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1 Plotino: uma perspectiva neoplatônica da estética 1 . BENTO SILVA SANTOS (UFES – Departamento de Filosofia) Resumo O objetivo deste artigo tem em vista apresentar a novidade da estética do neoplatônico Plotino que, em sua obra principal – as Enéadas -, contestou a concepção tradicional, aceita geralmente na Grécia (especialmente por Platão e Aristóteles), segundo a qual a beleza era definida como symmetria, expressando assim a convicção de que a beleza dependia da relação, da medida, da proporção matemática e do acordo entre as partes. Portanto, a teoria da beleza baseada no pressuposto das categorias da ordem, da simetria e da definição é rejeitada em favor de uma tese original: Plotino considera a beleza como um valor puramente inteligível, associado às noções de harmonia moral e de esplendor metafísico. Em suma: esboçamos a concepção neoplatônica de Plotino sobre o Belo como uma tese em aberta oposição aos cânones tradicionais da estética na filosofia grega. Palavras-chave:beleza, neoplatonismo,ordem, simetria, definição, espírito Abstract The objective of this article has in mind to present the novelty of the aesthetics of the neoplatonic Plotinus. In its main work - Enneads -, he rejected the traditional conception, it generally accepts in Greece (especially for Plato and Aristotle), second which the beauty was defined as symmetria, expressing like this the conviction that the beauty depended on the relationship, of the measure, of the mathematical proportion and of the agreement among the parts. Therefore, the theory of the beauty based on the presupposition of the categories of the order, of the symmetry and of the definition it is rejected in favor of an original thesis: Plotinus considers the beauty purely as a value intelligible, associated to the notions of moral harmony and of metaphysical splendor. We sketched the neoplatonic conception of Plotinus on the Beauthy as a thesis in open opposition to the traditional canons of the aesthetics in the Greek philosophy. Keys-words:beauty, neoplatonism,order, symmetry, definition, spirit O patrimônio comum do pensamento antigo, em relação à teoria estética 2 , consubstanciou-se na teoria de Aristóteles 1 Comunicação pronunciada no II Encontro de Estudos Medievais (16 a 20 de outubro de 2000), que teve como tema central “O Neoplatonismo: Neoplatonismo antigo e medieval. Neoplatonismo da Renascença. Origens e Influências do Neoplatonismo”. Local: Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Departamento de Filosofia). Texto publicado em Neoplatonismo.Natal: Argos Editora,2001, 215-220. 2 A estética grega antiga está ligada aos seguintes conceitos fundamentais: os de medida, ordem, proporção, definido; o de bem; o de inteligível privilegiado, de “extraordinariamente evidente” ; o

Plotino. Uma Perspectiva Neoplatonica Da Estetica

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Plotino: uma perspectiva neoplatônica da estética1.

BENTO SILVA SANTOS

(UFES – Departamento de Filosofia)

Resumo

O objetivo deste artigo tem em vista apresentar a novidade da estética do neoplatônico Plotino que, em sua obra principal – as Enéadas -, contestou a concepção tradicional, aceita geralmente na Grécia (especialmente por Platão e Aristóteles), segundo a qual a beleza era definida como symmetria, expressando assim a convicção de que a beleza dependia da relação, da medida, da proporção matemática e do acordo entre as partes. Portanto, a teoria da beleza baseada no pressuposto das categorias da ordem, da simetria e da definição é rejeitada em favor de uma tese original: Plotino considera a beleza como um valor puramente inteligível, associado às noções de harmonia moral e de esplendor metafísico. Em suma: esboçamos a concepção neoplatônica de Plotino sobre o Belo como uma tese em aberta oposição aos cânones tradicionais da estética na filosofia grega.

Palavras-chave:beleza, neoplatonismo,ordem, simetria, definição, espírito Abstract

The objective of this article has in mind to present the novelty of the aesthetics of the neoplatonic Plotinus. In its main work - Enneads -, he rejected the traditional conception, it generally accepts in Greece (especially for Plato and Aristotle), second which the beauty was defined as symmetria, expressing like this the conviction that the beauty depended on the relationship, of the measure, of the mathematical proportion and of the agreement among the parts. Therefore, the theory of the beauty based on the presupposition of the categories of the order, of the symmetry and of the definition it is rejected in favor of an original thesis: Plotinus considers the beauty purely as a value intelligible, associated to the notions of moral harmony and of metaphysical splendor. We sketched the neoplatonic conception of Plotinus on the Beauthy as a thesis in open opposition to the traditional canons of the aesthetics in the Greek philosophy. Keys-words:beauty, neoplatonism,order, symmetry, definition, spirit

O patrimônio comum do pensamento antigo, em relação à

teoria estética 2, consubstanciou-se na teoria de Aristóteles

1 Comunicação pronunciada no II Encontro de Estudos Medievais (16 a 20 de outubro de 2000), que teve como tema central “O Neoplatonismo: Neoplatonismo antigo e medieval. Neoplatonismo da Renascença. Origens e Influências do Neoplatonismo”. Local: Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Departamento de Filosofia). Texto publicado em Neoplatonismo.Natal: Argos Editora,2001, 215-220. 2 A estética grega antiga está ligada aos seguintes conceitos fundamentais: os de medida, ordem, proporção, definido; o de bem; o de inteligível privilegiado, de “extraordinariamente evidente” ; o

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e permaneceu intacto ao longo de seis séculos até o

surgimento de uma escola filosófica que passou a co nsiderar a

beleza como valor metafísico. Por volta do século I II d.C.,

Plotino, fundador do neoplatonismo, elaborou uma no va

estética que superou a forma canônica da estética a ntiga

transmitida especialmente por Aristóteles 3. Este baseava sua

teoria da beleza nos pressupostos clássicos da orde m, da

simetria e da definição. A posição de Plotino está consignada

em sua obra principal – as Enéadas -, na primeira Enéada (= I

6,1-19 , A Beleza ) e na quinta (= V 8,1-13, A Beleza

inteligível ). São dois tratados distintos em dois diferentes

livros, mas que se conectam na mesma teoria estétic a. O

principal mérito de Plotino, definido como insuperável

conquista na história da estética, foi não só o de ter unido

definitivamente o conceito de arte ao do belo, mas também o

de ter tornado independente a sua estética da sua c oncepção

metafísica 4.

Diversas razões são aduzidas para rejeitar a defini ção

tradicional da beleza. Plotino observa, antes de tu do, que,

caso a beleza dependesse da simetria, ela se manife staria

somente em objetos complexos e não em uma cor parti cular ou

som , nem seria percebida no sol, na luz, no ouro. Nesses não

existe multiplicidade, nem diversidade, mas estão e ntre as

coisas mais belas. Em segundo lugar, conforme a exp ressão que

assume, o próprio rosto pode aparecer mais ou menos belo.

de Eros; o de verdadeiro. Cf. G. REALE, História da Filosofia Antiga 5: Léxico, Índices, Bibliografia.São Paulo,1995, 37s 3 Para uma síntese do pensamento de Plotino, cf. E. K. EMILSON, Plotinus, em CRAIG, E. (ed.) Routledge Encyclopedia of Philosophy 7. New York-London,1998, 456-463; M. R. MILES, Plotinus on Body and Beauty.Oxford,1999 4 Cf. M. GERMINARIO, L’estetica di Plotino. Tra teoria e definizione, Angelicum 75 (1998) 143

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Isto não seria possível se a beleza dependesse unic amente da

proporção, visto que, não obstante o variar da exp ressão, a

proporção do rosto permanece constante. Em terceiro lugar, a

beleza não pode consistir no acordo entre as partes no

sentido preciso de que acordo pode existir também n as coisas

brutas; mas estas não poderão ser jamais belas. Em quarto

lugar, o conceito de simetria pode ser aplicado aos objetos

materiais, mas não aos objetos espirituais, tais co mo a

virtude, o conhecimento, ou a um sistema social per feito.

Conseqüentemente, a definição da beleza pode, quand o muito,

ser aplicada a alguns objetos belos, mas não a todo s. A

beleza não seria uma questão de relação: deve ser, por isso,

uma qualidade do objeto, qualidade que, no entanto, tem

necessidade de ser apreendida por uma faculdade int electiva 5.

A estética do neoplatônico Plotino só poderá ser

avaliada adequadamente à luz de seu sistema espirit ualista,

transcendentalista e idealista. Apesar de certa amb igüidade

na concepção da beleza em Plotino 6, desenvolveremos sua

concepção neoplatônica do belo, sem enveredar para questões

complexas, sob três aspectos: a beleza como um valor

puramente inteligível , associado às noções de harmonia moral

e de esplendor metafísico 7. Nesses aspectos podemos encontrar

algumas características básicas da concepção estéti ca de

5 Cf. W. TATARKIEWICZ, Storia dell’estetica 1: L’estetica antica.Torino,1979, 355-366 6 De um lado, ele se refere a uma imagem psíquica (“forma interna”) e, de outro lado, a uma imagem ideal (“modelo”). Assim procedendo, Plotino não diferencia deliberdamente as duas; conserva a antiga concepção da beleza, como aquilo que suscita admiração, mas cria igualmente o novo conceito de beleza como revelação do espírito na matéria. 7 Cf. M. TROMBINO, L’estetica: storia e problemi, em TROMBINO, M.; MACAUDA, A. & GUARNERI, E. Pensare il Belo. Lineamenti di estetica filosofica.Palermo,1991, 66-75

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Plotino: julga-se que a beleza não está presente so mente na

simetria , ou seja, na disposição das partes no tod o, mas

também é preciso admitir que as próprias partes que se

coordenam sejam igualmente belas. Mesmo que a belez a resida

na simetria, esta não é a sua fonte; mas somente a sua

manifestação externa. A matéria não é bela em si, m as é belo

o espírito que nessa se revela e que só possui unid ade, razão

e forma. Só o espírito é capaz de reconhecer o espí rito; por

isso, somente o espírito pode captar a beleza: “ A alma não

pode contemplar a beleza se não se torna, ela mesma , bela ” 8.

Aquilo que está como fundamento da beleza nas coisa s é a

forma-idéia que nessa de evidencia, pois só a forma-idéia das

coisas entra em sintonia com o sujeito perceptivo q ue é a

alma 9. Se a beleza é idéia-forma da coisa, só a alma

“por sua natureza e por sua proximidade da essência

real que lhe é superior, se deleita em contemplar

aquilo que é do seu mesmo gênero ou os vestígios

deste, permanece perplexa e refere a si mesma aquil o

que contempla, e se recorda de si mesma e daquilo q ue

lhe pertence” 10.

1. A BELEZA COMO VALOR INTELIGÍVEL

A beleza é captada pela alma mediante o intelecto.

Trata-se de uma operação não só cognoscitiva, mas d e índole

intelectiva. A matéria se informa de beleza quando é

informada por uma idéia. A matéria não pode ser a f onte da

8 PLOTINO, Enéadas I, 6, 9 9 Cf. G. REALE, História da Filosofia Antiga 4: As Escolas da Era Imperial.São Paulo,1994, 471ss 10 PLOTINO, Enéadas I, 6, 2

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beleza, mas só o espírito. Diferentemente de Platão , que se

interessava somente pela beleza intelectual, Plotin o vê na

beleza um atributo do mundo sensível, o qual revela , no

entanto, o mundo inteligível. Eis um importante tex to que

ilustra inequivocamente a posição de Plotino:

“Tomemos, se quiseres, dois blocos de pedra colocad os

um ao lado do outro: um é bruto e não foi trabalhad o;

o outro sofreu o marca do artista e se transformou na

estátua de um deus ou de um homem, de um deus como uma

Graça ou uma Musa, de um homem que não é o primeiro

que apareceu mas justamente aquele que a arte criou

combinando tudo aquilo que encontrou de belo: está

claro que a pedra, na qual a arte introduziu a bele za

de uma forma, é bela não porque é pedra (do contrár io

a outra seria igualmente bela), mas graças à forma que

a arte nela introduziu. A matéria não tinha antes e sta

forma; esta estava, antes, na mente do artista do q ue

na pedra; e esta estava no artista não porque tem d ois

olhos ou duas mãos, mas porque ele participa da

arte” 11.

A relação entre as coisas materiais belas e as obra s do

artista é aqui sintomática. Parte-se de um confront o entre um

objeto natural (o bloco de pedra não trabalhado) e uma obra

de arte (o bloco trabalhado pelo escultor). A matéria é

idêntica para ambos: o bloco de pedra). A estátua a presenta-

se, no entanto, mais bela do que o bloco não trabal hado. Qual

seria então a origem desta beleza superior? Como a beleza

originária da idéia do artista, trabalhando sobre a pedra

informe, confere beleza pela obra do arte, assim o intelecto

11 PLOTINO, Enéadas V, 8, 1 (ed. G. FAGGIN, Enneadi.Milano,1992)

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(nou'"nou'"nou'"nou'"), sendo provto" kalov"provto" kalov"provto" kalov"provto" kalov" e dando forma às coisas da natureza, as

torna belas pelo grau de participação na mesma idéi a. Esta

comparação mostra que a fonte da beleza da estátua está na

visão espiritual do artista, ou seja, a nova forma que a

pedra adquiriu (= a obra de arte) não imitou nenhum modelo

sensível mas surgiu da forma interna contemplada pe lo

artista:

“Fídias esculpiu o seu Zeus sem imitar nenhum model o

sensível; mas, ao contrário, imaginando a forma pel a

qual o seu Zeus teria aparecido se tivesse desejado

revelar-se sensivelmente aos nossos olhos” 12.

Segundo Plotino, o artista é “criador” na medida em que

não reproduz a realidade, mas, sim, a “forma intern a” que ele

tem em sua mente. Esta é livre para criar as suas f ormas

visivas espirituais sem respeitar os vínculos do pe so, da

fragilidade, da opacidade da matéria. A forma conte mplada

pela mente antes de transferi-la para a obra de art e não é,

porém, uma criação pessoal mas o reflexo de um mode lo

externo. Quais são as bases que permitem ao artista julgar

belas as coisas sensíveis? Plotino concebe a idéia de modo

diversos de seus predecessores gregos e romanos.

Diferentemente de Platão que considerava a Idéia co mo uma

realidade externa e imutável, Plotino a entende com o uma

qualidade da matéria que descortinamos sensivelmente dentro

até mesmo dos limites das coisas; mas bem antes dis so a idéia

é uma qualidade do espírito e dos objetos intelectivos

contemplados: “ A alma não pode contemplar a beleza se não se

12 PLOTINO, Enéadas V, 8, 1

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torna, ela mesma, bela ” 13. Em outras palavras: Plotino julga

que, além da beleza das coisas sensíveis, naturais e próprias

da arte, existem belezas supra-sensíveis “mais reai s que as

precedentes”, as “belezas mais elevadas” que não é dada à

sensação perceber, mas só à contemplação e ao êxta se. Mas

aqui já se vislumbra a perspectiva metafísica na li nha de

Platão, mas com métodos e objetivos diferentes.

2. A BELEZA COMO HARMONIA MORAL

As reflexões precedentes não deixam dúvida quanto à

novidade da estética de Plotino. Até então os grego s e os

romanos acreditavam que a função das artes visivas e

literárias consistisse na representação. Esta funçã o mimética

é recusada pela filosofia espiritualista de Plotino . Diante

da beleza pura da forma inteligível que o artista p roduziu ao

trabalhar a pedra, o seu espírito vive uma experiên cia nova e

transformante. A beleza, enquanto qualidade, age co mo uma

força na alma e Plotino a apresenta como uma qualid ade do

ser, uma produtividade metafísica. Uma vez que a be leza é

qualidade e não quantidade, ela aparece assim como una e

realidade indivisível, admitindo, porém, graus rela tivos à

sua pureza.

Plotino não concebe o universo metafísico como real idade

estática, perfeição de essências imutáveis, como su cedia

entre os platônicos. Para ele o ser é, ao contrário ,

dinâmico, o êxtase é da matéria, é a morte do ser. Em outras

palavras: “(a razão) enquanto possui, também age. Para ela,

ser aquilo que é, é o mesmo que agir; essa é contem plação e

13 PLOTINO, Enéadas I, 6, 9

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objeto de contemplação, já que é razão. E enquanto

contemplação, objeto de contemplação e razão, e som ente por

isso, essa produz. E assim demonstramos que a produ ção é

contemplação; essa de fato é o resultado de uma con templação

que permanece pura contemplação sem fazer outra coi sa, mas

produz porque é contemplação” 14.

Uma breve comparação ajudará a compreender o que Pl otino

tem em vista dizer. Consideremos duas realidades: a realidade

material de um objeto e a realidade mental da image m com a

qual o nosso espírito fixa na memória a sua recorda ção. O

objeto material é dado em sua imediaticidade e apre senta-se

fechado em sua finitude: é aquilo que é, destacado de outros

corpos (ainda que em relação com esses), não vivo, não

dinâmico em si mesmo – sendo quando muito inserido como coisa

em um sistema mecânico de forças. A imagem mental, ao

contrário, é viva, precisamente porque vive a vida do nosso

espírito. Tal imagem pode ser fixada na memória, su btraída do

movimento vital da mente, só com um esforço da próp ria mente,

que assim age circunscrevendo o próprio objeto: o n osso

pensamento, de fato, jamais imóvel trabalha sobre o s próprios

objetos, plasmando-os em relação a outras imagens, inserindo-

os em um circuito de pensamentos, desses extraindo todas as

conseqüências.

Segundo Plotino, nosso espírito pode criar o belo p orque

nele transparece a beleza superior do ser da qual e ste

ontologicamente provém. Considerando o fato de que a beleza

não é mais pressuposta pelas categorias da simetria e

proporções das partes, ela transcende as categorias físicas e

se apresenta em sua pureza e imaterialidade. Esta b eleza

14 PLOTINO, Enéadas VI

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pura, purificada da realidade sensível e material, sendo

aquela realidade da qual deriva o universo, é uma m eta que

deve ser atingida e se encontra no termo de um cami nho

ascético. É um processo simultaneamente ético-conte mplativo,

processo este que, no término do caminho ascético, descortina

que o belo se configura como Bem. Com a identificaç ão

beleza=bem, assaz conhecida na tradição grega 15, surge assim

uma noção metafísica fundamental na estética de Plo tino:

precisamente porque a beleza é o bem, mais do que f onte de

contemplação, ela apresenta-se como causalidade atr ativa e

final de um processo ético:

“ É preciso, portanto, subir em direção ao Bem, que é

aquilo para o qual tende toda alma. Quem o viu, sab e o

que quero dizer, e em que sentido é belo. Como Bem, é

desejado e o desejo tende em direção a ele; mas só

atingimos subindo em direção à região superior,

dobrando-se diante dele e despojando-se das vestes

endossadas na descida. Do mesmo modo quem sobe aos

santuários dos templos deve purificar-se, depor os

seus velhos hábitos e avançar nu; e, enfim, abandon ado

nesta subida tudo aquilo que é estranho a Deus, pod e

ver sozinho em seu isolamento, em sua simplicidade e

pureza, o Ser do qual tudo depende, porque é o ser, a

vida e o pensamento; porque é causa da vida, da

inteligência e do ser ” 16.

Segundo o texto citado, a categoria da beleza se to rna

aposição do bem, precisamente porque como bem se re encontra

no término do processo. Plotino determina uma funçã o

15 Cf., por exemplo, a passagem do Filebo de Platão: “(...) o Bem veio refugiar-se na natureza do Belo, pois não há dúvida de que em toda parte medida e proporção são beleza e virtude” (64 e). 16 PLOTINO, Enéadas I, 6, 6-7

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específica da beleza, a saber: levar-nos para o alt o, em

direção ao fundamento metafísico do mundo, em direç ão ao bem.

A estética plotiniana não possui, portanto, nenhum caráter

antropocêntrico; a beleza é um caminho para afastar -nos do

mundo brutal da matéria e, assim, subir às regiões do

espírito desejadas pela nossa alma.

3. A BELEZA COMO ESPLENDOR METAFÍSICO

Se a beleza do provto" kalov"provto" kalov"provto" kalov"provto" kalov" não está em si mesma acabada,

este é enquanto produz ; a sua beleza, portanto, se manifesta

e se expressa como luz, esplendor, como qualidade p ura. As

imagens utilizadas provêm da tradição platônica, ma s em

Plotino tais imagens se transformam em alguma coisa de

metafisicamente significativo. A nossa luz material é, sim,

material, mas nela o sinal da origem divina da natu reza é

mais punjante. Esta não tem o peso da matéria amorf a, nem

tampouco a sua opacidade, que a torna incompreensív el ao

intelecto. O espírito do homem, plasmado pela belez a do

mundo, afastando-se do mundo e fechando-se em si me smo, é,

por sua vez, criador de beleza; assim pode atingir a

contemplação do esplendor metafísico:

“ A nossa pátria é o lugar do qual descemos, está

aí nosso Pai (...) Tu te tornaste inteiramente uma luz

verdadeira? Não uma luz de dimensões ou forma

mensurável, que pode indefinidamente diminuir ou

aumentar em grandeza, mas uma luz absolutamente sem

medida, pois é superior a toda medida e toda

quantidade. Tu vês a ti mesmo neste estado? (...)

Agora não tens mais necessidade de guia: fixa o teu

olhar e contempla. É só este o puro olhar que vê a

beleza suprema (...). Jamais um olho verá o sol sem

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ter se tornado semelhante ao sol, nem uma alma verá a

beleza sem ter se tornado bela. Todo ser deve torna r-

se divino e belo, se deseja contemplar a Deus e a

Beleza ” 17.

A leitura deste texto deixa entrever a importância da

teoria de Plotino na história da estética. Segundo a sua

impostação metafísica, aquele que contempla a belez a física

não deveria perder-se nela, mas dar-se conta de que se trata

apenas de uma imagem, de uma ilusão e de uma sombra , e

deveria assim subir em direção à fonte da qual esta não é

senão um reflexo. À base de tais reflexões chegou-s e a cunhar

a expressão estética da ascensão : “ A beleza, portanto, está

lá em cima e provém do alto ” 18.

17 PLOTINO, Enéadas I, 6, 8-9 18 PLOTINO, Enéadas V, 8, 13

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É possível ainda descortinar como do otimismo metaf ísico

plotiniano derive uma concepção não totalmente nega tiva da

matéria. De fato, visto que de algum modo toda real idade

natural deixa transparecer a luz divina que nela se encontra

e nem se dá como existente a pura opacidade, não ex iste uma

realidade natural bruta. Na realidade, existem apen as

diversos graus, ascendentes, de beleza, do grau mín imo a um

grau máximo.O grau zero da beleza não existe. Em ca da pequena

partícula de matéria o esplendor do bem ainda trans parece. Na

linha da ontologia platônica, Plotino fornece a pri meira

tradução explícita da transcendentabilidade metafís ica entre

o ser que é belo e a beleza que é bem. Para Plotin o, o bruto

não se opõe o belo como categoria estética, mas com o valor

metafísico, isto é, enquanto privação de ser.

Os místicos medievais devem muito às concepções

filosóficas da ascensão plotiniana mediada pela bel eza.

Aqueles que julgam positivamente a teoria de Plotin o

colocaram em relevo que sua tentativa de inserir a beleza em

sistema metafísico revelou-se extremamente audaz e única em

seu gênero.

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