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Rio de Janeiro
Setembro de 2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
POÉTICAS DA SOMBRA:
DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA
Marcelle Ferreira Leal
Rio de Janeiro
Setembro de 2017
POÉTICA DAS SOMBRAS:
DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA
Marcelle Ferreira Leal
Tese de Doutorado submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutora em
Ciência da Literatura (Teoria Literária).
Orientador: Prof. Doutor Ronaldo Pereira Lima
Lins
Rio de Janeiro
Setembro de 2017
Poética das sombras:
de projeções a sujeitos da literatura
Marcelle Ferreira Leal
Orientador: Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura
(Teoria Literária).
Avaliada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins (UFRJ)
_________________________________________________
Profa. Doutora Ana Cristina dos Santos – UERJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Beatriz Vieira de Resende – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora. Ceila Maria Ferreira – UFF
_________________________________________________
Profa. Doutora Deise Quintiliano Pereira – UERJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Nilton dos Anjos– UNIRIO (suplente)
_________________________________________________
Profa. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins – UFRJ (suplente)
Agradecimentos
Este doutorado durou, formalmente, quatro anos. Neste tempo, muita coisa mudou. Eu
não sou mais a mesma, o tema ganhou outros contornos, enfim, a vida seguiu o seu curso com
o que tem de mais próprio: a inconstância. Entre dias de sol e sombra, redigi as páginas que
seguem na tentativa de expressar meu pensamento e todas as afetações que me tocaram
durante o processo. Não é uma tarefa fácil, pois o adubo da escrita nasce do que temos de
mais orgânico. Felizmente, ao longo da trajetória, contei com a ajuda de pessoas queridas que
caminharam comigo, de mãos dadas, nos momentos de euforia, calmaria e fraqueza e me
ajudaram a desviar da luminescência e escuridão plenas que, vez ou outra, cegaram os meus
olhos. Já adianto que o espaço reservado para os agradecimentos será pequeno, porque minha
rede de acolhimento, graças às deusas, é ampla. Por isso, é possível que alguns nomes não
estejam escritos nestas páginas, mas com certeza eles estão tatuados em meu coração.
Em primeiro lugar, agradeço à minha família, pois eles guiaram meus primeiros
saberes e não-saberes, abrindo as trilhas do caminho que me trazem a este trabalho. Uma vez
que muitos nomes fazem parte do conjunto em questão, destaco minha gratidão à Cleusa Faria
Ferreira (avó), Lair Marques Ferreira (avô) e Denise Faria Ferreira (mãe) que no âmbito
materno criaram esta sombra que começa a inscrever o próprio corpo no mundo e Celi
Gonçalves Leal (avó), Dylson Meirelles Leal (avô), Lenice Gonçalves Leal (madrinha) e
André Luiz Gonçalves Leal (pai) que, pelo viés paterno, também colaboraram neste
empreendimento. Taianne Ferreira Leal, minha irmã, enlaça estes elos e me ensina, ao nascer
oito anos depois, o sentido de com-partilhar. Também incluo aqui Bruno de Almeida
Gambert, meu companheiro, que, ao longo dos últimos anos, revoluciona meus afetos, minhas
crenças e minha vida. Sem o seu apoio, esta tese, certamente, não se concluiria. Estas são
presenças constantes que me ancoram nos dias de mar revolto e me encorajam a remar quando
o medo me paralisa.
Ainda em primeiro lugar, mas por uma outra face, agradeço a Ronaldo Lima Lins, meu
orientador. Com cuidado e paciência, ele tomou pelas mãos uma pequena sombra, nos
primeiros períodos de universidade, e impulsionou, com sabedoria, o meu crescimento. Nunca
esquecerei do projeto de três página que propus no começo da Iniciação Científica, afinal,
esse mundo era tão distante para mim. Hoje, o mínimo que posso fazer, é entregar esta tese,
com pouco mais de duzentas páginas, como forma de retribuir toda a sua generosidade. Muito
obrigada por todos os saberes e não-saberes que, continuamente, você me oferece e por toda a
confiança depositada no meu trabalho e nas minhas reflexões. Ainda aqui, agradeço à Cinda
Gonda que nos ensina a justa medida entre luz e sombra e, com sabedoria e afeto, acolhe os
nossos transbordamentos. Neste rastro, também reconheço a contribuição do grupo de
pesquisa do qual participo. O olhar crítico, o apoio emocional e as sugestões de cada um
enriqueceram a elaboração desta tese.
Deixo também o meu muito obrigada aos amigos presentes ao longo desta jornada.
Não conseguirei mencionar todos, mas sou grata a cada um pelo apoio oferecido. Ressalto os
nomes de Juliana Almeida, Virgínia Dias, Luciana Goiana, Elis Costa, Heloísa Mazza, Bruna
Ventura, Thaís Basílio e Ana Cristina dos Santos mulheres que me inspiram e participam dos
meus melhores e piores delírios. Ao grupo “Mestras e Mestres”, composto por companheiros
que me ensinam sobre as banalidades e complexidades da existência: Celso Cruz, Dani
Rezende, Débora Sabina, Eduardo Rosal, Fabrício Gonçalves, João Pedro de Sá, Luisa
Mattos, Ricardo Cruz, Rafael Alverne e Rogério Amorim. Aos amigos de pesquisa e de vida,
João Guilherme Paiva, Pedro Alegre e João Bastos. À Henrique Monnerat, amigo que chega
chegando e agrega beleza e ternura nos meus dias. Às companheiras do Laboratório de
Feminismos Negros com quem aprendo as re-existências cotidianas.
Minha gratidão também se dirige aos professores e professoras que colaboraram na
elaboração desta tese. Agradeço a Victor I. Stoichita que, da Suíça, generosamente, enviou
materiais para auxiliar no embasamento teórico da teoria que desenvolve e a qual sigo. Aos
professores Nilton dos Anjos e Victor Lemus pela avaliação arguta durante a qualificação. Às
professoras Ana Cristina dos Santos, Deise Quintiliano, Cinda Gonda, Vera Lins, Ceila Maria
Ferreira e Fátima Lima pelas contribuições intelectuais que me aportaram saberes necessários
para tal construção. Aos alunos do curso de extensão “Crítica Literária Feminista”, com os
quais mais aprendi do que ensinei.
Finalmente, deixo meu agradecimento à Capes cujo financiamento foi fundamental
para o desenvolvimento desta investigação.
A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
(Sérgio Vaz)
Rio de Janeiro
Setembro de 2017
RESUMO
POÉTICA DAS SOMBRAS:
DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA
Marcelle Ferreira Leal
Orientador: Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência
da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura
(Teoria Literária).
Considerando o protagonismo da história da luz no ocidente e nas sociedades
ocidentalizadas, objetiva-se demonstrar a relevância das sombras no âmbito da arte literária.
Com o fim de comprovar a importância estética do elemento umbroso, recorre-se inicialmente
à apresentação das sombras na literatura da maneira que analisamos a presença da silhueta no
texto literário. Posteriormente, busca-se a voz das sombras, ou seja, a sua escrita. Para tal,
promove-se um giro para o sul onde o encontro entre o eu e o outro se efetiva com a invasão
europeia nas terras americanas, priorizando o genocídio estabelecido no Brasil.
Fundamentado no fato de que a formação do país após este período é centralizada nos
interesses de uma elite político-econômica, entende-se que a composição do que se designa
cânone literário não escapa de tal dinâmica. Assim, a inscrição da história desta arte enfoca a
produção de um perfil social específico e deixa os demais à sombra. No entanto, autoras
negras brasileiras, inicialmente compreendidas como sombras, demonstram a potência
presente em suas escritas e quando se apropriam da caneta inscrevem profundidade e matizam
com tonalidade a sua presença neste campo. Consequentemente, formam um corpo literário
mais inclusivo e consciente do valor das sombras que lançam quando se inscrevem. Por isso,
empenham-se em incentivá-las a se apropriar do direito à literatura e a se apoderarem da
própria representação. Acredita-se, assim, demonstrar o valor das sombras na literatura e da
literatura e contribuir para o debate sobre a importância da silhueta na história das culturas
ocidentalizadas.
Palavras-chave: sombra – representação – escrita mulheres negras – literatura periférica
Rio de Janeiro
Setembro de 2017
ABSTRACT
SHADOW’S POETICS:
FROM PROJECTIONS TO LITERATURE’S SUBJECT
Marcelle Ferreira Leal
Orientador: Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência
da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura
(Teoria Literária).
Considering that the history of light is the protagonist in the West and in Westernized
societies, the purpose of this work is to demonstrate the relevance of the shadows in the scope
of literary art. In order to prove the aesthetic importance of the dark element, we initially
resorted to the presentation of the shadows in the literature in the way that we analyzed the
presence of the silhouette in the literary text. Then, the search is about the voice of the
shadows, that is, its writing. For this, it’s necessary a turn to the south where the encounter
between the self and the other is effective with the European invasion of the American lands,
prioritizing the genocide established in Brazil. Based on the fact that the formation of the
country after this period is centered on the interests of a political-economic group, it is
understood that the composition of what is called literary canon does not escape such
dynamics. Thus, the inscription of the history of this art focuses on the production of a
specific social profile and leaves the others in the shade. However, Brazilian black authors,
initially understood as shadows, demonstrate the power present in their writings and when
they appropriate the pen inscribe depth and colour their presence in this field. Consequently,
they form a literary body more inclusive and aware of the value of the shadows they cast
when they subscribe. Therefore, they strive to encourage them to appropriate the right to
literature and to seize their own representation. It is believed, therefore, to demonstrate the
value of shadows in literature and of the literature and to contribute to the debate about the
importance of this figure in the history of Westernized cultures.
Keywords: shadow – representation – black women writing – marginal literature
9
Sumário
INTRODUÇÃO ........................................................ 10
1. CAMINHANDO PELO VALE DAS SOMBRAS ............................... 18
1.1. O destemido mal ............................................ 27
1.2. A sombra está comigo ....................................... 32
1.3. Cartografia do vale ........................................ 37
2. ALGUNS VESTÍGIOS SOBRE A NATUREZA DA SOMBRA .................... 43
3. SOMBRAS NA LITERATURA .......................................... 63
3.1. As boas-vindas das sombras: as anfitriãs da Comedia ........ 63
3.2. Um passeio com Peter Schlemihl: quanto vale a sua sombra? .. 85
3.3. Júlia e sua sombra de menino: o jogo de pique-esconde ..... 122
4. O CENÁRIO SE DESMONTA: A APARIÇÃO DOS DIRETORES DA HISTÓRIA ... 150
4.1. Sombras do passado ........................................ 151
4.2. Sombras da literatura ..................................... 169
5. AS SOMBRAS VÃO ESCREVER, E NUMA BOA! .......................... 188
5.1. Carolina Maria de Jesus, a escre(vida) das letras ......... 200
5.2. Conceição Evaristo: na vida das sombras caço as sombras da
vida ........................................................... 218
À SOMBRA DE UMA CONCLUSÃO ........................................ 249
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................... 258
10
Introdução
Quero existir para além de mim mesma: com as aparições
Quero existir como o que sou: uma ideia fixa. Quero
assombrar, e não exaltar o silêncio do espaço em que se
nasce.1
(Alejandra Pizarnik)
O Texto de Sombra, de Alejandra Pizarnik, é um clamor.
Através do grito mudo das letras, exprime o anseio de resgatar
a identidade e a voz que lhe foram negadas. Constantemente
ignorada e silenciada por aquele que a projeta, através da
literatura, ela expressa o anseio de viver com os seus, ou
seja, os que sobrevivem à aniquilação da materialidade a que
outrora se associava e, a partir de então, gozam da liberdade
e do direito de expressão. Vale observar que o seu desejo não
é mais do que atuar como o que se é, apropriando-se do
discurso e rebelando-se contra a passividade a que é
destinada. Consciente de sua potência, nota-se que, quando se
apropria da caneta para escrever o texto, ela imprime a
poética da re-existência, isto é, daquela que se reergue após
às mortes sucessivas que lhe atingem. É impossível se manter
imune ao apelo de uma desconhecida que parece tão próxima. O
holofote da razão acende e estamos ali, eu e ela no espaço
literário. Seria o sonho de uma sombra capaz de compreender
aquela que a acompanha?
Ao longo de séculos, as sociedades ocidentalizadas enfocam
o seu interesse na história da luz e de seus domínios, entre
os quais, destaco: razão, eu, objetividade, bem, entre outros.
Tendo em vista tal protagonismo, questiona-se sobre o lugar
reservado ao que escapa à esfera do luzente na história
cultural destes povos, como a sombra. Devido à natureza
perturbadora que lhe é intrínseca, resgatar os contextos nos
quais sua presença é relevante torna-se imprescindível para
1 ―Quiero existir más allá de mí misma: con los aparecidos./Quiero existir
como lo que soy: una idea fija. Quiero ladrar, no ala/bar el silencio del
espacio al que se nace.‖ Tradução nossa.
11
que entendamos a espécie de valoração que tributam à sua
representação. Em Caminhando pelo vale das sombrase Alguns
vestígios sobre a natureza da sombra, propõe-se traçar uma
trajetória sobre os estudos a seu respeito com o objetivo de
demonstrar a riqueza semântica que a compõe. Em cotejo com as
investigações do filósofo Roberto Casati e do historiador da
arte Victor I. Stoichita, promovemos alguns debates para
fundamentar a hipótese de que esta entidade tradicionalmente
compreendida como negativa contribui para o enriquecimento
cultural e artístico destes povos. Isto é, quando vamos ao seu
encontro, descobrimos que a sombra consiste num valoroso
instrumento de conhecimento.
Após elucidar a pertinência de considerá-la como um
elemento importante na história ocidental, encaminha-se a
discussão para a análise de obras nas quais a silhueta
consiste em um componente estrutural do texto. No entanto, o
levantamento de materiais para a produção da pesquisa suscitou
algumas questões relevantes a respeito da metodologia de
trabalho e do recorte do corpus que será estudado. Tendo em
vista a ampla quantidade de materiais disponíveis para análise
- de narrativas e poesias que versam sobre o tópico -
constata-se a impossibilidade de abarcar todas as produções
que se valem de tal imagem ao longo da história da literatura.
Isto posto, justifica-se a produção de um trabalho constelar,
em termos benjaminianos, no qual o diálogo das partes se
legitima pela importância de cada unidade para a composição do
todo e que este, por sua vez, seja pulsante de significado em
sua plenitude.
A segunda questão se refere a esta sistematização, pois é
necessário que haja congruência na formação do conjunto de
maneira que fundamente a associação entre as suas partes.
Almeja-se, portanto, buscar na progressiva independência da
relação entre a sombra e o corpo que lhe dá vida o momento em
que ela assume a escrita de si. Quando começa a dar
12
profundidade e complexidade àquilo que só se apresentava como
uma bidimensionalidade tonalizada pela escuridão. Nota-se, a
partir do discutido, que o desprendimento entre o homem e a
sua projeção é o início do processo no qual o duplo entende-se
enquanto sujeito. Além disso, a rebelião de formas que não se
reconhecem em sua fonte demonstra a possibilidade de dissenso
entre as partes. Assim, seleciona-se a Comedia, de Dante
Alighieri, A história maravilhosa de Peter Schlemihl, de
Adelbert von Chamisso e A história de Júlia e sua sombra de
menino, de Christian Bruel e Anne Galland a fim de verificar
como a sua aparição contribui com a constituição estética de
cada uma das criações artísticas em destaque.
O recorte se justifica pelas estratégias diferentes que
cada autor utiliza para inseri-la em suas composições e pela
necessidade de mostrar a relevância do objeto em questão para
formas narrativas e temporalidades diversas. Afinal, enquanto
Dante expressa a sua criação em forma poética na transição
entre a era medieval e renascentista, Adelbert von Chamisso a
faz através da novela no Romantismo Alemão e ChritianBruel e
Anne Galland, por sua vez, elegem o conto na Modernidade para
exteriorizá-la. Mais uma vez, é importante assinalar que, ao
longo da pesquisa, analisamos outros materiais, como a
parábola Sombra, de Edgard Allan Poe, e o conto A sombra, de
Hans Christian Andersen. Porém, selecionamos apenas os três
textos mencionados para compor a tese visando ao cumprimento
dos prazos estabelecidos e à manutenção da fluidez do objetivo
proposto.
A última frase se justifica na medida em que ansiamos em
não nos restringir à elaboração de um compêndio da aparição
literária da sombra. Este estágio é fundamental para responder
à pergunta em relação a sua contribuição para esta arte e para
entender que não há somente uma, mas várias possibilidades de
sombra, embora assinalemos apenas três. Porém, a epígrafe de
Alejandra Pizarnik não permite que nos limitemos aos escritos
13
nos quais ela se apresenta como um recurso poético-narrativo.
Nota-se a urgência de buscar a voz da sombra, ou seja, o grito
daquela que desde o nascimento é instruída a se silenciar e a
se manter vinculada apenas ao corpo que lhe dá ou deu vida,
mas que se liberta para se apoderar da própria representação.
Em busca das poéticas das sombras, propomos um giro do
norte para o sul, uma vez que a invasão dos povos europeus nos
países austrais culmina em um processo de colonização que se
empenha em esvaziar e aniquilar as culturas originárias e
vinculá-las a um processo de dependência no qual se incutem os
complexos de superioridade e de inferioridade. Desta forma,
criam-se estratégias para manter a crença de que a solidez é
exclusivamente setentrional e, por isso, o sul deve se
contentar com a reprodução de suas epistemologias, artes e
valores para lograr alguma legitimidade em suas produções.
Considerando a pista da poeta argentina, sugerimos a
mudança de orientação do debate e concentramos a busca no
Brasil, país cuja história é tatuada por um genocídio amplo e
uma exploração intensiva de recursos e pessoas, mas que
insiste em ignorar as suas sombras. O encontro entre o eu e o
outro gera não só idealizações, mas também subjugamento e
aniquilação. É um Estado que reescreve a sua biografia sob o
signo de uma coexistência pacífica de povos diversos, mas que
efetivamente se reconstitui a partir de esferas de
desigualdades sociais, econômicas, raciais, entre outras. Por
isso, acredita-se que, somente a partir de um processo de
reconhecimento das sombras do passado que interferem
constantemente no presente, é possível encontrar a nossa
originalidade e descobrir a potência existente na pluralidade
de narrativas que nos compõem. Em vista disso, resgatam-se as
Sombras do passado para enfrentar alguma das faces sombrias
brasileiras com as quais evitamos contato.
Por sua vez, em Sombras da literatura, há um empenho em
compreender como se formam as sombras da nossa área de
14
interesse. Constantemente uniformizados pelo olhar do cânone,
os escritores pertencentes às suas margens constituem – quando
projetados por este corpo – uma silhueta desprovida de
profundidade cuja presença serve para afirmá-lo em sua
existência e importância. Se dispostos em conjunto, formam uma
região enegrecida da qual poucos críticos se aproximam.
Contudo, no momento em que as sombras se apropriam das
palavras e representações para imprimir forma e conteúdo em si
e cantam os louvores e dores de uma existência constantemente
idealizada ou ignorada, apresentam outra face da história e
permitem uma abordagem mais inclusiva dos tipos sociais, o que
resulta num domínio mais amplo de representatividade. Este
empoderamento se exprime no capítulo breve nomeado, sob
inspiração da frase de Lélia González, As sombrasvão falar, e
numa boa!
Finalmente, o encontro com as sombras das letras favorece
o reconhecimento das vozes que a crítica literária tradicional
enfraquece e silencia diante de uma suposta supremacia do
padrão por ela construído. Entre estas, destacam-se as
escritas de mulheres negras oriundas de espaços periféricos
que socialmente estão na base da estrutura social do país. Por
isso, sugere-se como primeiro corpus de investigação Quarto de
despejo de Carolina Maria de Jesus. Através da escrita
autobiográfica, ela apresenta não só a condição da mulher
negra e pobre no Brasil, mas também a sua perspectiva sobre a
realidade em que se insere. Entre análises existenciais,
políticas e econômicas, surge uma poética peculiar, nascida
nas entranhas daquela que encontra cores nas situações mais
adversas. Esta obra representa o grupo de narrativas em que,
através da escrita de si, a autora apresenta um ponto de vista
sobre a existência a partir da situação daqueles que ocupam o
espaço periférico. A partir da metáfora sugerida pela tese, é
quando a sombra desvela o mundo perpassando a própria
15
experiência. Nesta dinâmica, surge o objeto literário a que
ela dá vida.
Posteriormente, voltamos o olhar para o conto A gente
combinamos de não morrer, de Conceição Evaristo. A autora
negra brasileira apresenta no livro de contos Olhos d‟água
narrativas cujos personagens costuram a existência com ―fios
de ferro‖. O bandido que chora como criança após o gozo com a
mulher amada, a empregada doméstica curiosa para saber se os
filhos gostariam do melão que restara da festa dada pelos
patrões e posteriormente é linchada quando veem que foi a
única preservada no ônibus assaltado pelo pai dos seus filhos,
as dores de uma mulher que doa todos aqueles gerados no seu
ventre, mas preserva o fruto de um estupro. Pretende-se
dialogar, a partir do conto selecionado, com a criação
ficcional de uma escritora oriunda das margens. Isto é,
seguindo a nossa investigação, perseguimos na narrativa
evaristeana a sombra que se apropria da escrita para criar
outro universo, ou seja, ela atravessa a si para construir
outras formas no mundo ficcional.
Logo, os últimos capítulos - Carolina Maria de Jesus, a
escre(vida) das letras e Conceição Evaristo: na vida das
sombras caço as sombras da vida – empenham-se em dialogar com
a escrita autobiográfica da autora de Quarto de despejo e com
a construção ficcional de Olhos d‟água, daquela que nos
apresenta o conceito de escrevivência. A escolha se justifica
porque ambas se apropriam do direito à literatura e se afirmam
como escritoras ainda que, inicialmente, não desfrutem de uma
legitimação da estrutura hegemônica que se vê como única
detentora do poder de validar a literariedade de um texto.
Enquanto a primeira se expressa através da escrita de si, a
última recorre ao mundo ficcional para dar voz a personagens
pertencentes a tipos sociais marginalizados e inseridos em
espaços periféricos, ou seja, à sombra do que se entende como
centro da sociedade.
16
Assim como Angela Davis afirma em palestra ministrada na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 25 de julho de 2017,
―Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da
sociedade se movimenta com ela‖2. Esta afirmação corrobora a
importância de reconhecer o apoderamento da literatura,
principalmente da escrita, pelas mulheres negras brasileiras.
Acredita-se que, quando elas se apropriam da caneta e começam
a imprimir nuances, profundidades e especificidades de si e de
suas representações, promovem uma mudança na dinâmica do que
se compreende como o repertório e a história literária
brasileira. Ademais, rompem com a estereotipia e demonstram
que em seus textos as mulheres não aparecem como palavras que
representam corpos, mas são os corpos que apresentam palavras,
pensamentos e subjetividade.
Através do diálogo proposto, pretendemos fundamentar a
tese de que a estética da sombra é relevante para a literatura
e o é não apenas no seu interior, mas também no entorno do
espaço que a constitui. Seguimos as possibilidades metafóricas
da figura em questão para colocar em xeque a noção de
literariedade, tão cara aos estudos da Teoria Literária. Desta
forma, objetiva-se avolumar um corpo crítico mais inclusivo
cujas análises também se debrucem sobre obras de autores, e
principalmente autoras, originários das sombras da literatura.
Afinal, na medida em que nos apropriamos desta arte, criamos
textos que também valorizam outras perspectivas da existência.
Se ao longo de anos, fomos silenciadas e desencorajadas de
pegar na caneta para inscrever a nossa visão do mundo, hoje,
felizmente, começamos, mesmo que vagarosamente, a ocupar os
espaços que nos pertencem por direito.
2A conferência intitulada ―Atravessando o tempo e construindo o futuro da
luta contra o racismo‖ é transcrita por Naruna Costa a partir da tradução
da professora Raquel de Souza. O texto está disponível no blog da editora
Boitempo:https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/28/angela-davis-construindo-
o-futuro-da-luta-contra-o-racismo/ Último acesso em 04 de agosto de 2017.
17
Assim, assumimos a nossa representação e multiplicamos as
possibilidades de imaginários de forma que promovemos um
diálogo entre a prática literária e as lutas que assumimos
diariamente por conta da pele que nos acompanha em qualquer
lugar onde estamos, da classe social a que pertencemos, ou
ambos, e de todas as experiências que nos atravessam enquanto
sujeitos imersos num país estruturalmente racista, classista,
sexista, homofóbico, transfóbico. Ao fim da introdução,
escrevo em primeira pessoa, porque é necessário dizer que esta
tese também consiste em uma tentativa de construção crítica da
sombra. Fui encorajada por outras companheiras a não exaltar o
silêncio do lugar onde se nasce e decidi encarar o desafio de
tornar pública a minha voz. Através deste movimento, almejo
dar forma a um corpo e quem sabe incentivar outras a
empunharem a caneta e, assim, existirem para além de si.
18
1. Caminhando pelo vale das sombras
Ainda que eu ande pelo vale da
sombra da morte,
não temerei mal algum,
porque tu estás comigo.
(Salmos, 23-5)
Os versos da bíblia judaico-cristã introduzem os capítulos
nos quais caminhamos em meio às sombras. Tendo em vista que
este livro sagrado é uma presença constante e obscura na
cultura dos povos que seguem tal tradição, seleciona-se o
trecho da epígrafe para conduzir o diálogo proposto. No
entanto, é fundamental assinalar que não há interesse em
seguir qualquer caráter transcendental que o componha. Ao
contrário, não há restrição aos domínios da morte nem temor no
trato com as silhuetas, tampouco acredita-se no aspecto divino
contido no pronome pessoal ―tu‖. O trajeto em questão almeja
perscrutar as esferas nas quais o diálogo com as sombras é
profícuo. Portanto, há entusiasmo ao encontrá-las posto que
aprendemos mais sobre as possibilidades de sua realização e,
assim, enriquecemos o nosso conhecimento. Vale reiterar que o
percurso não é solitário, pois acredita-se no caráter
colaborativo na busca do saber. Logo, a companhia do outro é
fundamental para que se atravesse, de mãos dadas, esta trilha.
Afinal, meus primeiros passos contam com as pegadas daqueles
que outrora se lançaram a esta aventura e os que por ela ainda
se enredam ao debate.
O estudo sobre esta composição demanda um resgate de
contextos nos quais sua presença é relevante para que
entendamos a espécie de valoração que tributam a sua
representação. Com este fim, rastreiam-se alguns estudos já
realizados sobre o tema visando ao reconhecimento das trilhas
exploradas até então. Todavia, há uma consciência sobre a
impossibilidade de abarcar a totalidade, porque, conforme
aprendido com Jorge Luis Borges, estamos em meio a uma
19
Biblioteca de Babel. É imprescindível destacar do mesmo modo a
dificuldade de coletar dados que escapem dos espaços
tradicionais da construção do saber, não só pela dificuldade
para acessá-los, mas também porque se inscrevem sob o signo da
oralidade. Por isso, as tentativas de recuperação do
significado da sombra para alguns povos indígenas, por
exemplo, foram frustradas. Não desistimos de investigar as
narrativas que se desviam do discurso hegemônico, mas
entendemos que esta tarefa demanda uma estrutura que não
dispomos para a composição desta tese. Portanto, perseguimos a
sombra pelos meios que estão disponíveis.
Ao longo do caminho, alguns pesquisadores se aproximam e
entrelaçam as suas mãos às nossas para facilitar a jornada. Em
A descoberta da sombra, por exemplo, Roberto Casati se debruça
sobre o tema visando à demonstração de como esta entidade é
fundamental no avanço do conhecimento humano. O filósofo
italiano coteja com diferentes áreas e apresenta um amplo
panorama que estimula o interesse por essa estranha tão
próxima. Autor de artigos diversos sobre a figura umbrosa,
Casati se apresenta como um teórico exímio das sombras. A
partir do levantamento de fontes etnográficas em sua
investigação, demonstra que os povos orientais e ocidentais se
apropriam do perfil de maneira distinta. Enquanto os primeiros
lhe atribuem poderes de origens variadas e a consideram parte
de si e do ambiente, atribuindo-lhe vida, os últimos lhe
conferem uma importância secundária em relação à luz e buscam
racionalizá-la. Esta sistematização traça a primeira
bifurcação no nosso mapa, uma vez que oriente e ocidente, à
princípio, cultivam valores diferentes sobre a figura em
análise.
Com o fim de ilustrar a abordagem oriental, seguimos a
trilha indicada por Casati e chegamos às narrativas de James
Frazer sobre a relação de alguns povos que abraçam a sombra
como parte da própria cultura. Na ilha de Wetar, na Indonésia,
20
diz-se que magos podem golpear a sombra de um homem visando a
que este fique doente. Os funerais da China são outro exemplo,
onde os presentes se afastam do caixão na hora de fechá-lo e
enterrá-lo para evitar o deslizamento da sombra para o buraco
cavado. Além disso, os coveiros e carregadores de caixão
utilizam um pano amarrado ao tronco para atá-las ao corpo no
momento do sepultamento.
As estórias mencionadas compõem o estudo antropológico de
Frazer intitulado O ramo de ouro cuja data de publicação é de
1890. Não possuímos fontes para assegurar a continuidade das
crenças narradas, pois Junichiro Tanikazi aponta em seu livro
Em louvor da sombra a perda do protagonismo desta figura na
cultura oriental. O romancista japonês a descreve como um
componente imprescindível na formação cultural nipônica. Desde
a arquitetura até a composição de laca da porcelana valorizam
a estética presente no claro-escuro. Afinal a dinâmica
proporcionada pela interação com o elemento umbroso era
fundamental para a representação e concepção do belo no
oriente:
Mas como a beleza sempre se desenvolve em meio à
realidade do nosso cotidiano, nossos antepassados,
obrigados a habitar aposentos escuros, descobriram a
beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam a usar as
sombras para favorecer o belo. (TANIKAZI, 2007, p.31)
Todavia, a invasão da fluorescência e a ocupação
ocidentalizada dos espaços mudou o vínculo existente até
então. O efeito da penumbra, outrora apreciado como provocador
de estímulos sensoriais, é abandonado pelo brilho, seja das
lâmpadas, da proeminência da cor branca ou do cristal. O
escritor empreende uma crítica profunda ao abandono de
tradições milenares por uma adoção utilitária das tecnologias
ocidentais. Ele assinala que não se opõe à adoção de
comodidades proporcionadas por outro modelo de civilização,
mas acredita na necessidade de uma adaptação, e não extinção,
21
dos costumes herdados que são constituintes de uma estética
própria.
Ao tratar do oriente, Junichiro Tanikazi não só apresenta
as peculiaridades originais de sua cultura, mas também expõe
costumes ocidentais que se tornam mais evidentes através do
olhar do outro. Ele destaca a importância dedicada àquilo que
reluz e enumera alguns exemplos que são caros a estes povos
como: o predomínio da cor branca na composição de ambientes e
em trajes de alguns profissionais para ressaltar a limpeza, a
escolha de metais que cintilam após o ato de lustrar, a
iluminação crua sob a qual se detecta qualquer imperfeição. O
breve levantamento de casos assinala a exaltação do luzente no
ocidente de forma que o visível, o aparente, o conhecido, o
racional, ditam o meio pelo qual se explora o mundo e, pelo
que vimos, a luz que emanam começa a ofuscar tudo o que,
segundo os seus princípios, representa o obscuro.
Quando Roberto Casati aborda a sombra neste contexto,
menciona que os povos ocidentalizados vão percebê-la sob uma
ótica científica. Isto é, a aparição da projeção umbrosa se
subordina a postulados oriundos da natureza ótica que
justificam a sua existência. Qualquer impossibilidade de
explicá-la logicamente, confere um caráter fantástico à
situação. Logo, diante da insuficiência de dados para uma
comprovação através da ciência, há uma tendência a associá-la
às figuras fantasmagóricas ou diabólicas e, consecutivamente,
sua presença imprime uma atmosfera fúnebre, imprevisível,
inconsciente e oculta à situação. Edgard Allan Poe é um autor
que utiliza esta estratégia para conferir um ambiente de
suspense em suas narrativas, tal como se observa em sua
parábola A sombra, onde as personagens são tomadas pelo temor
diante de uma silhueta movente autônoma.
Sabe-se que o Ocidente funda suas bases sob a égide do
esclarecimento. Platão reivindica na República a iluminação
solar para o mundo das ideias, onde se alcançam os aspectos
22
invariantes da realidade. Por sua vez, a crença judaico-cristã
indica que o criador do mundo depois de verbalizar a
existência da luz, a qualifica como boa e a separa das trevas.
No âmbito da história, quando o homem assume as rédeas da
própria existência e rompe com a influência do divino,
presente na era medieval, designa o novo período como
Iluminismo ou Idade das Luzes em contraposição ao que ao longo
de anos se conheceu como Idade das Trevas. Somos herdeiros de
uma história do conhecimento que elucida, evidencia, aclara,
tudo aquilo que não está à luz da razão.
O homem ocidental se entretém com o jogo de desvelamentos.
Explora a vida até alcançar o nu, mas esquece que a
intensidade da luz lançada aos corpos de seu interesse é
proporcional à nitidez da sombra que os compõe. Não importa o
quanto se sabe sobre as coisas, sempre haverá um lado obscuro,
uma face à espera de uma nova contemplação. Nesta dinâmica,
luz e sombra são as únicas partes sem projeção, pois sua
natureza escapa ao toque. Resta, àqueles que insistem no seu
despir, a efemeridade da sedução. Portanto, consciente dos
desvios presentes ao longo do caminho, instigo a um primeiro
contato com a sombra no qual escuto vozes de antigos
pretendentes que se aventuram a conhecê-la de forma mais
essencial e buscam as suas máscaras. Com este fim, sigo
alguns rastros das pegadas que ela deixou em suas passagens na
cultura do ocidente.
Tendo em vista a sede de sistematização objetiva destes
povos, verifica-se, antes de qualquer coisa, a necessidade de
explorar o conceito científico que lhe atribuem. Assim, a
sombra consiste numa região umbrosa formada pela interposição
de um objeto opaco entre uma fonte de luz e um anteparo. O
obstáculo obstrui o caminho de alguns raios, enquanto os
23
demais seguem seu percurso em linha reta3, formando a região
iluminada ao redor do perfil. Esta dinâmica evidencia uma
consequência do princípio de propagação retilínea da luz.
Nota-se, desde então, certa subalternidade da sombra em
relação à luz nos postulados da ciência natural, uma vez que a
sua aparição se condiciona à existência de uma fonte luzente o
que leva aos físicos a considerarem apenas como um objeto
derivado dos postulados da luz.
À primeira vista, o caráter negativo atribuído a sua
manifestação sugere uma insignificância nos domínios da
ciência, mas breves saltos pela história desmentem esta tese.
O eclipse, por exemplo, demonstra como a observação a olho nu
do jogo de sombras no céu da Antiguidade grega permite as
primeiras descobertas astronômicas, antes mesmo da invenção
dos instrumentos óticos que lhes trazem precisão. Ainda nos
domínios gregos, Plutarco relata a descoberta do tamanho das
pirâmides gregas por Tales de Mileto através da sombra que
projetavam. Já no século XIX, o físico alemão Wilhelm Conrad
Roentgen detecta, em 1895, o raio-x e, em seus testes, gera
uma radiografia da estrutura óssea da mão de sua esposa. A
partir das sombras formadas, o invento apresenta a
possibilidade de visualizar a parte interna do corpo humano e
contribui para a composição primordial da imagiologia médica.
Considerando algumas das propriedades supracitadas,
observa-se que a sombra consiste num duplo do objeto que a
origina e a sua proporção é suscetível à manipulação de acordo
com as condições em que é gerada. Por isso, além de contribuir
para as descobertas das ciências naturais, a riqueza simbólica
que encarna em seus domínios propicia uma sorte de valores
alegóricos associados à complexidade do homem em sua
individualidade e coletividade. Ilustra-se a afirmação a
partir dos estudos de Carl Gustav Jung cuja teoria atribui ao
3 Considerando meios homogêneos e transparentes, pois sabemos que em meios
heterogêneos, como na atmosfera terrestre onde a densidade aumenta com a
altitude, os raios não se propagam em linha reta.
24
arquétipo da sombra a concentração do lado escuro da natureza
humana e demonstra que a versão soturna que nos acompanha
também se estende para o âmbito coletivo. Na filosofia, após
Platão relegá-la a um plano inferior, Nietzsche a resgata para
mostrar a necessidade de explorar o mundo das coisas próximas
às quais não lançamos muita atenção. Já Hannah Arendt
demonstra que a sombra pode pairar sobre a história e revela
um tempo em que a vultuosidade do totalitarismo assola o
mundo. Inspirador do termo, Brecht em Aos que vierem depois de
nós já dizia: Realmente, vivemos em tempos sombrios.
Conforme se observa, seja no campo físico ou nas
humanidades, a sombra é um meio de conhecimento. Muitas vezes,
ofuscada pelo fascínio exuberante e imediato provocado pela
luz, utiliza unicamente a existência como forma de insinuação
das vicissitudes que vão além das aparências, os detalhes
imperceptíveis diante da euforia do primeiro encontro. Por
isso, as trilhas nos levam aos domínios da representação
artística onde a estética possibilita a superação do caráter
ordinário das coisas e estimula o pensamento a se tornar
estranho a si. Os diálogos entre a sombra e a arte permitem o
encontro de indícios sobre as máscaras das quais ela se serve
ao longo da história. Insatisfeita com os desejos racionais
ávidos por sua completa nudez, ela recorre à fantasia para
criar outros imaginários.
Victor I. Stoichita está entre os admiradores e
perseguidores da estranha figura no âmbito artístico. Desde a
origem da pintura até a modernidade do cinema, o universo
pictórico é argutamente analisado pelo pesquisador que, a
partir de cada exemplo, desvela os disfarces que a sombra
utiliza para flertar com as peculiaridades das obras da sua
época e com as técnicas artísticas que lhe dão visibilidade.
Entre os papeis que esta encarna, destacam-se : a imagem
especular do sujeito, tal como se expressa no mito de Plínio
sobre a origem da pintura, no qual se narra o ato de
25
circunscrição realizado do perfil umbroso de um homem, pelas
mãos de uma mulher, para que ela guardasse seu traço como
recordação, já que este partiria da cidade; a prova da
―materialidade da carne‖, como dita o ensinamento de
CenninnoCennini sobre a corporificação dos objetos através do
sombreado ; a presença indireta do pintor ou do exterior na
obra conforme se nota em Le PontdesArts, de Renoir; um aspecto
de demonização por meio da distorção das imagens traçadas
presentes em La danza de la sombra, de Samuel van Hoogstraten;
a exteriorização da alma humana e uma projeção psíquica da sua
realidade, como os estudos de fisiognomia do suíço Johann
Caspar de Lavater.
É notório que, enquanto unidade ótica, o uso pictórico da
sombra é mais evidente. No entanto, as outras artes também
utilizam este meio, ou sua ausência, como forma de
representação. O libreto de ópera A mulher sem sombra (Die
FrauohneSchatten), de Hugo Von Hofmannsthal, que foi
apresentada com música de Richard Strauss em 1919, ilustra
este aspecto. O enredo narra a história de uma imperatriz que,
por ser uma gazela que assumiu forma humana, não possui
sombra. No entanto, a visita de um mensageiro lhe informa que
é necessário que esta condição mude em três dias para que o
imperador não se transforme em pedra. Temendo a maldição, a
mulher e sua ama vão para uma cidade populosa e encontram a
esposa de um tintureiro que aceita ceder a própria sombra
mesmo sabendo que a ação implicaria em sua esterilidade. A
impossibilidade de projetar a própria silhueta dialoga com a
natureza da imperatriz, não-humana, e com a infertilidade,
pois a mulher do tintureiro é alertada para a impossibilidade
de gerar vida após ceder o seu duplo. Assim, teatro,
literatura e música se entrelaçam ao redor desta figura
emblemática para demonstrar a riqueza metafórica que engloba
os seus domínios.
26
Finalmente, chegamos à expressão artística de interesse
para a presente pesquisa: a literatura. Roberto Casati afirma
que é neste âmbito que a cultura ocidental, sempre voraz pela
racionalização, mantém as nuances animísticas e mágicas da
sombra. Esta é pista que percorreremos em busca do valor
estético do nosso objeto de estudo nas produções de Dante,
Adelbert von Chamisso e Christian Bruel e Anne Galland.
Através da Comedia, d‘ A maravilhosa história de Peter
Schlemihl e d‘ A história de Julia e sua sombra de menino
vamos em busca das sombras na literatura. Contudo, é
fundamental destacar, na área dos estudos literários, o ensaio
da pesquisadora SabineHaupt nomeado La sombra enla literatura
moderna. Um pequeño panorama. Consoante ao expresso no título,
ela apresenta uma visão geral de obras da modernidade nas
quais se aplica o tema da sombra em diversos contextos e nos
oferece trilhas possíveis para ir ao encontro no âmbito do
literário.
Através do trabalho de Haupt, entende-se que a literatura
comporta a pluralidade semântica do tema. Percorrendo tanto a
prosa quanto a poesia, a crítica debate a polivalência do uso
da sombra para a composição poética e o encontro com as suas
análises propicia o reconhecimento de que autores, em
distintas épocas, valem-se desta imagem para enriquecer
esteticamente as suas obras. Consoante ao expresso no título,
a pesquisadora apresenta uma visão geral de obras da
modernidade e consegue agrupá-las em duas categorias básicas
de ação: a sombra como fantasma (uma alma incorpórea e
espectral) e a sombra como objeto (perdido ou vendido). A
proposta de panorama é respeitada, por isso a autora não
realiza uma análise profunda dos textos mencionados, à exceção
de A maravilhosa história de Peter Schlemihl, ao qual a
professora da Universidade de Friburgo dedica mais páginas.
Embora o ensaio contribua para o enriquecimento do nosso
trabalho, há uma diferença na medida em que ampliamos o debate
27
para a sombra desajustada do corpo, presente em L‟histoire de
Julie quiavait um ombre de garçon (A história de Julia e sua
sombra de menino), e para as sombras da literatura.
Caminhando pelo vale das sombras descobre-se o quanto este
duplo umbroso tem a nos ensinar. Desde as sutilezas do ocultar
e do refletir que enriquece os domínios da ciência até a
escrita daqueles que, à princípio, são meramente projeções
imperfeitas do Homem hegemônico, sua presença revela
vicissitudes que só se tornam evidentes no jogo claro-escuro.
A escuridão plena e a iluminação total cegam. É necessário
estar atento à dinâmica luz-sombra para compreender a estética
que nutre cada uma destas partes. A cada sombra desvelada, uma
nova já se insinua e, como na Biblioteca de Babel de Jorge
Luis Borges, somos lançados num mundo de infinitas
possibilidades ou de infinitas sombras.
1.1. O destemido mal
Pensar na composição da sombra em sua forma mais simples
remete a uma silhueta bidimensional preenchida por uma
coloração enegrecida cujos contornos desenham o perfil do
objeto que a projeta. Sob movimento, acompanha o dono
acoplando-o através da parte mais inferior da sua estrutura e
a nitidez do seu perfil se intensifica de acordo com a
proximidade entre os dois componentes. É um duplo silencioso e
escuro, visível diante de uma fonte de luz e oculto sob a sua
ausência. Não se sabe sobre a fidelidade do reflexo umbroso ao
companheiro diante da plena escuridão, uma vez que já não é
possível distinguir a parte do todo. Por isso, entende-se a
projeção como uma unidade oriunda do domínio das trevas que,
vez ou outra, também são designadas como sombra.
Em seu flerte com o escuro e com o outro, a presença
ausente gera um terreno fértil para a criação de imaginários.
28
Vale lembrar que, sob uma perspectiva dialética, há uma
associação entre ―luz – sombra‖ e ―eu – outro‖, de forma que
os dois primeiros polos compreendem características positivas,
ao passo que os últimos se tensionam a estas por um viés
negativo e não neutro. Enquanto a luz remete à vida, à razão
e ao bem, a sombra é relacionada à morte, ao oculto e ao mal.
De igual maneira, o eu constitui a essência, a verdade, o
universal, o bom em oposição ao outro que representa a
aparência, o falso, o particular, o mau. Os reversos em
questão apontam que o campo sobre o qual nos debruçamos
corresponde aos aspectos dos quais a sociedade mais se afasta,
por causa do medo que provocam ou, simplesmente, por desprezo,
na medida em que os consideram de pouca relevância.
Contudo, é fundamental assinalar que a concepção da sombra
como entidade negativa no mundo ocidental não é gratuita. Os
pilares epistemológicos e culturais que erguem a base da nossa
sociedade sustentam, ao longo de séculos, um sistema de
crenças que semeia e promove tal valoração. Na alegoria de
Platão, Sócrates solicita que Glauco imagine uma caverna
subterrânea na qual homens, que vivem ali desde meninos, estão
atados pela perna e pelo pescoço de forma que ficam imóveis e
olhando para a frente. Atrás deles, há uma luz gerada pelo
fogo e entre os homens e a fonte flamejante um muro é erguido
para ocultar as pessoas que, em silêncio ou em diálogo,
carregam objetos por cima de suas cabeças fazendo com que a
projeção de tais figuras apareça para os prisioneiros.
Assemelhando os encarcerados aos seres humanos comuns, o
filósofo questiona ao interlocutor se a percepção visual e
auditiva destes não seria atribuída às exibições. Após a
confirmação, ele afirma que a realidade consiste em nada mais
que sombras para os detentos.
Segundo Sócrates, o cenário apresentado revela um
contraponto quando um dos homens é desamarrado e obrigado a se
dirigir em direção à luz. Os momentos iniciais serão
29
desagradáveis, devido a dor que sentirá nos olhos e a cegueira
que o tomará quando chegar ao encontro do Sol, mas
progressivamente distinguirá os elementos que o cercam e
concluirá que a grande estrela rege o mundo inteligível. Se o
ex-prisioneiro retornar ao mundo visível, sentirá uma breve
cegueira – agora gerada pela escuridão – e emitirá novas
opiniões a respeito das imagens as quais estava exposto desde
a infância. O filósofo demonstra, com base na alegoria, que o
mundo no interior da caverna é permeado de ilusões e o
verdadeiro conhecimento não habita o espaço de aparências
cambiantes. Na qualidade de emblema do sensível, a sombra
adquire o valor simbólico de aparência. A natureza insinuante
que a constitui não remete a coisa mesma, mas às
possibilidades de interpretação que nos oferece. Logo, como
parte dos textos que embasam a teoria do conhecimento da
filosofia ocidental, a alegoria da caverna relega uma
importância secundária à figura em análise e a emprega como
símbolo daquilo para o qual o entendimento não merece
dispensar atenção.
Entre os teóricos da sombra levantados pela presente
pesquisa, há um consenso sobre a importância da abordagem da
filosofia platônica sobre o tema. O destaque que lhe é
conferido ao longo do diálogo assinala que a representação
presente na obra é alvo de debate entre os críticos que se
dedicam a examinar as vicissitudes da silhueta. Nota-se que,
diante da crítica, a sombra se torna um importante instrumento
de conhecimento, embora o pensador indique que ela não é digna
do olhar daquele que busca o entendimento. Portanto, o
percurso pelos escritos do sétimo livro da República demarca
uma das trilhas que justificam a necessidade de explorar as
propriedades da sombra por uma outra perspectiva.
No entanto, um âmbito pouco mencionado quando se trata do
assunto, mas formador de uma sorte de valores que mantemos no
ocidente é a visão de mundo propagada pela crença judaico-
30
cristã. Seguindo a ordem sugerida pelo texto bíblico, o céu e
a terra foram as primeiras criações de seu Deus. Até então, o
espaço originário era sem forma e a escuridão é a única
substância que o preenchia. Posteriormente, o criador
verbaliza a terceira aparição através da frase: Haja luz!
Observa-se que os demais elementos constituintes do universo
advém das ordens verbais de um único Ser. No entanto, nos
versos da cosmogonia cristã não há qualquer menção à criação
da sombra, simplesmente indica-se a existência de trevas sobre
a face do abismo. Assim, conclui-se, que tanto o escuro pleno
quanto o vazio são autônomos em relação ao divino.
Além disso, é fundamental assinalar o caráter valorativo e
segregador expresso nos versos seguintes: ―E viu Deus que a
luz era boa / e fez separação entre a luz e as trevas‖. É
importante considerar o estabelecimento de uma organização
dicotômica no texto judaico-cristão entre luz e trevas em que
a primeira constitui o lado positivo da polaridade: ―a luz era
boa‖. Adiante, a separação se repete quando, no quarto dia,
Deus ordena o surgimento de dois grandes luzeiros com o fim de
―fazerem a separação entre a luz e as trevas‖, um maior e
outro menor para governarem, respectivamente, o dia e a noite.
Uma análise mais minuciosa revela que, ao longo da narrativa
cristã sobre a origem do mundo, há uma marcação da passagem
dos dias pela manhã e tarde, ou seja, períodos em que estamos
sob os domínios da luz: ―houve tarde e manhã, o primeiro dia‖,
―houve tarde e manhã, o segundo dia‖, e assim, sucessivamente
até o sexto dia, quando conclui seu empreendimento. A noite só
aparece como abrigo da escuridão nos trechos em que os
elementos luminosos ganham vida.
Nota-se, a partir do exposto, que tanto a tradição
judaico-cristã quanto a filosófica, pilares da formação do
homem ocidental, desagregam luz e sombra. Enquanto elemento
divino e representante do Bem, a primeira encerra a
neutralidade característica do modelo a ser alcançado. Por sua
31
vez, enquanto polo oposto, o sombrio não apenas constitui os
domínios do infernal, mas também remete ao mundo efêmero
marcado por aparências, sintetizando em si o negativo. Tendo
em vista a esfera diabólica que acolhe os perfis umbrosos, a
sociedade ocidental progressivamente a abandonou sob a
justificativa de que toda a sedução oriunda das sombras
aniquila aquele que se deixa enganar. Assim, os estudos sobre
as entidades compreendidas como negativas ficam à margem das
investigações sobre a luz, compondo-se das arestas que sobram
destas análises.
No entanto, como indica Flusser em sua História do Diabo,
quando deixamos de olhar para o Divino em busca da superação
do tempo para alcançar o puro Ser, delegamos a manutenção da
temporalidade ao homem. Toda ação se situará dentro do mundo
fenomenal e almejará mantê-lo, evitando que seja dissolvido e
salvo. É dever do diabo conservar o mundo no tempo, por isso
mantém sua influência sobre o homem de forma muito mais
próxima do que o próprio Divino. (FLUSSER, 2008). Isto é,
somente quando nos dispomos a conhecer o diabólico mais de
perto, podemos entender os mecanismos através dos quais ele
preserva o mundo nesta temporalidade. Da mesma forma, apenas
quando nos debruçamos sobre a estrutura da sombra e seus
mecanismos, alcançamos um diálogo despido de conceitos
prévios. Quando ajustamos a luz da razão nos domínios escuros
da sensibilidade, conhecemos melhor – e sem temor - a sombra
que se projeta diante de nós.
No rastro da projeção umbrosa que nos acompanha, verifica-
se que ela não é mais que o outro do eu, digo: o derivado
daquele que o projeta. E, assim, o debate se conduz para a
questão do ―outro‖, na medida em que pensar sobre a sombra é
abrir o diálogo com o duplo escuro daquele que o projeta e
que, no caso do homem, vai segui-lo a cada passo da sua
existência. Percebendo tal estrutura, Carl Gustav Jung
desenvolve uma teoria ao redor do arquétipo da sombra e, no
32
âmbito da psicanálise, torna-se um de seus maiores
exploradores. O pensador suíço atribui a tal figura o lado
menos perfeito da constituição de um indivíduo e de uma
sociedade, um lado escuro da natureza humana que contém as
aparas que restam do eu pessoal e do eu coletivo. O domínio da
faceta oculta é proporcional ao contato que mantemos com o
conteúdo que a alimenta. Por isso, o autoconhecimento do
sujeito e da sociedade são fundamentais para delimitar não
apenas as suas possibilidades, mas também para revelar o
caráter mais reprimido que reservam. Somente quando se
desenvolve um relacionamento harmônico com as máscaras mais
secretas de uma individualidade ou coletividade, conseguimos
estabelecer um desenvolvimento criativo das suas potências.
Embora Jung sugira a sombra como a grande lixeira dos
sentimentos e desejos humanos, corroborando mais uma vez a
valoração negativa de tal figura, ele é o pensador que nos
entrega as chaves das portas que nos encaminham para o próximo
ponto da reflexão. Quando aponta a necessidade de conhecê-la
para que se controlem os impulsos mais destrutivos de um ser
ou de um grupo, concebe-se, mais uma vez, a importância de
desbravar os seus domínios. Da mesma maneira que Flusser, o
psicanalista defende que ignorá-la não significa aniquilar sua
presença, mas sim fortalecê-la. Em vista disso, a única
maneira de entender de forma mais próxima sobre a natureza que
a constitui é encará-la frente a frente e estabelecer um
diálogo real, e não idealizado, com suas fontes.
1.2. A sombra está comigo
Outro aspecto a ser desenvolvido em relação à estrutura
obscura da sombra, é a particularidade de que ela é o outro do
eu. Sua forma desenha o contorno do seu dono, mas o conteúdo
tingido de preto proporciona uma generalização do seu
interior. Assim, embora possuam perfis distintos, todas as
33
silhuetas sombrias compartilham o mesmo preenchimento. Em
termos comparativos, são similares a própria constituição
humana, ou seja, ainda que cada ser se funde sob
particularidades, em termos físicos e psíquicos, compartilham
a mesma espécie. As individualidades respondem pela
diferenciação de cada fragmento que compõe o todo e a
designação a respeito de quem ocupa a posição de sujeito na
relação estipula-se pelo lugar daquele que se destaca a partir
dos valores construídos em tal comunidade.
Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir elabora uma pesquisa
minuciosa sobre a relação entre o Eu e o Outro. Com o fim de
entender ―o que é uma mulher?‖ela percorre diversas áreas,
como a biologia, a psicologia, a história, entre outras, e
conclui que esta identidade é fruto de uma construção
sociocultural. Desta forma, anula qualquer limitação essencial
que justifique a inferioridade da mulher em relação ao homem e
denuncia a existência de uma feminilidade a que estas estão
submetidas.
Na Introdução, especificamente, a filósofa francesa se
concentra na problemática em torno da alteridade. Enfatizando
a posição da mulher em relação ao homem numa sociedade cuja
produção de ideias e de valores é realizada e autenticada pelo
masculino, revela que esta compreende o polo negativo enquanto
o homem se apropria tanto do extremo positivo quanto do
neutro. Não há igualdade na relação entre ambos, na medida em
que um se coloca como o Absoluto e o outro é analisado numa
dinâmica relativa e inferiorizada em comparação ao primeiro.
Beauvoir também afirma que ―nenhuma coletividade se define
nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si‖4
O reconhecimento pressupõe o contato com o que este fora do
Eu, uma vez que é imprescindível o lançamento do olhar para o
exterior e o retorno a si, ou seja, o conhecer de novo. No
4 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo; tradução Sérgio Millet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 17.
34
entanto, o Outro constitui o desconhecido e as ideias que se
concebem sobre a sua natureza e atuação são mediadas pela
visão daquele que o atravessa. Essa complexidade é analisada
por outros filósofos, entre os quais, destaco Hegel que
examina a desigualdade e a interdependência entre as duas
partes na dialética do senhor e do escravo e Sartre cuja
teoria apresenta a maneira pela qual a vigilância do olhar
alheio permeia a constituição do sujeito.
É imprescindível destacar que a projeção do Eu em
contraponto aos outros é contínua. Quando Simone de Beauvoir
apresenta a situação da mulher no mundo, o faz a partir da
posição que ocupa: mulher francesa do século XX, descendente
de família burguesa, entre outras características que designam
a sua situação no mundo. A igualdade que pleiteia não
contempla a necessidade de outras companheiras que não
compartilham tal espaço social e, conforme se verifica nos
feminismos que se desenvolvem posteriormente nos Estados
Unidos e na América Latina, projeta outras sombras.
A pesquisadora OchyCuriel demonstra em seu texto
Contribuições das afrodescendentes à teoria e à pratica
feministas: desuniversalizando o sujeito mulheres a
importância da ampliação desta identidade a partir de outras
perspectivas como as elaboradas pelas afrodescendentes,
lésbicas, de-colonialistas. A autora dominicana enfoca o
enriquecimento da reflexão das mulheres negras nos debates de
gênero. De igual maneira, a norteamericana Judith Butler
empreende uma ampla pesquisa e entre os seus temas figura a
teoria de que não apenas o gênero é uma construção
sociocultural, mas o sexo também. Assim, no rastro de Beauvoir
e suas antecedentes, outras teorias dão visibilidade a
questões ainda não apreciadas.
Vale apontar que a problemática da alteridade não se
restringe ao domínio do gênero. Em Discurso sobre o
colonialismo, AiméCesaire apresenta os processos de violência
35
presentes no processo de colonização, principalmente na
tentativa europeia de civilizar os países do sul a partir dos
seus valores. O escritor martinicano aponta como a empresa
colonial torna o encontro entre o ―eu‖ e o ―tu‖ desumanizador,
uma vez que embrutece o colonizador e estimula a objetificação
do colonizado, gerando uma relação de dominação e submissão
perversa cujas dinâmicas perpassam não só a história dos
países invadidos, mas também incidem em seu presente.
O Brasil é um exemplo de país marcado pelas consequências
da ação colonial. A chegada do europeu culmina no extermínio
massivo de sociedades originárias e na destruição de sua
história. Em nome da ambição e imbuídos de um complexo de
superioridade, apropriam-se da mão de obra dos indígenas e dos
negros oriundos do continente africano para saquear a terra em
que aportam. Isto é, promovem um genocídio e penetram
violentamente nossas terras, recursos e corpos. Além disso,
contribuem para a formação de um modelo de sociedade marcado
pela hierarquização piramidal no qual muitos constituem a base
e retiram poucos proventos da própria produção e uma fração
mínima ocupa o topo usufruindo da riqueza gerada pela maioria.
Enraiza-se, assim, a construção de uma pequena elite que se
apropria dos espaços econômicos, políticos, culturais e
intelectuais do país propagando a manutenção de valores
coloniais, escravocratas e patriarcais responsáveis pela
manutenção de sua ordem.
A literatura não escapa do controle do grupo privilegiado.
Visto que o acesso à educação formal é restrito a indivíduos
com maior poder aquisitivo, há um desejo latente dos letrados
do país de se assemelharem aos povos europeus, seu modelo
ideal de belas letras. No entanto, eles sabem que trazem
consigo a insígnia daquele igual à quem rejeitam, por isso
tratam de, prontamente, aniquilá-lo. Logo, a constituição do
cânone absorve estes valores e se impõe como um eu literário
capaz de definir as obras merecedoras de incorporá-lo e as
36
demais que constituirão apenas a sua sombra. Esta desigualdade
também estará presente na representação, uma vez que a
constituição do espaço literário reflete a concepção de mundo
da elite que o produz. O que escapa dos seus domínios é,
constantemente, ignorado ou idealizado, uma vez que não
compreendem em qualquer benefício para os seus interesses.
Na relação desigual que se firma, a tendência é construir
uma caracterização do outro a partir dos desígnios
reconhecidos pelo sujeito que o observa e ignorar uma grande
porção das subjetividades que o alimentam. Dado isso, é
fundamental que se preserve a voz da alteridade em busca de um
conhecimento mais profundo da arte sobre a qual nos lançamos.
Não desmerecemos a produção canônica mundial nacional, porém
entendemos que é necessário escutar a multiplicidade de vozes
que estão à sombra deste corpo para enriquecer as nossas
perspectivas sobre a constituição do que compreendemos como
Literatura. Acredita-se que, apenas no movimento, asseguramos
a pluralidade de representações necessárias para garantir uma
democratização do literário.
Observa-se que a investigação em curso se desenvolve
através de um jogo de sombras presente no mundo ocidental. A
relação entre o tema e a literatura é o grande cenário que
ambienta a pesquisa. A abundância de representações do perfil
umbroso nos países do norte impulsiona as primeiras buscas. O
encontro de teorias sobre o tópico ressalta a importância de
superar as superficialidades com o fim de encontrar o que há
de mais fascinante em sua essência. Considerando o
encaminhamento, questiona-se: onde está a escrita da sombra
nos países do sul, especificamente na América Latina? Vamos
encontrá-la na criação de uma poética da sombra que ganha vida
pelas mãos de escritoras que encorajam o grito dos
silenciados, mulheres que representam na literatura a sombra
do hegemônico de um hemisfério, de uma comunidade, de um país,
de uma espécie, de um gênero. Almeja-se encontrar a unidade de
37
uma poética entre a multiplicidade de projeções sombrias de um
único eu: o humano.
1.3. Cartografia do vale
Sob a luz do Sol ou do luar, das velas ou das lâmpadas
incandescentes, a sombra sempre nos acompanha. Aprendemos a
ignorá-la e evitamos qualquer diálogo com ou sobre ela. Em ―O
viajante e sua sombra‖, Nietzsche demonstra o quão
enriquecedor é tê-la como interlocutora. Jung, por sua vez,
afirma que mergulhar em suas fronteiras escuras é fundamental
para a construção do conhecimento. Píndaro revela que podemos
ser um sonho daquilo que projetamos. São muitos os caminhos
que podemos percorrer ao lado desta estranha conhecida, por
isso sugere-se, a seguir, um breve traçar das trilhas
percorridas no vale que estamos desbravando.
A bibliografia abordada permite a divisão de, pelo menos,
seis âmbitos a que os estudos sobre a sombra nos remetem:
físico, filosófico, artístico, psicológico, social e
fantástico. Quando percorremos tais leituras, é notório que
constantemente suas representações consistem em entidades
negativas e, por isso, muitas vezes são ignoradas enquanto
instrumento de conhecimento. Todos os trabalhos visam à
desconstrução desta concepção para mostrar que – diferente do
que se pensa – a sombra pode revelar mais do que ocultar.
No livro A Descoberta da Sombra, o filósofo italiano
Roberto Casati realiza uma ampla pesquisa sobre o que chama de
―grande enigma que fascina a humanidade‖. O investigador
discorre sobre a filosofia, a psicologia, as artes e a
história das ciências com o fim de demonstrar a importância
desta figura não só para as grandes descobertas, como as
astronômicas, mas também para a construção de diversas
representações oriundas da sua presença marcada pela
imaterialidade. Cito Casati:
38
A sombra parece habitar um compartimento da mente que se
comunica com o departamento dos objetos – as sombras são
coisas físicas – e que, ao mesmo tempo, se abre para o
departamento da psique – as sombras são imagens da alma.
Quando refletimos sobre o estranho comportamento das
sombras, os dois departamentos põem-se a trabalhar.
Nessa duplicidade se aninha provavelmente a explicação
cognitiva da riqueza das metáforas e das histórias da
sombra. (CASATI, 2001, p.46)
Outro autor que se debruça sobre o tema é o romeno Victor
I. Stoichita. O historiador e crítico de arte se empenha em
discutir em Breve historia de la sombra o lugar que esta
imagem ocupa no discurso sobre a representação na cultura
ocidental. Embora percorra nas linhas inicias os caminhos da
filosofia e da literatura, Stoichita prioriza a discussão por
um viés pictórico. Ele desenvolve um minucioso estudo que
aborda desde a origem da pintura - através do mito de Plinio,
o Velho – até a fotografia de Alfred Stieglitz, as ilustrações
da novela A maravilhosa historia de Peter Schlemihl, e a arte
múltipla de Andy Warhol. Sobre o desafio do tema, Stoichita
diz:
Em uma perspectiva hegeliana, então, apenas o estudo da
relação entre a sombra e a luz estaria plenamente
justificado. O que traduzido em termos de representação
pictórica, significa que só uma história do claro-escuro
poderia ter êxito. Neste contexto, estudar a sombra
implica num duplo desafio, tanto em relação à
representação coletiva positiva da luz como ser
absoluto, quanto em termos da dialética do claro-escuro.
Entretanto, a história da sombra não é a história do
nada, mas, ao contrário, é a possibilidade de acessar a
história da representação ocidental pela porta que os
próprios relatos de fundação nos apresentam. (STOICHITA,
1997, p.11)
Connie Zweig e JeremiahAbrams organizam uma obra que
oferece uma terceira perspectiva sobre este objeto. Em Ao
encontro da sombra: o Potencial Oculto do Lado Escuro da
Natureza Humana, pensadores de distintas áreas apresentam,
através de artigos, reflexões sobre o conceito de sombra
enquanto negação e repressão de sentimentos e suas implicações
nos indivíduos e na sociedade. Ainda que o estudo não se
revele como um compêndio de psicologia, porque há participação
39
de poetas, filósofos, entre outros, a maioria dos envolvidos
analisam a questão da sombra pela ótica de Carl Gustav Jung.
Sobre a organização do livro, os organizadores dizem:
Para apresentar e definir a sombra pessoal na Parte 1,
escolhemos diversos exemplos admiráveis de escritores
junguianos, pois foi nas formulações junguianas que o
conceito tornou-se conhecido e útil como uma ferramenta
de crescimento pessoal e a cura terapêutica. Nesta seção
os escritores apresentam as questões essenciais que nos
tornam possível perceber a sombra na vida cotidiana. Nas
seções subsequentes deste livro, através de ensaios
escolhidos dentre uma ampla gama de ideias, o conceito
de sombra é ampliado de sua manifestação pessoal para
suas manifestações coletivas: preconceito, guerra,
crueldade. (ABRAMS – ZWEIG, 2012, p.29)
Destaca-se ainda o entendimento oriental a respeito do
tema sob o olhar de Junichiro Tanikazi. O escritor japonês
revela a influência da modernidade ocidental na perda do
fascínio oriental sobre a sombra. Ele demonstra como a cultura
nipônica, desde a Antiguidade, conservava cores, texturas,
formas, entre outros elementos, que prezavam pela manifestação
do traço sombrio em sua estrutura. A invasão do progresso com
seus holofotes, claridades e limpeza alteram a relação do
japonês com o ambiente e os próprios costumes. Após mencionar
que ―a beleza inexiste na própria matéria, ela é apenas um
jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre matérias‖,
Tanikazi complementa:
Por que essa propensão a buscar a beleza nas sombras é
tão forte apenas entre os orientais? Houve um tempo em
que a eletricidade, o gás ou o petróleo eram
desconhecidos também no Ocidente, mas até onde sei essa
parte do mundo nunca tendeu a apreciar o escuro. Desde
os tempos imemoriais, os fantasmas japoneses não tem
pés, enquanto os ocidentais, segundo ouço dizer, tem pés
mas são transparentes. Conforme se observa por esse
exemplo trivial, um negrume cinzento está sempre
presente em nossa imaginação, enquanto nas dos
ocidentais até fantasmas são claros, transparentes como
vidro. (TANIKAZI, 2007, p.47)
Retomando os autores Ocidentais, afirma-se que embora as
três obras mencionem exemplos afins, como o Mito da Caverna de
Platão, elas se diferenciam na abordagem do tema. Roberto
Casati não delimita sua pesquisa a uma única área e, por isso,
40
constrói uma análise plural na qual considera os aspectos
físicos e metafóricos do assunto em questão. Por sua vez, as
investigações de Stoichita e Abrams- Zweig priorizam,
respectivamente, a perspectiva da História da Arte pictórica e
da Psicologia na análise sobre a sombra.
Todos os trabalhos mencionados utilizam pelo menos um
exemplo da Literatura para elucidar o debate. Há referências
a: Fausto, de Goethe – A maravilhosa história de Peter
Schlemihl, de Adelbert von Chamisso – Metamorfose, de Ovídio.
Contudo, ao longo da busca bibliográfica, só detectamos a
existência de um estudo que trabalhasse exclusivamente a
representação da sombra na Literatura, o texto ―La sombra enla
Literatura Moderna. Um pequeno Panorama‖, de SabineHaupt. O
texto da professora de Teoria Literária da Universidade de
Freiburg foi apresentado no simpósio interdisciplinar e
internacional ―Para uma historia cultural de la sombra‖.
Organizado no ano de 2009 pelo também professor da
Universidade de Freiburg Victor I. Stoichita, o evento se
congregou à exposição ―a Sombra‖ sediada em dois importantes
espaços espanhóis: Museo Thyssen-Bornemisza y la Fundación
Caja Madrid.
Conforme Haupt anuncia nas linhas iniciais do seu texto,
não há uma pretensão de abordar todas as representações da
sombra na Literatura Moderna, mas discutir contextos nos quais
sua presença se destaca. Nosso objetivo está no rastro desta
proposta, mas se debruçará especificamente sobre como esta
sombra meramente aparente dos escritos platônicos culmina na
própria Literatura realizada pela sombra, aquela que quer
existir para além de si, existir como é e romper o silêncio
com o grito que transborda dos limites e alcança espaços
inimagináveis.
Inicialmente, pretende-se explorar as distintas
perspectivas que tratam da natureza da sombra. Acredita-se que
buscar os imaginários que rondam a sua nascente é
41
imprescindível para entender o percurso dos seus afluentes. Em
seguida, o interesse se desloca para as maneiras pelas quais a
sombra é representada na literatura europeia, bem como as
interpretações que se pode extrair de tais expressões. Devido
à impossibilidade de abordar todas as obras literárias que
irão utilizá-la como recurso estético, sugere-se a
implementação de um método embasado na proposta constelar de
Walter Benjamin.
As reflexões apresentadas, até então, concentram-se em
investigações de intelectuais dos países do norte. Ao longo da
construção do projeto, um grande incômodo se estabelece devido
à urgência de entender a constituição das sombras nas terras
do sul, especificamente na América Latina. Por isso, depois de
entender a forma pela qual a sombra é inscrita na literatura,
surgiu a pergunta sobre onde se encontraria a escrita de
sombra. A poesia de Alejandra Pizarnik é a chave que nos dá
acesso a uma hipótese: a escrita da sombra está nas obras
literárias que ultrapassam as projeções do cânone, apropriam-
se da escrita e esculpem a subjetividade outrora ignorada ou
invisibilizada.
Finalmente, para chegar a estes desígnios, é necessário um
giro em direção ao campo austral e a entrega do protagonismo
para as mulheres, principalmente aquelas que compõem grupos
marginalizados no âmbito social, como as negras oriundas de
espaços brasileiros periféricos. Escritoras que talham
subjetividade em personagens estereotipados pela tradição
literária e demonstram o perigo de uma única história, como
afirma a nigeriana ChimamandaAdichie. Neste momento, sugere-se
um confronto com a representação hegemônica com o fim de
comprovar a hipótese que estas autoras são responsáveis pela
criação de novas representatividades, que são fundamentais
para o enriquecimento de imaginários e reflexões.
São inúmeros os caminhos que nos levam às poéticas da
sombra. Entre corpus e projeções, encontram-se as trilhas que
42
correspondem ao percurso que escolhemos. Contudo, sabe-se que,
a qualquer momento, uma pedra se interpõe ou um atalho surge
mostrando que somos errantes na viagem a que nos lançamos. Vez
ou outra surge a dúvida, ora renovando os laços com o impulso
que nos moveu, e que nos move, ora colocando em xeque a
validez de nossas escolhas. Apesar de tudo, continuamos;
afinal o vale é fascinante e há uma única certeza diante de
qualquer temor: a sombra está comigo.
43
2. Alguns vestígios sobre a natureza da sombra
Diante da página em branco e sentada sob a modernidade da
luz fluorescente, observo o perfil negro que acompanha cada
movimento do meu corpo. Inicialmente, afasto-me, pois acredito
que a solidão é uma das condições necessárias para ouvir as
vozes que ditam as palavras que se oferecem paraà impressão no
papel. No entanto, a tentativa é inútil. Quanto mais me
distancio, vejo-o mais disforme e tudo o que escuto se
distorce e beira o incompreensível. Incapaz de me livrar do
conhecido estranho, mudo a estratégia e decido me acercar. A
aproximação dá vitalidade aos seus contornos e quando estamos
frente a frente um breve filamento se incumbe de nos unir. A
forte escuridão do seu preenchimento me traz clareza e
finalmente entendo que é necessário escutá-lo para dar vida ao
texto que está por vir. Intrigada por sua presença, começo a
investigar sobre os significantes através dos quais ele se
camufla e percorro as trilhas possíveis que me levem à sua
origem.
As fontes etimológicas indicam, pelo menos, duas
procedências clássicas da palavra sombra - umbra e σκιά
(skía)- que, respectivamente, correspondem aos termos em latim
e em grego. Na língua do Lácio, o vocábulo está presente em
textos diversos entre os quais se destaca Mostellaria5, de
Plauto, também conhecido como A comédia do fantasma. Na cena
2, Tranião exalta as qualidades da propriedade de Simão para
justificar a visita do seu senhor, Teoprópides, que acredita
que o seu filho tenha feito um bom negócio ao comprar a casa
do vizinho por um bom preço, quando, na verdade, ele gastara
os proventos com uma cortesã. Com o fim de dissimular o
5 Segundo KaterinaPhilippides, professora da Universidade de Patras, há
dúvidas em relação à data da sua encenação, mas acredita-se que Mostellaria
– embasado num possível texto grego intitulado Phasma – tenha sido
representada depois de 193 AC. Philippides, Katerina. "Mostellaria". The
LiteraryEncyclopedia.
44
interesse, o escravo convence o homem de que o seu amo
gostaria de imitar o modelo arquitetônico daquela residência
cuja cumeeira garantia uma ótima sombra no verão e este lhe
responde:
Antes pelo contrário, por Pólux! Quando há sombra por
todo o lado, então aqui está sempre o Sol, desde a
manhã, até o fim da tarde. Semelhante a um credor, está
constantemente presente à porta de casa e eu não tenho
sombra em lado nenhum, a não ser que haja alguma no
poço. (PLAUTO, 2014, p.89)6
Neste exemplo, estamos diante de uma das designações mais
correntes do vocábulo, mas é fundamental assinalar que no
latim o termo se associa a diferentes acepções. No dicionário
da editora Oxford, encontram-se os seguintes significados para
o termo umbra além do mencionado: parte escura de uma pintura,
o fantasma de uma pessoa morta, a projeção do perfil de um
objeto que forma uma zona sombreada e uma espécie de peixe
também conhecido como sciaena. Também pode ser aplicado em
sentido conotativo ao indicar vestígio, sinais ou imagens
obscuras, aparência frágil, cópia ou representação imperfeita,
aparência, simulacro. Da mesma forma, também apontam as
entradas: abrigo, cobertura e proteção.7 Tendo em vista que o
português é uma derivação do latim, verifica-se a existência
de similaridade entre os significados da palavra sombra no
idioma falado no Brasil e as denominações encontradas outrora
naquele que o originou.
Quando se recorre ao idioma helênico para contrastar as
entradas, é perceptível que o termo σκιά (skía), enquanto
substantivo simples, compartilha alguns significados com o
latim, como proteção do sol, trevas, fantasma, mas também
agrega novos sentidos posto que também indica: lugar oculto,
6Immo edepol vero, quom usque quaque umbra est, tamen Sol semper hic est
usque a mani ad vesperum: quase flagitator astat usque ad ostium, nec mi
umbra hic usquamst, nisi si in puteo quaepiamst. (Tradução de Reina Marisol
Troca Pereira; grifo nosso) 7 A LatinDictionary. Founded on Andrews' edition of Freund's Latin
dictionary. revised, enlarged, and in great part rewritten by. Charlton T.
Lewis, Ph.D. and. Charles Short, LL.D. Oxford. Clarendon Press, 1991.
45
expressão de fraqueza do homem e borda colorida de uma roupa.
Acentua-se, entre os verbetes, a menção à frase de Píndaro, na
oitava Ode Pítica: σκιᾶςὄναρ ἄνθρωπος. (Skiasonaranthropos),
isto é, ― O homem é o sonho de uma sombra‖. É importante
assinalar que a escrita da ode triunfal mencionada remete ao
êxito nos Jogos Píticos. Após o canto da dor dos vencidos e a
satisfação dos vencedores, o poeta pergunta sobre o ser e o
não-ser do homem e, com o sonho de uma sombra, ele marca a
efemeridade do sujeito e dos seus feitos. Esta é uma das
lições que herdamos do escritor grego: a inconstância, assim
como a morte, é uma das poucas certezas presentes na condição
humana. Retornando aos desígnios do dicionário helênico,
encontram-se os significados do termo na qualidade de
substantivo composto, expressando a pintura em perspectiva
(σκιά-γράυος), o viver longe do ar livre e do sol (σκιά-
τραυές), designando o animal esquilo - que pode fazer sombra
com a própria cauda - (σκίοσρος), entre outras terminologias.
As línguas neolatinas seguem a formação de umbra: sombra
em português e em espanhol, ombre no francês e ombra no
italiano. Já na esfera anglo-germânica, a ideia ganha
designação no vocábulo schatten, oriunda do antigo alemão
scato. No inglês, por sua vez, a palavra shadow provém do
termo arcaico sceadwe que é similar ao antigo saxãoskado.
Ainda tratando do idioma saxônica, o termo shade se origina em
skado que também encontra paralelo no inglês antigo scead. Na
língua inglesa ambos os termos são relevantes. Enquanto shadow
faz referência à sombra bidimensional cujo perfil resulta da
interceptação da luz por um objeto opaco, shade alude a uma
zona sombreada na qual se encontra abrigo.
O dicionário Houaiss aponta que no português a etimologia
da palavra sombra advém do latim vulgar sulumbra (sub
illaumbra– sob essa sombra). Enquanto substantivo simples,
abrange os seguintes sentidos: a) obscuridade produzida pela
interceptação dos raios luminosos por um corpo opaco, b)
46
espaço menos iluminado, sobre o qual não incide luz direta, c)
ausência de luz; escuridão e d) ausência da luz solar; noite.
Em termos metafóricos pode indicar ignorância, no sentido de
falta de conhecimento.
No campo das artes plásticas, consiste na parte mais
escura de uma pintura que lhe confere profundidade ou a tinta
marrom utilizada para pintar sombras. Na área estética,
corresponde ao produto de maquiagem usado para enegrecer ou
colorir certas áreas do corpo, principalmente as pálpebras
dando uma percepção de contraste. Em termos figurados,
reporta: i) indício, traço, sinal - ii) algo que obscurece ou
mancha a reputação de alguém; mácula, nódoa - iii) coisa que
parece impalpável, imaterial, vulto – iv) pessoa ou coisa que
perdeu seu antigo brilho, importância, poder etc. – v) o que
entristece, preocupa ou angustia. Também pode, por analogia,
designar aquele que costuma acompanhar alguém aonde quer que
vá.8
Uma análise das acepções acima permite o agrupamento de,
pelo menos, cinco grupos semânticos. O primeiro se associa à
ausência de luz, o segundo à técnica estética que demarca
profundidade, o terceiro mostra os domínios soturnos do
humano, o quarto demarca os territórios da morte e,
finalmente, o quinto focaliza a existência de uma companhia. A
pluralidade de significados que o vocábulo abrange é
expressiva, por isso a aparição da sombra como conceito ou
elemento artístico deve ser considerada a partir da polissemia
que a compõe. É imprescindível perscrutar alguns mitos e
teorias através dos quais se apresentam as possíveis origens
da figura umbrosa com o fim de explorar os contextos que
nutrem os valores que a atravessam.
Um dos acessos às fontes que embalam a expansão conotativa
da palavra se localiza na cosmogonia. Considerando o enfoque
8 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de.
Janeiro, Ed. Objetiva, 2009.
47
Ocidental da investigação, acredita-se na necessidade de
examinar duas colunas essenciais na composição dos imaginários
coletivos destes povos sobre a origem do mundo: as narrativas
das culturas helênica e judaico-cristã. A importância da
mitologia da Antiguidade grega se justifica, principalmente,
pelo valor alegórico que a compõe. De acordo com Mircea Eliade
(1972), os deuses e heróis gregos não são esquecidos, pois há
um reconhecimento de que a literatura e as artes plásticas
bebem na fonte grega ao longo do seu desenvolvimento. A
herança clássica – ―salva pelos poetas, artistas e filósofos‖
- presente na história do ocidente garante a permanência de
tais relatos em sua cultura.
Em relação ao cristianismo, é inegável a influência das
suas crenças ainda hoje, século XXI, nas sociedades do
Ocidente. O conjunto das convicções e preceitos cristãos estão
expressos na Bíblia e a propagação ao longo dos séculos
ultrapassa o domínio da arte, pois encontra um eficiente meio
de difusão dos discursos defendidos pela sua fé nas pregações
das igrejas. Enquanto narrativas que remontam a formação do
mundo, ambos os textos tratam da ausência de luz – o primeiro
campo semântico levantado que mantém vínculo com a sombra. Por
isso, abordaremos, respectivamente a Teogonia, de Hesíodo,e os
versos iniciais de Gênesis, primeiro livro da escritura
sagrada judaico-cristã.
O poeta descreve a genealogia dos deuses e,
concomitantemente, expõe a criação do mundo seguindo a
concepção da Antiguidade Grega, uma vez que o surgimento de
ambos é indissociável. Após a invocação das Musas, que cantam
e dançam ocultas pela névoa e em fileiras noturnas, convocam-
se os deuses. Já na disposição inicial da liturgia, nota-se o
caráter sombrio do ambiente. O comentador e tradutor da edição
brasileira pela editora Iluminuras ressalta que a ―irrupção da
voz, impõe-se à Noite negra‖ com o fim de trazer os elementos
divinos para a cena e, entre estes, figura a própria Noite. A
48
partir do trecho abaixo, é visível como a esfera do umbroso
(do não-ser) acolhe o canto das Musas, responsáveis por evocar
os entes sobrenaturais criadores. Entretanto, em meio à ordem
e à vida, também há uma reivindicação das forças de negação:
as potências ortofônicas (Musas) situam-se no meio da
potência do não-ser e da privação (Noite) e mais: trazem
junto à sua plenitude configuradora da Ordem e da Vida
esta Força originária da Negação. A manifestação das
Musas não é apenas um esplendor e diacosmese que se
opõem ao reino das trevas e da carência, mas sobretudo
tem no antinômico reino da Noite o seu fundamento e, ao
esplender em seu fundamento, dá a este mesmo reino
antinômico a sua fundamentação. (TORRANO, 1995, p. 18)
Demonstra-se, desta maneira, que cada presença surge,
simultaneamente, com a ausência, numa tensão necessária para a
manutenção vital entre criação e destruição. O noturno não
apenas abriga os hinos que comunicam com os imortais, mas
também surge como uma força originária capaz de aniquilar a
tudo àquilo a que traz vida. É possível entendê-lo,
minuciosamente, quando chegamos na gênese dos deuses
primordiais. Segundo o canto de Hesíodo, que recebeu as
palavras das Musas, Caos é o primeiro a nascer e quase toda a
sua descendência se associa ao não-ser. Fruto de uma
cissiparidade da divindade primeva, Érebos é uma das potências
tenebrosas que representam a negação da vida e da ordem. Ele
se une por amor à Noite, também nascida de uma bipartição de
Caos, e esta gera Éter e Dia, as exceções da linhagem sombria,
pois consistem em entidades positivas e luminosas. Ilustram-se
as afirmações com os versos do poema:
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor. (HESÍODO,
1995, p.91)
Observa-se que as duas faces luzentes da linhagem de Caos,
provêm das entranhas da Noite e são frutos de uma união de
amor entre a mesma e Érebos. Logo, identifica-se a origem
umbrosa das composições que se associam à luz. Além disso,
percebe-se uma autonomia dos entes que as originam, designando
uma estrutura fértil por si e ativa. Digo, Érebos e Noite
49
surgem de uma divisão de Caos e este, por sua vez, é um deus
primordial. A tríade obscura independe da relação dos demais
para existir, enquanto a dupla de luz tem origem na fecundação
de um ente das trevas em outro de igual domínio que também vai
germiná-lo e concebê-lo. De igual maneira, é ressaltado no
poema que outros filhos da Noite– Lote, Sorte Negra, Morte,
Sono, Sonhos, Escárnio e Miséria - são paridos ―com nenhum
conúbio‖, reiterando a independência dos entes trevosos.
Outro aspecto que merece atenção no trecho, é a inter-
relação entre forças compreendidas como opostas devido às
características a que remetem: Érebos x Éter e Noite x Dia.
Como também assinala JaaTorrano, Érebos se configura como uma
região ―subterrânea, tétrica, noturna, ligada ao reino dos
mortos‖ em tensão com Éter que designa o espaço do ―superior,
da luminosidade, do céu diurno‖. Contudo, é imprescindível
destacar que, neste contexto, Noite e Dia não correspondem a
períodos cronométricos, associação comum que fazemos em nossos
tempos, mas sim a princípios ontológicos. Respectivamente,
eles exprimem as instâncias do Ser e do Não-Ser e mantêm uma
conexão na qual vigora a seguinte estrutura:
O Ser vige e configura-se segundo uma estrutura
configurada pelo Não-Ser, de tal forma que o pensamento
que pensa o que é o Ser não pode não pensar o Não-Ser.
(HESÍODO, 1991, p.36)
Tendo em vista o apresentado, é evidente a pulsão criativa
das esferas do obscuro. A ausência que comportam gera uma
terra fértil para germinar as mais diversas presenças. Porém,
também é de onde culminam os fins. É impossível pensar sobre
as sombras na cosmogonia grega sem percorrer os terrenos
profundos de Tártaro, onde os filhos da Noite habitam. Assim
como Caos, ele faz parte dos deuses primordiais. Abrange uma
região subterrânea em que os raios do Sol não chegam sendo
temida por mortais e imortais. É o espaço para onde se lançam
os vencidos Titãs, encarcerados em seus vales, impedidos de
sair por uma porta de bronze e grandes muralhas. Defronte da
50
fortaleza do mundo inferior, está o palácio de Hades e
Perséfones protegido por um cão de guarda amável com os que
chegam e impiedoso com aqueles que tentam sair. Configura-se,
assim, o cenário lúgubre daquele que se expande pelas vias
inferiores da Terra, opondo-se assim ao eixo superior que
alcança o ápice do Céu.
A mitologia grega nos apresenta a capacidade produtiva de
Caos, Érebos e Noite, assim como a de seus descendentes. De
igual maneira, constata-se a riqueza e a força guardadas sob
os poderes de Tártaro. Através do poema de Hesíodo, demonstra-
se a procedência umbrosa das potências de luz, como Dia e
Éter, e aponta-se o intercâmbio essencial entre Ser e Não-ser
para a formação dos Deuses e do universo. Nota-se também o
protagonismo dos entes sobrenaturais sombrios na origem e na
constituição do mundo; além disso a dinâmica através da qual
cada elemento ganha vida sugere que qualquer investigação não
deve se restringir apenas à face clara do objeto em que se
debruça, mas também precisa se inclinar em direção ao perfil
atro que o compõe. Portanto, seguimos as entidades obscuras de
tal cosmogonia com o fim de percorrer as trilhas dos seus
ensinamentos.
Um olhar atento em direção à Teogonia, propicia uma visão
mais ampla da natureza da sombra. Hesíodo sugere que vejamos a
dança dos opostos, por isso é fundamental abordar os
contrários que a compõem. Tanto a Noite que abriga o canto das
Musas quanto a aparição inicial de Caos sugerem que a ausência
e a desordem podem gerar, através de sua força, uma série de
presenças e ordens. Igualmente, os entes trevosos, associados
à destruição, comprovam que as gerações que lhe sucedem, suas
construções, pertencem tanto à escuridão quanto à
luminosidade. É imensurável o prejuízo daqueles que ignoram o
inverso do qual o ser está impregnado. À vista disso, deduz-se
a importância de ver a sombra não como um fator limitante, mas
sim expansivo ao longo da formação do mundo.
51
Conforme visto na introdução, a cosmogonia judaico-cristã
atribui a formação do mundo a um único Deus. Inicialmente, Ele
cria os céus e a terra, sendo a última sem forma e vazia9. Em
seguida, há uma descrição do espaço terrestre no qual as
trevas estão sobre a face do abismo e o espírito de Deus paira
sobre as águas. Conforme sugerido nas primeiras páginas do
nosso estudo, nota-se que as trevas já existiam antes de um
ordenamento do Ente primordial. Diferente da luz, cuja
aparição é consecutiva à verbalização divina, as sombras se
impunham no cenário em questão de forma autônoma. De acordo
com a linha teológica defendida, é possível associá-las tanto
como parte do nada quanto do caos, uma vez que estão inerentes
àquele lugar criado. De qualquer forma, demonstram-se
essenciais, na medida em que se manifestam fundamentalmente
após a criação de qualquer espaço, seja ele preenchido pelo
vazio ou pela desordem, exceto nos casos em que o caos
compreenda a existência de luz.
Logo, verifica-se não apenas uma independência em relação
ao criador, mas também o afastamento daquilo que é
originalmente sagrado. Nos versos seguintes, a menção à
desagregação entre luz e trevas assim como a valoração
positiva da primeira em comparação com a segunda corrobora a
afirmação. É importante destacar que, após a separação, Deus
também vai nomeá-las, respectivamente, como Dia e Noite.
Seguindo o caminho indicado, percebe-se que, apesar da
escuridão não se constituir como fruto da criatividade divina,
há uma apropriação de seus domínios e uma intervenção na
9 A partir de uma pesquisa inicial, descobre-se que há uma discussão
profunda no âmbito da teologia em relação a este trecho, tendo em vista que
diversos autores debatem as controvérsias geradas pela tradução do hebraico
töhûwäböhû. Em sua tese de doutoramento, Osvaldo Luiz Ribeiro demonstra,
através de uma análise léxico-morfológica dos termos, uma natureza
substantiva e não adjetiva de cada um. Assim, embasado em outros estudos,
propõe uma leitura na qual se entenda que ―a terra estava numa desolação e
um deserto‖. (RIBEIRO, Osvaldo Luiz. A Cosmogonia de Inauguração do Templo
de Jerusalém - o SitzimLeben de Gn 1,1-3 como prólogo de Gn 1,1-2,4ª. 2008.
Tese de doutorado – PUC-Rio, Rio de Janeiro. 2008.)
52
instituição da sua identidade. A narrativa do judaico-
cristianismo vai inseri-la num aspecto oposto à luz, que
poderá ser neutro ou negativo, e vai interferir em sua
concepção. Em comparação à cosmogonia grega, que a considera
como um dos entes constitutivos do mundo e progenitora do Dia,
a formação judaico-cristã cinde ambas gerando uma oposição
dicotômica.
A concentração do poder da criação nas mãos de um único
sujeito, insere uma passividade nos objetos criados em relação
ao Ser ativo. Ao escapar da esfera divina, as trevas não se
submetem ao criador e este, por sua vez, ao dar existência à
luz e aos luzeiros do céu se empenha em estabelecer uma
separação clara entre o que toma forma pela sua voz e aquilo
que é intrínseco à aparição da Terra. Considerando o livro de
Gênesis, a natureza da sombra é independente da criação do
mundo. A tradição judaico-cristã sustenta o caráter maligno da
sua essência, contudo o texto deixa esta informação implícita
em seus primeiros versos, pois não há evidências sobre o
caráter indiferente ou prejudicial da sua presença.
A ausência de luz é representada em ambas as cosmogonias
mencionadas. Na primeira, ressalta-se o impulso produtivo que
a compõe e a complementaridade necessária com o seu oposto. A
segunda, por sua vez, revela a liberdade que detém diante do
sagrado. Isto posto, verifica-se que o campo semântico da
ausência de luz ultrapassa o limite da mera privação. No
entanto, ao longo da história, a tradição ocidental se
concentrou na exploração e desenvolvimento dos aspectos
luzentes da constituição do mundo, desprezando ou demonizando
o mundo das sombras. Assim, forma-se um grande hiato entre o
que se sabe sobre cada um desses âmbitos no qual o primeiro é
amplamente conhecido e o último atua como coadjuvante ou
aspecto nulo do seu reverso. Torna-se aparente que o mundo
ocidental carrega a herança da ordem judaico-cristã de
segregação da sombra. É necessário, portanto, um resgate dos
53
aspectos construtivos da ausência de luz com o fim de entender
os prejuízos gerados ao ignorá-la.
Em contraponto com a presença da escuridão nas narrativas
da formação do mundo, destacam-se algumas teorias científicas
ainda em desenvolvimento, principalmente pelo grupo Dark
Energy Survey, sobre a existência de uma ―energia escura‖ que
talvez seja responsável pela aceleração da expansão do
universo10. Considerando que a investigação está em andamento,
os pesquisadores fazem algumas possíveis considerações sobre a
sua natureza. Acredita-se que, enquanto propriedade do espaço
vazio, ela seja constituinte de 70% do cosmos e tenha a
capacidade de anular o efeito da gravidade. Logo, esta
potência preenche o espaço e influencia a organização do
universo. Como não se manifesta através de partículas ou luz –
formas pelas quais se exploram os corpos atualmente – é
necessário criar novos meios para abordá-la. De igual maneira,
a física também assinala a presença do que se denomina como
―matéria escura‖ cuja estrutura ocupa cerca de 27% do cosmos.
Diferente da energia mencionada anteriormente, ela possui
força gravitacional. Descoberta por Fritz Zwicky, em 1930, sua
forma não comporta a luz e seu campo não interage
convencionalmente com as matérias já conhecidas.
Conclui-se que, em parâmetros científicos, conhecemos
muito pouco do universo. Principalmente, porque grande parte
das observações enfocaram na dimensão da luz e não se
concentraram em formações independentes cuja dinâmica se
estabelece fora deste domínio. O centramento nas estrelas
cegou os nossos olhos para observar as potências presentes
naquilo que, até então, era ausência. Talvez seja fundamental
retomar a concepção ambivalente dos componentes do cosmos para
que não adotemos uma visão unívoca – que pode se transformar
em idealizada ou equivocada - sobre o existente. Portanto,
10 A descoberta rendeu o prêmio Nobel de Física para três cientistas norte-
americanos: Saul Perlmutter, Adam Riess e Brian Schmidt.
54
acredita-se que, ao explorar aquilo que foi excluído da
história do mundo por encerrar ideias fechadas e improdutivas,
encontra-se o equilíbrio primordial para iniciar a tarefa
vital do conhecimento.
Uma vez apresentada a importância de abordar a ausência de
luz por um outro ponto de vista, destacando seus aspectos
positivos, entendemos que a nossa percepção do mundo pode
variar de acordo com a posição que nos colocamos diante deste.
Entre tantas perspectivas possíveis, enfocaremos
especificamente na visual, uma vez que a nossa sociedade
ocidental centra a maioria da sua apreensão do mundo através
do olhar11. Tal afirmação encaminha a investigação para o
segundo campo semântico assinalado no início do capítulo ao
qual a sombra se associa: uma técnica estética através da qual
se confere profundidade ou relevo a determinado objeto. Isto
é, o jogo de claro-escuro é fundamental para imprimir volume.
Quando se trata da arte pictórica, o sombreado permite
delinear os relevos presentes em determinado desenho, pintura
ou gravura.
Vale lembrar que, conforme demonstra a investigação de
Victor I. Stoichita, a sombra é utilizada como recurso
estilístico desde o mito da origem da pintura de Plínio até os
nossos dias, passando pelas Sombras Andy Warhol e pela
publicidade da marca Chanel. O uso desta técnica como um meio
de inscrever volume na imagem e promover uma ambientação mais
realista para as formas começa a ganhar ênfase no Trecento e
chega no auge no período renascentista. Sobre o primeiro
período, sabe-se que Giotto é um dos precursores do método.
CenninnoCennini, um dos seus seguidores, sistematiza em Libro
dell Arte não apenas o modo pelo qual se alcançam alguns
efeitos através da sombra, mas também a mistura de cores
11 Em sua tese de doutorado, Antonio Quinet desenvolve uma pesquisa ampla
sobre a importância do olhar para a nossa sociedade. A editora Zahar
publicou parte deste trabalho em QUINET, Antonio. Um olhar a mais:Ver e ser
visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
55
necessárias para criá-la. Segundo a pesquisa do historiador de
arte romeno, a prática de Cennini rompe com a tradição
bizantina cuja prática valorizava a sombra como contorno e
começa a sistematizá-la como uma maneira de imprimir
materialidade nos corpos ou como o mesmo nomeia inspirado nos
escritos do pintor, a sombra da carne:
A diferença entre o procedimento de Cennini e a maneira
bizantina reside no fato de que o Trecento já tinha
conquistado uma visão da imagem como cópia da realidade,
enquanto que para a mentalidade bizantina a imagem era
um decalque de outra imagem. (STOICHITA, 1999, p.54)
A pintura de Cennini demonstra que a partir deste recurso
é possível pintar carne, sombras e contornos. Assim sendo, a
configuração da pintura se torna muito mais realista, uma vez
que apresenta as formas considerando o relevo e a
profundidade. Este panorama circunscreve um âmbito propício
para saciar a sede do Renascimento de domínio e representação
do mundo. As sendas trilhadas por Giotto e seus discípulos
permitiram uma ascensão da sombra no mundo da arte ocidental.
Neste período, o chiaroscuro potencializado por Leonardo da
Vinci tem grande relevância e alcança a sua radicalização no
Tenebrismo, no qual Caravaggio é um dos representantes mais
expressivos. O contraste entre o claro e o escuro demonstra o
equilíbrio necessário para expressar a realidade em que se
vive. Há uma transição fotográfica em curso entre o misterioso
negativo do Medievo e a era reveladora das Luzes.
É imprescindível lembrar, no entanto, que a sombra como um
instrumento para incutir profundidade já era usada na pintura
facial. Desde o Egito Antigo, o uso de coloração nos olhos,
principalmente negra, conferia destaque ao que se assumia como
janela da alma. Segundo a história da maquiagem, há alguns
indícios de que pintá-los de preto também consistia em uma
maneira de proteção. Alguns frascos encontrados nas tumbas
egípcias demonstram o domínio dos pigmentos por este povo. O
Kohl, por exemplo, era uma espécie de maquiagem do Egito
Antigo amplamente usado naquela sociedade. Ainda nos dias de
56
hoje, a cosmética utiliza os tons escuros com o fim de criar
profundidade nos rostos, destacar determinada área ou até
manipular suas verdadeiras dimensões.
Tendo em vista os aspectos apresentados, seja nos quadros
seja nos rostos, a sombra é um instrumento através do qual as
formas ganham profundidade. Na arte pictórica, torna-se uma
técnica fundamental durante o Renascimento, uma vez que
permite o traçar mais preciso das dimensões de um objeto e
confere mais realidade na sua representação. O jogo entre
claro e escuro ganha relevância no período mencionado e
demonstra que o domínio da sombra, assim como o da luz, é
imprescindível na construção de imagens que almejam refletir a
realidade, tal como num espelho. A cosmética, por sua vez, ao
empregá-la também possibilita a manipulação do real, na medida
em que simula formas inexistentes no rosto e no corpo.
Enquanto técnica de pintura, apresenta-se como um recurso
valioso, sem o qual os elementos apareceriam de forma plasmada
na tela. As reentrâncias acrescentam uma percepção visual mais
concreta do representado e encaminham nossa reflexão para o
terceiro campo semântico sugerido: a sombra como o domínio
soturno do humano. Isto é, o lado oculto do homem no qual ele
guarda sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego
ideal. A teoria que adota a sombra como uma acolhida das
potencialidades não-desenvolvidas ou não-expressas pelo
indivíduo é elaborada por Carl Gustav Jung. O psiquiatra suíço
acredita que a rejeição do lado obscuro resulta num maior
empoderamento da personalidade secundária e, apenas através da
aceitação da versão soturna e uma posterior afirmação daquilo
que ali foi guardado, mantém-se o equilíbrio necessário entre
o ego revelado e o ego oculto.
Segundo Jung, a sombra nasce do regime de domesticação da
natureza animal humana para a sua inserção na sociedade. Há um
processo de coerção da liberdade do ser com o fim de uma
adequação à determinada cultura. A família e as instituições
57
são alguns dos meios através dos quais o normatizamos, através
da criação de regras e da exigência de cumprimentos morais.
Porém, o autor defende que, concomitante à formação de tais
valores, também há o nascimento do que foi traduzido por Maria
Luiza Appy como desvalores. Logo, a constituição de um
indivíduo é composta não apenas por suas capacidades,
racionalidades e sentimentos expressos, mas também por suas
inaptidões, instintos e frustrações ocultas. Ele afirma que
não há uma intenção de fazer com o que os sujeitos se
convertam ao seu oposto, mas que haja ―a conservação dos
antigos valores, acrescidos de um reconhecimento do seu
contrário‖. (JUNG, 1980, p.68)
Contudo, é imprescindível lembrar que a teoria junguiana
considera a existência não apenas de uma sombra individual,
mas também de uma sombra coletiva. Digo, não é apenas no campo
singular que se circunscreve a fronteira entre o que o homem
deve apresentar e reprimir, mas também a sociedade, em suas
regras morais, determina aquilo que é aceitável ou marginal. O
pensador suíço também afirma a necessidade de encontrar a face
umbrosa do âmbito coletivo para evitar sua ascensão através de
atos extremos, como as grandes guerras e os totalitarismos do
século XX. A fuga do contato frontal com o mal e com os
instintos, leva à projeção dos mesmos no outro, principalmente
aqueles que se encontram em situações de vulnerabilidade, como
seres e comunidades excluídos da hegemonia, seja por sua cor,
etnia, condição econômica. Desta forma, gera-se a implantação
de justiças perversas através das quais um grupo se afirma
superior a outro e tenta, assim, exterminá-lo.
A porção escura que nos constitui se revela ativa na vida
diária. Em Psicologia do Inconsciente, Jung aponta a dinâmica
presente em sua estrutura. Quando o homem ignora a fração
negativa que o acompanha, ela tende a ganhar volume e a se
exceder. Não há eliminação de um lado em relação ao outro, mas
a conciliação é possível. Logo, a autocrítica é imprescindível
58
para que haja uma convivência pacífica entre ambas as partes.
Lembro que, tais considerações valem tanto no âmbito pessoal
quanto no público. No Brasil, o mito da democracia racial é um
exemplo de expansão de uma sombra coletiva. Ao longo de anos,
o país foi reconhecido como referência de coexistência
harmônica entre diferentes etnias. Esta crença impedia o
confronto claro com a face do preconceito. Todavia, a
implementação de medidas políticas que reivindicam igualdade
social, ao longo dos anos 200012, propicia a aparição da face
oculta dos brasileiros posto que desvela discriminações
pulsantes, principalmente de etnia e de classe, que culmina no
golpe de governo efetivado em 2016. A dinâmica é bem expressa
por Jung:
[...]a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por
isso, é reprimida; e devido a uma intensa resistência.
Mas o que é reprimido tem que se tornar consciente para
que se produza uma tensão entre os contrários, sem o que
a continuação dos movimentos é impossível. A consciência
está em cima, digamos assim, e a sombra embaixo. E como
o que está em cima sempre tende para baixo, e o quente
para o frio, assim todo consciente procura, talvez sem
perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está
condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É
no oposto que se acende a chama da vida. (JUNG, 1980,
p.48)
Nota-se que é fundamental o encontro com o aspecto mais
sombrio da nossa personalidade e da coletividade. É impossível
se desassociar da projeção umbrosa que nos acompanha e, vez ou
outra, manifesta-se no cotidiano, por isso admitir a sua
existência é crucial para que se busque equalizar a proporção
entre o ser e o não-ser de um homem e de uma sociedade. Uma
vez que entramos na esfera do encontro com este outro, propõe-
se a inversão da ordem proposta inicialmente. Antes de
explorar o diálogo da sombra com os domínios da morte,
12 Refiro-me às políticas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT)
tanto no governo de Luís Inácio Lula da Silva quanto no da presidenta Dilma
Rousseff, como as ações afirmativas e concessão de direitos às empregadas
domésticas. Sabe-se que muito da igualdade se associava não aos direitos
básicos, mas sim ao consumo. Porém, entende-se que houve um avanço mais
significativo do que nos mandatos anteriores, das ditaduras e dos governos
de José Sarney, Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso.
59
encaminha-se a discussão para a ideia do duplo, tendo em vista
que a projeção se caracteriza como o outro do eu.
Na introdução, elabora-se uma apresentação teórica acerca
do outro enquanto conceito. Contudo, quando se trata da
natureza da sombra, verifica-se que ela é o duplo do eu, o
perfil acre do seu dono. Comunga os traços externos que
caracterizam a sua forma, mas a dimensão tridimensional do
corpo é reduzida a uma silhueta bidimensional e enegrecida.
Vale dizer que, apesar de apresentar uma versão mais primária
daquele que a projeta, sua presença é fundamental, pois é um
dos distintivos que atesta a existência material daquele que
lhe dá vida. Um homem sem sombra desafia a lógica da física e
gera uma série de imaginários fantásticos sobre a sua
procedência, como seres fantasmagóricos ou diabólicos.
Esta versão animística do outro tem a origem explicitada
em, pelo menos, dois textos analisados na pesquisa: a Comedia,
de Dante Alighieri, e a parábola de Edgard Allan Poe
intitulada The Shadow - A Parable(A Sombra – Uma parábola).
Ambos defendem que, nesta esfera, a sombra nasce do espírito
em sua nova forma após a morte e cumpre o seu destino ao
imergir em uma das duas beiras dos rios. Aquela que se
apresenta na cidade de Ptolemáis afirma residir nas planícies
que beiram os canais de Caronte, parte do Rio Aqueronte, para
o qual descem as almas que se destinam ao Inferno.
Logo, a personificação da sombra alude às almas que
tiveram como destino o mundo inferior. Elas atuam como seres
viventes desprovidos de qualquer materialidade, dialogam com
Dante e Virgílio ao longo do trajeto, exprimem sentimentos em
relação à própria situação e narram lembranças de outrora.
Além disso, como afirma Farinata no Canto X do Inferno, são
aptas a ver o futuro, sendo banidas apenas do saber sobre o
presente. Na parábola de Poe, por sua vez, a sombra é dotada
de voz, dialoga com Oinos e é consciente da própria
identidade. Porém, sua feição é vaga, sem forma e não remonta
60
a qualquer coisa conhecida. O elo entre ambas as narrativas é
o rio Aqueronte como a origem destas sombras. Através dele, o
barqueiro vai conduzi-las ao Hades localizado nos domínios do
mundo inferior.
No presente parágrafo, encerra-se a escavação de vestígios
semânticos que se associam ao termo em análise. Por um lado, é
fundamental assinalar que há uma delimitação do campo a ser
explorado com o fim de evitar desvios do diálogo que buscamos
entre a sombra e a literatura. Acredita-se que a tarefa à qual
nos lançamos no presente capítulo é inesgotável, por isso é
necessário restringir o número de perspectivas para que seja
possível explorar com eficácia os aspectos selecionados. Por
outro, recuperar uma parte dos significados atribuídos à
figura em análise é uma maneira de provocar reflexões sobre
questões que se impõem ao longo da investigação, entre as
quais destaco: que papel desempenha a luz neste debate? qual é
a dimensão do elemento umbroso que almejamos examinar? Afinal,
quais são as sombras que perseguimos neste estudo?
A recuperação das entradas léxicas denuncia a
possibilidade da compreensão do termo nos domínios da
escuridão plena. Geralmente, quando entendida no contexto de
proximidade com as trevas, recebe a desinência morfológica de
plural. A alusão às sombras herda a insígnia do mistério, do
oculto e do desconhecido e, desta forma, demarca uma distância
da esfera do evidente. É inegável o aspecto tentador de
ingressar no extremo da ausência, mas esta inclinação
culminaria num estudo sobre as trevas travestido pelas
indumentárias das sombras. Por isso, demarca-se a busca pela
projeção, a figura fugidia cujos limites jogam com o luzente e
o seu obstáculo e, assim, aparece como a amostra do negativo
resultante desta dinâmica.
Com o fim de elucidar o nosso objeto com mais precisão,
retorna-se à acepção física do termo: a sombra como uma zona
carente de luz projetada em um anteparo proveniente da
61
intercepção dos raios por um objeto opaco13. Ora, a partir de
tal designação, a formação umbrosa deriva da interação de,
pelo menos, três elementos: a luz, o objeto opaco e o
anteparo. A aparição dos seus contornos depende deste diálogo,
uma vez que a escuridão camufla os seus limites, a
inexistência do corpo impede a sua criação e a falta de um
receptáculo para a forma impossibilita a sua visualização.
Logo, o surgimento do perfil depende da presença desta tríade.
A silhueta resultante do claro-escuro é essencialmente
ambígua, pois pode remeter a coisa mesma ou ser meramente um
embuste. Digo, a sombra de um coelho numa sala pode
corresponder tanto à projeção do animal em si ou resultar da
articulação das mãos visando à reprodução de uma imagem.
Tampouco é possível afirmar se o tamanho condiz com o
original. A contemplação da figura enegrecida, sem que se
tenha acesso visual àquilo que a projeta, não é suficiente
para remontar a estrutura do objeto que a origina. Se apenas a
projeção da forma de um coelho na parede é observável, não
posso garantir se tal delineamento ou dimensão são produzidos
pelo mesmo ou não. A interpretação das formas se associa ao
arquivo presente no imaginário e faz com que a observação nos
remeta àquilo que é conhecido. Quando reflete sobre o teatro
de sombras, FabrizioMontechi faz uma observação que sintetiza
o nosso pensamento: a sombra como uma composição daquilo que
se quer expressar e não a matéria com a qual se expressa.
(MONTECCHI, 2005). Conforme afirma Jean Pierre Lescot, ―a
sombra não pode se conter na descrição, porque sua descoberta
é o reencontro com um ‗elemento‘ poético‖. (LESCOT,2005,
p.10)14
13Conforme expresso na introdução, a descrição do fenômeno considera a
propagação de luz em meios homogêneos e transparentes, pois sabe-se que, em
outras condições, os raios não seguem em linha reta. 14 Em LESCOT, Jean Pierre. Poesia e amor no teatro de sombras. In. BELTRAME,
Valmor (Org.) Teatro de sombra: técnica e linguagem, p. 9-13 –
Florianópolis: UDESC, 2005.
62
Tendo em vista o apresentado, acredita-se que o panorama
traçado em relação à natureza da sombra fornecerá uma
importante chave de leitura para os textos que seguirão. As
fontes provêm de cada um destes mananciais citados e, como no
curso dos rios, desaguam no mar sombrio da literatura. Antes
de chegar à massa caudalosa de água, passam por distintos
terrenos e carregam consigo pequenos sedimentos que se juntam
ao longo do caminho. Por isso, a matéria da fonte nunca será
correspondente àquela que atinge o seu destino. Navegantes que
se aventuram em seus domínios iniciam o trajeto em plena
escuridão. No meio do percurso, os raios de sol começam a
refletir e é possível: encontrar a direção pela qual se
atravessa, escutar a voz daquele que sugeriu não se arriscar e
perceber a companhia escura refletida. Mais uma vez o Sol se
põe e nascem as trevas de um Aqueronte cuja densidade traz o
temor. Anseia-se pelo destino, a escuridão levou aquele que
nos acompanha e só é possível escutar o ruído umbroso da
imaginação. Apesar do medo, não desistimos. Seguimos a voz do
poeta que como as sereias repetem: ―Navegar é preciso; viver
não é preciso‖.
63
3.Sombras na Literatura
O barco ancora no texto literário e uma porta imensa
aparece em frente ao leitor. Alguns que já a ultrapassaram,
dizem que, ao atravessá-la, podemos encontrar um baile no
qual corpo e sombra nem sempre estão juntos. O som do vento
prenuncia diálogos, negociações e até um ambiente lúdico.
Apesar da atmosfera fúnebre, perseguimos, pois uma imagem
triádica indica que não estamos tão longe do nosso destino.
3.1. As boas-vindas das sombras: as anfitriãs da Comedia
15
Sê – e sabe em simultâneo a condição para o não-ser,
o fundamento infinito da tua vibração interior,
para que a leves a cabo por inteiro, desta única vez.
(Rilke)
Que ninguém tente debilitar o sentido da relação:
relação é reciprocidade
(Martin Buber)
As três sombras, de Auguste Rodin, convidam-nos para
ingressar no universo da Comedia dantesca. Talhadas em bronze,
as esculturas carregam o brilho metálico da composição do
material e reluzem um tom escuro cuja projeção, oriunda do
encontro com a luz, assemelha-se mais a um reflexo fosco de si
do que, necessariamente, a uma sombra. Conforme se observa na
figura, os corpos se inclinam com o torso retorcido e as
cabeças pendentes para a esquerda convergem descensionalmente
para um mesmo ponto. Embora estejam dispostos em angulações
diferentes, posicionam-se de forma que descaem em direção
15 Auguste Rodin (1840 -1917). As três sombras. Antes de 1886. Bronze. Alt.
97 cm ; Larg. 91,3 cm ; Prof. 54,3 cm. S.1191
64
àqueles que ingressam na Porta do Inferno e reproduzem um
movimento de interioridade, como se indicassem para cada novo
morador a necessidade de mergulhar em si.
Nos escritos de Rilke sobre o escultor cujas mãos ―viveram
como uma centena de mãos‖, descobre-se a importância da
inscrição do gesto e do movimento na obra (RILKE, 1995, p.22).
O ato de se dirigir criação adentro em busca dos recônditos
mais obscuros nos quais se encontra a beleza da obra não
figura como uma exaltação da arte sobre si, mas se refere à
plenitude de uma construção que trasborda do núcleo em direção
ao mundo para mostrar a grandeza dos detalhes. Contudo, Rodin
demonstra que a integridade não está submetida à completude,
pois a privação de algumas estruturas – como parte do braço
direito das sombras – é necessária para que a forma não exceda
ao que já se apresenta como suficiente. Ao invés de se
concentrar na ausência, o francês nos convida a ingressar na
estética da matéria talhada cuja presença contém uma
vitalidade que nos provoca a perseguir a alma que lhe confere
tanta expressão.
A curvatura dos corpos presentes na escultura em análise e
a convergência dos seus braços esquerdos em direção ao
inferior representam, respectivamente, o movimento e os gestos
citados. Assim com as sombras do Inferno de Dante, elas
perscrutam os seus abismos num processo árduo de autorreflexão
e sofrimento. Desta forma, a profundeza aparece como lugar e
tarefa, visto que os penitentes ocupam os círculos da cratera
escavada nas entranhas do globo terrestre, adentram até o
centro onde se encontra Lúcifer e, além disso, carregam o
fardo de seus pecados submetidos ao castigo correspondente às
faltas que cometeram enquanto viventes. A inclinação rumo ao
inferior e a tensão dos corpos remetem ao âmago de uma dor
concêntrica semelhante ao espaço em que habitam. Despidos de
esperança, pendem ao peso da consciência que, voltada para o
65
lado da razão, incita à reflexão aos atos realizados em vida
dos que ali pagam por seus desvios.
A localização d‘As três sombras também merece um olhar
atento, pois ocupam um espaço de destaque, diferente das
demais obras que compõem este conjunto maior e estão
entranhadas em seus domínios escuros. Elas se situam no ponto
mais elevado da Porta do Inferno e coroam a entrada, de
maneira que figuram um símbolo incompleto da soberania daquele
espaço. Digo incompleto, porque forma menos da metade de um
semicírculo. O lugar do castigo de todos os que fizeram o mal
é o mais comentado no poema dantesco16 e configura uma
referência na obra do autor devido à primazia artística da sua
representação. Não é possível atribuir nobreza total aos
domínios da corrupção, mas admite-se a grandeza estética desta
dimensão em relação às demais, o que nos leva a postular uma
causa para o objeto que denota a sua soberania estar
inconcluso remetendo tanto ao poder inautêntico do infernal
quanto ao processo infindável de redenção dos seus habitantes.
Tendo em vista a quantidade de sombras presentes no topo
do portal, destaca-se o seu caráter simbólico. É inevitável
recordar a importância do número três para as religiões
judaico-cristãs, pois remete à Trindade que consubstancia o
Deus de sua crença sob três figuras: Pai, Filho e Espírito
Santo17. A coroação da entrada do Inferno com uma tríade
umbrosa soa como uma profanação diante do divino; é elevar o
grupo de corpos em contorção nuclear como expressão da unidade
sagrada daquele âmbito. Além disso, conforme veremos mais
adiante, as sombras habitam esta esfera. Logo, coloca-las como
16 No Prefácio da edição traduzida pela Editora 34, Otto Maria Carpeaux
afirma que a maioria dos leitores só conhece o ―Inferno‖ e diz que este,
―como um reflexo satírico – sátira trágica – do mundo real‖, torna-se mais
acessível aos leitores. 17 Também vale ressaltar a importância do número para Dante. Além do livro
ser dividido em três partes principais, o autor compõe em tercinas ou terza
rima em que, conforme explicita Otto Maria Carpeaux, ―a primeira linha rima
com a terceira e a segunda com as linhas 1 e 3 do terceto seguinte‖
(CARPEAUX, 2014, p10)
66
constituintes dos laureis dedicados ao infernal nada mais é do
que exaltar o seu valor.
A presença d‘As três sombras na obra do escultor francês
revela a importância da figura para a Comedia dantesca. Posto
que o Paraíso é o único espaço no qual a população não se
compõe com tal aparência e que Dante é um ser vivente,
entende-se que todas as demais personagens do poema são
sombras, inclusive Virgílio, o grande mestre de cerimônias
desta viagem. Embora sejam destituídas de carne, elas são
capazes de se movimentar, tal como Dante expressa, a
aproximação das sombras de um quarteto de poetas no Limbo –
Homero, Horário, Ovídio e Lucano - que estavam ali por terem
vivido antes de Cristo e, assim, não serem batizados: ―de
quatro grandes sombras vi a chegada‖ (Inferno IV, 83). Também
mantém a memória e expressam sentimentos, como a ira de
FillipoArgenti, inimigo do protagonista, ao vê-lo: ―não há de
bom em sua memória, e eis/ por que é sua sombra aqui tão
furiosa‖ (Inferno VIII, 47-48). Ademais, a própria forma das
suas silhuetas se modifica de acordo com o pensamento que
nutrem. Esta mudança chama a atenção da personagem principal a
ponto de suscitar curiosidade: ―Ora abri a boca prontamente
pra/questionar: ―como pode ficar magro/ quem de alimento
precisão não há‖ (Purgatório XXV, 19-21).
Conforme visto, as personagens não são seres encarnados,
porém mantêm grande parte das habilidades dos viventes.
Considerando tais aspectos, uma questão a respeito da natureza
destes sujeitos se impõe, uma vez que somos impelidos a crer
na existência destas figuras que ora se assemelham com os
vivos – como o encontro de três espíritos que reconhecem a
origem de Dante por sua vestimenta e vão ao seu encontro:
―quando três sombras de sua companhia,/ correndo se afastaram,
que passava/ sob a chuva que eterna os suplica. (Inferno XVI,
4-6) – ora apresentam peculiaridades dos domínios do
sobrenatural como o abraço entre Dante e seu amigo Casella que
67
ao envolve-lo: ―Três vezes à sua volta as mãos juntei,/e
tantas volvi ao meu peito.‖ (Purgatório II, 80-81). A busca
pela origem dos seres diáfanos que povoam a Comedia se
justifica não apenas pela constituição majoritária dos entes
em questão no texto, mas também pelo fato de que, enquanto
leitores, somos guiados por uma sombra. Ela se torna um meio
de descoberta das esferas mais umbrosas do poema.
A composição de Virgílio como uma sombra é relevante para
a construção da obra. Já no primeiro Canto, onde há o encontro
entre os dois companheiros de viagem, Dante revela a aparição
de um ―vulto incerto‖ a quem, imediatamente, suplica
compadecimento: ―‘Tem piedade de mim‘, gritei-lhe então,/‘quem
quer que sejas, sombra ou homem certo‘‖. (Inferno I, 66). Em
seguida, o poeta latino esclarece que, naquele momento, já não
dispõe da natureza humana, porém ainda não declara a essência
diáfana que o compõe. Dante somente o reconhece após uma
exposição breve de sua biografia e, então, aceita a condução
até as proximidades do Paraíso. Se a personagem é um dos
elementos principais na constituição ficcional ou não-
ficcional de um texto, como afirma Anatol Rosenfeld, entende-
se que a estruturação de Virgílio em forma de um ―vulto
incerto‖ não é gratuita. É inegável a importância daquele que
descreve a descida aos domínios do infernal em Eneida e a
homenagem que Dante lhe presta ao atribuir tamanha
responsabilidade quando o incumbe da tarefa de indicar as
trilhas do mundo inferior.
No ensaio Dante e Virgílio, Erich Auerbach apresenta um
panorama amplo no qual demonstra ―a educação poética que
Virgílio representou para Dante‖ (AUERBACH, 2007, p.101). O
texto expõe aspectos relevantes para a escolha do latino como
uma das principais personagens da Comedia. O filólogo alemão
reconhece que o autor italiano traça um perfil biográfico do
poeta latino de uma forma tão esclarecedora que nenhuma
pesquisa mais erudita alcançaria. À luz do ensaio, entende-se
68
que ambos utilizam um legado imaginativo do passado para a
criação de suas obras mais conhecidas. Neste aspecto, Dante
encontra na voz de Virgílio a simplicidade necessária para a
constituição da linguagem, dos versos e da constituição de uma
poética cujas ideias não representam entraves para a poesia,
mas penetram a própria substância que a compõe. As doutrinas
deixam o aspecto dogmático e alegórico para adentrar nos
episódios narrados.
Além dos domínios poéticos, Auerbach indica o grande
ensinamento virgiliano a respeito da esfera infernal e do
espaço de purgação dos pecados. Vale lembrar que no livro VI
da Eneida, sob a representação de Virgílio, Eneias desce ao
mundo dos mortos. O desbravamento de tais estâncias demonstra
o conhecimento fecundo do poeta romano sobre o mundo ínfero.
Outro fator relevante que o ensaio aponta, é o fato do romano
encarnar os papeis de ―poeta do império e da missão romana‖ e
―profeta da renovação do mundo pelas mãos de Cristo‖, pois ele
acreditava na missão universal de Roma, razão pela qual narra
uma história que finca suas bases na providência divina e
desemboca na pax romana. Estes fatores justificam a escolha de
Virgílio para orientar Dante desde os mundos mais abissais até
o limiar do Paraíso. Esta sabedoria o qualifica a sair do
limbo para esta tarefa como interlocutor e guia do italiano em
seu empreendimento.
Uma vez apresentados alguns motivos pelos quais se elege
Virgílio como condutor dos ambientes mais umbrosos do poema,
volta-se a atenção para a composição desta figura. Afinal, o
escritor florentino elege uma silhueta incorpórea como
instrutor na maior parte do percurso da Comedia. É intrigante
o fato de que, enquanto representante da razão, Virgílio
figure de maneira insólita. Aquele que resgata Dante da ―selva
escura‖ atua como projeção de uma personalidade literária e
representante de um passado que inspira o protagonista. O
encontro com tal sombra se configura como o primeiro e mais
69
importante, entre muitos outros, no poema. Uma interpretação
livre nos permite entender que, enquanto leitores, também
aceitamos a personagem imaterial como guia do nosso percurso.
Desta maneira, demonstra-se que as escolhas regentes das ações
que nos levam à justa medida nem sempre provém de elementos
concretos e logicamente explicáveis. Elas também nascem do
impalpável: da poética que nos comove, do passado que nos
ensina, da vivencia que nos inspira, da experiência dialógica
do Eu e Tu.
Retornado à natureza do poeta latino, observa-se que, no
terceiro canto do Purgatório, ele está consciente da própria
condição. Conforme se sabe, diferente do âmbito infernal, o
ambiente em questão já é alumiado pelo Sol, pois a forma
montanhosa surge do mar e se ergue até o mais alto céu em
direção ao Paraíso. Assim, anunciada a aurora, os poetas vêem
a chegada de uma embarcação provinda da foz do rio Tibre e
Dante reconhece, entre os recém-chegados, a alma do seu amigo
Casella. Cônscio de que a memória e o canto do amigo não fora
tolhido em seu novo estado, o italiano lhe pede que entoe uma
canção. Todos se encantam e estão atentos àquelas notas, até
que Catão chama atenção daqueles que deveriam se apressar no
caminho em direção à esfera celeste. Diante da dispersão, o
protagonista decide se acercar do poeta que o acompanha.
Neste momento do poema, corrobora-se o fato de que
Virgílio estava a par de sua condição. Ante o espanto do seu
companheiro por se acreditar abandonado pelo mestre, quando
não encontra a projeção resultante do bloqueio de raios
solares, prontamente, o latino explica que já não dispõe da
matéria com a qual fazia sombra outrora. Após reprimir a falta
de confiança de seu seguidor, ele esclarece que o corpo que um
dia lhe pertenceu está enterrado em Nápoles, por isso, nada
diante dele se ensombra. Logo, entende-se que, sob um viés
racional, a sua nova constituição física é destituída de
solidez. Todavia, a falta de materialidade não impede a
70
afetação das condições e penas a que estão submetidos, pois
conforme afirma nos versos 31 e 32, são ―capazes corpos tais,
decidiu Deus,/ de sofrer fogo e gelo e penitência‖ (Purgatório
III, 31 -32). É imprescindível destacar que, após a exibição
das sensações a que estas figuras estão expostas, reitera-se
que não se sabe como isso se dá, pois é um fato atribuído ao
segredo divino: ―mas secretos dispôs os modos seus‖ ‖
(Purgatório III, 31 -32). Somente no canto XXV, apresenta-se
um pouco mais sobre a natureza da sombra.
Antes de perseguir a maneira pela qual se forma a
estrutura associada à alma, é fundamental trazer o contraponto
da sombra projetada pelo corpo de Dante. De maneira feliz e
influenciado pelo escrito dantesco e pelas pinturas que o
tomaram como inspiração, o historiador da arte Victor
Stoichita reitera a dimensão da ―sombra da carne‖18, ou seja, a
produção do duplo umbroso é um atributo essencial da matéria.
A demarcação da projeção formada devido ao bloqueio dos raios
solares reitera no poema a condição de vivente do poeta
italiano, além de, incorporar o conhecimento da perspectiva,
que estava em plena expansão na época renascentista, ao citar
a sua direção. Assim, quando diz ―O Sol, que atrás de mim via
chamejar, /rompido era, pra frente, na figura/ de seus raios
que em mim vinham parar‖ (Purgatório III, 16-18), Dante
assinala a estrutura corpórea como interceptadora do luzente
e, consequentemente, corrobora a própria condição do ser
encarnado. No canto V, inclusive, algumas almas o identificam
como vivente a partir do jogo entre luz e sombra: ―uma gritou:
‗Vê que não alumia/ à esquerda, o sol, daquele, o
acompanhante, / que é como vivo que se evidencia‘‖ (Purgatório
V, 4-6).
A silhueta umbrosa que se conecta a Dante sob a luz solar
é a fonte de identificação de sua natureza e a garantia de que
18 Presente no verso 66 do Canto XIX do Paraíso: ―ou é, da carne, a sombra
ou o veneno‖ (Paraíso XIX, 66).
71
a viagem ao mundo ínfero não lhe roubara o corpo que o
constitui. Em relação à natureza de Virgílio, a explicação só
será exibida no canto XXV pela figura de Estácio. Após o
questionamento de Dante sobre o emagrecimento da alma dos
gulosos que ali habitam, já que não carecem de alimentos,
convoca-se o autor de Tebaida para esclarecer a dúvida sobre a
perda e ganho de dimensão das estruturas anímicas. Ele começa
a explanação a partir da composição originária do homem,
continua com a infusão de um ―novo espírito‖ e expõe, em
seguida, que a alma ganha nova forma ao cabo de sua vida de
acordo com o lugar para o qual se mova. Conforme o próprio
poeta apresenta no verso 101 e 102, ― a alma é chamada sombra;
arranja após/como o da vista, todo outro sentido‖ (Purgatório
XXV, 101-102). Portanto, observa-se que, a partir deste
evento, há uma descrição da formação da sombra e, assim sendo,
das personagens não-viventes que habitam as esferas inferiores
ao Paraíso.
Seguindo as trilhas do poema, entende-se que o homem se
compõe tanto de corpo quanto de alma. Logo, é fundamental
conhecer ambas as formações com o fim de não restringir a
compreensão apenas por uma de suas vias. Acredita-se
conseguir, desta maneira, uma explicação de como se constitui
a alma após a separação da matéria com a qual se relaciona. O
primeiro acesso que Estácio indica se inscreve nos domínios do
sanguíneo, pois afirma que o sangue perfeito, não consumido
pelas veias, permanece no coração e começa a ganhar forma
humana através da virtude formativa. Ele se modifica
estruturalmente, sofre nova depuração, desce para os órgãos
genitais masculinos e verte para um vaso natural onde se
mescla com o sangue feminino. O poeta destaca a disposição com
a qual ambos se acolhem: o feminino se submete à ação ativa do
masculino, visto que ele contém a virtude formativa do
coração, tal como assinala Anna Maria ChiavacciLeonardi, que
comenta a edição italiana da Mondadori.
72
Uma vez unidos, forma-se um coágulo que ganha vida após a
ação de uma matéria sobre a outra. A virtude ativa é, então,
feita alma, tal como a das plantas. Porém, o processo
constitutivo destas se interrompe neste estágio, diferente do
homem cuja formação ainda percorre outras sendas. Após os
processos descritos, a matéria inicial ganha movimento e
percepção de modo que começa a se organizar de acordo com as
potências daquela semente. Entre contrações e dilatações, a
virtude provinda do coração do progenitor se expande e a
natureza gera vida nos membros em criação. Contudo, ainda não
é visível como o animal se imbui de racionalidade. Estácio
indica que homens sábios já foram traídos por esta questão,
como Averrois, cuja crença orbitava em torno da separação
entre alma e intelecto pela inexistência de um órgão que o
assumisse. O poeta da Roma Antiga, por sua vez, esclarece o
que ele nomeia como ―a verdade final‖, na qual se compreende
que, depois da constituição do cérebro, o Criador lhe infunde
um novo espírito.
A formação de uma alma inteira é composta pela fusão da
arte da natureza com o espírito repleto de virtude concedido
por Deus. Ainda à luz de ChiavacciLeonardi, concebe-se a
oferta divina como a alma intelectiva. Em seu comentário sobre
a obra, a pesquisadora destaca o percurso anímico na formação
do homem de acordo com o poema dantesco: ―a virtude ativa
própria do sêmen paterno que se tornou alma, primeiro
vegetativa e depois sensitiva, e que é naquele momento forma
ou ato do corpo; a alma intelectiva a assume em si‖ (CHIAVACCI
LEONARDI, 1991, p.558). Portanto, a composição integral da
alma se faz a partir dos três traços mencionados: o
vegetativo, o sensitivo e o intelectivo. A partir de então,
ela lhe atribui não apenas vida e sensações, mas também a
capacidade de se voltar para si, própria da reflexão.
Apresentadas as etapas diversas da formação do homem,
Estácio passa à elucidação mais precisa sobre o nascimento da
73
sombra após a sua morte. Através da figura de Laquésis, uma
das moiras responsáveis pelo fio da vida, há uma introdução
sobre o destino e as faculdades da alma após a dissociação do
corpo. Indica-se que a privação das forças corporais aguça
determinadas potências, como memória, inteligência e vontade.
Movida por uma influência divina, a alma cai em uma das
margens do rio onde conhecerá o próprio destino, ou seja, do
Aqueronte ou Tibre, cujas águas a encaminham, respectivamente,
para o Inferno ou Purgatório. Designada ao lugar de sua
morada, a virtude formativa raia em seu entorno do mesmo modo
que o fez na formação do corpo com o qual viveu e o ar do
local para o qual a alma se deslocou lhe imprime virtualmente
a silhueta que a modela. Assim, há uma manutenção da aparência
física que o compunha e a inscrição de uma aura que a
circunscreve.
Dante compara a nova forma à chama que acompanha o fogo.
Vale lembrar que, de acordo com as ciências naturais, o fogo
não possui matéria. Ele consiste em uma forma de energia e a
chama resulta do composto de luz e calor proveniente da
combustão. Portanto, a flama representa o domínio visível de
um processo físico-químico capaz de gerar luz e calor. Ela é
responsável por traçar contorno naquilo que, até então,
manifesta-se como força imperceptível aos olhos. Segundo
Estácio, depois da morte, a alma é chamada sombra e, com seu
novo formato, ainda é possível falar, rir, chorar; ela figura
os sentimentos que acometem os indivíduos e possibilita que se
exprimam tanto no Inferno quanto no Purgatório. Conforme
expressa ao fim de sua explanação: ―Segundo um sentimento nos
apresa, / nossa sombra o figura, e esta é a razão /que agora
vai sanar a tua estranheza‖ (Purgatório XXV, 106-108). O
formato representa uma aparência do corpo de outrora e, como a
chama, dá visibilidade a uma determinada força que sobrevive
após a disjunção do físico.
74
De acordo com a explicação do poeta, a sombra se configura
como uma estrutura anímica que habita as esferas inferiores ao
Paraíso. Quando ocorre a separação entre corpo e alma, o
primeiro – desprovido da energia vital – é separado da
estrutura social através do sepultamento ou da incineração.
Basta lembrar que, conforme já apresentado, ainda no terceiro
canto do purgatório Virgílio declara que o corpo físico com o
qual projetava sombra está enterrado em Nápoles. Por sua vez,
a alma cujo destino não é o mais alto céu segue para o rio que
a encaminhará ao lugar onde sofrerá as suas penas. Apesar de
ser visível e sensível, ela é incorpórea, o que justifica o
reconhecimento daqueles com quem Dante se relacionou em vida e
os suplícios resultantes de suas punições.
Vale dizer que a representação da alma como sombra não é
exclusividade da Comedia dantesca. Dois dos seus antecessores
na arte literária, Homero e Virgílio nos conduzem em seus
poemas épicos à descida ao mundo dos mortos e também propiciam
o encontro do leitor com este perfil de personagem.
NaOdisseia, notadamente nos cantos X e XI, acompanha-se a
descida de Odisseu ao Hades para consultar Tirésias sobre o
retorno à Ítaca. Por sua vez, naEneida, a aventura de Eneias
se justifica pelo encontro com o seu pai que lhe revelará
alguns dos seus destinos. Os herois mencionados, da mesma
maneira que Dante, não apenas percorrem a morada das almas,
mas também se comunicam com os habitantes e, inclusive,
recebem predições acerca do destino que lhes aguarda19. A
partir dos textos citados, nota-se que as sombras consistem em
importantes instrumentos de descoberta.
Retornando às características da figura em análise,
lembra-se que os traços de intangibilidade, visibilidade e
19A dissertação do pesquisador brasileiro Roosevelt Araujo da Rocha Junior
intitulada O Mundo das Sombras em Homero e Virgílio: Complexidades e
Intertextualidades apresenta um panorama amplo da viagem de Homero e Eneias
pelo mundo dos mortos. No capítulo nomeado ―Os sentidos das comunicações
com o mundo dos mortos‖ se encontram mais detalhes sobre os motivos pelos
quais ambos acessam este espaço.
75
sensibilidade também são notáveis nas epopeias de Homero e de
Virgílio. Quando se lança para abraçar a mãe no Hades, Odisseu
fracassa por três vezes, porque a cada tentativa ela escapa de
seus braços. Frustrado pela impossibilidade de afagá-la, o
herói manifesta: ―Mas três vezes, das minhas mãos, semelhante
a uma sombra ou mesmo a um sonho, / Voou: e uma dor muito
aguda surgiu no meu coração‖ (Odisseia XI, 207-208). Nota-se
que há uma comparação do corpo diáfano com uma sombra e com um
sonho, pois, apesar do perfil permitir o reconhecimento de tal
aparência, a inexistência de matéria impede a interação física
entre o vivente e a alma daquele com o qual se encontra. Após
o evento, Anticleia lhe explica o que acontece com os homens
depois da morte e esclarece que os corpos não são mais
sustentados por carnes e músculos e a alma se move pelo ar.
Entre os versos 218 a 222 do capítulo 11, encontram-se as suas
palavras:
Mas esta é a regra para os mortais quando se morre:
Não mais carnes e ossos os músculos sustentam,
Mas esses a força vigorosa do fogo brilhante
Submete, depois que primeiro a vida deixou os ossos
brancos,
E a alma, adejando, como um sonho voa. (HOMERO, 218-222)
De igual maneira, no início da descida para as terras
abissais, o personagem construído por Virgílio saca a espada
para se proteger das sombras em giro que o cercavam.
Providencialmente, Sibila o adverte sobre a natureza
fantasmagórica e que qualquer tentativa de levantar a espada
contra os vultos seria malograda, porque espetaria o vazio.
Mais uma vez, corrobora-se o caráter impalpável dos habitantes
do mundo dos mortos. Esta intangibilidade também é comprovável
no encontro de Eneias com o pai, porque, da mesma forma que
Odisseu, ao tentar abraça-lo por três vezes, o corpo lhe
escapa das mãos, tal como vemos nos seguintes versos: ―Três
vezes tenta cingi-lo nos braços; três vezes a sombra/
inanemente apertada das mãos se lhe escapa, tal como/ aura
76
ligeira ao passar ou o roçar ao de leve de um sonho‖20 (Eneida
VI, 700-702).
É importante assinalar que tanto a mãe de Odisseu quanto o
pai de Eneias são representados, respectivamente, por Homero e
Virgílio, em comparação com as sombras e o sonho. Não há
referência de que eles sejam sombras (umbras), mas sim uma
indicação de que a estrutura que os compõe se assemelha a
estas. Porém, o evento citado em que Eneias empenha a espada
contra os vultos que estão ao seu redor, é seguido pela
apresentação dos monstros, entre os quais Briareu de cem
braços e Gerião de três corpos. Os fantasmas aos que temia são
designados sombras, como se vê nos versos a seguir. O realce
ao uso do termo se justifica pelo fato de que na Eneida, por
exemplo, o uso do vocábulo sombra em correlação com o original
umbra se encontra nos trechos anteriores ―às moradas das almas
felizes, sem manchas‖ (Eneida VI, 640), o que conduz a
associação semântica do vocábulo aos habitantes das esferas
mais obscuras.
Eis que, de medo tornado, da espada o caudilho troiano
saca, e de ponta acomete os mais próximos vultos de em
torno.
Não fosse a sábia Sibila adverti-lo de que eram
fantasmas
aquelas sombras em giro, por certo ele houvera esgrimido
sem resultado nenhum esgrimar o vazio21. (ENEIDA VI, 290-
294)
Assim, seguindo a explicação do genitor do mítico herói
troiano, após a morte, todos padecem como forma de expurgar as
mazelas e vícios trazidos na alma decorrente do convívio com o
corpo terreno. Separada da matéria na qual se prende em vida,
a alma enfrenta as penas dos crimes cometidos e tem, ao menos,
duas escolhas: expor-se ao vento cego ou se atirar no abismo
20―Ter conatus ibi collo dare brachia circum, / ter frustra comprensa manus
effugit imago, / par leuibus uentis uolucrique simílima somno.‖ (VIRGILIO,
2014, p. 424) 21 ―Corripit hic súbita trepidus formidine ferrum/ Aeneas strictamque aciem
uenientibus offert,/ et, ni docta comes tênues sine corpore uitas/ admoneat
uolitare caua sub imagine formae, irruat et frustra ferro diuerberet
umbras.‖ (VIRGILIO, 2014, p.394)
77
para que haja a purificação de suas máculas no fogo
implacável. O pai de Eneias expõe que todos os presentes nos
Campos Elísios sofreram outrora, mas depois alcançaram este
lugar a que poucos tem acesso. O trecho comprova a manutenção
da sensibilidade na estrutura anímica, o sofrimento
experimentado como uma herança deixada pelo corpo e revela que
poucos serão imaculados. Logo, a maioria traz o suplício da
experiência terrena. Os seguintes versos corroboram as
afirmativas:
Nem mesmo quando no dia postremo despede-se a vida,
perdem de todo as mazelas e vícios do corpo terreno,
só de misérias composto e que na alma por força se
apegam
por modo estranho, em virtude de longa e fatal
convivência.
Por isso, arrostam pesados castigos dos crimes vividos,
tanto suplícios! Alguns, pendurados no espaço, se expõem
aos ventos cegos; mais outros , jogados no abismo, se
alimpam
das malvadezas ou se purificam no fogo implacável.
(ENEIDA VI, 735-743)
O resgate dos poemas de Homero e Virgílio permite
comprovar o domínio anímico do vocábulo sombra em algumas
obras antecedentes à Comedia. Uma vez demonstrado o seu
vínculo com a esfera da alma, entende-se a necessidade de
compreender mais sobre as características da imagem em questão
no contexto mencionado. Conforme apresentado nos parágrafos
anteriores, ainda que separada do corpo, a alma é visível e
sensível. Além disso, interage com os viventes de forma que
compartilham lembranças, discorrem sobre a condição em que se
encontram, revelam eventos futuros e elucidam questões ainda
nebulosas para aqueles que estão vivos. Estas considerações
provêm da leitura dos textos, mas visando a uma apreciação
mais aprofundada sobre os traços da dimensão anímica, propõe-
se o cotejo com o texto Fédon, no qual se encontram as
argumentativas de Sócrates a favor da imortalidade da alma.
O diálogo consiste na narrativa de Fédon a Equécrates
sobre os últimos momentos do filósofo precedentes a sua
execução. Antes de beber a cicuta, Sócrates explica a alguns
78
dos seus seguidores, especialmente a Cebes e a Símias, o
motivo pelo qual um filósofo não se revolta contra a morte.
Visando a este fim, perpassa temas diversos, como a relação
entre alma e corpo e o destino da primeira após a separação da
matéria, bem como a sua composição. A configuração do Hades e
o retorno da alma à vida também estão presentes na elucidação.
Embora seja um diálogo curto, contém gérmens de pensamento
fundamentais sobre a concepção do elemento anímico na
Antiguidade grega. Por isso, o resgate da explanação socrática
é relevante para a presente análise.
Segundo o pensador grego, quando busca a sabedoria, o
filósofo se inclina para os interesses da alma. Em suas
imperfeições sensoriais e necessidades próprias, o corpo se
constitui como um entrave para o caminho em direção ao
conhecimento puro. Assim, continuamente, aquele que persegue a
verdade se aparta da matéria almejando o encontro com as
ideias mais elevadas, motivo pelo qual o filósofo se encontra
em pleno exercício para esta ruptura com os aspectos terrenos.
Logo, enquanto momento de libertação da estrutura física, a
morte compreende um evento feliz, na medida em que permite uma
maior proximidade do seu objeto de desejo. Lutar contra esta
condição implicaria numa contradição a respeito dos próprios
anseios.
A elucidação sobre a relação e a separação entre o corpo e
a alma é um aspecto considerável para a nossa investigação.
Sócrates defende que no instante derradeiro o corpo perde suas
funções vitais e a alma se desprende deste sem se destruir, ao
contrário, ela se potencializa. Diferente dos primeiros
filósofos cuja crença residia na dissipação da alma após a
morte, ele sustenta a subsistência anímica com as atividades e
capacidades que lhe são próprias. Portanto, enquanto o corpo
compreende o âmbito do humano em seus desígnios do ―mortal,
multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a
decompor-se, ao que jamais permanece idêntico‖ (PLATÃO, 1972,
79
p.90), a alma se associa ao divino, tendo em vista que
equivale ao ―imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que
tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do
mesmo modo identidade‖ (PLATÃO,1992,p.90).
Esta comparação sustenta a possibilidade do anímico
perdurar mesmo após a degeneração da matéria. Recorrendo a
teoria dos contrários, na qual se pressupõe que toda coisa
nasce senão de seu próprio oposto, o filósofo defende a
existência de um lugar invisível que se opõe ao visível onde
as almas estão quando não povoam o mundo manifesto dos
viventes. No desenlace com o corpo, a alma segue para o Hades
– também conhecido como reino das sombras – onde ganha um
destino compatível à conduta que manteve em vida. Assim sendo,
sustenta-se a tese de preexistência e subsistência da alma,
uma vez que purificada retorna à vida através de um corpo e
após o perecimento do instrumento de desvelamento do mundo se
mantém indestrutível.
A leitura do diálogo sinaliza a necessidade de cultivar os
aspectos da alma, uma vez que esta é a que se encontra em
constante deslocamento entre os domínios do visível e do
invisível. Vale lembrar que alguns comentadores da obra
atribuem a valoração do fator anímico ao Orfismo, doutrina
cuja defesa orbita em torno da presença de um elemento divino
no homem conectado a um eu mais profundo que transcende à
estrutura corporal. Acredita-se que este sistema de crenças é
responsável por impulsionar o cuidado com o âmbito individual
da existência, tendo em vista que ele também contém em si um
componente deificador. Em contraponto às práticas gregas em
vigor, impulsiona uma relação mais participativa entre o homem
e o destino do componente que se conserva após a sua morte.
No rastro do âmbito individual, retornamos à questão da
figuração de tais personagens na Comedia. Enquanto elemento
anímico, a sombra se constitui como um elemento em si. Isto é,
a aparição destas personagens no poema épico mencionado
80
independe da associação a um corpo. Embora se assemelhem à
estrutura física que habitaram outrora – pois há um
reconhecimento de suas identidades – não há qualquer sujeição
entre as partes. No contexto em questão, as sombras se
caracterizam pela imaterialidade, porém as capacidades de
comunicação, movimento e sensibilidade se mantém intactas.
Ademais, preservam a memória, o desejo e estão aptas a
visualizar o futuro, o que vimos anteriormente com as
previsões da mão de Odisseu e o pai de Eneias e também se
corrobora com a fala de Farinata no Canto X do Inferno da obra
dantesca: ― ‗Nós vemos, como os que tem frouxa luz‘/respondeu,
‗as coisas que mais longe estão, / tão que ainda em nós a suma
lei reluz;‖22 (Inferno X, 100-103).
A respeito do constituinte temporal que as abarca, nota-se
a permanência destas figuras, à exceção daquelas que alcançam
o Paraíso, pois neste espaço de pureza se tornam lumi, em
referência ao brilho intenso que emanam. Com base no diálogo
Fédon, de Sócrates, acredita-se na imortalidade de tais
agentes, porque ainda que ressurjam em outro corpo ou se
transformem em luz, há um componente essencial na própria
constituição destas formas que é indissolúvel. Elas não somem
com o deitar do corpo, ao contrário, livres da matéria, aguçam
as próprias potências. Portanto, não há qualquer tensão a
respeito da sobrevivência das sombras no decorrer das ações,
principalmente no cumprimento de suas penas. No Inferno, assim
como no mito de Prometeu, o castigo se prolonga por toda a
eternidade sem a esperança de transcendê-lo através da morte,
afinal, os condenados já não usufruem da energia vital e as
suas faltas não são passíveis de correção. Já no Purgatório, a
penúria se prolonga até a depuração dos pecados cometidos em
22 Nos comentários da tradução realizada pela Editora 34, explica-se que a
―frouxa luz‖ se refere aos que sofrem de presbiopia, ou seja, pessoas que
enxergam bem de longe, mas não de perto. Farinata inaugura com esta fala o
conjunto de nove versos, que se estendem do 100 ao 108, que esclarecem a
faculdade de previsão das sombras sobre o mundo dos viventes, mas a
impossibilidade de saber sobre o presente.
81
vida. Ao fim, estão plenamente purificadas, alcançam os
círculos da esfera celeste.
No texto Dante: poeta do mundo secular, Erich Auerbach
enfatiza que o poema do florentino não defende o retorno
anímico em outros corpos. Diferente do destino das almas
descrito por Anquises no sexto livro da Eneida, em que há um
regresso à existência terrena após a passagem pelo rio Letes23,
as personagens de Dante concentram em si as experiências de
uma única vida ou, com as palavras do crítico alemão,
representam ― a soma delas mesmas‖ (AUERBACH, 1997, p.116). O
ingresso no mundo que sucede à jornada terrestre nada mais é
do que a resultante daquilo que se fez até o momento
derradeiro. Neste Outro mundo, como nomeia Auerbach, a
inserção nos domínios do invisível depende de forma direta da
postura que o indivíduo assume em vida. Portanto, é
fundamental que os dias na Terra sejam permeados pelos valores
divinos com o fim de alcançar a esfera mais nobre do céu, pois
eles estão inscritos na finitude. Cito o trecho em que se
assinala a importância de manter a crença da singularidade da
vivência terrestre na Comedia:
[...] a transmigração destrói tanto o drama cristão de
um único termo de vida na terra, no qual a decisão tem
de ser tomada, e a inelutável unidade da personalidade,
a forma e destino comuns à alma e ao corpo, atestadas na
doutrina da ressurreição. (AUERBACH, 1997, p,113-114)
O aspecto de continuidade o que se vivera é um ponto
crucial para a relação que se estabelece entre Dante e os
perfis sombrios. Uma vez que preservam a memória do tempo em
que dispuseram em vida, o contato e a troca de informações
entre as partes é frequente. Ainda que, principalmente no
Inferno, haja uma atmosfera impregnada de castigos e lamentos,
a aparição destas figuras não é veículo de pavor. No poema em
análise, as sombras não são utilizadas esteticamente como um
23 ―Então, as almas, mil anos passados na roda do tempo,/ inumeráveis, um
deus as convoca às ribeiras do Letes,/ para, de tudo esquecidas, ao mundo
de cima voltarem/ e novamente ingressarem nas formas da vida terrena‖
(Eneida VI, 748-751)
82
meio de inserir um ambiente de terror. Enquanto agentes, elas
são responsáveis pela narração de inúmeros episódios e feitos.
Na figura de Virgílio condensam a expressão da imagem como um
guia hábil dos círculos mais umbrosos que as acolhem. Ainda à
luz de Auerbach, concorda-se com a afirmação de que as almas
dantescas ―não são defuntos, são, ao contrário, os únicos
viventes verdadeiros (AUERBACH, 1997, p.167).
Ao longo da Comedia, verifica-se a centralidade da
comunicação na atuação de tais personagens, seja com o vivente
seja com seu semelhante, quando interagem, respectivamente,
com Dante e Virgílio. Durante a trajetória do poeta
florentino, é notória a quantidade de diálogos que ele
estabelece com as sombras, o que nos provoca a caracterizar a
obra como uma lírica de encontros, sendo o mais esperado
aquele que o poeta terá com Beatriz ao fim de sua viagem. Vez
ou outra também há menção a suplícios e querelas que remetem a
falas dos penitentes consigo e captam a atenção do leitor na
medida em que veiculam esteticamente o sofrimento que
experimentam, como na imagem penosa da entrada do lugar onde
todos devem deixar a esperança ao entrar:
Gritos, suspiros, prantos lá encontrei
que ecoavam no espaço sem estrelas,
pelo que no começo até chorei.
Diversas línguas, hórridas querelas
brados de mágoa, irrupções de ira
com estalar de mãos em suas sequelas
(Inferno III, 22-27)
A interlocução com figuras históricas, míticas ou de
homens comuns, que aparecem em forma de sombra, propicia ao
leitor um conhecimento mais abrangente dos eventos que
permeiam a memória da sociedade ocidental e a própria vida de
Dante. Elucida-se a afirmação com a presença no Inferno de
amigos do poeta, como seu mestre BrunettoLatini, no Canto XV;
inimigos, como FilippoArgenti que lhe aparece no Canto VIII;
conhecidos, como o casal de amantes Paolo e Francesca
assassinados pelo marido daquela, representados no Canto V;
83
mitos como a Medusa presente no Canto IX; homens da igreja,
como o Papa Nicolau III no canto XIX. Também se destacam os
poetas e filósofos já mencionados que se encontram no Limbo.
Os episódios do poema se desenvolvem através da interação com
estas figuras ou das explanações de Virgílio sobre tais
personalidades.
O centro da ação não se concentra em guerras e disputas,
mas na expectativa da chegada até aquela que suplica a
retirada do protagonista do estado de vulnerabilidade e a sua
recondução ao caminho da virtude. Ao longo do deslocamento,
brinda-se o leitor com uma série de aprendizados sobre os
aspectos mais sombrios e luzentes dos humanos. A pluralidade
de narrativas presentes no poema - principalmente as ditadas
pelas sombras – viabilizam o encontro com a experiência
daqueles que outrora usufruíram da vivência terrena e, onde
estão, colhem o fruto dos seus feitos, bons ou maus. Assim
como Dante, somos ouvintes da formação de um pensamento
marcado pelo deslocamento pendular entre os domínios da fé e
da razão.
A respeito do aspecto formal, é imprescindível recordar
que o autor da Comedia a escreve na linguagem popular num
período em que as obras produzidas na península itálica são
registradas em Latim. Quando escolhe o idioma vulgar em
detrimento do culto, torna acessível às camadas sociais
diversas os seus escritos e demonstra que a inserção do autor
na literatura não precisa estar submetida, necessariamente, às
normas impostas pela tradição. A iniciativa de alguns
escritores, entre os quais se encontra Dante, subverte o
modelo vigente, inaugura os pilares que sustentarão a língua
italiana posteriormente e eleva a fala das ruas para o âmbito
do literário. Desta forma, o autor se configura como um grande
facilitador do encontro do público com a sua obra e um
incentivador da apropriação e da autorização do popular pela
literatura.
84
Embora elabore um poema complexo em relação à estrutura e
ao conteúdo, eleger o vulgar como instrumento de sua escrita é
significativo em relação à recepção. No tratado
Devulgarieloquentia, no qual Dante discorre sobre a utilização
do vernáculo na poesia, encontra-se o apreço do autor pela
língua que está presente, desde a infância, no cotidiano do
povo itálico, em contraponto com o idioma artificial que exige
o aprendizado normativo de sua expressão. Através do registro
poético de uma língua que ele define como aquela que ―sem o
estudo de regras, aprendemos ao imitarmos nossas amas‖ (DANTE,
p.3), oferece visibilidade à linguagem que se mantinha à
sombra da ―gramática‖ cujo domínio não podemos aprender sem
―tempo e perseverança nos estudos‖ (DANTE, p.3). Assim como as
almas, a linguagem primeva subsiste independente do corpo das
palavras e traz em si a potência vital que as caracteriza.
Portanto, ao inscrevê-la, Dante permite às gerações futuras ir
ao encontro da silhueta gerada pela forma que se constituía
como um entrave para a sua plena expressão, o latim.
Em termos conclusivos, compreende-se que, através de uma
lírica que inscreve na literatura os signos de uma língua até
então à sombra do clássico, Dante propicia àquele que se
debruça sobre o poema acompanhá-lo na viagem que lhe permite
rever a sua amada e reencontrar o caminho da virtude. Através
das terzas rimas, este grande autor representa o contato com o
mais essencial do humano, em suas falhas e qualidades, por
meio de personagens desprovidos de materialidade, mas repletos
de tons existenciais que dão vida a uma lírica de encontros
com o inferno, o purgatório e o paraíso que cada um possui
dentro de si. Ao fim do livro, fica o convite para encontrar a
sombra que nos resgatará da selva escura e nos encaminhará ao
encontro de alguma sublimação ou salvação, seja ela qual for.
85
3.2. Um passeio com Peter Schlemihl: quanto vale a sua sombra?
"Nós temos a arte a fim de não morrer de verdade"
(Friedrich Nietzsche)
O valor é o princípio de todas as coisas – diria um
moralista ou um capitalista, afinal, o sujeito da oração é
ambíguo em si. Esta seria a epígrafe de um romance escrito
pelo Mercado. No enredo, as personagens se enquadram entre
moedas, números e estatísticas e esquecem o que há de mais
característico na sua essência: a humanidade. Os tons de cinza
e o odor pútrido caracterizam o ambiente no qual as ações se
desenrolam e contrastam com o brilho de metais, pedras e óleos
concentrados em minúsculas ilhas vulcânicas prestes a
transbordar o gozo da destruição. As diferenças garantem a
tensão ficcional e o tempo segue os ponteiros de relógios que
derretem como os que figuram em A Persistência da Memória, de
Dalí. Cabe ao leitor, interpretá-la considerando toda a carga
semântica de negociação que o termo carrega da própria
etimologia.
Provavelmente, este livro se perderia entre tantos
originais sedentos por publicação que abarrotam caixas de e-
mail de editoras mundo afora sob a justificativa de excesso de
verossimilhança com o real. Porém, o autor sabe de sua
limitação diante de uma realidade que supera a ficção, em
escala crescente, vide a realidade dos navios negreiros e da
condição da população escravizada a partir do século XV e a
banalização do mal impulsionada pelas grandes Guerras Mundiais
no século XX. A escrita da História se revela muito mais
surpreendente do que as tramas imaginárias mais realistas dos
nossos tempos. Se a era medieval instaura a barbárie em nome
de Deus, o mundo moderno a justifica através dos meios que
conduzem à obtenção de capital e poder. Portanto, caro leitor,
acredito que um dos motivos pelos quais o autor do texto
86
ficcional sobre o qual nos debruçaremos neste capítulo recorre
ao fantástico é tentar se preservar da superação da realidade.
Se bem que, até pouco tempo atrás, acreditava-se que a
odisseia pelo espaço nada mais era do que uma ficção
científica.
Em A história maravilhosa de Peter Schlemihl, acompanha-se
a vida da personagem que aceita a oferta de um homem
enigmático que lhe propõe a concessão da bolsa de Fortunato,
da qual pode retirar todo o dinheiro que lhe apetece, em troca
de sua sombra. Aparentemente, o acordo parece bastante
vantajoso, pois o perfil umbroso resultante do bloqueio de luz
além de parecer imperceptível à maioria dos mortais não contém
em si qualquer valor ou utilidade. Independente das
características atribuídas a um indivíduo, a silhueta
enegrecida que o acompanha não abriga em seus domínios
qualquer distinção. A forma mantém apenas o contorno
bidimensional do seu dono preenchida por uma ausência cujo tom
escurecido contrasta com a claridade dos raios que não tiveram
contato com um obstáculo no seu trajeto e, por isso, o
circundam. É fiel seguidora do corpo ao qual se conecta, porém
diferente do senhor que forma e deforma sua dimensão, a sombra
não é capaz de interferir na matéria que a origina. Ademais,
embora seja visível e manipulável, não é possível captura-la
devido ao seu caráter imaterial. Portanto, a priori, não
consiste numa mercadoria valorosa e parece facilmente
dispensável.
Preliminarmente, a sombra é uma espécie de duplo que se
diferencia dos demais na relação que mantém com aquele que o
projeta, porque sua natureza plana e monocromática não lhe
permite refletir os traços que causam encantamento, semelhante
ao que ocorre em Mito de Narciso ou aversão, como em O Retrato
de Dorian Gray, de Oscar Wilde; tampouco tem os tributos para
substituir o original causando-lhe prejuízos psicológico e
social, como o presente no romance O Duplo, de
87
FiodorDostoiévski. Ainda que fosse possível desprendê-la do
corpo ao qual acompanha, sua estrutura incomum lhe impediria
uma vivência autônoma, tendo em vista que não se configura
como retrato, reflexo especular ou sósia. Considerando os
aspectos mencionados, ao que tudo indica, não há riscos
envolvidos na concessão da sombra, principalmente em troca de
uma bolsa que disponibiliza de maneira ilimitada um meio
conhecido para a aquisição de bens, serviços, entre outras
coisas: o dinheiro.
No episódio em que o narrador expõe a transação, observa-
se que o homem interessado pela compra aborda o protagonista
com polidez demonstrando cuidado e até certa submissão. Ele
demonstra ter experiência na arte de fazer negócios, vide as
frases utilizadas em discurso direto: ―permita-me dizê-lo‖ e
―perdoe-me a pretensão realmente ousada‖. Ainda na aproximação
mencionada, há uma exaltação das qualidades da silhueta
através de adjetivações traduzidas de forma superlativa como
―magnífica‖ e ―belíssima‖ que conferem distinção a um elemento
ordinário pertencente a todos os viventes. Através de uma
inclinação erótica em direção ao objeto de seu desejo, o homem
tenta persuadir Schlemihl a cedê-la e demonstra consciência do
caráter ousado de sua proposta. Elucido as afirmações, com as
palavras da personagem excêntrica:
―Durante o pouco tempo em que tive a felicidade de ficar
ao seu lado, eu pude, meu senhor — permita-me dizê-lo —
pude contemplar algumas vezes, com uma admiração
realmente indescritível, a belíssima sombra que o
senhor, com um certo ar de nobre desprezo e de pouco
caso, projeta ao sol — esta magnífica sombra aí a seus
pés. Perdoe-me a pretensão realmente ousada: Será que o
senhor não estaria talvez inclinado a ceder-me a sua
sombra?‖ (CHAMISSO, 1989, p.22)
As propriedades da sombra não a caracterizam como uma
mercadoria típica. À primeira vista, ela não satisfaz qualquer
necessidade humana nem de forma direta, como um meio de
subsistência ou fruição, nem de forma indireta, enquanto meio
88
de produção24. Isto é, em tese, seus domínios não compreendem
relevância para as esferas materiais e espirituais do homem.
No entanto, conforme visto no capítulo anterior, a projeção
resultante do bloqueio de raios de luz é uma prova da
materialidade de um indivíduo, ou seja, é a sombra de sua
carne. A inexistência do duplo suscita desconfiança, porque
revela a falta de solidez do corpo que se apresenta e,
consecutivamente, tende-se a vinculá-lo à esfera do
sobrenatural. Portanto, entende-se que, apesar da sombra não
consistir em utilidade prática, a sua presença é uma prova da
estrutura encarnada do homem. Estas considerações permitem
compreender o dilema que se impõe à Schlemihl.
Diante do pedido inusitado, o protagonista cogita a
loucura do homem, uma vez que um interesse tão inconcebível
não seria próprio a um indivíduo que goza plenamente da
faculdade racional: ―Ele deve ser louco, pensei‖ (ibidem,
p.22). Assim, a tomada da sombra só poderia se efetivar por
meio de um fenômeno mágico, pois não há qualquer comprovação
científica sobre a possibilidade de se desprender a projeção
de alguém. Tampouco há justificativa lógica para a
comercialização de tal figura. Tendo em vista os motivos
listados, o protagonista não hesita em questionar a saúde
mental do sujeito. Lembra-se, com base nos escritos de
Foucault em A história da loucura, que desde o século XV, na
Europa, coloca-se em xeque a sanidade daqueles que recorrem a
procedimentos sobrenaturais ou a qualquer forma que escape aos
círculos científicos da época. Conforme afirma o autor, ―a
loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão
(FOUCAULT, 1972, p. 39). Portanto, ela se estrutura nos
domínios obscuros pertencentes às esferas negativas que
obstruem os raios solares do intelecto.
24 Vale dizer que este é o conceito de mercadoria proposto por Marx nas
primeiras páginas d‘ O Capital.
89
Em seguida, observa-se que o protagonista questiona ao
estranho se a própria sombra que possui não lhe basta e
manifesta o cunho extravagante da situação, como se tentasse
inserir alguma lucidez no diálogo. Consciente de que a
concessão da silhueta não se realizará com facilidade, o homem
revela a existência de alguns objetos no seu bolso que podem
interessar ao interlocutor, mas confessa a desproporção de
valores existente entre qualquer uma das peças em relação ao
bem inestimável que almeja adquirir.
Neste ponto, reitera-se que a percepção de ambos é
divergente a respeito da cotação do perfil imaterial em jogo.
Enquanto o que a possui não vê qualquer relevância, o
interessado a enaltece de forma exagerada e a eleva à
categoria de mercadoria. O interessado em adquiri-la
prontamente retira os objetos do receptáculo e enumera os
pertences passíveis de troca e, como Thomas Mann esclarece no
posfácio da tradução brasileira editada pela Estação
Liberdade, todos os objetos compreendem coisas boas e
familiares presentes em sagas e contos de fadas. Esta é mais
uma tentativa de persuasão na medida em que aborda um universo
conhecido com o fim de lograr a proximidade necessária para
fechar o acordo. Além disso, corrobora o caráter mágico da
proposta, pois a aceitabilidade implicaria num ato de fé sobre
a funcionalidade do adquirido, pois consistem em elementos
sobrenaturais:25
―A raiz encantada (no original , ‗die Springwurzel‘)
abre todas as portas e faz saltar todas as fechaduras. O
martim-pescador (picusmartius)a conhece[...] A
mandrágora confere uma habilidade especial para se
encontrar tesouros. Os ‗centavos mágicos‘ são moedas de
cobre que, ao serem viradas sobre a palma da mão, fazem
surgir uma moeda de ouro. O ‗táler ladrão‘ sempre volta
às mãos do seu dono e traz consigo todas as moedas com
que entrou em contato. A ‗toalha do escudeiro‘ cobre-se
com todos os pratos que se desejar. O ‗duende
engarrafado‘ é um demônio aprisionado em uma garrafa que
25 Na nota do tradutor da mesma edição, indica-se que Chamisso dirige uma
carta ao irmão, responsável pela tradução do texto em francês, em 17 de
março de 1821 na qual explica o potencial de cada um dos objetos oferecidos
ao dono da sombra.
90
concede e faz tudo o que se desejar‖. (CHAMISSO, 1989,
p.23)
Consecutivamente à oferta, o dono da sombra narra o
espanto diante da menção do bolso daquele homem e do assombro
que lhe causara a percepção de tratá-lo de maneira íntima em
tão pouco tempo de conversa, como se observa na frase: ―À
recordação do bolso, fiquei novamente gelado e não sabia como
pude tê-lo chamado de ‗caro amigo‘ ― (CHAMISSO, 1989, p.22).
Por isso, antes de prosseguir no episódio em que se desenrola
a negociação, é fundamental retomar o início da novela para
que se compreenda o motivo de tamanha preocupação. Afinal, não
era a primeira vez que Schlemihl tivera contato com aquele
cidadão. O narrador nos fornece algumas informações prévias
que elucidam a condição de ambos os personagens e que se
tornam importantes na tensão que se estabelece entre a oferta
e a resposta. Vale dizer que a apresentação dos fatos se dá em
primeira pessoa, ou seja, através do ponto de vista do
protagonista. Enquanto leitores, somos afetados por suas
emoções e construímos o imaginário dos eventos a partir da
perspectiva que ele expõe. Portanto, a cautela é
imprescindível para manter o distanciamento necessário à
construção de uma crítica.
O panorama inicial da trama é a chegada de Peter Schlemihl
no porto de uma cidade. A descrição permite vislumbrar a cena
de um jovem com poucos recursos que se desloca de maneira
precária em busca de uma oportunidade na vida. Após se
acomodar em um dos locais mais modestos da cidade, sai com uma
carta de recomendação à procura de Thomas John, o homem em
quem depositava qualquer esperança. A chegada ao casarão nobre
é acompanhada apenas por um pedido de ajuda divina e o
encontro esperado só ocorre após um interrogatório obrigatório
para acessar àquele sujeito. Conforme o aventureiro descreve,
rapidamente ele o conhece pela sua ―robusta satisfação
interior‖ (Ibidem, p.18). Com um grupo de amigos que o
91
acompanha por um passeio pelo jardim, ele interrompe a
confraternização para receber o jovem, demonstra reconhecê-lo
por ser uma recomendação do irmão e pergunta, sem a intenção
de uma resposta, sobre o parente. Uma recepção cortês na forma
e vazia em conteúdo, pois ele não escuta o pobre diabo e
prossegue na exaltação de suas riquezas ao grupo.
O cenário descrito é marcado pela indiferença e
frivolidade. Porém, Schlemihl consegue a simpatia do indivíduo
depois de, tomado por ―um sentimento forte e transbordante‖,
concordar com a frase: ―Perdoem a expressão, mas quem não é
dono de pelo menos um milhão não passa de um patife‖ (Ibidem,
p.18). Inclusive consegue que o rico guarde a carta e prometa
uma conversa para dizer o que pensa a respeito disso. Cria-se
uma expectativa em torno da conversa que não se concretiza,
mas já está claro para o leitor a irrelevância de
argumentações sobre o postulado manifesto pelo ser abastado, o
que mais teria a adicionar sobre a questão? Em relação ao
protagonista, sabe-se que o mesmo não goza de muitos
proventos, logo há um estranhamento quando manifesta ―É pura
verdade‖ (Ibidem, p. 18) em acordo com a frase. É possível que
tenha sido uma estratégia de aproximação através de um afago
narcísico no ego do homem que, em princípio, funciona.
A proposição ilustra um pensamento corrente de uma
sociedade que inscreve seus valores ao redor do acúmulo de
capital. Além de representar um meio de aquisição de
mercadorias, o dinheiro é um distintivo social que qualifica
indivíduos a partir de sua posse. A fala do Sr. John – nome
típico inglês que remete ao pioneirismo desta sociedade no
mundo industrial e em sua dinâmica – demonstra que o valor de
um sujeito em tal cenário é diretamente proporcional à renda
que dispõe. Ele só começa a ter expressão no momento em que
possui, minimamente, um milhão, ou seja, a moeda fundamenta a
relação dos homens e os inscreve em representações sociais
determinadas. A moral já não se inscreve a partir das escolhas
92
efetuadas pelo ser e tampouco pela razão que o conduz, mas
pelo saldo monetário que detém.
O cenário descrito evidencia o contraste e a indiferença
típicos de uma sociedade dividida em classes, pois o burguês e
seu grupo gozam do dia no jardim em meio a gracejos e
superficialidades de maneira integrada; por sua vez, recém-
chegado numa embarcação lotada e em busca de uma oportunidade,
o jovem se sente alheio em meio ao grupo e se ocupa em
observar o entorno para tentar uma aproximação com quem pode
lhe garantir ocupação. A segunda vez que retoma a atenção do
anfitrião é durante a refeição oferecida aos convidados quando
o Sr. John faz questão de que Schlemihl se alimente, não pela
possibilidade de o jovem estar faminto, mas sim pela certeza
de que ele não dispôs, ao longo da viagem, dos tipos de
alimentos servidos naquele entardecer. Mais uma vez, não há
interlocução, pois antes de qualquer resposta, o senhor já se
entretinha com outra pessoa.
A centralidade em si e no grupo denunciam o individualismo
presente e a ausência de alteridade. Preocupados em atender os
próprios caprichos, não atentam para o extraordinário que
testemunham, porque um sujeito enigmático – até então
imperceptível para os demais, inclusive para o nosso
protagonista – retira do seu bolso um objeto diferente diante
de cada anseio expresso, independente da grandeza física ou
financeira que os constitui, como: um emplasto inglês, uma
luneta Dollond, um tapete turco banhado a ouro, uma barraca,
três enormes cavalos de montaria com sela e arreio. Da
humildade do jovem à generosidade mágica do senhor, nada no
entorno, ademais de si mesmos, é digno de atenção. Não há
questionamento a respeito da procedência dos artefatos que
atendem as suas necessidades e desejos, tampouco
reconhecimento – tanto em termos de identificação quanto de
gratidão – do estranho que os servia.
93
Peter Schlemihl é o único que observa com estranhamento os
feitos da figura descrita por ele como um homem prestativo
portador de uma casaca de tafetá cinza. Ciente da
impossibilidade lógica de retirar objetos de tal porte de um
bolso, ele se volta ao leitor com o fim de se solidarizar com
uma possível falta de credulidade na narrativa: ―Se eu mesmo
não lhe assegurasse ter visto tudo isso com meus próprios
olhos, você certamente não haveria de acreditar. ‖ (Ibidem,
p.21). O ambiente fantástico que se instaura tem nuances
sombrias, pois além do semblante pálido e das ações insólitas,
o gris de sua vestimenta guarda um comportamento submisso e
misterioso. Assombrado com a situação, o jovem decide ir
embora e retornar no dia seguinte para tentar a sorte outra
vez e a atmosfera obscura se complementa quando o ser
excêntrico o segue e lhe faz a proposta ousada que descrevemos
anteriormente: vender a própria sombra.
A partir das características citadas, que o narrador
oferece as propriedades necessárias para reconhecer o caráter
mefistofélico da figura. A aparição repentina e discreta, a
disponibilidade de servir às vaidades do outro e o aparente
desinteresse em vantagens são alguns exemplos que norteiam
esta identificação. Diferente da representação de Lúcifer na
Comedia, de Dante – que surge do gelo, tem três cabeças, voa
com asas sem penas e mastiga os pecadores – na sociedade
burguesa apresentada por Chamisso em sua novela, o diabo é uma
personagem com configuração humana e despida da figuração
monstruosa que herda do período medieval no Ocidente. Ele sai
do imaginário de um inferno distante e demonstra que o
representante do mal está em meio ao cotidiano, sempre
disposto a atender aos nossos desejos mais vaidosos. Porém, é
necessário lembrar que suas ações não são gratuitas, no
escambo moderno tudo e todos tem o seu preço. Embora se
apresente alinhado, submisso e gentil, mantém a aura sombria
94
na aproximação sensual capaz de fazer o mais íntegro dos
homens vacilar em seus princípios.
Os pactos diabólicos são justos na medida em que se
realizam sob um consentimento e pressupõem uma equivalência
entre as grandezas oferecidas pelos tratantes. Digo, é
necessário que as partes estejam de acordo na efetuação do
negócio, independente do trâmite acordado. Por isso, cada um é
responsável pela própria escolha e suas respectivas
consequências, visto que o realizado ocorre com permissão e em
troca de um benefício qualquer. Não faltam exemplos na
história da literatura que nos introduzam nesta atmosfera,
entre os quais se destaca Fausto, de Goethe, cuja troca da
alma se dá pelo conhecimento irrestrito.
Em A história maravilhosa de Peter Schlemihl, o primeiro
câmbio efetuado é entre a sombra do protagonista e uma bolsa
de Fortunato. Assim como assinalado no início do nosso texto,
a projeção do jovem é exaltada pelo homem de traje cinza,
apesar de, aparentemente, não conter em si valores
justificáveis. Por sua vez, a sacola – originalmente
Fortunatussäckel – consiste num recipiente do qual é possível
sacar todo o dinheiro desejado. É interessante destacar que,
antes de sugerir a sacola, apresenta-se também o chapéu de
Fortunato com o qual se pode realizar todos os desejos, mas
Schlemihl sucumbe logo após ouvir a proposta da fonte
inesgotável de moeda. Conforme expresso na novela: ―Sobreveio-
me uma vertigem e era como se ducados duplos brilhassem diante
dos meus olhos‖ (CHAMISSO, 1989, p. 23).
Com o fim de dissipar dúvidas e aguçar a ganância do
jovem, o senhor distinto sugere um teste antes do acordo.
Afinal, a transação se realiza entre algo visível – ainda que
imaterial – e um objeto mágico, o que suscita desconfiança em
relação à efetividade do seu funcionamento, tendo em vista a
natureza insólita que o compõe. Schlemihl coloca a mão no
saco, retira dez moedas por quatro vezes e fecha negócio: o
95
elemento fantástico lhe proporciona algo concreto com valor
ilimitado ao contrário do perfil umbroso, resultante de uma
lei física, cuja utilidade é imperceptível à primeira vista.
Como se tivesse ampla experiência no mercado de sombras, o ser
enigmático a desprende suavemente a partir da cabeça até os
pés, enrola e dobra com cuidado antes de guardá-la no bolso.
Ao fim, ambos se mostram bastante satisfeitos com a consumação
do trâmite.
Neste contexto, representa-se a sombra, inicialmente, em
seu aspecto denotativo: perfil umbroso resultante do bloqueio
dos raios de luz. No entanto, no momento em que a figura
mefistofélica a desprende para armazená-la no bolso,
configura-se um ato insólito responsável não só pela separação
entre a silhueta e seu dono, mas também pelo manuseio que
possibilita deixá-la sob a posse de outrem. Diferente das
sombras que povoam a Comedia dantesca e se constituem como um
elemento em si – personagens que são sombras – na novela de
Chamisso há uma desagregação entre a projeção e o jovem com o
seu consentimento. Ela se transforma numa mercadoria adquirida
em troca de uma bolsa de dinheiro. À primeira vista, parece um
bom negócio, mas a concessão do duplo tem consequências duras
para o protagonista.
Nota-se que a questão monetária se sobrepõe à
concretização dos desejos, porque Schlemihl não demonstra
qualquer reação diante da oferta do chapéu de Fortunato, mas
fica bastante exaltado com a possibilidade de deter a bolsa da
personagem do folclore germânico. Em O Capital, Marx expressa
o protagonismo do dinheiro nas relações de troca, pois em
termos qualitativos ―o dinheiro é desprovido de limites, isto
é, representante geral da riqueza material, pois pode trocar-
se diretamente por qualquer mercadoria‖ (MARX, 2013, p. 206).
A bolsa de Fortunato mantém não só o aspecto qualitativo do
seu ganho, mas também quantitativo, rompendo o que o filósofo
alemão chama de ―trabalho de Sísifo da acumulação‖, pois o
96
caráter infindável da oferta de moeda é simbolizado pela
própria sacola enquanto fonte de todo o tesouro. Ele congrega
o poder de aquisição de mercadoria, multiplicação do capital e
entesouramento em um único objeto.
O deslumbramento diante das vantagens imediatas concedidas
pela proposta impede a ponderação a respeito do valor daquilo
que Schlemihl renuncia. Logo que chega à cidade, num dia
ensolarado, é alertado por uma senhora: ―tome cuidado, o
senhor perdeu a sua sombra‖; em seguida, ainda em tom cordial,
a sentinela questiona: ―Onde o senhor deixou a sua sombra? ‖ e
algumas mulheres comentam ―Jesus! Maria! O pobre homem não tem
sombra!‖ (Ibidem, p.25). Porém, quando esbarra com algumas
crianças na Rua Larga, prontamente um dos meninos denuncia a
sua condição e as demais o praguejam e jogam lama contra ele
ao mesmo tempo em que dizem: ―pessoas decentes costumam levar
a sombra junto, quando saem ao sol‖. O protagonista constata a
percepção das pessoas diante de um indivíduo sem sombra e
decide, por isso, evitar passeios sob o Sol,
É interessante notar que, com o fim de se desvencilhar dos
dois discursos com acentos de prescrição – presente na fala da
primeira senhora e dos meninos – o novo dono da bolsa de
Fortunato lança algumas moedas. Através do dinheiro, há uma
tentativa de calar a expressão daqueles que lhe advertem sobre
a imprudência de sair sem sombra. A dúvida e a lástima não lhe
causam desconforto, mas o encontro com a presença do outro que
o confronta com a situação e evoca o valor de estar
acompanhado da silhueta umbrosa lhe é execrável. Em seu
íntimo, o homem não se incomoda com a ausência de projeção,
não há consequências diretas em não ter uma sombra para si. No
entanto, como Sartre afirma em Entre quatro paredes
(Huisclos), o inferno são os outros e, aos olhos dos demais, a
situação é tão assustadora que leva Schlemihl a fugir
rapidamente para a hospedaria velha na qual tinha deixado seus
97
pertences. No carro que o levava, teve o seguinte
pressentimento:
[...] da mesma forma como neste mundo o ouro pesa mais
do que os méritos e a virtude, à sombra concede-se um
valor superior ao do próprio ouro. E assim como outrora
eu sacrificara riquezas por uma consciência limpa, havia
agora entregado a sombra em troca de reles ouro. O que
iria ser de mim na Terra? (CHAMISSO, 1989, p. 26)
É evidente o paralelo entre a magnitude do ouro diante dos
valores morais em uma sociedade cujas relações comerciais e
sociais se delineiam em torno deste metal. Deve-se lembrar que
a afirmação do Sr. John no início da novela já comprova esta
relação. Além disso, considerando a reação alheia diante da
privação de sua sombra, o protagonista entende que o duplo
umbroso supera a grandeza do ouro. O dinheiro possibilita a
aquisição de todos os tipos de mercadorias e, como afirma
Marx, ―tudo, seja mercadoria ou não, transforma-se em
dinheiro‖ (MARX, 2013, p.205). Porém, é preciso lembrar que,
ainda que todas as coisas sejam comercializadas, algumas
contém em si atributos que superam qualquer valor de uso ou de
troca. O preço que se paga por convertê-las em produto é alto
e, muitas vezes, custa até a vida.
Ainda no trecho em destaque, Schlemihl revela que já
sacrificou riquezas para ter uma consciência limpa. Da mesma
maneira que o diabo e o desejo incitam o religioso à
transgressão que o levam para a selva escura e podem condená-
lo ao sofrimento eterno, o dinheiro é a tentação que provoca o
homem moderno a abandonar os princípios responsáveis pela
conduta que rege a sua liberdade. Apesar de manter a
integridade em outras ocasiões, o protagonista sucumbe uma
única vez e, por isso, sofre consequências severas. Resta o
lamento por vender algo tão precioso e de valor inestimável
por uma sacola fornecedora de metal, assim como a dúvida
frente aos acontecimentos futuros. Enquanto não sabe o que o
destino lhe prepara, encaminha-se para o hotel mais distinto
do local onde recebe um abraço apertado do desespero que o
98
leva a retirar inúmeras moedas da sacola até cansar e ser
acolhido pelos deuses da noite. Nesta parte da trama, descreve
uma das cenas mais elogiáveis da novela pelo contraste claro-
escuro entre o ruído reluzente do ouro e o vazio silencioso do
negrume que insistia em preencher a sua existência:
O que você pensa que fiz então? – Oh, meu caro Chamisso,
confessá-lo, mesmo a você, faz-me enrubescer. Tirei a
infeliz bolsa do meu peito e com uma espécie de cólera
que, tal como um incêndio voraz e crepitante, crescia
dentro de mim, fui tirando ouro, ouro, e ouro, e ouro, e
cada vez mais ouro, espalhava-o por sobre o chão, fazia-
o tilintar sob meus tacões e ia jogando cada vez mais
metal sobre o metal, saciando meu pobre coração naquele
brilho e naquele som‖ (CHAMISSO, 1989, p. 26)
Conforme se nota no episódio, o narrador-personagem se
dirige ao autor de forma envergonhada pela composição da cena.
A meta-referência não se restringe a este trecho. No parágrafo
em seguida, a criatura se volta ao criador no cenário de um
sonho como se fosse capaz de, por alguns instantes, trocar de
lugar com ele. À espreita pela porta do quarto de Adelbert von
Chamisso, Schlemihl observa o ambiente que ronda a sua
criação. A atmosfera remonta à exposição de Gaston Bachelard
em A chama de uma Vela sobre as sombras que povoam um quarto
quando o escritor acende o instrumento de iluminação. A
solidão se dissipa e o duplo formado o acompanha até o fim do
pavio ou até o momento em que ele mesmo decide assoprar o fogo
e se dissociar do mundo de silhuetas umbrosas que o circundam.
Ao modo das sombras, o protagonista apenas vislumbra e
contempla a morte daquele que imprime a sua presença na folha
de papel em branco. Em conjunto com o anterior, este parágrafo
ilustra uma das sequências de criação mais expressivas do
livro:
Então sonhei com você; era como se eu estivesse atrás da
porta envidraçada de seu pequeno quarto e o visse
sentado à sua mesa de trabalho, entre um esqueleto e um
feixe de plantas secas; à sua frente estavam abertos
volumes de Haller, Humbold e Linné, sobre o sofá havia
um volume de Goethe e o romance ―O Anel Mágico‖. Pousei
meus olhos sobre você, contemplando-o longamente, e a
cada coisa em seu quarto e depois a você novamente. Mas
99
você não se mexia, não respirava – estava morto.
(CHAMISSO, 1989, p.27)
Já desperto entre o montante do dinheiro, Schlemihl inicia
uma reação. Diante da impossibilidade de voltar todo o ouro
retirado para a sacola, decide armazená-lo no armário do hotel
e fazer dali a sua casa. O hoteleiro lhe indica um homem de
fisionomia sincera e cativante, como ele mesmo descreve,
chamado Bendel, que se torna um fiel escudeiro e confessor.
Com o fim de se desfazer da grande quantidade de moeda
acumulada, compra coisas valiosas e solicita vários serviços
como sapateiro e alfaiate, mas o volume não parecia diminuir.
Também tenta, mais uma vez, sair à público, porém o rechaço
dos transeuntes se repete e se destaca ―o desprezo altivo dos
homens, sobretudo dos gordos ou corpulentos, que projetavam
uma sombra imensa‖ (CHAMISSO, 1989, p.28).
Investidas vãs se sucedem na tentativa de reinserir a
personagem sem sombra na sociedade. Inicialmente, Schlemihl
envia Bendel à casa do Sr. John com o intuito de rastrear o
rumo do comprador da sua silhueta. No entanto, ainda que os
objetos que ele retirara do bolso naquele dia ainda estivessem
presentes na casa, ninguém lembra da figura enigmática
responsável pela sua aparição. A luneta, os cavalos, entre
outras coisas, tinham sido apropriadas à dinâmica da casa sem
que houvesse questionamentos sobre a sua procedência. Embora
não tenha tido êxito na visita, neste dia, seu criado fiel
relata que logo cedo, antes de sair em busca de alguma
informação sobre o paradeiro da sombra, um homem distinto o
abordou para dizer que voltaria em um ano para propor um novo
negócio a seu patrão. Ele não se identifica, mas informa a sua
partida para o mar em direção a ventos propícios do porto.
Prontamente, Schlemihl o reconhece pela descrição e manda
Bendel em sua busca no porto, mas - conforme previsto – não o
encontra entre barcos que saem para todas as partes do mundo.
100
De alguma maneira, a aparição sinaliza a leitores e
personagem uma possiblidade de reversão do ocorrido, ainda que
esteja prevista para um ano a contar daquele dia. A
convivência com a situação durante o período é inevitável, por
isso o protagonista não desiste de solucionar, mesmo que de
forma provisória, a falta de sua projeção. Então, a segunda
investida consiste em pagar um valor alto para o melhor pintor
da cidade criar uma sombra postiça e, com o fim de não
levantar suspeitas, diz ter viajado para a Rússia no inverno
onde sua sombra ficou congelada. O artista recusa o trabalho
sob a justificativa da ineficácia da ação, porque a natureza
do perfil criado se perderia ao menor movimento. Ademais,
critica Schlemihl por ter pouco apreço por sua sombra de
nascença e repete a frase proferida pelos meninos na primeira
vez que ele se expõe sem a sombra: ―Quem não tem sombra, que
não saia ao sol‖ (CHAMISSO, 1989, p.32) A repetição da frase
gera uma expectativa em relação a um tema no qual nos
debruçaremos mais adiante: as possibilidades da sombra
enquanto metáfora.
A terceira aposta através da qual Peter consegue conforto
é o uso da sombra de Bendel. O criado é maior e mais forte do
que ele e se ocupa de acompanha-lo em todas as partes à frente
ou ao seu lado de forma que acolhe as suas ausências. Assim,
Schlemihl retoma as andanças e, com o fim de alimentar a
própria vaidade, decide retornar à casa do Sr. John; conforme
expressa ―esta [a vaidade] é a parte do homem em que a âncora
encontra o terreno mais firme‖ (CHAMISSO, 1989, p.34). Em
oposição à postura que adotara e à falta de visibilidade de
outrora, agora a presença do homem é notada e todos reagem
positivamente às suas falas. Fanny, uma mulher bela presente
na outra ocasião, admite já conhecê-lo de um momento anterior
e ressalta que, desta vez, ele lhe chama atenção por ter
―espírito e inteligência‖. Novamente, é notória a associação
do dinheiro aos valores pessoais de um indivíduo e ao espaço
101
que ele merece ocupar em determinado ambiente. As posses de
Schlemihl eram a sombra necessária para lhe assegurar uma
posição de destaque em meios cujos valores fundamentam seus
pilares na propriedade do capital.
Todavia não demora para que Narciso se afogue na própria
ilusão. Em mais um de seus passeios, a bonança finda com o
surgimento da lua. O episódio se assemelha àquele vivido por
Dante quando a presença do sol no Purgatório denuncia a
privação de sombra de Virgílio. Aqui, a luz do luar surge com
a dissipação das nuvens – reiterando o caráter de desvelamento
da cena – e Fanny vê apenas a sua sombra refletida. O espanto
é de tal grandeza que a dama desfalece e os demais expressam
horror em relação ao que vivenciam. O confronto com a ausência
do perfil umbroso é motivo de assombro tanto para o
acompanhante de Virgílio quanto para a moça bela conduzida
pelo anti-heroi de Adelbert von Chamisso. Porém, a reação de
ambos diante do temor é totalmente distinta. Enquanto o poeta
latino expõe o motivo pelo qual não projeta mais uma sombra,
com o fim de tranquilizar e transmitir confiança ao seu
parceiro, aquele que a trocou por uma sacola de dinheiro foge
não apenas da casa, mas também das terras onde, em breve,
todos saberiam da existência de um homem sem sombra.
O contraste entre os eventos ressalta a diferença entre a
inserção do elemento umbroso na obra dos autores citados. Em
Dante, os raios solares não encontram o bloqueio material do
corpo encarnado para inscrever o perfil de sua projeção. Logo,
conclui-se que a natureza de Virgílio é diáfana, própria da
constituição animística, conforme expomos no capítulo anterior
através da explicação de Estácio. Isto é, o sol é o
instrumento de descoberta da ausência de sombra daquele ser.
Considerando o período em que se pressupõe a escrita da
Comedia, por volta do século XIV, entende-se a representação
da aparição da verdade acerca da natureza do poeta latino
através do aspecto solar, uma vez que tal componente luzente
102
se associa tanto à esfera divina – apresentada, por exemplo,
nas pinturas eclesiásticas da Idade Média – quanto à
científica, como um dos símbolos representativos do
conhecimento, como a designação ―iluminismo‖
Por sua vez, nos escritos de Adelbert von Chamisso o luar
é o responsável pela indicação da falta de sombra do
protagonista. O luzeiro dos domínios da noite revela o segredo
de Schlemihl que até então se oculta através da cortina negra
do céu noturno. Assim como a sociedade apresentada na
narrativa, cujos princípios se inscrevem nas entrelinhas, a
exiguidade de projeção se mescla à escuridão como um meio de
camuflagem; apenas um signo da noite é capaz de revelá-la.
Neste cenário, não há espaço para elucidações e a fuga do
protagonista se compara ao objeto que escapa diante da
possibilidade de apreensão. Fruto de uma produção artística
imersa na consolidação do mundo capitalista, especificamente
no século XIX, este trecho da obra do autor francês expressa
as ilusões inerentes às relações entrelaçadas pelas alianças
financeiras; elas nos ludibriam e fazem com que os melhores
sonhos se dissipem diante do encontro com a realidade.
Seja sob a luminescência do dia ou ao brilho da noite, a
impossibilidade de gerar sombra aguça o temor nos seres
viventes. Dante e Fanny não são os únicos a se assombrar
diante de tal circunstância. Mais adiante, já em terras
distantes com os dois únicos criados que o acompanham –
Bendel, responsável pela chegada na nova cidade, e Rascal cuja
tarefa era não deixar vestígios sobre o que acontecera na casa
do Sr. John - Schlemihl é confundido com o rei da Prússia,
que diziam viajar pelo país utilizando o nome de um conde. A
riqueza distribuída por aquelas terras faz com que o povo o
enalteça e, em sua recepção, conhece e se apaixona por uma
donzela. Mesmo após a aparição do rei verdadeiro, não há
desprezo pela figura de Peter, pois a abundância financeira é
o suficiente para consagrá-lo como alvo de exaltação daquele
103
povo, principalmente pelos pais de Mina que se orgulham de ter
a filha cortejada por um homem de muitas posses.
Ela se apaixona verdadeiramente por Peter e este, por sua
vez, sofre por saber que a sua condição atual pode afastá-lo
daquela por quem nutre o sentimento nobre. Ele está ciente de
que a quantidade infindável de moedas que dispõe não seria
suficiente para manter a moça ao seu lado, caso dessem falta
de sua sombra. Chegado o momento, a previsão se torna
realidade e a dor de ambos é tamanha, o que leva Schlemihl ao
desespero. Descrente das próprias palavras, insiste em
convencer aos demais da irrelevância de não se possuir uma
sombra e, questionado pelo pai da moça sobre como fez para
perdê-la, ele mente ao afirmar que um sujeito estúpido a
pisoteou com brutalidade e a danificou de modo que teve que
deixá-la no conserto. Diante da justificativa, o genitor da
donzela desolada lhe concede três dias para recuperar a
silhueta umbrosa.
A vaidade e o amor são temas levantados por Adelbert von
Chamisso através do comportamento de Schlemihl frente a
descoberta de Fanny e de Mina sobre a sua falta de sombra. O
vínculo com a primeira se funda no universo de coisas vãs onde
as ações se justificam pelo olhar do outro e pressupõem algum
reconhecimento ou admiração. Por isso, não há pesar na perda
de contato com a pessoa em si, apenas a tristeza de admitir a
repugnância daquela circunstância que nem mesmo o dinheiro é
capaz de sobrelevar. Porém, com a segunda há um envolvimento
amoroso verdadeiro cujo sentimento é alimentado no interior
daquele ser. Ao invés de se embasar no âmbito das aparências,
o amor se inscreve na essência humana e a separação entre os
envolvidos – em vida ou em morte - consiste num processo
doloroso como demonstram diversos personagens da literatura,
como Romeu e Julieta, por exemplo. Schlemihl não representaria
um cenário distinto, por isso, após a descoberta de seu
segredo, entra numa angústia profunda diante do futuro.
104
O processo de interiorização é intensificado após a
ruptura do relacionamento com Mina. O momento é propício para
a contraproposta do homem de casaca cinza que reaparece na
trama, não aceita a devolução da bolsa de Fortunato e oferece
a oportunidade de Schlemihl recuperar a sombra mediante a
assinatura de um papel, no qual se lê: ―Através desta minha
assinatura lego minha alma ao proprietário deste documento,
depois de sua separação natural do meu corpo‖ (CHAMISSO, 1989,
p.50). Porém, o comportamento do jovem se distingue bastante
em comparação à primeira negociação. Ainda que o homem de
casaca cinza mantenha uma capacidade de persuasão notável –
não somente ao apresentar os benefícios da recuperação da
silhueta, entre os tais, a retomada do compromisso com sua
amada, mas também ao expor a sombra ao seu dono – o
protagonista nega a realização de um novo acordo. Peter
demonstra vergonha e ódio do feito realizado com o ser
enigmático e lamenta quando o viu andando entre duas sombras,
entre estas a sua. Aquele que se identifica como uma espécie
de ―erudito e físico que, por suas artes exemplares só recebe
ingratidão de seus amigos‖ é expulso por Bendel, mas acredita
que, em outra oportunidade, terá êxito com tal proposta.
A tentativa de convencer o pobre homem de fechar o negócio
também considera as diferenças existentes entre a sombra e a
alma. Embora não se caracterize como uma estrutura sólida, a
projeção corpórea é visível. As situações apresentadas na
narrativa corroboram a importância da posse de uma sombra,
pois a sua privação causa assombro aos demais e diversos
prejuízos sociais àquele que não a detém. Em contraposição, a
alma é uma substância invisível ao olhar humano e, de certa
maneira, de difícil comprovação científica. O destino deste
elemento após a separação do corpo ainda é desconhecido e
tampouco se sabe sobre a existência de alguma utilidade de
seus domínios a partir da morte. Embora os religiosos prezem
pelo cultivo da estrutura anímica sob a justificativa de uma
105
continuidade futura em um ambiente que esteja de acordo com as
escolhas que o sujeito fez em vida, ainda não é possível
provar o que se configura com a alma a partir do suspiro
derradeiro. A figura mefistofélica fundamenta o seu discurso
através dos seguintes argumentos:
- E, se me permite perguntar, que tipo de coisa é afinal
a sua alma? O senhor já a viu?; e o que pensa fazer com
ela, quando estiver morto? Considere-se feliz por
encontrar, ainda em vida, um entusiasta que quer comprar
a herança dessa incógnita, dessa força galvânica ou
dessa atividade polarizadora – ou o que quer que seja
essa coisa estúpida –, pagando-lhe com algo real, isto
é, com sua sombra corpórea, através da qual o senhor
pode chegar à mão de sua amada e à realização de todos
os seus desejos. (CHAMISSO, 1989, p.51)
Se no primeiro acordo o dinheiro consiste num objeto de
cotação alta em oposição à sombra que parece irrelevante,
agora a forma umbrosa se define na esfera do perceptível –
portanto valoroso frente aos parâmetros da vida terrena – ao
passo que a alma, por seu caráter inapreensível, representa um
bem de menor relevância. No mercado diabolem, daquele que
divide, o âmbito do visível – do apresentável ao outro - é
avaliado como lucrativo e o seu oposto complementar, o
invisível, como parte do conjunto do que não é manifesto,
sofre depreciação. Estas polaridades exprimem um panorama
representativo da atmosfera presente em uma sociedade cuja
norma advoga a favor da reificação e mercantilização da vida.
Na ordem social descrita, há uma primazia do tato e da visão
no âmbito do sensível que designa uma escala de importância
decrescente entre as negociações de Schlemihl e o homem de
casaca cinza, na qual: dinheiro > sombra > alma.
Como ―forma de existência absoluta do valor de troca ou
mercadoria universal‖ (MARX, 2013, p. 209), o dinheiro se
impõe como grandeza absoluta nesta lógica. Porém, a sombra
oscila de cotação de acordo com as outras ofertas disponíveis
no trâmite. Ela é incorpórea, o que a desvaloriza diante de
objetos palpáveis aos quais é possível designar qualquer
utilidade, mesmo a mais banal como um peso de papel. Por outro
106
lado, além de visível, a sua aparição comprova a encarnação do
corpo do indivíduo que a projeta, demonstrando maior
credibilidade de existência do que a alma, pois, além de
intocável, a última é invisível. Na possibilidade de outra
transação, a alma pode se revalorizar devido à capacidade de
disponibilizar ação para a estrutura física do homem ou ao
significado que lhe é intrínseco no âmbito religioso. Esta
dinâmica revela os motivos pelos quais há uma variação no
valor de troca de cada uma que se efetiva de acordo com as
medidas sociais ou pessoais em vigência. A sombra, por
exemplo, sofre altas e baixas segundo o meio em que se insere
e os atores que a dispõem.
Neste momento da trama também é notória a dissociação
entre as figuras da sombra e da alma na obra de Chamisso. Uma
vez que a proposta do sujeito enigmático consiste na
recuperação da projeção mediante à entrega póstuma da
substância anímica, torna-se evidente que há uma diferenciação
entre os dois elementos na narrativa. Assim sendo, a imagem da
sombra em A história maravilhosa de Peter Schlemihl se
distingue daquela apresentada, anteriormente, na Comedia, de
Dante Alighieri. Enquanto a primeira se manifesta como prova
da vida, na medida em que se origina do bloqueio dos raios de
luz pela materialidade do corpo e se apresenta como componente
necessário à natureza vivente do sujeito ao qual se associa, a
segunda está nos domínios da morte, pois representa a forma
recebida pela alma dos faltosos após o findar da vida. Na obra
do autor francês, observa-se, inicialmente, o aspecto
denotativo do termo e, após a negociação, a ação insólita abre
o evento para possibilidades metafóricas diversas. Neste
contexto, o caráter fantástico se impõe, uma vez que há uma
desagregação da silhueta e do corpo capaz de gerá-la,
incutindo um status passivo ao duplo, porque sua apropriação
se dá tal como um objeto. Já no poema dantesco, a sombra
figura como agente, tendo em vista que as suas manifestações
107
consistem na constituição corpórea de personagens ativas nos
episódios das quais participam.
A configuração da sombra como elemento de câmbio propicia
interpretações diversas para o texto de acordo com a sua
recepção. Em La sombra enla literatura moderna, SabineHaupt
destaca três leituras críticas relevantes sobre a narrativa:
―a tensão entre individualidade e adaptação que se articula na
marginalidade de Schlemihl‖, ―a poetização do discurso das
ciências naturais‖ e a centralidade no ―mercantilismo e
capitalismo‖. A primeira discorre sobre a necessidade de
cultivar o valor moral do cidadão individual, a segunda se
justifica pelo interesse do escritor em apresentar em
linguagem literária os conhecimentos científicos da natureza e
a terceira, com a qual há maior identificação na presente
pesquisa, desenvolve-se a partir do diálogo simbólico entre a
sombra e o mercantilismo moderno presente no sistema econômico
capitalista. A partir da análise do texto, Haupt estabelece um
paralelo bastante interessante entre processos econômicos e
simbólicos:
Da mesma maneira que a sombra não tem valor próprio no
trato com o diabo, ou seja, é puro contravalor ou
equivalência, ela tampouco tem significado próprio no
âmbito semiótico simbólico. Neste último, seu valor é
pura equivalência, algumas vezes equivale a
―pertencimento social‖ e outras vezes à ―alma‖. E talvez
exagerando um pouco, teoricamente se pode ir mais longe,
inclusive afirmar que o tema da sombra vendida ou
permutada seria uma espécie de símbolo da metonímia, uma
imagem narrativa sensível da solubilidade,
permutabilidade, do substitutivo e da venalidade tanto
do ―núcleo‖ do humano como de toda referência semântica
clara. O que significa a sombra, que valor ela tem,
ninguém sabe. A resposta para tais perguntas começa a
aparecer a partir da sua falta. (HAUPT, 2009, p. 87)26
26 ―Así como la sombra no tiene valor propio en el trato con el diablo, es
decir, es puro contravalor o equivalencia, así tampoco tiene significado
propio en el ámbito semiótico simbólico. También aquí su valor es pura
equivalencia, equivale a ‗pertenencia social‘ en ocasiones y a ‗alma‘ en
otras. Y quizás exagerando un tanto, teóricamente podría irse aún más
lejos, hasta afirmar que el motivo de la sombra vendida o permutada sería
así una especie de símbolo de la metonimia, una imagen narrativa sensible
de la solubilidad, permutabilidad, substituibilidad y venalidad tanto del
‗núcleo‘ de lo humano como de toda referencia semántica clara. Qué
signifique la sombra, qué valor tenga de suyo, nadie lo sabe. Parece
108
É indubitável que a figura de linguagem representada pela
sombra no texto de Chamisso propicia associação a referências
diversas. Os críticos a interpretam dentro do escopo
delimitado por Haupt e a origem da obra ganha diversas
versões. No posfácio escrito por Thomas Mann, presente na
tradução para o português, há alusão à gênese e à recepção da
obra. Alguns acreditam na menção à mudança de pátria do autor,
uma vez que ele nasce na França, adota a atual Alemanha como
lar e encontra tal familiaridade com aquela cultura que chega
a declarar em 1828: ―Quase chego a acreditar que sou um poeta
alemão‖. Outros defendem, a partir do testemunho de Wilhelm
Rauschenbush, que o conheceu pessoalmente e organizou dois
volumes de suas obras, o nascimento do enredo a partir de um
questionamento de Chamisso ao amigo Fouqué, na propriedade do
último, sobre a hipótese de o que aconteceria caso ele
enrolasse a sombra do companheiro e este tivesse que andar ao
seu lado sem sombra. De acordo com o depoimento, o homem
baixo, cuja sombra era tão grande quanto a do seu companheiro,
estimula o amigo a explorar a ideia de tal ausência. Nota-se,
a partir do citado, que não são poucas as alternativas de
leitura que se apresentam.
Todavia ainda não encerramos o debate sobre o texto.
Retornando ao drama de Schlemihl, entende-se que esta perda
passa a ser a única projeção que o acompanha. No desenrolar
dos episódios, é presente o lamento por outrora comercializar
algo que lhe era tão próprio e a única saída que vislumbra é o
retiro em um lugar afastado. Ainda assim, na planície onde o
homem isolado se encontra, mais uma vez o seu algoz lhe
provoca ao exibir uma sombra que, aparentemente, vaga sem
dono. Prontamente, ele tenta se apropriar da silhueta, mas ela
foge para um bosque na qual se mistura a outros duplos
umbrosos. Ali, diante da possibilidade de ser captada, ele se
empezar a obtenerlo sólo en cuanto falta‖ (HAUPT, 2009, p.87).Tradução
nossa.
109
lança em direção ao imaterial e se choca com uma resistência
corpórea. Após ser duramente golpeado, percebe que se trata de
algum portador do ninho encantado, objeto capaz de tornar o
homem invisível, mas não o seu duplo umbroso. Apoderando-se do
objeto, mesmo sem identificar o seu portador, vê uma salvação
para o seu problema, uma vez que a invisibilidade e a ausência
de sombra lhe propiciariam circular novamente entre os homens.
Através da camuflagem que o objeto lhe propicia, decide
retornar à casa de Mina para comprovar se ela estava prometida
a Rascal, um dos seus antigos criados, como o ser sinistro
tinha informado na primeira vez que tentou uma renegociação.
Logo que chega à casa, ele descobre que este é mais um
engodo da figura mefistofélica. Diante da cena em que o pai de
Mina decide conceder a filha àquele homem de sombra
irrepreensível – com muitas posses por fazer bons negócios e
economizar em tempos em que todos esbanjam – porque acredita
não haver tão bom partido que se interesse pela donzela depois
do seu envolvimento com um aventureiro, o sujeito de casaca
cinza renova a proposta. O sofrimento de Mina em virtude do
rechaço em relação à união com o indivíduo é o cenário ideal
para mais um acordo e o negociante experiente prontamente faz
uma ferida para comprovar o sangue vermelho do jovem e coloca
em suas mãos o pergaminho e a pena. Como bom narrador,
Schlemihl restabelece contato com Chamisso e, através desta
estratégia, insere um suspense na narrativa e expõe algumas
reflexões sobre o ocorrido desde ―o erro precipitado que
descarregou a maldição‖ sobre ele até aquela visão de que o
amor o fez ―penetrar criminosamente no destino de outro ser‖.
(CHAMISSO, 1989, p.61). O conteúdo narrado neste intervalo
adianta algumas reflexões sobre o acontecido neste evento, mas
sustenta a dúvida em relação ao desfecho da proposta. O trecho
inicial nos leva a crer que não houve acordo, ao contrário do
final que insinua a realização do trato. Cito ambos separados
pelo intervalo indicado pelos colchetes:
110
Não pense tão mal sobre mim, meu Adelbert, a ponto de
supor que o preço exigido me parecera demasiado alto,
que eu tenha sido mais avarento com algo que era só meu
do que o fora antes com ouro. — Não, Adelbert; a minha
alma estava tomada por um ódio insuperável contra aquele
embusteiro enigmático de caminhos tortuosos. Pode ser
que eu estivesse sendo injusto, mas qualquer coisa em
comum com ele me revoltava. [...]. Depois, eu aprendi a
respeitar essa necessidade como uma ordem sábia que
atravessa todo esse imenso mecanismo no qual nós
intervimos como meras peças componentes, impulsionando
algumas e sendo impulsionadas por outras. O que tem de
ser, acontece; o que tinha de ser, aconteceu — e não sem
aquela ordem que por fim aprendi a respeitar em meu
destino e no destino daqueles que estão ligados a mim.
(CHAMISSO, 1989, 62)
Após o mistério, retoma-se a cena e o leitor descobre que,
no momento de fechar o negócio, Peter desmaia. O
desfalecimento impede que acompanhe o casamento de Rascal com
a que fora sua amada e atrapalha os planos daquele que contava
com a sua ira para conseguir a assinatura do contrato. Uma vez
recomposto da perda de sentidos, foge. No entanto, o homem de
casaca cinza não desiste de persegui-lo e só o abandona após
deixá-lo diante da casa que o abrigava e que, agora destruída,
torna-se um refúgio antes da sua partida definitiva. No espaço
arruinado, encontra Bendel e o criado fiel lhe revela os
episódios acorridos ao longo da ausência do dono. Temeroso de
envolver mais um indivíduo inocente em seus infortúnios, o
jovem sem sombra decide partir, porque, como ele diz, ―nesta
terra eu já não tinha mais nenhuma meta, nenhum desejo,
nenhuma esperança. (Ibidem p.65).
É notória a atuação do diabólico nos momentos de maior
vulnerabilidade do sujeito. Se no início da trama toda a falta
de esperança estava atrás de si, no passado, por chegar numa
cidade em busca de novas oportunidades, agora já não há mais
expectativa em relação ao futuro. A perda da mulher amada e o
exílio ilustram situações nas quais a posse de dinheiro não
oferece resolução, somente a recuperação da sombra as
reverteria. Na fresta da crise o diabo encontra os meios de se
infiltrar e, quando não consegue, evidencia o seu vínculo
111
sempre presente no mundo dos viventes. As ofertas atrativas
para os que experimentam a vida terrena provem do farejar
mefistofélico dos odores de desejos exalados pelos humanos.
Diante da impossibilidade de realizá-los, eles se rendem à
concessão de uma parte de si, aparentemente não utilitária,
para alcançar o objeto almejado. Logo, se o próprio desejo
move os indivíduos, a figura do diabo é sempre atual. Chega-se
à conclusão que, a desesperança é um fator contraproducente
para o homem de casaca cinza. Com Schlemihl essa relação não é
diferente:
O senhor tem o meu ouro e eu a sua sombra; isso não dará
sossego a nenhum de nós. — Já se ouviu falar alguma ves
de uma sombra que tenha desistido de seu dono? A sua me
arrastará atrás do senhor até que consinta em aceita-la
de volta e eu venha então me livrar dela. O que o senhor
poderia ter feito no início com prazer, terá de fazê-lo
por aborrecimento e tédio, só que demasiado tarde;
ninguém escapa ao seu destino‖. (CHAMISSO, 1989, p. 63)
A última tentativa de aproximação é a camuflagem na figura
de um viandante que segue por algum tempo o percurso de
Schlemihl a cavalo. Mais uma vez, direciona elogios ao homem e
enaltece o poder dos ricos, além de se tornar uma companhia
agradável ao longo de um caminho tão penoso. Através de um
monólogo, expõe reflexões existenciais, apesar de confessar
não ter ―inclinação para especulações filosóficas‖ (Ibidem,
p.67), e consegue cativar não só o entendimento daquele que o
ouve, mas também a sua alma. Porém, assustado com a
possibilidade de o companheiro perceber a sua condição durante
o alvorecer, Schlemihl lança seu olhar para o cavalheiro e
detecta, novamente, a presença enigmática daquele que há
tempos o assedia. Com a autorização do desfortunado, ele
permite o reencontro da sombra com o antigo dono, o que lhe
causa desconforto por ter que pedir por empréstimo algo que
lhe é próprio. Desta vez, a estratégia do diabo é prendê-lo
por meio da sombra até que aceite a contraproposta da venda da
alma. Porém, esta nova tentativa também fracassa, pois mesmo
ciente de que um homem rico sem sombra não tinha possibilidade
112
de inserção social, ele estava seguro de que, após sacrificar
até o seu amor não firmaria aquele pacto ―nem por todas as
sombras do mundo‖. (Ibidem, p.70)
Pressentindo a frustração do acordo, o que porta a casaca
gris enrola o objeto adquirido e expõe todo o lado sombrio de
Schlemihl que se manifestou desde o dia em que vendeu a
própria projeção. Mesmo sob a acusação de ser um homem pior do
que o próprio diabo, o protagonista exige a separação
definitiva de ambos, mas o último diz que – apesar do
afastamento provisório - sempre estará disponível mediante o
tilintar das moedas da bolsa de Fortunato, afinal: ―Neste
mundo, cada um só pensa em suas próprias vantagens‖ (p.71).
Ele também expressa o bom relacionamento que mantém com os
ricos devido a postura sempre subserviente que mantém e, antes
de ir, revela ter um acordo com Thomas John, o dono do casarão
onde Schlemihl busca a sorte no início da novela.
Após a declaração, Schlemihl esconjura o ser e lança a
bolsa em direção ao abismo. Ainda que a sombra e dinheiro lhe
faltem, há o resgate de alguma alegria. A impossibilidade de
viver entre os homens, faz com que busque refúgio na parte
mais escura da floresta e se encaminhe em direção a uma mina
para trabalhar debaixo da terra, porque acredita que apenas um
ofício duro poderia livrá-lo do pensamento destrutivo. Uma vez
que seus calçados foram produzidos para o uso de um nobre,
tratou de buscar, em uma quermesse, um par novo e mais
resistente para suas andanças. Os altos preços o levam a
comprá-los não nas barracas de produtos novos, mas nas mãos de
um ―menino bonito de cabelos louros e encaracolados‖ cujas
botas, apesar do uso, pareciam mais robustas. A figura
angelical lhe entrega o par mediante a um preço baixo e lhe
deseja sorte. Quando calça as botas, percebe que os cenários
mudam com velocidade e conclui ter adquirido a bota de sete
léguas.
113
Encaminhando-se para a conclusão da narrativa, observa-se
que, com o par de calçados, Schlemihl explora o mundo em suas
diversas faces. A negação à contraproposta mefistofélica lhe
garante uma possibilidade nova em relação ao futuro que se
abre através de uma perspectiva diversa, ele afirma: ―a terra
foi-me dada como um rico jardim, o estudo como direção e força
de minha vida e como meta, a ciência‖. Após andanças por todos
os continentes, sua saúde é afetada e, pela primeira vez,
retoma o contato com os homens. Uma pancada na cabeça lhe tira
os sentidos e quando retoma a consciência o protagonista
percebe estar num lugar designado ―Schlemihlium‖ em homenagem
ao doador e benfeitor da instituição. Reconhecendo Bendel e
Mina, descobre que o primeiro fundou o hospital em sua
homenagem e a segunda, depois da viuvez, decide dedicar sua
caridade aos convalescentes que o povoam. Ele ouve a conversa
da amada com o amigo e fica ciente de que Mina recuperou a
alegria do passado e do presente. Com a saúde regenerada,
Peter parte sem se identificar, mas deixa um bilhete em que
repete, inicialmente, a frase proferida pela amada e
acrescenta o que destaco em itálico: ―Também vosso velho amigo
vive agora melhor do que naquela época; e se, ele expia,
trata-se de uma expiação que reconcilia‖ (CHAMISSO, 1989, p.
85)
O silêncio é o elo que une o reencontro entre as três
personagens que se reconciliam consigo e com os demais. A
volta ao lar é brindada pela presença do cachorro que agora o
acompanha como um fiel amigo. Com o estojo de botânica e as
botas, explora o mundo a sua maneira – catalogando as diversas
espécies de plantas - até sentir que a força do corpo, aos
poucos, extingue-se. Ele garante que, antes da sua morte,
buscará uma maneira de entregar seus manuscritos sobre a fauna
para a Universidade de Berlim. A autobiografia, por sua vez,
assegura ao amigo Adelbert von Chamisso a quem ele confia sua
114
história maravilhosa para servir de ensinamento às gerações
vindouras. Com este fim, ele adverte:
Mas você, meu caro amigo, se deseja viver entre os
homens, aprenda a respeitar em primeiro lugar a sombra —
somente então o dinheiro. Mas se quiser viver apenas
para você e o que há de melhor em seu interior, então
não precisa de qualquer conselho. (CHAMISSO, 1989, p.87)
O ponto final acende o lampião responsável por evocar as
diversas sombras presentes na narrativa. As projeções que
ganham vida com o fim da leitura não são estáticas como
aquelas projetadas por luz fluorescente, mas contém a vida
pulsante do trepidar do fogo. Talvez este seja o vestígio
deixado, propositalmente, pelo diabólico com o fim de nos
seduzir através das silhuetas umbrosas que ora nos acompanham
ora nos assombram no universo da literatura. Ao longo de pouco
menos de cem páginas, conhecemos a história de Schlemihl e
verificamos, como afirma o poeta brasileiro Manuel de Barros,
que a importância de uma coisa se mede através do encantamento
que produz em nós27. Isto é, embora estejamos imersos numa
sociedade que nos ensina a mensurar a vida em todos os seus
aspectos, é preciso estar atento, porque o valor das coisas
está para além de qualquer redução matemática. Ele mantém uma
relação viva com as pessoas e com o mundo e nem sempre é
expresso através de cifras. Por isso, cada leitor é capaz de
atribuir uma representação diferente para a sombra de
Schlemihl e, ao fim da narrativa, questionar-se a respeito da
prisão que ainda o impede de calçar as botas de sete léguas
capaz de conduzi-lo para alguma liberdade, mesmo que, em seu
âmago, uma ausência ainda se instale.
É imprescindível assinalar que as sombras não povoam
somente o conteúdo do livro, mas também se expressam na
composição de suas edições. Na tradução brasileira publicada
27 ―Falou mais: que a importância de uma coisa não se / mede com fita
métrica nem com balanças nem com/barômetros etc. Que a importância de uma
coisa há/ que ser medida pelo encantamento que a coisa produza/ em nós.
Assim um passarinho nas mãos de uma criança/ é mais importante para ela do
que a Cordilheira dos/ Andes. [...]‖ (BARROS, 2015, p.152)
115
pela Estação Liberdade, três cartas antecedem a novela: a
primeira e a segunda, respectivamente, de Adelbert von
Chamisso e Friedrich Baron de laMotte-Fouqué a Julius Eduard
Hitzig e a terceira do último a Fouqué. Datadas dos anos de
1813, 1814 e 1827, revelam a relação amistosa que há entre o
trio e versam, principalmente, sobre a divulgação da obra. Na
primeira, Chamisso escreve sobre a figura de Schlemihl como um
conhecido frequente em seu entorno, confia um caderno ao
amigo, no qual consta a confissão deste homem sincero,
assinala a impressão de ingenuidade na elaboração do texto por
não ser realizada por uma pena mais habilidosa e mostra
precaução para que a história não se exponha sob a forma de
obra literária para não ser ―colocada no pelourinho‖. Além
disso, ele afirma que o manuscrito chegou às suas mãos por
meio de um homem vindo de Berlim. O teor da epístola revela o
receio do autor de tornar o texto público e sugere, pela
descrição daquele que o procurou para confidenciar a história,
que a narrativa lhe é concedida pelo próprio Schlemihl, já em
idade avançada e ainda em suas andanças:
Elas me foram entregues ontem pela manhã, quando
acordei; um homem esquisito - com uma longa barba
grisalha, vestindo uma Kurtka negra completamente puída,
sobre a qual tinha amarrada um estojo de botânico e que,
naquele tempo úmido e chuvoso, usava chinelos por cima
das botas – perguntou por mim e me deixou isto. ‖
(CHAMISSO, 1989, p.8)
Na segunda carta, Fouqué declara a Hitzig a decisão de
mandar imprimir a obra. Ele acredita que na Alemanha há
leitores capazes de entender Schlemihl e confia na sua
experiência a respeito de que: ―existe para os livros
impressos um gênio que os conduz às mãos certas e, se não
sempre pelo menos com muita frequência, os mantém distância da
errada‖. (FOUQUÉ In CHAMISSO, 1989, p.9). O tom é de convicção
na aceitabilidade da narrativa. Por sua vez, Hitzig manifesta
certa irritabilidade a respeito do que ele afirma ser uma
decisão desesperada do amigo em imprimir a história de
116
Schlemihl. Vale assinalar que a preocupação não se refere,
necessariamente, à qualidade do escrito, mas sim à
reprodutibilidade ampla, bem como a tradução, de um segredo
confiado apenas àqueles homens. Porém, há um reconhecimento de
que a propagação da história propiciou a difusão do amor por
aquele pobre indivíduo. Após exemplificar o sucesso do texto
tanto com o entusiasmo de Hoffman quanto da aceitação
infantil, agradece ao amigo pela organização da primeira
edição do livro e o felicita também pela segunda.
Em meio aos paratextos iniciais, também se encontra um
poema de Chamisso para Peter Schlemihl. Segundo a nota de
Marcus Vinicius Mozart, tradutor da obra para o português, a
composição dos versos se destina à terceira edição do livro
publicada em 1835. Intitulado Ao meu velho amigo Peter
Schlemihl, o eu-lírico relembra o tempo em que eles eram
amigos e reconhece a diferença com a qual o Tinhoso os tratou.
Ademais, demonstra solidariedade ao sofrimento do seu
companheiro e a empatia o leva a questionar a respeito da
semelhança existente entre ambos. A última estrofe se ocupa de
reforçar o laço entre os amigos e exprimir a necessidade de
que, após toda a tempestade, sigam as suas vidas e não se
envolvam em demasia com as coisas do mundo. Vale dizer que, a
proposta de afastamento das questões coletivas ganha força
após a declaração da inquietação pública diante da sombra.
Reproduzo a penúltima oitava na qual se demonstra a ebulição
provocada pela metáfora:
O que é afinal a sombra? — gostaria agora de perguntar
Como já tantas vezes me foi perguntado.
Avaliá-la por um preço tão desmesurado
Como o implacável mundo não deixou de fazer?
Isto se impõe depois de dezenove mil dias que,
Acumulando sabedoria, atravessaram nossas vidas.
E nós, que conferimos outrora à sombra de um ser.
Vemos agora o ser passar como sombra. (CHAMISSO, 1989,
p.13)
Às cartas e ao poema, somam-se as ilustrações do artista
gráfico Emil Pretorius e o posfácio composto por um texto de
117
Thomas Mann datado de 1911. Conforme se observa, a edição é
repleta de paratextos cuja presença influencia a recepção do
leitor. Através um jogo de luzes que incidem em direção à
narrativa, verifica-se o surgimento de diversas sombras. Como
um mercador, o editor garante uma abertura espectral do texto
que nos oferece, meio pelo qual exalta as qualidades e
confidencia, inclusive, uma certa singularidade da trama, com
o fim de nos vender algumas perspectivas de leitura. É preciso
ser prudente para não se deixar seduzir pelo exímio negociante
e, assim, sair no prejuízo no comércio da interpretação. No
diálogo com outras sombras, encontramos o valor existente
naquela a que damos vida após o contato com a história.
As conjecturas a respeito da motivação de produção da obra
e as leituras possíveis do texto são infindáveis. Todas se
enveredam em direção à mesma pergunta: o que significa a
sombra e a sua perda em A história maravilhosa de Peter
Schlemihl? A polissemia oriunda da indagação revela a
habilidade do escritor para construir uma narrativa capaz de
se ressignificar ao longo do tempo e suscitar apreciações
críticas distintas cujos desdobramentos culminam em reflexões
não apenas sobre as angústias do homem – seja pelo sentimento
de (não)pertencimento à pátria seja pela inserção e
reconhecimento do indivíduo na dinâmica instalada em seu
entorno – mas também sobre a nova ordem social instalada com o
advento do capitalismo. Segundo Thomas Mann, o autor exprime
no prefácio da edição francesa que a obra caiu em mãos que
apenas se preocupam em encontrar o significado da sombra. No
mesmo texto, encontra-se a definição de sombra expressa por um
alfarrábio erudito e, em seguida, a ideia de sombra que
Chamisso almeja transmitir através da novela:
a sombra propriamente dita representa um sólido cuja
forma depende ao mesmo tempo da do corpo luminoso, da do
corpo opaco e da posição deste em relação ao corpo
luminoso. A sombra considerada sobre um plano situado
118
atrás do corpo que a produz, não é outra coisa senão a
secção deste plano no sólido que representa a sombra.28
―É deste sólido‖ que se trata na história maravilhosa de
Pierre Schlémihl. A ciência das finanças nos instrui
suficientemente sobre a importância do dinheiro; a da
sombra é menos reconhecida no geral. Meu imprudente
amigo cobiçou o dinheiro, cujo valor ele conhecia, e não
pensou no sólido. A lição – que pagou caro – ele quer
nós aproveitemos e sua experiência nos conclama: pensai
no sólido. (CHAMISSO, 1989, p.109)
Conforme ilustra o trecho, Chamisso nos adverte através de
Schlemihl: Songezau solide. No entanto, nós, leitores, como já
dito, devemos estar atentos ao que o editor nos oferece, pois
os atravessamentos podem nos afastar do caminho que traçamos
até então, seja para nos apresentar atalhos seja para
confundir a chegada ao destino. Como afirma Simone de
Beauvoir, um bom ficcionista é, acima de tudo, um ótimo
trapaceador, por isso é fundamental estar sempre alerta às
suas estratégias. Porém, como ávidos participantes do jogo
literário apostamos nossas fichas na exposição de Schlemihl,
uma vez que a explicação contém a dubiedade necessária para
não oferecer respostas, mas sim possibilidades múltiplas de
leitura. Num primeiro aspecto, convoca a ciência para elucidar
a definição de sombra, posteriormente, acessa à ficção para
ilustrar a importância de valorizá-la numa sociedade cujo
protagonismo está no dinheiro. Em seguida, conclama o prezar
ao sólido, contudo, não revela diretamente em que ele
consiste. A única pista é que não se encontra entre o
dinheiro, o instrumento que, paradoxalmente, nos permite
adquirir coisas materiais.
É preciso acessar as sombras do termo ―sólido‖ para
assimilar o conselho de Chamisso. A solidez ao que o autor se
refere não corresponde, necessariamente, à materialidade dos
corpos, como se aprende nos domínios da Física. Ela se associa
às esferas do que oferece ao homem resistência, estabilidade e
28 Thomas Mann apresenta a seguinte referência: HAUY, Traitéélémentaire de
physique. TI. §§1002 et 1006.
119
firmeza. Isto é, um campo semântico que sugere integridade
composto por vocábulos que remetem aos aspectos substanciais
que fundamentam o substantivo ao qual se associa. Assim,
precisamos alcançar o valor mais figurativo que está para além
do que, à primeira vista, o termo denota. Outra vez, coloca-se
o leitor à prova, uma vez que ele é provocado a buscar o
essencial para além daquilo que reluz imediatamente. Senão, é
capaz de se enveredar por trilhas que o despistam. Afinal, uma
primeira leitura nos leva à confusão já que a narrativa indica
a valorização da sombra e o texto introdutório do autor aponta
para o sólido.
É fundamental assinalar também que a novela é ambientada
na atmosfera do Romantismo Alemão. Tomando como base os
estudos apresentados em Revolta e Melancolia: O romantismo na
contracorrente da modernidade, acredita-se na concepção de que
a perda da sombra configura uma crítica à modernidade,
principalmente porque sinaliza uma postura contestadora em
relação ao modo de vida imposto pelos princípios
socioeconômicos que começam a entrar em voga na Europa.
Conforme os autores expressam, a sensibilidade romântica ―é
portadora de um impulso anticapitalista‖, tendo em vista que o
próprio ―romantismo [o] é por essência‖. (LOWY; SAYRE, 2015).
A dor de viver sem uma projeção umbrosa eclipsa a promessa
de inserção social através do poder financeiro que adquire por
meio do negócio com o ser mefistofélico. Através da construção
do enredo – desde a chegada de Schlemihl à cidade onde
encontra o Sr. John e seu grupo até a aquisição da bota de
sete léguas após resistir à contraproposta do homem de casaca
cinza e eliminar a bolsa que o vincula a si - Chamisso promove
uma reflexão ampla a respeito das relações que se estabelecem
na sociedade onde o capital reina. A valorização da aparência,
o egocentrismo e a ganância são alguns dos temas em questão.
Além disso, demonstra, como afirma Robert Muchembled, que ―o
diabo é sempre filho de seu tempo‖ (MUCHEMBLED, 2001, p.287).
120
No cenário do século XIX, ele circula e se camufla entre os
indivíduos, como o mais normal dos seres, sem a configuração
horripilante da Idade Média e garante a sua atuação devido a
vaidade pulsante no período em questão.
Considerando a sistematização do estudo de Lowi e Sayre,
nota-se que a narrativa de Chamisso congrega algumas
tendências comuns às obras produzidas neste contexto, como: o
retorno ao lar ou a um tempo findo – não são poucas vezes que
Schlemihl regressa à casa depois de uma batalha contra a sua
condição e não encontra o abrigo que procura devido à
destruição desta ou a perseguição de terceiros. Segundo os
pesquisadores, este passado também pode se manifestar através
do fantástico e, como vimos, os elementos das lendas alemãs
perpassam o enredo em diversos momentos; o restabelecimento do
paraíso no presente por meio do deslocamento espacial, aspecto
que aparece no final quando Schlemihl reencontra a felicidade
ao conhecer o mundo através das botas de sete léguas; o
encaminhamento de uma realização futura e real, manifesto na
entrega do manuscrito para Chamisso com o fim de alertar à
geração futura sobre o perigo de negociar o que lhes é mais
essencial em troca de dinheiro e a intenção de destinar a
catalogação de dados naturais que colheu em suas andanças para
a universidade contribuindo, desta maneira, para o
enriquecimento do conhecimento do homem sobre o mundo em que
habita e que é fundamental para a sua existência; finalmente
um último aspecto é a dialética entre a unidade e a totalidade
que se expressa na exclusão do indivíduo da comunidade seja
pelo dinheiro seja pela falta de sombra.
Através deste tema, destaca-se que o valor de uma coisa
não deve ser medido apenas através da indicação imediata de
seus domínios, porque ele se associa a um entorno sobre o qual
afeta e é afetado. A problematização precisa se expandir para
os domínios que transbordam ao objeto a que se inclina, por
isso é importante não se restringir somente ao significado
121
singular da sombra, mas ampliar nossa leitura às
representações possíveis da inserção deste elemento no
ficcional. De igual maneira, é imprescindível ir além da
unidade do capital e do modo capitalista e questionar as
implicações da sua introdução em determinada sociedade. Assim,
provocados pela narrativa de Chamisso, questiona-se: estamos
dispostos a vender o que temos de mais essencial em prol do
império do capital? A publicação da história de Schlemihl data
do século XIX e esta tese acadêmica ganha contornos em
princípios do século XXI; não tenho resposta para a pergunta
que se coloca desde então, mas posso adiantar que as
negociações estabelecidas neste intervalo temporal têm sido
custosas aos homens. Já vendemos algumas das nossas sombras e,
progressivamente, caminhamos para a extinção que nos provará
que também estamos negociando a alma neste comércio perverso.
À luz dos debates realizados pelos primeiros românticos
alemães acerca da obra de arte, entende-se que A história
maravilhosa de Peter Schlemihl consiste num gérmen de
pensamento capaz de transbordar a própria forma. Independente
da interpretação conferida à novela, a tensão presente ao
redor da recuperação, ou não, do perfil umbroso por parte do
protagonista e as projeções metafóricas que a compõem garantem
uma qualidade capaz de diferenciá-la entre as demais tramas
nas quais ocorre a venda de um componente imaterial que se
associa ao corpo humano. Adelbert von Chamisso nos enreda num
universo caleidoscópico em que a todo momento somos
questionados sobre o quanto já não vendemos do que nos é
essencial em favor de uma inserção que, ao fim, nos exclui.
Somente um diálogo com as sombras, no viés mais junguiano dos
termos, permite que alcancemos algumas respostas (ou mais
provocações) para esta pergunta.
122
3.3. Júlia e sua sombra de menino:o jogo de pique-esconde
[...]a realidade de hoje está fadada a se revelar a
ilusão de amanhã. E a vida não se ajusta. Não se pode
ajustar. Se amanhã se ajustar, estará acabada.
(Luigi Pirandello)
Sob a luz natural do sol ou do luar sob a artificialidade
do fogo ou das lâmpadas da modernidade, o homem sempre carrega
consigo uma companhia: a sombra. Um duplo umbroso de si cuja
posição se contrapõe à direção da fonte luzente. Se ela está à
frente, a sombra escapa para trás e vice-versa; um
deslocamento para o lado e, rapidamente, a silhueta desliza
para o outro. Tendo os pés como ponto de contato, ela também
brinca com o ponto luminoso para definir o tom de sua aparição
e a proporção de seus domínios. Ao menos que haja escuridão
plena ou se estabeleça um contexto fantástico, a sombra nos
segue em silêncio e repete cada um dos nossos movimentos,
mantendo a forma do perfil corporal que lhe dá vida. A
discrição que lhe é própria faz com que, frequentemente, não
notemos a sua presença. Porém, vez ou outra, a filosofia e a
arte nos lembram da figura estranha que nos escolta.
A inspiração para o capítulo em composição advém d‘ O
andarilho e sua sombra, de Friedrich Nietzsche. Nos aforismos
iniciais, precisamente no quinto e no sexto, o filósofo trata
do simulado desprezo dos homens pelas coisas que estão mais
próximas, o que faz com que acreditemos na irrelevância de
refletir sobre elas. Esta atitude em relação ao mais
cotidiano é prejudicial ao humano e demonstra o mau
direcionamento da razão, uma vez que evidencia o afastamento
entre o pensamento e os âmbitos mais ordinários da vida. A
negligência do comum em benefício da valorização do abstrato é
uma denúncia contra o idealismo e, através do resgate de
Sócrates e Homero, o pensador alemão incentiva um retorno do
olhar reflexivo para aquilo que nos ronda habitualmente.
123
Depois de percorrer as trilhas das sombras que ganham vida
com o fim da força vital do corpo e daquela na qual a cisão se
efetiva devido à venda da silhueta, a análise do atual
capítulo - inspirada pelas ideias nietzschianas de
reconhecimento do mais próximo - concentra-se na sombra que
convive com o seu dono. Contudo, ela se diferencia na medida
em que não se contenta em somente escoltá-lo silenciosamente
em ambientes onde a luz está presente, mas o provoca a
estabelecer um diálogo com o que lhe é mais intrínseco. Neste
aspecto, a sombra o instiga de um lugar privilegiado, porque é
possível concebê-la tanto externamente como a projeção do
corpo que o indivíduo carrega pelo mundo quanto na dimensão
interna representando o arquétipo que Carl Gustav Jung indica
nas suas investigações correspondente ―à parte negativa da
personalidade‖ de um indivíduo ou de uma sociedade29.
No diálogo precedente aos fragmentos filosóficos de
Nietzsche, o andarilho se assusta diante da percepção de uma
voz mais fraca do que a sua e capaz de transmitir uma sensação
próxima a uma escuta de si que o convoca a falar. Ele
manifesta descrença ao constatar que o chamado provém da sua
sombra, mas ambos concordam a respeito da tarefa vã de
problematizar a excepcionalidade da conversa e com o fato de
que é necessário, sobretudo, enfatizar o desenvolvimento do
jogo de falas alternantes. Por isso, tratam de seguir a
interação abordando aspectos que lhes são próprios como bons
amigos que ―trocam de vez em quando, como sinal de
compreensão, uma palavra obscura que deve ser um enigma para
uma terceira pessoa‖ (NIETZSCHE, 2008, p.109) Neste caso, o
leitor figura como o interlocutor responsável por decifrar as
entrelinhas tecidas pela cumplicidade dos camaradas.
A partir do texto introdutório, Nietzsche apresenta uma
possibilidade da relação do homem com o que o cerca através do
29 Sabe-se que a teoria de Jung aborda tanto a sombra individual e coletiva,
mas enfatizaremos aqui os domínios da primeira.
124
contato entre o andarilho e sua sombra. O apelo da silhueta no
contexto mencionado é sonoro e indica o meio pelo qual a
companheira tão próxima utiliza para atrair o olhar de seu
dono. No entanto, o convite também pode ser propiciado por
outros modos de atração, conforme veremos mais adiante, como a
sombra de Julia que modifica os seus contornos, ganhando
traços de menino, com o fim de dialogar com questões internas
da protagonista. Nota-se que, nos textos citados, o duplo traz
à tona assuntos íntimos do sujeito que o reflete, o que
corrobora a ideia de uma instância presente externa e
interiormente no homem. Ademais, o encontro se efetiva não
apenas pela palavra, mas também pela imagem, numa instigação
silenciosa.
O conteúdo abordado na troca dialógica do filósofo é de
extrema valia para a nossa análise. Os interlocutores estão de
acordo a respeito da relação de complementaridade entre pares
que outrora foram apresentados como opostos. Segundo o
andarilho, luz e sombra, por exemplo, não são rivais, mas
parceiras na formação da beleza, da comunicação eficiente e da
constituição moral do homem. A coexistência entre ambas é
objeto de exaltação das duas partes, pois concordam que é em
um cenário permeado pelo claro-escuro que o homem desenvolve o
seu conhecimento. O único âmbito pouco apreciado entre eles é
a escuridão onde se valida a cumplicidade entre luz e sombra,
porque ―quando a luz desaparece, a sombra lhe vai atrás‖
(NIETZSCHE, 2008, p.109). Enquanto o andarilho exalta as
propriedades da sombra, ela enaltece os homens e os designa
como ―discípulos da luz‖, devido a ânsia que lhes é própria de
desvelar o mundo. Além disso, revela também ser ela a zona
umbrosa projetada pelos objetos no momento em que ―os raios do
sol do conhecimento‖ se debruçam sobre os tais.
Salientam-se duas lições do texto de Nietzsche para o
debate que virá. A primeira consiste no reconhecimento do
valor epistêmico daquilo que nos é mais corriqueiro e a
125
segunda remete à compreensão de que ideias e conceitos
distintos não são opostos, mas constituintes de uma
pluralidade que, em suas diferenças, enriquecem os nossos
saberes. É importante buscar as sombras que se formam diante
de cada elemento tocado pela luz, pois é apenas neste
movimento que alcançamos uma maior dimensão da realidade que
nos cerca. Por isso, ao modo dos viandantes – outra tradução
possível para Der Wanderer– aventuro-me pelas trilhas da
literatura infanto-juvenil cujos domínios ainda se configuram
para mim como uma floresta frondosa. Muitas vezes menosprezada
e outras até desconsiderada no rol da alta literatura, ela é
um dos primeiros contatos que estabelecemos com o literário e
não deve ser ignorada na importância da formação espiritual do
homem.
Através de narrativas escritas ou orais, ingressamos no
mundo ficcional e nos vinculamos com a esfera do imaginário. À
luz dos escritos de KarlheinzStierle sobre a ficção, acredita-
se que estas duas instâncias – ficção e imaginação - correm em
paralelo e dialogam com o real para se tornar experimentável
para o homem. Portanto, o contato com o âmbito literário na
infância e na juventude propicia um manejo com a experiência
subjetiva de forma que a relação do ser com o meio se amplia
da interação do indivíduo com as coisas concretas para uma
associação com as ideias do abstrato. Desta forma, há uma
reconstrução do elo entre o ser e o mundo não apenas através
da percepção física, mas também por intermédio da elaboração
representacional.
Um percurso breve pela história da literatura voltada para
crianças e jovens demonstra que este tipo específico de
narrativa não se concentra apenas no âmbito lúdico da
experiência literária. Uma vez que a sua produção é elaborada,
majoritariamente, por adultos há uma inserção de valores de
determinada sociedade ou grupo– como os contos de Charles
Perrault no século XVII nos quais se encontram precepções
126
morais – e a promoção de uma consciência crítica responsável
por desconstruir, já no âmbito dos primeiros anos,
preconceitos sociais vigentes, o que está presente em enredos
modernos como o d‘ A história de Julia e sua sombra de menino,
texto sobre o qual nos ocuparemos no capítulo em andamento.
Considerando os aspectos apresentados a respeito das
trilhas da literatura infanto-juvenil, Christian Bruel surge
com uma proposta nova acerca do maravilhoso no fim do século
XX, na França. Parte do movimento ativista pós-68, ele se une
a outros especialistas – universitários, professores,
psicólogos, artistas, jornalistas – para formar um coletivo
cujo objetivo é refletir sobre o conteúdo da literatura
infantil. Após a análise dos livros voltados para este público
entre os anos 60 e 70, eles chegam à conclusão de que as obras
são extremamente conversadoras e difusoras de estereótipos.
Assim, o grupo se divide entre os que acreditam na necessidade
de que as crianças produzam seus próprios livros e aqueles, no
qual se encontra Bruel, que defendem a elaboração de conteúdo
por adultos, porém investindo plenamente no campo cultural e,
como ele afirma, sem condescendência nem demagogia.
As ideias culminam no ―Manifesto por um outro maravilhoso‖
publicado no jornal Libération na década de 70. A partir da
divulgação, 32 pessoas entram em contato com o grupo para
participar do projeto, entre elas está a ilustradora Anne
Bozellec que localiza o autor naquele momento em que deseja
voltar para a França após morar na Colômbia onde trabalhou no
mercado dos livros. Ela será a responsável pela composição
gráfica da primeira obra oriunda deste trabalho: Histoire de
Julie quiavait une ombre de garçon. Escrita por Christian
Bruel e Anne Galand, ambos sem formação na área editorial, o
livro é impresso em 1975 sob a marca ―coletivo por um outro
maravilhoso‖ e, em um ano, vende mais de 5000 exemplares.
Segundo o relato do autor em entrevista à NathalieBeau et
127
ÉlianeMeynial30, onde buscamos a maior parte das informações
mencionadas, a distribuição dos exemplares foi artesanal e se
efetivou em meio às redes militantes da sociedade através de
um catálogo com um formulário de pedido em anexo para cada
livro.
Bruel declara em entrevista que, mesmo antes da criação
oficial da editora, a comissão responsável pelas publicações
destinadas às crianças envia uma carta de repúdio para o grupo
onde alega que o livro viola os artigos da lei de 194931, além
de caracterizá-lo como ―mórbido‖, ―triste‖ e ―pornográfico‖. É
notório que a denúncia advém de a obra conceber uma ideia mais
progressista no que concerne não só a literatura infanto-
juvenil, mas também a própria noção de infância e juventude.
Uma vez que a proposta do grupo consiste na compreensão do
mundo por meio de materiais que estimulam o questionamento e a
reflexão, os setores conservadores se ocupam de reprimí-lo com
o fim de não colocar em risco os próprios meios de dominação
que detêm.
A editora Le sourirequimord surge em 1976 com o objetivo
de fazer livros acessíveis às crianças, mas sem se direcionar
exclusivamente para este público. O grupo colaborativo que a
compõe acredita que a infância e a juventude devem ser
acolhidas na comunidade de formadores de sentido do mundo, ou
seja, é necessário que elas ingressem no universo das
representações não apenas por meio do ambiente de pureza, mas
também da realidade social instaurada. Em uma fala concedida à
Associação Francesa de Leitura, Christian Bruel afirma que é
possível abordar todos os tipos de temas com este público. Ele
acredita na capacidade de crianças e jovens fazerem uma
leitura ativa e denuncia que esta atividade reflexiva,
30 Publicada no número 212 d‘ La revuedes livres pour enfants. 31 Christian Bruel se refere à lei n° 49-956 de 16 julho de 1949 sobre as
publicações infanto-juvenis. Fac-símile disponível em:
https://www.legifrance.gouv.fr/jo_pdf.do?id=JORFTEXT000000878175. Acesso em
04/04/2017.
128
geralmente, é eclipsada por uma postura adulta que menospreza
a habilidade intelectiva dos leitores mais jovens.
Verifica-se, a partir do apresentado, o propósito de criar
uma literatura acessível à recepção infanto-juvenil que esteja
comprometida com os conflitos presentes na realidade social na
qual o público em questão está inserido. Na primeira obra
lançada pelo grupo, traduzida para o português brasileiro como
A história de Júlia e sua sombra de menino, a narrativa se
concentra no cotidiano de uma criança do sexo feminino cujo
comportamento não expressa marcas de feminilidade. Como não
cumpre a expectativa dos modos designados ao papel social de
gênero que lhe atribuem, os pais constantemente a criticam e,
por isso, ela coloca em indagação a própria identidade. O
texto de Christian Bruel e Anne Galland em conjunto com as
ilustrações em preto e branco de Anne Bozellec abordam
questões referentes à identidade de gênero, ainda tão
polêmicas em nosso tempo, de forma compreensível aos mais
jovens.
A história é apresentada por meio de um texto híbrido,
quero dizer, diálogos diretos se intercalam com a narração em
3ª pessoa que ora se apresenta em prosa ora em versos. Nas
páginas iniciais, o autor ambienta a narrativa num quarto de
criança situado num lar em meio à cidade. Diferente do cenário
dos contos de fada onde a trama se desenvolve em reinos
distantes, o ambiente do drama de Júlia é semelhante àquele em
que vivem muitas crianças urbanas. Logo, o enredo de Bruel
escapa dos domínios do fantástico, imiscui-se na esfera da
realidade e, através da verossimilhança, propicia o diálogo do
imaginário no coração da existência. Desta forma, provoca o
leitor à criação de outras possibilidades de realização do
mundo em que habita sem precisar se transportar,
necessariamente, para o universo mágico.
A ilustração referente ao quarto de Júlia tampouco
idealiza o espaço, pois ela representa a desordem comum ao
129
dormitório infantil. Roupas espalhadas, restos de alimentos,
materiais de escola estão em meio ao mobiliário e se
identificam brinquedos variados desde bola e boneca até
carrinho e materiais para tricô. Nota-se que não há uma
caracterização do lugar de acordo com o papel social de gênero
da criança. É neste cenário que se estabelece o primeiro
diálogo entre a protagonista e sua mãe. Questionada sobre a
necessidade de usar os patins para ler e a respeito de sua
insistência de querer fazer as coisas de forma diferente, a
criança responde: ―— Eu não sou como todo mundo, mamãe. Eu sou
a Júlia! ‖. Logo, o primeiro contato do leitor com a
personagem é através da marcação de sua individualidade em
contraponto com os demais. De maneira exclamativa, ela se
identifica de forma singular em relação ao magnânimo outro
representado pelo todo.
O autoposicionamento diante da interpelação materna contém
um elemento existencial, uma vez que a criança é colocada em
confronto consigo em meio à ordem social na qual está
inserida. A distinção através do desígnio de si como um ―eu‖
diante de uma totalidade que a antecede demarca o
reconhecimento de sua singularidade frente aos demais e, ao
mesmo tempo, uma indiferença em relação à normatividade que
lhe é exterior. Imbuída de uma liberdade característica do
universo infanto-juvenil, Júlia se apropria do status de
sujeito, dá vida aos seus desejos – ainda que não correspondam
aos preceitos estabelecidos - e confere autenticidade a sua
existência. No entanto, sob o olhar assimétrico da mãe, já
atravessado pelos valores morais, sua postura é inadequada.
Sabe-se que a discussão acerca do sujeito é um dos pilares
que sustentam a filosofia moderna. Transitamos entre aspectos
ontológicos, cognoscitivos, sociais e morais visando à
compreensão da nossa condição enquanto seres dotados de
pensamento capazes de transformar a si, o mundo e a humanidade
através das relações que estabelecemos. Contudo, a expressão
130
identitária de Júlia no diálogo mencionado ainda não considera
a complexidade desta organização e se embasa naquilo que
Husserl designa como orientação natural da consciência no
mundo. Ela se situa a partir das experiências mais próximas,
tais como as defendidas por Nietzsche, e apresenta uma
resistência, ainda que não planejada, às facticidades
impeditivas da sua liberdade. Isto é, a personagem não se
molda às posturas que lhe são exigidas em busca de uma
socialização, mas defende a singularidade da sua identidade
diante do mundo.
Em seguida à frase exclamativa através da qual exprime a
própria individualidade, o narrador em terceira pessoa
reingressa na trama e tece algumas informações a respeito da
protagonista. Através da sua perspectiva, o leitor se torna
cônscio da personalidade de Júlia que ―não é lá muito gentil‖
tampouco ―mansinha‖ e ―sabe muito bem o que ela quer‖; do
comportamento da menina que ―chupa o dedo‖, ―nunca gostou de
se pentear‖ e ―vive se escondendo na espuma/só para não ter
que se banhar‖; da sua beleza contestadora, pois ―Júlia é
linda, mas onde se viu, /queria ter os cabelos vermelhos! ‖;
da relação afetuosa que estabelece com seu gato, parceiro nas
suas brincadeiras, e do seu desejo mais íntimo: ―Mas no fundo
o que ela gostaria / mesmo era de ganhar um beijo‖. Sob este
ponto de vista, percebe-se que a personagem age de forma
semelhante aos indivíduos de sua idade, sem a preocupação de
corresponder a qualquer padrão pré-estabelecido.
Consoante às características descritas, Júlia não se porta
com os traços de feminilidade esperados para crianças
classificadasbiologicamente como pertencentes ao sexo
feminino, como: docilidade, gentileza, vaidade e passividade.
Vale lembrar que esta expectativa é fruto de uma construção
sócio-cultural que, segundo Simone de Beauvoir, incide sobre o
indivíduo desde o período do seu desmame, momento em que há
uma ruptura da relação parasitária estabelecida com o Outro
131
desde o nascimento. No capítulo d‘ O Segundo Sexo dedicado à
infância, a filósofa embasa os argumentos sobre a constituição
afirmativa da identidade a partir dos escritos lacanianos
acerca da ambiguidade do espetáculo que ronda a criança por
volta dos seis meses, isto é, quando percebe sua imagem diante
do espelho. Nesta fase, ela é, concomitantemente, um sujeito
autônomo capaz de transcender para o mundo e um objeto diante
dos olhos dos pais tal como se vê através do reflexo
especular. A associação entre estes dois estágios – o abandono
do seio que o acolhera até então e a autopercepção – resulta
na utilização do reconhecimento como forma de restabelecer o
elo perdido com este outro.
De acordo com Beauvoir, a distinção do comportamento entre
meninos e meninas é inexistente até os quatro anos. Ambos
atuam de forma semelhante na tentativa de seduzir este adulto
que ―tem o poder de lhe conferir o ser‖ (BEAUVOIR, 2009,
p.363). Passada esta idade, ocorre uma segunda ruptura na qual
as estratégias de aproximação começam a falhar devido ao
crescimento e ao desenvolvimento da criança. No que se designa
como ―um segundo desmame‖ o processo de desenlace com os mais
velhos efetua-se de maneira diferente para os dois sexos de
acordo com a intelectual francesa. A menina é autorizada a
prolongar o uso de suas tramas visando à atração do interesse
alheio e há uma tolerância maior com a manifestação das suas
expressões corporal e sentimental. Por sua vez, o menino é
tolhido com prontidão das artimanhas de agrado e, por isso,
ganha impulso para se libertar do olhar do outro e assumir a
sua independência. Cito as palavras da escritora:
Neste ponto é que as meninas vão parecer, a princípio,
privilegiadas. Um segundo desmame, menos brutal, mais
lento do que o primeiro, subtrai o corpo da mãe aos
carinhos da criança; mas é principalmente aos meninos
que se recusam pouco a pouco beijos e carícias; quanto à
menina continuam a acariciá-la, permitem-lhe que viva
grudada às saias da mãe, no colo do pai que lhe faz
festas; vestem-na com roupas macias como beijos, são
indulgentes com suas lágrimas e seus caprichos,
penteiam-na com cuidado, divertem-se com seus trejeitos
132
e seus coquetismos; contatos carnais e olhares
complacentes protegem-na contra a angústia da solidão.
Ao menino, ao contrário, proíbe-se até o coquetismo;
suas manobras sedutoras, suas comédias aborrecem. ―Um
homem não pede beijos...Um homem não se olha no
espelho...Um homem não chora‖, dizem-lhe. Querem que ele
seja ―um homenzinho‖; é libertando-se dos adultos que
ele conquistará a sua aprovação. Agradará se não
demonstrar que procura agradar. (BEAUVOIR, 2009, p.364)32
No trecho mencionado, nota-se a preocupação da filósofa em
ressaltar que, à primeira vista, a menina parece privilegiada
por ter um acolhimento mais duradouro durante o processo do
segundo desmame. A cautela se justifica pelo fato de que,
posteriormente, a diferenciação no trato pode culminar em um
prejuízo na maneira de se relacionar consigo, com os demais e
com o mundo. Uma vez que a busca da sua emancipação é
retardada e a função de se apresentar como objeto ao olhar do
outro lhe é estendida, gera-se ―um conflito entre sua
existência autônoma e seu ‗ser outro‘‖ (BEAUVOIR, 2009, p.
375). O segundo sexo é estimulado a renunciar a si com o fim
de comprazer os indivíduos ao redor que a tratam como ―uma
boneca viva‖, termo ilustrativo usado por Simone de Beauvoir.
Logo, desencorajam o exercer da sua liberdade de se colocar
para-si diante do meio e lhe incentivam a voltar as suas ações
constantemente para o outro.
É preciso lembrar que a autora é uma das intelectuais
responsáveis pelo desenvolvimento da filosofia existencialista
ateia. No sistema de pensamento que defende a precedência da
existência em relação à essência, o outro tem um papel
relevante, considerando que ele ―é o mediador indispensável
entre mim e mim mesmo‖ (SARTRE, 2011, p.290). É esta presença,
também dotada de consciência, que me ―faz ser para-além do meu
ser neste mundo‖ e através do seu olhar– permeado de
imprevisibilidade e liberdade – é possível me assimilar ―como
32 É importante lembrar que Le DeuxièmeSexe é lançado na França em 1949.
Embora algumas sociedades já tenham mudado estas relações, é notório que
muitas outras ainda vivenciam este modelo de criação diferenciado a partir
do sexo biológico da criança.
133
sendo visto no mundo e a partir do mundo‖ (SARTRE, 2011,
p.337-339). Logo, diante de sua mirada, torno-me objeto tal
como não posso ser para mim mesmo. Porém, em seu ato
intencional, ele me capta como corpo e, por isso, ―meu corpo
está-aí não somente como ponto de vista que sou, mas também
como pontos de vista sobre o qual são adotados atualmente
pontos de vistas que jamais poderei alcançar (SARTRE, 2011,
p.442). Menciono as palavras de Sartre em O Ser e o Nada para
elucidar a questão:
Existo meu corpo: esta é sua primeira dimensão de ser.
Meu corpo é utilizado e conhecido pelo Outro: esta, a
segunda dimensão. Mas, enquanto sou Para-outro, o Outro
desvela-se a mim como o sujeito para o qual sou objeto.
Trata-se, inclusive, como vimos, de minha relação
fundamental com o Outro. Portanto, existo para mim como
conhecido pelo Outro ― em particular, na minha própria
facticidade. Existo para mim como conhecido pelo Outro
a título de corpo. (SARTRE, 2011, p.441)
A partir do fragmento citado, entende-se que as relações
concretas estabelecidas com o Outro também se imiscuem no
posicionamento do sujeito no mundo e na sua própria
constituição. Se retomarmos a reflexão de Beauvoir acerca da
criação das meninas, na qual se estimula por mais tempo o
agradar o adulto como forma de alcançar o reconhecimento,
verificamos que esta instância do ser para-outro ganha
destaque na sua formação. De acordo com a filósofa, este fator
ainda é agravado na medida em que uma boneca lhe é apresentada
como alter ego. O tratamento e os cuidados do corpo passivo se
assemelham a forma pela qual os adultos se dirigem a ela,
fazendo com que se pense ―a si mesma como uma maravilhosa
boneca‖ (BEAUVOIR, 2009, p. 374). Portanto, em consonância com
o pensamento beauvoiriano, conclui-se que não é vantajoso para
a menina a prorrogação do seu elo de dependência com o olhar
dos pais. Ademais, também se torna notório que os traços de
feminilidade constantemente associado ao sexo feminino não é
pertencente à esfera da sua constituição biológica, mas sim
culturalmente adquirido da sociedade na qual está imersa.
134
Retornando à história de Júlia, observa-se que ela não
reproduz essa dinâmica. Comprometida com o movimento de pôr-se
para si, ela recusa a renúncia de própria liberdade com o fim
de satisfazer o olhar do outro. Os traços assinalados pelo
narrador sobre a protagonista – como vaidade, gentileza e
mansidão – revelam a rejeição de comportamentos voltados para
aceitação dos demais. Porém, no diálogo inicial, o incômodo da
mãe a respeito da autenticidade da filha é explícito. A figura
materna lamenta pela pequena não valorizar aspectos de
feminilidade e as repreensões dirigidas à personagem são
devido à despreocupação de Júlia diante da expectativa alheia
de que ela mantenha a postura que se espera de uma menina. Ela
não aceita vestir uma máscara para camuflar sua forma de se
apresentar para o mundo nem no âmbito privado nem no público,
conforme se vê no diálogo posterior à explanação do narrador
onde a mãe a repreende e ameaça não levá-la para um passeio
caso não se penteie e troque o pulôver rasgado. Diante do
descaso de Júlia, a mãe solicita a participação do pai na
censura dos seus modos.
Convocado a atuar no julgamento da criança, o genitor se
associa à mãe na fala acusatória e amplia a série enumerativa
das questões que o desagradam como: ―Júlia sua mãe tem razão.
Você é impossível! Sempre dizendo grosserias, sempre
tropeçando, sempre prestes a aprontar‖ (BRUEL, 2010, p. 25).
Em seguida, profere a oração que sintetiza o desconforto dos
pais: ―Até parece um menino! ‖ (BRUEL, 2010, p. 25). A mãe se
coloca não apenas em acordo com aquela frase, como também
assemelha o perfil da menina ao da irmã de seu companheiro –
―É, nesse ponto, ela é igualzinha a sua irmã! ‖ - e,
prontamente, o assunto é repelido: ―— Por favor, não meta
minha irmã nessa história‖ (BRUEL, 2010, p. 25). Após o
desentendimento do casal, o narrador em terceira pessoa
retorna à narrativa e expressa o ensurdecimento da menina
diante da frase que a visita com frequência:
135
Júlia já não escuta mais,
é sempre a mesma coisa:
parece um menino,
parece um menino
parece um menino,
parece um menino! (BRUEL, 2010, p. 26).
Escrito de forma versificada e com recurso estilístico
semelhante aos utilizados pelas vanguardas, a repetição da
frase ―parece um menino‖ é análoga a um eco com estrutura
visual crescente e traçado mais marcado sugerindo uma
intensificação do que foi dito. A construção textual sugere a
representação do sentimento causado na menina por causa da
reiteração do discurso utilizado para criticá-la. Em
contraponto com o trecho anterior no qual se expressa o
ensurdecimento da personagem a respeito daquilo que lhe dizem,
observa-se que, interiormente, a desaprovação dos pais ecoa e
se avoluma. No seu íntimo, aquelas palavras reverberam de
forma tão intensa que encobrem qualquer possibilidade de
penetração de sons oriundos do exterior. A menina que gosta
dos espelhos, talvez numa tentativa de se reconhecer diante da
própria imagem corporal, experimenta a contradição de
encontrar um reflexo de si distinto daquele que lhe é
apresentado através do enunciado dos pais.
Esta cisão aparece na narrativa através da sombra. Um belo
dia, a protagonista detecta que projeta uma silhueta de menino
e, diante da constatação, chama a mãe para vê-la. Indicando o
estado sonolento da menina, a genitora a adverte de que não há
nada de diferente e mostra curiosidade a respeito da origem
das ideias da filha. A conversa é expressa em diálogo direto,
induzindo o leitor a crer, a partir da perspectiva desta
mulher, que a formação do perfil umbroso masculino não passa
de uma fantasia da criança. Sob o ponto de vista mencionado, o
delírio do sono justifica a percepção equivocada da infante.
Porém, nas linhas seguintes, o narrador em terceira pessoa
refuta a possibilidade onírica da afirmação: ―Júlia não estava
136
sonhando:/sua sombra era mesmo/ de menino! Mas ninguém/ queria
acreditar‖ (BRUEL, 2010, p. 28). Assim, por outra ótica,
nega-se a visualização como uma manifestação oriunda de seu
inconsciente e se valida a declaração da protagonista. Embora
não corresponda ao delineamento do seu perfil, a sombra gerada
é uma projeção do corpo da personagem e se mantém próxima o
bastante para inquieta-la
Quando uma sombra,
sombria demais,
segue você, como
sua própria sombra,
e em você ela até tromba,
isso de fato assombra (BRUEL, 2010, p.28)
Diferente das sombras autônomas, como um elemento em si,
presentes na Comedia dantesca e daquela que Adelbert von
Chamisso exibe como uma mercadoria sujeita à separação do
corpo que a projeta em A maravilhosa história de Peter
Schlemihl, a que se apresenta para Júlia é inseparável da
estrutura física que lhe dá vida. As ilustrações corroboram a
versão de Júlia e demonstram a presença do contorno de menino
tanto numa posição espacial similar à adotada pela menina
quanto em postura diferenciada. Então, a projeção corresponde
exatamente aos seus movimentos quando ela joga bola; todavia,
em outros atos, há uma distinção de posicionamento entre
ambos, embora ainda estejam associados entre si. Enquanto a
personagem brinca com a boneca, carrega os pratos com cuidado
e faz crochê, a sombra de menino que a acompanha arranca a
perna do brinquedo que simula um bebê, deixa os pratos caírem
no chão e brinca com os fios do novelo de lã. Além disso, a
imagem que representa o momento em que a menina faz xixi a
coloca em posição de cócoras em contraposição a figura umbrosa
que permanece em pé.
Antes de seguir com a análise do texto, proponho um
parêntese breve acerca desta forma de urinar entre as partes
com o fim de demonstrar que hábitos aparentemente inócuos
interferem na construção de uma ideia hierarquizante entre os
137
indivíduos. Ainda em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir
examina o ato que constitui um dos primeiros encontros
infantis com a diferença sexual: os homens fazem xixi de pé e
as meninas sentadas ou agachadas. Os primeiros gozam de
liberdade ao manipular o pênis de modo que o expelir do jato
líquido se torna uma atividade lúdica, prazerosa e remete à
capacidade de dominar a própria natureza. Por sua vez, para
desempenhar a mesma atividade, a mulher precisa se abaixar,
retirar parte da própria vestimenta e se esconder; como afirma
a autora ―é uma servidão vergonhosa e incômoda‖. A vivência
com uma necessidade fisiológica se realiza de forma distinta,
pois uns a experimentam de maneira ativa e outras de uma forma
passiva e quase vergonhosa. Logo:
Parece às meninas que o menino, tendo direito de bulir
do pênis, pode servir-se dele como de um brinquedo, ao
passo que os órgãos femininos são um tabu. (BEAUVOIR,
2009, 368-369)
Encerrando a observação, ressalta-se que o adestramento da
mulher para fazer xixi apenas de um jeito, sendo este tão
submisso e encoberto, contribui para a concepção do corpo
feminino como um elemento pudico, além de assinalar a presença
de uma diferença sexual hierarquizante. O modo de urinar é
apenas um entre inúmeros exemplos que corroboram a tese de que
a feminilidade não é biologicamente determinada, mas
culturalmente inserida nos seres humanos detentores de uma
vagina em algumas sociedades. As imagens apresentadas no livro
marcam as distinções comportamentais previstas socialmente
para crianças de acordo com o gênero a que são designadas
desde tenra idade. Verifica-se a inserção do segundo sexo na
esfera do cuidado e da destreza em contraste com o varonil
cujas experiências têm um caráter desbravador e criativo.
Portanto, atividades que a priori podem ser realizadas por
crianças em geral, ganham atribuições específicas de acordo
com questões identitárias.
138
A projeção de menino que se desloca com Júlia demarca a
desigualdade mencionada e a segue por todo o tempo. Uma mirada
mais minuciosa sobre o enredo incita a associação da questão
ao conceito de sombra desenvolvido por Carl Gustav Jung no
qual a companheira umbrosa representa a esfera do
inconsciente. O psiquiatra suíço defende que o conteúdo da
zona escura da personalidade no nível pessoal é formado por
materiais oriundos da experiência individual e por fatores
psicológicos submetidos à repressão. Ele a designa como uma
natureza inferior na qual se encontra ―uma omissão que geraria
um ressentimento moral‖ (JUNG, 1971). Na introdução do livro
Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da
natureza humana, composto por textos de diversos estudiosos
das teorias junguianas, exibe-se didaticamente a sombra ―como
um sistema imunológico psíquico, definindo o que é o eu e o
que é o não-eu‖ (ZWEIG; ABRAMS (org.), 2012, p.16). Entende-
se, portanto, a sombra como a face noturna onde habitam as
potencialidades não-desenvolvidas por determinado indivíduo.
A abordagem do inconsciente remete Jung aos escritos de
Freud, pois este é um dos primeiros a se aventurar pela selva
escura dos domínios humanos. No rastro do médico austríaco
cuja teoria está em torno das repressões de cunho moral
dirigidas às inclinações infantis, o suíço desenvolve as suas
investigações nas quais o inconsciente inclui, além dos
conteúdos reprimidos, todos os aspectos psíquicos que não
ultrapassam o limiar da consciência e podem constituir, ainda,
―sementes de futuros conteúdos conscientes‖ (JUNG, 1971, p.
13). Em Psicologia do inconsciente, ele enumera alguns dos
constituintes pertencentes a esta esfera: ―lembranças
perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações
dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassam o
limiar da consciência‖. Desse modo, Jung entende o âmbito do
lado escuro não como uma estrutura inativa em repouso, mas
como um sistema ―empenhado em agrupar e reagrupar seus
139
conteúdos‖ (JUNG, 1971, p. 13). A configuração soturna possui
uma dinâmica ativa e própria capaz de aglutinar elementos
compreendidos socialmente como positivos e negativos, mas
analisado com inferioridade pela consciência que a oculta.
Na concepção de Jung, ―é no oposto que se acende a chama
da vida‖ (JUNG, 1971, p.49), por isso na sua teoria consciente
e inconsciente se influenciam de maneira mútua. Na narrativa
em análise, por exemplo, a protagonista experimenta a cisão
existente entre a imagem que tem de si e aquela que lhe é
apresentada de forma negativa pela perspectiva familiar. A
sombra é o elemento estético responsável pela representação da
dualidade imposta após a entoação da frase que ecoa no
interior da menina: ―Parece um menino‖. A silhueta umbrosa com
contornos masculinos aparece como uma instância negativa do
corpo que a projeta e provoca estranhamento e medo, porque
demonstra autonomia e ―nunca se acanha‖. Vale observar que,
embora seja detentora de uma energia própria, a sombra não se
desprende da matéria que a projeta, tal como vimos em Dante e
em Adelbert von Chamisso. Afinal, seguindo as ideias
junguianas, todo ser leva consigo tanto a sua luz quanto a sua
escuridão. O aspecto sombrio da protagonista se coloca diante
dos seus olhos como uma presença soturna, provocando-a
continuamente ao confronto.
Inicialmente, Júlia tenta ignorá-la; logo depois,
estabelece uma discussão frustrada com a projeção na qual pede
para que ela desapareça, aponta a dissemelhança da sua forma
de ser com a dos garotos e expressa ―Eu sou uma menina, não
sou como você!‖ (BRUEL, 2010, p.32), mas a companheira é
silenciosa e não troca palavras com a protagonista. Diante da
permanência da figura dissonante, ela usa distintos artifícios
para espantá-la, entre as quais brinca com as poças d‘agua com
o fim de provocar uma bronquite naquela intrusa e, desta
forma, libertar-se da perseguição. As tentativas de despistar
a sombra parecem torná-la cada vez mais poderosa e próxima
140
culminando na dúvida da menina acerca da própria identidade:
―Agora, ela nem sabe mais com quem se parece./ E nem mesmo seu
espelho já a reconhece‖ (BRUEL, 2010, p.41). Soma-se à
questão, a sugestão do narrador de que há um apreço maior dos
demais quando a aparência da protagonista se sobrepõe a sua
essência e faz com que ela utilize recursos contra a própria
natureza com a finalidade de ser amada:
Gostam dela quando não está penteada como Júlia.
Gostam dela quando senta melhor do que Júlia.
Gostam dela quando fala menos do que Júlia. (BRUEL,
2010, p.39)
O desprezo pela figura incômoda a torna mais potente.
Seguindo os escritos de Jung, entende-se que a rejeição do
lado negativo da personalidade possibilita o seu
desenvolvimento de forma mais acentuada e, em determinados
contextos, sobrepõe-se, inclusive, à personalidade do
indivíduo. Na história de Júlia, a sombra faz com que a menina
coloque em pauta a própria identidade de gênero e duvide se
realmente é uma menina, pois ―talvez ela não passe de um
menino mesmo...‖. Porém, ela compreende que haveria distinção
com os demais, uma vez que teria algo diferente entre as
pernas e, de acordo com o narrador, ―isso ela não quer‖
(BRUEL, 2010, p.40). O cenário torna a relação de Júlia
consigo cada vez mais turbulenta e, se antes havia uma
segurança a respeito de sua identidade, a aparição umbrosa
desestabiliza a solidez vigente. Através deste elemento
estético, Christian Bruel evidencia debates relevantes a
respeito de sexo biológico e identidade de gênero de modo
acessível ao público infanto-juvenil.
Pertencente ao grupo de fêmeas da espécie humana, tendo em
vista que tem uma estrutura corpórea que a qualifica
socialmente desta forma por possuir vagina, útero e glândulas
mamárias, a protagonista se vê diante do reflexo de uma menina
em frente ao espelho. A concepção do termo em sua perspectiva
abarca a referência ao seu sexo biológico, pois ser uma menina
141
aqui corresponde à constituição física. Conforme visto
anteriormente, a primeira distinção sexual na primeira
infância se apresenta através do corpo pela distinção da
genitália. No entanto, quando os pais a assemelham a um menino
se reportam ao seu comportamento desprovido de feminilidade,
ou seja, a ausência do componente cultural responsável por
cunhar características que socialmente são atribuídas à
expressão de gênero feminina. Júlia se apropria da liberdade
para atuar na vida, todavia aos olhos dos pais - já
influenciados pela coerção cultural que separa o mundo de
forma binária entre elementos pertinentes a homens e mulheres
– ela precisa se adequar às regras sociais que lhe são
impostas, ainda que venha a ferir sua própria maneira de ser.
A incompatibilidade da sua percepção com a que lhe é
apresentada pelos pais gera uma vulnerabilidade nas verdades
da personagem sobre si.
A aparição da sombra instiga Júlia a colocar em xeque o
seu reconhecimento, ou seja, a incita a questionar sobre a
própria identidade de gênero. Ela se coloca diante da hipótese
de ser um menino, mas prontamente a desconsidera, porque
embora seu corpo projete uma silhueta distinta daquela que a
origina, a protagonista rejeita a qualificação de menino por
conta da genitália que possui. O conflito entre o corpo e o
comportamento passa a ser insustentável para a personagem e a
conduz a uma fuga para a escuridão, por isso decide se
esconder embaixo da terra porque onde o sol não chega é
impossível ter sombra. Ela se dirige determinada a um parque
com o objetivo de abrir um buraco na terra para se esconder da
mesma forma que os ratos, pois está segura de que eles, por
andarem próximos ao solo, não lançam projeção. Contudo, por
meio das ilustrações, nota-se que o parque ao qual a menina se
refere não é um lugar qualquer, mas um cemitério no qual jaz
Charles Perrault. A aparição da lápide do ―pai da literatura
infantil‖ que registra os contos de fadas conhecidos
142
mundialmente até os dias de hoje não é gratuita.
Simbolicamente, o enterro de Júlia se deve à inabilidade de
reproduzir os hábitos das princesas propagados por estas
narrativas responsáveis pelo emoldurar do imaginário feminino
ao longo de séculos.
Assim, com uma pequena pá, Júlia começa a cavar um abrigo
no qual almeja se proteger da silhueta que insiste em
importuná-la e coloca em prática a ideia de se libertar da
sombra a partir do jogo de luz. Dias antes, em um diálogo com
a mãe, nota-se a sua percepção sobre o sumiço da sombra
mediante a falta de luminosidade: ―— Mamãe, me diga uma coisa,
as sombras comem luz? Mamãe, me diga, se acabar a luz, as
sombras morrerão? ‖ (BRUEL, 2010, p.34) A genitora reitera o
estado de sonolência da criança e mantém a possibilidade da
ambientação onírica do episódio. De igual maneira, a menina
sustenta o estado de consciência diante dos fatos. Cabe ao
leitor, em sua liberdade interpretativa, imiscuir-se por uma
das duas alternativas.
Porém, uma certeza é a de que a protagonista vivencia a
ambiguidade de não poder ser quem ela é, no plano consciente
ou no inconsciente. À luz de Jung, compreende-se que os dois
lados são passíveis de uma influência ativa na sua existência,
por isso já não é tão interessante decidir sob qual ponto de
vista está a verdade, mas sim enfatizar o encontro de Júlia
com esta sombra de menino por meio da qual se atravessam
temáticas complexas nem sempre debatidas de forma clara em
sociedade. A censura está presente, principalmente, no que se
refere às crianças, porque, de acordo com o senso comum,
apenas o plano da fantasia de um mundo distante cabe a elas,
privando-as, muitas vezes, da reflexão sobre questões
presentes no seu cotidiano. Isto é, não lhes é permitido um
encontro com as sombras que as cercam fazendo com que tenham
que lidar de forma solitária com os problemas.
143
Uma vez que Júlia não encontra um acolhimento a respeito
das suas dúvidas, apenas repreensão e descrédito, ela decide
buscar sozinha a solução para o problema. A personagem prepara
o próprio esconderijo e começa a imergir na escuridão, quando
escuta uma voz e um menino vem ao seu encontro. Chorando, ele
questiona sobre o motivo pelo qual a menina se acha dentro do
buraco e ela, por sua vez, pergunta a razão do seu pranto. O
interlocutor revela que, aquele lugar, acolhe seu choro em
dias de tristeza, pois ali ninguém o repreende por sua
sensibilidade e tampouco enuncia a sua semelhança com as
meninas. A partir do diálogo, conclui-se que ambos vivenciam o
mesmo problema e encontram refúgio de sua pequena morte no
parque onde todos dormem. De repente, as falas são
interrompidas pela detecção de ruídos e as crianças se
escondem. Júlia comenta que são os pais em sua busca e, ao
perguntar sobre a família do menino, ele manifesta que seu pai
e sua mãe estão sempre dormindo. O sono dos adultos propicia
algumas interpretações como a indiferença a respeito do filho
e a possível morte de seus genitores.
A conversa entre os dois demonstra o desconforto diante da
recusa dos adultos de aceitarem aquilo que escapa as suas
expectativas e da constante acusação alheia de não se
comportarem de forma correspondente àquela que a sociedade
lhes impõe. Através de uma linguagem lúdica e acessível à
infância, as personagens debatem sobre os papeis de gênero que
são determinados socialmente através de um conjunto de regras
pelas quais há uma classificação entre coisas apropriadas
especificamente aos homens e às mulheres. Desta forma, na
infância, espera-se que meninos se interessem por esportes,
tenham uma postura ativa, sejam corajosos e seguros, enquanto
que se anseia da menina uma atração pelas características de
uma princesa entre as quais prevalecem a vaidade, o
romantismo, a fragilidade, o cuidado e a passividade. Nas
idades subsequentes, os papeis se mantém por meio de outras
144
atitudes e comportamentos, mas preservam uma masculinidade
sólida e estável em contraponto com uma feminilidade maleável
e vacilante. Ainda que não saibam formalmente sobre estas
diferenças, Júlia e seu amigo a percebem, conforme se verifica
no diálogo abaixo:
—Olha, é como se cada um de nós estivesse preso num
pote.
— Como pepinos?
— Sim, como pepinos. Num pote, os pepigarotos, em outro,
as pepimeninas... e ninguém sabe onde colocar as
garomeninas. Eu penso que, se quisermos, podemos ser os
dois ao mesmo tempo. Não ligo para as etiquetas. Temos
esse direito!
— Você acha mesmo?
— É claro que temos o direito. (BRUEL, 2010, p. 58)33
Assim, a frase que se repete ―temos o direito‖ representa
o desfecho a que as crianças chegam. Elas constatam que não é
preciso se adequar aos rótulos pré-estabelecidos pela
sociedade para agradar aos demais e anular a própria
liberdade. A estereotipagem dos comportamentos designados a
meninos e meninas aprisiona corpos e mentes não apenas
daqueles que se ajustam ao padrão vigente, mas dos que não
conseguem se inserir na ordem determinada. Em O Segundo Sexo,
Simone de Beauvoir empreende um longo estudo em busca das
respostas para a questão ―o que é ser mulher?‖e uma das
conclusões da autora é que o destino biológico não define a
maneira de ser de uma fêmea na sociedade. Uma ampliação da
teoria permite afirmar que a estrutura física não demarca a
forma de atuação de nenhum ser humano, porque conforme defende
Sartre a nossa única condenação é a liberdade. Cito Beauvoir:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino
biológico, psíquico, econômico define a forma que a
fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto
da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.
Somente a mediação de outrem pode constituir um
indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a
criança não pode apreender-se como sexualmente
diferençada. (BEAUVOIR, 2009, p.261)
33 As palavras em itálico seguem os destaques do texto original.
145
Portanto as feminilidades e as masculinidades são produtos
culturais incutidos nas crianças pela figura dos adultos,
porque a distinção das atribuições de gênero não lhes são
inatas. Conforme visto, Júlia e o colega decidem se apropriar
do direito de manifestar o próprio jeito de ser sem se
preocupar com as normas comportamentais impostas pelo meio.
Juntos, no esconderijo do cemitério, eles dialogam sobre a
sombra que os persegue e compartilham a dificuldade de serem
diferentes. Em meio à discussão adormecem e despertam no dia
seguinte com fome, frio e o menino expõe um problema: o que
dizer no retorno ao lar? Esperta em suas elucubrações, Júlia
sugere que digam que se perderam e depois acharam o caminho, o
que não deixa de ser verdade, pois cada um com a sua tristeza
se sentia confuso a respeito da própria identidade e depois do
encontro eles identificam uma trilha em comum na qual a única
regra é ter o direito a ser quem se é. Ela repete ao longo do
itinerário ―temos o direito, temos o direito‖ e, conforme
expressa o narrador:
Aconteça o que acontecer, agora ela sabe. Ela é a Júlia.
Júlia- fagulha
Júlia-fúria
Júlia-Júlia. (BRUEL, 2010, p. 65)
Ao lado do amigo, a menina se reapropria da
responsabilidade sobre a sua identidade. Comprometida consigo
e com a liberdade, ela percebe que a tentativa de
enquadramento no molde em que não se cabe, resulta em prejuízo
para o sujeito, que pode ser engolido pelo próprio lado
obscuro. Por isso, no rastro dos gregos antigos em cujos
ensinamentos se encontra o ―conhece-te a ti mesmo‖, acredita-
se que o maior valor consiste em ser quem se é, tendo ciência
de que somos compostos tanto pela claridade quanto pela sua
ausência. Afinal, como afirma a teoria de Carl Gustav Jung,
―pelo fato de termos um corpo, ele projeta uma sombra – como
todo corpo. Ela nos diz ainda que, se renegarmos nosso corpo,
não somos tridimensionais, mas sim planos ilusórios‖. (JUNG,
146
1980, p. 27). Logo, como todo ser humano vivente, contemos a
ambiguidade consciente e inconsciente dentro de nós mesmos.
Júlia não precisa perpassar por estas análises para
compreender que aquilo que ela é projeta necessariamente o que
não-é. A menina deduz na conversa com o colega no parque o
direito de proferir de maneira exclamativa ―Eu sou Júlia!‖,
mas sim ―Júlia-Júlia‖ e não aquela idealizada pelos pais.
Enquanto os adultos se preocupam com a dimensão abstrata de um
comportamento inadequado ao papel de gênero atribuído ao
pequeno ser, a criança trata apenas de se colocar diante do
mundo, porque está atenta a apreender aquilo que a cerca, tal
como nos alerta Nietzsche. Crescemos, buscamos o abstrato,
decodificamos as entrelinhas e esquecemos do valor do que está
mais próximo ou, como diz Manoel de Barros no poema O
andarilho, deixamos de ―conhecer as ciências que analfabetam‖.
Um dos idealizadores da Sourirequimord, Christian Bruel
capta a necessidade de que adultos e crianças olhem para o
mundo ao seu redor e, sem conceitos prévios, reconstruam
percepções sobre a realidade. Ele demonstra a importância de
não restringir meninas e meninos ao mundo fantástico, porque –
como parte do corpo social – os pequenos também experimentam
os sabores doces e amargos do mundo. O nome da editora já nos
remete à imagem do sorriso da criança – provocador de deleite
- que pode se transformar a qualquer momento em um instrumento
de dor por meio da mordida. Bruel propõe uma visão menos
idealizada acerca da infância na qual o imaginário construído
através do literário não se delimite à narrativa inalcançável
de um lugar e um tempo distantes, mas também propicie uma
abordagem reflexiva do universo que o cerca:
147
Fonte: http://lajoieparleslivres.bnf.fr
É imprescindível assinalar as consequências oriundas da
escolha política de abordar assuntos que ainda se limitam ao
universo adulto. Numa versão mais moderada, os críticos se
antepõem à ideia de Bruel e assinalam a dificuldade de
compreender os enredos propostos, sobre a possibilidade de
seus livros conterem fins terapêuticos e a respeito do editor
incentivar uma nova corrente da literatura infanto-juvenil que
busca originalidade ao apresentar temas que não deveriam ser
discutidos com indivíduos desta faixa etária. Observa-se um
incômodo notório da crítica diante dos enredos propostos pela
editora e um mal-estar relacionado ao tratamento conferido às
crianças através do qual se almeja diluir algumas das
barreiras que os adultos lhes impõem. A matéria Les livres
pour enfants, despolémiquesrécurrentes de Marie-EstellePech
para o jornal Le Figaro, datada de 2014,elucida a manutenção
do debate ainda no século XXI e aponta Histoire de Julie
quiavait une ombre de garçon como o precursor das discussões
de gênero na escola.
Já a rejeição da extrema-direita é incisiva ao afirmar que
a obra suscita a sexualização precoce das crianças e promove a
homossexualidade. A publicação Breizh-info, por exemplo,
divulga em 2014 uma matéria sobre a 13ª edição do Salão do
livro infanto-juvenil de Morbihan intitulada Salondu livre
jeunesse, propagande et subventionsmultiples na qual acusa os
organizadores de subverter o pensamento dos mais jovens e usar
dinheiro público para propagar temas inapropriados o grupo de
pessoas a quem se dirigem. O texto cita a primeira produção de
Christian Bruel, que aqui analisamos, como parte do grupo de
50% das obras presentes no primeiro andar que ―fazem apologia
à anarquia, à revolução e apregoam a teoria de gênero‖.
Verifica-se uma semelhança com os discursos conservadores
presentes no Brasil nesta segunda década do século XXI em que
148
toda reflexão com traços mais progressista é qualificada como
ideologia: ideologia de gênero, ideologia marxista, entre
outras.
A propósito, o livro traduzido para mais de dez idiomas
também tem uma versão para o português brasileiro por Álvaro
Faleiros. Com primeira edição lançada pela Scipione em 2010 e
esgotada, tentamos o contato com a editora para saber sobre a
possibilidade de uma nova reimpressão, tendo em vista a
indisponibilidade do livro físico em diversas livrarias,
bibliotecas e sebos. A atendente informou, sem maiores
detalhes, que a obra foi descontinuada do seu catálogo. Além
disso, mediante a perguntas sobre distribuição, comunicou que
não poderia fornecer detalhes sobre o número de impressões e o
motivo pelo desinteresse de reproduzir outras edições. Estas
informações expõem a dificuldade de acessar a tradução
brasileira a partir de uma das principais capitais do Brasil
que não deixa de ser um silenciamento da voz de Bruel em nosso
país. O exemplar consultado para esta pesquisa, por exemplo,
pertence ao acervo da Biblioteca Nacional e não pode ser
retirado do salão de leitura.
A história de Júlia e sua sombra de menino é um livro que
transborda a própria estrutura para construir com o leitor as
suas significações. Configura-se como uma literatura adversa
às classificações, porque no que concerne ao gênero não se
autointitula como literatura infanto-juvenil, no que diz
respeito à forma se expressa ora em prosa ora em verso e em
termos de conteúdo abarca temas considerados tabus no mundo
ocidentalizado. Tal como Sartre utiliza a expressão, Christian
Bruel e Anne Galland firmam um pacto de generosidade com o
leitor - independente da sua idade - confiando-lhe liberdade
para desdobrá-la reflexivamente em múltiplas direções. Se há
uma moral ao fim da narrativa, ela consiste na necessidade de
questionar todos os tipos de regras que se impõem como
verdades inquestionáveis seja no universo infantil seja no
149
adulto. Portanto, os autores criam um enredo que visa à
inquietude e não se conforma com a calmaria onírica da pura
fruição que acalanta uma inocência idealizada.
A história de Júlia e sua sombra de menino encerra a
análise breve da presença da sombra na literatura. A narrativa
simples, mas distante de ser simplória, convoca o leitor a
resgatar o diálogo com a companheira umbrosa mais próxima que
pode estar dentro de si, agitada nas estruturas do
inconsciente, ou o seguindo em silêncio, tal como a projeção
do andarilho que caminha solitário sob raios solares ou
brilhos lunares e não se vê só. Vez ou outra, em suas
andanças, a luz do conhecimento atinge a calmaria da caminhada
e multiplica o objeto sobre o qual a sua intenção se lança.
Ele não se assombra, mas se sombra sem medo de encontrar a
negatividade, pois aprendeu com a filosofia e a arte que ela
pode ser um poderoso instrumento de descoberta.
150
4. O cenário se desmonta: a aparição dos diretores da
história
Pero a mi noche no la mata ningún sol.
(Alejandra Pizarnik)
Luz, câmera, ação! A partir do grito do diretor da
história, registra-se a cena. Tudo fora ensaiado com
antecedência para construir a imagem perfeita, pois não há
espaço para improvisos. Enquanto atores repetem
incessantemente o texto de acordo com o script, figurantes
aguardam para povoar em silêncio o núcleo de personagens
secundários. Demarcado o posicionamento de cada um diante da
câmera, o diretor insiste em retomar as entradas, porque a
precisão do foco é fundamental para a compreensão da ideia que
deseja transmitir. Por isso, cuida atentamente da iluminação;
sombra, contraste, profundidade e efeitos visuais precisam
estar sob controle para que uma verdade se imponha. Através da
manipulação de um quadro perfeito, oferece uma possibilidade
de realidade e, por alguns instantes, percebe-se criador de um
mundo por ele escrito e dirigido. Seguro da fama que
construiu, acredita saciar o desejo de espectadores sedentos
pelos seus feitos e de uma crítica sempre disposta a aplaudi-
lo. Vez ou outra, uma gargalhada ressoa quando lembra que tudo
não passa de uma farsa e pensa: pobre dos que não se
interessam pelo que há por trás de uma lente e acreditam
apenas em uma versão da história. Uma voz, então, sussurra ao
seu ouvido: é para eles que existe o seu trabalho. Ele retoma
a compostura e segue. Afinal, o silêncio dos demais é o grande
segredo do êxito de suas narrativas.
Quantas versões há em uma história? Tantas quantas sejam
as pessoas que estejam decididas a contá-la. No entanto, sabe-
se que, embora sejam múltiplas as abrangências, poucos são os
que conseguem torná-las públicas e legitimá-las através de um
discurso sobre o qual os demais estejam dispostos a ouvir,
151
aceitar e retransmitir. Por isso, não é raro que um relato se
sobreponha aos demais e, com o tempo, comece a se impor como o
único viável de validação. Assim, solidifica-se de tal forma
que, quando lançamos luz sobre os seus domínios, ele não
apenas se impõe com mais proeminência, mas também lança
sombras em seu entorno. Acostumado a coadunar o olhar com o
plano do luzente, o mero contemplador ignora o redor e repousa
a consciência nos limites para onde dirigem o seu olhar.
Porém, o observador atento não se contenta em obedecer este
guia. Ele sabe a riqueza existente no sombrio e ali procura as
pistas que lhe fornecem os meios para construir outras
possibilidades sobre o real que lhe apresentam.
4.1. Sombras do passado
A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias
para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los
em seus sonos injustos.
(Conceição Evaristo)
Uma luz desponta no horizonte e alumia a Terra a partir da
linha onde o olhar humano jaz sob o encontro ilusório de seus
limites. O aparente repouso se desvela quando observamos o céu
e constatamos que tudo está em movimento ou no momento em que
olhamos ao redor e visualizamos o baile das sombras que se
erguem com dimensões e formas distintas. A fonte luzente
propicia a fé em alguma constância, pois a cada dia ela se
impõe, mas pobre daquele que a beatifica e ignora os duplos
umbrosos que ganham contornos com a profusão de seus raios e
depois se imiscuem ao domínio infinito da escuridão. As
aparições se modificam devido à dinâmica que as cerca e
assinala a face umbrosa perseverante diante dos diversos
brilhos que insistem em ludibriar sujeitos finitos autores de
revelações frágeis. Outrora se creditava a arte da trapaça à
sombra, contudo é necessário estar atento ao cenário
responsável pela sua aparição, pois ele se configura como o
152
diretor cuja perspectiva direciona o olhar de atores e
espectadores – livres na atuação, mas ancorados na própria
situação - designando o evidente e o oculto na narrativa da
vida.
Em Do mundo fechado ao universo infinito, Alexandre Koyré
demonstra a variação da concepção do espaço e das ideias de
acordo com os pontos de vista do homem e da sociedade na qual
ele se insere, bem como os instrumentos dos quais dispõem em
suas observações e das instâncias de poder em vigência.
Através da investigação do filósofo, verifica-se que a
validação do saber está permeada de variantes cuja organização
influencia na instituição do que se legitima como verdade em
determinado tempo e meio. Por isso, o caçador de conhecimento
não se contenta em marchar pelas trilhas solares do
incontestável ou por aquelas iluminadas pela lâmpada dos que o
precedem. Portando o candeeiro flamejante da dúvida, ele se
empenha na busca das sombras deixadas outrora no caminho
percorrido pelos seus antecessores ou se embrenha na selva
escura do novo acompanhado das projeções moventes que o
cercam.
Em suas diversas faces, o objeto se oferece à mirada do
investigador e este, por sua vez, o explora por meio das
faculdades que dispõe e de uma determinada perspectiva. Logo,
o material pesquisado é inesgotável, considerando a
pluralidade presente em sua constituição, bem como a
quantidade variada de pessoas – com suas respectivas
individualidades – que nele se debruçam em busca de perguntas
e respostas. Nesta relação, conforme já advertido por
Nietzsche no capítulo anterior, a cada luz lançada, uma nova
sombra surge, por isso o ato de revelar culmina,
necessariamente, em um outro velar. Assim sendo, o processo de
conhecimento também consiste em uma tarefa interminável na
qual o homem se lança em direção ao elemento de desejo sem
conseguir obtê-lo por completo. Nosso trabalho, não difere do
153
descrito. Ciente da impossibilidade de abarcar nossos anseios
em sua totalidade, propomos que o observemos através de outros
prismas na manha necessária para acompanhar sua ginga diante
da reflexão, visando a uma contemplação mais enriquecedora de
suas possibilidades.
Os capítulos apresentados até então se ocuparam dos
rastros da sombra na cultura ocidental e em sua aparição na
produção literária a partir de três obras ambientadas em
contextos distintos. Embora ao longo da pesquisa tenhamos
descoberto outros materiais textuais nos quais a projeção se
insere como imagem poética, optamos por abordá-la em situações
nas quais ela se diferencia tanto em termos de representação
quanto de significação. Parafraseando Octavio Paz em O arco e
a lira34, captamos exemplos em que a sombra deixa o mundo cego
da natureza para ingressar no mundo das obras. Os textos
analisados propiciam o encontro da transformação da silhueta
resultante do bloqueio dos raios de luz em imagem capaz de
transcender à própria palavra. Inspirados na metodologia de
Victor I. Stoichita, em Breve historia de la sombra,
apresentamos a importância estética do perfil no discurso
literário europeu a partir de uma tríade de textos de formas e
temporalidades diferentes, mas que tem este elemento como
figura relevante em suas estruturas.
Inicialmente, na poesia dantesca, a sombra se apresenta
como a natureza da maioria das personagens e, através de
Estácio, descreve-se o processo de sua formação. Enquanto um
elemento em si – tendo em vista que independe da estrutura
física a qual se associa – mantém faculdades próximas àquelas
atribuídas ao ser vivente ainda que não disponha de matéria.
Na Comedia, as sombras são sujeitos atuantes nos episódios em
34 Trecho original: ―Sejam quais forem sua atividade e profissão, artista ou
artesão, o homem transforma a matéria-prima: cores, pedras, metais,
palavras. A operação transformadora consiste no seguinte: os materiais
deixam o mundo cego da natureza para ingressar no mundo das obras, ou seja,
das significações.‖ (PAZ, 2012, p.29) – Grifo nosso
154
que se inserem e representam um elemento anímico que atende ao
debate, entre outros possíveis, do destino das almas após a
morte, presente no período transitório entre a Idade Média e o
Renascimento, respectivamente, períodos da fé e da ciência. Em
seguida, em A história maravilhosa de Peter Schlemihlobserva-
se a sombra como uma moeda de troca por meio da qual se
evidenciam as relações presentes no capitalismo. A figura
representa um objeto passível de desagregação do corpo que a
projeta, não possui autonomia e se submete àquele que a
possui. Já na Modernidade, A história de Júlia e sua sombra de
menino, o corpo está encarregado de carregar a própria
projeção, ainda que a mesma não corresponda ao perfil
previsto.
Na primeira parte do nosso estudo, a relação entre sombra
e literatura se concentra na representação da primeira nos
domínios da última. No recorte determinado, a silhueta nos
remete a debates a respeito de valores oriundos de sociedades
que vivenciam crises em seus aspectos religiosos, econômicos e
identitários. A proposta de uma investigação dedicada à
presença desta imagem no âmbito literário pode se ater à
análise da sua aparição nos textos visando à comprovação de
sua relevância estética em tal arte, assim como fizemos nos
capítulos anteriores. A partir do desenvolvido, verifica-se
que, embora seja mais evidente no campo pictórico, a sua
inserção na literatura assegura a constituição polissêmica
necessária para contribuir com o que se denomina como
literariedade de um texto. Este é um dos aspectos possíveis
para desbravar a presença do perfil umbroso no contexto
citado. No entanto, conforme discutido, aquele que busca o
conhecimento se desloca Item perspectiva em seu objeto. Isto
é, seguindo a concepção de Albrecht Dürer da palavra latina,
155
ele ―olha através de‖35 seu alvo em busca das possibilidades de
realização sensível do quadro que observa.
As manifestações da sombra na literatura abrangem aqui um
corpus de obras produzidas nos países europeus por autores
também oriundos das regiões setentrionais. Além disso, a
representação desta imagem é examinada em períodos específicos
cuja territorialização é cara à história literária, como: o
Renascimento italiano, o Romantismo alemão e a Modernidade
francesa. O pensamento sobre a escrita estética a partir do
lugar circunscrito assegura um navegar em águas calmas, uma
vez que a crítica tradicional estabelece nos centros europeus
ocidentais o marco de suas reflexões e delineia um espaço de
onde se configura o Absoluto a partir do qual se relativizam
todas as demais. Digo, é o parâmetro no qual transitam as
marés do que se designa como verdade objetiva cujo conteúdo
compreende uma universalidade. A suposta neutralidade que o
envolve também o protege com pretensa isenção de
particularidades responsáveis pela vulnerabilidade de
determinadas teorias em contraponto com outras que se entendem
indiscutíveis devido ao caráter imparcial que lhes é relegado.
A escolha do recorte em questão não é gratuita. Embora a
arqueologia demonstre que os fósseis de seres humanos mais
antigos tenham sido encontrados na África e as ciências
humanas comprovem que a produção de saberes de povos
originários dos países americanos e africanos fora bastante
desenvolvida, as histórias dos fatos e do conhecimento
atribuem aos povos europeus a centralidade dos discursos e
estes, por sua vez, adotam a Grécia como o grande berço
acolhedor do pensamento, cultura e tradições nascentes nas
sociedades classificadas como civilizadas. Segundo esta
concepção eurocêntrica, as grandes navegações figuram como o
ponto de partida do desbravamento do homem pelo mundo por meio
35 A concepção de perspectiva do artista alemão é apresentada por Erwin
Panofsky em seu livro ―La perspectiva como forma simbólica‖
156
do qual a coragem de determinados povos os impele à superação
do medo a respeito do que havia além do horizonte em busca de
riquezas, ganhando como recompensa a descoberta de novas
terras sobre as quais eles acreditam deter posse e poder.
Assim, a Europa e seus habitantes se auto-consolidam como um
Eu referencial– que se creem iluminados36 pelo sol de um rei,
de uma lei e de uma religião – e começam a lançar sombras ao
redor de tudo o que não lhes diga respeito, ou seja, o Outro.
A alteridade descrita é intensificada ao longo do processo
colonial, uma vez que o encontro dos povos do norte e do sul37,
como os da Europa e América, gera reconhecimento de corpos e
culturas distintos entre si. Eles se vêem diante de um
semelhante permeado de diferenças e esta tensão é fundamental
para embasar as relações hierárquicas que se estabelecem a
partir do contato em questão. Na carta de Pero Vaz de Caminha
ao rei de Portugal, D. Manuel, a primeira descrição dos
habitantes do solo brasileiro é: ―Pardos, nus, sem coisa
alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas
mãos, e suas setas‖. Verifica-se, por meio do relato, a
referência a três elementos específicos - a cor da pele, a
nudez e o armamento – diferenciadores dos povos em contato.
Porém, os corpos despidos propiciam a identificação do elo
existente entre eles: a estrutura física38. Até então, o
português se ocupa apenas de apresentar o ocorrido; contudo,
algumas linhas depois, trata de exprimir o primeiro juízo de
valor a respeito daqueles outros sobre os quais o seu olhar
repousa:
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de
bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem
cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou
36 Não pretendo aqui fazer referência ao Iluminismo, pois seria um
anacronismo relacioná-lo ao mesmo período das navegações. 37 Vale dizer que a constituição espacial norte/sul da cartografia também já
é fonte de provocações, vide o desenho ―Mapa Invertido‖, de 1943, do
artista uruguaio Joaquín Torres-Garcia. 38 Por mais que, no século XIX, ciências como a frenologia se empenhe em
diferenciá-los de maneira hierarquizante.
157
deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a
cara. Acerca disso são de grande inocência.39
Não é necessário se alongar na discussão para constatar
que o encontro de civilizações culminou em um genocídio
extenso40 e no extermínio, através de aniquilamento ou
modificação, da história e da cultura de povos milenares. Por
meio de violências diversas e imbuídos de uma pretensa
superioridade material e espiritual, os europeus impuseram
seus mandos aos anfitriões das terras onde aportaram visando,
pincipalmente, ao saque das riquezas presentes naqueles
territórios. Em A América que os europeus encontraram, o
filósofo e historiador Enrique Peregalli apresenta a estrutura
das Altas Culturas pré-colombianas41, o dizimar dos seus
domínios a partir da chegada dos povos do norte e a
desumanização dos seus habitantes. Diferente do que figura nos
escritos dos ditos conquistadores, nos quais se reitera o
atraso da população residente nas terras americanas, o estudo
do pesquisador uruguaio radicado no Brasil destaca os
conhecimentos arquitetônicos, matemáticos, linguísticos,
ecológicos, entre outros, assim como a expressão artística dos
astecas, maias e incas e a relação harmônica que,
majoritariamente, mantinham entre a sociedade e a natureza.
A serpente de plumas esperada por alguns americanos chega
com pelos, roupas e muito devastadora diferente da expectativa
dos que a aguardam; além disso, provoca danos maiores do que
aquela envolvida no pecado original e se empenha na depredação
e no apagamento de todo um patrimônio. Conforme assinala
AiméCesaire, em Discurso sobre o colonialismo, neste processo
não há um intercâmbio de culturas, mas sim relações de
39 Disponível em:
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf. 40 Segundo Peregalli (1994), quando Tenochtitlán foi destruída, em 1521,
tinha 1 milhão de habitantes. (p.23) 41 ―[...]civilizações americanas localizadas no México atual, na região
norte da América Central e na faixa que se estende desde a Colômbia até o
Chile, acompanhando a orla marítima do oceano Pacífico [...] compreendendo,
respectivamente, a Confederação Asteca, as cidades-Estados maias e o
Império Inca.‖ (PEREGALLI, 1994, p.9)
158
dominação e submissão com grande potencial de desumanização
uma vez que ―o colonizador, para se dar boa consciência se
habitua a ver no outro o animal, se exercita a tratá-lo como
animal, tende objectivamente a transformar-se, ele próprio em
animal‖. (CESAIRE, 1978, p.24-25).
Em nome de uma ação civilizatória, os europeus tornam as
sociedades que encontram ―esvaziadas de si próprias‖
suprimindo-as de ―extraordinárias possibilidades‖ (CESAIRE,
1978, p.24-25). No contexto da situação colonial, um povo se
imbui de uma pretensa supremacia e ignora a capacidade
intelectiva do outro, bestializando-o, com o fim de uma
objetificação que justifique a sua dominação em termos físicos
e espirituais. No caso dos europeus, ―o complexo de
autoridade‖, tal como designa Frantz Fanon, atribui à razão o
valor humano de maior peso responsável por gerar uma
hierarquização na qual este povo se coloca como superior
diante dos demais, aos quais eles atribuem uma inferioridade.
Um exemplo ilustrativo é indicado por Todorov acerca do
conteúdo do segundo diário de Colombo42 no qual se encontra a
divergência do genovês com os habitantes sobre a extensão da
terra de onde hoje é Cuba. Enquanto os que ali vivem afirmam a
geografia insular da região, o recém-chegado refuta a hipótese
e defende o aspecto continental da área sob a justificativa da
bestialidade de seus interlocutores e o desconhecimento destes
de espaços com tais proporções: ―Nem eu acreditava que Juana
era uma ilha, mas pensei que os índios tinham me dito verdade
e que sim, o era: mas depois reconheci que eles são o tipo de
gente que não sai do seu lugar e acha que tudo é uma ilha sem
saber o que é uma terra firme‖43. Ademais, rejeita a informação
42 Todorov indica o texto a partir do texto de Andrés Bernaldez, mas
preferimos buscar a fonte específica do texto e a encontramos em
―Relacióndel viaje a Cuba y Jamaica. Carta de Cristóbal Colón a los Reyes
Católicos‖. 43 ―ni fuera yo si no creyera que la Juana hera isla, mas pensé que los
indios me avían afigurado verdad y que era isla; mas después conoçí que
ellos son gente allí que jamás salen de su lugar y creen que todo el mundo
159
que recebe devido à inexistência de documentos que a
comprovem. Seguro da posição de detentor da verdade, o
navegador desconsidera a voz dissonante, mas, posteriormente,
empenha-se na verificação empírica capaz de validar uma das
proposições (―segui o vento contrário favorável e voltei para
Juana, com o propósito de seguir a sua costa de onde eu já
tinha partido, e assim me certificar se era uma ilha ou terra
firme44). Embora seja evidente o seu equívoco, impõe a
autoridade para manter a legitimidade do seu discurso quando
ameaça os tripulantes que desmentirem a asserção sobre a
natureza continental de Juana. Em ―Informe y juramento de como
Cuba era tierra firme‖, aponta-se como pena o pagamento de dez
mil maravedíes, moeda da época, e o corte da língua do homem
que afirmasse o contrário.
Verifica-se, a partir do mencionado, o desprezo pelo saber
dos habitantes, a depreciação de suas experiências e a
sustentação da legitimidade de uma proposição, ainda que esta
não se configure como a mais adequada, pela coerção econômica
e brutalidade. Como já descrito, há apagamento de memórias,
saqueio de riquezas e extermínio dos residentes e de sua
cultura. Isto é, constitui-se uma relação de desigualdade na
qual os povos descendentes do hemisfério boreal se sentem
autorizados a intervir, principalmente através de violências
física e simbólica, nos territórios onde chegam em nome de
Deus, da razão e da civilização. Assim, exterminam a
originalidade existente, caracterizam aqueles que encontram
como um intermediário inferior ao homem branco e superior ao
macaco e utilizam os seus valores e modelos de sociedade para
forjar uma versão na qual figuram como salvadores de uma
sean islas y no saven qué sea tierra firme ni curan salvo de comer y de
mujeres‖. COLÓN, Cristóbal. Relación del viaje a Cuba y Jamaica. Carta de
Cristóbal Colón a los Reyes Católicos. Disponível em:
http://www.biblioteca.tv/artman2/publish/cristobal_colon/index.shtmll.
Acessoem 31 de maio de 2017. 44 ―fize el viento contrario bueno y bolvía a la Juana tierra firme, con
propósito de seguir la costa d'ella que yo avía dexado, hasta ver si era
isla o tierra firme‖
160
população bestial. Apesar de toda selvageria, entram na
história – escrita por eles mesmos – como: descobridores,
desbravadores, conquistadores e vencedores. Afinal, através de
um crime quase perfeito, extinguem quase todas as
possibilidades de resgate de relatos que apresentam a outras
perspectivas dos fatos.
A legitimação da Europa como o centro de distribuição e
validação dos discursos, uma das faces do eurocentrismo,
implica a concepção de que todo o não-europeu está
hierarquicamente situado numa posição inferior ou anterior,
precisando, desta forma, ascender ou avançar dentro da ideia
constitutiva de progresso. Este ponto de vista anuncia uma
única via possível de ingresso no domínio de um mundo
civilizado no qual vigora o frescor do novo sustentado pelos
pilares da racionalidade-científica: assemelhar-se aos que se
consideram criadores e protagonistas da modernidade. O
reconhecimento deste lugar de enunciação como o único
propagador de verdades corrobora a sua consolidação hegemônica
como um espaço não-situado, por isso destituído de interesses
e particularidades. Porém, a neutralidade do olhar não existe,
pois ele sempre é lançado não apenas por um determinado
posicionamento, mas também por um corpo que é atravessado por
características como: raça, classe, gênero, sexualidade. Vale
lembrar que, os sujeitos também se deslocam e carregam consigo
a inscrição de uma história. Assim, a hierarquização incide
não apenas na questão dos territórios, mas também na estrutura
daqueles que carregam consigo traços que se distinguem do que
se considera padrão de ―homem civilizado‖.
Logo, no rastro do artigo de Joaze Bernardino-Costa e
Ramon Grosfogel45, entende-se que a dicotomia superioridade e
inferioridade incidem não apenas na questão de uma
espacialidade geopolítica, mas também nas marcas que o corpo
45 BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón (2016) ―Decolonialidade e
Perspectiva Negra‖. Estado e Sociedade, v. 31, n.1: pp. 15 -24
161
carrega consigo objetiva e subjetivamente. Da mesma forma que
o norte compreende-se a partir de um status superior em
relação ao sul, o indivíduo europeu ocidental –concebido como
o autêntico sujeito racional - posiciona-se de forma mais
privilegiada do que aqueles que dele diferem, apresentados
como primitivos e associados às esferas da natureza. Logo, a
noção de desigualdade hierarquiza a relação entre povos e
seres que se julgam em situação mais elevada em relação aos
outros e, em vista disso, outorgam-se o direito de: conduzi-
los à direção que eles creem como ideal, representá-los dentro
do campo subalterno que lhes reservam e até aniquilá-los sob o
pretexto de preservação da ordem. Esta dinâmica é recorrente
em situações que englobam racismo, por exemplo, no qual uma
etnia considera-se no direito de subjugar outra devido a uma
pretensa superioridade. Ela se mantém através de um sistema
que sustenta seus interesses que se imiscui no poder político,
na cultura, na epistemologia, entre outros meios.
Na América do Sul, especificamente onde hoje conhecemos
como Brasil, o regime colonial, tal como o conhecemos, é
inaugurado em 1500 com a chegada de Pedro Álvares Cabral, mas
o processo de dominação goza de longa vida. Ele incide nos
meios ambientais, sociais e intelectuais do nosso território.
Outrora pertencente a diversas nações indígenas que aqui
residiam, os europeus começam a impregnar a sua ordem sobre o
solo que encontram. Enquanto a ambição impulsiona o assalto às
riquezas nativas e o desequilíbrio na relação entre os
indivíduos e a natureza, o ímpeto de ocupar o espaço invadido
penetra as entranhas de terras e mulheres. Assim, a partir de
1532, segundo data Gilberto Freyre em Casa grande & senzala,
constitui-se um novo modelo de sociedade cujas bases se fincam
na agricultura, no núcleo patriarcal, no trabalho escravo e na
miscigenação racial. Segundo o sociólogo, a família se
configura como a força propulsora da colonização e se
162
constitui como elemento central na constituição aristocrática
local. Cito:
A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem
nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o
grande fator colonizador do Brasil, a unidade produtiva,
o capital que desbrava o solo, instala a fazenda, compra
os escravos, bois, ferramentas, a força social que
desdobra em política, constituindo-se na aristocracia
colonial mais poderosa da América (FREYRE, 2003, p.81)
Inicia-se, sob o signo da exploração, a escrita de uma
versão da história na qual se apresenta um país que, tendo sua
solidez aniquilada, aparece como uma sombra projetada por um
obstáculo europeu. Sob a luz das ideias de razão, religião e
civilização, a metrópole manipula o perfil da colônia aos seus
moldes de forma que qualquer barbárie ganha, sob a sua
perspectiva, contornos justos. No que concerne à subjugação
humana, por exemplo, observa-se inicialmente uma
inferiorização a respeito da figura dos indígenas, pois, como
já apresentamos, eles são caracterizados com frequência nos
documentos europeus como bestiais e inocentes. Cito a carta de
Caminha: ―Parece-me gente de tal inocência que, se nós
entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos,
visto que não tem nem entendem crença alguma, segundo as suas
aparências. (CAMINHA, S/D, 11-12).
Porém, no século XVI, com a chegada dos primeiros navios
negreiros em domínios brasileiros, a escravidão dos cidadãos
oriundos de países africanos revela uma das mais perversas
formas de relações entre homens, embora nem mesmo a humanidade
lhes fosse concedida. Desagregados da própria terra e
provindos de distintos países, a população africana
transportada e comercializada desumanamente tem a sua mão-de-
obra explorada e seus corpos e culturas açoitados de forma
brutal. Verifica-se, assim, que ambos, indígenas e negros, são
animalizados, objetificados e mortos com o fim de atender aos
interesses da metrópole e das famílias que constituem a
aristocracia local. Neste aspecto, discorda-se da teoria de
163
Freyre acerca da relação harmônica entre o contato de
distintos povos. Segundo o pesquisador:
Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de
todas da América a que se constitui mais harmoniosamente
quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de
quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos
atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização
da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador
com a do conquistado. (FREYRE, 2003, p.160)
A coexistência pacífica e enriquecedora entre os povos
nada mais é que um engodo estimulado pela iluminação de uma
perspectiva colonialista. No próprio discurso de Freyre, é
notório o aspecto hierarquizante que se estabelece, vide a
contraposição: povos atrasados e adiantados. Embora o
pesquisador brasileiro se empenhe na tese da existência de uma
relação mais amistosa entre portugueses e povos originários,
em comparação com os espanhóis, não há uma ―reciprocidade
cultural‖ tal como se expressa no trecho em destaque. Vale
dizer que esta falsa ideia de comunhão, que culmina no
conceito de democracia racial, é um dos aspectos responsáveis
por silenciar, ao longo de anos, um debate justo sobre a
condição da população não-branca no nosso país. Sobre esta
questão, Abdias Nascimento diz:
Desde os primeiros tempos da vida nacional aos dias de
hoje, o privilégio de decidir tem ficado unicamente nas
mãos dos propagadores e beneficiários do mito da
―democracia racial‖. Uma ―democracia‖ cuja
artificiosidade se expõe para quem quiser ver; só um dos
elementos que a constituem detém todo o poder em todos
os níveis político-econômico-sociais: o branco. Os
brancos controlam os meios de disseminar as informações;
o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as
armas e os valores do país. Não está patente que neste
exclusivismo se radica o domínio quase absoluto
desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de
―democracia racial‖? (NASCIMENTO, 2017, p.54)
Os domínios do senhor e do escravo são bem demarcados
desde a chegada das primeiras embarcações em solo brasileiro.
Quando não são exterminados, os indígenas, cunhados como sem
alma, são impelidos a adotar a cultura daqueles que adentram
em suas terras e servem de mão-de-obra para os que dela se
164
apropriam. Além da violência da invasão de espaços e corpos,
muitos adoecem e morrem por acometimento de doenças trazidas
do norte. Porém, é imprescindível destacar que, apesar de todo
o genocídio, há resistência dos povos originários. No século
XVI, por exemplo, ocorre a confederação dos Tamoios, entre
1556 e 1567, na qual os Tupinambás lideram um levante contra
os portugueses; ademais, é preciso recordar que parte desta
população também se dirige para o interior com o fim de manter
a autonomia a respeito das próprias vidas e culturas,
liberdade inimaginável em espaços ocupados por europeus46.
A dialética torna-se mais ilustrativa com o advento do
tráfico de pessoas que são escravizadas no Brasil oriundas de
diversos países africanos iniciado no século XVI. Trazidos em
condições precárias por meio de navios nos quais são
transportados em porões de forma amontoada e expostos a
enfermidades distintas, cidadãos de várias nacionalidades são
avaliados e comercializados como objetos. Uma vez adquiridos
por um senhor, são submetidos a trabalhos árduos e jornadas
exaustivas. A mão-de-obra de indivíduos escravizados é
utilizada não apenas nas atividades que envolvem o cotidiano
da casa-grande, mas também, e principalmente, na produtividade
econômica do país, como: no século XVI nas plantações de cana-
de-açúcar, no século XVIII na extração de ouro e diamantes, no
século XIX no ciclo do café. Ainda no rastro de Abdias
Nascimento:
O papel do negro escravo foi decisivo para o começo da
história econômica de um país fundado, como era o caso
do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Sem
o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria
existido. O africano escravizado construiu as fundações
da nova sociedade com a flexão e a quebra da sua espinha
dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a
própria espinha dorsal daquela colônia. (NASCIMENTO,
2017, p.59)
46 Sobre a resistência indígena, ler mais em: RESENDE, Maria Leônia Chaves
de. LANGFUR, Hal. Minas Gerais indígena: a resistência dos índios nos
sertões e nas vilas de El-Rei. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a02.pdf Acesso em 08 de junho.
165
É fundamental reiterar que, assim como os indígenas,
também há resistência em relação ao processo escravagista.
Destino de muitos negros que escapam da subordinação, o
quilombo se torna um espaço de fortalecimento dos povos
diaspóricos. No caráter individual, destacam-se os líderes
Dandara e Zumbi dos Palmares, nomes importantes quando se
trata do combate à escravidão e da preservação da cultura
afrodescendente. Portanto, entende-se que, apesar de toda
perversidade existente entre senhor e escravo em terras
brasileiras, tanto indígenas quanto negros não aceitam de
forma passiva a condição de dominação que se estabelece. Os
atos de insubordinação constituem esta história, embora, por
muitas vezes, estejam à sombra das narrativas oficiais. É
imprescindível enfatizá-los, visando ao estímulo para a
insurgência de todos aqueles que, ainda hoje, encontram-se sob
algum regime de sujeição.
Infelizmente, é impossível remontar exatamente a presença
dos povos não-brancos no nosso país em suas colaborações e
revoltas, bem como sua exploração e genocídio. Em artigo para
a Folha de São Paulo acerca das comemorações dos 500 anos do
país, José Murilo de Carvalho expressa que não se trata de
descobrimento, mas sim ―encobrimento do Brasil‖. O encontro do
português com a nossa terra é agressivo e marca o início de um
genocídio, sem pudores na utilização do termo, como Florestan
Fernandes destaca no prefácio da obra de Abdias Nascimento.
Conforme afirma o historiador mineiro, não tivemos um
Bartolomé de Las Casas para denunciar a violência contra os
indígenas e reivindicar proteção aos povos originários, um dos
motivos pelos quais dificulta a apuração da extensão precisa
da mortandade dos que aqui habitavam. A respeito do número de
negros ingressantes no país em razão do tráfico de pessoas,
assinala-se que em 1891, por exemplo, o então Ministro das
Finanças, Rui Barbosa, ordenou a destruição dos documentos
relacionados à escravidão. A tentativa de eliminar as sombras
166
que permeiam a sociedade brasileira só as torna mais potentes.
Tal como afirma Carl Gustav Jung, também é preciso dialogar
com a face mais obscura com o fim de uma compreensão mais
coerente, e mais abrangente, de si.
A manipulação de dados oficiais somada à sustentação de um
discurso idílico sobre a nossa história apresentam um
simulacro da memória do país prejudicial para a compreensão da
nossa concepção enquanto povo brasileiro. Ao longo de séculos,
prega-se uma igualdade entre os cidadãos e uma pacificidade no
encontro das diversas nações que compõem a população
inexistentes no cotidiano. Vale lembrar que, ainda hoje, o
número de negros mortos e em situação social de
vulnerabilidade é exorbitante, mas as suas vidas consistem em
apenas estatísticas, como a morte dos jovens em Costa Barros47
cujo carro fora alvejado por mais de cem tiros pela polícia e
Cláudia Silva Ferreira arrastada por mais de trezentos metros
por uma viatura da PMERJ48; em situação semelhante estão os
indígenas que são expulsos dos seus espaços e mortos para
atender à ganância do Estado e das elites, como a morte dos
Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, e as investidas de
desapropriação dos habitantes da Aldeia Maracanã no Rio de
Janeiro. Estes são apenas alguns de muitos exemplos que
ilustram a condição cotidiana dos povos não-brancos no nosso
país.
Um dos legados da situação colonial no Brasil, o racismo é
silenciado durante muito tempo. A idealização de uma nação
isenta de conflitos étnico-raciais evidentes permeia o
imaginário brasileiro e, ainda que contradito pela realidade,
é responsável pela aceitação de que o debate sobre tais
questões é desnecessário no país. Ao sinal de mínima
racialização, principalmente quando se trata de discussões
sobre a implementação de ações afirmativas, abundam acusações
47 Bairro do Rio de Janeiro. 48 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro;
167
de tentativas de criar um apartheid num Estado onde reina a
convivência igualitária de todos os cidadãos. Uma reflexão
sobre o texto da antropóloga brasileira Lélia González, Mito
da democracia racial: uma militância, ilustra esta concepção e
sugere, pelo menos, duas leituras possíveis. A primeira
constitui a noção de uma militância empreendida pelas classes
dominantes, donos da terra e intelectuais visando ao
arraigamento da concepção de homogeneidade responsável pela
manutenção dos seus privilégios. Este movimento brada pela
meritocracia e seus seguidores são cegos para a herança
histórica que deixaram para o país. Por sua vez, a segunda
leitura é uma convocação para que o povo negro, principalmente
as mulheres, porque elas compõem a base da pirâmide social,
atuem no interior do poder para lutar contra esta visão. É
preciso assumir as nossas diferenças e, assim, encontrar o
respeito responsável por uni-las.
Embora leis49 se sobreponham para assegurar a liberdade e
a garantia dos direitos de negros e indígenas, o cotidiano
demonstra que ainda há muita desigualdade entre brancos e não-
brancos no país. A conquista da coexistência entre cidadãos
distintos entre si precisa de um movimento que atue
concomitantemente nas três instâncias do tempo: passado,
presente e futuro. Os dois primeiros através do re-
conhecimento pelo qual o prefixo –re exprime o resgate de
outras perspectivas da narrativa da história – no mesmo
movimento do símbolo Sankofa cujo olhar se volta para trás com
o fim de buscar no passado a ressignificação no presente50 – e
conhecimento que, em sua origem latina, forma-se a partir do
49Embora se saiba que muitas vezes estas leis sejam convenientes àqueles que
estão no poder. 50 O conceito de Sankofa se assemelha à ideia expressa por Walter Benjamin
em ―Sobre o conceito de história‖, especificamente a nona tese, a partir do
desenho AngelusNovus, de Paul Klee, no qual o anjo da história volta o seu
rosto para o passado, onde se acumulam ruínas que se dispersam sobre os
nossos pés; impossibilitado de se deter para acordar os mortos e juntar os
fragmentos, é impelido para o futuro por uma tempestade, o progresso, para
o qual ele fica de costas enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
(BENJAMIN, 1994)
168
prefixo –com (junto) e do verbo gnoscere (saber); desta forma
uma possível interpretação etimológica se encaminha para a
ideia de ―saber junto‖. Isto é, um apreender que considera a
partilha, a associação com o mundo e com os demais. Esta
dinâmica possibilita apontar para o futuro com mais esperança.
É preciso reiterar que, embora se tenham abarcado alguns
aspectos sobre processos que em sua essência são muito mais
amplos e complexos do que o apresentado - colonização,
racionalidade, escravidão, resistência, genocídio e racismo -
não há intenção de se prolongar e tampouco se aprofundar na
natureza e nas vicissitudes dos temas, pois um trabalho de tal
porte demanda tempo e um debate multidisciplinar. Porém,
acredita-se na impossibilidade de propor um giro
epistemológico do norte ao sul sem que haja uma introdução dos
pontos em destaque, uma vez que eles se encontram infiltrados
em nossas terras, corpos e pensamentos, direta ou
indiretamente. É inegável que, especificamente no Brasil,
desde aquele encontro de 1500, muitas coisas mudaram. A
chegada dos povos europeus e, posteriormente, dos africanos
alterara profundamente as relações do homem com os meios
ambientais e sociais. Por isso, antes de se deslocar em
direção às demais reflexões, é imprescindível resgatar outras
perspectivas de iluminação para a memória e encontrar as
sombras para que, desta forma, não nos tornemos reféns de uma
história única, aquela tão perigosa que ChimamandaAdichie
(2009)51 nos adverte para termos cuidado: ―Quando nós
rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há
apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um
tipo de paraíso. ‖
51 Palestra ministrada para o Ted: Ideasworthspreading em julho de 2009,
traduzida para o português por Erika Rodrigues. Disponível em
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/t
ranscript?language=pt-br. Último acesso em 17/06/2017.
169
4.2 Sombras da Literatura
No princípio quando era o verbo
de tão pequeno me achava grande,
uma enorme sombra diante de um sol pequeno.
(Sérgio Vaz)
As ruínas do passado se acumulam de modo que alcançam os
nossos pés. Ora tropeçamos ou pisamos sobre os escombros ora
desviamos na ginga para evitar a dor. Ainda que, muitas vezes,
elas machuquem ou se agrupem de forma a imobilizar aquele que
deseja seguir o próprio caminho, o condicionamento inculcado
pelo complexo de inferioridade incita a desconsiderar a dor,
elevar o olhar para o belo e reproduzir reflexões pertencentes
ao mundo das ideias mesmas, tal como aquele designado por
Platão que nos ensina a desprezar a riqueza das sombras.
Reitero a palavra reproduzir, pois segundo a hegemonia
epistemológica que insiste em defender a neutralidade e a
objetividade do saber, o sujeito racional capaz de elaborá-lo
se inclina para a universalidade e não se ocupa das coisas
pequenas do mundo ou particularidades. Assim, segundo este
pensamento eurocêntrico, cabe aos pensadores do sul tentar
acompanhar o perfil das projeções lançadas pelo norte como um
corpo que se angula a uma determinada posição da luz com o fim
de projetar uma sombra que se adeque ao corpo que a projeta.
Questiono-me: se os países europeus impõem seus valores no
processo colonizador dos países do sul de forma que se
configurem ao seu modo e semelhança, o pensamento não se
apresenta mais facilmente como universal? Afinal, eles se
propagam de um lugar e encontram acolhimento na recepção de um
público criado aos seus moldes. Creio que esta pergunta
motivaria outra tese, mas é preciso lembrar que,
historicamente, as elites nacionais dos países que sofreram um
processo de colonização, como os sulamericanos, espelham-se52,
52 ―Aplicada de maneira específica à experiência histórica latino-americana,
a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que
170
em grande parte, nas potências europeias53 e mantêm laços
estreitos com a sua cultura54. No Brasil, especificamente,
quando se trata das esferas artístico-crítico-epistemológicas,
recorda-se que, até a criação das primeiras universidades do
país, os jovens das famílias mais abastadas se dirigem para o
continente das metrópoles para cursar o ensino superior. Logo,
quando regressam para as terras brasileiras, deparam-se não
apenas com um modelo de sociedade diferente do que
experimentam no exterior, mas também gozam de prestígio, sobem
um degrau em relação aos locais que ainda não se deslocaram e,
muitas vezes, adotam valores e hábitos daquela sociedade.
Conforme afirma Frantz Fanon: ―quanto mais assimilar os
valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da
sua selva‖ (FANON, 2008, p.34).
A existência de uma centralidade distribuidora dos
saberes, temas e problemas é um aspecto de grande valia para a
reflexão que se almeja desenvolver. Um exemplo simples, mas
bastante provocador, está presente em Discurso sobre o
Colonialismo, de AiméCesaire. O autor da Martinica convoca o
leitor a pensar sobre a diferença de comoção existente a
respeito das barbáries presentes no nazismo e no processo
colonialista. Segundo o autor, a indignação mais latente
referente ao primeiro não se justifica necessariamente pela
selvageria do homem contra o seu semelhante, o crime em si,
mas sim pelo fato de que pela primeira vez um europeu aplica
na Europa meios de subjugamento que, até então, seus
compatrícios só tinham usado nas populações das terras
distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho
não é de todo quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços
históricos europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas,
ao mesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos
nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial
e distorcida. ‖ (QUIJANO, 2005, p.129) 53 Quando me refiro à influência europeia, penso especificamente em
leituras, costumes, vestimentas, entre outros aspectos; ainda que o anseio
de se europeizar não se adeque à realidade brasileira. 54 Embora se saiba que, a partir do século XX, haja uma presença mais
influente da cultura norte-americana.
171
invadidas. Conforme abordado no subcapítulo anterior, os
instrumentos utilizados com a finalidade de dominar as
populações da América, por exemplo, indicam uma atuação tão
perversa quanto a existente no hitlerismo, porém não recebe
pesares com a mesma proporção, pois se aplica ao Outro e não
ao mesmo de si.
É preciso reiterar que não há intenção de desqualificar um
genocídio em proveito do outro, porque qualquer investida
contra a vida humana é em si absurda, porém é fundamental
assinalar a distinção de relevância entre as violências55. A
abordagem do exemplo instiga a reflexão sobre o
transbordamento dos impasses europeus para outros povos cujas
histórias também são marcadas por agressões extremas, muitas
vezes ignoradas em benefício do pensamento sobre questões
estrangeiras tomadas como relevantes para toda humanidade. A
título de elucidação, menciona-se a teoria literária que,
historicamente, mantém de forma majoritária um diálogo com
obras que sustentam o nazismo como o ápice do mal e
menosprezam a ação perversa que atingem seus irmãos em
territórios da América e da África. Adorno pergunta em sua
Dialética negativa sobre a possibilidade da criação artística
após Auschwitz e os críticos brasileiros se empenham em pensar
sobre tal viabilidade, mas ainda não há o mesmo esforço
coletivo em refletir sobre a possibilidade de re-conhecimento,
assim como o apresentamos antes, da arte de áreas periféricas
diante do genocídio outrora implementado pelo estrangeiro e
hoje pelo Estado aos seus cidadãos.
Portanto, observa-se que a colonização também incide sobre
a produção e distribuição do conhecimento. Aníbal Quijano
assinala que a situação colonial reconfigura historicamente, a
partir da Europa, a identidade geocultural dos países que a
vivenciam. O pesquisador peruano destaca três operações por
55 Vale lembrar que, ainda hoje, século XXI, no campo geopolítico um
atentado isolado na França abala mais o mundo do que o genocídio
implementado em Alepo, na Síria.
172
meio das quais o reordenamento se efetiva: a expropriação das
populações colonizadas dos descobrimentos culturais mais aptos
para o desenvolvimento do capitalismo, a repressão das formas
de produção do conhecimento destes povos e a imposição do
aprendizado da cultura dos dominadores em tudo o que for útil
para a reprodução da dominação. Desta forma, instala-se o que
ele designa uma ―nova intersubjetividade mundial‖ a partir da
qual a Europa incorpora distintas histórias culturais a um
único domínio que lhe pertence. Cito as palavras do autor:
A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias
culturais a um único mundo dominado pela Europa,
significou para esse mundo uma configuração cultural,
intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à
articulação de todas as formas de controle do trabalho
em torno do capital, para estabelecer o capitalismo
mundial. Com efeito, todas as experiências, histórias,
recursos e produtos culturais terminaram também
articulados numa só ordem cultural global em torno da
hegemonia europeia ou ocidental . Em outras palavras,
como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa
também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas
as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em
especial do conhecimento, da produção do conhecimento.
(QUIJANO, 2005, p. 121)
Tal dinâmica confere ao centro hegemônico um pólo de
universalidade dos quais os demais derivam. Isto é, enquanto o
núcleo elabora e distribui os movimentos criativo-crítico-
epistemológicos legitimados como aplicáveis a toda humanidade,
as margens se ocupam de adaptá-los às suas particularidades.
Por sua vez, quando as últimas empreendem alguma produção
original a partir do local ao qual pertencem, prontamente o
fruto da sua criação é caracterizado como etnocêntrico, ou
seja, particular de um grupo étnico, de uma nação. A partir da
escala de classificação oriunda desta abordagem, o universal
figura como mais relevante, porque supostamente abrange um
interesse geral; os demais, em contrapartida, consistem em
matérias de valor apenas para uma comunidade específica, sem
conexão com outras realidades. A naturalização desta concepção
é prejudicial à atividade da reflexão, uma vez que se nega a
problematizar o sistema sobre o qual o conhecimento se
organiza ao longo de séculos. Por isso, é fundamental colocá-
173
la também em questão para preservar a prática que é própria do
desdobramento do pensamento.
Entende-se que toda criação intelectual e artística está
impregnada das experiências do corpo que a desenvolve, pois
aquele que a compõe o faz a partir de determinada perspectiva.
Como afirma o filósofo Julio Cabrera no título do seu artigo
―Europeu não significa universal. Brasileiro não significa
nacional‖, as elucubrações da mente humana são necessariamente
políticas. A diferença entre um projeto que se lança como
universal e designa os demais como políticos ou singulares
consiste na instauração de uma concepção hegemônica na qual se
vigora uma ideia de neutralidade de um saber objetivo e
absoluto capaz de camuflar seus aspectos ideológicos para se
colocar hierarquicamente numa posição superior em relação aos
demais. Um exemplo elucidativo mencionado pelo investigador
argentino é a crença de alguns pesquisadores - ele se refere
especificamente aos filósofos, mas defendo a abrangência para
outras áreas – de que ―quando alguém fala em ‗idealismo
alemão‘ refere-se a algo destinado à humanidade, mas quando se
fala em ‗filosofia brasileira‘ não expressa nada que tenha
sentido‖ (CABRERA, 2014, p.20).
No que concerne à Literatura Brasileira, especificamente,
as línguas e as culturas da Europa têm influência direta em
sua formação. Seguindo os escritos de Antonio Candido (1999),
lembra-se que a destruição de grande parte da cultura dos
povos originários, bem como a sua aculturação, e a
transposição do ―equipamento espiritual‖ da metrópole para a
colônia geram uma presença potente das letras europeias no
Brasil. A literatura é um dos sistemas que se estruturam pela
―dialética do localismo e do cosmopolitismo‖, nomenclatura do
crítico brasileiro, no qual se alternam períodos de um
nacionalismo latente - quando se busca a valorização dos
elementos do país e até a tentativa de superar a presença
estrangeira, como a tentativa de Mário de Andrade de imprimir
174
no literário uma língua brasileira – e outros em que há uma
conformidade de adequação aos padrões europeus sem a
preocupação de constituir uma obra originalmente do país.
A partir do momento em que se desestruturam as referências
locais de cultura existentes, a reconfiguração se funda com a
chegada dos portugueses. Sob o olhar do outro, surgem as
manifestações literárias responsáveis por desnudar, através
das letras, as características da terra e da população que
encontram. Anteriormente mencionada, a carta de Pero Vaz de
Caminha marca o início dos registros em língua portuguesa no
país e inaugura um período no qual estrangeiros desvelam por
meio de crônicas, cartas e diários os pormenores do lugar onde
chegam, ora imprimindo fotograficamente o que se apresenta ora
inserindo aspectos fantasiosos distantes da realidade. O
caráter informativo se mescla à expressão subjetiva de homens
que veem no solo com que se deparam uma potência para o seu
ímpeto de dominação. Segundo Candido, o espanto diante das
novidades fomenta o uso da hipérbole, responsável por
manipular durante dois séculos – ―ampliando, suprimindo,
torcendo, requintando‖ – os fatos tais como eles se apresentam
(CANDIDO, 2014, p.103)
Posteriormente, com a reorganização da população uma ordem
social nova se estabelece. O reordenamento ocorre a partir,
principalmente, da presença de grupos indígenas resistentes ao
extermínio implementado com a entrada do homem branco, da
entrada de milhares de cidadãos oriundos de diversos povos
africanos, da chegada de europeus de distintas nacionalidades
e dos que aqui nascem desde então, miscigenados ou não. No
sistema em vigor, a divisão de classes já se manifesta e tem
em sua elite a pequena parcela da população, majoritária,
senão exclusivamente masculina, que acessa à educação formal.
Um dos mais conhecidos autores brasileiros do período
designado como barroco, Gregório de Matos representa o tipo
social característico desta elite: filho de família abastada
175
que estuda em colégio jesuítico, dirige-se para cursar o
ensino superior na Europa, especificamente Portugal, onde,
depois de formado, representa político-juridicamente o Brasil
e, por fim, retorna ao país com um cargo garantido e trazendo
consigo a cultura da nação que o abrigou e dos lugares por
onde esteve.
O deslocamento das classes mais altas garante não apenas a
legitimação da língua portuguesa nos domínios do Brasil, mas
também a importação dos movimentos culturais do velho
continente para o país. No que concerne à literatura, os
estilos e assuntos chegam por via dos que ingressam ou
daqueles que retornam. Desta forma, ainda que surjam alguns
escritores com nacionalidade brasileira, a produção literária
sofre influências dos modelos europeus. Ademais, o acesso
restrito à educação limita o domínio linguístico do idioma,
por isso as habilidades da leitura e da escrita representam,
desde então, um instrumento de poder em nossa sociedade. Uma
vez que apenas a Constituição de 1988 reconhece a obrigação
formal do Estado de assegurar a educação pública para todos os
cidadãos do país, a proficiência do português pertence a uma
parcela mínima da população, desigualdade existente ainda
hoje56, pois, até aquele momento, o ensino de qualidade é uma
oportunidade reservada às famílias das classes mais altas.
Portanto, ler constitui uma atividade de um grupo privilegiado
do país cujas bibliotecas se fundam majoritariamente a partir
de obras europeias. Já a respeito da escrita, o produzido
durante a era colonial é contaminado por tais ideias tanto em
forma quanto em conteúdo, apesar de muitas vezes os temas e
problemas estrangeiros não corresponderem ao entorno social no
qual os escritores estão imersos.
56 É preciso lembrar que, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional de
Amostras por Domicílio), em 2016 ainda há 12,9 milhões de pessoas
analfabetas no país. Sendo que, de acordo com o INAF (Instituto de
Alfabetismo funcional), apenas 25% desta parcela domina plenamente o
idioma.
176
Ainda tomando como base os escritos de Candido, entende-se
que apenas na segunda metade do século XVIII, sob as reformas
implementadas pelo Marquês de Pombal, o Brasil inicia um
processo de emancipação intelectual. Imbuído da tarefa de
fortalecer Portugal para superar a crise na qual o país se
encontra durante o período, ele implementa mudanças
administrativas que englobam a colônia. Entre as quais,
ressaltam-se a retirada do monopólio jesuítico do ensino e a
criação de aulas régias, consequentemente, afasta o controle
da igreja sobre a estrutura educacional. De acordo com o
crítico, na mesma época, a formação europeia dos jovens
nobres, outrora predominada pelos estudos jurídicos,
diversifica-se e amplia o número de habilitações científicas
presentes no país. Quando retornam, anseiam implementar os
conhecimentos na sociedade de origem; ademais, o contato com
as ideias iluministas soma-se a tais fatores e gera uma
atmosfera propícia para os movimentos autonomistas que têm na
Inconfidência Mineira um dos seus principais expoentes.
É fundamental reiterar que, já no século seguinte, a
chegada da Coroa portuguesa modifica a dinâmica da vida
brasileira, principalmente das elites. No que tange ao
literário, o início das atividades da imprensa, a chegada da
tipografia e a inauguração de bibliotecas públicas são alguns
dos elementos responsáveis por dinamizar a arte das letras no
Brasil. Alguns anos depois, com o advento da independência, a
agitação ao redor da ideia da composição de uma literatura
genuinamente brasileira ganha um vulto mais amplo. Tal
autonomia se alicerça na afirmação de uma originalidade do
produzido e no rechaço da influência portuguesa. Porém, mesmo
que, progressivamente, a atividade literária tenha começado a
ganhar um impulso para seguir caminho próprio, ainda se
verifica uma preocupação latente de corresponder aos modelos
europeus.
177
No Romantismo, por exemplo, o movimento indianista
influenciado pela ideia do ―bom selvagem‖, de Jean-
JaquesRosseau, almeja ao enaltecimento da figura do indígena.
Contudo não é raro encontrar a construção dos personagens de
forma idealizada ou estereotipada. Em Iracema, por exemplo, a
representação da protagonista é constituída a partir de um
olhar que a infantiliza e a subordina ao europeu; além disso é
descrita de forma sexualizada na narrativa, não à toa o
narrador a apresenta como a ―virgem dos lábios de mel‖. Por
sua vez, aquele com quem terá um filho é identificado como um
―jovem guerreiro‖ que se autodeclara do sangue ―do grande povo
que primeiro viu as terras de tua [do pajé] pátria‖. A
comparação das personagens já ressalta a hierarquização destas
presenças no romance de José de Alencar. Cita-se abaixo um
trecho no qual Martim, apresentado por Iracema como um enviado
de Tupã, chega à cabana de Araquém, tem suas necessidades
saciadas pela personagem principal e recebe a oferta de homens
e mulheres disponíveis para protegê-lo e servi-lo:
O mancebo sentou-se na rede principal, suspensa no
centro da habitação.
Iracema acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que
havia de provisões para satisfazer a fome e a sede:
trouxe o resto da caça, a farinha-d‘água, os frutos
silvestres, os favos de mel e o vinho de caju e ananás.
Depois a virgem entrou com a igaçaba, que enchera na
fonte próxima de água fresca para lavar o rosto e as
mãos do estrangeiro.
Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho pajé
apagou o cachimbo e falou:
— Vieste?
— Vim, respondeu o desconhecido.
— Bem vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de
Araquém. Os tabajaras têm mil guerreiros para defendê-
lo, e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te
obedecerão. (ALENCAR, S/D)57
A demanda de criação de uma literatura nacional que versa
com suas próprias raízes ganha ênfase em dois períodos
específicos: o Romantismo, como já mencionado, e o Modernismo
cujos contornos ganham formas no início do século XX. Neste
57 Disponível em
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/iracema.pdf
178
último, uma vez mais, busca-se a autonomia da nossa produção,
todavia segundo Antonio Candido, já não há mais um vínculo
forte com a necessidade de desagregação das letras
portuguesas, porque já não se acredita na potência da antiga
metrópole de exercer influência direta ou se apresentar como
um obstáculo para a cultura do país. O alvo dos modernos é a
ruptura com a própria tradição de um ―academismo58‖ que se
forma na arte brasileira e a libertação estética dos moldes
estrangeiros. O compromisso com uma representação alicerçada
nos valores do país é implementado e, para isso, torna-se
fundamental colocar as lentes que permitem compreendê-lo em
suas vicissitudes e não apenas como um borrão sobre o qual se
criam possibilidades de realidade. Elaborado por Oswald de
Andrade, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil é um exemplo da
efervescência da época:
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de
ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são
fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento
religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os
cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica
rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o
ouro e a dança. Toda a história bandeirante e a história
comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o
lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma
cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A
riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de
jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado
doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e
dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel.
Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de
dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi
assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos
cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade
universitária. Mas houve um estouro nos aprendimentos.
Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas
sopradas. Rebentaram. A volta à especialização.
Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de
casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas.
Alegria dos que não sabem e descobrem. (ANDRADE, 1976)59
58 Termo de Antonio Candido (2014) 59 ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto
Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e
crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes;
Brasília: INL, 1976.
179
No que concerne à crítica sobre a erudição caricatural que
se instala na arte brasileira, os modernistas logram êxito.
Afinal, eles censuram o modo de atuação do grupo no qual se
inserem. Como consta no fim do manifesto mencionado, o desejo
é por: ―Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações
de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia‖.
Pertencentes à classe de ―bacharéis‖ sobre os quais eles
mesmos debocham, provinham, majoritariamente, de famílias
ricas, constroem uma perspectiva de Brasil autêntico a partir
deste ângulo de observação e, por isso, não é raro encontrar
em tais escritos uma visão que flerta com a estereotipia. Eles
portam os óculos escuros que amenizam tons sociais que reluzem
na época e concentram no sudeste o berço de suas teorias
gerando uma visão restrita em contraponto ao que desejam. O
tema da valorização da riqueza étnico-racial ilustra o nosso
debate. Ele está expresso no manifesto de Oswald e faz parte
do projeto de resgatar a presença dos povos participantes da
formação do país. Porém, a preocupação de apresentar uma
identidade brasileira genuína desconsidera a situação de
desigualdade vigente, apartando-se dos conflitos e
sustentando a ideia de cordialidade que culmina em uma imagem
folclórica sobre o país.
Conforme observado, a formação da literatura brasileira,
apesar de derivar das letras europeias, pouco a pouco começa a
ganhar singularidade. Porém, uma questão se inscreve no rastro
das reflexões de Cuti60: esta arte literária brasileira é
composta por todos e para todos os brasileiros? Isto é, há uma
igualdade de representação dos grupos que compõem o país tanto
na produção quanto na distribuição e no consumo desta
literatura? Não é preciso acessar dados estatísticos para
constatar que não existe uma equivalência de participação,
pelo menos nas três instâncias mencionadas, de uma pluralidade
60 Na introdução do livro Literatura negro-brasileira, Cuti afirma: ―Afinal,
o Brasil é dos brasileiros, porém é preciso acrescentar que é de todos os
brasileiros‖ (CUTI, 2010, p.11) – grifo presente no original
180
social. Porém, para que se mantenha o rigor científico,
menciona-se o estudo organizado por Regina Dalcastagnè,
professora titular da Universidade de Brasília, no qual se
traça um perfil de representação a partir da análise de
romances brasileiros, lançados entre 1990 e 2004, pelas
editoras centrais no período delimitado61. Em alguns resultados
quantitativos, observa-se que:
O romance brasileiro é majoritariamente escrito por
homens (72,7%) e sobre homens (62,1% das personagens do
sexo masculino, proporção que sobe para 71,1% quando são
isolados os protagonistas).
Quando são isoladas as obras escritas por mulheres, 52%
das personagens são do sexo feminino, bem como 64,1% dos
protagonistas e 76,6% dos narradores. Para os autores
homens, os números não passam de 32,1% de personagens
femininas, com 13,8% de protagonistas e 16,2% dos
narradores. Fica claro que a menor presença das mulheres
entre os produtores se reflete na menor visibilidade do
sexo feminino nas obras produzidas.
Mas a personagem do romance brasileiro contemporâneo
também é branca (79,8%), heterossexual (81%) e rica ou
de classe média (82,9%). Nota-se, desde já, que o
romance brasileiro abriga uma parcela muito pequena da
pluralidade de trajetórias estruturalmente condicionadas
presentes na nossa sociedade. (DALCASTAGNÈ, 2010, p. 47)
Embora seja uma pequena fotografia de um cenário amplo, os
dados da pesquisa são relevantes para a interrogativa
apresentada no parágrafo anterior. O protagonismo dos homens
brancos de classe média e alta nos romances, seja como autores
seja como personagens, influencia a representação presente nas
narrativas. Vale lembrar que tal constituição não é gratuita,
afinal, desde os primeiros passos das letras após a
reconfiguração do Brasil, a elite detém o seu domínio, por
isso étnico-racialmente ela é constituída por pessoas brancas
das classes mais privilegiadas. Por sua vez, como herdamos um
modelo patriarcal daqueles que impuseram seus domínios sobre a
nossa terra, tradicionalmente a mulher não participa
ativamente da vida pública do país até meados do século XX,
61 Indica-se a leitura dos textos ―Representações restritas: a mulher no
romance brasileiro contemporâneo‖ e ―Um mapa de ausências‖, de Regina
Dalcastagnè, onde a autora justifica a razão e a forma pelas quais
implementa tal recorte.
181
salvo raras exceções. Assim, por mais que tenham uma formação
educacional através de preceptores, seus escritos ficam
restritos ao âmbito privado. Logo, o panorama exposto é um
indício de uma literatura elaborada por e para grupos
delimitados, sem contemplar a pluralidade social do país.
Em vista do apresentado sobre a história da literatura
brasileira e o panorama breve de um período mais
contemporâneo, é possível afirmar que a presença da população
não-branca é ínfima. Nesta trajetória, no que concerne à
inscrição de indivíduos negros, grupo no qual se concentra a
análise a partir de agora, afirma-se que, apesar de um aumento
gradativo ao longo dos anos, ela ainda é minoritária. Algumas
causas justificam este cenário, entre as quais destaco: o
apagamento de autoras e autores pela crítica, a dificuldade de
acesso das classes mais baixas à educação e o branqueamento de
escritores. Sobre o primeiro aspecto, assinala-se que a
organização de compêndios sobre a história da literatura
enfatiza a atuação masculina, principalmente dos pertencentes
a uma elite. Embora escritores como Castro Alves, Luiz Gama,
Cruz e Souza e Lima Barreto figurem na composição literária
brasileira, seus nomes aparecem de forma apartada, porque são
uma exceção em sua época. Por isso, não encontram um movimento
de vulto que os acolha coletivamente em seus temas; ademais
não contam com um público que encontre representatividade em
seus escritos.
A respeito da dificuldade de acesso à educação, lembra-se
que a abolição da escravatura dos cidadãos negros só ocorre
oficialmente de forma plena no século XIX com a Lei Áurea. Até
então, o lugar social que ocupam é subalternizado e raros são
os que conseguem alguma ascensão. Mesmo após este evento, este
grupo ainda se encontra deslocado na sociedade, porque embora
formalmente haja garantias legais de liberdade, não há
qualquer preocupação com a sua realocação social. Por isso,
muitos mantêm uma relação estreita com as atividades que
182
realizavam até a promulgação da lei, em condições semelhantes
às que vivenciaram até então, outros encontram-se
marginalizados por não possuírem posses tampouco meios para se
inserir no mercado de trabalho. Sobre esta questão reflete
Abdias Nascimento:
Em 1888, se repetiria o mesmo ato ―liberador‖ que a
história do Brasil registra com o nome de Abolição ou
Lei Áurea, aquilo que não passou de um assassinato em
massa, ou seja, a multiplicação do crime, em menor
escala, dos ―africanos livres‖. Atirando os africanos e
seus descendentes para fora da sociedade, a abolição
exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado e a
igreja. Tudo cessou, extinguiu-se todo o humanismo,
qualquer gesto de solidariedade ou de justiça social: o
africano e seus descendentes que sobrevivessem como
pudessem. (NASCIMENTO, 2017, p.79)
Esta conjuntura somada à tardia universalização do ensino
público no país culmina em uma desigualdade histórica em torno
da educação formal de brancos e negros no Brasil. Desde o
século XX, com a implementação de políticas afirmativas62,
inicia-se um projeto que almeja reduzir esta diferença, porém
a herança advém de séculos, logo tal equidade avança, mas
ainda há muito o que fazer. Sobre o analfabetismo no país de
pessoas de 15 anos ou mais, verifica-se que, segundo material
do INEP63 com ano base de 2001, enquanto 7% dos brancos não
sabem ler e escrever, o número de negros e pardos está acima
do dobro, ele sobe para 16,6%. Se esta proporção está presente
no século XXI quando o sistema de cotas vigora em alguns
setores, é possível imaginar como a disparidade é maior no
intervalo de tempo que o antecede. Portanto, o contato dos
negros com as letras não foi facilitado resultando na
disparidade de sua atuação na literatura tanto como escritores
quanto como leitores.
62 Ler mais em Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma
reparação histórica, de Petrônio Domingues. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
24782005000200013. 63
http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485745/Mapa+do+analfabetismo+no+
Brasil/a53ac9ee-c0c0-4727-b216-035c65c45e1b?version=1.3
183
O terceiro aspecto de destaque é a respeito do
branqueamento de autores, principalmente de um dos nomes mais
ilustres da nossa literatura: Machado de Assis. Símbolo de
genialidade da escrita, não há um comprometimento da crítica
hegemônica de marcar seu corpo étnico-racialmente, mas é
importante lembrar que, considerando a trajetória dos povos de
descendência africana no país, tal declaração é
representativa, porque desnaturaliza o ideal de que os negros
sempre estão em posição subalterna. Neutralizar este aspecto é
uma maneira de silenciar a história de um grupo e impedir que
ele se reconheça como parte constitutiva da memória do seu
país. Conforme João Gabriel do Nascimento afirma no título do
seu artigo, o escritor é ―o branco imposto e o negro
conquistado‖. Quando reflete sobre a representação de Machado
de Assis por um ator branco em uma propaganda veiculada, em
2011, pela Caixa Econômica Federal, ele registra um momento
recente que retoma o debate sobre a questão. A tentativa de
branquear o autor – primeiro presidente da Academia Brasileira
de Letras e um dos maiores escritores do país – é uma forma de
assaltar uma parcela da presença do negro na história da
literatura. Resgatá-la não deixa de ser uma forma de
reconquistá-la.
Além das problemáticas que influenciam a participação de
escritores e leitores negros na literatura nacional, enfatiza-
se a questão desta presença no próprio texto, principalmente
até o século XX, quando os Movimentos Negros ganham maior
vulto no Brasil. No período que antecede tal efervescência,
observa-se, à luz dos escritos de Cuti, que tal representação
se efetiva a partir de três perfis de escritores: os brancos,
os negros que não adotam o posicionamento de um sujeito étnico
e os que se posicionam desta maneira. Sobre o primeiro grupo,
Cuti assinala que, embora alguns autores brancos insiram
personagens negras nos seus escritos, não há subjetivação dos
mesmos. Geralmente, eles estão envoltos pela atmosfera dos
184
estereótipos e corroboram o lugar atribuído socialmente ao
negro. Lembro a representação das mulheres negras em O
Cortiço, de Aluísio Azevedo onde Rita Baiana é a mulher negra
sexualizada e Bertoleza é aquela que tem a força de trabalho
explorada.
Por sua vez, quando se trata de autores negros é preciso
dizer que, independente de assumirem ou não um posicionamento
étnico-racial nos textos, eles constituem em si uma
resistência. Afinal, o ato de escrever em uma sociedade que
lhes reserva espaços sociais subalternizados já é
significativo para o panorama da história da nossa literatura.
Outro aspecto de ressalva consiste no fato de que estes
escritores sabem que a recepção dos seus textos alcança,
majoritariamente, uma crítica e um público brancos. A garantia
de prestígio no meio literário até o século XX também decorre
da correspondência de um horizonte de expectativas composto
por estes leitores. Portanto, eximir-se de determinados temas
também é uma maneira de assegurar uma possibilidade de êxito
na sociedade64, principalmente em períodos nos quais o processo
escravagista está em voga ou que a cordialidade das raças é um
tema presente. Sobre o ponto, Cuti afirma:
Escritores negros sempre tiveram de contar, como
qualquer outro artista, com a recepção branca. Ora, se o
escritor conhece a concepção de raça que predomina na
sociedade (no Brasil, a ideia de que não há
discriminação racial, ou quando muito apenas um ―racismo
cordial‖), procurará não ferir a expectativa literária
para não comprometer o sucesso do seu trabalho. Assim,
são aspectos lúdicos das formas culturais que procurará
empregar para dar um colorido negro-brasileiro a seu
trabalho, ou então um prosseguimento à exploração das
mazelas para provocar a comiseração do leitor. As
questões atinentes à discriminação racial tenderão a
ficar subjacentes ao texto, pois podem ser o ―tendão de
Aquiles‖ da aceitabilidade da obra e prejudicar o
sucesso almejado. (CUTI, 2010, p.28)
64 Regina Dalcastagnè, em ―Pluralidade e escrita‖ apresenta um discurso
semelhante quando destaca que o pesquisador ganha prestígio ao estudar um
autor consagrado, mas quando sua escolha recai sobre uma voz dissonante,
corre o risco de ser enquadrado em ―nichos menos valorizados na
Academia‖..‖É um investimento simbólico diante de nossos pares‖.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 10)
185
A crítica não valoriza os textos de Machado de Assis que
enfatizam a questão do negro, apesar do autor se ocupar dos
temas cotidianos da sociedade brasileira. Por sua vez, as
análises dos escritos de Luiz Gama marcam a sua negritude e
denuncia a sociedade na qual se insere, vide o poema ―Quem sou
eu? ‖ em que discute poeticamente o termo bode que atribuem
aos negros. De igual maneira, Maria Firmino dos Reis
compromete-se com a sua ancestralidade. Considerada a primeira
romancista abolicionista brasileira, compõe Úrsula, publicado
em 1859, e denuncia os horrores do processo escravagista. Logo
no prólogo, a autora destaca as dificuldades de escrever sendo
uma ―mulher brasileira, de educação acanhada‖. As personagens
negras aparecem em sua narrativa e possuem não apenas uma
visão crítica da sua condição, mas também mantêm um olhar
ativo sobre as suas origens africanas. No conto A escrava, uma
das personagens afirma: ―Por qualquer modo que encaremos a
escravidão, ela é, e sempre será um grande mal. ‖ (REIS, 2009,
p. 242). Estes são alguns, entre outros exemplos que inscrevem
a obra da autora nos domínios de um espaço literário onde se
adota a questão do negro não de forma estereotipada, mas por
uma perspectiva crítica.
Considerando os fatores expostos, entende-se que por
condições histórico-sociais a constituição canônica da
literatura brasileira garante a sua solidez no bojo de uma
elite e deixa à sombra vozes que a ela não pertencem. Por um
longo período, os espaços literários e as silhuetas que não se
enquadram ao padrão estabelecido são designados, a partir
dele, como menores e recebem – com o fim de demarcar um status
secundário - títulos como periféricos e marginais. Poucos são
os que aparecem nos anais da história das letras e o que se
exibe sobre os tais é apenas o suficiente para escorar o
discurso frágil da existência de uma democracia
representacional. Aqueles que defendem com autoridade a sua
existência, ainda que oriunda de um lugar dissonante, e se
186
inscrevem com autoridade para imprimir a própria enunciação,
prontamente são silenciados ou depreciados, numa tentativa de
manter incólume as bases sobre as quais um grupo restrito
estrutura seus privilégios.
No entanto, conforme vimos, é imprescindível atentar para
o que escapa à incidência direta da luz com o fim de descobrir
a sua potência e visualizar outras possibilidades de
constituição do todo. Desprezar o sombrio não é a melhor
estratégia, porque o seu fortalecimento traz o impulso
indispensável para reconfigurar todo um cenário que, aos olhos
de alguns, parece impecável. Porém, aqui, diferente do que
propõe Jung, tampouco há espaço apenas para um diálogo
amigável, porque os diretores da história não estão dispostos
à renunciar a exclusividade do seu protagonismo na condução
das norma(s)ativas. Não há concessões, por isso as sombras de
outrora impõem a sua presença e a ela atribuem a legitimidade
necessária para se constituírem como sujeitos das narrativas.
Elas se apropriam da escrita de si e, ao delinearem as
próprias vicissitudes que as formam, não rechaçam, mas
reconhecem a face umbrosa que as acompanha de um passado que
lhes fora arrancado. Portanto, libertam-se dos grilhões do
corpo que insiste em projetá-las e se compromete não só na
constituição de um eu, mas no re-conhecimento de outros que
com ela se unem na tentativa de uma definição mais plural do
que se compreende como Brasil e, consequentemente, Literatura
Brasileira.
187
188
5. As sombras vão escrever, e numa boa!
O lixo vai falar, e numa boa.
(Lélia González)
Uma voz negra ecoa em um dos encontros de pesquisadores
nacionais mais importantes do Brasil, a ANPOCS, Associação
Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Em
pretoguês65, Lélia González inicia a sua fala em 31 de outubro
de 1980 na reunião do Grupo de Trabalho sobre ―Temas e
problemas da População Negra no Brasil‖ e a primeira parte do
discurso intitula-se: ―Cumé que a gente fica?‖.
Através de uma epígrafe longa, a antropóloga narra a
história de uma festa promovida por brancos para apresentar um
livro sobre negros em que os primeiros ocupam os assentos à
mesa enquanto os últimos se ajeitam em cadeiras por trás
deles, sem que haja qualquer preocupação de acomodá-los no
mesmo espaço ao custo de algum aperto para aqueles já bem
posicionados. Incomodada com a situação, uma das negras se
levanta e vai reclamar no microfone sobre o que acontece na
festa. Diante da denúncia, a confusão se instala, a festa
acaba e os brancos reclamam da falta de postura daquela que se
manifesta contra a desigualdade presente.
Segundo seus críticos, não há um comportamento adequado da
moça diante da benevolência dos anfitriões ao conceder-lhes um
convite. Isto é, a mulher não retribui com seu silêncio o ato
de generosidade daqueles que estudam sobre a sua história sem
se preocupar em estabelecer qualquer diálogo. A ruptura da
cordialidade é o gatilho para o confronto, afinal, ela
participa de uma festa onde se apropriam da história do seu
povo sem, ao menos, oferecer-lhe um espaço de participação. Ao
toque da primeira ação contra a passividade, o simulacro de
aceitação dos convidados se desfaz. O acordo dos espaços
reservados e dos papeis de cada participante da festa estão
65 Termo utilizado por Lélia González para tratar das marcas de
africanização do português do Brasil.
189
definidos e espera-se que não haja quebra de protocolos. No
entanto, basta uma revolta, para que o grito engasgado de cada
oprimido se levante e o ódio do opressor se manifeste. Assim,
as máscaras caem, o baile de fantasias chega ao fim e as faces
se mostram tais como são.
A epígrafe de González nos remete à uma releitura da
caverna de Platão. O berço onde o Ocidente acalenta os
primeiros momentos de sua história do conhecimento foi
embalado sob o ritmo da concepção idealista. A trajetória do
conhecimento ocidental se desenvolve a partir do mito que
privilegia o mundo das ideias em detrimento do sensível.
Conforme vimos no início da tese, consoante a tal perspectiva,
o lugar das sombras é cunhado sob a marca das aparências e
desprovido de valoração epistêmica. Neste mito, as ações se
desenrolam a partir do homem que, outrora acorrentado,
liberta-se e conhece não só os objetos que dão forma às
sombras – única visão que tinha anteriormente – mas também sai
da caverna, vê o sol e tudo o que compõe o exterior do lugar
onde estivera confinado. No diálogo, Sócrates questiona Glauco
se o indivíduo que vivencia a experiência não sente pena dos
companheiros que permanecem no espaço subterrâneo e o
interlocutor confirma a dó do sujeito acerca da condição dos
demais. Além disso, pergunta se ele não seria ridicularizado
se voltasse para a caverna e, frente à competição de distinção
de sombras, não conseguisse a nitidez necessária para
distingui-las – pela cegueira causada pela escuridão. Mais uma
vez, Glauco consente.
A alegoria platônica se vale das imagens descritas para
estabelecer uma hierarquização entre o apreendido através dos
sentidos e das ideias. Isto é, consoante esta perspectiva, a
realidade tal como se experimenta através do corpo comporta
apenas simulacros ao passo que no âmbito das ideais puras
concentra-se o conhecimento acerca das essências. É
fundamental ressaltar a exaltação ao espaço reservado ao
190
inteligível e a depreciação das sombras, posto que elas
remetem de forma metafórica às aparências capazes de ludibriar
a visão de mundo dos prisioneiros. Vale destacar também que o
privilégio do ex-cativo de transitar entre os dois mundos
suscita um sentimento de superioridade em relação aos outros,
uma vez que durante a realização da experiência, segundo
Sócrates, haveria a possibilidade do homem se compadecer dos
companheiros. Este pesar se embasa no seu juízo de que todos
os demais, ao conhecerem os domínios da luz, rejeitariam a
morada das sombras. Na alegoria, a hipótese de rejeição das
ideias apenas abarca a condição de não as conhecer, porém não
se propõe a possibilidade de que alguns dos prisioneiros
prefiram a caverna à luz, mesmo depois de conhecer os seus
aspectos. A imposição da preferência sobre o luzente exclui a
escolha individual.
Na alegoria da caverna, a conjectura proposta considera
uma concordância daquele que é libertado com a supremacia do
mundo das ideias, pois esta seria uma valoração lógica de
acordo com os interlocutores. Consoante a tal pressuposição,
aquele cuja preferência se situe na caverna, o faz por uma
inabilidade espiritual de compreender, verdadeiramente, a
essência das coisas mesmas. Porém, propomos aqui uma nova
perspectiva. E se a possibilidade de sair da caverna fosse
comum a todos, já no primeiro momento, e a liberdade
propiciasse eleger o local de preferência? Afinal, a valoração
se impõe a partir da perspectiva de um indivíduo e o suposto
temor de sair dos companheiros levam em consideração o que
acontece a ele sem que a vivência seja acessível aos demais.
Pergunto, então ao leitor, alguns destes homens também não
poderiam escolher seu abrigo sob a luz do fogo mantendo o
diálogo com as sombras? A imposição de um único juízo a partir
da desigualdade de oportunidades dos habitantes incide na
ideia de que, apenas um grupo restrito de privilegiados sinta-
se no direito de estabelecer as regras para os demais com base
191
na própria experiência sem considerar o que escapa à sua visão
de mundo. Logo, a validação de discursos só preza pelos que se
coadunam com os seus interesses, caso contrário, são cunhados
de forma depreciativa ou seus enunciadores são caracterizados
como incapazes de apreciar os valores supremos selecionados.
A alegoria da história do conhecimento no ocidente se
estabelece a partir da ordenação na qual poucos acessam os
saberes impostos como relevantes e os outros são detraídos por
se manterem na esfera do imediato. Assim, os primeiros se
autodesignam porta-vozes do todo, posto que se consideram como
mais aptos a compreender o mundo devido à manutenção de uma
relação estreita com a esfera da razão. No entanto, não há uma
discussão acerca da desigualdade existente no âmbito inicial
da questão, o porquê de que, inicialmente, apenas uma pessoa
acesse ao mundo das ideias e os demais só tenham a
oportunidade de desfrutá-lo depois do contato com as
impressões da vivência do primeiro homem a conhecer ambos os
mundos. Verifica-se, a partir do apresentado, que a narrativa
que comporta a epistemologia ocidental já revela em si um
caráter discriminatório responsável por designar os
autorizados a transitar nas esferas do saber e a legitimação
de apenas um meio de aquisição de instrução, ou seja, os
territórios da luz. Espera-se o silêncio diante do cenário
estabelecido e qualquer manifestação deve corroborar o
vigente, consolidado em estruturas mantidas ao longo de
séculos.
Após a longa digressão sobre Platão, apresentamos o mote
do presente capítulo: a rebelião. Decide-se denunciar a
disposição desigual no campo do conhecimento. É o momento em
que os habitantes da caverna questionam sobre os seus direitos
de acesso aos dois mundos, as sombras decidem se desassociar
dos corpos que a geram inscrevendo a própria presença e o caos
se estabelece na calmaria, até então, presente. Este cenário
permite um retorno à epígrafe de Lélia González. Não se sabe
192
sobre a veracidade da narrativa acerca da festa, porém nos
interessa a desordem implementada por conta da discordância em
relação às injustiças existente no ambiente. O levantar de
vozes daqueles que são designados ao silêncio e à aceitação
ganha protagonismo e a revolta coletiva promove a
desestruturação hierárquica em voga. Esta ruptura de
expectativa não é aceita, mas ainda assim elas não recuam e
dizem: As sombras vão falar, e numa boa!
Enquanto uma outra perspectiva da alegoria de Platão
introduz o nosso capítulo, a apresentada pela intelectual
brasileira cumpre a tarefa de introduzir o pensamento da
autora sobre racismo e sexismo na cultura brasileira. Com o
fim de discutir o motivo de identificação entre dominado e
dominador, capaz de manter por anos a crença da democracia
racial, por exemplo, ela traz a baile Freud e Lacan através de
uma citação de Jacques-Alain Miller em que o escritor francês
afirma que a análise busca seus bens na ―lata de lixo da
lógica‖ e, por isso, ela desencadeia o que a última domestica.
Ela propõe um pensamento via psicanálise sobre a seguinte
questão ―por que o negro é isso que a lógica da dominação
tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? ‖.
Diferente do que impõem como natural - ―o negro falado,
infantilizado, tratado como terceira pessoa‖ - ela assume a
própria voz com todos os riscos que o ato implica. Consciente
de que ―Nós negros estamos na lata de lixo da sociedade
brasileira‖, González destaca a frase da epígrafe: ―O lixo vai
falar, e numa boa‖.
No rastro das palavras da pensadora, enuncio o mote do
presente capítulo: as sombras vão escrever, e numa boa! Após o
diálogo com as sombras que permeiam o passado do Brasil e
aquelas que se formam ao longo da construção do cânone da
Literatura Brasileira, interessa-nos o momento em que elas se
apropriam da palavra e se inscrevem como sujeitos do discurso.
Através da metáfora, dedico o capítulo derradeiro a escrita de
193
nós, mulheres negras, que ao longo de séculos aparecemos no
espaço literário como meras projeções e em aparições escassas,
mas que, desde o fim do século XX, decidimos meter o pé na
porta do literário e exibir a nossa escrevivência66. Desta vez,
não nos contentamos com a posição de objeto e tampouco
versamos sobre temas predeterminados para as nossas letras.
Assumimos nosso espaço de representação e mostramos que a
nossa escrita tem carne, alma e a sombra diaspórica que nos
acompanha.
A escrita da mulher negra nasce de um corpo preto permeado
pelas experiências, possibilidades e interdições que ele
vivencia67. Tanto o expresso quanto o silenciado na matéria
literária perpassam a relação que a autora mantém com a
estrutura física na qual habita. Quando tal condição incide
esteticamente na narrativa, imprime no texto a subjetividade
de sujeitos que vivenciam o mundo a partir da história que
carregam na cor da sua pele. É uma literatura que surge de
outra perspectiva e, por isso, propicia a construção de novos
imaginários. Deste modo, escapa das armadilhas da estereotipia
e expressa artisticamente as complexidades que envolvem a
situação de ser negra em determinada sociedade ou em
deslocamento.
Considerando a relevância da escrita de mulheres negras
como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, propomos
uma análise na qual se contemplam duas obras representantes do
que se designa como literatura negro-brasileira ou afro-
brasileira. Sabe-se que ainda há um debate latente sobre o uso
da nomenclatura que classifica a produção literária elaborada
por autores negros com temáticas que abarcam tal identidade no
país. Neste estudo, priorizamos a primeira terminologia devido
à concordância com os argumentos de Cuti a respeito do
66 Termo utilizado por Conceição Evaristo no depoimento ―Da-grafia desenho
de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita‖ 67 Ideia concebida por Conceição Evaristo no artigo ―Literatura negra: uma
poética de nossa afro-brasilidade‖ publicado na revista Scripta.
194
distanciamento que o termo afro pode suscitar na inserção
deste corpus na esfera do que se denomina como Literatura
Brasileira. O escritor acredita que a vinculação das
composições a uma origem continental enfraquece o elo de suas
conexões particulares com o conjunto de obras pertencentes à
cultura do país em questão. Visto que os textos escolhidos
para apreciação englobam as discussões sobre as problemáticas
do ser negro no nosso país, entendemos que a classificação
―literatura negro-brasileira‖ parece mais adequada. Sobre a
designação, ele afirma:
Denominar de afro a produção literária negro-brasileira
(dos que se assumem como negros em seus textos) é
projetá-la à origem continental de seus autores,
deixando à margem da literatura brasileira, atribuindo-
lhe, principalmente, uma desqualificação com base no
viés da hierarquização das culturas, noção bastante
disseminada na concepção de Brasil por seus
intelectuais. ―Afro-brasileiro‖ e ―afro-descendente‖ são
expressões que induzem a discreto retorno à África,
afastamento silencioso do âmbito da literatura
brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero
apêndice da literatura africana. Em outras palavras, é
como se só à produção de autores brancos coubesse compor
a literatura do Brasil. [...]. Como em um navio tumbeiro
literário são misturadas as literaturas para venda em
outras partes do mundo. Essa negação de singularidades
nacionais enfatiza ainda a dominação global, com
roupagem de um novo tráfico, agora de livros. (CUTI,
2010, p. 35-36)
Na obra das autoras que convido para o debate, destaca-se
a discussão sobre o que é ser mulher na sociedade brasileira.
Em Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus expressa -
através da escrita de si – o cotidiano da mulher favelada que
busca no lixo o meio de sua sobrevivência física e
espiritual68. Em meio a questões existenciais, também reflete
sobre aspectos sociais de seu entorno bem como sobre fatores
político-econômicos do seu país. Por sua vez, em Olhos d‟água,
Conceição Evaristo constrói um universo ficcional por meio de
contos no qual as personagens nos provocam à reflexão sobre a
potência das mulheres das classes mais baixas mesmo diante das
68 Lembra-se que Carolina também utiliza os papeis que encontra no lixo para
escrever seus diários.
195
adversidades da vida. Exploramos ficcionalmente a
subjetividade de sujeitos em condições limite e conseguimos
humanizar o olhar diante de circunstâncias banalizadas pelas
manchetes dos jornais.
A escolha das literatas e de ambos os livros, em
específico, justifica-se pela composição de textos nos quais
as mulheres figuram não só como protagonistas, mas também como
condutoras da narrativa. Ainda que os reveses da vida
atravessem as suas existências, a lucidez diante dos fatos e a
solidez diante das mortes sucessivas que experimentam elucidam
a humanidade presente nos episódios que vivenciam. Os escritos
despertam a nossa sensibilidade para a condição humana em
tempos sombrios quando o capital vale mais do que a vida e a
hierarquiza, de modo que valores morais e financeiros se
imiscuem, justificando-se mutuamente. Os indivíduos excluídos
da ordem estabelecida, porque não dispõem dos recursos para
mantê-la ou que buscam sobrevivência –econômica, física,
espiritual – em espaços não autorizados pela sociedade são
invisibilizados ou objetificados. Há uma perda da sua dimensão
humana e, consequentemente, da sua participação sócio-
cultural, uma vez que na área político-econômica só servem
para compor o cenário ideal para a promessa dos que almejam o
poder.
As duas autoras observam a dinâmica social a partir de
lugares periféricos e conhecem a energia criativa existente no
entorno do foco luzente. Espectadoras privilegiadas do teatro
burguês, conseguem o distanciamento necessário para constituir
uma visão crítica do mundo que as cerca. Elas se deslocam
entre os espaços e, em cada um, assumem uma posição
específica, o que proporciona uma redefinição de suas
identidades. Digo, a escrita de Carolina Maria de Jesus revela
sua movimentação entre a cidade e a favela. Na sala de visitas
urbana, ela é uma catadora de lixo invisibilizada, destratada
por conta do odor resultante do seu trabalho ou alvo da
196
compaixão alheia. Por sua vez, no quarto de despejo, a sua
afirmação como escritora e a tentativa de se diferenciar dos
hábitos dos demais gera uma distinção na concepção que tem de
si. No livro Olhos d‟agua, Conceição Evaristo se ocupa da
criação ficcional que privilegia personagens inseridas nas
margens, mas que não deixam de interagir com os espaços do
centro, seja fisicamente, como a personagem Maria, do conto de
mesmo nome, que começa com uma empregada doméstica que leva os
restos de comida da festa dos patrões para os filhos e fica
curiosa para saber se eles gostarão dos sabores que até então
nunca tinham experimentado, como o melão, seja através dos
meios de comunicação, como Dona Esterlinda, de A gente
combinamos de não morrer que acompanha a vida burguesa por
meio das telenovelas.
O aspecto fragmentário é outro fator relevante
compartilhado pelas suas composições. Enquanto a criação de
Carolina Maria de Jesus se expressa em forma de diário,
marcado pelas particularidades que envolvem as frações dos
dias e dos anos, o trabalho de Conceição Evaristo eleito para
análise se organiza ao redor de uma seleção de contos que,
devido às próprias características, concentra um teor alto de
tensão ficcional em uma forma narrativa curta. Embora os
fragmentos contenham uma autonomia em si, há um laço estético
que os une em conjunto. Arrisca-se dizer que tal estruturação
reflete as experiências de inter(rompimentos) destas mulheres
cujas próprias histórias são marcadas por descontinuidades69.
Desta forma, elas impulsionam o leitor para um movimento
constelar cujas partes são imprescindíveis, em igual grau de
importância, para a compreensão do todo. Além disso, é uma
maneira pela qual se garante a liberdade de reestruturação do
texto, sem que a autora imponha o seu próprio ponto de vista
àquele que se debruça sobre o seu escrito.
69 Ilustro: ambas nascem em Minas Gerais, mas mudam de cidade; têm
dificuldade de publicar os livros e depois vivenciam o êxito das
publicações. Suas vidas são marcadas por mudanças contínuas.
197
A respeito da linguagem, destaca-se a insubmissão à norma
culta da língua portuguesa pela história que não se silencia
por conta da limitação formal de expressão. Em Quarto de
despejo, verifica-se o entrave do olhar crítico diante da
inscrição ortográfica de letras que se alternam por
apresentarem semelhanças fonológicas. À primeira vista, o
leitor mais rigoroso incomoda-se diante das inadequações
linguísticas oriundas do descumprimento das regras ditadas
pela gramática normativa. Porém, ao longo da narrativa, o
conteúdo se impõe de forma que incorporamos o pretoguês e ele
já não se torna um motivo de desconforto. Já nos diálogos
diretos das personagens construídas por Conceição Evaristo,
encontra-se a marcação oral tal como ela se apresenta para
alguns falantes da língua, porque são estruturas consolidadas
no seu ambiente comunicativo. No conto nomeado ―A gente
combinamos de não morrer‖, a frase é repetida entre amigos que
estão em meio a uma troca de tiros na favela. O leitor
ambientado na sociedade carioca reconhece a variação em voga e
identifica que a falta de concordância manifesta um recurso
estilísticos da escritora.
Apesar das adversidades para ingressar no mundo literário,
elas conseguem o reconhecimento público dos seus textos
nacional e internacionalmente. Estas mulheres não silenciam
suas letras diante dos obstáculos, porque são deles que saem
os temas de suas poéticas. Como diz Carolina Maria de Jesus:
―Os políticos sabem que sou poetisa. e que o poeta enfrenta a
morte quando vê o seu povo oprimido‖ (JESUS, 2014, p.39). No
caso dela, embora digam que Audálio Dantas a descobriu,
concordo com o ponto de vista de Conceição Evaristo no qual
afirma que, na verdade, a escritora descobriu o jornalista,
quando diante daquela presença menciona a existência do seu
livro. O primeiro impresso de sua obra, Quarto de despejo, sai
quando ela tem pouco mais de 45 anos. Já a escritora de Olhos
d‟água começa a publicar através do coletivo Quilombhoje e
198
financia a primeira e a segunda edições do primeiro livro
individual, PonciáVicêncio, a partir de 2003. Só quando o
livro é indicado para o vestibular da Universidade Federal de
Minas Gerais, UFMG, em 2008, a editora assume os custos da
publicação. Entre a escrita e a publicação, há um intervalo
considerativo e sobre essa demora Conceição Evaristo diz:
Tudo para as mulheres negras chega de uma forma mais
tardia, no sentido de alcançar tudo o que nos é de
direito. É difícil para nós chegar nesses lugares. E eu
fiquei pensando esses dias, quando foi que Clementina de
Jesus aparece? Com mais de 60 anos. E a Jovelina Pérola
Negra? A própria Ivone de Lara, quando ela vai ter mais
visibilidade na mídia? E olha que estamos falando de
produtos culturais que, entre aspas, "são mais
democráticos". E a literatura, que é uma área mais do
homem branco, apesar do primeiro romance ser de Maria
Firmina dos Reis, uma mulher negra, as mulheres negras
vão chegar muito mais tarde.
Essa longa espera tem muito a ver com esse imaginário
que se faz da mulher negra, que a mulher negra samba
muito bem, dança, canta, cozinha, faz o sexo gostoso,
cuida do corpo do outro, da casa da madame, dos filhos
da madame. Mas reconhecer que as mulheres negras são
intelectuais em vários campos do pensamento, produzem
artes em várias modalidades, o imaginário brasileiro
pelo racismo não concebe. Para uma mulher negra ser
escritora, é preciso fazer muito carnaval primeiro.
(EVARISTO, 2017))70
Mesmo com todas as tentativas de interdição por parte da
crítica brasileira tradicional, a recepção dos textos tem
êxito. O alcance público dos escritos tarda, mas, assim que se
efetiva, demonstra a potência que guarda em si. Considerando
as obras das autoras citadas, verifica-se que, muitas vezes,
quando o lixo escreve, o luxo da estética aparece. Há aqueles,
como Ivan Cavalcanti Proença, que afirmam a impossibilidade de
Quarto de despejo constituir-se como parte da esfera do
literário. O crítico faz um discurso depreciativo da obra
durante uma homenagem à intelectual de Sacramento, no ano de
2017, na Academia Carioca de Letras. Ele afirma: ―Ouvi de
muitos intelectuais paulistas: ‗Se essa mulher escreve,
70 Entrevista concedida à Djamila Ribeiro para a revista Carta Capital
publicada em 10/05/2017.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/conceicao-
evaristo-201cnossa-fala-estilhaca-a-mascara-do-silencio201d
199
qualquer um pode escrever'‖71. É latente o julgamento da obra a
partir da figura da autora e o receio da popularização de uma
arte que, ao longo de séculos, ficara restrito a um grupo
pequeno e privilegiado. Este argumento nos convida a
questionar: se o trecho a seguir fosse atribuído a Émile Zola
teria a mesma recepção? :
...Às oito e meia da noite eu já estava na favela
respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro
podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que
estou na sala de visita com seus lustres de cristais,
seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando
estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora
de uso, digno de estar num quarto de despejo. [...] Sou
rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no
quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.
(JESUS, 2014, p.37)
Convicta do valor de ambas para a composição das nossas
letras, proponho, nas linhas a seguir, uma reflexão sobre a
importância da apropriação da escrita e da representação por
grupos que, ao longo da construção da História Literária,
ficaram à sombra do que se apresenta como Literatura
Brasileira. Quando estas sombras tomam as letras para si e
valorizam temas que produzem uma reflexão crítica sobre a
condição que experimentam na sociedade, inscrevem solidez,
profundidade e cor em si de maneira que se fazem sujeitos. No
momento em que começam a formar um corpo também projetam uma
silhueta umbrosa, e no que concerne aos povos negros pode-se
dizer que esta que a acompanha é a própria diáspora que sempre
a cercará. Uma sombra sempre presente na qual vemos o nosso
perfil, enquanto indivíduos negros, mas não conseguimos
remontar integralmente por conta da destruição de nosso
passado. Outra possibilidade é a presença, na zona umbrosa,
daqueles que ainda não se apropriaram da escrita de si, mas
que na medida que percebem o movimento de seus semelhantes,
sentem-se motivados a assumir a própria representação na
sociedade.
71 http://www.revistaforum.com.br/2017/04/20/professor-branco-diz-que-obra-
de-carolina-maria-de-jesus-nao-e-literatura-e-provoca-embate-no-rj/
200
A partir dos textos, almeja-se contribuir para a formação
de uma crítica comprometida com a pluralidade social do país.
Só assim, reconheceremos que a arte literária está sim aberta
a ―qualquer um‖ e não apenas àqueles que se encontram fechados
em seus gabinetes empenhados na sustentação de discursos
racistas, classistas, misóginos, homofóbicos, entre outras
formas de opressão, para assegurar o status inacessível do
literário. Desta forma, acredita-se encorajar a participação
de outros perfis de autores, editores e leitores na produção
da Literatura Brasileira e, consequentemente, possibilitar a
elaboração de textos que propiciem tanto um olhar crítico
sobre a nossa composição enquanto sociedade na formação de
novos imaginários.
5.1. Carolina Maria de Jesus, a escre(vida) das letras
... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que
sabemos o que encerra.
(Carolina Maria de Jesus)
Palabra por palabra yo escribo la noche.
(Alejandra Pizarnik)
Os dias passam e demonstram a brevidade da vida marcada
pela página de um diário. Não é o purgatório nem o inferno,
mas sim a favela e o asfalto em diálogo contínuo suturados
pela presença de uma mulher negra, catadora de lixo, mãe e
escritora. Nada passa desapercebido pelo seu olhar atento e o
cansaço dos dias não a impede de gravar no papel as impressões
de um mundo composto por muitas sombras. Elas estão por toda a
parte e revelam que, muitas vezes, não é através da luz, mas
sim por meio dos domínios umbrosos que encontramos as pistas a
partir das quais conhecemos mais sobre a vida, tal como vimos
na Comedia. Porém, diferente daquelas que conhecem o passado e
o futuro, tal como afirma Farinata no Inferno dantesco, no
201
texto de carolineano as sombras nos apresentam o presente com
todo o jogo de claro-escuro que o engloba.
Carolina Maria de Jesus é escritora e protagonista da
narrativa da própria história. Em Quarto de despejo, publicado
em 1960, acompanhamos alguns de seus dias entre os anos de
1955 e 1960. Porém, a constituição do diário não se restringe
às expressões dos sentimentos da autora, mas também se ocupa
da análise arguta sobre os eventos de seu entorno. Entre
questões existenciais, imiscuem-se diversos temas, como os
políticos, econômicos, sociais e geográficos. Não à toa,
investigadores de diversas áreas do saber utilizam o livro
como corpus de seus estudos. Por meio de um processo
caleidoscópico, o leitor é convidado a ingressar na sociedade
brasileira do seu interior para o exterior, desvendando-a em
suas múltiplas faces.
Esta pluralidade é fruto de um corpo que está no mundo e
através dele se afeta, participando de uma realidade complexa
cujo fluxo nos atinge continuamente. Vale destacar o verbo
―afetar‖ da última frase, porque ele traz consigo o
acometimento da sensibilidade na relação do homem com o meio.
É o elemento sensível que propicia o perpassar de sua escrita
por temas diferentes de forma estética e crítica. Quando a
educadora AzoildaLoretto da Trindade discorre sobre o afeto,
fornece uma trilha possível para compreender a originalidade
do texto de Carolina Maria de Jesus. Percebe-se que o entorno
atinge a autora de forma que o registro dos fragmentos do seu
cotidiano bebe na maneira pela qual ela se coloca no mundo, ou
seja, presente, vigilante e questionadora. Por isso, não se
caracteriza apenas como descritivo, porque há um refinamento
estético da sensibilidade que agrega literariedade ao texto,
uma vez que é o fruto de suas afetações. Como ela afirma, ―Eu
tenho a mania de observar tudo, contar tudo marcar os fatos‖
(p.53). Menciono Azoilda Trindade que constroi parte de
202
Fragmentos de um discurso sobre afetividade à luz do conto O
mundo, de Eduardo Galeano:
Em outras palavras, porque o mundo é um montão de gente,
um mar de fogueirinhas e para que as fogueirinhas
existam, queimem, sejam calmas ou tenham a intensidade
capaz de incendiar outras pessoas, é fundamental a nossa
afetividade. Porque afetividade tem relação direta com o
influenciar e ser influenciado, potencializar,
possibilitar. Porque afetividade está relacionada ao
gostar de gente, propiciar encontros, contatos, afetos e
afetações. Porque afetividade nos reporta ao corpo e
porque os corpos são potências, possibilidades,
amorosidade. A afetividade é uma manifestação corporal,
uma expressão corporal fundamental para os encontros,
contatos, para as expressões de desejos, pensamentos
individuais e coletivos, de emoções as mais diversas, de
sentimentos como amor, ódio, cuidado. Em síntese, a
forma, a maneira como estou/sou no mundo afeta o mundo,
as pessoas. (TRINDADE, 2006, p.103)
Na escrita carolineana, eventos simples, como a
impossibilidade de dar um par de sapatos para a filha no dia
do seu aniversário, desencadeiam uma série de reflexões sobre
questões socioeconômicas - ―atualmente somos escravos do custo
de vida‖ - e existenciais - ―Pensei na vida atribulada que
levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na
rua o dia todo. E estou sempre em falta‖. Através de imagens,
insere o leitor na esfera que a envolve: ―A Vera não tem
sapatos. E ela não gosta de andar descalça. Faz uns dois anos
que eu pretendo comprar uma máquina de moer carne. E uma
máquina de costura‖. Embora precise sacrificar seu corpo e
energia para o aparato de triturar vidas do Estado, ela não
consegue fornecer a infraestrutura básica para os filhos.
Porém, mesmo quando os suprimentos faltam, as palavras
abundam, possibilitando a formação da rede de retalhos cosida
entre a vida e a escrita na qual a escritora repousa e de onde
nascem seus sonhos e pesadelos.
Ainda que as frases curtas e os temas se alternem com
rapidez, conseguimos encontrar o fio pelo qual as partes se
suturam: a escre(vida). Talvez um gérmen precedente da
escrevivência, de Conceição Evaristo, sua sucessora. Entre
203
parêntesis, a palavra vida ganha destaque, mas também se
inscreve dentro de um limite. Esta demarcação indica a
efemeridade dos dias que se intercalam dentro de uma
existência finita, a exiguidade de recursos para manter a
sobrevivência física e espiritual e as fronteiras pelas quais
a autora atravessa em busca de tais provisões. Porém,
associada a esta margem, está a raiz do verbo escrever
―escrev-― que se entranha na ―vida‖ por meio da letra ―v‖ e
com ela se imiscui, apesar das divisas impostas. Na obra
Quarto de despejo, as duas instâncias se entrelaçam de forma
que ambas se nutrem para manter o viço diante das condições
adversas. Vale dizer também que, a semelhança proposital com o
termo atrevida se justifica pela ousadia da escritora de se
afirmar em um meio que, continuamente, empenha-se em excluir
indivíduos com suas características sociais: mulher, negra,
pobre e moradora de favela. A insubmissão de assumir uma
identidade que o mundo lhe nega é um ato de coragem.
Acompanhar a mente ágil de Carolina Maria de Jesus não é
uma tarefa fácil.Ela demanda a atenção plena do leitor, uma
vez que os escritos se compõem de fragmentos do cotidiano, das
reflexões e da poesia da cuidadosa catadora de palavras. No
período em análise, há dias em que na mesma data constam
descrições de suas atividades - ―Deixei o leito, fui buscar
água - questões políticas – ―Eu, sempre fui ademarista‖ -
constatações pessoais - ―suporto as contingências da vida
resoluta‖- relatos sobre as jovens da favela – ―Come qualquer
coisa. Tem estomago de cimento armado‖ – afirmações de sua
escrita ―Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas
desagradáveis me fornece os argumentos.‖– apresentações de
sonhos - ―Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui‖ –
pensamentos sobre o impacto dos vícios nas famílias, quando
expressa a fala do filho - ―O homem que bebe não compra
roupas. Não tem radio, não faz uma casa de tijolo.‖ –
comparações entre o cotidiano da favela e a vida pública, como
204
a associação da bagunça das mulheres da favela com o
comportamento de um político da época – ―As intrigas delas é
igual a de Carlos Lacerda que irrita os nervo. E não há nervos
que suporta. Mas eu sou forte!‖ (JESUS, 2014, 17-21). Os
exemplos mencionados estão todos em 19 de julho de 1955.
Porém, há outras ocasiões nas quais ela escreve apenas uma
linha, como em 10 de agosto de 1958: ―Dia do papai. Um dia sem
graça‖ (JESUS, 2014, p. 108), e é o suficiente para exprimir o
que lhe acomete.
No corpus em análise, nota-se o agrupamento de ideias em
pelo menos, quatro espaços principais: a favela, o asfalto,
céu e o papel. No primeiro âmbito, o aspecto coletivo está
presente, porque há uma interseção dos indivíduos que ali
habitam. As partilhas material e comunicacional são constantes
e entrelaçam as existências dos moradores. A torneira de onde
se pega água é a rede social de onde se distribuem as
notícias, ―enquanto esperam a sua vez de encher a lata vai
falando de tudo e de todos‖ (JESUS, 2014, p.57), ou seja, as
mulheres transbordam no período em que abastecem suas
vasilhas. Nesta esfera, as brigas também se destacam, pois
elas ganham, com frequência, a participação da vizinhança.
Conforme assinala a autora, quando se trata das desavenças
entre as mulheres no quarto de despejo, ―o que elas podem
resolver com palavras transformam em conflitos‖ (JESUS, 2014,
p.50), A aparição de trechos nos quais Carolina narra
desentendimentos com e entre os demais moradores é recorrente.
Muitas vezes, o consumo de álcool culmina em excessos e ela
reconhece o prejuízo que esta droga gera para o indivíduo – ―E
o dinheiro gasto em cerveja faz falta para o escencial‖
(JESUS, 2014, p.21) e para a comunidade, porque no dia em que
o guarda a interpela a respeito da diminuição do número de
chamadas da Rádio Patrulha, ela responde: ―é o dinheiro que já
não sobra para a aguardente‖ (JESUS, 2014, p.36). Sobre o
caráter coletivo, ressalto um trecho do livro:
205
Em poucos minutos o boato circulou que a Vera ganhou cem
cruzeiros. E pensei na eficiencia da lingua humana para
transmitir uma noticia. As crianças aglomeravam-se. Eu
levantei e fui sentar perto da casa de D. Mariana. E lhe
pedir um pouco de café. Já habituei beber café na casa
do seu Lino. Tudo que eu peço eles emprestado, eles
empresta. Quando eu vou pagar, não recebem‖ (JESUS,
2014, p.24)
Por sua vez, a cidade causa, concomitantemente, fascínio e
desolação. O encantamento das ―mulheres e crianças tão bem
vestidas‖ (JESUS, 2014, p.69), a presença ―das casas com seus
vasos de flores e cores variadas‖ (JESUS, 2014, p.69) e a
―coroa de ouro que são os arranha-céus (JESUS, 2014, p.41) a
levam a uma comparação com o paraíso. No entanto, chama
atenção uma conversa entre ela e um homem cuja aparência
denuncia uma tontura de fome. Carolina pede para que ele
aguarde, porque vai vender uns papeis para lhe comprar uma
média, mas o homem recusa diante da justificativa de que a
catadora trabalha muito e não é justo que utilize seus
proventos para ajudá-lo. A impossibilidade de conseguir
dinheiro por conta de sua velhice resulta na fala de que na
cidade ―tudo é a dinheiro‖ e ele já não encontra emprego por
conta da idade. Segundo seu discurso, parece que há uma
resignação diante da morte e sua última frase é: ―Eu sei que
vou morrer porque a fome é a pior das enfermidades.‖ (JESUS,
2014, p54). Neste fragmento, é importante assinalar a solidão
na qual se encerram os pobres que habitam na cidade. Ali,
distante dos seus quilombos, encontram-se solitários na luta
pela sobrevivência. Ninguém se interessa pelos seus dilemas,
mas, naquele espaço, uma sombra reconhece a outra.
O preconceito dos moradores da área urbana esvazia as
subjetividades dos corpos pobres que compõem o cenário da
cidade de maneira objetificada. Frequentemente, as pessoas em
situação de rua e os transeuntes cujas aparências não dialogam
com os códigos sociais dos espaços citadinos figuram como
ameaças potenciais para a ordem burguesa. O esquivo do olhar
diante de suas presenças revela a dificuldade da sociedade de
206
enfrentar as próprias sombras. Por isso, de forma recorrente,
há uma tendência de apreciá-los tal como os demais componentes
do ambiente. Digo, um ser humano coberto e adormecido no chão
já não gera qualquer comoção e tem a mesma relevância de uma
lata de lixo da qual os pedestres desviam para evitar o
tropeço ou o contato com o odor que exala. A recusa de auxílio
se apoia em justificativas frágeis embasadas em uma moral
burguesa mais fétida do que aqueles que não dispõem do banho
diário. Negam-se auxílios imediatos pelo conceito prévio de
que a condição na qual se encontram advém da indisposição para
o trabalho, censuram o estado de ebriedade sob a justificativa
de que sua situação provém da fraqueza diante do vício e
apoiam atos de extermínio para poupar a própria visão do
fracasso coletivo do modelo de sociedade sustentado.
Carolina, por sua vez, distingue o mal-estar da bebida e
da fome, assim como gostaria que reconhecessem que quando anda
suja não é por falta de higiene, mas sim por não ter como
comprar sabão (JESUS, 2014, p.98) A identificação da
necessidade do outro gera uma cumplicidade entre ambos, visto
que ela se propõe a lhe doar parte dos seus proventos escassos
e ele nega porque sabe da dificuldade da mulher para consegui-
los. A empatia do episódio nasce do elo sensível do encontro
entre duas sombras invisibilizadas no centro metropolitano. Os
moradores da região atribuem o estado do homem ao efeito de
entorpecentes e, por isso, o censuram, porque não discernem os
sintomas da fome. A catadora de lixo, por sua vez, encaminha a
mirada para o corpo frágil e detecta as manifestações de uma
condição bastante familiar. Logo, acolhe o seu semelhante com
oferta de comida e palavras, pois sabe que, muitas vezes, a
carência não é somente física, mas também espiritual.
Depois de perpassar o concreto das ruas, destacam-se as
passagens em que a autora discorre sobre o céu. Sobre este que
designamos o terceiro espaço, encontramos referências com alto
teor poético, como: ―Quando despertei o astro rei deslisava no
207
espaço‖(JESUS, 2014, p.11), ―As nuvens deslisa-se para o
poente. Apenas o frio nos fustiga.‖ (JESUS, 2014, p.46) e
―Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é
horrivel pisar na lama.‖ (JESUS, 2014, p.58). A esfera celeste
lhe oferece a beleza gratuita capaz de transportá-la, por
alguns instantes, para uma atmosfera mágica. Porém, o encontro
é breve, porque as urgências da vida se impõem e o descenso do
olhar encontra, rapidamente, a realidade nua e crua, tal como
se observa na última das três frases mencionadas. Na poética
em análise, não há muito espaço para a fuga, porém, a mirada
em direção ao céu, é uma maneira de tomar um pouco de ar antes
de submergir mais uma vez nas águas turvas do cotidiano. Mesmo
que, às vezes, a angústia da terra também se reflita naquele
que a encobre. Talvez seja esta capacidade de apreciar a face
bela do mundo que permita a sobrevivência de alguns seres em
meio ao chacoalhar de um mar revolto que afoga tantos outros.
Faço referência a um destes momentos na narrativa:
... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens
vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas
suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o
astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se.
As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A
noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu
azul. Há varias coisas belas no mundo que não é possível
descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços,
quando vamos fazer compras. ofusca todas as belezas que
existe. (JESUS, 2014, p. 43)
O último espaço que colocamos em evidência é o papel.
Conforme a escritora diz, ―Deus devia dar uma alma alegre para
o poeta.‖ (JESUS, 2014, p.138), mas como a poesia nasce das
almas inquietas, é possível que a felicidade lhes roube a
vontade de escrever pela necessidade de simplesmente gozar os
bons dias. Os pensamentos sensíveis traspõem a realidade
rígida e conseguem encontrar a beleza nos cenários mais
adversos: ―E as lágrimas dos pobre comove os poetas. Não
comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os
idealistas das favelas [...] (JESUS, 2014, p.53). O ato de
208
imprimir o cotidiano no papel organiza os pensamentos e a
realidade desta mulher, causa receio ao redor para aqueles que
temem ver o seu nome registrado no livro misterioso e
desestabiliza as nossas verdades. Mais ainda, a escritora sabe
o poder das palavras porque elas ―ferem mais do que espada. E
as feridas são incicatrisaveis‖ (JESUS, 2014, p.48). Ao longo
da leitura, observa-se que o fio da lâmina de suas letras
penetra na pele em direção às entranhas para fazer com que
sintamos algo parecido com a dor no estômago daqueles
golpeados pela fome.
O teor poético do diário de Carolina Maria de Jesus advém
da ressignificação de um entorno miserável, através das
palavras, para um público que já se encontra anestesiado pela
espetacularização da dor promovida pelas publicações
midiáticas. A repetição das mazelas da escassez, da maneira
dura de conseguir ganhar o mínimo para sobreviver e da
impossibilidade de atender os desejos mais simples dos filhos,
a partir da perspectiva de quem a vivencia, conferem outros
significados à realidade. A intensidade das experiências ganha
tonalidades: ―Cor roxa. Cor da amargura que envolve o coração
dos favelados‖ (JESUS, 2014, p. 34), ―Para dissipar a tristeza
que estava arroxeando a minha alma [...] (JESUS, 2014, p.154),
―É época das flores brancas, a cor que predomina. É o mês de
Maria e os altares deve estar adornados com flores brancas‖
(JESUS, 2014, p. 36), ―Quando puis a comida o João sorriu.
Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a
nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia‖ (JESUS, 2014, p.43) e
―Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo
amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se‖ (JESUS, 2014,
p.44). A escrita carolineana concede densidade e cor a
situações que estão esvaziadas e obscuras para uma parte da
população que não as experimenta. Outros autores podem
descrevê-las, é claro, mas o corpo que passa por esta condição
209
consegue inserir uma subjetividade mais sólida do que aquela
oriunda apenas da observação.
A percepção externa sobre a favela e seus moradores surge
a partir do ponto de vista dos habitantes das casas de
alvenaria e do olhar invisível dos transeuntes da cidade.
Aqueles que residem próximo ao quarto de despejo, mas não,
necessariamente, dentro dele e nutrem uma repugnância pelos
seus moradores. Ela descreve: ―percebo os seus olhares de odio
porque eles não que a favela aqui. Que a favela deturpou o
bairro. Que tem nojo da pobresa‖ (JESUS, 2014, p.55). Estes
vizinhos representam a manifestação do ódio de classe presente
no país. Ainda que coabitem o mesmo espaço onde se localiza a
favela, tentam diferenciar-se como superiores, diminuindo-os
continuamente pela condição de pobreza. Ilustra-se com a fala
de uma das residentes: ―— Podia dar uma enchente e arrazar a
favela e matar esses pobres cacetes. Tem hora que eu revolto
contra Deus por ter posto gente pobre no mundo, que só serve
pra amolar os outros‖ (JESUS, 2014, p.56). Não é raro
encontrar episódios em que eles também reclamam da atenção que
os agentes culturais dedicam à favela (JESUS, 2014, p.81) e da
proteção que os políticos cobrem os favelados (JESUS, 2014,
p.32). No entanto, sabe-se que tais acusações não se
configuram como verdade. Geralmente, a presença do Estado se
faz para explorar as necessidades mais básicas daquele povo.
Por sua vez, o que designo como olhar invisível dos
transeuntes da cidade é aquele lançado por cidadãos que tem
acesso à infraestrutura básica para viver e inferiorizam os
que estão em uma condição social que os obriga a buscar na rua
o suprimento de suas necessidades, como: habitação e
alimentação. Eles ignoram a presença do outro de si pelas ruas
e, quando estes se aproximam, já entendem como uma ameaça ou
solicitação de esmola, conforme já discutido. Em determinado
momento, a autora apresenta um episódio no qual a filha entra
no bar para pedir agua e lhe dão 6 cruzeiros, pois ―pensaram
210
que ela estava pedindo esmola‖(JESUS, 2014, p.129). Ainda
hoje, anos 10 do século XXI, a quantidade de pessoas em
situação de rua assombrosa. A concepção do senso comum é que
eles não têm interesse em trabalhar e não possuem família.
Ademais, a sujeira dos corpos causa rechaço, porém, como
destaca a catadora, nem sempre é uma questão de desleixo. Na
escassez, escolhas são imprescindíveis e já se sabe quem ganha
na disputa entre a comida e o sabão, pois como ela diz: ―se
ando suja é devido a reviravolta da vida de um favelado‖.
Por sua vez, a percepção do interior da favela em relação
ao mundo não é ingênua tampouco inexistente. A escritora
demonstra uma visão crítica a respeito dos eventos econômicos
e políticos do país. Como obtém dinheiro por meio da coleta de
papel, a imprevisibilidade dos ganhos torna o controle do
pouco que arrecada obrigatório. A entrada e saída de dinheiro
são praticamente instantâneas, porque, com regularidade, os
provimentos do dia saciam as carências da ocasião e a comida
consiste em uma das urgências principais. Por isso, o debate
sobre os preços é recorrente. Ilustra-se a afirmativa com o
trecho no qual ela expõe sua opinião sobre o aumento da
passagem estabelecido por um político preterido nas urnas,
Adhemar Dantas. Após dizer que o povo deveria ir no Palacio do
Ibirapuera e na Assembleia dar ―uma surra nestes politicos
alinhavados que não sabem administrar o país‖ (JESUS, 2014,
p.129), exprime: ―Quem viaja quatro vezes de ônibus, contribui
com 600,00 para a C.M.T.C. Desse geito, ninguém mais pode.‖
(JESUS, 2014, p.129). Num trecho poético, ela agrega:‖ Os
preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte.
Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais
feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.‖ (JESUS,
2014, p.60)
Sobre a política, há explanações tanto do período
eleitoral quanto da atuação dos governantes. De acordo com
Carolina, quando eles querem um lugar no poder, vão à favela
211
em busca de votos, mas depois ignoram as demandas de seus
moradores. Constantemente, no caderno publicado, alternam-se
conversas sobre o cenário político do país. Esta temática
aparece a partir do ponto de vista da autora, em suas
reflexões – em um episódio no qual conversa com o tenente da
polícia e, diante da expressão da autoridade de que a favela é
um ambiente propenso para o desvio de conduta, ela pensa: ―se
ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os
políticos‖ (JESUS, 2014, p.29). Porém, também está presente
nas prosas tanto nas redondezas – em 19 de julho de 1955 ela
sai para buscar água e conversa com a vizinha sobre as
preferências de cada uma em relação a Ademar de Barros e Jânio
Quadros (JESUS, 2014, p.18) – quanto com os que estão em
outros espaços, como numa conversa de rua – quando durante o
trabalho na rua lhe perguntam sobre sua opinião a respeito de
Carlos Lacerda e ela responde ser ―Muito inteligente. Mas num
tem educação. É um politico de cortiço. Que gosta de intriga.
Um agitador‖ (JESUS, 2014, p.15). Faço referência a um trecho
que alude ao tema de forma bastante reflexiva:
... Quando um politico diz nos seus discursos que está
ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para
melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso
voto prometendo congelar os preços, já está ciente que
abordando este grave problema ele vence nas urnas.
Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos
semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa
sensibilidade[...] Quem deve dirigir é quem tem
capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa
o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é
fome, a dor, a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-
se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do
pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos
livrar o paiz dos politicos açambarcadores. (JESUS,
2014, p.38)
É interessante notar que não há desinteresse em relação ao
cenário nacional e tampouco desvinculação dos problemas
individuais com a cena governamental. De fato, nem sempre a
posição apresentada contém teor progressista, mas não existe
ingenuidade no tocante à postura dos dirigentes de Estado, e
de seus aspirantes, em relação aos mais pobres. A população
212
aproveita os eventos promovidos com o fim de angariar votos
para suprir algumas necessidades imediatas, porém nem sempre o
desfrutar do benefício se converte em fidelidade na urna. Há
um discernimento sobre a conveniência de haver espaços de
carência para manter a atividade da máquina eleitoral com
discursos reprovadores da desigualdade e promessas falsas para
extingui-la. Diferente da percepção externa cujo pré-conceito
leva à crença de uma alienação total dos moradores das áreas
mais pobres, os escritos de Carolina demonstram que uma
catadora de lixo pode elaborar pensamentos críticos sobre a
cena do país.
Vale lembrar, como assinala Joel Rufino, que toda reflexão
sobre a autora não pode desconsiderar a sua composição
triádica. Segundo o historiador, há uma diferença entre a
mulher, a escritora e a personagem criada pela mesma. Em
relação à primeira, pouco se saberá, uma vez que constitui o
ser para-si, tal como designa Jean-Paul Sartre. Já sobre a
segunda é possível traçar um perfil graças ao acesso à sua
produção. O fluxo de consciência presente nos trechos da
edição utilizada para análise mostra uma mente perspicaz cuja
inquietude perscruta o entorno em busca de elementos para se
apropriar e examinar. Geralmente, o registro acompanha a
impressão sobre os fatos. Digo, não se restringe à inscrição
das aparências e busca a essência daquilo que se apresenta.
Carolina Maria de Jesus explora o mundo da mesma maneira que
os pesquisadores, sempre em busca das sombras que envolvem o
objeto. Porém, a localização em uma perspectiva diferenciada
torna o seu texto original e representativo. Se a sociedade a
relega ao espaço do irrelevante ou execrável, ela demonstra
que a sombra é capaz de expressão e, independente dos
obstáculos que se interpõem à escrita, toma posse do discurso
para inscrever o seu ponto de vista e as suas complexidades.
Desta forma, não se contenta em ser objeto de análise, mas
213
coloca a si como ser pensante capaz de desbravar o mundo e
apresentar as suas impressões e criações.
Por sua vez, a personagem de si criada pela autora tem
traços do que Rufino designa como bovarismo. Isto é, com o fim
de elucidar a forma pela qual ela se compreende no mundo, ele
faz uma comparação entre Carolina Maria de Jesus e Emma
Bovary. De acordo com seu ponto de vista, ambas são
semelhantes no que se refere à ―distância entre o que se
pretende ser e o que se é realmente‖ (RUFINO, 2009, p.29), ou
seja, a vida imaginada com uma estrutura diferente da vivida.
O crítico explica que a autora não se reconhece em seus irmãos
de classe, mas sim em homens brancos que, em sua concepção,
teriam mais qualidade. Concorda-se, em parte com a afirmação.
Verifica-se que ela é crítica em relação ao lugar que ocupa na
estrutura social, mas é notório que, por mais que
materialmente a realidade a recorde sobre a sua condição de
mulher negra favelada, há um interesse pelo espiritual que a
distingue dos que com ela convivem. Em vários trechos, nota-se
uma tentativa de se apartar do meio seja por não consumir
álcool, não se envolver em confusão ou por ter cuidado nos
relacionamentos por conta de seus filhos. Ela preza pelo
intelecto de forma que este é o valor que faz com que admire
determinadas pessoas em detrimento de outras.
O anseio de dominar as palavras lhe é tão caro quanto o de
saciar a fome. As perguntas sobre o livro e os comentários
sobre o seu gosto de ler e escrever mexem com a sua vaidade,
porque para ela a capacidade intelectual é entendida como um
distintivo social. Muito se comenta sobre a personalidade
forte da escritora e no livro de Joel Rufino, inclusive,
assinala-se a ideia de que ela tenha sido uma ―pobre sozinha‖
por não ter interesse em se organizar coletivamente e por não
estimar o compartilhamento da vida com os demais. No entanto,
entendemos que o seu compromisso com o objetivo de se tornar
escritora é de tal ordem que adota uma postura diferente
214
daqueles que a cercam. A sua compreensão sobreo literato é de
um sujeito diferenciado pelo trabalho com as palavras, por
isso, de alguma maneira, ela se distancia e se dedica
cotidianamente às letras para alcançar a meta que criou para
si.
A convicção de que conseguiria publicar o livro lhe dá
forças para suportar o cotidiano árduo. Ela não vacila em
relação aos escritos, porque publicá-los, em sua concepção,
não é uma hipótese, mas uma certeza, vide os verbos que
utiliza ao falar sobre eles: ―Eu percebo que quando este
Diário for publicado, vai maguar muita gente‖ (JESUS, 2014,
p.78).‖e ―há de existir alguém que lendo o que eu escrevo
dirá...isto é mentira! Mas as miserias são reais‖ (JESUS,
2014, p.46). Ciente da dinâmica de poder do próprio país,
revela: ―os editores do Brasil não imprime o que escrevo
porque sou pobre e não tenho dinheiro para pagar‖ (JESUS,
2014, p.133). Por isso, decide mandar os originais para os
EUA. Diante da negativa, expressa: ―Cheguei na favela. Triste
como se tivessem mutilado meus membros [...] A pior bofetada
para quem escreve é a devolução de sua obra‖ (JESUS, 2014,
p.154). Conforme visto, a rejeição do material faz com que ela
se sinta destituída de uma parte de si. Esta imagem corrobora
a hipótese de que a identidade de autora é uma certeza em seu
íntimo e, quando refutam os originais, é o momento em que o
mundo lhe declara: Carolina Maria de Jesus não é autora.
Este evento ocorre em janeiro, precisamente no dia 16.
Todavia, alguns meses depois, dia 8 de junho, encontra um
bilhete no chão de sua casa sobre a edição da obra. O
jornalista Audálio Dantas, de quem ela chamara atenção por
repreender os meninos no dia da inauguração de um parque com a
ameaça de que colocaria o nome deles em seu livro, deixa um
bilhete embaixo da porta e avisa também sobre a matéria que
sai no dia 10 no jornal O Cruzeiro. A emoção a envolve, porque
o grito por tanto tempo guardado no silêncio do caderno,
215
finalmente se liberta para o mundo. Assim como a Sombra de
Alejandra Pizarnik, ela não se contenta com a casa e busca o
jardim onde resgata a alegria de viver o que se é. O jardim de
Carolina Maria de Jesus é retirar a sua obra do âmbito do
privado e levá-la para o público, porque desta forma, a partir
do olhar do outro, uma parte de sua identidade é assegurada.
Diante da recepção da obra, é possível afirmar: sou uma
escritora. A publicação é a flor azul que se abre, salvando-a
do precipício do pensamento, e permite que ela se veja sobre o
cisne:
O jardim, as vozes, a escrita, o silêncio.
— Não faço outra coisa além de procurar e não encontrar.
Desta forma, perco as noites.
Sentiu que era culpada de algo grave.
— Eu acredito nas noites – disse.
Motivo pelo qual não soube responder a si: sentiu que
lhe enfiavam uma flor azul no pensamento para que não
seguisse o curso do seu discurso até o fundo.
— É porque o fundo não existe – disse.
A flor azul se abriu em sua mente. Viu as palavras como
pequenas pedras disseminadas no espaço negro da noite.
Em seguida, passou um cisne de rodinhas com um grande
laço vermelho no pescoço interrogativo. Uma garotinha
que parecia com o cisne montava sobre ele.
— Esta garotinha fui eu – disse Sombra. (PIZARNIK, 2014,
p. 403)
Encontrar-se naquele espaço é a conjunção com todas as
possibilidades de si. Portanto, da mesma forma que o Texto de
Sombra da poeta argentina expressa, ela anseia existir para
além de si e como ela é, sem se contentar com o silêncio do
espaço em que nasce. Ela diz: Escritora!, o mundo nega e ela
reafirma: escritora, sim! Carolina Maria de Jesus não se cala
para manter a ordem estabelecida. A confiança a respeito da
própria identidade lhe garante a energia necessária para
conseguir, apesar das adversidades, mostrar seu pensamento
para o mundo. Mesmo sem dispor de uma estrutura mínima que lhe
permita produzir, como aquela sugerida por Virgínia Woolf, de
quinhentas libras anuais e de um teto todo seu, empenha-se no
trabalho intelectual e desenvolve uma obra original. Através
de uma produção que se desdobra em diversas formas, Carolina
216
Maria de Jesus invade a cena literária e projeta-se não só
nacional, mas também internacionalmente, visto que seus
escritos ganham traduções para diversos idiomas.
O registro da luta da catadora apresenta o outro lado
desta figura que permeia o cenário dos grandes centros. Uma
mulher maltrapilha na cidade em busca de papel e de comida
trabalha diariamente pela sobrevivência de sua família. Ela
não é só arrimo da casa, mas também é responsável pela ordem
do seu barraco e a educação dos seus filhos. Além disso, é uma
escritora e se afirma como tal. Diante da fome e das condições
precárias, dedica-se com afinco à leitura e à escrita, porque
a erupção da expressão é mais intensa do que os obstáculos
capazes de impedi-la. Carolina Maria de Jesus, a escre(vida)
das letras, insere matizes e profundidade na literatura
produzida pela mulher negra. Através da escrita de si, pulsa a
subjetividade que transpassa vida, escrita e sociedade. No
momento em que se apropria da caneta, está segura da
relevância do próprio discurso e leva para o mundo o cotidiano
duro e, por vezes, poético de mulheres que inscrevem as marcas
da vida não só nas cicatrizes tatuadas em seus corpos e almas,
mas também na tinta impressa no papel.
Entende-se, no curso de nossa análise, que o diário é o
meio pelo qual a escritora – tradicionalmente relegada à
sombra da estrutura social e literária – inscreve a própria
presença no mundo. Desta forma, revela a complexidade que a
compõe e anula os conceitos prévios responsáveis pela
simplificação de sua existência. A partir do momento em que
talha as vicissitudes que a compõem, ressignifica os
imaginários que rondam o perfil social ao qual pertence. Isto
é, demonstra que a mulher negra e favelada não é um objeto do
mundo, mas sim um sujeito ativo capaz de refletir sobre
aspectos existenciais, políticos, econômicos e estéticos do
seu entorno. Através da Literatura, ela resgata o protagonismo
217
e a humanização de indivíduos preteridos socialmente e
demonstra que a literatura é um direito de todos.
Quando se apodera da escrita de si e se in-corpora ao
grupo de escritores, Carolina Maria de Jesus materializa sua
presença no âmbito das letras. Porém, sabe-se que a natureza
umbrosa da qual advém propicia a criação de um texto que se
forma através de uma perspectiva distinta daquela produzida
pelo cânone. Quarto de despejo não compreende a autorreflexão
burguesa, situada no centro, diante das mudanças que a afetam
por conta da reestruturação do mundo, mas sim o desdobramento
do pensamento e o registro de uma representante das margens, a
partir da própria vivência, acerca do cenário degradante da
ordem que este grupo estabelece nas sociedades e nas
individualidades, por mais que não se afirme como tal. Desta
forma, ela gera uma tensão no padrão em vigência, porque
tensiona as verdades do centro a partir do que o circunscreve.
Assim, as silhuetas projetadas pelo corpo social e
literário tomam posse da tinta e imprimem corpo em sua
existência e produção. Este movimento provoca instabilidade na
estrutura em voga, pois estimula a participação ativa daquelas
que outrora não se sentiam autorizadas para compor as
estruturas instituídas. Contudo, a dinâmica em questão nasce
do âmbito periférico e, por isso, reconhece que a
materialização de si culmina na formação de outras projeções.
Isto é, no momento em que se incorporam, elas produzem outras
sombras e as empoderam a ingressar no universo do qual, agora,
fazem parte. A inserção de novas integrantes ocorre através de
um movimento horizontal – e não vertical-hierárquico - o que
contribui para a formação de um elenco de autores da
Literatura Brasileira mais inclusivo e, consequentemente,
plural.
A consolidação das sombras por elas mesmas provoca
rachaduras na concepção tradicional de literariedade e abre
espaços para abarcar o literário através de outras
218
perspectivas. Uma dinâmica diferente se estabelece com
características mais democráticas e colaborativas. Muitos
literatos e literatas assumem seu protagonismo e narrativas no
rastro da produção de Carolina Maria de Jesus. A estrutura
hegemônica teme a popularização da arte e esta mulher
demonstra, através da própria produção, que qualquer pessoa
pode sim escrever Literatura. Conceição Evaristo, por exemplo,
autodesigna-se uma herdeira da tradição fundada pela sua
antecessora. A escre(vida) das letras escreve a vida das
sombras nas letras e as letras das sombras na vida. De forma
destemida, ela registra ―As sombras vão escrever, e numa
boa!‖e a potência de suas palavras intervém nos pilares que
sustentam a arte literária, abrindo possibilidades para outras
sombras que por ela queiram ingressar. Portanto, semelhante ao
verso de Alejandra Pizarnik, ―palavra por palavra, elas
escrevem a noite‖.
5.2. Conceição Evaristo:na vida das sombras caço as sombras da vida
uma página preta
não dá conta da nossa demanda
mas já é um outro negro começo
(Cristiane Sobral)
As mãos deslizam suavemente sobre o papel dando forma a
signos que pouco a pouco geram um mundo ficcional e uma
autora. O que se inscreve é a soma das histórias ouvidas, a
imagem das paisagens oferecidas ao olhar, os odores da
existência, o sabor da imaginação e o bom trato da textura das
palavras. Cada personagem, episódio, silêncio, frase ou
pontuação tem o seu sentido, porque nada é gratuito no espaço
em construção. A Criadora é uma mulher preta que num mundo de
luzes artificiais capazes de cegar os sentidos determina: Haja
sombra! E vendo que a sombra é boa, a coloca em diálogo com
luz. Do encontro nasce a penumbra, porque os raios advêm de
219
uma fonte mais extensa, distinta daquela que outrora, por seu
modelo puntiforme, estabelecia o limite preciso responsável
pelo estabelecimento de dicotomias. Nesta cosmogonia, a
estética se inscreve na inter-ação, através da pluralidade,
respeitando a diferença e a presença de cada um dos elementos
que a compõem. E a vida, humm a vida, ela se estabelece no
não-lugar entre o claro e o escuro tal como ela mesma é. Nesta
história, nenhuma nudez será castigada e todas as sombras
serão registradas.
Acostumados com a estrutura de um sistema cujas bases se
fincam na separação de opostos, aprendemos a nos apegar a
extremos com o fim de encontrar um porto seguro. Sujeito ou
mundo? Razão ou corpo? Forma ou conteúdo? Estas são algumas
das perguntas que permeiam o modelo de história que herdamos.
No início do ensaio Literatura e Metafísica, Simone de
Beauvoir ilustra bem tais dilemas. Ela conta que aos dezoito
anos já tinha o hábito da leitura e destaca a intensidade de
sentimentos que a acometiam quando se debruçava sobre a ficção
ou à filosofia nesta idade. Quando fechava o livro, tanto o
tratado quanto o romance, sentia-se plena de forma que não
sabia onde encontrava autenticamente o seu prazer. A
necessidade de se ater a apenas um dos pólos lhe gerava a
angústia da responsabilidade de escolher um único guia em
direção a verdade. Ela diz:
Depois de ter pensado o universo através de Spinoza ou
Kant, perguntava-me ―Como se pode ser suficientemente
fútil para escrever romances?‖ Mas quando abandonava
JulienSorel ou Tess d‘Uberville, parecia-me vão perder
tempo a fabricar sistemas. Onde se situava a verdade?
Sobre a terra ou na eternidade? Sentia-me dividida.
(BEAUVOIR, 1965, p. 79)
Após a apresentação da questão, Beauvoir afirma que todos
os espíritos sensíveis que apreciam os sabores da literatura e
os odores da filosofia encontram-se, em algum momento, com
este impasse. De forma objetiva, ela sugere uma pista para
resolvê-lo: ―é no seio do mundo que pensamos o mundo‖
220
(BEAUVOIR, 1965, p. 80). Ora, seguindo a indicação da autora
entendemos que, ao invés de decidirmos pela exclusão de uma
opção em prol da outra, estas formas de expressão são
possibilidades de explorar o mundo tal como ele se apresenta
para os indivíduos. Sabe-se que, quando expõe a situação, a
filósofa considera o debate entre realismo e idealismo, em
voga na filosofia do século XX, porém vamos nos ater ao
aspecto da frase que valoriza a ideia do desbravamento do
entorno em suas conciliações e múltiplas vicissitudes.
O mundo e os indivíduos são entidades complexas em
interação mútua. Segundo dados da ONU, a população mundial
estimada em 2017 é de 7,6 bilhões de habitantes. Quantos modos
de ver permeiam um planeta com este contingente humano? Não é
justo legitimar somente uma maneira de abordá-lo na medida em
que todas estas pessoas podem ser uma, nenhuma e cem mil. Por
sua vez, cada um destes seres o vivenciam desde um aspecto
geográfico com as próprias histórias, culturas e memórias. Que
prejuízo não compreender que as alternativas são infinitas
quando se trata de descrevê-lo e representá-lo! Se é no seio
do mundo que pensamos o mundo, diversas histórias cabem em uma
história de forma que a maneira mais justa de compreendê-la é
na interseção de seus inúmeros aspectos. Ademais, é preciso
lembrar que para além do homem, há um espaço dividido
imaginariamente em pontos cardeais e colaterais atravessados
pelos cruzamentos do tempo: presente, passado e futuro.
Conceição Evaristo é uma autora consciente de que o mundo
não repousa na tranquilidade de uma única versão. Ela sabe que
toda narrativa carrega o rastro das somas que compõem o
indivíduo que a enuncia. Quando produz o depoimento Da-grafia
desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha
escrita, convoca a memória para mostrar um dos rios que
deságua no mar de suas obras. Logo, a primeira imagem que
apresenta é a formação de um sol pelas mãos da mãe através do
encontro do graveto com a terra. Ela revela que este é um dos
221
primeiros sinais gráficos com que teve contato e indica que a
imagem criada exigia não só o movimento dos dedos, mas também
do corpo da genitora. Este movimento-grafia, tal como o
designa, é a maneira pela qual a figura materna invoca a
presença solar. Portanto, a inscrição não é apenas uma
representação, mas também um chamado por aquilo a que ela
remete. A vivência descrita é um dos motivos pelos quais
Evaristo afirma ter descoberto ―a função, a urgência, a dor, a
necessidade e a esperança da escrita.‖ Logo depois, recorda o
encontro com o âmbito utilitário da escrita, uma vez que a
mulher que lhe deu à luz era lavadeira e repassava a lista de
devolução de roupas limpas para as patroas.
A mão solar tinha como ofício esfregar as roupas,
inclusive íntimas, de terceiros e ela mesma fora a guia das
primeiras letras da autora e se incumbia de folhear os poucos
impressos que chegavam à casa. Através delas também lhe chegam
os primeiros cadernos e as primeiras listas de tarefas.
Posteriormente, a autora adiciona a presença da tia de quem
Conceição Evaristo herda o gosto de registrar os fatos
cotidianos. A necessidade do acompanhamento escolar dos irmãos
enquanto a mãe se dedica à manutenção da casa a leva, com o
passar dos anos, a ensinar as tarefas para as crianças da
vizinhança no quintal de casa e, assim, começa a ganhar
algumas moedas dos pais em gratidão pelo desenvolvimento
escolar dos seus filhos. A partir deste relato, observa-se um
resgate da história da autora em um ato de reconhecimento das
diversas experiências que engrossam o mar de sua escrita. Ela
diz:
[...]creio que a gênese de minha escrita está no acumulo
de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das
palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e
adjacências. Dos fatos contados a meia-voz, dos relatos
da noite, segredos, histórias que as crianças não podiam
ouvir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava
todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia
palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo
ou dor dependendo do enredo das histórias. De olhos
cerrados eu construía as faces de minhas personagens
222
reais e falantes. Era um jogo de escrever no escuro. No
corpo da noite. (EVARISTO, 2007)
A escrita no escuro, no corpo da noite, configura-se em
nossa análise como aquela que ganha vida pela perspectiva da
sombra e, por isso, apresenta um olhar distinto daquele ao
qual nos habituamos a dirigir a determinados agentes da
Literatura. Enquanto mulher negra oriunda das classes
populares, Conceição Evaristo inscreve-se como escritora e dá
vida e subjetividade às personagens que, geralmente, estão à
margem da estrutura social. No livro Olhos d‟água, por
exemplo, Duzu-Querença é uma mendiga, Maria trabalha como
empregada doméstica, Ana Davenga é mulher do chefe do tráfico,
estas são algumas mulheres que protagonizam o conjunto de
contos que integram o livro. Elas não aparecem de forma
coadjuvante, mas estão no centro da tensão ficcional através
da qual a narrativa curta se desenvolve.
A escolha do livro de contos também merece destaque,
porque se configura como um conjunto de relatos breves cujas
partes mantém autonomia, mas, em conjunto, expressam
possibilidades de totalidade a partir do ponto de vista em que
se apoia, tal como num caleidoscópio. A constituição
fragmentária fornece a liberdade necessária para o leitor
definir não só o próprio método de leitura, mas também
preencher as lacunas que as narrativas apresentam. Conforme
dito, nada é por um acaso na construção ficcional, por isso os
silêncios também têm a sua função e dialogam, principalmente,
com as experiências daqueles que no texto se debruçam. Logo,
verifica-se que a imersão no texto evaristeano exige
participação ativa na leitura, porque a sua realização se
efetiva no encontro com os olhos que o exploram. Em Clases de
Literatura, livro onde estão transcritas aulas que
JulioCortazar ministra em Berkeley em 1980, há um trecho no
qual o escritor de Rayuela compara a estrutura do conto com a
da fotografia para tratar do intercâmbio capaz de contribuir
223
com a constituição do conteúdo a partir das pistas presentes
no cenário pequeno que se recorta:
Certa vez, comparei o conto com a noção de esfera, a
forma mais perfeita no sentido de que está fechada em si
mesma e cada um dos pontos infinitos da sua superfície
são equidistantes do invisível ponto central. [...] o
conto tende por auto definição à esfericidade, a se
fechar, e é aqui onde podemos fazer uma dupla comparação
pensando no cinema e na fotografia: o cinema seria o
romance e a fotografia, o conto. [...][o conto e a
fotografia] projetam uma espécie de aura fora de si
mesma e deixa a inquietude de imaginar o que se tinha
para além, à esquerda ou à direita. {...] são ao mesmo
tempo uma estranha ordem fechada que lança pistas sobre
as quais nossa imaginação como espectadores ou leitores
podem tomar e transformar em uma matéria mais rica.72
(CORTÁZAR, 2014, p.31)
No entanto, a atividade não se restringe à ocupação dos
vazios deixados pela autora, porque as próprias temáticas
introduzidas em suas narrativas não permitem uma apreciação
passiva do enredo. A pobreza, a violência e a desigualdade
social são algumas das questões abordadas. Contudo, gera-se
uma expectativa, porque a história não é apresentada a partir
da espetacularização da mídia, tampouco pela visão
desinteressada da classe média. O narrador dos contos
compromete-se a expressar as paixões e corp(oralidades) das
personagens envolvidas nos episódios. Nos contos mencionados,
o protagonismo das mulheres ilustra a visão a partir da qual a
trama se realiza. Através de Ana Davenga, vivemos os momentos
de tensão da personagem quando as batidas na porta quase à
meia-noite prenunciam a entrada de todos menos a do seu homem
e uma série de lembranças lhe assaltam o coração sob a
interrupção de frases que a recordam da ausência do
72―Alguna vez he comparado el cuento con la noción de esfera, la forma
geométrica más perfecta en el sentido de que está totalmente cerrada en sí
misma y cada uno de los infinitos puntos de su superficie son equidistantes
del invisible punto central. […] el cuento tiende por autodefinición a la
esfericidad, a cerrarse, y es aquí donde podemos hacer una doble
comparación pensando también en el cine y en la fotografía: el cine sería
la novela y la fotografía, el cuento. [el cuento y la fotografía] proyectan
una especie de aura fuera de sí misma y deja la inquietud de imagina lo que
había más allá, a la izquierda o a la derecha. […] son al mismo tiempo un
extraño orden cerrado que está lanzado indicaciones que nuestra imaginación
de espectadores o de lectores puede recoger y convertir en un
enriquecimiento de la foto‖ (CORTÁZAR, 2014, p.31). Tradução nossa.
224
companheiro. Por sua vez, logo nas primeiras linhas, Maria
deixa uma reflexão quando fere a palma de sua mão no momento
em que corta o pernil para a patroa e deduz: ―Faca a laser
corta até a vida‖ (EVARISTO, 2016, p.40). Em seguida, aflige o
leitor nos segundos em que, após encontrar o pai de seu filho
primogênito no ônibus, onde lhe faz perguntas sobre o menino e
cochicha sobre algumas saudades, ele anuncia um assalto e,
depois da descida, um dos passageiros grita que ela conhecia
os ladrões. Já a narradora de Dudu-Querença nos afeta desde a
primeira imagem do conto quando diante da lata vazia a
personagem: ―lambeu os dedos gordurosos de comida,
aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado
presos debaixo de suas unhas‖. Logo depois, remonta-se a
chegada da menina à cidade, onde a promessa de uma vida nova é
prontamente revelada como uma casa de prostituição. (EVARISTO,
2016, p.31).
Cada uma, do seu jeito, mexe com instâncias do nosso ser
adormecidas por conta da repetição cotidiana das mazelas
sociais pelos veículos de comunicação. É difícil passar
incólume pelas situações apresentadas, porque é uma
oportunidade de refletir sobre outras faces possíveis das
histórias que nos apresentam. Os holofotes das câmeras incidem
sobre a morte do chefe do tráfico, as redes sociais viralizam
o linchamento promovido pelos que se autodesignam ―homens de
bem‖, o olhar cruza com corpos estirados pelo chão da cidade
como se eles fizessem parte do cenário urbano; enquanto o foco
luzente incide de forma que nos conduz a uma apreciação
parcial– classista, racista, machista – e desumana da vida,
Conceição Evaristo se ocupa de buscar a matéria de sua
narrativa nas sombras projetadas por esta luz. Assim,
interessa-se sobre os afetos dos bandidos, as angústias da
empregada doméstica e a anestesia mesclado ao medo daquelas
que se dedicam ao comércio do próprio corpo. O universo que
ganha vida através das suas mãos é um organismo vivo permeado
225
de claroescuro, por isso se aproxima da vida e nos ajuda a
pensar o mundo em seu seio, tal como nos sugere Simone de
Beauvoir.
Embora tenhamos enfatizado, até então, em algumas das
narrativas protagonizadas por mulheres, decidimos analisar
mais detalhadamente o conto: ―A gente combinamos de não
morrer‖. A escolha se justifica pela capacidade da autora de
formar uma esfera perfeita tal como aquela sugerida por
Cortázar. Não que os demais escapem desta qualidade, mas na
trama em destaque a construção formal evidencia uma
constituição de vozes equidistantes que, em conjunto,
estruturam um todo sem, necessariamente, enfocar apenas um
ponto central. A partir de um jogo de luz e sombra entre falas
e silêncios, percebe-se a organicidade das relações a partir
de personagens conscientes da sua condição no mundo. O
discurso em primeira pessoa se insere em meio ao que é
expresso pelo narrador não-participante e permite uma
abrangência da matéria narrada através de perspectivas
distintas. Desta forma, nota-se que, assim como diz a canção
de Caetano Veloso, ―cada um sabe a dor e a delícia de ser o
que é‖, ou seja, diante de suas escolhas e das fatalidades da
vida cada membro sente-se lúcido a respeito da situação na
qual se encontra.
O papo é reto já nas primeiras linhas, uma vez que o
leitor se encontra imediatamente em meio à cena de ação na
qual ocorre uma troca de tiros. Sob o ―pipocar‖ dos disparos
de arma de fogo, ―a morte brinca com balas nos dedos gatilhos
dos meninos‖ (EVARISTO, 2016, p.99). Isto é, a ideia de
finitude humana e a alusão ao armamento interrompem a
possibilidade vocabular recreativa do campo infanto-juvenil.
Nota-se que, apesar da pouca idade dos participantes, o jogo é
o risco no chão do destino e o vacilo é pago com a vida, pois
não há lugar para o café-com-leite tampouco possibilidade de
pedir licença. No baile dos projéteis, cada um se empenha em
226
manter o ritmo da respiração ativo e uma voz entoa o juramento
feito outrora: ―— A gente combinamos de não morrer‖. De forma
uníssona, um deles declama o verso cuja força se dirige não
apenas à resistência dos demais, mas acima de tudo o proclama
para si, como uma forma de não se render ao medo. O pacto
firmado é o elo vital de cada integrante do grupo, por isso,
entoá-lo diante do perigo, é a maneira mais eficaz de invocar
a sua potência.
A insubordinação à norma culta soa também como uma
rebeldia diante da morte do logos, aquele que, segundo
Aristóteles, caracteriza o homem enquanto tal. O espaço no
qual o episódio se insere tem as próprias leis e esta
afirmação fica clara no quadro apresentado em seguida quando
se descreve um dos meios pelos quais se dá cabo à vida: o
micro-ondas. Um corpo na lixeira carbonizado e, assim, ―a
morte incendeia a vida, como se estopa fosse‖ (EVARISTO, 2016,
p.99). No repositório onde se descarta o que já não tem
utilidade, extingue-se a vida e nasce a morte cujos sinais se
expressam através da fumaça que se erige no ar. De acordo com
as regras em questão, não há possibilidade de expressar
sentimentos, principalmente se o sujeito for do sexo
masculino. Então, o vapor da chama é a justificativa de Dorvi,
a primeira personagem mostrada na trama, para o lacrimejar de
seus olhos. Enquanto a fumaça da morte sobe, as lágrimas da
vida descem e mantêm um diálogo de intensidade para justificar
―qualquer gota ou rio-mar que surgisse e rolasse pela face‖
(EVARISTO, 2016, p.99).
A aspiração do pó interrompe os atravessamentos entre o
viver e o morrer. Porém, não é a partícula de potência de vida
como aquela descrita no livro de gênesis da escritura sagrada
cristã, da qual todos vêm e para a qual todos retornarão73, que
enche o pulmão do menino. O consumo de cocaína é a tentativa
73 ―No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela
foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás. ― (GENÊSIS: 3, 19)
227
de se manter ativo diante da paralisia provocada pelo temor.
Digo, tentativa, porque o ―pó contaminado‖, ou seja, misturado
com outras substâncias não lhe proporciona o resultado
imaginado e ele o compara a ―talco para pôr na bunda de neném‖
(EVARISTO, 2016, p.100). Assim como a substância voltada para
a pele das crianças, o pó alivia as irritações da alma dos
adultos. A imagem que poderia remeter apenas à pouca
concentração de cocaína que a torna incapaz de lhe oferecer
torpor, aquele mesmo proporcionado para as classes sociais
mais altas em seus delírios, aponta para as primeiras
reflexões em primeira pessoa da personagem. Dorvi lembra do
recém-nascimento do filho e a incapacidade de encará-lo em sua
pequenez.
A imagem revela a dificuldade do garoto de lidar com o
aspecto frágil da vida, seja com as próprias lágrimas ou com o
nascimento do filho. Diante do corpo indefeso, ele ensaia
―cutucar o putinho com a ponta da escopeta‖ (EVARISTO, 2016,
p.100). A sucessão de sons das palavras - ―putinho‖, ―ponta‖,
escopeta‖ – demonstra que o ruído do projétil já está
entronizado em seu ser e ato de acariciar a criança com a arma
sugere uma realidade onde o afeto também nasce da rigidez e as
pulsões da vida e da morte estão sempre lado a lado. Dorvi
manifesta o desejo de que a criança se mantivesse ―na barriga
da mulher‖ ou que ficasse, como ele diz, ―incubado como
semente dentro do meu caralho‖ (EVARISTO, 2016, p.100), como
se o lugar da debilidade fosse somente no interior do corpo. A
partir do momento em que o mais vulnerável é exteriorizado, é
necessário que se envolva na proteção de fortaleza para
sobreviver à realidade dura que se impõe.
Diante da proximidade do instrumento ao corpo do filho, a
mãe se afasta com o pequeno e o pai afirma: ―Não sei para que
o medo‖ (EVARISTO, 2016, p.100). Com uma frase semelhante,
inicia-se a participação da mãe da criança na narrativa: ―Não
sei porque o medo‖ (EVARISTO, 2016, p.100). O entrelace está
228
na incompreensão acerca do sentimento, mas enquanto para Dorvi
este elo se faz pela finalidade – não entende o propósito do
temor - Bica o enreda por meio da causa, uma vez que a origem
da consciência do perigo lhe gera estranhamento. Afinal, o
medo nunca a fez recuar, ao contrário, sempre fora uma força
propulsora. Ela afirma ―É como se o medo fosse uma coragem ao
contrário. Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo de dor
e pânico‖ (EVARISTO, 2016, p.100). O trecho poético demonstra
como esta dinâmica se efetiva: inicia-se com o medo,
transforma-se em coragem, ambos se misturam e por fim se
associam com outras sensações. Vale notar que, em meio à
aglutinação, surge uma referência ao gemer – ―coragemedo‖ e o
leitor já não sabe se a expressão é fruto de prazer ou dor,
porque ao longo da narrativa ambos se enredam de forma que uma
se efetiva como a sombra da outra, da mesma maneira que vemos
a vida e a morte pelos olhos de Dorvi.
O olhar poético de Bica compara o cenário do tiroteio a
uma festa na qual ―balas enfeitam o coração da noite‖
(EVARISTO, 2016, p.100). Mais uma vez, a beleza da vida é
cravejada pela rigidez da realidade, porque no espaço onde
habita o curso dos dias supera as narrativas ficcionais. Em
discurso direto, a jovem expõe que não gosta de filmes da
televisão, tendo em vista que nas películas ―morre e mata de
mentira‖ (EVARISTO, 2016, p.100). Ela sabe que ali, na favela,
―a morte é leve como a poeira‖(EVARISTO, 2016, p.100) e ―a
vida se confunde com um pó branco qualquer‖(EVARISTO, 2016,
p.100). Assim sendo, não há espaço para o encantamento pelo
simulacro a ponto de confundi-lo com o real tal como ocorre no
mito de Pigmaleão ou de Narciso. Ao contrário, a existência é
que vez ou outra traz consigo a neblina do irreal
materializado, como se os olhos almejassem não acreditar na
imagem que se impõe diante da retina. Há pouco espaço para
fantasia, porque o lema é ―um tapa, dois tapas, três tiros...‖
(EVARISTO, 2016, p.100).
229
Nem a música pueril escapa das problematizações. Bica
relembra a canção entoada pela mãe quando ela e o irmão eram
pequenos: ―Um elefante amola a gente, amola! Dois elefantes
amola a gente, amola, amola!...‖ (EVARISTO, 2016, p.100). Após
a lembrança, a menina diz ―A vida é tanta amolação‖ (EVARISTO,
2016, p.100) e recorda a irritação do irmão diante da cantiga
que a fazia feliz. Outra vez, verifica-se o desdobramento dos
significados. Pensada para o entretenimento, a cantiga
infantil é o gatilho para a reflexão a respeito da vida. O
substantivo amolação remete ao aborrecimento. Por sua vez, o
verbo amolar sugere tanto ao ato de importunar quanto à ideia
de afiar. Através do canto, a mãe sublima os pesos da vida ao
mesmo tempo em que provoca a irritação nos filhos como se,
desta forma, os preparasse para rasgar as cargas que a vida
lhes colocará sobre as costas. O embalo serve para despertá-
los para os infortúnios que se multiplicam durante a execução
da sinfonia dos dias.
O jogo de perspectivas é frequente na trama. Na construção
do texto, Conceição Evaristo está atenta para as versões de
uma história e tal percepção se prolonga também para as
palavras. Os elementos da narrativa se desdobram e sugerem
faces diversas de si. O episódio das lágrimas de Dorvi, a
frase ―não sei para que/porque o medo‖, a multiface do pó e da
amolação são alguns exemplos que ilustram algumas das
refrações concebíveis a partir do texto. Esta característica
se estende à percepção dos fatos, porque cada personagem nos
oferece uma abrangência específica do que se apresenta na
trama. Porém, vez ou outra, os desmembramentos se amalgamam e,
em meio às fusões, outras possibilidades surgem tal como a
penumbra que se imiscui no espaço entre luz e sombra de
neologismos coragemedo. O claroescuro é o espaço do leitor,
nas entrelinhas, no entrelugar é onde a narrativa se efetiva
como gérmen de reflexão.
230
No rastro da reminiscência, Bica traz o evento da morte do
irmão para a narrativa. O dia quando, após olhar a mãe de
soslaio depois dela ficar rouca e soluçar de tanto entoar a
música do elefante, pede a benção e sai. Segundo a jovem, ele
não chega a descer o morro, ―vacilou, dançou‖ (EVARISTO, 2016,
p.101), e a mãe recebe a notícia fatídica que o corpo do filho
está estirado no chão. Chegando ao lugar da execução, ela
acende uma vela e ―uma fumacinha-menina dançava ao pé de
Idago‖ (EVARISTO, 2016, p.101). À luz dos estudos de Roberto
Casati, lembra-se que a chegada da morte é concomitante à
perda da sombra, tendo em vista que o corpo deitado já não
projeta o seu duplo umbroso. No entanto, a narrativa em
análise enfatiza a última resistência: os pés. Alumiada pela
vela, a base de sustentação do corpo é a única capaz de
produzir sombra e mantém, assim, alguma resistência à extinção
da vitalidade. A morte é apresentada a partir do rasgar da
carne, da perspectiva do corpo e sem possibilidade de
transcendência:
Só ela, a fumacinha, a mãe e eu ali velamos o corpo do
meu irmão. Um tapa, dois tapas, elefantes, patas pisam
na gente. Escopetas, como facas afiadas, brincam
tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida.
Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo
tombou. Penso em Dorvi. Apalpo o meu. Peito, barriga,
pernas... Estou de pé. Meu neném dorme. Ainda me resto e
arrasto aquilo que sou. (EVARISTO, 2016, p. 101)
A fala de Dona Esterlinda segue as trilhas poéticas da
matéria de Bica, sua filha. A ―seca sonata‖ de balas ainda
ecoa enquanto a mão de Bica e do falecido Idago demonstra
irritação e troca o canal da televisão para uma ―programação
mais amena‖ capaz de ―entorpecer‖ os seus sentidos. Sob a
―saraivada de balas‖, cada participante encontra a droga que
lhe permite assegurar alguma sanidade. Esta mulher a encontra
na TV, onde a novela proporciona a vivência de uma outra
realidade. A ficção televisiva adormece o ruído incessante das
balas e representa ―a cachaça‖ que a transporta para um mundo
mais colorido do que aquele com a qual ela se encontra
231
cotidianamente. Ela expressa que não gosta ―de ver os crimes,
roubos e nem noticiários de guerra‖ (EVARISTO, 2016, p.102).
Afinal, o espetáculo da violência promovido pela mídia não se
compara à produção cruel do cotidiano da mulher. Se a rajada
de balas lhe rouba o sono, a televisão, por meio do ficcional,
viabiliza um encontro com o sonho de viver a serenidade da
classe média por alguns minutos.
Este movimento proporciona um flerte com o pensamento de
Guy Debord, em sua teoria sobre A sociedade do espetáculo.
Para o autor francês, o espetáculo é um meio de dominação da
burguesia sobre o proletariado, uma vez que aliena o indivíduo
para as questões essenciais do mundo e para a problematização
da própria condição. No entanto, Conceição Evaristo promove
uma outra abordagem sobre o tema, na medida em que a fábrica
de representação é o instrumento pelo qual alguns membros das
classes populares conseguem acessar a atmosfera onírica, tendo
em vista que a urgência dos dias exige a manutenção do estado
de alerta constante. Não há ingenuidade frente à luta de
classes, mas o acompanhamento da trama na casa dos ―Rodrigues
Magnânimo‖ permite um momento breve de sono que a realidade
lhe rouba. Desta forma, conserva a saúde mental para enfrentar
os elefantes que permeiam a sua rotina74.
Conforme observado, a família da novela possui sobrenome
em contraponto às personagens apresentadas no texto em análise
que são identificadas pelo apelido ou apenas pelo nome. Este
aspecto demonstra uma marca de distinção social característica
da sociedade brasileira. Na casa ficcional, tudo é grande e a
beleza resgata a lembrança do filho Idago que, segundo ela,
poderia trabalhar na televisão. Sobre o filho, ela destaca os
talentos para a música e revela que o passar dos anos o tornou
74 Não promovo aqui o desmerecer da teoria de Guy Debord. Entende-se a
dimensão da alienação diante dos regimes políticos que se impõem, mas a
imagem de Dona Esterlinda propicia a reflexão sobre o uso da máquina do
espetáculo, de forma consciente, com o intuito de dormir quando a realidade
afoga o indivíduo.
232
mais ―calado‖ e ―irritado‖, afinal: ―Tudo amolava Idago‖. Em
meio à fala, assinala a cantiga que aprendeu com a mãe e
acredita que os seus antepassados lhe tenham ensinado também.
Na sua memória se inscreve a versão de Idago para quem ela
acredita ―o mundo era só amolação‖: ―uma mãe amola a gente,
uma irmã amola a gente, um inimigo amola a gente, um policial
amola a gente‖ (EVARISTO, 2016, p.102).
A figura de Idago sombreia as falas de sua mãe e ganha
mais personificação sobre o ponto de vista de Bica. Ela
descreve o irmão como traidor e revela que, desde a infância,
a característica o acompanha. Naquele mundo, sabe-se sobre o
poder da informação e a delação é paga com o corpo ou a vida.
O jovem X-9 experimenta os dois castigos. Inicialmente, ainda
na escola, ele denuncia os companheiros que pegam a merenda e
entrega outras irregularidades. Após o aviso para a mãe cuidar
da boca traidora do filho de onze anos, derramam um vidro de
pimenta ―goela adentro daquele que cultivava a língua
venenosamente solta‖ (EVARISTO, 2016, p. 103). Ali, as
palavras são cuidadosamente manejadas com o fim de selecionar
o dito e o silenciado e, desta maneira, preservar o ―código de
honra‖ vigente. Senão, o descuido com a medida do discurso
custa a vida, porque: ―As palavras, às vezes, feriam segredos
e escorregavam pela ladeira abaixo parando lá na delegacia‖
(EVARISTO, 2016, p.103). O deslize do verbo, tomba o jovem.
Este é o meio de evitar o telefone sem fio que desce a
informação da boca ao pé do morro como o traçar de um bondinho
que se desloca para a parte mais baixa do teleférico.
A roda da narrativa passa novamente a fala para Bica,
consoante ao parágrafo anterior, e depois retorna para Dorvi.
Sobre a explosão do vulcão que fumega da matéria do não dito,
ele assinala a potência da lava transbordante. Quando se torna
o dito, espalha-se e carrega o que está no seu caminho. Como
um rizoma, os assuntos se bifurcam e Dorvi sabe que os seus
superiores estão informados da dívida no entorno da sua área.
233
Por isso, na cascata de responsabilidades, ele é encarregado
de cobrar dos demais o que lhe exigem também. No acerto de
contas, a tortura é uma das formas da vingança e ele lembra
que ―faca amolada corta e pode ser um jogo lento‖ (EVARISTO,
2016, p.103). Sentimos o afilar da lâmina no momento em que
confessa ―arrancar os bagos‖ (EVARISTO, 2016, p.103) do
traidor. Na cadeia hierárquica cada parte responde pelo todo,
logo ― a dívida do outro é minha dívida‖ (EVARISTO, 2016,
p.103). De acordo com a lógica descrita, o compromisso com o
outro não deixa de ser um compromisso consigo e, assim, forma-
se a ética do jogo. Quando ele se desestabiliza é sinal de
movimento das placas subjacentes na tentativa de deslocar as
que estão no topo para, desta maneira, tomar o seu lugar.
Quem está no cume, enxerga o redor de maneira privilegiada
e tem a sensação de que o mundo está aos seus pés. Dorvi
descreve a casa do chefe e menciona a vista para o mar.
Olhando a grandeza das águas que se encontram com o horizonte,
ele revela o desejo de uma ―morte lenta e calma‖ (EVARISTO,
2016, p.104) resguardada pelo fundo do oceano. Durante o
devaneio, há um flerte desmedido com o cenário. Ele entende
que, ao olhar o mar de cima do morro, ao invés de ser grande
diante do mundo, torna-se pequeno em meio à vastidão das
águas. A percepção de ser uma partícula da poeira do universo
permite a expressão dos seus sentimentos mais íntimos: revela
a predileção por Bica entre outras mulheres, o carinho pelo
filho, o medo quando não tem a escopeta por perto, o amor pelo
âmbito marítimo. Nas ondas de tal pensamento, confessa sonhar
com a viagem profunda após à morte. Afinal, mais uma vez,
nota-se que a vida já está esvaziada de imaginário e toda
possibilidade onírica se encontra fora da própria existência,
seja na ficção – como Dona Esterlinda – ou na morte, no mar de
Dorvi:
Quero a morte lenta e calma. Quero boiar no profundo
fundo do mar. Quero o fundo do mar-amor, onde deve
reinar a calmaria. É lá no profundo fundo que vou
234
construir um castelo para a morada do meu filho. Bica,
predileta minha, vai também. Ela sabe que da ponta da
escopeta também sai carinho. No fundo do mar, mundo
algum explode. Bica, dileta minha, a vida explode.
Explode, ode, ode, ode... Mar-amor. O meu desejo é um
castelo de areias? Nem sei... (EVARISTO, 2016, p. 104)
A paz da morte é um anseio para quem vive o turbilhão dos
dias. Não há espaço para o inferno na reflexão de Dorvi,
porque a profundeza é a calmaria das zonas marítimas abissais
onde o corpo não submerge, mas boia de forma leve,
descarregado dos elefantes da vida. Tampouco há ilusão sobre a
morada preparada à espera dos novos habitantes, mas o castelo
que sonha em construir para o filho é fruto das suas mãos. O
fogo é o elemento da realidade, a fumaça quente que sobe nos
eventos cotidianos do morro. Isto é, a convivência com os
aspectos satânicos está na terra em que seus pés pisam: o
fumegar dos corpos, o ódio, a tortura. Logo, busca-se o
destino final no mar-amor e não no maremoto ininterrupto do
intervalo entre o nascimento e a morte. A lírica deste espaço
deságua na beleza do mar-amor onde ―o mar‖ brinca com suas
letras e propicia o sonho de Dorvi de alcançar algum
horizonte, na junção do céu e do oceano, levado pelo seu
―barco estrela de três lugares‖ ocupado pela sua trindade
divina: ―predileta minha, putinho meu e eu‖ (EVARISTO, 2016,
p.104).
O vislumbrar da morte se alterna com as observações sobre
a vida. Dois aspectos se destacam no discurso de Dorvi: o
retorno à questão do pó e as disputas na favela. Em relação ao
primeiro, ele não apenas afirma a crença de que este é o
elemento que nos entrelaça, mas também reconhece que o risco
diferenciado da poeira de cada um. Consoante as suas palavras,
―[...] meu pó corre mais perigo. Meu pó vira cinza rápido. ‖ e
nesta linha traz o aspecto da disputa ―Quem incendeia? Pode
ser a polícia, pode ser qualquer um de nós mesmo, grupos
rivais‖ (EVARISTO, 2016, p.104). De igual maneira que um
filósofo pré-socrático, ele defende a formação de um mundo
235
através do elemento ―pó‖. Esta é a substância da qual somos
feitos e, em uma de suas formas, viabiliza a fusão do homem ao
mundo, economicamente ou psicologicamente. Ele diz: ―A
primeira vez eu não sabia aspirar tudo. Os desejos, os sonhos,
a viagem, tudo se atracou na minha garganta‖ (EVARISTO, 2016,
p.104). Se no início é difícil engolir as frustrações da vida,
com o tempo, o pó lhe faculta devorá-la e digeri-la, através
do dinheiro que adquire em sua venda ou a anestesia diante dos
problemas.
Na gira da narrativa, retorna-se pela última vez à fala de
Dona Esterlinda. No rastro da fala de Dorvi ―A terra vai
explodir no mundo-canal da televisão‖ (EVARISTO, 2016, p.
104), a mulher comenta o final da novela. Se o mar é vastidão,
a fuga da matriarca não passa de uma vala por onde corre água,
geralmente insalubre. Sua frustração consiste na ausência de
final feliz para a empregada da novela, porque em outro
folhetim chorou quando a babá casou com o filho do patrão.
Contudo, ela assume que as lágrimas diante do aparelho não se
resumem aos sentimentos provocados pela ficção, mas também
―por outras coisas‖, ―pela vida ser tão diferente‖ e ―por
coisas que não gosta nem de pensar‖ (EVARISTO, 2016, p. 105).
As lágrimas de felicidade provocadas pela dramaturgia é a via
de expressão da dor, tendo em vista que o pranto de fraqueza
exprime fragilidade, um estado inadequado no ambiente cuja
força-motriz é a resistência. O lamento mescla-se às
circunstâncias externas para se justificar, a emoção da novela
é a explicação para o brotar dos ―olhos d‘água‖ da mesma
maneira que a fumaça esclarece o lacrimejar de Dorvi durante a
troca de tiros.
Em seguida, a mulher inicia uma reflexão lúcida sobre os
filhos e o genro. O fim trágico de Idago lhe marca a alma, mas
não se observa uma divagação longa por parte da mãe sobre o
ocorrido. A atenção se volta para Bica, menina inteligente e
atenta desde tenra idade, e sua relação com Dorvi, que regula
236
a sua faixa etária, mas não é o tipo de menino com quem
Esterlinda gostaria que a filha se envolvesse. Embora para os
demais pareça que a novela a desconecte das questões da vida,
ela está ciente da dívida do pai do seu primeiro neto. Sabe
que ele não é o companheiro ideal para Bica e deseja para
menina um outro destino. O discurso em primeira pessoa de Dona
Esterlinda comprova a sua consciência a respeito dos eventos
do entorno. O cuidado para que a jovem não se transforme uma
parideira, a preocupação sobre o seu envolvimento amoroso com
um narcotraficante e a percepção de sua acuidade intelectual
demonstram o domínio da figura materna a respeito da filha. A
certeza de que Dorvi está por um fio ilustra a clareza de
ideias sobre o que ocorre na comunidade, mas quando puxa
assunto com a filha, ela desconversa, porque como declara Dona
Esterlinda poeticamente: ―Bica é escorregadia feito baba de
quiabo‖ (EVARISTO, 2016, p.106).
O novelo se enrola e resgata a última aparição de Dorvi.
Conforme dito, aos seus olhos, aprendemos a apreciar as coisas
por um outro ponto de vista. Ele apresenta detalhes sobre a
dívida do companheiro e sabe que no baile em que se encontra o
eu e o outro se enredam de forma que se consubstanciam em um.
O prazo vale para ambos, a morte de um implica também na do
outro. O pacto de vida, transforma-se no selo de morte e
frente ao fato Dorvi afirma não sentir medo ―Penso no risco
que estou correndo. Risco não, tudo já está certo. A solução
está definida. O destino traçado‖ (EVARISTO, 2016, p.106).
Ressalta-se o jogo de palavras risco e traço, no qual o
primeiro sugere imprecisão e o último a marca forte e exata.
Dorvi está seguro a respeito das consequências de suas
escolhas, por isso não vacila mediante à hipótese da morte. É
preciso lembrar que, no fim dos dias, inicia a sua jornada no
seu mar-amor.
A partir da narrativa do rapaz, o leitor aprende a olhar o
fato por um outro lado. Esta afirmação pode ser exemplificada
237
por meio de uma frase explícita – Nosso traço de vida virou às
avessas. Morremos nós, apesar de que a gente combinamos de não
morrer – ou pelas infiltrações em sua fala ―A morte às vezes
tem um gosto de gozo? Ou o gozo tem um gosto de morte‖
(EVARISTO, 2016, p.106). Em referência à dúvida, lembra do dia
em que gozou de prazer no seu primeiro enfrentamento –
―atirei, gozei, atirei, gozei, gozei... Gozei dor e alegria‖ -
quando arrancou sozinho um dente de leite – ―Minha mãe me
chamou de homem. Cuspi sangue. Limpei a baba com as costas da
mão, ainda tremendo um pouco, mas correspondi ao elogio. Eu
era um homem‖ (EVARISTO, 2016, p.107) e as pulsões daquele
momento no qual a linha da sua existência se equilibra: ―Hoje
outro prazer ou desprazer formiga o meu corpo por dentro e por
fora. Vou matar, vou morrer‖ (EVARISTO, 2016, p.107). As três
situações corroboram a habilidade de Dorvi de contemplar o
mundo pela luz e pela sombra.
Finalmente, o leitor chega à participação derradeira de
Bica, narrativa que encerra o conto. Logo no início, ela
anuncia a morte de Neo que será mais uma na linha de tiro
entre os que já caíram e os que tombarão. Jovens cuja data de
nascimento e de morte se aproximam e evidenciam a vida breve
daqueles que pagam com a vida a ruptura do código de ética do
lugar ou que se envolvem em sua principal atividade econômica.
Diante das perdas, Bica mais uma vez apalpa o corpo e conclui:
―aqui estou eu‖ como uma necessidade de tocar a própria
materialidade para se certificar da vitalidade que a habita.
Ela se questiona: ―ainda há dor por vir? ‖ (EVARISTO, 2016,
p.107) e lembra de Dorvi, assinalando a proximidade entre o
nome do pai do seu filho com o anúncio de dor. A ausência de
notícias e seu desaparecimento ―daquele que leva a mulher à
conclusão de que ele matou – encontram Neo marcado pelo tiro
de sua escopeta – e morreu. Porém, já não sabemos se aquele
que lhe oferece ―um presente incompleto e um futuro vazio‖
(EVARISTO, 2016, p.108) consegue embarcar com calma para o
238
fundo do mar, uma vez que a narrativa se inscreve na carne, na
materialidade dos dias e as poucas transcendências surgem
apenas através dos devaneios narcótico e ficcional.
Consoante ao aprendizado deixado pelo navegante do mar-
amor, é imprescindível perscrutar as sombras da existência. ―A
gente combinamos de não morrer‖ é o pacto de vida, mas também
pode ser o selo de morte. Isto é, o acerto de preservar o
corpo em sua energia vital, mas a partir do momento em que a
não-vida abrange os dias – como a necessidade constante de
fuga por conta da dívida – assumir o fim é a maneira mais
honrada de se manter presente. A jura interna torna-se a
comunhão responsável por atrelar as existências em suas
possibilidades e ela não é exclusividade dos meninos. Bica
revela a promessa das meninas de juntar as suas menstruações
para selar a irmandade entre si. O componente sanguíneo está
presente em ambas as uniões, no entanto, enquanto para as
mulheres o sangue íntimo inicia a aliança, para os homens a
manutenção do elo consiste em não o derramar. O vínculo
simbólico é entendido como a armadura responsável pela
resistência da entrega de si ao sacrifício. Não é o diabo quem
recolhe a assinatura de sangue com o fim de capturar almas,
mas é o coletivo que, ao misturar sua seiva vermelha, ata a
permanência de corpos e afetos.
Dorvi marca a sua presença no mundo através da renovação
oral do acordo, mas a filha de Dona Esterlinda o faz por meio
da escrita e assim se revolta, liberta-se e sangra. Certo dia,
na escola, voluntaria-se para escrever no quadro as palavras
que formou durante a aula de separação de sílaba. Ela levanta
e escreve ―pó, zoeira, maconha‖ com o fim de desconcertar a
professora, porém, conforme a lista aumenta, o desconforto a
atinge, uma vontade súbita de voltar ao seu lugar é a única
que a ronda e problematiza ―se é que tenho algum‖ (EVARISTO,
2016, p.108). Bica sabe que, tradicionalmente, a vida
resguarda para os seus o mesmo destino de Dorvi e Idago; sob
239
este ponto de vista, a escola não seria o seu lugar, na
verdade, além do não-lugar a sociedade só lhe garante a morte.
Estas são as duas possibilidades de vida que lhe ditam.
Todavia, o apreço pelas palavras propicia o encontro de uma
via diferente para expressar a própria inquietação
existencial:
Mas escrever funciona para mim como uma febre
incontrolável, que arde, arde, arde [...] Gosto de
escrever palavras inteiras, cortadas, compostas, frases,
não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido
ou carregada de vazio dependuradas no varal da linha.
Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na
corda bamba da vida. (EVARISTO, 2016, p. 108)
As palavras se dependuram ―no varal da linha‖ (EVARISTO,
2016, p.108) e Bica se equilibra na corda da vida. A escrita
manifesta a sua rebeldia e a liberdade de organizar as letras
no papel é um meio de escapar das limitações da vida. No papel
em branco, ela prescreve as regras e um novo mundo se compõe.
A jovem mãe lê um verso que enuncia: ―Escrever é uma maneira
de sangrar‖ – saberia ela sobre o flerte com Ernest Hemingway?
A tatuagem dos signos na folha de papel perfura a pele
imaculada da literatura para traçar os desenhos da sua escrita
e a navalha da crítica rasura a candura dos versos daqueles
cujos textos reluzem como cadáveres embalsamados despidos de
substância. Bica defende a escrita que vela a decomposição
dos corpos abandonados pelo Estado, em vida ou morte, com
todas as entranhas e sob o odor marcante do seu apodrecimento.
Como a chibata que marca a pele, a palavra ricocheteia a folha
e o leitor presencia o verter do sangue pelos orifícios do
texto:
Outro dia, tarde da noite, ouvi um escritor dizer que
ficava perplexo diante da fome do mundo. Perplexo! Eu
pedi para ele ter a bondade, a caridade cristã e que
incluísse ali todo tipo de fome, inclusive a minha, que
pode ser diferente da fome dos meus. Falei, mas pelo
menos naquele momento, me pareceu que ele fazia ouvidos
moucos. Quem sabe os nossos Orixás que são Humanos e
Deuses descrevam para esse escritor outras e outras
fomes, aumentando, assim, mais ainda, a perplexidade
dele. (EVARISTO, 2016, p. 108)
240
A menção ao cristianismo é um contraponto às religiões de
matrizes africanas. Se o judaico-cristão embasa sua crença na
figura de um Messias distanciado e único, as divindades das
culturas africanas estão em meio ao homem. Apesar do caráter
divino, elas também se imiscuem no âmbito terreno e, por isso,
estão mais próximas das questões humanas. Desta forma,
verifica-se, mais uma vez, o privilégio do vivido ao
transcendido, principalmente porque o último consiste – de
acordo com o narrado – em um meio de se apartar, por um tempo
breve, das agruras dos dias que insistem em se impor. Logo,
Bica confessa que, embora reclame da novela da mãe, sabe que
este é o meio pelo qual ela consegue inspirar um pouco de ar
para não se afogar entre as ondas do mar de tiros que a cerca
e das marés de fatalidade que insistem em arrastá-la pela
correnteza de lágrimas. Não há possibilidade de alienação,
―ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe
que a verdade da telinha é a da ficção‖ (EVARISTO, 2016,
p.109) Para quem sempre ―costurou a vida com fios de ferro‖
(EVARISTO, 2016, p.109), não é difícil diferenciar o aço do
algodão. A loucura seria uma das vias que permitiria vestir a
armadura de aço imaginando portar um suéter de algodão, mas
sabemos que não é o caso de Dona Esterlinda.
Em termos conclusivos, Bica relembra o pacto entre Dorvi e
os companheiros e faz uma observação ―Eu sei que não morrer,
nem sempre é viver‖ (EVARISTO, 2016, p.109). Através da frase,
ela demonstra consciência do esvaziamento presente na palavra
―vida‖ quando um indivíduo nasce na favela desprovido de
oportunidades. Principalmente, quando decide se inserir na
atividade econômica do narcotráfico na qual o código de ética
segue as próprias determinações e a morte é a pena a ser paga.
Enquanto ela escreve, ―a sonata seca‖ das balas mantém seu
ritmo e mostra que, entre uma baixa e outra, a dinâmica do
comércio é intermitente. Este é o prenúncio de corpos caídos
no chão envoltos pela poça de líquido rubro ou do cheiro de
241
fumaça daqueles que são incendiados. A rotina é contínua, mas
há resistência, como a persistência de sangrar pela escrita e
assim amenizar as dores da realidade e alcançar uma fresta de
liberdade. Ao tempo que algumas pessoas se questionam sobre o
próprio destino após a morte, no universo do morro a
problemática é: há vida no passar dos dias? quantas mortes
cabem em uma existência?
Sob o ponto de vista das três personagens com perfis
distintos, identificam-se questões existenciais de sujeitos
cuja posição social é periférica. Elas exprimem a complexidade
de indivíduos atravessados pela situação de violência que
vivenciam, por isso é fundamental associar os seus dilemas
pessoais à realidade na qual estão imersos. A partir da
perspectiva do centro, o operário do tráfico, a dona de casa
amante de novelas e a aluna problemática da escola são figuras
desprovidas de humanidade e reflexão. Segunda tal concepção,
os atos que empreendem são gratuitos, uma vez que a sua
agressividade ou passividade são movidos pela paixão e
destituídos de um caráter lógico. Desta forma, esvazia-se o
caráter racional de pessoas em determinadas condições sociais
de modo que se criem justificativas para a sua domesticação,
animalização ou infantilização. Consequentemente, no âmbito
moral, o senso comum se sente à vontade para julgá-los,
encarcerá-los ou eliminá-los, tendo em vista que se habilitam
a intervir nos seus corpos e conduzir as suas escolhas. Assim
como a sombra, esta presença no mundo deve se restringir ao
silêncio, contentar-se com o conteúdo homogêneo e obscuro que
lhe oferecem e se limitar aos movimentos ditados pelo corpo
que a manipula.
No entanto, quando Conceição Evaristo se apropria da
representação das figuras em questão, propicia a sua
inscrição, em primeira pessoa, na narrativa. Assim sendo,
descobrimos a consciência que elas têm sobre a própria
condição e as especificidades dos seus corpos e pensamentos.
242
As personagens têm nomes, apresentam seus dramas e nos
convocam a refletir pelo prisma periférico a respeito dos
aspectos sociais do nosso país. Lembra-se o trecho no qual
Bica rememora as investidas dos alunos em pegar a merenda da
escola e coloca em questão se aquilo é um roubo ou apenas uma
apropriação do que lhes pertence por direito. Também se
destaca o discurso de Dona Esterlinda sobre o conteúdo da
televisão quando ressalta as campanhas que a tudo se opõe, mas
que, de fato, ela já não sabe se são contra ou a favor das
causas sobre as quais se levantam. Por meio de suas palavras,
a vida das sombras caça as sombras da vida e permite uma
reorganização do imaginário do leitor sobre determinados tipos
sociais marcados pela estereotipia.
É preciso assinalar que, embora a violência permeie o
enredo, há uma manutenção do elemento poético. A expressão da
matéria narrada não se desenvolve apenas através da
agressividade, mas sim por meio da sensibilidade daqueles que
são acostumados a ―costurar a vida com fios de ferro‖
(EVARISTO, 2016, p.109). Da mesma maneira que a flor nasce no
asfalto, a linguagem evaristeana conserva a potência de vida,
beleza e arte em meio à concretude da guerra urbana e da
desigualdade social. Conceição Evaristo nos convoca a perceber
o afeto do grito em uníssono ―A gente combinamos de não
morrer‖ durante um tiroteio e nos convida a entrar nas águas
do mar-amor no decurso do entorpecimento de uma das
personagens. Assim como Bica, o leitor experimenta a
coragemedo de prosseguir uma leitura capaz de encher os olhos
d‘água – tal como o título do livro – tanto por causa da dor
que provoca quanto da habilidade artística da autora de criar
poesia a partir de uma matéria narrada rígida e, à primeira
vez, presente em um contexto improvável. A resistência da arte
diante das agruras da vida cunha o texto.
Os estudiosos recorrem aos registros de Plinio, o Velho, e
de Quintiliano com o fim de remontar a história da arte
243
pictórica. Segundo pesquisas, como a desenvolvida por Victor
Stoichita, a pintura nasce do contorno da sombra de um homem.
Seguindo a versão do naturalista romano, uma jovem desenha o
perfil de seu amado formado pela luz de uma vela na parede
para guardar uma lembrança daquele que deixa a cidade.
Posteriormente, o pai da menina, aplica argila sobre o molde e
o dota de releve. Butades utiliza seus conhecimentos de oleiro
para conceder forma ao que, inicialmente, consistia apenas em
uma silhueta bidimensional desprovida de profundidade. Vale
dizer que o historiador de arte romeno assinala que este mito,
em conjunto com o da Caverna, de Platão, sugerem um diálogo
tendo em vista que ambos são etiológicos: o primeiro se
associa à origem da arte e a segunda do conhecimento. Ele sabe
o risco de promover esta discussão, afinal são coisas
distintas em contextos diferentes, mas reconhece que em termos
hermenêuticos é possível pensar que os dois mitos trazem um
conceito de origem vinculado à sombra. Cito: ―a projeção
originária é o negativo de uma mancha, é uma sombra. A arte
(verdadeira) e o conhecimento (verdadeiro) consistem na
superação da situação limite do seu nascimento.‖ (STOICHITA,
1997,p.10)
Em cotejo com a história da pintura, proponho uma reflexão
sobre a literatura de Conceição Evaristo. Quando esta mulher
negra oriunda das camadas populares se apropria da caneta para
construir o texto ficcional, ela dá voz e profundidade a
personagens comumente relegados a uma aparição coadjuvante nas
narrativas. Desta forma, proporciona novas maneiras de
representação de tipos sociais tatuados com a tinta dos
estereótipos e estimula a criação de outros imaginários. Digo,
no momento em que representa os dilemas de Dorvi e a
configuração do seu entorno, verifica-se que há uma
humanização do sujeito que comumente aparece marginalizado na
sociedade. O amor pelo filho e pela companheira, as lágrimas
durante o confronto e o fascínio diante do mar resgatam o
244
caráter sensível que o habita. Escutá-lo no espaço ficcional
propicia a contemplação da realidade a partir de um ponto de
vista diferente e nos leva à reflexão sobre a postura que
mantemos diante deste Outro de mim mesmo. A sociedade empenha-
se em aniquilá-lo, talvez por temor com o encontro de uma de
suas possibilidades existenciais mais umbrosas, mas
aprendemos, à luz de Jung, que esta não é a melhor estratégia.
Vale lembrar que a literatura, ao longo de anos, empreende
o mesmo movimento, porque ignora ou subjuga todos aqueles que
não fazem parte do grupo legitimado para representar e/ou ser
representado. Como escritores, eles aparecem apenas como a
sombra que corrobora a materialidade do corpo que os
identifica. Conforme vimos, a presença de escritoras,
principalmente negras, surge nos compêndios da história
literária como um adorno em meio a uma constituição
majoritariamente masculina e branca. No que concerne às
personagens, ―a ficção ainda se ancora num passado escravo‖,
tal como afirma Evaristo em seu artigo Literatura negra: uma
poética de nossa afro-brasilidade. No espaço ficcional, os
negros ainda são confinados em papeis que reproduzem o lugar
que a sociedade lhes reserva nos âmbitos de subalternidade,
docilidade, sexualidade e passividade. As mulheres, por
exemplo, surgem como empregadas domésticas, prostitutas e
cuidadoras. Suas existências se justificam nas relações que
estabelecem com os protagonistas e aparições se fazem de forma
silenciada ou terceirizada, ou seja, apresenta por um narrador
ou por uma outra personagem.
Logo, entende-se como sombras da literatura estas figuras
que, apesar de presentes quando incide a luz da crítica, são
apresentadas como irrelevantes para a estruturação do corpo
que fundamenta esta arte. No entanto, conforme temos visto, a
presença da sombra é expressiva para o literário, por isso é
imprescindível buscar a sua voz nesta área. Se na primeira
parte da tese nos ocupamos de sua importância na formação
245
estética do texto, observa-se, a partir do texto de Conceição
Evaristo, que a escrita da sombra e a sua representação rompem
o silêncio a que estão condenadas, matizam tonalidades
distintas no texto, talham profundidade e sopram uma
vitalidade distinta para esta arte. Ademais, conscientes de
que a matéria que formam lança novas sombras, não se instituem
como uma centralidade, mas sim como pluralidade acolhedora de
novas perspectivas. Como no conceito ético de Ubuntu,
acredita-se na prática de solidariedade – ao invés de
classificação – na qual vigora a ideia de que: ―eu sou porque
nós somos‖.75
No momento em que inscreve a subjetividade de personagens
periféricos na literatura, Conceição Evaristo contribui para o
crescimento de uma história literária mais plural e
representativa em sua produção e em seu conteúdo. Ela se
compromete com a declaração da sua identidade como escritora,
da mesma maneira que Carolina Maria de Jesus, e se empenha
para estimular o re-conhecimento literário daqueles que são
deslocados socialmente para um espaço marginal. Verifica-se o
movimento de uma autora que, à sombra do que se determina como
cânone, constroi uma ficção ao redor dos dramas dos que estão
também na área periférica. Assim, ela não apenas se anuncia
como parte constituinte da arte literária, mas também inclui
vozes que, até então, eram, majoritariamente negligenciadas,
no espaço literário. Acredita-se que esta dinâmica imprime uma
reestruturação nos domínios do que se compreende como
Literatura Brasileira, uma vez que promove uma força na qual
as margens tensionam o centro de maneira que este começa a se
desestabilizar como o único detentor de solidez.
Outrora, as estruturas canônicas e críticas projetavam ao
redor de si sombras para legitimar a materialidade do próprio
corpo. Isto é, a menção a obras consideradas menos relevantes,
75 Disponível em: http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-
africana-que-nutre-o-conceito-de-humanidade-em-sua-essencia.
246
como as escritas por mulheres, por exemplo, corroborava a
robustez do que se instituía como literatura maior. A
constituição do padrão, da norma, da Literatura com letra
maiúscula se constroi em oposição ao que dela escapa. No
entanto, quando estas sombras se apropriam da escrita,
afirmam-se como sujeitos e se comprometem com uma
representação conectada à poética da negro-brasilidade, elas
demonstram a potência que advém das áreas excêntricas e se
desenvolvem para além das influências do núcleo. Assim sendo,
promovem uma composição marcada pela pluralidade de
perspectivas sem o estabelecimento de hierarquizações, como:
maior / menor, central / periférica, Literatura/ literatura.
Reconhece-se o caráter plural do grupo de escritores e as
possibilidades diversas de espaços, personagens, temas que
compõem o âmbito literário. Consequentemente, expande-se a
própria noção de literariedade.
Este tipo de ocupação do espaço literário incentiva a
democratização de uma arte que, conforme visto em capítulos
anteriores, organiza-se, historicamente, em torno de uma
elite. Sabe-se que, em um país que hoje ainda mantém 12,9
milhões de analfabetos, ainda há desafios no que tange à
acessibilidade efetiva da literatura para todos os cidadãos,
em termos de produção, recepção e distribuição. Conforme
afirma Antonio Candido, a fruição da literatura também se
constitui como um direito. Restringi-la apenas a grupos
privilegiados é uma forma de privar grande parte da população,
se consideramos que a maioria não a acessa efetivamente, de
desfrutar de um bem capaz de ―dar formas aos sentimentos e às
visões de mundo‖ – desta forma ―ela nos organiza, nos liberta
do caos e, portanto, nos humaniza‖ – e de conscientizar sobre
o assalto de recursos, já que esta arte também se empenha em
―focalizar as situações de restrições de direitos, ou de
negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação
espiritual‖. A afirmação e legitimação de autoras como
247
Conceição Evaristo, bem como a poética que elas nos
apresentam, promovem um cenário de denúncia e resistência
matizado por tonalidades diferentes, plural em suas formas e
inclusivo em seus domínios. A gira do literário absorve novos
participantes e a cada novo ingresso, há uma mudança de ritmo,
de estrutura e a reorganização se efetiva do todo para as
partes e não ao contrário.
É preciso aprender com a presença e a voz das sombras, que
são maioria, de que a fé, unicamente na luz, pode ser cega. É
imprescindível atentar para o discurso daquelas que rodeiam o
foco luzente e admitir a sua valoração na história da
humanidade. A partir do momento em que elas se apropriam do
espaço literário, demonstram a potência de sua presença e
materializam o corpo de uma arte das letras em que ―é tudo
sobre os nossos mais de cem anos de solidão vivendo em quartos
de despejos. ‖, como versa o poeta Sergio Vaz. Tendo em vista
que se estruturam de maneira que conseguem ―viver com os
aparecidos‖ e ―protestar, ao invés de exaltar o silêncio em
que se nasce‖, conforme declama a poesia de Sombra de
Alejandra Pizarnik, reconhecem que outros ainda estão à margem
da roda e os incentivam a compô-la. Há uma consciência de que
a cada ingresso, uma sombra diferente se forma, por isso se
comprometem a escutá-la, ainda que sua voz, à primeira
audição, seja dissonante da melodia em curso. É uma in-corpor-
ação contínua, isto é, elas estimulam a entrada de corpos que
assumem verbalmente a sua forma e atuam no meio em que se
inserem.
A luta pelo reconhecimento da poética das sombras é um
clamor para que haja uma insurgência daqueles que ficaram à
margem da tradição do luzente. Numa sociedade onde a razão e a
luz se legitimam como esferas de verdade e subjugam tudo a que
delas escapa, resgatar a presença da sombra é um ato de
insubordinação. Na literatura, especificamente, há uma ruptura
com a ordem estabelecida pelo cânone e uma reconfiguração dos
248
limites do que se define como literariedade. Elas assumem a
origem umbrosa da qual provêm e não se contentam com a
reprodução do silêncio e dos papeis que a confinaram ao longo
dos anos. Ademais, não compactuam com a abordagem negativada
da sua presença, caracterizando-a apenas nas instâncias da
falta, do pesar ou do sofrimento. A sua inscrição é marcada
por resistência, luta e manifestação de possibilidades e
perspectivas de vida. Com Carolina Maria de Jesus, Conceição
Evaristo e tantas outras, vamos, no rastro do título da
palestra de Angela Davis, ―Atravessando o tempo e construindo
o futuro da luta contra o racismo‖, o machismo, o classismo, o
capacitismo, a homofobia, a transfobia e todas as opressões
que constrangem um indivíduo a tomar posse de uma caneta e
dizer com orgulho: Eu faço literatura! Assim, cruzamos a luz
da história e nos juntamos às sombras para construir um
presente de luta e um futuro de uma arte literária mais
inclusiva e plural.
249
À sombra de uma conclusão
Coloriu
Desabrochou que simpatia
O sol sorriu de alegria
Papai chorou de emoção, emoção
Sou a continuação
Não tenho reino e sou princesa
Meus pais são a minha riquesa [sic]
Que guardo no meu coração
Muito bom os meus avós que barato
São dos meus pais o retrato
E eu a filiação.
(Lair Marques Ferreira)
―Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra
disse‖: ―Coloriu/ Desabrochou que simpatia/ O sol sorriu de
alegria‖. Este era o meu avô, um amante das letras, que talvez
soubesse que diante de nós o sol sorri, porque acredita no
diálogo que nasce da aurora com as sombras. Um sujeito
conhecido como professor entre os seus pares, porque era
ajudante de laboratório da faculdade de medicina da Souza
Marques, mas também pintor, porteiro do colégio Pedro II,
letrista, compositor, mas, acima de tudo, um daqueles do qual
sou a continuação. Conforme menciona nos versos, não tenho
reino, porém este fato não diminui o valor da herança deixada:
uma fita k7 – provavelmente com algum samba guardado – e um
espelho de microscópio que, quando me perco em meio à luz,
vislumbro minha imagem na tentativa de ver as diferenças
existentes entre os lados plano e côncavo até chegar à
conclusão de que estamos, a todo o tempo, permeados por
distorções. Esta riquesa, com s, eu guardo no meu coração e
através desta inscrição linguística constantemente recordo a
particularidade dos valores que trago da minha tradição.
Talvez ele soubesse que aquela vida que coloriu e
desabrochou no Rio de Janeiro às 10:15h de 30 de outubro de
1984 não se contentaria com o silêncio do lugar em que nasceu.
Por isso, cultivou com carinho, enquanto os pais trabalhavam,
aquela sombrinha que pouco a pouco cresceu ao som do samba que
fazia com o ruído da palma das mãos, do fundo do balde, da
250
caixinha de fósforo ou do objeto que estivesse disponível para
gerar um batuque. Tomava dela a tabuada e desvelava com prazer
a formação das palavras quando solicitava atenção com o fim de
elucidar que ―logia‖ significa estudo e, a partir de então,
jogar com a morfologia: Biologia – estudo da vida, Zoologia –
estudo dos animais. Demonstrava o cuidado de desenhar as
letras do mural que iria compor a parede da escola infantil da
sobrinha e o esmero de pintar uma casa como se fosse um
quadro. Nas lições cotidianas, a arte estava sempre presente;
porém não era aquela da galeria, biblioteca ou teatro, mas um
jeito de criar diferente, a partir da ―riquesa‖ oriunda da
possibilidade de conhecer outras perspectivas do entorno
gerando sensibilidade de valores que se guardam no coração.
A busca da beleza em meio ao mundo, o respeito ao processo
criativo e a valoração do elemento sensível são alguns
aspectos aprendidos no quintal de uma casa em Bento Ribeiro.
Não era o saber da escola e depois constatei que tampouco o
era da universidade, mas sim um aprendizado presente onde não
há incidência direta de luz, em algum ponto onde ela encontra
um obstáculo e forma uma silhueta que nos intriga. Outrora tão
rejeitada por Platão, descobri que para não se perder na
claridade desmedida do mundo das ideias, é necessário
preservar os conhecimentos oriundos da sombra. Nem sempre o
olhar se acostuma com um ambiente cuja luminescência gera
cegueira, por isso é necessário reconhecer a relevância do
saber desenvolvido em outros espaços, principalmente naquele
onde o claroscuro se desenvolve demonstrando a coexistência
necessária entre luz e sombra para a produção de saberes e
não-saberes.
Somos frutos de uma geração marcada pela influência da
luz, da razão, da verdade. Historicamente, hierarquizamos,
subjugamos e aniquilamos seres, saberes e prazeres em nome
destas instâncias. Ao longo do que se determina como
modernidade, os domínios da sombra, da sensibilidade e das
251
possibilidades carregam consigo a insígnia do negativo, uma
vez que não geram riqueza monetária tampouco conhecimento
segregador, elementos tão caros a um sistema responsável por
dividir as pessoas em categorias. A fé apaixonada pelo âmbito
da luminescência cega os sentidos e o intelecto de forma que o
indivíduo nega o próprio Deus que venera ao devotá-lo. Digo, a
aceitação dogmática da luz como fonte exclusiva das potências
positivas e a subjugação de tudo aquilo que dela escapa
contrapõe os valores sustentados pelo próprio campo de
princípios que a engloba cuja validação pressupõe verificação
e contestação.
Deve-se lembrar, no entanto, que a concepção de moderno
adotada pelas sociedades ocidentalizadas não é originária das
nossas terras. Ela advém de povos invasores imbuídos de um
ideal de supremacia responsável por categorizar o mundo a
partir de padrões estabelecidos pela sua cultura. Assim,
aprendemos a adaptar a nossa produção epistemológico-
artística, bem como a sua história, a uma estrutura pré-
moldada com o fim de alcançar alguma legitimidade crítica do
nosso pensamento. Adotamos a luz como referência norteadora
das nossas ideias e começamos também a rechaçar o âmbito das
sombras sem constatar que, ao rejeitá-las, negávamos a nós
mesmos.
A proposta de um reconhecimento da história das sombras
almeja contribuir como um contraponto à tradição dedicada à
trajetória da luz. Provavelmente, após tantas discussões, o
leitor que alcança o capítulo derradeiro se questiona: bom, o
que ou quem são as sombras? Afinal, ao longo do debate,
acredita-se corroborar a tese de que estes elementos têm
relevância para a literatura. Porém, é possível englobá-las em
uma designação específica? Já peço perdão àquele que se lança
à leitura em busca de uma resposta única para a questão. A
nossa pesquisa investe na realização poética da palavra, por
isso a cunhamos no plural, porque concordamos com a
252
multiplicidade das suas significações. Em sua concepção mais
estrita, a sombra é a projeção umbrosa resultante da
interceptação dos raios luzentes por um objeto opaco, mas
quando ingressa no campo literário apresenta-se como uma
metáfora cujos desdobramentos demonstram as faces distintas
presentes em sua estrutura. Ela pode ser esta projeção que nos
acompanha, o passado rejeitado por sua aparência perversa ou a
escrita de vozes cujo gênero, etnia, classe, sexualidade,
capacidade física ou mental que escapa da normatividade
imposta. Verifica-se que a sua natureza consiste em propiciar
uma outra perspectiva sobre o claro, o evidente, o natural.
Inicialmente, seguimos os passos do historiador da arte
Victor I.Stoichita e nos dedicamos a conhecer as sombras na
literatura. Este percurso indica algumas entre outras trilhas
que nos conduzem à presença da sombra no texto literário.
Verifica-se que tanto a poesia quanto a prosa adotam a
silhueta umbrosa para a sua constituição estética em
diferentes épocas. É preciso dizer que, ao longo da pesquisa,
houve a necessidade de excluir materiais que contribuiriam
potencialmente para a formação do corpus, uma vez que nos
comprometemos com o cumprimento de um prazo determinado.
Acredita-se que, um estudo mais alongado e amplo, permitiria
traçar caracterizações mais pormenorizadas. Contudo, a partir
do conjunto analisado, verificam-se, pelo menos, três maneiras
de inserção da silhueta na esfera do literário, ou seja, ela
aparece como: um elemento em si, uma estrutura dissociável do
corpo que a projeta e em associação direta com este, mas
assumindo um perfil diferenciado. Cada uma das realizações,
colaboram com o enriquecimento metafórico das obras em
análise.
O estudo em questão confirma a nossa tese de que a sombra
tem relevância para a história literária ocidental. Da mesma
forma que Victor I. Stoichita perscruta as sendas do perfil
umbroso na pintura com o fim de fundamentar a importância
253
desta figura na área pictórica, a primeira parte da
investigação se esforça em compreender tal presença na
literatura. Tanto os materiais selecionados para a elaboração
dos capítulos quanto os demais que não os compuseram,
comprovam o valor estético deste duplo para o campo literário,
seja como personagem, objeto/imagem ou propriamente na forma
de projeção. Portanto, evidencia-se a hipótese de que a
análise da manifestação estética deste ente contribui para a
compreensão sobre os domínios da sombra na representação
ocidental.
No entanto, conforme visto, a busca pelas poéticas das
sombras não se restringe à análise de textos que se encontram
imersos no continente onde se enfocam os raios de luz.
Tampouco se contenta somente com a representação da figura.
Por isso, a segunda parte da tese consiste na apreciação das
sombras da literatura, ou seja, das margens que a compõem para
além do cânone e propiciam uma movimentação cuja dinâmica não
tende para uma hierarquização segregadora de autores e textos,
mas sim para uma constituição plural e inclusiva no âmbito
literário. Em cotejo com aspectos históricos, entende-se que
os povos do sul facilitam o encontro com estas vozes, tendo em
vista que o enfoque nas obras europeias lança sombras nas
produções austrais. Além do mais, a própria construção de suas
histórias inscreve-se sob a sombra de um passado marcado por
aniquilações e silenciamentos diversos em nome do império da
luz. Os aspectos citados justificam o giro da nossa análise
para o sul, especificamente para a obra literária de mulheres
negras brasileiras.
É preciso dizer que, neste ponto, evidenciam-se as
relações entre o eu e o outro que se aproximam bastante da
associação entre a luz e a sombra. Digo, os dois primeiros
254
pólos, luz x eu76, apresentam – aparentemente - a esfera do
conhecido, o ponto pelo qual se relativiza o entorno. Por sua
vez, sombra e outro, compreendem um semelhante ao qual não
tenho acesso, uma presença ausente que não domino e que,
portanto, idealizo. Esta tendência é apresentada pelo encontro
entre europeus e os povos originários na América onde ambos os
grupos criam imaginários sobre os demais porque constroem uma
visão sobre o novo a partir das próprias perspectivas e
interesses. Consoante a tais informações, a intolerância e a
ambição levam não só à estereotipia, mas também à aniquilação,
culminando num extenso genocídio nas terras do sul. Estas
dicotomias se tensionam de maneira que os primeiros polos
compreendem entidades ocidentalmente reconhecidas como
positivas e/ou neutros, ao ponto que os segundos marcam o
negativo.
A partir do deslocamento empreendido, ansiamos pelo
encontro com a poética construída pelas sombras, porque
acreditamos na pressuposição de que quando se apropriam do
discurso, elas não se satisfazem com o lugar secundário que
ocupam em relação ao corpo que tradicionalmente a apresenta a
partir de uma visão distorcida ou emudecida. No momento em que
tomam posse da escrita, imbuem-se de uma potência própria
capaz de imprimir cor, profundidade e subjetividade na sua
presença e nas suas palavras de forma que geram uma vida
oriunda das esferas sombrias e, por isso, sabem não só
valorizá-las, mas também reconhecer que, quando conseguem
incorporar-se ativamente ao círculo, lançam com a sua
materialidade outras sombras no espaço literário. Logo,
empenham-se em motivá-las a se apropriar do direito de
usufruir deste bem, seja como autores, personagens ou
leitores, e não se contentarem com a passividade de serem
76 Sabe-se que, em termos psicanalíticos, este ―eu‖ também está permeado de
sombras. Por isso, aqui, considero a ideia de Ego como um meio de
reconhecimentos deste eu, o seu lado mais luminoso.
255
representadas por outrem, ficando assim passível à
estereotipia ou ao apagamento de sua presença.
Com o objetivo de elucidar as estratégias de inscrição das
sombras da literatura, apresentei a escrita autobiográfica de
Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo, e a composição
ficcional de Conceição Evaristo no livro Olhos d‟água,
especificamente, através do conto A gente combinamos de não
morrer. Ambas, mulheres negras oriundas de meios periféricos,
afirmam-se na posição de escritoras e acreditam na potência do
texto que escrevem. Enquanto a primeira constroi uma escrita
de si em tons introspectivos cotejando com questões
existenciais, políticas, econômicas e estéticas a partir da
visão das margens da cidade, a última, por sua vez, segue a
via ficcional para dar vida a personagens que ficam à sombra
da sociedade, concedendo-lhes não apenas subjetividade, mas
também voz. Através destas narrativas, reconhecemos a
representação literária produzida por e sobre perfis sociais -
tradicionalmente simplificados ou silenciados por escritores
pertencentes ao cânone - que se apropriam do direito à
literatura e se responsabilizam pela própria inserção no
espaço em questão.
No momento em que tomam o que também lhes pertence por
direito, demonstram a profundidade e as tonalidades de suas
constituições identitárias e a complexidade estética de seus
escritos. Em vista disso, abolem qualquer ideia de
neutralidade capaz de alcançar uma suposta universalidade e
demonstram que as poéticas advêm de corpos que estão no mundo,
marcado por experiências e atravessados por diálogos. Ainda
que os sujeitos criem outras realidades no espaço literário,
eles estão impregnados de uma forma de ser no mundo e no
processo criativo este corpo é indissociável do texto a que dá
vida. A capacidade de um texto dialogar com outras existências
e manter uma atualidade ao longo dos tempos não é oriunda da
habilidade do autor de sair de si e buscar uma suposta
256
objetividade de apresentar literariamente o mundo, mas sim de
encontrar no seio da sua experiência as afetações que o
permitem se sensibilizar para as questões de ser humano num
universo marcado por instabilidades.
Adotando a perspectiva das sombras para desenvolver uma
apreciação crítica da literatura, acredito contribuir para o
enriquecimento do repertório de uma arte cuja história é
marcada por uma elitização centralizadora que se entende como
iluminada e, por isso, entende-se como responsável por
delimitar um padrão de literariedade excludente e silenciador
que só reconhece o pensamento que projeta as suas ideias. O
desenvolvimento de uma teoria comprometida com a formação de
um corpo crítico consciente de que a arte é democrática
permite uma ampliação das nossas estratégias de análise, uma
vez que reconhecemos que a literatura está presente não apenas
em livros na estante, mas também em cadernos num barracão, e
na legitimação de escritores até então improváveis, como uma
ex-empregada doméstica. É preciso lembrar que Conceição
Evaristo, por exemplo, custeia suas primeiras publicações
diante da negativa das editoras. Logo, compreende-se a
urgência de uma discussão sobre a legitimação dos saberes,
tendo em vista que as instituições ainda são resistentes às
produções exteriores aos seus domínios. O conhecimento e a
arte não são exclusividades do meio acadêmico, ele está em
toda a parte, basta que saibamos acalmar a loucura da retina
para vê-los nas experiências mais simples. Cito, em caráter
ilustrativo, o cenário literário das periferias de São Paulo a
partir dos Saraus da Cooperifa e do projeto Poesia nos Muros,
ambos com o apoio do poeta Sergio Vaz, escritor que se engaja
em promover as vivências poéticas em áreas pobres da cidade.
Ao longo de anos dedicamos a nossa reflexão aos domínios
da luz. Afinal, ela é atraente com seu brilho intenso e
magnanimidade. Porém, vez ou outra, deixamo-nos ludibriar pelo
foco luzente da vida e ignoramos as sombras que se lançam em
257
seu entorno. Esta tese é uma tentativa de resgatar o diálogo
da literatura com estas figuras capazes de nos mostrar um
outro lado possível da representação. Elas nos ensinam a
dinâmica do re-conhecimento que, conforme explicado, consiste
no retorno em busca do que foi silenciado pela crítica e no
saber junto para a construção de uma história literária mais
justa e plural. Eu, Marcelle Ferreira Leal, uma sombra
inicialmente cultivada no quintal de Bento Ribeiro convoco as
minhas semelhantes, através da Poética das Sombras,
apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, à
apropriação da tinta para que no âmbito literário consigamos
colorir e desabrochar uma crítica na qual também sejamos
sujeitos. Assim, almejamos o encorajamento de outras
companheiras para que se apropriem da escrita e nos ofereçam
as suas perspectivas de Teoria Literária, porque o movimento
que nos interessa se embasa na essência solidária de ubuntu,
isto é, eu sou porque nós somos.
258
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