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UM POUCO POR TODA A PARTE PERSONAL MOTOGRAPHIC

Personal Motographic - Um Pouco Por Toda a Parte

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Album de aventuras e desventuras

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UM POUCO POR TODA A PARTE

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Com uma boa extensão ainda para percorrer em autovia, rumámos para Riaño por Léon e Ovie-do. A estrada que acompanha a albufeira de Ria-ño soube-me bem, num tornear de curvas suaves e rápidas com a paisagem do espelho de água à direita. Foi assim até Portilla de la Reina, altura em que volvemos à esquerda, seguindo as indi-cações do Parque Natural dos Picos da Europa em direcção a Caín de Valdeón, próxima estadia. A subida começa numa paisagem deslumbrante onde a névoa devora os cumes, deixando para os vales o misticismo que se revela mais fascinante que um dia de céu aberto.

Em Santa Marina de Valdeón começo a perceber que a assumpção de que encontraria um posto de combustível estava comprometida. A estrada estreita-se uma e outra, e outra!, vez. A luz da reserva pisca. Em cada vez que se apaga, o receio de não mais se reacender percorre-nos com um arrepio. Ainda avento um apelo deses-perado «Se avistares uma bomba…».

Chegamos a Posada onde algum alívio por avis-tar algumas casas rapidamente se esfuma em gases: os posadenses confirmam-nos que não há nenhum do desejado «sumo da vida». Eu acredi-tava que conseguiríamos percorrer a dezena de kms que faltavam até Caín. Mas estaríamos a mergulhar na interioridade dos Picos, agravan-do o problema .

Uns portugueses de carro compadecem da nossa miséria. Tentam ceder-nos alguma gasolina

usando uma mangueira desenrascada por um voluntarioso Posadense. O melhor que consegui-mos, graças aos recentes sistemas anti-roubo que equipam os carros, apenas conseguimos náuseas de tanto aspirar gases na esperança de algo líquido.

Um telefonema para o nosso estalajadeiro em Caín dá-nos uma nova alternativa… desde que consigamos chegar até ele. Arriscamos a descida prometida. No final desta, o ouro líquido. Ao lon-go do vale uma estrada fabulosa, feita em ponto morto cauteloso. Ocasionalmente disputamos os escassos metros pavimentados com os carros em sentido contrário.

Caín chega até nós numa envolvência extraordi-nária. Vale a pena vir até aos Picos e neles mer-gulhar. Quase nos esquecemos do vazio que cresce junto ao peito.

No dia seguinte a montada descansa. David, anfitrião do Hotal la Ruta, trará de Riaño um jerican de 25L (cheio de combustível, espera-mos) .Nós levantamo-nos com as galinhas para percorremos os 22km da Garganta de Cares... a pé.

O caminho conhecido por Garganta de Cares (ou Divina para alguns) acompanha o Rio homónimo por entre escarpas esculpidas no trabalho em que este se empenhou durante séculos.

Nos Picos Agosto 2007

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Há pouco de novo e diferente que se pode acres-centar a tudo o que há foi dito e escrito sobre este percurso, sendo o mais popular e emblemá-tico dos Picos da Europa. Pode ser percorrido partindo de cada uma das extremidades: Caín de Valdeón (a Sul) ou Poncebos (a Norte). A nos-sa forte recomendação, tendo feito toda a exten-são do percurso, é fazerem este no sentido Sul-Norte. A porção Sul é de longe mais esplendoro-sa e Caín é, sem comparação possível, melhor que Poncebos.

Ao sair de Caín, enquanto serpenteamos na estrada única que nos leva de volta a Posada de Valdeón, recordo-me de pensar «Vai ser difícil de superar» e é com este estado de espírito que che-gamos à entrada para o Desfiladero de los Beyos, logo após Oseja de Sajambre.

Esta estrada alinha com a qualidade das suas conterrâneas e convida-nos a fluir junto com o rio Sella até Norte, em Cangas de Onís primeiro e depois em Ribadesella.

A refeição que melhor nos soube nos Picos da Europa foi um pequeno-almoço nesta estrada num café onde vimos o Sol nascer sobre as escarpas de los Beyos, apesar de não mais ser que uma tabla de quesos de vaca produzidos no vale e um café com leche óptimo tendo em conta que nasceu em Espanha.

O percurso em estrada reservado para hoje adi-vinha-se mais curto em distância pelo que opta-

mos por visitar Ribadesella, cidade costeira da Cantábria. Esta é, contudo, destino para muitos nesta época do ano. Entre a confusão de carros e veraneantes algo frustados pela ausência de Sol e alguma chuva que nos salpica lá chegamos à costa onde a impossibilidade de nos sentarmos em qualquer sítio que fosse para comer algo (dadas as horas) leva-nos a sair da cidade com algum mal-estar, no mínimo.

No caminho para Arenas de Cabrales, onde per-noitaríamos, passamos pela estrada que no dia seguinte nos levaria a Covadonga. A chegada ao Hotel acontece bem no meio do dia pelo que o a viagem para visitar Tresviso e Sotres é adianta-da para a tarde, agora já com a bagagem no Hotel e a moto «despida».

De Arenas se chega facilmente à outra extremi-dade a Garganta de Cares por Poncebos e ao funicular de Bulnes, não recomendados, apenas valendo pela estrada e paisagem.

Tresviso é um dos pontos mais procurados pelos caminhantes para o caminho homónimo zigue-zagueante até ao Rio Deva e a La Hermida. Para os amantes da caminhada em montanha é altamente recomendado.

Na passagem, Sotres permite o descanso para depenicar (mais) um café con leche. Tempo de regressar a Arenas e de convencer mais um cozi-nheiro a servir-nos mais cedo...

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A ligação entre Saint Florent e Porto fez-se em 150km, dando à vontade para chegar após o almoço.

A vila de Porto é muito pequena e simples, bene-ficiando de uma marina recreativa artificial numa enseada privilegiada junto ao Golfo homó-nimo.

Pronto; deixámos o «Hotel Maravilha» com baru-lhinhos de pedras a rolar e lá vamos nós rumo ao Porto. Vimos finalmente um rebanho de ove-lhas a descer a encosta em alto alvoroço e a levantar pó, que agora passou a uma côr verme-lha. Esta dá o nome à Isla Rossa (Ile Rousse), onde tudo é vermelho, excepto o mar. A estrada D81 é boa e com água sempre à vista. Um cafézi-nho na praça principal e lá vamos nós.

A cidadela de Calvi é sobrevalorizada; a marina é gira e as ruas fervilham de gente e comércio.

A ligação pela D81B é um calvário: remendos feitos ao longo de 40 anos e a chegada a Galéria é decepcionante... mas, Viva!, avistámos o pri-meiro Cane Corsu.

De volta ao calor e aos remendos da estrada, vamos percorrendo estrada de vegetação quei-mada e novamente nascida. São extensões enor-mes de montanha vermelha com mata mediter-rânica.

Uma pequena e dolorosa caminhada leva-nos ao

cimo de um promontório de onde se avista Giro-lata. Mais um pouco e chegamos a Porto, foz do único rio digno desse nome que até então avistá-mos.

Descemos novamente as Calancas, desta feita às 07h00, altura em que o esplendor não tem tanto impacto.

Fugindo das hordas de paraplégicos de autocar-ro, rumamos a Ajaccio. Cidade bastante povoada e com imensa vida, é antecedida por montes e vales bastante cultivados. Dá para perceber que os cavalinhos imperam aqui o já se avistam mui-tas casas de férias junto às praias.

Nestas estradas passou-nos à frente, e a toda a bisga, um javali!

A chegada a Ajaccio ainda de manhã fez-se sobre 42ºC (e cerca do dobro dentro do fato da mota). Banho e lá vão eles.

Para fugir ao calor, rumamos a Bastelica e às florestas interiores mais frescas. Morangos em estufa, tomate, zonas cultivadas, melão e tudo o que se possa pensar.

Vimos finalmente um burrico à saída de Basteli-ca. Apontamos agora para as Sanguinaires onde bebemos o final de dia na Ponte de la Parata.

O jantar é sempre uma indecisão, mas Ajaccio tem vários restaurantes óptimos. A seguir, um passeio a pé para desmoer.

Cape Corsu Agosto 2008

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Dormi (Nélia) a sonhar que conduzia a mota para acordar e para cima dela saltar.

Seguimos para a floresta de Chiavari sem tirar da cabeça a ameaça de chuva e nos casacos que ficaram no Hotel.

A dada altura fizemos o percurso dos caçadores (ou não fosse Domingo, apesar de na Córsega todos os dias são dias de caça) tendo-nos cruzado com um par de javalis algo «abatidos».

Com os primeiros pingos grossos de chuva pará-mos num café no meio da floresta, em Col de Grandello. Aqui bebemos o café mais aceitável até à data em toda a viagem, ainda que servido em copo de shot.

Destino seguinte: Capo di Muro para um peque-no passeio, asseverou o Zé. 4(!) horas a pé à tor-reira do Sol, onde o abrigo dos arbustos é fraco mas desejado.

Fizemos uma pausa para visitar a única torre genovesa da viagem (umas são pagas, outras inacessíveis e outras privadas). Outra pausa mais à frente numa praia com um banhinho em boxers. O regresso a pé foi tortuoso, debaixo de um calor terrível, sempre a subir.

Montar-se em cima da moto, mesmo com o assento pronto para despelar coelhos, foi uma dádiva, a levar com o fresquinho na tromba.

Chegámos à enseada de Lavezzi onde nos junta-

mos a alguns barcos particulares e pessoas na praia. Depois de percorrermos brevemente o ilhote acabamos por regressar à praia inicial, reconhecendo que era de facto a melhor.

A praia é de facto espectacular: água não tão quente quanto era costume mas a diversidade de peixes é interessante.

Solhas por debaixo dos pés, ferreiras e robalos. Sobre o omnipresente calhau gigantesco, o lagarto Nélia repousa num banho de Sol. A reco-lha ao barco para um almoço leve e agradável faz-se pelas 12h30, após o que se seguiu um mergulho desde o barco e algum snorkeling.

O regresso fez-se ao longo da costa com escala nos demais ilhotes do arquipélago. Aqui o pôr-do-sol revela a melhor faceta das escarpas do Sul da ilha.

Depois de um passeio pelas lojas rumamos ao interessante restaurante The Kissing Pigs. Foi aqui que aprendemos que o prato de charcutaria (Assiète de charcutrie) é servido SEM manteiga. Mais queijo com doce de figo e nozes e pinhões. No final uma sobremesa de excepção: tiramisu com brocciu e «água-de-vida».

No passeio antes da dormida, ainda comprámos o Fium’Orbiu e um frasquinho de doce de figo com nozes.

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Deixando Grand St.Bernard, logo após as pri-meiras curvas surge um edifício de dois pisos, macilento e de linhas austeras, o qual tomaría-mos pelo Hospizio do Grand St. Bernard não fora termos passado por ele há um par de kms. Aqui fica a Cantine Aoste, com uma fachada principal dominada pela porta principal, onde à sua direita uma silhueta de um cavalo erguido nos seus membros posteriores se ergue, impelido por Napoleão, presumido cavaleiro. A porta aberta oferece uma escada íngreme, com uma passadeira coçada e ladeada por vasos de plan-tas e flores interiores. No topo uma segunda por-ta maciça fechada não deixa adivinhar o que esconde.

Um letreiro junto à porta anuncia em francês o serviço de café, e convida a soar a sineta e aguardar. Desejosos duma bebida quente, puxa-mos duas vezes a comprida corda que cai à altu-ra dos olhos, aguardando junto à rua a resposta. São precisos alguns minutos para entreabrir-se a segunda porta, onde emerge a cabeça de um personagem magro nos seus 40 anos com óculos de aros metálicos e lentes fundas. Solta algumas palavras em francês, confirmando-nos tratar-se de um café, convidando-nos a entrar, subindo.

Já no interior da casa, com tectos altos e soalho irregular de tábuas de madeira antigas, reitera-mos a nossa intenção não certos de estarmos no local certo. O rapaz confirma-nos e aponta-nos uma sala pequena ao fundo do corredor onde

deveríamos aguardar. No caminho à nossa direi-ta, uma pequena divisão que aparenta servir como escritório, disposto em volta de uma secre-tária antiga. A parede por detrás da cadeira de costas altas e almofadada suporta algumas ilus-trações sobre um motivo napoleónico. A parede oposta, iluminada pela primeira janela, é forra-da de livros de encadernação cuidada mas anti-ga. Em 3 passadas entramos na 2ª divisão, onde termina o estreito corredor. Nesta salinha de chá juntamo-nos a duas senhoras francesas à volta da mesa baixa de tampo de mármore sobre a qual repousa o conjunto de chá com 2 cháve-nas vaporosas em porcelana fina. De costas para quem entra a proprietária da Cantine, persona-gem central da conversa, envolvida pela poltro-na acolchoada, apressando-se a desculpar-se por não se levantar, revelando a sua condição doente e de mobilidade reduzida.

Somos recebidos calorosamente apesar de não conseguirmos disfarçar o pasmo e a surpresa perante o cenário, inseguros sobre como reagir ao mesmo. Procuramos o mais simpaticamente possível recusar o convite para que nos juntemos à conversa em torno da mesa, preferindo a esplanada nas traseiras que avistámos da estra-da.

Em tão inesperada companhia e equipados a rigor não disfarçamos como viajamos e a conver-sa cresce, enquanto satisfazemos alguma curio-sidade: onde íamos, de onde partimos ou porquê

A Local Shop nos Alpes Agosto 2009

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de mota. «Não é comum vermos portugueses por estas lados», diz uma das convidadas, deixando-nos algo orgulhosos reforçando o nosso sentido aventureiro e pioneiro, certos de que não sería-mos os primeiros lusos a aventurar-se por aqui. Convidam-nos a estar à vontade e usufruir do resto da casa enquanto aguardamos os dois cap-puccinos. «Aceitem um chocolate, por favor», ofe-rece a nossa anfitriã. «Obrigado, mas acabamos de regressar da Suiça» , respondo. O Col de Grand Saint Bernard separa a Suíça da Itália e, do lado italiano, «o chocolate é muito melhor», é-nos dito, apesar de controverso.

O acesso à cozinha faz-se por uma 3ª divisão que mais se aproxima de uma sala de refeições, iluminada pelas janelas mais amplas das trasei-ras. Uma comprida mesa rodeada de 8 cadeiras colabora na recepção aos hóspedes da Cantine por altura do pequeno-almoço. Os quadros e pin-turas mantêm o tema, variando apenas no estilo e arrojo. O objecto retratado frequente leva-nos a ponderar se a montada de Napoleão terá algu-ma vez pousado as patas dianteiras no chão.

Guiados pelo rapaz, encontramos o caminho até à porta traseira descendo um piso por uma esca-da de pedra estreita com paredes caiadas. As divisões deste piso baixo são bastante diferentes do piso nobre, despidas de quadros e com um mobiliário algo anacrónico entre uma mesa de matraquilhos e alguns espaços para jogos infan-tis. Uma grade pesada de ferro pintado de negro

resiste a abrir-se, rodando sobre os gonzos pre-guiçosos e pouco oleados. Ultrapssada a porta, o pequeno patamar exterior revela a paisagem de todo o vale, ao longo do qual ondula a estrada. Conduz-nos a uma outra escada que desemboca num terreiro onde nos serviriam numa mesa leve e algumas cadeiras de plástico. O rapaz regressa para abrir a porta aos demais incautos aventureiros, um casal francês empurrando um carrinho de bebé e mais dois filhos. Acedem directamente por uma escadaria lateral, por entre os estendais de roupa lavada onde lençois brancos adejam ao vento, num esforço muito familiar para aproveitar os dois raios de Sol des-se dia.

Infelizmente as bebidas revelam-se o pior da experiência a ponto do casal se esgueirar sem dar mais nenhuma satisfação, tal o desaponta-mento pelos cappuccinos de pacote, mal prepara-dos. Incapazes de terminar as nossas bebidas, retomamos a companhia simpática e acolhedora para agradecer e pagar, despedindo-nos da con-versa que teimava em estar longe de acabar.

Visitámos sozinhos os Alpes em Agosto de 2009 numa viagem de moto, ferries e comboios. Percorremos perto de 6000km num total de 15 dias.

ANTERIOR: Vista da estra-

da à saída de Grand Saint

Bernard a uma altitude de

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antes de entrarmos na Can-

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O azul das vestes de Sahid combina na perfeição com o deserto em final de dia, pleno de contras-te. Na cadência da passada e do alto do drome-dário, o deserto parece gritar “E daí, já me con-segues ver?”.

Nas nossas costas o Sol ameaça desaparecer. As sombras, essas, chegarão ao destino muito antes da caravana. Pelo caminho, Hensel, o dromedá-rio à minha frente, larga pistas, redondas e luzi-dias, que Gretel - a minha montada- segue para encontrar o caminho.

Na chegada ao sopé da duna e à voz de comando de Sahid, surpreendentemente firme e adulta, o imponente animal ajoelha-se mas quem reza somos nós. O ângulo não inspira segurança enquanto fitamos o chão, imaginando-nos em desespero pendurados de um pescoço longo de pêlo hirsuto.

Persigo a minha sombra, sofregamente, até ao cimo da duna pela encosta banhada pelos longos raios de Sol. No cimo, a aresta viva da duna separa o quente do frio, o laranja do negro, as duas faces de um deserto, enigmático e mortífe-ro.

Nada me havia preparado para o deserto, nem para o apelo suicida de mergulhar neste mar de ondas gigantes. Ao longe ecoam rugidos de motores, a face negra da democratização do turismo. “Amanhã cedo o deserto será só meu!”, prometi a mim mesmo.

-§-

Um mosquito irritante, cirandando ao meu ouvi-do, redime-se: “É manhã e Erg-chebbi pôs-se bonita só para ti”.

Levanto-me com os primeiros raios de Sol, visto-me e saio do quarto à pressa, com os chinelos numa mão e a máquina na outra. No bolso das calças levo o meu caderno e minas. A ideia do silêncio do deserto só para mim impele-me.

Hoje a pé, procuro as pistas deixadas por Hen-sel, mas o vento lavou o deserto do trilho de migalhas, desaparecidas no manto de areia fina e laranja forte. Mal posso, expulso os chinelos e sinto correr os grãos finos pelos dedos dos pés, enquanto percorro as cumeadas ondulantes das dunas.

Tento resistir ao apelo de me entregar e rebolar pela encosta da duna íngreme…

…mas não consigo evitar.

Regresso ao hotel à “beira-duna” plantado, seguindo a linha de poços artesianos, dispostos como pedras a marcar o caminho. Ao longe uma bicicleta inflecte na minha direcção, impelida por um rapaz de 12 anos. Aparenta 18 na idade do deserto. A perspectiva de vender a turistas acordou-o com o galo às 5h30. Percorre nova-mente os trilhos ao longo dos hotéis, com uma

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mochila carregada de fósseis, quartzos e “mãos-de-Fátima”.

“Bonjour, m’ssieur.”, avança. “Ça va?”

Habituados a fazer as perguntas e a conduzir a venda, parece desarmado quando lhe devolvo outras questões. “O que fazes tão cedo pelas dunas”, “E Merzouga? Como é viver aqui ao lon-go do ano?” ou “Como te chamas?”. “Mohammed”, responde.

Na sua vida apenas conhece Erfoud até onde a sua bicicleta lhe permite chegar numa jorna de trabalho. Divertido, comenta “Durante o Verão não há turistas.” Mas do Norte vem gente para se enterrar durante duas horas na areia do deserto, ficando apenas com a cabeça de fora. “Cura o reumático”, assegura-me.

Estreámo-nos em África de moto pela mão da MotoX-plorers em Março de 2010. Foi também a nossa pri-meira viagem com um grupo de motos. Percorremos perto de 3500km num total de 9 dias.

ANTERIOR: Manhã cedo

nas dunas de Merzouga

quando o silêncio ainda

sobrevive

SEGUINTE:Sahid e o seu

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A lua nova não traz grande luz na pista de areia que percorro entre o pinhal. Depois de algumas horas a tentar adormecer na nossa tenda dupla, desisti de esperar pelo fim da animação vizinha. Com os timbales e pandeiretas em fundo, levan-to-me e dirijo-me para a praia.

As chaminés da arriba fóssil da Praia da Galé crescem como ninhos gigantes de térmitas. A fraca luz da noite não me permite recrear as tonalidades que nos deixaram boquiabertos no final do dia. As chapadas de sol laranja trans-portaram-nos para outro local, impossível de ser nesta Terra, assegurávamos. Rapidamente, a desilusão nocturna é substituída pela nova des-coberta pessoal. Colunas fantasmagóricas erguem-se, alinhadas como sentinelas ao longo da arriba. Os contornos ténues e diluídos acres-centam-lhes agora uma nova dimensão.

Uma diferença de horas bastou para que o conhecido seja na realidade um estranho. E bas-tou saber esperar.

A hora do dia mais injustiçada é porventura a que sucede o pôr-do-sol. Atordoados pela lame-chice das ondas de Sol mornas e lânguidas, segue-se um período de anti-climax. Arriscamo-nos a ouvir “Muito giro. Vamos embora?”.

O frio começa a morder. A tendência é bater em retirada, como se as nossas vidas dependessem

da fotossíntese. Que melhor altura para puxar daquela manta esquecida na bagageira do carro? Enrolamo-nos nela e deixamos as pupilas cresce-rem como as de um gato predador na noite.

A vegetação rasteira de salva e chorão florido de azul e amarelo abandona-nos. Esquecemos os olhos e abrimos as narinas. As cores são rendi-das pelos aromas do tomilho-limão selvagem e do alecrim, condimentados pela sugestão de sal.

O acesso do parque de campismo à praia faz-se por um caminho surpreendente. Damos por nós soterrados entre paredes de areia, circulando em sulcos. O inverno recente trouxe torrentes de água e abriu sulcos de uma dimensão pouco usual. Construiu um labirinto de paredes de areia e raízes expostas.

Vencido o desafio, o espólio é a praia, deserta como nas brochuras de agência de viagem. Não há coqueiros, nem piña-coladas. Não há gritos nem relatos de futebol aos berros em rádios de pilha. Há areia e mar.

Fizemos a ligação do ferry até Tróia quando as nossas sombras sonolentas se começam a deitar. À direita o cenário excepcional da Arrábida cres-ce nas ondas do Atlântico, em camadas de gra-dientes azuis. Alimentamos um desejo ingénuo,

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escondido, de vislumbrar nas águas do Sado um golfinho-roaz de outros tempos.

O cais em Tróia emerge do arvoredo, para pou-sar na estreita língua de areia da praia estuari-na. Atarefados na lufa-lufa da chegada, quase passa despercebido. Parecemos ter receio de ver-balizar certezas, à força de soar a lugar-comum, a cliché: este é o cais mais bonito de Portugal.

Na estrada ao longo da restinga rolamos por aldeias que não imaginámos ainda existirem. Para sentir o aroma dos juncos e dos arrozais, levanto a viseira e arrisco a chuva de mosquitos na cara, fruta da época. O sol reflecte-se nos espelhos de água e, por momentos, imagino ver um personagem de chapéu cónico, dobrado sobre o arroz, num cenário do sudoeste asiático.

Nos dias de hoje, encontrar um balão sobrevoan-do a Capadócia numa qualquer revista de via-gens é mais que uma probabilidade: é uma cer-teza. Quase tão grande quanto a de teimarmos em não descobrir Portugal em cada dia.

Se precisar de uma desculpa e quiser muito ser popular nas conversas de escritório junto à máquina de café, diga que o faz a pensar na pegada ecológica. Não há gases de aviões em voos intercontinentais nem longas tiradas a 180km/h na auto-estrada.

À chegada a casa no regresso dou por mim a cutucar o conta-quilómetros. Apenas 80km? Está decidido: vou colocar uma nova tarefa na minha lista de afazeres: sair com um Guia de Portugal no bolso.

Decidimos experimentar o campismo viajando de moto. A estreia foi na surpreendente praia de Melides sobre o fundo da Arriba Fóssil em tons de festa.

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Esta viagem é mais do que aparenta.

Uma moto nova, companheira de viagens futu-ras, passadas inúmeras vezes na minha cabeça. A decisão entre o novo e seguro pelo usado e incerto, longínquo e misterioso. Embarcar na compra remota significa vencer os medos, dis-por-me a fazer a estrada que me ligará às aven-turas idealizadas.

Procuro racionalizar a decisão, escudando-me nos números: “É mais barato. Vale a pena!”, ouço-me pensar, enquanto me rodeio daqueles que à pergunta “E tu? Que farias?”lhes adivinho a resposta. Mas na realidade o que vale real-mente a pena é a lição aprendida: ultrapassar os obstáculos no caminho das viagens; desmitificar demónios e seres de outros mundos. Viajar é vencer o medo. Esta relação paradoxal é milenar e impele descobridores para lá do alcance do braço e da vista. O que assusta e intimida é também o que atrai e seduz.

Nessa sedução, imagino uma silhueta de moto carregada de saco-cama e tralha, encostada sobre o flanco, de guarda a uma tenda em con-traluz num fundo de alvorada. As cores são as de África. Tento reanimar a fogueira da noite, sobre a qual se levanta um último suspiro de fumo, para aquecer o café. Em casa este café seria hediondo; aqui não o venderia por nada. E é no meio do nada, sozinho no raiar do dia, que as pequenas coisas ganham novas perspectivas. Viajamos para nos encontrar.

Sacudo a cabeça e emerjo deste anúncio vulgar de uma qualquer marca de tabaco. Ajeito os papéis e os mapas, faço lista de tarefas a tratar: voo a reservar, contas a fazer.

O destino é perto de Nottingham, colocado a regra e esquadro no centro da Inglaterra. Para lá chegar voando desde Portugal, as opções são poucas: Faro e com uma única operadora de bai-xo custo.

Quem nos vê equipados com as roupagens de motociclistas, surpreende-se ao encontrar-nos numa estação de comboio, com um bilhete para o Algarve na mão. Ainda com as leituras das obras de Paul Theroux frescas na cabeça, absor-vo as pequenas coisas, reparo nas pessoas, aten-to nas conversas. No bolso, carrego um pequeno caderno preto e, entre as páginas vazias, engati-lhados os ensinamentos da Escrever Escrever.

O Agosto gasta os últimos cartuchos em tiros de 36ºC. Com o Sado e o Sol a minguarem desde Poente, rolamos entre arrozais e montado. O final de dia dardeja feixes de luz entre os vultos dos sobreiros. O efeito é de um caleidoscópio, ensopado em verdes das cortinas e laranjas, sobre os azuis dos bancos. Sentimo-nos Buck Rogers na rampa de lançamento, em aceleração para novas aventuras espaciais.

Estes já não são dias de carruagens cheias. Con-

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nosco viajam duas alemãs, um condutor de com-boios reformado e poucos mais. As primeiras parecem confiar cegamente no bom coração e honestidade dos Portugueses, deixando sozinhas carteira e mochila a totalidade da viagem enquanto se espraiam no vagão-restaurante, duas carruagens atrás. O reformado da CP, num sotaque alentejano carregado ao telemóvel, pro-mete chegar a horas de ir ver a bola à Sociedade.

Chegamos à Funcheira, o Entroncamento do Sul do País. A estação, bem conservada, procura manter a dignidade. Finge estar ocupada, mas ninguém sai ou entra do comboio. Ao mergulhar na Serra desaparece o Sol no horizonte e, com ele, a rede de telemóvel.

Entramos no Aeroporto de Faro. Centenas de lagostas britânicas rodeadas dos seus pequenos lagostins esgotam os bancos e enchem os balcões de check-in.

Desde que começámos a planear a viagem que, num estado de ansiedade desmesurado, cons-truo cenários e hipóteses para o que pode correr mal. Em cada ponto de controlo receio as dimen-sões das malas com os capacetes; nunca irão caber na minúscula bitola de bagagem de mão, concebida para Liliputianos. Enquanto aguarda-mos a abertura do nosso voo, desenvolvo uma fixação doentia na pequena armação metálica azul. Junto a ela, lê-se a ameaça: “If it doesn’t

fit, it stays!”. Bolas; …posso sempre fingir que não pesco nada de inglês. Discretamente, decido experimentar. Nem assim, nem assado, de pan-tanas ou de esguelha, a mala recusa-se a sucum-bir à exiguidade da estrutura metálica. Já de gota de suor a escorrer pela testa, descubro uma cara sorridente, desde a fila de espera. Uma das luzidias lagostas tranquiliza-me: “Don’t worry. If they ask just say it f itted nicely”. Despede-se com um piscar de olhos cúmplice, de quem já passou por isto inúmeras vezes.

Como dois hipopótamos de mochila volumosa às costas, vamos saltando de nenúfar em nenúfar. Em cada posto de controlo, encolhemos o peito, sustemos a respiração. O ar de descaso e indife-rença do pessoal contrasta com a nossa preocu-pação. Na porta de embarque, a uma centena de metros avista-se a harpa verde em fundo azul, pintada na cauda do nosso Boeing. Mas a dois metros regressa o cartaz intimidador, e com ele cada minuto de espera até ao embarque arrasta-se, lento, pesado.

Já no interior do avião empurramos as mochilas na arrumação por cima das cabeças e soltamos um suspiro. Nesta cápsula de aço, tudo lembra: “Low Cost”. Os bancos que não reclinam, os amendoins ausentes, a publicidade que flutua por toda a parte. Até a aterragem dura parece recordar: “Queres melhor? Paga!”.

ANTERIOR: travessia de

ponte no Parque Nacional

de Dartmoor, perto de Ply-

mouth.

SEGUINTE:à saída em Oakham,

juntamo-nos a Malcolm, a espo-

sa e ao Ben numa foto de despe-

dida.. Lá atrás a moto novo.

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Dou por ela em pleno Alentejo. Descansa sobre a esquerda como o pastor no cajado. Olha o espe-lho de água do Maranhão, enquanto lambe as feridas. Sente que lhe falta algo mas, de peito cheio, adivinha-se um sorriso.

Na noite anterior sofria por antecipação. De um lado prometiam aventura e um percurso simples com alguma areia. Outros ventos anunciavam maiores desafios, perante os quais os receosos mirrados serão ausentes na manhã seguinte, à partida para a verdasca.

Deixei as malas em casa, junto ao assento da pendura que deu lugar ao equipamento de cam-pismo, entre tenda e saco-cama. A idade exigiria confortos crescentes; comigo, parece ser o inver-so. Troco o SPA pelo duche comunitário onde a torneira da água quente nem sempre aparece.

No preâmbulo da saída para o percurso fora-de-estrada anuncia-se o trajecto. Pareço ouvir com o estômago as dificuldades antecipadas.

Saímos.

À minha frente, Daniel, o meu companheiro por estes caminhos, segue na sua GS Dakar e persi-go-o no caminho.

A fila ruidosa encontra o caminho após a curta

ligação por estrada e transforma-se numa colu-na de poeira. Seguimos apertados, demasiado próximos, e assim chegam os troços de areia fun-da. Engulo em seco e olho em frente, atirando-me para a estreia em terrenos arenosos. Nisto, enquanto o guiador dança e a frente se contorce, penso: “Pronto! Já estás no chão!”. Rodo o pulso e em aceleração saímos em frente, com a cabeça erguida, bem levantada.

Depois de algumas passagens por linhas de água teimosas, temperadas com lama, surge a primeira queda. E com ela apercebi-me de quão difícil pode ser levantar o bisonte bi-cilíndrico sozinho. Mantive a calma mas apressei-me a mentalizar-me que poderia ser a primeira de muitas. Na verdade as protecções desta mota parecem resistir estoicamente em cada tropeção fora de estrada. Olhando para a moto começo a ter dificuldade em perceber-lhe a côr original.

Nas seguintes quedas, sucumbem o retrovisor e uma das luzes auxiliares. Olhando para trás, nem eu percebo bem que razão, além de inexpe-riência, me levou a não os deixar na tenda. Debato-me com a electrónica e, já na tenda com a leitura aturada do manual da moto, apercebo-me que nunca consegui realmente desligar o ABS.

Tempo ainda para falhar uma bifurcação, quan-do o cansaço começa a sentir-se na tensão exces-siva nos braços. As pontas dos pés doem-me e um formigueiro na mão direita lançam-me um

Quando o alcatrão termina Setembro 2010

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A pausa desejada chega numa descida íngreme de rocha descoberta, ensombrada por sobreiros e azinheiras. Faço uso dos ensinamentos do curso de condução fora-de-estrada de há 5 meses e ignoro que tenho travões. Abro o peito, engreno a primeira e com o corpo bem para trás, junto-me aos demais.

Após uma pausa junto ao espelho de água admi-rado desde o poial de pedra, procuramos hidra-tar-nos. Sentimos que seria esticar demasiado continuar no último troço e tomamos o caminho pavimentado no regresso.

Desde a troca de moto e de estilo este seria a primeira incursão mais tímida em fora-de-estrada. Aconteceu no curto passeio matutino organizado pela MotoXplo-rers durante o Touratech Travel Event 2010, junto à barragem do Maranhão em Avis.

ANTERIOR: No final de dia,

após o passeio fora-de-

estrada, a moto descansa

junto à tenda, em fundo da

albufeira do Maranhão

SEGUINTE: Pausa para respirar

após primeiros troços de areia e a

queda estreante. A GS Dakar da

frente é do Daniel, fotógrafo de

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em potência.

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A moto está deitada sobre a direita. Debaixo, uma plataforma de pedra solta do tamanho de laranjas. Ao lado e em pé procuro com o olhar o fundo do túnel. Não lhe adivinho o fim. Estou precisamente em cima da linha do comboio e ainda tenho de levantar os 300kg de moto.

Olho para trás. No túnel aproxima-se uma luz branca ao som de um motor. Mas a máquina não é a de um comboio; a linha está desactivada há muitos anos. Em contra-luz Daniel precipita-se para me ajudar a levantar o bisonte abatido.

Já montado, procuro desviar o olhar dos regos de betão que ladeiam o túnel. Uma roda nestes e é o fim de uma viagem que ainda agora começa-va. “Basta não olhares para lá. Olhos em frente”. Os sulcos fundos e negros são ímans. Rodo o punho e saio em frente, apontando para a saída do túnel em noite de lua nova.

Ao nos lançarmos no caminho que chamavam “Linha do Comboio” recordo-me de pensar: “Pena ser noite e logo Lua Nova; nem consigo perceber onde passa o comboio”. Com o primeiro túnel percebo: somos nós os vagões de um com-boio que já não existe.

O alívio de sair do túnel cedo termina. O de betão dá lugar ao das silvas. Chegamos às tra-vessas sulcadas na lama das chuvas do fim-de-semana.

Nova queda.

A moto tem agora o flanco esquerdo enterrado na lama mole. Enterro as botas no tulicreme pantanoso ao longo da coroa no centro do cami-nho. Procuro acalmar-me. A cabeça está tão encharcada quanto os pés. Na boca, um sabor acre e a garganta seca.

Entretanto o Luís Lourenço e o Rui Sanches vol-tam atrás, a pé, a custo. Tento disfarçar e escon-der o tremelicar na perna. “Que raio de ideia fazer isto à noite”, chego mesmo a dizer em alta voz.

Gostava de poder afirmar que fui melhor, maior; mas não fui capaz de a levar nos próximos 100m, e escapar ao troço. Sinto–me envergonha-do, desapontado enquanto o Rui a conduz com dificuldade. Questiono-me; reprovo-me. O cansa-ço é evidente. Ansioso, vejo-me a repetir tudo isto nos próximos dias.

“Mas, o que faço aqui?”

Andamos a planear uma viagem a Marrocos. Procuramos os estradões, as pistas, o interior de um País que já não é selvagem. É tarde demais para isso. Marrocos é agora destino de motos, jipes e outros “aventureiros”.

A rota que nos propomos fazer é uma rapsódia de estradas interrompidas, pistas arenosas, pedra, lama e passagens a vau. Em 10 dias tes-

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taremos os nossos limites a conduzir as nossas GSA e GS Dakar. Entre o cansaço e o descanso em tendas, as ligações longas por estrada até às partes interessantes: para tudo isto há que trei-nar; precisamos de nos testar.

Fizemos os cursos, comprámos (e lemos) os livros. Enchi de rabiscos e desenhos o bloco de notas. Nele garatujei os ensinamentos da MotoXplorers, Simon Pavey, Chris Scott e Robert Wicks da vida. Falta agora amealhar as milhas, treinar, praticar; cair, levantar e apren-der a lidar com tudo o que nos atravesse ao caminho.

Há 2 semanas o Daniel desafia-me para alinhar num passeio do Nomad’s Trail Portugal. Esta-mos nos degraus inferiores da nossa aprendiza-gem e a dificuldade anunciada do percurso pare-ce adequada. O organizador promete-nos as cores de um Outono como há poucos. No canti-nho mais recôndito de Portugal, Montesinho sugere-se em amarelos e vermelhos. Em apenas algumas semanas vestir-se-á de branco e cinzen-tos: o tempo urge. Tempo apenas para calçar uns pneus cardados na moto, empilhar a traqui-tana em cima da moto e expulsar as malas rígi-das da moto.

E assim partimos na véspera de Sábado, prontos a engolir a meia milena de quilómetros até San-ta Comba de Rossas, a Sul de Bragança. Parti-mos de Lisboa juntando as nossas rodas às das laranjas fresquinhas do Luís Lourenço e do Rui

Sanches.

Parto para um Outono Colorido, visto pelos olhos de um daltónico. Daltónico no sentido em que procuro ver as mesmas coisas, mas com outros olhos. Preparo-me para questionar um vermelho, para duvidar dos amarelos chaman-do-lhes verdes. Nenhuma cor está a salvo. Pre-parem-se.

Depois de acordar e sacudir as suicidas folhas nocturnas da tenda, descemos até Bragança. O comboio de motos pasma-se com o cenário de nevoeiro que deixa apenas entrever a cidade, bem lá em baixo.

Começo o dia com alguma ansiedade: os demais companheiros não disfarçam a experiência acu-mulada, em contraste com a novidade para mim. São tempos únicos estes. Daqui por uns anos vou olhar para trás e, descrente, incrédulo, per-correrei estas palavras. Vão-me parecer distan-tes, espero. Mas agora, aqui, hoje, procuro des-contrair-me na distracção da redução da pressão nos pneus. Monto-me na moto e respiro fundo.

Parte do percurso de aprendizagem juntámo-nos ao passeio fora -de-estrada organizado no Nomad’s Trail Portugal pelo Zé Paulo Matias. A desculpa são as cores do Outono no Parques de Montesinho e Sana-bria em Espanha.

ANTERIOR: Os raios de sol

matinais de Outono sobre a

folhagem das margens dos

riachos em Montesinho

SEGUINTE: Uma das passagens

a vau nos riachos de Montesinho,

com algum excesso de entusias-

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