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1 CAMILA RODRIGUES COSTA Planejamento, ação pública e dinâmica imobiliária na história recente de Belo Horizonte Orientadora: Jupira Gomes de Mendonça (Doutora). Belo Horizonte Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais Março de 2006

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CAMILA RODRIGUES COSTA

Planejamento, ação pública e dinâmica

imobiliária na história recente de Belo Horizonte

Orientadora: Jupira Gomes de

Mendonça (Doutora).

Belo Horizonte

Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais

Março de 2006

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Estado e mercado imobiliário têm uma relação importante de ser investigada, se

queremos de fato construir um novo paradigma de planejamento, capaz de assegurar

o cumprimento da função social da propriedade e da cidade. Isto porque há uma

conexão entre o valor do solo e da moradia e o preço dos recursos urbanos

(entendidos como o conjunto das infra-estruturas, equipamentos e atividades), na

medida em que a distribuição desses recursos não é uniforme em todo o território da

cidade. Assim, o controle dos recursos, que Harvey (1979) define como renda real,

está em função da acessibilidade e proximidade da localização (p.67), nas quais o

Estado desempenha um papel fundamental.

Três são as principais ações estatais com impacto direto na distribuição dos recursos

urbanos: a política habitacional, a legislação urbanística e a execução de obras viárias,

promotoras de novas e maiores acessibilidades. Neste trabalho, a ênfase será

colocada nas duas últimas formas de ação, as quais têm uma relação mais direta com

o planejamento urbano no seu sentido mais abrangente1. A legislação urbanística é

fator importante na medida em que promove a distribuição do potencial construtivo na

cidade e gera a abertura de novas frentes imobiliárias, ao redefinir as possibilidades

de uso do solo urbano. As obras viárias representam ações estruturantes no território,

ao criarem novas acessibilidades que permitem a incorporação de novas áreas ao

tecido urbano.

A legislação urbanística e as obras viárias constituem importantes instrumentos do

planejamento urbano, ainda que vários autores já tenham mostrado o divórcio entre

planejamento e gestão2 ou, se quisermos, entre planejamento e ação pública3, na

história da urbanização brasileira e de sua relação com a política pública.

Desta maneira, este trabalho busca analisar, para o período recente da história de

Belo Horizonte, as convergências e divergências entre o discurso do planejamento

urbano, as leis urbanísticas e as intervenções viárias, bem como as suas relações com

a expansão da cidade e a dinâmica de incorporação e construção de imóveis

residenciais4. A análise é desenvolvida a partir de fontes documentais e do

mapeamento de informações relativas à construção de edificações verticais

1 A política habitacional pode aqui ser entendida como uma política pública setorial. 2 Ver, entre outros, Rolnik (2001) e Maricato (2000) 3 Planejar, define Chiavenato (2001) é definir os objetivos e escolher antecipadamente o melhor curso de ação para alcançá-los (p.221). 4 Este trabalho é resultado parcial do projeto de pesquisa “Planejamento urbano no Brasil pós-Constituição de 1988: velha tradição ou nova trajetória?”, financiado pelo CNPq, do qual faz parte o sub-projeto “Planejamento urbano em Belo Horizonte depois da Constituição Federal de 1988: alterações e permanências”, desenvolvido com recursos do PROBIC-Fapemig.

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multifamiliares (Cadastro do IPTU), obras viárias estruturantes5 e potencial construtivo

dado pelas leis de uso e ocupação do solo. Do cadastro do IPTU da Prefeitura

Municipal de Belo Horizonte, foram selecionados os apartamentos, sua área

construída e o ano de construção6. As informações foram mapeadas através dos

chamados “bairros populares” delimitados pela PRODABEL e agrupadas segundo os

períodos de vigências das leis de uso e ocupação do solo, buscando evidenciar o

desempenho do mercado imobiliário e sua relação com as intervenções urbanas do

Executivo Municipal7.

Belo Horizonte, nascida da decisão pública de fundar uma nova cidade com a função

de sediar a capital do estado, é um exemplo ímpar de cidade brasileira na qual o poder

público atuou intensamente no processo de urbanização e estruturação do espaço,

desde sua criação, configurando-se como o indutor básico de expansão. Na história da

cidade, o discurso do planejamento municipal apresenta oscilações entre as propostas

de consolidação da estrutura gerada pela atividade privada (seja ela decorrente da

apropriação individual ou empresarial do solo) e os objetivos de promover

redistribuição de renda e de localização dos recursos urbanos. Do ponto de vista da

gestão, ao longo de toda sua história, a cidade presenciou a concretização de

investimentos públicos de grande porte, que gradativamente modelaram sua estrutura

física ou alteraram sua morfologia, possibilitando novas áreas de crescimento. Dessas

obras, aquelas relativas à infra-estrutura, sobretudo abertura e pavimentação de vias,

estiveram sempre presentes na política urbana do Poder Público, constituindo uma

constante na determinação da ocupação urbana. Por outro lado, desde os primeiros

anos da Capital, vêm sendo estabelecidos zoneamentos e promulgadas normas

edilícias com impactos relevantes no processo de estruturação e expansão do tecido

urbano.

5 Obras estruturantes são aqui entendidas como aquelas intervenções viárias que permitem acessibilidade a novas glebas e terrenos urbanos, integrando-os ao restante do tecido urbano e favorecendo sobremodo a atuação do mercado de incorporação e construção civil. 6 Esta última informação pode conter erro relativo, na medida em que a data de construção corresponde ao ano da última obra, podendo estar relacionada com obra que resultou em ampliação de área em imóvel previamente existente. No entanto, pode-se partir do pressuposto de que são poucos os apartamentos que apresentam condições estruturais para ampliação de área (em geral, os apartamentos de último pavimento, ou cobertura) e, portanto, possíveis erros não são significativos 7 Como o estudo baseia-se na distribuição das edificações multifamiliares verticais no território urbano, adotou-se como critério para definição do potencial construtivo o maior Coeficiente de Aproveitamento dos zoneamentos que permitem essa tipologia de ocupação, buscando-se identificar, em cada bairro, o potencial construtivo predominante para o uso residencial.

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Breve história do planejamento urbano em Belo Horiz onte

O projeto inicial para a construção de Belo Horizonte subdividia a cidade em três

zonas concêntricas: urbana, suburbana e rural. A zona urbana, mais detalhada e

melhor dotada de infra-estrutura, foi preparada para abrigar os primeiros habitantes e

era delimitada por uma avenida perimetral. As diretrizes de intervenção estabelecidas

pela Comissão Construtora priorizavam esta área, com o objetivo de induzir o

assentamento da população e das atividades do centro para periferia.

O plano foi concebido de forma a reforçar a função administrativa da capital e o poder

que nela se exerceria, voltando-se, portanto, para os segmentos da população

diretamente ligados ao aparato estatal e proprietários de Ouro Preto, não destinando à

classe trabalhadora nenhum espaço no projeto inicial.

Á área suburbana caberia a função de abrigar chácaras, bastante comuns à época, e

tornar-se espaço de reserva para a expansão futura da cidade. Devido à avaliação de

Reis de que a cidade cresceria do centro para periferia, houve por parte do projetista

certa negligência ao projetar este espaço e dotá-lo de infra-estrutura.

Finalmente, a área rural foi pensada como “cinturão verde” da cidade, onde se

estabeleceriam as colônias agrícolas que forneceriam gêneros alimentícios para a

capital.

O Estado atuou com papel decisivo no direcionamento e viabilização do

desenvolvimento de Belo Horizonte nas primeiras décadas da nova capital,

caracterizando o ritmo de crescimento por um elevado número de obras públicas,

como sistema de bondes e a construção do Viaduto Santa Tereza, que ao transpor o

Rio Arrudas facilitou a ligação Centro-Leste. No entanto, em virtude da falta de

preocupação com a questão da moradia popular, aliada aos altos preços que os

terrenos urbanizados da área central logo alcançaram8, a ocupação da zona

suburbana pela população de baixa renda ocorreu imediatamente. Em 1912, 68% da

população da cidade ocupavam as zonas suburbanas e rurais. (PLAMBEL, 1985).

8 ... não faltaram espíritos negocistas de vários pontos do Estado, que foram ou mandaram a Outro Preto adquirir, na ‘bacia das almas’ grande quantidade daqueles terrenos, o que lhes proporcionou godos lucros,. Para exemplo, citaremos o Sr. José Francisco de Macedo que [...] recebeu a cognominação que lhe deu a inventiva popular de José dos Lotes (Abílio Bareto, apud Penna, 1997). Em 1902, no relatório de sua administração, o Prefeito Bernardo Pinto Monteiro afirma que assunto de igual relevância é o preço dos terrenos urbanos ainda alto de forma a afugentar os que demandam a cidade para a zona suburbana, cujos lotes têm sido vendidos com facilidade, dispersando assim as construções e ampliando o centro (Idem:109).

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Neste cenário, cedo surgiram as interferências dos especuladores imobiliários. A

tentativa de instituir as colônias agrícolas, na zona rural, logo fracassou devido ao

desinteresse do governo em subsidiá-las, o que levou os colonos a vender suas

glebas aos incorporadores e construtores. A zona rural seria progressivamente

agrupada à zona suburbana (LEITE, 1994).

Surgiram grandes núcleos populosos na zona suburbana e, nas primeiras décadas, a

cidade cresceu no sentido leste-oeste. A ocupação das áreas mais distantes onerou a

prefeitura em função da demanda por infra-estrutura e serviços e inverteu o sentido de

crescimento esperado para a cidade, ou seja, de fora para dentro.

Para a classe trabalhadora surgiriam propostas por parte do Poder Público de criação

de vilas operárias fora da área urbana. Sob alegação de manter a ordem pública e a

higiene, a criação dessas vilas denota o caráter segregativo que direcionou a

ocupação da cidade (LEITE, 1994).

Nos anos vinte, a cidade se consolida como capital e registra um boom imobiliário em

conseqüência do aumento da população e das ofertas de crédito e financiamento, o

que facilitou a construção de casas na zona suburbana, com intensa atuação das

Companhias Imobiliárias (LEITE, 1994). Reafirmando a ocupação da área central

pelos segmentos sociais de mais alta renda, em 1922 foi autorizada a verticalização e

maior aproveitamento dos terrenos da área central, permitindo edificações de até 25

andares nas vias com 25 metros de largura, 35 andares nas vias de 35 metros, e de

até 50 pavimentos na Avenida Afonso Pena. (MOL, 2004: 35)

Apesar de a iniciativa não ter produzidos efeitos imediatos sobre a verticalização, por

superarem a demanda real do mercado, estabeleceu o início de uma era de

intensificação da ocupação como forma de superar a lógica da renda fundiária e

viabilizar o mercado imobiliário (MENDONÇA, 2002: 14).

Com a expansão de Belo Horizonte na década de 1930, a zona suburbana adquire um

tamanho excessivo, dificultado a atuação do poder público.

O crescimento de Belo Horizonte dava-se, então, principalmente pelo acréscimo

de novos loteamentos em áreas periféricas. A especulação imobiliária assume

proporções alarmantes e preocupa o poder público local pelas dificuldades de

urbanização impostas por esse tipo de ocupação. (MELO, 1991: 42)

A cidade recebe então, em 1933, a primeira subdivisão em zona central ou comercial,

além das zonas urbana ou residencial, suburbana e rural. O conteúdo da lei estava

diretamente relacionado à normatização das edificações, definindo, por exemplo, a

altura, volumetria, área de insolação e ventilação. Na área comercial estabeleceu-se

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uma proibição das edificações com menos de três pavimentos nas avenidas principais

e de um pavimento nas menos movimentadas. Nas outras áreas da cidade a altura

máxima relacionava-se explicitamente à categoria social, pois eram permitidas

maiores construções nos bairros que abrigavam as classes sociais mais elevadas. Em

bairros tradicionais, em geral ocupados por segmentos de mais alta renda, era

permitido que a edificação atingisse 3 pavimentos; aos conjuntos habitacionais

permitia-se 2 pavimentos, e apenas um para residencias proletárias na zona

suburbana. (PLAMBEL, 1976).

Frente ao quadro de grande expansão urbana, na gestão do prefeito José Soares de

Mattos (1933-1935), foi criada a Comissão Técnica Consultiva da Cidade, cuja figura

central, o engenheiro Lincoln Continentino, encaminhou uma proposta de expansão

racional da cidade. Continentino rompia desta forma com a visão vigente na época de

que a “cidade perdera, de vez, a possibilidade de um planejamento de sua expansão,

tendo em vista o distanciamento da sua realidade em relação ao que fora idealizado

pela Comissão Construtora da Nova Capital.” (GOMES & LIMA, 1999: 125)

As prioridades definidas pelo engenheiro para o plano de urbanismo da cidade, que

não chegou a ser integralmente implementado, incluíam o estabelecimento de um

sistema de grandes avenidas, interligando a zona urbana à suburbana e às cidades

vizinhas; a unificação das vias férreas em operação na cidade; a substituição dos

arruamentos por outros mais adaptados à topografia; zoneamento com a divisão da

cidade em três zonas, residencial, comercial e industrial; e a elaboração de um código

de edificações para a cidade (GOMES & LIMA, 1999). Ainda nesse período, surgiram

os primeiros loteamentos clandestinos, a partir do estabelecimento de normas para os

novos loteamentos.

A administração de Juscelino Kubitscheck (1940-1945) seria marcada pela retomada

de vários projetos pontuais elaborados por Lincoln Continentino como a construção de

bairros de elite (Pampulha e Cidade Jardim), a criação da Cidade Universitária,

também na Pampulha, além da abertura das avenidas radiais, dentro da perspectiva

de articulação do centro com diversos núcleos suburbanos e municípios vizinhos,

como o prolongamento da Avenida Amazonas e a abertura da Avenida Antonio Carlos.

Ainda na administração de JK, a prefeitura aprovou um novo regulamento de

construções que estabeleceu normas para as construções civis, como taxa de

ocupação e altura das edificações. Para a zona comercial a taxa de ocupação era de

100% , respeitando 15% da profundidade do lote livres no fundo. A altura da edificação

era obtida a partir do gabarito, que resultava em alturas das edificações proporcionais

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à largura da via. Não havia exigência de afastamentos mínimos entre as edificações, e

as alturas máximas permitidas viabilizaram a construção de edificações com elevado

número de pavimentos. Para a Avenida Afonso Pena, cuja largura é de 50 metros, foi

permitida a construção de até 31 pavimentos; nas outras avenidas centrais, com

largura de 35 metros, permitiu-se 22 pavimentos e 13 nas demais ruas com largura de

20 metros.

Nas demais zonas a taxa de ocupação variava entre 50 a 55%, e o gabarito era

tomado nas divisas laterais e de fundo. (LEITE, 1994)

Durante a década de 1950, Belo Horizonte passa por um surto desenvolvimentista,

com a solução de dois problemas cruciais, a carência de energia elétrica e de uma

rede de transporte, que possibilitaram a consolidação de uma infra-estrutura de apoio

ao crescimento econômico. Com a industrialização, o município passa a abrigar um

aparato produtivo, além da burocracia estatal, ampliando o setor terciário e

consolidando a presença das classes médias ligadas às atividades de comércio e

serviços, tendo como resultado a expansão do mercado imobiliário destinado à

construção de edifícios de apartamento maximizando o aproveitamento dos lotes

valorizados.

A legislação urbana somente em 1956 viabilizaria a verticalização fora da área central,

quando ampliou a zona urbana e permitiu a construção vertical em bairros já

consolidados nos arredores da Avenida do Contorno (MOL, 2004) - ver Figura 1. O

aumento populacional, aliado à especulação imobiliária, geraria graves problemas à

administração municipal. Novos loteamentos continuavam sendo aprovados enquanto

a cidade dispunha ainda de muitas áreas vazias na zona central, apresentando, no

final dos anos cinqüenta, um número de lotes suficiente para abrigar 2,5 vezes a

população existente. (MELO, 1991).

No final dos anos quarenta, o então prefeito Otacílio Negrão de Lima (1947-1951)

encaminha à câmara uma proposta de reordenamento espacial através da criação de

cidades-satélites ao redor de Belo Horizonte, com funções específicas: o Barreiro teria

função agrícola, a Cidade Industrial de centro fabril, Venda Nova de centro

residencial, e Pampulha de centro de diversão (MELO, 1991).

Na gestão seguinte, de Américo René Giannetti (1951-1954), foi elaborada nova

tentativa de planejamento da cidade com a criação do Serviço do Plano Diretor, cuja

principal atribuição era a “elaboração e execução de projetos de urbanização, devendo

para tanto estar apoiado em legislação pertinente” (MELO, 1991). Nesse período,

foram convocadas figuras de reputação nacional, como Francisco Prestes Maia, Oscar

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Niemeyer e Burle Marx, para compor a comissão que elaboraria o plano diretor da

cidade, o que demonstra a ausência de urbanistas na prefeitura que pudesse

desempenhar essa função. No entanto, não se tem notícia de nenhuma concretização

de uma proposta de plano diretor.

Giannetti, que morreu precocemente em 1954, lançou bases para o planejamento

urbano e deixou montada uma estrutura administrativa que seria utilizada e ampliada

por seu sucessor. Celso Mello de Azevedo (1955-1959) foi o responsável pela

contribuição mais significativa da época para o conhecimento da estrutura urbana de

Belo Horizonte, através da contratação da equipe SAGMACS (Sociedade de Análises

Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais), cuja atividade estava

veiculada ao movimento Economia e Humanismo, desenvolvido pelo Padre Lebret na

França, na década de 1940. O enfoque metodológico da pesquisa da SAGMACS era

baseado em um detalhado levantamento das condições sociais e do nível de

desenvolvimento econômico, apoiado em análises estatísticas para o entendimento

dos problemas locais (SAGMACS, 1959).

O diagnóstico sobre a estrutura urbana de Belo Horizonte elaborado pela equipe foi

entregue na gestão posterior que encomendou, então, um plano diretor. Dentre as

principais conclusões apresentadas na pesquisa, pode-se destacar: “a grave situação

da maioria da população, a deficiência de equipamentos urbanos e infra-estrutura e o

alto grau de especulação imobiliária” e a importância de uma “legislação urbana com o

objetivo de conter o processo especulativo, disciplinar a expansão urbana e promover

a descentralização.” (MELO, 1991: 55)

O Plano Diretor propunha a descentralização do setor de comércio e serviços, através

da implantação de sub-centros dinamizados pela hierarquização do sistema viário e

criação de “corredores comerciais”. Em relação à especulação imobiliária, foram

propostas medidas como regulação de novos loteamentos, taxação progressiva,

fiscalização e zoneamento que apoiassem a atuação mais eficiente do Poder Público.

Apesar de não ter sido implementado, o Plano Diretor elaborado pela SAGMACS

serviria de referência para planos posteriores, como a incorporação de instrumentos

urbanísticos, ou a hierarquização viária.

Com a elevação explosiva do número de novos loteamentos, o crescimento da área

urbana de Belo Horizonte ocorreu em todas as direções, sendo mais intenso nos

sentidos oeste e norte, em função da atratividade da Cidade Industrial, agora no

município vizinho de Contagem, e da Pampulha, ambas reforçadas pelas Avenidas

Amazonas e Antônio Carlos, seus principais eixos de ligação. A Serra do Curral ao sul

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e a topografia acidentada a leste se apresentam como condicionantes naturais ao

crescimento do aglomerado nestas direções.

Planejamento e legislação nas décadas recentes

Os anos setenta foram caracterizados por grandes fluxos migratórios, altas taxas de

crescimento econômico e crescimento populacional urbano vertiginoso. Em Belo

Horizonte, a ocupação verticalizada atinge novas regiões, com edifícios de

apartamentos para as classes médias e através de conjuntos habitacionais populares

promovidos pelo Poder Público. A cidade expande-se para as periferias ultrapassando

os limites geográficos e abrangendo municípios vizinhos.

Nesta década, a ação municipal esteve pautada pela forte centralização das políticas

públicas no âmbito federal, e pela criação de nove regiões metropolitanas, entre as

quais a Região Metropolitana de Belo Horizonte, com estrutura centralizada no

governo do estado. Após a institucionalização da RMBH, foi criada a Superintendência

de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), órgão

técnico metropolitano da administração indireta do governo estadual, cuja primeira

atribuição foi a elaboração do Plano de Desenvolvimento Integrado Econômico e

Social da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

O Plambel propôs a abordagem da organização metropolitana em três níveis: a)

Região Metropolitana; b) Aglomeração Metropolitana e núcleos isolados; e c) Área

Central de Belo Horizonte. Destes níveis resultaram os seguintes sub-produtos:

Esquema Metropolitano de Estruturas (EME), Plano de Ocupação do Solo da

Aglomeração Metropolitana (POS) e Plano para Área Central (PAC) – (LEITE, 1994:

45).

O PAC buscou racionalizar a circulação na área interna à Contorno, definindo as vias

que se destinariam ao tráfego mais intenso e as vias cujo tráfego seria basicamente

local, definindo áreas “ambientais” (LEITE, 1994: 46).

O Esquema Metropolitano de Estruturas, aprovado em 1974, apresentou como

objetivos o controle e o direcionamento da expansão urbana e a descentralização das

atividades não-residenciais, através da criação de um sub-centro metropolitano na

região de Betim. Entretanto, os investimentos para sua consolidação, segundo Leite

(1994), tiveram como efeito imediato a especulação imobiliária e retenção ociosa de

terrenos, inviabilizando a proposta.

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O resultado mais significativo do planejamento metropolitano foi o Plano de Ocupação

do Solo (POS)9 que seria a base da primeira Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo

Horizonte (LUOS), em 1976. Até então, o Código de Obras, em vigência desde 1940,

era a grande referência em termos de legislação urbanística da cidade. Ainda que a lei

se limitasse ao município de Belo Horizonte, pelo menos na esfera conceitual possuía

uma concepção urbanística mais ampla, ou seja, de um planejamento metropolitano,

embora este não tenha sido implementado.

Segundo o Plambel (1976), os principais objetivos da Lei de Uso e Ocupação do Solo

(LOUS) eram “a promoção de desenvolvimento urbano, da ordenação do território, do

uso adequado do solo e do bem estar da coletividade. Para tanto, há de se permitir ao

poder público regular, restringir e determinar a concentração da população,

estabelecer zoneamentos, disciplinar a localização, uso e ocupação do solo” (p.112).

O POS lançou diretrizes que reforçavam as tendências existentes de assentamento da

população e de distribuição das atividades, pois, segundo a equipe que o elaborou,

somente grandes investimentos poderiam contrapor uma nova estrutura ao modelo

radio-concêntrico já consolidado. A equipe concluiu que a utilização dos principais

eixos viários para uso comercial era uma medida descentralizadora a ser explorada,

resgatando uma abordagem elaborada anteriormente pela SAGMACS. Os novos sub-

centros não se constituiriam em núcleos, mas ao longo das vias coletoras.

Para que os benefícios da estrutura urbana fossem repartidos de forma mais

equilibrada, o Plano previu a distribuição da população de alta renda pelo tecido

urbano, com objetivos de provocar melhor distribuição dos equipamentos e infra-

estrutura, beneficiando os extratos mais pobres da população. O objetivo era mesclar

as classes sociais tanto quanto fosse possível. No entanto, como veremos, a

consolidação, na legislação urbanística, das tendências existentes demonstrou o

divórcio entre o discurso e a prática.

O zoneamento resultante da LUOS/1976 consolidou áreas específicas para as

diferentes classes sociais: ZR-1 e ZR-2, de baixas densidades e lotes grandes, para

as classes abastadas; ZR-4, com potencial para verticalização para as classes

9 Algumas diferenças importantes podem ser destacadas entre os dois planos: de um lado, o POS propunha a manutenção da centralidade metropolitana, com uma redistribuição populacional, principalmente dos grupos sociais de menor renda, por todo o tecido urbano, a partir da descentralização das atividades de comércio e serviço ao longo dos principais eixos viários. De outro lado, ao propor a criação de um novo centro, a equipe de planejadores do EME, desconsiderou a estrutura urbana já consolidada da cidade e a atuação de diversos agentes sociais no processo de estruturação do espaço, adotando como indutores da distribuição da população as atividades produtivas e a acessibilidade proporcionada pelo sistema de transporte.

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médias; ZR-3 (média densidade demográfica em potenciais construtivos relativamente

baixos) para as camadas populares; ZR-5 e ZR-6, de alta densidade em edificações

verticais localizadas no centro da cidade (ver Figura 210). Este zoneamento, na prática,

consolidou um modelo explícito de segregação socioespacial.

A posição da equipe foi a de não interferir diretamente nos mecanismos do mercado

imobiliário, evitando um zoneamento que “agisse como uma camisa de força para a

cidade”, pois acreditava-se que “as leis de mercado são capazes de produzir

resultados satisfatórios, desde que os agentes públicos disponham de instrumentos

eficientes de controle dos seus efeitos e distorções” (PLAMBEL, 1976:112).

Fazia parte do discurso da equipe que elaborou a lei o adensamento dos núcleos

centrais, limitando a expansão periférica e priorizando a verticalização e a ocupação

dos vazios urbanos como alternativa para conter a expansão periférica e melhorar o

aproveitamento da infra-estrutura, em grande parte ainda subutilizada.

Contrapondo a multifuncionalidade estabelecida para a área central, nas áreas

periféricas acentuou-se a homogeneidade. A definição de grande parte do tecido

urbano como área residencial, classificada como ZR-3, tinha a intenção de garantir a

permanência das populações de media e baixa renda, preservando-as de certa forma

da especulação imobiliária. (LEITE, 1994)

Nas áreas mais centrais, não obstante os inúmeros modelos de assentamento

oferecidos pela legislação para diversificar a ocupação, obviamente o mercado

imobiliário se incumbiu de explorar os modelos mais lucrativos, como aqueles que

permitiam maiores coeficientes de aproveitamento, enquanto outros foram muito

pouco utilizados.

Se as propostas da LUOS vieram a constituir um avanço em relação à situação

anterior, regulando o desenvolvimento da cidade e estabelecendo parâmetros

urbanísticos para o conforto ambiental das edificações, a concepção de um

zoneamento que distribuía vantagens e privilégios desigualmente no território veio

cristalizar a segregação existente (MENDONÇA, 2000).

As novas possibilidades de verticalização proporcionadas pela lei, vieram de encontro

aos interesses do mercado imobiliário, estendendo principalmente na orla da Avenida

do Contorno e seus arredores os espaços passíveis de receberem construções em

altura, no momento em que era clara a situação de saturamento das áreas

10 No mapa da Figura 2 pode-se visualizar os potenciais construtivos predominantes permitidos para o uso residencial pela LUOS/76.

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tradicionalmente mais procuradas para as edificações verticais (MATOS, 1984).

Apesar de revestida inicialmente de caráter temporário, cuja revisão deveria ocorrer

cinco anos após sua implementação, a LUOS de 1976 estabeleceu normas que

ganharam grande permanência no tempo e o forte apoio dos agentes imobiliários.

Somente nove anos mais tarde, em 1985, foi aprovada uma nova Lei de Uso e

Ocupação do Solo, utilizando a mesma prática do zoneamento funcional e dando

continuidade aos modelos de assentamento, com introdução apenas de pequenas

alterações em relação à Lei anterior. Entre as alterações cita-se a modificação do

zoneamento ZR-4, que se tornou bastante atrativo ao mercado imobiliário e

apresentou-se saturado pelos altos índices de ocupação. Procedeu-se, então, ao

desdobramento da ZR-4, em três zonas: ZR-4A, ZR-4 e ZR-4B, para adequação das

“densidades de ocupação do solo” tendo em vista critérios relativos à existência de

infra-estrutura, acessibilidade e função desempenhada na estrutura urbana.

(FREITAS, 1996).

As modificações propostas no zoneamento em 1985 foram, pois, bastante pontuais,

aproximando mais da realidade micro espacial da cidade, com parâmetros definidores

de menor densidade construtiva nos bairros mais tradicionais, próximos ao centro, a

norte11 - ver Figura 3.

Com a Nova República (1985), cresceram as propostas para que o planejamento

atingisse formas mais democráticas, com maior envolvimento da sociedade. Os

debates em torno da nova Constituição Federal trouxeram à tona o tema da “reforma

urbana”. Setores progressistas e movimentos populares se uniram para repensarem

maneiras de promover a distribuição mais justa dos custos e benefícios da

urbanização, atenuando o desequilíbrio social.

Em Belo Horizonte os anos noventa vão se caracterizar por uma ruptura no

planejamento urbano funcionalista expresso na legislação urbanística então vigente, e

o Plano Diretor aprovado em 1996 representaria claramente as tendências recentes do

planejamento urbano (FREITAS, 1996). Na elaboração desse Plano Diretor buscou-se

a participação popular através de divulgação do processo e audiências, ainda que,

apesar do esforço inédito, essa participação, na prática, tenha sido restrita (MOL,

2004).

11 Os estudos da SAGMACS (1958-56) haviam mostrado, já nos anos cinquente, uma divisão norte-sul com os segmentos mais populares localizados a norte e aqueles de maior renda a sul. Ver também para um estudo da distribuição geográfica da população, Villaça (1998)

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As diretrizes para o desenvolvimento urbano foram materializadas na Lei de

Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo (LPOUS), que procurou ser mais flexível do

que as leis anteriores, no que diz respeito à localização das atividades não-

residenciais, na tentativa da adequar-se à diversidade do meio urbano. Para tanto,

estabeleceu-se um macrozoneamento de ocupação, com critérios mais amplos,

relacionados à infra-estrutura, topografia, sistema viário, acessibilidade e demandas

de preservação e proteção ambientais das diversas regiões da cidade. Aos usos não-

residenciais flexibilizou-se a princípio, todo o território do município, sendo permitida a

instalação segundo a classificação da atividade, a natureza e a largura da via pública.

[A LPOUS] passou a enfatizar a OCUPAÇÃO do solo ao contrário das leis

anteriores em que o zoneamento era, essencialmente, baseado no USO do solo

pelas diferentes funções. Ao focar-se na ocupação, pode-se melhor controlar as

densidades, redirecionando o adensamento e a distribuição da população pelo

espaço. Isto porque a legislação criou zonas onde o adensamento deve ser

estimulado e outras onde este deve ser restringido, favorecendo a ocupação de

áreas com boas condições de infra-estrutura, serviços urbanos, acesso fácil,

mas que se encontravam como vazios urbanos antes de 1996 (COTA,

2002:128).

De um modo geral, os coeficientes de aproveitamento da LPOUS de 1996 são

inferiores aos da lei anterior. Entretanto em alguns pontos da cidade o coeficiente é

significativamente elevado como, por exemplo, em áreas anteriormente classificadas

como ZR-3 – Coeficiente de Aproveitamento (CA) = 1,0 – que passaram a ser

denominadas Zonas de Adensamento Preferencial - ZAP (CA = 1,7), atraindo a

produção imobiliária para vários bairros que receberam essa classificação.

As Zonas de Adensamento Preferencial (ZAP) englobam áreas que reúnem condições

favoráveis de infra-estrutura e topografia, cuja intenção é promover a ocupação mais

intensiva através de parâmetros urbanísticos mais permissivos – ver Figura 4. Grande

parte dessas áreas era anteriormente classificada como ZR-3 e ZR-4. A mudança do

zoneamento ZR-3 para ZAP introduziu grande alteração no coeficiente de

aproveitamento que passou de 1,0 para 1,7. Essa alteração, como veremos, provocou

o adensamento de várias áreas.

A área central permanece com os maiores coeficientes da cidade (CA = 3,0), ainda

que bastante inferiores aos da lei anterior, onde os índices podiam atingir até 8,0.

A classificação Zona Adensada (ZA) foi aplicada aos bairros peri-centrais, localizados

ao sul, com a finalidade de conter o adensamento populacional e construtivo em

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bairros tradicionalmente alvo do mercado imobiliário residencial e com tendência à

saturação. A maioria desses bairros apresentava o zoneamento ZR-4 na LUOS de

1985, e se caracterizaram por uma intensa ocupação por edificações residenciais

multifamiliares. Apesar de intentar conter a ocupação, a zona ZA apresenta um

elevado coeficiente de aproveitamento (C.A.= 1,5) se comparada à ZAP, onde a

ocupação é incentivada (C.A.= 1,7), o que sugere a continuidade da atuação do

mercado imobiliário nessas áreas (MOL, 2004).

As Zonas de Adensamento Restrito (ZAR) correspondem às regiões onde a ocupação

é desestimulada devido à saturação ou precariedade do sistema viário e infra-estrutura

e subdividem-se em ZAR-1, que inclui bairros de classe média-alta, e ZAR-2, com

segmentos que variam de renda média a baixa.

Planejamento, gestão e mercado

O planejamento urbano em Belo Horizonte teve expressão direta na legislação de uso

e ocupação do solo, com impactos importantes no processo de expansão do tecido

urbano. Como veremos, as intervenções públicas através de obras viárias

estruturantes (ver Figura 5) também apresentam coerência com esse processo.

Podemos identificar dois modelos de planejamento e gestão urbana nas três últimas

décadas, em Belo Horizonte. Nos anos setenta e oitenta, a legislação urbanística e as

obras estruturantes deram concretude a um processo de planejamento urbano que

consolidou a centralização de atividades e de densidade demográfica. A periferização

da população de baixa renda ocorreu através de uma ocupação horizontal espraiada

pelo território12, enquanto os segmentos de mais alta renda permaneceram

concentrados na chamada Área Central, com relativa descentralização, a partir da

segunda metade da década de 70, ocupando as regiões a ela vizinhas. Os anos

noventa constituem cenário para um novo modelo de planejamento, com inversão da

localização das obras públicas e da lógica de distribuição dos potenciais construtivos

na cidade. Esta transformação pode ser observada, por exemplo, na LPOUS, através

do macrozoneamento baseado na ocupação e do incentivo às novas centralidades e,

ainda através da repartição dos recursos para investimento através do Orçamento

Participativo13, configurando práticas sintonizadas de democratização do espaço.

12 Este mesmo processo de periferização ocorreu com as favelas: aquelas localizadas nas áreas mais centrais apresentaram menor crescimento populacional e novos assentamentos precários surgiram nas periferias norte e sudoeste. 13 A Figura 5 permite visualizar a localização dos investimentos, bem como as obras viárias mais importantes, no período posterior a 1993.

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Os impactos decorrentes de cada um desses modelos de gestão foram analisados a

partir da correlação entre leis e obras, de um lado, e o crescimento do número de

apartamentos, por outro. O mapeamento desse crescimento, por período, permite

observar o movimento da incorporação imobiliária residencial promovida pelo

segmento empresarial, ainda que apenas de forma quantitativa, o qual cumpre papel

importante nos processos de estruturação urbana.

Até 1975 pode-se verificar a presença de apartamentos apenas nas áreas centrais e

nos arredores da Av. do Contorno (a qual delimita a área central), onde eram

permitidos pela legislação. Os bairros do centro da cidade, de ocupação antiga,

apresentaram-se ao longo das décadas como áreas tradicionais de ação do mercado

imobiliário, que explorou as possibilidades de verticalização desta região. A ampliação,

na década de 1950, dos limites da área urbana e o aumento da permissividade da

ocupação permitiram que o mercado atuasse nas áreas lindeiras à Av. do Contorno,

em busca de novas localizações, iniciando a verticalização nos bairros adjacentes.

A partir de 1976, quando foi aprovada a primeira Lei de Uso e Ocupação do Solo

(LOUS), ocorre um intenso processo de verticalização em Belo Horizonte, como

resultado de um conjunto de fatores, além do aumento de potenciais construtivos –

fluxos imigratórios e grande incremento demográfico, crescimento econômico e boom

imobiliário -, estabelecendo um patamar quantitativo de apartamentos construídos

jamais visto14. A nova legislação reguladora do uso e ocupação do solo, que promoveu

uma redistribuição dos potenciais de ocupação e de usos sobre o território da cidade,

propiciou um aumento da construção de edifícios multifamiliares verticais em bairros

mais afastados da área central, ainda que não periféricos. Este processo

correspondeu às intenções dos planejadores, expressas no Plano de Ocupação do

Solo (PLAMBEL, 1976), de adensar as localidades mais centrais que, por serem mais

bem estruturadas, deveriam ser ocupadas mais intensamente para aproveitamento

dos investimentos nestas áreas. A expansão da atividade imobiliária residencial

correspondeu a eixos definidos por vias estruturantes implantadas durante os anos

setenta.

Ao vincular o potencial edificável à zona de uso, a lei incorpora ao terreno uma

indexação do valor de mercado. Nos locais onde o potencial de usos e de ocupação

aumentou, a tendência foi de valorização dos terrenos. De acordo com estudo

realizado pelo Plambel (1987), as zonas de uso exclusivamente residencial, onde os

14 Segundo o Cadastro Imobiliário da Prefeitura (IPTU) o estoque existente até 1975 era de 41.316 apartamentos; entre 1976 e 1984 foram construídos 65.535 novas unidades dessa tipologia.

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potenciais construtivos são menores, tiveram queda mais acentuada nos preços. No

caso dos bairros classificados como ZR-1 e ZR-2, a diminuição dos preços pode ser

interpretada como resultante da interrupção do processo de substituição das

residências unifamiliares por residências multifamiliares verticais. Já na ZR5,

localizado na região central, onde, nas edificações verticais, era permitido apenas o

uso residencial, a queda de preços, apesar dos altos coeficientes de aproveitamento,

se deve à restrição do uso comercial fortemente presente nesta área Nos

zoneamentos onde era permitido o uso comercial e de serviços, houve aumento dos

preços (ZR-6, ZC-3 e ZC-6); já as áreas que não sofreram grandes alterações no

potencial construtivo, ocorreram aumentos de preços inferiores aos anos interiores.

Os bairros com maior número de apartamentos construídos entre 1976 e 198415

correspondem justamente às áreas com modelos de assentamento mais permissivos

(ver figuras 1 e 2). Apresentavam em sua maioria, zoneamentos ZR-5 e ZR-6, em

bairros internos à Av. do Contorno, destinados ao uso residencial dos estratos de

maior renda e ZR-4 nas áreas que configuram um anel em torno da área central. A

presença de apartamentos em bairros mais distantes corresponde, na maioria dos

casos, a conjuntos residenciais viabilizados pela política nacional de habitação. Ao

processo de crescimento urbano decorrente de parcelamentos e agregação de lotes

nas periferias somou-se um novo modelo, no qual o lote era oferecido juntamente com

moradias implantadas, numa atuação conjunta do grande capital imobiliário com o

BNH.

Apesar de alguns bairros da região Centro-Sul possuírem predominantemente

zoneamentos restritivos às construções em altura (ZR-1 e ZR-2), apresentaram um

elevado número de apartamentos no período de vigência da LUOS de 1976,

demonstrando que a legislação não impediu a atuação do mercado imobiliário nessas

áreas de grande atratividade. Esses bairros foram largamente beneficiados pela

aberturas de novas vias de grande porte, que propiciaram importantes ligações com

centro (ver Figura 5).

Os elevados investimentos em infra-estrutura nesta época contribuíram para expansão

da ação do mercado de imóveis. Obras de grande porte foram executadas em Belo

Horizonte, criando novos acessos dos bairros tradicionais à área central. Essas obras

encontram-se, em geral, em áreas cujo zoneamento era mais permissivo, indicando

15 O corte no ano de 1984 está relacionado ao fato de que em 1985 é aprovada uma nova lei de uso e ocupação do solo, com algumas alterações em zoneamentos e potenciais construtivos.

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clara correspondência entre as práticas municipais de gestão da cidade e a ação do

mercado.

Foi durante esse período que começam a se configurar novas e importantes

centralidades em Belo Horizonte, que se consolidaram fundamentalmente a partir da

implantação de grandes obras viárias. Essas áreas se estabeleceram como locais de

intensa atratividade para o mercado imobiliário, iniciando-se um processo de

verticalização que continuaria nas décadas seguintes, influenciando as mudanças

ocorridas na legislação de 1985 – a nova lei criou o zoneamento ZR-4B, com

coeficientes mais permissivos nesses locais.

Apesar de que as modificações introduzidas na Lei de Uso e Ocupação de 1985

tornaram-na mais permissiva que a anterior, o impacto produzido por ela na dinâmica

da construção civil foi menor, provavelmente, em virtude da crise econômica do

período e do conseqüente desaquecimento do mercado da construção civil16.

Ao mesmo tempo, durante a década de 1980, novas e importantes obras estruturantes

contribuíram para a articulação de bairros periféricos, que apresentavam um crescente

processo de ocupação, com o centro. Neste período, despontam duas novas frentes

de expansão imobiliária residencial, a sudoeste, na continuidade do chamado centro-

sul, tradicional lugar dos investimentos imobiliários, e a noroeste, na contiguidade com

os bairros de alta renda situados na Pampulha (ver figuras 1 e 5).

Os índices de área construída no período em que vigorou a LUOS/85 demonstram, de

um lado, uma ocupação gradativa das áreas mais periféricas e, de outro, o

permanente adensamento dos bairros mais centrais.

A Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de 1996 trouxe um novo fôlego para

o mercado imobiliário, com espraiamento dos potenciais construtivos, bem como da

ocorrência de novos apartamentos. Os maiores aumentos ocorrem nos bairros

anteriormente classificados como ZR-3 que na reclassificação da LPOUS 1996

receberam o zoneamento ZAP, permitindo maior utilização de seus terrenos, com o

CA passando de 1,0 para 1,7. Já os outros bairros também classificados como ZAP,

cujo zoneamento anterior era ZR-4 ou ZR-4B tiveram uma expansão do número de

16 Contrariando a intenção dos planejadores, de intensificar a ocupação em áreas voltadas para os estratos de renda mais alta, que vinham apresentando intensa dinâmica imobiliária, ocorreu um arrefecimento no processo de verticalização. Apesar da alteração no zoneamento ZR-4 para ZR-4B, mais permissivo, os bairros que sofreram essa mudança não sustentaram o ritmo de crescimento que vinham apresentando.

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apartamentos muito inexpressiva, pois apesar do índice CA ter aumentado, essa

alteração foi pequena, passando de 1,5 para 1,7 (ver figuras 1, 3 e 4).

O discurso do planejamento dos anos noventa tem, em Belo Horizonte,

correspondência não só com a legislação urbanística, mas também com importantes

ações públicas. Destaca-se o Orçamento Participativo, que redirecionou o

investimento em obras viárias e de infra-estrutura para as áreas mais periféricas (ver

Figura 5). Ainda que permaneça expressiva a concentração de novos

empreendimentos imobiliários nas áreas mais centrais, pode-se observar importante

descentralização desses investimentos principalmente a norte e a sudoeste (ver Figura

1)17. No período posterior a LPOUS/96, há inserção de novas regiões na dinâmica de

ocupação promovida pelo mercado imobiliário, com parâmetros construtivos

propiciadores de verticalização que não mais se restringem à área central e

adjacências, localizando-se de forma mais dispersa pelo território da cidade,

revelando, portanto uma desconcentração na ocupação do solo. (MOL, 2004).

Podemos perceber na Figura 1 a diminuição, no período 1996/2000, do número de

bairros que apresentam atuação intensa do mercado (destacados em vermelho). É

visível, ainda, a persistência óbvia do mercado em continuar a explorar o filão para as

populações mais ricas (áreas mais centrais). Entretanto, desta vez, ao contrário do

que havia sido propugnado no POS, a sua atuação se encontra de fato um pouco mais

espalhada pelo território. É possível perceber também a construção de grande número

de novos apartamentos nas áreas classificadas como ZAP, praticamente repetindo o

desenho dessas áreas na Lei (ver figuras 1 e 4).

Os impactos desse novo modelo estão relacionados à expansão do mercado de

incorporação de imóveis residenciais, através da agregação de novos segmentos de

mercado18, apontando para a democratização do acesso à moradia. No entanto,

estudos sobre a mobilidade residencial na região de Belo Horizonte19 mostram, por

outro lado, a saída de trabalhadores e grupos de baixa renda do território da cidade,

fazendo emergir a relatividade do processo de democratização do território belo-

horizontino e a hipótese de um outro impacto importante da nova ação pública, qual

17 Os bairros situados no centro-sul, com zoneamento correspondente a ZA, em geral, tiveram decréscimo do número de apartamentos construídos, podendo indicar uma possível contenção da ocupação. Esses bairros, em sua maioria, eram anteriormente classificados como ZR-4B, cujo CA era 2,0 para edificações multifamiliares verticais, o que foi modificado para 1,5, podendo chegar a 2,0 em terrenos superiores a 800 m2 e com testada mínima de 20m. Entretanto alguns bairros apresentam altos indicadores de verticalização revelando a continuidade da dinâmica de ocupação, ainda que decrescente. Possivelmente esse fato se deve ao CA não ter sofrido alteração significativa com a aprovação da LPOUS 1996. 18 Ver, para análise mais detalhada desse processo de agregação de novos segmentos de mercado, COTA (2002). 19 MENDONÇA, 2002.

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seja, o encarecimento dos preços dos terrenos no núcleo metropolitano e uma

mudança nas condições para o assentamento residencial. A face perversa desse

movimento enseja novas investigações, agora voltadas para os instrumentos de

política urbana e a viabilização da expansão urbana de fato democratizadora.

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