.

— Você ficará admirado — disse Rhodan com um

sorriso e envolveu seus pensamentos com uma barreira,

para que Gucky não pudesse ler os mesmos. Embora ele

mesmo possuísse uma capacidade telepática muito

reduzida, já percebera a curiosidade do amigo. Chegaram à

sala de controle semicircular da cúpula e sentaram.

— Preste atenção, meu caro — principiou Rhodan. —

Você já sabe que John e Laury foram enviados para

Tolimon a fim de tirar dos aras o segredo do elixir da vida.

Conseguiram uma garrafa do líquido, mas estão em

dificuldades. Não sei o que aconteceu, mas sei que

precisam do meu auxílio. Aliás, você levou muito tempo

para chegar aqui.

O rato-castor fez a cara mais inocente do mundo.

— Betty disse que você só precisava de mim após

decorridas dez horas. Por isso voei mais devagar que a luz e

realizei apenas três transições. Não quis chegar antes da

hora.

— Quer dizer que Betty levou muito ao pé da letra a

minha indicação de que não precisava de mais de seis dias.

Não disse que preferiria que fossem quatro ou cinco. Bem,

o que passou, passou. De qualquer maneira, você está aqui.

Podemos começar.

— Começar com quê?

— Com os nossos preparativos. Vamos mascarar-nos.

Você não. É claro, pois isso não adiantaria nada. Por aqui

ninguém o conhece. Dificilmente alguém o ligará à minha

pessoa. Quanto a mim, farei o papel de arcônida, mais

precisamente, o de inspetor.

— Inspetor? — perguntou Gucky, arregalando os olhos

de espanto.

— Isso mesmo: de inspetor. Pelas mensagens do

cérebro robotizado de Árcon captadas por nossa estação

soube que o mesmo envia a espaços regulares inspetores

aos diversos mundos do Império, para verificar se está tudo

em ordem. Todo o poderio de Árcon está atrás desses

funcionários. Quer dizer que, se eu aparecer em Tolimon na

qualidade de inspetor, todas as portas se abrirão diante de

mim, e as pessoas me tributarão o devido respeito. Nos

últimos seis decênios, o prestígio dos arcônidas voltou a

crescer. Ao que parece, a raça degenerada voltou a

recuperar-se. Seja como for: você trouxe o equipamento de

que preciso para mascarar-me.

— E eu?

Rhodan exibiu um sorriso matreiro.

— Tolimon é um mundo todo especial, meu caro.

Costuma ser designado como o zoo da Galáxia. Ali

colecionam-se principalmente seres semi-inteligentes, que

já ultrapassaram a fase animalesca, mas não podem ser

considerados como inteligências plenamente desenvolvidas.

Donde se conclui que em Tolimon você despertará mais

interesse que eu.

— Eles se interessarão por mim? — chiou Gucky, que

teve um terrível pressentimento. — Quer dizer que... Essa

não! Você não poderá exigir que eu me preste a um papel

destes.

— Por que não? Para todos os efeitos, eu serei o

poderoso inspetor de Árcon, enquanto você será um ser

peludo inofensivo e de pouca inteligência, que me serve de

criado. Verá como os aras se interessarão por sua pessoa.

Você representa a peça que falta em seu zoológico. Por isso

mesmo darão menos atenção à minha pessoa.

— Está bem. Mas será que eu terei que assumir o papel

de idiota? Para falar com franqueza, não estou gostando da

ideia.

Page 82: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

82

— Pouco importa que você goste ou não, Gucky. A

coisa é muito séria, pois não sabemos o que aconteceu com

Marshall e Laury. Talvez se encontrem em grande perigo.

Se aparecermos por lá, a atenção dos aras será desviada

deles. E você desviará sua atenção da minha pessoa. Se tem

qualquer dúvida em fazer o papel de idiota, é bom que se

lembre de uma coisa: só a criatura verdadeiramente

inteligente não se importa de parecer mais tola do que

realmente é. Já o tolo sempre quer aparentar uma

inteligência maior que a real. Isso decorre da própria

natureza das coisas.

Gucky inclinou a cabeça.

— Isso é um trecho de filosofia terrana que já conheço.

Mesmo assim, a perspectiva de fazer o papel de animal

doméstico não é nada agradável.

— Meu animal doméstico e meu criado pessoal —

completou Rhodan. — Afinal, sou um arcônida

extravagante, riquíssimo. Não seja um desmancha-prazeres,

Gucky. Se você não quiser entrar no jogo, terei de

arrepender-me de querer justamente você.

— Por que não leva Bell? Este não precisa fingir para

fazer o papel do idiota — Gucky sorriu com a lembrança,

mas seu rosto logo voltou a ficar sério. — Está bem, vamos

ao trabalho. Quando decolaremos com destino a esse

estranho planeta zoológico?

— Exatamente dentro de dez horas. É o tempo

necessário aos nossos preparativos. Ainda lhe fornecerei

instruções mais detalhadas.

— O que aconteceu com Marshall e Laury?

— Pelas últimas notícias que recebemos deles,

conseguiram uma amostra do soro e se encontram numa

situação extremamente perigosa. É só o que sabemos. É

possível que a falha seja do emissor, mas o súbito silêncio

pode ter outros motivos. Não demoraremos, a saber.

Gucky endireitou o corpo. Em seus olhos castanhos

ainda havia um restinho de recriminação, porém já

revelavam certa alegria pelo que estava por vir.

Quem sabe se a aventura afinal não seria muito

divertida...

* * *

O sinal de despertar ressoou pela cúpula de aço.

As dez horas haviam se esgotado. Rhodan e Gucky

tiveram um sono breve, mas reparador. Estava tudo

preparado. A missão “mascarada” poderia ter início.

— Os inspetores de Árcon sempre costumam voar em

iates de luxo? — indagou Gucky, alisando o pelo castanho.

— Aliás, sem o uniforme e o radiador de impulsos tenho a

sensação de estar nu.

— Um animal estúpido tem que andar nu — ponderou

Rhodan e deu uma piscadela. — E você é muito estúpido.

Nunca se esqueça disso!

— Isso é uma injustiça que clama aos céus, chefe. Você

tem de prometer que ninguém saberá das circunstâncias em

que estamos executando esta missão; especialmente Bell.

Sabe lá o que eu terei de ouvir se ele souber?

— Isso fica entre nós — tranquilizou-o Rhodan. — Até

mesmo Marshall dificilmente perceberá qualquer coisa,

pois assim que o tivermos encontrado, nosso papel

praticamente terá chegado ao fim. Tudo pronto para a

decolagem?

Gucky confirmou com um gesto distraído. Não se

fartava de contemplar Rhodan, que envergava um uniforme

dourado cheio de insígnias. A estatura esbelta de Rhodan

fazia com que o mesmo se assemelhasse com os arcônidas

das velhas famílias dominantes. O branco dos seus olhos

brilhava num tom avermelhado, graças a uma tintura de

ótima qualidade, e o cabelo branco não permitia a menor

dúvida de que se tratava de um arcônida de boa cepa.

— Tudo pronto! — chiou o rato-castor, acomodando-se

no assento do copiloto, ao lado de seu amigo e senhor. —

Por mim, podemos começar.

— É o que vamos fazer — disse Rhodan e pôs as mãos

nos controles.

A Koos-Nor, que já se encontrava fora da cúpula,

ergueu-se levemente e subiu devagar. Rhodan estudara

detidamente a planta de construção do iate, o que lhe

permitia conhecer os menores detalhes da pequena nave. A

direção da mesma era relativamente simples.

Preferiu não realizar um voo prolongado com

velocidade inferior à da luz. Ligou o compensador

estrutural e com um salto colocou a nave bem no meio da

Via Láctea. Um segundo impulso colocou-a perto de

Árcon. Uma vez chegado lá, girou-a, desligou o

compensador que o protegia da localização e saltou de volta

em direção a Tolimon.

Qualquer pessoa que acompanhasse o voo pelos

rastreadores estruturais teria a impressão de que a nau se

aproximava da estrela de Revnur, vinda de Árcon. Era

exatamente o que Rhodan pretendia. Queria que os aras

estabelecidos em Tolimon soubessem que alguém pretendia

visitá-los, mas não teriam tempo de realizar qualquer

investigação. A estrela de Revnur ficava a boa distância de

Árcon, podendo ser comparada a uma posição avançada do

Império. Era mesmo de supor que os habitantes de Tolimon

não fizessem muita questão de manter contatos com os

arcônidas, especialmente com um dos temidos e pouco

apreciados inspetores do Império.

A última transição levou a Koos-Nor diretamente para o

centro do sistema dos seis planetas da estrela de Revnur. O

abalo da estrutura espaço-temporal, provocado pela

rematerialização, não poderia deixar de ser percebido. Por

isso não era de admirar que, dentro de poucos minutos, se

fizessem ouvir os primeiros chamados nos receptores de

bordo.

Rhodan fez com que a nave deslizasse em direção a

Tolimon com velocidade ligeiramente inferior à da luz.

Dedicou sua atenção aos aparelhos de comunicação,

enquanto Gucky, encolhido na poltrona, fervilhava por

dentro, porque tinha de treinar o papel do animal estúpido

que, de forma alguma, correspondia à sua natureza.

— Forneça sua identificação! — soou a voz potente que

sobrepujou todas as outras. — Qual é o prefixo da nave?

Page 83: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

83

— As coisas estão começando a ficar sérias —

resmungou Rhodan e ligou o transmissor.

— Aqui fala Tristol, inspetor de Árcon — anunciou

Rhodan, esforçando-se para dar à voz um tom nasal e

arrogante. — Venho por ordem do regente de Árcon, a fim

de realizar a inspeção de rotina. Forneça as coordenadas do

pouso!

De uma hora para outra, todas as mensagens cessaram.

A identificação de Rhodan devia ter sido captada e

entendida por todas as naves. Até parecia que a surpresa

estava deixando os tolimonenses sem fala. Provavelmente o

telerretrato da nave a essa hora já estava sendo enviado para

todas as estações, e a central de identificações estaria

empenhada em localizá-la e identificá-la em seus catálogos.

Talvez o nome do inspetor, Tristol, também estivesse sendo

procurado. Se fosse assim, o azar seria deles, pois o nome

fora escolhido ao acaso. Mas devia haver muitos inspetores.

— Aqui fala a central espacial de Tolimon. Licença de

pouso concedida. Pouse no campo de Trulan. Enviaremos

um raio direcional sem telecontrole. Já tomamos todos os

preparativos para recebê-lo. Fim da mensagem.

— Vou pousar — respondeu Rhodan e desligou o

transmissor. Olhou Gucky de lado, com um ligeiro sorriso

nos lábios. — Então, o que me diz? Que tal me acha no

papel de arcônida?

O rato-castor fez uma cara como se alguém lhe tivesse

roubado a última cenoura.

— Você está se saindo muito bem como arcônida. De

qualquer maneira, está muito melhor que eu no meu papel

de estúpido. Não viverei para ver chegar o fim...

— Quanto mais estúpido você for, maior será sua

expectativa de sobreviver — explicou Rhodan, deixando

que a Koos-Nor descesse em direção ao segundo planeta.

Dali a poucos minutos teriam a decisão.

Alguns dos cientistas e líderes políticos eminentes

fizeram questão de receber o inspetor no porto espacial.

Haviam descido de seus veículos e, ao se aproximarem do

iate, formavam uma procissão colorida. Como aras e

descendentes dos saltadores, eram absolutamente

humanoides; tinham o aspecto de homens assustadoramente

magros. Seus trajes diferiam bastante. Os cientistas usavam

capas longas e brancas, do mesmo tipo das que eram usadas

pelos médicos nos planetas-hospitais. Já os políticos

preferiam os uniformes e os trajes à paisana bastante

coloridos. Ao que parecia, não havia ninguém que estivesse

armado.

Uma vez diante da Koos-Nor, ficaram parados numa

atitude de expectativa.

Rhodan observara a chegada da delegação e aproveitara

a oportunidade de pedir a Gucky que observasse os

pensamentos dos tolimonenses. Não percebeu nada além de

expectativa curiosa misturada com um pouquinho de medo,

que não tinha sua origem na consciência menos tranquila,

mas na reação perfeitamente normal de um ser inteligente

que se vê diante de uma pessoa de categoria bastante

superior.

— Não faça tolices — voltou a prevenir Rhodan e deu

uma palmadinha no traseiro muito largo do rato-castor. —

Você me seguirá assim que receber meu comando mental.

Não se esqueça de que pertence à classe das chamadas

semi-inteligências.

— Você quer que eu faça o papel do tolo, mas não quer

que faça tolices — resmungou Gucky e escorregou do sofá

para baixo. — Nem mesmo uma inteligência total

conseguiria compreender o seu raciocínio. Até logo mais!

Rhodan levantou o dedo num gesto de advertência. De

uma hora para outra o sorriso alegre desapareceu de seu

rosto. Enquanto fez a escotilha externa abrir-se,

transformou-se numa máscara de arrogância. Treinara

muito bem o seu papel.

A escada foi escamoteada automaticamente e obrigou os

tolimonenses, que se haviam aproximado demais, a dar

alguns saltos para trás. Rhodan fez um gesto quase

imperceptível em direção aos rostos voltados para cima.

Desceu os poucos degraus e viu-se no solo do planeta

Tolimon, que também costumava ser designado como o zoo

galáctico.

Sem dizer uma palavra, esperava que alguém dissesse

alguma coisa.

Um oficial com o peito cheio de condecorações

adiantou-se, fez menção de executar uma mesura e disse

num arcônida impecável.

— Bem-vindo em Tolimon, inspetor Tristol. Faremos

tudo para que sua permanência em nosso mundo seja muito

agradável, para que seu dever grave e pesado não se

transforme num fardo excessivo. Permite que pergunte

quanto tempo pretende ficar?

Rhodan lançou-lhe um olhar de desprezo.

— Isso depende das circunstâncias. Segundo consta,

surgiram algumas falhas na administração do zoológico.

Como inspetor tenho a obrigação de verificar o que

aconteceu e relatar tudo ao regente.

— Deve ter havido um engano — disse o oficial em tom

assustado e empalideceu. — Nos últimos dois decênios não

recebemos qualquer queixa. Não compreendo...

Realmente não estava compreendendo, segundo

constatou Rhodan por via telepática. Admirou-se de estar

captando os pensamentos de seu interlocutor com tamanha

nitidez. Será que Gucky estava ajudando?

— Farei uma verificação — disse, interrompendo o

oficial. Com um olhar de esguelha para as outras pessoas

que se encontravam por ali, disse: — Quem é essa gente?

Por favor, não quero muita sensação.

— Para nós, qualquer desejo do senhor é uma ordem —

apressou-se em asseverar um ara muito alto e magro. —

Acreditávamos que estaríamos correspondendo aos seus

desejos ao enviar uma delegação do governo para recebê-lo.

Assim estaríamos em condições de saber quais são os seus

desejos, e logo poderíamos satisfazê-los.

Rhodan estreitou os olhos e respondeu em tom frio:

— Quando chegar a hora, os senhores conhecerão os

meus desejos. Há outra coisa que quero deixar bem clara: a

Page 84: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

84

alguns anos-luz daqui um couraçado do regente aguarda

minhas instruções.

— O senhor não terá necessidade do mesmo — disse

um dos oficiais para agradá-lo. — Somos amigos fiéis do

Império e nada temos a recear. Permite que o levemos à sua

residência?

— Onde fica essa residência? — perguntou Rhodan em

tom arrogante.

— Na periferia da cidade de Trulan. É um palácio,

senhor...

— Não desejo nenhum palácio — disse Rhodan para

espanto da delegação. — Coloque um carro à minha

disposição, para que eu mesmo possa procurar um

alojamento. Não preciso de criado, pois trouxe o meu.

Virou-se para a escotilha e gritou:

— Gucky, venha cá!

Todos os olhares dirigiram-se para a escotilha, como se

esperassem que o regente em pessoa surgisse por lá. Mas

quem apareceu foi apenas o rato-castor, que disse com a

voz aguda:

— Quer que leve a mala, senhor?

— Naturalmente, seu animal estúpido! — respondeu

Rhodan com uma ironia insolente. — Ande depressa, para

que possa ligar a barreira automática.

Gucky desapareceu; compreendera a senha. Com alguns

movimentos da mão ativou a barreira que impediria

qualquer criatura de penetrar na nave. Além disso, o

aparelho de tele direção permaneceu em recepção. A

qualquer hora Rhodan poderia trazer a Koos-Nor para junto

de si, fosse qual fosse o lugar em que se encontrasse.

Finalmente Gucky pegou a mala pesada, aliviou a carga

por meio de sua capacidade telecinética, saiu para a escada-

passadiço e deixou-se escorregar para baixo. Atrás dele, a

escotilha fechou-se automaticamente.

— Inspetor Tristol, o senhor tem um criado bastante

estranho — atreveu-se a observar um dos cientistas. —

Nunca vimos um animal desse tipo. Ainda não o temos em

nossa coleção.

Gucky inclinou a cabeça e fez uma cara inocente e

estúpida. Era de espantar que isso lhe ficasse tão fácil.

Rhodan resolveu no seu íntimo que oportunamente o

avisaria sobre isso. Mas no momento não havia tempo para

isso.

— Vem de um planeta muito distante e completamente

isolado, que descobri por acaso em uma das minhas

viagens. Peguei um exemplar e descobri que é muito dócil.

Acredito que meu criado Gucky merece mais confiança que

qualquer outro criado, ou mesmo um robô.

— Tem alguma faculdade especial? — perguntou um

dos aras em tom curioso.

— Não, mas é muito discreto e fiel — disse Rhodan. —

Agora gostaria de receber meu carro. Amanhã poderemos

conversar.

Olhou em torno e a algumas centenas de metros de

distância descobriu um veículo. Tinha um formato estranho.

Mantinha-se equilibrado segundo o velho princípio do

giroscópio e corria sobre uma única roda situada no centro.

— Que tal aquele carro ali? — perguntou.

Um dos oficiais acenou fortemente com a cabeça e

correu em direção ao veículo estacionado. Daí a poucos

segundos, o giro parou diante de Rhodan. O oficial desceu.

— O veículo está à sua disposição, inspetor Tristol. Mas

não acha que seria preferível que um funcionário o

acompanhasse para providenciar um hotel condigno? Nesta

cidade existem muitos estabelecimentos deste tipo e sentir-

nos-emos felizes...

— Obrigado! — interrompeu Rhodan com a voz fria e

passou a mão pelos cabelos brancos, num gesto de

arrogância. — Prefiro permanecer incógnito e alojar-me no

lugar que melhor me aprouver. Amanhã entrarei em contato

com os senhores.

Cumprimentou o grupo com um ligeiro aceno de cabeça

e dirigiu-se a Gucky:

— Coloque a mala no carro. Ande logo!

Gucky ficou furioso.

“Se as coisas continuarem assim, eu quero que você vá

para o inferno”, pensou. Mas obedeceu.

Pegou a mala e colocou-a na cabine situada atrás do

assento do motorista. Depois segurou a porta do veículo,

para que Rhodan pudesse entrar. Quando viu Rhodan

sentado junto aos controles bastante simples, entrou

desajeitadamente.

Enquanto se afastavam, Rhodan procurou examinar os

pensamentos dos membros da delegação. Desta vez Gucky

funcionava oficialmente como estação retransmissora, que

reforçava os impulsos mentais. Teve uma alegre surpresa

que apenas um dos oficiais se interessava por ele.

Os demais se espantavam sobre o animal tão dócil, que

o pretenso inspetor transformara em criado.

— Gucky — disse com um sorriso de mofa para o rato-

castor, que se acomodara, muito contrariado, junto à mala,

na parte traseira do veículo. — Você tem uma carreira

bastante promissora. Há esta hora sua fama já é maior que a

minha. Se não estou enganado, os tolimonenses estarão

dispostos a pagar um ótimo preço por você. É bem possível

que consiga fazer um bom negócio.

Gucky não respondeu.

Olhou tranquilamente pela janela e, num processo

heroico de autossugestão, pensou com toda força:

“Você tem que permanecer calmo, muito calmo, meu

Gucky. Não se exalte. Rhodan não sabe o que está dizendo.

Perdoe-lhe. Fique calmo, muito calmo.”

Depois de ligeira pausa mental, tornou a pensar:

“Se eu estourar, deuses do Universo perdoem se eu

sujar este carro...”

— Chega! — disse Rhodan, que evidentemente não

poderia ter deixado de perceber os pensamentos de Gucky.

— Até agora tudo deu certo. O resto será simples, se

conseguirmos encontrar Marshall.

— Isso mesmo — dignou-se Gucky a dizer. — Se

encontrarmos...

Page 85: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

85

Graças à sua situação periférica, o planeta Tolimon era

o ponto de partida de numerosas expedições intergalácticas,

e por isso constituía um lugar de transbordo de primeira

ordem. As fabulosas instalações do gigantesco zoológico

atraíam visitantes de outros sistemas solares, e membros de

todas as raças se haviam fixado definitivamente em Trulan,

para passar o resto da vida num dolce far niente.

Por isso mesmo a capital Trulan transformara-se num

verdadeiro cadinho, inclusive em matéria de arquitetura das

construções.

Rhodan teve dificuldade em orientar-se nessa confusão

de surpresas arquitetônicas. Orientava-se principalmente

pelos pensamentos dos transeuntes, que praticamente não

davam a menor atenção ao seu veículo. Provavelmente os

aras, que o haviam cumprimentado no porto espacial, ainda

não haviam anunciado oficialmente a sua chegada.

Rhodan bem que gostava que fosse assim.

Chegaram mesmo a pará-lo e pedir seus documentos.

Quando o policial lançou um olhar para as credenciais

muito bem imitadas e só então viu o uniforme espalhafatoso

do inspetor arcônida, por pouco não abre um buraco no

chão e some. Desculpou-se com um palavreado profuso e

ofereceu sua assistência. Rhodan afastou-o com um gesto e

voltou a colocar seu veículo em movimento. Pouco lhe

importava que naquele momento quase atropela o oficial.

Num lugar afastado da rua principal, encontraram um

hotel tranquilo, meio escondido e próximo a um parque.

Rhodan alugou dois quartos. Fez um depósito vultoso e deu

ordem para que sua permanência no hotel ficasse em

segredo. Supunha que no mesmo instante o governo

descobrisse seu paradeiro, mas isso pouco lhe importava.

Importava-se apenas que os aras supusessem que não fazia

questão de recepções oficiais, preferindo realizar suas

investigações com a maior discrição.

Uma vez no quarto, Gucky deixou cair a mala.

— Quer que lhe diga uma coisa, chefe? Para mim esse

negócio já está fedendo!

Suspirando de satisfação, Rhodan deixou-se cair numa

poltrona macia que ficava junto à janela, permitindo uma

boa visão sobre a cidade.

— Fedendo por quê? Acho que o papel lhe fica muito

bem. E eu como inspetor não me estou saindo nada mal...

— Acho que temos uma missão séria a cumprir. Onde

está Marshall? O que aconteceu com ele e Laury?

Rhodan acenou calmamente com a cabeça.

— Então? Você acredita que já teríamos chegado mais

longe se tivéssemos pousado aqui sem máscara e sem que

estivéssemos devidamente preparados? Ninguém deve

saber antes da hora que a Terra, há tanto tempo esquecida,

ainda existe. Se usássemos a força para salvar nossa gente,

toda a Galáxia ficaria sabendo. Por isso só podemos

recorrer à astúcia.

— Astúcia para cá, astúcia para lá — queixou-se Gucky

e sentou sobre a mala, pois tinha preguiça de subir na outra

poltrona. — Já estou enjoado de bancar o idiota. Afinal, sou

muito mais inteligente do que qualquer desses talismãs

poderia supor...

— Eles se chamam de tolimonenses — retificou

Rhodan.

— Está bem, está bem! — disse Gucky. — De qualquer

maneira, já constatei num desses capas-brancas do

espaçoporto a intenção de raptar-me e enfiar-me no

zoológico. Quer que me conforme com uma coisa dessas?

— Excelente! — disse Rhodan. Parecia muito satisfeito.

— Era exatamente o que eu queria. Estão começando a

interessar-se por você e a esquecer minha pessoa. Alguém

poderia ter a ideia de entrar em contato com Árcon para

colher informações sobre o inspetor Tristol. Mas isso

dificilmente acontecerá se julgarem que você é mais

importante que eu.

— Eu vou para o zoológico? — perguntou Gucky em

tom indignado, mas finalmente soltou um suspiro. — Está

bem; concordo. Mas quando vamos iniciar a busca?

— Seria preferível perguntar por onde vamos começar.

Não disponho de qualquer ponto de referência. Estavam nas

montanhas, mas é perfeitamente possível que a esta hora já

se encontrem na cidade de novo. Se o transmissor de

Marshall estiver quebrado, teremos de tentar a via

telepática. Emitiremos chamados a intervalos regulares e

concentraremos a mente para captar uma eventual resposta.

Dessa forma não poderemos deixar de localizar Marshall e

Laury.

Alguém bateu na porta. Rhodan lançou um olhar rápido

para Gucky. O rato-castor sacudiu os ombros num gesto de

resignação, saltou de cima da mala e correu em direção à

porta. Ao abri-la, fez uma mesura.

Do lado de fora, estavam dois aras.

Um deles usava os trajes nobres das classes abastadas,

enquanto outro envergava um uniforme. Assustaram-se

quando viram o rato-castor, mas quando viram a atitude

submissa de Gucky logo se controlaram.

— O que houve? — disse Rhodan com uma forte dose

de desprezo, — Quem se atreve a perturbar meu descanso

tão merecido?

Já sabia, mas evidentemente os aras nunca deveriam

saber que ele lia seus pensamentos.

— Soubemos que um inspetor de Árcon está em nosso

planeta para verificar se está tudo em ordem — principiou o

ara uniformizado e adiantou-se um passo. — Pensamos que

fosse uma boa oportunidade de denunciar algumas das

injustiças que costumam ser praticadas em Tolimon. Meu

superior, o cabo Koplad, trabalha para seu próprio bolso,

negligenciando seus deveres para com Árcon. Minha

promoção, que já está muito atrasada, vem sendo adiada

constantemente, porque todos sabem que sou amigo de

Árcon. Além disso...

— Não fiz todo o caminho de Árcon para cá para

resolver ninharias desse tipo — interrompeu-o Rhodan, que

2

Page 86: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

86

olhava pela janela com uma expressão de tédio no rosto. —

E o senhor?

O oficial recuou perplexo e deu lugar ao outro. O

paisano bem vestido perdera parte de sua autoconfiança. Já

não parecia tão convencido da justiça de sua causa. Muito

embaraçado, ora se apoiava num pé, ora noutro.

— Senhor — principiou em tom pouco seguro.

— Então? — perguntou Rhodan com a voz impaciente.

— O assunto é importante? Seus problemas pessoais não

me interessam, e não estou disposto a imiscuir-me nos

assuntos internos de Tolimon. Fale somente se quiser

denunciar falhas políticas de muita gravidade.

O paisano sacudiu a cabeça; parecia assustado.

— Desculpe se o incomodamos senhor. O assunto não é

tão importante assim. Desejamos-lhe uma longa vida,

senhor.

Quando a porta voltou a fechar-se, Gucky sacudiu a

cabeça.

— Veja só! Tenho de fazer mesuras diante de idiotas

desse tipo, apenas porque sou seu criado. Não sobreviverei

a isso. Quem dera que já estivesse morto!

Rhodan demorou em responder. Inclinou ligeiramente a

cabeça e concentrou-se com os olhos fechados. Voltou a

abri-los e fitou o rato-castor com uma expressão séria.

— É possível que seu desejo se cumpra — disse com a

voz baixa. — Num lugar não muito distante, provavelmente

no hall do hotel, há algumas pessoas que pretendem

capturá-lo. Querem narcotizá-lo e levá-lo ao zoológico.

Estão cumprindo ordens de uma autoridade bastante

elevada. Se você oferecer resistência, ou se chegarem à

conclusão de que é uma criatura perigosa, esses homens

têm plena liberdade para matá-lo. Conforme vê, seu desejo

de uma morte rápida está a caminho da realização.

Nos minutos anteriores, Gucky concentrara-se

exclusivamente no seu papel de retransmissor, motivo por

que não percebera o atentado que se planejara contra sua

vida e liberdade.

Recuperou o tempo perdido e pôs-se a esbravejar:

— Pretendem capturar-me como se fosse um animal

selvagem! E querem fazer uma coisa dessas logo comigo, o

criado pessoal do venerando inspetor de Árcon! Não é uma

atitude incompreensível. Será que posso... será que posso

dar uma lição nesses caras, chefe? Eles merecem, não acha?

— Não há dúvida de que merecem. Mas como é que

você poderia conhecer seus planos se não fosse um

telepata? Receio que terá de esperar até que eles traiam suas

intenções. Vamos ver se conseguimos localizar Marshall.

Os domadores de animais terão que ficar para depois.

— Domadores de animais? — resmungou Gucky em

tom zangado, saltou para a cama de lençóis brancos, deitou

e cruzou os braços embaixo da nuca. — Se Bell souber

disso, nunca mais terei um minuto de descanso. Este é o

planeta da vergonha.

— Não se preocupe com os bobalhões que caíram na

nossa conversa. É preferível que me ajude a procurar

Marshall, Laury e Berceo. E, se estiverem pensando,

devemos ser capazes de captar os impulsos de seus

cérebros.

— Será que esse esquisitão chamado conde Rodrigo de

Berceo também pensa?

Por um instante, uma sombra tomou o lugar do sorriso

de Rhodan, mas finalmente este acenou lentamente com a

cabeça.

— Acredito que sim, embora receie que não pense em

outra coisa senão em nossa boa Laury. Foi justamente isso

que nos meteu na situação que estamos enfrentando.

— Está certo, está certo — filosofou Gucky. Tinha um

aspecto temível. — O amor é culpado de tudo. Nunca me

apaixonarei.

— Não sei em quem você poderia apaixonar-se —

observou Rhodan.

O rato-castor não fez mais nenhum comentário. Passou

a concentrar-se na tarefa de localizar as vibrações mentais

de Marshall.

* * *

Rhodan fechou os olhos, descontraiu-se e reclinou-se na

poltrona. Concentrou-se sobre os impulsos que estava

captando, mas logo se deu conta de que só mesmo uma

coincidência pouco provável poderia levá-los ao objetivo.

Sentiu-se como um radioamador que procura localizar o

transmissor de seu parceiro entre milhares de outros, e isso

sem qualquer código.

Era impossível calcular o número de impulsos mentais

que se contavam pelos milhares ou dezenas de milhares e,

muito mais, identificá-los.

Em compensação Gucky conseguiu descobrir outras

coisas, não menos interessantes. Os impulsos eram muito

intensos e ocupavam-se principalmente com sua pessoa.

Pela força, concluía-se que o autor dos respectivos

pensamentos já devia encontrar-se no hotel.

— Estão chegando — disse Gucky. Rhodan arregalou

os olhos de espanto, mas limitou-se a fitar o amigo de lado.

Seus pensamentos tateavam muito ao longe, sem que

tivessem encontrado o menor vestígio de Marshall ou

Laury.

— Quem está chegando?

— Ora, esses sujeitos que querem enfiar um inocente

rato-castor em seu zoológico. Farei com que voem pela

janela, mesmo que se disfarcem em funcionários do

governo.

Rhodan já estava captando os mesmos impulsos.

— Você não vai fazer nada disso, meu caro. Será que

você assume algum risco se deixar que o surpreendam?

Não! Pelo contrário; acho que isso nos poderá ser muito

útil. Talvez dessa forma você descubra alguma coisa a

respeito de Marshall. Afinal, sempre podemos permanecer

em contacto, e se surgir qualquer perigo você poderá

recorrer à teleportação. Como vê nada lhe pode acontecer.

— Nada, absolutamente nada — confessou Gucky em

tom contrariado. — Mas não é disso que se trata.

— Então, qual é o problema?

— É a vergonha que vou passar. Eu, que sou o mais

Page 87: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

87

inteligente dos ratos-castores, tenho que ser mais tolo do

que a polícia permite. Ao menos, a polícia terrana. É

possível que por aqui as condições sejam diferentes, mas

um tolo sempre é um tolo.

— Quem consegue alguma coisa fingindo-se de tolo é

mais inteligente que as pessoas enganadas.

O rato-castor engoliu um bolo imaginário.

— Você tem um torrão de açúcar para qualquer

remédio, por mais amargo que seja — disse. — Mas quero

que me prometa que Bell nunca ficará sabendo disso.

— Já prometi — confirmou Rhodan.

— Está bem. Os aras não voarão, mas vão capturar o

idiota do rato-castor que estão seguindo. Daqui a pouco,

deverão chegar. Aliás, estão com um medo tremendo de

você.

— Não é de admirar. Estão pensando no couraçado que

posso chamar a qualquer momento. O regente robotizado

deve ter tomado medidas muito enérgicas nos últimos 56

anos. Só assim posso explicar o medo que essa gente tem

de Árcon.

— Já chegaram! — cochichou Gucky, e acrescentou por

via telepática: — E agora, senhoras e senhores, terão a

oportunidade de ver Gucky, a estrela de fama mundial, no

papel do idiota. O show vai começar.

Realmente começou.

Alguém bateu à porta. Rhodan voltou a exibir sua cara

pretensiosa de arcônida, fez um gesto preguiçoso para

Gucky e disse de maneira suficientemente alta para ser

ouvido do lado de fora.

— Gucky, dê uma olhada para ver quem se atreve desta

vez a perturbar meu sossego. Ao que tudo indica, Tolimon

é um planeta muito tumultuado, ou então estão ansiosos

para que eu inicie imediatamente as minhas investigações.

Gucky arrastou-se até a porta, fez uma cara

desavergonhadamente ingênua e abriu. A mesura que

executou foi muito esquisita. Três homens entraram no

recinto. Não deram a menor atenção ao rato-castor, embora

seus pensamentos girassem exclusivamente em torno do

mesmo. Adiantaram-se alguns passos e pararam diante de

Rhodan. Inclinaram-se num gesto de veneração.

— Pedimos muitas desculpas — disse o homem do

meio, puxando o paletó colorido numa atitude de embaraço.

— Talvez estejamos sendo importunos, mas...

— Não os chamei; logo, só podem ser importunos —

confirmou Rhodan numa tranquila arrogância, que

provavelmente teria causado pavor em qualquer dos seus

amigos. Gucky continuava a fazer mesuras, para que

ninguém pudesse ver seu rosto risonho.

— Trata-se... trata-se dum convite do governo —

prosseguiu o ara, que parecia mais assustado que

embaraçado. — Hoje será realizada uma recepção de gala

para o alto inspetor de Árcon. Queremos pedir sua

presença.

Rhodan examinou os pensamentos da pessoa que lhe

dirigira a palavra e descobriu a intenção de sequestrar

Gucky enquanto estivesse ausente do hotel. Um comando

especial de captura já estava a caminho. Reclinou-se

ligeiramente e fez como se tivesse que refletir.

— O chefe do governo também comparecerá à

recepção? — indagou.

— Naturalmente, meu senhor. Foi ele que deu a ideia, e

sentir-se-á muito honrado se o senhor quiser participar da

recepção.

— Quando será?

— Bem... naturalmente virão buscá-lo, meu senhor.

Logo após o pôr do sol.

— Muito bem. Comparecerei. E meu criado?

O ara parecia assustado.

— Seu criado? O que quer dizer com isso?

— Também está convidado?

— É claro que não. Só personalidades de categoria

elevada comparecerão à recepção. Ninguém levará seu

criado.

— Ah, sim. Nesse caso meu criado ficará no hotel.

Os três enviados conseguiram dominar-se muito bem.

Não fizeram nenhum gesto que pudesse revelar o

contentamento provocado pela decisão que Rhodan acabara

de anunciar. Em compensação, os pensamentos recônditos

deles eram dos mais triunfantes.

Gucky, que se mantinha junto à porta, parecia ter

esquecido seu triste papel. O rato-castor percebeu que tinha

de esforçar-se para manter o dente roedor sob controle e

reprimir a alegria que a brincadeira começava a causar-lhe.

Afinal, não era todos os dias que capturavam “pessoas”

para fins de internamento num zoológico. Ao que tudo

indicava, já se esquecera do aborrecimento que essa

perspectiva lhe causara dez minutos antes.

— O carro chegará pontualmente — disse o ara que se

encontrava no centro do grupo. A seguir, os enviados

retiraram-se em meio a inúmeras mesuras, lançando um

olhar guloso sobre o rato-castor.

Gucky fechou a porta e riu baixinho.

— Hi-hi, que idiotas. Já estão me vendo na sua rede.

— E você entrará na rede deles — enfatizou Rhodan. —

Não se esqueça do que combinamos. Irei à festa, mas

ficarei apenas uma hora. Usarei uma desculpa qualquer para

despedir-me e voltarei imediatamente ao hotel. Faço votos

de que até lá os seus sequestradores tenham concluído sua

tarefa com pleno êxito. Permaneceremos em contato.

Naturalmente darei pela sua falta e darei o alarma. Vejamos

o que acontece depois disso.

— O que pode acontecer? Aquela gente não saberá de

nada e procurará inventar uma desculpa.

— Em compensação acho que você ficará sabendo de

alguma coisa. Talvez você entre em contato com as mesmas

pessoas que perseguiram Marshall e talvez tenham chegado

a capturá-lo.

— Veremos — disse Gucky. — Apenas quero avisar

uma coisa. Se tentarem trancar-me numa jaula, darei o fora.

— Talvez você possa dar o fora antes disso, Gucky.

Tudo depende das circunstâncias.

— Hum — fez o rato-castor e subiu para o sofá

Page 88: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

88

baixinho que se encontrava num canto. — Veremos. De

qualquer maneira hoje você terá o mais tolo dos ratos-

castores de todo o Universo.

— Faço votos de que seja assim — disse Rhodan com

um sorriso e voltou a esforçar-se para localizar Marshall e

Laury Marten.

* * *

Depois de Rhodan ter saído, Gucky viu-se só e começou

a preparar-se para a aventura que o esperava. A rigor, não

via no acontecimento uma aventura, mas antes uma

brincadeira, no que não deixava de ter sua razão. A

expedição de captura não lhe traria maiores perigos, desde

que se mostrasse bastante submisso e estúpido.

Os primeiros impulsos surgiram menos de dez minutos

depois. O sequestro sem dúvida fora bem preparado e

estava sendo realizado com o consentimento dos escalões

mais elevados do governo, o que não era de admirar. Para

os aras estabelecidos em Tolimon não havia problema mais

importante que a obtenção de seres vivos adequados às suas

experiências. O zoológico desempenhava uma função

puramente de acessório, pois se destinava como atração e

ponto de encontro de turistas que trouxessem dinheiro.

Cinco homens exibiram suas credenciais ao dono do

hotel. Gucky seguiu a palestra com o maior interesse e

voltou a certificar-se de que a porta não estava trancada.

Subiu ao sofá e estendeu-se confortavelmente sobre o

mesmo, agindo exatamente da forma como um criado

costuma agir quando o senhor não está em casa. Ao menos

muitos criados costumavam agir dessa forma.

Fechou os olhos e fez de conta que estava dormindo.

Os cinco homens pararam diante da porta e prepararam-

se para arrombar a fechadura caso a vítima não se

dispusesse a abrir. Mas um deles fez uma tentativa e

constatou que a porta não estava trancada.

— Que animal ingênuo! — cochichou e foi entrando. —

Para mim não serviria como criado; é muito leviano e

estúpido.

“Você verá uma coisa!”, pensou Gucky e continuou a

fazer de conta que dormia profundamente. “Não tenha a

menor dúvida! Basta esperar.”

A alegria que a perspectiva lhe causava fez com que se

empenhasse ainda mais na execução do seu papel. Esperou

calmamente que os cinco homens entrassem e fez de conta

que estava acordando. Piscou os olhos castanhos, abriu-os

de vez e contemplou os intrusos com uma expressão de

espanto. Viu que um deles carregava um radiador de

impulsos, que era um artefato mortífero. Contavam com

alguma resistência. Bem, estavam enganados.

— Boa noite — disse Gucky com a voz aguda. —

Infelizmente meu senhor, o alto inspetor, saiu. Posso ser-

lhes útil em alguma coisa?

Um dos captores de animais foi à porta e saiu para o

corredor. Um instante depois voltou com uma caixa

gradeada. Um sorriso gentil brilhava em seu rosto

astucioso.

— Não queremos falar com seu amo — disse em tom

suave. Provavelmente estava interessado em captar a

confiança de Gucky. — Apenas queremos pedir que venha

conosco.

— Para onde? — perguntou Gucky com a cara mais

inocente do Universo. — Não posso sair do hotel sem

licença de meu dono.

— Seu dono já foi avisado — disse outro dos aras com

ligeira recriminação na voz. — É claro que concorda em

que você seja apresentado ao Conselho Científico de

Tolimon, que nunca teve oportunidade de examinar um

animal inteligente como você.

— Querem levar-me numa jaula? — disse Gucky,

apontando com cara de nojo para a caixa gradeada. —

Acham que sou alguma fera?

— Bem... é... é por causa do povo — gaguejou outro e

adiantou-se rapidamente, para segurar o “objeto de

experiências” tão cobiçado, pela nuca. — Não queremos

que seja molestado.

Gucky esforçou-se para não explodir. Em condições

normais, aquele sujeito desavergonhado teria sido atirado

para o teto por meio da energia telecinética. Mas nada lhe

aconteceu. Um tanto assustado e totalmente desorientado, o

rato-castor ficou agachado sobre o sofá e não ofereceu a

menor resistência quando foi levantado.

— É um lindo exemplar — disse um dos homens e

abriu a caixa. — Enfie-o logo nesta jaula, antes que mude

de ideia. O inspetor acreditará que saiu e se perdeu pela

cidade.

Um impulso bastante violento colocou Gucky no

interior da jaula, cuja porta logo se fechou. Os captores já

se sentiam seguros, e deixaram cair às máscaras.

— Vamos embora logo! — disse um deles em tom

apressado. — Quando esse arcônida voltar, não deverá

encontrar qualquer pista.

— Vocês não disseram que o inspetor está a par? —

chiou Gucky, fingindo-se de assustado. — Não acham que

estão me dispensando um tratamento bastante estranho?

— Cale a boca! — gritou um dos aras, o que

representou outra provação dura para Gucky. Seria fácil

libertar-se, mas não devia fazê-lo. Devia bancar o fraco, a

criatura incrivelmente estúpida. Como é que Rhodan foi

exigir uma coisa dessas?

Os homens cobriram a jaula com um pano preto e

saíram do quarto. Uma vez no corredor, foram andando

mais depressa, passaram pelo hall de recepção sem que

ninguém os detivesse e saíram à rua. Gucky sentiu que a

jaula foi colocada num carro com um movimento nada

suave. Poucos segundos depois, o veículo foi colocado em

movimento. Os homens não diziam mais nada, mas seus

pensamentos eram bastante reveladores para Gucky.

Foi levado ao Ministério Zoológico. Sabia que o zôo era

uma instituição estatal submetida a um ministério especial,

no qual trabalhavam principalmente médicos e cientistas.

Talvez também houvesse alguns psicólogos. Ali seria

examinado e interrogado, antes de ser levado para a área

Page 89: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

89

cercada.

Área cercada! Gucky sorriu, a fim de aplacar a cólera.

Para ele não havia o menor perigo, mas ficar bancando o

idiota... E logo Gucky, que sempre encontrara o maior

prazer em demonstrar sua superioridade às inteligências

humanoides. E agora se via obrigado...

Era de estourar!

A viagem foi bastante demorada. Pelos pensamentos de

seus acompanhantes concluiu que o museu ficava na área

periférica da cidade, onde esperavam realizar as

experiências necessárias sem que ninguém os perturbasse.

Ainda constatou que as intenções de quem concebera o

sequestro no fundo não eram más. Desconfiavam de que o

inspetor jamais cederia espontaneamente seu criado tão

engraçadinho, mas estavam loucos para trancafiar esse

exemplar raro e semi-inteligente no zoológico. Um rato-

castor que sabia falar seria uma verdadeira sensação. Talvez

conseguissem mesmo saber onde ficava o planeta de

origem desse animal tão estranho. Uma coluna dessas

criaturas seria...

Os aras se perdiam nas suas fantasias. Gucky bem que

estava satisfeito por estar oculto sob o pano negro. Só assim

ninguém via seu sorriso galhofeiro.

Ainda mostraria algo a eles. Logo que pudesse.

* * *

Para Rhodan não foi muito fácil acompanhar o

sequestro de Gucky enquanto conversava com os políticos

mais influentes de Tolimon. Não demorou muito. Logo se

despediu. Desculpou-se com o cansaço da viagem, dizendo

que precisava repousar. Uma vez que, naquela altura, o

comando de captura já se apoderara do rato-castor, não lhe

opuseram maiores dificuldades. O carro levou-o de volta ao

hotel.

Conforme o programa sentiu falta de seu criado e

perguntou ao pessoal do hotel se não o haviam visto. Mas

todos, inclusive o gerente, afirmavam de pés juntos que não

haviam notado nada de suspeito.

Rhodan aguardou mais trinta minutos; depois avisou a

polícia. Esclareceu que seu criado não costumava sair de

hotel sem permissão. Exigiu energicamente uma operação

de busca para localizar a criatura desaparecida.

A polícia prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance.

Era claro que estava mentindo; agia de comum acordo com

os sequestradores.

A seguir Rhodan deitou na cama, depois de ter trancado

a porta e colocado o radiador de impulsos portátil embaixo

do travesseiro.

Voltou a dedicar-se à tarefa, bastante difícil face à

potência reduzida de suas faculdades telepáticas, de

localizar os impulsos mentais de Marshall, sem esquecer o

contato com Gucky.

Naquele instante Gucky encontrava-se diante dos seus

examinadores.

* * *

A sala reluzia de limpeza.

As luzes ofuscantes embutidas no teto branco

iluminavam até o último canto, não permitindo que surgisse

qualquer sombra. Atrás da mesa em ferradura, estavam

sentados treze homens de capas brancas, que era o traje

profissional dos aras. Todos os olhares estavam dirigidos

para o pequeno prisioneiro, que os contemplava com o

rosto muito ingênuo. Nos fundos da sala dois homens

equipados com radiadores paralisantes mantinham-se à

espreita. Vigiavam a única saída da sala.

O homem que se encontrava no centro usava barba. Daí

concluía-se que era um mercador galáctico. Inclinou-se para

frente e lançou um olhar penetrante sobre Gucky.

— Você é o criado do inspetor de Árcon? — perguntou.

— Sou sim — piou Gucky, assustado, embora sua alma

estivesse fervendo. — Meu senhor lhes dirá o que acha do

procedimento de quem sequestra seu criado.

— Nós perguntamos e você responde! —

interromperam-no. — Onde aprendeu o arcônida? Será que

em seu planeta nativo falavam a língua do Império?

— Foi meu senhor que me ensinou.

— Quer dizer que sua língua não é esta?

— É claro que não. Costumamos comunicar-nos por

meio de uma série de assobios melódicos. Um tom

extremamente agudo, por exemplo, indica uma grande

excitação, enquanto um zumbido...

— E seu planeta nativo? — interrompeu o barbudo, que

não parecia estar muito interessado na linguagem de

assobios dos ratos-castores. — Você pode descrever a

situação do mesmo?

Gucky acenou com a cabeça; parecia muito seguro de si.

— Naturalmente. Um pouco à direita do saco de carvão.

— Heim? — o barbudo inclinou-se para a frente, com

os olhos arregalados. Seu rosto era de interrogação. — O

saco de carvão? O que vem a ser isso?

Gucky leu os pensamentos de seu interlocutor e

percebeu que os aras costumam designar as nuvens escuras

como poeira de absorção. Mas não tinha a menor intenção

de ajudá-los. Que quebrassem a cabeça para descobrir o

sentido da expressão terrana, que para eles era totalmente

desconhecida.

— Um saco de carvão — disse em tom solene — é um

saco de carvão. Será que me exprimi com suficiente

clareza?

O barbudo sacudiu a cabeça.

— Precisamos de dados mais exatos. Vamos apagar a

luz e mostraremos um mapa estelar visto de Tolimon. Você

nos mostrará onde fica seu planeta nativo.

A escuridão tomou conta da sala e a imagem reduzida,

mas exata, do céu estrelado, surgiu no teto. Muito satisfeito,

Gucky percebeu que as áreas escuras estavam fielmente

reproduzidas. Soltou um grito de triunfo e apontou para o

alto.

— Ali, o saco de carvão. É à direita do mesmo.

Quinze pares de olhos fitaram a projeção à procura do

saco de carvão, sem que soubessem o que era um saco de

Page 90: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

90

carvão. Mas suas reflexões logo foram interrompidas por

um assobio estridente de Gucky, que soltou uma

exclamação:

— Não, é o outro! Ali à esquerda, no canto! — depois

de uma ligeira pausa: — É possível que seja o do meio. Não

sabia que existem tantos sacos de carvão.

— Provavelmente os sacos de que você fala são as

nuvens de absorção — conjeturou cautelosamente o

barbudo. — É claro que sua raça não dispõe de qualquer

treinamento científico, mas de qualquer forma vocês

possuem certo quociente intelectual.

— O que é isso? — perguntou Gucky, levantando uma

das orelhas. — Nunca me disseram que nós temos uma

coisa dessas.

Dois ou três dos aras riram às escondidas. Houve uma

ligeira pausa, que Gucky aproveitou para pensar

intensamente:

— Ei, Rhodan. Está ouvindo? Isto não é divertido a

valer?

A resposta surpreendeu Gucky.

— Deixe de palhaçadas e procure descobrir alguma

coisa a respeito de Marshall e Laury. Use de habilidade,

formulando certas perguntas...

— Como é que um idiota como eu pode usar de

habilidade...?

Rhodan não enviou nenhuma resposta, pois o barbudo

interrompeu a palestra mental.

— Como é que você foi parar em mãos dos arcônidas?

Foram buscá-lo no seu mundo?

Gucky deixou cair a orelha.

— Quem dera que eu soubesse... Faz tanto tempo!

— Quanto tempo?

As luzes voltaram a acender-se, mas a projeção do céu

noturno não desapareceu do teto. Subitamente, a voz do

barbudo demonstrou muito interesse. Gucky percebeu que

essa seria a chance de levar os pensamentos dos

inquisidores ao tema que o interessava.

— Quanto tempo? — murmurou, fitando os olhos

dirigidos para ele com uma expressão de ingenuidade. —

Devem ser algumas centenas de anos.

— Você já é tão velho?

— Velho por quê? — perguntou Gucky com um enorme

espanto na voz. — Sou um jovem, sou um rapaz, se me

permitem essa palavra. As moças de todos os mundos que o

inspetor e eu costumamos visitar...

O barbudo não estava interessado nas moças. Tinha

outros problemas.

— Será que no seu mundo todos atingem essa idade?

— Naturalmente. Vocês não chegam aos mil anos?

O barbudo respirava com dificuldade. Arregalou os

olhos para o rato-castor. Os outros aras também pareciam

muito assustados. Seus pensamentos estavam cheios de

perguntas tão diversificadas que Gucky não pôde absorvê-

los todos ao mesmo tempo. Fazia votos de que Rhodan

estivesse escutando e ajudasse.

— Mil anos...? — o barbudo esforçou-se para aparentar

calma. — Descobriram algum elixir que prolonga a vida?

Foi a vez de Gucky mostrar-se espantado.

— Um elixir? Para quê? Mil anos bastam,

especialmente para mim, que sou um simples criado.

Depois de minha morte meu senhor, o inspetor, terá de

procurar outro criado, e depois...

— O quê? — berraram dois ou três aras ao mesmo

tempo, enquanto empalideceram visivelmente. — Seu amo

também vive tanto tempo? Não é arcônida?

Gucky sentiu que quase chegara a cometer um erro.

Esforçou-se para adquirir um aspecto ainda mais estúpido.

— O que poderia ser se não isso? — perguntou em tom

ingênuo.

O barbudo não respondeu. Pensou: “Será que

anteriormente alguém veio a Tolimon e roubou o soro, tal

qual fez esse saltador que conseguiu escapar? Ou a moça

que estava com ele? Ou será que outras inteligências

realizaram pesquisas e chegaram ao mesmo resultado?”

Gucky suspirou aliviado. Era a primeira indicação

relativa à Marshall. Acontece que, ao que tudo indicava, os

próprios aras não sabiam onde o mesmo se encontrava

naquele instante. Quer dizer que toda a encenação fora

inútil. Ou será que não?

— Você, que acompanha o inspetor para todos os lados,

tem visto muita coisa nesta Galáxia — voltou a falar o

barbudo. — Vocês costumam visitar todos os mundos do

Império e, conforme diz, vêm fazendo isso há vários

séculos. Já encontraram algum mundo habitado por

humanoides cujo grau de evolução fica no nível C?

Gucky aguçou o ouvido. O mundo ao qual se referia era

a Terra! A Terra, com a classificação que lhe caberia há

duzentos ou trezentos anos. Categoria C. Foi no século

XVII que uma das naves por acaso encontrou a Terra e

raptou alguns homens, que foram trancados no zoológico,

onde ainda viviam. Apenas o conde Rodrigo de Berceo

conseguira fugir com o auxílio de Marshall.

— Humanoides do nível de evolução C? — repetiu

Gucky e parecia refletir atentamente. Depois de algum

tempo, sacudiu a cabeça. — Não; tenho certeza que nunca

encontramos um mundo destes. Por quê? Será que este

mundo existe?

Mais uma vez não obteve resposta, mas os pensamentos

dos aras revelaram o que precisava saber.

Sim, um mundo destes já existiu, há algumas centenas

de anos. Haviam-no encontrado e por uma série de

circunstâncias infelizes as coordenadas foram perdidas.

Todavia, haviam trazido quatro exemplares daquela raça

primitiva, que receberam o soro revitalizador e foram

trancados no zoológico. Um deles fugira. Malditos

saltadores! Que interesse poderiam ter naquele prisioneiro?

Seria por causa do elixir da vida? Só pensavam em

negócios...

Não houve a menor indicação sobre o lugar em que

Marshall se encontrava no momento. Os aras haviam

perdido as pistas dos fugitivos. Parecia que tinham

desaparecido da superfície de Tolimon.

Page 91: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

91

Gucky aproveitou a pausa e “chamou” Rhodan:

— Está ouvindo, chefe? Estamos bem perto, não é? Não

podemos chegar mais perto. Já posso dar o fora?

— Nada disso, meu caro! O que pensarão esses caras se

você se dissolver no ar sem mais aquela? Aguarde outra

oportunidade.

— Está bem; vou aguardar. Mas não aguardarei muito

tempo. Prefiro procurar Marshall e Laury numa série de

saltos de teleportação que cubra todo o planeta. Antes isso

que ser considerado o maior idiota do Universo. Fim. A

coisa vai continuar...

Se Gucky pensava que poderia descobrir outra coisa,

estava enganado.

— Acho que podemos dispensar o teste de inteligência

— disse o barbudo, dirigindo-se aos colegas. — Sugiro que

seja incluído na classe C. Só falta o exame médico, que fica

marcado para amanhã. Ei, guarda! Leve o prisioneiro à

jaula.

Dirigindo-se a Gucky, acrescentou:

— Aqui você será tratado muito bem.

Com estas palavras levantou-se, dando o sinal para a

debandada geral. Não deu mais um olhar sequer para o rato-

castor e parecia tê-lo esquecido por completo. Gucky viu os

dois guardas aproximarem-se e sentiu quando o seguraram

pelos braços e o levaram. Não deu a menor atenção a isso.

Ainda notava o barbudo, que o tratara com tamanho

desprezo, vendo nele apenas um animal mais evoluído.

Pensou fazendo uma reflexão: “Quem sabe se amanhã a

situação será tão favorável, se é que ainda estarei aqui.

Uma pequena lição não lhe faria mal. O importante é que a

suspeita não caia em mim.”

O que poderia fazer? Não dispunha de muito tempo.

Gucky não era nenhum hipno; não podia impor sua

vontade a ninguém. Mas dominava muito bem a telecinese,

e com ela poderia fazer alguma coisa.

Ao lado do barbudo caminhava outro ara, que

conversava animadamente com os colegas. Subitamente

enfiou a mão no bolso. Uma expressão de espanto surgiu

em seu rosto, tirou uma tesoura e cortou a longa barba

grisalha do chefe da comissão de investigações. O

movimento foi tão rápido que ninguém pôde impedi-lo,

especialmente o homem que o executara. Também o chefe

geral ficou tão perplexo ao ver a dignidade de seus anos

cair ao chão que pisou nela antes de compreender o que

havia acontecido.

Estacou repentinamente e viu o colega desavergonhado

guardar a tesoura, após o quê, começou a tremer por todo o

corpo.

— Gragnor! — berrou com uma voz terrificante o

homem que já não era barbudo. — O que é que o senhor

está pensando? Será que ficou louco? Irei...

— Misericórdia, Kluhg! — choramingou o barbeiro

improvisado, totalmente abatido, e caiu de joelhos. — Não

sei como pôde acontecer uma coisa destas. O espírito mal

deve ter segurado minha mão e...

— Quando muito o espírito mal perturbou sua

inteligência. Está dispensado. Providenciarei para que seja

devidamente punido — a mão tateou sobre os restos da

barba. — A divisão de laboratório ficará satisfeita em

receber um novo objeto de experiências...

Virou-se de repente e saiu andando, deixando para trás

Gragnor, totalmente demolido, e os outros aras, que não

cabiam em si de espanto.

Gucky deixou que o levassem; não ofereceu a menor

resistência. Ficou com os lábios cerrados. O rosto parecia o

de um pobre pecador que está sendo levado ao cadafalso

sem reconhecer a menor parcela de culpa.

A cela era um cubículo com um banco de madeira, uma

mesa frágil e uma abertura gradeada, que devia ser o fim de

um conduto de ventilação. Quando os dois guardas

trancaram a porta do lado de fora, a luz apagou-se.

Gucky suspirou e procurou localizar Rhodan; logo

descobriu os impulsos mentais do chefe. Poucos segundos

depois, materializou-se no quarto de hotel.

— Faça o que quiser, mas não voltarei àquele buraco —

disse a Rhodan, que estava mudando de roupa. — Quero

que esses idiotas quebrem a cabeça para descobrir como fiz

para fugir.

Rhodan não se perturbou. Vestiu o pijama.

— Nem quero que você volte. Descobrimos tudo que

eles sabem. Uma coisa é certa: nossos agentes não estão em

suas mãos. Marshall e Laury devem encontrar-se em algum

lugar neste planeta ou então... estão mortos. O fato de que

não conseguimos captar nenhum pensamento deles deixa-

me bastante preocupado.

— Amanhã iniciarei a busca — prometeu Gucky e

bocejou ao ver o sofá do qual os sequestradores o haviam

retirado. — Seria ridículo se não conseguíssemos descobrir

nenhuma pista.

* * *

Depois da noite tranquila e do desjejum reforçado,

Rhodan se fez anunciar às autoridades e disse que pretendia

realizar uma inspeção na administração do zoológico.

Quando o carro chegou para levar Rhodan ao centro da

cidade, Gucky deu início à busca.

Saiu do hotel e ficou passeando pela rua, vestido apenas

na sua pele natural. Trulan era um ponto de encontro de

todas as raças da Galáxia, e por isso não era de admirar que

ninguém lhe desse muita atenção. Naquela confusão de

criaturas estranhas, o rato-castor não despertava maior

atenção que a provocada por um bassê peludo numa

exposição de cães. Havia os berenícios, que eram

quadrúpedes com corpo de inseto provido de uma

blindagem formada por placas quadráticas, que

demonstravam certa predileção pelas cores vivas; os

respiradores de cloro de Gradosima, que se moviam em

trajes espaciais fechados e tratavam os transeuntes com

uma arrogância assustadora. Gucky também se encontrou

com os gatos-panteras do sistema de Sagitário; fugiu

apressadamente, pois não sabia como os mesmos reagiriam

diante de sua figura.

Os aras e os saltadores não lhe davam a menor atenção.

Page 92: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

92

Para eles, a visão de inteligências estranhas não tinha nada

de extraordinário, e poucos deles haviam posto os olhos no

criado pessoal do inspetor.

Gucky mantinha a mente em recepção, a fim de sondar

os pensamentos de todos os seres que encontrava pelo

caminho. Encontrou muita coisa que numa situação

diferente o teria divertido bastante, mas hoje não tinha

tempo para isso. Uma única vez intrometeu-se nos assuntos

internos de Tolimon. Foi quando descobriu intenções

assassinas num ara muito robusto. O sujeito pretendia matar

a esposa. Gucky obrigou o homem, por via telecinética, a

dar uma vigorosa bofetada no oficial de patrulha mais

próximo, o que levou este a prender o ara.

Por enquanto o preso não poderia transformar suas

intenções em realidade, e quando fosse solto a raiva que

sentia pela esposa provavelmente já teria se desvanecido.

Satisfeito com a boa ação que acabara de praticar,

Gucky prosseguiu em sua caminhada.

Chegou às áreas mais pobres e começou a sentir os

pezinhos. Não tinha a menor predileção por passeios

extensos. Gostaria de teleportar-se para o telhado de uma

das casas, a fim de recuperar-se da canseira. Mas não havia

a menor dúvida de que um rato-castor voador provocaria

certo escândalo. Por isso continuou a arrastar os pés, até

encontrar lugar num restaurante.

Se Marshall dispusesse de um esconderijo na cidade,

este deveria ficar na área dos cortiços, onde seria mais fácil

mergulhar na multidão. E Marshall não poderia dispensar

um esconderijo, pois não sabia colocar-se em segurança por

meio de um salto, conforme costumava fazer Gucky.

Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas Gucky

teve sorte. Encontrou lugar junto à parede. Pediu um prato

de legumes e um suco de frutas. Só comia carne quando

alguém o obrigasse a isso.

Alguns dos frequentadores lançaram olhares curiosos

em sua direção. Já haviam visto muitas criaturas estranhas,

mas nunca se tinham deparado com um rato-castor. Gucky

respondeu com um sorriso gentil; leu apenas uma

curiosidade inocente nos pensamentos dos outros. Passou a

dedicar-se às verduras e frutas de Tolimon, que lhe

causavam um agrado extraordinário. Era outra coisa bem

diferente que as eternas cenouras, que já o deixavam

enjoado face às constantes apostas em que costumava

ganhá-las.

O sol brilhava e espalhava seus raios tépidos. Nenhuma

nuvem cobria o céu azul, que lembrava o do planeta Terra.

Por um instante Gucky esqueceu suas preocupações, até

que um incidente despertou sua atenção.

Na mesa ao lado alguns aras juntaram-se e puseram-se a

cochichar, apontando nervosamente para a rua, onde dois

transeuntes muito estranhos deviam ter despertado sua

atenção.

Gucky procurou enxergar melhor.

Eram duas criaturas de ao menos seis metros de altura,

que se pareciam com gigantescos vermes. O que mais

chamava a atenção eram as numerosas pernas, muito curtas,

sobre as quais se locomoviam à maneira das centopeias

terranas. O terço anterior do corpo estava levantado.

Possuíam cabeça de inseto e, logo abaixo da mesma, dois

vigorosos braços preênseis.

Eram froghs!

Os aras os usavam como guardas do zoológico. Se um

dos ocupantes tentasse a fuga, os froghs entravam em ação.

Usando todas as pernas, chegavam a atingir a velocidade de

duzentos quilômetros por hora. Marshall transmitira

informações a respeito desses guardas depois que ele, Laury

e o conde libertado haviam escapado à sua perseguição.

O que estariam fazendo os froghs na cidade, e logo

neste bairro mal-afamado?

Gucky levantou-se um pouco para contemplar as

estranhas inteligências mais de perto. Sabia que eram

capazes de falar. Logo, em sua mente havia pensamentos

lógicos.

Gucky “ligou” a telepatia.

Estavam à procura de três humanos. Era um saltador,

que lhes causara muitas dificuldades, uma bela mulher que

roubara um recipiente de vidro com o elixir da vida e um

prisioneiro fugido, que havia sido retirado do zoológico

pelas pessoas já referidas.

Eram Marshall, Laury e o conde!

Gucky acabara de descobrir a pista!

* * *

Tratar de qualquer assunto com as autoridades sempre é

uma coisa muito enfadonha; Rhodan descobriu isso durante

a primeira hora. O Ministério Zoológico, situado na

periferia da cidade, era uma verdadeira mina de atas e

formulários. Os registros abrangiam cada uma das regiões

em que se dividia o parque natural situado na estepe e

cercado por montanhas. Havia dados, sobre a origem, modo

de vida, hábitos e características médicas de cada ocupante

do zoológico. Também as experiências realizadas com

todos eles haviam sido registradas com a maior precisão.

Rhodan realizou um exame por amostragem e, quanto

ao mais, exibiu uma arrogância tão irritante que a raiva dos

tolimonenses por Árcon crescia a cada minuto. Estava

convencido que um eventual sucessor seu não teria vida

nada fácil no planeta. No entanto, os funcionários

mantiveram uma cortesia inalterada, embora por dentro

desejassem que o espia nojento fosse para as profundezas

do inferno.

Pelo meio-dia, fez uma pausa e pediu que o carro o

levasse à cantina dos funcionários do ministério.

Reservaram-lhe uma mesa, na qual poderia tomar sua

refeição sem que ninguém o perturbasse. E, em virtude do

caráter interestelar de Trulan, serviram-lhe uma coisa

realmente comestível.

Estava na hora de entrar em contato com Gucky.

Procurou e logo sentiu os sinais que lhe chegavam. Não era

muito fácil concentrar-se em meio aos numerosos

frequentadores da cantina, que o contemplavam com uma

expressão de respeito.

Page 93: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

93

— Sim, Gucky, tenho o contato. O que houve?

— Encontrei a pista. Dois froghs estão à procura de

Marshall. Acreditam que se encontre na cidade. Conhecem

o lugar em que costumava permanecer.

— Onde está você?

— Na área dos cortiços. Será que Marshall já morou

aqui?

— Procure descobrir. Talvez consiga alguma indicação.

— Combinado, mestre. Como vai você?

— Obrigado. Sinto-me satisfeito por não ser um

funcionário público.

No cérebro de Rhodan, surgiu a imagem do dente

roedor de Gucky, o que significava que o mesmo se divertia

a valer. Depois disso o contato telepático cessou.

* * *

Os dois froghs deslocavam-se velozmente pelas ruas

sinuosas. Gucky teve que esforçar-se ao máximo para

segui-los no seu andar arrastado. Praguejou violentamente

porque não lhe era permitido teleportar-se. Se o fizesse, não

poderia deixar de chamar a atenção. Em todos os lugares os

transeuntes, atemorizados pela visão dos guardas do

zoológico, comprimiam-se contra as paredes dos prédios e

suspiravam aliviados depois que os froghs passavam. Ao

que tudo indicava ninguém tinha a consciência tranquila,

mas Gucky não conseguiu descobrir por que todo mundo

temia as centopeias. Talvez o simples aspecto dos froghs

incomodasse as pessoas.

Subitamente os froghs pararam.

Gucky não entendia sua língua, mas podia ler seus

pensamentos, que não dependiam da linguagem. Por isso

conseguiu acompanhar a conversa que se desenrolava do

outro lado da rua.

— Se nossas informações são corretas, deve ser por

aqui.

— Vamos dar uma olhada e perguntar aos moradores

dos prédios. Talvez um deles tenha visto os três.

— Está bem. Começarei por esta coisa. Você pode

pegar o outro lado.

Separaram-se.

Gucky parou. Seus pelos arrepiaram-se quando um dos

froghs atravessou a rua estreita, lançou-lhe um ligeiro olhar

desconfiado e desapareceu num dos prédios, para iniciar a

busca.

Deviam ter encontrado uma pista de Marshall, embora

Gucky tivesse certeza de que o Chefe dos mutantes não se

encontrava nas proximidades, pois do contrário teria

captado seus impulsos mentais. Provavelmente a pista que

os froghs estavam seguindo era falsa.

Mas, por que não realizar as investigações por sua

própria conta?

Não hesitou. Desmaterializou-se, pois esperava que os

poucos transeuntes estivessem ocupados em observar os

froghs e por isso não lhe dariam a menor atenção.

Concentrou-se num trajeto reduzido e viu-se num quarto

escassamente mobiliado, bem às costas de uma mulher

pobremente vestida, que mexia numa panela.

Deu outro salto, subindo mais um andar.

Nada.

Depois de ter dado vinte saltos, acabou num depósito

desabitado. Aproveitou a oportunidade para descansar um

pouco. Evidentemente aquela busca ao acaso não passava

de absurdo rematado. Mas Marshall e a moça ainda há

pouco deviam ter morado numa casa situada naquela rua, a

não ser que os froghs fossem uns idiotas.

Gucky suspirou e deu outro salto.

Uma hora depois, materializou-se numa mansarda

situada no décimo quinto andar. Estava vazia e, ao que tudo

indicava, ninguém morava ali, pois o armário estava aberto

e nele não havia qualquer peça de roupa. A cama

desarrumada não tinha lençóis. Do outro lado ainda havia

dois sofás. Parecia que tinham sido colocados no quarto

depois dos outros móveis. Gucky sentiu um cheiro familiar.

Gucky lançou os olhos em torno e já ia retirar-se,

quando subitamente estacou.

Sobre uma penteadeira rústica havia um copo quebrado.

Ao lado deste, havia um vidrinho.

Os olhos de Gucky estreitaram-se quando caminhou em

direção à penteadeira, segurou o vidrinho entre as patas e o

cheirou. Faltava-lhe a tampa, mas ainda se via um

pouquinho de líquido amarelo no fundo.

Gucky farejou, silvou satisfeito, hesitou um instante, e

derramou os pingos que ainda havia no vidro sobre o peito

peludo. Voltou a colocar o vidro sobre a penteadeira,

refletiu mais um pouco e foi à janela. Sorriu e atirou-o para

fora.

O vidro não caiu verticalmente para a rua. Foi atingido

pelos fluxos de energia telecinética que o arrastaram em

direção ao céu azul. Subiu tão alto que Gucky não o via

mais. Só depois disso recuou da janela.

Sabia que o vidrinho não resistiria à queda. Ninguém

conseguiria identificar os fragmentos, ainda mais que o

vidro não continha nenhuma indicação de procedência.

— Essas mulheres levianas! — chilreou em tom

contrariado. Refestelou-se com o perfume do pelo de seu

peito e revirou os olhos de prazer. — Não há a menor

dúvida: é o perfume predileto de Laury. Foi muita gentileza

sua deixar essa lembrança para mim. Quer dizer que

moraram aqui.

Começou a revistar o quarto.

Só se sobressaltou quando os impulsos mentais se

tornaram mais nítidos. Alguém subia pela escada. E agora

rastejava pelo corredor e parava diante da porta.

Seria Marshall?

Não, não era Marshall. Era um frogh. Gucky ainda

reconheceu a identidade do ser, que se encontrava lá fora,

em tempo de dar um salto e colocar-se em segurança. A

porta aberta do armário escondia-o dos olhares do monstro,

que foi entrando bem devagar enquanto lançava os olhos

traiçoeiros em torno.

Gucky olhou cautelosamente por trás da porta e

estremeceu. Não era possível. Como é que a natureza tão

Page 94: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

94

bondosa podia criar um monstro daqueles? Em comparação

com ele, os horríveis porcos rastejantes de Vênus eram

criaturas verdadeiramente adoráveis. O Universo estava

cheio de seres dos mais estranhos. Todavia, o frogh, além

do mais, para usarmos uma expressão suave, possuía uma

expressão pouco amistosa. E isso o tornava muito

antipático.

Acontece que Gucky não gostava nem um pouco das

criaturas antipáticas de sua época. E, para dar uma

demonstração evidente dessa aversão, muitas vezes

esquecia a cautela que devia guardar.

Esperou que o frogh fechasse a porta. Depois, saiu de

trás do armário e perguntou em tom gentil:

— Está procurando alguma coisa?

O frogh virou-se abruptamente. Por pouco o movimento

não o faz perder o equilíbrio. Arregalou os olhos e abriu as

garras, fitando a aparição inesperada como se fosse um

fantasma. Ao que tudo indicava, não sabia o que fazer com

o rato-castor, embora no zoológico já tivesse tido

oportunidade de sobra para conhecer semi-inteligências dos

tipos mais variados.

— O que... quem...? — balbuciou numa língua que

Gucky só compreendeu em virtude de sua capacidade

telepática.

— Quero saber o que está fazendo aqui. — repetiu

Gucky, utilizando-se da língua arcônida, que todos

compreendiam. — Isto aqui é minha residência.

Ao que parecia, o frogh estava recuperando o

autocontrole.

— Venho por ordem do governo — anunciou. —

Recentemente um saltador ocupou este quarto?

— Quem foi que lhe meteu isso na cabeça? E quem é o

senhor?

O verme-inseto fez uma cara tão espantada que Gucky

soltou uma gostosa gargalhada. Isso parecia provocar ainda

mais a fúria daquela criatura sem senso de humor. Soltou

um chiado e avançou para o rato-castor, estendendo os

braços preênseis como se quisesse estrangulá-lo.

— Eu sou um frogh, seu bicho nojento. Se não estou

muito enganado, seu lugar é no zoológico. Não permitirei

que fique em liberdade. Vou levá-lo.

— Mantenha distância! — advertiu Gucky e recuou um

passo, para não entrar em contato com aquela massa

horrível. — Quanto ao zoológico, você vai sofrer uma

decepção. É verdade que não temos muita intimidade, mas

podemos continuar a tratar-nos por você. Mais uma coisa.

Faça o favor de responder às minhas perguntas, sua

chaminé ambulante.

Ao que parecia, o frogh estava acostumado a ser tratado

com mais respeito e temor. Dificilmente compreenderia que

alguém pudesse adotar um comportamento desses em sua

presença. Respirava com dificuldade.

— Você vai se arrepender, seu bicho nojento! — ao que

parecia era este seu insulto predileto. — Ainda hoje será

apresentado à administração do zoológico. Sabe o que

acontecerá depois disso?

— Isso não me interessa nem um pouco — respondeu

Gucky sem abalar-se. — Se você não responder

imediatamente às minhas perguntas, eu o atiro contra a

parede e depois o farei voar pela janela.

O frogh começou a tremer por todo o corpo, e havia

muita massa para tremer. O verme enchia quase todo o

quarto. Com um grande interesse, Gucky percebeu que o

corpo em forma de cobra começou a adquirir uma

tonalidade rosada. Aquela devia ser a cor da pele de um

jovem tenente no momento em que o recruta lhe recomenda

que ele mesmo engraxe suas botas.

— Seu miserável! — chiou o furioso guardador do

zoológico. — Você se atreve...

— Você está atrás de um saltador — prosseguiu Gucky

sem demonstrar o menor respeito. — Por que justamente

aqui? Responda, senão você vai ver o que é bom.

O rato-castor estava percebendo a impaciência do verme

gigante. Além disso, sentiu que a essa altura não poderia

recuar. O frogh teria que ser eliminado de qualquer

maneira. Antes devia fazê-lo contar o que sabia.

— O saltador? — perguntou o frogh. — O que sabe a

respeito do saltador que estou procurando?

— Quem faz perguntas sou eu! Entendido? Quem lhe

deu esta pista?

O frogh não estava disposto a revelar seu segredo, mas

felizmente pensou no caso. Para Gucky, isso foi suficiente.

— Ah, então é isso! — disse em tom tranquilo. — Foi

outro saltador que lhes contou. Vocês o torturaram?

Morreu? Vocês são assassinos! Acontece que ele lhes

contou uma mentira, pois neste quarto não há ninguém a

não ser eu.

O frogh lançou um olhar de pavor sobre o rato-castor,

que estava extraindo os pensamentos de sua mente. Seus

impulsos mentais tornaram-se cada vez mais confusos, até

convergirem na intenção de apoderar-se do inimigo

medonho que tinha diante de si.

O frogh deu um passo rápido para frente e estendeu o

braço em direção a Gucky. Não soube exatamente o que lhe

aconteceu, mas sentiu-se atingido por uma força invisível

que o atirou contra a penteadeira. Caiu ao chão, mas logo

voltou a levantar-se.

Mais uma vez precipitou-se sobre Gucky, mas ao que

tudo indicava o rato-castor já estava cansado da discussão.

Engajou toda a energia telecinética de que dispunha,

levantou o frogh deixando-o suspenso no centro do quarto.

A centopeia apavorada começou a emitir silvos agudos,

enquanto seu corpo adquiriu uma cor violeta. As inúmeras

pernas balançavam desesperadamente no ar, à procura de

apoio.

Mas o susto ainda aumentou quando se viu planar em

direção à janela, que se abriu como que pela mão de um

fantasma. Lá embaixo ficavam as pedras duras do

calçamento.

Gucky não perdeu mais tempo. Sabia tudo que o frogh

sabia, e o guardador implacável do zoológico fazia por

merecer a morte. Marshall estava com os agentes dos

Page 95: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

95

saltadores, que haviam instalado uma central secreta em

Tolimon. Ali se encontrava relativamente seguro.

O frogh passou pela janela, por mais que se esforçasse

para segurar-se no peitoril.

E foi assim que os habitantes do bairro pobre de Trulan

tiveram oportunidade de presenciar um espetáculo

inacreditável. Viram um frogh voador. Aquela criatura

detestada saiu planando elegantemente da janela da

mansarda, descreveu uma ou duas piruetas perfeitas, subiu

verticalmente até chegar aos trezentos metros de altura. Por

fim, caiu na vertical.

A queda provocou a sensação que era de esperar,

embora o mistério da centopeia voadora nunca tivesse sido

solucionado.

Enquanto ocorria o acidente, Gucky saltava para o

quarto do hotel, onde esperou por Rhodan, que já fora

informado telepaticamente sobre os acontecimentos.

O círculo em torno de Marshall e seus companheiros

fechavam-se cada vez mais.

Era só uma questão de tempo, e seriam encontrados.

Gucky esticou-se sobre a cama e fechou os olhos.

Subitamente ele foi atingido por um impulso mental,

claro e intenso, que lhe martelava a consciência,

despertando-o num instante.

Era um impulso que estava chegando com uma força

extraordinária:

— Pelas nebulosas da Galáxia! Se Rhodan não aparecer

logo, essa gente ainda acaba tirando minha última camisa...!

Gucky assobiou uma melodia desafinada e entrou em

contato com Marshall.

A sala estava mergulhada na penumbra. A única luz

provinha de uma lâmpada muito fraca e de alguns raios de

sol que penetravam obliquamente pela pequena janela

gradeada.

Cinco pessoas estavam reunidas em torno da tosca mesa

de madeira. Ao que tudo indicava, formavam dois grupos

distintos, pois os dois homens robustos e barbudos estavam

sentados lado a lado e contemplavam os três restantes com

uma expressão pouco amistosa.

John Marshall leu os pensamentos dos saltadores

barbudos e sabia que dali em diante a sociedade não seria

mais tão fácil e barata. A alma dos mercadores galácticos

despertara nos aliados, e para ela até mesmo a amizade não

passava de um negócio.

Ao lado de John, via-se Laury Marten, uma moça de

vinte e três anos que era filha dos mutantes Arme Sloane e

Ralf Marten. Herdara dos pais o dom da telepatia, mas,

além disso, era uma desintegradora. Graças às suas energias

mentais podia modificar a estrutura molecular da matéria

sólida, o que lhe permitia atravessar muralhas e paredes. A

descendência japonesa do pai deixara vestígios em seu

rosto. E foram justamente os olhos em forma de amêndoa

que tanto cativaram o conde Rodrigo de Berceo.

Rodrigo era filho de uma princesa asteca e de um

membro da nobreza espanhola. Fazia quase trezentos anos

que vivia no zoológico de Tolimon. No século XVII fora

sequestrado com mais três homens terrenos por uma nave

espacial. O misterioso elixir da vida conferira-lhe a

imortalidade. Sua figura imponente não poderia deixar de

impressionar Laury. Até um cego não deixaria de ver que

os dois estavam apaixonados. E foi graças a isso que

Rodrigo conseguiu fugir do zoológico.

Não havia dúvida de que sua vestimenta era um tanto

estranha. A costureira do zoológico a fizera como uma

réplica exata das roupagens do século XVII. As botas de

cano revirado que iam até os quadris escondiam as calças

justas, enquanto um cinto largo cingia o colete curto e sem

mangas. A gola larga da camisa cobria a parte superior da

jaqueta com suas rendas. Carregava constantemente a

bainha com a espada bem afiada. O chapéu de aba larga

com o penacho balouçante descansava no colo. Sobre o

colete brilhava uma corrente de ouro com o amuleto do

deus do sol dos astecas.

Ninguém convencia Rodrigo de desistir de suas

vestimentas estranhas e da arma branca. Isso já havia dado

origem a complicações, pois o conde era um homem

corajoso e esquentado, que sabia prezar a honra e a altivez.

Estava acariciando a mão de Laury.

— Tenha calma, meu amor, mostraremos uma coisa a

eles. Conseguimos livrar-nos dos froghs e também

saberemos enfrentar essas almas de mercadores.

Marshall lançou-lhe um olhar de advertência. Sentia-se

arrasado. A espera por qualquer notícia de Rhodan era

interminável, e a ideia dos perigos que constantemente o

espreitavam desgastava suas energias. A partir do momento

em que haviam abandonado seu alojamento no bairro pobre

da cidade nunca mais se sentira seguro. O pior era que,

conforme revelava a palestra que estavam mantendo, já não

podiam confiar nos saltadores.

Fez um gesto para o mais idoso dos saltadores.

— Está bem, Berzan, podemos conversar sobre a oferta

que você acaba de formular. Vocês estão metidos na mesma

enrascada que nós, e por isso temos uma base para

negociar. Se nos entregarem às autoridades, vocês trairão a

si mesmos. Isso não resolveria nada, nem para vocês, nem

para nós. Os aras são inimigos nossos e de vocês. Vocês

querem dinheiro para continuar a ajudar-nos. Acontece que

não temos dinheiro. Mas dentro de poucos dias, poderemos

dar-lhes mais do que vocês conseguiriam gastar, mesmo

que vivessem mais cem anos.

Berzan, um velho de barba grisalha, piscou os olhos

astuciosos.

— Onde é que vocês vão arranjar esse dinheiro? —

indagou. — Quem me garante que não estão mentindo?

Tulin e Egmon já nos preveniram. Dizem que vocês sabem

ler pensamentos.

— Quer afirmar que eu sou um telepata? Isso é ridículo!

3

Page 96: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

96

Se fosse, já saberia há tempo da traição que estão

planejando. Nesse caso teria vindo até aqui para pedir

auxílio? Não, Berzan, a informação de seus amigos é um

absurdo.

— Foi o que eu lhes disse, meu caro. Mas, seja como

for, pedimos um pagamento mais condigno, pois

correremos um grande perigo se lhes dermos proteção.

Metade do planeta está atrás de vocês. A polícia segue

todas as pistas. É bem possível que uma delas os traga até

aqui, e se isso acontecer o trabalho de algumas décadas terá

sido em vão.

— Se aparecerem, vocês poderão contar com nosso

auxílio — disse Marshall, mas sabia perfeitamente que as

preocupações do saltador eram totalmente justificadas. —

Dentro de mais alguns dias ficarão livres de nós.

O mais jovem dos dois saltadores inclinou-se para frente

e fitou Marshall.

— Para onde pretendem ir? E quem lhes arranjará o

dinheiro de uma hora para outra?

Marshall leu os pensamentos de Rodrigo: a impaciência

crescia a cada segundo que passava. Não demoraria muito,

e o conde impetuoso saltaria sobre os dois chantagistas de

espada em punho. E isso não poderia acabar bem para ele,

pois os saltadores estavam armados com radiadores de

impulsos.

— Faran, vocês terão de satisfazer-se com o fato de que

ficaremos aqui até a chegada de nosso elemento de ligação,

que trará o dinheiro. Tenham mais um pouco de paciência

— virando-se para o conde, disse: — Você também,

Rodrigo.

Os dois homens já eram bons amigos, e costumavam

deixar de lado todo e qualquer formalismo. E o conde

conhecia os dons telepáticos de Marshall e Laury. Por isso

tirou a mão da espada, acenou lentamente com a cabeça e,

usando o espanhol, por cautela disse:

— Bem que gostaria de espetá-los, mas se você preferir,

não ponho a mão neles.

— O que é que ele está dizendo? — perguntou Berzan

em tom desconfiado.

— Ele acredita que nosso elemento de ligação deve

aparecer ainda hoje.

— Tomara — resmungou Berzan e levantou os olhos

para a janela. — Vamos sair, mas não pense em tolices. A

casa está muito bem vigiada. Qualquer tentativa de fuga

seria inútil, pois alarmaríamos imediatamente a polícia de

Trulan. Dispomos de outros esconderijos além deste, e por

isso não encontrariam nossa pista. Mas não deixariam de

pegar vocês.

Levantou-se juntamente com Faran e saiu da sala. A

porta fechou-se com um baque. Uma chave pesada girou na

fechadura.

Estavam sós.

— Pelos deuses do sol de minha mãe! — disse Rodrigo,

tremendo por todo o corpo. — Por que não damos uma

lição a esses gananciosos ladrões estelares?

— Porque temos de ser mais inteligentes que eles —

preveniu Marshall, dando alguns passos pela sala. — Quem

dera que soubesse em que área de Trulan nos encontramos.

Trouxeram-nos para cá no meio da noite.

— Pelo que sei, estamos num subúrbio — interveio

Laury, que até então se mantivera calada. Segurou a mão

fina do conde e lançou-lhe um olhar de ternura. — Para nós

não importa o lugar em que estejamos. Até aqui podemos

ser felizes, não é mesmo?

Marshall parou abruptamente.

— Laury! — disse em tom áspero. — Não tenho nada

contra sua felicidade, mas, antes de qualquer coisa, temos

de entregar o soro a Rhodan. A paixão de vocês roubou-nos

todas as chances de conseguir a fórmula do elixir.

— Em compensação temos uma amostra do soro

maravilhoso — respondeu a moça, enrubescendo e batendo

levemente no cinto do uniforme. — É verdade que é apenas

um pequeno frasco, mas não deixa de ser uma amostra. É

bem possível que nossos cientistas consigam analisá-la.

— Se conseguirmos chegar a eles com a amostra —

objetou Marshall. De repente mudou de assunto. — Por que

não recebemos nenhuma notícia de Rhodan? Não

compreendo.

— Até agora quase não tivemos oportunidade de emitir

impulsos mentais mais intensos, John. Quase nunca ficamos

a sós e constantemente tivemos de fugir. Nossos impulsos

mergulham no oceano de outros, emitidos pelos habitantes

de Trulan. Além disso, a capacidade telepática de Rhodan é

pouco intensa. Se pensarmos com maior concentração,

talvez consigamos estabelecer contato. Rhodan já deve

estar em Tolimon. Afinal, oito dias se passaram desde

nosso último pedido de socorro — concluiu Laury.

— Isso mesmo. A seguir, o transmissor entrou em pane

— disse Marshall em tom amargo. — Vamos aproveitar o

tempo para chamar Rhodan. Talvez tenhamos sorte.

Quando os saltadores voltarem, será tarde. Nem de noite

nos deixam em paz.

— É verdade! — suspirou Rodrigo em tom amargurado

e estreitou Laury ao seu corpo.

Seus lábios encontraram-se num beijo fugaz. Marshall

praguejou e voltou-se discretamente, dizendo:

— Rodrigo, quem sabe se você não quer ter a gentileza

de deixar Laury em paz por um instante? Ela deve

concentrar-se, a não ser que queiramos passar o resto dos

nossos dias neste buraco. Mesmo que Rhodan fique dia e

noite na “escuta”, para receber nossos impulsos, ele nunca

conseguirá captá-los se estes não o atingirem em feixes

compactos. Terá de identificar nossos impulsos em meio a

milhares, e isso nunca será possível se não nos

concentrarmos nele. Nem mesmo Gucky conseguiria, se

estivesse aqui. Infelizmente não está.

Laury desprendeu-se suavemente dos braços do homem

amado.

— Ele tem razão, Rod. Nosso amor pode ficar para

depois. O que importa no momento é nossa segurança e a

entrega do soro. Se não o conseguirmos, tudo que fizemos

terá sido em vão.

Page 97: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

97

Marshall virou-se.

— A senhora é uma mocinha muito sensata. Isso me dá

novas esperanças.

Rodrigo levantou-se e franziu a testa.

— Se você não fosse meu amigo, John, eu deveria ficar

zangado com você. Mas reconheço que devemos dar

atenção antes de tudo à nossa tarefa. O que vou fazer

enquanto vocês estiverem telepatizando?

Marshall suspirou aliviado e sorriu.

— Nada, Rod. Sente naquela cama e fique refletindo. Se

preferir pode dormir. Laury e eu pensaremos na nossa

situação, com o máximo de concentração e em todas as

direções. Quem dera que soubéssemos em que área de

Trulan nos encontramos! Isso facilitaria nosso trabalho.

O conde sentou cerimoniosamente. A espada impedia-

lhe os movimentos, mas não sabia separar-se da arma.

— Vou dormir, pois estou cansado. Acordem-me assim

que haja alguma novidade.

Estendeu-se sobre a cama. Logo se ouviram seus roncos

regulares.

Marshall e Laury concentraram-se na tarefa.

* * *

Rhodan dispensou o carro e foi imediatamente ao hotel.

Ainda encontrou Gucky.

— Já estava na hora de você chegar — disse este. —

Marshall está aguardando auxílio de nossa parte. Já

conheço a direção; é claro que não tenho meios de avaliar a

distância. Terei de saltar.

— Isso seria muito perigoso — respondeu Rhodan. —

Também consegui estabelecer contato e prometi que

apareceríamos dentro em breve. Tive muito trabalho para

recusar o convite do presidente para uma visita ao

zoológico. Pretendia ir até lá hoje de noite, para que

dispuséssemos de todo o dia de amanhã para a inspeção.

Quase chego a ter a impressão de que querem fazer amizade

com o pretenso inspetor. Ao que tudo indica, não estão com

a consciência muito tranquila.

— Como poderíamos encontrar Marshall se eu não

saltar? — perguntou Gucky sem responder às palavras de

Rhodan. — Terei que teleportar-me. No momento em que

os impulsos chegarem, só precisaremos examinar a última

parte do trajeto.

— E eu? Vou ficar no hotel?

— É claro que sim.

O rosto de Rhodan assumiu uma expressão séria no

momento em que disse:

— Meu caro, receio que você não esteja avaliando

corretamente a situação. É verdade que cheguei aqui com

um disfarce excelente, e até agora ninguém desconfia de

nada. Mas tive oportunidade de ouvir a conversa de dois

oficiais. O governo de Tolimon dirigiu uma consulta oficial

para Árcon, a fim de descobrir se o inspetor Tristol

realmente existe. Acho que não preciso explicar o que isso

significa.

Também Gucky tornou-se muito sério.

— A resposta já chegou?

— É claro que não. O registrador de Árcon não

funciona com tanta rapidez, mas tenho certeza de que o

regente robotizado já deve ter percebido alguma coisa. Não

podemos demorar muito em dar o fora. Por isso prefiro

acompanhá-lo.

— Vamos tentar os saltos de teleportação em conjunto?

— É claro que não. Tomarei um táxi, de preferência um

dos veículos aéreos mais rápidos, e seguirei suas etapas de

deslocamento. Permaneceremos em contato; quanto a

Marshall, basta que ele continue a pensar normalmente.

Agora não o perderemos mais. Talvez acreditem que vou

realizar uma inspeção durante a qual prefiro permanecer

incógnito. Ninguém se atreverá a impedir-me.

Gucky suspirou e escorregou para fora da cama.

— Marshall, está ouvindo? — pensou. — Avançaremos

na sua direção. Continue a pensar. Para mim é indiferente

que pense em salsichas bem quentinhas ou em cenouras. Se

preferirem podem contar piadas. O que importa é que

continuem acordados. Entendido?

— Entendido! — foi à resposta que veio duplicada.

Laury também estava pensando. — Apressem-se. Estão

trazendo dinheiro para dar aos saltadores?

O pelo da nuca de Gucky arrepiou-se.

— Dinheiro para esses gatunos?

Rhodan resolveu intervir.

— Distraia os saltadores até que nós nos encontremos

com vocês. Saberei lidar com essa gente.

Gucky deu de ombros e colocou seu uniforme na mala

de Rhodan.

— Você e sua política de pacificação. Ela ainda lhe

trará muitos problemas.

— Não trará mais problemas que sua predileção pelas

demonstrações de capacidade que você gosta de realizar no

lugar errado. Sugiro que você nem apareça enquanto

estivermos negociando com os agentes dos saltadores.

Afinal, certo rato-castor já penetrou na consciência dos

saltadores de forma pouco agradável. Não estou interessado

em reavivar a lembrança dessa aparição.

— Isso não passa de uma vingança mesquinha —

indignou-se Gucky. — Depois de fazer o papel de idiota

por tanto tempo ainda tenho que manter-me de lado quando

nossos amigos vão ser libertados. O que é que miss Laury

vai pensar de mim? E mesmo esse conde esquisito que foi

libertado do zoológico? Nada disso; irei com você.

Rhodan ergueu as sobrancelhas, num gesto de espanto.

— Você é um sujeito muito decidido, pequenino. Você

quer colocar todo o grupo em perigo?

— Isso não! Mas se minha aparição não despertou

nenhuma lembrança entre os aras, isso provavelmente

também não deverá acontecer com os saltadores, que por

certo nunca ouviram falar do planeta Terra ou de Gucky.

Acho que sua precaução é exagerada.

Rhodan era homem de não recuar em suas decisões, mas

sabia ceder vez ou outra diante de um argumento mais

forte. Para que deixar Gucky ainda mais aborrecido?

Page 98: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

98

Provavelmente o rato-castor estava com a razão: ninguém

se lembraria de sua figura. Já fazia muito tempo.

Concordou com um aceno de cabeça.

— Está bem, Gucky. Você ganhou. Trabalharemos em

conjunto.

O rato-castor não demonstrou sua satisfação; era muito

inteligente para isso. Limitou-se a esboçar um sorriso alegre

e ajudou seu chefe a fazer a mala, exibindo logo o rosto do

servo fiel.

— Oh, meu chefe e senhor — chiou em tom teatral,

inclinando-se até quase tocar o chão com a cabeça. — Quer

que carregue as malas para fora, ou prefere que as teleporte

até nossa boa nave Koos-Nor?

— Pode teleportar, verme miserável — respondeu

Rhodan no mesmo tom teatral e esperou que Gucky

desaparecesse juntamente com a mala. Aproveitou o tempo

para examinar os instrumentos de controle remoto, que

trazia no bolso. Ainda não desconfiava da importância que

os mesmos viriam a desempenhar ainda antes do pôr do sol.

Gucky voltou e informou:

— Tudo em ordem a bordo. A nave permanece no

espaçoporto, sem que ninguém a tocasse ou a molestasse.

Apenas notei alguns cruzadores ligeiros, que se postaram

discretamente nas proximidades.

— É estranho — murmurou Perry Rhodan. —

Realmente, é muito estranho. Não é possível que já tenham

recebido notícias de Árcon. Se tiverem, ainda deverão estar

na suposição de que existe um inspetor chamado Tristol.

Não demonstrarão abertamente sua desconfiança.

— E se demonstrarem? — resmungou Gucky cheio de

impaciência. — O que estamos esperando? Quero conhecer

o tal do conde Rodi... ri... rigo.

— Rodrigo — corrigiu Rhodan. — É um membro da

velha nobreza espanhola do século dezessete. Na sua época,

era um homem bastante conhecido. Mas é bom que tenha

cuidado. O sujeito é muito esquentado e talvez chegue

mesmo a ser um pouco supersticioso. Não brinque com ele.

Em sua era, um nobre vingava qualquer ofensa com um

duelo mortal. E tenho lá minhas dúvidas quanto suas

habilidades no manejo da espada.

— Por que está falando em ofensa? — perguntou Gucky

perplexo. — Nem pensei em ofendê-lo, apenas pretendo

mexer um pouco com ele...

— Pois terá uma surpresa — profetizou Rhodan e

caminhou em direção à porta. — Vamos embora; não temos

tempo a perder. Dentro de três ou quatro horas estará

escuro, e até lá precisamos encontrá-lo.

— Pode ficar tranquilo! — disse Gucky com um sorriso

e caminhou atrás do seu senhor.

Uma vez no corredor, voltou a transformar-se no criado

submisso. Com uma cara ingênua e estúpida, esforçou-se

para acompanhar Rhodan, o que só conseguiu em parte.

Gucky só recuperou a desvantagem porque Rhodan pediu

um táxi aéreo, o que o fez esperar na rua.

— Você bem que poderia andar um pouco mais devagar

— fungou o rato-castor, quando se viu diante do hotel, ao

lado de Rhodan. Um veículo de cabine desceu

silenciosamente sobre o gramado muito bem tratado. — Da

próxima vez, vou-me teleportar e farei com que você corra

atrás de mim.

— Não se atreva a fazer uma coisa dessas — preveniu-o

Rhodan e entrou na cabine. Gucky seguiu-o. O piloto

assustou-se quando viu o uniforme do inspetor e por pouco

não afunda embaixo do painel de controle de seu veículo

aéreo.

— E agora faça o favor de calar a boca e comportar-se

como um criado submisso, pois do contrário esta será a

última vez em que trabalhamos juntos.

A ameaça telepática deixou Gucky tão assustado que o

rato-castor se recolheu silenciosamente no assento traseiro e

bloqueou seus pensamentos. Rhodan desconfiava de que os

mesmos não seriam muito lisonjeiros para sua pessoa, mas

no momento isso não importava nem um pouco. Era

necessário dar uma ducha fria na petulância de Gucky.

— Voe devagar e exatamente na direção norte —

ordenou ao piloto junto ao qual se sentara. — Só modifique

a rota quando eu mandar. Não voe muito alto. Quero

examinar a cidade com toda a calma.

— Farei o que ordenar, venerando inspetor.

Rhodan não respondeu. Olhou para a frente, enquanto a

nave subia a cinquenta metros de altura. Nessa altitude, não

havia nenhuma torre ou arranha-céu, motivo por que não

existia o risco de colisão.

Os impulsos mentais de Laury já haviam silenciado. Só

Marshall continuava a “transmitir”. Pensava em tudo

quanto fosse possível para manter-se acordado, embora

fosse dia claro. Rhodan concluiu que os fugitivos deveriam

estar por demais cansados.

— Não é necessário saltar — disse a Gucky, usando a

língua inglesa para que o piloto não o entendesse. —

Continuaremos a voar nesta direção até que os impulsos

venham de baixo. Nesse instante, estaremos sobre o lugar

em que Marshall se encontra.

E foi o que fizeram.

* * *

O conde Rodrigo acordou quando Marshall o sacudiu.

Laury estava sentada esfregando os olhos.

— Estão exatamente em cima de nós. São Gucky e

Rhodan — Marshall apontou para o teto. — Encontramo-

nos numa casa solitária situada na periferia da cidade. Está

cercada por um grande parque. Deve ser um dos quartéis-

generais dos saltadores.

— Gucky também veio? — Laury acordou

imediatamente. — Que sorte! Gucky é o maior herói que já

vi.

A estima de que o rato-castor gozava junto às criaturas

do sexo feminino era bem conhecida, mas Rodrigo ainda

não sabia quem era Gucky. Levantou-se devagar, lançando

um olhar de espanto para Laury.

— Que herói é este? — perguntou, esticando as

palavras. Sua mão aproximou-se instintivamente da espada.

— Se alguém tem o direito de protegê-la, sou eu. Será que

Page 99: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

99

tenho um rival no seu coração?

Marshall exibiu um ligeiro sorriso e lançou um olhar de

advertência para Laury.

— Tenha cuidado com Gucky — disse apressadamente.

— Laury tem razão: realmente é um herói. Não conheço

nenhuma mulher que não goste dele. Não sei por que Laury

devia ser uma exceção. Você terá de conformar-se com este

fato, Rod.

— Jamais — disse Rodrigo, levantando-se e

caminhando furiosamente de um lado para outro. — Jamais

tolerarei a existência de um rival. Terá que bater-se comigo

em duelo.

— Você levará a pior — preveniu Marshall com a cara

mais séria do mundo. Sabia que Gucky estava

acompanhando a palestra e esperava que o encontro do

rato-castor com Rod lhe proporcionasse uma pequena

distração. — Gucky é um dos melhores mutantes que

temos.

— Mais um desses sujeitos dotados de capacidades

supersensoriais? — perguntou o conde em tom de

decepção. — Ao que parece muita coisa mudou na Terra. O

mundo está sendo governado por feiticeiros.

— Aguardemos — disse Marshall e voltou a concentrar-

se.

Também Laury parecia ter esquecido o conde. Entrara

em contato com Rhodan.

— Pousaremos com o planador bem perto da casa —

anunciou Rhodan. — Não precisamos do piloto. O que

devo fazer com ele?

— Traga-o com você — respondeu Marshall. —

Fugiremos com o táxi aéreo e trancaremos o ara nesta casa.

É muito simples.

— E os saltadores que estão vigiando vocês? Bem,

aparecerei na minha qualidade oficial de inspetor. Isso os

intimidará.

— Talvez já tenham ido embora.

— Talvez.

Mais quinze minutos passaram-se. Mantiveram a

ligação telepática, mas não estabeleceram mais nenhum

contato direto. O conde Rodrigo mantinha um silêncio

obstinado e, vez por outra, lançava um olhar sombrio para

Marshall.

Assustaram-se quando de repente a porta abriu-se

violentamente e Berzan penetrou no recinto em que

estavam presos.

— É o inspetor de Árcon! — fungou. — Pousou no

parque e está caminhando em direção a casa. Vocês têm

uma ideia do que deseja de nós?

Marshall manteve a calma; acenou lentamente com a

cabeça.

— Talvez, Berzan, talvez. Nesta hora não seria

conveniente se chegássemos a um acordo?

— Pois foi o que fizemos o tempo todo — retrucou o

saltador, que fez uma cara um tanto assustada. — É claro

que não dissemos ao arcônida que vocês estavam aqui.

Como é que ele ficou sabendo da presença de vocês?

— Isso mesmo — disse Marshall com a maior

tranquilidade. — Como poderia saber?

Rodrigo parecia convencido de que, naquele instante,

somente uma demonstração de bravura poderia convencer a

querida Laury de que ele era o único cavaleiro digno de seu

coração. Num movimento fulminante tirou a espada da

bainha, adiantou-se alguns passos e colocou a ponta afiada

sobre o peito de Berzan, que ficou perplexo.

— Patife miserável! — exclamou em tom dramático e

decidido. — Você muda de opinião tão depressa, como o

vento que infla as velas muda de direção. Pois é bom que

saiba que podemos fazer a mesma coisa. Daqui por diante,

dispensamos a proteção de seu clã; logo, não receberão

qualquer paga. E, quanto ao inspetor, traga-o à nossa

presença. Rápido, senão lhe farei cócegas com minha

espada.

— Espere aí! — interveio Marshall. — É preferível que

Berzan nos leve para cima. Iremos juntos para

cumprimentar o ilustre visitante.

O saltador preferira não sacar a arma. Não tinha a

intenção de fechar aquela fonte de dinheiro, que parecia tão

promissora. Naquele momento a visita do arcônida

representava um perigo para todos. Depois que esse perigo

tivesse passado, veriam adiante...

Sem preocupar-se com Rodrigo, virou-se, abriu a porta

e caminhou à frente dos outros. Marshall e os outros

seguiram-no. Sabiam qual era a surpresa que aguardava os

saltadores, e também sabiam que a situação desagradável

em que se encontravam logo chegaria ao fim.

Infelizmente se esqueciam da circunstância

desfavorável, que já estragara muitos cálculos bem

elaborados.

Era a circunstância que geralmente costuma ser

designada como o acaso.

Glogol, inspetor-chefe do Império de Árcon,

encontrava-se numa viagem de rotina. Naquele instante,

aproximava-se do sistema solar da estrela de Revnur, a fim

de visitar o segundo planeta, denominado Tolimon.

Estava acompanhado de dois cruzadores pesados, que

dariam a necessária ênfase às exigências que viesse a

formular. Glogol, acompanhado apenas de alguns criados e

da tripulação habitual, viajava num iate de luxo que tinha

uma espantosa semelhança com certa nave designada pelo

nome Koos-Nor.

Glogol era um arcônida das classes dominantes. Suas

enormes faculdades mentais e sua capacidade de decisão

levaram o regente robotizado a confiar nele. Era alto, tinha

cabelos brancos e olhos avermelhados: tinha exatamente o

aspecto de Rhodan no seu disfarce atual. O vistoso

uniforme também era uma duplicata do de Perry.

Fez um sinal ao telegrafista.

4

Page 100: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

100

— Entre em contato com Tolimon. Anuncie nossa

visita. Quero uma recepção de chefe de Estado, um

alojamento condigno e um corpo de criados. Os

representantes do governo devem comparecer ao

espaçoporto.

— Perfeitamente, inspetor — respondeu o telegrafista

solícito e desapareceu na sala de rádio. Menos de dois

minutos depois, voltou com uma expressão de enorme

espanto.

— Inspetor...! — gaguejou assustado. — As autoridades

espaciais de Tolimon querem falar com o senhor antes de

conceder a permissão de pousar.

Glogol levou quase dez segundos sem conseguir

proferir uma única palavra; depois disso quase explodiu.

— O quê? Querem recusar obediência às ordens de um

inspetor? Será que os aras querem revoltar-se de novo? Que

insolência!

— Dizem que se trata da medida VB-17 — interrompeu

o telegrafista sem compreender nada.

O comportamento de Glogol mudou de um instante para

o outro.

— Por que não disse isso logo, seu idiota? É claro que

com isso as coisas mudam de figura — levantou-se. —

Vamos logo; mostre onde fica o microfone.

Glogol não estava muito versado em assuntos técnicos,

mas afinal isso não fazia parte de sua profissão. De

qualquer maneira, viu na tela o rosto de um ara que lhe

lançava um olhar desconfiado. O espanto era sincero.

— Será que o senhor realmente é um arcônida? —

gaguejou o homem na tela, como se tivesse esperado outra

coisa. — Por que será que nos mandam dois inspetores ao

mesmo tempo?

Glogol parecia ter levado um choque. Desconfiou

imediatamente.

— Dois inspetores? O que quer dizer com isso?

— Desde ontem o inspetor Tristol encontra-se em

Tolimon, senhor. Recebeu instruções de inspecionar a

administração do zoológico.

— Ah, é? — disse Glogol e inclinou a cabeça. —

Tristol? — parecia refletir. Subitamente um sorriso brincou

em torno de seus lábios. — Espero que esse Tristol esteja

presente no espaçoporto quando minhas naves pousarem.

— No momento, está realizando um voo de inspeção.

Não temos meios de entrar em contato com ele.

Glogol sentiu escapar-lhe a perspectiva de um prazer e

reconheceu o perigo em potencial representado por um

falso inspetor. Não havia tempo para brincadeiras.

Precisava agir.

— O inspetor Tristol é um impostor — disse em tom

frio. — Prenda-o. Pousarei imediatamente. As formalidades

ficarão para depois. Enquanto isso, eu enviarei uma

consulta ao regente robotizado.

— Isso já foi providenciado. Esperamos a resposta

ainda hoje. De qualquer maneira, seria conveniente

formular outra consulta para termos certeza absoluta.

Glogol sentiu a desconfiança. Empalideceu. Soltou uma

praga, levantou-se e voltou ao seu gabinete. Pensou:

“Malditos médicos! Não acreditam que eu seja o

verdadeiro inspetor. Bem, hão de pagar por isso!”

Mas, por outro lado, não pôde deixar de reconhecer que

a desconfiança ainda era preferível à credulidade e à

leviandade.

Nunca ouvira falar em Tristol, embora o Império só

tivesse dez inspetores. E ele os conhecia todos.

Deu o alarma. Os dois cruzadores que comboiavam sua

nave entraram em regime de prontidão de combate e

penetraram na atmosfera de Tolimon juntamente com o iate

de Glogol.

Quase no mesmo instante, chegou a Trulan a resposta

expedida por Árcon.

Não existia nenhum inspetor chamado Tristol.

* * *

Rhodan e Gucky saíram do táxi aéreo e olharam em

torno.

O parque era formado principalmente por um extenso

gramado no qual se viam alguns arbustos. Só na periferia as

árvores isolavam a área do mundo exterior. A mansão

ficava numa rua tranquila da zona periférica norte de

Trulan.

O piloto inclinou o corpo, para fora da cabine.

— Quer que espere pelo senhor, inspetor?

— Você virá conosco — anunciou Rhodan. — Quero

ter certeza de que não terei de voltar a pé.

— Mas, senhor... — principiou o piloto em tom de

recriminação, mas logo se viu interrompido por Gucky.

— Desça logo! Quando meu senhor dá uma ordem,

deve-se obedecer sem discutir. Já ouviu falar no centro de

experiências do zoológico? Está com vontade de terminar

seus dias por lá?

O piloto tremeu por todo o corpo e com um salto

arriscado caiu no capim.

Rhodan caminhava à frente dos outros. Nada se movia

na casa, que parecia deserta. Os impulsos mentais de

Marshall puderam ser captados com toda nitidez.

— Estamos saindo, chefe. Os saltadores estão

desconfiados e resolveram ir conosco.

— Saberão respeitar um inspetor — respondeu Rhodan.

Quando se encontravam a vinte metros da casa, a porta

abriu-se e um homem barbudo veio ao seu encontro. Pelo

aspecto exterior, poderia ter cerca de sessenta anos, mas

isso não significava nada. Fez um sinal para trás, como se

quisesse evitar que alguém o seguisse. Sozinho e armado

somente com o costumeiro radiador manual preso no

coldre, veio ao encontro do grupo de Rhodan. Por alguns

segundos, pousou um olhar pensativo e espantado sobre

Gucky, mas logo voltou a dedicar sua atenção a Rhodan.

— Inspetor de Árcon — resmungou. — Vejo que

nossos amigos não mentiram.

— Meu nome é Tristol — disse Rhodan, usando um

pouco menos de arrogância que em outras oportunidades.

— O senhor prestou auxílio aos meus homens e está

Page 101: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

101

exigindo uma paga adequada. O senhor receberá a

recompensa assim que estejamos fora de perigo. Acredita

em mim?

O barbudo acenou a cabeça de forma quase

imperceptível.

— Meu nome é Berzan, inspetor. Uma pergunta: o

senhor realmente é um inspetor?

Rhodan leu a desconfiança no rosto do saltador. Não

compreendia a ligação que poderia existir entre os

prisioneiros e aquele arcônida.

— O senhor tem alguma dúvida? — perguntou Rhodan,

fingindo-se de espantado. — Os espiões de Árcon estão em

toda parte. Meus homens agiram por ordem do regente

robotizado. Há alguma coisa de extraordinário nisso?

Como por acaso, Berzan colocou a mão sobre a arma,

embora não tivesse a intenção de sacá-la. Gucky logo

percebeu o movimento, mas não fez nada. Porém estava

alertado.

— De fato tudo isso é muito estranho, senhor. Há menos

de duas horas, a polícia de segurança de Trulan deu o

alarma. Árcon respondeu à consulta formulada por

Tolimon. Não existe nenhum inspetor chamado Tristol.

Logo, trata-se de um impostor que está sendo procurado. E

não demorará muito até que a polícia encontre a pista que

conduz a esta casa.

Rhodan reagiu imediatamente à nova situação. Viu o

espanto no rosto do piloto de táxi, mas não se preocupou.

Sorriu.

— É verdade, Berzan. Não sou nenhum inspetor dos

arcônidas. Acontece que o senhor não gosta deles, Berzan.

Sei disso. Logo, não tem nenhum motivo para entregar-me.

Os arcônidas e os aras não são nossos inimigos comuns?

Berzan não se interessou por esse tipo de conversa.

— Faço o contrabando de medicamentos; meu negócio

é este. O chefe do clã é Rohun, comandante dos saltadores.

Não gosto dos arcônidas, mas reconheço seu Império. O

senhor é um inimigo do Império, e não posso continuar a

colaborar com o senhor ou com seus amigos. Para usar de

franqueza, isso é muito perigoso para mim. Pague sua

dívida, pegue seu pessoal e dê o fora.

Rhodan ficou surpreso com a sinceridade daquele

saltador barbudo, que não lhe era antipático. Sabia que seria

inútil tentar convencê-lo a adotar outra atitude.

— Muito bem. O senhor receberá o pagamento a que

faz jus. Onde está meu pessoal?

Berzan virou-se e fez um sinal em direção à casa.

— Faran, traga os estranhos; estão livres.

Rhodan pegou uma sacola com moedas e entregou-a ao

velho. Este a examinou ligeiramente e soltou um assobio.

Estava mais que satisfeito com a recompensa.

Faran saiu da casa, seguido por Marshall, Laury e pelo

conde.

Berzan puxou Faran para o lado e falou com ele em voz

baixa. Rhodan não teve tempo para ocupar-se com ele.

Sabia que naquele instante não tinha receio de qualquer

traição, se é que em algum momento esta pudesse ocorrer.

Marshall aproximou-se de Rhodan e, muito satisfeito,

apertou-lhe a mão.

— Já estava chegando ao fim, chefe. Não sei por quanto

tempo estaríamos seguros por aqui. Os saltadores já não

tinham vontade de queimar os dedos. Desculpe, Laury

deseja cumprimentá-lo. Além disso, quero apresentar-lhe o

conde Rodrigo de Berceo...

Laury enrubesceu, pois sabia perfeitamente que Rhodan

estava informado de sua paixão pelo conde. Com um gesto

hesitante estendeu-lhe a mão, que Rhodan pegou com um

ligeiro sorriso, retribuindo a pressão dos dedos.

Só depois, dedicou sua atenção ao conde.

Rodrigo tirara o chapéu de aba larga e o sacudia com

uma mesura impecável, que teria honrado qualquer nobre

do século XVII. Depois se adiantou e, fazendo outra

mesura, declinou seu nome e o de seus nobres. Asseverou:

— Sinto-me muito satisfeito em conhecer o grande

amigo de minha companheira, e fico honrado em saber que

o senhor, Rho...

— Nada de nomes! — advertiu Rhodan em tom áspero.

— Sou o chefe; apenas isso.

Rodrigo ficou corado, mas soube dominar-se muito

bem.

— Perdão, chefe. Quase me esqueço das cautelas que

devemos tomar.

Lançou os olhos em torno, como se estivesse

procurando alguma coisa, fitou ligeiramente o rato-castor e

dirigiu-se a Marshall.

— Onde está esse legendário herói e sedutor de

mulheres de que você me falou? Não o vejo.

— Gucky?

— Sim, acho que o nome é este. Gostaria de dizer-lhe o

que penso dele.

— Ora, Rod, basta abrir os olhos. Gucky está na sua

frente.

Laury abaixara-se para acariciar o pequeno rato-castor.

— Como vai, meu amiguinho? — perguntou com o

mais gentil dos sorrisos. — Você seria capaz de imaginar

que Rod tem ciúmes de você?

Gucky não respondeu.

Continuava perplexo, fitando o conde, que por sua vez

arregalava os olhos, contemplando o rato-castor com uma

expressão de incredulidade.

— Ui! — piou o rato-castor, respirando com

dificuldade. — Onde é o baile de carnaval que esse titio

esquisito pretende ir?

O “titio esquisito” compreendeu imediatamente. Recuou

dois passos.

— Este é o tal do Gucky? — perguntou, dirigindo-se a

Marshall.

— Quem poderia ser senão ele?

Rodrigo estreitou os olhos e voltou a dedicar sua

atenção ao rato-castor, que começava a recuperar-se do

espanto.

— Você é Gucky? — voltou a perguntar Rodrigo,

apontando para Gucky.

Page 102: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

102

O rato-castor descansou o corpo sobre o largo traseiro.

— Alguma objeção? — perguntou em tom gentil. — Se

eu fosse como você, não andaria fazendo perguntas idiotas.

Isso reforça a impressão que a gente tem ao ver você pela

primeira vez.

Num movimento instantâneo, Rodrigo sacou a espada e

recuou dois passos.

— Defenda-se ou eu o mato ignominiosamente!

Laury soltou um grito estridente e colocou-se entre os

contendores. Rhodan lançou um olhar para os saltadores.

Estes examinaram o conteúdo da bolsa com o dinheiro e

pareciam não estar interessados no que se passava no

parque. Faziam de conta que tinham esquecido tudo que se

passava pelo mundo.

Gucky começou a gritar de alegria. Saltitava

alegremente sobre as perninhas curtas. O dente roedor

solitário brilhava aos raios do sol.

— Entre nós só as velhas usam agulhas de crochê desse

tamanho! — disse Gucky com um assobio desafinado. —

Eu lhe imporei respeito com a pata esquerda.

Rodrigo esqueceu a boa educação.

Com um grito furioso, saltou sobre o rato-castor, que se

limitou a endireitar ligeiramente o corpo e fitá-lo. No

momento em que o conde pretendia golpeá-lo, sentiu uma

pancada no pulso. A dor foi tão violenta que deixou cair a

espada. Para seu espanto, a arma adquiriu a independência,

descreveu uma curva e foi fincar-se numa árvore, onde

ficou tremendo depois de ter penetrado mais de vinte

centímetros.

Rodrigo ficou perplexo. Fitou ora Gucky, ora a espada

que continuava a balançar.

Gucky fez um gesto de triunfo e saltitou em direção a

Laury, segurando sua mão.

— Diga a verdade — disse com um chiado carinhoso.

— Você não pode estar apaixonada por esse palhaço, não

é?

Mas Laury soltou-se da mão dele.

— Você é um sujeito horrível, Gucky! — disse entre

soluços e foi para junto do homem amado, colocando a mão

sobre o ombro do mesmo. — Não se exalte Rod. Gucky não

tem a intenção de ofendê-lo. Apenas gosta dessas

brincadeiras estúpidas. Perdoe-lhe, se puder.

O conde Rodrigo provou que sabia ser generoso.

Acariciou o braço de Laury e dirigiu-se ao rato-castor.

— Esse feitiço foi uma brincadeira deliciosa, Gucky.

Quero que oportunamente você me ensine o truque. Vamos

fazer as pazes.

Gucky segurou a mão do conde entre as patas.

— De acordo. Quanto ao truque...

Ninguém dera a menor atenção ao piloto do táxi aéreo,

que por ocasião dos cumprimentos de Berzan soubera da

falsa identidade do inspetor. O ara recuara e, aproveitando-

se da confusão geral, entrou na cabine de seu veículo. Antes

que alguém pudesse impedi-lo, subiu na vertical.

Rhodan foi o primeiro a perceber. Gucky, o segundo.

— Trarei o sujeito para cá — sugeriu e começou a

concentrar-se sobre o ligeiro salto. Rhodan, porém, sacudiu

a cabeça.

— Deixe para lá, Gucky. Deixe que ele alarme os

habitantes de Trulan. Vamos dar o fora. Quando

aparecerem por aqui, verão que estão procurando no lugar

errado.

Calou-se. Um terceiro saltador saiu da casa. Era um

homem de cabelos ruivos que usava uma barba enorme e

tinha o corpo de campeão de luta livre. Lançou um olhar

perscrutador sobre Rhodan e aproximou-se do grupo.

— Então o senhor é o falso inspetor? — disse, olhando

para o uniforme de Rhodan como quem contempla um

animal raro.

Rhodan leu os pensamentos de seu interlocutor e ficou

assustado.

Não era nenhuma novidade. Mas soube controlar-se.

— Alguma objeção, amigo?

— Pelo contrário — disse o ruivo com uma gostosa

gargalhada. — Não tenho nada a ver com a armadilha em

que o senhor se meteu — esperou até que os outros

prestassem atenção às suas palavras. Aquilo que tinha a

dizer interessava a todos. — Sugiro que procure outro

esconderijo, e muito depressa. Há poucos minutos pousou

no espaçoporto de Trulan um iate de luxo acompanhado de

dois cruzadores pesados do Império. O inspetor Glogol terá

muito prazer em encontrar seu colega em Tolimon.

Rhodan sorriu amavelmente para o ruivo.

— Obrigado pelo conselho, amigo. Acho que chegou a

hora da despedida. Tem mais algum desejo?

— Não — disse Tulin em tom áspero. — O único

desejo que tenho é que o senhor dê o fora quanto antes. A

polícia não demorará em saber que um táxi o trouxe até

aqui. E não quero que encontrem ninguém quando

aparecerem por aqui. Entendido?

— O senhor não é muito gentil, mas em compensação

apresenta uma sinceridade reconfortadora — elogiou-o

Rhodan e fez um sinal ao seu grupo. — Venham, meus

amigos. Conde, não se esqueça de tirar a espada da árvore.

Temos um longo passeio diante de nós. Portanto, devemos

apressar-nos — cumprimentou os saltadores com um gesto.

— Mais uma vez, muito obrigado pelo auxílio que nos têm

prestado. Não podemos exigir mais que isso. Passem bem.

Um tanto desorientados, Laury e Rodrigo seguiram

Rhodan, que caminhava à sua frente. Gucky fechava o

grupo com seu andar arrastado. Pelos impulsos mentais que

desabavam sobre ele percebeu nitidamente que Trulan

parecia um ninho de marimbondos espantados.

A caçada já fora iniciada.

* * *

Quando os tolimonenses souberam que haviam caído

nas malhas de um impostor atrevido, a vergonha pela

humilhação misturou-se à raiva dos enganados. Os serviços

de segurança e de controle de estrangeiros lançaram mãos

de todas as forças disponíveis para capturar o inspetor,

embora não soubessem com que finalidade poderia ter

Page 103: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

103

agido esse personagem desaparecido.

Glogol contribuiu com suas medidas. Expediu uma

mensagem de alarma destinada ao regente de Árcon. A

resposta consistiu no envio de uma frota de guerra. O

espaço em torno de Tolimon foi fechado estrategicamente.

Fortes unidades militares dirigiram-se ao espaçoporto e,

por não conseguirem penetrar no iate de luxo do falso

inspetor, cercaram-no. Preferiram não destruir a valiosa

nave. Nem havia necessidade disso, pois não havia nenhum

tripulante a bordo.

Evidentemente estavam cometendo um engano, mas

isso não fazia a menor diferença.

A cidade foi revistada pelos quatro cantos. A polícia

iniciou as buscas na área central e foi avançando lentamente

em direção aos distritos periféricos. Quando chegou à

mansão dos saltadores, não encontrou nada de suspeito. Até

mesmo o piloto do táxi, trazido às pressas, ficou perplexo

ao ver-se diante de um funcionário aposentado da

administração do zoológico, que se sentia indignado porque

o haviam importunado e disse que iria queixar-se ao

governo.

Foram adiante sem terem conseguido nada.

* * *

Os fugitivos atravessaram os primeiros campos

cultivados dos subúrbios e atingiram a proteção de uma

pequena floresta, onde fizeram uma pausa.

O conde Rodrigo fungava de raiva.

— Por que temos de nos esconder que nem índios

amedrontados? Não dispomos de armas suficientes para

colocá-los em fuga?

— Dispomos — confirmou Rhodan em tom tranquilo.

— Mas o que adiantaria isso? Não podemos lutar contra um

planeta, e nem estamos interessados nisso. Já provocamos

muitas suspeitas. Temos de dar o fora sem deixar vestígio.

Um dia voltaremos para buscar a fórmula do elixir da vida,

se for necessário. Temos uma amostra do soro; talvez esta

seja suficiente.

— E como vamos dar o fora daqui? — perguntou

Marshall, que conhecia perfeitamente as condições

reinantes em Tolimon. Lembrava-se dos terríveis froghs e

da velocidade com que estes se deslocavam. — Nossa única

possibilidade de fuga está estacionada no espaçoporto.

— É isso mesmo! — confirmou Rhodan. — Gucky vai

até lá para dar uma olhada e verificar se podemos buscar a

nave. Se a teledireção ainda estiver funcionando, não

haverá problema. Mas preciso saber se o iate não está preso

ao solo. Nesse caso, a decolagem poderia provocar avarias

graves no casco. Gucky terá de soltar as amarras antes que

eu possa trazer a nave.

O rato-castor apontou as orelhas. Outra missão?

— Irei imediatamente, chefe.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Tenha cuidado, meu velho. A cidade está cheia de

policiais. E também estão atrás de você. Em hipótese

alguma poderá aparecer. Dificilmente conseguirá vencer a

distância num único salto, pois não conhecemos a distância

exata.

— Basta concentrar-me na nave. Descreva a sala de

comando, Perry. Não tenho a menor dúvida de que assim...

Rhodan fechou os olhos. Não teve a menor dificuldade

em rememorar o interior da nave. É claro que Gucky

também não tinha a menor dificuldade. Porém achava que

era preferível andar seguro.

— O painel de instrumentos forma um pequeno

semicírculo e, por cima dele, há cinco telas equipadas com

os necessários controles em forma de botões giratórios. As

duas poltronas encontram-se na frente desse painel,

enquanto à direita ficam as instalações de rádio...

— Já foi embora — disse Marshall, enquanto o conde

Rodrigo soltou um grito de espanto e murmurou alguma

coisa que soava como bruxaria. Nunca vira um

teleportador. Laury manteve-se em silêncio. Estava sentada

no chão macio, junto ao conde. Encontravam-se cercados

por moitas espessas e árvores frondosas. Só se enxergava o

céu. O sol já se aproximava da linha do horizonte. Até

parecia que teriam de passar a noite ao ar livre.

Rhodan abriu os olhos e observou:

— Tomara que não erre o salto, aterrissando em meio a

um destacamento policial. Não poderão fazer-lhe nada, mas

seria preferível que não o vissem.

Voltou a fechar os olhos.

— Gucky, onde está você? — pensou intensamente.

Marshall também captou a resposta telepática do rato-

castor.

— O segundo salto levou-me ao interior da nave. O

espaçoporto até parece um formigueiro; está cheio de

soldados e policiais. Neste instante, o verdadeiro inspetor

está aparecendo aqui para examinar a Koos-Nor. O que

devo fazer?

— A nave está ancorada ou presa de outra forma?

— Nada disso. Eles nem desconfiam de que temos a

teledireção.

— Excelente — transmitiu Rhodan muito satisfeito. —

Volte imediatamente.

Gucky não se apressou.

Encontrava-se na pequena sala de comando e, pelo

periscópio, acompanhava os acontecimentos que se

desenrolavam no campo de pouso. Sentia-se absolutamente

seguro no interior da nave, mas talvez fosse conveniente

que pudesse levar algumas informações a Rhodan.

Penetrou cautelosamente nos pensamentos do inspetor,

que passeava no seu uniforme colorido em torno da Koos-

Nor, especulando sobre a maneira pela qual o impostor se

poderia ter apoderado desse artefato especial. Os iates de

luxo desse tipo estavam reservados exclusivamente aos

inspetores do Império e às pessoas mais ricas da classe

dominante. Um deles devia ter usado um nome falso. Quem

poderia ter sido?

É claro que Glogol não encontrou resposta às suas

indagações, pois, por nenhum instante, lhe ocorreu a

possibilidade de que o impostor pudesse ser uma criatura

Page 104: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

104

que não pertencesse à raça dos arcônidas. Com um gesto

arrogante, dirigiu-se ao Ministro da Segurança de Tolimon,

que se encontrava a seu lado.

— Já prenderam o impostor?

O homem ao qual foram dirigidas essas palavras

encolheu-se de susto.

— Ainda não, senhor inspetor, mas nossos homens

estão vasculhando toda a cidade de Trulan. Ninguém

conseguirá escapar. O criminoso deve ter seus cúmplices

em nosso mundo, e nós os encontraremos.

— Não estou interessado nos cúmplices! — berrou

Glogol para o homem, que parecia petrificado. — Quero

desmascarar o patife que se atreveu a enganar o regente

robotizado.

— Naturalmente, inspetor — o ministro inclinou o

corpo. — Já dei as respectivas instruções. Ele morrerá e...

— Eu o quero vivo — berrou Glogol fora de si. — Pelas

fontes do planeta do inferno de Hradchir! O que poderei

fazer com um impostor morto? Ele não nos poderia dar

nenhuma informação.

O ministro saiu solícito, animado principalmente pelo

desejo de afastar-se do inspetor. Glogol seguiu-o com os

olhos e pensou várias coisas que Gucky absorveu com o

maior prazer.

“Esse sujeito arrogante é o tipo do arcônida”, pensou.

“Se bem que é totalmente diferente de Crest e Thora.”

Gucky pigarreou e viu que Glogol chamou alguns

tolimonenses e falou com eles. Apontou várias vezes para a

Koos-Nor.

De repente, o rato-castor começou a tremer de raiva,

pois sua consciência percebeu as ordens dadas pelo

inspetor.

Queria que técnicos especializados abrissem o casco do

iate a maçarico. Glogol esperava que, no interior da mesma,

pudesse encontrar algumas indicações sobre a identidade de

seu possuidor.

Teria sido simples para Gucky saltar de volta para

Rhodan, que acionaria imediatamente a teledireção. Mas

geralmente Gucky não aceitava as soluções simples.

Preferia complicar as situações, dando um curso todo

especial aos acontecimentos.

Não gostava do tal do Glogol. Precisava de uma lição,

mas era necessário não despertar suspeitas. O melhor seria

expor o inspetor ao ridículo, pois nesse caso ninguém se

preocuparia seriamente com as causas do incidente.

Gucky sorriu no momento em que se concentrou e

dirigiu suas energias telecinéticas para o arcônida.

Glogol ainda estava falando aos técnicos quando

subitamente sentiu uma pressão estranha na altura do

estômago. Teve a impressão de que alguém puxava suas

calças de almirante, listradas em cores vivas. Perplexo,

lançou os olhos corpo abaixo, mas não descobriu ninguém

que tivesse tido o atrevimento de despertar sua atenção por

essa forma.

Mas a força que lhe puxava as calças tornava-se cada

vez mais intensa. Com um estalo, o cinto bordado de ouro

rompeu-se, caindo ao chão juntamente com o coldre da

pistola. A arma engatilhada disparou com um chiado e a

força do recuo arremessou-a muito além da beira do campo

de pouso.

Enquanto isso, a calça de Glogol escorregou e adquiriu

sua independência de uma forma bastante estranha.

Descrevendo uma curva graciosa, desapareceu na direção

do complexo de edifícios.

Glogol usava ceroulas compridas. E um arcônida

arrogante de ceroulas é uma figura ainda mais ridícula que

um terrano que use a mesma vestimenta. A dignidade do

inspetor se desvanecera. Arregalando os olhos e tremendo

que nem vara verde, Glogol acompanhou com os olhos a

calça que se afastava pelos ares, calça esta da qual saíra de

forma tão surpreendente, sem que tivesse colaborado no

fenômeno. Os tolimonenses que o cercavam compreendiam

tanto — ou tão pouco — quanto ele, mas confiavam no que

viam. E aquilo que tinham diante dos olhos em nada

lembrava um inspetor arcônida. Apenas viam uma figura

ridícula com ceroulas cor-de-rosa e meias furadas. Apenas a

túnica cheia de condecorações lembrava o esplendor da

figura de inspetor.

Alguns dos policiais soltaram estrondosas gargalhadas.

De início Glogol não ouviu, mas logo seu rosto se

tornou vermelho de raiva. Virou-se furioso e gritou para o

grupamento. O resultado foi bem o contrário do que

esperava.

Os soldados e oficiais, bem como o Ministro da

Segurança, que regressara ao local, e outros representantes

do governo, deixaram cair o medo e as reservas. Um

inspetor de ceroulas não os atemorizava nem lhes inspirava

respeito. Era um homem como eles, e um homem muito

esquisito. Tirava as calças sem mais aquela em pleno

campo espacial!

Glogol cambaleou quando se sentiu atingido pelas

gargalhadas. Procurou apoio e segurou-se num dos criados

que constantemente ficavam a seu lado.

— Vocês pagarão por isso! — gritou com a voz rouca.

— Estão ofendendo o Império. O regente robotizado não

deixará que essa vergonha passe em brancas nuvens.

Tomarei todas as providências para que isso não aconteça.

De uma hora para outra, transformou-se num homem

frio e tranquilo. A voz recuperou o tom habitual, embora o

tom de arrogância da mesma não convencesse mais

ninguém. Dirigindo-se aos técnicos que se contorciam de

tanto rir, disse:

— Vamos logo! Ponham-se a trabalhar. Dentro de dez

minutos, quero entrar na nave.

Depois, ordenou ao criado que tirasse as calças.

* * *

Gucky ainda estava sorrindo quando, dez minutos

depois da ordem de Rhodan, voltou a materializar-se no

esconderijo situado na floresta. Mal seu vulto adquiriu os

contornos definitivos, caiu no chão de folhas macias,

completamente exausto e quase estourando de tanto rir.

Page 105: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

105

Rhodan, que acompanhara os acontecimentos por via

telepática, um tanto contrafeito, só não interveio nestes

porque repentinamente se dera conta de que poderiam ter

consequências de grande alcance. Uma vez abalado o

prestígio do inspetor, a fuga de Tolimon se tornaria muito

mais fácil.

Marshall e Laury também estavam informados sobre os

acontecimentos. Apenas o conde Rodrigo levou um susto

quase mortal quando Gucky surgiu repentinamente em

meio ao grupo. O que menos compreendia eram os sorrisos

dos dois homens, de Gucky e da moça.

— O que aconteceu? — indagou.

Rhodan explicou. O rosto do nobre também se cobriu

com um sorriso alegre. Ao que tudo indicava, sabia

imaginar perfeitamente como devia ser um conde de cuecas

e, face à sua reação, parecia que nem mesmo um homem

terreno do século XVII infundiria muito respeito se usasse

esse tipo de vestimenta.

— Bem feito, meu pajem — disse, inclinando-se para

Gucky e acariciando-o.

— Os homens de Trulan ficarão tão alegres que se

esquecerão de procurar-nos.

— Mas não se esquecerão de nossa nave — disse

Rhodan com espírito mais realista e pegou o aparelho de

teledireção.

— Está na hora de pensarmos em nossa segurança. Se

dermos oportunidade para Glogol, ele impedirá nossa fuga,

apesar da vergonha pela qual passou. Aliás, neste instante

está usando as calças de um dos seus criados, segundo

deduzo através dos pensamentos de alguns dos

circunstantes. Coitado!

— Quem? O criado? — procurou certificar-se o conde

Rodrigo.

— Tolice! Só pode ser Glogol. As calças que está

usando não são listradas — Marshall sorriu enquanto

proferia estas palavras.

Rhodan girou algumas rodinhas e ponteiros, apontou a

antena fininha na direção do espaçoporto e puxou uma

pequena chave, que se movia facilmente para todos os

lados.

A pequena tela de orientação não se acendeu, pois não

se prestava ao controle numa distância tão reduzida.

— Será que a nave não será perseguida se decolar de

repente? — perguntou Marshall em tom preocupado. —

Nunca conseguiremos embarcar com a mesma rapidez com

que cairão em cima de nós.

Rhodan dirigiu-se para Laury.

— Me entregue à ampola com o soro, Laury. Teremos

que apressar-nos, e eu não quero que a senhora a perca.

Pegou o frasquinho, contemplou-o atentamente por um

instante e enfiou-o no bolso. Só depois disso respondeu à

pergunta de Marshall.

— É verdade, John. Assim que nossa nave pousar,

temos que embarcar e decolar quanto antes. A polícia a

seguirá até aqui. Talvez seria conveniente se realizássemos

uma manobra de despistamento. Aguardemos para ver o

que vai acontecer.

A Koos-Nor surgiu na periferia da cidade e passou a

pouca velocidade pouco acima das últimas mansões.

Dirigia-se diretamente para a floresta.

Rhodan viu perfeitamente os três ou quatro pontos

reluzentes que se aproximavam dos lados e procuraram

atacar a nave.

— Era o que eu imaginava — disse. — Gucky, salte

para dentro da Koos-Nor e informe o que puder ver.

Dirigirei a nave de acordo com as indicações que você me

fornecer. Entendido?

— Perfeitamente! — disse o rato-castor e

desmaterializou-se.

Perplexo, o conde Rodrigo fitou o lugar vazio deixado

por Gucky e achegou-se a Laury. Para ele, a telepatia e a

teleportação continuavam a ser uma bruxaria inconcebível,

por mais que tentassem explicar-lhe os segredos desses

dons.

— Estou na sala de comando. Ativei os campos

defensivos. Os aras estão atacando — Gucky fez uma

ligeira pausa. Depois prosseguiu no seu relato: — Também

liguei o receptor. O inspetor mandou que seus cruzadores

entrassem em ação. Querem destruir a Koos-Nor. O que

devo fazer?

Rhodan moveu a chave do aparelho de teledireção.

Marshall e Laury viram a nave descrever uma curva

fechada e afastar-se em direção ao sol que já se encontrava

no ocaso.

— Avise assim que avistar o mar, Gucky. Continue na

nave, aconteça o que acontecer. Para você, não haverá o

menor perigo.

Sem que o quisesse, Rhodan falara alto, o que o conde,

como nãotelepata que era, apreciou muito. A resposta de

Gucky, porém, veio em silêncio, tornando-se compreensível

apenas para Rhodan, Marshall e Laury:

— Perigo? O que vem a ser isso?

Rhodan sorriu, mas logo voltou a assumir um ar sério.

Seguiu com os olhos as naves dos aras, que também

corriam em direção ao sol. Uma surpresa estava reservada

para estas.

Dali a menos de dois minutos, Gucky anunciou:

— O mar está embaixo de mim.

— Muito bem — respondeu Rhodan. — Você

descreverá uma curva elegante e cairá para desaparecer sob

a água. Amarre-se, para que nada lhe aconteça. Será

exatamente dentro de dez segundos.

Gucky não deu resposta direta, mas Rhodan

acompanhou seus pensamentos e ficou sabendo que o rato-

castor havia compreendido e seguia suas instruções. Mais

uma vez, a chave do aparelho de teledireção foi acionada. A

Koos-Nor, que se encontrava a mais de duzentos

quilômetros de Perry, reagia a qualquer impulso, por mais

ligeiro que fosse. Subiu quase na vertical, ficou parada por

um instante e caiu que nem uma pedra.

Qualquer observador teria a impressão de que o

mecanismo de propulsão e de direção havia falhado. E

Page 106: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

106

vários pares de olhos seguiram os acontecimentos com um

máximo de atenção. Trinta segundos depois, Glogol ficou

sabendo que o iate caíra ao mar juntamente com o piloto.

Com isso, a fuga do falso inspetor fora cortada. Encontrava-

se em algum lugar dentro da cidade.

Trulan foi fechada estrategicamente. Ninguém podia

sair da cidade.

Outra busca foi iniciada, mais rigorosa que a anterior.

Os agentes e os contrabandistas que trabalhavam para os

mercadores galácticos passariam daqui para frente por maus

momentos.

Quando a Koos-Nor começou a cair, o corpo de Gucky

perdeu o peso.

O rato-castor estava bem seguro no assento do piloto. O

método de mergulhar uma nave espacial nas águas do mar

não era novo. Para os ocupantes não representava nenhum

perigo, desde que o casco não vazasse.

A nave bateu na superfície da água. Os campos de

absorção reduziram a pressão do impacto a zero no interior

da nave.

— A nave está afundando! — transmitiu Gucky para

Rhodan. Examinou as telas iluminadas, nas quais o verde

foi assumindo tonalidades cada vez mais escuras. Depois de

algum tempo, a tela tornou-se negra. — Já devo estar bem

fundo.

— Vou deter a nave — respondeu Rhodan — para que a

pressão não se torne muito intensa. As naves que estavam

atrás de você desapareceram. Se quiser pode voltar para

junto de nós.

— Não poderia ficar mais um pouco? Aí na floresta

estamos completamente isolados do mundo exterior, mas

aqui disponho do receptor. Posso ouvir as instruções de

Glogol. Dessa forma saberemos que medidas pretendem

tomar contra nós.

Rhodan hesitou um pouco, mas logo pensou:

— Está bem. Mas dentro de exatamente trinta minutos

você deverá estar aqui.

Gucky deixou o campo livre e bloqueou seu cérebro.

Desatou os cintos e saltitou alegremente pelo corredor,

dirigindo-se à despensa.

Até mesmo o estômago de um rato-castor vez por outra

precisa de um reforço.

O rádio estava funcionando a todo volume. Os avisos

dos grupos de busca chegavam ininterruptamente.

Conseguiram localizar um esconderijo de contrabandistas,

mas os criminosos lograram fugir sem serem reconhecidos.

Alguém confirmou que Árcon havia enviado certo número

de couraçados que bloqueavam Tolimon. Essa medida

parecia superada, já que a nave do falso inspetor caíra ao

mar. Todavia, sabia-se que o impostor não se encontrava no

interior do iate. Ainda devia encontrar-se em Trulan

juntamente com seu estranho criado.

Gucky cresceu uns cinco centímetros quando ouviu que

também estava sendo citado nos comunicados oficiais.

Subitamente teve uma ideia.

Por que não iria deixar os tolimonenses e o tal do

Glogol absolutamente seguros de que ele e Rhodan ainda se

encontravam na cidade? Dessa forma as operações de busca

se concentrariam ainda mais em Trulan, limitando-se a uma

área restrita. Dessa forma Rhodan poderia aguardar

calmamente em seu esconderijo até que chegasse a

escuridão.

Não julgou necessário informar Rhodan sobre a decisão

que acabara de tomar. Efetuou um salto cego em direção a

Trulan. O fato de que havia quase quinhentos metros de

água acima dele não o incomodava nem um pouco.

Gucky rematerializou no seu antigo alojamento situado

na área dos cortiços, pois era o lugar que melhor podia

evocar em sua lembrança. Nada havia mudado. Ao que

parecia, o frogh que fora morto era a única criatura que

conhecia o esconderijo.

O rato-castor foi até a janela e olhou para a rua. O lugar

parecia abandonado. Havia apenas viaturas policiais

correndo de um lado para outro, cuspindo verdadeiras

legiões de policiais uniformizados, que penetravam

rapidamente nas casas. Era de supor que nem mesmo um

rato lhes poderia escapar.

Gucky concentrou-se sobre a Praça do Grande Mo, que

ficava a cerca de um quilômetro de distância, e saltou.

A teleportação era uma capacidade estranha e excelente.

Bastava pensar no ponto de destino, concentrar-se sobre o

mesmo e desmaterializar-se, para vencer a distância sem a

menor perda de tempo. Uma vez no destino, a gente voltava

a rematerializar.

Foi o que Gucky fez.

Naturalmente o salto envolvia um grande risco. Era bem

verdade que não havia o perigo de materializar-se no

interior de outra porção de matéria. Mas se a gente voltasse

ao espaço normal no meio de um grupo de inimigos, e se

estes reagissem com suficiente rapidez...

Felizmente para Gucky, não o fizeram.

O rato-castor surgiu quase no centro da praça e viu-se

rodeado por uma multidão de paisanos, olhando todos na

mesma direção. O exército patrulhava a área, com as armas

engatilhadas nas mãos. Tangendo os transeuntes para o

interior das casas, as viaturas policiais corriam, com as

sereias ligadas, pela larga via principal.

Gucky espreitou em torno. Encontrou olhares

espantados, nos quais a compreensão começou a despontar

aos poucos. Seu retrato devia ter sido espalhado por todos

os cantos juntamente com o do arcônida.

Quando os primeiros dedos apontaram-no, Gucky

começou a correr.

Logo o inferno ficou às soltas.

As pessoas corriam atrás dele, balbuciavam palavras

desconexas e caíam por cima de obstáculos surgidos não se

sabe de onde. Para Gucky não foi nada fácil livrar-se dos

5

Page 107: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

107

perseguidores com suas pernas curtas, ainda mais que a

polícia já notara algo de estranho e quis saber a causa do

tumulto.

— É o criado do falso inspetor! — gritou alguém com a

voz rouca e na corrida derrubou um policial. Por isso outro

policial o segurou, impedindo-o de agarrar o fugitivo.

Quando o engano foi esclarecido, Gucky já se encontrava

na extremidade da praça.

O grito do paisano propagou-se pela multidão. As forças

armadas começaram a agir imediatamente. O bairro foi

bloqueado e uma busca geral foi iniciada.

Gucky preferiu não desaparecer pura e simplesmente

diante das vistas dos tolimonenses. Deviam ter a impressão

de que se escondera no interior da casa. Alguns saltos

curtos não chamavam a atenção de ninguém, e valia a pena

executá-los, mesmo que só o fizessem avançar alguns

metros de cada vez.

Encontrou um espaço livre e atravessou a rua correndo,

passando entre os veículos em movimento e os policiais

exaltados. Antes que alguém compreendesse o que estava

acontecendo, chegou até a frente dos prédios.

Agora tinha tempo.

Foi caminhando tranquilamente, balançando o corpo,

como se nada tivesse que ver com aquela caçada. Menos de

dez segundos depois, voltaram a descobri-lo. Armas foram

levantadas, gritos soaram, comandos foram berrados. Um

oficial aproximou-se correndo.

Gucky descreveu uma curva elegante para a esquerda e

desapareceu numa ampla porta. Quando viu que não havia

mais ninguém por perto, teleportou-se para o telhado do

edifício. Dali observou o resultado de sua ação por meio da

telepatia. Avançou cautelosamente até a beira do telhado e

olhou para baixo.

A área que se estendia diante da entrada do prédio

parecia um campo de treinamento militar.

A notícia de sua aparição devia ter corrido com a

velocidade do vento, pois naquele instante um carro aberto,

vindo da praça, aproximou-se velozmente. Os freios

chiaram e o inspetor desceu.

Glogol trouxera uma calça de reserva, pois mais uma

vez os circunstantes contemplaram a figura colorida do

almirante da frota espacial dos arcônidas. Brandindo o

radiador, abriu caminho e viu-se diante do oficial que

comandava as buscas.

Gucky “ouviu” cada palavra trocada lá embaixo.

— Estava se referindo ao criado do falso inspetor?

Onde está ele?

— Fugiu para dentro deste prédio. Meus soldados estão

à sua procura.

— O prédio tem alguma saída pelos fundos?

— Todas as saídas estão sendo vigiadas.

Glogol pigarreou.

— Avise assim que consiga pôr as mãos no sujeito.

Quero interrogá-lo pessoalmente.

— Nós o prenderemos. Não pode estar longe. As

pessoas que o viram dizem que se desloca com muita

dificuldade. Trata-se de um animal de reduzido grau de

inteligência, que devia estar no zoológico e não...

O oficial não conseguiu prosseguir.

Seu boné parecia ter sido agarrado por alguma mão

mágica: desceu e cobriu-lhe o rosto. Subitamente viu-se no

escuro. Glogol, que não compreendia mais nada,

contemplou a feitiçaria, que naquele instante não poderia

deixar de provocar seu espanto. Mas logo lembrou-se do

que acontecera com sua calça. Olhou cautelosamente para

todos os lados, guardou a pistola e usou ambas as mãos

para segurar essa peça de sua vestimenta.

Parecia que tudo era possível naquele planeta maluco.

— Deixe de tolices e procure aquele gatuno! — disse

com uma calma surpreendente e voltou ao carro, deixando-

se cair no assento com uma atitude de alivio. Nada mais lhe

poderia acontecer. — E não se esqueça: eu o quero vivo.

O carro afastou-se.

O oficial pôs o boné em ordem, contemplou-o por

alguns segundos, sacudiu a cabeça e voltou a colocá-lo.

Correu para dentro do prédio suspeito, a fim de animar seus

homens a trabalharem com maior disposição.

Uma coisa era certa: as pessoas que estavam procurando

deviam estar por aqui.

E seriam encontradas!

* * *

Rhodan olhou para o relógio e franziu a testa.

— Gucky já devia ter chegado. Os trinta minutos já

passaram. Daqui a duas horas, começará a ficar escuro.

— Deve estar ouvindo rádio — conjeturou Marshall. —

Por isso, não é de admirar que bloqueie os pensamentos e

se esqueça do tempo.

Tudo estava em silêncio em torno deles. Nos campos e

nos prados, não havia uma única pessoa. As patrulhas

policiais que andavam por entre as mansões de repente

desapareceram em direção ao centro da cidade. Procediam

sistematicamente, mas não se interessavam pela floresta.

— Ao que parece, realmente acreditam que estamos em

Trulan — disse Rhodan aliviado.

Marshall fechou os olhos e ficou “em recepção”. Não

foi fácil cristalizar alguns impulsos definitivos em meio aos

pensamentos que o atingiam e entendê-los. Mas conseguiu.

— Novas diretivas! — cochichou como que para si

mesmo. — Uma das pessoas procuradas foi vista na Praça

do Grande Mo — de repente, abriu os olhos e fitou Rhodan

com uma impressão de espanto. — Foi o criado do falso

inspetor!

Rhodan suspirou.

— É Gucky! Só pode ser ele. Seu aspecto é singular;

não pode ser confundido com ninguém.

— A não ser com outro rato-castor — obtemperou

Marshall.

— O único rato-castor que existe fora de Vagabundo, o

planeta do sol moribundo, é Gucky. Só pode ter sido ele.

Saiu da Koos-Nor e andou fazendo das suas — Rhodan

ficou muito sério. — Esperem até que ele volte, que eu lhe

Page 108: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

108

digo o que acho do seu procedimento. É uma...

— Pois não — piou Gucky com a consciência não

muito tranqüila e recuou quando Rhodan se virou

abruptamente em sua direção. — Apenas quis...

— O que foi que você quis Guck? — quando Rhodan

omitia o y, isso era mau sinal. — Vamos logo, fale! Por que

não seguiu minhas instruções?

— Você mesmo disse em certa ocasião que, se eu

conseguir alguma coisa boa com um procedimento

arbitrário, sempre me perdoará.

— Ah, é? E daí? Isso modifica alguma coisa no fato de

você aparecer bem no centro de Trulan e tocar a polícia

para cima de nós?

— Pelo contrário, chefe, eu a toquei para um lugar em

que não estamos. Para a Praça do Grande Mo...

— Está bem, está bem! — disse Rhodan para encerrar o

debate, pois já compreendera tudo. — Mas quero que no

futuro você me informe sobre os trabalhos autônomos que

pretende realizar. Qual foi o resultado dos seus esforços?

— Fui visto no centro da cidade, onde estão revistando

casa por casa. Ninguém pensa nesta floresta.

Rhodan olhou para a cidade. Não se via mais ninguém

na zona periférica. Os comandos deviam estar a caminho

das zonas centrais.

Voltou a dirigir-se a Gucky.

— Está bem, meu caro. Vamos fechar um olho.

— Por que não fecha os dois? — sugeriu Gucky.

Rhodan sorriu e voltou a sentar.

— Vamos esperar até que escureça.

* * *

Depois do pôr do sol, o tráfego aeroespacial diminuía

consideravelmente. Só vez por outra, uma unidade menor

sobrevoava as zonas periféricas de Trulan e iluminava a

área com seus holofotes.

Mesmo nas altitudes maiores, viam-se de quando em

quando as luzes dos veículos atmosféricos. A frota do

Império devia estar estacionada numa região mais afastada

do espaço, a fim de capturar qualquer fugitivo que

conseguisse romper o primeiro anel.

Rhodan contava com essa possibilidade quando, pela

meia-noite, pegou o aparelho de teledireção e ligou-o.

O conde Rodrigo estava dormindo. Laury, que estava

deitada a seu lado, também dormia.

“Aquelas duas criaturas parecem feitas uma para a

outra”, pensou Rhodan, “mas várias eras os separam.”.

O que diria Rodrigo da Terra do século vinte e um?

Conseguiria adaptar-se a ela?

Marshall se mexeu. Estava recostado no tronco de uma

árvore. Gucky, que estava deitado no seu colo, cochilava e

murmurava coisas incompreensíveis. Num momento

assobiou baixinho e voltou a encolher-se.

Rhodan sorriu. Seus olhos já se haviam acostumado à

escuridão. Percebia todos os detalhes. Os controles do

aparelho de teledireção emitiam um brilho suave. Lá estava

ele com seu grupo, num planeta estranho e em meio a uma

verdadeira malta de habitantes hostis, praticamente sem

armas e contando apenas com a nave de luxo submersa.

Mas possuía aliados cujo valor excedia qualquer arma.

Podia contar com Gucky, o mutante de três dons, e

Marshall, o telepata, seu grande amigo. Quanto a Laury...

bem, no momento não poderia contar muito com ela, mas

afinal ela lhe conseguira o soro. E ainda havia o conde

Rodrigo de Berceo, um homem muito hábil no manejo da

espada.

Sem fazer o menor ruído, o iate de luxo desceu sobre a

folhagem e pousou suavemente na pequena clareira.

Rhodan aguçou o ouvido para todos os lados e procurou

estabelecer contato com qualquer cérebro que se achasse

nas proximidades. Mas, por mais que se esforçasse, não

encontrou nada. Ninguém percebera o fenômeno.

Deixou que seus companheiros dormissem e dirigiu-se à

pequena nave que, naquela clareira, tinha o aspecto de uma

gigantesca baleia. O envoltório prateado reluzia sob a luz

das estrelas distantes. Estava molhado com a água do mar.

Rhodan abriu a escotilha externa. Só após isso, foi

acordar os amigos.

Menos de cinco minutos depois, o planeta mergulhou no

espaço e penetrou no dia eterno do infinito. Tolimon

transformou-se numa foice prateada. Trulan era

perfeitamente visível sob a forma de um diadema cintilante

cravado na face noturna do planeta. Ainda continuavam a

procurar o falso inspetor e seu estranho criado.

Rhodan fixou os controles e virou-se.

— Rodrigo, a esta hora o senhor não pode fazer nada.

Laury lhe mostrará seu camarote. Procure dormir. Não

sabemos o que nos aguarda, e, por isso mesmo, é preferível

que o senhor esteja descansado. Laury também pode ir para

a cama.

Esperou que os dois se afastassem, acompanhados por

um sorriso de Gucky. Marshall lançou um olhar indagador

para Rhodan.

— E nós?

— Quero que fiquem aqui até que realizemos a primeira

transição. Para isso precisamos desenvolver a velocidade da

luz, que só será atingida dentro de dez minutos. Esses dez

minutos representam a fase mais crítica do

empreendimento. Marshall ocupe os controles do

desintegrador pesado e destrua qualquer atacante que se

aproxime demais. Desde logo lhe dou permissão para abrir

fogo.

Marshall confirmou com um gesto e dirigiu-se à cabine

apertada do comando de fogo. Gucky seguiu-o com um

olhar pensativo.

— E eu? — lamentou-se. — O que é que eu vou fazer?

— Deite e aguarde. Observe as telas. Manipule os

controles de radar. Vendo qualquer nave se aproximar,

avise-me. Como vê, há muita coisa a fazer. Se não estou

enganado, daqui a pouco vai acontecer muita coisa.

Rhodan não estava enganado.

Na tela de radar, surgiu uma mancha verde e oval, que

se aproximava obliquamente à linha de sua trajetória. Os

Page 109: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

109

algarismos desfilavam sobre os quadros luminosos

retangulares, fornecendo indicações sobre a distância, a

velocidade e as dimensões do objeto.

Rhodan parecia pensativo; fez “hum” e disse:

— E um cruzador pesado. Será preferível darmos o fora

quanto antes. No momento nossa velocidade é pouco

inferior a 0,8 luz. Vai demorar mais um pouco. Que pena!

— Marshall pode dar cabo dele — resmungou Gucky.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Muitas missões já falharam porque os homens que as

executavam superestimaram suas forças e habilidades. Não

estou disposto a assumir este risco. Não estamos em

condições de enfrentar um cruzador pesado. Teremos sorte

se nosso campo repulsor aguentar, isto é, se o cruzador não

o estourar na primeira tentativa.

— Não quero ser estourado. Afinal, não sou nenhuma

bolha de sabão — disse Gucky.

— Não é mesmo — confirmou Rhodan com o rosto

mais sério do mundo. Examinou os controles. — A

velocidade é de 0,89 luz. Daqui a pouco estará na hora —

pegou o microfone do intercomunicador. — Marshall,

espere até que o inimigo abra fogo. Quando isso acontecer,

responda imediatamente.

— Combinado, chefe — respondeu Marshall

tranquilamente.

A nave também se tornou perceptível nas telas visuais.

Era um dos veículos esféricos de duzentos metros de

diâmetro que Rhodan incluíra nas unidades da classe Terra.

Rhodan não tinha o menor interesse em destruir uma

nave do Império Arcônida, que já fora seu aliado e

provavelmente voltaria a sê-lo.

0,94 da velocidade da luz. Faltavam poucos segundos.

Gucky já ligara o receptor. Girou os controles.

Subitamente uma voz potente abafou todos os ruídos.

Estava sendo transmitida em todas as faixas e era evidente

que vinha da outra nave, que descrevia uma curva para

adaptar sua rota à do iate.

O cruzador pesado e a Koos-Nor atravessavam o espaço

lado a lado. De ambos os lados, as peças de artilharia

estavam em posição de disparo, mas o gigante espacial

ainda hesitava em partir para o ataque.

A voz tornou-se mais nítida.

— ...em nome do Império intimamos o senhor a fazer

cessar imediatamente a aceleração. Renda-se, pois do

contrário abriremos fogo. O regente do Império quer falar

com o senhor. Responda!

Rhodan fez um sinal para Gucky. O rato-castor

confirmou com um gesto e ligou o transmissor para a faixa

adequada.

Então o cérebro robotizado de Árcon estava interessado

em conhecer o arcônida que se atrevera a desempenhar o

papel de inspetor. Rhodan sorriu, pois compreendia as

razões que animavam a lógica do robô positrônico que

controlava um império estelar. Para dar conta da tarefa

quase impossível, a máquina precisava de recursos

humanos, especialmente da iniciativa humana. Um arcônida

que conseguisse enganar todo um mundo para passar por

inspetor também seria capaz de executar tarefas positivas.

Por isso, o cérebro robotizado dera ordem para que o

malfeitor não fosse morto. Rhodan poderia ficar tranqüilo.

Em hipótese alguma o cruzador pesado abriria fogo.

Assim, sentiu-se bem mais calmo quando falou ao

microfone:

— Mensagem entendida. Quem é o senhor?

Fazia questão de ganhar tempo. No momento em que

penetrasse no hiperespaço, estaria irremediavelmente fora

do alcance de seus perseguidores. O compensador já havia

sido ligado. Ninguém notaria o menor abalo do complexo

espaço-temporal, portanto não seria possível localizá-los. O

iate de luxo desapareceria nas profundezas do espaço

intergaláctico sem deixar o menor vestígio.

— Aqui fala RO-867, representante do regente. Renda-

se!

Então era um robô! O cruzador pesado estava sendo

dirigido por um robô de combate dos arcônidas. Isso

tornava a situação muito mais fácil, pois um robô em

hipótese alguma poderia afastar-se das diretivas fornecidas

pelo regente. No homem, sempre havia o elemento da

capacidade de decisão, que poderia proporcionar surpresas.

Com um robô, as coisas eram diferentes. Depois de ter

reconhecido os motivos que animavam o regente

robotizado, Rhodan percebeu que sua vida não corria o

menor perigo. O robô recebera instruções para capturá-lo

vivo, e ele se ateria rigidamente a essas instruções, mesmo

que dessa forma a presa lhe escapasse.

— Preciso ter certeza de que o senhor não está blefando,

RO-867. Forneça sua sigla de identificação.

O estratagema não era muito convincente, pois o

velocímetro já indicava 0,98 luz. Faltavam apenas dez

segundos.

— Dou-lhe mais cinco segundos — disse o alto-falante.

No mesmo instante, vários relampejos surgiram na zona

equatorial da outra nave.

Os feixes de raios ofuscantes cruzaram a trajetória da

Koos-Nor, mas não produziram o menor efeito. Rhodan já

não tinha tanta certeza: não sabia se aquilo eram disparos

de advertência, ou se era um fogo mal dirigido.

Colocou a mão sobre a chave do dispositivo de

hipersalto.

Faltavam dois segundos. Executariam um salto às cegas

para outra dimensão. Voltariam a materializar-se em algum

lugar, num raio de cem a duzentos anos-luz.

— É tarde, RO-867! — disse com a voz tranquila e

puxou a chave.

O gigantesco veículo esférico desapareceu. No mesmo

segundo, o lugar em que se encontrava foi ocupado por

estranhas constelações, que antes não se encontravam lá.

Rhodan examinou uma escala.

— Cento e vinte e três anos-luz — murmurou. —

Conseguimos.

Gucky escorregou do sofá para o chão. Estava radiante.

— Pois vamos para a Terra, chefe. Tenho que resolver

Page 110: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

110

um assunto com Bell. Foi por causa dele que em Vênus

alguns colonos miseráveis...

— Por enquanto nem pense na Terra — disse Rhodan,

sacudindo a cabeça. — Temos que esperar mais um pouco.

Você sabe o que aconteceu nos últimos seis decênios?

Quem sabe se não estão em condições de determinar a

localização dos saltos, mesmo que o compensador esteja

ligado? Pois então! Se isso acontecesse, eles nos seguiriam

e encontrariam a Terra. Vamos passar algumas semanas no

espaço. Andaremos por aí e procuraremos um planeta

isolado. De lá ficaremos captando os sons do Universo e

esperaremos até que a situação fique mais tranquila. O

procedimento que adotamos em Tolimon deve despertar

algumas lembranças nos bancos de dados do regente

robotizado. Mais dia menos dia, o cérebro se lembrará de

Rhodan.

— Um mundo isolado? — Gucky contorceu a boca e

fez desaparecer o dente roedor. — Onde será isso?

— Em qualquer lugar — disse Rhodan e partiu para a

segunda transição.

* * *

Depois de quatro transições executadas a esmo, a Koos-

Nor materializou-se diante de um estranho sistema solar.

Uma gigantesca estrela vermelha estava acompanhada

de um anão azulado que possuía um planeta próprio. A

estrela principal tinha dois.

Um sistema solar geminado, cujos sóis só distavam

poucos minutos-luz um do outro.

O receptor de rádio permaneceu mudo. Era quase certo

que nessa parte do Universo não havia seres inteligentes.

Por isso, era de supor que os três planetas não fossem

habitados. Por enquanto não se poderia saber se o ser

humano poderia sobreviver em algum deles.

Gucky lançou um olhar desconfiado para os dois sóis.

Rhodan leu seus pensamentos. Um sorriso amargo

esboçou-se em seu rosto.

— É isso mesmo, Gucky! Se qualquer desses planetas

tiver um ambiente apropriado, passaremos por aqui nossas

férias. Ninguém nos procurará nesta área. Assim que o

ambiente estiver mais tranquilo na Via Láctea, rastejaremos

de volta à Terra.

O rosto de Gucky era um modelo de decepção

— Férias? Lá embaixo não deve haver cinema, nenhum

Bell para chatear, nenhuma moça...

— Não diga tolices! — Rhodan parecia contrariado.

Ligou o aparelho de análises espectrais para examinar os

três planetas. — Acorde o pessoal.

Gucky arrastou-se em direção à porta, olhou para o

relógio e virou-se.

— Por que vamos acordá-los? Nem tiveram tempo para

dormir. Ao menos, Laury e o titio espadachim não tiveram.

Rhodan levantou a cabeça e lançou um olhar

prolongado para o rato-castor.

— Bloqueie sua mente quando quiser pensar uma coisa

dessas, Gucky — disse em tom sério. — Laury é uma moça

decente e o conde também...

— Sim — disse Gucky e teve a cautela de ir até a porta,

abri-la e sair ao corredor antes de prosseguir. — É uma

moça decente, mas também é uma moça apaixonada.

Depois de dizer estas palavras, desapareceu.

Rhodan olhou para a porta fechada e aguardou

pacientemente os resultados das análises espectrais

automáticas dos três planetas.

Quando Marshall entrou na sala de comando, ainda

sonolento, a decisão já havia sido tomada.

A Koos-Nor deslocava-se à velocidade da luz em

direção ao planeta solitário do sol azul.

— Gucky falou em férias — disse Marshall. — Será

que o senhor estava falando sério?

— É mais ou menos isso, John. Serão férias pagas.

Ainda não sabemos quem vai pagar a conta. Faço votos de

que não seja eu.

A porta voltou a abrir-se. Gucky entrou, segurando

cautelosamente a espada do conde. Saltou para o sofá e

colocou a arma assassina ao seu lado.

— Atirou-a contra mim — murmurou com a voz

preocupada. — Este conde é um homem muito esquentado.

Afinal, eu não poderia saber...

— Você não é telepata? — disse Rhodan com uma

recriminação bem perceptível na voz.

Marshall disse em tom sarcástico:

— Seu invejoso de uma figa!

— Hum — chilreou Gucky e passou a dedicar um

interesse surpreendente ao planeta que se aproximava.

O acaso pode estragar o melhor dos planos.

Foi o que aconteceu em Tolimon, um dos mundos dos aras, onde Perry Rhodan, o pretenso

inspetor de Árcon, subitamente se confronta com um fato novo: a existência do inspetor

verdadeiro. Perry Rhodan e seus companheiros conseguiram deixar o perigoso planeta. Acontece

que o mundo em que foram abrigar-se não é menos perigoso que este. Em Os Condenados de

Isan, Perry volta a correr novos riscos.

Page 111: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

111

Nº 53

De

Kurt Mahr

Tradução Richard Paul Neto Digitalização Vitório Nova revisão e formato W.Q. Moraes

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo

reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente

teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram

insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinquenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido

no ano de 1984.

Uma nova geração de homens surgiu.

E, da mesma forma que em outros tempos, a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no

governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas

de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à

colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar, não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os

soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória,

evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar

qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o

manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército

— continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua

origem terrana.

Em Isan, os sobreviventes da guerra nuclear, confinados em abrigos subterrâneos, estão

prestes a destruir-se mutuamente. Conseguirá Rhodan infundir-lhes novas esperanças?

Page 112: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

112

Ivsera lançou um olhar pensativo para a fileira de

objetos brilhantes e reluzentes.

“Devia estar triste”, pensou. “Quem dera que tivesse um

único vestido, uma calça ou um casaco!”

Mas não havia nada disso. Nem vestido, nem calça, nem

casaco. Nada além das poucas peças de roupa que trazia no

corpo.

Ivsera não conseguia ficar triste por isso. Há dias os

preciosos aparelhos estavam parados. E há dias não eram

fornecidas peças de roupa cujas fibras

orgânicas pudessem ser convertidas em

alimentos sintéticos. Há dias os

ocupantes do abrigo de Fenomat viviam

de um pequeno estoque de provisões,

que estaria esgotado amanhã ou depois.

Virou-se. Irvin estava atrás dela,

encostado a uma mesa, mas com o rosto

sério.

— Está triste? — perguntou.

Ivsera sacudiu a cabeça.

— Não. Já não me importo com

mais nada.

— Você devia avisar Havan, não

acha?

Ivsera lançou um olhar de

perplexidade para o jovem.

— Havan? Já está informado. Há

dez dias.

Irvin empurrou-se da mesa e

aproximou-se alguns passos. Usava

uma calça muito curta, que começava

abaixo do umbigo e chegava até a metade da coxa. No

abrigo de Fenomat, nenhum homem podia possuir outra

roupa além desta.

— Não se lembrará — afirmou Irvin.

— Mas...

Irvin levantou a mão num gesto tranquilizador.

— Não há nenhum, mas acho que não preciso dizer-lhe

que tipo de homem é Havan. Ou será que preciso?

Ivsera baixou a cabeça.

— Você não poderia ir em meu lugar e contar-lhe? —

perguntou.

Irvin sacudiu a cabeça.

— Prefiro não ir. Não ganharia nada com isso. Havan

gritaria para mim e explicaria que a química chefa lhe devia

prestar estas informações pessoalmente.

Ivsera respondeu com um suspiro:

— Você tem razão, Irvin — levantou a cabeça, fitou o

jovem e em seu rosto surgiu um sorriso forçado. — Acho

que é preferível liquidar isto logo.

Irvin fez um gesto afirmativo.

— Fico torcendo por você.

Ivsera abriu a porta e saiu para o corredor. O ar

sufocante, morno e malcheiroso tirou-lhe a respiração.

Olhou para os lados e ficou satisfeita ao notar que ninguém

a via.

Caminhou depressa os cinquenta metros que a

separavam do elevador. Chamou a cabina, entrou e apertou

o botão do pavimento inferior. A cabina começou a

movimentar-se lentamente e aos arrancões, o que era um

sinal de que as válvulas de ar comprimido já não

funcionavam bem.

“Nada está funcionando”, pensou Ivsera. “A renovação

de ar não funciona, não se encontra nada para comer e

beber.”

Depois balbuciou:

— Quem dera que pudéssemos subir!

E continuou pensando:

“Subir para as paragens onde há oito

anos não vive mais ninguém. Para as

áreas em que a tormenta tange nuvens

de poeira radiativa e cada pingo de

chuva contém uma quantidade de veneno

que daria para matar dez pessoas. Para

o lugar em que uma extensão de dez

quilômetros de rocha derretida e

vitrificada assinala o ponto zero, local

onde a bomba fora arremessada quando

da mais terrível guerra de todos os

tempos.”

Ivsera procurou calcular quantas

pessoas teriam sobrevivido. Seis mil

haviam procurado refúgio no abrigo de

Fenomat. Após oito anos, haviam

passado a dez mil. Fenomat era a capital

do país, motivo por que num subúrbio

havia outro abrigo, o abrigo de Sallon. Sua capacidade era

igual à do abrigo de Fenomat.

Em todo o país existia um total de cinco abrigos dessa

espécie. Supondo que o inimigo dispunha de igual número

no outro continente, concluir-se-ia que cerca de cem mil

pessoas teriam sobrevivido à grande guerra de Isan.

Ivsera pensou admirada: “Cem mil num total de três

bilhões!”

O elevador parou. A moça abriu a porta.

Do lado de fora, estendia-se um corredor igual àquele de

que Ivsera acabara de sair. A jovem dirigiu-se para a

esquerda, passou por algumas portas com placas e parou à

frente da penúltima delas.

— Havan! — chamou em voz alta.

Teve de esforçar-se para pronunciar este nome. Havan

era o homem que dois dias depois da morte de Ofaran

acreditara que Ivsera se ligaria a ele. O homem que lhe

causava dificuldades sempre que podia, somente porque ela

lhe dissera que pretendia guardar ao menos um ano de luto

durante o qual viveria só. Falara-lhe também que nem em

dez mil anos um homem como Havan seria capaz de apagar

Personagens principais deste episódio:

Rhodan — Administrador do

Império Solar.

Marshall — Chefe do Exército de

Mutantes.

Laury — A bela mutante.

Ivsera — Uma jovem cientista.

Havan — Chefe do abrigo

subterrâneo de Fenomat.

Belal — Chefe do abrigo

subterrâneo de Sallon.

1

Page 113: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

113

a imagem de Ofaran em sua memória.

Havan respondeu em tom mal-humorado:

— Entre!

Ivsera abriu a porta. Ele estava sentado atrás de uma

pesada mesa de imitação de pedra e olhava para ela.

Nenhum músculo de seu rosto grosseiro e desagradável se

contraiu ao reconhecê-la.

— Então, o que houve? — perguntou.

— Estamos sem mantimentos — respondeu Ivsera

laconicamente.

Havan empertigou-se.

— Por que só agora fico sabendo disso? — perguntou.

Os olhos de Ivsera estreitaram-se.

— Já avisei a dez dias que estávamos sem matéria-

prima.

Havan respondeu em tom áspero.

— E daí? — perguntou. — Como membro do Conselho

eu tenho o direito de ser mantido constantemente a par —

bateu com a mão aberta sobre a mesa. — Se não aprender a

cumprir seu dever, mandarei destituí-la.

Vendo que Havan se esforçava ao máximo para

humilhá-la e ofendê-la, Ivsera recuperou a calma.

— Não se esqueça de que neste abrigo não cabe

exclusivamente ao senhor decidir sobre as pessoas que

devem ocupar os postos — retrucou tranquilamente. —

Temos um Conselho, e só deixarei meu cargo quando este

decidir assim.

Virou-se, abriu a porta e saiu. Enquanto fechava a porta

atrás de si, ainda ouviu Havan gritar em tom furioso:

— Por enquanto, temos um Conselho... Não

compreendeu o resto, e nem estava interessada em

compreender.

No elevador, encontrou-se com Killarog. Tal qual

Havan, também era membro do Conselho. Era um dos

elementos mais jovens que participavam do órgão e, na

opinião de Ivsera, era um dos que conseguiram um pouco

de honra e de dignidade naqueles difíceis anos de pós-

guerra.

Ivsera ia passar com um ligeiro cumprimento.

Mas Killarog parou e segurou-a pelo braço.

— Tem algum problema? — perguntou em tom

lacônico, mas que nem por isso chegava a ser áspero.

Ivsera olhou-o.

— Quem não tem problemas numa época como esta? —

perguntou.

Killarog continuou sério, embora em seus olhos

houvesse um brilho de ironia.

— Conforme sabe — disse em tom propositadamente

professoral — sou presidente da Comissão de Questões

Pessoais e Psicológicas. Se alguma coisa a preocupa, a

senhora tem o dever de me informar a respeito.

Enquanto falava, levantou o dedo. Mas o ar sério logo o

abandonou. Voltou a segurar Ivsera pelo braço e levou-a

para o corredor de onde havia vindo.

— O que houve minha filha? Os mantimentos estão no

fim? O Conselho sabe disso há dez dias. Não há motivo

para preocupações.

Ivsera soltou uma risada amarga.

— Acontece que justamente o presidente da Comissão

de Alimentação e Vestuário não sabe de nada — respondeu.

Killarog soltou uma gargalhada.

— Havan? Sabe, sim. Há poucas horas discutimos o

assunto.

Ivsera contou o que havia acontecido. Killarog abriu a

porta de seu gabinete e deixou que entrasse à sua frente.

Convidou-a a sentar. Enquanto caminhava em torno da

mesa de imitação de pedra para acomodar-se em sua

poltrona, fez um gesto de desprezo.

— Não acredite em nada do que Havan lhe disse —

exclamou. — Especialmente quando está falando com a

senhora. Além disso, Havan cairia no ridículo se propusesse

ao Conselho a destituição da senhora.

Contemplou Ivsera por cima da mesa larga. O olhar

tranqüilizou a moça, que perdeu parte do ressentimento

trazido desde que visitara Havan.

— Vamos mudar de assunto — principiou Killarog de

repente. — O que vamos fazer quando não tivermos mais

nada para comer?

Ivsera fez um gesto de perplexidade.

— Se soubesse, eu lhe diria — respondeu. — Talvez

possamos sair do abrigo e dar uma olhada lá em cima, para

ver se encontramos comida.

Ivsera proferiu estas palavras em tom casual. Por isso

assustou-se quando Killarog se levantou de repente atrás da

mesa, estreitou os olhos e perguntou:

— Quem lhe deu esta idéia? A senhora deve saber que

não é possível sair do abrigo.

Ivsera parecia confusa.

— Desculpe. Não imaginei que estas palavras pudessem

assustá-lo. Ninguém me deu a idéia; foi exclusivamente

minha. Acho que não é tão difícil a gente lembrar-se desta

possibilidade.

Killarog voltou a sentar e suspirou.

— Esqueça — murmurou. Parecia cansado e abatido. —

Sou eu que lhe peço desculpas.

Colocou o rosto nas mãos, e olhou para Ivsera entre os

dedos abertos.

— O fato é — disse, esticando as palavras — que

estivemos lá em cima.

Ivsera levantou-se de um salto.

— Estiveram...

Killarog interrompeu-a com um gesto.

— Não fale tão alto. Ninguém deve saber do caso, senão

todo mundo desejará subir. Foi por isso que fiz a pergunta.

Aliás, suas esperanças não têm fundamento.

Ivsera quase não conseguiu respirar.

— Por quê?

— Lá em cima não há nada para comer. Nem uma

batata cresceu nestes oito anos na área urbana de Fenomat,

e numa área de quinhentos quilômetros em torno da mesma

está tudo contaminado. Não conseguimos ir mais longe.

— Está certo; mas...

Page 114: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

114

— Não há nenhum, mas! — Killarog levantou-se. De

repente seu rosto estava muito sério. — Quer ver uma

coisa, minha filha? Uma coisa interessante, excitante e...

decepcionante?

Ivsera respondeu com um gesto afirmativo.

— Venha comigo.

Saíram do gabinete. Killarog dirigiu-se para a esquerda.

Passaram pelo gabinete de Havan. Antes de chegar à última

porta do corredor, Killarog parou junto à parede cinza-clara.

Pegou uma chave, enfiou-a na fechadura e abriu a porta.

Ivsera viu uma sala vazia, com uma abertura na parede

oposta. A luz tinha a mesma tonalidade fria que a das outras

salas.

— Esta sala não é ocupada por ninguém — disse ele em

voz baixa, ao ver que Ivsera o olhava e hesitava. — Pode

entrar sem susto.

Entrou. Killarog seguiu-a e trancou cuidadosamente a

porta. Atravessou a sala e abriu outra porta.

Com os olhos arregalados de pavor, Ivsera fitou um

corredor estreito e baixo, que evidentemente não pertencia

ao abrigo propriamente dito. As paredes eram de rocha nua,

que mais para o fundo brilhava de umidade. A cada poucos

metros uma barra de metal apoiava o teto.

Uma lufada de ar frio saiu do corredor, o que constituía

uma verdadeira bênção na atmosfera superaquecida e

poluída do abrigo.

Killarog falou em tom penetrante:

— A senhora terá que guardar exclusivamente para si

tudo que vai ver daqui por diante. Nem pense em falar com

qualquer pessoa a este respeito. As consequências não lhe

seriam nada agradáveis.

Ivsera confirmou com um gesto, sem tirar os olhos do

misterioso corredor.

— Irei à frente — sugeriu Killarog.

Ivsera deixou-o passar. Seguiu-o e fechou a porta atrás

de si. Mais adiante havia uma série de lâmpadas, cuja luz

era suficiente para que se percebessem os acidentes do

terreno.

Killarog caminhava rapidamente; Ivsera teve de

esforçar-se para não ficar para trás.

O corredor era mais comprido do que ela acreditara.

Andaram durante quinze minutos e as lâmpadas, que

ficavam adiante deles, demoraram a se aproximarem.

Quando Killarog finalmente parou junto à primeira, haviam

caminhado ao menos trinta minutos. Face à velocidade com

que ele marchava isso significava que haviam percorrido

mais de um quilômetro.

— Pode andar mais um pouco? — perguntou Killarog

em tom preocupado.

Ivsera fez um gesto afirmativo.

Killarog continuou a andar. As lâmpadas tornavam-se

cada vez mais numerosas. A luz da última delas, Ivsera

descobriu um vulto que parecia estar deitado,

completamente imóvel.

Killarog pisou com força no chão. O vulto moveu-se.

Ivsera viu uma cabeça levantar-se e um par de olhos

desconfiados fitar os recém-chegados.

Ivsera não se lembrava de ter visto o homem diante do

qual Killarog estava parado. O que chamava a atenção era

que vestia roupa completa, e não apenas a calça curta que

os homens deveriam usar.

— Alguma novidade, Thér? — perguntou Killarog.

Thér fez que sim.

— Sim. Estão avançando.

— Quanto tempo ainda nos resta?

Thér ergueu os ombros e abriu as mãos.

— Uns dois ou três dias. O que esta moça veio fazer

aqui?

— Quero que esteja a par de tudo — respondeu

Killarog.

Ivsera recuperou-se do espanto e perguntou:

— Por que este homem anda por aí com a roupa

completa, Killarog? As peças que carrega inutilmente

dariam para produzir ao menos cinco refeições completas.

Thér fitou-a perplexo. Killarog soltou uma gargalhada.

— Ela é nossa nutricionista — explicou, dirigindo-se a

Thér. — A maior parte do que você comeu nestes últimos

anos saiu de suas retortas.

Dirigindo-se a Ivsera, prosseguiu:

— Sabe lá o que aconteceria a Thér se tivesse de ficar

deitado por aí quase nu?

— Bem — disse Ivsera em tom de espanto — ele

costuma ficar deitado por aí?

Killarog fez que sim.

— Ele e dois outros. Cada um fica dez horas por dia.

Não é nada fácil aguentar esse tempo.

— O que ficam fazendo por aqui?

Killarog apontou para o chão.

— Mostre Thér — ordenou.

Thér levantou-se. Só agora Ivsera viu que havia vários

instrumentos espalhados em torno dele. Viu caixinhas

negras com chaves, botões e escalas.

Dali a poucos metros o corredor chegava ao fim.

Thér prendeu um cabo fino a um dos instrumentos. Na

outra extremidade do fio havia um funil igual aos que

Ivsera costumava ver nos telefones. Thér colocou o

aparelho propriamente dito no ângulo esquerdo formado

pelo chão e pela parede. Ivsera notou que a caixinha

descansava sobre finos suportes metálicos.

Thér entregou-lhe o cabo com o funil.

— Ouça — pediu.

Um tanto medrosa Ivsera comprimiu o funil contra o

ouvido. Ouviu um ruído monótono. Depois de alguns

minutos ainda não havia ouvido outra coisa. Fez menção de

devolver o funil a Thér. Mas naquele instante escutou um

ribombo surdo que parecia provir de um tambor enorme e

muito distante. O ruído cresceu, chegou ao ponto máximo e

foi diminuindo.

Ivsera ficou muito assustada. Pretendia indagar sobre a

origem do som, quando voltou a ouvi-lo.

— Ah! — disse Thér com uma risada furiosa. — Nem

precisamos mais do amplificador. Ouço sem ele.

Page 115: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

115

Ivsera tirou o funil do ouvido e perguntou:

— O que é isso?

Killarog respondeu com outra pergunta:

— Quando irrompeu a guerra, a senhora ainda era uma

menina. Sabe embaixo de que área de Fenomat nos

encontramos?

Ivsera procurou recordar o que sabia a respeito do

abrigo. A entrada principal ficava sob o centro da cidade,

mas as galerias avançavam vários quilômetros, estendendo-

se às vezes para além dos limites da cidade.

As galerias principais começavam no centro e corriam

em direção ao norte, leste, sul e oeste. O trecho em que

viviam os membros do Conselho pertencia à galeria

principal do leste.

— Acho que estamos mais ou menos embaixo do

subúrbio de Sallon — disse com a voz tímida.

Killarog confirmou com um gesto.

— Exatamente. O ponto em que nos encontramos fica a

pouco mais de trezentos metros da extremidade oeste das

galerias do abrigo de Sallon.

Ivsera procurou compreender as relações que poderiam

existir entre esse fato e o tambor que acabara de ouvir.

— Conforme já disse — prosseguiu Killarog —

estivemos lá em cima com alguns homens e demos uma

olhada pelos arredores. Encontramo-nos com um grupo de

gente estranha. Talvez sejam de Sallon, mas também é

possível que tenham vindo de mais longe. De qualquer

maneira, começaram a atirar assim que nos viram. Tivemos

de fugir, pois as armas de que dispúnhamos eram

insuficientes.

Ivsera parecia assustada.

— E aqui — disse, apontando para a parede da esquerda

— os homens de Sallon estão tentando atingir o abrigo de

Fenomat por baixo. Thér afirma que dispomos de apenas

dois ou três dias para preparar-nos para visita deles. É o

tempo que levarão para chegar aqui.

* * *

Ivsera não demorou a compreender. Em sua memória,

os habitantes do abrigo de Sallon continuavam a ser o que

haviam sido antes da guerra: cidadãos comuns que não

quiseram a batalha, mas que se sentiam gratos pelo abrigo

que lhes dava proteção.

Killarog afirmara não haver dúvida de que os estranhos

com os quais seu grupo se havia defrontado eram pessoas

vindas de Sallon. Em sua opinião, numa situação como

aquela em que se encontravam, ninguém se arriscaria a ficar

na superfície por mais tempo que o absolutamente

necessário, e o abrigo mais próximo ficava a quase dois mil

quilômetros.

Por outro lado, os abalos eram evidentes. Thér e seus

dois companheiros os vinham observando há várias

semanas. Os instrumentos ultrassensíveis registravam as

ondas de pressão, certamente provocadas por explosões.

Vinham da direção do abrigo de Sallon e, no correr das

semanas, haviam avançado até as imediações dos

corredores mais afastados do abrigo de Fenomat.

Ivsera ainda conservou alguma esperança de que as

intenções das pessoas de Sallon talvez não fossem hostis,

mas Killarog disse em tom áspero e lacônico:

— Não diga isso! É claro que apenas pretendem roubar

nossos mantimentos. Se não encontrarem nada, talvez até

resolvam nos comer.

* * *

Os prognósticos de Killarog sobre o confronto que se

aproximava eram sombrios.

— O grupo com que nossos homens se encontraram

estava tão bem armado que parecia um destacamento da

polícia secreta. Provavelmente esvaziaram o grande

depósito de Sallon Norte. Enquanto isso, nós possuímos um

total de cinquenta armas portáteis. Na maior parte trata-se

de pistolas antiquadas. E a munição é muito escassa. Se os

habitantes de Sallon conseguirem introduzir mais de vinte

homens em nossas galerias, sua cabeça-de-ponte estará

praticamente garantida. Quanto ao resto, não adiantará nada

ficar pensando.

O que impressionou Ivsera foi à resposta que Killarog

lhe deu quando perguntou sobre a finalidade da construção

da galeria em que Thér se encontrava de vigia:

— Será que a senhora ainda não adivinhou? É que nós

pretendíamos roubar os mantimentos dos ocupantes do

abrigo de Sallon. Infelizmente tivemos o azar de que eles

não demoraram em ter a mesma ideia, e, além disso, estão

mais bem armados. Mas — levantou a mão e de repente

recuperou o bom humor — se conseguirmos rechaçá-los e

persegui-los, economizaremos um bom tempo de trabalho.

E, nesse caso, os homens de Sallon terão construído uma

galeria para nós.

Ela lançou-lhe um olhar apavorado. Ele riu com uma

expressão de amargura e exclamou:

— A senhora já devia ter compreendido. Oito anos

depois da última guerra travada em Isan, só nos resta

devorarmos ou sermos devorados. Estas palavras podem ser

interpretadas literalmente.

Killarog tinha um plano.

Era um plano ousado, que envolvia riscos consideráveis.

Por isso precisou de toda a força de persuasão para levar o

Conselho a aceitar a ideia.

O Conselho concedeu-lhe oito homens que o

acompanhariam, nove trajes à prova de radiações e quase

metade das armas do abrigo de Fenomat. Além disso,

segundo as instruções de Killarog, três homens foram

destacados para montar guarda na comporta superior do

abrigo. Os três homens e o grupo de Killarog receberam um

radiotransmissor portátil que dispunha de seu próprio

suprimento de energia.

2

Page 116: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

116

O objetivo de Killarog era a comporta de superfície do

abrigo de Sallon. Hora do ataque: o momento em que

recebesse comunicação pelo rádio de que os homens de

Sallon estavam penetrando na parte inferior do abrigo de

Fenomat.

O Conselho impôs uma condição a Killarog: se notasse

que sua missão não seria bem sucedida, devia voltar

imediatamente. Nesse caso, suas armas seriam mais

necessárias em Fenomat que na comporta de superfície de

Sallon.

Killarog escolheu os homens que o acompanhariam.

Mesmo sendo muito jovem, gozava de grande prestígio em

todos os setores do abrigo. Apesar da indolência que

costumava caracterizar os sobreviventes da grande guerra

de Isan, todos se mostraram dispostos a acompanhá-lo na

missão perigosa.

Três horas depois da sessão do Conselho, Killarog havia

reunido seus homens. Mas, meia hora antes, Ivsera soubera

do plano por intermédio de Irvin, que era um dos oito

escolhidos.

Procurou Killarog e conseguiu convencê-lo, depois de

algum tempo de discussão, de que teria de acompanhá-lo na

expedição, em substituição a um dos homens. Seu

argumento principal foi o seguinte: se conseguissem

penetrar no abrigo de Sallon, deveria haver alguém capaz

de identificar imediatamente tudo que fosse comestível.

Se Irvin não tivesse intervindo a seu favor, era bem

possível que, apesar do argumento, Ivsera não tivesse

conseguido seu intento.

— Leve-a, Killarog! — recomendou. — Senão essa

moça nunca mais terá sossego. Desisto em favor dela.

Irvin podia dar-se ao luxo de um gesto deste, pois ele

era conhecido como uma exceção humana ao ambiente de

indolência e passividade generalizada.

Killarog acabou por concordar. Meio zangado, meio

divertido disse:

— Minha filha, desconfio de que a senhora ainda

carrega certas ideias românticas sobre as regras

humanitárias e sobre as qualidades adoráveis daquela

gentinha. Se levar um tiro enquanto estiver acenando com

uma bandeira branca para os ocupantes de Sallon, atribuirei

a infelicidade à sua falta de instinto.

Ivsera não revelou o verdadeiro motivo de seu gesto. Na

verdade, estava cansada de se manter inativa no abrigo e

assistir impassível ao que acontecia. Era de opinião que,

qualquer pessoa que ainda dispusesse de um pouco de

energia, tinha a obrigação de fazer alguma coisa. Não era

necessário que fosse uma coisa bem sucedida. Bastava que

a ação infundisse a convicção de que os sobreviventes da

grande guerra não seriam simples joguetes do destino.

* * *

Era noite quando Killarog e seu grupo, depois de uma

hora de viagem de elevador através do poço de dois

quilômetros de altura, chegaram à comporta de superfície

do abrigo de Fenomat.

No interior da comporta, colocaram os trajes à prova de

radiações. Killarog mandou realizar os controles, e Ivsera

viu um bom sinal no fato de que tudo deu certo na primeira

verificação.

Ele fez questão de cercar a saída da comporta de modo

áspero e com ordens proferidas em tom rude, a fim de

reprimir qualquer laivo de sentimentalismo. Para cinco

pessoas do grupo de nove era a primeira vez que nestes oito

anos voltavam a pisar na superfície de seu mundo natal,

Isan.

Ao oeste, pouco acima da linha do horizonte, Ivsera viu

a gigantesca bola vermelha do sol. Procurou recordar, para

verificar se Isan havia mudado depois da guerra. Mas o sol

Vilan continuava grande e vermelho como sempre. Vários

pontos da superfície pareciam apresentar cicatrizes, e a bola

vermelha espalhava mais calor que claridade.

O céu vermelho-escuro estava salpicado de estrelas.

Ivsera viu algumas nebulosas tênues. Sabia que essas

nebulosas eram formadas por estrelas, e que juntamente

com estas formavam um sistema designado pelos

astrônomos como a Via Nebulosa.

Ivsera mal conseguiu controlar o nervosismo. Apelou

para a razão e procurou convencer-se de que mesmo depois

de oito anos de vida subterrânea não havia nada de

extraordinário em ver algumas estrelas.

Não conseguiu. Que nem uma sonâmbula tropeçou pelo

deserto de escombros no qual as bombas e o vento haviam

transformado sua altiva cidade, Fenomat. Killarog teve de

adverti-la três vezes para que controlasse seus sentimentos

e se concentrasse na tarefa a cumprir.

* * *

A caminhada do poço principal até a comporta de

superfície de Sallon era de oito quilômetros. Há oito anos

essa distância teria sido percorrida num ônibus ou táxi, e

não se gastariam mais que poucos minutos no percurso.

Mas, no terreno perigoso e inóspito e com os pesados trajes

espaciais, a caminhada consumiria um dia.

Depois de quatro horas de marcha, Killarog ordenou o

primeiro descanso. Encontravam-se num setor do deserto

de destroços em que, por estranho que pudesse parecer, o

nível de radiações correspondia apenas à metade dos

valores registrados nos demais pontos. Ninguém sabia

explicar o fenômeno, mas de qualquer maneira o lugar era

ideal para um descanso.

Na linha do horizonte, ao sul, surgiu o primeiro alvor do

novo dia. A cor mortiça de Vilan e a torrente poderosa de

luz azul que se derramava sobre o horizonte, vinda do sul,

misturavam-se no céu, formando uma tonalidade estranha.

As estrelas foram empalidecendo sob a luz de Vilanet, o

pequeno sol azul-claro que era a verdadeira estrela central

de Isan.

— Percorremos aproximadamente metade do caminho

— disse Killarog. — Daqui para diante, teremos de ficar

com os olhos bem abertos. Pelo que ouvimos, devemos

concluir que os homens de Sallon não são bobos. É bem

Page 117: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

117

possível que lhes ocorra a ideia de que poderíamos atacá-

los por cima.

Enquanto a claridade aumentava, Ivsera procurou

descobrir em que parte da antiga cidade se encontrava.

Sabia que a meio caminho entre o centro e o subúrbio de

Sallon ficava a rua com as lojas mais caras e sofisticadas,

onde sua mãe costumava fazer compras duas vezes por ano:

no aniversário de seu casamento e no aniversário da própria

Ivsera. Sabia que por ali houvera casas largas, maciças e

antigas.

Agora nem sequer se viam os alicerces. A cidade fora

aplainada ao nível do solo. Blocos de pedra estavam

espalhados por todos os lados, mas não se poderia dizer se

eram formados de rocha natural ou se provinham das

paredes das construções.

O chão estava coberto de capim. Mas que capim! Os

talos, que antigamente eram lindos e esguios, passaram a

ser grossos e desajeitados. Atingiam metade da altura de

um homem e formavam verdadeiras copas.

“É um fenômeno de mutação”, pensou Ivsera. “As

radiações produziram alterações na massa genética do

capim.”

Não apenas do mato. Pouco antes de iniciarem a

marcha, viram um besouro gigantesco rastejar entre o

capim sobre as longas pernas. Conseguiram vê-lo, embora o

capim lhes chegasse até o umbigo. É que as pernas do

besouro elevavam o corpo alongado e esguio a mais de um

metro de altura, embora estivessem dobradas duas vezes, à

maneira dos insetos. O corpo tinha um metro de

comprimento.

O maior besouro, que existia em Isan antes da guerra,

mal poderia cobrir a palma da mão.

Um dos homens levantou a arma para matar o monstro

repugnante. Mas Killarog bateu sobre o cano e gritou:

— Pare com isso, seu idiota! Quer revelar nossa

presença com o barulho?

Partindo do local de descanso, Killarog tomou a direção

nordeste. Não pretendia dirigir-se diretamente a Sallon,

porque o risco lhe parecia ser muito grande. Fez um desvio

de duas horas para atingir o abrigo de Sallon de um lado em

que não os esperariam.

Até então o rádio portátil se mantivera mudo, com

exceção da mensagem ligeira transmitida por Thér:

— Agora já os ouvimos perfeitamente sem o

amplificador. Vocês dispõem no máximo de cinco ou seis

horas. Depois disso estarão aqui. Pelo que calculo, sairão

em algum ponto no pavimento inferior.

Ivsera lembrou-se de Havan. A idéia de que, se não

conseguisse fugir, seria uma das primeiras pessoas

capturadas pelos homens de Sallon, não a deixava nem um

pouco satisfeita, apesar do velho ressentimento que nutria

por aquele homem.

Após a mensagem de Thér, Killarog insistiu em que se

apressassem. Perguntou várias vezes sobre o bem-estar de

Ivsera. Esta, depois que decidira manobrar seu próprio

destino, já não conhecia o cansaço.

Vilanet subiu pelo céu branco e espalhou um calor que

se tornou ainda mais insuportável, pois, na planície coberta

de capim em que antigamente ficara a cidade, não havia

uma única sombra.

Mais ou menos pelas nove da manhã, depois de outro

descanso intercalado na marcha, Killarog impôs o silêncio

total. Era verdade que os transmissores e receptores

embutidos nos capacetes à prova de radiações funcionavam

numa frequência extremamente elevada. Só por milagre os

homens de Sallon poderiam descobrir essa frequência e

captar as mensagens. Mas essa possibilidade não podia ser

desprezada.

Killarog mandou que os membros do grupo só se

comunicassem para transmitir informações de

extraordinária importância. Mesmo nesse caso, deviam

evitar na medida do possível a utilização do rádio,

comunicando-se diretamente de capacete a capacete.

O terreno tornou-se uma ladeira. Ivsera lembrou-se de

que o subúrbio de Sallon ficara na encosta sudoeste de uma

colina.

“Ainda bem que as bombas não conseguiram arrasar as

montanhas”, pensou satisfeita.

Pelo meio-dia atingiram a linha da cumeeira da colina,

sem que tivessem visto uma única pessoa do abrigo de

Sallon, fato que deixou Killarog muito satisfeito. Já Ivsera

ficou desconfiada. Mas, como em relação à tática do

combate de guerrilhas confiasse mais em Killarog que em si

mesma, ficou calada.

A entrada e, portanto, a comporta de superfície do

abrigo de Sallon era na encosta nordeste da colina. Ao

contrário dos demais abrigos, no de Sallon as entradas

secundárias não desciam na vertical em direção aos

corredores do abrigo, mas atravessavam a colina em sentido

horizontal.

A escotilha de superfície de Sallon era assinalada por

uma espécie de construção de pedra, que se levantava

solitária em meio ao tremeluzir do meio-dia de Vilanet. O

ar tremulava sob os raios de sol. O terreno tinha o aspecto

de uma terra que ficara abandonada há oito anos. No flanco

nordeste da colina, o capim era amarelo e um pouco mais

baixo do que o que haviam encontrado na área urbana. A

leste, junto à linha do horizonte, o rio Ovial seguia sinuoso.

As florestas que antigamente haviam marcado seu curso

tinham desaparecido. A estepe estendia-se até onde a vista

alcançava.

Killarog não se interessou pelo singular panorama.

Através da lâmina do visor de seu capacete, Ivsera notou

que os olhos dele brilharam quando viu aquela construção

de superfície de Sallon.

— Chegamos! — disse em voz tão alta que Ivsera,

deitada a seu lado, ouviu as palavras que tinham de

atravessar dois capacetes. — Assim que recebermos o sinal

de Thér, daremos nosso golpe.

* * *

Há poucas horas num outro lugar de Isan, num ponto

Page 118: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

118

não muito distante de Fenomat, uma nave espacial elíptica

pousara em meio à ampla estepe coberta de capim.

A tripulação da nave constatou que o solo, o ar e os

mares do planeta continham uma dose perigosa de

radiatividade. Em vários pontos da superfície, notaram

vestígios de aglomerações humanas e descobriram que esse

mundo havia sido destruído por uma guerra nuclear, e que

os habitantes deviam ter sido quase todos eliminados.

A nave elíptica havia pousado num ponto situado numa

pequena área em que a dose de emanações radiativas

chegava apenas a um décimo da média do planeta. Era bem

verdade que os quatro tripulantes possuíam equipamentos

protetores de radiações muito mais aperfeiçoados que, por

exemplo, os de Killarog e seu grupo, movendo-se a quinze

quilômetros dali, sem que tivessem notado a presença da

nave. Acontece que o comandante do veículo espacial tinha

por hábito guiar-se em suas decisões pelo princípio da

maior segurança e do menor risco. E, em virtude desse

princípio, não pousaria numa área em que a dose de

radiações chegasse a cem rens por hora, se depois de uma

ligeira busca encontraria outra área em que essa dose estava

reduzida pelo quociente dez.

A nave, que media trinta e cinco por vinte metros,

possuía equipamentos tão sofisticados que, se alguém

perguntasse a Killarog ou a Ivsera, estes só poderiam ter

respondido que nunca acreditariam que uma coisa dessas

jamais poderia existir na história das inteligências

galácticas.

Havia um aparelho que não se incluía nesse

equipamento sofisticado, embora fosse bastante complicado

e por certo teria provocado a admiração de qualquer técnico

em alta frequência de Isan. Era um localizador de impulsos,

que classificava automaticamente segundo a respectiva

frequência qualquer transmissão captada pelo receptor

acoplado ao aparelho, e ainda fornecia dados à calculadora

eletrônica que, em conformidade com os mesmos, decifrava

a transmissão captada. Caso o material verbal fosse

suficiente, traduzia a mensagem de uma língua estranha

para aquela dos tripulantes da nave.

Dessa forma, as comunicações entre Killarog e os

membros de seu grupo haviam sido registradas e traduzidas.

Constatou-se que a língua de Isan — ou ao menos a que

acabavam de ouvir — apresentava forte semelhança com

outra que, embora não fosse a dos tripulantes, era-lhes

bastante conhecida.

O comandante da nave aproveitou o tempo de que

acreditava poder dispor para, mediante um aparelho que

pertencia à classe das maravilhas da técnica, aperfeiçoar

seus conhecimentos e, principalmente, familiarizar-se com

a língua usada por Killarog e pelos membros de seu grupo.

* * *

As horas passaram numa lentidão insuportável. Vez por

outra, Ivsera percebia que os olhos, dirigidos

ininterruptamente sobre a construção de pedra que dava

acesso à comporta de superfície, começaram a iludi-la,

fazendo crer ora que esta se levantava no ar, ora que

afundava no chão.

A única coisa agradável que aconteceu durante a longa

espera foi que o calor ia diminuindo. Vilanet havia passado

pelo zênite e deslocou-se em direção ao norte. O capim

começou a proporcionar um pouco de sombra.

O fato de que nem uma única pessoa do abrigo de

Sallon apareceu junto à comporta deixou Ivsera

desconfiada. Transmitiu suas suspeitas a Killarog e, para

ser entendida melhor, assumiu um risco, levantando o

capacete.

Killarog repeliu seus temores com um gesto e sorriu.

— Não tenha medo, minha filha — disse. — Nas

proximidades da comporta de Fenomat não se viu uma

única pessoa num espaço de oito anos. Por que teríamos de

encontrar alguém em Sallon, justamente durante as poucas

horas que estamos aqui?

Ivsera esteve a ponto de responder que não havia a

menor dúvida de que os ocupantes do abrigo de Sallon

eram muito mais ativos que os de Fenomat. Afinal, há

poucos dias um grupo de Fenomat teve que fugir de certo

número de homens de Sallon, bem armados. Sallon não

podia ser comparado com Fenomat.

Mas preferiu ficar calada. Ainda se sentia constrangida

em dar opinião sobre assuntos que pertenciam

exclusivamente aos homens.

Vilanet baixou em direção ao horizonte e a esfera

vermelha de Vilan subiu, de início fraca, mas tornando-se

cada vez mais nítida. As estrelas começaram a brilhar, e seu

número crescia a cada segundo que passava, até que

cobriram o céu noturno como um tecido fino.

Finalmente Thér deu o sinal. Ivsera ouviu-lhe a voz

exaltada no receptor:

— Conseguiram passar. Saíram no pavimento inferior,

conforme esperávamos. Estão armados até os dentes. Não

sabemos por quanto tempo iremos detê-los. Vejam o que

podem fazer por Fenomat.

Essas palavras não eram muito encorajadoras, mas

Killarog não parecia incomodar-se com isso. Levantou-se e

gritou para que todos ouvissem, mesmo sem o rádio:

— Vamos, rapazes!

Tropeçavam mais do que corriam pela suave encosta

abaixo. A construção da comporta de superfície ergueu-se

em meio à escuridão. Durante as últimas horas, já a haviam

perdido de vista.

A edificação não tinha janelas. Não havia meio de

verificar se estava ocupada, ou se realmente o pessoal do

abrigo de Sallon não tinha a menor ideia do que o esperava.

Killarog não perdeu tempo em verificar. Ivsera achava

que isso era uma leviandade incompreensível. Colocou

cargas explosivas de ambos os lados da pesada porta

metálica e, na ânsia de lutar, recuou apenas alguns passos

antes que as mesmas explodissem.

A porta foi empurrada para dentro. Em meio ao

estrondo das explosões, ouviu-se o ruído das pesadas peças

de aço que batiam no chão.

Page 119: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

119

Killarog avançou em meio à fumaça, com a arma

apontada para frente. Voltou a ligar o transmissor de

capacete e gritou:

— Vamos! A comporta está vazia! Avante!

Aquele recinto era menor que o de Fenomat. A escotilha

foi aberta sem dificuldade. Killarog entrou apressado. Pediu

aos que vinham por último que voltassem a fechar a porta.

Killarog soltou um grito de triunfo quando olhou para a

fileira de botões do elevador e viu que o mesmo se

encontrava na altura da comporta.

“Era o que bastava para abrir a porta que fica do lado

oposto do recinto”, pensou.

Ivsera viu-o pegar a chave.

— Espere aí! — gritou. — Pense um pouco antes de

precipitar-se na desgraça. Isto só pode ser uma armadilha.

Estivemos aqui o dia todo e não vimos uma única pessoa;

entretanto o elevador está aqui em cima.

— Que nada! — interrompeu Killarog em tom áspero.

— Não me faça perder tempo, moça. Daqui a alguns

minutos, o abrigo será nosso.

Moveu a chave e a porta do elevador deslizou para o

lado.

Killarog esteve a ponto de precipitar-se para o interior.

Mas, depois de ter dado um passo, parou como se

esbarrasse numa muralha invisível.

Soltou um grito rouco, levantou a pistola destravada que

trazia na mão, e disparou contra um grupo de homens que

se encontravam no elevador, já com as armas apontadas.

Não foi longe. Estes logo responderam ao fogo, e

Killarog caiu sob as rajadas cruzadas das pistolas

automáticas.

Os tiros disparados naquele recinto apertado feriram

mais cinco dos homens de Fenomat. Ivsera viu-os cair. Os

dois últimos de seus acompanhantes que permaneceram de

pé atiraram as armas ao chão e, gritando, correram para

junto da parede.

Ivsera ficou parada, com o cano da arma apontada para

o chão.

— Parem seus idiotas! — gritou em tom furioso para os

homens de Sallon. — Já foi derramado muito sangue. Nós

nos entregamos.

Naquele instante, ouviu a escotilha externa da comporta

abrir-se. Virou-se e viu do lado de fora um segundo grupo

de homens de Sallon.

— Tudo em ordem? — perguntou o que se encontrava à

frente.

— Quase tudo — respondeu um dos homens que se

achavam no elevador. — Este idiota matou Ifers e feriu

gravemente Holran. Mas a moça diz que quer entregar-se.

— A moça? — disse o homem que estava junto à

escotilha e soltou uma risada. — Será que em Fenomat não

existem mais homens?

Ivsera não respondeu. Sentiu-se tomada de cólera. A

cólera dirigia-se contra Killarog, que com sua cega

impetuosidade provocara o desastre.

— Quantos homens de Fenomat ainda vêm atrás de

você? — perguntaram a Ivsera.

— Nenhum — respondeu.

— Não acredito.

— Pois então não acredite.

— Escute aí, moça, se você acredita...

— Cale-se! — ordenou uma voz áspera. — A moça será

interrogada lá embaixo. Vocês ficarão lá fora, até que

tenhamos certeza de que mais ninguém vem de Fenomat. A

demora não será muita. Garok avisa que está progredindo

bem.

“Garok” pensou Ivsera, “deve ser o homem que dirige o

ataque subterrâneo contra Fenomat.”

Tudo indicava que quem falara por último na cabina do

elevador era o chefe da turma de superfície. Os outros

obedeceram imediatamente. A entrada da comporta voltou

a ser trancada. O segundo grupo retornou aos lugares de

antes.

“— O capim constitui um ótimo abrigo” — dissera

Killarog.

“Tanto para os homens de Sallon como para nós”,

completou Ivsera, agora em pensamento.

Killarog foi arrastado para dentro da cabina, tal qual os

feridos. Dois destes já estavam imóveis. Os dois homens

não feridos, que haviam atirado fora suas armas, foram

trazidos atrás dos feridos.

— Entregue sua arma — disse o chefe do grupo,

dirigindo-se a Ivsera.

A jovem obedeceu sem dizer uma palavra. O homem

estendeu a mão. Mas Ivsera deixou a arma cair ao chão.

Ficou espantada ao ouvir que o homem ria baixinho.

— É orgulhosa, hein, moça? Vocês não têm motivo para

isso.

Fitou-o pela primeira vez. Pelo visor do capacete viu um

rosto inteligente, que já não era muito jovem. Ao que

parecia, o homem havia perdido seu sorriso gentil sob a

força das circunstâncias.

Ivsera achou que devia dar uma resposta.

— Se tivessem feito o que eu queria — disse — talvez

há esta hora tivéssemos algum motivo para orgulhar-nos.

O homem fez um gesto sério, mas amável. Depois de

fechar a porta do elevador, comprimiu o botão

correspondente a um dos pavimentes inferiores.

* * *

O elevador levou uma hora para chegar ao destino. Por

isso Ivsera teve tempo para refletir sobre sua situação.

Quanto mais o elevador descia, mais improvável se

tornava que Thér ainda conseguisse alcançá-la com seu

transmissor de potência reduzida. Não mais dera qualquer

aviso, e Ivsera não teve a menor dúvida em ver nisso um

mau sinal.

Lembrou-se do que Killarog lhe dissera sobre as armas

à disposição dos homens de Sallon, em comparação com as

que se encontravam no abrigo de Fenomat. Notou que os

homens à sua frente eram mais ativos e corajosos do que

aqueles conhecidos em Fenomat.

Page 120: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

120

Seus rostos estavam marcados pela fome. Talvez fosse

isso que lhes dava coragem.

Na metade do caminho, os trajes à prova de radiações

foram tirados do corpo. Ivsera suspirou aliviada quando

deixou cair a pesada vestimenta ombro abaixo.

Ficou espantada ao notar que os homens de Sallon

usavam roupas melhores que os de Fenomat. Até chegavam

a usar mais vestimentas que ela, uma mulher.

O homem com quem havia falado começou a falar.

— Meu nome é Feriar — disse com uma ligeira mesura.

— Sinto muito que tenha sido atingida tão cruelmente pelo

destino. Quanto a mim, apenas pretendia aprisioná-los. Esse

homem — apontou para Killarog — é o único culpado.

Colocara tamanha ênfase na expressão “quanto a mim”,

que Ivsera teve sua atenção despertada para o fato. A essa

hora já recuperara a naturalidade.

— Quanto ao senhor? Quem mais poderia estar ligado a

isso?

Feriar soltou uma risada triste.

— Sou apenas uma pequena engrenagem do

mecanismo. Com o correr dos anos, os dentes desta

engrenagem se desgastaram. Por isso muita gente já se

pergunta se essa engrenagem não deveria ser retirada do

mecanismo para ser substituída por outra, de dentes mais

afiados.

Lançou um olhar indagador para Ivsera, a fim de

verificar se havia entendido a alegoria. Ivsera fez um gesto

afirmativo e Feriar prosseguiu em voz baixa:

— Prepare-se. Em Sallon, quanto maiores as

engrenagens, mais afiados são os dentes. Nem sempre as

coisas serão tão amenas como estão sendo comigo. Terei de

entregá-la assim que chegarmos lá embaixo.

Ivsera agradeceu com um sorriso. Depois sentou num

canto do elevador, sobre seu traje especial, a fim de

suportar melhor o restante da viagem. Olhava fixamente

para a frente. Estava mergulhada em profundas reflexões.

Um acordo tácito parecia ter sido estabelecido entre ela

e Feriar. Este, que durante quarenta e cinco minutos não

falara com seus subordinados, agora parecia não ter outra

coisa a fazer senão dar-lhes tudo quanto era ordem, e gritar-

lhes quando não as executavam com a necessária rapidez.

O elevador continuou a descer.

Ivsera sondou a situação. O braço estendido de Killarog

com a pistola na mão direita chegava perto de seus pés.

Provavelmente não seria fácil abrir os dedos crispados para

tirar-lhe a arma. Além disso, alguém poderia desconfiar se

esta desaparecesse de repente.

À direita de Ivsera, estava deitado um dos feridos.

Achava-se com os olhos fechados e respirava debilmente.

Não conseguira tirar a pistola do coldre. Encontrava-se

pendurada no suporte de plástico na altura da junção do

cano com o cabo.

Depois de algum tempo, Ivsera sentou de modo a

aproximar-se melhor do ferido. Abaixou-se para examinar o

traje sobre a qual estava sentada.

Quando viu que ninguém estava notando, fez uma

terceira investida. Num movimento rápido, tirou a pistola

do coldre e escondeu-a sob o cinto da jaqueta que constituía

a peça principal de sua vestimenta.

“Ninguém reparou?”, pensou, indagando-se.

“Ninguém?”

Talvez Feriar. Mas este fez de conta que não havia

percebido nada. Apenas parou de transmitir comandos a

seus subordinados.

* * *

Na saída do elevador, os prisioneiros foram transferidos

a outro grupo de homens armados. Feriar mal teve tempo

para fazer um gesto animador para Ivsera.

Os prisioneiros foram tangidos para dentro da galeria

que, partindo do poço do elevador, avançava para o leste.

Marcharam durante uma hora. Ivsera aprendeu a cerrar

os dentes para aguentar o passo. Felizmente, com o tempo,

os soldados também começaram a cansar-se e passaram a

andar mais devagar.

Muita gente cruzou com o triste grupo. A moça notou

que todos eles, tanto homens como mulheres, estavam mais

bem vestidos que as pessoas que ocupavam o abrigo de

Fenomat. Ivsera ficou quebrando a cabeça a este respeito.

Depois de uma série de teorias temerárias, lembrou-se do

motivo que provavelmente seria o mais plausível.

“Os ocupantes do abrigo de Sallon não dispunham de

nenhum químico que soubesse transformar roupas em

alimentos. Por isso não havia necessidade de desfazer-se

das roupas”, pensou.

Mas só o diabo poderia saber de que teriam vivido

durante todo esse tempo.

Finalmente os soldados levaram os três prisioneiros para

uma galeria secundária, mais estreita, que seguia para a

esquerda. Avançaram mais uns cem metros. Pararam diante

de uma porta que, ao contrário das que geralmente são

encontradas nos abrigos, quase chegava a ter a largura de

um portal.

As duas metades deslizaram para o lado sem que

qualquer dos soldados tivesse movido um dedo.

“Provavelmente”, pensou Ivsera, “o comandante do

abrigo de Sallon se dava ao luxo de um olho mágico e de

mecanismo elétrico que abria a porta.”

Os soldados enrijeceram assim que a porta se abriu por

completo. Ivsera ouviu uma voz clara e enérgica, que disse

em tom rangedor:

— Entrem!

Os soldados fizeram continência e entraram, acertando o

passo. Os prisioneiros seguiram-nos. Ao que parecia, os

dois homens de Fenomat sentiam medo e curiosidade ao

mesmo tempo. Já Ivsera andava relaxadamente e o mais

devagar possível, para mostrar ao povo de Sallon que nada

do que eles possuíam a impressionava.

No entanto, o homem que infundia tamanho respeito

nos soldados não deixou de impressioná-la. Pelo tom de

voz acreditara que encontraria um tipo de oficial alto e

rígido. Mas a figura com que se defrontou foi a de um

Page 121: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

121

homem ainda jovem, pequeno e gordo, em cujo rosto

brilhava uma expressão presunçosa.

Os soldados pararam diante da enorme mesa, atrás da

qual estava sentado.

— Retirem-se! — ordenou o gorducho. — Esperem lá

fora.

Os soldados desapareceram. O oficial contemplou um a

um os três prisioneiros.

Só no caso da jovem parecia satisfeito com o resultado

da inspeção. Sorriu e com um gesto relaxado mandou que

os dois homens de Fenomat se encostassem à parede. Fez

outro gesto para dar a entender a Ivsera que devia

aproximar-se, mas esta não reagiu.

Ele parecia aborrecido.

— Ei, moça! — gritou. — Aproxime-se.

Ivsera olhou em torno. Fez de conta que só agora o

estava notando.

— Está falando comigo? — perguntou aparentemente

surpresa.

— Claro — resmungou o gorducho. — Com quem

poderia ser?

Ivsera não respondeu. Limitou-se a fitá-lo com uma

expressão séria. Isso o deixou nervoso, e o nervosismo fez

aumentar sua raiva.

— Eu disse que você deve se aproximar! — gritou

depois de algum tempo.

Ivsera não se moveu. Belal levantou-se fungando, saiu

de trás da escrivaninha e fez menção de puxar Ivsera pelo

braço.

— Pense antes de fazer qualquer coisa — recomendou

Ivsera tranquilamente. — É bem possível que acabe

recebendo uma bofetada.

O gorducho estacou, deixou cair a mão, cerrou os olhos

e exclamou:

— Espere aí, minha filha. Vou domá-la. Guardas!

A porta abriu-se, e os soldados voltaram a entrar.

— Levem estes indivíduos. Coloquem-nos no campo de

trabalho C. Nos próximos cinco dias ficarão sem alimento.

São muito gordos.

Os homens de Fenomat não esboçaram a menor

resistência ao serem levados. A porta voltou a fechar-se

atrás dos soldados e dos prisioneiros por eles conduzidos.

O oficial ficou a sós com Ivsera. Esta receava que não

demoraria a chegar o momento em que teria de fazer uso da

arma de que se apoderara às escondidas.

Ele sorriu.

— Agora estamos a sós, moça — disse em voz baixa.

— Você sabe o que isso significa?

— A única coisa que sei — respondeu Ivsera em tom

seco — é que o Conselho do abrigo de Sallon, ou outro tipo

de governo que o senhor tenha, não deixará de chamá-lo à

responsabilidade por violação das leis da guerra.

O oficial escutou com uma expressão de espanto no

rosto. Finalmente soltou uma estrondosa gargalhada.

— As leis de guerra — disse entre os risos — já têm

mais de cem anos. Hoje ninguém mais se lembra delas. Ora

essa, moça! Você é minha, tal qual o abrigo de Sallon. Não

existe ninguém que me possa chamar a responsabilidade.

Ivsera não pôde deixar de observar:

— Pelo que vejo, Sallon pertence a um sujeito muito

desagradável.

No mesmo instante, o gorducho perdeu o bom humor.

Aproximou-se de Ivsera e chiou:

— Não me faça ficar zangado. Estou disposto a

oferecer-lhe um estilo de vida que atualmente nenhuma

mulher em Isan desfruta. Por outro lado, poderei dar-lhe um

tipo de vida que faça você lamentar-se de ter vindo a este

mundo. Entendeu?

Ivsera não perdeu a calma.

— Antes de mais nada, não me trate de “você”; trate-me

de “senhora” — respondeu. — Além disso, dispenso o

estilo de vida que o senhor me quer proporcionar. Prefiro

estar morta que juntar-me a um tipo como o senhor.

Não sabia por quê, mas estava interessada em ofendê-lo.

E conseguiu.

O homem espumou de raiva. Segurando-a pelo braço

esquerdo, sacudiu-a com tamanha violência que os cabelos

voaram de um lado para outro. Pôs-se a gritar:

— Você vai obedecer. Implorará para que lhe poupe a

vida. Até hoje ninguém se opôs a Belal por mais que alguns

minutos.

Face ao nervosismo do gorducho, Ivsera não teve a

menor dificuldade em tirar a pistola. Empurrou o botão da

trava e fez pontaria com toda calma, a fim de não errar o

alvo.

Apenas cometeu um erro. Avaliou a agilidade do gordo

com base no volume de seu corpo.

Belal viu a arma, deixou-se cair para o lado e na queda

bateu na mão da jovem, que soltou a pistola. Ivsera gritou

de raiva e decepção. Ele rolou rapidamente pelo chão,

pegou a arma e levantou-se com um sorriso de deboche.

— Então é isso! — exclamou. — E as leis da guerra?

Será que uma prisioneira pode ameaçar a segurança do

abrigo inimigo com uma arma escondida?

A moça perdera totalmente o autocontrole:

— Mate-me logo! — gritou. — Vamos, atire!

Belal limitou-se a sacudir a cabeça.

— Não, minha filha. Você continuará a viver.

Ivsera investiu sobre ele, levantando as mãos para

golpeá-lo, mas Belal empurrou-a para trás com a maior

facilidade. A jovem caiu e bateu com as costas contra a

parede.

Até parecia que Ivsera acionara um contato invisível.

No momento do choque, a porta abriu-se.

Belal, que até então parecia dedicar todo seu interesse a

ela, levantou a cabeça, espantado.

Ivsera fitou o homem alto e de vestes estranhas que

parou a entrada e, depois de olhar ligeiramente em torno,

penetrou na sala. A porta voltou a fechar-se atrás dele.

“Este homem tem olhos brancos”, pensou Ivsera

apavorada. “Quem já viu um par de olhos desse tipo?”

Os de Ivsera e de todas as pessoas conhecidas eram

Page 122: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

122

avermelhados.

Belal recuperou o autocontrole.

— Quem é você? — gritou para o desconhecido. — E

como se atreve a entrar...

O desconhecido interrompeu-o com um gesto

indiferente.

— Não perca seu tempo, meu caro — respondeu em

tom tranquilo. — Não me atrevo a coisa alguma. Ouvi sua

gritaria lá no corredor, e pensei que possivelmente alguém

estaria precisando de auxílio.

Belal perdeu o fôlego. O desconhecido teve tempo de

inclinar-se sobre Ivsera e levantá-la antes que Belal

recuperasse a fala.

— Espere aí, rapaz! Logo espantarei essa sua audácia.

Comprimiu uma fileira de botões presos à escrivaninha.

O ruído abafado das sereias de alarma penetrou pela porta

fechada.

O desconhecido aguçou o ouvido.

— Está chamando sua gente, gorducho? Ainda bem! Só

assim verão que seu comandante é um velhaco.

— Você está louco! — gritou Belal em tom histérico.

— Daqui a pouco estará morto.

O desconhecido acenou com a cabeça.

— Talvez seja você — respondeu tranquilamente.

Belal empalideceu. Sua segurança desvaneceu-se.

Apoiou-se sobre a borda da escrivaninha e perguntou:

— Quem... quem é você?

— O que lhe adiantará saber meu nome? — retrucou o

desconhecido. — Pode chamar-me de Perry; é quanto basta.

Naquele instante, a porta abriu-se. Uma horda de

homens armados até os dentes dispôs-se a penetrar no

gabinete.

— Matem-no! — berrou Belal. — Ele me ofendeu.

Ivsera viu o desconhecido que se identificara pelo nome

de Perry virar-se abruptamente. Levantou o braço direito,

do qual parecia emanar uma força misteriosa. Os soldados

pareciam grudados ao limiar da porta. Até mesmo a voz

esganiçada de Belal morreu.

— Não se apressem — recomendou o desconhecido

com toda a tranquilidade. — Belal está mentindo. Molestou

esta moça, que é uma prisioneira de guerra.

Belal soltou uma risada de deboche. Estava acostumado

a não ver levado a sério qualquer acusação dirigida contra

sua pessoa. Tudo que fazia revertia em proveito imediato

do abrigo de Sallon. Dessa ideia derivava a posição de força

que o oficial desfrutava.

Mas, pela primeira vez, viu seus soldados com os rostos

embaraçados. Não se atreviam a olhar nem para ele, nem

para o desconhecido.

— Voltem rapazes! — ordenou o desconhecido. —

Aqui está sendo julgado um homem que durante vários

anos cometeu crimes e ficou impune.

Ivsera não acreditou no que seus olhos viam. Os

soldados fizeram meia-volta e retornaram ao corredor. A

porta fechou-se atrás deles.

Voltara a ficar a sós com Belal e o desconhecido

chamado Perry.

O gorducho afundara em sua cadeira, incapaz de

pronunciar uma única palavra.

— Viu? — disse Perry com um sorriso. — É o que

acontece com quem muito se gaba.

— Isso... isso... — balbuciou Belal.

— Isso é impossível? Foi o que você quis dizer? Não,

não está havendo nenhuma bruxaria.

Belal lembrou-se de ter ouvido uma alusão a qualquer

julgamento. Sentiu o poder apavorante do desconhecido e

percebeu que, se não fizesse alguma coisa, sua vida poderia

correr perigo.

— Eu... eu... poupe minha vida! — implorou. — Não

farei nada de que você não goste.

Perry soltou uma risada irônica.

— De repente? Não perca tempo, Belal, e não se

preocupe. Poderá ficar com sua vida imunda. Tirarei a

moça daqui e levá-la-ei a Fenomat. Já que demonstra

tamanha boa vontade em fazer-me um favor, eu lhe darei

uma dica. Não ponha as mãos em Fenomat, senão você se

arrependerá.

Ivsera viu o sorriso de deboche que por uma fração de

segundo passou pelo rosto de Belal. Será que o

desconhecido havia visto?

Quase como um sonho, sentiu Perry segurar sua mão.

— Venha comigo — disse. — Vamos retirar-nos e

deixar nosso amigo a sós com seus problemas.

A porta abriu-se. Ivsera e Perry saíram para o corredor.

A jovem olhou para trás e viu que Belal permanecia imóvel

atrás de sua escrivaninha. Ainda continuava paralisado pelo

susto ou então era cauteloso demais para executar qualquer

movimento rápido e revelar suas intenções antes do tempo.

Perry caminhou pelo corredor com a tranquilidade de

quem não tem um único inimigo em todo o Universo.

Algum tempo passou-se até que Ivsera se recuperasse da

surpresa o bastante para falar.

Até então haviam-se encontrado apenas com alguns

homens sem armas, que os fitaram, mas não esboçaram o

menor gesto hostil.

No corredor principal, as coisas seriam diferentes. Por lá

havia mais soldados que civis.

— O senhor... — disse Ivsera, trêmula — o senhor

acredita que conseguiremos sair sem sermos molestados?

Perry virou o rosto em sua direção e sorriu.

— Tenho certeza — respondeu tranquilamente.

Foi só o que disse. E foi pouco para satisfazer a enorme

curiosidade de Ivsera.

— De onde veio o senhor? Não é nenhum dos ocupantes

do abrigo de Sallon, não é? E ainda menos é de Fenomat.

Será que é de Othahey?

Othahey era o país com que Heyatha entrara em conflito

3

Page 123: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

123

antes que irrompesse a guerra. E Heyatha era a nação que

tinha Fenomat por capital.

Perry sacudiu a cabeça.

— Não, não venho de Othahey. Se viesse, não poderia

estar tão bem informado sobre os dois abrigos desta cidade.

Um pouquinho do velho espírito de contradição de

Ivsera voltou a manifestar-se.

— Não seria totalmente impossível — respondeu. —

Não acredito que os habitantes de Othahey tenham sido

estúpidos a ponto de não manterem um serviço de

espionagem.

Perry soltou uma risada alegre.

— Talvez tenha razão. Acontece que realmente não sou

de Othahey.

Não contou de onde tinha vindo.

Dali a dois minutos entraram no corredor principal.

Perry seguiu para a direita, em direção ao elevador. Aquilo

que Ivsera temera aconteceu. Com faixas brancas no braço,

uma patrulha militar formada de cinco soldados fortemente

armados barrou o caminho de Perry. Este só parou quando

esbarrou no primeiro soldado e além do mais se pôs a

gritar:

— Seu pateta! Será que você não sabe sair do caminho?

O soldado parecia ter senso de humor. Levantou a arma,

recuou um passo e contemplou Perry, que era muito mais

alto que ele, dos pés à cabeça. Finalmente disse com uma

risada:

— Queira desculpar, general. Será que apesar dos

pesares o senhor não me poderia contar quem é o senhor?

Ou será que possui algum documento?

Perry sacudiu a cabeça.

— Não, meu amigo, eu não possuo nenhum documento.

Seu superior é o capitão Feriar, não é? Leve-me à presença

dele.

Ivsera sentiu-se espantada, e o soldado também. Em

Sallon os soldados não usavam uniformes. Uma pessoa que

não os conhecesse não estaria em condições de adivinhar

quem era o oficial que comandava cada um, mesmo que

conhecesse os homens.

A patrulha fez meia-volta e, com Perry na ponta,

marchou pelo corredor principal, em direção ao elevador.

Ivsera seguiu-os de perto. O desconhecido passou a

infundir-lhe pavor.

O gabinete de Feriar ficava próximo ao elevador.

Quatro soldados postaram-se junto à porta, enquanto o

quinto conduziu Perry e Ivsera para dentro do pequeno

recinto.

Feriar levantou-se de um salto quando reconheceu

Ivsera. Não deu a menor atenção a Perry.

— Santo Deus! — disse muito espantado. — Como

conseguiu livrar-se tão depressa de Belal?

Ivsera fez um gesto e apontou para Perry. Feriar

examinou o homem alto à sua frente.

— Quem é o senhor? — perguntou em tom desconfiado.

Perry sorriu.

— Sou um homem que não possui nenhum documento,

mas faz questão de sair deste abrigo sem ser molestado, e

com esta senhorita.

Feriar respirava com dificuldade.

— Acontece que é uma prisioneira! — disse, arfando.

Abriu a boca para chamar os guardas, mas Perry

interrompeu-o com um gesto.

— Deixe de gritaria — disse em tom enérgico. — Pelo

que vejo o senhor é um homem sensato. Por que vai

trabalhar para um sujeito imundo como esse Belal?

Feriar ficou com a boca escancarada.

— O senhor vê que...

— Exatamente. O senhor sente repugnância pelo

governo autocrático de Belal, não apenas por uma questão

de princípio, mas também porque o ditador vem usando os

poderes de que dispõe em proveito próprio — falava

rapidamente, não deixando que Feriar respondesse. —

Faço-lhe uma proposta. Venha comigo a Fenomat. Garanto

que nada lhe acontecerá.

Estas palavras pareceram exercer uma estranha coação

sobre Feriar. O tom de sua voz não demonstrava muita

convicção, quando procurou formular uma objeção:

— Mas Fenomat está...

— Já sei. Vamos reconquistar o lugar. Será que a tarefa

seria de seu agrado?

Feriar fez um gesto afirmativo.

— Muito bem. Irei com o senhor.

Ivsera teve a impressão de que estava sonhando. Uma

coisa dessas não podia existir. Um homem solitário e, ao

que parecia desarmado, andava livremente num abrigo cujo

comandante acabara de ofender mortalmente. Para vencer

qualquer obstáculo, apenas dizia algumas palavras e levava

os oficiais à deserção.

Acontece que era exatamente isso. Feriar pegou a arma

e disse aos guardas que levaria os estranhos de volta para

Belal. Depois se dirigiu para a direita, onde ficava o

elevador.

A cabina demorou quinze minutos em chegar. Quando a

porta se abriu, estava vazia. Perry deixou que Ivsera e

Feriar entrassem antes dele. Viu este último estender a mão

em direção ao botão de cima, e exclamou:

— É o contrário, meu amigo. Vamos descer.

Feriar lançou-lhe um olhar perplexo.

— Não pretendo caminhar horas a fio por uma área

contaminada — disse Perry. — Se passarmos pela galeria

recém-aberta, a caminhada será mais fácil.

Feriar obedeceu. Comprimiu o botão de baixo.

Quando haviam descido quatro pavimentos, um sinal

vermelho acendeu-se na parede dos fundos do elevador,

junto ao teto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um zumbido e, lá

fora, o uivo estridente das inúmeras sereias.

Feriar estremeceu.

— É o alarma! — fungou.

Perry fez um gesto de indiferença.

— O que esperava? Que Belal nos deixasse escapar sem

mais aquela?

Logo depois, uma voz metálica soou no alto-falante

Page 124: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

124

instalado no elevador:

— Atenção! Alarma em todos os pavimentos! Dois

prisioneiros muito importantes acabam de fugir: uma

mulher vinda do abrigo de Fenomat e um desconhecido que

surgiu não se sabe de onde. Ambos foram condenados à

morte por sentença regular do tribunal de guerra e por isso

terão de ser recapturados, vivos ou mortos.

Seguiu-se uma descrição dos dois prisioneiros. Cabia

ressaltar que, em relação a Perry, Belal, que por certo fora o

autor da descrição, se enganara um pouco. Ao menos,

Ivsera não acreditava que alguém o pudesse reconhecer

com base apenas nos dados vagos fornecidos por Belal.

Feriar começou a inquietar-se.

— Sabe quantas pessoas temos em armas em Sallon?

Perry sorriu.

— Espere... cinco mil e quinhentos, não é? Isso

corresponde a quase oitenta por cento da população

masculina entre quinze e cinquenta anos.

Feriar ficou perplexo.

— Sabe onde essa gente nos procurará? — prosseguiu

Perry. — Lá em cima, na comporta de superfície.

* * *

Perry teve razão. O elevador chegou ao pavimento

inferior, sem que ninguém os molestasse. O corredor que se

estendia diante deles estava vazio.

Sem a menor hesitação, Perry seguiu o caminho que

dava para a direita.

— Guarde a arma — recomendou a Feriar. — Poderei

cuidar de nós três. Na medida do possível, quero evitar o

derramamento de sangue.

Feriar obedeceu sem dizer uma palavra. Desde o

momento em que vira Perry pela primeira vez, Ivsera

começou a acreditar que esse homem possuía um estranho

poder. Será que ele sabia controlar os pensamentos e

desejos de seus semelhantes?

Procurou examinar sua própria mente, mas não

percebeu qualquer alteração.

Subitamente o corredor terminou numa parede cinzenta

e nua. Mas isso não causou o menor embaraço a Perry.

Abriu-a do lado direito e, para surpresa de Ivsera, atrás se

estendia um recinto que tinha o mesmo aspecto do

compartimento de Fenomat, que Killarog lhe havia

mostrado e, tal qual este, possuía duas portas.

A capacidade de orientação de Perry era espantosa.

Dirigiu-se sem a menor hesitação aos dois homens que

montavam guarda junto à segunda porta e disse:

— Deixem-nos passar. Temos de ir a Fenomat para

executar uma tarefa muito importante.

Ao que tudo indicava um dos guardas não teve a menor

dúvida. Mas o outro baixou o fuzil, fechando o acesso à

porta, e disse em tom desconfiado:

— O comandante Belal está procurando uma mulher e

um homem que foram condenados à morte. Conheço o

capitão Feriar. Mas será que vocês não são os fugitivos?

Perry pôs a mão no bolso. Ele o fez numa atitude

indiferente, como quem já está cansado de exibir seus

documentos. E, ao que parecia, os dois guardas pensavam

que se tratasse da identidade de Perry.

Acontece que Perry acabou por tirar um objeto que

tinha certa semelhança com uma pequena pistola. Ivsera

não chegou a ver o que Perry fez com o objeto, mas no

instante em que sentiu uma dor cruciante na cabeça, os dois

soldados caíram imóveis. Nem tiveram tempo para soltar

um grito.

Ivsera teve um calafrio.

— Vamos! — disse Perry em tom tranquilo. — É uma

pena que foram tão desconfiados. Levarão duas horas para

recuperar a consciência. Mas antes disso alguém os

encontrará... e então já saberão onde procurar-nos.

— Não estão... mortos? — gaguejou Ivsera, enquanto

Perry abria a porta.

Perry riu.

— Não. Como já disse, não derramo sangue enquanto

tenho um meio de evitá-lo.

O corredor pelo qual seguiram era mais largo e alto que

aquele que Killarog mandou abrir em prosseguimento ao

abrigo de Fenomat. Ivsera começou a compreender que a

“guerra dos túneis”, nome que costumava dar ao conflito,

fora preparada há muito tempo por parte de Sallon. Deviam

ter levado pelo menos um ano para abrir uma galeria desse

tipo numa extensão de alguns quilômetros.

O corredor estava profusamente iluminado. Percebia-se

que, além dos dois guardas inconscientes, não havia

ninguém por perto. Ivsera achou que isso era um mau sinal

para Fenomat. Se ainda estivesse havendo luta, a galeria se

encontraria repleta de gente armada.

Perry caminhava vigorosamente. Ivsera percebeu que

Feriar examinava repetidas vezes o homem desconhecido,

como se procurasse compreender com quem lidava. Porém,

nada estava conseguindo, pois, de vez em quando, sacudia a

cabeça, bastante contrariado, e murmurava palavras

incompreensíveis. Ivsera o entendia, porque com ela estava

acontecendo a mesma coisa. O desconhecido livrara-a de

uma situação muito perigosa e, ao que tudo indicava, estava

prestes a impor respeito ao regime despótico de Sallon.

Portanto, deviam sentir-se gratos. De outro lado, porém,

começava a apavorá-la por causa dos seus conhecimentos e

capacidades.

Assim, por exemplo, a arma com que acabara de reduzir

os dois guardas à inação. O que seria aquilo? Não os

matara; apenas lhes roubara a consciência. Ivsera tinha

certeza absoluta de que em Isan jamais existira um aparelho

daquele tipo.

A conclusão que se poderia extrair dali era um pouco

arriscada: o desconhecido não era de Isan. Vinha de outro

mundo.

Antes que tivesse início a guerra em Isan, os dois

Estados rivais, Othahey e Heyatha, realizavam esforços

para conquistar o espaço. Em virtude da inimizade que

reinava entre os dois Estados, esses esforços assumiram a

feição de uma corrida obstinada. Depois que vários satélites

Page 125: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

125

gravitavam em torno do planeta, o lançamento do primeiro

foguete espacial estava iminente de ambos os lados. E, em

ambos os casos, o destino do foguete seria Vilan II, o

planeta que tinha uma órbita entre dois outros que giravam

em torno de Vilan.

Mas sobreveio a guerra e destruiu tudo que havia sido

criado. Havia uma única coisa que não conseguira destruir:

o saber dos homens, que lhes dizia ser a navegação espacial

não só possível, como necessária, pois em outros mundos

poderia haver outros seres, talvez inteligentes, e que se

deveria tentar entrar em contato com eles.

Será que Perry era um desses seres?

* * *

Depois de uma marcha de três horas, durante a qual se

haviam encontrado com alguns soldados que não criaram o

menor problema, Perry deu outra prova de seus

conhecimentos sobrenaturais. Parou e perguntou:

— A senhora não disse que em Fenomat abriram outra

galeria em direção a Sallon?

A pergunta foi dirigida a Ivsera. A jovem assustou-se.

Tinha certeza absoluta de que nunca havia falado sobre essa

galeria. A não ser com Killarog, que estava morto.

“Será que Perry sabia ler pensamentos?”, pensou.

— Não... — respondeu em tom hesitante — não disse

nada disso. Mas de qualquer maneira essa galeria existe.

Perry sorriu.

— Onde?

Ivsera descreveu a situação da galeria com a maior

exatidão possível. Por algum tempo, Perry parecia bastante

pensativo. Finalmente apontou para a parede da esquerda

do corredor e disse:

— Se neste ponto abrirmos uma galeria que desça dez

graus em relação à horizontal, devemos encontrar a galeria

de Fenomat numa distância de cem metros, não é?

Ivsera não sabia. Além disso, a observação lhe parecia

ser puramente teórica.

“Quem poderia abrir uma galeria numa hora dessas, e

para que poderia servir a mesma?”, refletiu.

— Será preferível que desapareçamos por algum tempo

— apressou-se Perry em explicar. — Uma porção de gente

está atrás de nós.

Ivsera e Feriar olharam para trás. Mas a galeria que se

estendia às costas deles continuava vazia como estivera até

então.

Perry pôs a mão no bolso e tirou a pequena arma com

que fizera desmaiar os dois guardas; entregou-a a Feriar.

Depois fez um gesto em direção à galeria.

— Se aparecer alguma coisa por aí — explicou —

aponte o cano da arma nessa direção e aperte o botão

vermelho. Isso nos livrará dessa gente. Convém olhar de

vez em quando para o outro lado. Provavelmente Belal

procurará agarrar-nos num movimento insinuante.

Não houve a menor objeção. Feriar pegou

cautelosamente a estranha arma e examinou-a. Ivsera

colocou-se a seu lado e, de tão curiosa que estava, nem

percebeu de onde Perry tirou o instrumento comprido que

dirigiu contra a parede esquerda do corredor.

Mas viu que do cano do aparelho saiu um raio luminoso

esverdeado que se alargou em forma de funil e atingiu a

parede. Dentro de poucos segundos surgiu um buraco

profundo. A rocha abriu-se para ambos os lados, como se

tivesse sido transformada em nuvens de gás.

Perry concentrou-se exclusivamente no seu trabalho.

Apesar disso parecia notar os olhares espantados de Ivsera e

Feriar.

— Tome cuidado, Feriar! — recomendou. — Senão de

repente estarão aqui sem que percebamos qualquer coisa.

O misterioso raio verde trabalhava silenciosamente e

com uma rapidez inacreditável. Ivsera assistia com o maior

espanto, mas de repente sua atenção foi desviada.

Uma gritaria e o ruído de passos invadiram o abrigo de

Sallon. À luz das lâmpadas, viam-se soldados que corriam

apressadamente pelo corredor. Ao que parecia Perry os

percebera, embora já tivesse penetrado bem longe para

dentro da parede. Gritou para Feriar:

— Detenha-os apenas por um instante; daqui a pouco

tudo estará resolvido.

Tremendo de medo, não dos soldados, mas da arma

desconhecida, Feriar dirigiu o cano curto sobre os soldados

de Sallon, que já o haviam reconhecido juntamente com

Ivsera e se aproximavam em meio a uma gritaria furiosa.

— Atire! — exclamou Ivsera assustada.

Feriar apertou o botão. Os efeitos do tiro foram muito

maiores do que imaginaria. Até parecia que os homens

haviam batido numa parede: tombaram, ficando imóveis.

Os homens que vinham na retaguarda não sabiam o que

tinha acontecido aos outros, mas compreenderam o perigo.

Abrigaram-se atrás dos corpos dos homens inconscientes e

apontaram os fuzis. Feriar hesitou.

— Cuidado! — gritou Ivsera. — Deite!

No mesmo instante em que os fuzis começaram a

espocar, deixou-se cair para a frente. Feriar continuou de pé

e voltou a levantar a arma. Comprimiu o botão e silenciou

outro grupo dos soldados de Sallon. Só vez por outra, um

ruído soava pelo corredor.

Ivsera ouviu os projéteis baterem contra as paredes e

cantarem ricocheteando.

Algumas peças de metal reluzente caíram bem à sua

frente, continuaram a rolar e imobilizaram-se. Incrédula,

Ivsera pegou uma delas. Era um projétil de fuzil; alguma

força misteriosa fizera com que interrompesse sua trajetória

e caísse ao chão.

Ouviu a voz de Perry, que parecia vir através de uma

parede muito espessa:

— Venham! Já consegui.

Feriar continuava de pé, com os olhos fitos nos homens

inconscientes que estavam jogados no corredor. Ivsera teve

de empurrá-lo suavemente para dentro da galeria lateral que

acabara de ser aberta por Perry.

Com um espanto enorme, ela percebeu que neste meio

tempo a galeria já havia avançado cinquenta metros. De pé

Page 126: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

126

no fim do túnel, Perry lhes fez um sinal com a mão.

— Vamos fechar-lhes o caminho — disse. — Andem

depressa!

Feriar despertou do torpor em que se encontrava e

começou a caminhar vigorosamente.

— Cheguem bem perto! — pediu Perry. Dirigiu o cano

comprido de sua arma contra o teto da galeria que acabara

de perfurar. Concentrando os raios num feixe finíssimo,

cortou fendas estreitas na rocha. Dentro de alguns

segundos, fez com que sua entrada desmoronasse.

Prosseguiu na operação, até que a galeria secundária ficasse

obstruída numa extensão de cerca de trinta metros.

— Isso! — disse Perry com uma risada. — Acho que

levarão pelo menos três dias para remover o entulho.

Prosseguiu no seu trabalho e, logo depois, abriu-se o

último pedaço de rocha que dava acesso à galeria do abrigo

de Fenomat.

A fuga fora bem sucedida. O corredor estava vazio.

Talvez os ocupantes do subsolo de Sallon ainda não o

haviam descoberto; ou então, o que era mais provável, não

se interessaram por ele, porque de nada lhes poderia servir.

* * *

Para sua surpresa, no pavimento inferior do abrigo de

Fenomat só encontraram dois guardas, postados na saída do

corredor de Sallon, que dava diretamente para o antigo

gabinete de Havan. Ivsera pensou na cara que este deveria

ter feito quando de repente a parede desmoronou atrás dele

e os soldados de Sallon se precipitaram pela abertura.

Perry liquidou os dois guardas com um único tiro e,

ajudado por Feriar, levou-os a uma sala vizinha. Disse que

a energia do disparo era suficiente para deixá-los

inconscientes por dois dias, e que seria preferível não serem

descobertos antes disso.

Depois dessas palavras, Feriar olhou Perry com uma

expressão séria. Hesitou por um instante e disse:

— Nós lhe devemos muitos agradecimentos, e sabemos

perfeitamente que em Isan deve ser considerado como um

tipo de ser superior. Mas ficaríamos muito mais à vontade

se quisesse dizer-nos o que pretende fazer e,

principalmente, por que pretende fazê-lo.

Perry fez um gesto afirmativo.

— Muito bem. A resposta à primeira pergunta é fácil.

Pretendo reconquistar o abrigo de Fenomat. Para dar uma

resposta parcial à segunda pergunta, direi o seguinte: se

Belal conservar em seu poder no abrigo de Fenomat, isso

representará o primeiro passo da escalada que fará dele a

potência número um de Isan. Pelo que sei, aqui não existe

nenhum lugar em que haja dois abrigos que fiquem tão

próximos um do outro. Portanto, não haverá ninguém com

maior domínio que Belal. Depois desse passo, o gorducho

fará o possível para dominar todo o planeta; e, uma vez que

será o maior poder, deverá conseguir.

Perry fez uma ligeira pausa e prosseguiu em tom

ligeiramente irônico.

— Uma vez que Belal pretende instalar o sistema

ditatorial em Isan, deveremos estragar seus planos.

Feriar fez um gesto afirmativo; parecia muito sério.

— E a outra parte da resposta? — perguntou Ivsera.

— Deveremos estar juntos por mais algum tempo antes

que eu possa dar a resposta integral. Por enquanto, nada

posso adiantar.

Feriar interveio:

— O senhor dispõe de uma série de armas que lhe

garante uma superioridade absoluta sobre qualquer inimigo.

Mas será que conseguirá dominar a guarnição do abrigo,

que deve ser superior a mil homens? Convém não esquecer

que estas instalações são muito complicadas. Para uma

pessoa isolada é praticamente impossível orientar-se por

aqui.

Perry exibiu um sorriso condescendente.

— Para mim não haverá o menor problema; pode

acreditar — respondeu.

Perry pôs a mão num dos bolsos de seu traje esquisito.

Tirou um objeto quadrado, achatado e que, de tão pequeno,

facilmente poderia ser escondido na palma da mão de

qualquer pessoa.

Ivsera ouviu-o dizer algumas palavras, enquanto

encostava o pequeno aparelho à boca. Não compreendeu

essas palavras.

Mas, em Isan havia uma única língua, motivo por que o

conceito de idioma estrangeiro era totalmente desconhecido

dos habitantes do planeta. Por isso Ivsera viu no fato de não

ter entendido a fala de Perry mais uma prova de que o

mesmo provinha de um mundo desconhecido.

Ao que parecia Feriar ainda estava longe de chegar a

uma conclusão desse tipo. Fitou-o com uma expressão

incrédula enquanto Perry falava para dentro do minúsculo

aparelho. Mas, quando de repente, ouviu uma voz saindo

desse aparelho, e que tal qual Perry emitia sons de uma

língua estranha, ficou apavorado.

* * *

John Marshall ocupou o lugar de Perry Rhodan,

enquanto este foi verificar o resultado do empreendimento

do qual tivera conhecimento por meio da escuta das

palestras de Killarog.

E a transmissão que tanto espanto causou em Ivsera e

Feriar, fora dirigida a Marshall. E este captou um ligeiro

relato da situação e obteve estas instruções:

— Arme-se com um desintegrador e um radiador de

impulsos térmicos e venha até aqui. Vamos atacar o abrigo

simultaneamente de dois lados. Laury ficará com Rodrigo.

Entendido?

— Perfeitamente. Permanecerei em contato com o

senhor.

— Está bem — concluiu Rhodan. — Faça o possível

para não matar ninguém.

* * *

A reconquista do abrigo de Fenomat não passou de uma

farsa. Perry atravessou os corredores e deixou todo mundo

Page 127: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

127

inconsciente com a arma misteriosa. Caberia a Feriar e

Ivsera separar os homens de Fenomat dos de Sallon. Os

primeiros ficariam estendidos no chão até que recuperassem

os sentidos; os outros seriam amarrados.

Antes do início da operação, Perry fechara às

extremidades de ambas as galerias, a fim de impossibilitar a

remessa de reforços de homens e materiais para Fenomat,

ao menos por via subterrânea.

O abrigo de Fenomat era formado de um total de cem

pavimentos. Face à arma de grande alcance de que

dispunha Perry não demorou mais de uma hora na operação

de limpeza de cada um. Vez por outra, recorria ao aparelho

quadrado para conversar com alguém numa língua estranha.

Quanto ao conteúdo das palestras, apenas disse a Ivsera e

Feriar que um amigo seu havia iniciado a limpeza do

abrigo, começando da parte de cima e que, dentro em breve,

se encontrariam com ele na altura do quinquagésimo

pavimento.

Uma coisa que quase chegava a ser mais espantosa que

a série de acontecimentos foi a persistência com a qual

Rhodan se dedicou à tarefa. Depois de concluída a limpeza

de dez pavimentos, Feriar teve de ser substituído por um

elemento de Fenomat, já que não conseguia manter-se de pé

de tão cansado que estava. Ivsera desistiu depois de mais

dois pavimentos, após ter providenciado um substituto

saído das fileiras dos homens que já haviam despertado.

Quanto a Perry, este não demonstrou o menor sinal de

cansaço. Tinha o aspecto de quem acabava de acordar de

um sono reparador. Ivsera sentiu vergonha, mas enquanto

ainda estava com vergonha adormeceu.

Quando abriu os olhos, um silêncio total reinava em

torno dela. A maioria das pessoas inconscientes havia

recuperado os sentidos. Como estas não tivessem a menor

idéia do que acontecera, mantinham-se em silêncio. Os

prisioneiros vez por outra faziam um esforço de livrar-se

das amarras ou sair dos calabouços fechados com portas de

aço, mas não conseguiram nem uma coisa nem outra.

Assim, acabaram por conformar-se com o destino.

Alguns se lembraram de terem visto Ivsera em

companhia do homem que com sua arma havia criado toda

a confusão. Por isso, a mesma foi assediada com perguntas

logo que se levantou. Mas em vez de responder correu em

direção ao elevador e subiu a fim de procurar Perry.

Encontrou-o no quadragésimo oitavo pavimento. Ao seu

lado estava Feriar e mais um homem que tinha olhos

brancos que nem Perry e trazia na mão uma arma igual à

que este usara.

Perry sorriu para a jovem.

— Tudo liquidado — disse. — O abrigo está em nosso

poder. Ivsera, este é meu amigo Marshall. Se não fosse ele,

teríamos mais algumas horas de trabalho.

Ivsera inclinou a cabeça para Marshall. Este a

cumprimentou com um sorriso alegre.

— Imagine! — prosseguiu Perry. — Ainda havia um

foco de resistência em Fenomat. Um punhado de jovens

defendia-se com as poucas armas de que dispunha contra as

investidas dos homens de Sallon. Estavam entrincheirados

nos laboratórios químico-biológicos.

Ivsera aguçou o ouvido.

— Sabe os nomes deles? — indagou.

— Sei os nomes de dois. Um se chama Thér e o outro

Irvin.

Ivsera soltou um grito de alegria.

— Thér e Irvin. Coitados!

— Sim, quase não conseguiam manter-se de pé de tão

famintos que estavam. Logo lhes dei alguma coisa para

comer. Aliás, ao que parece a questão dos abastecimentos

está se transformando no problema mais grave deste abrigo.

Todos os ocupantes estão subnutridos. Não têm

mantimentos?

Ivsera fez um gesto de desânimo.

— Não, mais nada.

Perry não se impressionou.

— Bem, nesse caso teremos de arranjar alguma coisa.

A tarefa de conseguir mantimentos para mais de dez mil

famintos não causava a menor dor de cabeça a Rhodan.

Feriar tomou a palavra.

— Perry pretende apoderar-se também de Sallon. O que

acha disso?

Ivsera abriu os dedos.

— Se quisesse poderia conquistar todos os abrigos de

Isan.

— Não estou interessado nos abrigos; apenas em Belal

— disse Perry, sacudindo a cabeça.

Ivsera sentiu que naquela altura as questões políticas já

não exigiam sua presença. Um ser mais poderoso assumira

a regência, e qualquer tentativa de ajudar ou oferecer

resistência só poderia conduzir ao ridículo.

Depois de obter a concordância de Perry, ela instruiu

alguns homens de Fenomat a tirarem as roupas dos

prisioneiros, com exceção do estritamente necessário, e as

levarem ao laboratório. Pelos seus cálculos, isso lhe

permitiria fabricar uma ração completa de um dia para cada

cidadão de Fenomat. Dessa forma, poderiam resistir até que

Perry lhes trouxesse um auxílio que resolvesse a situação

em definitivo.

No laboratório encontrou-se com Irvin e Thér. Irvin

abraçou-a de tão eufórico que se sentiu. Antes, nunca se

teria permitido esse tipo de liberdade.

— Moça, como estou satisfeito em revê-la! —

exclamou.

Ivsera desprendeu-se dos braços de Irvin e fitou-o.

Achava-se bastante mudado depois que o vira pela última

vez. Ao que parecia, só faltara a luta para transformar o

rapaz num homem de verdade.

— Pelo que ouvi dizer, você se transformou num herói

— disse Ivsera.

Irvin riu.

— Não foi por minha vontade — respondeu. — Este

feitor de escravos — prosseguiu, apontando para Thér —

apareceu de repente com três homens, colocou um fuzil na

minha mão e gritou: “O pessoal de Sallon está chegando!

Page 128: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

128

Atire neles, senão atirarão em você!” Atiramos em quatro.

Não tive outra alternativa. Com os produtos químicos que

temos aqui, fizemos granadas de mão e limpamos a área.

Poderíamos resistir indefinidamente, se não fosse a fome.

Mas aquele milagreiro desconhecido chegou bem na hora.

Aliás, quem é?

Ivsera explicou que sabia tanto quanto ele mesmo.

— A esta hora está fazendo uma limpeza em Sallon, não

é? — resmungou Thér de repente. — Tomara que encontre

Havan, o traidor.

Ivsera virou-se abruptamente.

— O quê? Havan é um traidor?

— Então você ainda não sabia? — perguntou Irvin. —

Há vários anos está compactuando com os homens de

Sallon. Pelo que dizem Belal lhe prometeu que depois da

conquista de Fenomat, Havan seria uma espécie de

governador. Não foi por acaso que a galeria escavada pelos

ocupantes de Sallon saiu justamente no gabinete dele.

Ivsera soltou um gemido. Havan, um traidor! Há muito

tempo ela o tinha na conta de um homem egoísta,

arrogante, intrigante e mais uma porção de coisas. Mas

nunca imaginaria que poderia transformar-se num traidor.

Subitamente lembrou-se de algumas palavras ditas por

ele:

“— Por enquanto ainda temos um Conselho...”

Então foi isso que ele quis dizer.

Ivsera estremeceu ao pensar no destino que aguardaria

Havan se conseguissem prendê-lo. Segundo as leis de

guerra que prevaleciam em todos os abrigos, a pena pela

traição era uma só: a morte.

Sacudiu esses pensamentos e passou os olhos pelas

fileiras de instrumentos reluzentes. Seu olhar recaiu sobre o

monte de roupas tomadas dos prisioneiros, que os coletores

estavam empilhando num canto.

— Vamos ao trabalho! — disse, dirigindo-se a Irvin. —

Precisamos comer alguma coisa.

Perry Rhodan não tivera a intenção de interferir nos

acontecimentos que se desenrolavam em Isan.

Acompanhado de Gucky, o rato-castor, dos mutantes

Laury Marten e John Marshall, e finalmente do conde

Rodrigo de Berceo, libertado do zôo galático, Rhodan teve

muito trabalho em escapar no seu jato espacial de Tolimon,

o mundo dos aras. Marshall e Laury haviam recebido a

incumbência de procurar descobrir em Tolimon o segredo

do medicamento que retardava a decadência das células,

exercendo as funções de um verdadeiro elixir da vida.

Laury conseguira obter permissão para penetrar no zoo

galáctico, no qual os aras haviam internado seres de todos

os setores conhecidos da Galáxia. Um dos ocupantes do

zoológico, que segundo a classificação arcônida pertencia

ao grau de inteligência C, era o conde Rodrigo de Berceo,

um terreno do século XVII. Laury cometeu o erro de

apaixonar-se por esse homem. No fogo da paixão, fez certas

coisas que provocaram a desconfiança dos aras. Rhodan

teve de intervir. Não conseguiu encontrar a fórmula

estrutural do elixir da vida. Mas fugiu de Tolimon em

companhia dos dois mutantes e do infeliz Rodrigo. Além

disso, Laury conseguiu subtrair uma garrafa do precioso

elixir.

Uma série de saltos de transição levou o jato espacial

para além do alcance das naves que o perseguiam e para o

interior do coração da Galáxia. O veículo espacial

encontrava-se fora das rotas da navegação cósmica. Rhodan

pretendia passar uns trinta dias no acompanhante do sol

azul do astro geminado, esperando que nesse tempo a

caçada fosse suspensa.

Sabia perfeitamente que os acontecimentos de Tolimon

poderiam provocar o interesse da central positrônica do

Império Arcônida. Se as informações sobre o incidente de

Tolimon que chegassem ao seu conhecimento fossem

suficientes, havia o risco de concluir que só Rhodan poderia

ser responsável pelos mesmos. E Perry era considerado

como morto pelo cérebro positrônico. E a crença de que há

mais de cinquenta anos a Terra fora destruída e a

Humanidade eliminada por um ataque dos saltadores teria

que ser mantida viva.

Só essa manobra desviacionista permitira à Terra chegar

ao fim do século XX sem ser atingida pelas perseguições

dos saltadores e pelos ciúmes do cérebro positrônico. E

agora, cinquenta e seis anos depois da manobra, o êxito

desta poderia ser frustrado.

Será que cinquenta e seis anos foram suficientes para

transformar a Terra num mundo que pudesse afirmar-se no

confronto das potências galácticas? Já teria chegado a hora

de suspender o jogo de esconder?

Rhodan acreditava que sim, mas não tinha tanta certeza.

Por isso achou preferível que os perseguidores perdessem

sua pista.

Durante o pouso em Isan os instrumentos constataram

uma radiatividade extraordinária na atmosfera do planeta.

As ruínas existentes nos dois continentes faziam concluir

pela ocorrência de uma guerra nuclear que deveria ter sido

travada há alguns anos.

Depois do pouso do jato espacial, Rhodan acompanhou

a troca de mensagens entre Killarog e seus companheiros.

Mandou que Gucky, o rato-castor, procurasse localizar

outros sobreviventes na superfície do planeta. Para executar

a tarefa, Gucky recorreu aos seus dons parapsicológicos e

paramecânicos: a teleportação e a telepatia.

Rhodan pôs-se a caminho para examinar os dois abrigos

mais próximos. Nessa oportunidade, viu-se numa situação

que o obrigou a intervir nos acontecimentos.

E agora, dois dias de Isan depois de sua primeira

aparição, mantinha os dois abrigos firmemente em suas

mãos e recebera de Gucky a notícia de que em Isan havia

um total de onze abrigos intactos. Outros cinco, que

4

Page 129: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

129

ficavam exatamente no centro das explosões nucleares, não

haviam resistido ao impacto.

A conquista do abrigo de Sallon correu sem incidentes,

mas o resultado da operação não foi satisfatório para

Rhodan e Marshall, pois não encontraram Belal nem

Havan, o traidor.

Estavam desaparecidos e, conforme Rhodan soube de

várias pessoas, com eles desapareceram cerca de cem

homens fortemente armados.

De início, Rhodan acreditou que não teria a menor

dificuldade em localizar Belal e Havan e obrigá-los a

capitularem. Mas constatou-se que não estavam escondidos

em nenhum dos dois abrigos, nem em qualquer lugar na

superfície.

Rhodan convencera-se de que o abrigo de Sallon

disporia de uma galeria secundária ou de um corredor

situado bem embaixo da superfície e que levava a esta.

Sobre a existência deste refúgio, apenas algumas poucas

pessoas estavam informadas. E nenhuma dessas ficou para

trás, conforme se apurou num rigoroso interrogatório dos

prisioneiros.

Por isso, Rhodan teria de contar com os próprios

recursos a fim de descobrir o caminho pelo qual Belal e

Havan haviam fugido.

Por enquanto não pensava nem de longe que a fuga de

Belal poderia representar um perigo para ele. Acontecia,

porém, que sua permanência em Isan seria limitada, e assim

queria providenciar para que mesmo depois de sua partida,

Havan e Belal não pudessem colocar em perigo a

democracia dos dois abrigos.

* * *

Belal não dava a perceber que se encontrava em

situação difícil. Para ele, uma situação só se torna

desesperadora quando está com a faca sobre o peito e as

mãos amarradas. E essa atitude face ao destino era um dos

motivos por que Belal era um inimigo muito perigoso.

— Então, o que me diz? — perguntou em tom áspero ao

homem de meia-idade que se encontrava à sua frente.

O homem era Malanal, um cientista e um gênio em sua

especialidade, as ciências naturais. Desde o início, Belal

acreditara que um dia poderia precisar dele. Por isso

interessou-se por sua pessoa e, valendo-se dos recursos

existentes no abrigo, mandara construir um amplo

laboratório equipado com instrumentos valiosos. As salas

em que foi instalado o laboratório haviam sido escavadas na

rocha cerca de um ano depois da guerra e obtiveram dois

acessos secretos. Alguns dos homens que trabalharam na

obra pertenciam à guarda pessoal de Belal, na qual o

mesmo confiava irrestritamente, e outros desapareceram em

algum campo de trabalho, de onde nunca retornaram.

Quando surgiu a intervenção do desconhecido chamado

Perry, Belal percebeu que sua precaução não fora supérflua.

Retirou-se para o laboratório juntamente com sua guarda

pessoal e alguns elementos de confiança, e teve certeza de

que por enquanto não seria descoberto.

Esse “por enquanto” lhe bastava. Belal não pretendia

reconhecer Perry por muito tempo como o dono da

situação. Malanal desempenhava um papel importantíssimo

em seus planos.

O cientista abriu os dedos, para dar a entender que não

estava em condições de fornecer informações minuciosas e

fidedignas.

— Mandei que dois dos seus homens subissem Belal...

— Tomara que não tenham andado por aí de maneira a

serem vistos do veículo — interrompeu Belal em tom

zangado.

— Não. Agiram com todo o cuidado. Lá em cima não

saíram ao ar livre. Do buraco atiraram algumas pedras

contra o veículo.

Belal franziu a testa.

— Que bobagem é essa?

— A alguns metros do casco do veículo as pedras

ricochetearam, como se tivessem batido numa parede

invisível, e caíram ao chão. Vemo-nos diante do mesmo

fenômeno relatado pelas pessoas que perseguiram a

prisioneira Ivsera e o capitão Feriar. Os desconhecidos

sabem envolver-se por um campo protetor no qual nenhum

tipo de matéria consegue penetrar.

Belal olhou fixamente para frente.

— Quer dizer que seria totalmente inútil tentar atacar o

veículo? — perguntou depois de algum tempo.

Malanal sacudiu a cabeça. Belal impacientou-se.

— Fale logo!

Malanal inclinou ligeiramente o corpo.

— Num certo momento, esse desconhecido que atende

ao nome de Perry desejará voltar ao veículo — explicou. —

Uma vez que também é feito de matéria, não poderá entrar

se os campos defensivos não forem desativados por um

instante. Se no mesmo instante submetermos a nave a um

bombardeiro cerrado, provavelmente conseguiremos

destruí-la.

Belal contorceu o rosto.

— Não quero destruir a nave — exclamou. — Apenas

quero danificá-la, pois pretendo retirar-lhe alguns

instrumentos.

Malanal fez um gesto de concordância.

— Perfeitamente, Belal. Isso depende da intensidade do

bombardeio. Este ponto não é da minha competência.

Belal levantou-se.

— Muito bem. Tomarei todas as providências. Acredito

que dois lança-foguetes de três polegadas serão suficientes

para danificar a nave e matar os desconhecidos ou colocá-

los fora de combate. Mandarei que os homens assumam

imediatamente seus postos na entrada da superfície. Foi

uma sorte o desconhecido ter pousado justamente nesse

lugar.

Saiu da sala sem dignar-se de dirigir outra palavra a

Malanal.

O setor secreto em que ficava o laboratório do abrigo de

Sallon consistia num único corredor com vinte salas. Cinco

delas serviam de residência aos cientistas, enquanto as

Page 130: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

130

demais eram ocupadas pelo laboratório.

Nos sete anos decorridos desde a instalação do

laboratório, os cientistas haviam adiantado as pesquisas e

alcançaram resultados que, segundo acreditava Belal, não

foram atingidos em qualquer outro abrigo.

Assim, Belal garantiu uma superioridade absoluta para o

dia em que os habitantes de Isan pudessem voltar à

superfície de seu mundo e começassem vida nova.

Numa das vinte salas do abrigo de Sallon, Havan

instalara-se juntamente com três guarda-costas que Belal

colocara à sua disposição. Não o fez porque receasse pela

vida de Havan, mas por acreditar que o caráter deste se

assemelhava tanto ao seu e, assim, não deveria confiar nele.

Nos dias que se passaram depois da queda do abrigo de

Sallon, Havan parecia muito mais abatido que Belal. Este

começou a acreditar que no entender do traidor a situação

realmente era desesperadora.

Essa situação lhe convinha, e por isso só transmitiu

pequena parte da conversa que manteve com Malanal e das

esperanças que este lhe infundira.

Havan fez um gesto melancólico. Belal retirou-se para

fazer uma ligeira sesta em seu quarto.

O traidor deu-se ao trabalho de ficar com a porta aberta

e certificar-se de que Belal não voltaria. Depois se dirigiu

aos guarda-costas.

— Ele não me contou tudo. Vocês não perceberam?

Malanal disse mais que isso. Provavelmente existe uma

possibilidade de enfrentar os desconhecidos. — Preciso

saber disso. Procurem descobrir! Já sabem qual é a

recompensa que receberão.

Os guarda-costas confirmaram com um aceno de

cabeça. Por certo, Belal não teria dormido tão

tranquilamente se soubesse que Havan sabia conquistar a

dedicação de seus próprios subordinados por meio de um

jogo de promessas e ameaças. Naquela hora já não se

sentiam empolgados pelas funções que Belal lhes havia

atribuído, pois Havan prometeu que lhes colocaria à

disposição um abrigo com os ocupantes. Isto aconteceria

quando o desconhecido e Belal tivessem sido subjugados e

quando todos os abrigos de Heyatha e talvez também os de

Othahey tivessem caído nas mãos de Havan através das

artes técnicas de Malanal.

Por enquanto havia um ponto fraco no plano tático de

Havan: o cientista Malanal. O traidor constatara que a

equipe científica estava inteiramente dedicada ao velho.

Não havia como obter acesso aos segredos do laboratório

sem a cooperação de Malanal.

Acontece que Malanal era um homem que sabia guardar

distância. Havan tinha a impressão de que Malanal não

concordava com Belal em todos os pontos. Mas, quando o

traidor pensou que poderia aproveitar esse fato como ponto

de partida para minar as boas relações existentes entre o

ditador e o cientista e conquistar o apoio do segundo,

defrontou-se com a resistência deste. Na oportunidade,

Malanal explicou-lhe que jamais trabalharia para Belal ou

para Havan, mas apenas para a ciência.

Todavia, declarou-se disposto a não revelar a Belal o

conteúdo da palestra que mantivera com Havan.

* * *

Perry Rhodan pretendia utilizar Gucky na operação de

busca que visava à descoberta de Belal e Havan, assim que

o rato-castor regressasse da viagem de inspeção.

Gucky era teleportador. Era capaz de saltar ao acaso

pelos arredores do abrigo, o que lhe permitiria encontrar o

esconderijo.

No entanto, dois dias depois da conquista de Sallon,

Laury informou numa mensagem transmitida em tom

exaltado que Gucky voltara para o jato espacial,

inconsciente e gravemente ferido. O salto que o trouxera de

volta à pequena nave espacial consumira suas últimas

energias. Sangrava de várias feridas que, segundo as

informações de Laury, haviam sido produzidas por simples

tiros de fuzil. A mutante era bem versada em enfermagem,

motivo por que Rhodan podia deixar Gucky entregue aos

seus cuidados. Laury garantiu que dentro de alguns dias o

rato-castor estaria em perfeita forma.

Por enquanto ninguém sabia o que lhe havia acontecido.

Como também possuísse o dom da telepatia, dificilmente

poderia ter sido atingido por qualquer atirador. Teria

adivinhado os pensamentos do atacante. Talvez tivesse

caído numa armadilha mecânica. Face à desconfiança que

os sobreviventes da grande guerra de Isan nutriam uns para

com os outros era perfeitamente possível que nos abrigos

houvesse dispositivos automáticos de tiro ou outros

mecanismos semelhantes. E Gucky estaria indefeso diante

dos mesmos, caso se arriscasse demais.

Para Rhodan os ferimentos sofridos por Gucky

representavam um inconveniente muito sério. Havia

necessidade absoluta de encontrar Belal e Havan, pois do

contrário todos os esforços em prol do estabelecimento de

uma nova ordem nos dois abrigos provavelmente teriam

sido realizados em vão.

Os ocupantes dos abrigos de Fenomat e Sallon

consumiram metade dos alimentos concentrados que o jato

espacial trazia a bordo. Face à natureza destes a sensação de

saciedade duraria cerca de trinta dias. Rhodan esperava que

nesse tempo conseguiria obter alimentos naturais não

concentrados. Do contrário teria de chamar uma nave

terrana com mantimentos.

* * *

No dia seguinte, Marshall fez uma descoberta

importante. Depois de concluída a operação a dois na

conquista nos abrigos, permaneceu em Sallon, onde

procurava descobrir a pista de Belal e Havan.

Revistou cuidadosamente o abrigo e acabou parando na

usina que gerava a energia necessária à iluminação, à

renovação do ar e a várias outras finalidades.

Foi por simples acaso que nessa oportunidade Marshall

fez a descoberta. O acaso consistia no fato de que ao

mesmo tempo em que o chefe dos mutantes se encontrava

Page 131: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

131

na usina energética, Malanal realizava no laboratório

secreto uma experiência que consumia uma quantidade

considerável de energia elétrica.

Marshall realizara um cálculo aproximado e chegara à

conclusão de que o abrigo consumia, em média, um total de

duzentos mil quilowats. Estava tão convencido de seu

conhecimento que não admitia uma variação acima de

cinquenta por cento.

Ao ler o quadro do cabo principal da usina, constatou

que a energia fornecida naquele momento atingia mais de

um milhão de quilowatts. Pelos seus cálculos, isso era

impossível.

Chamou Rhodan, pois tinha certeza de ter descoberto

uma pista. Rhodan veio imediatamente. Mandou que por

alguns minutos todos os pontos de consumo de energia do

abrigo propriamente dito fossem desligados. Com isso o

desempenho da usina teria de baixar para zero. No entanto,

ainda subsistiu um fornecimento de pouco menos de

oitocentos mil quilowatts, ou seja, o quádruplo do que,

segundo os cálculos de Marshall, representava o gasto total

do abrigo. E essa força fluía para algum canal secreto.

Rhodan levou quinze minutos para localizar a série de

cabos pelos quais corria a energia. Dali a pouco o consumo

extraordinário diminuiu de repente para cem quilowatts.

Rhodan estava satisfeito.

— Está bem — disse, dirigindo-se a Marshall. —

Espere aqui. Irei à nave e trarei um desintegrador de

tamanho grande. Se seguirmos os cabos, encontraremos o

esconderijo de Belal.

Sorriu ligeiramente e acrescentou:

— Belal não foi muito hábil, pois do contrário teria

instalado uma usina energética autônoma no abrigo.

Gostaria de saber o que faz com os oitocentos mil

quilowatts.

Rhodan voltou à superfície pelo caminho mais rápido. O

traje que usava, e que tanto chamara a atenção de Ivsera,

representava um aperfeiçoamento do traje transportador

arcônida. Não chamava tanto a atenção, mas em

compensação a potência de seu gerador antigravitacional

era dez vezes maior. O campo de deflexão e o campo

defensivo trabalhavam com circuitos independentes; cada

um dispunha de suprimento de energia em quantidade

suficiente. No caso de numerosos impactos de projéteis, já

não seria necessário renunciar à invisibilidade para evitar a

penetração dos mesmos.

Assim que saiu da comporta de superfície, Perry subiu

ao ar e, deslocando-se em alta velocidade pouco acima do

capim, tomou a direção do jato espacial.

Já era noite.

“Uma noite muito estranha”, pensou Rhodan.

A bola vermelho-escura do sol Vilan brilhava no

horizonte, e inúmeras estrelas salpicavam o céu tingido de

vermelho.

Rhodan levou apenas alguns minutos para chegar à nave

espacial. Usou o pequeno transmissor que sempre trazia

para enviar o sinal codificado automático que desativava os

campos defensivos por um instante, permitindo seu

ingresso na nave.

* * *

De início Belal pretendera executar o golpe sozinho.

Mas Havan insistiu tanto que acabou concordando com a

sua companhia. O que o levou a tomar esta decisão foi

principalmente a informação dos três guarda-costas de

Havan, segundo a qual acabaria caindo na melancolia se

não houvesse logo uma variação em sua rotina de vida.

Belal estava firmemente decidido a eliminar Havan o

quanto antes, para que este não pudesse interferir em seus

planos. No entanto, por ora convinha que o traidor

acreditasse que era um elemento útil, tratado de igual para

igual. Havia vários motivos para isso. Um deles consistia

no fato de que Havan dispunha de vários adeptos em

Fenomat, que no caso de um confronto se guiariam

exclusivamente por sua palavra.

Belal considerou tão importante a neutralização do

veículo inimigo, do qual a essa altura também Malanal

acreditava tratar-se de um tipo de nave espacial, que

resolveu postar-se pessoalmente na saída do setor secreto

do laboratório, em companhia de Havan e dois elementos

de toda confiança. Os dois soldados colocaram os lança-

foguetes em posição de tiro. No momento decisivo, bastaria

abrir a portinhola e fazer fogo.

Um tipo de telescópio, cuja objetiva saía apenas alguns

centímetros acima do nível do solo, garantia a visão perfeita

do estranho veículo. A objetiva era de formato irregular e

possuía o aspecto de uma pedra que se encontrasse ali por

acaso. Belal tinha quase certeza de que os ocupantes do

veículo — se é que no momento havia alguém a bordo —

não perceberiam nada.

* * *

Laury não tinha mãos a medir. O rato-castor,

gravemente ferido, precisava de cuidados constantes. Era

bem verdade que o uso dos medicamentos que o jato

espacial trazia a bordo eliminara por completo o risco de

infecção. Mas Gucky estava bastante debilitado, e a

reconstituição de suas energias seria levada a efeito

progressivamente.

O rato-castor já recuperara a consciência. Contou a

Laury o que lhe havia acontecido. Conforme supusera

Rhodan, caíra numa armadilha mecânica enquanto

examinava um abrigo do lado de dentro. Não havia ligado o

campo defensivo, pois estava protegido pelo campo de

deflexão e acreditava ter todos os motivos para pensar que

ninguém atiraria contra uma criatura invisível. Enganara-se

e agora, cheio de arrependimento, lembrava-se do conselho

de Rhodan, que lhe recomendara que não assumisse o

menor risco e, principalmente, que em hipótese alguma

penetrasse num abrigo.

Além de Gucky, o conde Rodrigo de Berceo exigia os

cuidados de Laury.

Rodrigo dera a entender, de forma pertinaz e

Page 132: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

132

inequívoca, que “o arranjo dos assuntos pessoais” de um

homem deve ter primazia sobre o amor. Assim a paixão de

Laury pelo conde asteca-espanhol diminuíra um pouco.

Além disso constatou-se que para um homem raptado na

Terra em pleno século XVII e mantido numa espécie de

museu zoológico, longe do processo tecnológico, o salto

para o mundo do século XXI estava ligado a dificuldades

consideráveis que por vezes chegava a abalar os alicerces

de suas estruturas mentais. Dali em diante, o resto da

paixão desvanecera-se, cedendo lugar a uma afetuosa

compaixão.

Laury conseguiu convencer Rodrigo de que seria

ridículo andar por aí de botas de cano alto, cachecol,

chapéu de penacho e mangas de renda. Rodrigo passou a

usar o macacão dos astronautas terranos. É bem verdade

que levou mais algum tempo para dispensar a espada.

Laury ainda conseguiu fazer com que Rodrigo deixasse de

acreditar que o mundo teria que curvar-se ante ele

unicamente porque era descendente de nobres. Mostrara-lhe

que hoje em dia, especialmente para quem se encontrasse

numa situação como aquela com a qual o jato espacial se

defrontara durante a fuga de Tolimon, a única coisa que

importava era ser mais inteligente e forte que os outros.

Mas Laury esquecera um detalhe. Um conjunto de

opiniões firmemente enraizadas não pode ser extirpado de

um dia para o outro. Em Face disso, uma estranha mistura

de concepções passou a reinar no cérebro de Rodrigo, e a

cada dia que passava maior era a dificuldade de adaptar-se

ao novo ambiente.

Assim, por exemplo, fez esforços comovedores para

compreender de que tipo era o veículo em que se

encontrava. Tomara conhecimento de que se tratava de uma

nave espacial com a qual se podia voar em meio às estrelas.

Acontece que para ele o mundo da tecnologia terminava na

máquina a vapor, cujo princípio de movimento lhe fora

explicado por Laury. Depois procurou entender o motor a

vapor a partir do momento em que pela primeira vez vira o

jato espacial em ação. Mas ninguém conseguiu explicar-lhe

que a geração da energia necessária a uma astronave se

processava por um princípio inteiramente diferente.

Rodrigo aprendeu a manipular este ou aquele botão.

Sabia que devia apertar em tal e tal lugar para ligar as telas

ou colocar em funcionamento o sistema de

condicionamento de ar. Mas não sabia como funcionavam

esses aparelhos, e Laury tinha certeza de que nunca

aprenderia.

Por isso tinha algum trabalho em convencer Rodrigo a

não revistar o jato espacial ou realizar experiências por

conta própria.

Certa noite, depois de ter cuidado de Gucky, Laury

encontrou o conde no poço de instrumentos. Com uma

chave, havia retirado à tampa do gerador que alimentava o

campo defensivo e, à luz de sua potente lanterna de mão,

seguia o curso dos controles pressurizados coloridos.

Ao ouvir os passos de Laury, Rodrigo virou-se e sorriu

para a moça.

— Acho que nunca acharei a máquina a vapor — disse

um tanto triste.

A mutante ficou muito zangada.

— Você vai é demolir a nave — respondeu. — Vamos

embora! Você sabe perfeitamente que não pode vir aqui

sozinho.

Rodrigo confirmou com um gesto.

Imediatamente subiu à frente de Laury pela estreita

escada de plástico. No momento em que chegou à sala de

comando, ouviu-se um zumbido vindo do quadro de

controle central.

— Ligue a tela — ordenou Laury. — Acho que é o

chefe que está chegando.

Rodrigo obedeceu imediatamente. A tela panorâmica,

cobrindo uma das paredes, iluminou-se e exibiu o quadro

vermelho-escuro da planície de capim iluminada pela luz da

noite, que se estendia para todos os lados em torno do jato

espacial.

Perry Rhodan encontrava-se a cerca de cinquenta

metros da comporta principal. Rodrigo viu quando retirou

um pequeno aparelho do bolso e passou a manipular o

mesmo.

A tela tremeluziu ligeiramente. Rhodan começou a

caminhar em direção à comporta.

* * *

Belal só viu o desconhecido quando este se encontrava a

poucos metros do veículo. Achara preferível não girar a

objetiva, para não ser descoberto.

— Atenção! — balbuciou. — Está na hora.

Os dois soldados sabiam o que fazer. Um deles abaixou-

se sob a portinhola, fazendo com que ela descansasse sobre

seus ombros. O outro segurou o lança-foguetes, pronto para

empurrá-lo para a borda da saída.

Belal não sabia se os campos defensivos de que Malanal

lhe falara já haviam sido desativados. Aguardou até que o

desconhecido chamado de Perry chegasse ao veículo.

Tremendo de tensão viu uma escotilha abrir-se na parede do

veículo. Num lugar em que antes só havia o metal liso e

sem emendas, uma porta abriu-se silenciosamente. Desta

saiu uma faixa luminosa que tocou o solo junto aos pés de

Perry.

Este pisou na faixa e deixou que a mesma o levasse em

direção à abertura.

— Já! — gritou Belal. — Fogo!

A portinhola rangeu ao abrir-se. Com um gemido, o

soldado empurrou o pesado cano para cima e colocou-o na

borda da saída.

O outro se deixou cair e ligou a ignição. Chiando e

soltando chispas, o primeiro projétil saiu do cano, soltando

uma nuvem de fumaça, e dirigindo-se para o veículo

espacial.

* * *

No momento em que ia entrar na comporta, Perry sentiu

pensamentos estranhos. Virou-se e imediatamente viu que a

Page 133: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

133

uns cem metros de distância alguma coisa comprida e

arrendondada saía de um buraco no chão.

Não hesitou. No mesmo instante em que o primeiro

disparo de Belal uivava ao sair do cano do lança-foguetes,

deixou-se cair para o lado da fita transportadora.

* * *

Rodrigo sentia-se tolhido; não sabia o que fazer. Laury

soltou um grito de pavor, mas seu grito morreu em meio ao

estrondo que fez balançar a nave, apagando a tela

panorâmica.

Laury caminhou em direção ao quadro de comando

central.

— Ligue os campos defensivos! — gritou para o conde.

Acontece que Rodrigo não sabia o que vinha a ser um

campo defensivo, muito menos seria capaz de ligá-lo ou

desligá-lo.

Um fogo branco correu sobre a tela apagada. Outra

explosão fez tremer a nave. Laury foi sacudida e caiu.

Avançou engatinhando.

Antes que Laury pudesse ligar o campo defensivo, o

jato espacial recebeu um terceiro impacto.

A tela não voltou a iluminar-se. Mostrava um reflexo

débil toda vez que um dos projéteis traiçoeiros vinha em

direção à nave e explodia de encontro ao campo defensivo

sem produzir qualquer dano. A tela continuava apagada.

A nave havia sido danificada.

De repente, Rodrigo voltou a controlar-se.

— Rhodan está em perigo! — gritou. — Preciso sair.

Laury não teve tempo para detê-lo.

— Ele saberá cuidar de si — objetou. Com alguns

passos apressados, Rodrigo colocou-se junto à comporta,

acionou o mecanismo de abertura e passou pela escotilha

antes que a mesma se abrisse numa extensão de cinquenta

centímetros.

Na ânsia em que se encontrava não percebeu que estava

sem arma; nem sequer trouxera a espada. Apenas pretendia

ajudar, conforme era de seu feitio. Mal teve paciência para

esperar até que a escotilha interna da comporta voltasse a

fechar-se.

A escotilha externa abriu-se automaticamente. Rodrigo

precipitou-se, desceu pela fita transportadora e saiu

correndo pela planície.

— Rhodan! — gritou. — Rhodan, onde está o senhor?

Os campos defensivos não impediam a passagem de

uma pessoa que viesse de dentro. Rodrigo os ultrapassou.

Abandonou o escudo protetor e aos gritos foi pelo campo

afora.

* * *

— Aí vem alguém! — gritou Belal. Estava deitado na

borda da saída. O lança-foguetes deixara de disparar desde

o momento em que os projéteis explodiam contra uma

parede invisível, longe do veículo inimigo.

Belal sempre andava com a pistola. Fez pontaria e

esperou até que o desconhecido que saíra do veículo,

gritando e olhando em torno, tivesse chegado mais

próximo.

Apertou o gatilho.

Rodrigo apenas ouviu o tiro. Alguma coisa bateu em seu

peito com uma força terrível.

Tombou e morreu antes que seu corpo tocasse o chão.

* * *

O primeiro impacto atirou Rhodan para longe. O campo

defensivo de seu traje protegia-o contra os efeitos diretos do

disparo, e o gerador antigravitacional fez com que não

caísse ao solo, mas descesse suavemente.

Porém a pressão causada pela explosão atirou-o a cerca

de duzentos metros do jato espacial. Levou algum tempo

para sacar o pequeno aparelho com o qual há pouco

desligara o campo defensivo da nave espacial. Alguns

segundos preciosos passaram-se. Felizmente Laury

conseguiu ativar os campos.

No momento em que transmitiu o sinal codificado,

Rhodan viu um dos foguetes explodir bem longe do jato

espacial. Com um suspiro de alívio desceu ao solo e, para

não chamar a atenção, retornou a pé o trecho pelo qual a

explosão o arremessara.

Viu Rodrigo sair da nave e ouviu-o chamar. Respondeu,

mas Rodrigo não o escutou. Viu que um homem saiu do

buraco aberto no chão e apontou a pistola para Rodrigo.

Rhodan puxou sua arma e, sem fazer pontaria, disparou

contra o atirador atocaiado.

Mas o feixe energético superaquecido passou por cima

do alvo, enquanto Rodrigo, atingido pelo tiro de pistola,

tombava.

* * *

— Vamos embora! — gritou Belal apavorado. — Ali

vem aquele desconhecido.

Ouvira o silvo do tiro que passara poucos metros acima

de sua cabeça e descobrira a figura de Perry. Os dois

soldados fizeram menção de puxar o cano comprido para

dentro da galeria e fechar a portinhola, mas Belal mandou

que debandassem.

— Não temos tempo a perder — fungou. — Vamos

embora!

Correram apressadamente pela galeria; Havan ia na

frente. Muito nervoso Belal não percebeu que Havan, que

nos últimos dias apresentara tamanha letargia, subitamente

dava mostras de uma agilidade surpreendente.

Depois de um quilômetro a galeria descreveu uma curva

fechada. Belal parou atrás da curva e mandou que Havan e

os dois soldados continuassem a correr. Após afastarem-se

o bastante para não o verem mais, Belal pegou uma

pequena argola que se encontrava meio escondida no teto

da galeria. Puxou-a, e uma fina corrente metálica saiu do

teto. Quando soltou, a corrente e a argola voltaram à

posição primitiva.

Belal aguardou pacientemente. Dali a alguns segundos

ouviu um ribombar que atravessava o solo. Além da curva,

a galeria desmoronou. Nuvens de pó levantaram-se e

envolveram Belal.

Page 134: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

134

Este voltou-se e correu atrás de Havan e dos dois

soldados. Não seria nada fácil para os desconhecidos

removerem o entulho derrubado pela explosão e encontrar a

pista que os levaria ao laboratório secreto.

Apesar disso, assim que chegou acompanhado por

Havan e pelos dois soldados à entrada propriamente dita do

laboratório, Belal postou ali vinte homens e ordenou-lhes

que ficassem com os olhos bem abertos.

Depois de voltar ao alojamento, Belal recebeu o relato

de seu elemento de ligação, ao qual cabia mantê-lo

informado sobre os acontecimentos que se desenrolavam no

abrigo.

A situação era favorável. O elemento de ligação

informou que havia uma única pessoa estranha no abrigo.

Belal não acreditava que essa pessoa poderia representar

um perigo para ele.

Mandou que seus homens se preparassem para sair.

Havan ouviu falar nisso e procurou Belal.

— O que pretende fazer? — indagou.

— Danificamos o veículo deles — disse Belal. — E

agora vamos pôr as mãos nos tripulantes.

— Pelo espírito universal — gemeu Havan. — O senhor

acha que isso será tão simples? Esses desconhecidos têm

armas que...

Belal interrompeu-o com um gesto.

— Pare com esse pessimismo. Não viu o desconhecido

que matei diante da nave? Não parecia completamente

louco? Acho que durante todo este tempo tivemos mais

respeito por essa gente do que merecia. Está certo, eles

dispõem de armas superiores às nossas. Mas a tripulação é

reduzida, e se for atingida num lugar decisivo, perde a

cabeça. Não, Havan, nossas chances são muito boas. Daqui

a dois dias, voltaremos a controlar a situação.

Havan retirou-se sem dizer mais uma única palavra.

Ainda fingia acreditar que os planos não tinham a menor

possibilidade de sucesso. Mas, no seu íntimo, acreditava

que Belal estava com a razão.

Porém, se assim fosse, estava na hora de eliminar Belal.

Em hipótese alguma devia esperar até que o ditador

conseguisse subjugar os desconhecidos. O triunfo que

colheria e as armas que cairiam em suas mãos o colocariam

numa posição tal que não mais poderia ser posto de lado.

Havan fez seus preparativos.

* * *

Os danos que os três foguetes causaram ao jato espacial

foram mais graves do que Rhodan supusera. As explosões

avariaram os sistemas de propulsão a tal ponto que não

poderiam ser utilizados sem uma série de reparos de monta.

Parte do suprimento de energia fora eliminado. O jato

espacial não estava em condições de gerar campos

gravitacionais ou de prover seu interior de uma iluminação

suficiente. E os sistemas óticos também haviam sido

destruídos.

Mas, o que pareceu mais grave a Rhodan foi que os

geradores do campo defensivo, que voltaram a funcionar

satisfatoriamente logo após os impactos, com o tempo se

tornaram cada vez mais fracos e foram falhando um após o

outro. Um estilhaço de bomba havia perfurado o

revestimento dos geradores e causado avarias consideráveis

em seu interior.

Com isso a nave espacial estava quase indefesa. Com

exceção do grande radiador térmico, única arma que

permanecera intacta, não tinha nenhum meio de defender-se

de um ataque.

Laury Marten aceitou a morte de Rodrigo com toda

resignação. Rhodan sentia-se satisfeito com a atitude da

mutante porque muito antes já reconhecera que sua súbita

paixão pelo conde asteca-espanhol não passara de uma

loucura de menina. Se não fosse assim, não teria como

consolar Laury pela perda na situação em que se

encontravam.

Rhodan tinha certeza de que o inimigo não se limitaria

ao ataque tão habilmente lançado contra a nave. Juntamente

com Laury levou o rato-castor ferido ao abrigo de Fenomat,

pois acreditava que lá as condições de segurança seriam

melhores. Laury permaneceu em companhia de Gucky, para

continuar a cuidar dele.

O próximo passo de Rhodan consistiu em examinar a

saída da galeria pela qual Belal, Havan e os dois soldados

se haviam aproximado do jato espacial. Não perdeu tempo

com a portinhola, que possuía um fecho bastante

complicado; removeu o obstáculo com o desintegrador.

Verificou que do outro lado da portinhola a galeria

estava obstruída numa extensão de pelo menos cem metros.

Para o desintegrador esses metros de entulho não

representavam nada. Mas Rhodan tinha certeza de que

Belal postara seus homens do outro lado dos escombros.

Por isso preferiu voltar para junto de Marshall que,

depois de sua descoberta na usina energética do abrigo de

Sallon, não abandonara seu posto.

O jato espacial ficou vazio e sem vigilância. Mas

Rhodan gastara o tempo necessário em expedir uma

mensagem de hiper-rádio à Terra, para solicitar o envio de

uma nave espacial. A mensagem, fortemente condensada,

ficou limitada a uma duração de dois milionésimos de

segundo. A probabilidade de que alguma pessoa a

decodificasse indevidamente era praticamente igual a zero.

Em sua mensagem, Rhodan indicou a posição galáctica de

Isan e pediu que uma nave viesse carregada de mantimentos

até o limite de sua capacidade.

* * *

De pé diante da retorta de destilação, Feriar

contemplava o líquido marrom-esverdeado que borbulhava

ininterruptamente sobre uma chama de gás. Vapores

escuros eram expelidos para a serpentina de condensação.

5

Page 135: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

135

Do outro lado do aparelho, um líquido límpido e inodoro

caía numa vasilha.

Ivsera estava muito ocupada. Feriar interessava-se pela

química, especialmente por uma química tão nutritiva como

a que estava sendo praticada ali, e bem que gostaria de

formular algumas perguntas.

Acontece que nenhum dos peritos, que eram Irvin e

Ivsera, tinha tempo para ele. Thér talvez tivesse, embora

continuasse a martirizar-se, classificando as peças de roupa

e empilhando-as aqui e ali. Porém Thér entendia tão pouco

de química quanto o próprio capitão.

Enquanto Feriar ainda contemplava o líquido

borbulhante, a porta do laboratório abriu-se e alguém

gritou:

— Aqui está uma pessoa que quer dialogar com um

estranho chamado Perry. Caso não seja possível localizá-lo,

o homem quer falar com Feriar ou Ivsera.

Ivsera respondeu sem interromper o trabalho.

— Mande-o falar com Feriar. Feriar, o senhor quer fazer

isso por mim?

Feriar estava curioso. Foi até a porta e viu do lado de

fora a pessoa que o chamara. Tratava-se de um homem

robusto de rosto zangado. Envergava as poucas vestes que

eram usadas por todos os homens de Fenomat e

ultimamente também de Sallon.

Não trazia nenhuma arma. Feriar nunca o havia visto.

— Sabe onde está o estranho? — perguntou o homem.

O capitão sacudiu a cabeça.

— Não; mas posso descobrir.

O homem robusto tirou e entregou a Feriar uma folha de

papel de dentro do único bolso de sua vestimenta, que

parecia uma bermuda.

— Pois procure — disse em tom áspero. — Leia isto e

conclua por si mesmo se o assunto é importante.

Antes que Feriar pudesse recuperar-se do espanto, o

homem robusto deu-lhe as costas e foi-se afastando pelo

corredor. Feriar desdobrou o papel e leu:

Hoje de noite, às 29 horas, Belal tentará apoderar-se do

veículo dos estranhos juntamente com sua tripulação.

Estas palavras haviam sido gravadas por uma máquina

de escrever cartas. O papel não trazia assinatura.

Feriar leu o texto duas vezes. Depois procurou descobrir

o mensageiro que lhe trouxera o bilhete.

— Onde está? — perguntou perplexo.

— Desceu por ali — respondeu o homem.

— Vá atrás dele e traga-o de volta — ordenou Feriar.

O homem saiu correndo.

Feriar voltou ao laboratório e mostrou o bilhete a Ivsera

que leu e imediatamente interrompeu a destilação já

iniciada.

— Precisamos localizar Perry — disse em tom sério. —

Isto é muito importante. Pelo que sei, sua nave sofreu

avarias graves. Quase não tem armas para defender-se.

— Está certo — admitiu Feriar. — Mas onde

poderemos encontrá-lo?

— Provavelmente na nave.

— E se não estiver lá? Nesse caso um de nós ficará por

lá e esperará até que Belal apareça e o prenda?

Ivsera pôs-se a refletir.

— Em Sallon há um amigo dele chamado Marshall. Se

conseguirmos avisá-lo, ele se comunicará com Perry —

disse a química.

Feriar concordou com um gesto.

— Muito bem. Continue no seu trabalho. Procurarei

encontrar Marshall.

Naquele instante, entrou o homem que Feriar mandara

atrás do mensageiro.

— O homem desapareceu — falou arfando.

O capitão tranqüilizou-o com um gesto.

— Está bem. Devia ter-me lembrado disso antes.

Thér acompanhara a palestra. Interrompeu seu trabalho

e aproximou-se de Feriar.

— Não sei, não — disse em tom contrariado. — Tenho

a impressão de que qualquer pessoa saberá classificar e

empilhar roupas melhor que eu. Não quer deixar que eu vá

a Sallon?

Feriar franziu a testa.

— O senhor nem sequer tem uma arma. O que

acontecerá se alguma coisa não der certo em Sallon?

— É verdade — disse Thér com um sorriso irônico. —

Poderia dar-me sua arma.

Ivsera sorriu.

— Vão os dois — aconselhou. — Provavelmente terão

de procurar Marshall, e quatro olhos sempre enxergam mais

que dois.

Thér fez uma mesura irônica.

— Desde que a conheço sei que a senhora é uma

menina inteligente — disse em tom solene.

* * *

— Daqui em diante continua em linha reta! —

exclamou Marshall.

Rhodan descansou a pesada arma e olhou para dentro do

canal com os cabos que o último tiro do desintegrador

pusera à mostra.

— Qual é a direção? — perguntou. Marshall pôs-se a

refletir.

— Já conheço a planta da situação do abrigo de cor.

Diria que, se o tubo com os cabos não descreve outra curva,

o esconderijo de Belal fica dois quilômetros ao nordeste da

galeria principal, perto do rio Ovial.

— Por que justamente lá? — perguntou Rhodan

perplexo.

Não teve necessidade de aguardar a resposta, pois

percebeu nitidamente os pensamentos de Marshall:

— Porque Belal precisa de abastecimento de água. E

este será tanto mais fácil quanto mais perto estiver do rio.

Rhodan mediu o tubo do elevador. Era retangular e

achatado, com cerca de cinquenta centímetros de largura

por dez de altura. Teria que ser ampliado antes de dar

passagem ao esconderijo de Belal.

— Será que não seria melhor aguardarmos a chegada de

Page 136: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

136

nossa nave de guerra? — perguntou Rhodan. — Se

calcularmos todos os imprevistos, a demora será de um dia

e meio, no máximo. Gostaria de dispor de mais algumas

pessoas antes de atravessar dois quilômetros de terra.

Marshall fez um gesto afirmativo.

— Acontece que não sabemos o que Belal poderá

tramar nesse meio tempo, não acha?

Rhodan sorriu.

— Exatamente; e não devemos esquecer-nos de Havan.

* * *

— Vinte e oito horas — resmungou Thér. — Já é tempo

de encontrarmos Marshall.

Feriar olhou em torno, muito nervoso. Já haviam

recebido quinze informações diferentes sobre o paradeiro

de Marshall, seguiram todas elas e não o encontraram.

Parecia ter desaparecido. Nas últimas duas horas,

ninguém vira nem a ele, nem a Perry.

Já haviam subido do primeiro pavimento do abrigo até o

35o. Lamentavam que Perry não julgara necessário

entregar-lhes um dos rádios que usava para comunicar-se

com seus homens.

Estavam caminhando por uma estreita galeria

secundária, pouco iluminada, quando Thér subitamente

pegou o braço de Feriar, que caminhava à frente, e o puxou

até a parede.

— O quê...? — reclamou Feriar.

— Quieto! — cochichou Thér. — Olhe ali na frente.

Thér enxergava melhor que Feriar. Vira a fenda estreita

que de repente se abriu na parede do lado direito.

Juntamente com Feriar viu esta ampliar-se numa abertura

que tinha a altura de um homem em pé; ainda notou que

dois homens bem armados saíam cautelosamente da

abertura.

Thér e Feriar mantinham-se junto à parede, na sombra

de duas lâmpadas fracas.

Encontravam-se pelo menos a cinquenta metros da

misteriosa abertura. Thér tinha certeza de que os dois

homens não poderiam vê-los.

Um dos soldados virou-se e fez um sinal para dentro da

abertura. Foi para o lado e deixou que mais cinquenta

homens armados passassem por ele e entrassem no

corredor.

O último era um homem baixo, gordo e calvo: Belal.

Thér sentiu que Feriar tremia atrás dele.

— Calma! — cochichou. — Por aqui não podemos

fazer nada contra ele.

Caminhando em meio aos seus soldados, o ditador

marchou na direção oposta. Thér e Feriar acompanharam-

no com os olhos, até que o grupo desapareceu numa curva.

Poucos segundos depois, ouviram-se gritos violentos,

um matraquear metálico e o som de tiros.

— Belal está abrindo caminho! — fungou Thér. —

Quem dera que soubéssemos onde está o estranho.

* * *

Marshall havia alargado o tubo de cabos numa extensão

de cem metros o suficiente para que um homem alto

pudesse caminhar em seu interior. Quando Rhodan o

chamou, estava fazendo uma pausa para descansar os

braços que seguravam o desintegrador.

O chefe dos mutantes correu o caminho de volta.

— Preste atenção! — pediu Rhodan no momento em

que Marshall descia do tubo de cabos para o recinto amplo

que abrigava a usina energética. — Não está percebendo

nada?

Marshall concentrou-se. Sentiu que nas proximidades

alguém pensava nele ansiosa e intensamente.

— Alguém está à minha procura — disse em tom de

espanto.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Acho que é o homem chamado de Thér. Parece que

tem uma informação importante para mim. Chame-o.

Marshall abriu a porta e saiu para o corredor. Ouviu

passos deslocando-se por uma galeria secundária que

começava a poucos metros do lugar em que se encontrava.

Chamou-o pelo nome.

Dali a um instante, Thér apareceu do corredor, fungando

e suando. Reconheceu Marshall e pôs as mãos para o alto.

— Graças a Deus! — exclamou. — Finalmente

conseguimos encontrá-lo.

Mas logo estacou.

— O senhor não acaba de me chamar pelo nome?

* * *

Marshall fez um gesto.

— Deixemos isso para depois. O que houve?

Feriar passou ao lado de Thér. Segurava na mão o

bilhete que o mensageiro lhe entregara.

— Achamos que talvez o senhor poderia ajudar-nos a

encontrar Perry. É muito importante. Leia!

Marshall leu as palavras escritas no bilhete e ergueu as

sobrancelhas.

— Venham comigo — pediu. — Perry está perto daqui.

Rhodan leu a informação com toda atenção. Depois

perguntou a Feriar:

— Tem certeza de que não é uma cilada que estão

armando para nós?

Feriar deu de ombros.

— Não faço a menor ideia. Apenas quis entregar-lhe o

bilhete. A decisão terá que ser sua.

Rhodan franziu o cenho.

— Quem mandou este bilhete? — perguntou.

— Não sei.

— Pois eu sei: foi Havan.

Feriar arregalou os olhos.

— Havan? — perguntou em tom de espanto. — Mas

Havan e Belal estão trabalhando de mãos dadas.

Rhodan sorriu.

— Será mesmo? Mas quem poderia conhecer as

intenções de Belal, se não fosse Havan?

Page 137: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

137

Feriar não respondeu. Thér relatou a observação que

acabara de fazer na galeria lateral.

— O grupo de Belal levará cerca de quarenta e cinco

minutos a pé para percorrer a distância da saída do abrigo

até o veículo — disse. — Com o armamento de que

dispõem não terão o menor trabalho em abrir caminho. Eles

estarão lá o mais tardar às vinte e nove horas.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Muito bem. Vamos estragar a brincadeira deles. Bem

que precisaremos de auxílio quando tivermos colocado

Belal e seu grupo fora de ação.

* * *

A planície apresentava o quadro vermelho-escuro de

sempre, quando Marshall e Rhodan se deslocavam em seus

trajes transportadores a baixa altura, mas a grande

velocidade, em direção ao jato espacial.

Ligaram os campos de deflexão, para que Belal não

tivesse a menor chance de descobri-los antes que eles

mesmos julgassem convenientes.

Belal e seu grupo tinham uma vantagem considerável.

Marshall e Rhodan só os alcançaram cem metros antes do

jato espacial, quando já se agrupavam para o ataque.

Rhodan viu que carregavam fuzis e morteiros leves. Os

morteiros eram operados por dois homens. Estes

empilhavam a munição no capim e colocavam os morteiros

de forma a terem a linha de tiro livre.

Marshall e Rhodan precipitaram-se pela comporta

aberta e entraram na nave. O mutante ficou deitado na

comporta para manter Perry a par do que se passava lá fora,

já que a aparelhagem ótica não estava funcionando.

Enquanto isso Rhodan preparou o pesado radiador térmico

e ficou aguardando as indicações de Marshall.

Essas indicações não seriam muito precisas. Ninguém

conseguiria dirigir uma arma desse tipo a olho nu de tal

forma que acertasse exatamente no alvo. Mas no caso do

radiador de impulsos não era necessário que a pontaria

fosse muito exata. O raio térmico poderia abrir-se para

cobrir uma área maior. Além disso, o inimigo não possuía

armas equivalentes. Mesmo que não fosse posto fora de

ação com o primeiro tiro, o risco não seria muito grande.

* * *

Feriar e Thér viram de que maneira Belal e seu grupo

abriram caminho pelo abrigo.

Quando Rhodan e Marshall conquistaram o abrigo de

Sallon, Belal soubera esconder em tempo as armas mais

potentes juntamente com a guarda pessoal no setor secreto

em que ficava o laboratório. No abrigo propriamente dito,

só deixaram alguns fuzis e pistolas antiquadas.

Quando os ocupantes do abrigo de Sallon viram Belal

surgir com metade de sua guarda pessoal, alguns homens

mais arrojados procuraram detê-lo. Havia um prêmio pela

prisão de Belal, e não era só isto; Rhodan soubera

esclarecer os homens sobre o perigo que um ditador como

Belal representaria para a nova civilização de Isan.

Mas Belal abriu caminho a tiros sem mostrar a menor

contemplação. Os poucos fuzis existentes em Sallon não

estavam em condições de enfrentar as armas automáticas

trazidas pelos seus homens. Houve alguns mortos e um

grande número de feridos. Depois, ninguém se atreveu a

cruzar o caminho de Belal, quanto mais detê-lo.

Quando Feriar e Thér procuraram subir no elevador

principal para seguir Rhodan e Marshall, que haviam ido na

frente, houve um contratempo: todas as cabinas achavam-se

ocupadas e em viagem. Demorou quinze minutos até que

conseguissem entrar numa que os levasse para cima.

Na comporta de superfície, estavam os dois guardas que

Rhodan mandara colocar ali porque receava que Belal

procurasse apoderar-se do abrigo de Sallon.

Belal e os homens de seu grupo não deram a menor

atenção aos guardas. Passaram tranquilamente. Os dois nem

pensaram em impedi-los. Caso interferissem, o resultado

não teria sido nada agradável para eles.

Feriar e Thér saíram da construção que abrigava a

comporta e subiram a colina em linha oblíqua, tomando a

direção em que ficava a nave espacial. Thér aguçou o

ouvido, mas não ouvia o menor sinal de luta.

— Gostaria de saber... — disse em tom irritado, mas

não conseguiu completar a frase, porque a surpresa o

deixou sem fôlego.

Haviam chegado ao topo da colina e dispunham-se a

ultrapassá-lo para descer do outro lado, passando ao lado da

antiga cidade de Fenomat, quando, sem fazer o menor

ruído, alguns homens se ergueram em meio ao capim.

No primeiro instante Thér pensou que pertencessem ao

grupo de Belal. Mas depois ouviu uma risada esquisita e na

luz vermelho-escura da noite viu um homem pequeno e

magro caminhar em sua direção.

— Vejam só! Quem está aqui! — admirou-se o

magricela em tom irônico, aproximando-se. — Ah, é nosso

querido Thér, o amigo do peito do antigo e célebre membro

do Conselho Killarog...

— Tome cuidado! — retrucou Thér furioso. — Alguma

coisa poderá acontecer com você.

O magricela recuou um passo e gritou:

— Amarrem os dois!

Os homens precipitaram-se sobre Thér e Feriar. Feriar

logo percebeu que não adiantava resistir. Mas Thér

debateu-se furiosamente. Teria de agir contra sua natureza

se quisesse deixar que o prendessem sem oferecer qualquer

resistência. Afastou alguns homens a socos e, por um

instante, conseguiu abrir espaço em torno de si. Mas a

superioridade do inimigo era muito grande. Thér sentiu as

cordas cingirem seus braços e pernas.

— Então? — perguntou o magricela. — Ainda está tão

arrogante?

Thér lançou-lhe um olhar furioso.

— Você não perde por esperar, Havan. Um dia ainda

ajustarei contas com você.

Ao que parecia a ameaça não o impressionava.

Dirigindo-se para os homens de seu grupo, disse:

Page 138: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

138

— Vamos levá-los. Façam com que não andem muito

devagar. Temos de estar lá por volta de meia-noite.

* * *

— Gire ligeiramente para a direita, senhor! — gritou

Marshall. — Se abrir bem o raio, poderá atingir dois

morteiros ao mesmo tempo.

Rhodan não se apressou. Sabia o que poderia acontecer

se atirasse antes da hora. Belal reconheceria a situação e se

retiraria apressadamente. E isso não correspondia aos

planos de Rhodan. Era necessário reduzir Belal à

inatividade.

— Avise quando estiverem a vinte metros — disse,

dirigindo-se a Marshall.

* * *

Belal viu o veículo em forma de lentilha brilhar à luz

vermelha. Ao pensar no que pretendia fazer, chegou à

conclusão de que não poderia haver nenhum imprevisto ou

surpresa desagradável. No seu avanço já haviam deixado

para trás o limite diante do qual o estranho de nome Perry

parará a fim de ligar o campo defensivo do veículo.

Portanto, a parede invisível tinha deixado de existir, pois do

contrário não poderiam ter avançado até o ponto em que se

encontravam.

Bastaria permanecer no lugar em que estavam apontar

com os morteiros e arrebentar o veículo.

Fariam exatamente isso, se Belal não tivesse a intenção

de prender os estranhos vivos e apoderar-se dos

instrumentos existentes no interior do veículo.

“Poderia haver alguma dificuldade em rastejar até a

nave e dirigir-se aos tripulantes com as armas em punho,

pedindo-lhes que se rendessem?”, pensou o ditador, depois

monologou:

— Não, não poderia haver nenhuma dificuldade.

Assim mesmo, porém, Belal não se sentia muito bem.

De repente teve suas dúvidas sobre se poderia avaliar os

estranhos por aquele idiota nervoso e desmiolado que na

noite anterior matara sem o menor esforço.

O ditador espantou suas indecisões com uma praga

pesada.

— Adiante! — gritou para seus homens. — Vamos

avançar o último trecho.

Quando deu essa ordem, não se encontravam a mais de

trinta metros da nave. Passaram a rastejar mais depressa e

com muito menos cautela.

Belal olhou para trás e viu bem perto de si os canos

grossos de dois morteiros que avançavam acima do capim.

Sentiu-se satisfeito. Ao menor sinal de resistência, os

morteiros entrariam em ação.

Faltavam vinte metros.

A abertura escura da comporta desenhava-se em meio à

parede da nave. Não compreendia por que a deixaram

aberta, mas não viu nisso um sinal de perigo.

Mais quinze metros!

Ergueu ligeiramente o corpo e contemplou, com os

olhos arregalados, o veículo estranho. Subitamente um raio

branco e ofuscante de vinte centímetros de diâmetro saiu de

uma abertura que ainda não havia visto.

Belal não teve tempo de fechar os olhos. A terrível

claridade cegou-o. Círculos coloridos dançavam diante de

seus olhos. Não enxergava nada.

Apavorado, deixou-se cair para frente e ficou deitado no

capim. Mas no mesmo instante, ouviu-se um ribombar e o

chão foi sacudido. A pressão levantou Belal e atirou-o

alguns metros para o lado. Os estilhaços assobiavam pelo ar

e batiam no solo em torno dele.

Belal ouviu gritos apavorados assim que o ruído cessou.

Alguém disse que dois morteiros haviam explodido

juntamente com a munição. A seguir, houve outra

detonação, pois o raio energético branco e escaldante

atingiu mais um morteiro e a respectiva munição.

Belal sentiu-se tomado pelo desespero. Levantou-se e

continuou a correr na mesma direção de onde havia

rastejado. Segurava uma pistola automática e atirava

loucamente em torno de si, até esvaziar o pente.

Ouviu gritos. Não sabia se vinham dos homens de seu

grupo ou dos estranhos. Não via nada.

Corria, cambaleava e tropeçava até que sua cabeça

bateu uma coisa dura e fria. O impacto atirou-o ao chão.

Por algum tempo, ficou quase inconsciente.

Quando tentou erguer-se, teve a impressão de que uma

bomba explodia no seu cérebro. Viu um raio ofuscante,

sentiu um estrondo e, logo após, Belal estava fora de

combate.

* * *

A luta havia chegado ao fim. Belal ficara inconsciente

com um tiro certeiro da arma de choque disparado por

Marshall. Rhodan fez ir para os ares o último dos quatro

morteiros juntamente com a munição.

Depois que os morteiros deixaram de representar um

perigo, Rhodan abandonou seu posto e saiu pela comporta.

Disse que queria falar com uma pessoa autorizada a

negociar com ele. Uma vez que, naquele momento, Belal

não estava em condições de pôr em prática seu gênio

obstinado, o desejo de Perry encontrou ressonância

imediata.

Rhodan foi bastante lacônico. Pediu aos homens do

grupo de Belal que escolhessem entre a capitulação e o

aniquilamento. Resolveram aceitar a capitulação; não

levaram mais de cinco minutos para tomar essa decisão.

Belal, que provavelmente não teria concordado,

continuava inconsciente.

Os soldados largaram as armas e, vigiados por Rhodan e

Marshall, que empunhavam as suas, sentaram bem

próximos uns dos outros no capim ressequido.

Quando a porta do laboratório se abriu, Ivsera mal

levantou a cabeça. Só o grito de surpresa de Irvin lhe

6

Page 139: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

139

despertou a atenção.

Ergueu-se da banqueta e fitou os dois homens que

apareceram na porta.

Um deles ela nunca havia visto. Parecia um idiota. Mas

a pistola automática destravada que apoiava no braço

proibia a qualquer pessoa que risse de sua estupidez.

Já o outro homem Ivsera conhecia até bem demais.

Fitava-a, seguia todos os seus movimentos com os olhos

atentos e exibia o sorriso presunçoso e debochado que a

química tanto odiava nele.

Era Havan!

Havan viu que Ivsera se assustou.

— Não há nenhum motivo para ter medo — gritou em

voz alta. — A senhora sabe perfeitamente o que pode fazer

pela sua segurança.

Ela sabia. Mas, naquele momento, ainda estava certa de

que não precisaria pedir nada ao traidor. Perry estava por

perto. Thér também. Até Feriar poderia vir em seu auxílio.

— Dê o fora o mais rápido que puder! — gritou furiosa

para Havan. — Do contrário será executado.

O rosto de Havan contorceu-se numa careta.

— Será mesmo? — perguntou e entrou no laboratório.

— Esperei para fazer esta visita até ter certeza de que todo

o abrigo está em meu poder. Olhe!

Fez um sinal para o soldado parado à porta. O soldado

transmitiu o sinal a outra pessoa, e dali a alguns segundos

Thér e Feriar foram empurrados para dentro do laboratório,

amarrados.

Ivsera empalideceu. Naquele momento, não pensava em

Perry: era um estranho, e ninguém sabia o que pretendia

fazer. Mas Irvin era um homem forte e inteligente. Sob sua

proteção, sentia-se segura. Por isso pedira-lhe que

permanecesse no laboratório, separando a roupa.

Havan prendera Thér e Feriar.

“Segundo afirma”, pensou, “todo o abrigo encontra-se

em seu poder. Será que ainda resta alguma esperança?”

Não revelou o que se passava em sua mente. Continuou

parada tranquila enquanto Havan caminhava em sua

direção.

— Vá para o inferno! — gritou furiosa.

O traidor parou e fez um sinal para o soldado.

— Amarre-a! — ordenou laconicamente.

* * *

Laury se sentiria muito mais à vontade se conhecesse

algumas das pessoas que agora a rodeavam. Todos

pareciam preocupados com ela e com o rato-castor ferido.

Mas, a cada instante, via um rosto novo e estranho, e isso a

deixava irritada.

Não ficou muito surpresa quando um homem armado

entrou no recinto e a examinou atentamente.

— O que houve? — perguntou.

O homem armado continuou a olhá-la.

— Pare de me olhar desse jeito! — gritou. — O que está

procurando por aqui?

Laury não passara pelo ligeiro treinamento especial que

permitia a Rhodan falar a língua desse mundo sem o menor

sotaque. Laury expressava-se em um arcônida polido que se

usava em quase toda a Galáxia. Mas o homem

compreendeu.

Estou procurando a senhora — respondeu o homem.

— Por quê?

— Para prendê-la.

Laury levantou-se de um salto. No último instante,

lembrou-se da arma que trazia consigo. Mas antes que

pudesse mover a mão, o homem apontou-lhe a pistola e

disse:

— Fique bem quieta, senão atiro!

Laury obedeceu. Lançou um olhar desesperado para o

rato-castor, que jazia imóvel sobre uma espécie de leito, no

fundo do recinto. Gucky dormia o sono de um ser

completamente esgotado e não estava percebendo nada do

que se passava ao redor.

Laury não sabia que se encontrava em poder de Havan.

O traidor era agora o senhor absoluto do abrigo de

Fenomat.

* * *

Rhodan começou a impacientar-se porque Feriar e Thér

não compareceram na hora combinada.

— Tenho uma sensação desagradável — disse em

inglês, dirigindo-se a Marshall.

— Não devemos esquecer esse Havan. Quem sabe o que

não andou tramando?

— Hum — fez Marshall, olhando para o lado. —

Podemos mandar embora essa gente. Sem arma não

representarão perigo para ninguém.

Rhodan levantou-se de um salto.

— Está bem. Avise-os. Tentarei entrar em contato com

Laury.

Marshall logo se desincumbiu de sua tarefa. Encostou o

capacete de seu traje transportador contra o capacete do

prisioneiro que se encontrava mais próximo e disse:

— Deem o fora, gente. Vocês estão livres. Procurem

não aparecer mais em má companhia.

O homem transmitiu a notícia aos companheiros por

meio do rádio de capacete. Hesitaram um instante, pois não

acreditavam na sua boa sorte. Mas, depois de algum tempo,

saíram correndo e desapareceram em meio à noite

vermelha.

Marshall não se preocupou com eles. Procurariam

chegar a um dos abrigos sem serem vistos e ali se

misturariam aos demais ocupantes. Uma vez que não

tinham armas, poderiam dar-se por satisfeitos caso ninguém

os reconhecesse como membros da guarda pessoal de Belal.

O que devia causar maior preocupação era o fato de que

Rhodan não conseguia entrar em contato com a mutante

pelo telecomunicador. Laury não respondia.

Rhodan enfiou no bolso o pequeno aparelho de

telecomunicação e procurou atingir Laury por via

telepática. Laury era telepata, tal qual Rhodan, que só

possuía o dom em circunstâncias extremamente favoráveis

e em extensão reduzida; Marshall também possuía essa

Page 140: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

140

faculdade. O chamado de Rhodan chegou-lhe apesar das

camadas de terra e concreto que teve de vencer.

Dali a cinco minutos, Rhodan e Marshall sabiam o que

estava acontecendo no abrigo.

Laury, Gucky e os outros prisioneiros mais importantes

de Havan foram trancados no laboratório químico-

biológico. Não era proibido conversar. Thér e Feriar

contaram o que Havan lhes havia dito no caminho.

Havan convencera Belal a ceder-lhe metade de sua

guarda pessoal, para que pudesse apoderar-se do abrigo de

Fenomat. Belal achara que o plano era útil e viável. Além

disso, tinha certeza de que metade de sua guarda pessoal

seria suficiente para conquistar o estranho veículo.

Belal não sabia que o inimigo havia sido informado

sobre seu plano. O bilhete entregue pelo mensageiro de

Havan preenchera duas finalidades distintas: Belal foi

eliminado, e os estranhos estavam fora do abrigo, o que

permitia a Havan agir livremente.

As comunicações entre as duas cidades subterrâneas

foram interrompidas. Em Fenomat, Havan dominava a

situação, e Laury soubera que o traidor pretendia enviar um

emissário a Rhodan, que negociaria as condições para a

libertação dos prisioneiros mais importantes.

Perry pediu a Laury que fizesse o que estava ao seu

alcance para libertar-se juntamente com os demais

prisioneiros. A mutante não possuía nenhuma arma, mas

em compensação tinha o dom paramecânico da

desintegração. Rhodan recomendou o seguinte:

— Tenho certeza absoluta de que Havan e seus homens

nunca ouviram falar em dons parapsicológicos e coisas

semelhantes. Sua guerra nuclear ocorreu há apenas oito

anos, um tempo insuficiente para a formação de mutantes.

Mas não se esqueça de que mesmo um mutante não é imune

aos efeitos das balas. Procure não irritar Havan ou qualquer

dos seus homens. Arranje-se juntamente com os outros

prisioneiros. No momento, não podemos fazer nada por

eles. Havan os mandaria matar assim que soubesse que

penetramos no abrigo. Só nos resta esperar o auxílio que

deverá vir da Terra.

* * *

Laury ficou conjeturando. Teve uma porção de ideias,

refletiu sobre as mesmas, abandonou-as e procurou outras.

Só aos poucos, um plano começou a surgir em sua mente.

A maior dificuldade consistia no fato de que no próprio

laboratório havia três guardas. Ninguém estava impedido de

falar com os outros prisioneiros, mas os guardas faziam

questão de ouvir o que se conversava.

Laury deitou de lado, para se aproximar de Ivsera. Por

meio de olhares comunicou-lhe que pretendia dizer-lhe

alguma coisa que o guarda não devia ouvir. A química

respondeu com outro olhar. Parecia um tanto surpresa e

desconfiada.

A mutante voltou a deitar de costas, fechou os olhos e

concentrou-se.

Imaginou encontrar-se diante da parede que separava o

laboratório do corredor. Procurou ver com os olhos de sua

mente as saliências e reentrâncias do concreto e do

revestimento cinzento da parede. Imaginou fresta após

fresta, e finalmente ordenou ao cérebro que ativasse o

mecanismo que liberava as energias paramecânicas de seu

apêndice cerebral.

O efeito foi tremendo.

Na parede surgiu um furo da espessura de uma agulha.

A tremenda pressão das massas de terra logo o ampliou,

transformando-o numa fenda. Dali a alguns segundos, a

parede cedeu numa extensão de dez metros. Com um

enorme estrondo, os blocos de concreto caíram no corredor,

seguidos pelo farfalhar da terra úmida e fria.

Imediatamente os três guardas dirigiram-se à porta.

Laury viu a terra marrom entrar no corredor, só parando

alguns metros adiante. A terra obstruía metade da entrada.

Os guardas engatinharam para fora e gritaram por socorro.

Laury voltou a deitar de lado.

— Procure fazer com que alguém a leve até Havan —

cochichou para Ivsera. — Converse com ele, faça-lhe uma

proposta. Quero que sua atenção seja desviada ao menos

por quinze minutos. Faça o possível para que não deixe

entrar ninguém no gabinete enquanto a senhora estiver com

ele. Entendido?

A química fez um gesto afirmativo. Em seu rosto havia

uma expressão matreira. A tarefa, que Laury lhe atribuíra,

foi a mais repugnante possível.

Mas não se opôs. Aquela mulher desconhecida seguia

um objetivo bem definido. Embora Ivsera não tivesse sido

familiarizada com o plano, estava plenamente convencida

de ter de cumprir o que estava sendo pedido.

A salvação dependia disso; e na situação em que se

encontravam a salvação só poderia vir de uma pessoa

desconhecida.

* * *

Os três guardas voltaram depois de algum tempo.

Haviam constatado que as comunicações com o resto do

abrigo não foram interrompidas. A terra que irrompeu no

corredor só o obstruiu até a metade da altura.

Um grupo de prisioneiros estava carregando a terra em

carrinhos e removendo-a. Ninguém sabia informar do

desmoronamento parcial.

Ivsera chamou um dos guardas.

— Diga a Havan que quero fazer-lhe uma oferta! —

exclamou.

O soldado sorriu.

— Qualquer pessoa pode vir com esta conversa — disse

em tom ingênuo.

— Faça o que ela está pedindo — interveio um dos

outros.

O guarda retirou-se. Voltou depois de algum tempo,

soltou as amarras de Ivsera sem dizer uma única palavra e

ajudou-a a levantar-se.

— Venha comigo — ordenou.

A jovem química lançou um olhar para a mulher

Page 141: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

141

desconhecida. Laury deu uma piscadela. Ivsera deixou que

a levassem.

O quartel-general ficava no mesmo corredor, a cinco

portas de distância. Conforme ela supunha, estava cercado

por uma espécie de guarda pessoal. Mas, assim que foi

introduzida no gabinete, Havan mandou todos saírem

juntamente com a guarda que a trouxera.

Sorriu e convidou a jovem a sentar. Ele mesmo

levantou-se e aproximou-se.

— Pelo que vejo andou pensando no assunto — disse.

Ivsera deu de ombros.

— Não sei — respondeu. — O que exige para libertar as

pessoas que foram presas juntamente comigo?

Havan soltou uma gargalhada.

— Exijo a senhora.

Sentiu um calafrio. Controlou-se e perguntou com a

maior calma:

— Quem me garante que o senhor cumprirá o acordo?

Ele excitou-se.

— Se quiser poderemos celebrar o acordo por escrito e

assiná-lo na presença de testemunhas.

“Ah, velhaco!”, pensou Ivsera enojada. “As testemunhas

seriam seus subordinados, e nunca se atreveriam a abrir a

boca caso deixasse de cumprir o acordo.”

Mas fez de conta que estava refletindo sobre a proposta.

Em algum lugar do abrigo ouviu-se um leve ribombo,

mas nem Havan nem Ivsera interessaram-se pelo ruído.

“Quinze minutos”, pensou Ivsera, concentrando-se ao

máximo. “Terei que distraí-lo por quinze minutos.”

Subitamente a porta abriu-se e um guarda armado

entrou correndo. Antes que pudesse abrir a boca para

transmitir seu relato, Havan gritou furiosamente:

— Saia! Quem lhe disse que pode entrar aqui sem fazer-

se anunciar? Fora!

O guarda hesitou, mas quando Havan puxou a arma e

apontou-a para ele, virou-se e saiu correndo.

* * *

Assim que o guarda levou Ivsera, Laury pôs-se a

trabalhar.

Fez desmoronar a parede lateral direita do laboratório.

Os dois guardas que ali permaneciam puseram-se a gritar e

saíram precipitadamente para o corredor.

Na parede do laboratório havia uma abertura que dava

passagem a uma pessoa adulta e permitia a visão da sala

contígua.

Laury ainda fez desmoronar parte da parede oposta.

Depois soltou as amarras que a prendiam, fazendo

simplesmente com que as mesmas se dissolvessem. Os dois

guardas ainda não haviam voltado. Só os prisioneiros viram

Laury levantar-se e atravessar a abertura que dava para a

sala contígua.

Laury sentiu os pensamentos angustiados de Ivsera. Não

podia estar longe. Provavelmente encontrava-se umas três

ou quatro salas adiante. Laury atravessou a abertura da

parede oposta e entrou num recinto escuro, que parecia

estar vazio.

Ouviu gritos vindos de fora. Encostou o ouvido à outra

parede e percebeu que do outro lado tudo estava em

silêncio.

Laury concentrou-se e fez uma terceira abertura, através

da qual penetrou em outro recinto, que também estava

escuro e vazio.

Os pensamentos da química tornaram-se mais nítidos.

Esta acabou acenando com a cabeça:

— Acho que posso concordar — respondeu um tanto

insegura, pois certamente era o que Havan esperava dela.

— Quer redigir o acordo?

Ele ficou radiante. Pegou a mão de Ivsera, e esta se

deixou tocar a contragosto e cheia de repugnância.

— Nunca pensava que a senhora ainda chegaria a essa

conclusão — balbuciou Havan muito feliz. — Agora...

Soltou a mão e correu para a escrivaninha atrás da qual

estivera sentado. Impaciente, abriu uma gaveta e tirou uma

pilha de folhas de papel, atirando-a sobre a escrivaninha.

Pôs a mão no bolso, procurando uma caneta.

Ivsera assustou-se tanto quanto o próprio Havan quando

de repente surgiu uma fenda na parede da direita. A brecha

estendeu-se do chão ao teto e, poucos segundos depois, a

parede desmoronou com um enorme estrondo. Uma nuvem

de poeira levantou-se e pedaços da parede voavam pelo ar.

A jovem levantou-se de um salto e pôs-se a gritar de

medo. Havan deixou-se cauda cadeira e rolou até a parede

do lado oposto. Olhando através da poeira, Ivsera viu que

protegia a cabeça com os braços.

Sobre os destroços da parede surgiu Laury, a mulher

desconhecida.

Ivsera fitou-a perplexa. Viu Laury fazer um sinal, mas

não compreendia o que ela queria.

Laury apontou para Havan, que continuava deitado no

chão, completamente imóvel. Seus gestos tornaram-se cada

vez mais impacientes.

Finalmente Ivsera compreendeu. Com dois ou três

passos rápidos, colocou-se atrás de Havan. Antes que este

percebesse o que estava acontecendo, tirou a pistola de seu

cinto, destravou-a e apontou-a contra ele.

— Levante! — gritou. — Seu jogo está definitivamente

findado.

O resto foi fácil. Em meio à confusão geral Laury não

teve a menor dificuldade em libertar os outros prisioneiros

que se encontravam no laboratório. Thér, o velho

impetuoso subjugou o guarda que tirara a arma de choque

da mutante. Só pelo ataque de Thér percebeu-se que alguma

coisa não estava em ordem com os prisioneiros.

Thér usou a arma de choque, seguindo as instruções de

Laury. Os guardas que acorreram ao local desmaiaram na

porta do laboratório.

Desistiram da tentativa de apoderar-se novamente dos

prisioneiros. A notícia de que o próprio Havan se

encontrava em poder destes quebrou as últimas resistências

entre os revoltosos. Perceberam que estavam perdendo o

controle da situação e procuraram exceder-se em

Page 142: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

142

demonstrações de boa vontade para compensar o prejuízo

que lhes poderia advir do fato de se terem juntado a Havan.

Para vencer a rebelião não houve necessidade de

espalhar a sensacional notícia. Um veículo aéreo gigantesco

e nunca visto estava pousando sobre a área urbana de

Fenomat, para ajudar Laury e os demais ex-prisioneiros a

assumirem o controle total da situação.

* * *

A Terra enviara a Drusus, uma nave que acabara de

entrar em serviço. Era um veículo espacial esférico e seu

diâmetro media mil e quinhentos metros. Nunca antes se

vira em Isan um engenho gigantesco como este.

Seguindo as instruções de Rhodan, o comandante da

Drusus só trouxera a tripulação indispensável e o

armamento essencial. O resto do espaço disponível foi

ocupado com caixas de mantimentos.

A bordo havia vinte mil megatons de alimentos.

Aproximadamente metade dessa quantidade consistia em

preparados alimentícios altamente concentrados. Era fácil

calcular que essas provisões dariam para nutrir os cem mil

habitantes de Isan pelo menos durante um século.

E um século era um tempo suficiente para que mesmo

as radiações perigosas e duradouras do estrôncio-90

baixassem a um nível inofensivo. Dentro de um século, os

habitantes de Isan poderiam iniciar sem o menor risco a

produção de alimentos naturais. Até lá teriam de contentar-

se com o presente recebido da Terra.

A Drusus trouxe outra coisa: más notícias. O

comandante Harrings, que conduzira a enorme nave da

Terra ao centro da Via Láctea, imediatamente após o pouso

solicitou uma entrevista com Rhodan, que logo lhe foi

concedida.

Perry foi informado de que em todos os setores da

Galáxia as patrulhas terranas haviam descoberto uma

atividade extraordinária das naves de Árcon e de outras

procedências. A movimentação foi registrada segundo a

rota e a data e os dados foram introduzidos no grande

cérebro positrônico de Terrânia. O gigantesco aparelho, que

também dispunha dos últimos relatórios que Rhodan

enviara de Tolimon, concluiu com uma alta dose de

probabilidade que o Império Arcônida tivera sua atenção

despertada pelos acontecimentos, e que ligava os mesmos a

uma pessoa chamada Rhodan, subitamente desaparecida há

meio século. Na opinião do cérebro positrônico, os

acontecimentos que se desenrolaram em Tolimon, e

especialmente a maneira pela qual estes se sucederam,

bastaram para que o sistema de combinação de dados de

Árcon chegasse à conclusão quase inequívoca de que seu

causador fora Rhodan.

A pausa de descanso que Perry Rhodan havia

conseguido há cinquenta anos para si e para a Terra,

induzindo em erro a frota dos saltadores, havia chegado ao

fim.

O Império saíra novamente em busca da Terra.

* * *

Para Rhodan essa descoberta significava que teria de

encerrar quanto antes sua permanência em Isan e pôr-se a

caminho da Terra.

A despedida precipitada foi muito difícil para ele.

Depois de envolver-se por acaso nos acontecimentos de

Isan, tinha na mente mais alguns planos, que incluíam a

estabilização da situação em condições humanas e dignas.

Além disso, Rhodan desejava satisfazer sua curiosidade.

No primeiro dia, sentira-se surpreendido ao notar que os

habitantes de Isan falavam o arcônida, embora fosse um

arcônida arcaico. Supunha que fossem descendentes dos

emigrantes arcônidas, que na primeira fase da colonização,

ou seja, há cerca de dez mil anos, penetraram até o centro

da Via Láctea. Provavelmente as comunicações com o

mundo de origem foram interrompidas pouco depois. A

maravilhosa tecnologia arcônida caiu no esquecimento e a

população de Isan regrediu à barbárie. No início da grande

guerra, atingira aproximadamente o mesmo nível cultural

em que a Terra se encontrava há cem anos.

Rhodan tinha certeza de que nos arquivos dos abrigos

haveria alguma informação sobre a ascendência do homem

de Isan. Mas não possuía tempo para vasculhar arquivos. A

Terra chamava.

Rhodan mandou que duas naves auxiliares saíssem da

Drusus e fossem tripuladas com dez homens cada uma. Os

pequenos veículos espaciais foram equipados com armas

que garantiam à pequena tripulação uma superioridade

absoluta sobre tudo que vivia em Isan. Os vinte homens

ainda se encarregaram de providenciar a distribuição justa e

sensata dos mantimentos trazidos pela Drusus.

Rhodan designou Feriar, Thér e Ivsera como

comissários-chefes dos abrigos de Fenomat e Sallon, e

ordenou aos tripulantes das duas naves auxiliares que

fizessem tudo que estivesse ao alcance deles para apoiá-los

no desempenho de suas funções. Encareceu aos três chefes

que se esforçassem a fim de não se perpetuarem no

governo, mas fossem substituídos quanto antes por um

conselho eleito regularmente. Ivsera disse:

— Quando o senhor apareceu, eu estava cansada de não

fazer nada e não me conformava mais com a ideia de que a

mulher não deve intrometer-se na política. Mas nunca teria

sonhado com a possibilidade de que, dentro de poucos dias,

poderia atingir o posto de chefe do abrigo.

Rhodan sorriu. Antes que pudesse responder, Thér

interveio na palestra:

— Não seja tão convencida, minha filha. Afinal, a

senhora não está sozinha.

— Nem quero continuar nisso por muito tempo —

exclamou Ivsera. — Basta que tenha chegado até lá.

Rhodan sorriu.

— Quer saber de uma coisa? — disse. — Tenho a

impressão de que talvez a senhora possua uma visão um

tanto romântica de tudo isto. Não quero interferir em sua

vida privada, mas acho bem provável que a senhora sinta

falta de um homem que, vez por outra, lhe endireite as

ideias e lhe mostre como realmente são as coisas.

Page 143: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

143

Ivsera baixou a cabeça e olhou para o chão.

— É o que vivo dizendo! — disse Thér.

— De alguns dias para cá, ou seja, desde o dia em que

me tratou como um escravo no laboratório, procuro atrair

sua atenção para minha pessoa. Acha que se dignou a olhar-

me uma única vez com uma expressão amável?

A cena terminou numa série de estrondosas gargalhadas

partidas de Rhodan e Feriar. Thér e Ivsera continuaram tão

sérios como parecia ser a intenção das últimas palavras

ditas por ele.

* * *

Poucas horas depois, a Drusus decolou.

No momento em que a Drusus penetrou no hiperespaço,

Rhodan deixou para trás um mundo e uma experiência que

já pertenciam ao passado. Tinha agora coisas muito mais

importantes pela frente.

Já os homens de Isan haviam assistido a um milagre.

A população do planeta chegara ao estágio da extinção.

Foi graças a um punhado de desconhecidos que o

extermínio pôde ser evitado e a população teve as

esperanças renovadas. Era um punhado de desconhecidos

que dispunha de recursos misteriosos e apavorantes, e que

não recuava diante de nenhum esforço para alcançar as

soluções justas.

Instalaram a ordem e acabaram com a fome. Coisas que

poucas semanas antes qualquer um consideraria impossível

tornaram-se possíveis: fizeram com que o planeta

despertasse para uma vida nova carregada de esperanças.

Isan nunca se esqueceria dos desconhecidos.

A veneração incluiu o morto cujo túmulo solitário

ficava no lugar em que a nave espacial dos estranhos

pousou pela primeira vez, e que nada tinha a ver com os

acontecimentos que se desenrolaram em Isan. Era o conde

Rodrigo de Berceo, o homem que correu para a morte

quando tentava ajudar Rhodan.

Após solucionar o problema Isan, Rhodan terá de pensar com todo o cuidado no futuro da

Terra, pois Árcon a está procurando...

Em O Duelo, título do próximo volume, Perry viverá outra estupenda aventura.

Page 144: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

144

Nº 54

De

K. H. Scheer

Tradução Richard Paul Neto Digitalização Arlindo San Nova revisão e formato W.Q. Moraes

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo

reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente

teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram

insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinquenta e seis anos se passaram desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no

ano de 1984.

Uma nova geração de homens surgiu.

E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no

governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas

de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à

colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os

soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória,

evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar

qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o

manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército

— continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua

origem terrana.

Atlan vê aproximar-se a realização de seus desejos. Só um obstáculo interpõe-se em seu

caminho: Perry Rhodan, o administrador do Império Solar.

Page 145: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

145

Foram muito gentis, amáveis e, dentro dos limites das

suas normas de serviço, até se mostraram tolerantes. E isso

significava alguma coisa, quando se tratava de membros da

defesa solar.

Muitos deles eram cientistas uniformizados. Outros

soldados da frota espacial, calejados nas lutas. Conforme

explicaram, haviam arriscado tudo pela Terra.

Para eles, eu era um ser totalmente estranho, tanto sob o

aspecto biológico como do ponto de vista político-social.

Nunca chegaram a empregar a expressão “raça estranha”,

fato que só concorria para confirmar minha opinião relativa

ao grau de amadurecimento ético da Humanidade. Já não

eram intolerantes como antigamente, quando perseguiam

pessoas que adotavam crenças diferentes

das suas e executavam os adversários

políticos. Haviam amadurecido, mas isso

não os impedia de verem um inimigo em

minha pessoa.

— Não temos absolutamente nada

contra o senhor, meu caro — declarou o

general Kosnow em tom jovial.

Por isso, formulei uma pergunta

inteiramente lógica: por que não me

deixavam ir em paz? Quando me lembrei

do sorriso azedo de Kosnow, senti a

preocupação fermentar em minha mente.

Só nos raros momentos de equilíbrio

psíquico esse fato me divertia.

Era claro que não poderiam soltar-me,

depois que eu irrompera em seu círculo

de vida em circunstâncias tão misteriosas.

Não sabiam nada a respeito da minha cúpula

pressurizada, situada nas profundezas do Oceano Atlântico.

Por outro lado, não lhes revelei que no ano de 1.971

resolvera colocar-me em segurança, porque temia a

irrupção de uma guerra nuclear.

Dali a sessenta e nove anos, quando as instalações

médicas robotizadas de minha base me despertaram do

estado de hibernação biológica, tive de constatar que não

houve guerra.

Pude ver o que a Humanidade havia realizado dentro

desses sessenta e nove anos.

Recorrendo a todos os meios de que consegui lançar

mão, cheguei a Terrânia, onde travei conhecimento com o

homem mais importante da fase recente da história.

Seu nome era Perry Rhodan. Durante o tempo em que

eu dormira, ele havia criado um pequeno império

planetário, ao qual dera o nome de Império Solar.

Na Galáxia habitada, ninguém parecia desconfiar de que

na pessoa de Rhodan surgira um conquistador audacioso e

cheio de astúcia.

Levei algum tempo para avaliar aquele homem. E isso

quase chegou a transformar-se na minha perdição.

Embora conhecesse a dureza, a pertinácia e a

capacidade de ação dos humanos, não dei o devido valor a

Rhodan.

Tentei fugir numa pequena espaçonave do tipo jato

espacial, pois, após um longo afastamento, tinha vontade de

chegar em casa. Esperei por muito, muito tempo que o

desenvolvimento tecnológico dos humanos chegasse ao

estágio da navegação espacial.

Quando finalmente conseguiram, cometi a tolice de

fugir para as profundezas do oceano. Dessa forma, perdi a

oportunidade representada pelo grande salto.

Quando por ocasião do primeiro voo tripulado à Lua,

Rhodan descobriu o cruzador danificado dos arcônidas.

Naquela oportunidade, uma ação precipitada me fez perder

a maior chance de minha existência.

Enquanto eu estava mergulhado no profundo sono

biológico, o antigo major da Força Espacial

adquiriu o saber arcônida e realizou seus

projetos com base no mesmo.

Quem cruza nestas condições o

caminho de um homem, que há decênios

vê o próprio sentido da vida em tudo

quanto é dificuldade e risco, quase sempre

se expõe a uma catástrofe.

Fugi! Entrei numa nave espacial

pilotada pelo próprio Rhodan. Em

Hellgate, houve o duelo no deserto.

Ele me mandou prender e algemar.

Durante a luta tive uma oportunidade de

matá-lo. O motivo por que não o fiz, mas

preferi errar o alvo, constituiu parte

substancial das minhas reflexões

autocríticas do momento.

Por que não o matei? Teria sido porque

antes ele me ajudara a sair da nave em chamas?

Não. Esse motivo não tinha qualquer fundamento

lógico. O homem que resolve poupar seu inimigo não está

certo de que este venha a adotar o mesmo modo de agir

quando surgir uma situação idêntica.

Apesar disso, senti que devia ser-lhe grato. Poupei sua

vida de propósito e avisei-o pelo rádio de que agora

estávamos quites. Poucas horas depois iria arrepender-me

do gesto.

Após a salvação realizada no último instante, ele me fez

contemplar a boca de sua arma. Fiquei sabendo que, entre

nós, surgira uma estranha amizade fundada no ódio.

Admirei-o a contragosto. Ele, que se considerava

imortal, mas que poderia ser atingido com tamanha

facilidade via em mim um objeto de estudo muito

interessante.

Rhodan era muito inteligente e experimentado nas

coisas da vida e talvez até desconfiasse de que eu não fosse

um verdadeiro arcônida. Provavelmente, foi só por isso que

me mandou levar à Terra num cruzador leve. E desde o dia

10 de maio de 2040 estou detido neste planeta, como

prisioneiro da defesa solar.

Personagens principais deste episódio:

Atlan — O personagem

principal que conta a história

em primeira pessoa. Trata-se de

um prisioneiro arcônida.

Marlis Gentner — Uma

estudante de olhos escuros

nascida em Vênus.

Gunter Viesspahn — Um colono

barbudo de gestos grosseiros.

Perry Rhodan — Administrador

do Império Solar.

1

Page 146: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

146

Meu relacionamento com essa gente transformou-se

numa tragicomédia de primeira categoria. Evidentemente

sabiam muito bem que a vida de seu ídolo estivera em

minhas mãos. E também sabiam que eu não era um

verdadeiro inimigo da Humanidade.

Os homens da defesa solar eram psicólogos. Por isso,

meu comportamento colocava-os diante de uma verdadeira

muralha de enigmas, cuja solução dificilmente seria

possível para quem não possuísse a chave adequada.

Quem tinha a chave era eu; também sobre este ponto

estavam informados. Não haveria nada mais natural que

procurar arrancar-me esse conhecimento.

Quando foram buscar-me para realizar o primeiro

interrogatório, tive um pouco de medo. Talvez poderiam

reincidir nos seus antigos vícios.

Pensava num tratamento grosseiro. À porta da sala em

que seria realizado o interrogatório, minha lembrança muito

viva me mostrara coisas feitas em tempos passados, por

homens ainda não humanizados.

Não me fizeram nada. Os cientistas uniformizados

apenas puderam ameaçar-me com seus rostos zangados o

que, uma vez vencido o primeiro choque, quase nem

chegou a impressionar-me.

Há dias estávamos brincando uns com os outros.

Recorreram a todos os truques puramente psicológicos que

conheciam. Tive de prestar muita atenção. Mas, afinal, eu

era um conhecedor mais profundo da mente. Não

dispunham das mesmas experiências que eu, nem estavam

informados sobre as coisas que eu mesmo experimentara

pessoalmente no correr do tempo.

Era um paradoxo que eu, um arcônida, conhecesse os

homens melhor do que eles mesmos se conheciam. Para

mim, o fato de que vezes seguidas me ofereciam

oportunidade de deixá-los perplexos com o volume das

minhas experiências representava uma fonte de

divertimento.

Era esta a situação quando vieram buscar-me no dia 16

de junho de 2.040, para o vigésimo segundo interrogatório

psicológico.

O tenente Tombe Gmuna era o oficial de escolta. Eu

gostava do africano, sempre risonho, que costumava

demonstrar uma franqueza reconfortante.

Cederam-me uma pequena casa, situada nas

proximidades do centro administrativo de Terrânia. Não

tinha janelas gradeadas ou outras instalações convencionais

destinadas a evitar a fuga.

Possuía três robôs de serviço que funcionavam

impecavelmente. Mas nem mesmo estes poderiam ajudar-

me a vencer a barreira energética de minha “prisão”.

A cerca radiante tinha cinco metros de altura. Não

poderia saltar sobre ela, nem teria outro meio de vencê-la.

As instalações energéticas e de comando ficavam fora da

área circular delimitada pela mesma. Via perfeitamente a

casinha do transformador com o projetor que criava o

campo energético circular, mas não poderia atingi-la.

Sempre que levado para fora através de uma abertura

feita por uma série de manipulações, era acompanhado ao

menos por três homens do serviço de defesa. Portavam

armas, cujo efeito era relativamente inofensivo, mas muito

doloroso. Durante o tempo em que estive preso, nunca quis

assumir o risco de entrar em contato com o fulgurante raio

energético desencadeado pelo choque.

Desta vez, o tenente Gmuna trazia uma pistola de

verdade no cinto do uniforme. Notei que se tratava de um

radiador de impulsos térmicos, cujos efeitos eram mortais.

Seu rosto franco parecia um tanto matreiro. Os olhos

escuros exprimiam certa dose de contrariedade. Ao ver meu

olhar recriminador, disse em tom seco:

— São ordens, almirante.

Desde que ficaram sabendo que já exercera as funções

de comandante de uma frota arcônida, passaram a dar-me o

tratamento de Sir ou almirante. Nos últimos dias, fiquei

refletindo sobre a espécie de truque psicológico que estaria

ligado a esse procedimento. Será que pensavam que com

isso conseguiriam levar-me para seu lado?

Não fazia muita questão do título. Há muito tempo que

dirigira uma poderosa flotilha do comando de colonização

arcônida. Porém não conseguia pensar no fato sem que uma

sensação de desalento se apossasse de mim. E a melancolia

de meu espírito nunca cessava.

— Que ordem, Gmuna? — perguntei.

— É a arma de impulsos — disse com um gesto de

contrariedade. — Chegou outro homem. Daqui em diante,

seu oficial de escolta terá que levar um radiador.

Olhei-o da cabeça aos pés. Demorou um pouco até que

seu rosto se descontraísse.

— Bem, não podemos fazer nada. Não pense na tolice

de querer fugir. O senhor conseguiu isso uma vez, mas não

vai repetir o ato.

— Daquela vez me tornei invisível — afirmei.

— O senhor gosta de um esclarecimento total, não é?

Limitei-me a fazer um gesto afirmativo e fiz um esforço

para não demonstrar a inquietação que me atormentava.

O tenente abriu a porta do carro oficial muito simples.

Sentei no banco do meio, bastante desconfortável. Gmuna

ocupou o lugar ao lado do motorista. Atrás de mim, os

pesados radiadores de choque dos dois soldados me

ameaçavam. Era uma escolta digna de um antigo almirante,

que já desistira de pensar no passado grandioso.

Durante os vinte e um interrogatórios pelos quais já

passei, haviam apresentado provas cabais de que os dados

relativos aos arcônidas, constantes da Enciclopédia

Terrânia, correspondiam à verdade. De acordo com esses

dados, meu povo venerando se encontrava num estágio de

degenerescência física e mental que o tornava incapaz de

enfrentar as adversidades da vida. Não compreendi como

isso poderia ter acontecido num espaço de tempo tão curto.

2

Page 147: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

147

De qualquer maneira os homens da defesa solar

quebraram minha arrogância nascida do sentimento de

superioridade. Mas não conseguiram roubar minha altivez.

Afinal, mesmo um Perry Rhodan aprendera com os

cientistas de meu povo. Se nossa nave exploradora não

tivesse realizado um pouso de emergência na lua terrana,

nos idos de 1.971, a navegação espacial interestelar não

surgiria na Terra.

Ninguém poderia privar-me da consciência desses fatos.

Aliás, nem pretendiam negar que fomos seus mestres.

Era bem verdade que em alguns pontos pareciam ter

ultrapassado os arcônidas. Mostraram-me algumas naves

espaciais construídas e equipadas na Terra, cujos detalhes

estruturais me deixaram perplexo.

Foram estes os meios que utilizavam para torturar-me.

Já não eram primitivos a ponto de encostar ferro em brasa

aos meus pés.

O jovem Tombe Gmuna era um exemplo frisante do

novo comportamento do homem. Era tolerante, de mente

limpa, e sempre estava disposto a reconhecer as qualidades

de outro ser. Tomara uma atitude tão franca para comigo

que não pude deixar de identificá-lo com a nova espécie de

homem.

Eram os tipos arrojados de conquistadores, que meu

povo também possuíra no período áureo. Isso parecia

pertencer ao passado, e essa circunstância me precipitava

num caos psíquico. Já me encontrava longe de casa há tanto

tempo que não estava em condições de formar opinião

própria sobre o que realmente teria acontecido.

A arma mais eficiente utilizada contra mim foi a alusão

constantemente repetida ao gigantesco robô que, segundo

diziam, administrava o império estelar criado por meus

antepassados.

Para ser sincero comigo mesmo, tive de perguntar-me

por que estava empenhando todos os meus anseios e minha

capacidade de ação em chegar aos três planetas

sincronizados de Árcon, apesar de tudo que teria

acontecido.

Seria o sentimento que os homens designavam como

saudade? Em pessoas do meu tipo uma manifestação do

inconsciente como esta seria um fato inconcebível. Afinal,

sempre conseguira controlar-me, desde o momento em que

deixara minha nave capitania, a fim de pisar pela primeira

vez no planeta verde, a Terra.

Talvez os numerosos amigos de verdade encontrados

entre os humanos nem permitiriam que pudesse sofrer um

repentino acesso de saudades.

Provavelmente, o desejo de ir para casa, acontecesse o

que acontecesse, nascera principalmente do orgulho ferido.

Foi terrível ter de constatar, assim que despertei do

profundo sono biológico, que os pequenos bárbaros do

planeta Terra já se haviam tornado adultos.

A essa hora, só sentia o desejo de verificar pessoalmente

se as informações que o serviço de defesa fornecera sobre

meu povo correspondiam à verdade. Se isso acontecesse,

talvez voltaria para estender a mão a Rhodan e selar o pacto

de amizade com o mesmo.

Enquanto o veículo se deslocava em direção às

instalações não muito distantes do serviço de defesa, pensei

em Perry Rhodan. Estava desaparecido há cerca de trinta

dias. Gmuna fizera algumas observações, segundo as quais

Rhodan voltara a arriscar muita coisa. De qualquer maneira,

no momento, meu inimigo mais implacável não se

encontrava na Terra.

Meu inimigo? Soltei uma risadinha ao analisar o

conceito. Sim, fora meu inimigo até o momento em que

dera ordem ao seu robô para que me desse água. Quando

isso aconteceu, percebi que nunca mais conseguiria matá-

lo.

Gmuna levou-me ao elevador antigravitacional mais

próximo. Os jovens lidavam com o artefato como se

tivessem passado por uma evolução tecnológica milenar.

Tudo aquilo se transformara numa coisa natural. Ao que

parecia, nem chegaram a refletir sobre o tempo que os

cientistas de meu povo dispenderam no controle das forças

gravitacionais. Eles, os humanos, simplesmente receberam

a tecnologia de nosso povo.

Quando pensava nesses detalhes, lutei contra a sensação

de raiva que começava apossar-se de mim. Seria bom que

não se esquecessem de quem eles tinham diante de si.

Quem lhes dava o direito de mandar conduzir-me por um

grupo de soldados armados, como se fosse um criminoso?

Era este detalhe que não me permitia fazer vistas grossas

para tudo, num gesto de verdadeira generosidade.

Se tivessem mais experiência, nunca teriam a ideia de

algemar ou vigiar um homem como eu. Minha palavra lhes

bastaria.

Mas, ao que tudo indicava, não conheciam o elevado

código de honra da velha frota arcônida.

Por isso, cometeram o erro de minar constantemente a

disposição de revelar integralmente os fatos, que vez por

outra surgia em minha mente. Despertaram todo o volume

de resistências desencadeadas pelas sensações do

subconsciente. Achei preferível não informá-los sobre este

detalhe.

Parei por um instante no corredor do 86o pavimento,

prestando atenção aos últimos ecos do trovão causado pela

decolagem de uma grande espaçonave. Para mim não

poderia haver ruído mais agradável. Olhei para Gmuna.

— É uma nave da classe Império? — perguntei em tom

curioso.

— É a nave Drusus, almirante. O chefe solicitou sua

presença pelo hiper-rádio. Caso o oficial de artilharia aperte

os botões, ela poderá causar o fim do mundo.

Seu entusiasmo mais que compreensível me fez rir. O

coração de um jovem não poderia deixar de bater mais

aceleradamente quando uma gigantesca esfera espacial de

1.500 metros de diâmetro disparava em direção ao espaço.

Dali a alguns segundos, as portas de correr blindadas

abriram-se. Entrei nas salas de trabalho do setor especial da

defesa solar.

Como de costume, havia mais de dez pessoas. Já as

Page 148: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

148

conhecia.

Na minha escala de avaliação, o general Kosnow

ocupava um lugar todo especial. Conforme Gmuna certa

vez cochichara ao meu ouvido, este homem seria muito

velho. Talvez pertencesse ao grupo de oficiais de grande

mérito, que juntamente com Perry Rhodan haviam criado e

desenvolvido a antiga Terceira Potência. Dizia-se que Perry

Rhodan tinha a possibilidade de proporcionar um

prolongamento biomédico da vida aos homens que julgasse

dignos desse benefício. Não possuía a menor ideia sobre a

maneira pela qual conseguia isso. Em nenhum dos homens

pertencentes ao círculo de seus colaboradores mais

chegados, percebera qualquer fenômeno que, segundo as

minhas concepções, pudesse contribuir para a estabilização

biológica e a renovação constante das células.

De qualquer maneira, não podia deixar de haver um

núcleo de verdade nesses boatos, pois Perry Rhodan não

envelhecera.

Quando vi o homem baixo, parei imediatamente.

Virou em minha direção o rosto que chamava a atenção

pela pele lisa e pela ausência quase completa de barba, que

parecia dominado por dois olhos azuis. Aparentava ser tão

corriqueiro e inofensivo que não poderia deixar de

despertar desde logo minha desconfiança. Seria este o

homem novo, do qual Gmuna me havia falado?

Se fosse eu quem estivesse no comando, teria dado

ordem para que o jovem oficial usasse uma arma realmente

mortífera. Isto não concorreu para tornar o desconhecido

mais simpático aos meus olhos.

O general Kosnow levantou-se atrás da enorme

escrivaninha. Cumprimentou-me com um gesto de cabeça.

— Como vai, almirante?

Inclinei a cabeça num gesto comedido, esforçando-me

para demonstrar certa dignidade.

— Permita que lhe apresente o marechal-solar Allan D.

Mercant, almirante.

“Cuidado! Perigo!”, sinalizou meu supercérebro. Senti

nitidamente os impulsos telepáticos expedidos pela mente

do marechal.

Minha memória fotográfica entrou em funcionamento.

Allan D. Mercant? O nome não me era estranho. Lembrei-

me de tê-lo lido na Enciclopédia Terrânia. Segundo os

dados constantes da mesma, em 1971 Mercant fora chefe de

um serviço secreto de âmbito mundial, conhecido pelo

nome Conselho Internacional de Defesa.

Depois que Rhodan regressou da Lua, o chefe do CID

passou a simpatizar com o major. Posteriormente passou a

trabalhar com exclusividade para Rhodan. E, agora aquele

homenzinho ocupava o posto de marechal-solar.

Provavelmente exercia as funções de chefe do Serviço

Solar de Segurança. Tinha certeza absoluta de que Rhodan

não poderia ter encontrado melhor elemento para

desempenhar as funções.

Mercant, que além do mais parecia dispor de faculdades

telepáticas limitadas, também se levantou. O gesto com que

me cumprimentou foi um tanto desajeitado, mas não deixei

que esse fato me iludisse. Mercant correspondia àquilo que

meus antepassados costumavam designar como o punhal de

ponta envenenada: de aspecto inofensivo, era uma mortífera

arma de ataque.

— Muito prazer. Por favor, não se esforce em vão, Sir

— disse em tom formal. — Já houve telepatas melhores que

o senhor que tentaram romper minha psique. Estou em

condições de bloquear o conteúdo da minha mente.

O homenzinho de cabeça quase totalmente calva, que

usava óculos antiquados de aros de ouro, parecia

embaraçado.

— Queira desculpar — disse Mercant em tom

lamentoso, mas seus olhos claros falavam uma linguagem

diferente...

Percebi que minha avaliação fora correta. Sua conduta

aparente era apenas a máscara que ele usava. Tinha certeza

absoluta de que não sofria complexos de inferioridade.

Por outro lado, não podia haver a menor dúvida sobre

suas qualidades psicológicas. Se Rhodan o havia escolhido

para chefiar uma entidade importantíssima como a defesa

solar, Mercant devia ser dotado de uma capacidade

extraordinária.

— Faça o favor de sentar — disse em tom amável.

Sua mão apontou gentilmente para uma cadeira

confortável, colocada à frente das escrivaninhas dispostas

em ferradura. Sentei.

Raras vezes estivera tão atento. Se não estava muito

enganado, a tática que Mercant usaria durante o

interrogatório seria muito diferente daquela empregada por

seus subordinados.

Foi como eu esperava. Começou instantaneamente, em

forma de assalto. O fato de que não recorria a palavras

supérfluas constituía uma vantagem.

— O senhor está na Terra pelo menos há setenta anos,

almirante — principiou com a voz tranquila.

Esforcei-me ao máximo para manter o autocontrole.

Como poderia saber disso? Mantive-me em silêncio.

— Tive o trabalho de examinar alguns documentos

antigos da OTAN — disse com um sorriso. — Em abril de

1970, o chefe científico de um instituto de pesquisas

particular empregou certo Olaf Peterson, que assinou um

contrato. Esse homem foi o senhor. Após quatro meses,

passou a chefiar um setor próprio. Ali desenvolveu num

tempo espantosamente curto um aparelho chamado projetor

de campos estruturais, destinado a campos de compressão

que exigem um elevado desempenho energético. Num

artigo escrito pelo senhor, diz-se que o mesmo poderia

substituir perfeitamente as câmaras de combustão

convencionais e os bocais de jato submetidos a uma

solicitação térmica excessiva. Dali a mais três meses, o

senhor passou a ocupar-se com a elaboração de um

minirreator destinado ao abastecimento de energia para as

espaçonaves. Tratava-se de um reator de fusão dotado de

controle automático capaz de fornecer quinhentos

quilowatts por hora. Estes fatos são um tanto

surpreendentes, não são?

Page 149: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

149

Mercant fitou-me com uma expressão de curiosidade.

Percebi que seria inútil negar.

— É verdade — disse em tom de tédio. — Naquela

época, usava o nome de Olaf Peterson. Pretendia apoiar os

bárbaros nos seus esforços desesperados de conquistar o

espaço. A gente se assustava ao ver os problemas que os

aborreciam. Quanto a mim, apenas utilizei dados

publicamente expostos nos museus de meu povo.

Fiquei satisfeito ao notar o choque causado nos homens

que me ouviam atentamente. Por pouco, não soltei uma

estrondosa gargalhada. Mercant parecia divertir-se.

— Obrigado pela franqueza, almirante.

— Não há por que, Sir. Um homem inteligente não

continua a mentir quando percebe que está

irremediavelmente desmascarado.

O chefe de segurança fez um gesto pensativo.

Repentinamente mudou de assunto.

— Acreditamos que o senhor seja um agente cósmico

no desempenho de missão independente. Crest e Thora,

nossos amigos arcônidas, não sabem nada a seu respeito.

Uma coisa é certa. O senhor veio à Terra por simples acaso.

— Não diga! — respondi.

Um sorriso disfarçado surgiu no rosto de Kosnow.

Havia uma pequena dose de malícia em seus olhos. Ao que

parecia, gostava de ver Mercant sofrer um pequeno revés.

— Qual é sua idade, almirante? — foi a pergunta

seguinte.

— Procure adivinhar.

Estavam se aproximando de meu segredo. O chefe de

defesa seguira um caminho bem diferente. Seus dedos

brincavam nervosamente com uma velha espátula feita de

marfim.

— É o que faremos — prometeu em tom gentil. — O

senhor tem um aspecto surpreendentemente jovem. Diria

que calculo sua idade em trinta e cinco anos. Como

podemos harmonizar essa circunstância com sua presença

prolongada na Terra? Além disso, segundo as informações

de que dispomos, um oficial da frota arcônida que ocupa o

alto posto do senhor nunca tem menos de quarenta anos da

contagem de tempo terrana. Ninguém se torna almirante aos

trinta anos.

— O senhor está com toda razão — disse em tom sério.

Descansou a espátula com uma lentidão acintosa. Senti

que teve de esforçar-se para manter o autocontrole.

“Prepare-se!”, foi a mensagem transmitida por meu

cérebro. Sabia o que viria em seguida.

— O senhor possui um aparelho muito estranho,

almirante. Atendendo a seus pedidos, deixamos de abrir o

envoltório em forma de ovo. Ainda insiste na afirmativa de

que não se trata de uma arma?

— Perfeitamente.

— O senhor ponderou que o aparelho tinha alguma

relação com seu bem-estar físico. Uma vez que não lhe

pretendemos fazer mal, não lhe tiramos o mesmo. Mas isso

pode mudar, almirante!

Se até então ninguém me ameaçara, Allan D. Mercant o

estava fazendo.

Pensei nas terríveis cicatrizes que trazia na região do

estômago, devidas exclusivamente ao ativador celular a que

Mercant acabara de aludir.

Envolvi-me num silêncio total. A situação parecia

tornar-se desagradável para os psicólogos que se

encontravam presentes.

O chefe do serviço de defesa não se deixou perturbar.

Desconfiei até onde pretendia chegar. Era mais que

perigoso.

— Trouxe alguns cálculos logísticos — acrescentou em

tom casual. — Supondo que esse aparelho realmente

assume uma importância vital para o senhor, e que sempre

deve ser trazido junto ao seu corpo, os matemáticos

concluíram que, no curso de seu passado bastante agitado, o

senhor deve ter sido obrigado várias vezes a engolir o micro

conjunto. O fato explicaria as suas numerosas cicatrizes.

Foi só por isso que acreditei nas suas declarações, segundo

as quais o senhor não deve ser separado do aparelho.

Evidentemente essa circunstância nos leva a tirar

conclusões da maior gravidade.

— E daí? — perguntei em tom irônico.

— O senhor se encontra na Terra há muito mais tempo

do que está disposto a confessar. Verificaremos os nomes

com que tem aparecido no curso da história da

Humanidade.

— Fique à vontade. Não terá muita sorte.

Tornou-se um pouco mais impaciente.

— Atlan, o senhor deveria dizer a verdade. Um homem

com a sua inteligência já teria percebido que não adianta

negar os fatos. O que espera conseguir com isso?

— Quero ir para casa — disse em tom tranquilo.

— O senhor sabe perfeitamente que não podemos

aceder a esse desejo. Por aí pensasse que a Terra foi

destruída e que Perry Rhodan está morto. Se permitíssemos

que o senhor fosse ao sistema de Árcon, isso representaria

um perigo para a Humanidade.

— Se as informações que me forneceram sobre a

decadência do Império de Árcon correspondem à realidade,

não direi uma palavra.

— O senhor não seria capaz disso. Árcon está sendo

governado por um regente robotizado. Além disso, achamos

sua pretensão um tanto absurda. Como poderíamos

acreditar na sua promessa, se até aqui se obstina em manter

silêncio sobre os fatos?

Allan D. Mercant era muito inteligente. Mas, nem ele

mesmo se dera conta de que minha palavra representaria

muito mais que uma simples promessa. Chamei sua atenção

para essa circunstância.

— As informações que possuímos sobre as concepções

morais dos oficiais da frota arcônida são muito escassas,

Sir. Os tempos estão mudados. Diga francamente quem é,

de onde veio, quando veio e por que veio. Depois

poderemos falar sobre o resto. Por enquanto, o senhor é um

“fator” desconhecido, que pode ser totalmente inofensivo,

mas também pode ser muito perigoso.

Page 150: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

150

No meu íntimo confessei que seu raciocínio era claro e

lógico. Apesar disso, não estava disposto a revelar de uma

hora para outra meu grande segredo. Provavelmente não

acreditariam em mim, o que tornaria minha situação ainda

pior.

Além desse raciocínio, o orgulho bastante ferido ainda

me impedia de revelar os fatos. Afinal, quem eram esses

terranos? Meus antepassados viram neles selvagens do

tempo da Idade da Pedra, e agora um cientista e

comandante de esquadra arcônida recebia deles um péssimo

tratamento.

Senti que me aproximava de um dilema. Já não

conseguia vencer a fraqueza determinada por fatores

raciais. Meu supercérebro dizia que os terranos eram

amigos, mas minha memória fotográfica revelava o

pequeno número de amigos que havia encontrado entre

eles.

— O senhor me ofendeu — respondi em tom áspero. —

Se não quiser confiar na minha palavra, não terá outra

alternativa senão manter-me preso. Recuso-me a depor.

É um direito que as leis terranas me conferem.

— Voltamos à estaca zero, Sir — observou o general

Kosnow.

Sabia o que queriam dizer. Os homens mais capazes do

serviço de defesa já haviam percebido por ocasião dos

interrogatórios anteriores que em certo estágio um curto-

circuito emocional ocorria em minha mente, Até agora,

Kosnow sempre suspendera o inquérito ao chegar a este

ponto.

Mercant não se afastou da regra. Levantou-se,

cumprimentou-me com um gesto da cabeça e disse:

— Pois não; fique à vontade, almirante. Hoje de tarde

voltaremos a conversar. Até lá disporemos de outros dados

sobre sua pessoa. Se houver qualquer prova de que

desenvolveu alguma atividade de agente, terá de enfrentar

um tribunal. O senhor não está com a ficha muito limpa,

senhor Atlan.

Este modo de falar fez com que ele fechasse

desesperadamente os olhos. Já se tornavam muito menos

corteses, o que não lhes poderia levar a mal. Perguntei

seriamente a mim mesmo o que faria se estivesse em seu

lugar. Talvez não fosse tão tolerante para com um

misterioso desconhecido.

Mercant saiu. O general Kosnow seguiu-o com um

olhar pensativo. Depois que a porta se fechou, virou a

cabeça para mim.

O traço em torno dos seus lábios parecia exprimir

preocupação.

— O senhor ainda não conhece Mercant, Sir — disse

em tom de súplica. — Por que insiste em não falar? Está

certo; dar-lhe-emos mais algumas horas para refletir.

Concorda em conversar também hoje com os estudantes do

último semestre?

Controlei-me para não revelar minha alegria. Desde o

dia 12 de maio de 2.040, surgira o hábito de levar-me todos

os dias ao grande auditório da Academia Espacial, onde as

novas gerações de cientistas me faziam inúmeras perguntas.

Geralmente tratava-se de problemas médico-biológicos ou

de questões de tática colonial solucionadas no curso da

política expansionista dos arcônidas.

Os estudantes de engenharia estavam curiosos para

saber que tipos de propulsores e máquinas usávamos

naquele tempo, enquanto os astronautas esperavam que

confirmasse a exatidão de longos cálculos relativos a

hipersaltos.

Os futuros oficiais da Frota Espacial Estratégica

estavam interessados em conhecer a forma pela qual os

colonizadores arcônidas costumavam tratar os povos

estranhos.

As discussões eram agradáveis. Na verdade, o interesse

pelo passado grandioso de meu venerável povo me deixava

feliz.

Mais uma vez concordei, embora hoje nem pensasse em

utilizar o saber imenso armazenado na minha memória

fotográfica no benefício exclusivo dos estudantes da

academia.

Meus cálculos incluíam um fator, que nas últimas

semanas fora incluído na categoria dos desconhecidos.

Tratava-se de um ser humano, cujas reações constituiriam a

chave negativa ou positiva da minha equação: uma jovem

estudante de cosmobiologia chamada Marlis Gentner, que

não nascera na Terra.

Marlis era descendente dos colonos que pousaram em

Vênus cerca de sessenta anos atrás. Evidentemente

orgulhava-se dos seus antepassados, que conseguiram

arrancar da selva de Vênus tudo de que o homem precisa

para sua subsistência.

Sabia que entre os colonos de Vênus e os terranos

existiam certas tensões. Para mim, as ligeiras divergências

eram normais e inevitáveis. A história grandiosa de meu

povo demonstrara repetidas vezes que, uma vez vencidas as

dificuldades iniciais, toda colônia anseia pelo autogoverno.

As consequências sempre são desagradáveis para ambas

às partes. É bem verdade que os problemas econômicos e

sócio-políticos podem ser solucionados satisfatoriamente

através de negociações. Mas, até o momento do acordo

definitivo, sempre existe uma diferença de princípios e de

concepções.

Marlis Gentner era uma defensora ardorosa da justiça.

Em sua opinião, o jovem Estado venusiano fora prejudicado

em seu desenvolvimento. Não lhe expliquei que os colonos

sempre são dessa opinião. Um pioneiro inteiramente

satisfeito constitui um fenômeno impossível.

Travei conhecimento com ela no dia 15 de maio,

durante uma preleção. Poucos dias depois, ela dissera numa

discussão pública que minha prisão constituía uma

indignidade.

Há três dias resolvi colocar todas as chances numa carta.

Num cochicho informei-a sobre o lugar em que havia

escondido meu equipamento especial.

Em princípios de maio, quando cheguei a Terrânia, tive

o cuidado de guardar adequadamente os aparelhos que

Page 151: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

151

assumiam importância vital para mim. Por ocasião de

minha fuga precipitada na nave espacial de Rhodan, parte

dos micros instrumentos havia ficado para trás.

Se conseguisse apossar-me de certa cápsula, os dias de

prisão teriam chegado ao fim. Meus cálculos eram

inatacáveis. Não havia a menor possibilidade de falha,

desde que o fator desconhecido representado por Marlis

Gentner reagisse de forma positiva.

Os dois guardas armados voltaram a aparecer. Num

gesto rotineiro, apontaram para a porta atrás da qual havia

um elevador que conduzia ao heliporto situado na cobertura

do edifício.

Ainda bem! Um ato de rotina sempre embota a mente,

adormecendo o sentimento de vigilância. Até mesmo

Tombe Gmuna, sempre desconfiado, não suspeitou de nada

quando penetrou ao meu lado no campo energético.

Livres da ação da gravidade, subimos ao lugar em que o

aparelho de rotores do serviço de defesa nos aguardava.

A maior e a mais importante das academias espaciais do

Império Solar ficavam fora da área do gigantesco

espaçoporto.

Bem longe dali, ao leste, vi as coberturas reluzentes dos

arranha-céus. Terrânia, a capital da Terra e do pequeno

império planetário, fundada há sessenta anos, já tinha mais

de 14 milhões de habitantes.

Era uma cidade que impressionava o observador. Por

certo, ocuparia um lugar de destaque na Galáxia, assim que

as inteligências da Via Láctea a conhecessem. Por

enquanto, Perry Rhodan ainda se fingia de morto. Mas, em

minha opinião, isso não duraria muito.

Não poderia deixar de ser descoberta durante a missão

arriscada que estava executando. Quando isso acontecesse,

preferia não estar na Terra. Meu lugar era no palácio de

cristal de Árcon I, o mundo que dominava o Universo

conhecido.

Ao entrar na máquina, lembrei-me de como meu auxílio

discreto seria útil para a Humanidade. Deveria ter explicado

aos homens do serviço de defesa que eu, Atlan, estava

imbuído da intenção honesta de, a partir de Árcon, apoiar a

Humanidade em ascensão?

Ninguém teria acreditado nas minhas palavras, ainda

mais que segundo a opinião oficial todos os arcônidas eram

degenerados. Não podia conformar-me. Precisava ir para

casa, custasse o que custasse.

Minha preleção sobre a política colonial arcônida e a

psicologia das raças estranhas durou duas horas.

A seguir, os estudantes de várias especialidades

apresentaram-se para discutir o assunto. Era a hora da

descontração e do descanso.

Marlis Gentner, uma moça alta, de cabelos escuros e um

jeito obstinado, resolvera não participar da guerra de

palavras. Interpretei sua surpreendente reserva como um

sinal positivo, o que evidentemente poderia ser um

raciocínio errôneo.

Várias vezes vi seu rosto surgir entre muitos outros

como se fosse uma mancha branca. Uma ocasião tive a

impressão de que me examinava com os olhos críticos de

psiquiatra.

Sempre que pensava nela, experimentava um

sentimento de carinhosa simpatia. Quase chegava a sentir

vergonha por tê-la induzido a trair sua raça.

Seria a doença infantil de todos os pioneiros; não havia

a menor dúvida. E fora injusto da minha parte deixar de

esclarecê-la a este respeito. Ainda acontecia que não se

podia pensar numa ligação entre a moça e minha pessoa.

Era jovem, bela e inteligente. Já eu era um homem

muito velho, que não tinha o direito de atar a venusiana,

que mal começava a despertar para a vida.

Enquanto respondia às indagações dos universitários,

meu sexto sentido lógico, que geralmente funcionava de

forma impecável, me disse que por enquanto não havia

acontecido nada. Além disso, não pretendia recorrer ao

auxílio de Marlis para prejudicar a Humanidade. Apenas

desejava ir para casa. Queria escapar à vergonha da prisão.

Era só isso.

Ao meio-dia e dez, o tenente Gmuna interrompeu a

longa discussão. Encontrava-se entre os estudantes, dos

quais alguns falavam excitadamente, enquanto outros

ouviam em silêncio. Naquele momento, discutiam se uma

raça mais desenvolvida no terreno técnico e científico tem o

direito de enquadrar os habitantes dos mundos primitivos

no seu esquema colonizador.

Os prós e os contras esquentavam os ânimos jovens.

Diverti-me ao notar como a juventude mergulhava num

tema que já ocupara as cabeças dirigentes do Império

Arcônida.

A inquietação que começava a tomar conta de mim, me

fez ficar nervoso e distraído. Esforcei-me ao máximo para

dar respostas claras e objetivas. Se procedesse de outra

forma, Gmuna desconfiaria imediatamente.

Demorou alguns minutos até que eu visse Marlis ao

meu lado. Gmuna não poderia impedir que, durante a

discussão tão animada, vez por outra, alguém esbarrasse em

mim. Todos os dias tinham sido a mesma coisa: queriam

ver de perto o estranho vindo das profundezas da Via

Láctea.

Subitamente, vi os olhos de Marlis. Eram grandes e

escuros que nem um lago nas montanhas, em cujo fundo

arde um fogo eterno. Esses olhos continuavam a indagar, e

a perscrutar. Percebi lutar consigo mesma, uma

circunstância que provava que os objetos os quais eu

precisava se encontravam em seu poder.

Só deveria olhar ligeiramente para ela.

Naquele instante, Gmuna estava empurrando os

estudantes para trás. A moça aproveitou a oportunidade.

Ouvi sua voz, que soava baixo e abafada.

— O senhor me escreverá?

3

Page 152: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

152

Fiz um gesto quase imperceptível com a cabeça. A

tensão psíquica quase chegava a dilacerar-me. Mercant

prometera interrogar-me de novo durante a tarde. Poderia

haver cenas muito desagradáveis.

— Faça o favor de afastar-se — berrou Gmuna a plenos

pulmões. — Do contrário nunca mais ouvirá uma preleção.

— Darei notícias — disse apressadamente, dirigindo-me

à moça.

— Não lutará contra minha gente?

— Dou-lhe minha palavra, Marlis. Preciso ir para casa.

Procure compreender!

— Encontramo-nos em Port Vênus. Interromperei os

meus estudos. Combinado?

Senti um nó na garganta. De repente, a tensão

abandonou-a. Brindou-me com um sorriso franco. Embaixo

de sua pasta, surgiu um recipiente chato de cerca de 20

centímetros de comprimento. Agarrei-o apressadamente,

mas ninguém notou o gesto.

Com um ligeiro movimento da mão, introduzi o estojo

sob a blusa folgada. Senti as duas ventosas entrarem em

contato com a pele através da camisa.

Mais uma vez parecia uma pessoa estranha entre os

jovens que discutiam, e que finalmente abandonavam o

campo.

O tenente Gmuna aproximou-se furioso. Sorri

tranquilamente para ele. Marlis desaparecera.

Provavelmente fizera muito mais pela Humanidade do que

poderia imaginar naquele instante. Quanto a mim, estava

decidido a não voltar para a grade energética.

Meu equipamento de emergência não oferecia grandes

possibilidades. Quando me encontrasse no interior da casa

hermeticamente fechada, o defletor de ondas luminosas não

me poderia ser útil.

— Faça o favor de acompanhar-me — disse Gmuna em

voz bastante alta. — A partir de amanhã mandarei isolar

seu lugar. Assim não é possível.

Quando comecei a rir, Gmuna contorceu o rosto numa

expressão de contrariedade.

— O senhor sabe perfeitamente que todas as simpatias

estão do seu lado. Não pense em tolices. É verdade: amanhã

mandarei fechar o auditório.

Gmuna nem parecia desconfiar de que essa decisão

vinha tarde. Olhei para trás para ver Marlis mais uma vez,

mas não consegui descobri-la. Provavelmente, há esta hora,

já se estaria recriminando pesadamente. Não tive

possibilidade de apoiar sua ação numa conversa franca e

prolongada. A moça só me conhecia das discussões.

Gmuna empurrou-me para a saída. Os dois guardas

reapareceram.

Pegamos o pequeno elevador comum que ficava atrás da

parede de comandos do moderno auditório. Lancei um

ligeiro olhar para as câmeras de televisão embutidas. As

minhas preleções costumavam ser transmitidas, pois a sala

não comportava mais de mil pessoas.

Fomos para a cobertura, onde Gmuna havia estacionado

o helicóptero. Naquele instante, minha calma e equilíbrio

interior tornaram-se completos.

“Na cobertura, pedirão autógrafos a você”, avisou meu

sexto sentido. Quase cheguei a confirmar com um gesto.

Até então, sempre fora assim. Os estudantes são uma turma

bastante engenhosa. Sabiam como pregar uma peça às

autoridades.

Comecei a preparar-me para a fuga.

Quando saímos do elevador, não consegui ver a larga

área de concreto do heliporto de cobertura. Mais de mil

universitários haviam comparecido para ver uma criatura

misteriosa como eu.

Eram os estudantes que não conseguiram entrar no

auditório. Com certeza não ficaram muito satisfeitos em

assistir à palestra pela televisão, principalmente porque

dessa forma não poderiam intervir nos debates. E agora

possibilitariam minha fuga.

Os guardas de Gmuna avançaram com os fuzis

atravessados. Não conseguiram afastar as pessoas,

geralmente jovens, vindas de todos os continentes da Terra

e dos diversos planetas habitados. Antes que Gmuna se

desse conta do que estava acontecendo, nos vimos rodeados

por gente excitada falando em altas vozes.

Olhei para o arco assimétrico do portão, sob o qual

começavam as diversas faixas transportadoras da via

elevada. Precisava atingi-lo.

Alguém me entregou um grande quadro, no qual

identifiquei, para meu espanto, minha própria pessoa.

Canetas foram tiradas dos bolsos. Autógrafos foram

solicitados. Contra minha vontade vi-me transformado

numa espécie de ídolo. Eu, que fora tão comum,

transformara-me numa figura conhecida de todos. Não

gostei disso, pois o fato me traria problemas bastante

difíceis.

Gmuna distribuiu cotoveladas, até que dois gigantes

risonhos o seguraram pelos braços. O estojo metálico, que

poucos segundos antes se encontrara preso à minha pele, já

se achava no bolso externo de minha blusa. Seria fácil abrir

o fecho magnético e tatear até encontrar o defletor de ondas

luminosas, um artefato achatado.

Quando Gmuna conseguiu respirar e alguns

representantes da polícia comum acudiram correndo, minha

hora havia chegado.

Bem atrás de mim, ficava a parede de concreto na qual

se abriam os poços dos elevadores. Quase todos os

estudantes que participavam da manifestação de protesto

estavam à minha frente. Teria de passar pelos poucos

mantidos junto à parede sem que estes o percebessem.

Aguardei calmamente até que Gmuna voltasse a soprar

o apito. Apertei a chave do instrumento para baixo.

De uma hora para outra o defletor de ondas luminosas

tornou-me invisível aos olhos comuns. Via tudo, mas para

os outros desaparecera de uma hora para outra.

O campo de deflexão adaptava-se automaticamente aos

contornos de meu corpo.

Dei mais três saltos para trás e passei por alguns

Page 153: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

153

estudantes enfurecidos. Foi quando vi o rosto perplexo de

Gmuna.

Há poucos segundos ainda era a própria encarnação da

calma; mas agora me sentia tangido pelos acontecimentos.

Evidentemente desencadeariam o alarma geral. Se ainda me

achasse no espaçoporto, a fuga seria impossível. Mas, na

situação em que me encontrava por certo conseguiria

mergulhar no formigueiro da gigantesca Terrânia.

Contornei o compacto grupo de estudantes e vi algumas

aberturas em meio à massa, que me permitiram avançar

mais um pouco.

Ouvi um trovão atrás de mim. Parei em meio ao salto e

virei-me apressadamente. Não era possível que Gmuna,

tomado de pânico, estivesse atirando contra aquela gente.

Não, não estava atirando. Em compensação, o ar

aquecido pelos raios do sol estava entrecortado por dedos

luminosos das forças atômicas liberadas.

Tombe Gmuna atirava para o alto, provocando a fuga

desabalada dos estudantes assustados. O jovem tenente do

serviço de defesa sabia como agir numa emergência.

Esperava que a confusão me proporcionasse alguns minutos

de vantagem. E agora conseguira fazer-se ouvir com uma

rapidez surpreendente, além do que emitira um sinal de

alarma inconfundível.

Reprimi uma praga, orientei-me ligeiramente e voltei a

correr.

Cheguei ao grande portão que ficava junto à beira da

cobertura antes dos grupos de estudantes. Aqui começavam

as faixas transportadoras que, apoiadas em elegantes

colunas de sustentação, passavam por cima de toda a cidade

de Terrânia.

Perto de algumas moças que gritavam a plenos pulmões

saltei para a fita de baixa velocidade. Dali passei com

alguns saltos rápidos para a via expressa que se deslocava a

cinquenta quilômetros por hora. Em virtude da série de

saltos precipitados, caí pesadamente sobre o piso elástico.

Continuei deitado, observando os arredores.

A fita movimentava-se a uma velocidade um tanto

elevada. Afastava-me do foco dos acontecimentos mais

rapidamente do que Gmuna poderia gostar.

Antes de ser carregado para a curva ampla situada entre

o edifício da academia e um dos edifícios da administração,

vi alguns helicópteros da polícia aérea surgirem

ruidosamente.

A grande caçada estava começando. Se conseguissem

agarrar-me de novo, meu jogo estaria perdido.

Tive o cuidado de não entrar em contato com as raras

pessoas que se encontravam sobre a fita transportadora.

Escolhera este meio de fuga não tanto por sua rapidez, mas

principalmente porque oferecia uma garantia quase absoluta

contra a descoberta. Evidentemente os passageiros, que se

valiam desse meio de transporte rápido, não se moviam

sobre o mesmo. Quem conseguisse colocar-se sobre a fita

ficava parado, para resistir à pressão do vento. Nem sequer

se arriscava a utilizar a comunicação direta.

Logo depois, desliguei meu espírito. Que procurassem à

vontade. Continuaria invisível enquanto o microcarregador

fornecesse energia.

Prestei muita atenção aos grandes painéis luminosos que

avisavam os passageiros com a necessária antecedência

sobre o lugar onde deveriam sair da fita para encontrar esta

ou aquela estação.

Quando vi à grande distância a inscrição “Campo de

Pouso”, modifiquei meu plano original. Face à reação

surpreendentemente rápida de Gmuna, a penetração na área

do grande espaçoporto, além de perigosa, seria inútil. Se

estivesse no lugar de Kosnow, a esta hora já teria emitido

uma proibição geral de decolagem.

Passei pela ramificação. Meu destino era a grande

estação ferroviária. Os grandes comboios de longa distância

raras vezes eram utilizados pelos viajantes. Não teria

dificuldade em encontrar lugar num vagão de carga.

Sentei, cruzei os braços por cima dos joelhos e ri alto e

alegre para o vento.

A correnteza de ar era tépida. Refrescava muito pouco.

A próxima chuva fora anunciada para a noite seguinte.

Tirei o estojo do bolso e retirei o pequeno projetor

mental. Era uma versão reduzida da arma psicológica

altamente eficiente, cujas emanações eliminavam o

pensamento consciente. O aparelho não era perigoso, nem

prejudicava a saúde. Não pretendia matar nem ferir esses

bárbaros selvagens, mas tão bem-sucedidos, que habitavam

o planeta Terra.

Deram-me um tratamento decente. Uma moça de sua

raça chegara mesmo a apaixonar-se por mim. Por que não

confiavam em mim? As coisas poderiam ser muito mais

simples e os riscos menores. Prometi a mim mesmo que

depois de chegar a Árcon nunca mencionaria a Terra, o

Império Solar ou o nome de Perry Rhodan. Esta palavra de

honra foi dada a mim mesmo segundo o sagrado código de

honra da frota espacial dos arcônidas. Não poderia voltar

atrás, mesmo que mais tarde viesse a desejá-lo. Decidi

justamente fazer esse juramento para evitar que fatores

sentimentais posteriores pudessem demover-me do meu

intento. Estava indissoluvelmente ligado ao mesmo.

Livre da carga das autorrecriminações e com o

pensamento voltado para Marlis Gentner, eu preparei-me

para saltar para a fita mais lenta. Precisava dar certo. Não

poderia esbarrar em ninguém.

Bem à minha frente vi, em letras luminosas menores, a

expressão “Estação de Carga”.

Por certo, a área também seria bloqueada, mas não com

o mesmo cuidado do aeroporto intercontinental. Em

Terrânia, dificilmente havia alguém que usasse as

antiquadas vias férreas.

Page 154: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

154

Minha fuga no trem de carga foi um verdadeiro

martírio. Abri sem hesitar a porta de correr de uma pesada

locomotiva atômica, que recebera o sinal de partida no

momento em que estava chegando à estação. Pouco me

importava a que lugar da Ásia ou da Europa estaria

destinado o trem. A única coisa que me interessava era sair

de Terrânia quanto antes, a fim de escapar à operação de

busca em grande escala.

Exausto, escondi-me no transformador da gigantesca

locomotiva, mas dez minutos após a partida o trem foi

detido. O serviço de defesa agira com uma rapidez

inacreditável.

Dali em diante, eu comecei com o jogo arriscado. Os

policiais empenhados na busca sabiam que teriam de

procurar uma criatura invisível. O problema seria

praticamente insolúvel pelos meios naturais. Por isso, o

trem ficou parado durante duas horas em pleno deserto, até

que chegasse um comando especial com instrumentos de

localização.

O lugar mais seguro para esconder-me continuava a ser

o transformador, onde a corrente de 30 mil volts gerada

pelos reatores seria convertida para a voltagem com que

trabalhava a máquina.

Uma vez que me encontrava muito próximo aos trilhos

condutores de energia, os campos energéticos por eles

gerados superavam bastante as débeis irradiações de meu

defletor de ondas luminosas. Face a isso, a localização

energética seria impossível.

Acontece que tive de pagar por essa vantagem com um

perigo constante para minha vida. Saltitava entre os

condutores reluzentes e, muito excitado, procurava calcular

a que distância poderia saltar um raio que transformaria

meu corpo numa massa carbonizada.

Foram minutos terríveis. A sala de transformadores só

foi submetida a uma busca ligeira.

Depois que a composição partiu, percebi que avançava

cada vez mais pelo desolado deserto do Gobi Central. Os

vagões de carga estavam vazios. Concluí que o trem se

destinava a um lugar em que os mesmos seriam carregados.

As horas foram passando. Desenvolvendo uma

velocidade de 200 km/h, a composição correu

vertiginosamente pela China Ocidental, até que as

montanhas do maciço do Himalaia surgissem à nossa

frente.

A máquina foi ocupada por dois maquinistas novos, mas

isso não representou qualquer alívio para mim. Preferi não

influenciar os homens com o projetor mental para conseguir

ao menos um gole de água e um pouco de alimento. Se

fossem examinados pelos mutantes de Rhodan na estação

de destino, o bloqueio hipnótico não deixaria de ser

constatado. E então já conheceriam o local aproximado em

que eu poderia ser encontrado.

Tive de suportar as horas que se seguiram num estado

de esgotamento total. Atravessamos várias cadeias

montanhosas, até que chegamos à bacia gigantesca do rio

Bramaputra.

O segundo revezamento representou um risco enorme

para mim, pois a máquina voltou a ser revistada. Ao que

parecia, novas ordens haviam chegado de Terrânia.

Quando finalmente entramos na grande estação de carga

de Calcutá, cambaleei ao tanque de água mais próximo,

sem dar atenção aos riscos ligados a esse procedimento.

Dali em diante, o martírio foi diminuindo. No aeroporto

da metrópole indiana, descobri um transportador aéreo

destinado a Telaviv. Desta vez, vi-me obrigado a

influenciar o controlador com o projetor mental, pois

dependia de sua cabine pressurizada. Embora o aparelho

desenvolvesse apenas seis vezes a velocidade do som,

voava a trinta quilômetros de altitude. Se permanecesse nos

compartimentos de carga, eu morreria sufocado.

Em Telaviv, comecei a notar o enfraquecimento

progressivo da capacidade da bateria. Estava na hora de

desligar o pequeno defletor de ondas luminosas.

Por isso, nem saí do aeroporto de Telaviv. Procurei

outra aeronave. Na cantina do pessoal de superfície, pude

saciar a fome que me martirizava.

Peguei um pequeno avião-transporte pertencente a uma

empresa estatal de lubrificantes e cheguei a Trípoli. Aí,

encontrei o aparelho particular de um funcionário libanês

estacionado no aeroporto.

Quando o mesmo chegou num helicóptero de ligação,

deduzi da palestra que travou com o piloto que se

encontrava numa viagem de serviço, pois era esperado em

Casablanca, onde participaria de uma conferência de

técnicos de irrigação. Tratava-se da construção de uma

grande estação de recalque. O resto não me interessava. A

cidade de Casablanca, situada na costa ocidental da África,

era um local muito favorável para a realização do meu

projeto.

Decolamos ao escurecer. Sentei bem ao lado do libanês,

que ficou submetido totalmente à influência do projetor

mental. O piloto também reagira de acordo com os meus

desejos.

Recorri às abundantes provisões da dispensa de bordo

do veículo de luxo para saciar a fome e a sede e preparei-

me para o próximo salto.

As transmissões de rádio e televisão relativas à minha

fuga se sucediam. Limitei-me a ouvir apenas o que os

locutores oficiais tinham a dizer.

Nunca ouvira uma descrição tão exata de minha pessoa.

A televisão terrana chegou mesmo a transmitir séries

inteiras de fotografias, com base nas quais até mesmo uma

pessoa quase cega conseguiria reconhecer-me.

Recorriam a todos os meios para procurar-me, mas do

noticiário depreendia-se sem a menor sombra de dúvida que

haviam perdido minha pista. Agora me felicitava pela

decisão de saltar sobre o trem de carga que partira naquele

momento.

4

Page 155: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

155

Provavelmente os matemáticos do serviço de defesa

calcularam cada segundo. Se não pudessem reconstituir

exatamente meu roteiro de fuga, os dados finais não seriam

corretos. Por isso, a ideia do trem de carga não poderia

ocorrer-lhes.

Os aparelhos de localização supereficientes produziram

um resultado negativo. Ao que tudo indicava, supunham

que ainda me encontrava em Terrânia. Para mim, isso era

mais que conveniente.

— Pousaremos dentro de dez minutos, Sir — disse o

piloto sem que ninguém lhe perguntasse. Dera-lhe a ordem

correspondente por via hipnótica.

Arrumei a cabine, guardei os mantimentos não

consumidos e ordenei aos dois homens que esquecessem

minha presença.

Sob a luz fraca do projetor mental, vi que seus rostos se

tornavam ainda mais apáticos. Acabara de aplicar-lhes um

poderoso bloqueio hipnótico.

O campo de pouso de Casablanca continuava

mergulhado numa escuridão total. Havíamos corrido pela

noite. Passava pouco das duas horas da madrugada,

bastante cedo para que pudesse prosseguir na execução do

meu projeto.

Poucas semanas atrás, quando fizera a primeira

tentativa, escondera o traje pressurizado de profundidade

numa caverna da costa alcantilada. O local ficava perto da

cidade de Tanger, que poderia ser atingida antes do

amanhecer.

Nosso piloto preparou o pouso. Vi-o girar os

propulsores de radiações presos às asas, dirigindo os fluxos

de partículas para baixo.

Tocamos o chão suavemente, como se estivéssemos

num helicóptero, deslizamos alguns metros e paramos. Abri

a porta, saltei e fechei-a atrás de mim, antes que o avião

começasse a deslizar novamente na pista.

Com alguns saltos, desapareci na escuridão. Pouco

depois, descansei atrás de um hangar em que não havia

ninguém.

Bem longe dali o funcionário saiu de um pequeno

aparelho. Vi que um carro o esperava. Estava tudo em

ordem.

Levei uma hora para descobrir um meio de prosseguir

viagem. Uma pessoa do meu tipo não recua diante da

perspectiva de penetrar na cova do leão.

Aproximei-me furtivamente do helicóptero ligeiro da

guarda costeira e esperei até que os dois funcionários

destacados para o patrulhamento aéreo aparecessem.

Quando entraram, já me encontrava no compartimento

de carga. Depois da decolagem, só levei alguns segundos

para submetê-los à influência do projetor mental. O

enrijecimento de seus rostos demonstrava que já não

possuíam vontade própria. Esgueirei-me pela estreita porta

e acomodei-me no banco traseiro.

O vôo levava-nos para o norte. Bem abaixo de nós,

brilhavam as ondas brancas do Atlântico Sul.

— Siga diretamente pela rota de Tanger — ordenei em

voz lacônica. — Se sua estação de controle fizer qualquer

pergunta, diga que notou a presença de alguns veículos

expressos na via expressa litorânea, e que pretende revistá-

los um por um. Entendido?

— Entendido, Sir — disse o piloto.

O tenente, que se encontrava a seu lado, olhava para a

frente, com uma expressão apática no rosto.

— Centro Blanca para patrulha seis, favor responder.

— Patrulha seis, tenente El Habid. Pode falar.

Quando ouvi o som do radiofone, estremeci. Se a

tripulação recebesse ordens definidas, que a obrigassem a

sair da rota por mim desejada, a situação poderia

complicar-se.

— Atenção, patrulha seis — soou a voz forte vinda do

alto-falante. — Voe pela linha da costa e procure um iate

ligeiro que segue a rota de Mechra el Hade. O nome da

embarcação é Almeria, e usa a bandeira espanhola.

Controle a tripulação e procure encontrar a pessoa que está

sendo procurada. Desligo.

— Entendido, centro de Blanca. Seguiremos pela linha

costeira. Desligo.

O oficial da patrulha aérea desligou. Examinei o

reluzente mapa em relevo junto ao painel de instrumentos.

A localidade de Mechra el Hade situava-se entre

Casablanca e Tanger, bem na rota que desejava seguir. Uma

vez que a cidade de Tanger ficava apenas a cerca de 300

quilômetros em linha reta, poderia checar dentro de trinta

minutos.

Transmiti minhas instruções ao piloto. O transformador

do pequeno reator de fusão que ficava atrás de mim

começou a zumbir com mais força. O rotor, que corria em

ponto morto, produziu um matraquear superado pelo

trovejar do propulsor de radiações térmicas.

Voávamos a 600 km/h em direção ao lugar dos meus

sonhos. Não houve nenhum incidente, até que bem à nossa

frente surgissem as luzes da grande cidade de Tanger.

Mandei que o piloto se dirigisse para a praia deserta

situada entre Tanger e o subúrbio de Arcila. Saí do aparelho

ao sul da Via expressa litorânea.

Muito tenso, segui com os olhos a máquina que se

afastava, até vê-la desaparecer na escuridão. Era possível

que viessem, a surgir complicações, se o chefe da patrulha

não conseguisse explicar por que resolvera voar até Tanger.

Até lá teria que manter-me num lugar onde em hipótese

alguma pudesse ser encontrado.

Enquanto pensava assim, meu supercérebro transmitiu

uma mensagem formada por uma única ideia.

“Cansado, seu idiota!”

Era claro que estava cansado, mesmo exausto. Nos

esconderijos em que me encontrara até então, poucas vezes

consegui dormir de verdade. Teria de passar o dia na

caverna bem camuflada e aguardar a noite seguinte para

prosseguir na execução do meu plano. Se o destino

trabalhasse contra mim, os soldados da patrulha, por mim

influenciados, colocariam a defesa solar na minha pista. No

momento, não sabia como faria nesse caso para voar no

Page 156: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

156

meu traje especial pelo mar aberto até os Açores. Não se

devia subestimar a raça ativa dos terranos.

Cheguei ao esconderijo pouco antes do amanhecer. A

caverna ficava no paredão entrecortado e batido pelo sol.

Ninguém conseguiria vê-lo de cima.

Verifiquei os equipamentos cuidadosamente guardados,

bebi e comi alguma coisa e deitei-me para dormir.

Meu traje pressurizado de profundidade estava em

perfeita ordem, e também o equipamento de voo. Antes de

mergulhar num sono pesado, entrecortado por sonhos

terríveis, voltei a refletir sobre meu projeto.

Ninguém sabia da existência de minha cúpula blindada,

situada no fundo do mar. As máquinas e instrumentos ali

instalados permitiam uma transformação completa de

minha pessoa. Era um fator que o serviço de defesa não

poderia incluir em seus planos.

Teria que descobrir um astronauta terrano que se

assemelhasse a mim na estatura e na expressão do rosto.

Quando este homem se encontrasse na minha base, seria

relativamente fácil imitar seu corpo. Depois ocuparia seu

lugar de tripulante num veículo espacial destinado a Vênus.

Ao pensar no planeta Vênus, tive a impressão de ver

Marlis Gentner à minha frente. Disse que me esperaria em

Port Vênus.

No grande espaçoporto do segundo planeta do sistema

solar, costumavam ser despachadas as naves intergalácticas.

Ali talvez conseguisse encontrar um meio de viajar para o

sistema de Vega. Quando me encontrasse fora da área

submetida à influência imediata da Terra, encontraria um

meio de prosseguir.

No sistema de Vega estavam estacionadas unidades da

frota espacial solar. Sem dúvida conseguiria apoderar-me

de uma Gazela de velocidade superior à da luz, que me

levaria para casa.

Para casa! A ideia de Árcon, do Grande Árcon, me

causou um calafrio. O que poderia fazer se meu povo

venerando realmente estivesse degenerado?

“Chamar Rhodan!”, disse meu supercérebro. “Voltar à

Terra.”

Bastante contrariado, virei-me para o outro lado e fechei

os olhos com força. O setor lógico de meu ser poderia

adivinhar à vontade. Se pretendesse voltar à Terra, seria

absurdo prosseguir na fuga.

* * *

A noite estava escura e não havia uma única estrela no

céu. Regulei o aparelho de absorção de gravidade para 0,1

por cento do valor terrano.

O campo energético pressurizado de alta potência de

meu traje de profundidade iluminou-se assim que entrou em

contato com as águas escuras e encapeladas do Atlântico.

Meu voo decorrera sem o menor incidente. Mantive-me

bem perto da superfície da água, senão seria praticamente

impossível localizar-me por meio de aparelho.

No momento em que mergulhei no mar, em algum

ponto ao sul da ilha de São Miguel, meu goniômetro

registrou o impacto de impulsos de radar transmitidos em

onda curta, que provavelmente estariam sendo emitidos por

uma aeronave que se deslocava em grande altitude. Quando

desapareci nas águas, o chiado agudo cessou.

Deixei-me baixar com uma força de 3 G, até que o

fundo entrecortado do mar surgisse embaixo de mim.

Aqui era tudo silêncio e solidão. Os únicos ruídos que

perturbavam o ambiente solene eram o zumbido do meu

transformador e os estalidos agudos do projetor. A pressão

do vibrador de ondas me fez deslizar sobre as grandes

reentrâncias do fosso dos Açores, que começava neste

ponto. Fiz a antena submarina emitir o primeiro sinal de

identificação.

Até então, a tripulação de robôs de minha cúpula

mostrara-se infalível. E foi também o que aconteceu desta

vez. Depois de emitido o terceiro sinal, ouvi os sons

inconfundíveis dos raios vetores, que indicavam a direção

exata. Dentro de poucos minutos, descobri o fosso profundo

em que estava escondida minha edificação de aço. Desci,

parei numa saliência da encosta e contemplei a montanha

de lama que ocultava a forma semiesférica.

A luz infravermelha do meu holofote de capacete voltou

a atrair os peixes de formas bizarras que habitavam as

águas profundas, e que desde longos tempos haviam sido

meus únicos amigos.

Esperei até que o raio energético deixasse livre a

pequena comporta. A lama levantada pela turbulência

assentou devagar. Quando consegui enxergar um pouco

melhor, percorri as poucas centenas de metros que me

separavam da escotilha aberta.

Antes de entrar na câmara da comporta, voltei a olhar

em torno. Encontrava-me a 2.852 metros de profundidade.

Aqui só poderia ser descoberto por um submarino, mas

estes não costumavam arriscar-se a entrar nas estreitas

fendas do fundo do mar.

Há poucos meses alguém me havia confundido com um

peixe. Hoje o fato parece engraçado, mas na época foi uma

experiência terrível.

Entrei na comporta, fechei a pesada escotilha blindada

de aço arcônida e aguardei a operação de esvaziamento.

Acima de minha cabeça, as bombas potentes começaram a

trabalhar ruidosamente. Logo depois, a água altamente

pressurizada foi recalcada para fora da comporta.

O uivo produzido pelo ar que penetrava no recinto me

fez fechar os olhos, muito satisfeito. Só agora me

encontrava em segurança. Só agora poderia realmente

iniciar a fuga.

O campo energético pressurizado, que me protegera

contra a pressão da água, foi desativado automaticamente.

Uma luz forte penetrou pela escotilha interna que se abria.

Como sempre, o rosto de bioplástico de Rico exibia um

sorriso gentil. Numa atitude elegante e ágil, meu criado

robotizado penetrou na comporta.

— Seja bem-vindo, senhor — disse a voz metálica, à

qual não conseguíramos conferir uma modulação humana.

O fato de subitamente ser chamado de senhor deixou-

Page 157: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

157

me emocionado. Tinha a impressão de que de uma hora

para outra penetrara num mundo diferente. E era isso

mesmo, conforme meu sexto sentido lógico avisou

imediatamente.

Nessa cúpula dormira muitos anos. Era tão velha quanto

boa parte da história da Humanidade.

Estava prestes a revelar meu grande segredo perante

minha própria mente depois que me mantivera calado por

semanas a fio, suportando o martírio íntimo dos inquéritos

psicológicos.

Rico ajudou-me a tirar o desajeitado traje protetor.

— Cansado, senhor? — perguntou. A voz devia soar

preocupada. Mas, mesmo tratando-se de uma máquina de

alta precisão, o robô não era capaz de dar expressão real a

esse tipo de emoção.

— Não — respondi em tom áspero.

Rico sorriu. Ninguém conseguiria ofendê-lo.

— Preparei um banho, senhor.

— Espere um pouco.

Com o corpo ereto desci pelo corredor estreito, tomei o

elevador antigravitacional e subi à cúpula abobadada. Parei

diante da porta de aço pintada de vermelho.

Rico não disse mais nada. Calculara que estava

dominado por emoções que um robô não conseguiria

compreender.

Atrás da porta vermelha ficava meu museu particular.

Seu valor era muito superior ao de um lugar destinado à

guarda de objetos antigos. Até então só subira para lá

quando um estado de comoção psíquica me obrigasse a

tanto.

Com as mãos, acionei a fechadura de impulsos. A

escotilha abriu-se silenciosamente. A luz indireta veio do

teto.

A passos hesitantes penetrei na grande sala, separada

por paredes internas.

Ali estavam depositadas as testemunhas mudas do meu

passado, que tanto interessariam a Allan D. Mercant e que

simplesmente resolvi omitir.

Parei diante da grande espada afiada de ambos os lados,

que pertencera a Carlos, o Corajoso, da Borgonha. Num

gesto pensativo, pesei-a com a mão. Certa noite, quando o

duque se encontrava na tenda de campanha, martirizado

pelas dores pedira-me que lhe desse o golpe de misericórdia

com essa arma.

Minha intenção era operá-lo, embora suas úlceras de

estômago já se tivessem transformado num câncer. No dia

seguinte, Carlos, o Corajoso, tombou em combate. Vi os

confederados embriagados queimarem a tenda majestosa.

Prossegui, mergulhado em recordações. Não havia

ninguém neste planeta que estivesse tão bem informado

sobre os inúmeros segredos do passado. E ninguém

conhecia melhor as falsificações da história. Não havia

quem soubesse dizer tão bem quanto eu por que o príncipe

Eugênio conseguira infligir uma derrota tão fulminante aos

turcos.

O chapéu de Wallenstein com o penacho surgiu à minha

frente. Bem ao lado do mesmo estava o trabuco que

Colombo disparara.

Mais adiante encontrei a armadura de Ricardo, Coração

de Leão. Certa vez, dissera que eu era seu vassalo mais fiel,

e me prometera uma herdade na Inglaterra.

Sem querer, sorri ao descobrir a pequena luva de ferro.

Joana d’Arc havia usado a mesma quando juntos tomamos

de assalto à fortaleza de Orleans.

Fui mergulhando no passado, à medida que andava pela

sala repleta de objetos da história. Sempre gostara de topar

repentinamente com uma testemunha de tempos idos. Não

apreciava a ordem rigorosa. Preferia ser surpreendido.

Ali estava o canhão de tiro rápido, primitivo mas

eficiente, que construíra juntamente com Leonardo da

Vinci. Considerava-o um homem muito importante, motivo

por que lhe ensinei uma porção de coisas.

Bem ao lado do mesmo, estava o Colt 44 da marinha,

cuja coronha usara para abater o assassino de Abraham

Lincoln, infelizmente com um segundo de atraso.

Enquanto caminhava entre os objetos, parecia estar

mergulhado num sonho.

De repente, Rico arrastou-me de volta para a realidade

áspera.

— O cérebro o aguarda senhor.

Caminhando na ponta dos pés, abandonei a sala do

passado. Lá fora, junto da porta vermelha, dei testemunho

de mim mesmo.

Não; nunca fiz nada que pudesse prejudicar a

Humanidade. Sempre me empenhei em estimular seu

desenvolvimento científico e tecnológico, que um dia a

levaria a dominar a navegação espacial.

Naquele tempo, já tinha o desejo de voltar para casa.

Mas, quando um homem chamado Perry Rhodan deu início

à navegação espacial, fui idiota a ponto de fugir

apressadamente para minha fortaleza submarina, a fim de

escapar a uma guerra nuclear que não aconteceu. Dessa

forma, dormi durante a fase mais importante da evolução

dos pequenos bárbaros.

Dali a dez minutos eu me vi diante da tela diagramada

do computador robotizado da cúpula, que aguardava minha

programação.

— Preciso de uma construção semiorgânica encerrada

num corpo, que se pareça com um esqueleto humano. Num

exame de raios X, deverá ter o aspecto de um verdadeiro

homem. É necessário embutir refletores em forma de

coração e pulmão, a fim de transmitir a imagem perfeita do

organismo humano. Será possível realizar uma construção

desse tipo?

O grande autômato começou a zumbir. Cinco gerações

de técnicos haviam trabalhado em sua construção.

— Solicito dados mais precisos, senhor — respondeu o

computador.

Com esta resposta fiquei sabendo que minha própria

excursão à superfície já não correria o risco de transformar-

se num fracasso em virtude da falta de uma simples

fotografia de raios X.

Page 158: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

158

Nevada Space Port, era este o nome do maior

espaçoporto dos dois continentes americanos. Dali partiam

as espaçonaves destinadas às luas e aos planetas do sistema

solar.

As enormes naves de longo curso, cujos

hiperpropulsores lhes permitiam vencer os anos-luz em

poucos segundos, decolavam em noventa e nove por cento

dos casos de um espaçoporto ainda maior: Terrânia.

De qualquer maneira, os Nevada Fields, como também

costumavam ser designados, tinham sua história.

Foi dali que Perry Rhodan decolou em 19 de junho de

1.971, para realizar a primeira viagem tripulada à Lua, onde

viria a descobrir a tripulação de uma nave exploradora dos

arcônidas, que realizara um pouso de emergência.

Em atitude pensativa, contemplei o foguete original com

o qual Rhodan arriscara, há sessenta e nove anos, o grande

salto. Pelo que diziam antigamente a Stardust ficara

depositada no deserto de Gobi, até que Rhodan mandou

levá-la ao lugar onde seus primitivos propulsores atômicos

rugiram pela primeira vez.

Não era o único que se encontrava no grande museu de

astronáutica de Nevada Fields: cerca de duzentos

emigrantes deixariam a Terra com destino a Vênus.

Olhei discretamente em torno. Entrara em meio a um

verdadeiro enxame de pessoas. Depois das investigações

cautelosas por mim realizadas, resolvi desistir da ideia

primitiva de “imitar” um piloto de nave espacial.

Seria muito difícil enganar os numerosos amigos e

conhecidos de um homem desse tipo. Lembrei-me dos

colonos que diariamente partiam em direção ao espaço.

Aproximei-me de um indivíduo louro e robusto que,

quando muito, contaria trinta e oito anos de idade. Tinha a

mesma compleição que eu. Uma investigação mais detida

revelou que era o sexto filho de um lavrador da Alemanha

do Norte. Seu nome era Hinrich Volkmar. Viera sozinho,

depois de formular uma série de pedidos de licença para

emigrar.

Hinrich era meu objetivo. Naquele momento,

encontrava-se em um profundo sono biológico nas

profundezas do mar, bem velado pelos meus robôs.

Ordenara a Rico que dali a um ano, o mais tardar, o

acordasse e o largasse na Espanha, depois de entregar-lhe

pedras preciosas no valor de cem mil solares.

Além disso, elaborei um relatório escrito destinado a

Perry Rhodan e ao Serviço Solar de Segurança, que poderia

ser apresentado por Hinrich, depois que o mesmo fosse

acordado.

Ninguém poderia acusar o jovem, uma vez que agira

sob a influência de meu projetor mental. Fizera tudo para

que não tivesse maiores problemas, mesmo que eu morresse

de uma hora para outra.

Depois do interrogatório hipnótico realizado no interior

de minha cúpula, armazenei seus dados individuais em

minha memória fotográfica. Além disso, tinha em mãos

seus documentos, inclusive a licença de emigração, que já

me haviam permitido penetrar na área reservada.

Não tivera de mascarar-me muito. Meus robôs

especializados apenas realizaram alguns transplantes de

bioplástico e removeram a coloração avermelhada dos meus

olhos.

De resto nada havia sido mudado em meu corpo. Meu

inglês tinha a tonalidade de um dialeto alemão, e meu

comportamento era descontraído, franco e ingênuo, motivo

por que até então ninguém desconfiara de mim.

A bagagem de Hinrich consistia numa mochila elástica,

que continha exatamente cinquenta quilos de objetos de uso

pessoal. Era o máximo que os emigrantes poderiam levar,

para não sobrecarregar as naves. Pelo que dizia, no segundo

planeta solar estava tudo preparado para receber os colonos

de Vênus.

Se minha ideia a respeito de Rhodan fosse correta, Perry

realmente deveria ter tomado todas as providências. No

contrato de Hinrich, lia-se que o Império Solar lhe

forneceria gratuitamente uma área de cinquenta hectares e

as máquinas necessárias ao desmatamento, ao preparo do

solo e ao plantio.

Rhodan elaborara um programa social de alto alcance.

A instalação de uma fazenda em Vênus, realizada por um

emigrante terrano, custava cerca de 150 mil solares ao

governo.

Há três dias transformara-se num homem jovem de

cabelos louros, lábios risonhos e uma grande saudade no

coração. Queria sair para o espaço, dar as costas à mãe-terra

e dedicar-se ao trabalho, a fim de que um belo dia pudesse

escrever aos seus: consegui; estou procurando uma

companheira para minha vida. Quanto dinheiro devo

mandar?

Era assim que pensava o verdadeiro Hinrich Volkmar, e

também era assim que pensavam os outros emigrantes

vindos de todos os quadrantes. A nave transportadora

deveria decolar ainda hoje.

Estávamos no dia 13 de julho de 2.040. Pude realizar

um trabalho rápido, mas meticuloso. Menos de trinta dias se

haviam passado a partir de minha fuga de Terrânia. A ação

de busca ainda prosseguia.

Acontece que, ao que tudo indicava, haviam

subestimado os meios de que dispunha. Naquele momento,

felicitava-me a mim mesmo pelo silêncio obstinado

mantido até então, e que impedira a descoberta da cúpula

submarina.

Na opinião do serviço de defesa, devia ser totalmente

impossível que o fugitivo escapasse à rede armada para sua

captura. E seria isso mesmo, se não possuísse os aparelhos

eficientíssimos, cuja existência era ignorada por meus

perseguidores.

No momento em que cheguei a Nevada Fields,

disfarçado em Hinrich, foi realizado um exame de raios X.

5

Page 159: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

159

Qualquer pessoa só poderia penetrar na área reservada

depois de passar pelas objetivas.

Evidentemente recorriam a essa medida para neutralizar

qualquer ação por mim concebida. O esqueleto de

bioplástico, destinado a enganar o médico sobre a

verdadeira constituição de minha ossatura, foi reconhecido

como genuíno.

Dessa forma, a partir do dia 11 de julho de 2.040

portava o distintivo luminoso de cerca de dez centímetros,

no qual estavam gravados em relevo os dados relativos à

minha pessoa. Nos fios magnéticos embutidos, estava

armazenada uma série de dados adicionais bem codificados

sob a forma de impulsos, relativos à minha pessoa e às

provas por mim realizadas. Estava tudo na mais perfeita

ordem.

Recebi o número 211. A nave espacial que me levaria a

Vênus juntamente com outros colonos era a Glória. Estava

guardada num edifício alongado, que os funcionários do

serviço de emigração, num acesso de humor feroz, haviam

batizado com o nome de casa dos cheiros. O odor

penetrante dos desinfetantes, usados numa profusão

exagerada, impregnava minhas vestes, feitas de fio sintético

resistente e confortável, mas pouco vistoso.

Os colonos destinados a Vênus eram muito bem

equipados, porém não se fazia questão de que fossem

elegantes. O trabalho frio do setor de colonização não tinha

lugar para ganhos extras.

Já conhecia a nave que me transportaria. Era um

pequeno veículo esférico, de apenas cinquenta metros de

diâmetro, pertencente à série planetária. Não possuía armas

e não estava equipada com propulsores que lhe permitissem

desenvolver velocidade superior à da luz. Destinava-se

exclusivamente ao transporte entre os mundos do sistema

solar.

O voo até Vênus duraria oito horas. Era um tempo

bastante longo, ainda mais que as poucas cabines destinadas

aos emigrantes só continham filas de poltronas muito

apertadas. As camas ou outros tipos de instalações

confortáveis foram dispensados. Na opinião das

autoridades, qualquer pessoa poderia permanecer sentada

durante oito horas.

A Glória, uma nave de mais de trinta anos, viajava

constantemente entre Vênus e Terra e vice-versa. Todo

segundo dia de cada mês, decolava com uma carga humana

destinada a Vênus, além do quê, transportava boa

quantidade de mercadorias de todas as espécies.

Os tripulantes dessas naves não gozavam de prestígio

muito elevado. Os astronautas altamente qualificados dos

veículos espaciais, que desenvolviam velocidade superior à

da luz, olhavam-nos de cima para baixo.

Os vaivens planetários ocupavam aproximadamente o

mesmo lugar dos antigos navios fluviais, que nunca se

comparariam a uma embarcação de alto-mar.

Diverti-me a valer com a enfatização da diferença.

Neste ponto, os terranos não eram diferentes dos indivíduos

de meu povo. E, há menos de noventa e nove anos, esses

bárbaros encantadores se rejubilaram de admiração quando

um Perry Rhodan conseguiu realizar o salto ridículo até a

lua terrana. Não havia como negar que evoluíram muito

depressa. A essa altura, os homens que pilotavam as

hipernaves de longo curso sentiam-se indignados quando se

encontravam com uma dessas lesmas planetárias.

Esqueciam-se completamente de que essas lesmas sempre

percorriam o espaço a uma velocidade apenas dez por cento

inferior à da luz.

Ao meio-dia em ponto, fui ao grande refeitório coletivo,

repleto de emigrantes que riam e discutiam animadamente.

Procurei um canto afastado, devorei um enorme bife com

vagens e batatas fritas e observei com cuidado os arredores.

Eram todos iguais, esses jovens para quem Vênus, o

planeta das selvas, continuava a ser um paraíso, apesar de

todas as informações em contrário que deveriam ter

recebido.

Vi famílias inteiras dispostas a arriscar o grande salto.

Sonhavam com a aventura e a riqueza, com a

independência e com grandes festas na borda da mata.

Ainda não conheciam as picadas dos mosquitos

venusianos nem os sáurios vorazes que, com umas poucas

pisadas, destruíam suas culturas. E não faziam uma idéia

adequada dos pequenos répteis venenosos e da temperatura

de estufa reinante na superfície do planeta.

Pelas 12:30 h os alto-falantes soaram.

— Colonos destinados a Vênus, voo 118. Apresentem-

se no portão sul. Levem a bagagem e mantenham os

documentos em suas mãos. Apressem-se.

Era uma chamada pouco convencional. Cerca de

duzentas e cinquenta pessoas levantaram-se das cadeiras

duras de plástico. Alguns correram diretamente para o

portão norte, onde os funcionários apáticos e os pilotos

sorridentes lhes apontavam o caminho correto.

Foi um berreiro e uma correria; até se tinha a impressão

de que o mundo estava para acabar. Resolvi entrar na

confusão. Dali a alguns segundos, também estava gritando.

Devo portar-me como um emigrante, era este o meu lema.

Um comando da policia recebeu-nos sob o sol

escaldante do verão.

O sol provocou-me uma sensação muito desagradável;

nos homens do serviço de segurança não foi tanto. Atrás

deles, encontravam-se os caminhões com as grandes

plataformas de carga. Ao que tudo indicava, seríamos

submetidos a outro controle antes que nos levassem à nave

transportadora.

As mulheres e crianças tiveram permissão para subir

imediatamente aos carros. Apenas os homens enfileiraram-

se para esperar. Encontrava-me no meio da fila formada por

emigrantes nervosos. Os homens gritavam de impaciência.

Tudo iria recomeçar.

Meu equipamento especial, um volume muito reduzido,

fora escondido bem nos fundos da mochila padronizada.

Ainda que me obrigassem a abri-la, teriam que procurar

muito para encontrar alguma coisa. Até mesmo o precioso

ativador celular fora retirado juntamente com a corrente.

Page 160: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

160

Não poderia demorar muito em pendurá-lo ao pescoço, pois

do contrário haveria problemas.

— O que houve? — perguntou um homem baixo e

moreno. Virei-me e dei de ombros.

Era um mexicano, que queria fugir da Terra com sua

família de cinco pessoas. Seu nome era Miguel Hosta. Não

era a primeira vez que nos encontrávamos. Talvez fosse

recomendável entreter uma conversa com esse terrano cheio

de vida.

— Não faço a menor ideia — disse com uma risada. —

Apenas sei que não deixarei que me mandem de volta. Pelo

que dizem, há pouco tempo retiraram alguém da nave,

pouco antes da decolagem. O sujeito tinha um pouco de

febre.

— Santo Deus! — gemeu o moreno num assomo de

desespero. — Acho que também estou com febre. Será que

vão medir?

Os homens que se encontravam à minha frente e atrás

de mim soltaram uma gargalhada. As piadas e observações

dirigidas ao policial que realizava o exame tornavam-se

mordazes, à medida que nos aproximávamos da mesa

improvisada.

O que mais me incomodava era o aparelho de raios X

sobre rodas que, segundo tudo indicava, realizava um

exame “automático” de cada emigrante. Ao lado da

respectiva tela, havia um médico do serviço de defesa.

Assim que fazia um movimento relaxado com a mão, o

colono que acabara de ser submetido ao controle poderia

dirigir-se ao carro. Evidentemente o pretenso exame

médico era um absurdo. Não havia mais nenhuma lista a

elaborar.

Estavam procurando um almirante arcônida que

evidentemente não poderia ser dotado de um esqueleto

humano.

Meus olhos começaram a ficar úmidos, o que provava

meu nervosismo. Se o médico que se encontrava junto ao

aparelho prestasse muita atenção, talvez pudesse notar a

diferença mínima no reflexo dos órgãos embutidos em meu

corpo.

“Conserve a calma!”, disse meu sexto sentido. Naquele

momento, cheguei a odiar o setor de lógica do meu cérebro.

O homem à minha frente era um terrano gigantesco do

Estado Federal da África. Colocou-se diante do aparelho

com as pernas bem abertas, abriu a blusa, na altura do peito

e pôs o dedo sobre o coração.

— Aqui, soldados! — berrou a plenos pulmões.

O médico estremeceu, enquanto um sorriso largo cobriu

o rosto do tenente sentado atrás da mesa. E eu perguntei-me

se aquele rapaz de pele escura já teria ouvido falar nos onze

oficiais de Schill fuzilados pelos soldados de Napoleão.

O médico fez um gesto para que se calasse. O gigante,

que ria às gargalhadas, correu em direção ao carro. Depois

chegou minha vez.

— O atestado de vacina, por favor — disse o

funcionário com a voz cansada. Quando levantou os olhos,

acordou de um instante para o outro. Pôs a mão na arma.

Lançou-me um olhar penetrante. Mas finalmente uma

expressão de insegurança surgiu em seus olhos; virou-se

para seus soldados.

— Nome? — perguntou em tom áspero.

Lancei-lhe um olhar ingênuo.

— Hinrich Volkmar, senhor tenente — respondi em voz

trovejante. — Sou filho de Pieter Volkmar, inspetor de

diques.

O jovem oficial voltou a sentar. Sem dizer uma palavra

apontou com o polegar em direção ao aparelho de raios X.

Sabia perfeitamente que minha radiografia já fora tirada.

— É uma semelhança surpreendente, Sir — disse um

dos soldados em tom apressado.

Coloquei-me diante da tela e tirei a mochila. Desta vez

o médico examinou com maior atenção a imagem projetada

pelo aparelho.

— Aí estão as costelas, Tommey; não existe a menor

dúvida — disse com a garganta ressequida. — Vamos

acabar logo com isto, senão terei uma insolação.

Ainda bem que o homem sofria tanto com o calor. Não

havia examinado a radioscopia com a atenção devida.

O tenente lançou mais um olhar perscrutador para

minha pessoa, mas, por fim, soltou um suspiro e colocou o

carimbo no formulário.

— Aqui. Leve isto e guarde bem. O senhor se parece

com uma pessoa com a qual gostaríamos de ter uma

conversa. Vamos logo; o próximo.

Esperei pelo pequeno mexicano, que se sentiu muito

satisfeito por passar pelo exame.

O terrano de pele negra puxou-nos para cima da

plataforma do veículo. Dirigindo-se a mim, riu e exclamou:

— Ei, o que queriam de você, meu caro? Venha para

junto do meu coração.

Ao que parecia, o gigante parecia preocupar-se

constantemente com o coração. Apertou-me nos braços e

empurrou-me para um lugar vazio. Miguel Hosta espremeu-

se para caber a meu lado.

“São uns sujeitos formidáveis!”, disse meu sexto

sentido. Desta vez, concordei com o setor lógico de minha

mente. Com gente desse tipo, Rhodan poderia

perfeitamente construir um império estelar.

— Ainda tenho dois tabletes de chocolate no bolso —

disse. — Alguém quer um pedaço? Perdi o apetite. Estão

procurando uma pessoa que se parece comigo.

Miguel recusou com um gesto de horror. O homem de

pele escura, cujo nome era Embros Tcheda, aceitou. Sorriu

e disse:

— Quer saber de uma coisa, meu caro? Isso não devia

preocupá-lo. Quando estivermos em Vênus, começaremos

vida nova. Você entende de economia agrícola? O que

pretende plantar?

— Ainda não resolvi. Entendo de EA. Você não?

Embros fez um gesto negativo e uma careta.

— Muito bem; nesse caso devíamos tornar-nos vizinhos

— disse. — Não consigo lidar com as bactérias do solo.

Você entende do assunto?

Page 161: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

161

— Em bactérias, sou uma cobra. Farei as análises e você

dirá o que devemos plantar.

Tive de esforçar-me para resistir ao seu vigoroso aperto

de mão. Naquele momento, indaguei a mim mesmo por que

estava arriscando a vida para chegar em casa.

Nas veias dessa raça humana jovem corria sangue

arcônida. Eu mesmo autorizara vários casamentos entre

meus subordinados e mulheres terranas. Afinal, onde era

meu lar?

Port Vênus era uma cidade supermoderna, cuja

arquitetura adaptava-se às exigências desse mundo

escaldante fustigado pelas tormentas.

A rotação de Vênus em tomo de seu eixo polar era

bastante lenta. A extensa zona de penumbra, que ficava no

limite entre a face diurna e a noturna, sofria constantemente

os efeitos de terríveis furacões. Nos momentos em que as

povoações humanas se encontravam na zona de turbulência,

as ruas transformavam-se em tubos de compressão, nos

quais as fúrias desencadeadas tocavam um concerto

infernal.

Não era nada simples morar nesse planeta, quanto mais

estabelecer-se comercialmente. Quando a camada de

nuvens do segundo mundo solar se abria para despejar a

chuva, a água descia abruptamente, como se estivesse

sendo despejada por baldes. Quem não encontrasse

imediatamente uma elevação poderia ser arrastado nas

torrentes.

Port Vênus ficava num extenso platô de rocha, situado

na costa elevada do oceano equatorial, Era nessa área que

talvez se localizasse o centro de computação que meu povo

construíra há muito tempo no planeta Vênus.

Rhodan apossara-se da gigantesca máquina e

controlava-lhe o funcionamento, embora de direito isso não

lhe coubesse.

Naquele momento, estaria disposto a conceder-lhe

autorização a posteriori. Afinal, fizera alguma coisa naquele

mundo selvático.

Cerca de oitocentos metros abaixo do platô começava a

mata escaldante e infestada de febres. Não era de

surpreender que o Instituto de Doenças Cósmicas

Infecciosas, ocupasse o maior e o mais importante dos

edifícios da cidade. Aqui se travava uma luta encarniçada

contra a natureza poderosa e cruel.

Quase todas as semanas descobriam-se doenças novas,

ainda desconhecidas, e geralmente contagiosas. Os colonos

vindos comigo haviam recebido mais de trinta vacinas antes

de partirem da Terra.

Minha imunidade era quase completa, pois me

abastecera com os soros arcônidas.

Fazia cinco dias que a Glória penetrara na densa

atmosfera venusiana, com os jatos chamejantes. O

espaçoporto de Port Vênus ficava a apenas cinqüenta

metros acima do nível do mar. Esse dado nos revelou desde

logo as verdadeiras condições reinantes em Vênus.

Embros Tcheda, que fez questão de ser o primeiro a sair

da nave, por pouco não morre afogado nas torrentes de água

despejadas do céu. Dentro de poucos segundos, o extenso

espaçoporto assumiu o aspecto de um rio caudaloso.

Com grande dificuldade conseguimos agarrar Embros.

As águas turbilhonantes quase o arrastaram para perto dos

jatos incandescentes de uma nave de longo curso que estava

de partida.

Foi esta a primeira má impressão. Dali a dez minutos, o

céu assumiu o aspecto “límpido” que era uma característica

de Vênus. Raras vezes a camada de nuvens compactas

permitia que se visse o sol.

Os vapores quentes, que subiam das placas de plástico

blindado do revestimento do espaçoporto, deixavam os

homens deprimidos. Até parecia que nos encontrávamos

numa grande lavanderia.

Quando saímos da comporta constatamos que a

temperatura era de exatamente 53,4 graus centígrados.

Embora as pessoas que se encontravam ali fossem

superselecionadas e tivessem passado por centenas de

testes, duas mulheres ficaram inconscientes. O calor era

suportável, mas não o elevado teor de umidade do ar. Era

ele que tornava o clima mortífero.

Na linha do horizonte, via-se a mata virgem. Já a

conhecia de tempos idos, por isso não me envolvi nas

mesmas ilusões dos colonos.

Dali a duas horas, uma frota de potentes helicópteros

levou-nos a Port Vênus. A cidade ficava 850 metros acima

do nível do mar. Acontece que o extenso platô de rocha

onde fora construída não oferecia espaço para o porto

espacial.

O exame dos nossos documentos foi uma cerimônia

enervante. Altos funcionários e oficiais da selva disseram

palavras que ora pareciam patéticas, ora duras. Falava-se

constantemente em doenças, feras, répteis venenosos,

preparo do solo e condições climáticas. Meus amigos

6

Page 162: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

162

vindos pela velha Glória nem sabiam o que os esperava.

Hoje recebi licença pela primeira vez. Logo após a

minha chegada escrevera algumas linhas, confiando-as ao

correio de Vênus que, segundo tudo indicava, funcionava

muito bem.

Por uma questão de cautela, expedi a carta para a posta-

restante. Se Marlis Gentner já tivesse chegado,

provavelmente iria todos os dias à agência dos correios.

Fiquei numa espera ansiosa até poucas horas atrás,

quando a notícia me foi entregue em mãos.

Meu velho amigo Gunter Viesspahn, que chegara a

Vênus antes de mim, convidou-me para dar um giro em

Port Vênus.

No momento em que a carta me foi entregue, um

sargento do serviço de segurança pediu esclarecimento

sobre a origem da ligação.

Mostrei-lhe a carta. Minha explicação, que falava num

amigo de escola, revelara-se bem plausível. Era bem

possível que, por aqui, houvesse um conhecido que

imigrara antes de mim.

Encontrava-me no monotrilho que ligava a sede da

administração do espaçoporto com o centro da cidade.

Mesmo com o aparelho de ar condicionado funcionando

perfeitamente, comecei a transpirar. O esqueleto de

bioplástico colado à pele atrapalhava a transpiração. Já

estava na hora de livrar-me desse produto de minha oficina

robotizada, pois não voltaria a ser submetido a um exame

de raios X.

Meu sexto sentido prevenia-me sempre quanto ao

sargento excessivamente curioso do serviço de segurança.

Por que teria demonstrado tamanho interesse por uma carta

inofensiva?

Teria de descobrir quanto antes se a operação de busca

que visava minha pessoa também se estendia a Vênus. Era

bem possível que, após a decolagem da Glória, o oficial

incumbido do controle em Nevada Space Port ainda

andasse desconfiado. Talvez tivesse expedido um aviso

pelo rádio.

Interrompi minhas reflexões angustiantes. Se Marlis

houvesse realizado um trabalho bem feito, não teria motivo

para preocupações. Poderia ir para a selva, como colono, a

fim de aguardar uma oportunidade favorável para a fuga.

Talvez conseguisse encontrar em Vênus uma Gazela capaz

de desenvolver velocidade superior à da luz, e esta me

levaria ao sistema de Árcon. O raio de ação dos modelos

mais recentes desse tipo de nave era limitado

exclusivamente pela necessidade de revisão periódica dos

propulsores.

Saí do metrô, subindo pela escada rolante. Poucas

vezes, vira reunidos no mesmo lugar terranos com vestes

tão diferentes.

A Praça Tomisenkow, cujo nome homenageava um

comandante russo de divisão que há muitos anos procurara

conquistar o planeta para sua pátria, era o centro de Port

Vênus.

Aqui se situavam os edifícios amplos e resistentes que

abrigavam o governo colonial venusiano. A rua Nova

Iorque praticamente dividia a cidade. Nela ficavam os

escritórios e as lojas.

Neste mundo quente e úmido, podia-se comprar

qualquer coisa. Por muito tempo acreditara-se que sua

atmosfera não continha oxigênio. Todavia, conseguia-se

respirar muito bem no segundo planeta solar, que parecia

esconder-se da estrela-mãe sob uma espessa camada de

nuvens.

Junto à plataforma houve uma confusão. Dois sujeitos

barbudos e pálidos, que há anos não viam um raio de sol,

brigavam por uma questão fútil.

A intervenção dos policiais, que acorreram

imediatamente, foi bastante rude. Ameaçaram com os fuzis

de choques elétricos e fizeram dois disparos de advertência

para o alto. Os dois elementos logo se acalmaram.

Os habitantes do planeta pareciam ser rudes; era uma

população pioneira, que sabia lidar com as armas. Vi

muitos colonos caminharem pelas ruas com os radiadores

energéticos a tiracolo. Ao lembrar-me do ambiente hostil

que ameaçava a cidade, compreendi por que os visitantes

andavam tão bem armados.

Peguei um táxi de modelo antigo movido a turbina de

gás, que me tirou da confusão, levando-me para uma área

mais tranquila. Procurei gravar as ruas que atravessamos

antes de pararmos diante do edifício imponente do Museu

Terrano.

Ao descer, apalpei os objetos que compunham meu

equipamento especial. Carregava tudo aquilo que antes

escondera com tamanho cuidado. Se fosse obrigado a fugir,

não poderia voltar aos alojamentos de imigrantes.

Seria perigoso carregar as armas. Ainda não havia

recebido o respectivo porte.

O ativador celular, imprescindível à minha vida, estava

pendurado ao peito. Por dentro do traje pouco elegante

usado pelos colonos, levava o potente defletor de raios

luminosos, que era do tipo cujo funcionamento dependia do

microcarregador.

Meu projetor mental tinha um alcance de dois

quilômetros. Guardei a arma psicológica em forma de

bastão no bolso direito da calça.

Paguei e saí do carro. Caminhei lentamente em direção

às pesadas portas blindadas de plástico de aço do museu.

Era ali que meu velho amigo iria esperar-me.

Inúmeras pessoas saíam e entravam incessantemente.

Notei muitos colonos cujas vestes grosseiras de fibra

sintética os distinguiam dos trajes bem mais elegantes dos

funcionários da instituição.

Dois policiais em posição descontraída guardavam a

larga porta de entrada. Ao passar por eles, ouvi uma

risadinha.

— Ei, calouro, já está com saudades da Terra?

Virei-me e fitei os homens que riam de mim. Usavam

pesados fuzis de choque e grandes capacetes de rádio. Ao

que parecia, mantinham contato ininterrupto com a central.

Calouro era o nome pelo qual me haviam chamado. Era

Page 163: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

163

o apelido dos colonos recém-chegados.

— Aqui sempre faz tanto calor? — perguntei com a voz

queixosa.

Sua risada tornou-se mais forte. Calei-me e prossegui

sem dizer mais uma palavra. Subitamente vi um homem de

cabelo preto e barba ondulante. Usava roupa de colono e

um radiador energético de aspecto atemorizante.

Reconheceu-me imediatamente. Entre os fios da barba

hirsuta surgiu a boca. Gritou expressando contentamento.

Senti-me abalado. Marlis me mandara um sujeito um

tanto maluco.

Bateu com tanta força nos meus ombros que, por vários

dias, o local ficou dolorido. Além disso, aquela fúria em

pessoa gritou nomes carinhosos e felicitações chorosas ao

meu ouvido, e isso com tamanha força que tive medo de

ficar surdo.

— Sou Gunter Viesspahn — disse em voz baixa entre

dois gritos. — Vamos logo; temos que dar o fora.

Segurou-me pelo braço e saiu cantando a plenos

pulmões.

— Abram caminho, seus vermes ordinários da cidade;

não estão vendo que um homem quer passar? — gritou meu

novo amigo para os policiais.

Estes deram uma resposta impublicável. O tom que se

usava por ali era terrível. Senti-me apavorado, mas logo me

lembrei de que isso constituía uma das características de um

jovem planeta colonial.

O barbudo arrastou-me para dentro do museu em cujo

subterrâneo, segundo dizia, havia um restaurante no qual a

temperatura seria bastante agradável.

— Desconfiaram de você? — perguntou em voz baixa.

— Não sei. Leram sua carta. Não tive outra alternativa

— respondi em tom apressado.

— Isso é mau, meu filho. O que contou aos espias?

Ficou satisfeito com minha explicação. Orientara-me

pelas indicações disfarçadas que lera entre as linhas. De

acordo com as mesmas Gunter Viesspahn chegara a Vênus

há dois anos. Era da Frísia, onde nos conhecêramos há

algum tempo.

No local reinava uma temperatura agradável. Porém não

passava de uma terrível espelunca cheia de colonos, que se

divertiam contando bravatas. Não me senti à vontade.

— Vamos tomar um purly e dar o fora — disse

Viesspahn. — Não olhe tão desconfiado. Está tudo em

ordem. Marlis está à sua espera. Tomamos todas as

precauções.

Não tinha muita certeza disso. Essa gente não conhecia

a defesa solar. Fiz uma pergunta lacônica:

— Alguém sabe que você conhece Marlis?

— Ora essa! — disse com uma risada. — Acontece que

Marlis é minha irmã.

Vi as maiores complicações aproximarem-se ainda mais

de mim.

Em Terrânia havia uma Divisão de Logística que

contava com as cabeças mais inteligentes e os

computadores mais eficientes do Universo.

Marlis era uma das estudantes que me haviam visto no

dia da fuga. Não havia a menor dúvida de que o serviço de

defesa já teria verificado quem se encontrava perto de mim

quando surgiu a confusão no auditório. Marlis foi uma

delas. Depois interrompeu os estudos e voltou para Vênus.

Era uma das pessoas que defendiam os direitos daquele

planeta e, durante as discussões, dissera publicamente que

em sua opinião minha prisão representava uma indignidade.

Grande pista... e o general Kosnow não deixaria de

percebê-la!

Após isso, em Nevada Fields suspeitou-se de um

homem louro, mas verificou-se que o mesmo possuía

esqueleto humano. E junto a esses pequenos elementos de

suspeita ainda existia outro: após chegar a Vênus esse

homem escreveu uma carta e recebeu resposta.

Se fizessem uma investigação para apurar se dois

colonos chamados Volkmar e Viesspahn se conheciam na

Terra, o resultado só poderia ser negativo.

A tudo isso, ainda acrescia que um irmão da estudante

Marlis Gentner me esperara. Se esses elementos fossem

concatenados, o serviço de defesa de Rhodan desferiria seu

golpe dentro de uma hora.

Meu instinto me disse que já estava sendo esperado nos

alojamentos dos imigrantes. Em hipótese alguma, deveria

voltar para lá. Meu esqueleto de bioplástico não resistiria a

um exame médico minucioso.

Lembrei-me dos policiais equipados com rádio de

capacete. Será que na Central de Defesa de Vênus já sabiam

que me encontrara com Viesspahn? Alguém me teria

observado enquanto me dirigia ao museu? Em caso

afirmativo, por que não fora detido?

“Antes de tudo, procure descobrir seus elementos de

ligação”, disse meu sexto sentido. “Talvez ainda poderão

ajudá-lo.”

Era isso mesmo! A cada segundo que passava meu

nervosismo crescia. Pedi que saíssemos imediatamente do

local.

— Bobagem! — disse o barbudo em tom indignado. —

Quando dois velhos conhecidos se encontram em Vênus, a

primeira coisa que fazem é procurar o bar mais próximo.

Aqui é um ponto de encontro dos colonos, uma vez que os

mesmos costumam frequentar vez por outra o museu

terrano. Acho que ninguém o seguiu, não é?

Fitou-me com uma expressão de contrariedade. Sacudi a

cabeça e beberiquei o líquido forte.

— Então, por que tanta preocupação? — disse Gunter

em tom tranquilizador. — Afinal, o que foi que você andou

fazendo? Marlis não disse uma palavra.

Apontou para baixo, como se a Terra ficasse bem a seus

pés.

— Isso não importa — respondi.

— Importa, sim. Afinal, se você estiver envolvido em

algo muito grave, estarei arriscando o pescoço. O amor

fraternal não pode ir tão longe, não acha? Ao que parece,

Marlis anda louquinha por você.

Mais uma vez a desconfiança começou a brilhar em

Page 164: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

164

seus olhos escuros.

— Onde você nasceu? — perguntei.

Meus piores receios confirmaram-se. Gunter Viesspahn

era um venusiano genuíno, e eu dissera a um sargento que

havíamos sido colegas de escola na Terra.

Desesperado, cerrei os olhos. Marlis, por onde andava

sua inteligência? Você errou desde o começo.

Mas tive o cuidado de não deixar o barbudo ainda mais

irritado. No momento em que acreditasse estar numa

situação de perigo real, bateria em retirada. E eu não

poderia dispensar as ligações. Minha observação cautelosa

sobre nossa velha amizade apenas o fez dar de ombros.

— E daí? Como poderiam saber. Você viajou com

documentos falsos, não viajou?

— Naturalmente. Mas existem alguns aspectos que

vocês...

— Bobagem! Arranjaremos tudo. Você irá à minha

fazenda, localizada no rio Hondo, quinze quilômetros acima

das cataratas de Marshall. Lá o rio se precipita numa

profundidade de cinco quilômetros, e sua largura também é

esta. Um quadro inesquecível! Trata-se de uma excelente

região, que fica a pouco mais de duzentos quilômetros ao

norte de Port Vênus. Ali poderá estar tranquilo até que

Marlis descubra uma nave para você.

Esta explicação quase me fez desistir da fuga. Se a

moça fora imprudente a ponto de revelar a seu irmão

minhas ligações com o sistema de Vega, poderia entregar

os pontos.

De uma hora para outra, modifiquei meus planos. Seria

inútil continuar a esperar por uma hipernave destinada a

Vega. Tentaria sair da cidade quanto antes.

Pus a mão no bolso e tirei uma grande pérola. Os olhos

de meu interlocutor começaram a brilhar. Sabia quanto

valia o tesouro que tinha na mão. As pérolas eram uma das

raras coisas preciosas que não podiam ser produzidas

sinteticamente.

— Isto aqui é uma pérola legítima, no valor de cinco mil

solares — disse com uma calma enfática. — Preste atenção,

meu caro. Você descreverá exatamente o lugar em que

Marlis está esperando por mim. Irei até lá sozinho.

Enquanto isso você pegará seu avião... você tem avião, não

tem?

— É claro que sim; todo mundo tem.

— Muito bem. Você pegará seu avião e irá a algum

lugar onde seja fácil encontrá-lo. Uma vez lá, esperará por

mim. Não quero que sejamos vistos com Marlis.

Fez algumas objeções, mas não pôde resistir à tentação

da pérola. Acabou descrevendo exatamente um lugar bem

afastado, situado na periferia da cidade, onde um amigo seu

possuía um pequeno bar. Não seria difícil chegar lá.

A essa hora, só estava interessado em conservar Gunter

Viesspahn, para poder recorrer a ele se precisasse. Para

fazer isso, teria que despedir-me dele em público. Talvez o

deixassem em paz.

Deu-me o endereço de Marlis. A moça esperava por

mim em casa de uma velha tia, cujo finado marido fora

dono de uma casa de armas. Atualmente o negócio era

dirigido pela idosa dama que, segundo diziam, era muito

enérgica. Marlis fora criada pelo tio. Seus pais haviam

morrido na selva muitos anos atrás.

Paguei a conta. Uma vez fora do museu, olhei

cautelosamente em torno. Os dois policiais continuavam no

mesmo lugar, mas não receberam reforços. Mas isso não

significava nada nessa época de comunicações pelo rádio.

Despedi-me de meu velho amigo em voz alta, mas sem

chamar a atenção. Disse que voltaria aos alojamentos dos

imigrantes.

Formulou várias objeções, até que o táxi por mim

chamado parou à nossa frente. Os dois policiais pareciam

não nos dar maior atenção.

Entrei no carro, que era de construção moderna. Antes

de fechar a porta, disse em voz alta ao motorista para onde

deveria levar-me.

Alguém devia ter ouvido. O carro deu partida. Gunter

Viesspahn dirigiu-se ao heliporto do museu.

Uma vez dobrada a primeira esquina, que me colocou

fora das vistas dos guardas, comecei a agir. Seria absurdo

continuar a depender da sorte.

Apertei o botão do defletor de ondas luminosas e tornei-

me invisível. Antes que o motorista percebesse qualquer

coisa, foi atingido pelo feixe de raios do projetor mental.

Sua postura tornou-se mais rígida.

— Dobre a primeira esquina, pare e laça de conta que

está aborrecido porque seu passageiro desapareceu de

repente. Abra todas as portas e pergunte às pessoas que

estiverem por lá se viram alguém saltar pela porta traseira.

— Sim senhor — respondeu o motorista em tom

indiferente.

Abri a porta e deixei-a balançar. O motorista parou

antes do primeiro cruzamento e começou o jogo que

poderia custar-me o pescoço.

Correu em torno de seu carro, olhou para o interior

vazio do mesmo e perguntou às pessoas que riam a

bandeiras despregadas se haviam visto o patife que saíra

sem pagar a corrida.

Enquanto isso saí do veículo e, sem provocar o menor

ruído, subi sobre a carroçaria do mesmo, onde fiquei

deitado.

Poucos segundos depois, aconteceu aquilo que eu

esperara. Um veículo preto e muito moderno, usando

campos deslizantes antigravitacionais no lugar das rodas

antiquadas, parou ao lado do táxi. Dois homens saltaram do

mesmo e exibiram distintivos reluzentes ao motorista.

Quer dizer que fora perseguido! O joguinho de Marlis,

tão bem intencionado mas tão mal executado, já fora

desmascarado. A defesa solar voltara a agir.

O interrogatório do motorista foi muito rápido. Os dois

homens apalparam todos os ângulos dos bancos. Fiquei

sabendo que esperavam ter de lidar com uma pessoa

invisível.

Quando se despediram, deixando o exaltado dono de

táxi a sós na rua, voltei a entrar no veículo.

Page 165: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

165

Sentindo-me livre do pesadelo, ordenei ao motorista que

se dirigisse à rua Tóquio, que ficava na parte antiga da

cidade. Assim que chegamos perto do destino, saí do táxi,

depois de ter ordenado ao motorista que se dirigisse ao

ponto de estacionamento mais próximo e esquecesse tudo.

Comecei a caminhar sob a proteção do campo defletor.

A pequena casa de armas da velha senhora Gentner não

podia ficar longe.

“Seu idiota!”, disse meu sexto sentido, conforme

costumava fazer sempre que estava prestes a cometer uma

asneira.

Era claro que Marlis já havia sido descoberta.

Provavelmente fora interrogada na Terra por um dos

telepatas do Exército de Mutantes de Rhodan. Talvez já

tivessem até descoberto que a moça me entregara meu

equipamento especial que mantive por tanto tempo

escondido.

Rhodan, que já devia encontrar-se na Terra, não

interviera. Eu conhecia o curso do raciocínio desse homem

extraordinariamente inteligente.

Marlis não sabia como e quando pretendia chegar a

Vênus. Sentia-me feliz porque no momento em que

encetara a fuga eu mesmo ainda não sabia.

Por isso, Rhodan só tinha uma. coisa a fazer: esperar.

Naquele momento, já poderia ter sido informado pelo rádio

de que o suspeito desaparecera de repente de um táxi.

Parei num portão e pus-me a refletir. Não; não fora

totalmente inútil chegar a Vênus em condições tão difíceis.

Aqui seria mais fácil desaparecer que na Terra densamente

povoada com sua estonteante rede de transportes e

comunicações. A selva de Vênus era grande e misteriosa.

Além disso, conhecia os perigos que me aguardavam lá

fora.

A informação do setor lógico de minha mente, segundo

a qual Rhodan só não me prendera porque esperava que eu

o levasse aos meus elementos de ligação também fora

errônea.

Era exatamente o contrário. Dispunha de provas

suficientes contra Marlis Gentner, talvez mesmo contra seu

irmão. Talvez, o barbudo já estivesse sendo interrogado por

um mutante.

Rhodan apenas aguardara até que Marlis recebesse uma

carta pela posta-restante. Com isso, as pedras começaram a

encaixar-se.

Uma vez que usei o pseudônimo, o serviço de defesa

não conseguiu apurar desde logo quem fora o remetente.

Mesmo a correspondência que me fora dirigida por Gunter

Viesspahn ainda poderia ser considerada inofensiva, pois

muitos dos colonos recém-chegados costumavam receber

cartas.

De qualquer maneira, se eu fosse Rhodan, teria agido

imediatamente. Fiquei refletindo a este respeito, até que a

ideia certa me ocorreu. Se o oficial de Nevada Fields ainda

não tivesse avisado nada, eu mesmo entrara na armadilha.

Ninguém sabia quem chegara a Vênus sob o disfarce de

Hinrich Volkmar. Só o encontro com o irmão de Marlis

havia colocado o serviço de defesa na minha pista.

Se o barbudo já estivesse sob observação, as coisas

teriam sido bem mais fáceis para os homens de Rhodan. E

muito me admiraria se já não me tivessem prendido.

Provavelmente sentiam-se muito seguros de que o jogo

tão bem urdido não seria desvendado tão depressa.

Meu nervosismo foi diminuindo. Uma “risadinha” me

fez estremecer, mas logo percebi que o ruído provinha de

mim mesmo.

A esta hora não gostaria de pertencer ao serviço de

defesa local. Se minha ideia sobre Rhodan fosse correta, já

estaria pessoalmente a caminho de Vênus.

Prossegui devagar e com a maior cautela, tendo sempre

o máximo cuidado para fechar perfeitamente o monobloco

destinado à defesa contra pesquisas telepáticas. Bastaria

que minha mente irradiasse um único impulso para que um

mutante pudesse localizar-me.

Senti que desta vez atirariam para matar. Rhodan não

poderia assumir o risco de deixar que eu desaparecesse na

selva de Vênus. Um belo dia, a vigilância no espaçoporto

diminuiria, e então minha chance teria chegado.

E Rhodan sabia disso; não havia a menor dúvida. Esse

bárbaro de olhos cinzentos sabia raciocinar.

Evidentemente seria uma loucura procurar entrar em

contato com Marlis. Estava sob observação, ou então não

queria chamar-me Atlan.

Tranquilizei meu instinto de autoconservação que

ameaçava entrar em revolta, dizendo a mim mesmo que,

sem uma arma energética mortal, não poderia penetrar na

selva. Os sáurios venusianos dificilmente se deixariam

afetar por um pequeno radiador de choques. E qual seria o

melhor lugar para encontrar a tal arma senão em uma casa

especializada?

Prossegui, até que vi o letreiro numa rua lateral.

Não notei ninguém, e nem esperava outra coisa.

Ansiava por Marlis, por um único olhar e um sorriso de

seus lábios cercados de amargura. A moça arriscara muito.

E não poderia culpá-la por ter cometido erros graves.

Afinal, não era uma agente treinada, mas apenas uma

criatura impulsiva, capaz de ainda entusiasmar-se pela voz

do coração.

Se não tivesse percebido nada do interrogatório

realizado pelos mutantes, que sem dúvida fora

extremamente suave, não se poderia imputar-lhe qualquer

culpa, por mais leve que fosse. Só poderia pensar que me

encontrasse em segurança absoluta. Se sua opinião fosse

outra, teria deixado de procurar a posta-restante.

Além do mais, perdera minha gigantesca pérola.

Evidentemente Gunter Viesspahn já não me poderia ser útil.

Encontrava-me numa situação bastante desfavorável.

Page 166: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

166

Calculei e planejei, martirizando o cérebro dolorido em

busca de uma solução satisfatória; mas sua aparição

repentina abalou-me profundamente.

Parecia que uma força desconhecida paralisava meus

nervos. Uma pessoa do meu tipo sabe odiar ou amar além

de qualquer medida; sentir a alegria ou o desencanto, desde

que não seja privada do equilíbrio psíquico.

O vulto esbelto de Perry Rhodan produziu em minha

alma o efeito de uma ducha de ácido. Era bastante difícil

para a mente absorver sua presença. Um estranho

formigamento espalhou-se na zona da nuca. Demorei algum

tempo para superar o revés moral.

Encontrava-me atrás de um arbusto, e não podia ser

visto. Porém tive a impressão de que seus olhos me fitavam

com uma expressão perscrutadora. Tinha total certeza de

que não me poderia ter visto, pois meu defletor de ondas

luminosas funcionava impecavelmente.

E a localização energética também não era possível,

uma vez que as potentes armas energéticas de seus

acompanhantes e os motores atômicos das naves

estacionadas geravam campos muito mais potentes que o

emitido pelo meu aparelho.

Fazia apenas dez minutos que eu chegara, depois de ter

visto Marlis Gentner. Arrisquei-me a entrar na casa de

armas e encontrei-a numa sala dos fundos.

Tal qual os policiais do serviço de segurança venusiano

que se encontravam à espreita, escondidos do lado de fora,

não notara minha presença.

Não sabia que havia sido interrogada na Terra.

Envergonhei-me por não me ter informado a este respeito.

Mas não comentei o fato por uma questão de segurança

pessoal.

Quando me dei a conhecer, parou em atitude rígida

diante da pequena janela.

— É você? — perguntou com os lábios trêmulos.

Manteve um perfeito autocontrole, mas já estava perdida.

Minha única esperança era aplacar o ânimo de Perry

Rhodan. Marlis não devia ser castigada.

Cochichei ao seu ouvido, informando-a de que tinha de

fugir imediatamente para a selva, uma vez que surgiram

dificuldades. Em hipótese alguma poderia entrar em contato

com seu irmão, pois desconfiava de que o mesmo estivesse

sendo observado.

Ainda disse à moça que me comunicaria com um amigo

que conhecera na nave Glória. Não citei qualquer nome. Os

agentes do serviço de defesa poderiam quebrar a cabeça se

quisessem.

O fato de não informá-la foi um truque da minha parte.

Só poderia contar-lhe aquilo que o serviço de defesa

poderia saber. Não tinha a menor dúvida de que eslava

sendo vigiada pelos telepatas. Por isso não poderia saber

que eu descobrira tudo.

Durante o tempo em que permaneci na velha casa, corri

certo perigo. Se naquele momento tivesse sido realizada

uma vigilância telepática na moça, minha presença teria

sido revelada.

Tive sorte. No interior da casa de armas, achei o que

queria: o cofre de armas. Nele se encontravam os pesados

radiadores energéticos, que costumavam ser usados em

Vênus para abater os gigantescos sáurios. Tratava-se de

artefatos maciços, com fortes campos direcionais

alimentados por processos de fusão nuclear de elevada

potência. A incandescência dessa arma derrubaria sem a

menor dificuldade os gigantescos animais do mundo

primitivo.

Escapei sem ninguém o perceber, e Marlis foi de

opinião que ninguém ficaria sabendo de minha ligeira

visita.

Após isso, fiz exatamente o contrário do que lhe dissera.

Dirigi-me ao restaurante situado fora da zona urbana, onde

Gunter Viesspahn me esperaria.

Depois, voltei a modificar meus planos. Minha ação

devia ser cheia de variáveis, para impossibilitar o cálculo

logístico-esquemático de meus passos. Além disso, a ideia

de voltar à cova do leão não deixava de ter seus encantos.

Assim que cheguei, descobri Viesspahn. Encontrava-se

no interior da velha taberna, conversando com alguns

colonos de aspecto embrutecido que haviam feito compras

na loja ao lado.

Viesspahn ainda não fora preso! Nem desconfiava do

que havia acontecido.

Quanto a mim, calculava com a inteligência do inimigo.

Depois que me despedi tão apressadamente de Viesspahn, à

saída do museu, os homens do serviço de defesa deveriam

ter seguido o curso de raciocínio por mim desejado. Um

homem do meu tipo nunca volta para junto do conhecido

que sabe estar em perigo.

Até parecia que minhas previsões haviam sido corretas.

O serviço de segurança estava deixando o barbudo em paz.

Quando me deleitava nas mais belas esperanças,

subitamente um grande helicóptero da defesa solar pousou

nas proximidades. O susto que senti ao ver Perry Rhodan

descer foi infinito.

Uma vez que ele mesmo se encarregara da operação de

busca, teria que triplicar meus cuidados. Apareceu com

poucos acompanhantes. E fez de conta que nem se

interessava por Viesspahn.

Cumprimentou ligeiramente os colonos e disse em tom

bem-humorado que apenas viera para rever o lugar onde

quase encontrara a morte quando pela primeira vez pousou

em Vênus.

Contou uma história inventada sobre uma furiosa cobra

dos pântanos, conquistando os aplausos dos pioneiros

endurecidos. Dessa forma, meu grande inimigo deu uma

explicação plausível de seu súbito aparecimento.

A seguir, Rhodan colocou-se atrás do edifício. Um

homem do serviço de defesa saiu com o helicóptero. Tudo

parecia muito pacato. Os colonos que se encontravam no

interior da loja mantinham-se em atitude discreta. Quase

7

Page 167: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

167

chegaram a curvar-se, mostrando grande veneração.

Angustiado, fiquei atrás do arbusto de folhas largas que

escolhera como refúgio ainda antes da chegada de Rhodan.

Não me atrevia a fazer o menor movimento. O botequim

com sua barulheira ficava a mais de cinquenta metros. Os

risos e a cantoria dos alegres pioneiros da selva formavam

uma cortina sonora muito tênue, que não era sufocada pelo

farfalhar das folhas.

Era uma situação martirizante, pois os inúmeros insetos

não se incomodavam com o defletor de ondas luminosas.

Penetravam nele às cegas, e eu tornava-me vítima de suas

picadas violentas. Além disso, as pontas metálicas do anel

de escapamento de gases da câmara de fusão da minha arma

incomodavam-me constantemente. Estava comprimida

contra a omoplata direita.

Aguardei impaciente e fiz votos de não ser surpreendido

por uma das terríveis trovoadas de Vênus.

Vi-me libertado mais depressa do que esperava. É bem

verdade que por pouco não me traí, pois não contava com a

aparição.

A menos de cinco metros do lugar em que me

encontrava, o ar superúmido começou a tremeluzir. Do

nada surgiu uma coisa que contemplei com um espanto

infinito e com uma inquietação cada vez maior.

O ser tinha o aspecto de um rato gigante com a cauda

grossa, muito parecida com a de um castor terrano.

A estranha criatura parou sobre as curtas patas traseiras

que lhe permitiam um andar ereto à maneira dos humanos.

Os braços finos com as delicadas garras estavam cruzados

sobre o peito de sua vestimenta semelhante a um uniforme.

Seria um animal?

Examinei mais detidamente a aparição, e tive que

retificar minha opinião. Um animal não carrega radiadores

energéticos. O rosto pontudo de camundongo com as lindas

orelhas normalmente me teria obrigado a sorrir. Mas na

situação em que me encontrava, aquele ser coberto de pelo

delicado me causou um tremendo susto.

De onde teria vindo? Levei alguns segundos até que

minha memória fotográfica se lembrasse de um ser

inteligente que, segundo diziam, ocupava lugar de destaque

no Exército de Mutantes de Rhodan. Ouvira falar dele em

Terrânia.

Gucky; era este o nome que Rhodan costumava dar ao

ser peludo. Evidentemente tratava-se de uma inteligência

vinda de algum planeta desconhecido. Ao que parecia, o

pequenino era um teleportador. Só assim se explicaria sua

súbita materialização.

Apertei fortemente a coronha de minha arma energética.

A rigidez provocada pelo pavor começava a abandonar meu

corpo.

— Saiam daí — chilreou o rato gigante.

— Por aqui poderão esperar o resto da vida. Esteve com

a moça e disse-lhe que iria à selva, onde ficaria na fazenda

de um amigo. O serviço de segurança daqui deveria ser

atirado no pântano mais próximo. Não entende nada do

negócio.

Perry Rhodan saiu de trás do depósito. Seu rosto dava a

impressão de indiferença. Apenas as pequenas rugas em

torno dos olhos pareciam mais profundas. Passou tão perto

de mim que acreditei ter sido descoberto.

A pequena inteligência peluda pôs à mostra um enorme

dente roedor. Um coronel do serviço de segurança de

Vênus, que eu não conhecia, abriu a boca, perplexo.

Um jovem tenente, que provavelmente ainda não tivera

oportunidade de conhecer Gucky, tossiu de forma bastante

estranha. O dente roedor do pequenino ser desapareceu

atrás do “nariz” franzido.

— Suas toupeiras! — piou com a maior falta de

respeito. — Por que não me chamaram logo? De qualquer

maneira, tinha o que fazer em Vênus. Por que não o

prenderam assim que recebeu a carta do tal do Viesspahn?

A testa de Rhodan franziu-se; mostrava preocupação.

— Sim, por quê? — disse o chefe do Império Solar,

repetindo a pergunta de seu estranho amigo.

O coronel empertigou-se.

— Sir, peço licença para ponderar que havíamos

recebido dados insuspeitos sobre todos os passageiros da

Glória. O indivíduo, que se identificou pelo nome de

Hinrich Volkmar, submeteu-se a dois exames de raios X na

Terra.

— Mas o senhor devia saber que o irmão da estudante

foi escolhido para receber o arcônida. Os interrogatórios

telepáticos à distância informaram-nos a este respeito.

Deviam ter posto as mãos no homem assim que a carta de

Viesspahn chegasse ao alojamento.

— Não tivemos muita certeza, Sir — respondeu o

coronel, que transpirava abundantemente. — O elemento

que procuramos mostrou a carta a um sargento do serviço

de segurança, e o conteúdo era totalmente “Inofensivo”.

Além disso, conforme já ressaltei, o homem foi...

— ...submetido a dois exames de raios X —

interrompeu Rhodan em tom irônico. Meus parabéns; os

senhores fizeram um trabalho bem feito.

— Tinha a intenção de prendê-lo depois que se

encontrasse com Viesspahn no museu.

O ridículo ser soltou uma risada aguda e estridente.

Subitamente pôs-se nas patas traseiras, girou em torno de

seu eixo e gritou:

— Quem andou pensando que sou um sujeito ridículo?

Quem foi?

Assustado, acionei o bloqueio mental que, ao alegrar-

me com o incidente, abrira por uma fração de segundo.

Então esse projeto de rato ainda era um telepata!

Provavelmente absorvera o conteúdo da mente de Marlis

logo depois que me despedi dela.

De repente, o jovem tenente começou a girar no ar. O

pequeno ser peludo ria a bandeiras despregadas, parado nas

patas traseiras, olhando para o oficial que soltava gritos de

pavor.

— Se você não pedir desculpas imediatamente, farei

com que caia de cabeça naquele pântano — gritou Gucky.

— Pare imediatamente! — ordenou Rhodan em tom

Page 168: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

168

áspero.

O rato gigante baixou a cabeça sob o olhar gelado do

chefe. O tenente pousou de forma suave sobre o rotor de

um helicóptero estacionado.

Rhodan não perdeu mais tempo. No íntimo, não pude

deixar de admirá-lo. Seria um inimigo muito difícil.

— Coronel, averigue imediatamente com quem o

elemento que procuramos fez amizade. Todos os colonos

recém-chegados que ainda não partiram para seu destino

deverão permanecer no acampamento. Aqueles que já

receberam suas fazendas deverão ser imediatamente

visitados por um comando especial. Obrigado; por

enquanto é só. Faça o favor de chamar meu helicóptero.

Rhodan encostou o dedo no boné, ajeitou o cinto com o

pesado radiador energético e caminhou a passos duros em

direção no pequeno campo de pouso.

— O que vamos fazer com o tal do Viesspahn?

Rhodan respondeu sem virar o rosto. Em sua voz,

vibrava uma raiva contida.

— O senhor já deveria ter adivinhado coronel. É claro

que não vamos prendê-lo. Faça de conta que nunca ouviu

falar nele. Se acreditar que o fugitivo ainda entrará em

contato com ele, o senhor estará me ofendendo. Pode

imaginar por quê?

Rhodan girou no calcanhar.

— Lutei contra este homem, e tive que fazer o máximo

para vencer na última hora. Por isso peço-lhe o favor de não

pensar que é um idiota.

Naquele momento, não sabia o que pensar. Por pouco,

não desliguei o defletor num súbito gesto de resignação e

caminhei para frente.

Controlei-me no último instante. Meus olhos ardentes

seguiram o mais encarniçado dos meus inimigos. Por que

não atirava nele? Sem dúvida poderia mergulhar na mata

próxima.

Vi o tenente do serviço de segurança apontar para o

helicóptero pintado de vermelho. Era o aparelho de

Viesspahn. Ao que parece, Rhodan pedira informações a

este respeito.

A seguir, entrou no grande veículo oficial. Era uma

versão moderna com propulsor de impulsos e canhão

energético de montagem rígida. Verifiquei que, de repente,

Rhodan tomava lugar no assento do piloto.

Depois que decolou e desapareceu no horizonte

brumoso, arrisquei-me a sair detrás do arbusto e caminhar

em direção ao helicóptero vermelho. Acontecera aquilo que

eu pretendia conseguir com minha ação arriscada: Rhodan

não acreditava que ainda fosse encontrar-me com o irmão

de Marlis.

Parei alguns minutos junto à escotilha do

compartimento de carga e olhei para a loja. Não vi o

barbudo. Em compensação, escutei suas gargalhadas.

Abri calmamente a escotilha e pus o pé na escada

embutida. Quando pretendia enfiar o corpo no

compartimento apertado, ouvi o ruído de um helicóptero em

mergulho.

O zumbido suave cresceu num uivo estridente. O

aparelho que descia devia encontrar-se próximo à barreira

do som.

Olhei para cima. Reconheci um objeto reluzente. Saía

em voo arriscado de trás da muralha formada pela mata,

apontou o “focinho” para baixo e dirigiu-se em voo

vertiginoso ao lugar em que me encontrava naquele

instante.

Foi meu sexto sentido que mandou minhas pernas

correrem. Corri como nunca. Com um salto desesperado

rolei para dentro de uma poça de água malcheirosa.

Ouvi o rugido terrificante do canhão energético. No

mesmo instante, cessou o uivo da máquina que acabara de

ultrapassar a barreira do som. Em compensação, ouviu-se o

ribombar das massas de ar comprimidas, que fulguraram

sob a ação do raio energético.

Menos de cinquenta metros atrás de mim, as energias

atômicas liberadas atingiram o solo venusiano, que

imediatamente entrou em ebulição. O aparelho de Gunter

Viesspahn, pintado de forma tão espalhafatosa, foi

transformado numa bola de fogo, que explodiu. De uma

hora para outra, o dia sombrio parecia iluminado por um

pequeno sol. O canhão energético lançava uma luz

fulgurante, que prenunciava desastre.

A sucção produzida pelo aparelho que passou rente à

poça em que me encontrava por pouco não me arranca da

mesma. A menos de dez metros do lugar em que me

encontrava o solo fervia.

Rhodan traçara um canal retilíneo de lava no solo.

As ondas sonoras chegaram dali a poucos segundos.

Mais uma vez parecia o fim do planeta. Comprimi as mãos

contra os ouvidos martirizados e, ofuscado pela luz,

cambaleei em direção ao grande depósito. Uma vez lá,

deixei-me cair ao chão, completamente exausto.

Um soluço seco me apertava a garganta. Uma raiva

desarrazoada começava a dominar minha mente. Tive

vontade de gritar face às declarações de meu supercérebro.

Senti-me humilhado e rebaixado.

Rhodan partira, mas voltara. Numa reflexão fria abrira

fogo contra o aparelho de Viesspahn.

Esse maldito bárbaro de olhos cinzentos, apesar de tudo

o que se passara, contara com a possibilidade de que eu

pudesse entrar em contato com o barbudo. As instruções e

advertências que gritara para o coronel destinavam-se a um

“invisível” que se encontrasse nas proximidades.

Se tivesse esperado mais trinta segundos antes de voltar,

me encontraria no interior do compartimento de carga.

Nesse caso, a reação instantânea da fuga teria sido inútil.

Tive de esforçar-me ao máximo para conservar o

autocontrole quando vi o veículo policial pousar pela

segunda vez. Rhodan saiu da cabina e aproximou-se o mais

que pôde do metal ardente.

Levantei-me instintivamente. Queria ouvir o que tinha a

dizer. Aproximei-me tanto dos colonos que acorreram às

pressas que quase cheguei a tocar num homem.

Pálido como cera, Gunter Viesspahn encontrava-se ao

Page 169: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

169

lado do ser mais poderoso do Império Solar. O coronel

plantara-se nas proximidades de Rhodan.

— Esse helicóptero foi seu, senhor Viesspahn? —

perguntou o coronel.

Meu amigo confirmou com um gesto perturbado.

Lançou um olhar assustado para os homens do serviço de

defesa.

— Sinto muito — disse Rhodan em tom Irônico. — Foi

um pequeno engano. Peço sua compreensão. Infelizmente

não posso dar maiores explicações. Naturalmente o governo

lhe pagará outro helicóptero. Faça o favor de informar ao

oficial sobre a natureza de sua carga. A indenização será

paga dentro de uma hora. Providencie imediatamente,

coronel Fasting.

Viesspahn soltou uma risada embaraçada na qual,

segundo parecia, também havia certo alívio.

Rhodan despediu-o com um gesto e voltou a contemplar

a aeronave que ainda estava ardendo.

— Coronel!

O coronel, que se afastava, parou e ficou em posição de

sentido. A voz de Rhodan tinha um tom impessoal.

— Assim que os destroços tiverem esfriado, providencie

um exame científico dos mesmos. É possível que os restos

mortais de um ser humano sejam descobertos nos mesmos.

Quero ser informado imediatamente sobre os resultados da

análise. Obrigado; é só.

Afastou-se, depois de confirmar novamente ao nervoso

Viesspahn que ele, Rhodan, lhe mandaria entregar dentro

de uma hora um helicóptero novinho em folha.

Quanto a mim, encontrava-me em campo aberto,

tremendo por todo corpo. As costas de Rhodan surgiram na

mira luminosa de minha arma. Bastaria apertar o botão para

realizar nele aquilo que pretendera fazer comigo.

Baixei a pesada arma de radiações. Não; nunca seria

capaz de alvejá-lo pelas costas.

Em saltos largos, voltei para junto do depósito. Os

colonos conversavam animadamente. Ninguém sabia o que

estava acontecendo. Apenas Gunter Viesspahn parecia ter

uma ideia, mas preferiu ficar calado.

Vi Rhodan entrar no helicóptero da polícia. Desta vez,

não ocupou o lugar do piloto.

Esse bárbaro se atrevera a destruir um helicóptero em

perfeito estado, com base; num raciocínio elementar. Não

sabia se realmente me encontrava no interior do mesmo.

Por isso, ele preferia aguardar, para que eu tivesse tempo de

entrar.

Contara com todas as eventualidades e guiara-se pelo

método de que sempre é preferível andar seguro.

Tive vontade de arrancar pedaços de meu corpo face à

minha imprudência fenomenal. O fato de que Rhodan

deixara um homem do serviço de segurança na loja deveria

ter chamado minha atenção.

Evidentemente o soldado recebera ordens de impedir

que qualquer pessoa fosse ao campo de pouso. Rhodan

queria ter o campo livre para atirar. Seu alvo era eu, apenas

eu.

Mal e mal consegui controlar minha perturbação.

Esse bárbaro magro só poderia encontrar-se em Vênus

há poucas horas, mas já me causara mais problemas que

aqueles que tivera de enfrentar com todo o serviço de

defesa durante seis dias no planeta Terra. Agora as coisas

começavam a ficar sérias. Tinha certeza absoluta de que

esse homem não cometeria qualquer erro de lógica

***

Dali a exatamente uma hora e treze minutos, o novo

helicóptero de Viesspahn desceu no campo de pouso que se

encontrava próximo ao restaurante na selva. Rhodan

cumprira sua palavra. Era medonho de ver como sabia agir

depressa.

O piloto não era outro senão o maldito rato gigante de

uniforme. Haviam feito um buraco no uniforme do ser

extraterreno, para que o mesmo pudesse tocar o chão com a

cauda de castor. E agora, aquela criatura ainda usava na

cabeça uma coisa parecida com um capacete-rádio, sob o

qual sobressaía o focinho pontudo com o dente roedor.

O “sujeitinho” de menos de um metro de altura plantou-

se solenemente à frente do estúpido Viesspahn e informou

ao barbudo em voz alta sobre os direitos e os deveres dos

colonos.

No íntimo, sabia que minha raiva por aquele rato

uniformizado era injusta. Estava sendo dominado pelos

sentimentos exaltados, que me diziam que esse “sujeitinho”

ridículo era mais estranho no sistema solar que eu mesmo.

Por que falava de modo tão altivo?

Dominado por uma raiva incontrolável e absurda,

abaixei-me, peguei um pedaço de madeira podre e atirei-o

com toda força contra o focinho da criatura arrogante.

Pelos deuses da antiguidade terrana, nunca deveria ter

feito uma coisa dessas.

Meu ódio desvaneceu-se imediatamente.

Poucos segundos depois, fugi a toda. Ainda bem que o

rato gigante, imediatamente possuído pela raiva, não me via

nem podia localizar-me por via telepática.

Era horrível de ver-se o que o ser peludo fez com os

colonos totalmente inocentes. O ser extraterreno devia ser

um grande telecineta; caso contrário, não teria conseguido

atirar os colonos, que soltavam gritos horríveis, para dentro

da poça, e depois deixar as criaturas banhadas de lama nas

copas das árvores altíssimas.

A seguir, o animal sentou-se no concreto do campo de

pouso e riu como nunca ouvira rir uma inteligência

galáctica.

Gunter Viesspahn foi o único homem poupado pela

fúria do ser peludo, que provavelmente vira que o pedaço

de madeira não fora arremessado por suas mãos. Ao menos

fiquei sabendo o que poderia esperar do amigo de Rhodan.

Viesspahn inclinou o corpo num gesto humilde quando

o “sujeitinho” desapareceu como se nunca tivesse aparecido

por ali.

— Vou mostrar uma coisa a vocês! — gritou antes de

desaparecer.

Page 170: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

170

Caminhei tranquilamente em direção ao novo

helicóptero. Quando o colono decolou, encontrava-me no

banco traseiro. Meu sexto sentido me dizia que Rhodan não

voltaria a atacar.

Provavelmente a esta hora estaria mobilizando mais

alguns membros do seu Exército de Mutantes. Qual deles

poderia representar um perigo para mim? Os telepatas não,

conforme já ficara provado. A qual deles Rhodan teria de

recorrer para localizar-me apesar do bloqueio mental e do

defletor de ondas luminosas?

Não encontrei a solução, pois não sabia qual o trunfo

mantido de reserva pelo bárbaro.

Nesse momento já me arrependia por não ter atirado

nele. Como poderia chegar ao sistema de Árcon, se

poupasse Rhodan toda vez que surgisse uma oportunidade

de matá-lo? Era uma atitude absurda. Afinal, era o grande

inimigo de meu venerável povo, ou não?

O furacão parecia enlouquecer as feras. Fazia cerca de

cinco minutos que as duas torres feitas de carne e ossos

haviam saído da mata próxima para executar uma dança

estranha nos campos bem cuidados de Viesspahn.

Eram dois lagartos-corredores, nome que se costumava

dar a esses animais em Vênus. Possuíam aproximadamente

a forma de canguru terrano, apenas os crânios alongados

que terminavam num focinho chato erguiam-se uns trinta

metros acima do solo.

Os lagartos-corredores pertenciam a espécime dos

animais mais perigosos desse mundo primitivo. Em certos

lugares, sua blindagem córnea atingia uma grossura de

quarenta e cinco centímetros. Desenvolviam uma

velocidade tremenda. Antes da chegada do homem,

pertenciam ao grupo dos monarcas não coroados do

planeta.

Ambos perseguiam um pisoteador gigante que saíra da

mata em fuga desabalada. O quadrúpede vegetariano

devastou os campos, de Viesspahn numa questão de

segundos. Nos lugares em que havia colocado as enormes

patas, surgiram profundas crateras lamacentas.

No momento em que atingiram a clareira junto às

barrancas do rio Hondo, os dois lagartos-corredores

resolveram desistir da perseguição do pisoteador.

Por alguns minutos, permaneceram eretos no terreno,

antes de iniciarem a “dança”.

Viesspahn estava sentado na cabine de comando de sua

fazenda ultramoderna. Esforçava-se para trazer de volta os

tratores robotizados teleguiados, antes que os mesmos

fossem descobertos e atacados pelos lagartos.

Ouvi as terríveis pragas que soltava, pois voltara à

central energética. Há três dias encontrava-me na fazenda,

mas Viesspahn nem desconfiava disso. Não tinha o menor

interesse em informar este homem que não merecia maior

confiança sobre minha presença naquele lugar. Era bem

verdade que, com o tempo, se espantaria com o

desaparecimento de seus mantimentos. Até lá teria que

encontrar uma solução.

Atrás de mim, uma chave de segurança automática de

quinhentos ampères desligou-se: Pertencia ao circuito de

força da grade de alta-tensão do setor sul, e não

representara nenhum obstáculo sério para o pisoteador que

acabara de invadir a fazenda.

As luzes vermelhas piscaram cada vez mais depressa,

até que permaneceram acesas de vez. Por três vezes, a

chave automática de quinhentos ampères foi girada para a

posição de contato pelo campo energético eletrônico. Por

três vezes, desligaram-se com um forte estalo. O circuito

fora inutilizado; ao que parecia, a grade de alta-tensão

entrara em curto-circuito.

Viesspahn começou a praguejar cada vez mais alto.

Retirei-me para a sala dos isoladores. Atrás da pesada porta

de aço, zumbia o transformador do reator de alta potência.

Viesspahn possuía um modelo de fusão moderno, cujo

desempenho máximo era de mil quilowatts-hora. Tal

potência era suficiente para abastecer a fazenda. Os tratores

de múltiplas finalidades possuíam suprimento de energia

próprio.

Olhei pelas lâminas de plástico blindado que fechavam

a estação de controle.

Dentro de poucos segundos, o furacão chegou ao auge.

Sabia que a longa noite de Vênus estava para chegar. A

escuridão reinaria durante cerca de doze dias terranos. A

translação do planeta aproximava-nos da temível zona de

penumbra, na qual não fazia sol nem era completamente

escuro. Essa zona também resultava da rotação lenta de

Vênus.

As tormentas começaram com o início do prolongado

crepúsculo. Chovia demais, dando a impressão de que a

água estava sendo despejada por um balde gigantesco. Mas

o súbito resfriamento do ar não refrescava o ambiente.

As pragas de Viesspahn perderam-se nos uivos do

furacão. Porém conseguiu levar as máquinas para as

garagens subterrâneas.

Já não me sentia bem na apertada sala dos isoladores,

situada no pedestal de uma robusta torre de concreto. Todas

as fazendas de Vênus possuíam uma torre de energia desse

tipo, cuja parte superior estava coberta por uma cúpula de

chapas blindadas transparentes.

Dali se via a área da fazenda e as residências adjacentes.

No segundo planeta solar, essas construções pertenciam à

classe do absolutamente indispensável. Quando os

gigantescos animais da selva se aproximassem, não havia

outra possibilidade senão rechaçá-los em tempo.

E neste ponto, a zona da penumbra era mais temida.

Parecia que a súbita modificação climática produzia uma

espécie de embriaguez nos lagartos. Tornavam-se

descontrolados e agressivos.

O fazendeiro barbudo passou ligeiro e aos tropeços

8

Page 171: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

171

junto ao meu esconderijo provisório. Abriguei-me

instintivamente quando sua mão fechada bateu contra a

chave do pequeno canhão energético giratório, montado no

alto da cúpula transparente. Para usar uma arma dessa

potência, tornava-se necessária uma licença especial do

governo. Só eram fornecidas em sua feição estacionaria e

os funcionários de Port Vênus controlavam-nas a intervalos

regulares.

Enquanto Viesspahn subia pela íngreme escada em

caracol, saí cautelosamente da desconfortável sala dos

isoladores. Acima de minha cabeça, ouvi as pisadas de seus

sapatos pesados. Chegou à pequena plataforma na qual era

manipulado o canhão.

Vi que utilizava ambos dispositivos de mira. Tratava-se

de um aparelho de ondas infravermelhas acoplado com um

equipamento goniométrico. Por mais escura que fosse a

noite, Viesspahn identificaria perfeitamente o alvo.

Perplexo, indaguei a mim mesmo se seria recomendável

confiar um instrumento de destruição desse tipo aos

colonos eternamente rebelados. Seria fácil modificar um

canhão de pequeno porte como este, retirá-lo de seu

embasamento e dar-lhe outro emprego.

Sentei na poltrona giratória que ficava à frente das

chaves de telecomando dos tratores e aguardei as coisas que

viriam. Lá fora, já estava quase totalmente escuro. O vento

uivante tangia verdadeiras cascatas contra as janelas de

plástico blindado. Parecia que este mundo tão jovem seria

tragado pelas águas.

O anemômetro mostrava que a velocidade do vento era

de cento e oitenta quilômetros por hora. Nessas condições,

era altamente recomendável não sair do seguro abrigo.

Gunter Viesspahn mantinha-se à espreita no assento

giratório de sua arma energética. Os dois lagartos

encontravam-se a cerca de duzentos metros. Apesar da

distância pareciam torres de igreja. Suas terríveis caudas

levantavam muitos metros cúbicos do precioso solo arável,

arrancando-o do chão subitamente encharcado.

Ao que parecia, o furacão não afetava os gigantes de

mais de trinta metros de altura. Saltavam pelo terreno,

atiravam-se contra o vento e soltavam um berreiro que me

fazia cingir fortemente a arma.

Não me separei por um minuto sequer do único seguro

de vida existente neste inferno selvático. Era bem verdade

que retirara dos estoques de Viesspahn um potente radiador

de choques, mas portátil. Sendo assim, num caso

verdadeiramente grave de nada adiantaria. Contra um

lagarto-corredor, só mesmo uma arma superpotente poderia

revelar-se eficaz.

Quando as feras aproximaram-se ainda mais, Gunter

Viesspahn começou a disparar. Tive o cuidado de virar o

rosto para o outro lado, mas assim mesmo a incandescência

fulgurante doeu nos meus olhos.

Um trovejar irreal superou o ruído da tormenta. Um raio

energético da grossura de um braço humano precipitou-se

para o ambiente infernal. Ao longo do fluxo incandescente

surgiu um fenômeno fascinante. Parecia que alguém

escavara um túnel nas massas de água que se precipitavam

do céu. Densas nuvens de vapor espalharam-se, quando o

furacão as atingiu.

Viesspahn fez boa pontaria. Entre as curtas pernas

dianteiras do lagarto surgiu uma mancha incandescente, que

se dissolveu numa série de relâmpagos. A parte da energia,

que não foi absorvida pelo corpo do animal, escapou pelas

costas sob a forma de descargas luminosas.

Vi o corpo gigantesco tombar. O animal fora atingido

mortalmente, mas seus reflexos prosseguiram por mais

algum tempo. E era terrível de ver com que força revolvia o

solo enlameado.

O outro sáurio saiu aos berros e desapareceu atrás da

muralha de água caída do céu.

Um tanto perplexo, olhei para Viesspahn. Ao que tudo

indicava, voltara a dedicar-se ao praguejar. Era uma das

características daquele homem que eu não apreciava nem

um pouco.

Estive a ponto de retirar-me para o depósito contíguo,

quando a trovoada irrompeu lá fora. O ribombar dos

trovões me fez comprimir as mãos contra os ouvidos. Este

mundo nunca poderia ser conquistado por criaturas pacatas.

Sem dúvida, precisava-se de homens como Gunter

Viesspahn para domar este planeta no correr do tempo.

Perto da cúpula, algumas árvores estavam em chamas.

Ardiam apesar da chuva e do ambiente superúmido. Na

Terra, nunca havia visto um temporal como este.

Viesspahn continuava sentado atrás do canhão

energético. Tive a sensação de que se embriagava com o

poder que tinha nas mãos.

Quando pretendia retirar-me, vi o brilho reluzente. Bem

atrás do colono, que começara a ficar nervoso, um corpo

surgiu do nada. Quando os contornos assumiram formas

estáveis, percebi que eram dois os seres que haviam

aparecido de repente.

Desta vez, não me senti dominado pelo pavor. Já

conhecia esse maldito rato gigante com a cauda de castor.

Mantive-me imóvel, embora com aquele furacão ninguém

pudesse ouvir qualquer ruído.

Num movimento quase inconsciente, pus a mão no

radiador de choques que trazia no cinto. Tive a impressão

de que meu sexto sentido manifestava uma revolta

sarcástica. Por que não me dispunha a atacar os amigos de

Rhodan com uma arma mortal, já que me via obrigado a

lutar contra eles? Era um paradoxo, e o setor lógico de

minha mente me informou sobre isso através de uma série

de impulsos dolorosos.

O outro ser sem dúvida era um terrano. Soltou-se das

costas da criatura extraterrana que, por certo, havia

transportado o homem robusto. Perplexo, constatei que

subestimara as faculdades do ser inumano. Se conseguia

levar mais um corpo dentro de seu campo de

desmaterialização, as energias que podia concentrar deviam

ser imensas.

Ligeiramente encurvado, mantive-me atrás do quadro de

telecomando das máquinas agrícolas. Era uma caixa imensa

Page 172: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

172

de quase dois metros de altura, que me tiraria da visão dos

mutantes mesmo que não fosse invisível.

Viesspahn não notou a presença dos intrusos.

Continuava sentado em atitude de espreita, praguejando em

altas vozes para dar vazão ao seu descontentamento.

O ridículo ser estranho, que Rhodan costumava chamar

pelo nome de Gucky, parecia examinar a mente do

fazendeiro. De repente, compreendi que Rhodan iniciara a

operação de controle. A esta hora, felicitava-me por não ter

informado Viesspahn. Uma vez que não sabia da minha

presença, não poderia trair-me, nem consciente, nem

inconscientemente.

Um sorriso sarcástico brincava em torno dos meus

lábios. Olhei tranquilamente para a pequena plataforma do

canhão e tive vontade de rir quando Gucky fez um gesto

aborrecido. O rato gigante acabara de constatar que o

colono não conhecia meu paradeiro.

Resignado, o terrano que viera em companhia de Gucky

deu de ombros. Segundo acreditei, significava que

pretendia retirar-se dali.

Foi nesse instante que aconteceu uma coisa

inacreditável.

De repente, o terrano levantou a mão e apontou

exatamente para o lugar em que me encontrava. Ao mesmo

tempo, sua boca abriu-se. Ao que parecia, gritava. Mas não

pude ouvir por causa do furacão. Apenas sabia que o

desconhecido me descobrira, apesar do campo de deflexão

e do excelente abrigo atrás do qual me ocultara.

Acontecera! Era inacreditável. Haveria alguém que

fosse capaz de enxergar através de paredes compactas e de

um campo de deflexão de raios luminosos?

Meu sangue parecia ter uma tendência irresistível de

contrariar todas as leis naturais e concentrar-se

exclusivamente no cérebro. A surpresa produziu um choque

que poderia causar um esgotamento psíquico total em

pessoas de meu tipo, reduzindo-as à inatividade. Apenas

percebi o impulso de meu segundo cérebro, que

imediatamente entrou em funcionamento.

“O pequeno!”

Fiz pontaria com o radiador de choques. Naquele

momento o rato gigante girava o corpo com uma agilidade

extraordinária, virando o rosto para meu lado. Uma vez que

eu fora descoberto, o ser extraterreno representava o perigo

mais grave. Vira sua maneira de lidar com os colonos.

O terrano voltou a gritar alguma coisa e pôs a mão na

arma energética manual. Foi quando puxei o gatilho.

Ouvi o estrondo do raio paralisante. Vi confusamente a

luminosidade intensa, uma vez que o acúmulo de sangue no

cérebro prejudicava-me a visão.

O corpo do extraterrano foi envolvido pelo raio de

choque. Vi a boca de Gucky abrir-se num grito antes que

caísse ao chão com os músculos enrijecidos e os reflexos

amortecidos. Ficaria fora de ação pelo menos por uma hora.

O segundo disparo de minha arma de choque coincidiu

com o ataque do terrano, cujas intenções eram muito mais

sérias que as minhas.

Senti o hálito escaldante do fino raio térmico, que a

menos de dois metros do lugar onde me encontrava atingia

o encosto da poltrona giratória, reduzindo-o a uma massa

de fogo.

O desconhecido atirara apressadamente, enquanto eu

acertara mais uma vez. Seu corpo contorceu-se e caiu.

Reuniu as últimas forças e voltou a puxar o gatilho de

sua arma. O raio energético atravessou o piso de metal leve

da plataforma e com um chuvisco de fogo atingiu a caixa de

fusíveis da grade eletrificada.

Já me recuperara do perigoso momento de susto. No

instante em que as chapas de revestimento expeliam os

raios, já me encontrava na entrada da sala dos isoladores.

Com a boca escancarada, Gunter Viesspahn fitava os

vultos imóveis. Levou algum tempo para descer da

plataforma, pegar um extintor e apagar o princípio de

incêndio. Logo debelou as chamas. Retirei-me satisfeito.

Viesspahn estava fora de si. Seus olhos assustados

rolavam nas órbitas. Parecia perguntar constantemente a si

mesmo de onde haviam vindo os dois disparos de arma

paralisante.

Saí da sala enfumaçada, produzindo o menor ruído

possível. O braço esquerdo do terrano paralisado pendia da

plataforma do canhão. Vi perfeitamente que a pequena luz

de chamada do microrrádio preso ao seu pulso começou a

piscar.

Concluí que os dois agentes não estavam sós. Se não me

enganara, Perry Rhodan devia estar próximo.

Provavelmente viera com um destacamento do serviço de

defesa. Um homem do seu feitio só realizava um golpe de

surpresa em boa forma.

Sabia que não tinha um segundo a perder.

Com a maior rapidez, mas tranqüilo e perfeitamente

equilibrado, retirei-me para o pequeno depósito onde

dormira nos últimos dias. Peguei a mochila na qual

colocara boa quantidade de alimentos concentrados,

pendurei-a nos ombros e prestei atenção para que fosse

atingida pelo campo de deflexão.

Realizei as últimas regulagens de precisão, examinei a

pesada arma de impulsos e abri o alçapão da galeria de

emergência que Viesspahn construíra há um ano.

A galeria descia íngreme. Terminava num degrau, e de

lá seguia diretamente para o rio Hondo.

Havia outra galeria subterrânea que ia até a sala dos

reatores, ligando a torre energética com a residência.

Se Rhodan avançasse para esse lado, não me encontraria

mais. O caminho até o conjunto de edifícios residenciais

certamente já fora bloqueado.

Foi em virtude de uma sequencia de conclusões lógicas

que escolhi o túnel pouco confortável.

Prestei atenção aos ruídos vindos de baixo antes de

bater a pesada tampa-alçapão. Fechei a tramela interna,

embora soubesse que um ligeiro disparo energético bastaria

para destruí-la juntamente com o alçapão. No entanto, de

acordo com um calculo rápido, seria necessário um

esfriamento de pelo menos quinze minutos antes que

Page 173: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

173

alguém pudesse seguir-me pelo tampão fundido.

A galeria era circular e não tinha mais de um metro de

altura. Tive que abaixar-me bastante e segurar a pesada

arma energética em posição inclinada. Minha lâmpada

recarregável emitia uma luz forte, que iluminava

profusamente as paredes vitrificadas pela fusão.

Já andara várias vezes por esse caminho. Sabia que

tinha pouco menos de seiscentos metros. Desta vez, não fiz

nenhuma pausa para deitar e descontrair as costas doloridas.

Rhodan não pertencia à classe de pessoas que, numa

situação crítica, costumam presentear alguém com

segundos preciosos.

Gucky era um ótimo telepata. Rhodan também possuía

esse dom, mas em grau bem menor. Por isso, já devia saber

que seu pequeno amigo havia sido colocado fora de ação.

Enquanto prosseguia apressadamente, fiquei refletindo

com a necessária frieza sobre como o terrano me poderia ter

visto. Ao que tudo indicava, tratava-se de um homem

pertencente ao Exército de Mutantes de Rhodan. Se é que o

desconhecido conseguira romper o campo de deflexão com

a vista, também seria capaz de superar camadas de matéria

compacta.

Mas, segundo parecia, não possuía qualquer outro dom.

Agira acertadamente ao colocar fora de ação em primeiro

lugar o rato gigante.

O rosto largo do mutante desconhecido surgiu na minha

imaginação. Depois que os telepatas de Rhodan falharam

por completo em virtude de meu bloqueio mental,

transformara-se no mais perigoso dos meus inimigos.

Provavelmente Rhodan mandaria seu espia aos lugares

mais críticos. Assim que me localizasse, as pessoas que

estivessem em sua companhia poderiam abrir fogo, ou

atacar-me com recursos extrassensoriais.

“Você deveria tê-lo matado, seu idiota!”, disse meu

supercérebro.

Cerrei os lábios, respirei profundamente e prossegui

mais depressa. Sem qualquer pausa a longa caminhada

transformou-se num martírio. Mas não poderia perder

tempo.

Quando finalmente cheguei ao alargamento da galeria,

ouvi as águas do Hondo rugirem atrás de uma porta de aço.

O furacão continuava a uivar. Na zona da penumbra, as

tormentas são muito prolongadas.

Abri a porta de pouco menos de dois metros de altura e

olhei cautelosamente para o setor da galeria, cujo solo já

estava coberto pela água. Mais adiante, o barco de plástico

blindado pertencente à Viesspahn balançava nas ondas.

Era uma embarcação inteiramente estável e coberta. O

maquinismo trabalhava segundo o princípio da

retropropulsão: a água aspirada por uma potente turbo-

bomba era expelida sob alta pressão através de um bocal

móvel, que tornava dispensável o leme convencional.

Tivera a cautela de familiarizar-me com o manejo de barco,

fato que agora me seria muito útil.

Subi pela estreita escada de alumínio, que levava a um

pedestal de rocha. Quando abri a escotilha do barco, à

prova de água, a pequena luz sobre a roda do leme acendeu-

se.

Estava tudo em ordem. Abri a tampa da máquina e

certifiquei-me de que o dispositivo de voo unipessoal, que

escondera há dois dias, ainda se encontrava no mesmo

lugar. Durante esse tempo, Viesspahn não se interessara

pelo barco.

Coloquei minha arma sobre o banco dianteiro, ativei o

minirreator, do tamanho de uma garrafa, e empurrei a chave

do potente motor da bomba para a direita.

O barco arrancou com um solavanco, reagindo

imediatamente à pressão do leme. Sabia que, naquele lugar,

o rio Hondo com seus cinco quilômetros de largura devia

parecer-se com um oceano fustigado pela tempestade. Mas

não tive outra alternativa senão utilizar este caminho para

afastar-me da área de perigo.

Comprimi os pés contra a parede dianteira e regulei a

máquina para a velocidade máxima. O barco deu um salto

para a frente, rompeu a vegetação aquática que margeava o

barranco e disparou para a grande baía.

O furor primitivo da tormenta envolveu-me. Acima das

margens íngremes e elevadas, um grupo de demônios

parecia lutar pelo domínio do ambiente.

Enquanto me encontrava sob a proteção da baía, não

tive maiores dificuldades. Estas começaram quando atingi

as águas abertas.

De repente, o pequeno e largo turbo-barco foi atingido

pelas ondas. Até parecia que avançara para o mar aberto.

Antes de dar-me conta do que estava acontecendo, a

cobertura de plástico blindado estava sendo lavada pelas

ondas espumantes.

Quase não dei a menor atenção à fúria dos elementos.

Uma vez que o vento soprava da esquerda, tive de usar toda

a força do motor para evitar que o barco fosse tangido para

a margem. Pretendia afastar-me o mais possível do

barranco, a fim de que o barco fosse envolvido pelo

negrume que cobria o centro da corrente. Seria de admirar

se lá ainda conseguissem localizar-me pelo radar.

Dentro de poucos segundos, o veículo aquático,

balançando e jogando em todas as direções, saiu do abrigo

que os barrancos ofereciam contra o vento. Não via mais

nada. Em torno, as águas geralmente tão tranquilas

borbulhavam como se um grupo de monstros invisíveis

estivesse empenhado em rasgar o leito do rio.

A seguir, comecei a acreditar que escapara às forças

que, sem dúvida, haviam pousado nas proximidades. Mal a

ideia aflorou em minha mente, um inferno foi desencadeado

atrás de mim.

O barulho do furacão não me permitiu ouvir o ribombar

dos disparos. Em compensação, vi a luz branquicenta dos

fluxos energéticos, que atingiam a água de um e outro lado

do barco saltitante, produzindo torvelinhos fumegantes.

Mantive-me absolutamente tranquilo e inabalável. Um

arcônida da minha época não entra em pânico quando surge

um fenômeno já esperado. Apenas me esforcei para fazer o

barco indomável dançar ainda mais furiosamente.

Page 174: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

174

Dali a alguns segundos, os disparos atingiam a água a

distâncias cada vez maiores. Ao que tudo indicava, as miras

automáticas passaram a localizar troncos flutuantes.

Depois do último lampejo, percebi que me encontrava

aproximadamente no meio do rio. Deixei o barco entregue à

corrente impetuosa que, juntamente com a tormenta vinda

de trás, me afastava da zona de perigo. Seria difícil avaliar a

velocidade, mesmo aproximadamente. Vez por outra, a

quilha arranhava em obstáculos. No Hondo, havia

numerosos baixios, e apenas poderia fazer votos de escapar

aos mesmos.

Lancei o aparelho de imagem infravermelha, que me

proporcionaria ao menos uma ligeira visão dos arredores. O

rio parecia uma gigantesca panela em ebulição. Minha

segurança era apenas relativa, pois Rhodan sabia

perfeitamente que durante a tormenta suas aeronaves seriam

inúteis. Por isso, esperava que o furacão ainda durasse

bastante, muito embora o vento que vinha em rajadas

indicasse que as fúrias da natureza estavam próximas do

fim.

Pelo que sabia, as célebres cataratas de Marshall

ficavam cerca de treze quilômetros abaixo do lugar do qual

partira. Ali, as águas do Hondo se precipitavam de uma

altura de quase cinco quilômetros. Evidentemente não

poderia arriscar um salto desses.

Vi que havia subestimado a velocidade do barco. Antes

que pudesse elaborar meu plano, ouvi um rugido que

superava o da tormenta que já diminuía.

Bem à minha frente, observei algumas rochas cheias de

arestas que se erguiam em meio às águas. Pouco abaixo

delas, as águas começavam a cair. Como a força da

correnteza fosse terrível, tomei imediatamente o rumo da

margem ainda distante.

No último instante, consegui escapar à sucção das

águas. A quilha tocou em algo. Houve um estalo que

parecia indicar desastre. O barco encalhara justamente num

trecho rochoso da margem do rio.

Desliguei o motor e esforcei-me para ouvir os ruídos

vindos de fora. Bem ao leste, o céu já começava a clarear na

medida em que isso era possível na zona de penumbra. Se

quisesse aproveitar a semiescuridão e as últimas rajadas de

vento, teria que agir com a maior rapidez.

Antes de sair da escotilha da cabine, coloquei o aparelho

de voo, formado por dois minúsculos rotores de três paletas

que giravam em sentido oposto, e que se abriam com a

força centrífuga.

No momento, as paletas elásticas estavam reduzidas a

um pacotezinho, que mal aparecia em cima da mochila,

juntamente com o minúsculo reator.

Depois que desci, fui recebido pelo vento. A tormenta

era muito mais forte do que supusera no interior da cabine.

Girei a popa do barco para o lado do rio, inclinei-me bem

para frente, empurrei a chave do motor para a velocidade

máxima e deixei que a embarcação se precipitasse água

adentro.

Com os olhos pensativos, contemplei o barco que se

afastava em alta velocidade. Logo foi levado pela

correnteza. Dentro de poucos instantes, desapareceu em

meio às vagas.

Restava saber se Rhodan acreditaria no acidente que

acabara de encenar.

“Tanto faz; procure ganhar tempo!”, disse o setor

lógico de minha mente.

Confirmei com um gesto. Não havia a menor dúvida de

que um pequeno ganho de tempo assumia a maior

importância. Rhodan teria o cuidado de examinar os

destroços do barco e procurar meu cadáver. Não tive a

menor dúvida de que se lembraria da perigosa catarata.

Seria perfeitamente lógico contemplar a possibilidade de

uma queda.

Era um estranho na região, estava fugindo e, além disso,

a tormenta rugia em torno de mim. Não haveria nada mais

natural do que a suposição de que poderia ter ocorrido um

acidente.

Esperei sob a proteção do barranco até que a tormenta

amainasse. Quando tive a impressão de que o tempo já era

suportável, abri a alavanca telescópica que servia para

controlar a direção e a velocidade do voo. A pequena

mochila que carregava nas costas transformou-se num

aparelho de voo.

O zumbido do motor energético embutido na cabeça dos

rotores foi superado pelo matraquear agudo destes que se

abriam. Subia suavemente ao ar brumoso e úmido, mas

preferi manter-me abaixo das copas das árvores que, se

necessário, me ofereceriam um abrigo facilmente

alcançável.

Dali a poucos segundos, a maior queda d’água até então

descoberta em Vênus espumejava embaixo de mim. Senti

um calafrio ao lembrar-me de que nessa altura poderia estar

lá embaixo, com o corpo esmigalhado.

Regulei a alavanca para a progressão do voo.

Desenvolvendo cerca de cento e cinquenta quilômetros por

hora, deslizei tão perto da água que, vez por outra,

levantava, os pés para evitar os blocos de pedra que

surgiam de repente.

Meu destino era Port Vênus. Num gesto de resignação,

desisti de bancar o “desaparecido”. Um homem como Perry

Rhodan não se deixaria enganar tão facilmente.

Há poucas horas namorara a ideia de assumir o controle

do grande centro de computação de Vênus. Conhecia

perfeitamente as instalações, e sabia como fazer para atingir

as cavernas através das galerias de emergência.

Mas agora, que Rhodan procedera com tamanha

coerência para descobrir meu paradeiro, todos os planos se

haviam frustrado. Esse bárbaro de olhos cinzentos pensaria

antes de tudo, no cérebro positrônico que poderia estar

exposto a um perigo. Por isso, não tinha a menor dúvida de

que o precioso centro de computação estava sendo

submetido a uma vigilância extremamente rigorosa.

Minha grande chance só poderia ficar no centro dos

acontecimentos, ou seja, em Port Vênus. Já percebera que o

melhor esconderijo para um homem na minha situação era

Page 175: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

175

uma grande cidade com sua turbulência. Em algum

momento, surgiria a oportunidade de apoderar-me de uma

nave capaz de desenvolver velocidade superior à da luz,

estacionada no espaçoporto, ou de penetrar num veículo

espacial de grandes dimensões sem ser percebido.

Nos últimos dias, poupara meu defletor de ondas

luminosas. Voltei a ligá-lo, porque agora havia o risco de

ser descoberto.

Não ouvi as aeronaves de Rhodan. Provavelmente, o

soberano do sistema solar ainda estaria ocupado no

interrogatório, embora Viesspahn nada pudesse esclarecer.

Voltei a ter ânimo. De repente, a

situação já não parecia tão desesperadora:

chegaria a Port Vênus.

“Aonde irá?”, indagou o setor lógico

de minha mente. “Pretende procurar

Marlis?”

Não; para mim a moça passara a ser

tabu. Quando muito poderia contemplá-la

de longe.

Enquanto prosseguia pelo leito do rio,

aproveitando tudo que pudesse representar

um abrigo, resolvi escrever a Perry

Rhodan a fim de pedir clemência para

Marlis. Sem dúvida, esse bárbaro

inteligente já percebera que a mesma só

havia desempenhado um papel secundário.

“Aonde irá em Port Vênus?”, voltou a

perguntar meu segundo cérebro.

Procurei lembrar-me das várias

possibilidades, até que o grande museu

terrano me veio à mente. Era isso mesmo!

Por que não me esconderia ali? As salas eram amplas e

difíceis de serem abrangidas com a vista. Se realmente

aparecesse aquele estranho mutante com sua capacidade

visual, ainda poderia escapar. De qualquer maneira, seria

uma posição favorável para agir prontamente assim que

chegasse o momento. Provavelmente teria que matá-lo.

Bastaria que demorasse alguns segundos a fim de

concentrar sua mente para que eu tivesse uma boa

possibilidade de atacá-lo. Um homem do meu tipo não se

impressiona com coisas aparentemente sobrenaturais.

Mesmos os mutantes de Rhodan eram apenas seres

humanos com seus defeitos e fraquezas.

O plano que previa minha permanência no museu

terrano deixava-me cada vez mais feliz. Talvez a ideia

fundava-se menos na lógica que no sentimento.

Ninguém conhecia o passado da Terra tão bem quanto

eu. Já vivia quando os primeiros mercadores romanos se

dirigiram à Germânia para trocar as armas de ferro por ouro

e âmbar. Levei Leif Erikson a prosseguir na sua viagem

para o Ocidente, até que atingisse a costa americana.

Os numerosos objetos que deviam estar guardados nesse

museu atraíam-me e fascinavam minha mente. Além disso,

no subsolo do edifício existia um restaurante, que garantiria

a alimentação.

A ideia tranquilizava minha consciência. Meu segundo

cérebro permaneceu quieto. Ao que tudo indicava percebera

que havia atingido certo estágio de esgotamento.

Provavelmente, em algum canto recôndito de minha

mente, já havia fluxos emocionais que me faziam perceber

a inutilidade de prosseguir na fuga.

Era jovem de corpo e de alma, mas os séculos passados

não poderiam ser deixados de lado. Trouxeram-me um

cabedal enorme de experiências e decepções. Meu saber, os

sofrimentos pelos quais havia passado e as alegrias de que

desistira a contragosto atavam-me à Humanidade com uma

força muito maior do que eu mesmo estava

disposto a reconhecer.

Por que procurava escapar desses

bárbaros adoráveis? Seria a teimosia, o

orgulho ou o sentimento do tradicional que

me fazia agir assim? Talvez fosse certa

presunção gerada pela minha elevada

ascendência. Por dez milênios, fora um

mestre para a Humanidade. Dirigira as

grandes cabeças e promovera a ocorrência de

fatos que a historiografia considerava

estranhos e quase inacreditáveis. Até hoje os

historiadores costumam indagar como os

elefantes de Aníbal conseguiram atravessar

os Alpes. Na época pretendia destruir o

poderio romano, pois não estava interessado

na existência de um império parado no

tempo.

Quando quase esbarrei num galho que

boiava, chamei-me à ordem. Essas reflexões

eram absurdas. Por enquanto, pretendia ir

para casa, onde seria meu lugar. Provavelmente meu

venerável povo também precisaria de auxílio.

Logo após o anoitecer, camadas de nuvens grossas e

pretas como veludo estenderam-se sobre Port Vênus. O

movimento nos salões do museu terrano foi diminuindo, até

cessar por completo.

Durante a longa noite de Vênus, os colonos

costumavam permanecer em suas fazendas, a fim de

espantar os monstros que agiam na escuridão.

Quando os últimos visitantes desapareceram e as luzes

acenderam-se em Port Vênus, voltei a ativar meu defletor

de ondas luminosas. Estava na hora de tomar precauções

contra os seres que ali poderiam penetrar de surpresa, e que

só seriam vistos depois de se terem materializado.

Voltei a transformar-me num ser invisível, o que entre

outras coisas me levou a vagar calmamente pelos enormes

salões. Muitos dos objetos aqui expostos, e que

simbolizavam o grande passado da Terra, não eram

genuínos. Todos os esforços foram feitos para que as

imitações fossem as mais fiéis possíveis, mas nem sempre

9

Page 176: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

176

esses esforços foram bem-sucedidos.

O salão em que estavam expostas as armas da Germânia

antiga e dos países nórdicos deixou-me bastante chocado.

Em parte, as espadas afiadas de ambos os lados eram muito

grandes e pesadas. Até parecia que naquela época só

existiam gigantes e atletas. Na verdade, os homens da

Antiguidade geralmente eram menores e mais fracos que os

de hoje.

Em toda parte, encontrava falsificações históricas, mas

ainda assim encontrei muita coisa boa e bela. Não me

cansava de contemplar as testemunhas mudas do passado

turbulento.

Fazia cerca de vinte horas que ninguém aparecia no

museu. Os portões ficaram fechados e os grandes tubos

luminosos foram desligados. Apesar disso, a luz era

suficiente para que se pudesse examinar e tocar

cautelosamente os objetos expostos.

Port Vênus estava dormindo. Os homens haviam trazido

da Terra os seus hábitos de vida. Uma vez que o sono era

biologicamente condicionado, não havia como adaptar-se

aos longos períodos diurnos e noturnos daquele mundo

estranho. Dormia-se e trabalhava-se a intervalos prefixados,

quer fizesse sol ou não.

A angústia me martirizava. Há várias horas chegara ao

museu, são e salvo, e desde então não enfrentara a menor

dificuldade.

No subsolo, retirei minha ração de alimentos do

autômato. Não peguei nada de ninguém, com exceção de

uma pesada arma portátil que tirei do cinto de um colono

embriagado. Só posteriormente notei que se tratava de uma

arma fornecida gratuitamente pelo governo.

O fato representava um risco, pois o homem certamente

notificaria a autoridade em relação ao objeto de que se vira

privado. Acontece que seria desagradável continuar

carregando constantemente o desajeitado fuzil energético.

Por outro lado, não desejava ficar sem uma arma e, naquela

altura, não considerava o radiador de choques uma arma na

verdadeira acepção do termo.

Quando os grandes portões se fecharam lá embaixo, o

sentimento da solidão começou a dominar-me. Levantei-me

nervosamente do leito, que consistia na réplica da cama de

luxo de Luís XIV.

Há uma hora vagava pelos diversos setores. Parava num

e noutro lugar, mergulhado em recordações, até que voltei

ao salão com os objetos da Germânia.

Bem atrás, havia um barco dos vikings. Não media mais

de quinze metros, o que não condizia com os objetos

colocados no mesmo. Os barcos do século IX eram

maiores.

Os bonecos de plástico deveriam representar vikings

noruegueses. As vestimentas e as armas eram

aproximadamente corretas. Apenas, os capacetes pontudos

enfeitados com chifres haviam sido providos de protetores

de nariz e orelhas feitos de ferro. Isso não correspondia à

verdade. Já havia visto um capacete desse tipo, mas o

mesmo provinha de uma oficina pertencente a Carlos

Magno.

Parei diante do boneco que representava um enorme

viking. Sua mão direita segurava uma espada afiada de

ambos os lados e a esquerda, um escudo redondo.

Sim, era mais ou menos assim que foram aqueles

homens rudes e destemidos do Norte. Recuei para examinar

melhor o boneco.

Porém, ouvi o ruído produzido pela ponta de lança que

penetrava no boneco. A haste do artefato, arremessado com

uma força terrível, balançava...

O ferro cravara-se bem no peito do boneco. O objeto de

plástico começou a cambalear e finalmente tombou

lentamente, como que a contragosto. A lança caiu

ruidosamente ao solo.

Parei estupefato. Ouvi o rufo de tambores. Levei algum

tempo para compreender que eram as batidas de meu

coração.

Virei lentamente a cabeça, tendo o cuidado de não tirar

os pés do chão. Não vi ninguém. O salão, perfeitamente

visível em todos os cantos, estava vazio como nas horas

precedentes.

Havia alguém, mas não vi nenhuma criatura humana.

Quem me teria golpeado com minhas próprias armas?

Continuei a confiar no campo de deflexão, motivo por

que não saí do lugar. Se algum mutante tivesse penetrado

ali, não seria o espia, pois o mesmo não possuía o dom da

teleportação. Quem teria penetrado ali, e de que forma teria

arremessado à lança?

— Se eu fosse você, já teria mudado de lugar, arcônida

— disse um homem em tom irônico.

Comprimi as mãos contra a boca, para reprimir um

gemido. Por um instante, meus pés pareciam paralisados.

Quando procurei movê-los, recusaram-se a obedecer.

A voz era inconfundível.

— Estou adivinhando seus pensamentos, arcônida —

soou a voz de Rhodan, que ressoava pelo amplo salão.

O tom irônico em que foram proferidas estas palavras

fizeram meu sangue ferver. A estupefação diminuiu

rapidamente. Logo recuperei o autocontrole. Porém achei

preferível não mudar de posição, a fim de não produzir

qualquer ruído que pudesse trair-me. Talvez fosse por

simples coincidência que a lança atingira o boneco tão perto

do lugar onde me encontrava.

Não respondi. Por um instante, o silêncio foi total.

Subitamente ouvi a risadinha de Rhodan. A cólera

apoderou-se de minha mente. Quem dera que esse homem

não demonstrasse uma arrogância tão repugnante!

— Poderia tê-lo matado, oh, imortal — disse meu

inimigo invisível. — É estranho, não é? Como é que um

imortal pode ser tão vulnerável? Já sei o que vem a ser o

aparelho que você costuma carregar no peito. Examinei

certos relatórios do século dezessete. Um médico de

Gustavo Adolfo, rei dos suecos, deixou um manuscrito no

qual relata uma operação bastante estranha. Um homem

alto e louro vindo do norte deu-lhe instruções exatas sobre a

maneira de realizar a intervenção. O médico falou num

Page 177: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

177

“recipiente brilhante” com uma agulha na ponta. O oficial

louro espetou-se com a mesma e depois disso perdeu a

sensação da dor. O médico teve que retirar de seu estômago

um objeto vermelho e brilhante em formato de ovo. Foi

você, arcônida. Será que pretende negar?

Não respondi. Pois bem; haviam descoberto meu

segredo. Meu raciocínio embrutecera tanto que o fato não

provocou a menor sensação em minha mente.

— Pode contar. — voltou a falar a voz. — Tenho sua

imagem na tela do localizador individual. Como sabe,

possuímos todos os dados relativos à frequência de suas

vibrações orgânicas. Não haveria nada mais natural que

construir um aparelho especialmente adaptado às mesmas,

não é? Em parte, as vibrações de suas células desenvolvem-

se na quinta dimensão. Por isso não são absorvidas pelo

campo de deflexão. Não acha que somos inteligentes?

“Inteligentes demais”, avisou meu segundo cérebro.

Isso mesmo! Rhodan acabara de cometer um erro.

Conhecia as irradiações de meu organismo. Eram mínimas

e só poderiam ser captadas se o receptor estivesse

perfeitamente ajustado. Bastaria dar alguns passos para

colocar-me fora do alcance do localizador. Depois que me

procurasse, esse bárbaro de olhos frios.

Saí correndo. Foram os saltos do desespero que me

fizeram passar por cima do barco e abrigar-me atrás do

mesmo. Deitei no chão e procurei um alvo para minha

arma.

Esforcei-me para ouvir a respiração de Rhodan. Teria de

encontrá-lo, mesmo que estivesse usando um defletor de

ondas luminosas igual ao meu. Provavelmente mandara

retirar o aparelho de um traje arcônida. Por que não me

lembrara dessa possibilidade?

— Não adianta — gritou.

Os sons pareciam vir do lado da porta, mas era possível

que estivesse enganado. Neste recinto as ondas sonoras

sofriam numerosas interferências.

— Não adianta mesmo — enfatizou Rhodan. — Este

salão possui uma única porta, e meus homens estão de

guarda. Vim sozinho para provar que o poder que você quer

encarnar já não é o mesmo de mil anos atrás. Entregue-se,

arcônida!

Quase cheguei a trair-me. Rhodan principiara com uma

campanha psicológica. Provavelmente procurava colocar-

me outra vez na tela de seu localizador. Viera só porque

não havia outra possibilidade. Talvez um teleportador o

tivesse colocado diretamente diante da porta. Duvidava de

que seus homens se encontrassem do lado de fora. Rhodan

costumava lidar em pessoa com os assuntos difíceis.

Quanto mais esperava, maiores seriam suas chances de

bloquear o museu.

De repente, o achei odioso. Sempre fora a barreira que

se opunha ao curso das minhas ações.

O silêncio começava a tornar-se penoso. Meu instinto

dizia-me que o jogo devia irritá-lo. Conhecia as pessoas do

tipo de Rhodan. Deixam passar uma boa chance, apenas

para satisfazer a vaidade pessoal. Deveria ao menos ter-me

ferido com a lança quando ainda não tinha a menor ideia da

sua presença.

Estava procurando outro abrigo quando outro objeto

atravessou o ar com um chiado. Antes que esfacelasse as

tábuas do barco, reconheci a direção do voo. Devia

encontrar-se ao lado direito da porta.

Levantei o radiador de impulsos; mas preferi não atirar.

No último instante, lembrei-me dos efeitos devastadores

que um incêndio de grandes proporções causaria naquele

local. Talvez nem conseguisse sair do salão.

Hesitei. Rangi os dentes de raiva, baixei a arma e

procurei pegar a arma de choque, relativamente inofensiva.

Ao que parecia, Rhodan também sabia por que atirava

lanças.

Ouvi sua risadinha. Descobrira-me.

— Você está preso ao passado, não é? Seria uma pena

queimar todas estas coisas bonitas. Você está novamente na

minha tela, arcônida. Vejo-o atrás do barco dos vikings. Já

percebeu que poderia matá-lo com um tiro energético?

Perdi o autocontrole. A calma de Rhodan e o tom de

superioridade ao pronunciar aquelas palavras despertaram

em minha mente o orgulho desarrazoado e teimoso, que

sem o menor fundamento lógico exige uma autoafirmação.

Esse traço emocional, bastante pronunciado nos

arcônidas da minha linhagem, já me colocara várias vezes

em perigo de vida.

Saí de trás do meu abrigo, apenas para provar que

dispensava conscientemente a compaixão oferecida.

— Que gesto heroico! — disse a voz de meu inimigo

invisível. — Não faça tolices. Meus homens realmente

estão lá fora, e Wuriu Sengu o verá imediatamente, mesmo

que consiga chegar à porta.

Sabia que estava blefando. Não havia ninguém lá fora.

O orgulho vão e a vaidade ferida fizeram-me dar um

passo que, naquele momento, poderia parecer absurdo.

Acontece que vi nele minha última chance.

Nunca poderia acertá-lo, porque depois de cada

arremesso de lança mudava de posição. Devia fazê-lo

abandonar sua posição favorável antes da chegada dos

homens que poderiam ajudá-lo. Se resolvesse atirar, estaria

perdido. Confiei nos traços de seu caráter, que

provavelmente não lhe permitiriam atirar contra um homem

indefeso. No meu íntimo, declarei-lhe a guerra psicológica.

Com um baque surdo, minhas armas caíram ao chão.

Rhodan riu.

Depois lhe disse com uma ironia igual à que vinha

usando comigo:

— Pode atirar seu bárbaro de uma figa. Devo estar bem

visível. É uma pena que poucos dias atrás não puxei o

gatilho. Você estava na minha mira, depois que teve a ideia

idiota de destruir o helicóptero vermelho de Viesspahn.

Será que você realmente acreditava que não percebi suas

intenções? Encontrava-me a seu lado quando deu ordem

para revistar os destroços.

Desta vez fui eu quem riu. Ao que parecia, minhas

palavras roubaram-lhe a fala. De repente, o jogo me

Page 178: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

178

estimulava. Avancei mais um passo, desligando meu campo

de deflexão. Tornei-me visível.

Quando me abaixei para tirar a espada da mão de

plástico do boneco viking derrubado, só poderia fazer votos

de que Rhodan não tivesse um radiador de choques.

Dificilmente atiraria com o mortífero radiador energético.

Coloquei-o diante de um difícil problema de

consciência, calculando tranquila e minuciosamente os

diversos fatores e considerando suas fraquezas. Se tivesse a

imprudência de aceitar meu desafio...

Pesei a espada na mão direita, levantei-a e dirigi-me

lentamente à porta que ficava a menos de quarenta metros.

Rhodan continuava calado. Todos os sentimentos

pareciam ter morrido em minha mente. Meu sexto sentido

envolveu-me numa letargia dolorosa. Nem um único

impulso conseguiu romper o bloqueio.

Caminhei lentamente sobre o forro brilhante de plástico

que revestia o soalho. Meus sapatos rangiam. Afastava-me

cada vez mais das armas realmente eficientes que deixara

no chão.

Num escudo polido, percebi que meus lábios se haviam

contorcido num sorriso sarcástico. Transformara-me no

desafio em pessoa. Só mesmo um patife sem o menor

sentimento de decência atiraria contra mim de uma posição

absolutamente segura.

Quando alcancei o centro do salão, já sabia que ele não

tinha nenhuma arma de choque. Sem dúvida, refletia

febrilmente sobre o meio de colocar-me fora de ação.

Se seus homens se encontrassem do outro lado da porta,

não deixaria de chamá-los numa situação como essa.

Afinal, eu não estava mais invisível. Afinal, seu orgulho e

espírito humanitário não iriam ao ponto de dar uma boa

chance a um elemento perigoso como eu.

— Pare! — disse. — Se der mais um passo, serei

obrigado a matá-lo. Não pense que escapará depois de tanto

trabalho para descobri-lo. Arcônida cometeu um erro ao vir

a este museu. Meus psicólogos calcularam que este edifício

seria um local de permanência muito atraente para você.

Além disso, roubou a arma de um colono. Encontramos

suas impressões digitais no coldre, que evidentemente foi

examinado assim que o homem denunciou a perda.

As palavras foram sendo pronunciadas cada vez mais

apressadamente. Rhodan encontrava-se num beco sem

saída. Desconfiei de que a denúncia do furto da arma fora

dada com alguma demora. Talvez, antes disso, o colono

procurou descobrir pessoalmente a preciosa arma. Ninguém

saberia dizer quais foram as pessoas de quem chegou a

suspeitar.

— Foi uma ótima ideia, homem das cavernas. Depois

você veio imediatamente, não é?

Escutei minhas próprias palavras. Enquanto isso eu

caminhava tranquilamente em direção à porta. Estaria

percebendo minha tensão interna?

Será que sabia, ou ao menos imaginava que como

gladiador eu enfrentei na arena romana os homens mais

hábeis no manejo da espada?

Em caso afirmativo, nunca se deixaria levar a enfrentar-

me com esse tipo de arma. Até onde conseguira investigar

meu passado? Apenas até o tempo de Gustavo Adolfo?

Naquele tempo, já se lutava com outro tipo de espada. Será

que seu orgulho e autoconfiança seriam suficientemente

fortes para incutir-lhe a ideia de que estaria em condições

de bater-se comigo? Se já tivesse recebido lições de

esgrima, dificilmente deixaria de ter essa ideia, ainda mais

que eu tanto o provocava.

Qual teria sido o currículo de Rhodan? Será que naquele

tempo a esgrima constava do programa da academia

espacial? Não sabia, mas a conduta, que ele adotasse dali

em diante, me esclareceria a este respeito.

Quando me encontrava a vinte passos da porta, uma

lança germânica saiu do suporte. Mais adiante estavam

expostas armas alemãs.

Metade da lança desapareceu no campo de deflexão de

Rhodan. Apenas a ponta larga continuava visível. Foi

levantada. Estava assumindo a posição de arremesso.

— Pare! — advertiu em tom apressado. Sua voz

vibrava. Rhodan encontrava-se sob os efeitos do flagelo

psicológico. Esse homem não atiraria contra mim com uma

arma atômica, Meus cálculos foram corretos.

— Você sabe atirar, bárbaro — disse com um sorriso.

Depois arremessou para valer. Vi a ponta reluzente da

lança deslocar-se rapidamente para trás. Estava tomando

impulso. Quando o projétil cortou o ar, desviei- me com um

salto rápido. Minha gargalhada sarcástica acompanhou a

lança que acabara de errar o alvo.

Continuei a caminhar em direção à porta. Conforme

esperava, Rhodan tornou-se visível de um instante para

outro. Usava um uniforme simples. Com o corpo encurvado

e a pistola apontada para mim, mantinha-se junto à coleção

de armas germânicas. Seus olhos chamejavam. O problema

de consciência martirizava-o.

— Se fosse você já teria atirado bárbaro — disse em

tom tranquilo.

Um suspiro profundo e raivoso saiu de seu peito. A

arma de impulsos desapareceu no coldre. Com um

movimento rápido, pegou uma espada.

— Seu rebento arrogante do Império! — exclamou. —

Se você pensa que eu...

— Apenas penso que já teria atirado. Lamento não ter

usado suas costas como um alvo — interrompi-o com nova

menção do fato de ter poupado sua vida. Essa observação

arrasava-o moralmente, mas no estado de exaltação em que

se encontrava não descobriu a finalidade de minhas

palavras.

Dali a alguns segundos, vimo-nos frente a frente.

Estendeu a espada pesada para frente, à maneira dos

esgrimistas. Não se lembrou do fato de que, com um

instrumento pesado como este, não se devem fazer

brincadeiras dessa espécie.

Golpeava como se segurasse uma lâmina leve. Não

aguentaria mais que dois minutos: seu braço perderia a

força.

Page 179: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

179

Defendi-me sem maiores dificuldades, saltitando para o

lado. Depois de meu primeiro golpe, que lhe arranhou o

braço, percebeu que cometera um engano fatal.

Notei a rigidez de seu rosto. Investia contra mim sem

dizer uma palavra. A cena era igual à que se costuma ver

em filmes de terceira categoria. Defendia-me dos seus

golpes furiosos, até que consegui acertar um golpe contra

seu tornozelo direito.

No último instante, girei a espada. Assim, sua perna só

foi atingida pela parte larga da lâmina. Apesar disso, soltou

um grito e tombou ao chão. Antes que Rhodan conseguisse

reprimir os gemidos, a ponta de minha lâmina exercia uma

pressão sensível contra sua garganta. Com o pé, retirei o

radiador energético do coldre aberto.

Subitamente Rhodan calou-se. Seu rosto tornou-se

abatido; os cabelos desgrenhados cobriam sua testa.

Nossos olhos encontraram-se. Apertei mais um pouco.

— Então, seu barbarozinho — disse baixinho e sem

qualquer entonação. — Acho que você só sabe lidar com

canhões de radiação.

— Eu o odeio, arcônida! — disse.

Não se atrevia a mover um dedo.

— Foi o que o gladiador romano Marco Vinício me

disse quando sentiu a ponta de minha espada em sua

garganta. Vinício caíra no desagrado de Nero, por ter feito

algumas observações infelizes sobre o imperador divino.

Nero baixou o polegar. Quem será que deve dar o sinal no

presente caso? Como é que a gente pode cair numa destas?

É claro que seus comandos não estão por aqui.

Rhodan fechou os olhos e conteve a respiração.

Aumentei a pressão. Quando as primeiras gotas de sangue

afloraram-lhe no pescoço e suas mãos começaram a tremer

na angústia inconsciente da morte, retirei a arma.

Dei vazão ao meu nervosismo através de uma risada

estridente e histérica. Ainda estava rindo quando Rhodan já

se sentara e esfregava o tornozelo.

Não; eu não queria mais fugir. Não tinha forças! E

minha vitória sobre Rhodan confirmara tudo aquilo que já

sentira. Sabia que estava desperdiçando um tempo precioso.

De um instante para outro, poderia receber auxílio. Tivera a

intenção de levá-lo a envolver-se na luta para tornar-me

invisível e desaparecer.

Preferi não agir assim. Tudo se tornara muito absurdo.

Mesmo que conseguisse escapar, dali a poucos dias os

agentes do serviço de defesa de Vênus usariam centenas de

localizadores individuais. Nunca conseguiria entrar numa

nave espacial sem que ninguém o percebesse. Decerto, já

notara que minha fuga chegara a um beco sem saída. Tanta

coisa estava mudada.

Atirei a espada para o lado, abaixei-me e apalpei sua

perna. Rhodan ficou calado. Apenas seus lábios tremiam.

— Você deveria tirar uma radiografia, meu caro —

disse em tom tranquilo. — Tive que golpear para fazê-lo

cair. É possível que o osso esteja fraturado.

Depois disso ficamos sentados lado a lado, olhando-nos.

Passado algum tempo respondeu em voz baixa:

— Não gostaria de defrontar-me com você na época

áurea do Império, Atlan. Qual é a sua idade?

— Pouco mais de dez mil anos terranos — respondi

também em voz baixa. — O centro de computação de

Vênus foi construído sob minha direção.

Em seus olhos, surgiu um brilho no qual reconheci, num

acesso de alegria, uma expressão de respeito. Por que

tivemos a intenção de matar-nos?

— Ainda quer ir para casa? — perguntou.

Sacudi lentamente a cabeça. Não, já não queria ir para

casa. O que iria fazer no planeta Árcon?

— Não menti. O Grande Império se encontra numa

situação extremamente difícil. Ajude-me a substituir o

regente. Nós, os humanos, precisamos de gente como você.

Sorri sem dizer uma palavra. Esses bárbaros pequeninos

e tão ambiciosos sempre necessitaram do meu auxílio.

Senti a mão de Rhodan pousada no meu ombro. Ainda

se encontrava lá quando o rato gigante subitamente

materializou-se em meio à sala de armas antigas. Vi que o

“sujeitinho” segurava uma arma energética. Ao ver-nos

reunidos em atitude tão pacífica, sua boca abriu-se numa

careta de espanto. O cano da arma apontou para o chão.

— Olá — disse o rato gigante em voz estridente. — Isso

deve ser um espetáculo especial, não é?

— Fora! — ordenou Rhodan em tom tranquilo. — Saia

logo, senão ele voltará a atingi-lo com os raios paralisantes.

Chame alguns robôs enfermeiros. Acho que meu tornozelo

está fraturado. Não, nada disso. Quero que você dê o fora;

não quero que faça perguntas.

Fechei os olhos, apavorado, quando o ser extraterreno se

pôs a esbravejar. Rhodan escancarou a boca de tão

espantado que ficasse com o vocabulário de seu “estranho”

amigo.

— Ainda ajustaremos contas! — esbravejou o ser

peludo antes de desaparecer num salto de teleportação.

Apesar da dor, Rhodan soltou uma risada. Arrependi-me

de ter golpeado. Muito abatido, pedi desculpas.

— OK; esqueça-se disso — disse com um gesto de

desprezo. — Lá no espaço o inferno está às soltas. Receio

que não demorarão em desmascarar a história de minha

pretensa morte. Teria algumas tarefas para você, almirante.

Um sentimento estranho apossou-se de mim. Voltei

devagar a cabeça em sua direção.

— Você estaria disposto a confiar-me uma nave

espacial?

Confirmou com um gesto.

— Se necessário confio-lhe uma frota. Se você ama seu

povo, terá que fazer causa comum com os humanos. Que

diabo! Onde estarão os robôs enfermeiros?

Chegaram dali a poucos minutos e colocaram Rhodan

numa maca. Um oficial do serviço de defesa fez

continência. Já era meu conhecido. Tratava-se do general

Kosnow em pessoa.

Caminhei ereto entre os homens do comando terrano

que chegou momentos depois. O tenente Gmuna era um

deles. Ria com os olhos alegres.

Page 180: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

180

Dali em diante eles seriam dos meus, ou eu seria um

deles, conforme se quisesse.

Depois que Rhodan foi colocado no aparelho, também

entrei no grande helicóptero.

— Certa Marlis Gentner o espera na chefatura —

cochichou Gmuna.

— Chegou ontem e implorou para que tivéssemos

compaixão pelo senhor. Será que isso não poderia ser

evitado?

— Poderia meu filho — respondi em tom tranquilo. —

Acontece que, segundo me parece, uma pessoa de meu tipo

precisa de certo tipo de autoafirmação. Eu mesmo não sei

dizer exatamente do que se trata.

A máquina decolou. A meu lado estava deitado um

homem cujos lábios vez por outra se contorciam de dor.

Mas, quando ria, sua risada era franca e alegre. Afinal,

Perry Rhodan era mesmo uma criatura digna de minha

estima.

— Você deve ter muita coisa para contar — disse.

Respondi com um gesto pensativo. Poderia contar

histórias por anos a fio. Os milênios haviam proporcionado

o assunto.

Atlan já não representa perigo para a existência do Império Solar, pois o arcônida percebeu que

qualquer oposição aos planos de Rhodan seria insensata... Torna-se aliado de Perry.

No próximo livro da série, A Sombra do Supercrânio, surge um acontecimento com o qual

ninguém contava: os mutantes se revoltam.

Page 181: Perry Rhodan - 2º Ciclo "Atlan e Árcon" - Volume XI - Atlan, O Imortal. P- 50-54

181

Nº 55/56/57/58/59

De

Clark Darlton Kurt Mahr e Kurt Brand

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os

terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro

é formado pelo planeta Terra.

Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e

civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em

condições de enfrentar qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a

dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles

mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em

quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana. Porém as coisas

tornam-se complicadas quando dois deles fazem-se traidores...

A Sombra do Supercrânio – Volume 12

2º CICLO – ATLAN E ÁRCON

VOLUME 12

P-55 - 59