PESSOA QUE PENSA CAMPOS QUE SENTE (*) - run.unl.pt · PDF filecleverest piece of literature called into being by the Great War» (^), como escreve Pessoa acentuando o seu lado satírico

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  • PESSOA QUE PENSA CAMPOS QUE SENTE (*)

    Pessoa transformado em pasto para crticos ao menos at aos fins do sculo. Ttulos de artigos, seminrios, livros, nmeros especiais de semanrios, revistas culturais, pginas literrias, conferncias, congressos, colquios, concursos, jogos de vastas possibilidades variando entre parmetros intermu-tveis, provas, contraprovas, clculo de probabilidades:

    P. pensa o que C. sente P. sente o que C. pensa P. pensa o que C. sente e pensa P. sente o que C. pensa que sente ou sente que pensa P. pensa que sente o que C. sente ou pensa que sente

    isto dito na afirmativa ou, melhor ainda, interrogado ao infi-nito, como convm poesia, encadeando discursivas frases progressivamente afastadas dos poemas reduzidos expresso mais simples. Posto o que, sa mais uma prosa, chatice da praxe, meditao de serioso ar, srio em srie saber debitado segundo as regras do honesto trabalho intelectual.

    1. Serve esta espcie de prefcio de generalidades para claramente estabelecer o intil divagar que a seguir se ver, e perguntar: que histria esta da esttica no-aristotlica? A expresso aparece empregue por Campos nos Apontamentos

    (*) Indito em portugus. PubUcado em Italiano nos Quaderni Portoghesi, n." 2, Pisa 1978.

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    para uma esttica no-aristotlica (^) de 1924, antecedendo de alguns anos os dispersos textos de Brecht Sobre uma dramaturgia no-aristotlica, iniciados em 1933. Honra pois desde logo a maratona das lusas letras, mas isso no que interessa, O projecto presente consiste em analisar a dialctica sentir-pensar luz da esttica a que Campos chama no--aristotlica, nascida aps a polmica com Pessoa em que este cita Aristteles naquela sua frase que toda a esttica: um poema, disse, um animal.

    Aparentemente, pois. Pessoa faz aqui figura de aristotlico para logo a seguir Campos lhe cair em cima e t i rar da manga o que baptiza de no-aristotelismo. Isto dar matria a um debate to velho como a arte mas actualizado dentro da obra pessoana graas ao dilogo Pessoa-Campos. Por t rs de Campos est Caeiro, segundo a prpria afirmao de Campos ao invocar trs nicas manifestaes de arte no-aristotlica:

    1) Os assombrosos poemas de Walt Whitman. 2) Os poemas mais que assombrosos do meu mestre

    Caeiro. 3) A Ode Triunfal e a Ode Martima dele, Campos.

    Sobre o impacto de Whitman j Eduardo Loureno disse o suficiente, embora esteja por fazer uma anlise estilstica de textos do democrata americano e do fascista Campos. A questo do fascismo ser aqui abordada apenas na medida em que significa uma reaco de violenta averso ao libera-lismo parlamentarista burgus que conduziu ao desastre da guerra de 14-18 e revoluo russa. No ano da revoluo publicado o Ultimatum de lvaro de Campos (^) the cleverest piece of literature called into being by the Great War (^), como escreve Pessoa acentuando o seu lado satrico.

    ( ) Em Fernando Pessoa, Pginas de Doutrina Esttica, Seleco, Prefcio e Notas de Jorge de Sena, Lisboa 1946, p. 145; de seguida citado pelas iniciais PDE.

    ( ) Em Portugal Futurista, Lisboa 1917, reproduzido Os Moder-nistas Portugueses, I vol.. Porto s/ data.

    (') Para a Compreenso de lvaro de Campos em Fernando Pessoa Pginas ntimas e de Auto-Interpretao. Textos estabelecidos e pre-faciados por Jacinto do Prado Coelho e Georg Rudolf Lind, Lisboa 1966, p. 407; d seguida citado PIA.

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    Tambm no foi feito ainda um estudo das intuies deste Ultimatum, entre elas a de que a guerra era luta de impe-rialismos idnticos, verdade que precede muito materialismo super-hstrico: Lixo guerreiro-palavroso! Estreo Joffre--Hindenburguesco! Sentina europia de Os Mesmos em ciso balofa! (*).

    Acerca do lugar-chave que ocupa mestre Caeiro no deflagrar do opus pessoano remete-se o leitor de novo para Pessoa Revisitado de Eduardo Loureno (^). Caeiro o resultado da leitura de Whitman, e nas Pginas Intimas e de Auto-Interpretao de Pessoa h passagens iluminantes (p. 368-372) em que Pessoa tenta rasurar racionalmente a

    relao Whitman-Caeiro. A se diz que enquanto em Whitman where there is philosophy it is not of an original cast, the sentiment alone being original em Caeiro both thought and feeling are altogether novel. O tema sentir-pensar surge insistentemente, sempre na tentativa de distinguir artificial-mente entre os dois poetas: Whitman's thought is a mode of his feeling... Even when Caeiro feels, his feeling is a mode of his thought. E logo adiante vem a distino poltica em termos de crtica ao humanismo, ento hertica e maldita: Whitman's violent democratic feeling could be contrasted with Caeiro's abhorrence for any sort of humanitarianism. O caracter assombroso da poesia de Caeiro e o que fez dele mestre de no-aristotelismo est na sua prpria gnese de puro transe que tornou possvel escrever trinta e tantas poesias a fio, numa espcie de xtase cuja natureza no saberei definir (**), como o autor afirma na carta a Casais Monteiro sobre os heternimos.

    Enfim Campos autocita-se exemplo de no-aristotelismo nas suas odes. Antes de analisar porqu, parece necessrio recordar mais duas passagens da carta sobre os heternimos: pus em lvaro de Campos toda a emoo que no dou nem a mim nem vida... C) se algum dia eu puder publicar a discusso esttica entre Ricardo Reis e lvaro de Campos,

    n p. 9. {') Por to 1973. () PDE, p. 264. (') PDE, p. 259.

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    ver como eles so diferentes (). Nas citadas Pginas ntimas vem pelo menos parte dessa discusso (p. 391-398) que esclarece a distncia de um poeta aristotlico (Reis) ao no-aristotlico Campos, o qual tende a identificar aristo-tlico = clssico. Nos Apontamentos para uma esttica no--aristotlica, cuja leitura se far nos prximos pargrafos, Campos afirma em certo passo: os 'clssicos', ou pseudo--clssicos os 'aristotlicos' propriamente ditos (^). Pseudo ou no, o horaciano Reis acusa os poemas de Campos de serem um extravasar de emoo. A idia serve a emoo, no a domina (^). Assim se chega ao cerne do que separa as duas estticas: o papel dado a cada um dos termos dialcticos pensar-sentir, ideia-emoo, intelignca-sensibilidade.

    2. Em que consiste ento a esttica no-aristotlica? Nos Apontamentos que citarei de seguida sempre que no indico a origem, diz-se:

    1) O artista aristotlico subordina a sua sensibilidade sua inteligncia e esta arte baseia-se na:

    a) idia de beleza, porque se baseia no que agrada; b) inteligncia; c) unidade artificial, construda e inorgnica.

    2) O artista no-aristotlico subordina tudo sua sen-sibilidade e esta arte baseia-se na:

    a) idia de fora, porque se baseia no que subjuga; b) sensibilidade; c) unidade espontnea e orgnica, natural (sublinha-

    dos so de Campos) (^^).

    Noutra definio ainda aparece um denominador comum a ambas ar tes: a idia de domnio, possivelmente de origem nietzscheana:

    (*) PDE, p. 265. () p. 162. C) PIA, p. 395. (") PDE, p. 158.

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    1) A arte aristotlica domina captando; 2) a no-aristotlica domina subjugando C^^).

    E a seguir precisa: Ora entre os artistas 'clssicos', isto , aristotlicos h verdadeiros artistas e h simples simula-dores... O que porm entendo e defendo que todo o verdadeiro artista est dentro da minha teoria, julgue-se ele aristotlico ou no; e todo o falso artista est dentro da teoria aristo-tlica, mesmo que pretenda ser no-aristotlico (" ) .

    Vm depois exemplos da decadncia da arte clssica, a fim de mostrar (demonstrar) que os verdadeiros clssicos cabem na sua esttica, mas no os pseudo-clssicos. Exemplos mximos do classicismo so s o Homero da Ilada e Pndaro, num grau inferior esto Verglio (sic) e Horcio, na sarjeta propriamente aristotlica aparece a chateza morta dum Boileau, dum Corneille, dum Racine, de todo o insupe-rvel lixo esttico do 'classicismo' francs, esse 'classicismo' cuja retrica pstuma ainda estrangula e desvirtua a admirvel sensibilidade emissora de Vtor (sic) Hugo (") .

    Introduz Campos aqui nuances ao ataque cerrado iniciado sete anos antes com o Ultimatum onde metia no mesmo saco: Anatole France, Barres, Bourget, Kipling, Shaw, Wells, Chesterton, Yeats, Annunzio (sic), Maeterlinck, Loti, Rostand, Todos! Todos! Todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safar-danagem intelectual! (^'). Seguem-se os nomes de Fouille, Rodin, Maurras, Boutroux, Bergson.

    Quanto s suas preferncias, alm de Pndaro mencionado acima (h que ler as odes pindricas para entender a Triunfal e a Martima) pode citar-se a Saudao a Walt Whitman (i"):

    Sado-te, Walt, sado-te, meu irmo em Universo

    Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir mquinas,

    (^) PDE, p. 158. (") PDE, p. 160. (") PDE, p. 162. (") Ultimatum, em Os Modernistas Portugueses, I vol., p. 11-16. (") Poesias de lvaro de Campos, Lisboa 1958, p. 202 e s.eg.

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    Homero do insaisissable do flutuante carnal, Shakespeare da sensao que comea a andar a vapor, Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!

    Alm disso veja-se a carta de lvaro de Campos ao Dirio de Notcias (^'): ...os gnios inovadores foram sempre, quando no tratados como doidos (como Verlaine e Mallarm), tratados como parvos (como Wordsworth, Keats e Rossetti) ou como, alm de parvos, inimigos, da ptria, da religio e da moralidade, como aconteceu a Antero de Quental. Nestas linhas est quase o quadro completo dos autores de Campos, que so os de Pessoa, entre os quais se incluem todos os romnticos ingleses excepto Byron, nunca citado. Donde transparente concluir que a esttica no-aristotlica resulta dum horror ao falso clssico sob suas formas vrias. Que os Apontamentos perto do fim explicitam claro: A maioria, seno a totalidade, dos chamados realistas, naturalistas, sim-bolistas, futuristas, so simples simuladores, no direi sem talento, mas pelo menos, e s alguns, s com o talento da simulao ('""). Este antema tambm sobre o futurismo, em 1924, coincide int