267
Rio de Janeiro Setembro de 2017 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA Marcelle Ferreira Leal

POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

  • Upload
    lamnhan

  • View
    227

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Rio de Janeiro

Setembro de 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

POÉTICAS DA SOMBRA:

DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA

Marcelle Ferreira Leal

Page 2: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Rio de Janeiro

Setembro de 2017

POÉTICA DAS SOMBRAS:

DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA

Marcelle Ferreira Leal

Tese de Doutorado submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários

para a obtenção do título de Doutora em

Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Orientador: Prof. Doutor Ronaldo Pereira Lima

Lins

Page 3: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Rio de Janeiro

Setembro de 2017

Poética das sombras:

de projeções a sujeitos da literatura

Marcelle Ferreira Leal

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura

(Teoria Literária).

Avaliada por:

_________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins (UFRJ)

_________________________________________________

Profa. Doutora Ana Cristina dos Santos – UERJ

_________________________________________________

Profa. Doutora Beatriz Vieira de Resende – UFRJ

_________________________________________________

Profa. Doutora. Ceila Maria Ferreira – UFF

_________________________________________________

Profa. Doutora Deise Quintiliano Pereira – UERJ

_________________________________________________

Prof. Doutor Nilton dos Anjos– UNIRIO (suplente)

_________________________________________________

Profa. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins – UFRJ (suplente)

Page 4: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Agradecimentos

Este doutorado durou, formalmente, quatro anos. Neste tempo, muita coisa mudou. Eu

não sou mais a mesma, o tema ganhou outros contornos, enfim, a vida seguiu o seu curso com

o que tem de mais próprio: a inconstância. Entre dias de sol e sombra, redigi as páginas que

seguem na tentativa de expressar meu pensamento e todas as afetações que me tocaram

durante o processo. Não é uma tarefa fácil, pois o adubo da escrita nasce do que temos de

mais orgânico. Felizmente, ao longo da trajetória, contei com a ajuda de pessoas queridas que

caminharam comigo, de mãos dadas, nos momentos de euforia, calmaria e fraqueza e me

ajudaram a desviar da luminescência e escuridão plenas que, vez ou outra, cegaram os meus

olhos. Já adianto que o espaço reservado para os agradecimentos será pequeno, porque minha

rede de acolhimento, graças às deusas, é ampla. Por isso, é possível que alguns nomes não

estejam escritos nestas páginas, mas com certeza eles estão tatuados em meu coração.

Em primeiro lugar, agradeço à minha família, pois eles guiaram meus primeiros

saberes e não-saberes, abrindo as trilhas do caminho que me trazem a este trabalho. Uma vez

que muitos nomes fazem parte do conjunto em questão, destaco minha gratidão à Cleusa Faria

Ferreira (avó), Lair Marques Ferreira (avô) e Denise Faria Ferreira (mãe) que no âmbito

materno criaram esta sombra que começa a inscrever o próprio corpo no mundo e Celi

Gonçalves Leal (avó), Dylson Meirelles Leal (avô), Lenice Gonçalves Leal (madrinha) e

André Luiz Gonçalves Leal (pai) que, pelo viés paterno, também colaboraram neste

empreendimento. Taianne Ferreira Leal, minha irmã, enlaça estes elos e me ensina, ao nascer

oito anos depois, o sentido de com-partilhar. Também incluo aqui Bruno de Almeida

Gambert, meu companheiro, que, ao longo dos últimos anos, revoluciona meus afetos, minhas

crenças e minha vida. Sem o seu apoio, esta tese, certamente, não se concluiria. Estas são

presenças constantes que me ancoram nos dias de mar revolto e me encorajam a remar quando

o medo me paralisa.

Ainda em primeiro lugar, mas por uma outra face, agradeço a Ronaldo Lima Lins, meu

orientador. Com cuidado e paciência, ele tomou pelas mãos uma pequena sombra, nos

primeiros períodos de universidade, e impulsionou, com sabedoria, o meu crescimento. Nunca

esquecerei do projeto de três página que propus no começo da Iniciação Científica, afinal,

esse mundo era tão distante para mim. Hoje, o mínimo que posso fazer, é entregar esta tese,

com pouco mais de duzentas páginas, como forma de retribuir toda a sua generosidade. Muito

obrigada por todos os saberes e não-saberes que, continuamente, você me oferece e por toda a

confiança depositada no meu trabalho e nas minhas reflexões. Ainda aqui, agradeço à Cinda

Page 5: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Gonda que nos ensina a justa medida entre luz e sombra e, com sabedoria e afeto, acolhe os

nossos transbordamentos. Neste rastro, também reconheço a contribuição do grupo de

pesquisa do qual participo. O olhar crítico, o apoio emocional e as sugestões de cada um

enriqueceram a elaboração desta tese.

Deixo também o meu muito obrigada aos amigos presentes ao longo desta jornada.

Não conseguirei mencionar todos, mas sou grata a cada um pelo apoio oferecido. Ressalto os

nomes de Juliana Almeida, Virgínia Dias, Luciana Goiana, Elis Costa, Heloísa Mazza, Bruna

Ventura, Thaís Basílio e Ana Cristina dos Santos mulheres que me inspiram e participam dos

meus melhores e piores delírios. Ao grupo “Mestras e Mestres”, composto por companheiros

que me ensinam sobre as banalidades e complexidades da existência: Celso Cruz, Dani

Rezende, Débora Sabina, Eduardo Rosal, Fabrício Gonçalves, João Pedro de Sá, Luisa

Mattos, Ricardo Cruz, Rafael Alverne e Rogério Amorim. Aos amigos de pesquisa e de vida,

João Guilherme Paiva, Pedro Alegre e João Bastos. À Henrique Monnerat, amigo que chega

chegando e agrega beleza e ternura nos meus dias. Às companheiras do Laboratório de

Feminismos Negros com quem aprendo as re-existências cotidianas.

Minha gratidão também se dirige aos professores e professoras que colaboraram na

elaboração desta tese. Agradeço a Victor I. Stoichita que, da Suíça, generosamente, enviou

materiais para auxiliar no embasamento teórico da teoria que desenvolve e a qual sigo. Aos

professores Nilton dos Anjos e Victor Lemus pela avaliação arguta durante a qualificação. Às

professoras Ana Cristina dos Santos, Deise Quintiliano, Cinda Gonda, Vera Lins, Ceila Maria

Ferreira e Fátima Lima pelas contribuições intelectuais que me aportaram saberes necessários

para tal construção. Aos alunos do curso de extensão “Crítica Literária Feminista”, com os

quais mais aprendi do que ensinei.

Finalmente, deixo meu agradecimento à Capes cujo financiamento foi fundamental

para o desenvolvimento desta investigação.

Page 6: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

(Sérgio Vaz)

Page 7: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Rio de Janeiro

Setembro de 2017

RESUMO

POÉTICA DAS SOMBRAS:

DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA LITERATURA

Marcelle Ferreira Leal

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência

da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura

(Teoria Literária).

Considerando o protagonismo da história da luz no ocidente e nas sociedades

ocidentalizadas, objetiva-se demonstrar a relevância das sombras no âmbito da arte literária.

Com o fim de comprovar a importância estética do elemento umbroso, recorre-se inicialmente

à apresentação das sombras na literatura da maneira que analisamos a presença da silhueta no

texto literário. Posteriormente, busca-se a voz das sombras, ou seja, a sua escrita. Para tal,

promove-se um giro para o sul onde o encontro entre o eu e o outro se efetiva com a invasão

europeia nas terras americanas, priorizando o genocídio estabelecido no Brasil.

Fundamentado no fato de que a formação do país após este período é centralizada nos

interesses de uma elite político-econômica, entende-se que a composição do que se designa

cânone literário não escapa de tal dinâmica. Assim, a inscrição da história desta arte enfoca a

produção de um perfil social específico e deixa os demais à sombra. No entanto, autoras

negras brasileiras, inicialmente compreendidas como sombras, demonstram a potência

presente em suas escritas e quando se apropriam da caneta inscrevem profundidade e matizam

com tonalidade a sua presença neste campo. Consequentemente, formam um corpo literário

mais inclusivo e consciente do valor das sombras que lançam quando se inscrevem. Por isso,

empenham-se em incentivá-las a se apropriar do direito à literatura e a se apoderarem da

própria representação. Acredita-se, assim, demonstrar o valor das sombras na literatura e da

literatura e contribuir para o debate sobre a importância da silhueta na história das culturas

ocidentalizadas.

Palavras-chave: sombra – representação – escrita mulheres negras – literatura periférica

Page 8: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

Rio de Janeiro

Setembro de 2017

ABSTRACT

SHADOW’S POETICS:

FROM PROJECTIONS TO LITERATURE’S SUBJECT

Marcelle Ferreira Leal

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Pereira Lima Lins

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência

da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura

(Teoria Literária).

Considering that the history of light is the protagonist in the West and in Westernized

societies, the purpose of this work is to demonstrate the relevance of the shadows in the scope

of literary art. In order to prove the aesthetic importance of the dark element, we initially

resorted to the presentation of the shadows in the literature in the way that we analyzed the

presence of the silhouette in the literary text. Then, the search is about the voice of the

shadows, that is, its writing. For this, it’s necessary a turn to the south where the encounter

between the self and the other is effective with the European invasion of the American lands,

prioritizing the genocide established in Brazil. Based on the fact that the formation of the

country after this period is centered on the interests of a political-economic group, it is

understood that the composition of what is called literary canon does not escape such

dynamics. Thus, the inscription of the history of this art focuses on the production of a

specific social profile and leaves the others in the shade. However, Brazilian black authors,

initially understood as shadows, demonstrate the power present in their writings and when

they appropriate the pen inscribe depth and colour their presence in this field. Consequently,

they form a literary body more inclusive and aware of the value of the shadows they cast

when they subscribe. Therefore, they strive to encourage them to appropriate the right to

literature and to seize their own representation. It is believed, therefore, to demonstrate the

value of shadows in literature and of the literature and to contribute to the debate about the

importance of this figure in the history of Westernized cultures.

Keywords: shadow – representation – black women writing – marginal literature

Page 9: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

9

Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................ 10

1. CAMINHANDO PELO VALE DAS SOMBRAS ............................... 18

1.1. O destemido mal ............................................ 27

1.2. A sombra está comigo ....................................... 32

1.3. Cartografia do vale ........................................ 37

2. ALGUNS VESTÍGIOS SOBRE A NATUREZA DA SOMBRA .................... 43

3. SOMBRAS NA LITERATURA .......................................... 63

3.1. As boas-vindas das sombras: as anfitriãs da Comedia ........ 63

3.2. Um passeio com Peter Schlemihl: quanto vale a sua sombra? .. 85

3.3. Júlia e sua sombra de menino: o jogo de pique-esconde ..... 122

4. O CENÁRIO SE DESMONTA: A APARIÇÃO DOS DIRETORES DA HISTÓRIA ... 150

4.1. Sombras do passado ........................................ 151

4.2. Sombras da literatura ..................................... 169

5. AS SOMBRAS VÃO ESCREVER, E NUMA BOA! .......................... 188

5.1. Carolina Maria de Jesus, a escre(vida) das letras ......... 200

5.2. Conceição Evaristo: na vida das sombras caço as sombras da

vida ........................................................... 218

À SOMBRA DE UMA CONCLUSÃO ........................................ 249

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................... 258

Page 10: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

10

Introdução

Quero existir para além de mim mesma: com as aparições

Quero existir como o que sou: uma ideia fixa. Quero

assombrar, e não exaltar o silêncio do espaço em que se

nasce.1

(Alejandra Pizarnik)

O Texto de Sombra, de Alejandra Pizarnik, é um clamor.

Através do grito mudo das letras, exprime o anseio de resgatar

a identidade e a voz que lhe foram negadas. Constantemente

ignorada e silenciada por aquele que a projeta, através da

literatura, ela expressa o anseio de viver com os seus, ou

seja, os que sobrevivem à aniquilação da materialidade a que

outrora se associava e, a partir de então, gozam da liberdade

e do direito de expressão. Vale observar que o seu desejo não

é mais do que atuar como o que se é, apropriando-se do

discurso e rebelando-se contra a passividade a que é

destinada. Consciente de sua potência, nota-se que, quando se

apropria da caneta para escrever o texto, ela imprime a

poética da re-existência, isto é, daquela que se reergue após

às mortes sucessivas que lhe atingem. É impossível se manter

imune ao apelo de uma desconhecida que parece tão próxima. O

holofote da razão acende e estamos ali, eu e ela no espaço

literário. Seria o sonho de uma sombra capaz de compreender

aquela que a acompanha?

Ao longo de séculos, as sociedades ocidentalizadas enfocam

o seu interesse na história da luz e de seus domínios, entre

os quais, destaco: razão, eu, objetividade, bem, entre outros.

Tendo em vista tal protagonismo, questiona-se sobre o lugar

reservado ao que escapa à esfera do luzente na história

cultural destes povos, como a sombra. Devido à natureza

perturbadora que lhe é intrínseca, resgatar os contextos nos

quais sua presença é relevante torna-se imprescindível para

1 ―Quiero existir más allá de mí misma: con los aparecidos./Quiero existir

como lo que soy: una idea fija. Quiero ladrar, no ala/bar el silencio del

espacio al que se nace.‖ Tradução nossa.

Page 11: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

11

que entendamos a espécie de valoração que tributam à sua

representação. Em Caminhando pelo vale das sombrase Alguns

vestígios sobre a natureza da sombra, propõe-se traçar uma

trajetória sobre os estudos a seu respeito com o objetivo de

demonstrar a riqueza semântica que a compõe. Em cotejo com as

investigações do filósofo Roberto Casati e do historiador da

arte Victor I. Stoichita, promovemos alguns debates para

fundamentar a hipótese de que esta entidade tradicionalmente

compreendida como negativa contribui para o enriquecimento

cultural e artístico destes povos. Isto é, quando vamos ao seu

encontro, descobrimos que a sombra consiste num valoroso

instrumento de conhecimento.

Após elucidar a pertinência de considerá-la como um

elemento importante na história ocidental, encaminha-se a

discussão para a análise de obras nas quais a silhueta

consiste em um componente estrutural do texto. No entanto, o

levantamento de materiais para a produção da pesquisa suscitou

algumas questões relevantes a respeito da metodologia de

trabalho e do recorte do corpus que será estudado. Tendo em

vista a ampla quantidade de materiais disponíveis para análise

- de narrativas e poesias que versam sobre o tópico -

constata-se a impossibilidade de abarcar todas as produções

que se valem de tal imagem ao longo da história da literatura.

Isto posto, justifica-se a produção de um trabalho constelar,

em termos benjaminianos, no qual o diálogo das partes se

legitima pela importância de cada unidade para a composição do

todo e que este, por sua vez, seja pulsante de significado em

sua plenitude.

A segunda questão se refere a esta sistematização, pois é

necessário que haja congruência na formação do conjunto de

maneira que fundamente a associação entre as suas partes.

Almeja-se, portanto, buscar na progressiva independência da

relação entre a sombra e o corpo que lhe dá vida o momento em

que ela assume a escrita de si. Quando começa a dar

Page 12: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

12

profundidade e complexidade àquilo que só se apresentava como

uma bidimensionalidade tonalizada pela escuridão. Nota-se, a

partir do discutido, que o desprendimento entre o homem e a

sua projeção é o início do processo no qual o duplo entende-se

enquanto sujeito. Além disso, a rebelião de formas que não se

reconhecem em sua fonte demonstra a possibilidade de dissenso

entre as partes. Assim, seleciona-se a Comedia, de Dante

Alighieri, A história maravilhosa de Peter Schlemihl, de

Adelbert von Chamisso e A história de Júlia e sua sombra de

menino, de Christian Bruel e Anne Galland a fim de verificar

como a sua aparição contribui com a constituição estética de

cada uma das criações artísticas em destaque.

O recorte se justifica pelas estratégias diferentes que

cada autor utiliza para inseri-la em suas composições e pela

necessidade de mostrar a relevância do objeto em questão para

formas narrativas e temporalidades diversas. Afinal, enquanto

Dante expressa a sua criação em forma poética na transição

entre a era medieval e renascentista, Adelbert von Chamisso a

faz através da novela no Romantismo Alemão e ChritianBruel e

Anne Galland, por sua vez, elegem o conto na Modernidade para

exteriorizá-la. Mais uma vez, é importante assinalar que, ao

longo da pesquisa, analisamos outros materiais, como a

parábola Sombra, de Edgard Allan Poe, e o conto A sombra, de

Hans Christian Andersen. Porém, selecionamos apenas os três

textos mencionados para compor a tese visando ao cumprimento

dos prazos estabelecidos e à manutenção da fluidez do objetivo

proposto.

A última frase se justifica na medida em que ansiamos em

não nos restringir à elaboração de um compêndio da aparição

literária da sombra. Este estágio é fundamental para responder

à pergunta em relação a sua contribuição para esta arte e para

entender que não há somente uma, mas várias possibilidades de

sombra, embora assinalemos apenas três. Porém, a epígrafe de

Alejandra Pizarnik não permite que nos limitemos aos escritos

Page 13: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

13

nos quais ela se apresenta como um recurso poético-narrativo.

Nota-se a urgência de buscar a voz da sombra, ou seja, o grito

daquela que desde o nascimento é instruída a se silenciar e a

se manter vinculada apenas ao corpo que lhe dá ou deu vida,

mas que se liberta para se apoderar da própria representação.

Em busca das poéticas das sombras, propomos um giro do

norte para o sul, uma vez que a invasão dos povos europeus nos

países austrais culmina em um processo de colonização que se

empenha em esvaziar e aniquilar as culturas originárias e

vinculá-las a um processo de dependência no qual se incutem os

complexos de superioridade e de inferioridade. Desta forma,

criam-se estratégias para manter a crença de que a solidez é

exclusivamente setentrional e, por isso, o sul deve se

contentar com a reprodução de suas epistemologias, artes e

valores para lograr alguma legitimidade em suas produções.

Considerando a pista da poeta argentina, sugerimos a

mudança de orientação do debate e concentramos a busca no

Brasil, país cuja história é tatuada por um genocídio amplo e

uma exploração intensiva de recursos e pessoas, mas que

insiste em ignorar as suas sombras. O encontro entre o eu e o

outro gera não só idealizações, mas também subjugamento e

aniquilação. É um Estado que reescreve a sua biografia sob o

signo de uma coexistência pacífica de povos diversos, mas que

efetivamente se reconstitui a partir de esferas de

desigualdades sociais, econômicas, raciais, entre outras. Por

isso, acredita-se que, somente a partir de um processo de

reconhecimento das sombras do passado que interferem

constantemente no presente, é possível encontrar a nossa

originalidade e descobrir a potência existente na pluralidade

de narrativas que nos compõem. Em vista disso, resgatam-se as

Sombras do passado para enfrentar alguma das faces sombrias

brasileiras com as quais evitamos contato.

Por sua vez, em Sombras da literatura, há um empenho em

compreender como se formam as sombras da nossa área de

Page 14: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

14

interesse. Constantemente uniformizados pelo olhar do cânone,

os escritores pertencentes às suas margens constituem – quando

projetados por este corpo – uma silhueta desprovida de

profundidade cuja presença serve para afirmá-lo em sua

existência e importância. Se dispostos em conjunto, formam uma

região enegrecida da qual poucos críticos se aproximam.

Contudo, no momento em que as sombras se apropriam das

palavras e representações para imprimir forma e conteúdo em si

e cantam os louvores e dores de uma existência constantemente

idealizada ou ignorada, apresentam outra face da história e

permitem uma abordagem mais inclusiva dos tipos sociais, o que

resulta num domínio mais amplo de representatividade. Este

empoderamento se exprime no capítulo breve nomeado, sob

inspiração da frase de Lélia González, As sombrasvão falar, e

numa boa!

Finalmente, o encontro com as sombras das letras favorece

o reconhecimento das vozes que a crítica literária tradicional

enfraquece e silencia diante de uma suposta supremacia do

padrão por ela construído. Entre estas, destacam-se as

escritas de mulheres negras oriundas de espaços periféricos

que socialmente estão na base da estrutura social do país. Por

isso, sugere-se como primeiro corpus de investigação Quarto de

despejo de Carolina Maria de Jesus. Através da escrita

autobiográfica, ela apresenta não só a condição da mulher

negra e pobre no Brasil, mas também a sua perspectiva sobre a

realidade em que se insere. Entre análises existenciais,

políticas e econômicas, surge uma poética peculiar, nascida

nas entranhas daquela que encontra cores nas situações mais

adversas. Esta obra representa o grupo de narrativas em que,

através da escrita de si, a autora apresenta um ponto de vista

sobre a existência a partir da situação daqueles que ocupam o

espaço periférico. A partir da metáfora sugerida pela tese, é

quando a sombra desvela o mundo perpassando a própria

Page 15: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

15

experiência. Nesta dinâmica, surge o objeto literário a que

ela dá vida.

Posteriormente, voltamos o olhar para o conto A gente

combinamos de não morrer, de Conceição Evaristo. A autora

negra brasileira apresenta no livro de contos Olhos d‟água

narrativas cujos personagens costuram a existência com ―fios

de ferro‖. O bandido que chora como criança após o gozo com a

mulher amada, a empregada doméstica curiosa para saber se os

filhos gostariam do melão que restara da festa dada pelos

patrões e posteriormente é linchada quando veem que foi a

única preservada no ônibus assaltado pelo pai dos seus filhos,

as dores de uma mulher que doa todos aqueles gerados no seu

ventre, mas preserva o fruto de um estupro. Pretende-se

dialogar, a partir do conto selecionado, com a criação

ficcional de uma escritora oriunda das margens. Isto é,

seguindo a nossa investigação, perseguimos na narrativa

evaristeana a sombra que se apropria da escrita para criar

outro universo, ou seja, ela atravessa a si para construir

outras formas no mundo ficcional.

Logo, os últimos capítulos - Carolina Maria de Jesus, a

escre(vida) das letras e Conceição Evaristo: na vida das

sombras caço as sombras da vida – empenham-se em dialogar com

a escrita autobiográfica da autora de Quarto de despejo e com

a construção ficcional de Olhos d‟água, daquela que nos

apresenta o conceito de escrevivência. A escolha se justifica

porque ambas se apropriam do direito à literatura e se afirmam

como escritoras ainda que, inicialmente, não desfrutem de uma

legitimação da estrutura hegemônica que se vê como única

detentora do poder de validar a literariedade de um texto.

Enquanto a primeira se expressa através da escrita de si, a

última recorre ao mundo ficcional para dar voz a personagens

pertencentes a tipos sociais marginalizados e inseridos em

espaços periféricos, ou seja, à sombra do que se entende como

centro da sociedade.

Page 16: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

16

Assim como Angela Davis afirma em palestra ministrada na

Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 25 de julho de 2017,

―Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da

sociedade se movimenta com ela‖2. Esta afirmação corrobora a

importância de reconhecer o apoderamento da literatura,

principalmente da escrita, pelas mulheres negras brasileiras.

Acredita-se que, quando elas se apropriam da caneta e começam

a imprimir nuances, profundidades e especificidades de si e de

suas representações, promovem uma mudança na dinâmica do que

se compreende como o repertório e a história literária

brasileira. Ademais, rompem com a estereotipia e demonstram

que em seus textos as mulheres não aparecem como palavras que

representam corpos, mas são os corpos que apresentam palavras,

pensamentos e subjetividade.

Através do diálogo proposto, pretendemos fundamentar a

tese de que a estética da sombra é relevante para a literatura

e o é não apenas no seu interior, mas também no entorno do

espaço que a constitui. Seguimos as possibilidades metafóricas

da figura em questão para colocar em xeque a noção de

literariedade, tão cara aos estudos da Teoria Literária. Desta

forma, objetiva-se avolumar um corpo crítico mais inclusivo

cujas análises também se debrucem sobre obras de autores, e

principalmente autoras, originários das sombras da literatura.

Afinal, na medida em que nos apropriamos desta arte, criamos

textos que também valorizam outras perspectivas da existência.

Se ao longo de anos, fomos silenciadas e desencorajadas de

pegar na caneta para inscrever a nossa visão do mundo, hoje,

felizmente, começamos, mesmo que vagarosamente, a ocupar os

espaços que nos pertencem por direito.

2A conferência intitulada ―Atravessando o tempo e construindo o futuro da

luta contra o racismo‖ é transcrita por Naruna Costa a partir da tradução

da professora Raquel de Souza. O texto está disponível no blog da editora

Boitempo:https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/28/angela-davis-construindo-

o-futuro-da-luta-contra-o-racismo/ Último acesso em 04 de agosto de 2017.

Page 17: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

17

Assim, assumimos a nossa representação e multiplicamos as

possibilidades de imaginários de forma que promovemos um

diálogo entre a prática literária e as lutas que assumimos

diariamente por conta da pele que nos acompanha em qualquer

lugar onde estamos, da classe social a que pertencemos, ou

ambos, e de todas as experiências que nos atravessam enquanto

sujeitos imersos num país estruturalmente racista, classista,

sexista, homofóbico, transfóbico. Ao fim da introdução,

escrevo em primeira pessoa, porque é necessário dizer que esta

tese também consiste em uma tentativa de construção crítica da

sombra. Fui encorajada por outras companheiras a não exaltar o

silêncio do lugar onde se nasce e decidi encarar o desafio de

tornar pública a minha voz. Através deste movimento, almejo

dar forma a um corpo e quem sabe incentivar outras a

empunharem a caneta e, assim, existirem para além de si.

Page 18: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

18

1. Caminhando pelo vale das sombras

Ainda que eu ande pelo vale da

sombra da morte,

não temerei mal algum,

porque tu estás comigo.

(Salmos, 23-5)

Os versos da bíblia judaico-cristã introduzem os capítulos

nos quais caminhamos em meio às sombras. Tendo em vista que

este livro sagrado é uma presença constante e obscura na

cultura dos povos que seguem tal tradição, seleciona-se o

trecho da epígrafe para conduzir o diálogo proposto. No

entanto, é fundamental assinalar que não há interesse em

seguir qualquer caráter transcendental que o componha. Ao

contrário, não há restrição aos domínios da morte nem temor no

trato com as silhuetas, tampouco acredita-se no aspecto divino

contido no pronome pessoal ―tu‖. O trajeto em questão almeja

perscrutar as esferas nas quais o diálogo com as sombras é

profícuo. Portanto, há entusiasmo ao encontrá-las posto que

aprendemos mais sobre as possibilidades de sua realização e,

assim, enriquecemos o nosso conhecimento. Vale reiterar que o

percurso não é solitário, pois acredita-se no caráter

colaborativo na busca do saber. Logo, a companhia do outro é

fundamental para que se atravesse, de mãos dadas, esta trilha.

Afinal, meus primeiros passos contam com as pegadas daqueles

que outrora se lançaram a esta aventura e os que por ela ainda

se enredam ao debate.

O estudo sobre esta composição demanda um resgate de

contextos nos quais sua presença é relevante para que

entendamos a espécie de valoração que tributam a sua

representação. Com este fim, rastreiam-se alguns estudos já

realizados sobre o tema visando ao reconhecimento das trilhas

exploradas até então. Todavia, há uma consciência sobre a

impossibilidade de abarcar a totalidade, porque, conforme

aprendido com Jorge Luis Borges, estamos em meio a uma

Page 19: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

19

Biblioteca de Babel. É imprescindível destacar do mesmo modo a

dificuldade de coletar dados que escapem dos espaços

tradicionais da construção do saber, não só pela dificuldade

para acessá-los, mas também porque se inscrevem sob o signo da

oralidade. Por isso, as tentativas de recuperação do

significado da sombra para alguns povos indígenas, por

exemplo, foram frustradas. Não desistimos de investigar as

narrativas que se desviam do discurso hegemônico, mas

entendemos que esta tarefa demanda uma estrutura que não

dispomos para a composição desta tese. Portanto, perseguimos a

sombra pelos meios que estão disponíveis.

Ao longo do caminho, alguns pesquisadores se aproximam e

entrelaçam as suas mãos às nossas para facilitar a jornada. Em

A descoberta da sombra, por exemplo, Roberto Casati se debruça

sobre o tema visando à demonstração de como esta entidade é

fundamental no avanço do conhecimento humano. O filósofo

italiano coteja com diferentes áreas e apresenta um amplo

panorama que estimula o interesse por essa estranha tão

próxima. Autor de artigos diversos sobre a figura umbrosa,

Casati se apresenta como um teórico exímio das sombras. A

partir do levantamento de fontes etnográficas em sua

investigação, demonstra que os povos orientais e ocidentais se

apropriam do perfil de maneira distinta. Enquanto os primeiros

lhe atribuem poderes de origens variadas e a consideram parte

de si e do ambiente, atribuindo-lhe vida, os últimos lhe

conferem uma importância secundária em relação à luz e buscam

racionalizá-la. Esta sistematização traça a primeira

bifurcação no nosso mapa, uma vez que oriente e ocidente, à

princípio, cultivam valores diferentes sobre a figura em

análise.

Com o fim de ilustrar a abordagem oriental, seguimos a

trilha indicada por Casati e chegamos às narrativas de James

Frazer sobre a relação de alguns povos que abraçam a sombra

como parte da própria cultura. Na ilha de Wetar, na Indonésia,

Page 20: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

20

diz-se que magos podem golpear a sombra de um homem visando a

que este fique doente. Os funerais da China são outro exemplo,

onde os presentes se afastam do caixão na hora de fechá-lo e

enterrá-lo para evitar o deslizamento da sombra para o buraco

cavado. Além disso, os coveiros e carregadores de caixão

utilizam um pano amarrado ao tronco para atá-las ao corpo no

momento do sepultamento.

As estórias mencionadas compõem o estudo antropológico de

Frazer intitulado O ramo de ouro cuja data de publicação é de

1890. Não possuímos fontes para assegurar a continuidade das

crenças narradas, pois Junichiro Tanikazi aponta em seu livro

Em louvor da sombra a perda do protagonismo desta figura na

cultura oriental. O romancista japonês a descreve como um

componente imprescindível na formação cultural nipônica. Desde

a arquitetura até a composição de laca da porcelana valorizam

a estética presente no claro-escuro. Afinal a dinâmica

proporcionada pela interação com o elemento umbroso era

fundamental para a representação e concepção do belo no

oriente:

Mas como a beleza sempre se desenvolve em meio à

realidade do nosso cotidiano, nossos antepassados,

obrigados a habitar aposentos escuros, descobriram a

beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam a usar as

sombras para favorecer o belo. (TANIKAZI, 2007, p.31)

Todavia, a invasão da fluorescência e a ocupação

ocidentalizada dos espaços mudou o vínculo existente até

então. O efeito da penumbra, outrora apreciado como provocador

de estímulos sensoriais, é abandonado pelo brilho, seja das

lâmpadas, da proeminência da cor branca ou do cristal. O

escritor empreende uma crítica profunda ao abandono de

tradições milenares por uma adoção utilitária das tecnologias

ocidentais. Ele assinala que não se opõe à adoção de

comodidades proporcionadas por outro modelo de civilização,

mas acredita na necessidade de uma adaptação, e não extinção,

Page 21: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

21

dos costumes herdados que são constituintes de uma estética

própria.

Ao tratar do oriente, Junichiro Tanikazi não só apresenta

as peculiaridades originais de sua cultura, mas também expõe

costumes ocidentais que se tornam mais evidentes através do

olhar do outro. Ele destaca a importância dedicada àquilo que

reluz e enumera alguns exemplos que são caros a estes povos

como: o predomínio da cor branca na composição de ambientes e

em trajes de alguns profissionais para ressaltar a limpeza, a

escolha de metais que cintilam após o ato de lustrar, a

iluminação crua sob a qual se detecta qualquer imperfeição. O

breve levantamento de casos assinala a exaltação do luzente no

ocidente de forma que o visível, o aparente, o conhecido, o

racional, ditam o meio pelo qual se explora o mundo e, pelo

que vimos, a luz que emanam começa a ofuscar tudo o que,

segundo os seus princípios, representa o obscuro.

Quando Roberto Casati aborda a sombra neste contexto,

menciona que os povos ocidentalizados vão percebê-la sob uma

ótica científica. Isto é, a aparição da projeção umbrosa se

subordina a postulados oriundos da natureza ótica que

justificam a sua existência. Qualquer impossibilidade de

explicá-la logicamente, confere um caráter fantástico à

situação. Logo, diante da insuficiência de dados para uma

comprovação através da ciência, há uma tendência a associá-la

às figuras fantasmagóricas ou diabólicas e, consecutivamente,

sua presença imprime uma atmosfera fúnebre, imprevisível,

inconsciente e oculta à situação. Edgard Allan Poe é um autor

que utiliza esta estratégia para conferir um ambiente de

suspense em suas narrativas, tal como se observa em sua

parábola A sombra, onde as personagens são tomadas pelo temor

diante de uma silhueta movente autônoma.

Sabe-se que o Ocidente funda suas bases sob a égide do

esclarecimento. Platão reivindica na República a iluminação

solar para o mundo das ideias, onde se alcançam os aspectos

Page 22: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

22

invariantes da realidade. Por sua vez, a crença judaico-cristã

indica que o criador do mundo depois de verbalizar a

existência da luz, a qualifica como boa e a separa das trevas.

No âmbito da história, quando o homem assume as rédeas da

própria existência e rompe com a influência do divino,

presente na era medieval, designa o novo período como

Iluminismo ou Idade das Luzes em contraposição ao que ao longo

de anos se conheceu como Idade das Trevas. Somos herdeiros de

uma história do conhecimento que elucida, evidencia, aclara,

tudo aquilo que não está à luz da razão.

O homem ocidental se entretém com o jogo de desvelamentos.

Explora a vida até alcançar o nu, mas esquece que a

intensidade da luz lançada aos corpos de seu interesse é

proporcional à nitidez da sombra que os compõe. Não importa o

quanto se sabe sobre as coisas, sempre haverá um lado obscuro,

uma face à espera de uma nova contemplação. Nesta dinâmica,

luz e sombra são as únicas partes sem projeção, pois sua

natureza escapa ao toque. Resta, àqueles que insistem no seu

despir, a efemeridade da sedução. Portanto, consciente dos

desvios presentes ao longo do caminho, instigo a um primeiro

contato com a sombra no qual escuto vozes de antigos

pretendentes que se aventuram a conhecê-la de forma mais

essencial e buscam as suas máscaras. Com este fim, sigo

alguns rastros das pegadas que ela deixou em suas passagens na

cultura do ocidente.

Tendo em vista a sede de sistematização objetiva destes

povos, verifica-se, antes de qualquer coisa, a necessidade de

explorar o conceito científico que lhe atribuem. Assim, a

sombra consiste numa região umbrosa formada pela interposição

de um objeto opaco entre uma fonte de luz e um anteparo. O

obstáculo obstrui o caminho de alguns raios, enquanto os

Page 23: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

23

demais seguem seu percurso em linha reta3, formando a região

iluminada ao redor do perfil. Esta dinâmica evidencia uma

consequência do princípio de propagação retilínea da luz.

Nota-se, desde então, certa subalternidade da sombra em

relação à luz nos postulados da ciência natural, uma vez que a

sua aparição se condiciona à existência de uma fonte luzente o

que leva aos físicos a considerarem apenas como um objeto

derivado dos postulados da luz.

À primeira vista, o caráter negativo atribuído a sua

manifestação sugere uma insignificância nos domínios da

ciência, mas breves saltos pela história desmentem esta tese.

O eclipse, por exemplo, demonstra como a observação a olho nu

do jogo de sombras no céu da Antiguidade grega permite as

primeiras descobertas astronômicas, antes mesmo da invenção

dos instrumentos óticos que lhes trazem precisão. Ainda nos

domínios gregos, Plutarco relata a descoberta do tamanho das

pirâmides gregas por Tales de Mileto através da sombra que

projetavam. Já no século XIX, o físico alemão Wilhelm Conrad

Roentgen detecta, em 1895, o raio-x e, em seus testes, gera

uma radiografia da estrutura óssea da mão de sua esposa. A

partir das sombras formadas, o invento apresenta a

possibilidade de visualizar a parte interna do corpo humano e

contribui para a composição primordial da imagiologia médica.

Considerando algumas das propriedades supracitadas,

observa-se que a sombra consiste num duplo do objeto que a

origina e a sua proporção é suscetível à manipulação de acordo

com as condições em que é gerada. Por isso, além de contribuir

para as descobertas das ciências naturais, a riqueza simbólica

que encarna em seus domínios propicia uma sorte de valores

alegóricos associados à complexidade do homem em sua

individualidade e coletividade. Ilustra-se a afirmação a

partir dos estudos de Carl Gustav Jung cuja teoria atribui ao

3 Considerando meios homogêneos e transparentes, pois sabemos que em meios

heterogêneos, como na atmosfera terrestre onde a densidade aumenta com a

altitude, os raios não se propagam em linha reta.

Page 24: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

24

arquétipo da sombra a concentração do lado escuro da natureza

humana e demonstra que a versão soturna que nos acompanha

também se estende para o âmbito coletivo. Na filosofia, após

Platão relegá-la a um plano inferior, Nietzsche a resgata para

mostrar a necessidade de explorar o mundo das coisas próximas

às quais não lançamos muita atenção. Já Hannah Arendt

demonstra que a sombra pode pairar sobre a história e revela

um tempo em que a vultuosidade do totalitarismo assola o

mundo. Inspirador do termo, Brecht em Aos que vierem depois de

nós já dizia: Realmente, vivemos em tempos sombrios.

Conforme se observa, seja no campo físico ou nas

humanidades, a sombra é um meio de conhecimento. Muitas vezes,

ofuscada pelo fascínio exuberante e imediato provocado pela

luz, utiliza unicamente a existência como forma de insinuação

das vicissitudes que vão além das aparências, os detalhes

imperceptíveis diante da euforia do primeiro encontro. Por

isso, as trilhas nos levam aos domínios da representação

artística onde a estética possibilita a superação do caráter

ordinário das coisas e estimula o pensamento a se tornar

estranho a si. Os diálogos entre a sombra e a arte permitem o

encontro de indícios sobre as máscaras das quais ela se serve

ao longo da história. Insatisfeita com os desejos racionais

ávidos por sua completa nudez, ela recorre à fantasia para

criar outros imaginários.

Victor I. Stoichita está entre os admiradores e

perseguidores da estranha figura no âmbito artístico. Desde a

origem da pintura até a modernidade do cinema, o universo

pictórico é argutamente analisado pelo pesquisador que, a

partir de cada exemplo, desvela os disfarces que a sombra

utiliza para flertar com as peculiaridades das obras da sua

época e com as técnicas artísticas que lhe dão visibilidade.

Entre os papeis que esta encarna, destacam-se : a imagem

especular do sujeito, tal como se expressa no mito de Plínio

sobre a origem da pintura, no qual se narra o ato de

Page 25: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

25

circunscrição realizado do perfil umbroso de um homem, pelas

mãos de uma mulher, para que ela guardasse seu traço como

recordação, já que este partiria da cidade; a prova da

―materialidade da carne‖, como dita o ensinamento de

CenninnoCennini sobre a corporificação dos objetos através do

sombreado ; a presença indireta do pintor ou do exterior na

obra conforme se nota em Le PontdesArts, de Renoir; um aspecto

de demonização por meio da distorção das imagens traçadas

presentes em La danza de la sombra, de Samuel van Hoogstraten;

a exteriorização da alma humana e uma projeção psíquica da sua

realidade, como os estudos de fisiognomia do suíço Johann

Caspar de Lavater.

É notório que, enquanto unidade ótica, o uso pictórico da

sombra é mais evidente. No entanto, as outras artes também

utilizam este meio, ou sua ausência, como forma de

representação. O libreto de ópera A mulher sem sombra (Die

FrauohneSchatten), de Hugo Von Hofmannsthal, que foi

apresentada com música de Richard Strauss em 1919, ilustra

este aspecto. O enredo narra a história de uma imperatriz que,

por ser uma gazela que assumiu forma humana, não possui

sombra. No entanto, a visita de um mensageiro lhe informa que

é necessário que esta condição mude em três dias para que o

imperador não se transforme em pedra. Temendo a maldição, a

mulher e sua ama vão para uma cidade populosa e encontram a

esposa de um tintureiro que aceita ceder a própria sombra

mesmo sabendo que a ação implicaria em sua esterilidade. A

impossibilidade de projetar a própria silhueta dialoga com a

natureza da imperatriz, não-humana, e com a infertilidade,

pois a mulher do tintureiro é alertada para a impossibilidade

de gerar vida após ceder o seu duplo. Assim, teatro,

literatura e música se entrelaçam ao redor desta figura

emblemática para demonstrar a riqueza metafórica que engloba

os seus domínios.

Page 26: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

26

Finalmente, chegamos à expressão artística de interesse

para a presente pesquisa: a literatura. Roberto Casati afirma

que é neste âmbito que a cultura ocidental, sempre voraz pela

racionalização, mantém as nuances animísticas e mágicas da

sombra. Esta é pista que percorreremos em busca do valor

estético do nosso objeto de estudo nas produções de Dante,

Adelbert von Chamisso e Christian Bruel e Anne Galland.

Através da Comedia, d‘ A maravilhosa história de Peter

Schlemihl e d‘ A história de Julia e sua sombra de menino

vamos em busca das sombras na literatura. Contudo, é

fundamental destacar, na área dos estudos literários, o ensaio

da pesquisadora SabineHaupt nomeado La sombra enla literatura

moderna. Um pequeño panorama. Consoante ao expresso no título,

ela apresenta uma visão geral de obras da modernidade nas

quais se aplica o tema da sombra em diversos contextos e nos

oferece trilhas possíveis para ir ao encontro no âmbito do

literário.

Através do trabalho de Haupt, entende-se que a literatura

comporta a pluralidade semântica do tema. Percorrendo tanto a

prosa quanto a poesia, a crítica debate a polivalência do uso

da sombra para a composição poética e o encontro com as suas

análises propicia o reconhecimento de que autores, em

distintas épocas, valem-se desta imagem para enriquecer

esteticamente as suas obras. Consoante ao expresso no título,

a pesquisadora apresenta uma visão geral de obras da

modernidade e consegue agrupá-las em duas categorias básicas

de ação: a sombra como fantasma (uma alma incorpórea e

espectral) e a sombra como objeto (perdido ou vendido). A

proposta de panorama é respeitada, por isso a autora não

realiza uma análise profunda dos textos mencionados, à exceção

de A maravilhosa história de Peter Schlemihl, ao qual a

professora da Universidade de Friburgo dedica mais páginas.

Embora o ensaio contribua para o enriquecimento do nosso

trabalho, há uma diferença na medida em que ampliamos o debate

Page 27: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

27

para a sombra desajustada do corpo, presente em L‟histoire de

Julie quiavait um ombre de garçon (A história de Julia e sua

sombra de menino), e para as sombras da literatura.

Caminhando pelo vale das sombras descobre-se o quanto este

duplo umbroso tem a nos ensinar. Desde as sutilezas do ocultar

e do refletir que enriquece os domínios da ciência até a

escrita daqueles que, à princípio, são meramente projeções

imperfeitas do Homem hegemônico, sua presença revela

vicissitudes que só se tornam evidentes no jogo claro-escuro.

A escuridão plena e a iluminação total cegam. É necessário

estar atento à dinâmica luz-sombra para compreender a estética

que nutre cada uma destas partes. A cada sombra desvelada, uma

nova já se insinua e, como na Biblioteca de Babel de Jorge

Luis Borges, somos lançados num mundo de infinitas

possibilidades ou de infinitas sombras.

1.1. O destemido mal

Pensar na composição da sombra em sua forma mais simples

remete a uma silhueta bidimensional preenchida por uma

coloração enegrecida cujos contornos desenham o perfil do

objeto que a projeta. Sob movimento, acompanha o dono

acoplando-o através da parte mais inferior da sua estrutura e

a nitidez do seu perfil se intensifica de acordo com a

proximidade entre os dois componentes. É um duplo silencioso e

escuro, visível diante de uma fonte de luz e oculto sob a sua

ausência. Não se sabe sobre a fidelidade do reflexo umbroso ao

companheiro diante da plena escuridão, uma vez que já não é

possível distinguir a parte do todo. Por isso, entende-se a

projeção como uma unidade oriunda do domínio das trevas que,

vez ou outra, também são designadas como sombra.

Em seu flerte com o escuro e com o outro, a presença

ausente gera um terreno fértil para a criação de imaginários.

Page 28: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

28

Vale lembrar que, sob uma perspectiva dialética, há uma

associação entre ―luz – sombra‖ e ―eu – outro‖, de forma que

os dois primeiros polos compreendem características positivas,

ao passo que os últimos se tensionam a estas por um viés

negativo e não neutro. Enquanto a luz remete à vida, à razão

e ao bem, a sombra é relacionada à morte, ao oculto e ao mal.

De igual maneira, o eu constitui a essência, a verdade, o

universal, o bom em oposição ao outro que representa a

aparência, o falso, o particular, o mau. Os reversos em

questão apontam que o campo sobre o qual nos debruçamos

corresponde aos aspectos dos quais a sociedade mais se afasta,

por causa do medo que provocam ou, simplesmente, por desprezo,

na medida em que os consideram de pouca relevância.

Contudo, é fundamental assinalar que a concepção da sombra

como entidade negativa no mundo ocidental não é gratuita. Os

pilares epistemológicos e culturais que erguem a base da nossa

sociedade sustentam, ao longo de séculos, um sistema de

crenças que semeia e promove tal valoração. Na alegoria de

Platão, Sócrates solicita que Glauco imagine uma caverna

subterrânea na qual homens, que vivem ali desde meninos, estão

atados pela perna e pelo pescoço de forma que ficam imóveis e

olhando para a frente. Atrás deles, há uma luz gerada pelo

fogo e entre os homens e a fonte flamejante um muro é erguido

para ocultar as pessoas que, em silêncio ou em diálogo,

carregam objetos por cima de suas cabeças fazendo com que a

projeção de tais figuras apareça para os prisioneiros.

Assemelhando os encarcerados aos seres humanos comuns, o

filósofo questiona ao interlocutor se a percepção visual e

auditiva destes não seria atribuída às exibições. Após a

confirmação, ele afirma que a realidade consiste em nada mais

que sombras para os detentos.

Segundo Sócrates, o cenário apresentado revela um

contraponto quando um dos homens é desamarrado e obrigado a se

dirigir em direção à luz. Os momentos iniciais serão

Page 29: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

29

desagradáveis, devido a dor que sentirá nos olhos e a cegueira

que o tomará quando chegar ao encontro do Sol, mas

progressivamente distinguirá os elementos que o cercam e

concluirá que a grande estrela rege o mundo inteligível. Se o

ex-prisioneiro retornar ao mundo visível, sentirá uma breve

cegueira – agora gerada pela escuridão – e emitirá novas

opiniões a respeito das imagens as quais estava exposto desde

a infância. O filósofo demonstra, com base na alegoria, que o

mundo no interior da caverna é permeado de ilusões e o

verdadeiro conhecimento não habita o espaço de aparências

cambiantes. Na qualidade de emblema do sensível, a sombra

adquire o valor simbólico de aparência. A natureza insinuante

que a constitui não remete a coisa mesma, mas às

possibilidades de interpretação que nos oferece. Logo, como

parte dos textos que embasam a teoria do conhecimento da

filosofia ocidental, a alegoria da caverna relega uma

importância secundária à figura em análise e a emprega como

símbolo daquilo para o qual o entendimento não merece

dispensar atenção.

Entre os teóricos da sombra levantados pela presente

pesquisa, há um consenso sobre a importância da abordagem da

filosofia platônica sobre o tema. O destaque que lhe é

conferido ao longo do diálogo assinala que a representação

presente na obra é alvo de debate entre os críticos que se

dedicam a examinar as vicissitudes da silhueta. Nota-se que,

diante da crítica, a sombra se torna um importante instrumento

de conhecimento, embora o pensador indique que ela não é digna

do olhar daquele que busca o entendimento. Portanto, o

percurso pelos escritos do sétimo livro da República demarca

uma das trilhas que justificam a necessidade de explorar as

propriedades da sombra por uma outra perspectiva.

No entanto, um âmbito pouco mencionado quando se trata do

assunto, mas formador de uma sorte de valores que mantemos no

ocidente é a visão de mundo propagada pela crença judaico-

Page 30: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

30

cristã. Seguindo a ordem sugerida pelo texto bíblico, o céu e

a terra foram as primeiras criações de seu Deus. Até então, o

espaço originário era sem forma e a escuridão é a única

substância que o preenchia. Posteriormente, o criador

verbaliza a terceira aparição através da frase: Haja luz!

Observa-se que os demais elementos constituintes do universo

advém das ordens verbais de um único Ser. No entanto, nos

versos da cosmogonia cristã não há qualquer menção à criação

da sombra, simplesmente indica-se a existência de trevas sobre

a face do abismo. Assim, conclui-se, que tanto o escuro pleno

quanto o vazio são autônomos em relação ao divino.

Além disso, é fundamental assinalar o caráter valorativo e

segregador expresso nos versos seguintes: ―E viu Deus que a

luz era boa / e fez separação entre a luz e as trevas‖. É

importante considerar o estabelecimento de uma organização

dicotômica no texto judaico-cristão entre luz e trevas em que

a primeira constitui o lado positivo da polaridade: ―a luz era

boa‖. Adiante, a separação se repete quando, no quarto dia,

Deus ordena o surgimento de dois grandes luzeiros com o fim de

―fazerem a separação entre a luz e as trevas‖, um maior e

outro menor para governarem, respectivamente, o dia e a noite.

Uma análise mais minuciosa revela que, ao longo da narrativa

cristã sobre a origem do mundo, há uma marcação da passagem

dos dias pela manhã e tarde, ou seja, períodos em que estamos

sob os domínios da luz: ―houve tarde e manhã, o primeiro dia‖,

―houve tarde e manhã, o segundo dia‖, e assim, sucessivamente

até o sexto dia, quando conclui seu empreendimento. A noite só

aparece como abrigo da escuridão nos trechos em que os

elementos luminosos ganham vida.

Nota-se, a partir do exposto, que tanto a tradição

judaico-cristã quanto a filosófica, pilares da formação do

homem ocidental, desagregam luz e sombra. Enquanto elemento

divino e representante do Bem, a primeira encerra a

neutralidade característica do modelo a ser alcançado. Por sua

Page 31: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

31

vez, enquanto polo oposto, o sombrio não apenas constitui os

domínios do infernal, mas também remete ao mundo efêmero

marcado por aparências, sintetizando em si o negativo. Tendo

em vista a esfera diabólica que acolhe os perfis umbrosos, a

sociedade ocidental progressivamente a abandonou sob a

justificativa de que toda a sedução oriunda das sombras

aniquila aquele que se deixa enganar. Assim, os estudos sobre

as entidades compreendidas como negativas ficam à margem das

investigações sobre a luz, compondo-se das arestas que sobram

destas análises.

No entanto, como indica Flusser em sua História do Diabo,

quando deixamos de olhar para o Divino em busca da superação

do tempo para alcançar o puro Ser, delegamos a manutenção da

temporalidade ao homem. Toda ação se situará dentro do mundo

fenomenal e almejará mantê-lo, evitando que seja dissolvido e

salvo. É dever do diabo conservar o mundo no tempo, por isso

mantém sua influência sobre o homem de forma muito mais

próxima do que o próprio Divino. (FLUSSER, 2008). Isto é,

somente quando nos dispomos a conhecer o diabólico mais de

perto, podemos entender os mecanismos através dos quais ele

preserva o mundo nesta temporalidade. Da mesma forma, apenas

quando nos debruçamos sobre a estrutura da sombra e seus

mecanismos, alcançamos um diálogo despido de conceitos

prévios. Quando ajustamos a luz da razão nos domínios escuros

da sensibilidade, conhecemos melhor – e sem temor - a sombra

que se projeta diante de nós.

No rastro da projeção umbrosa que nos acompanha, verifica-

se que ela não é mais que o outro do eu, digo: o derivado

daquele que o projeta. E, assim, o debate se conduz para a

questão do ―outro‖, na medida em que pensar sobre a sombra é

abrir o diálogo com o duplo escuro daquele que o projeta e

que, no caso do homem, vai segui-lo a cada passo da sua

existência. Percebendo tal estrutura, Carl Gustav Jung

desenvolve uma teoria ao redor do arquétipo da sombra e, no

Page 32: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

32

âmbito da psicanálise, torna-se um de seus maiores

exploradores. O pensador suíço atribui a tal figura o lado

menos perfeito da constituição de um indivíduo e de uma

sociedade, um lado escuro da natureza humana que contém as

aparas que restam do eu pessoal e do eu coletivo. O domínio da

faceta oculta é proporcional ao contato que mantemos com o

conteúdo que a alimenta. Por isso, o autoconhecimento do

sujeito e da sociedade são fundamentais para delimitar não

apenas as suas possibilidades, mas também para revelar o

caráter mais reprimido que reservam. Somente quando se

desenvolve um relacionamento harmônico com as máscaras mais

secretas de uma individualidade ou coletividade, conseguimos

estabelecer um desenvolvimento criativo das suas potências.

Embora Jung sugira a sombra como a grande lixeira dos

sentimentos e desejos humanos, corroborando mais uma vez a

valoração negativa de tal figura, ele é o pensador que nos

entrega as chaves das portas que nos encaminham para o próximo

ponto da reflexão. Quando aponta a necessidade de conhecê-la

para que se controlem os impulsos mais destrutivos de um ser

ou de um grupo, concebe-se, mais uma vez, a importância de

desbravar os seus domínios. Da mesma maneira que Flusser, o

psicanalista defende que ignorá-la não significa aniquilar sua

presença, mas sim fortalecê-la. Em vista disso, a única

maneira de entender de forma mais próxima sobre a natureza que

a constitui é encará-la frente a frente e estabelecer um

diálogo real, e não idealizado, com suas fontes.

1.2. A sombra está comigo

Outro aspecto a ser desenvolvido em relação à estrutura

obscura da sombra, é a particularidade de que ela é o outro do

eu. Sua forma desenha o contorno do seu dono, mas o conteúdo

tingido de preto proporciona uma generalização do seu

interior. Assim, embora possuam perfis distintos, todas as

Page 33: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

33

silhuetas sombrias compartilham o mesmo preenchimento. Em

termos comparativos, são similares a própria constituição

humana, ou seja, ainda que cada ser se funde sob

particularidades, em termos físicos e psíquicos, compartilham

a mesma espécie. As individualidades respondem pela

diferenciação de cada fragmento que compõe o todo e a

designação a respeito de quem ocupa a posição de sujeito na

relação estipula-se pelo lugar daquele que se destaca a partir

dos valores construídos em tal comunidade.

Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir elabora uma pesquisa

minuciosa sobre a relação entre o Eu e o Outro. Com o fim de

entender ―o que é uma mulher?‖ela percorre diversas áreas,

como a biologia, a psicologia, a história, entre outras, e

conclui que esta identidade é fruto de uma construção

sociocultural. Desta forma, anula qualquer limitação essencial

que justifique a inferioridade da mulher em relação ao homem e

denuncia a existência de uma feminilidade a que estas estão

submetidas.

Na Introdução, especificamente, a filósofa francesa se

concentra na problemática em torno da alteridade. Enfatizando

a posição da mulher em relação ao homem numa sociedade cuja

produção de ideias e de valores é realizada e autenticada pelo

masculino, revela que esta compreende o polo negativo enquanto

o homem se apropria tanto do extremo positivo quanto do

neutro. Não há igualdade na relação entre ambos, na medida em

que um se coloca como o Absoluto e o outro é analisado numa

dinâmica relativa e inferiorizada em comparação ao primeiro.

Beauvoir também afirma que ―nenhuma coletividade se define

nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si‖4

O reconhecimento pressupõe o contato com o que este fora do

Eu, uma vez que é imprescindível o lançamento do olhar para o

exterior e o retorno a si, ou seja, o conhecer de novo. No

4 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo; tradução Sérgio Millet. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 17.

Page 34: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

34

entanto, o Outro constitui o desconhecido e as ideias que se

concebem sobre a sua natureza e atuação são mediadas pela

visão daquele que o atravessa. Essa complexidade é analisada

por outros filósofos, entre os quais, destaco Hegel que

examina a desigualdade e a interdependência entre as duas

partes na dialética do senhor e do escravo e Sartre cuja

teoria apresenta a maneira pela qual a vigilância do olhar

alheio permeia a constituição do sujeito.

É imprescindível destacar que a projeção do Eu em

contraponto aos outros é contínua. Quando Simone de Beauvoir

apresenta a situação da mulher no mundo, o faz a partir da

posição que ocupa: mulher francesa do século XX, descendente

de família burguesa, entre outras características que designam

a sua situação no mundo. A igualdade que pleiteia não

contempla a necessidade de outras companheiras que não

compartilham tal espaço social e, conforme se verifica nos

feminismos que se desenvolvem posteriormente nos Estados

Unidos e na América Latina, projeta outras sombras.

A pesquisadora OchyCuriel demonstra em seu texto

Contribuições das afrodescendentes à teoria e à pratica

feministas: desuniversalizando o sujeito mulheres a

importância da ampliação desta identidade a partir de outras

perspectivas como as elaboradas pelas afrodescendentes,

lésbicas, de-colonialistas. A autora dominicana enfoca o

enriquecimento da reflexão das mulheres negras nos debates de

gênero. De igual maneira, a norteamericana Judith Butler

empreende uma ampla pesquisa e entre os seus temas figura a

teoria de que não apenas o gênero é uma construção

sociocultural, mas o sexo também. Assim, no rastro de Beauvoir

e suas antecedentes, outras teorias dão visibilidade a

questões ainda não apreciadas.

Vale apontar que a problemática da alteridade não se

restringe ao domínio do gênero. Em Discurso sobre o

colonialismo, AiméCesaire apresenta os processos de violência

Page 35: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

35

presentes no processo de colonização, principalmente na

tentativa europeia de civilizar os países do sul a partir dos

seus valores. O escritor martinicano aponta como a empresa

colonial torna o encontro entre o ―eu‖ e o ―tu‖ desumanizador,

uma vez que embrutece o colonizador e estimula a objetificação

do colonizado, gerando uma relação de dominação e submissão

perversa cujas dinâmicas perpassam não só a história dos

países invadidos, mas também incidem em seu presente.

O Brasil é um exemplo de país marcado pelas consequências

da ação colonial. A chegada do europeu culmina no extermínio

massivo de sociedades originárias e na destruição de sua

história. Em nome da ambição e imbuídos de um complexo de

superioridade, apropriam-se da mão de obra dos indígenas e dos

negros oriundos do continente africano para saquear a terra em

que aportam. Isto é, promovem um genocídio e penetram

violentamente nossas terras, recursos e corpos. Além disso,

contribuem para a formação de um modelo de sociedade marcado

pela hierarquização piramidal no qual muitos constituem a base

e retiram poucos proventos da própria produção e uma fração

mínima ocupa o topo usufruindo da riqueza gerada pela maioria.

Enraiza-se, assim, a construção de uma pequena elite que se

apropria dos espaços econômicos, políticos, culturais e

intelectuais do país propagando a manutenção de valores

coloniais, escravocratas e patriarcais responsáveis pela

manutenção de sua ordem.

A literatura não escapa do controle do grupo privilegiado.

Visto que o acesso à educação formal é restrito a indivíduos

com maior poder aquisitivo, há um desejo latente dos letrados

do país de se assemelharem aos povos europeus, seu modelo

ideal de belas letras. No entanto, eles sabem que trazem

consigo a insígnia daquele igual à quem rejeitam, por isso

tratam de, prontamente, aniquilá-lo. Logo, a constituição do

cânone absorve estes valores e se impõe como um eu literário

capaz de definir as obras merecedoras de incorporá-lo e as

Page 36: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

36

demais que constituirão apenas a sua sombra. Esta desigualdade

também estará presente na representação, uma vez que a

constituição do espaço literário reflete a concepção de mundo

da elite que o produz. O que escapa dos seus domínios é,

constantemente, ignorado ou idealizado, uma vez que não

compreendem em qualquer benefício para os seus interesses.

Na relação desigual que se firma, a tendência é construir

uma caracterização do outro a partir dos desígnios

reconhecidos pelo sujeito que o observa e ignorar uma grande

porção das subjetividades que o alimentam. Dado isso, é

fundamental que se preserve a voz da alteridade em busca de um

conhecimento mais profundo da arte sobre a qual nos lançamos.

Não desmerecemos a produção canônica mundial nacional, porém

entendemos que é necessário escutar a multiplicidade de vozes

que estão à sombra deste corpo para enriquecer as nossas

perspectivas sobre a constituição do que compreendemos como

Literatura. Acredita-se que, apenas no movimento, asseguramos

a pluralidade de representações necessárias para garantir uma

democratização do literário.

Observa-se que a investigação em curso se desenvolve

através de um jogo de sombras presente no mundo ocidental. A

relação entre o tema e a literatura é o grande cenário que

ambienta a pesquisa. A abundância de representações do perfil

umbroso nos países do norte impulsiona as primeiras buscas. O

encontro de teorias sobre o tópico ressalta a importância de

superar as superficialidades com o fim de encontrar o que há

de mais fascinante em sua essência. Considerando o

encaminhamento, questiona-se: onde está a escrita da sombra

nos países do sul, especificamente na América Latina? Vamos

encontrá-la na criação de uma poética da sombra que ganha vida

pelas mãos de escritoras que encorajam o grito dos

silenciados, mulheres que representam na literatura a sombra

do hegemônico de um hemisfério, de uma comunidade, de um país,

de uma espécie, de um gênero. Almeja-se encontrar a unidade de

Page 37: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

37

uma poética entre a multiplicidade de projeções sombrias de um

único eu: o humano.

1.3. Cartografia do vale

Sob a luz do Sol ou do luar, das velas ou das lâmpadas

incandescentes, a sombra sempre nos acompanha. Aprendemos a

ignorá-la e evitamos qualquer diálogo com ou sobre ela. Em ―O

viajante e sua sombra‖, Nietzsche demonstra o quão

enriquecedor é tê-la como interlocutora. Jung, por sua vez,

afirma que mergulhar em suas fronteiras escuras é fundamental

para a construção do conhecimento. Píndaro revela que podemos

ser um sonho daquilo que projetamos. São muitos os caminhos

que podemos percorrer ao lado desta estranha conhecida, por

isso sugere-se, a seguir, um breve traçar das trilhas

percorridas no vale que estamos desbravando.

A bibliografia abordada permite a divisão de, pelo menos,

seis âmbitos a que os estudos sobre a sombra nos remetem:

físico, filosófico, artístico, psicológico, social e

fantástico. Quando percorremos tais leituras, é notório que

constantemente suas representações consistem em entidades

negativas e, por isso, muitas vezes são ignoradas enquanto

instrumento de conhecimento. Todos os trabalhos visam à

desconstrução desta concepção para mostrar que – diferente do

que se pensa – a sombra pode revelar mais do que ocultar.

No livro A Descoberta da Sombra, o filósofo italiano

Roberto Casati realiza uma ampla pesquisa sobre o que chama de

―grande enigma que fascina a humanidade‖. O investigador

discorre sobre a filosofia, a psicologia, as artes e a

história das ciências com o fim de demonstrar a importância

desta figura não só para as grandes descobertas, como as

astronômicas, mas também para a construção de diversas

representações oriundas da sua presença marcada pela

imaterialidade. Cito Casati:

Page 38: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

38

A sombra parece habitar um compartimento da mente que se

comunica com o departamento dos objetos – as sombras são

coisas físicas – e que, ao mesmo tempo, se abre para o

departamento da psique – as sombras são imagens da alma.

Quando refletimos sobre o estranho comportamento das

sombras, os dois departamentos põem-se a trabalhar.

Nessa duplicidade se aninha provavelmente a explicação

cognitiva da riqueza das metáforas e das histórias da

sombra. (CASATI, 2001, p.46)

Outro autor que se debruça sobre o tema é o romeno Victor

I. Stoichita. O historiador e crítico de arte se empenha em

discutir em Breve historia de la sombra o lugar que esta

imagem ocupa no discurso sobre a representação na cultura

ocidental. Embora percorra nas linhas inicias os caminhos da

filosofia e da literatura, Stoichita prioriza a discussão por

um viés pictórico. Ele desenvolve um minucioso estudo que

aborda desde a origem da pintura - através do mito de Plinio,

o Velho – até a fotografia de Alfred Stieglitz, as ilustrações

da novela A maravilhosa historia de Peter Schlemihl, e a arte

múltipla de Andy Warhol. Sobre o desafio do tema, Stoichita

diz:

Em uma perspectiva hegeliana, então, apenas o estudo da

relação entre a sombra e a luz estaria plenamente

justificado. O que traduzido em termos de representação

pictórica, significa que só uma história do claro-escuro

poderia ter êxito. Neste contexto, estudar a sombra

implica num duplo desafio, tanto em relação à

representação coletiva positiva da luz como ser

absoluto, quanto em termos da dialética do claro-escuro.

Entretanto, a história da sombra não é a história do

nada, mas, ao contrário, é a possibilidade de acessar a

história da representação ocidental pela porta que os

próprios relatos de fundação nos apresentam. (STOICHITA,

1997, p.11)

Connie Zweig e JeremiahAbrams organizam uma obra que

oferece uma terceira perspectiva sobre este objeto. Em Ao

encontro da sombra: o Potencial Oculto do Lado Escuro da

Natureza Humana, pensadores de distintas áreas apresentam,

através de artigos, reflexões sobre o conceito de sombra

enquanto negação e repressão de sentimentos e suas implicações

nos indivíduos e na sociedade. Ainda que o estudo não se

revele como um compêndio de psicologia, porque há participação

Page 39: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

39

de poetas, filósofos, entre outros, a maioria dos envolvidos

analisam a questão da sombra pela ótica de Carl Gustav Jung.

Sobre a organização do livro, os organizadores dizem:

Para apresentar e definir a sombra pessoal na Parte 1,

escolhemos diversos exemplos admiráveis de escritores

junguianos, pois foi nas formulações junguianas que o

conceito tornou-se conhecido e útil como uma ferramenta

de crescimento pessoal e a cura terapêutica. Nesta seção

os escritores apresentam as questões essenciais que nos

tornam possível perceber a sombra na vida cotidiana. Nas

seções subsequentes deste livro, através de ensaios

escolhidos dentre uma ampla gama de ideias, o conceito

de sombra é ampliado de sua manifestação pessoal para

suas manifestações coletivas: preconceito, guerra,

crueldade. (ABRAMS – ZWEIG, 2012, p.29)

Destaca-se ainda o entendimento oriental a respeito do

tema sob o olhar de Junichiro Tanikazi. O escritor japonês

revela a influência da modernidade ocidental na perda do

fascínio oriental sobre a sombra. Ele demonstra como a cultura

nipônica, desde a Antiguidade, conservava cores, texturas,

formas, entre outros elementos, que prezavam pela manifestação

do traço sombrio em sua estrutura. A invasão do progresso com

seus holofotes, claridades e limpeza alteram a relação do

japonês com o ambiente e os próprios costumes. Após mencionar

que ―a beleza inexiste na própria matéria, ela é apenas um

jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre matérias‖,

Tanikazi complementa:

Por que essa propensão a buscar a beleza nas sombras é

tão forte apenas entre os orientais? Houve um tempo em

que a eletricidade, o gás ou o petróleo eram

desconhecidos também no Ocidente, mas até onde sei essa

parte do mundo nunca tendeu a apreciar o escuro. Desde

os tempos imemoriais, os fantasmas japoneses não tem

pés, enquanto os ocidentais, segundo ouço dizer, tem pés

mas são transparentes. Conforme se observa por esse

exemplo trivial, um negrume cinzento está sempre

presente em nossa imaginação, enquanto nas dos

ocidentais até fantasmas são claros, transparentes como

vidro. (TANIKAZI, 2007, p.47)

Retomando os autores Ocidentais, afirma-se que embora as

três obras mencionem exemplos afins, como o Mito da Caverna de

Platão, elas se diferenciam na abordagem do tema. Roberto

Casati não delimita sua pesquisa a uma única área e, por isso,

Page 40: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

40

constrói uma análise plural na qual considera os aspectos

físicos e metafóricos do assunto em questão. Por sua vez, as

investigações de Stoichita e Abrams- Zweig priorizam,

respectivamente, a perspectiva da História da Arte pictórica e

da Psicologia na análise sobre a sombra.

Todos os trabalhos mencionados utilizam pelo menos um

exemplo da Literatura para elucidar o debate. Há referências

a: Fausto, de Goethe – A maravilhosa história de Peter

Schlemihl, de Adelbert von Chamisso – Metamorfose, de Ovídio.

Contudo, ao longo da busca bibliográfica, só detectamos a

existência de um estudo que trabalhasse exclusivamente a

representação da sombra na Literatura, o texto ―La sombra enla

Literatura Moderna. Um pequeno Panorama‖, de SabineHaupt. O

texto da professora de Teoria Literária da Universidade de

Freiburg foi apresentado no simpósio interdisciplinar e

internacional ―Para uma historia cultural de la sombra‖.

Organizado no ano de 2009 pelo também professor da

Universidade de Freiburg Victor I. Stoichita, o evento se

congregou à exposição ―a Sombra‖ sediada em dois importantes

espaços espanhóis: Museo Thyssen-Bornemisza y la Fundación

Caja Madrid.

Conforme Haupt anuncia nas linhas iniciais do seu texto,

não há uma pretensão de abordar todas as representações da

sombra na Literatura Moderna, mas discutir contextos nos quais

sua presença se destaca. Nosso objetivo está no rastro desta

proposta, mas se debruçará especificamente sobre como esta

sombra meramente aparente dos escritos platônicos culmina na

própria Literatura realizada pela sombra, aquela que quer

existir para além de si, existir como é e romper o silêncio

com o grito que transborda dos limites e alcança espaços

inimagináveis.

Inicialmente, pretende-se explorar as distintas

perspectivas que tratam da natureza da sombra. Acredita-se que

buscar os imaginários que rondam a sua nascente é

Page 41: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

41

imprescindível para entender o percurso dos seus afluentes. Em

seguida, o interesse se desloca para as maneiras pelas quais a

sombra é representada na literatura europeia, bem como as

interpretações que se pode extrair de tais expressões. Devido

à impossibilidade de abordar todas as obras literárias que

irão utilizá-la como recurso estético, sugere-se a

implementação de um método embasado na proposta constelar de

Walter Benjamin.

As reflexões apresentadas, até então, concentram-se em

investigações de intelectuais dos países do norte. Ao longo da

construção do projeto, um grande incômodo se estabelece devido

à urgência de entender a constituição das sombras nas terras

do sul, especificamente na América Latina. Por isso, depois de

entender a forma pela qual a sombra é inscrita na literatura,

surgiu a pergunta sobre onde se encontraria a escrita de

sombra. A poesia de Alejandra Pizarnik é a chave que nos dá

acesso a uma hipótese: a escrita da sombra está nas obras

literárias que ultrapassam as projeções do cânone, apropriam-

se da escrita e esculpem a subjetividade outrora ignorada ou

invisibilizada.

Finalmente, para chegar a estes desígnios, é necessário um

giro em direção ao campo austral e a entrega do protagonismo

para as mulheres, principalmente aquelas que compõem grupos

marginalizados no âmbito social, como as negras oriundas de

espaços brasileiros periféricos. Escritoras que talham

subjetividade em personagens estereotipados pela tradição

literária e demonstram o perigo de uma única história, como

afirma a nigeriana ChimamandaAdichie. Neste momento, sugere-se

um confronto com a representação hegemônica com o fim de

comprovar a hipótese que estas autoras são responsáveis pela

criação de novas representatividades, que são fundamentais

para o enriquecimento de imaginários e reflexões.

São inúmeros os caminhos que nos levam às poéticas da

sombra. Entre corpus e projeções, encontram-se as trilhas que

Page 42: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

42

correspondem ao percurso que escolhemos. Contudo, sabe-se que,

a qualquer momento, uma pedra se interpõe ou um atalho surge

mostrando que somos errantes na viagem a que nos lançamos. Vez

ou outra surge a dúvida, ora renovando os laços com o impulso

que nos moveu, e que nos move, ora colocando em xeque a

validez de nossas escolhas. Apesar de tudo, continuamos;

afinal o vale é fascinante e há uma única certeza diante de

qualquer temor: a sombra está comigo.

Page 43: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

43

2. Alguns vestígios sobre a natureza da sombra

Diante da página em branco e sentada sob a modernidade da

luz fluorescente, observo o perfil negro que acompanha cada

movimento do meu corpo. Inicialmente, afasto-me, pois acredito

que a solidão é uma das condições necessárias para ouvir as

vozes que ditam as palavras que se oferecem paraà impressão no

papel. No entanto, a tentativa é inútil. Quanto mais me

distancio, vejo-o mais disforme e tudo o que escuto se

distorce e beira o incompreensível. Incapaz de me livrar do

conhecido estranho, mudo a estratégia e decido me acercar. A

aproximação dá vitalidade aos seus contornos e quando estamos

frente a frente um breve filamento se incumbe de nos unir. A

forte escuridão do seu preenchimento me traz clareza e

finalmente entendo que é necessário escutá-lo para dar vida ao

texto que está por vir. Intrigada por sua presença, começo a

investigar sobre os significantes através dos quais ele se

camufla e percorro as trilhas possíveis que me levem à sua

origem.

As fontes etimológicas indicam, pelo menos, duas

procedências clássicas da palavra sombra - umbra e σκιά

(skía)- que, respectivamente, correspondem aos termos em latim

e em grego. Na língua do Lácio, o vocábulo está presente em

textos diversos entre os quais se destaca Mostellaria5, de

Plauto, também conhecido como A comédia do fantasma. Na cena

2, Tranião exalta as qualidades da propriedade de Simão para

justificar a visita do seu senhor, Teoprópides, que acredita

que o seu filho tenha feito um bom negócio ao comprar a casa

do vizinho por um bom preço, quando, na verdade, ele gastara

os proventos com uma cortesã. Com o fim de dissimular o

5 Segundo KaterinaPhilippides, professora da Universidade de Patras, há

dúvidas em relação à data da sua encenação, mas acredita-se que Mostellaria

– embasado num possível texto grego intitulado Phasma – tenha sido

representada depois de 193 AC. Philippides, Katerina. "Mostellaria". The

LiteraryEncyclopedia.

Page 44: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

44

interesse, o escravo convence o homem de que o seu amo

gostaria de imitar o modelo arquitetônico daquela residência

cuja cumeeira garantia uma ótima sombra no verão e este lhe

responde:

Antes pelo contrário, por Pólux! Quando há sombra por

todo o lado, então aqui está sempre o Sol, desde a

manhã, até o fim da tarde. Semelhante a um credor, está

constantemente presente à porta de casa e eu não tenho

sombra em lado nenhum, a não ser que haja alguma no

poço. (PLAUTO, 2014, p.89)6

Neste exemplo, estamos diante de uma das designações mais

correntes do vocábulo, mas é fundamental assinalar que no

latim o termo se associa a diferentes acepções. No dicionário

da editora Oxford, encontram-se os seguintes significados para

o termo umbra além do mencionado: parte escura de uma pintura,

o fantasma de uma pessoa morta, a projeção do perfil de um

objeto que forma uma zona sombreada e uma espécie de peixe

também conhecido como sciaena. Também pode ser aplicado em

sentido conotativo ao indicar vestígio, sinais ou imagens

obscuras, aparência frágil, cópia ou representação imperfeita,

aparência, simulacro. Da mesma forma, também apontam as

entradas: abrigo, cobertura e proteção.7 Tendo em vista que o

português é uma derivação do latim, verifica-se a existência

de similaridade entre os significados da palavra sombra no

idioma falado no Brasil e as denominações encontradas outrora

naquele que o originou.

Quando se recorre ao idioma helênico para contrastar as

entradas, é perceptível que o termo σκιά (skía), enquanto

substantivo simples, compartilha alguns significados com o

latim, como proteção do sol, trevas, fantasma, mas também

agrega novos sentidos posto que também indica: lugar oculto,

6Immo edepol vero, quom usque quaque umbra est, tamen Sol semper hic est

usque a mani ad vesperum: quase flagitator astat usque ad ostium, nec mi

umbra hic usquamst, nisi si in puteo quaepiamst. (Tradução de Reina Marisol

Troca Pereira; grifo nosso) 7 A LatinDictionary. Founded on Andrews' edition of Freund's Latin

dictionary. revised, enlarged, and in great part rewritten by. Charlton T.

Lewis, Ph.D. and. Charles Short, LL.D. Oxford. Clarendon Press, 1991.

Page 45: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

45

expressão de fraqueza do homem e borda colorida de uma roupa.

Acentua-se, entre os verbetes, a menção à frase de Píndaro, na

oitava Ode Pítica: σκιᾶςὄναρ ἄνθρωπος. (Skiasonaranthropos),

isto é, ― O homem é o sonho de uma sombra‖. É importante

assinalar que a escrita da ode triunfal mencionada remete ao

êxito nos Jogos Píticos. Após o canto da dor dos vencidos e a

satisfação dos vencedores, o poeta pergunta sobre o ser e o

não-ser do homem e, com o sonho de uma sombra, ele marca a

efemeridade do sujeito e dos seus feitos. Esta é uma das

lições que herdamos do escritor grego: a inconstância, assim

como a morte, é uma das poucas certezas presentes na condição

humana. Retornando aos desígnios do dicionário helênico,

encontram-se os significados do termo na qualidade de

substantivo composto, expressando a pintura em perspectiva

(σκιά-γράυος), o viver longe do ar livre e do sol (σκιά-

τραυές), designando o animal esquilo - que pode fazer sombra

com a própria cauda - (σκίοσρος), entre outras terminologias.

As línguas neolatinas seguem a formação de umbra: sombra

em português e em espanhol, ombre no francês e ombra no

italiano. Já na esfera anglo-germânica, a ideia ganha

designação no vocábulo schatten, oriunda do antigo alemão

scato. No inglês, por sua vez, a palavra shadow provém do

termo arcaico sceadwe que é similar ao antigo saxãoskado.

Ainda tratando do idioma saxônica, o termo shade se origina em

skado que também encontra paralelo no inglês antigo scead. Na

língua inglesa ambos os termos são relevantes. Enquanto shadow

faz referência à sombra bidimensional cujo perfil resulta da

interceptação da luz por um objeto opaco, shade alude a uma

zona sombreada na qual se encontra abrigo.

O dicionário Houaiss aponta que no português a etimologia

da palavra sombra advém do latim vulgar sulumbra (sub

illaumbra– sob essa sombra). Enquanto substantivo simples,

abrange os seguintes sentidos: a) obscuridade produzida pela

interceptação dos raios luminosos por um corpo opaco, b)

Page 46: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

46

espaço menos iluminado, sobre o qual não incide luz direta, c)

ausência de luz; escuridão e d) ausência da luz solar; noite.

Em termos metafóricos pode indicar ignorância, no sentido de

falta de conhecimento.

No campo das artes plásticas, consiste na parte mais

escura de uma pintura que lhe confere profundidade ou a tinta

marrom utilizada para pintar sombras. Na área estética,

corresponde ao produto de maquiagem usado para enegrecer ou

colorir certas áreas do corpo, principalmente as pálpebras

dando uma percepção de contraste. Em termos figurados,

reporta: i) indício, traço, sinal - ii) algo que obscurece ou

mancha a reputação de alguém; mácula, nódoa - iii) coisa que

parece impalpável, imaterial, vulto – iv) pessoa ou coisa que

perdeu seu antigo brilho, importância, poder etc. – v) o que

entristece, preocupa ou angustia. Também pode, por analogia,

designar aquele que costuma acompanhar alguém aonde quer que

vá.8

Uma análise das acepções acima permite o agrupamento de,

pelo menos, cinco grupos semânticos. O primeiro se associa à

ausência de luz, o segundo à técnica estética que demarca

profundidade, o terceiro mostra os domínios soturnos do

humano, o quarto demarca os territórios da morte e,

finalmente, o quinto focaliza a existência de uma companhia. A

pluralidade de significados que o vocábulo abrange é

expressiva, por isso a aparição da sombra como conceito ou

elemento artístico deve ser considerada a partir da polissemia

que a compõe. É imprescindível perscrutar alguns mitos e

teorias através dos quais se apresentam as possíveis origens

da figura umbrosa com o fim de explorar os contextos que

nutrem os valores que a atravessam.

Um dos acessos às fontes que embalam a expansão conotativa

da palavra se localiza na cosmogonia. Considerando o enfoque

8 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de.

Janeiro, Ed. Objetiva, 2009.

Page 47: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

47

Ocidental da investigação, acredita-se na necessidade de

examinar duas colunas essenciais na composição dos imaginários

coletivos destes povos sobre a origem do mundo: as narrativas

das culturas helênica e judaico-cristã. A importância da

mitologia da Antiguidade grega se justifica, principalmente,

pelo valor alegórico que a compõe. De acordo com Mircea Eliade

(1972), os deuses e heróis gregos não são esquecidos, pois há

um reconhecimento de que a literatura e as artes plásticas

bebem na fonte grega ao longo do seu desenvolvimento. A

herança clássica – ―salva pelos poetas, artistas e filósofos‖

- presente na história do ocidente garante a permanência de

tais relatos em sua cultura.

Em relação ao cristianismo, é inegável a influência das

suas crenças ainda hoje, século XXI, nas sociedades do

Ocidente. O conjunto das convicções e preceitos cristãos estão

expressos na Bíblia e a propagação ao longo dos séculos

ultrapassa o domínio da arte, pois encontra um eficiente meio

de difusão dos discursos defendidos pela sua fé nas pregações

das igrejas. Enquanto narrativas que remontam a formação do

mundo, ambos os textos tratam da ausência de luz – o primeiro

campo semântico levantado que mantém vínculo com a sombra. Por

isso, abordaremos, respectivamente a Teogonia, de Hesíodo,e os

versos iniciais de Gênesis, primeiro livro da escritura

sagrada judaico-cristã.

O poeta descreve a genealogia dos deuses e,

concomitantemente, expõe a criação do mundo seguindo a

concepção da Antiguidade Grega, uma vez que o surgimento de

ambos é indissociável. Após a invocação das Musas, que cantam

e dançam ocultas pela névoa e em fileiras noturnas, convocam-

se os deuses. Já na disposição inicial da liturgia, nota-se o

caráter sombrio do ambiente. O comentador e tradutor da edição

brasileira pela editora Iluminuras ressalta que a ―irrupção da

voz, impõe-se à Noite negra‖ com o fim de trazer os elementos

divinos para a cena e, entre estes, figura a própria Noite. A

Page 48: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

48

partir do trecho abaixo, é visível como a esfera do umbroso

(do não-ser) acolhe o canto das Musas, responsáveis por evocar

os entes sobrenaturais criadores. Entretanto, em meio à ordem

e à vida, também há uma reivindicação das forças de negação:

as potências ortofônicas (Musas) situam-se no meio da

potência do não-ser e da privação (Noite) e mais: trazem

junto à sua plenitude configuradora da Ordem e da Vida

esta Força originária da Negação. A manifestação das

Musas não é apenas um esplendor e diacosmese que se

opõem ao reino das trevas e da carência, mas sobretudo

tem no antinômico reino da Noite o seu fundamento e, ao

esplender em seu fundamento, dá a este mesmo reino

antinômico a sua fundamentação. (TORRANO, 1995, p. 18)

Demonstra-se, desta maneira, que cada presença surge,

simultaneamente, com a ausência, numa tensão necessária para a

manutenção vital entre criação e destruição. O noturno não

apenas abriga os hinos que comunicam com os imortais, mas

também surge como uma força originária capaz de aniquilar a

tudo àquilo a que traz vida. É possível entendê-lo,

minuciosamente, quando chegamos na gênese dos deuses

primordiais. Segundo o canto de Hesíodo, que recebeu as

palavras das Musas, Caos é o primeiro a nascer e quase toda a

sua descendência se associa ao não-ser. Fruto de uma

cissiparidade da divindade primeva, Érebos é uma das potências

tenebrosas que representam a negação da vida e da ordem. Ele

se une por amor à Noite, também nascida de uma bipartição de

Caos, e esta gera Éter e Dia, as exceções da linhagem sombria,

pois consistem em entidades positivas e luminosas. Ilustram-se

as afirmações com os versos do poema:

Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.

Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,

gerou-os fecundada unida a Érebos em amor. (HESÍODO,

1995, p.91)

Observa-se que as duas faces luzentes da linhagem de Caos,

provêm das entranhas da Noite e são frutos de uma união de

amor entre a mesma e Érebos. Logo, identifica-se a origem

umbrosa das composições que se associam à luz. Além disso,

percebe-se uma autonomia dos entes que as originam, designando

uma estrutura fértil por si e ativa. Digo, Érebos e Noite

Page 49: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

49

surgem de uma divisão de Caos e este, por sua vez, é um deus

primordial. A tríade obscura independe da relação dos demais

para existir, enquanto a dupla de luz tem origem na fecundação

de um ente das trevas em outro de igual domínio que também vai

germiná-lo e concebê-lo. De igual maneira, é ressaltado no

poema que outros filhos da Noite– Lote, Sorte Negra, Morte,

Sono, Sonhos, Escárnio e Miséria - são paridos ―com nenhum

conúbio‖, reiterando a independência dos entes trevosos.

Outro aspecto que merece atenção no trecho, é a inter-

relação entre forças compreendidas como opostas devido às

características a que remetem: Érebos x Éter e Noite x Dia.

Como também assinala JaaTorrano, Érebos se configura como uma

região ―subterrânea, tétrica, noturna, ligada ao reino dos

mortos‖ em tensão com Éter que designa o espaço do ―superior,

da luminosidade, do céu diurno‖. Contudo, é imprescindível

destacar que, neste contexto, Noite e Dia não correspondem a

períodos cronométricos, associação comum que fazemos em nossos

tempos, mas sim a princípios ontológicos. Respectivamente,

eles exprimem as instâncias do Ser e do Não-Ser e mantêm uma

conexão na qual vigora a seguinte estrutura:

O Ser vige e configura-se segundo uma estrutura

configurada pelo Não-Ser, de tal forma que o pensamento

que pensa o que é o Ser não pode não pensar o Não-Ser.

(HESÍODO, 1991, p.36)

Tendo em vista o apresentado, é evidente a pulsão criativa

das esferas do obscuro. A ausência que comportam gera uma

terra fértil para germinar as mais diversas presenças. Porém,

também é de onde culminam os fins. É impossível pensar sobre

as sombras na cosmogonia grega sem percorrer os terrenos

profundos de Tártaro, onde os filhos da Noite habitam. Assim

como Caos, ele faz parte dos deuses primordiais. Abrange uma

região subterrânea em que os raios do Sol não chegam sendo

temida por mortais e imortais. É o espaço para onde se lançam

os vencidos Titãs, encarcerados em seus vales, impedidos de

sair por uma porta de bronze e grandes muralhas. Defronte da

Page 50: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

50

fortaleza do mundo inferior, está o palácio de Hades e

Perséfones protegido por um cão de guarda amável com os que

chegam e impiedoso com aqueles que tentam sair. Configura-se,

assim, o cenário lúgubre daquele que se expande pelas vias

inferiores da Terra, opondo-se assim ao eixo superior que

alcança o ápice do Céu.

A mitologia grega nos apresenta a capacidade produtiva de

Caos, Érebos e Noite, assim como a de seus descendentes. De

igual maneira, constata-se a riqueza e a força guardadas sob

os poderes de Tártaro. Através do poema de Hesíodo, demonstra-

se a procedência umbrosa das potências de luz, como Dia e

Éter, e aponta-se o intercâmbio essencial entre Ser e Não-ser

para a formação dos Deuses e do universo. Nota-se também o

protagonismo dos entes sobrenaturais sombrios na origem e na

constituição do mundo; além disso a dinâmica através da qual

cada elemento ganha vida sugere que qualquer investigação não

deve se restringir apenas à face clara do objeto em que se

debruça, mas também precisa se inclinar em direção ao perfil

atro que o compõe. Portanto, seguimos as entidades obscuras de

tal cosmogonia com o fim de percorrer as trilhas dos seus

ensinamentos.

Um olhar atento em direção à Teogonia, propicia uma visão

mais ampla da natureza da sombra. Hesíodo sugere que vejamos a

dança dos opostos, por isso é fundamental abordar os

contrários que a compõem. Tanto a Noite que abriga o canto das

Musas quanto a aparição inicial de Caos sugerem que a ausência

e a desordem podem gerar, através de sua força, uma série de

presenças e ordens. Igualmente, os entes trevosos, associados

à destruição, comprovam que as gerações que lhe sucedem, suas

construções, pertencem tanto à escuridão quanto à

luminosidade. É imensurável o prejuízo daqueles que ignoram o

inverso do qual o ser está impregnado. À vista disso, deduz-se

a importância de ver a sombra não como um fator limitante, mas

sim expansivo ao longo da formação do mundo.

Page 51: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

51

Conforme visto na introdução, a cosmogonia judaico-cristã

atribui a formação do mundo a um único Deus. Inicialmente, Ele

cria os céus e a terra, sendo a última sem forma e vazia9. Em

seguida, há uma descrição do espaço terrestre no qual as

trevas estão sobre a face do abismo e o espírito de Deus paira

sobre as águas. Conforme sugerido nas primeiras páginas do

nosso estudo, nota-se que as trevas já existiam antes de um

ordenamento do Ente primordial. Diferente da luz, cuja

aparição é consecutiva à verbalização divina, as sombras se

impunham no cenário em questão de forma autônoma. De acordo

com a linha teológica defendida, é possível associá-las tanto

como parte do nada quanto do caos, uma vez que estão inerentes

àquele lugar criado. De qualquer forma, demonstram-se

essenciais, na medida em que se manifestam fundamentalmente

após a criação de qualquer espaço, seja ele preenchido pelo

vazio ou pela desordem, exceto nos casos em que o caos

compreenda a existência de luz.

Logo, verifica-se não apenas uma independência em relação

ao criador, mas também o afastamento daquilo que é

originalmente sagrado. Nos versos seguintes, a menção à

desagregação entre luz e trevas assim como a valoração

positiva da primeira em comparação com a segunda corrobora a

afirmação. É importante destacar que, após a separação, Deus

também vai nomeá-las, respectivamente, como Dia e Noite.

Seguindo o caminho indicado, percebe-se que, apesar da

escuridão não se constituir como fruto da criatividade divina,

há uma apropriação de seus domínios e uma intervenção na

9 A partir de uma pesquisa inicial, descobre-se que há uma discussão

profunda no âmbito da teologia em relação a este trecho, tendo em vista que

diversos autores debatem as controvérsias geradas pela tradução do hebraico

töhûwäböhû. Em sua tese de doutoramento, Osvaldo Luiz Ribeiro demonstra,

através de uma análise léxico-morfológica dos termos, uma natureza

substantiva e não adjetiva de cada um. Assim, embasado em outros estudos,

propõe uma leitura na qual se entenda que ―a terra estava numa desolação e

um deserto‖. (RIBEIRO, Osvaldo Luiz. A Cosmogonia de Inauguração do Templo

de Jerusalém - o SitzimLeben de Gn 1,1-3 como prólogo de Gn 1,1-2,4ª. 2008.

Tese de doutorado – PUC-Rio, Rio de Janeiro. 2008.)

Page 52: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

52

instituição da sua identidade. A narrativa do judaico-

cristianismo vai inseri-la num aspecto oposto à luz, que

poderá ser neutro ou negativo, e vai interferir em sua

concepção. Em comparação à cosmogonia grega, que a considera

como um dos entes constitutivos do mundo e progenitora do Dia,

a formação judaico-cristã cinde ambas gerando uma oposição

dicotômica.

A concentração do poder da criação nas mãos de um único

sujeito, insere uma passividade nos objetos criados em relação

ao Ser ativo. Ao escapar da esfera divina, as trevas não se

submetem ao criador e este, por sua vez, ao dar existência à

luz e aos luzeiros do céu se empenha em estabelecer uma

separação clara entre o que toma forma pela sua voz e aquilo

que é intrínseco à aparição da Terra. Considerando o livro de

Gênesis, a natureza da sombra é independente da criação do

mundo. A tradição judaico-cristã sustenta o caráter maligno da

sua essência, contudo o texto deixa esta informação implícita

em seus primeiros versos, pois não há evidências sobre o

caráter indiferente ou prejudicial da sua presença.

A ausência de luz é representada em ambas as cosmogonias

mencionadas. Na primeira, ressalta-se o impulso produtivo que

a compõe e a complementaridade necessária com o seu oposto. A

segunda, por sua vez, revela a liberdade que detém diante do

sagrado. Isto posto, verifica-se que o campo semântico da

ausência de luz ultrapassa o limite da mera privação. No

entanto, ao longo da história, a tradição ocidental se

concentrou na exploração e desenvolvimento dos aspectos

luzentes da constituição do mundo, desprezando ou demonizando

o mundo das sombras. Assim, forma-se um grande hiato entre o

que se sabe sobre cada um desses âmbitos no qual o primeiro é

amplamente conhecido e o último atua como coadjuvante ou

aspecto nulo do seu reverso. Torna-se aparente que o mundo

ocidental carrega a herança da ordem judaico-cristã de

segregação da sombra. É necessário, portanto, um resgate dos

Page 53: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

53

aspectos construtivos da ausência de luz com o fim de entender

os prejuízos gerados ao ignorá-la.

Em contraponto com a presença da escuridão nas narrativas

da formação do mundo, destacam-se algumas teorias científicas

ainda em desenvolvimento, principalmente pelo grupo Dark

Energy Survey, sobre a existência de uma ―energia escura‖ que

talvez seja responsável pela aceleração da expansão do

universo10. Considerando que a investigação está em andamento,

os pesquisadores fazem algumas possíveis considerações sobre a

sua natureza. Acredita-se que, enquanto propriedade do espaço

vazio, ela seja constituinte de 70% do cosmos e tenha a

capacidade de anular o efeito da gravidade. Logo, esta

potência preenche o espaço e influencia a organização do

universo. Como não se manifesta através de partículas ou luz –

formas pelas quais se exploram os corpos atualmente – é

necessário criar novos meios para abordá-la. De igual maneira,

a física também assinala a presença do que se denomina como

―matéria escura‖ cuja estrutura ocupa cerca de 27% do cosmos.

Diferente da energia mencionada anteriormente, ela possui

força gravitacional. Descoberta por Fritz Zwicky, em 1930, sua

forma não comporta a luz e seu campo não interage

convencionalmente com as matérias já conhecidas.

Conclui-se que, em parâmetros científicos, conhecemos

muito pouco do universo. Principalmente, porque grande parte

das observações enfocaram na dimensão da luz e não se

concentraram em formações independentes cuja dinâmica se

estabelece fora deste domínio. O centramento nas estrelas

cegou os nossos olhos para observar as potências presentes

naquilo que, até então, era ausência. Talvez seja fundamental

retomar a concepção ambivalente dos componentes do cosmos para

que não adotemos uma visão unívoca – que pode se transformar

em idealizada ou equivocada - sobre o existente. Portanto,

10 A descoberta rendeu o prêmio Nobel de Física para três cientistas norte-

americanos: Saul Perlmutter, Adam Riess e Brian Schmidt.

Page 54: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

54

acredita-se que, ao explorar aquilo que foi excluído da

história do mundo por encerrar ideias fechadas e improdutivas,

encontra-se o equilíbrio primordial para iniciar a tarefa

vital do conhecimento.

Uma vez apresentada a importância de abordar a ausência de

luz por um outro ponto de vista, destacando seus aspectos

positivos, entendemos que a nossa percepção do mundo pode

variar de acordo com a posição que nos colocamos diante deste.

Entre tantas perspectivas possíveis, enfocaremos

especificamente na visual, uma vez que a nossa sociedade

ocidental centra a maioria da sua apreensão do mundo através

do olhar11. Tal afirmação encaminha a investigação para o

segundo campo semântico assinalado no início do capítulo ao

qual a sombra se associa: uma técnica estética através da qual

se confere profundidade ou relevo a determinado objeto. Isto

é, o jogo de claro-escuro é fundamental para imprimir volume.

Quando se trata da arte pictórica, o sombreado permite

delinear os relevos presentes em determinado desenho, pintura

ou gravura.

Vale lembrar que, conforme demonstra a investigação de

Victor I. Stoichita, a sombra é utilizada como recurso

estilístico desde o mito da origem da pintura de Plínio até os

nossos dias, passando pelas Sombras Andy Warhol e pela

publicidade da marca Chanel. O uso desta técnica como um meio

de inscrever volume na imagem e promover uma ambientação mais

realista para as formas começa a ganhar ênfase no Trecento e

chega no auge no período renascentista. Sobre o primeiro

período, sabe-se que Giotto é um dos precursores do método.

CenninnoCennini, um dos seus seguidores, sistematiza em Libro

dell Arte não apenas o modo pelo qual se alcançam alguns

efeitos através da sombra, mas também a mistura de cores

11 Em sua tese de doutorado, Antonio Quinet desenvolve uma pesquisa ampla

sobre a importância do olhar para a nossa sociedade. A editora Zahar

publicou parte deste trabalho em QUINET, Antonio. Um olhar a mais:Ver e ser

visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

Page 55: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

55

necessárias para criá-la. Segundo a pesquisa do historiador de

arte romeno, a prática de Cennini rompe com a tradição

bizantina cuja prática valorizava a sombra como contorno e

começa a sistematizá-la como uma maneira de imprimir

materialidade nos corpos ou como o mesmo nomeia inspirado nos

escritos do pintor, a sombra da carne:

A diferença entre o procedimento de Cennini e a maneira

bizantina reside no fato de que o Trecento já tinha

conquistado uma visão da imagem como cópia da realidade,

enquanto que para a mentalidade bizantina a imagem era

um decalque de outra imagem. (STOICHITA, 1999, p.54)

A pintura de Cennini demonstra que a partir deste recurso

é possível pintar carne, sombras e contornos. Assim sendo, a

configuração da pintura se torna muito mais realista, uma vez

que apresenta as formas considerando o relevo e a

profundidade. Este panorama circunscreve um âmbito propício

para saciar a sede do Renascimento de domínio e representação

do mundo. As sendas trilhadas por Giotto e seus discípulos

permitiram uma ascensão da sombra no mundo da arte ocidental.

Neste período, o chiaroscuro potencializado por Leonardo da

Vinci tem grande relevância e alcança a sua radicalização no

Tenebrismo, no qual Caravaggio é um dos representantes mais

expressivos. O contraste entre o claro e o escuro demonstra o

equilíbrio necessário para expressar a realidade em que se

vive. Há uma transição fotográfica em curso entre o misterioso

negativo do Medievo e a era reveladora das Luzes.

É imprescindível lembrar, no entanto, que a sombra como um

instrumento para incutir profundidade já era usada na pintura

facial. Desde o Egito Antigo, o uso de coloração nos olhos,

principalmente negra, conferia destaque ao que se assumia como

janela da alma. Segundo a história da maquiagem, há alguns

indícios de que pintá-los de preto também consistia em uma

maneira de proteção. Alguns frascos encontrados nas tumbas

egípcias demonstram o domínio dos pigmentos por este povo. O

Kohl, por exemplo, era uma espécie de maquiagem do Egito

Antigo amplamente usado naquela sociedade. Ainda nos dias de

Page 56: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

56

hoje, a cosmética utiliza os tons escuros com o fim de criar

profundidade nos rostos, destacar determinada área ou até

manipular suas verdadeiras dimensões.

Tendo em vista os aspectos apresentados, seja nos quadros

seja nos rostos, a sombra é um instrumento através do qual as

formas ganham profundidade. Na arte pictórica, torna-se uma

técnica fundamental durante o Renascimento, uma vez que

permite o traçar mais preciso das dimensões de um objeto e

confere mais realidade na sua representação. O jogo entre

claro e escuro ganha relevância no período mencionado e

demonstra que o domínio da sombra, assim como o da luz, é

imprescindível na construção de imagens que almejam refletir a

realidade, tal como num espelho. A cosmética, por sua vez, ao

empregá-la também possibilita a manipulação do real, na medida

em que simula formas inexistentes no rosto e no corpo.

Enquanto técnica de pintura, apresenta-se como um recurso

valioso, sem o qual os elementos apareceriam de forma plasmada

na tela. As reentrâncias acrescentam uma percepção visual mais

concreta do representado e encaminham nossa reflexão para o

terceiro campo semântico sugerido: a sombra como o domínio

soturno do humano. Isto é, o lado oculto do homem no qual ele

guarda sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego

ideal. A teoria que adota a sombra como uma acolhida das

potencialidades não-desenvolvidas ou não-expressas pelo

indivíduo é elaborada por Carl Gustav Jung. O psiquiatra suíço

acredita que a rejeição do lado obscuro resulta num maior

empoderamento da personalidade secundária e, apenas através da

aceitação da versão soturna e uma posterior afirmação daquilo

que ali foi guardado, mantém-se o equilíbrio necessário entre

o ego revelado e o ego oculto.

Segundo Jung, a sombra nasce do regime de domesticação da

natureza animal humana para a sua inserção na sociedade. Há um

processo de coerção da liberdade do ser com o fim de uma

adequação à determinada cultura. A família e as instituições

Page 57: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

57

são alguns dos meios através dos quais o normatizamos, através

da criação de regras e da exigência de cumprimentos morais.

Porém, o autor defende que, concomitante à formação de tais

valores, também há o nascimento do que foi traduzido por Maria

Luiza Appy como desvalores. Logo, a constituição de um

indivíduo é composta não apenas por suas capacidades,

racionalidades e sentimentos expressos, mas também por suas

inaptidões, instintos e frustrações ocultas. Ele afirma que

não há uma intenção de fazer com o que os sujeitos se

convertam ao seu oposto, mas que haja ―a conservação dos

antigos valores, acrescidos de um reconhecimento do seu

contrário‖. (JUNG, 1980, p.68)

Contudo, é imprescindível lembrar que a teoria junguiana

considera a existência não apenas de uma sombra individual,

mas também de uma sombra coletiva. Digo, não é apenas no campo

singular que se circunscreve a fronteira entre o que o homem

deve apresentar e reprimir, mas também a sociedade, em suas

regras morais, determina aquilo que é aceitável ou marginal. O

pensador suíço também afirma a necessidade de encontrar a face

umbrosa do âmbito coletivo para evitar sua ascensão através de

atos extremos, como as grandes guerras e os totalitarismos do

século XX. A fuga do contato frontal com o mal e com os

instintos, leva à projeção dos mesmos no outro, principalmente

aqueles que se encontram em situações de vulnerabilidade, como

seres e comunidades excluídos da hegemonia, seja por sua cor,

etnia, condição econômica. Desta forma, gera-se a implantação

de justiças perversas através das quais um grupo se afirma

superior a outro e tenta, assim, exterminá-lo.

A porção escura que nos constitui se revela ativa na vida

diária. Em Psicologia do Inconsciente, Jung aponta a dinâmica

presente em sua estrutura. Quando o homem ignora a fração

negativa que o acompanha, ela tende a ganhar volume e a se

exceder. Não há eliminação de um lado em relação ao outro, mas

a conciliação é possível. Logo, a autocrítica é imprescindível

Page 58: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

58

para que haja uma convivência pacífica entre ambas as partes.

Lembro que, tais considerações valem tanto no âmbito pessoal

quanto no público. No Brasil, o mito da democracia racial é um

exemplo de expansão de uma sombra coletiva. Ao longo de anos,

o país foi reconhecido como referência de coexistência

harmônica entre diferentes etnias. Esta crença impedia o

confronto claro com a face do preconceito. Todavia, a

implementação de medidas políticas que reivindicam igualdade

social, ao longo dos anos 200012, propicia a aparição da face

oculta dos brasileiros posto que desvela discriminações

pulsantes, principalmente de etnia e de classe, que culmina no

golpe de governo efetivado em 2016. A dinâmica é bem expressa

por Jung:

[...]a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por

isso, é reprimida; e devido a uma intensa resistência.

Mas o que é reprimido tem que se tornar consciente para

que se produza uma tensão entre os contrários, sem o que

a continuação dos movimentos é impossível. A consciência

está em cima, digamos assim, e a sombra embaixo. E como

o que está em cima sempre tende para baixo, e o quente

para o frio, assim todo consciente procura, talvez sem

perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está

condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É

no oposto que se acende a chama da vida. (JUNG, 1980,

p.48)

Nota-se que é fundamental o encontro com o aspecto mais

sombrio da nossa personalidade e da coletividade. É impossível

se desassociar da projeção umbrosa que nos acompanha e, vez ou

outra, manifesta-se no cotidiano, por isso admitir a sua

existência é crucial para que se busque equalizar a proporção

entre o ser e o não-ser de um homem e de uma sociedade. Uma

vez que entramos na esfera do encontro com este outro, propõe-

se a inversão da ordem proposta inicialmente. Antes de

explorar o diálogo da sombra com os domínios da morte,

12 Refiro-me às políticas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT)

tanto no governo de Luís Inácio Lula da Silva quanto no da presidenta Dilma

Rousseff, como as ações afirmativas e concessão de direitos às empregadas

domésticas. Sabe-se que muito da igualdade se associava não aos direitos

básicos, mas sim ao consumo. Porém, entende-se que houve um avanço mais

significativo do que nos mandatos anteriores, das ditaduras e dos governos

de José Sarney, Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso.

Page 59: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

59

encaminha-se a discussão para a ideia do duplo, tendo em vista

que a projeção se caracteriza como o outro do eu.

Na introdução, elabora-se uma apresentação teórica acerca

do outro enquanto conceito. Contudo, quando se trata da

natureza da sombra, verifica-se que ela é o duplo do eu, o

perfil acre do seu dono. Comunga os traços externos que

caracterizam a sua forma, mas a dimensão tridimensional do

corpo é reduzida a uma silhueta bidimensional e enegrecida.

Vale dizer que, apesar de apresentar uma versão mais primária

daquele que a projeta, sua presença é fundamental, pois é um

dos distintivos que atesta a existência material daquele que

lhe dá vida. Um homem sem sombra desafia a lógica da física e

gera uma série de imaginários fantásticos sobre a sua

procedência, como seres fantasmagóricos ou diabólicos.

Esta versão animística do outro tem a origem explicitada

em, pelo menos, dois textos analisados na pesquisa: a Comedia,

de Dante Alighieri, e a parábola de Edgard Allan Poe

intitulada The Shadow - A Parable(A Sombra – Uma parábola).

Ambos defendem que, nesta esfera, a sombra nasce do espírito

em sua nova forma após a morte e cumpre o seu destino ao

imergir em uma das duas beiras dos rios. Aquela que se

apresenta na cidade de Ptolemáis afirma residir nas planícies

que beiram os canais de Caronte, parte do Rio Aqueronte, para

o qual descem as almas que se destinam ao Inferno.

Logo, a personificação da sombra alude às almas que

tiveram como destino o mundo inferior. Elas atuam como seres

viventes desprovidos de qualquer materialidade, dialogam com

Dante e Virgílio ao longo do trajeto, exprimem sentimentos em

relação à própria situação e narram lembranças de outrora.

Além disso, como afirma Farinata no Canto X do Inferno, são

aptas a ver o futuro, sendo banidas apenas do saber sobre o

presente. Na parábola de Poe, por sua vez, a sombra é dotada

de voz, dialoga com Oinos e é consciente da própria

identidade. Porém, sua feição é vaga, sem forma e não remonta

Page 60: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

60

a qualquer coisa conhecida. O elo entre ambas as narrativas é

o rio Aqueronte como a origem destas sombras. Através dele, o

barqueiro vai conduzi-las ao Hades localizado nos domínios do

mundo inferior.

No presente parágrafo, encerra-se a escavação de vestígios

semânticos que se associam ao termo em análise. Por um lado, é

fundamental assinalar que há uma delimitação do campo a ser

explorado com o fim de evitar desvios do diálogo que buscamos

entre a sombra e a literatura. Acredita-se que a tarefa à qual

nos lançamos no presente capítulo é inesgotável, por isso é

necessário restringir o número de perspectivas para que seja

possível explorar com eficácia os aspectos selecionados. Por

outro, recuperar uma parte dos significados atribuídos à

figura em análise é uma maneira de provocar reflexões sobre

questões que se impõem ao longo da investigação, entre as

quais destaco: que papel desempenha a luz neste debate? qual é

a dimensão do elemento umbroso que almejamos examinar? Afinal,

quais são as sombras que perseguimos neste estudo?

A recuperação das entradas léxicas denuncia a

possibilidade da compreensão do termo nos domínios da

escuridão plena. Geralmente, quando entendida no contexto de

proximidade com as trevas, recebe a desinência morfológica de

plural. A alusão às sombras herda a insígnia do mistério, do

oculto e do desconhecido e, desta forma, demarca uma distância

da esfera do evidente. É inegável o aspecto tentador de

ingressar no extremo da ausência, mas esta inclinação

culminaria num estudo sobre as trevas travestido pelas

indumentárias das sombras. Por isso, demarca-se a busca pela

projeção, a figura fugidia cujos limites jogam com o luzente e

o seu obstáculo e, assim, aparece como a amostra do negativo

resultante desta dinâmica.

Com o fim de elucidar o nosso objeto com mais precisão,

retorna-se à acepção física do termo: a sombra como uma zona

carente de luz projetada em um anteparo proveniente da

Page 61: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

61

intercepção dos raios por um objeto opaco13. Ora, a partir de

tal designação, a formação umbrosa deriva da interação de,

pelo menos, três elementos: a luz, o objeto opaco e o

anteparo. A aparição dos seus contornos depende deste diálogo,

uma vez que a escuridão camufla os seus limites, a

inexistência do corpo impede a sua criação e a falta de um

receptáculo para a forma impossibilita a sua visualização.

Logo, o surgimento do perfil depende da presença desta tríade.

A silhueta resultante do claro-escuro é essencialmente

ambígua, pois pode remeter a coisa mesma ou ser meramente um

embuste. Digo, a sombra de um coelho numa sala pode

corresponder tanto à projeção do animal em si ou resultar da

articulação das mãos visando à reprodução de uma imagem.

Tampouco é possível afirmar se o tamanho condiz com o

original. A contemplação da figura enegrecida, sem que se

tenha acesso visual àquilo que a projeta, não é suficiente

para remontar a estrutura do objeto que a origina. Se apenas a

projeção da forma de um coelho na parede é observável, não

posso garantir se tal delineamento ou dimensão são produzidos

pelo mesmo ou não. A interpretação das formas se associa ao

arquivo presente no imaginário e faz com que a observação nos

remeta àquilo que é conhecido. Quando reflete sobre o teatro

de sombras, FabrizioMontechi faz uma observação que sintetiza

o nosso pensamento: a sombra como uma composição daquilo que

se quer expressar e não a matéria com a qual se expressa.

(MONTECCHI, 2005). Conforme afirma Jean Pierre Lescot, ―a

sombra não pode se conter na descrição, porque sua descoberta

é o reencontro com um ‗elemento‘ poético‖. (LESCOT,2005,

p.10)14

13Conforme expresso na introdução, a descrição do fenômeno considera a

propagação de luz em meios homogêneos e transparentes, pois sabe-se que, em

outras condições, os raios não seguem em linha reta. 14 Em LESCOT, Jean Pierre. Poesia e amor no teatro de sombras. In. BELTRAME,

Valmor (Org.) Teatro de sombra: técnica e linguagem, p. 9-13 –

Florianópolis: UDESC, 2005.

Page 62: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

62

Tendo em vista o apresentado, acredita-se que o panorama

traçado em relação à natureza da sombra fornecerá uma

importante chave de leitura para os textos que seguirão. As

fontes provêm de cada um destes mananciais citados e, como no

curso dos rios, desaguam no mar sombrio da literatura. Antes

de chegar à massa caudalosa de água, passam por distintos

terrenos e carregam consigo pequenos sedimentos que se juntam

ao longo do caminho. Por isso, a matéria da fonte nunca será

correspondente àquela que atinge o seu destino. Navegantes que

se aventuram em seus domínios iniciam o trajeto em plena

escuridão. No meio do percurso, os raios de sol começam a

refletir e é possível: encontrar a direção pela qual se

atravessa, escutar a voz daquele que sugeriu não se arriscar e

perceber a companhia escura refletida. Mais uma vez o Sol se

põe e nascem as trevas de um Aqueronte cuja densidade traz o

temor. Anseia-se pelo destino, a escuridão levou aquele que

nos acompanha e só é possível escutar o ruído umbroso da

imaginação. Apesar do medo, não desistimos. Seguimos a voz do

poeta que como as sereias repetem: ―Navegar é preciso; viver

não é preciso‖.

Page 63: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

63

3.Sombras na Literatura

O barco ancora no texto literário e uma porta imensa

aparece em frente ao leitor. Alguns que já a ultrapassaram,

dizem que, ao atravessá-la, podemos encontrar um baile no

qual corpo e sombra nem sempre estão juntos. O som do vento

prenuncia diálogos, negociações e até um ambiente lúdico.

Apesar da atmosfera fúnebre, perseguimos, pois uma imagem

triádica indica que não estamos tão longe do nosso destino.

3.1. As boas-vindas das sombras: as anfitriãs da Comedia

15

Sê – e sabe em simultâneo a condição para o não-ser,

o fundamento infinito da tua vibração interior,

para que a leves a cabo por inteiro, desta única vez.

(Rilke)

Que ninguém tente debilitar o sentido da relação:

relação é reciprocidade

(Martin Buber)

As três sombras, de Auguste Rodin, convidam-nos para

ingressar no universo da Comedia dantesca. Talhadas em bronze,

as esculturas carregam o brilho metálico da composição do

material e reluzem um tom escuro cuja projeção, oriunda do

encontro com a luz, assemelha-se mais a um reflexo fosco de si

do que, necessariamente, a uma sombra. Conforme se observa na

figura, os corpos se inclinam com o torso retorcido e as

cabeças pendentes para a esquerda convergem descensionalmente

para um mesmo ponto. Embora estejam dispostos em angulações

diferentes, posicionam-se de forma que descaem em direção

15 Auguste Rodin (1840 -1917). As três sombras. Antes de 1886. Bronze. Alt.

97 cm ; Larg. 91,3 cm ; Prof. 54,3 cm. S.1191

Page 64: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

64

àqueles que ingressam na Porta do Inferno e reproduzem um

movimento de interioridade, como se indicassem para cada novo

morador a necessidade de mergulhar em si.

Nos escritos de Rilke sobre o escultor cujas mãos ―viveram

como uma centena de mãos‖, descobre-se a importância da

inscrição do gesto e do movimento na obra (RILKE, 1995, p.22).

O ato de se dirigir criação adentro em busca dos recônditos

mais obscuros nos quais se encontra a beleza da obra não

figura como uma exaltação da arte sobre si, mas se refere à

plenitude de uma construção que trasborda do núcleo em direção

ao mundo para mostrar a grandeza dos detalhes. Contudo, Rodin

demonstra que a integridade não está submetida à completude,

pois a privação de algumas estruturas – como parte do braço

direito das sombras – é necessária para que a forma não exceda

ao que já se apresenta como suficiente. Ao invés de se

concentrar na ausência, o francês nos convida a ingressar na

estética da matéria talhada cuja presença contém uma

vitalidade que nos provoca a perseguir a alma que lhe confere

tanta expressão.

A curvatura dos corpos presentes na escultura em análise e

a convergência dos seus braços esquerdos em direção ao

inferior representam, respectivamente, o movimento e os gestos

citados. Assim com as sombras do Inferno de Dante, elas

perscrutam os seus abismos num processo árduo de autorreflexão

e sofrimento. Desta forma, a profundeza aparece como lugar e

tarefa, visto que os penitentes ocupam os círculos da cratera

escavada nas entranhas do globo terrestre, adentram até o

centro onde se encontra Lúcifer e, além disso, carregam o

fardo de seus pecados submetidos ao castigo correspondente às

faltas que cometeram enquanto viventes. A inclinação rumo ao

inferior e a tensão dos corpos remetem ao âmago de uma dor

concêntrica semelhante ao espaço em que habitam. Despidos de

esperança, pendem ao peso da consciência que, voltada para o

Page 65: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

65

lado da razão, incita à reflexão aos atos realizados em vida

dos que ali pagam por seus desvios.

A localização d‘As três sombras também merece um olhar

atento, pois ocupam um espaço de destaque, diferente das

demais obras que compõem este conjunto maior e estão

entranhadas em seus domínios escuros. Elas se situam no ponto

mais elevado da Porta do Inferno e coroam a entrada, de

maneira que figuram um símbolo incompleto da soberania daquele

espaço. Digo incompleto, porque forma menos da metade de um

semicírculo. O lugar do castigo de todos os que fizeram o mal

é o mais comentado no poema dantesco16 e configura uma

referência na obra do autor devido à primazia artística da sua

representação. Não é possível atribuir nobreza total aos

domínios da corrupção, mas admite-se a grandeza estética desta

dimensão em relação às demais, o que nos leva a postular uma

causa para o objeto que denota a sua soberania estar

inconcluso remetendo tanto ao poder inautêntico do infernal

quanto ao processo infindável de redenção dos seus habitantes.

Tendo em vista a quantidade de sombras presentes no topo

do portal, destaca-se o seu caráter simbólico. É inevitável

recordar a importância do número três para as religiões

judaico-cristãs, pois remete à Trindade que consubstancia o

Deus de sua crença sob três figuras: Pai, Filho e Espírito

Santo17. A coroação da entrada do Inferno com uma tríade

umbrosa soa como uma profanação diante do divino; é elevar o

grupo de corpos em contorção nuclear como expressão da unidade

sagrada daquele âmbito. Além disso, conforme veremos mais

adiante, as sombras habitam esta esfera. Logo, coloca-las como

16 No Prefácio da edição traduzida pela Editora 34, Otto Maria Carpeaux

afirma que a maioria dos leitores só conhece o ―Inferno‖ e diz que este,

―como um reflexo satírico – sátira trágica – do mundo real‖, torna-se mais

acessível aos leitores. 17 Também vale ressaltar a importância do número para Dante. Além do livro

ser dividido em três partes principais, o autor compõe em tercinas ou terza

rima em que, conforme explicita Otto Maria Carpeaux, ―a primeira linha rima

com a terceira e a segunda com as linhas 1 e 3 do terceto seguinte‖

(CARPEAUX, 2014, p10)

Page 66: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

66

constituintes dos laureis dedicados ao infernal nada mais é do

que exaltar o seu valor.

A presença d‘As três sombras na obra do escultor francês

revela a importância da figura para a Comedia dantesca. Posto

que o Paraíso é o único espaço no qual a população não se

compõe com tal aparência e que Dante é um ser vivente,

entende-se que todas as demais personagens do poema são

sombras, inclusive Virgílio, o grande mestre de cerimônias

desta viagem. Embora sejam destituídas de carne, elas são

capazes de se movimentar, tal como Dante expressa, a

aproximação das sombras de um quarteto de poetas no Limbo –

Homero, Horário, Ovídio e Lucano - que estavam ali por terem

vivido antes de Cristo e, assim, não serem batizados: ―de

quatro grandes sombras vi a chegada‖ (Inferno IV, 83). Também

mantém a memória e expressam sentimentos, como a ira de

FillipoArgenti, inimigo do protagonista, ao vê-lo: ―não há de

bom em sua memória, e eis/ por que é sua sombra aqui tão

furiosa‖ (Inferno VIII, 47-48). Ademais, a própria forma das

suas silhuetas se modifica de acordo com o pensamento que

nutrem. Esta mudança chama a atenção da personagem principal a

ponto de suscitar curiosidade: ―Ora abri a boca prontamente

pra/questionar: ―como pode ficar magro/ quem de alimento

precisão não há‖ (Purgatório XXV, 19-21).

Conforme visto, as personagens não são seres encarnados,

porém mantêm grande parte das habilidades dos viventes.

Considerando tais aspectos, uma questão a respeito da natureza

destes sujeitos se impõe, uma vez que somos impelidos a crer

na existência destas figuras que ora se assemelham com os

vivos – como o encontro de três espíritos que reconhecem a

origem de Dante por sua vestimenta e vão ao seu encontro:

―quando três sombras de sua companhia,/ correndo se afastaram,

que passava/ sob a chuva que eterna os suplica. (Inferno XVI,

4-6) – ora apresentam peculiaridades dos domínios do

sobrenatural como o abraço entre Dante e seu amigo Casella que

Page 67: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

67

ao envolve-lo: ―Três vezes à sua volta as mãos juntei,/e

tantas volvi ao meu peito.‖ (Purgatório II, 80-81). A busca

pela origem dos seres diáfanos que povoam a Comedia se

justifica não apenas pela constituição majoritária dos entes

em questão no texto, mas também pelo fato de que, enquanto

leitores, somos guiados por uma sombra. Ela se torna um meio

de descoberta das esferas mais umbrosas do poema.

A composição de Virgílio como uma sombra é relevante para

a construção da obra. Já no primeiro Canto, onde há o encontro

entre os dois companheiros de viagem, Dante revela a aparição

de um ―vulto incerto‖ a quem, imediatamente, suplica

compadecimento: ―‘Tem piedade de mim‘, gritei-lhe então,/‘quem

quer que sejas, sombra ou homem certo‘‖. (Inferno I, 66). Em

seguida, o poeta latino esclarece que, naquele momento, já não

dispõe da natureza humana, porém ainda não declara a essência

diáfana que o compõe. Dante somente o reconhece após uma

exposição breve de sua biografia e, então, aceita a condução

até as proximidades do Paraíso. Se a personagem é um dos

elementos principais na constituição ficcional ou não-

ficcional de um texto, como afirma Anatol Rosenfeld, entende-

se que a estruturação de Virgílio em forma de um ―vulto

incerto‖ não é gratuita. É inegável a importância daquele que

descreve a descida aos domínios do infernal em Eneida e a

homenagem que Dante lhe presta ao atribuir tamanha

responsabilidade quando o incumbe da tarefa de indicar as

trilhas do mundo inferior.

No ensaio Dante e Virgílio, Erich Auerbach apresenta um

panorama amplo no qual demonstra ―a educação poética que

Virgílio representou para Dante‖ (AUERBACH, 2007, p.101). O

texto expõe aspectos relevantes para a escolha do latino como

uma das principais personagens da Comedia. O filólogo alemão

reconhece que o autor italiano traça um perfil biográfico do

poeta latino de uma forma tão esclarecedora que nenhuma

pesquisa mais erudita alcançaria. À luz do ensaio, entende-se

Page 68: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

68

que ambos utilizam um legado imaginativo do passado para a

criação de suas obras mais conhecidas. Neste aspecto, Dante

encontra na voz de Virgílio a simplicidade necessária para a

constituição da linguagem, dos versos e da constituição de uma

poética cujas ideias não representam entraves para a poesia,

mas penetram a própria substância que a compõe. As doutrinas

deixam o aspecto dogmático e alegórico para adentrar nos

episódios narrados.

Além dos domínios poéticos, Auerbach indica o grande

ensinamento virgiliano a respeito da esfera infernal e do

espaço de purgação dos pecados. Vale lembrar que no livro VI

da Eneida, sob a representação de Virgílio, Eneias desce ao

mundo dos mortos. O desbravamento de tais estâncias demonstra

o conhecimento fecundo do poeta romano sobre o mundo ínfero.

Outro fator relevante que o ensaio aponta, é o fato do romano

encarnar os papeis de ―poeta do império e da missão romana‖ e

―profeta da renovação do mundo pelas mãos de Cristo‖, pois ele

acreditava na missão universal de Roma, razão pela qual narra

uma história que finca suas bases na providência divina e

desemboca na pax romana. Estes fatores justificam a escolha de

Virgílio para orientar Dante desde os mundos mais abissais até

o limiar do Paraíso. Esta sabedoria o qualifica a sair do

limbo para esta tarefa como interlocutor e guia do italiano em

seu empreendimento.

Uma vez apresentados alguns motivos pelos quais se elege

Virgílio como condutor dos ambientes mais umbrosos do poema,

volta-se a atenção para a composição desta figura. Afinal, o

escritor florentino elege uma silhueta incorpórea como

instrutor na maior parte do percurso da Comedia. É intrigante

o fato de que, enquanto representante da razão, Virgílio

figure de maneira insólita. Aquele que resgata Dante da ―selva

escura‖ atua como projeção de uma personalidade literária e

representante de um passado que inspira o protagonista. O

encontro com tal sombra se configura como o primeiro e mais

Page 69: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

69

importante, entre muitos outros, no poema. Uma interpretação

livre nos permite entender que, enquanto leitores, também

aceitamos a personagem imaterial como guia do nosso percurso.

Desta maneira, demonstra-se que as escolhas regentes das ações

que nos levam à justa medida nem sempre provém de elementos

concretos e logicamente explicáveis. Elas também nascem do

impalpável: da poética que nos comove, do passado que nos

ensina, da vivencia que nos inspira, da experiência dialógica

do Eu e Tu.

Retornado à natureza do poeta latino, observa-se que, no

terceiro canto do Purgatório, ele está consciente da própria

condição. Conforme se sabe, diferente do âmbito infernal, o

ambiente em questão já é alumiado pelo Sol, pois a forma

montanhosa surge do mar e se ergue até o mais alto céu em

direção ao Paraíso. Assim, anunciada a aurora, os poetas vêem

a chegada de uma embarcação provinda da foz do rio Tibre e

Dante reconhece, entre os recém-chegados, a alma do seu amigo

Casella. Cônscio de que a memória e o canto do amigo não fora

tolhido em seu novo estado, o italiano lhe pede que entoe uma

canção. Todos se encantam e estão atentos àquelas notas, até

que Catão chama atenção daqueles que deveriam se apressar no

caminho em direção à esfera celeste. Diante da dispersão, o

protagonista decide se acercar do poeta que o acompanha.

Neste momento do poema, corrobora-se o fato de que

Virgílio estava a par de sua condição. Ante o espanto do seu

companheiro por se acreditar abandonado pelo mestre, quando

não encontra a projeção resultante do bloqueio de raios

solares, prontamente, o latino explica que já não dispõe da

matéria com a qual fazia sombra outrora. Após reprimir a falta

de confiança de seu seguidor, ele esclarece que o corpo que um

dia lhe pertenceu está enterrado em Nápoles, por isso, nada

diante dele se ensombra. Logo, entende-se que, sob um viés

racional, a sua nova constituição física é destituída de

solidez. Todavia, a falta de materialidade não impede a

Page 70: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

70

afetação das condições e penas a que estão submetidos, pois

conforme afirma nos versos 31 e 32, são ―capazes corpos tais,

decidiu Deus,/ de sofrer fogo e gelo e penitência‖ (Purgatório

III, 31 -32). É imprescindível destacar que, após a exibição

das sensações a que estas figuras estão expostas, reitera-se

que não se sabe como isso se dá, pois é um fato atribuído ao

segredo divino: ―mas secretos dispôs os modos seus‖ ‖

(Purgatório III, 31 -32). Somente no canto XXV, apresenta-se

um pouco mais sobre a natureza da sombra.

Antes de perseguir a maneira pela qual se forma a

estrutura associada à alma, é fundamental trazer o contraponto

da sombra projetada pelo corpo de Dante. De maneira feliz e

influenciado pelo escrito dantesco e pelas pinturas que o

tomaram como inspiração, o historiador da arte Victor

Stoichita reitera a dimensão da ―sombra da carne‖18, ou seja, a

produção do duplo umbroso é um atributo essencial da matéria.

A demarcação da projeção formada devido ao bloqueio dos raios

solares reitera no poema a condição de vivente do poeta

italiano, além de, incorporar o conhecimento da perspectiva,

que estava em plena expansão na época renascentista, ao citar

a sua direção. Assim, quando diz ―O Sol, que atrás de mim via

chamejar, /rompido era, pra frente, na figura/ de seus raios

que em mim vinham parar‖ (Purgatório III, 16-18), Dante

assinala a estrutura corpórea como interceptadora do luzente

e, consequentemente, corrobora a própria condição do ser

encarnado. No canto V, inclusive, algumas almas o identificam

como vivente a partir do jogo entre luz e sombra: ―uma gritou:

‗Vê que não alumia/ à esquerda, o sol, daquele, o

acompanhante, / que é como vivo que se evidencia‘‖ (Purgatório

V, 4-6).

A silhueta umbrosa que se conecta a Dante sob a luz solar

é a fonte de identificação de sua natureza e a garantia de que

18 Presente no verso 66 do Canto XIX do Paraíso: ―ou é, da carne, a sombra

ou o veneno‖ (Paraíso XIX, 66).

Page 71: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

71

a viagem ao mundo ínfero não lhe roubara o corpo que o

constitui. Em relação à natureza de Virgílio, a explicação só

será exibida no canto XXV pela figura de Estácio. Após o

questionamento de Dante sobre o emagrecimento da alma dos

gulosos que ali habitam, já que não carecem de alimentos,

convoca-se o autor de Tebaida para esclarecer a dúvida sobre a

perda e ganho de dimensão das estruturas anímicas. Ele começa

a explanação a partir da composição originária do homem,

continua com a infusão de um ―novo espírito‖ e expõe, em

seguida, que a alma ganha nova forma ao cabo de sua vida de

acordo com o lugar para o qual se mova. Conforme o próprio

poeta apresenta no verso 101 e 102, ― a alma é chamada sombra;

arranja após/como o da vista, todo outro sentido‖ (Purgatório

XXV, 101-102). Portanto, observa-se que, a partir deste

evento, há uma descrição da formação da sombra e, assim sendo,

das personagens não-viventes que habitam as esferas inferiores

ao Paraíso.

Seguindo as trilhas do poema, entende-se que o homem se

compõe tanto de corpo quanto de alma. Logo, é fundamental

conhecer ambas as formações com o fim de não restringir a

compreensão apenas por uma de suas vias. Acredita-se

conseguir, desta maneira, uma explicação de como se constitui

a alma após a separação da matéria com a qual se relaciona. O

primeiro acesso que Estácio indica se inscreve nos domínios do

sanguíneo, pois afirma que o sangue perfeito, não consumido

pelas veias, permanece no coração e começa a ganhar forma

humana através da virtude formativa. Ele se modifica

estruturalmente, sofre nova depuração, desce para os órgãos

genitais masculinos e verte para um vaso natural onde se

mescla com o sangue feminino. O poeta destaca a disposição com

a qual ambos se acolhem: o feminino se submete à ação ativa do

masculino, visto que ele contém a virtude formativa do

coração, tal como assinala Anna Maria ChiavacciLeonardi, que

comenta a edição italiana da Mondadori.

Page 72: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

72

Uma vez unidos, forma-se um coágulo que ganha vida após a

ação de uma matéria sobre a outra. A virtude ativa é, então,

feita alma, tal como a das plantas. Porém, o processo

constitutivo destas se interrompe neste estágio, diferente do

homem cuja formação ainda percorre outras sendas. Após os

processos descritos, a matéria inicial ganha movimento e

percepção de modo que começa a se organizar de acordo com as

potências daquela semente. Entre contrações e dilatações, a

virtude provinda do coração do progenitor se expande e a

natureza gera vida nos membros em criação. Contudo, ainda não

é visível como o animal se imbui de racionalidade. Estácio

indica que homens sábios já foram traídos por esta questão,

como Averrois, cuja crença orbitava em torno da separação

entre alma e intelecto pela inexistência de um órgão que o

assumisse. O poeta da Roma Antiga, por sua vez, esclarece o

que ele nomeia como ―a verdade final‖, na qual se compreende

que, depois da constituição do cérebro, o Criador lhe infunde

um novo espírito.

A formação de uma alma inteira é composta pela fusão da

arte da natureza com o espírito repleto de virtude concedido

por Deus. Ainda à luz de ChiavacciLeonardi, concebe-se a

oferta divina como a alma intelectiva. Em seu comentário sobre

a obra, a pesquisadora destaca o percurso anímico na formação

do homem de acordo com o poema dantesco: ―a virtude ativa

própria do sêmen paterno que se tornou alma, primeiro

vegetativa e depois sensitiva, e que é naquele momento forma

ou ato do corpo; a alma intelectiva a assume em si‖ (CHIAVACCI

LEONARDI, 1991, p.558). Portanto, a composição integral da

alma se faz a partir dos três traços mencionados: o

vegetativo, o sensitivo e o intelectivo. A partir de então,

ela lhe atribui não apenas vida e sensações, mas também a

capacidade de se voltar para si, própria da reflexão.

Apresentadas as etapas diversas da formação do homem,

Estácio passa à elucidação mais precisa sobre o nascimento da

Page 73: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

73

sombra após a sua morte. Através da figura de Laquésis, uma

das moiras responsáveis pelo fio da vida, há uma introdução

sobre o destino e as faculdades da alma após a dissociação do

corpo. Indica-se que a privação das forças corporais aguça

determinadas potências, como memória, inteligência e vontade.

Movida por uma influência divina, a alma cai em uma das

margens do rio onde conhecerá o próprio destino, ou seja, do

Aqueronte ou Tibre, cujas águas a encaminham, respectivamente,

para o Inferno ou Purgatório. Designada ao lugar de sua

morada, a virtude formativa raia em seu entorno do mesmo modo

que o fez na formação do corpo com o qual viveu e o ar do

local para o qual a alma se deslocou lhe imprime virtualmente

a silhueta que a modela. Assim, há uma manutenção da aparência

física que o compunha e a inscrição de uma aura que a

circunscreve.

Dante compara a nova forma à chama que acompanha o fogo.

Vale lembrar que, de acordo com as ciências naturais, o fogo

não possui matéria. Ele consiste em uma forma de energia e a

chama resulta do composto de luz e calor proveniente da

combustão. Portanto, a flama representa o domínio visível de

um processo físico-químico capaz de gerar luz e calor. Ela é

responsável por traçar contorno naquilo que, até então,

manifesta-se como força imperceptível aos olhos. Segundo

Estácio, depois da morte, a alma é chamada sombra e, com seu

novo formato, ainda é possível falar, rir, chorar; ela figura

os sentimentos que acometem os indivíduos e possibilita que se

exprimam tanto no Inferno quanto no Purgatório. Conforme

expressa ao fim de sua explanação: ―Segundo um sentimento nos

apresa, / nossa sombra o figura, e esta é a razão /que agora

vai sanar a tua estranheza‖ (Purgatório XXV, 106-108). O

formato representa uma aparência do corpo de outrora e, como a

chama, dá visibilidade a uma determinada força que sobrevive

após a disjunção do físico.

Page 74: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

74

De acordo com a explicação do poeta, a sombra se configura

como uma estrutura anímica que habita as esferas inferiores ao

Paraíso. Quando ocorre a separação entre corpo e alma, o

primeiro – desprovido da energia vital – é separado da

estrutura social através do sepultamento ou da incineração.

Basta lembrar que, conforme já apresentado, ainda no terceiro

canto do purgatório Virgílio declara que o corpo físico com o

qual projetava sombra está enterrado em Nápoles. Por sua vez,

a alma cujo destino não é o mais alto céu segue para o rio que

a encaminhará ao lugar onde sofrerá as suas penas. Apesar de

ser visível e sensível, ela é incorpórea, o que justifica o

reconhecimento daqueles com quem Dante se relacionou em vida e

os suplícios resultantes de suas punições.

Vale dizer que a representação da alma como sombra não é

exclusividade da Comedia dantesca. Dois dos seus antecessores

na arte literária, Homero e Virgílio nos conduzem em seus

poemas épicos à descida ao mundo dos mortos e também propiciam

o encontro do leitor com este perfil de personagem.

NaOdisseia, notadamente nos cantos X e XI, acompanha-se a

descida de Odisseu ao Hades para consultar Tirésias sobre o

retorno à Ítaca. Por sua vez, naEneida, a aventura de Eneias

se justifica pelo encontro com o seu pai que lhe revelará

alguns dos seus destinos. Os herois mencionados, da mesma

maneira que Dante, não apenas percorrem a morada das almas,

mas também se comunicam com os habitantes e, inclusive,

recebem predições acerca do destino que lhes aguarda19. A

partir dos textos citados, nota-se que as sombras consistem em

importantes instrumentos de descoberta.

Retornando às características da figura em análise,

lembra-se que os traços de intangibilidade, visibilidade e

19A dissertação do pesquisador brasileiro Roosevelt Araujo da Rocha Junior

intitulada O Mundo das Sombras em Homero e Virgílio: Complexidades e

Intertextualidades apresenta um panorama amplo da viagem de Homero e Eneias

pelo mundo dos mortos. No capítulo nomeado ―Os sentidos das comunicações

com o mundo dos mortos‖ se encontram mais detalhes sobre os motivos pelos

quais ambos acessam este espaço.

Page 75: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

75

sensibilidade também são notáveis nas epopeias de Homero e de

Virgílio. Quando se lança para abraçar a mãe no Hades, Odisseu

fracassa por três vezes, porque a cada tentativa ela escapa de

seus braços. Frustrado pela impossibilidade de afagá-la, o

herói manifesta: ―Mas três vezes, das minhas mãos, semelhante

a uma sombra ou mesmo a um sonho, / Voou: e uma dor muito

aguda surgiu no meu coração‖ (Odisseia XI, 207-208). Nota-se

que há uma comparação do corpo diáfano com uma sombra e com um

sonho, pois, apesar do perfil permitir o reconhecimento de tal

aparência, a inexistência de matéria impede a interação física

entre o vivente e a alma daquele com o qual se encontra. Após

o evento, Anticleia lhe explica o que acontece com os homens

depois da morte e esclarece que os corpos não são mais

sustentados por carnes e músculos e a alma se move pelo ar.

Entre os versos 218 a 222 do capítulo 11, encontram-se as suas

palavras:

Mas esta é a regra para os mortais quando se morre:

Não mais carnes e ossos os músculos sustentam,

Mas esses a força vigorosa do fogo brilhante

Submete, depois que primeiro a vida deixou os ossos

brancos,

E a alma, adejando, como um sonho voa. (HOMERO, 218-222)

De igual maneira, no início da descida para as terras

abissais, o personagem construído por Virgílio saca a espada

para se proteger das sombras em giro que o cercavam.

Providencialmente, Sibila o adverte sobre a natureza

fantasmagórica e que qualquer tentativa de levantar a espada

contra os vultos seria malograda, porque espetaria o vazio.

Mais uma vez, corrobora-se o caráter impalpável dos habitantes

do mundo dos mortos. Esta intangibilidade também é comprovável

no encontro de Eneias com o pai, porque, da mesma forma que

Odisseu, ao tentar abraça-lo por três vezes, o corpo lhe

escapa das mãos, tal como vemos nos seguintes versos: ―Três

vezes tenta cingi-lo nos braços; três vezes a sombra/

inanemente apertada das mãos se lhe escapa, tal como/ aura

Page 76: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

76

ligeira ao passar ou o roçar ao de leve de um sonho‖20 (Eneida

VI, 700-702).

É importante assinalar que tanto a mãe de Odisseu quanto o

pai de Eneias são representados, respectivamente, por Homero e

Virgílio, em comparação com as sombras e o sonho. Não há

referência de que eles sejam sombras (umbras), mas sim uma

indicação de que a estrutura que os compõe se assemelha a

estas. Porém, o evento citado em que Eneias empenha a espada

contra os vultos que estão ao seu redor, é seguido pela

apresentação dos monstros, entre os quais Briareu de cem

braços e Gerião de três corpos. Os fantasmas aos que temia são

designados sombras, como se vê nos versos a seguir. O realce

ao uso do termo se justifica pelo fato de que na Eneida, por

exemplo, o uso do vocábulo sombra em correlação com o original

umbra se encontra nos trechos anteriores ―às moradas das almas

felizes, sem manchas‖ (Eneida VI, 640), o que conduz a

associação semântica do vocábulo aos habitantes das esferas

mais obscuras.

Eis que, de medo tornado, da espada o caudilho troiano

saca, e de ponta acomete os mais próximos vultos de em

torno.

Não fosse a sábia Sibila adverti-lo de que eram

fantasmas

aquelas sombras em giro, por certo ele houvera esgrimido

sem resultado nenhum esgrimar o vazio21. (ENEIDA VI, 290-

294)

Assim, seguindo a explicação do genitor do mítico herói

troiano, após a morte, todos padecem como forma de expurgar as

mazelas e vícios trazidos na alma decorrente do convívio com o

corpo terreno. Separada da matéria na qual se prende em vida,

a alma enfrenta as penas dos crimes cometidos e tem, ao menos,

duas escolhas: expor-se ao vento cego ou se atirar no abismo

20―Ter conatus ibi collo dare brachia circum, / ter frustra comprensa manus

effugit imago, / par leuibus uentis uolucrique simílima somno.‖ (VIRGILIO,

2014, p. 424) 21 ―Corripit hic súbita trepidus formidine ferrum/ Aeneas strictamque aciem

uenientibus offert,/ et, ni docta comes tênues sine corpore uitas/ admoneat

uolitare caua sub imagine formae, irruat et frustra ferro diuerberet

umbras.‖ (VIRGILIO, 2014, p.394)

Page 77: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

77

para que haja a purificação de suas máculas no fogo

implacável. O pai de Eneias expõe que todos os presentes nos

Campos Elísios sofreram outrora, mas depois alcançaram este

lugar a que poucos tem acesso. O trecho comprova a manutenção

da sensibilidade na estrutura anímica, o sofrimento

experimentado como uma herança deixada pelo corpo e revela que

poucos serão imaculados. Logo, a maioria traz o suplício da

experiência terrena. Os seguintes versos corroboram as

afirmativas:

Nem mesmo quando no dia postremo despede-se a vida,

perdem de todo as mazelas e vícios do corpo terreno,

só de misérias composto e que na alma por força se

apegam

por modo estranho, em virtude de longa e fatal

convivência.

Por isso, arrostam pesados castigos dos crimes vividos,

tanto suplícios! Alguns, pendurados no espaço, se expõem

aos ventos cegos; mais outros , jogados no abismo, se

alimpam

das malvadezas ou se purificam no fogo implacável.

(ENEIDA VI, 735-743)

O resgate dos poemas de Homero e Virgílio permite

comprovar o domínio anímico do vocábulo sombra em algumas

obras antecedentes à Comedia. Uma vez demonstrado o seu

vínculo com a esfera da alma, entende-se a necessidade de

compreender mais sobre as características da imagem em questão

no contexto mencionado. Conforme apresentado nos parágrafos

anteriores, ainda que separada do corpo, a alma é visível e

sensível. Além disso, interage com os viventes de forma que

compartilham lembranças, discorrem sobre a condição em que se

encontram, revelam eventos futuros e elucidam questões ainda

nebulosas para aqueles que estão vivos. Estas considerações

provêm da leitura dos textos, mas visando a uma apreciação

mais aprofundada sobre os traços da dimensão anímica, propõe-

se o cotejo com o texto Fédon, no qual se encontram as

argumentativas de Sócrates a favor da imortalidade da alma.

O diálogo consiste na narrativa de Fédon a Equécrates

sobre os últimos momentos do filósofo precedentes a sua

execução. Antes de beber a cicuta, Sócrates explica a alguns

Page 78: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

78

dos seus seguidores, especialmente a Cebes e a Símias, o

motivo pelo qual um filósofo não se revolta contra a morte.

Visando a este fim, perpassa temas diversos, como a relação

entre alma e corpo e o destino da primeira após a separação da

matéria, bem como a sua composição. A configuração do Hades e

o retorno da alma à vida também estão presentes na elucidação.

Embora seja um diálogo curto, contém gérmens de pensamento

fundamentais sobre a concepção do elemento anímico na

Antiguidade grega. Por isso, o resgate da explanação socrática

é relevante para a presente análise.

Segundo o pensador grego, quando busca a sabedoria, o

filósofo se inclina para os interesses da alma. Em suas

imperfeições sensoriais e necessidades próprias, o corpo se

constitui como um entrave para o caminho em direção ao

conhecimento puro. Assim, continuamente, aquele que persegue a

verdade se aparta da matéria almejando o encontro com as

ideias mais elevadas, motivo pelo qual o filósofo se encontra

em pleno exercício para esta ruptura com os aspectos terrenos.

Logo, enquanto momento de libertação da estrutura física, a

morte compreende um evento feliz, na medida em que permite uma

maior proximidade do seu objeto de desejo. Lutar contra esta

condição implicaria numa contradição a respeito dos próprios

anseios.

A elucidação sobre a relação e a separação entre o corpo e

a alma é um aspecto considerável para a nossa investigação.

Sócrates defende que no instante derradeiro o corpo perde suas

funções vitais e a alma se desprende deste sem se destruir, ao

contrário, ela se potencializa. Diferente dos primeiros

filósofos cuja crença residia na dissipação da alma após a

morte, ele sustenta a subsistência anímica com as atividades e

capacidades que lhe são próprias. Portanto, enquanto o corpo

compreende o âmbito do humano em seus desígnios do ―mortal,

multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a

decompor-se, ao que jamais permanece idêntico‖ (PLATÃO, 1972,

Page 79: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

79

p.90), a alma se associa ao divino, tendo em vista que

equivale ao ―imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que

tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do

mesmo modo identidade‖ (PLATÃO,1992,p.90).

Esta comparação sustenta a possibilidade do anímico

perdurar mesmo após a degeneração da matéria. Recorrendo a

teoria dos contrários, na qual se pressupõe que toda coisa

nasce senão de seu próprio oposto, o filósofo defende a

existência de um lugar invisível que se opõe ao visível onde

as almas estão quando não povoam o mundo manifesto dos

viventes. No desenlace com o corpo, a alma segue para o Hades

– também conhecido como reino das sombras – onde ganha um

destino compatível à conduta que manteve em vida. Assim sendo,

sustenta-se a tese de preexistência e subsistência da alma,

uma vez que purificada retorna à vida através de um corpo e

após o perecimento do instrumento de desvelamento do mundo se

mantém indestrutível.

A leitura do diálogo sinaliza a necessidade de cultivar os

aspectos da alma, uma vez que esta é a que se encontra em

constante deslocamento entre os domínios do visível e do

invisível. Vale lembrar que alguns comentadores da obra

atribuem a valoração do fator anímico ao Orfismo, doutrina

cuja defesa orbita em torno da presença de um elemento divino

no homem conectado a um eu mais profundo que transcende à

estrutura corporal. Acredita-se que este sistema de crenças é

responsável por impulsionar o cuidado com o âmbito individual

da existência, tendo em vista que ele também contém em si um

componente deificador. Em contraponto às práticas gregas em

vigor, impulsiona uma relação mais participativa entre o homem

e o destino do componente que se conserva após a sua morte.

No rastro do âmbito individual, retornamos à questão da

figuração de tais personagens na Comedia. Enquanto elemento

anímico, a sombra se constitui como um elemento em si. Isto é,

a aparição destas personagens no poema épico mencionado

Page 80: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

80

independe da associação a um corpo. Embora se assemelhem à

estrutura física que habitaram outrora – pois há um

reconhecimento de suas identidades – não há qualquer sujeição

entre as partes. No contexto em questão, as sombras se

caracterizam pela imaterialidade, porém as capacidades de

comunicação, movimento e sensibilidade se mantém intactas.

Ademais, preservam a memória, o desejo e estão aptas a

visualizar o futuro, o que vimos anteriormente com as

previsões da mão de Odisseu e o pai de Eneias e também se

corrobora com a fala de Farinata no Canto X do Inferno da obra

dantesca: ― ‗Nós vemos, como os que tem frouxa luz‘/respondeu,

‗as coisas que mais longe estão, / tão que ainda em nós a suma

lei reluz;‖22 (Inferno X, 100-103).

A respeito do constituinte temporal que as abarca, nota-se

a permanência destas figuras, à exceção daquelas que alcançam

o Paraíso, pois neste espaço de pureza se tornam lumi, em

referência ao brilho intenso que emanam. Com base no diálogo

Fédon, de Sócrates, acredita-se na imortalidade de tais

agentes, porque ainda que ressurjam em outro corpo ou se

transformem em luz, há um componente essencial na própria

constituição destas formas que é indissolúvel. Elas não somem

com o deitar do corpo, ao contrário, livres da matéria, aguçam

as próprias potências. Portanto, não há qualquer tensão a

respeito da sobrevivência das sombras no decorrer das ações,

principalmente no cumprimento de suas penas. No Inferno, assim

como no mito de Prometeu, o castigo se prolonga por toda a

eternidade sem a esperança de transcendê-lo através da morte,

afinal, os condenados já não usufruem da energia vital e as

suas faltas não são passíveis de correção. Já no Purgatório, a

penúria se prolonga até a depuração dos pecados cometidos em

22 Nos comentários da tradução realizada pela Editora 34, explica-se que a

―frouxa luz‖ se refere aos que sofrem de presbiopia, ou seja, pessoas que

enxergam bem de longe, mas não de perto. Farinata inaugura com esta fala o

conjunto de nove versos, que se estendem do 100 ao 108, que esclarecem a

faculdade de previsão das sombras sobre o mundo dos viventes, mas a

impossibilidade de saber sobre o presente.

Page 81: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

81

vida. Ao fim, estão plenamente purificadas, alcançam os

círculos da esfera celeste.

No texto Dante: poeta do mundo secular, Erich Auerbach

enfatiza que o poema do florentino não defende o retorno

anímico em outros corpos. Diferente do destino das almas

descrito por Anquises no sexto livro da Eneida, em que há um

regresso à existência terrena após a passagem pelo rio Letes23,

as personagens de Dante concentram em si as experiências de

uma única vida ou, com as palavras do crítico alemão,

representam ― a soma delas mesmas‖ (AUERBACH, 1997, p.116). O

ingresso no mundo que sucede à jornada terrestre nada mais é

do que a resultante daquilo que se fez até o momento

derradeiro. Neste Outro mundo, como nomeia Auerbach, a

inserção nos domínios do invisível depende de forma direta da

postura que o indivíduo assume em vida. Portanto, é

fundamental que os dias na Terra sejam permeados pelos valores

divinos com o fim de alcançar a esfera mais nobre do céu, pois

eles estão inscritos na finitude. Cito o trecho em que se

assinala a importância de manter a crença da singularidade da

vivência terrestre na Comedia:

[...] a transmigração destrói tanto o drama cristão de

um único termo de vida na terra, no qual a decisão tem

de ser tomada, e a inelutável unidade da personalidade,

a forma e destino comuns à alma e ao corpo, atestadas na

doutrina da ressurreição. (AUERBACH, 1997, p,113-114)

O aspecto de continuidade o que se vivera é um ponto

crucial para a relação que se estabelece entre Dante e os

perfis sombrios. Uma vez que preservam a memória do tempo em

que dispuseram em vida, o contato e a troca de informações

entre as partes é frequente. Ainda que, principalmente no

Inferno, haja uma atmosfera impregnada de castigos e lamentos,

a aparição destas figuras não é veículo de pavor. No poema em

análise, as sombras não são utilizadas esteticamente como um

23 ―Então, as almas, mil anos passados na roda do tempo,/ inumeráveis, um

deus as convoca às ribeiras do Letes,/ para, de tudo esquecidas, ao mundo

de cima voltarem/ e novamente ingressarem nas formas da vida terrena‖

(Eneida VI, 748-751)

Page 82: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

82

meio de inserir um ambiente de terror. Enquanto agentes, elas

são responsáveis pela narração de inúmeros episódios e feitos.

Na figura de Virgílio condensam a expressão da imagem como um

guia hábil dos círculos mais umbrosos que as acolhem. Ainda à

luz de Auerbach, concorda-se com a afirmação de que as almas

dantescas ―não são defuntos, são, ao contrário, os únicos

viventes verdadeiros (AUERBACH, 1997, p.167).

Ao longo da Comedia, verifica-se a centralidade da

comunicação na atuação de tais personagens, seja com o vivente

seja com seu semelhante, quando interagem, respectivamente,

com Dante e Virgílio. Durante a trajetória do poeta

florentino, é notória a quantidade de diálogos que ele

estabelece com as sombras, o que nos provoca a caracterizar a

obra como uma lírica de encontros, sendo o mais esperado

aquele que o poeta terá com Beatriz ao fim de sua viagem. Vez

ou outra também há menção a suplícios e querelas que remetem a

falas dos penitentes consigo e captam a atenção do leitor na

medida em que veiculam esteticamente o sofrimento que

experimentam, como na imagem penosa da entrada do lugar onde

todos devem deixar a esperança ao entrar:

Gritos, suspiros, prantos lá encontrei

que ecoavam no espaço sem estrelas,

pelo que no começo até chorei.

Diversas línguas, hórridas querelas

brados de mágoa, irrupções de ira

com estalar de mãos em suas sequelas

(Inferno III, 22-27)

A interlocução com figuras históricas, míticas ou de

homens comuns, que aparecem em forma de sombra, propicia ao

leitor um conhecimento mais abrangente dos eventos que

permeiam a memória da sociedade ocidental e a própria vida de

Dante. Elucida-se a afirmação com a presença no Inferno de

amigos do poeta, como seu mestre BrunettoLatini, no Canto XV;

inimigos, como FilippoArgenti que lhe aparece no Canto VIII;

conhecidos, como o casal de amantes Paolo e Francesca

assassinados pelo marido daquela, representados no Canto V;

Page 83: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

83

mitos como a Medusa presente no Canto IX; homens da igreja,

como o Papa Nicolau III no canto XIX. Também se destacam os

poetas e filósofos já mencionados que se encontram no Limbo.

Os episódios do poema se desenvolvem através da interação com

estas figuras ou das explanações de Virgílio sobre tais

personalidades.

O centro da ação não se concentra em guerras e disputas,

mas na expectativa da chegada até aquela que suplica a

retirada do protagonista do estado de vulnerabilidade e a sua

recondução ao caminho da virtude. Ao longo do deslocamento,

brinda-se o leitor com uma série de aprendizados sobre os

aspectos mais sombrios e luzentes dos humanos. A pluralidade

de narrativas presentes no poema - principalmente as ditadas

pelas sombras – viabilizam o encontro com a experiência

daqueles que outrora usufruíram da vivência terrena e, onde

estão, colhem o fruto dos seus feitos, bons ou maus. Assim

como Dante, somos ouvintes da formação de um pensamento

marcado pelo deslocamento pendular entre os domínios da fé e

da razão.

A respeito do aspecto formal, é imprescindível recordar

que o autor da Comedia a escreve na linguagem popular num

período em que as obras produzidas na península itálica são

registradas em Latim. Quando escolhe o idioma vulgar em

detrimento do culto, torna acessível às camadas sociais

diversas os seus escritos e demonstra que a inserção do autor

na literatura não precisa estar submetida, necessariamente, às

normas impostas pela tradição. A iniciativa de alguns

escritores, entre os quais se encontra Dante, subverte o

modelo vigente, inaugura os pilares que sustentarão a língua

italiana posteriormente e eleva a fala das ruas para o âmbito

do literário. Desta forma, o autor se configura como um grande

facilitador do encontro do público com a sua obra e um

incentivador da apropriação e da autorização do popular pela

literatura.

Page 84: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

84

Embora elabore um poema complexo em relação à estrutura e

ao conteúdo, eleger o vulgar como instrumento de sua escrita é

significativo em relação à recepção. No tratado

Devulgarieloquentia, no qual Dante discorre sobre a utilização

do vernáculo na poesia, encontra-se o apreço do autor pela

língua que está presente, desde a infância, no cotidiano do

povo itálico, em contraponto com o idioma artificial que exige

o aprendizado normativo de sua expressão. Através do registro

poético de uma língua que ele define como aquela que ―sem o

estudo de regras, aprendemos ao imitarmos nossas amas‖ (DANTE,

p.3), oferece visibilidade à linguagem que se mantinha à

sombra da ―gramática‖ cujo domínio não podemos aprender sem

―tempo e perseverança nos estudos‖ (DANTE, p.3). Assim como as

almas, a linguagem primeva subsiste independente do corpo das

palavras e traz em si a potência vital que as caracteriza.

Portanto, ao inscrevê-la, Dante permite às gerações futuras ir

ao encontro da silhueta gerada pela forma que se constituía

como um entrave para a sua plena expressão, o latim.

Em termos conclusivos, compreende-se que, através de uma

lírica que inscreve na literatura os signos de uma língua até

então à sombra do clássico, Dante propicia àquele que se

debruça sobre o poema acompanhá-lo na viagem que lhe permite

rever a sua amada e reencontrar o caminho da virtude. Através

das terzas rimas, este grande autor representa o contato com o

mais essencial do humano, em suas falhas e qualidades, por

meio de personagens desprovidos de materialidade, mas repletos

de tons existenciais que dão vida a uma lírica de encontros

com o inferno, o purgatório e o paraíso que cada um possui

dentro de si. Ao fim do livro, fica o convite para encontrar a

sombra que nos resgatará da selva escura e nos encaminhará ao

encontro de alguma sublimação ou salvação, seja ela qual for.

Page 85: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

85

3.2. Um passeio com Peter Schlemihl: quanto vale a sua sombra?

"Nós temos a arte a fim de não morrer de verdade"

(Friedrich Nietzsche)

O valor é o princípio de todas as coisas – diria um

moralista ou um capitalista, afinal, o sujeito da oração é

ambíguo em si. Esta seria a epígrafe de um romance escrito

pelo Mercado. No enredo, as personagens se enquadram entre

moedas, números e estatísticas e esquecem o que há de mais

característico na sua essência: a humanidade. Os tons de cinza

e o odor pútrido caracterizam o ambiente no qual as ações se

desenrolam e contrastam com o brilho de metais, pedras e óleos

concentrados em minúsculas ilhas vulcânicas prestes a

transbordar o gozo da destruição. As diferenças garantem a

tensão ficcional e o tempo segue os ponteiros de relógios que

derretem como os que figuram em A Persistência da Memória, de

Dalí. Cabe ao leitor, interpretá-la considerando toda a carga

semântica de negociação que o termo carrega da própria

etimologia.

Provavelmente, este livro se perderia entre tantos

originais sedentos por publicação que abarrotam caixas de e-

mail de editoras mundo afora sob a justificativa de excesso de

verossimilhança com o real. Porém, o autor sabe de sua

limitação diante de uma realidade que supera a ficção, em

escala crescente, vide a realidade dos navios negreiros e da

condição da população escravizada a partir do século XV e a

banalização do mal impulsionada pelas grandes Guerras Mundiais

no século XX. A escrita da História se revela muito mais

surpreendente do que as tramas imaginárias mais realistas dos

nossos tempos. Se a era medieval instaura a barbárie em nome

de Deus, o mundo moderno a justifica através dos meios que

conduzem à obtenção de capital e poder. Portanto, caro leitor,

acredito que um dos motivos pelos quais o autor do texto

Page 86: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

86

ficcional sobre o qual nos debruçaremos neste capítulo recorre

ao fantástico é tentar se preservar da superação da realidade.

Se bem que, até pouco tempo atrás, acreditava-se que a

odisseia pelo espaço nada mais era do que uma ficção

científica.

Em A história maravilhosa de Peter Schlemihl, acompanha-se

a vida da personagem que aceita a oferta de um homem

enigmático que lhe propõe a concessão da bolsa de Fortunato,

da qual pode retirar todo o dinheiro que lhe apetece, em troca

de sua sombra. Aparentemente, o acordo parece bastante

vantajoso, pois o perfil umbroso resultante do bloqueio de luz

além de parecer imperceptível à maioria dos mortais não contém

em si qualquer valor ou utilidade. Independente das

características atribuídas a um indivíduo, a silhueta

enegrecida que o acompanha não abriga em seus domínios

qualquer distinção. A forma mantém apenas o contorno

bidimensional do seu dono preenchida por uma ausência cujo tom

escurecido contrasta com a claridade dos raios que não tiveram

contato com um obstáculo no seu trajeto e, por isso, o

circundam. É fiel seguidora do corpo ao qual se conecta, porém

diferente do senhor que forma e deforma sua dimensão, a sombra

não é capaz de interferir na matéria que a origina. Ademais,

embora seja visível e manipulável, não é possível captura-la

devido ao seu caráter imaterial. Portanto, a priori, não

consiste numa mercadoria valorosa e parece facilmente

dispensável.

Preliminarmente, a sombra é uma espécie de duplo que se

diferencia dos demais na relação que mantém com aquele que o

projeta, porque sua natureza plana e monocromática não lhe

permite refletir os traços que causam encantamento, semelhante

ao que ocorre em Mito de Narciso ou aversão, como em O Retrato

de Dorian Gray, de Oscar Wilde; tampouco tem os tributos para

substituir o original causando-lhe prejuízos psicológico e

social, como o presente no romance O Duplo, de

Page 87: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

87

FiodorDostoiévski. Ainda que fosse possível desprendê-la do

corpo ao qual acompanha, sua estrutura incomum lhe impediria

uma vivência autônoma, tendo em vista que não se configura

como retrato, reflexo especular ou sósia. Considerando os

aspectos mencionados, ao que tudo indica, não há riscos

envolvidos na concessão da sombra, principalmente em troca de

uma bolsa que disponibiliza de maneira ilimitada um meio

conhecido para a aquisição de bens, serviços, entre outras

coisas: o dinheiro.

No episódio em que o narrador expõe a transação, observa-

se que o homem interessado pela compra aborda o protagonista

com polidez demonstrando cuidado e até certa submissão. Ele

demonstra ter experiência na arte de fazer negócios, vide as

frases utilizadas em discurso direto: ―permita-me dizê-lo‖ e

―perdoe-me a pretensão realmente ousada‖. Ainda na aproximação

mencionada, há uma exaltação das qualidades da silhueta

através de adjetivações traduzidas de forma superlativa como

―magnífica‖ e ―belíssima‖ que conferem distinção a um elemento

ordinário pertencente a todos os viventes. Através de uma

inclinação erótica em direção ao objeto de seu desejo, o homem

tenta persuadir Schlemihl a cedê-la e demonstra consciência do

caráter ousado de sua proposta. Elucido as afirmações, com as

palavras da personagem excêntrica:

―Durante o pouco tempo em que tive a felicidade de ficar

ao seu lado, eu pude, meu senhor — permita-me dizê-lo —

pude contemplar algumas vezes, com uma admiração

realmente indescritível, a belíssima sombra que o

senhor, com um certo ar de nobre desprezo e de pouco

caso, projeta ao sol — esta magnífica sombra aí a seus

pés. Perdoe-me a pretensão realmente ousada: Será que o

senhor não estaria talvez inclinado a ceder-me a sua

sombra?‖ (CHAMISSO, 1989, p.22)

As propriedades da sombra não a caracterizam como uma

mercadoria típica. À primeira vista, ela não satisfaz qualquer

necessidade humana nem de forma direta, como um meio de

subsistência ou fruição, nem de forma indireta, enquanto meio

Page 88: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

88

de produção24. Isto é, em tese, seus domínios não compreendem

relevância para as esferas materiais e espirituais do homem.

No entanto, conforme visto no capítulo anterior, a projeção

resultante do bloqueio de raios de luz é uma prova da

materialidade de um indivíduo, ou seja, é a sombra de sua

carne. A inexistência do duplo suscita desconfiança, porque

revela a falta de solidez do corpo que se apresenta e,

consecutivamente, tende-se a vinculá-lo à esfera do

sobrenatural. Portanto, entende-se que, apesar da sombra não

consistir em utilidade prática, a sua presença é uma prova da

estrutura encarnada do homem. Estas considerações permitem

compreender o dilema que se impõe à Schlemihl.

Diante do pedido inusitado, o protagonista cogita a

loucura do homem, uma vez que um interesse tão inconcebível

não seria próprio a um indivíduo que goza plenamente da

faculdade racional: ―Ele deve ser louco, pensei‖ (ibidem,

p.22). Assim, a tomada da sombra só poderia se efetivar por

meio de um fenômeno mágico, pois não há qualquer comprovação

científica sobre a possibilidade de se desprender a projeção

de alguém. Tampouco há justificativa lógica para a

comercialização de tal figura. Tendo em vista os motivos

listados, o protagonista não hesita em questionar a saúde

mental do sujeito. Lembra-se, com base nos escritos de

Foucault em A história da loucura, que desde o século XV, na

Europa, coloca-se em xeque a sanidade daqueles que recorrem a

procedimentos sobrenaturais ou a qualquer forma que escape aos

círculos científicos da época. Conforme afirma o autor, ―a

loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão

(FOUCAULT, 1972, p. 39). Portanto, ela se estrutura nos

domínios obscuros pertencentes às esferas negativas que

obstruem os raios solares do intelecto.

24 Vale dizer que este é o conceito de mercadoria proposto por Marx nas

primeiras páginas d‘ O Capital.

Page 89: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

89

Em seguida, observa-se que o protagonista questiona ao

estranho se a própria sombra que possui não lhe basta e

manifesta o cunho extravagante da situação, como se tentasse

inserir alguma lucidez no diálogo. Consciente de que a

concessão da silhueta não se realizará com facilidade, o homem

revela a existência de alguns objetos no seu bolso que podem

interessar ao interlocutor, mas confessa a desproporção de

valores existente entre qualquer uma das peças em relação ao

bem inestimável que almeja adquirir.

Neste ponto, reitera-se que a percepção de ambos é

divergente a respeito da cotação do perfil imaterial em jogo.

Enquanto o que a possui não vê qualquer relevância, o

interessado a enaltece de forma exagerada e a eleva à

categoria de mercadoria. O interessado em adquiri-la

prontamente retira os objetos do receptáculo e enumera os

pertences passíveis de troca e, como Thomas Mann esclarece no

posfácio da tradução brasileira editada pela Estação

Liberdade, todos os objetos compreendem coisas boas e

familiares presentes em sagas e contos de fadas. Esta é mais

uma tentativa de persuasão na medida em que aborda um universo

conhecido com o fim de lograr a proximidade necessária para

fechar o acordo. Além disso, corrobora o caráter mágico da

proposta, pois a aceitabilidade implicaria num ato de fé sobre

a funcionalidade do adquirido, pois consistem em elementos

sobrenaturais:25

―A raiz encantada (no original , ‗die Springwurzel‘)

abre todas as portas e faz saltar todas as fechaduras. O

martim-pescador (picusmartius)a conhece[...] A

mandrágora confere uma habilidade especial para se

encontrar tesouros. Os ‗centavos mágicos‘ são moedas de

cobre que, ao serem viradas sobre a palma da mão, fazem

surgir uma moeda de ouro. O ‗táler ladrão‘ sempre volta

às mãos do seu dono e traz consigo todas as moedas com

que entrou em contato. A ‗toalha do escudeiro‘ cobre-se

com todos os pratos que se desejar. O ‗duende

engarrafado‘ é um demônio aprisionado em uma garrafa que

25 Na nota do tradutor da mesma edição, indica-se que Chamisso dirige uma

carta ao irmão, responsável pela tradução do texto em francês, em 17 de

março de 1821 na qual explica o potencial de cada um dos objetos oferecidos

ao dono da sombra.

Page 90: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

90

concede e faz tudo o que se desejar‖. (CHAMISSO, 1989,

p.23)

Consecutivamente à oferta, o dono da sombra narra o

espanto diante da menção do bolso daquele homem e do assombro

que lhe causara a percepção de tratá-lo de maneira íntima em

tão pouco tempo de conversa, como se observa na frase: ―À

recordação do bolso, fiquei novamente gelado e não sabia como

pude tê-lo chamado de ‗caro amigo‘ ― (CHAMISSO, 1989, p.22).

Por isso, antes de prosseguir no episódio em que se desenrola

a negociação, é fundamental retomar o início da novela para

que se compreenda o motivo de tamanha preocupação. Afinal, não

era a primeira vez que Schlemihl tivera contato com aquele

cidadão. O narrador nos fornece algumas informações prévias

que elucidam a condição de ambos os personagens e que se

tornam importantes na tensão que se estabelece entre a oferta

e a resposta. Vale dizer que a apresentação dos fatos se dá em

primeira pessoa, ou seja, através do ponto de vista do

protagonista. Enquanto leitores, somos afetados por suas

emoções e construímos o imaginário dos eventos a partir da

perspectiva que ele expõe. Portanto, a cautela é

imprescindível para manter o distanciamento necessário à

construção de uma crítica.

O panorama inicial da trama é a chegada de Peter Schlemihl

no porto de uma cidade. A descrição permite vislumbrar a cena

de um jovem com poucos recursos que se desloca de maneira

precária em busca de uma oportunidade na vida. Após se

acomodar em um dos locais mais modestos da cidade, sai com uma

carta de recomendação à procura de Thomas John, o homem em

quem depositava qualquer esperança. A chegada ao casarão nobre

é acompanhada apenas por um pedido de ajuda divina e o

encontro esperado só ocorre após um interrogatório obrigatório

para acessar àquele sujeito. Conforme o aventureiro descreve,

rapidamente ele o conhece pela sua ―robusta satisfação

interior‖ (Ibidem, p.18). Com um grupo de amigos que o

Page 91: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

91

acompanha por um passeio pelo jardim, ele interrompe a

confraternização para receber o jovem, demonstra reconhecê-lo

por ser uma recomendação do irmão e pergunta, sem a intenção

de uma resposta, sobre o parente. Uma recepção cortês na forma

e vazia em conteúdo, pois ele não escuta o pobre diabo e

prossegue na exaltação de suas riquezas ao grupo.

O cenário descrito é marcado pela indiferença e

frivolidade. Porém, Schlemihl consegue a simpatia do indivíduo

depois de, tomado por ―um sentimento forte e transbordante‖,

concordar com a frase: ―Perdoem a expressão, mas quem não é

dono de pelo menos um milhão não passa de um patife‖ (Ibidem,

p.18). Inclusive consegue que o rico guarde a carta e prometa

uma conversa para dizer o que pensa a respeito disso. Cria-se

uma expectativa em torno da conversa que não se concretiza,

mas já está claro para o leitor a irrelevância de

argumentações sobre o postulado manifesto pelo ser abastado, o

que mais teria a adicionar sobre a questão? Em relação ao

protagonista, sabe-se que o mesmo não goza de muitos

proventos, logo há um estranhamento quando manifesta ―É pura

verdade‖ (Ibidem, p. 18) em acordo com a frase. É possível que

tenha sido uma estratégia de aproximação através de um afago

narcísico no ego do homem que, em princípio, funciona.

A proposição ilustra um pensamento corrente de uma

sociedade que inscreve seus valores ao redor do acúmulo de

capital. Além de representar um meio de aquisição de

mercadorias, o dinheiro é um distintivo social que qualifica

indivíduos a partir de sua posse. A fala do Sr. John – nome

típico inglês que remete ao pioneirismo desta sociedade no

mundo industrial e em sua dinâmica – demonstra que o valor de

um sujeito em tal cenário é diretamente proporcional à renda

que dispõe. Ele só começa a ter expressão no momento em que

possui, minimamente, um milhão, ou seja, a moeda fundamenta a

relação dos homens e os inscreve em representações sociais

determinadas. A moral já não se inscreve a partir das escolhas

Page 92: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

92

efetuadas pelo ser e tampouco pela razão que o conduz, mas

pelo saldo monetário que detém.

O cenário descrito evidencia o contraste e a indiferença

típicos de uma sociedade dividida em classes, pois o burguês e

seu grupo gozam do dia no jardim em meio a gracejos e

superficialidades de maneira integrada; por sua vez, recém-

chegado numa embarcação lotada e em busca de uma oportunidade,

o jovem se sente alheio em meio ao grupo e se ocupa em

observar o entorno para tentar uma aproximação com quem pode

lhe garantir ocupação. A segunda vez que retoma a atenção do

anfitrião é durante a refeição oferecida aos convidados quando

o Sr. John faz questão de que Schlemihl se alimente, não pela

possibilidade de o jovem estar faminto, mas sim pela certeza

de que ele não dispôs, ao longo da viagem, dos tipos de

alimentos servidos naquele entardecer. Mais uma vez, não há

interlocução, pois antes de qualquer resposta, o senhor já se

entretinha com outra pessoa.

A centralidade em si e no grupo denunciam o individualismo

presente e a ausência de alteridade. Preocupados em atender os

próprios caprichos, não atentam para o extraordinário que

testemunham, porque um sujeito enigmático – até então

imperceptível para os demais, inclusive para o nosso

protagonista – retira do seu bolso um objeto diferente diante

de cada anseio expresso, independente da grandeza física ou

financeira que os constitui, como: um emplasto inglês, uma

luneta Dollond, um tapete turco banhado a ouro, uma barraca,

três enormes cavalos de montaria com sela e arreio. Da

humildade do jovem à generosidade mágica do senhor, nada no

entorno, ademais de si mesmos, é digno de atenção. Não há

questionamento a respeito da procedência dos artefatos que

atendem as suas necessidades e desejos, tampouco

reconhecimento – tanto em termos de identificação quanto de

gratidão – do estranho que os servia.

Page 93: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

93

Peter Schlemihl é o único que observa com estranhamento os

feitos da figura descrita por ele como um homem prestativo

portador de uma casaca de tafetá cinza. Ciente da

impossibilidade lógica de retirar objetos de tal porte de um

bolso, ele se volta ao leitor com o fim de se solidarizar com

uma possível falta de credulidade na narrativa: ―Se eu mesmo

não lhe assegurasse ter visto tudo isso com meus próprios

olhos, você certamente não haveria de acreditar. ‖ (Ibidem,

p.21). O ambiente fantástico que se instaura tem nuances

sombrias, pois além do semblante pálido e das ações insólitas,

o gris de sua vestimenta guarda um comportamento submisso e

misterioso. Assombrado com a situação, o jovem decide ir

embora e retornar no dia seguinte para tentar a sorte outra

vez e a atmosfera obscura se complementa quando o ser

excêntrico o segue e lhe faz a proposta ousada que descrevemos

anteriormente: vender a própria sombra.

A partir das características citadas, que o narrador

oferece as propriedades necessárias para reconhecer o caráter

mefistofélico da figura. A aparição repentina e discreta, a

disponibilidade de servir às vaidades do outro e o aparente

desinteresse em vantagens são alguns exemplos que norteiam

esta identificação. Diferente da representação de Lúcifer na

Comedia, de Dante – que surge do gelo, tem três cabeças, voa

com asas sem penas e mastiga os pecadores – na sociedade

burguesa apresentada por Chamisso em sua novela, o diabo é uma

personagem com configuração humana e despida da figuração

monstruosa que herda do período medieval no Ocidente. Ele sai

do imaginário de um inferno distante e demonstra que o

representante do mal está em meio ao cotidiano, sempre

disposto a atender aos nossos desejos mais vaidosos. Porém, é

necessário lembrar que suas ações não são gratuitas, no

escambo moderno tudo e todos tem o seu preço. Embora se

apresente alinhado, submisso e gentil, mantém a aura sombria

Page 94: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

94

na aproximação sensual capaz de fazer o mais íntegro dos

homens vacilar em seus princípios.

Os pactos diabólicos são justos na medida em que se

realizam sob um consentimento e pressupõem uma equivalência

entre as grandezas oferecidas pelos tratantes. Digo, é

necessário que as partes estejam de acordo na efetuação do

negócio, independente do trâmite acordado. Por isso, cada um é

responsável pela própria escolha e suas respectivas

consequências, visto que o realizado ocorre com permissão e em

troca de um benefício qualquer. Não faltam exemplos na

história da literatura que nos introduzam nesta atmosfera,

entre os quais se destaca Fausto, de Goethe, cuja troca da

alma se dá pelo conhecimento irrestrito.

Em A história maravilhosa de Peter Schlemihl, o primeiro

câmbio efetuado é entre a sombra do protagonista e uma bolsa

de Fortunato. Assim como assinalado no início do nosso texto,

a projeção do jovem é exaltada pelo homem de traje cinza,

apesar de, aparentemente, não conter em si valores

justificáveis. Por sua vez, a sacola – originalmente

Fortunatussäckel – consiste num recipiente do qual é possível

sacar todo o dinheiro desejado. É interessante destacar que,

antes de sugerir a sacola, apresenta-se também o chapéu de

Fortunato com o qual se pode realizar todos os desejos, mas

Schlemihl sucumbe logo após ouvir a proposta da fonte

inesgotável de moeda. Conforme expresso na novela: ―Sobreveio-

me uma vertigem e era como se ducados duplos brilhassem diante

dos meus olhos‖ (CHAMISSO, 1989, p. 23).

Com o fim de dissipar dúvidas e aguçar a ganância do

jovem, o senhor distinto sugere um teste antes do acordo.

Afinal, a transação se realiza entre algo visível – ainda que

imaterial – e um objeto mágico, o que suscita desconfiança em

relação à efetividade do seu funcionamento, tendo em vista a

natureza insólita que o compõe. Schlemihl coloca a mão no

saco, retira dez moedas por quatro vezes e fecha negócio: o

Page 95: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

95

elemento fantástico lhe proporciona algo concreto com valor

ilimitado ao contrário do perfil umbroso, resultante de uma

lei física, cuja utilidade é imperceptível à primeira vista.

Como se tivesse ampla experiência no mercado de sombras, o ser

enigmático a desprende suavemente a partir da cabeça até os

pés, enrola e dobra com cuidado antes de guardá-la no bolso.

Ao fim, ambos se mostram bastante satisfeitos com a consumação

do trâmite.

Neste contexto, representa-se a sombra, inicialmente, em

seu aspecto denotativo: perfil umbroso resultante do bloqueio

dos raios de luz. No entanto, no momento em que a figura

mefistofélica a desprende para armazená-la no bolso,

configura-se um ato insólito responsável não só pela separação

entre a silhueta e seu dono, mas também pelo manuseio que

possibilita deixá-la sob a posse de outrem. Diferente das

sombras que povoam a Comedia dantesca e se constituem como um

elemento em si – personagens que são sombras – na novela de

Chamisso há uma desagregação entre a projeção e o jovem com o

seu consentimento. Ela se transforma numa mercadoria adquirida

em troca de uma bolsa de dinheiro. À primeira vista, parece um

bom negócio, mas a concessão do duplo tem consequências duras

para o protagonista.

Nota-se que a questão monetária se sobrepõe à

concretização dos desejos, porque Schlemihl não demonstra

qualquer reação diante da oferta do chapéu de Fortunato, mas

fica bastante exaltado com a possibilidade de deter a bolsa da

personagem do folclore germânico. Em O Capital, Marx expressa

o protagonismo do dinheiro nas relações de troca, pois em

termos qualitativos ―o dinheiro é desprovido de limites, isto

é, representante geral da riqueza material, pois pode trocar-

se diretamente por qualquer mercadoria‖ (MARX, 2013, p. 206).

A bolsa de Fortunato mantém não só o aspecto qualitativo do

seu ganho, mas também quantitativo, rompendo o que o filósofo

alemão chama de ―trabalho de Sísifo da acumulação‖, pois o

Page 96: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

96

caráter infindável da oferta de moeda é simbolizado pela

própria sacola enquanto fonte de todo o tesouro. Ele congrega

o poder de aquisição de mercadoria, multiplicação do capital e

entesouramento em um único objeto.

O deslumbramento diante das vantagens imediatas concedidas

pela proposta impede a ponderação a respeito do valor daquilo

que Schlemihl renuncia. Logo que chega à cidade, num dia

ensolarado, é alertado por uma senhora: ―tome cuidado, o

senhor perdeu a sua sombra‖; em seguida, ainda em tom cordial,

a sentinela questiona: ―Onde o senhor deixou a sua sombra? ‖ e

algumas mulheres comentam ―Jesus! Maria! O pobre homem não tem

sombra!‖ (Ibidem, p.25). Porém, quando esbarra com algumas

crianças na Rua Larga, prontamente um dos meninos denuncia a

sua condição e as demais o praguejam e jogam lama contra ele

ao mesmo tempo em que dizem: ―pessoas decentes costumam levar

a sombra junto, quando saem ao sol‖. O protagonista constata a

percepção das pessoas diante de um indivíduo sem sombra e

decide, por isso, evitar passeios sob o Sol,

É interessante notar que, com o fim de se desvencilhar dos

dois discursos com acentos de prescrição – presente na fala da

primeira senhora e dos meninos – o novo dono da bolsa de

Fortunato lança algumas moedas. Através do dinheiro, há uma

tentativa de calar a expressão daqueles que lhe advertem sobre

a imprudência de sair sem sombra. A dúvida e a lástima não lhe

causam desconforto, mas o encontro com a presença do outro que

o confronta com a situação e evoca o valor de estar

acompanhado da silhueta umbrosa lhe é execrável. Em seu

íntimo, o homem não se incomoda com a ausência de projeção,

não há consequências diretas em não ter uma sombra para si. No

entanto, como Sartre afirma em Entre quatro paredes

(Huisclos), o inferno são os outros e, aos olhos dos demais, a

situação é tão assustadora que leva Schlemihl a fugir

rapidamente para a hospedaria velha na qual tinha deixado seus

Page 97: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

97

pertences. No carro que o levava, teve o seguinte

pressentimento:

[...] da mesma forma como neste mundo o ouro pesa mais

do que os méritos e a virtude, à sombra concede-se um

valor superior ao do próprio ouro. E assim como outrora

eu sacrificara riquezas por uma consciência limpa, havia

agora entregado a sombra em troca de reles ouro. O que

iria ser de mim na Terra? (CHAMISSO, 1989, p. 26)

É evidente o paralelo entre a magnitude do ouro diante dos

valores morais em uma sociedade cujas relações comerciais e

sociais se delineiam em torno deste metal. Deve-se lembrar que

a afirmação do Sr. John no início da novela já comprova esta

relação. Além disso, considerando a reação alheia diante da

privação de sua sombra, o protagonista entende que o duplo

umbroso supera a grandeza do ouro. O dinheiro possibilita a

aquisição de todos os tipos de mercadorias e, como afirma

Marx, ―tudo, seja mercadoria ou não, transforma-se em

dinheiro‖ (MARX, 2013, p.205). Porém, é preciso lembrar que,

ainda que todas as coisas sejam comercializadas, algumas

contém em si atributos que superam qualquer valor de uso ou de

troca. O preço que se paga por convertê-las em produto é alto

e, muitas vezes, custa até a vida.

Ainda no trecho em destaque, Schlemihl revela que já

sacrificou riquezas para ter uma consciência limpa. Da mesma

maneira que o diabo e o desejo incitam o religioso à

transgressão que o levam para a selva escura e podem condená-

lo ao sofrimento eterno, o dinheiro é a tentação que provoca o

homem moderno a abandonar os princípios responsáveis pela

conduta que rege a sua liberdade. Apesar de manter a

integridade em outras ocasiões, o protagonista sucumbe uma

única vez e, por isso, sofre consequências severas. Resta o

lamento por vender algo tão precioso e de valor inestimável

por uma sacola fornecedora de metal, assim como a dúvida

frente aos acontecimentos futuros. Enquanto não sabe o que o

destino lhe prepara, encaminha-se para o hotel mais distinto

do local onde recebe um abraço apertado do desespero que o

Page 98: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

98

leva a retirar inúmeras moedas da sacola até cansar e ser

acolhido pelos deuses da noite. Nesta parte da trama, descreve

uma das cenas mais elogiáveis da novela pelo contraste claro-

escuro entre o ruído reluzente do ouro e o vazio silencioso do

negrume que insistia em preencher a sua existência:

O que você pensa que fiz então? – Oh, meu caro Chamisso,

confessá-lo, mesmo a você, faz-me enrubescer. Tirei a

infeliz bolsa do meu peito e com uma espécie de cólera

que, tal como um incêndio voraz e crepitante, crescia

dentro de mim, fui tirando ouro, ouro, e ouro, e ouro, e

cada vez mais ouro, espalhava-o por sobre o chão, fazia-

o tilintar sob meus tacões e ia jogando cada vez mais

metal sobre o metal, saciando meu pobre coração naquele

brilho e naquele som‖ (CHAMISSO, 1989, p. 26)

Conforme se nota no episódio, o narrador-personagem se

dirige ao autor de forma envergonhada pela composição da cena.

A meta-referência não se restringe a este trecho. No parágrafo

em seguida, a criatura se volta ao criador no cenário de um

sonho como se fosse capaz de, por alguns instantes, trocar de

lugar com ele. À espreita pela porta do quarto de Adelbert von

Chamisso, Schlemihl observa o ambiente que ronda a sua

criação. A atmosfera remonta à exposição de Gaston Bachelard

em A chama de uma Vela sobre as sombras que povoam um quarto

quando o escritor acende o instrumento de iluminação. A

solidão se dissipa e o duplo formado o acompanha até o fim do

pavio ou até o momento em que ele mesmo decide assoprar o fogo

e se dissociar do mundo de silhuetas umbrosas que o circundam.

Ao modo das sombras, o protagonista apenas vislumbra e

contempla a morte daquele que imprime a sua presença na folha

de papel em branco. Em conjunto com o anterior, este parágrafo

ilustra uma das sequências de criação mais expressivas do

livro:

Então sonhei com você; era como se eu estivesse atrás da

porta envidraçada de seu pequeno quarto e o visse

sentado à sua mesa de trabalho, entre um esqueleto e um

feixe de plantas secas; à sua frente estavam abertos

volumes de Haller, Humbold e Linné, sobre o sofá havia

um volume de Goethe e o romance ―O Anel Mágico‖. Pousei

meus olhos sobre você, contemplando-o longamente, e a

cada coisa em seu quarto e depois a você novamente. Mas

Page 99: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

99

você não se mexia, não respirava – estava morto.

(CHAMISSO, 1989, p.27)

Já desperto entre o montante do dinheiro, Schlemihl inicia

uma reação. Diante da impossibilidade de voltar todo o ouro

retirado para a sacola, decide armazená-lo no armário do hotel

e fazer dali a sua casa. O hoteleiro lhe indica um homem de

fisionomia sincera e cativante, como ele mesmo descreve,

chamado Bendel, que se torna um fiel escudeiro e confessor.

Com o fim de se desfazer da grande quantidade de moeda

acumulada, compra coisas valiosas e solicita vários serviços

como sapateiro e alfaiate, mas o volume não parecia diminuir.

Também tenta, mais uma vez, sair à público, porém o rechaço

dos transeuntes se repete e se destaca ―o desprezo altivo dos

homens, sobretudo dos gordos ou corpulentos, que projetavam

uma sombra imensa‖ (CHAMISSO, 1989, p.28).

Investidas vãs se sucedem na tentativa de reinserir a

personagem sem sombra na sociedade. Inicialmente, Schlemihl

envia Bendel à casa do Sr. John com o intuito de rastrear o

rumo do comprador da sua silhueta. No entanto, ainda que os

objetos que ele retirara do bolso naquele dia ainda estivessem

presentes na casa, ninguém lembra da figura enigmática

responsável pela sua aparição. A luneta, os cavalos, entre

outras coisas, tinham sido apropriadas à dinâmica da casa sem

que houvesse questionamentos sobre a sua procedência. Embora

não tenha tido êxito na visita, neste dia, seu criado fiel

relata que logo cedo, antes de sair em busca de alguma

informação sobre o paradeiro da sombra, um homem distinto o

abordou para dizer que voltaria em um ano para propor um novo

negócio a seu patrão. Ele não se identifica, mas informa a sua

partida para o mar em direção a ventos propícios do porto.

Prontamente, Schlemihl o reconhece pela descrição e manda

Bendel em sua busca no porto, mas - conforme previsto – não o

encontra entre barcos que saem para todas as partes do mundo.

Page 100: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

100

De alguma maneira, a aparição sinaliza a leitores e

personagem uma possiblidade de reversão do ocorrido, ainda que

esteja prevista para um ano a contar daquele dia. A

convivência com a situação durante o período é inevitável, por

isso o protagonista não desiste de solucionar, mesmo que de

forma provisória, a falta de sua projeção. Então, a segunda

investida consiste em pagar um valor alto para o melhor pintor

da cidade criar uma sombra postiça e, com o fim de não

levantar suspeitas, diz ter viajado para a Rússia no inverno

onde sua sombra ficou congelada. O artista recusa o trabalho

sob a justificativa da ineficácia da ação, porque a natureza

do perfil criado se perderia ao menor movimento. Ademais,

critica Schlemihl por ter pouco apreço por sua sombra de

nascença e repete a frase proferida pelos meninos na primeira

vez que ele se expõe sem a sombra: ―Quem não tem sombra, que

não saia ao sol‖ (CHAMISSO, 1989, p.32) A repetição da frase

gera uma expectativa em relação a um tema no qual nos

debruçaremos mais adiante: as possibilidades da sombra

enquanto metáfora.

A terceira aposta através da qual Peter consegue conforto

é o uso da sombra de Bendel. O criado é maior e mais forte do

que ele e se ocupa de acompanha-lo em todas as partes à frente

ou ao seu lado de forma que acolhe as suas ausências. Assim,

Schlemihl retoma as andanças e, com o fim de alimentar a

própria vaidade, decide retornar à casa do Sr. John; conforme

expressa ―esta [a vaidade] é a parte do homem em que a âncora

encontra o terreno mais firme‖ (CHAMISSO, 1989, p.34). Em

oposição à postura que adotara e à falta de visibilidade de

outrora, agora a presença do homem é notada e todos reagem

positivamente às suas falas. Fanny, uma mulher bela presente

na outra ocasião, admite já conhecê-lo de um momento anterior

e ressalta que, desta vez, ele lhe chama atenção por ter

―espírito e inteligência‖. Novamente, é notória a associação

do dinheiro aos valores pessoais de um indivíduo e ao espaço

Page 101: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

101

que ele merece ocupar em determinado ambiente. As posses de

Schlemihl eram a sombra necessária para lhe assegurar uma

posição de destaque em meios cujos valores fundamentam seus

pilares na propriedade do capital.

Todavia não demora para que Narciso se afogue na própria

ilusão. Em mais um de seus passeios, a bonança finda com o

surgimento da lua. O episódio se assemelha àquele vivido por

Dante quando a presença do sol no Purgatório denuncia a

privação de sombra de Virgílio. Aqui, a luz do luar surge com

a dissipação das nuvens – reiterando o caráter de desvelamento

da cena – e Fanny vê apenas a sua sombra refletida. O espanto

é de tal grandeza que a dama desfalece e os demais expressam

horror em relação ao que vivenciam. O confronto com a ausência

do perfil umbroso é motivo de assombro tanto para o

acompanhante de Virgílio quanto para a moça bela conduzida

pelo anti-heroi de Adelbert von Chamisso. Porém, a reação de

ambos diante do temor é totalmente distinta. Enquanto o poeta

latino expõe o motivo pelo qual não projeta mais uma sombra,

com o fim de tranquilizar e transmitir confiança ao seu

parceiro, aquele que a trocou por uma sacola de dinheiro foge

não apenas da casa, mas também das terras onde, em breve,

todos saberiam da existência de um homem sem sombra.

O contraste entre os eventos ressalta a diferença entre a

inserção do elemento umbroso na obra dos autores citados. Em

Dante, os raios solares não encontram o bloqueio material do

corpo encarnado para inscrever o perfil de sua projeção. Logo,

conclui-se que a natureza de Virgílio é diáfana, própria da

constituição animística, conforme expomos no capítulo anterior

através da explicação de Estácio. Isto é, o sol é o

instrumento de descoberta da ausência de sombra daquele ser.

Considerando o período em que se pressupõe a escrita da

Comedia, por volta do século XIV, entende-se a representação

da aparição da verdade acerca da natureza do poeta latino

através do aspecto solar, uma vez que tal componente luzente

Page 102: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

102

se associa tanto à esfera divina – apresentada, por exemplo,

nas pinturas eclesiásticas da Idade Média – quanto à

científica, como um dos símbolos representativos do

conhecimento, como a designação ―iluminismo‖

Por sua vez, nos escritos de Adelbert von Chamisso o luar

é o responsável pela indicação da falta de sombra do

protagonista. O luzeiro dos domínios da noite revela o segredo

de Schlemihl que até então se oculta através da cortina negra

do céu noturno. Assim como a sociedade apresentada na

narrativa, cujos princípios se inscrevem nas entrelinhas, a

exiguidade de projeção se mescla à escuridão como um meio de

camuflagem; apenas um signo da noite é capaz de revelá-la.

Neste cenário, não há espaço para elucidações e a fuga do

protagonista se compara ao objeto que escapa diante da

possibilidade de apreensão. Fruto de uma produção artística

imersa na consolidação do mundo capitalista, especificamente

no século XIX, este trecho da obra do autor francês expressa

as ilusões inerentes às relações entrelaçadas pelas alianças

financeiras; elas nos ludibriam e fazem com que os melhores

sonhos se dissipem diante do encontro com a realidade.

Seja sob a luminescência do dia ou ao brilho da noite, a

impossibilidade de gerar sombra aguça o temor nos seres

viventes. Dante e Fanny não são os únicos a se assombrar

diante de tal circunstância. Mais adiante, já em terras

distantes com os dois únicos criados que o acompanham –

Bendel, responsável pela chegada na nova cidade, e Rascal cuja

tarefa era não deixar vestígios sobre o que acontecera na casa

do Sr. John - Schlemihl é confundido com o rei da Prússia,

que diziam viajar pelo país utilizando o nome de um conde. A

riqueza distribuída por aquelas terras faz com que o povo o

enalteça e, em sua recepção, conhece e se apaixona por uma

donzela. Mesmo após a aparição do rei verdadeiro, não há

desprezo pela figura de Peter, pois a abundância financeira é

o suficiente para consagrá-lo como alvo de exaltação daquele

Page 103: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

103

povo, principalmente pelos pais de Mina que se orgulham de ter

a filha cortejada por um homem de muitas posses.

Ela se apaixona verdadeiramente por Peter e este, por sua

vez, sofre por saber que a sua condição atual pode afastá-lo

daquela por quem nutre o sentimento nobre. Ele está ciente de

que a quantidade infindável de moedas que dispõe não seria

suficiente para manter a moça ao seu lado, caso dessem falta

de sua sombra. Chegado o momento, a previsão se torna

realidade e a dor de ambos é tamanha, o que leva Schlemihl ao

desespero. Descrente das próprias palavras, insiste em

convencer aos demais da irrelevância de não se possuir uma

sombra e, questionado pelo pai da moça sobre como fez para

perdê-la, ele mente ao afirmar que um sujeito estúpido a

pisoteou com brutalidade e a danificou de modo que teve que

deixá-la no conserto. Diante da justificativa, o genitor da

donzela desolada lhe concede três dias para recuperar a

silhueta umbrosa.

A vaidade e o amor são temas levantados por Adelbert von

Chamisso através do comportamento de Schlemihl frente a

descoberta de Fanny e de Mina sobre a sua falta de sombra. O

vínculo com a primeira se funda no universo de coisas vãs onde

as ações se justificam pelo olhar do outro e pressupõem algum

reconhecimento ou admiração. Por isso, não há pesar na perda

de contato com a pessoa em si, apenas a tristeza de admitir a

repugnância daquela circunstância que nem mesmo o dinheiro é

capaz de sobrelevar. Porém, com a segunda há um envolvimento

amoroso verdadeiro cujo sentimento é alimentado no interior

daquele ser. Ao invés de se embasar no âmbito das aparências,

o amor se inscreve na essência humana e a separação entre os

envolvidos – em vida ou em morte - consiste num processo

doloroso como demonstram diversos personagens da literatura,

como Romeu e Julieta, por exemplo. Schlemihl não representaria

um cenário distinto, por isso, após a descoberta de seu

segredo, entra numa angústia profunda diante do futuro.

Page 104: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

104

O processo de interiorização é intensificado após a

ruptura do relacionamento com Mina. O momento é propício para

a contraproposta do homem de casaca cinza que reaparece na

trama, não aceita a devolução da bolsa de Fortunato e oferece

a oportunidade de Schlemihl recuperar a sombra mediante a

assinatura de um papel, no qual se lê: ―Através desta minha

assinatura lego minha alma ao proprietário deste documento,

depois de sua separação natural do meu corpo‖ (CHAMISSO, 1989,

p.50). Porém, o comportamento do jovem se distingue bastante

em comparação à primeira negociação. Ainda que o homem de

casaca cinza mantenha uma capacidade de persuasão notável –

não somente ao apresentar os benefícios da recuperação da

silhueta, entre os tais, a retomada do compromisso com sua

amada, mas também ao expor a sombra ao seu dono – o

protagonista nega a realização de um novo acordo. Peter

demonstra vergonha e ódio do feito realizado com o ser

enigmático e lamenta quando o viu andando entre duas sombras,

entre estas a sua. Aquele que se identifica como uma espécie

de ―erudito e físico que, por suas artes exemplares só recebe

ingratidão de seus amigos‖ é expulso por Bendel, mas acredita

que, em outra oportunidade, terá êxito com tal proposta.

A tentativa de convencer o pobre homem de fechar o negócio

também considera as diferenças existentes entre a sombra e a

alma. Embora não se caracterize como uma estrutura sólida, a

projeção corpórea é visível. As situações apresentadas na

narrativa corroboram a importância da posse de uma sombra,

pois a sua privação causa assombro aos demais e diversos

prejuízos sociais àquele que não a detém. Em contraposição, a

alma é uma substância invisível ao olhar humano e, de certa

maneira, de difícil comprovação científica. O destino deste

elemento após a separação do corpo ainda é desconhecido e

tampouco se sabe sobre a existência de alguma utilidade de

seus domínios a partir da morte. Embora os religiosos prezem

pelo cultivo da estrutura anímica sob a justificativa de uma

Page 105: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

105

continuidade futura em um ambiente que esteja de acordo com as

escolhas que o sujeito fez em vida, ainda não é possível

provar o que se configura com a alma a partir do suspiro

derradeiro. A figura mefistofélica fundamenta o seu discurso

através dos seguintes argumentos:

- E, se me permite perguntar, que tipo de coisa é afinal

a sua alma? O senhor já a viu?; e o que pensa fazer com

ela, quando estiver morto? Considere-se feliz por

encontrar, ainda em vida, um entusiasta que quer comprar

a herança dessa incógnita, dessa força galvânica ou

dessa atividade polarizadora – ou o que quer que seja

essa coisa estúpida –, pagando-lhe com algo real, isto

é, com sua sombra corpórea, através da qual o senhor

pode chegar à mão de sua amada e à realização de todos

os seus desejos. (CHAMISSO, 1989, p.51)

Se no primeiro acordo o dinheiro consiste num objeto de

cotação alta em oposição à sombra que parece irrelevante,

agora a forma umbrosa se define na esfera do perceptível –

portanto valoroso frente aos parâmetros da vida terrena – ao

passo que a alma, por seu caráter inapreensível, representa um

bem de menor relevância. No mercado diabolem, daquele que

divide, o âmbito do visível – do apresentável ao outro - é

avaliado como lucrativo e o seu oposto complementar, o

invisível, como parte do conjunto do que não é manifesto,

sofre depreciação. Estas polaridades exprimem um panorama

representativo da atmosfera presente em uma sociedade cuja

norma advoga a favor da reificação e mercantilização da vida.

Na ordem social descrita, há uma primazia do tato e da visão

no âmbito do sensível que designa uma escala de importância

decrescente entre as negociações de Schlemihl e o homem de

casaca cinza, na qual: dinheiro > sombra > alma.

Como ―forma de existência absoluta do valor de troca ou

mercadoria universal‖ (MARX, 2013, p. 209), o dinheiro se

impõe como grandeza absoluta nesta lógica. Porém, a sombra

oscila de cotação de acordo com as outras ofertas disponíveis

no trâmite. Ela é incorpórea, o que a desvaloriza diante de

objetos palpáveis aos quais é possível designar qualquer

utilidade, mesmo a mais banal como um peso de papel. Por outro

Page 106: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

106

lado, além de visível, a sua aparição comprova a encarnação do

corpo do indivíduo que a projeta, demonstrando maior

credibilidade de existência do que a alma, pois, além de

intocável, a última é invisível. Na possibilidade de outra

transação, a alma pode se revalorizar devido à capacidade de

disponibilizar ação para a estrutura física do homem ou ao

significado que lhe é intrínseco no âmbito religioso. Esta

dinâmica revela os motivos pelos quais há uma variação no

valor de troca de cada uma que se efetiva de acordo com as

medidas sociais ou pessoais em vigência. A sombra, por

exemplo, sofre altas e baixas segundo o meio em que se insere

e os atores que a dispõem.

Neste momento da trama também é notória a dissociação

entre as figuras da sombra e da alma na obra de Chamisso. Uma

vez que a proposta do sujeito enigmático consiste na

recuperação da projeção mediante à entrega póstuma da

substância anímica, torna-se evidente que há uma diferenciação

entre os dois elementos na narrativa. Assim sendo, a imagem da

sombra em A história maravilhosa de Peter Schlemihl se

distingue daquela apresentada, anteriormente, na Comedia, de

Dante Alighieri. Enquanto a primeira se manifesta como prova

da vida, na medida em que se origina do bloqueio dos raios de

luz pela materialidade do corpo e se apresenta como componente

necessário à natureza vivente do sujeito ao qual se associa, a

segunda está nos domínios da morte, pois representa a forma

recebida pela alma dos faltosos após o findar da vida. Na obra

do autor francês, observa-se, inicialmente, o aspecto

denotativo do termo e, após a negociação, a ação insólita abre

o evento para possibilidades metafóricas diversas. Neste

contexto, o caráter fantástico se impõe, uma vez que há uma

desagregação da silhueta e do corpo capaz de gerá-la,

incutindo um status passivo ao duplo, porque sua apropriação

se dá tal como um objeto. Já no poema dantesco, a sombra

figura como agente, tendo em vista que as suas manifestações

Page 107: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

107

consistem na constituição corpórea de personagens ativas nos

episódios das quais participam.

A configuração da sombra como elemento de câmbio propicia

interpretações diversas para o texto de acordo com a sua

recepção. Em La sombra enla literatura moderna, SabineHaupt

destaca três leituras críticas relevantes sobre a narrativa:

―a tensão entre individualidade e adaptação que se articula na

marginalidade de Schlemihl‖, ―a poetização do discurso das

ciências naturais‖ e a centralidade no ―mercantilismo e

capitalismo‖. A primeira discorre sobre a necessidade de

cultivar o valor moral do cidadão individual, a segunda se

justifica pelo interesse do escritor em apresentar em

linguagem literária os conhecimentos científicos da natureza e

a terceira, com a qual há maior identificação na presente

pesquisa, desenvolve-se a partir do diálogo simbólico entre a

sombra e o mercantilismo moderno presente no sistema econômico

capitalista. A partir da análise do texto, Haupt estabelece um

paralelo bastante interessante entre processos econômicos e

simbólicos:

Da mesma maneira que a sombra não tem valor próprio no

trato com o diabo, ou seja, é puro contravalor ou

equivalência, ela tampouco tem significado próprio no

âmbito semiótico simbólico. Neste último, seu valor é

pura equivalência, algumas vezes equivale a

―pertencimento social‖ e outras vezes à ―alma‖. E talvez

exagerando um pouco, teoricamente se pode ir mais longe,

inclusive afirmar que o tema da sombra vendida ou

permutada seria uma espécie de símbolo da metonímia, uma

imagem narrativa sensível da solubilidade,

permutabilidade, do substitutivo e da venalidade tanto

do ―núcleo‖ do humano como de toda referência semântica

clara. O que significa a sombra, que valor ela tem,

ninguém sabe. A resposta para tais perguntas começa a

aparecer a partir da sua falta. (HAUPT, 2009, p. 87)26

26 ―Así como la sombra no tiene valor propio en el trato con el diablo, es

decir, es puro contravalor o equivalencia, así tampoco tiene significado

propio en el ámbito semiótico simbólico. También aquí su valor es pura

equivalencia, equivale a ‗pertenencia social‘ en ocasiones y a ‗alma‘ en

otras. Y quizás exagerando un tanto, teóricamente podría irse aún más

lejos, hasta afirmar que el motivo de la sombra vendida o permutada sería

así una especie de símbolo de la metonimia, una imagen narrativa sensible

de la solubilidad, permutabilidad, substituibilidad y venalidad tanto del

‗núcleo‘ de lo humano como de toda referencia semántica clara. Qué

signifique la sombra, qué valor tenga de suyo, nadie lo sabe. Parece

Page 108: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

108

É indubitável que a figura de linguagem representada pela

sombra no texto de Chamisso propicia associação a referências

diversas. Os críticos a interpretam dentro do escopo

delimitado por Haupt e a origem da obra ganha diversas

versões. No posfácio escrito por Thomas Mann, presente na

tradução para o português, há alusão à gênese e à recepção da

obra. Alguns acreditam na menção à mudança de pátria do autor,

uma vez que ele nasce na França, adota a atual Alemanha como

lar e encontra tal familiaridade com aquela cultura que chega

a declarar em 1828: ―Quase chego a acreditar que sou um poeta

alemão‖. Outros defendem, a partir do testemunho de Wilhelm

Rauschenbush, que o conheceu pessoalmente e organizou dois

volumes de suas obras, o nascimento do enredo a partir de um

questionamento de Chamisso ao amigo Fouqué, na propriedade do

último, sobre a hipótese de o que aconteceria caso ele

enrolasse a sombra do companheiro e este tivesse que andar ao

seu lado sem sombra. De acordo com o depoimento, o homem

baixo, cuja sombra era tão grande quanto a do seu companheiro,

estimula o amigo a explorar a ideia de tal ausência. Nota-se,

a partir do citado, que não são poucas as alternativas de

leitura que se apresentam.

Todavia ainda não encerramos o debate sobre o texto.

Retornando ao drama de Schlemihl, entende-se que esta perda

passa a ser a única projeção que o acompanha. No desenrolar

dos episódios, é presente o lamento por outrora comercializar

algo que lhe era tão próprio e a única saída que vislumbra é o

retiro em um lugar afastado. Ainda assim, na planície onde o

homem isolado se encontra, mais uma vez o seu algoz lhe

provoca ao exibir uma sombra que, aparentemente, vaga sem

dono. Prontamente, ele tenta se apropriar da silhueta, mas ela

foge para um bosque na qual se mistura a outros duplos

umbrosos. Ali, diante da possibilidade de ser captada, ele se

empezar a obtenerlo sólo en cuanto falta‖ (HAUPT, 2009, p.87).Tradução

nossa.

Page 109: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

109

lança em direção ao imaterial e se choca com uma resistência

corpórea. Após ser duramente golpeado, percebe que se trata de

algum portador do ninho encantado, objeto capaz de tornar o

homem invisível, mas não o seu duplo umbroso. Apoderando-se do

objeto, mesmo sem identificar o seu portador, vê uma salvação

para o seu problema, uma vez que a invisibilidade e a ausência

de sombra lhe propiciariam circular novamente entre os homens.

Através da camuflagem que o objeto lhe propicia, decide

retornar à casa de Mina para comprovar se ela estava prometida

a Rascal, um dos seus antigos criados, como o ser sinistro

tinha informado na primeira vez que tentou uma renegociação.

Logo que chega à casa, ele descobre que este é mais um

engodo da figura mefistofélica. Diante da cena em que o pai de

Mina decide conceder a filha àquele homem de sombra

irrepreensível – com muitas posses por fazer bons negócios e

economizar em tempos em que todos esbanjam – porque acredita

não haver tão bom partido que se interesse pela donzela depois

do seu envolvimento com um aventureiro, o sujeito de casaca

cinza renova a proposta. O sofrimento de Mina em virtude do

rechaço em relação à união com o indivíduo é o cenário ideal

para mais um acordo e o negociante experiente prontamente faz

uma ferida para comprovar o sangue vermelho do jovem e coloca

em suas mãos o pergaminho e a pena. Como bom narrador,

Schlemihl restabelece contato com Chamisso e, através desta

estratégia, insere um suspense na narrativa e expõe algumas

reflexões sobre o ocorrido desde ―o erro precipitado que

descarregou a maldição‖ sobre ele até aquela visão de que o

amor o fez ―penetrar criminosamente no destino de outro ser‖.

(CHAMISSO, 1989, p.61). O conteúdo narrado neste intervalo

adianta algumas reflexões sobre o acontecido neste evento, mas

sustenta a dúvida em relação ao desfecho da proposta. O trecho

inicial nos leva a crer que não houve acordo, ao contrário do

final que insinua a realização do trato. Cito ambos separados

pelo intervalo indicado pelos colchetes:

Page 110: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

110

Não pense tão mal sobre mim, meu Adelbert, a ponto de

supor que o preço exigido me parecera demasiado alto,

que eu tenha sido mais avarento com algo que era só meu

do que o fora antes com ouro. — Não, Adelbert; a minha

alma estava tomada por um ódio insuperável contra aquele

embusteiro enigmático de caminhos tortuosos. Pode ser

que eu estivesse sendo injusto, mas qualquer coisa em

comum com ele me revoltava. [...]. Depois, eu aprendi a

respeitar essa necessidade como uma ordem sábia que

atravessa todo esse imenso mecanismo no qual nós

intervimos como meras peças componentes, impulsionando

algumas e sendo impulsionadas por outras. O que tem de

ser, acontece; o que tinha de ser, aconteceu — e não sem

aquela ordem que por fim aprendi a respeitar em meu

destino e no destino daqueles que estão ligados a mim.

(CHAMISSO, 1989, 62)

Após o mistério, retoma-se a cena e o leitor descobre que,

no momento de fechar o negócio, Peter desmaia. O

desfalecimento impede que acompanhe o casamento de Rascal com

a que fora sua amada e atrapalha os planos daquele que contava

com a sua ira para conseguir a assinatura do contrato. Uma vez

recomposto da perda de sentidos, foge. No entanto, o homem de

casaca cinza não desiste de persegui-lo e só o abandona após

deixá-lo diante da casa que o abrigava e que, agora destruída,

torna-se um refúgio antes da sua partida definitiva. No espaço

arruinado, encontra Bendel e o criado fiel lhe revela os

episódios acorridos ao longo da ausência do dono. Temeroso de

envolver mais um indivíduo inocente em seus infortúnios, o

jovem sem sombra decide partir, porque, como ele diz, ―nesta

terra eu já não tinha mais nenhuma meta, nenhum desejo,

nenhuma esperança. (Ibidem p.65).

É notória a atuação do diabólico nos momentos de maior

vulnerabilidade do sujeito. Se no início da trama toda a falta

de esperança estava atrás de si, no passado, por chegar numa

cidade em busca de novas oportunidades, agora já não há mais

expectativa em relação ao futuro. A perda da mulher amada e o

exílio ilustram situações nas quais a posse de dinheiro não

oferece resolução, somente a recuperação da sombra as

reverteria. Na fresta da crise o diabo encontra os meios de se

infiltrar e, quando não consegue, evidencia o seu vínculo

Page 111: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

111

sempre presente no mundo dos viventes. As ofertas atrativas

para os que experimentam a vida terrena provem do farejar

mefistofélico dos odores de desejos exalados pelos humanos.

Diante da impossibilidade de realizá-los, eles se rendem à

concessão de uma parte de si, aparentemente não utilitária,

para alcançar o objeto almejado. Logo, se o próprio desejo

move os indivíduos, a figura do diabo é sempre atual. Chega-se

à conclusão que, a desesperança é um fator contraproducente

para o homem de casaca cinza. Com Schlemihl essa relação não é

diferente:

O senhor tem o meu ouro e eu a sua sombra; isso não dará

sossego a nenhum de nós. — Já se ouviu falar alguma ves

de uma sombra que tenha desistido de seu dono? A sua me

arrastará atrás do senhor até que consinta em aceita-la

de volta e eu venha então me livrar dela. O que o senhor

poderia ter feito no início com prazer, terá de fazê-lo

por aborrecimento e tédio, só que demasiado tarde;

ninguém escapa ao seu destino‖. (CHAMISSO, 1989, p. 63)

A última tentativa de aproximação é a camuflagem na figura

de um viandante que segue por algum tempo o percurso de

Schlemihl a cavalo. Mais uma vez, direciona elogios ao homem e

enaltece o poder dos ricos, além de se tornar uma companhia

agradável ao longo de um caminho tão penoso. Através de um

monólogo, expõe reflexões existenciais, apesar de confessar

não ter ―inclinação para especulações filosóficas‖ (Ibidem,

p.67), e consegue cativar não só o entendimento daquele que o

ouve, mas também a sua alma. Porém, assustado com a

possibilidade de o companheiro perceber a sua condição durante

o alvorecer, Schlemihl lança seu olhar para o cavalheiro e

detecta, novamente, a presença enigmática daquele que há

tempos o assedia. Com a autorização do desfortunado, ele

permite o reencontro da sombra com o antigo dono, o que lhe

causa desconforto por ter que pedir por empréstimo algo que

lhe é próprio. Desta vez, a estratégia do diabo é prendê-lo

por meio da sombra até que aceite a contraproposta da venda da

alma. Porém, esta nova tentativa também fracassa, pois mesmo

ciente de que um homem rico sem sombra não tinha possibilidade

Page 112: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

112

de inserção social, ele estava seguro de que, após sacrificar

até o seu amor não firmaria aquele pacto ―nem por todas as

sombras do mundo‖. (Ibidem, p.70)

Pressentindo a frustração do acordo, o que porta a casaca

gris enrola o objeto adquirido e expõe todo o lado sombrio de

Schlemihl que se manifestou desde o dia em que vendeu a

própria projeção. Mesmo sob a acusação de ser um homem pior do

que o próprio diabo, o protagonista exige a separação

definitiva de ambos, mas o último diz que – apesar do

afastamento provisório - sempre estará disponível mediante o

tilintar das moedas da bolsa de Fortunato, afinal: ―Neste

mundo, cada um só pensa em suas próprias vantagens‖ (p.71).

Ele também expressa o bom relacionamento que mantém com os

ricos devido a postura sempre subserviente que mantém e, antes

de ir, revela ter um acordo com Thomas John, o dono do casarão

onde Schlemihl busca a sorte no início da novela.

Após a declaração, Schlemihl esconjura o ser e lança a

bolsa em direção ao abismo. Ainda que a sombra e dinheiro lhe

faltem, há o resgate de alguma alegria. A impossibilidade de

viver entre os homens, faz com que busque refúgio na parte

mais escura da floresta e se encaminhe em direção a uma mina

para trabalhar debaixo da terra, porque acredita que apenas um

ofício duro poderia livrá-lo do pensamento destrutivo. Uma vez

que seus calçados foram produzidos para o uso de um nobre,

tratou de buscar, em uma quermesse, um par novo e mais

resistente para suas andanças. Os altos preços o levam a

comprá-los não nas barracas de produtos novos, mas nas mãos de

um ―menino bonito de cabelos louros e encaracolados‖ cujas

botas, apesar do uso, pareciam mais robustas. A figura

angelical lhe entrega o par mediante a um preço baixo e lhe

deseja sorte. Quando calça as botas, percebe que os cenários

mudam com velocidade e conclui ter adquirido a bota de sete

léguas.

Page 113: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

113

Encaminhando-se para a conclusão da narrativa, observa-se

que, com o par de calçados, Schlemihl explora o mundo em suas

diversas faces. A negação à contraproposta mefistofélica lhe

garante uma possibilidade nova em relação ao futuro que se

abre através de uma perspectiva diversa, ele afirma: ―a terra

foi-me dada como um rico jardim, o estudo como direção e força

de minha vida e como meta, a ciência‖. Após andanças por todos

os continentes, sua saúde é afetada e, pela primeira vez,

retoma o contato com os homens. Uma pancada na cabeça lhe tira

os sentidos e quando retoma a consciência o protagonista

percebe estar num lugar designado ―Schlemihlium‖ em homenagem

ao doador e benfeitor da instituição. Reconhecendo Bendel e

Mina, descobre que o primeiro fundou o hospital em sua

homenagem e a segunda, depois da viuvez, decide dedicar sua

caridade aos convalescentes que o povoam. Ele ouve a conversa

da amada com o amigo e fica ciente de que Mina recuperou a

alegria do passado e do presente. Com a saúde regenerada,

Peter parte sem se identificar, mas deixa um bilhete em que

repete, inicialmente, a frase proferida pela amada e

acrescenta o que destaco em itálico: ―Também vosso velho amigo

vive agora melhor do que naquela época; e se, ele expia,

trata-se de uma expiação que reconcilia‖ (CHAMISSO, 1989, p.

85)

O silêncio é o elo que une o reencontro entre as três

personagens que se reconciliam consigo e com os demais. A

volta ao lar é brindada pela presença do cachorro que agora o

acompanha como um fiel amigo. Com o estojo de botânica e as

botas, explora o mundo a sua maneira – catalogando as diversas

espécies de plantas - até sentir que a força do corpo, aos

poucos, extingue-se. Ele garante que, antes da sua morte,

buscará uma maneira de entregar seus manuscritos sobre a fauna

para a Universidade de Berlim. A autobiografia, por sua vez,

assegura ao amigo Adelbert von Chamisso a quem ele confia sua

Page 114: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

114

história maravilhosa para servir de ensinamento às gerações

vindouras. Com este fim, ele adverte:

Mas você, meu caro amigo, se deseja viver entre os

homens, aprenda a respeitar em primeiro lugar a sombra —

somente então o dinheiro. Mas se quiser viver apenas

para você e o que há de melhor em seu interior, então

não precisa de qualquer conselho. (CHAMISSO, 1989, p.87)

O ponto final acende o lampião responsável por evocar as

diversas sombras presentes na narrativa. As projeções que

ganham vida com o fim da leitura não são estáticas como

aquelas projetadas por luz fluorescente, mas contém a vida

pulsante do trepidar do fogo. Talvez este seja o vestígio

deixado, propositalmente, pelo diabólico com o fim de nos

seduzir através das silhuetas umbrosas que ora nos acompanham

ora nos assombram no universo da literatura. Ao longo de pouco

menos de cem páginas, conhecemos a história de Schlemihl e

verificamos, como afirma o poeta brasileiro Manuel de Barros,

que a importância de uma coisa se mede através do encantamento

que produz em nós27. Isto é, embora estejamos imersos numa

sociedade que nos ensina a mensurar a vida em todos os seus

aspectos, é preciso estar atento, porque o valor das coisas

está para além de qualquer redução matemática. Ele mantém uma

relação viva com as pessoas e com o mundo e nem sempre é

expresso através de cifras. Por isso, cada leitor é capaz de

atribuir uma representação diferente para a sombra de

Schlemihl e, ao fim da narrativa, questionar-se a respeito da

prisão que ainda o impede de calçar as botas de sete léguas

capaz de conduzi-lo para alguma liberdade, mesmo que, em seu

âmago, uma ausência ainda se instale.

É imprescindível assinalar que as sombras não povoam

somente o conteúdo do livro, mas também se expressam na

composição de suas edições. Na tradução brasileira publicada

27 ―Falou mais: que a importância de uma coisa não se / mede com fita

métrica nem com balanças nem com/barômetros etc. Que a importância de uma

coisa há/ que ser medida pelo encantamento que a coisa produza/ em nós.

Assim um passarinho nas mãos de uma criança/ é mais importante para ela do

que a Cordilheira dos/ Andes. [...]‖ (BARROS, 2015, p.152)

Page 115: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

115

pela Estação Liberdade, três cartas antecedem a novela: a

primeira e a segunda, respectivamente, de Adelbert von

Chamisso e Friedrich Baron de laMotte-Fouqué a Julius Eduard

Hitzig e a terceira do último a Fouqué. Datadas dos anos de

1813, 1814 e 1827, revelam a relação amistosa que há entre o

trio e versam, principalmente, sobre a divulgação da obra. Na

primeira, Chamisso escreve sobre a figura de Schlemihl como um

conhecido frequente em seu entorno, confia um caderno ao

amigo, no qual consta a confissão deste homem sincero,

assinala a impressão de ingenuidade na elaboração do texto por

não ser realizada por uma pena mais habilidosa e mostra

precaução para que a história não se exponha sob a forma de

obra literária para não ser ―colocada no pelourinho‖. Além

disso, ele afirma que o manuscrito chegou às suas mãos por

meio de um homem vindo de Berlim. O teor da epístola revela o

receio do autor de tornar o texto público e sugere, pela

descrição daquele que o procurou para confidenciar a história,

que a narrativa lhe é concedida pelo próprio Schlemihl, já em

idade avançada e ainda em suas andanças:

Elas me foram entregues ontem pela manhã, quando

acordei; um homem esquisito - com uma longa barba

grisalha, vestindo uma Kurtka negra completamente puída,

sobre a qual tinha amarrada um estojo de botânico e que,

naquele tempo úmido e chuvoso, usava chinelos por cima

das botas – perguntou por mim e me deixou isto. ‖

(CHAMISSO, 1989, p.8)

Na segunda carta, Fouqué declara a Hitzig a decisão de

mandar imprimir a obra. Ele acredita que na Alemanha há

leitores capazes de entender Schlemihl e confia na sua

experiência a respeito de que: ―existe para os livros

impressos um gênio que os conduz às mãos certas e, se não

sempre pelo menos com muita frequência, os mantém distância da

errada‖. (FOUQUÉ In CHAMISSO, 1989, p.9). O tom é de convicção

na aceitabilidade da narrativa. Por sua vez, Hitzig manifesta

certa irritabilidade a respeito do que ele afirma ser uma

decisão desesperada do amigo em imprimir a história de

Page 116: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

116

Schlemihl. Vale assinalar que a preocupação não se refere,

necessariamente, à qualidade do escrito, mas sim à

reprodutibilidade ampla, bem como a tradução, de um segredo

confiado apenas àqueles homens. Porém, há um reconhecimento de

que a propagação da história propiciou a difusão do amor por

aquele pobre indivíduo. Após exemplificar o sucesso do texto

tanto com o entusiasmo de Hoffman quanto da aceitação

infantil, agradece ao amigo pela organização da primeira

edição do livro e o felicita também pela segunda.

Em meio aos paratextos iniciais, também se encontra um

poema de Chamisso para Peter Schlemihl. Segundo a nota de

Marcus Vinicius Mozart, tradutor da obra para o português, a

composição dos versos se destina à terceira edição do livro

publicada em 1835. Intitulado Ao meu velho amigo Peter

Schlemihl, o eu-lírico relembra o tempo em que eles eram

amigos e reconhece a diferença com a qual o Tinhoso os tratou.

Ademais, demonstra solidariedade ao sofrimento do seu

companheiro e a empatia o leva a questionar a respeito da

semelhança existente entre ambos. A última estrofe se ocupa de

reforçar o laço entre os amigos e exprimir a necessidade de

que, após toda a tempestade, sigam as suas vidas e não se

envolvam em demasia com as coisas do mundo. Vale dizer que, a

proposta de afastamento das questões coletivas ganha força

após a declaração da inquietação pública diante da sombra.

Reproduzo a penúltima oitava na qual se demonstra a ebulição

provocada pela metáfora:

O que é afinal a sombra? — gostaria agora de perguntar

Como já tantas vezes me foi perguntado.

Avaliá-la por um preço tão desmesurado

Como o implacável mundo não deixou de fazer?

Isto se impõe depois de dezenove mil dias que,

Acumulando sabedoria, atravessaram nossas vidas.

E nós, que conferimos outrora à sombra de um ser.

Vemos agora o ser passar como sombra. (CHAMISSO, 1989,

p.13)

Às cartas e ao poema, somam-se as ilustrações do artista

gráfico Emil Pretorius e o posfácio composto por um texto de

Page 117: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

117

Thomas Mann datado de 1911. Conforme se observa, a edição é

repleta de paratextos cuja presença influencia a recepção do

leitor. Através um jogo de luzes que incidem em direção à

narrativa, verifica-se o surgimento de diversas sombras. Como

um mercador, o editor garante uma abertura espectral do texto

que nos oferece, meio pelo qual exalta as qualidades e

confidencia, inclusive, uma certa singularidade da trama, com

o fim de nos vender algumas perspectivas de leitura. É preciso

ser prudente para não se deixar seduzir pelo exímio negociante

e, assim, sair no prejuízo no comércio da interpretação. No

diálogo com outras sombras, encontramos o valor existente

naquela a que damos vida após o contato com a história.

As conjecturas a respeito da motivação de produção da obra

e as leituras possíveis do texto são infindáveis. Todas se

enveredam em direção à mesma pergunta: o que significa a

sombra e a sua perda em A história maravilhosa de Peter

Schlemihl? A polissemia oriunda da indagação revela a

habilidade do escritor para construir uma narrativa capaz de

se ressignificar ao longo do tempo e suscitar apreciações

críticas distintas cujos desdobramentos culminam em reflexões

não apenas sobre as angústias do homem – seja pelo sentimento

de (não)pertencimento à pátria seja pela inserção e

reconhecimento do indivíduo na dinâmica instalada em seu

entorno – mas também sobre a nova ordem social instalada com o

advento do capitalismo. Segundo Thomas Mann, o autor exprime

no prefácio da edição francesa que a obra caiu em mãos que

apenas se preocupam em encontrar o significado da sombra. No

mesmo texto, encontra-se a definição de sombra expressa por um

alfarrábio erudito e, em seguida, a ideia de sombra que

Chamisso almeja transmitir através da novela:

a sombra propriamente dita representa um sólido cuja

forma depende ao mesmo tempo da do corpo luminoso, da do

corpo opaco e da posição deste em relação ao corpo

luminoso. A sombra considerada sobre um plano situado

Page 118: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

118

atrás do corpo que a produz, não é outra coisa senão a

secção deste plano no sólido que representa a sombra.28

―É deste sólido‖ que se trata na história maravilhosa de

Pierre Schlémihl. A ciência das finanças nos instrui

suficientemente sobre a importância do dinheiro; a da

sombra é menos reconhecida no geral. Meu imprudente

amigo cobiçou o dinheiro, cujo valor ele conhecia, e não

pensou no sólido. A lição – que pagou caro – ele quer

nós aproveitemos e sua experiência nos conclama: pensai

no sólido. (CHAMISSO, 1989, p.109)

Conforme ilustra o trecho, Chamisso nos adverte através de

Schlemihl: Songezau solide. No entanto, nós, leitores, como já

dito, devemos estar atentos ao que o editor nos oferece, pois

os atravessamentos podem nos afastar do caminho que traçamos

até então, seja para nos apresentar atalhos seja para

confundir a chegada ao destino. Como afirma Simone de

Beauvoir, um bom ficcionista é, acima de tudo, um ótimo

trapaceador, por isso é fundamental estar sempre alerta às

suas estratégias. Porém, como ávidos participantes do jogo

literário apostamos nossas fichas na exposição de Schlemihl,

uma vez que a explicação contém a dubiedade necessária para

não oferecer respostas, mas sim possibilidades múltiplas de

leitura. Num primeiro aspecto, convoca a ciência para elucidar

a definição de sombra, posteriormente, acessa à ficção para

ilustrar a importância de valorizá-la numa sociedade cujo

protagonismo está no dinheiro. Em seguida, conclama o prezar

ao sólido, contudo, não revela diretamente em que ele

consiste. A única pista é que não se encontra entre o

dinheiro, o instrumento que, paradoxalmente, nos permite

adquirir coisas materiais.

É preciso acessar as sombras do termo ―sólido‖ para

assimilar o conselho de Chamisso. A solidez ao que o autor se

refere não corresponde, necessariamente, à materialidade dos

corpos, como se aprende nos domínios da Física. Ela se associa

às esferas do que oferece ao homem resistência, estabilidade e

28 Thomas Mann apresenta a seguinte referência: HAUY, Traitéélémentaire de

physique. TI. §§1002 et 1006.

Page 119: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

119

firmeza. Isto é, um campo semântico que sugere integridade

composto por vocábulos que remetem aos aspectos substanciais

que fundamentam o substantivo ao qual se associa. Assim,

precisamos alcançar o valor mais figurativo que está para além

do que, à primeira vista, o termo denota. Outra vez, coloca-se

o leitor à prova, uma vez que ele é provocado a buscar o

essencial para além daquilo que reluz imediatamente. Senão, é

capaz de se enveredar por trilhas que o despistam. Afinal, uma

primeira leitura nos leva à confusão já que a narrativa indica

a valorização da sombra e o texto introdutório do autor aponta

para o sólido.

É fundamental assinalar também que a novela é ambientada

na atmosfera do Romantismo Alemão. Tomando como base os

estudos apresentados em Revolta e Melancolia: O romantismo na

contracorrente da modernidade, acredita-se na concepção de que

a perda da sombra configura uma crítica à modernidade,

principalmente porque sinaliza uma postura contestadora em

relação ao modo de vida imposto pelos princípios

socioeconômicos que começam a entrar em voga na Europa.

Conforme os autores expressam, a sensibilidade romântica ―é

portadora de um impulso anticapitalista‖, tendo em vista que o

próprio ―romantismo [o] é por essência‖. (LOWY; SAYRE, 2015).

A dor de viver sem uma projeção umbrosa eclipsa a promessa

de inserção social através do poder financeiro que adquire por

meio do negócio com o ser mefistofélico. Através da construção

do enredo – desde a chegada de Schlemihl à cidade onde

encontra o Sr. John e seu grupo até a aquisição da bota de

sete léguas após resistir à contraproposta do homem de casaca

cinza e eliminar a bolsa que o vincula a si - Chamisso promove

uma reflexão ampla a respeito das relações que se estabelecem

na sociedade onde o capital reina. A valorização da aparência,

o egocentrismo e a ganância são alguns dos temas em questão.

Além disso, demonstra, como afirma Robert Muchembled, que ―o

diabo é sempre filho de seu tempo‖ (MUCHEMBLED, 2001, p.287).

Page 120: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

120

No cenário do século XIX, ele circula e se camufla entre os

indivíduos, como o mais normal dos seres, sem a configuração

horripilante da Idade Média e garante a sua atuação devido a

vaidade pulsante no período em questão.

Considerando a sistematização do estudo de Lowi e Sayre,

nota-se que a narrativa de Chamisso congrega algumas

tendências comuns às obras produzidas neste contexto, como: o

retorno ao lar ou a um tempo findo – não são poucas vezes que

Schlemihl regressa à casa depois de uma batalha contra a sua

condição e não encontra o abrigo que procura devido à

destruição desta ou a perseguição de terceiros. Segundo os

pesquisadores, este passado também pode se manifestar através

do fantástico e, como vimos, os elementos das lendas alemãs

perpassam o enredo em diversos momentos; o restabelecimento do

paraíso no presente por meio do deslocamento espacial, aspecto

que aparece no final quando Schlemihl reencontra a felicidade

ao conhecer o mundo através das botas de sete léguas; o

encaminhamento de uma realização futura e real, manifesto na

entrega do manuscrito para Chamisso com o fim de alertar à

geração futura sobre o perigo de negociar o que lhes é mais

essencial em troca de dinheiro e a intenção de destinar a

catalogação de dados naturais que colheu em suas andanças para

a universidade contribuindo, desta maneira, para o

enriquecimento do conhecimento do homem sobre o mundo em que

habita e que é fundamental para a sua existência; finalmente

um último aspecto é a dialética entre a unidade e a totalidade

que se expressa na exclusão do indivíduo da comunidade seja

pelo dinheiro seja pela falta de sombra.

Através deste tema, destaca-se que o valor de uma coisa

não deve ser medido apenas através da indicação imediata de

seus domínios, porque ele se associa a um entorno sobre o qual

afeta e é afetado. A problematização precisa se expandir para

os domínios que transbordam ao objeto a que se inclina, por

isso é importante não se restringir somente ao significado

Page 121: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

121

singular da sombra, mas ampliar nossa leitura às

representações possíveis da inserção deste elemento no

ficcional. De igual maneira, é imprescindível ir além da

unidade do capital e do modo capitalista e questionar as

implicações da sua introdução em determinada sociedade. Assim,

provocados pela narrativa de Chamisso, questiona-se: estamos

dispostos a vender o que temos de mais essencial em prol do

império do capital? A publicação da história de Schlemihl data

do século XIX e esta tese acadêmica ganha contornos em

princípios do século XXI; não tenho resposta para a pergunta

que se coloca desde então, mas posso adiantar que as

negociações estabelecidas neste intervalo temporal têm sido

custosas aos homens. Já vendemos algumas das nossas sombras e,

progressivamente, caminhamos para a extinção que nos provará

que também estamos negociando a alma neste comércio perverso.

À luz dos debates realizados pelos primeiros românticos

alemães acerca da obra de arte, entende-se que A história

maravilhosa de Peter Schlemihl consiste num gérmen de

pensamento capaz de transbordar a própria forma. Independente

da interpretação conferida à novela, a tensão presente ao

redor da recuperação, ou não, do perfil umbroso por parte do

protagonista e as projeções metafóricas que a compõem garantem

uma qualidade capaz de diferenciá-la entre as demais tramas

nas quais ocorre a venda de um componente imaterial que se

associa ao corpo humano. Adelbert von Chamisso nos enreda num

universo caleidoscópico em que a todo momento somos

questionados sobre o quanto já não vendemos do que nos é

essencial em favor de uma inserção que, ao fim, nos exclui.

Somente um diálogo com as sombras, no viés mais junguiano dos

termos, permite que alcancemos algumas respostas (ou mais

provocações) para esta pergunta.

Page 122: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

122

3.3. Júlia e sua sombra de menino:o jogo de pique-esconde

[...]a realidade de hoje está fadada a se revelar a

ilusão de amanhã. E a vida não se ajusta. Não se pode

ajustar. Se amanhã se ajustar, estará acabada.

(Luigi Pirandello)

Sob a luz natural do sol ou do luar sob a artificialidade

do fogo ou das lâmpadas da modernidade, o homem sempre carrega

consigo uma companhia: a sombra. Um duplo umbroso de si cuja

posição se contrapõe à direção da fonte luzente. Se ela está à

frente, a sombra escapa para trás e vice-versa; um

deslocamento para o lado e, rapidamente, a silhueta desliza

para o outro. Tendo os pés como ponto de contato, ela também

brinca com o ponto luminoso para definir o tom de sua aparição

e a proporção de seus domínios. Ao menos que haja escuridão

plena ou se estabeleça um contexto fantástico, a sombra nos

segue em silêncio e repete cada um dos nossos movimentos,

mantendo a forma do perfil corporal que lhe dá vida. A

discrição que lhe é própria faz com que, frequentemente, não

notemos a sua presença. Porém, vez ou outra, a filosofia e a

arte nos lembram da figura estranha que nos escolta.

A inspiração para o capítulo em composição advém d‘ O

andarilho e sua sombra, de Friedrich Nietzsche. Nos aforismos

iniciais, precisamente no quinto e no sexto, o filósofo trata

do simulado desprezo dos homens pelas coisas que estão mais

próximas, o que faz com que acreditemos na irrelevância de

refletir sobre elas. Esta atitude em relação ao mais

cotidiano é prejudicial ao humano e demonstra o mau

direcionamento da razão, uma vez que evidencia o afastamento

entre o pensamento e os âmbitos mais ordinários da vida. A

negligência do comum em benefício da valorização do abstrato é

uma denúncia contra o idealismo e, através do resgate de

Sócrates e Homero, o pensador alemão incentiva um retorno do

olhar reflexivo para aquilo que nos ronda habitualmente.

Page 123: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

123

Depois de percorrer as trilhas das sombras que ganham vida

com o fim da força vital do corpo e daquela na qual a cisão se

efetiva devido à venda da silhueta, a análise do atual

capítulo - inspirada pelas ideias nietzschianas de

reconhecimento do mais próximo - concentra-se na sombra que

convive com o seu dono. Contudo, ela se diferencia na medida

em que não se contenta em somente escoltá-lo silenciosamente

em ambientes onde a luz está presente, mas o provoca a

estabelecer um diálogo com o que lhe é mais intrínseco. Neste

aspecto, a sombra o instiga de um lugar privilegiado, porque é

possível concebê-la tanto externamente como a projeção do

corpo que o indivíduo carrega pelo mundo quanto na dimensão

interna representando o arquétipo que Carl Gustav Jung indica

nas suas investigações correspondente ―à parte negativa da

personalidade‖ de um indivíduo ou de uma sociedade29.

No diálogo precedente aos fragmentos filosóficos de

Nietzsche, o andarilho se assusta diante da percepção de uma

voz mais fraca do que a sua e capaz de transmitir uma sensação

próxima a uma escuta de si que o convoca a falar. Ele

manifesta descrença ao constatar que o chamado provém da sua

sombra, mas ambos concordam a respeito da tarefa vã de

problematizar a excepcionalidade da conversa e com o fato de

que é necessário, sobretudo, enfatizar o desenvolvimento do

jogo de falas alternantes. Por isso, tratam de seguir a

interação abordando aspectos que lhes são próprios como bons

amigos que ―trocam de vez em quando, como sinal de

compreensão, uma palavra obscura que deve ser um enigma para

uma terceira pessoa‖ (NIETZSCHE, 2008, p.109) Neste caso, o

leitor figura como o interlocutor responsável por decifrar as

entrelinhas tecidas pela cumplicidade dos camaradas.

A partir do texto introdutório, Nietzsche apresenta uma

possibilidade da relação do homem com o que o cerca através do

29 Sabe-se que a teoria de Jung aborda tanto a sombra individual e coletiva,

mas enfatizaremos aqui os domínios da primeira.

Page 124: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

124

contato entre o andarilho e sua sombra. O apelo da silhueta no

contexto mencionado é sonoro e indica o meio pelo qual a

companheira tão próxima utiliza para atrair o olhar de seu

dono. No entanto, o convite também pode ser propiciado por

outros modos de atração, conforme veremos mais adiante, como a

sombra de Julia que modifica os seus contornos, ganhando

traços de menino, com o fim de dialogar com questões internas

da protagonista. Nota-se que, nos textos citados, o duplo traz

à tona assuntos íntimos do sujeito que o reflete, o que

corrobora a ideia de uma instância presente externa e

interiormente no homem. Ademais, o encontro se efetiva não

apenas pela palavra, mas também pela imagem, numa instigação

silenciosa.

O conteúdo abordado na troca dialógica do filósofo é de

extrema valia para a nossa análise. Os interlocutores estão de

acordo a respeito da relação de complementaridade entre pares

que outrora foram apresentados como opostos. Segundo o

andarilho, luz e sombra, por exemplo, não são rivais, mas

parceiras na formação da beleza, da comunicação eficiente e da

constituição moral do homem. A coexistência entre ambas é

objeto de exaltação das duas partes, pois concordam que é em

um cenário permeado pelo claro-escuro que o homem desenvolve o

seu conhecimento. O único âmbito pouco apreciado entre eles é

a escuridão onde se valida a cumplicidade entre luz e sombra,

porque ―quando a luz desaparece, a sombra lhe vai atrás‖

(NIETZSCHE, 2008, p.109). Enquanto o andarilho exalta as

propriedades da sombra, ela enaltece os homens e os designa

como ―discípulos da luz‖, devido a ânsia que lhes é própria de

desvelar o mundo. Além disso, revela também ser ela a zona

umbrosa projetada pelos objetos no momento em que ―os raios do

sol do conhecimento‖ se debruçam sobre os tais.

Salientam-se duas lições do texto de Nietzsche para o

debate que virá. A primeira consiste no reconhecimento do

valor epistêmico daquilo que nos é mais corriqueiro e a

Page 125: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

125

segunda remete à compreensão de que ideias e conceitos

distintos não são opostos, mas constituintes de uma

pluralidade que, em suas diferenças, enriquecem os nossos

saberes. É importante buscar as sombras que se formam diante

de cada elemento tocado pela luz, pois é apenas neste

movimento que alcançamos uma maior dimensão da realidade que

nos cerca. Por isso, ao modo dos viandantes – outra tradução

possível para Der Wanderer– aventuro-me pelas trilhas da

literatura infanto-juvenil cujos domínios ainda se configuram

para mim como uma floresta frondosa. Muitas vezes menosprezada

e outras até desconsiderada no rol da alta literatura, ela é

um dos primeiros contatos que estabelecemos com o literário e

não deve ser ignorada na importância da formação espiritual do

homem.

Através de narrativas escritas ou orais, ingressamos no

mundo ficcional e nos vinculamos com a esfera do imaginário. À

luz dos escritos de KarlheinzStierle sobre a ficção, acredita-

se que estas duas instâncias – ficção e imaginação - correm em

paralelo e dialogam com o real para se tornar experimentável

para o homem. Portanto, o contato com o âmbito literário na

infância e na juventude propicia um manejo com a experiência

subjetiva de forma que a relação do ser com o meio se amplia

da interação do indivíduo com as coisas concretas para uma

associação com as ideias do abstrato. Desta forma, há uma

reconstrução do elo entre o ser e o mundo não apenas através

da percepção física, mas também por intermédio da elaboração

representacional.

Um percurso breve pela história da literatura voltada para

crianças e jovens demonstra que este tipo específico de

narrativa não se concentra apenas no âmbito lúdico da

experiência literária. Uma vez que a sua produção é elaborada,

majoritariamente, por adultos há uma inserção de valores de

determinada sociedade ou grupo– como os contos de Charles

Perrault no século XVII nos quais se encontram precepções

Page 126: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

126

morais – e a promoção de uma consciência crítica responsável

por desconstruir, já no âmbito dos primeiros anos,

preconceitos sociais vigentes, o que está presente em enredos

modernos como o d‘ A história de Julia e sua sombra de menino,

texto sobre o qual nos ocuparemos no capítulo em andamento.

Considerando os aspectos apresentados a respeito das

trilhas da literatura infanto-juvenil, Christian Bruel surge

com uma proposta nova acerca do maravilhoso no fim do século

XX, na França. Parte do movimento ativista pós-68, ele se une

a outros especialistas – universitários, professores,

psicólogos, artistas, jornalistas – para formar um coletivo

cujo objetivo é refletir sobre o conteúdo da literatura

infantil. Após a análise dos livros voltados para este público

entre os anos 60 e 70, eles chegam à conclusão de que as obras

são extremamente conversadoras e difusoras de estereótipos.

Assim, o grupo se divide entre os que acreditam na necessidade

de que as crianças produzam seus próprios livros e aqueles, no

qual se encontra Bruel, que defendem a elaboração de conteúdo

por adultos, porém investindo plenamente no campo cultural e,

como ele afirma, sem condescendência nem demagogia.

As ideias culminam no ―Manifesto por um outro maravilhoso‖

publicado no jornal Libération na década de 70. A partir da

divulgação, 32 pessoas entram em contato com o grupo para

participar do projeto, entre elas está a ilustradora Anne

Bozellec que localiza o autor naquele momento em que deseja

voltar para a França após morar na Colômbia onde trabalhou no

mercado dos livros. Ela será a responsável pela composição

gráfica da primeira obra oriunda deste trabalho: Histoire de

Julie quiavait une ombre de garçon. Escrita por Christian

Bruel e Anne Galand, ambos sem formação na área editorial, o

livro é impresso em 1975 sob a marca ―coletivo por um outro

maravilhoso‖ e, em um ano, vende mais de 5000 exemplares.

Segundo o relato do autor em entrevista à NathalieBeau et

Page 127: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

127

ÉlianeMeynial30, onde buscamos a maior parte das informações

mencionadas, a distribuição dos exemplares foi artesanal e se

efetivou em meio às redes militantes da sociedade através de

um catálogo com um formulário de pedido em anexo para cada

livro.

Bruel declara em entrevista que, mesmo antes da criação

oficial da editora, a comissão responsável pelas publicações

destinadas às crianças envia uma carta de repúdio para o grupo

onde alega que o livro viola os artigos da lei de 194931, além

de caracterizá-lo como ―mórbido‖, ―triste‖ e ―pornográfico‖. É

notório que a denúncia advém de a obra conceber uma ideia mais

progressista no que concerne não só a literatura infanto-

juvenil, mas também a própria noção de infância e juventude.

Uma vez que a proposta do grupo consiste na compreensão do

mundo por meio de materiais que estimulam o questionamento e a

reflexão, os setores conservadores se ocupam de reprimí-lo com

o fim de não colocar em risco os próprios meios de dominação

que detêm.

A editora Le sourirequimord surge em 1976 com o objetivo

de fazer livros acessíveis às crianças, mas sem se direcionar

exclusivamente para este público. O grupo colaborativo que a

compõe acredita que a infância e a juventude devem ser

acolhidas na comunidade de formadores de sentido do mundo, ou

seja, é necessário que elas ingressem no universo das

representações não apenas por meio do ambiente de pureza, mas

também da realidade social instaurada. Em uma fala concedida à

Associação Francesa de Leitura, Christian Bruel afirma que é

possível abordar todos os tipos de temas com este público. Ele

acredita na capacidade de crianças e jovens fazerem uma

leitura ativa e denuncia que esta atividade reflexiva,

30 Publicada no número 212 d‘ La revuedes livres pour enfants. 31 Christian Bruel se refere à lei n° 49-956 de 16 julho de 1949 sobre as

publicações infanto-juvenis. Fac-símile disponível em:

https://www.legifrance.gouv.fr/jo_pdf.do?id=JORFTEXT000000878175. Acesso em

04/04/2017.

Page 128: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

128

geralmente, é eclipsada por uma postura adulta que menospreza

a habilidade intelectiva dos leitores mais jovens.

Verifica-se, a partir do apresentado, o propósito de criar

uma literatura acessível à recepção infanto-juvenil que esteja

comprometida com os conflitos presentes na realidade social na

qual o público em questão está inserido. Na primeira obra

lançada pelo grupo, traduzida para o português brasileiro como

A história de Júlia e sua sombra de menino, a narrativa se

concentra no cotidiano de uma criança do sexo feminino cujo

comportamento não expressa marcas de feminilidade. Como não

cumpre a expectativa dos modos designados ao papel social de

gênero que lhe atribuem, os pais constantemente a criticam e,

por isso, ela coloca em indagação a própria identidade. O

texto de Christian Bruel e Anne Galland em conjunto com as

ilustrações em preto e branco de Anne Bozellec abordam

questões referentes à identidade de gênero, ainda tão

polêmicas em nosso tempo, de forma compreensível aos mais

jovens.

A história é apresentada por meio de um texto híbrido,

quero dizer, diálogos diretos se intercalam com a narração em

3ª pessoa que ora se apresenta em prosa ora em versos. Nas

páginas iniciais, o autor ambienta a narrativa num quarto de

criança situado num lar em meio à cidade. Diferente do cenário

dos contos de fada onde a trama se desenvolve em reinos

distantes, o ambiente do drama de Júlia é semelhante àquele em

que vivem muitas crianças urbanas. Logo, o enredo de Bruel

escapa dos domínios do fantástico, imiscui-se na esfera da

realidade e, através da verossimilhança, propicia o diálogo do

imaginário no coração da existência. Desta forma, provoca o

leitor à criação de outras possibilidades de realização do

mundo em que habita sem precisar se transportar,

necessariamente, para o universo mágico.

A ilustração referente ao quarto de Júlia tampouco

idealiza o espaço, pois ela representa a desordem comum ao

Page 129: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

129

dormitório infantil. Roupas espalhadas, restos de alimentos,

materiais de escola estão em meio ao mobiliário e se

identificam brinquedos variados desde bola e boneca até

carrinho e materiais para tricô. Nota-se que não há uma

caracterização do lugar de acordo com o papel social de gênero

da criança. É neste cenário que se estabelece o primeiro

diálogo entre a protagonista e sua mãe. Questionada sobre a

necessidade de usar os patins para ler e a respeito de sua

insistência de querer fazer as coisas de forma diferente, a

criança responde: ―— Eu não sou como todo mundo, mamãe. Eu sou

a Júlia! ‖. Logo, o primeiro contato do leitor com a

personagem é através da marcação de sua individualidade em

contraponto com os demais. De maneira exclamativa, ela se

identifica de forma singular em relação ao magnânimo outro

representado pelo todo.

O autoposicionamento diante da interpelação materna contém

um elemento existencial, uma vez que a criança é colocada em

confronto consigo em meio à ordem social na qual está

inserida. A distinção através do desígnio de si como um ―eu‖

diante de uma totalidade que a antecede demarca o

reconhecimento de sua singularidade frente aos demais e, ao

mesmo tempo, uma indiferença em relação à normatividade que

lhe é exterior. Imbuída de uma liberdade característica do

universo infanto-juvenil, Júlia se apropria do status de

sujeito, dá vida aos seus desejos – ainda que não correspondam

aos preceitos estabelecidos - e confere autenticidade a sua

existência. No entanto, sob o olhar assimétrico da mãe, já

atravessado pelos valores morais, sua postura é inadequada.

Sabe-se que a discussão acerca do sujeito é um dos pilares

que sustentam a filosofia moderna. Transitamos entre aspectos

ontológicos, cognoscitivos, sociais e morais visando à

compreensão da nossa condição enquanto seres dotados de

pensamento capazes de transformar a si, o mundo e a humanidade

através das relações que estabelecemos. Contudo, a expressão

Page 130: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

130

identitária de Júlia no diálogo mencionado ainda não considera

a complexidade desta organização e se embasa naquilo que

Husserl designa como orientação natural da consciência no

mundo. Ela se situa a partir das experiências mais próximas,

tais como as defendidas por Nietzsche, e apresenta uma

resistência, ainda que não planejada, às facticidades

impeditivas da sua liberdade. Isto é, a personagem não se

molda às posturas que lhe são exigidas em busca de uma

socialização, mas defende a singularidade da sua identidade

diante do mundo.

Em seguida à frase exclamativa através da qual exprime a

própria individualidade, o narrador em terceira pessoa

reingressa na trama e tece algumas informações a respeito da

protagonista. Através da sua perspectiva, o leitor se torna

cônscio da personalidade de Júlia que ―não é lá muito gentil‖

tampouco ―mansinha‖ e ―sabe muito bem o que ela quer‖; do

comportamento da menina que ―chupa o dedo‖, ―nunca gostou de

se pentear‖ e ―vive se escondendo na espuma/só para não ter

que se banhar‖; da sua beleza contestadora, pois ―Júlia é

linda, mas onde se viu, /queria ter os cabelos vermelhos! ‖;

da relação afetuosa que estabelece com seu gato, parceiro nas

suas brincadeiras, e do seu desejo mais íntimo: ―Mas no fundo

o que ela gostaria / mesmo era de ganhar um beijo‖. Sob este

ponto de vista, percebe-se que a personagem age de forma

semelhante aos indivíduos de sua idade, sem a preocupação de

corresponder a qualquer padrão pré-estabelecido.

Consoante às características descritas, Júlia não se porta

com os traços de feminilidade esperados para crianças

classificadasbiologicamente como pertencentes ao sexo

feminino, como: docilidade, gentileza, vaidade e passividade.

Vale lembrar que esta expectativa é fruto de uma construção

sócio-cultural que, segundo Simone de Beauvoir, incide sobre o

indivíduo desde o período do seu desmame, momento em que há

uma ruptura da relação parasitária estabelecida com o Outro

Page 131: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

131

desde o nascimento. No capítulo d‘ O Segundo Sexo dedicado à

infância, a filósofa embasa os argumentos sobre a constituição

afirmativa da identidade a partir dos escritos lacanianos

acerca da ambiguidade do espetáculo que ronda a criança por

volta dos seis meses, isto é, quando percebe sua imagem diante

do espelho. Nesta fase, ela é, concomitantemente, um sujeito

autônomo capaz de transcender para o mundo e um objeto diante

dos olhos dos pais tal como se vê através do reflexo

especular. A associação entre estes dois estágios – o abandono

do seio que o acolhera até então e a autopercepção – resulta

na utilização do reconhecimento como forma de restabelecer o

elo perdido com este outro.

De acordo com Beauvoir, a distinção do comportamento entre

meninos e meninas é inexistente até os quatro anos. Ambos

atuam de forma semelhante na tentativa de seduzir este adulto

que ―tem o poder de lhe conferir o ser‖ (BEAUVOIR, 2009,

p.363). Passada esta idade, ocorre uma segunda ruptura na qual

as estratégias de aproximação começam a falhar devido ao

crescimento e ao desenvolvimento da criança. No que se designa

como ―um segundo desmame‖ o processo de desenlace com os mais

velhos efetua-se de maneira diferente para os dois sexos de

acordo com a intelectual francesa. A menina é autorizada a

prolongar o uso de suas tramas visando à atração do interesse

alheio e há uma tolerância maior com a manifestação das suas

expressões corporal e sentimental. Por sua vez, o menino é

tolhido com prontidão das artimanhas de agrado e, por isso,

ganha impulso para se libertar do olhar do outro e assumir a

sua independência. Cito as palavras da escritora:

Neste ponto é que as meninas vão parecer, a princípio,

privilegiadas. Um segundo desmame, menos brutal, mais

lento do que o primeiro, subtrai o corpo da mãe aos

carinhos da criança; mas é principalmente aos meninos

que se recusam pouco a pouco beijos e carícias; quanto à

menina continuam a acariciá-la, permitem-lhe que viva

grudada às saias da mãe, no colo do pai que lhe faz

festas; vestem-na com roupas macias como beijos, são

indulgentes com suas lágrimas e seus caprichos,

penteiam-na com cuidado, divertem-se com seus trejeitos

Page 132: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

132

e seus coquetismos; contatos carnais e olhares

complacentes protegem-na contra a angústia da solidão.

Ao menino, ao contrário, proíbe-se até o coquetismo;

suas manobras sedutoras, suas comédias aborrecem. ―Um

homem não pede beijos...Um homem não se olha no

espelho...Um homem não chora‖, dizem-lhe. Querem que ele

seja ―um homenzinho‖; é libertando-se dos adultos que

ele conquistará a sua aprovação. Agradará se não

demonstrar que procura agradar. (BEAUVOIR, 2009, p.364)32

No trecho mencionado, nota-se a preocupação da filósofa em

ressaltar que, à primeira vista, a menina parece privilegiada

por ter um acolhimento mais duradouro durante o processo do

segundo desmame. A cautela se justifica pelo fato de que,

posteriormente, a diferenciação no trato pode culminar em um

prejuízo na maneira de se relacionar consigo, com os demais e

com o mundo. Uma vez que a busca da sua emancipação é

retardada e a função de se apresentar como objeto ao olhar do

outro lhe é estendida, gera-se ―um conflito entre sua

existência autônoma e seu ‗ser outro‘‖ (BEAUVOIR, 2009, p.

375). O segundo sexo é estimulado a renunciar a si com o fim

de comprazer os indivíduos ao redor que a tratam como ―uma

boneca viva‖, termo ilustrativo usado por Simone de Beauvoir.

Logo, desencorajam o exercer da sua liberdade de se colocar

para-si diante do meio e lhe incentivam a voltar as suas ações

constantemente para o outro.

É preciso lembrar que a autora é uma das intelectuais

responsáveis pelo desenvolvimento da filosofia existencialista

ateia. No sistema de pensamento que defende a precedência da

existência em relação à essência, o outro tem um papel

relevante, considerando que ele ―é o mediador indispensável

entre mim e mim mesmo‖ (SARTRE, 2011, p.290). É esta presença,

também dotada de consciência, que me ―faz ser para-além do meu

ser neste mundo‖ e através do seu olhar– permeado de

imprevisibilidade e liberdade – é possível me assimilar ―como

32 É importante lembrar que Le DeuxièmeSexe é lançado na França em 1949.

Embora algumas sociedades já tenham mudado estas relações, é notório que

muitas outras ainda vivenciam este modelo de criação diferenciado a partir

do sexo biológico da criança.

Page 133: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

133

sendo visto no mundo e a partir do mundo‖ (SARTRE, 2011,

p.337-339). Logo, diante de sua mirada, torno-me objeto tal

como não posso ser para mim mesmo. Porém, em seu ato

intencional, ele me capta como corpo e, por isso, ―meu corpo

está-aí não somente como ponto de vista que sou, mas também

como pontos de vista sobre o qual são adotados atualmente

pontos de vistas que jamais poderei alcançar (SARTRE, 2011,

p.442). Menciono as palavras de Sartre em O Ser e o Nada para

elucidar a questão:

Existo meu corpo: esta é sua primeira dimensão de ser.

Meu corpo é utilizado e conhecido pelo Outro: esta, a

segunda dimensão. Mas, enquanto sou Para-outro, o Outro

desvela-se a mim como o sujeito para o qual sou objeto.

Trata-se, inclusive, como vimos, de minha relação

fundamental com o Outro. Portanto, existo para mim como

conhecido pelo Outro ― em particular, na minha própria

facticidade. Existo para mim como conhecido pelo Outro

a título de corpo. (SARTRE, 2011, p.441)

A partir do fragmento citado, entende-se que as relações

concretas estabelecidas com o Outro também se imiscuem no

posicionamento do sujeito no mundo e na sua própria

constituição. Se retomarmos a reflexão de Beauvoir acerca da

criação das meninas, na qual se estimula por mais tempo o

agradar o adulto como forma de alcançar o reconhecimento,

verificamos que esta instância do ser para-outro ganha

destaque na sua formação. De acordo com a filósofa, este fator

ainda é agravado na medida em que uma boneca lhe é apresentada

como alter ego. O tratamento e os cuidados do corpo passivo se

assemelham a forma pela qual os adultos se dirigem a ela,

fazendo com que se pense ―a si mesma como uma maravilhosa

boneca‖ (BEAUVOIR, 2009, p. 374). Portanto, em consonância com

o pensamento beauvoiriano, conclui-se que não é vantajoso para

a menina a prorrogação do seu elo de dependência com o olhar

dos pais. Ademais, também se torna notório que os traços de

feminilidade constantemente associado ao sexo feminino não é

pertencente à esfera da sua constituição biológica, mas sim

culturalmente adquirido da sociedade na qual está imersa.

Page 134: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

134

Retornando à história de Júlia, observa-se que ela não

reproduz essa dinâmica. Comprometida com o movimento de pôr-se

para si, ela recusa a renúncia de própria liberdade com o fim

de satisfazer o olhar do outro. Os traços assinalados pelo

narrador sobre a protagonista – como vaidade, gentileza e

mansidão – revelam a rejeição de comportamentos voltados para

aceitação dos demais. Porém, no diálogo inicial, o incômodo da

mãe a respeito da autenticidade da filha é explícito. A figura

materna lamenta pela pequena não valorizar aspectos de

feminilidade e as repreensões dirigidas à personagem são

devido à despreocupação de Júlia diante da expectativa alheia

de que ela mantenha a postura que se espera de uma menina. Ela

não aceita vestir uma máscara para camuflar sua forma de se

apresentar para o mundo nem no âmbito privado nem no público,

conforme se vê no diálogo posterior à explanação do narrador

onde a mãe a repreende e ameaça não levá-la para um passeio

caso não se penteie e troque o pulôver rasgado. Diante do

descaso de Júlia, a mãe solicita a participação do pai na

censura dos seus modos.

Convocado a atuar no julgamento da criança, o genitor se

associa à mãe na fala acusatória e amplia a série enumerativa

das questões que o desagradam como: ―Júlia sua mãe tem razão.

Você é impossível! Sempre dizendo grosserias, sempre

tropeçando, sempre prestes a aprontar‖ (BRUEL, 2010, p. 25).

Em seguida, profere a oração que sintetiza o desconforto dos

pais: ―Até parece um menino! ‖ (BRUEL, 2010, p. 25). A mãe se

coloca não apenas em acordo com aquela frase, como também

assemelha o perfil da menina ao da irmã de seu companheiro –

―É, nesse ponto, ela é igualzinha a sua irmã! ‖ - e,

prontamente, o assunto é repelido: ―— Por favor, não meta

minha irmã nessa história‖ (BRUEL, 2010, p. 25). Após o

desentendimento do casal, o narrador em terceira pessoa

retorna à narrativa e expressa o ensurdecimento da menina

diante da frase que a visita com frequência:

Page 135: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

135

Júlia já não escuta mais,

é sempre a mesma coisa:

parece um menino,

parece um menino

parece um menino,

parece um menino! (BRUEL, 2010, p. 26).

Escrito de forma versificada e com recurso estilístico

semelhante aos utilizados pelas vanguardas, a repetição da

frase ―parece um menino‖ é análoga a um eco com estrutura

visual crescente e traçado mais marcado sugerindo uma

intensificação do que foi dito. A construção textual sugere a

representação do sentimento causado na menina por causa da

reiteração do discurso utilizado para criticá-la. Em

contraponto com o trecho anterior no qual se expressa o

ensurdecimento da personagem a respeito daquilo que lhe dizem,

observa-se que, interiormente, a desaprovação dos pais ecoa e

se avoluma. No seu íntimo, aquelas palavras reverberam de

forma tão intensa que encobrem qualquer possibilidade de

penetração de sons oriundos do exterior. A menina que gosta

dos espelhos, talvez numa tentativa de se reconhecer diante da

própria imagem corporal, experimenta a contradição de

encontrar um reflexo de si distinto daquele que lhe é

apresentado através do enunciado dos pais.

Esta cisão aparece na narrativa através da sombra. Um belo

dia, a protagonista detecta que projeta uma silhueta de menino

e, diante da constatação, chama a mãe para vê-la. Indicando o

estado sonolento da menina, a genitora a adverte de que não há

nada de diferente e mostra curiosidade a respeito da origem

das ideias da filha. A conversa é expressa em diálogo direto,

induzindo o leitor a crer, a partir da perspectiva desta

mulher, que a formação do perfil umbroso masculino não passa

de uma fantasia da criança. Sob o ponto de vista mencionado, o

delírio do sono justifica a percepção equivocada da infante.

Porém, nas linhas seguintes, o narrador em terceira pessoa

refuta a possibilidade onírica da afirmação: ―Júlia não estava

Page 136: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

136

sonhando:/sua sombra era mesmo/ de menino! Mas ninguém/ queria

acreditar‖ (BRUEL, 2010, p. 28). Assim, por outra ótica,

nega-se a visualização como uma manifestação oriunda de seu

inconsciente e se valida a declaração da protagonista. Embora

não corresponda ao delineamento do seu perfil, a sombra gerada

é uma projeção do corpo da personagem e se mantém próxima o

bastante para inquieta-la

Quando uma sombra,

sombria demais,

segue você, como

sua própria sombra,

e em você ela até tromba,

isso de fato assombra (BRUEL, 2010, p.28)

Diferente das sombras autônomas, como um elemento em si,

presentes na Comedia dantesca e daquela que Adelbert von

Chamisso exibe como uma mercadoria sujeita à separação do

corpo que a projeta em A maravilhosa história de Peter

Schlemihl, a que se apresenta para Júlia é inseparável da

estrutura física que lhe dá vida. As ilustrações corroboram a

versão de Júlia e demonstram a presença do contorno de menino

tanto numa posição espacial similar à adotada pela menina

quanto em postura diferenciada. Então, a projeção corresponde

exatamente aos seus movimentos quando ela joga bola; todavia,

em outros atos, há uma distinção de posicionamento entre

ambos, embora ainda estejam associados entre si. Enquanto a

personagem brinca com a boneca, carrega os pratos com cuidado

e faz crochê, a sombra de menino que a acompanha arranca a

perna do brinquedo que simula um bebê, deixa os pratos caírem

no chão e brinca com os fios do novelo de lã. Além disso, a

imagem que representa o momento em que a menina faz xixi a

coloca em posição de cócoras em contraposição a figura umbrosa

que permanece em pé.

Antes de seguir com a análise do texto, proponho um

parêntese breve acerca desta forma de urinar entre as partes

com o fim de demonstrar que hábitos aparentemente inócuos

interferem na construção de uma ideia hierarquizante entre os

Page 137: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

137

indivíduos. Ainda em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir

examina o ato que constitui um dos primeiros encontros

infantis com a diferença sexual: os homens fazem xixi de pé e

as meninas sentadas ou agachadas. Os primeiros gozam de

liberdade ao manipular o pênis de modo que o expelir do jato

líquido se torna uma atividade lúdica, prazerosa e remete à

capacidade de dominar a própria natureza. Por sua vez, para

desempenhar a mesma atividade, a mulher precisa se abaixar,

retirar parte da própria vestimenta e se esconder; como afirma

a autora ―é uma servidão vergonhosa e incômoda‖. A vivência

com uma necessidade fisiológica se realiza de forma distinta,

pois uns a experimentam de maneira ativa e outras de uma forma

passiva e quase vergonhosa. Logo:

Parece às meninas que o menino, tendo direito de bulir

do pênis, pode servir-se dele como de um brinquedo, ao

passo que os órgãos femininos são um tabu. (BEAUVOIR,

2009, 368-369)

Encerrando a observação, ressalta-se que o adestramento da

mulher para fazer xixi apenas de um jeito, sendo este tão

submisso e encoberto, contribui para a concepção do corpo

feminino como um elemento pudico, além de assinalar a presença

de uma diferença sexual hierarquizante. O modo de urinar é

apenas um entre inúmeros exemplos que corroboram a tese de que

a feminilidade não é biologicamente determinada, mas

culturalmente inserida nos seres humanos detentores de uma

vagina em algumas sociedades. As imagens apresentadas no livro

marcam as distinções comportamentais previstas socialmente

para crianças de acordo com o gênero a que são designadas

desde tenra idade. Verifica-se a inserção do segundo sexo na

esfera do cuidado e da destreza em contraste com o varonil

cujas experiências têm um caráter desbravador e criativo.

Portanto, atividades que a priori podem ser realizadas por

crianças em geral, ganham atribuições específicas de acordo

com questões identitárias.

Page 138: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

138

A projeção de menino que se desloca com Júlia demarca a

desigualdade mencionada e a segue por todo o tempo. Uma mirada

mais minuciosa sobre o enredo incita a associação da questão

ao conceito de sombra desenvolvido por Carl Gustav Jung no

qual a companheira umbrosa representa a esfera do

inconsciente. O psiquiatra suíço defende que o conteúdo da

zona escura da personalidade no nível pessoal é formado por

materiais oriundos da experiência individual e por fatores

psicológicos submetidos à repressão. Ele a designa como uma

natureza inferior na qual se encontra ―uma omissão que geraria

um ressentimento moral‖ (JUNG, 1971). Na introdução do livro

Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da

natureza humana, composto por textos de diversos estudiosos

das teorias junguianas, exibe-se didaticamente a sombra ―como

um sistema imunológico psíquico, definindo o que é o eu e o

que é o não-eu‖ (ZWEIG; ABRAMS (org.), 2012, p.16). Entende-

se, portanto, a sombra como a face noturna onde habitam as

potencialidades não-desenvolvidas por determinado indivíduo.

A abordagem do inconsciente remete Jung aos escritos de

Freud, pois este é um dos primeiros a se aventurar pela selva

escura dos domínios humanos. No rastro do médico austríaco

cuja teoria está em torno das repressões de cunho moral

dirigidas às inclinações infantis, o suíço desenvolve as suas

investigações nas quais o inconsciente inclui, além dos

conteúdos reprimidos, todos os aspectos psíquicos que não

ultrapassam o limiar da consciência e podem constituir, ainda,

―sementes de futuros conteúdos conscientes‖ (JUNG, 1971, p.

13). Em Psicologia do inconsciente, ele enumera alguns dos

constituintes pertencentes a esta esfera: ―lembranças

perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações

dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassam o

limiar da consciência‖. Desse modo, Jung entende o âmbito do

lado escuro não como uma estrutura inativa em repouso, mas

como um sistema ―empenhado em agrupar e reagrupar seus

Page 139: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

139

conteúdos‖ (JUNG, 1971, p. 13). A configuração soturna possui

uma dinâmica ativa e própria capaz de aglutinar elementos

compreendidos socialmente como positivos e negativos, mas

analisado com inferioridade pela consciência que a oculta.

Na concepção de Jung, ―é no oposto que se acende a chama

da vida‖ (JUNG, 1971, p.49), por isso na sua teoria consciente

e inconsciente se influenciam de maneira mútua. Na narrativa

em análise, por exemplo, a protagonista experimenta a cisão

existente entre a imagem que tem de si e aquela que lhe é

apresentada de forma negativa pela perspectiva familiar. A

sombra é o elemento estético responsável pela representação da

dualidade imposta após a entoação da frase que ecoa no

interior da menina: ―Parece um menino‖. A silhueta umbrosa com

contornos masculinos aparece como uma instância negativa do

corpo que a projeta e provoca estranhamento e medo, porque

demonstra autonomia e ―nunca se acanha‖. Vale observar que,

embora seja detentora de uma energia própria, a sombra não se

desprende da matéria que a projeta, tal como vimos em Dante e

em Adelbert von Chamisso. Afinal, seguindo as ideias

junguianas, todo ser leva consigo tanto a sua luz quanto a sua

escuridão. O aspecto sombrio da protagonista se coloca diante

dos seus olhos como uma presença soturna, provocando-a

continuamente ao confronto.

Inicialmente, Júlia tenta ignorá-la; logo depois,

estabelece uma discussão frustrada com a projeção na qual pede

para que ela desapareça, aponta a dissemelhança da sua forma

de ser com a dos garotos e expressa ―Eu sou uma menina, não

sou como você!‖ (BRUEL, 2010, p.32), mas a companheira é

silenciosa e não troca palavras com a protagonista. Diante da

permanência da figura dissonante, ela usa distintos artifícios

para espantá-la, entre as quais brinca com as poças d‘agua com

o fim de provocar uma bronquite naquela intrusa e, desta

forma, libertar-se da perseguição. As tentativas de despistar

a sombra parecem torná-la cada vez mais poderosa e próxima

Page 140: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

140

culminando na dúvida da menina acerca da própria identidade:

―Agora, ela nem sabe mais com quem se parece./ E nem mesmo seu

espelho já a reconhece‖ (BRUEL, 2010, p.41). Soma-se à

questão, a sugestão do narrador de que há um apreço maior dos

demais quando a aparência da protagonista se sobrepõe a sua

essência e faz com que ela utilize recursos contra a própria

natureza com a finalidade de ser amada:

Gostam dela quando não está penteada como Júlia.

Gostam dela quando senta melhor do que Júlia.

Gostam dela quando fala menos do que Júlia. (BRUEL,

2010, p.39)

O desprezo pela figura incômoda a torna mais potente.

Seguindo os escritos de Jung, entende-se que a rejeição do

lado negativo da personalidade possibilita o seu

desenvolvimento de forma mais acentuada e, em determinados

contextos, sobrepõe-se, inclusive, à personalidade do

indivíduo. Na história de Júlia, a sombra faz com que a menina

coloque em pauta a própria identidade de gênero e duvide se

realmente é uma menina, pois ―talvez ela não passe de um

menino mesmo...‖. Porém, ela compreende que haveria distinção

com os demais, uma vez que teria algo diferente entre as

pernas e, de acordo com o narrador, ―isso ela não quer‖

(BRUEL, 2010, p.40). O cenário torna a relação de Júlia

consigo cada vez mais turbulenta e, se antes havia uma

segurança a respeito de sua identidade, a aparição umbrosa

desestabiliza a solidez vigente. Através deste elemento

estético, Christian Bruel evidencia debates relevantes a

respeito de sexo biológico e identidade de gênero de modo

acessível ao público infanto-juvenil.

Pertencente ao grupo de fêmeas da espécie humana, tendo em

vista que tem uma estrutura corpórea que a qualifica

socialmente desta forma por possuir vagina, útero e glândulas

mamárias, a protagonista se vê diante do reflexo de uma menina

em frente ao espelho. A concepção do termo em sua perspectiva

abarca a referência ao seu sexo biológico, pois ser uma menina

Page 141: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

141

aqui corresponde à constituição física. Conforme visto

anteriormente, a primeira distinção sexual na primeira

infância se apresenta através do corpo pela distinção da

genitália. No entanto, quando os pais a assemelham a um menino

se reportam ao seu comportamento desprovido de feminilidade,

ou seja, a ausência do componente cultural responsável por

cunhar características que socialmente são atribuídas à

expressão de gênero feminina. Júlia se apropria da liberdade

para atuar na vida, todavia aos olhos dos pais - já

influenciados pela coerção cultural que separa o mundo de

forma binária entre elementos pertinentes a homens e mulheres

– ela precisa se adequar às regras sociais que lhe são

impostas, ainda que venha a ferir sua própria maneira de ser.

A incompatibilidade da sua percepção com a que lhe é

apresentada pelos pais gera uma vulnerabilidade nas verdades

da personagem sobre si.

A aparição da sombra instiga Júlia a colocar em xeque o

seu reconhecimento, ou seja, a incita a questionar sobre a

própria identidade de gênero. Ela se coloca diante da hipótese

de ser um menino, mas prontamente a desconsidera, porque

embora seu corpo projete uma silhueta distinta daquela que a

origina, a protagonista rejeita a qualificação de menino por

conta da genitália que possui. O conflito entre o corpo e o

comportamento passa a ser insustentável para a personagem e a

conduz a uma fuga para a escuridão, por isso decide se

esconder embaixo da terra porque onde o sol não chega é

impossível ter sombra. Ela se dirige determinada a um parque

com o objetivo de abrir um buraco na terra para se esconder da

mesma forma que os ratos, pois está segura de que eles, por

andarem próximos ao solo, não lançam projeção. Contudo, por

meio das ilustrações, nota-se que o parque ao qual a menina se

refere não é um lugar qualquer, mas um cemitério no qual jaz

Charles Perrault. A aparição da lápide do ―pai da literatura

infantil‖ que registra os contos de fadas conhecidos

Page 142: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

142

mundialmente até os dias de hoje não é gratuita.

Simbolicamente, o enterro de Júlia se deve à inabilidade de

reproduzir os hábitos das princesas propagados por estas

narrativas responsáveis pelo emoldurar do imaginário feminino

ao longo de séculos.

Assim, com uma pequena pá, Júlia começa a cavar um abrigo

no qual almeja se proteger da silhueta que insiste em

importuná-la e coloca em prática a ideia de se libertar da

sombra a partir do jogo de luz. Dias antes, em um diálogo com

a mãe, nota-se a sua percepção sobre o sumiço da sombra

mediante a falta de luminosidade: ―— Mamãe, me diga uma coisa,

as sombras comem luz? Mamãe, me diga, se acabar a luz, as

sombras morrerão? ‖ (BRUEL, 2010, p.34) A genitora reitera o

estado de sonolência da criança e mantém a possibilidade da

ambientação onírica do episódio. De igual maneira, a menina

sustenta o estado de consciência diante dos fatos. Cabe ao

leitor, em sua liberdade interpretativa, imiscuir-se por uma

das duas alternativas.

Porém, uma certeza é a de que a protagonista vivencia a

ambiguidade de não poder ser quem ela é, no plano consciente

ou no inconsciente. À luz de Jung, compreende-se que os dois

lados são passíveis de uma influência ativa na sua existência,

por isso já não é tão interessante decidir sob qual ponto de

vista está a verdade, mas sim enfatizar o encontro de Júlia

com esta sombra de menino por meio da qual se atravessam

temáticas complexas nem sempre debatidas de forma clara em

sociedade. A censura está presente, principalmente, no que se

refere às crianças, porque, de acordo com o senso comum,

apenas o plano da fantasia de um mundo distante cabe a elas,

privando-as, muitas vezes, da reflexão sobre questões

presentes no seu cotidiano. Isto é, não lhes é permitido um

encontro com as sombras que as cercam fazendo com que tenham

que lidar de forma solitária com os problemas.

Page 143: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

143

Uma vez que Júlia não encontra um acolhimento a respeito

das suas dúvidas, apenas repreensão e descrédito, ela decide

buscar sozinha a solução para o problema. A personagem prepara

o próprio esconderijo e começa a imergir na escuridão, quando

escuta uma voz e um menino vem ao seu encontro. Chorando, ele

questiona sobre o motivo pelo qual a menina se acha dentro do

buraco e ela, por sua vez, pergunta a razão do seu pranto. O

interlocutor revela que, aquele lugar, acolhe seu choro em

dias de tristeza, pois ali ninguém o repreende por sua

sensibilidade e tampouco enuncia a sua semelhança com as

meninas. A partir do diálogo, conclui-se que ambos vivenciam o

mesmo problema e encontram refúgio de sua pequena morte no

parque onde todos dormem. De repente, as falas são

interrompidas pela detecção de ruídos e as crianças se

escondem. Júlia comenta que são os pais em sua busca e, ao

perguntar sobre a família do menino, ele manifesta que seu pai

e sua mãe estão sempre dormindo. O sono dos adultos propicia

algumas interpretações como a indiferença a respeito do filho

e a possível morte de seus genitores.

A conversa entre os dois demonstra o desconforto diante da

recusa dos adultos de aceitarem aquilo que escapa as suas

expectativas e da constante acusação alheia de não se

comportarem de forma correspondente àquela que a sociedade

lhes impõe. Através de uma linguagem lúdica e acessível à

infância, as personagens debatem sobre os papeis de gênero que

são determinados socialmente através de um conjunto de regras

pelas quais há uma classificação entre coisas apropriadas

especificamente aos homens e às mulheres. Desta forma, na

infância, espera-se que meninos se interessem por esportes,

tenham uma postura ativa, sejam corajosos e seguros, enquanto

que se anseia da menina uma atração pelas características de

uma princesa entre as quais prevalecem a vaidade, o

romantismo, a fragilidade, o cuidado e a passividade. Nas

idades subsequentes, os papeis se mantém por meio de outras

Page 144: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

144

atitudes e comportamentos, mas preservam uma masculinidade

sólida e estável em contraponto com uma feminilidade maleável

e vacilante. Ainda que não saibam formalmente sobre estas

diferenças, Júlia e seu amigo a percebem, conforme se verifica

no diálogo abaixo:

—Olha, é como se cada um de nós estivesse preso num

pote.

— Como pepinos?

— Sim, como pepinos. Num pote, os pepigarotos, em outro,

as pepimeninas... e ninguém sabe onde colocar as

garomeninas. Eu penso que, se quisermos, podemos ser os

dois ao mesmo tempo. Não ligo para as etiquetas. Temos

esse direito!

— Você acha mesmo?

— É claro que temos o direito. (BRUEL, 2010, p. 58)33

Assim, a frase que se repete ―temos o direito‖ representa

o desfecho a que as crianças chegam. Elas constatam que não é

preciso se adequar aos rótulos pré-estabelecidos pela

sociedade para agradar aos demais e anular a própria

liberdade. A estereotipagem dos comportamentos designados a

meninos e meninas aprisiona corpos e mentes não apenas

daqueles que se ajustam ao padrão vigente, mas dos que não

conseguem se inserir na ordem determinada. Em O Segundo Sexo,

Simone de Beauvoir empreende um longo estudo em busca das

respostas para a questão ―o que é ser mulher?‖e uma das

conclusões da autora é que o destino biológico não define a

maneira de ser de uma fêmea na sociedade. Uma ampliação da

teoria permite afirmar que a estrutura física não demarca a

forma de atuação de nenhum ser humano, porque conforme defende

Sartre a nossa única condenação é a liberdade. Cito Beauvoir:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino

biológico, psíquico, econômico define a forma que a

fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto

da civilização que elabora esse produto intermediário

entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.

Somente a mediação de outrem pode constituir um

indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a

criança não pode apreender-se como sexualmente

diferençada. (BEAUVOIR, 2009, p.261)

33 As palavras em itálico seguem os destaques do texto original.

Page 145: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

145

Portanto as feminilidades e as masculinidades são produtos

culturais incutidos nas crianças pela figura dos adultos,

porque a distinção das atribuições de gênero não lhes são

inatas. Conforme visto, Júlia e o colega decidem se apropriar

do direito de manifestar o próprio jeito de ser sem se

preocupar com as normas comportamentais impostas pelo meio.

Juntos, no esconderijo do cemitério, eles dialogam sobre a

sombra que os persegue e compartilham a dificuldade de serem

diferentes. Em meio à discussão adormecem e despertam no dia

seguinte com fome, frio e o menino expõe um problema: o que

dizer no retorno ao lar? Esperta em suas elucubrações, Júlia

sugere que digam que se perderam e depois acharam o caminho, o

que não deixa de ser verdade, pois cada um com a sua tristeza

se sentia confuso a respeito da própria identidade e depois do

encontro eles identificam uma trilha em comum na qual a única

regra é ter o direito a ser quem se é. Ela repete ao longo do

itinerário ―temos o direito, temos o direito‖ e, conforme

expressa o narrador:

Aconteça o que acontecer, agora ela sabe. Ela é a Júlia.

Júlia- fagulha

Júlia-fúria

Júlia-Júlia. (BRUEL, 2010, p. 65)

Ao lado do amigo, a menina se reapropria da

responsabilidade sobre a sua identidade. Comprometida consigo

e com a liberdade, ela percebe que a tentativa de

enquadramento no molde em que não se cabe, resulta em prejuízo

para o sujeito, que pode ser engolido pelo próprio lado

obscuro. Por isso, no rastro dos gregos antigos em cujos

ensinamentos se encontra o ―conhece-te a ti mesmo‖, acredita-

se que o maior valor consiste em ser quem se é, tendo ciência

de que somos compostos tanto pela claridade quanto pela sua

ausência. Afinal, como afirma a teoria de Carl Gustav Jung,

―pelo fato de termos um corpo, ele projeta uma sombra – como

todo corpo. Ela nos diz ainda que, se renegarmos nosso corpo,

não somos tridimensionais, mas sim planos ilusórios‖. (JUNG,

Page 146: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

146

1980, p. 27). Logo, como todo ser humano vivente, contemos a

ambiguidade consciente e inconsciente dentro de nós mesmos.

Júlia não precisa perpassar por estas análises para

compreender que aquilo que ela é projeta necessariamente o que

não-é. A menina deduz na conversa com o colega no parque o

direito de proferir de maneira exclamativa ―Eu sou Júlia!‖,

mas sim ―Júlia-Júlia‖ e não aquela idealizada pelos pais.

Enquanto os adultos se preocupam com a dimensão abstrata de um

comportamento inadequado ao papel de gênero atribuído ao

pequeno ser, a criança trata apenas de se colocar diante do

mundo, porque está atenta a apreender aquilo que a cerca, tal

como nos alerta Nietzsche. Crescemos, buscamos o abstrato,

decodificamos as entrelinhas e esquecemos do valor do que está

mais próximo ou, como diz Manoel de Barros no poema O

andarilho, deixamos de ―conhecer as ciências que analfabetam‖.

Um dos idealizadores da Sourirequimord, Christian Bruel

capta a necessidade de que adultos e crianças olhem para o

mundo ao seu redor e, sem conceitos prévios, reconstruam

percepções sobre a realidade. Ele demonstra a importância de

não restringir meninas e meninos ao mundo fantástico, porque –

como parte do corpo social – os pequenos também experimentam

os sabores doces e amargos do mundo. O nome da editora já nos

remete à imagem do sorriso da criança – provocador de deleite

- que pode se transformar a qualquer momento em um instrumento

de dor por meio da mordida. Bruel propõe uma visão menos

idealizada acerca da infância na qual o imaginário construído

através do literário não se delimite à narrativa inalcançável

de um lugar e um tempo distantes, mas também propicie uma

abordagem reflexiva do universo que o cerca:

Page 147: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

147

Fonte: http://lajoieparleslivres.bnf.fr

É imprescindível assinalar as consequências oriundas da

escolha política de abordar assuntos que ainda se limitam ao

universo adulto. Numa versão mais moderada, os críticos se

antepõem à ideia de Bruel e assinalam a dificuldade de

compreender os enredos propostos, sobre a possibilidade de

seus livros conterem fins terapêuticos e a respeito do editor

incentivar uma nova corrente da literatura infanto-juvenil que

busca originalidade ao apresentar temas que não deveriam ser

discutidos com indivíduos desta faixa etária. Observa-se um

incômodo notório da crítica diante dos enredos propostos pela

editora e um mal-estar relacionado ao tratamento conferido às

crianças através do qual se almeja diluir algumas das

barreiras que os adultos lhes impõem. A matéria Les livres

pour enfants, despolémiquesrécurrentes de Marie-EstellePech

para o jornal Le Figaro, datada de 2014,elucida a manutenção

do debate ainda no século XXI e aponta Histoire de Julie

quiavait une ombre de garçon como o precursor das discussões

de gênero na escola.

Já a rejeição da extrema-direita é incisiva ao afirmar que

a obra suscita a sexualização precoce das crianças e promove a

homossexualidade. A publicação Breizh-info, por exemplo,

divulga em 2014 uma matéria sobre a 13ª edição do Salão do

livro infanto-juvenil de Morbihan intitulada Salondu livre

jeunesse, propagande et subventionsmultiples na qual acusa os

organizadores de subverter o pensamento dos mais jovens e usar

dinheiro público para propagar temas inapropriados o grupo de

pessoas a quem se dirigem. O texto cita a primeira produção de

Christian Bruel, que aqui analisamos, como parte do grupo de

50% das obras presentes no primeiro andar que ―fazem apologia

à anarquia, à revolução e apregoam a teoria de gênero‖.

Verifica-se uma semelhança com os discursos conservadores

presentes no Brasil nesta segunda década do século XXI em que

Page 148: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

148

toda reflexão com traços mais progressista é qualificada como

ideologia: ideologia de gênero, ideologia marxista, entre

outras.

A propósito, o livro traduzido para mais de dez idiomas

também tem uma versão para o português brasileiro por Álvaro

Faleiros. Com primeira edição lançada pela Scipione em 2010 e

esgotada, tentamos o contato com a editora para saber sobre a

possibilidade de uma nova reimpressão, tendo em vista a

indisponibilidade do livro físico em diversas livrarias,

bibliotecas e sebos. A atendente informou, sem maiores

detalhes, que a obra foi descontinuada do seu catálogo. Além

disso, mediante a perguntas sobre distribuição, comunicou que

não poderia fornecer detalhes sobre o número de impressões e o

motivo pelo desinteresse de reproduzir outras edições. Estas

informações expõem a dificuldade de acessar a tradução

brasileira a partir de uma das principais capitais do Brasil

que não deixa de ser um silenciamento da voz de Bruel em nosso

país. O exemplar consultado para esta pesquisa, por exemplo,

pertence ao acervo da Biblioteca Nacional e não pode ser

retirado do salão de leitura.

A história de Júlia e sua sombra de menino é um livro que

transborda a própria estrutura para construir com o leitor as

suas significações. Configura-se como uma literatura adversa

às classificações, porque no que concerne ao gênero não se

autointitula como literatura infanto-juvenil, no que diz

respeito à forma se expressa ora em prosa ora em verso e em

termos de conteúdo abarca temas considerados tabus no mundo

ocidentalizado. Tal como Sartre utiliza a expressão, Christian

Bruel e Anne Galland firmam um pacto de generosidade com o

leitor - independente da sua idade - confiando-lhe liberdade

para desdobrá-la reflexivamente em múltiplas direções. Se há

uma moral ao fim da narrativa, ela consiste na necessidade de

questionar todos os tipos de regras que se impõem como

verdades inquestionáveis seja no universo infantil seja no

Page 149: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

149

adulto. Portanto, os autores criam um enredo que visa à

inquietude e não se conforma com a calmaria onírica da pura

fruição que acalanta uma inocência idealizada.

A história de Júlia e sua sombra de menino encerra a

análise breve da presença da sombra na literatura. A narrativa

simples, mas distante de ser simplória, convoca o leitor a

resgatar o diálogo com a companheira umbrosa mais próxima que

pode estar dentro de si, agitada nas estruturas do

inconsciente, ou o seguindo em silêncio, tal como a projeção

do andarilho que caminha solitário sob raios solares ou

brilhos lunares e não se vê só. Vez ou outra, em suas

andanças, a luz do conhecimento atinge a calmaria da caminhada

e multiplica o objeto sobre o qual a sua intenção se lança.

Ele não se assombra, mas se sombra sem medo de encontrar a

negatividade, pois aprendeu com a filosofia e a arte que ela

pode ser um poderoso instrumento de descoberta.

Page 150: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

150

4. O cenário se desmonta: a aparição dos diretores da

história

Pero a mi noche no la mata ningún sol.

(Alejandra Pizarnik)

Luz, câmera, ação! A partir do grito do diretor da

história, registra-se a cena. Tudo fora ensaiado com

antecedência para construir a imagem perfeita, pois não há

espaço para improvisos. Enquanto atores repetem

incessantemente o texto de acordo com o script, figurantes

aguardam para povoar em silêncio o núcleo de personagens

secundários. Demarcado o posicionamento de cada um diante da

câmera, o diretor insiste em retomar as entradas, porque a

precisão do foco é fundamental para a compreensão da ideia que

deseja transmitir. Por isso, cuida atentamente da iluminação;

sombra, contraste, profundidade e efeitos visuais precisam

estar sob controle para que uma verdade se imponha. Através da

manipulação de um quadro perfeito, oferece uma possibilidade

de realidade e, por alguns instantes, percebe-se criador de um

mundo por ele escrito e dirigido. Seguro da fama que

construiu, acredita saciar o desejo de espectadores sedentos

pelos seus feitos e de uma crítica sempre disposta a aplaudi-

lo. Vez ou outra, uma gargalhada ressoa quando lembra que tudo

não passa de uma farsa e pensa: pobre dos que não se

interessam pelo que há por trás de uma lente e acreditam

apenas em uma versão da história. Uma voz, então, sussurra ao

seu ouvido: é para eles que existe o seu trabalho. Ele retoma

a compostura e segue. Afinal, o silêncio dos demais é o grande

segredo do êxito de suas narrativas.

Quantas versões há em uma história? Tantas quantas sejam

as pessoas que estejam decididas a contá-la. No entanto, sabe-

se que, embora sejam múltiplas as abrangências, poucos são os

que conseguem torná-las públicas e legitimá-las através de um

discurso sobre o qual os demais estejam dispostos a ouvir,

Page 151: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

151

aceitar e retransmitir. Por isso, não é raro que um relato se

sobreponha aos demais e, com o tempo, comece a se impor como o

único viável de validação. Assim, solidifica-se de tal forma

que, quando lançamos luz sobre os seus domínios, ele não

apenas se impõe com mais proeminência, mas também lança

sombras em seu entorno. Acostumado a coadunar o olhar com o

plano do luzente, o mero contemplador ignora o redor e repousa

a consciência nos limites para onde dirigem o seu olhar.

Porém, o observador atento não se contenta em obedecer este

guia. Ele sabe a riqueza existente no sombrio e ali procura as

pistas que lhe fornecem os meios para construir outras

possibilidades sobre o real que lhe apresentam.

4.1. Sombras do passado

A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias

para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los

em seus sonos injustos.

(Conceição Evaristo)

Uma luz desponta no horizonte e alumia a Terra a partir da

linha onde o olhar humano jaz sob o encontro ilusório de seus

limites. O aparente repouso se desvela quando observamos o céu

e constatamos que tudo está em movimento ou no momento em que

olhamos ao redor e visualizamos o baile das sombras que se

erguem com dimensões e formas distintas. A fonte luzente

propicia a fé em alguma constância, pois a cada dia ela se

impõe, mas pobre daquele que a beatifica e ignora os duplos

umbrosos que ganham contornos com a profusão de seus raios e

depois se imiscuem ao domínio infinito da escuridão. As

aparições se modificam devido à dinâmica que as cerca e

assinala a face umbrosa perseverante diante dos diversos

brilhos que insistem em ludibriar sujeitos finitos autores de

revelações frágeis. Outrora se creditava a arte da trapaça à

sombra, contudo é necessário estar atento ao cenário

responsável pela sua aparição, pois ele se configura como o

Page 152: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

152

diretor cuja perspectiva direciona o olhar de atores e

espectadores – livres na atuação, mas ancorados na própria

situação - designando o evidente e o oculto na narrativa da

vida.

Em Do mundo fechado ao universo infinito, Alexandre Koyré

demonstra a variação da concepção do espaço e das ideias de

acordo com os pontos de vista do homem e da sociedade na qual

ele se insere, bem como os instrumentos dos quais dispõem em

suas observações e das instâncias de poder em vigência.

Através da investigação do filósofo, verifica-se que a

validação do saber está permeada de variantes cuja organização

influencia na instituição do que se legitima como verdade em

determinado tempo e meio. Por isso, o caçador de conhecimento

não se contenta em marchar pelas trilhas solares do

incontestável ou por aquelas iluminadas pela lâmpada dos que o

precedem. Portando o candeeiro flamejante da dúvida, ele se

empenha na busca das sombras deixadas outrora no caminho

percorrido pelos seus antecessores ou se embrenha na selva

escura do novo acompanhado das projeções moventes que o

cercam.

Em suas diversas faces, o objeto se oferece à mirada do

investigador e este, por sua vez, o explora por meio das

faculdades que dispõe e de uma determinada perspectiva. Logo,

o material pesquisado é inesgotável, considerando a

pluralidade presente em sua constituição, bem como a

quantidade variada de pessoas – com suas respectivas

individualidades – que nele se debruçam em busca de perguntas

e respostas. Nesta relação, conforme já advertido por

Nietzsche no capítulo anterior, a cada luz lançada, uma nova

sombra surge, por isso o ato de revelar culmina,

necessariamente, em um outro velar. Assim sendo, o processo de

conhecimento também consiste em uma tarefa interminável na

qual o homem se lança em direção ao elemento de desejo sem

conseguir obtê-lo por completo. Nosso trabalho, não difere do

Page 153: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

153

descrito. Ciente da impossibilidade de abarcar nossos anseios

em sua totalidade, propomos que o observemos através de outros

prismas na manha necessária para acompanhar sua ginga diante

da reflexão, visando a uma contemplação mais enriquecedora de

suas possibilidades.

Os capítulos apresentados até então se ocuparam dos

rastros da sombra na cultura ocidental e em sua aparição na

produção literária a partir de três obras ambientadas em

contextos distintos. Embora ao longo da pesquisa tenhamos

descoberto outros materiais textuais nos quais a projeção se

insere como imagem poética, optamos por abordá-la em situações

nas quais ela se diferencia tanto em termos de representação

quanto de significação. Parafraseando Octavio Paz em O arco e

a lira34, captamos exemplos em que a sombra deixa o mundo cego

da natureza para ingressar no mundo das obras. Os textos

analisados propiciam o encontro da transformação da silhueta

resultante do bloqueio dos raios de luz em imagem capaz de

transcender à própria palavra. Inspirados na metodologia de

Victor I. Stoichita, em Breve historia de la sombra,

apresentamos a importância estética do perfil no discurso

literário europeu a partir de uma tríade de textos de formas e

temporalidades diferentes, mas que tem este elemento como

figura relevante em suas estruturas.

Inicialmente, na poesia dantesca, a sombra se apresenta

como a natureza da maioria das personagens e, através de

Estácio, descreve-se o processo de sua formação. Enquanto um

elemento em si – tendo em vista que independe da estrutura

física a qual se associa – mantém faculdades próximas àquelas

atribuídas ao ser vivente ainda que não disponha de matéria.

Na Comedia, as sombras são sujeitos atuantes nos episódios em

34 Trecho original: ―Sejam quais forem sua atividade e profissão, artista ou

artesão, o homem transforma a matéria-prima: cores, pedras, metais,

palavras. A operação transformadora consiste no seguinte: os materiais

deixam o mundo cego da natureza para ingressar no mundo das obras, ou seja,

das significações.‖ (PAZ, 2012, p.29) – Grifo nosso

Page 154: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

154

que se inserem e representam um elemento anímico que atende ao

debate, entre outros possíveis, do destino das almas após a

morte, presente no período transitório entre a Idade Média e o

Renascimento, respectivamente, períodos da fé e da ciência. Em

seguida, em A história maravilhosa de Peter Schlemihlobserva-

se a sombra como uma moeda de troca por meio da qual se

evidenciam as relações presentes no capitalismo. A figura

representa um objeto passível de desagregação do corpo que a

projeta, não possui autonomia e se submete àquele que a

possui. Já na Modernidade, A história de Júlia e sua sombra de

menino, o corpo está encarregado de carregar a própria

projeção, ainda que a mesma não corresponda ao perfil

previsto.

Na primeira parte do nosso estudo, a relação entre sombra

e literatura se concentra na representação da primeira nos

domínios da última. No recorte determinado, a silhueta nos

remete a debates a respeito de valores oriundos de sociedades

que vivenciam crises em seus aspectos religiosos, econômicos e

identitários. A proposta de uma investigação dedicada à

presença desta imagem no âmbito literário pode se ater à

análise da sua aparição nos textos visando à comprovação de

sua relevância estética em tal arte, assim como fizemos nos

capítulos anteriores. A partir do desenvolvido, verifica-se

que, embora seja mais evidente no campo pictórico, a sua

inserção na literatura assegura a constituição polissêmica

necessária para contribuir com o que se denomina como

literariedade de um texto. Este é um dos aspectos possíveis

para desbravar a presença do perfil umbroso no contexto

citado. No entanto, conforme discutido, aquele que busca o

conhecimento se desloca Item perspectiva em seu objeto. Isto

é, seguindo a concepção de Albrecht Dürer da palavra latina,

Page 155: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

155

ele ―olha através de‖35 seu alvo em busca das possibilidades de

realização sensível do quadro que observa.

As manifestações da sombra na literatura abrangem aqui um

corpus de obras produzidas nos países europeus por autores

também oriundos das regiões setentrionais. Além disso, a

representação desta imagem é examinada em períodos específicos

cuja territorialização é cara à história literária, como: o

Renascimento italiano, o Romantismo alemão e a Modernidade

francesa. O pensamento sobre a escrita estética a partir do

lugar circunscrito assegura um navegar em águas calmas, uma

vez que a crítica tradicional estabelece nos centros europeus

ocidentais o marco de suas reflexões e delineia um espaço de

onde se configura o Absoluto a partir do qual se relativizam

todas as demais. Digo, é o parâmetro no qual transitam as

marés do que se designa como verdade objetiva cujo conteúdo

compreende uma universalidade. A suposta neutralidade que o

envolve também o protege com pretensa isenção de

particularidades responsáveis pela vulnerabilidade de

determinadas teorias em contraponto com outras que se entendem

indiscutíveis devido ao caráter imparcial que lhes é relegado.

A escolha do recorte em questão não é gratuita. Embora a

arqueologia demonstre que os fósseis de seres humanos mais

antigos tenham sido encontrados na África e as ciências

humanas comprovem que a produção de saberes de povos

originários dos países americanos e africanos fora bastante

desenvolvida, as histórias dos fatos e do conhecimento

atribuem aos povos europeus a centralidade dos discursos e

estes, por sua vez, adotam a Grécia como o grande berço

acolhedor do pensamento, cultura e tradições nascentes nas

sociedades classificadas como civilizadas. Segundo esta

concepção eurocêntrica, as grandes navegações figuram como o

ponto de partida do desbravamento do homem pelo mundo por meio

35 A concepção de perspectiva do artista alemão é apresentada por Erwin

Panofsky em seu livro ―La perspectiva como forma simbólica‖

Page 156: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

156

do qual a coragem de determinados povos os impele à superação

do medo a respeito do que havia além do horizonte em busca de

riquezas, ganhando como recompensa a descoberta de novas

terras sobre as quais eles acreditam deter posse e poder.

Assim, a Europa e seus habitantes se auto-consolidam como um

Eu referencial– que se creem iluminados36 pelo sol de um rei,

de uma lei e de uma religião – e começam a lançar sombras ao

redor de tudo o que não lhes diga respeito, ou seja, o Outro.

A alteridade descrita é intensificada ao longo do processo

colonial, uma vez que o encontro dos povos do norte e do sul37,

como os da Europa e América, gera reconhecimento de corpos e

culturas distintos entre si. Eles se vêem diante de um

semelhante permeado de diferenças e esta tensão é fundamental

para embasar as relações hierárquicas que se estabelecem a

partir do contato em questão. Na carta de Pero Vaz de Caminha

ao rei de Portugal, D. Manuel, a primeira descrição dos

habitantes do solo brasileiro é: ―Pardos, nus, sem coisa

alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas

mãos, e suas setas‖. Verifica-se, por meio do relato, a

referência a três elementos específicos - a cor da pele, a

nudez e o armamento – diferenciadores dos povos em contato.

Porém, os corpos despidos propiciam a identificação do elo

existente entre eles: a estrutura física38. Até então, o

português se ocupa apenas de apresentar o ocorrido; contudo,

algumas linhas depois, trata de exprimir o primeiro juízo de

valor a respeito daqueles outros sobre os quais o seu olhar

repousa:

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de

bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem

cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou

36 Não pretendo aqui fazer referência ao Iluminismo, pois seria um

anacronismo relacioná-lo ao mesmo período das navegações. 37 Vale dizer que a constituição espacial norte/sul da cartografia também já

é fonte de provocações, vide o desenho ―Mapa Invertido‖, de 1943, do

artista uruguaio Joaquín Torres-Garcia. 38 Por mais que, no século XIX, ciências como a frenologia se empenhe em

diferenciá-los de maneira hierarquizante.

Page 157: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

157

deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a

cara. Acerca disso são de grande inocência.39

Não é necessário se alongar na discussão para constatar

que o encontro de civilizações culminou em um genocídio

extenso40 e no extermínio, através de aniquilamento ou

modificação, da história e da cultura de povos milenares. Por

meio de violências diversas e imbuídos de uma pretensa

superioridade material e espiritual, os europeus impuseram

seus mandos aos anfitriões das terras onde aportaram visando,

pincipalmente, ao saque das riquezas presentes naqueles

territórios. Em A América que os europeus encontraram, o

filósofo e historiador Enrique Peregalli apresenta a estrutura

das Altas Culturas pré-colombianas41, o dizimar dos seus

domínios a partir da chegada dos povos do norte e a

desumanização dos seus habitantes. Diferente do que figura nos

escritos dos ditos conquistadores, nos quais se reitera o

atraso da população residente nas terras americanas, o estudo

do pesquisador uruguaio radicado no Brasil destaca os

conhecimentos arquitetônicos, matemáticos, linguísticos,

ecológicos, entre outros, assim como a expressão artística dos

astecas, maias e incas e a relação harmônica que,

majoritariamente, mantinham entre a sociedade e a natureza.

A serpente de plumas esperada por alguns americanos chega

com pelos, roupas e muito devastadora diferente da expectativa

dos que a aguardam; além disso, provoca danos maiores do que

aquela envolvida no pecado original e se empenha na depredação

e no apagamento de todo um patrimônio. Conforme assinala

AiméCesaire, em Discurso sobre o colonialismo, neste processo

não há um intercâmbio de culturas, mas sim relações de

39 Disponível em:

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf. 40 Segundo Peregalli (1994), quando Tenochtitlán foi destruída, em 1521,

tinha 1 milhão de habitantes. (p.23) 41 ―[...]civilizações americanas localizadas no México atual, na região

norte da América Central e na faixa que se estende desde a Colômbia até o

Chile, acompanhando a orla marítima do oceano Pacífico [...] compreendendo,

respectivamente, a Confederação Asteca, as cidades-Estados maias e o

Império Inca.‖ (PEREGALLI, 1994, p.9)

Page 158: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

158

dominação e submissão com grande potencial de desumanização

uma vez que ―o colonizador, para se dar boa consciência se

habitua a ver no outro o animal, se exercita a tratá-lo como

animal, tende objectivamente a transformar-se, ele próprio em

animal‖. (CESAIRE, 1978, p.24-25).

Em nome de uma ação civilizatória, os europeus tornam as

sociedades que encontram ―esvaziadas de si próprias‖

suprimindo-as de ―extraordinárias possibilidades‖ (CESAIRE,

1978, p.24-25). No contexto da situação colonial, um povo se

imbui de uma pretensa supremacia e ignora a capacidade

intelectiva do outro, bestializando-o, com o fim de uma

objetificação que justifique a sua dominação em termos físicos

e espirituais. No caso dos europeus, ―o complexo de

autoridade‖, tal como designa Frantz Fanon, atribui à razão o

valor humano de maior peso responsável por gerar uma

hierarquização na qual este povo se coloca como superior

diante dos demais, aos quais eles atribuem uma inferioridade.

Um exemplo ilustrativo é indicado por Todorov acerca do

conteúdo do segundo diário de Colombo42 no qual se encontra a

divergência do genovês com os habitantes sobre a extensão da

terra de onde hoje é Cuba. Enquanto os que ali vivem afirmam a

geografia insular da região, o recém-chegado refuta a hipótese

e defende o aspecto continental da área sob a justificativa da

bestialidade de seus interlocutores e o desconhecimento destes

de espaços com tais proporções: ―Nem eu acreditava que Juana

era uma ilha, mas pensei que os índios tinham me dito verdade

e que sim, o era: mas depois reconheci que eles são o tipo de

gente que não sai do seu lugar e acha que tudo é uma ilha sem

saber o que é uma terra firme‖43. Ademais, rejeita a informação

42 Todorov indica o texto a partir do texto de Andrés Bernaldez, mas

preferimos buscar a fonte específica do texto e a encontramos em

―Relacióndel viaje a Cuba y Jamaica. Carta de Cristóbal Colón a los Reyes

Católicos‖. 43 ―ni fuera yo si no creyera que la Juana hera isla, mas pensé que los

indios me avían afigurado verdad y que era isla; mas después conoçí que

ellos son gente allí que jamás salen de su lugar y creen que todo el mundo

Page 159: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

159

que recebe devido à inexistência de documentos que a

comprovem. Seguro da posição de detentor da verdade, o

navegador desconsidera a voz dissonante, mas, posteriormente,

empenha-se na verificação empírica capaz de validar uma das

proposições (―segui o vento contrário favorável e voltei para

Juana, com o propósito de seguir a sua costa de onde eu já

tinha partido, e assim me certificar se era uma ilha ou terra

firme44). Embora seja evidente o seu equívoco, impõe a

autoridade para manter a legitimidade do seu discurso quando

ameaça os tripulantes que desmentirem a asserção sobre a

natureza continental de Juana. Em ―Informe y juramento de como

Cuba era tierra firme‖, aponta-se como pena o pagamento de dez

mil maravedíes, moeda da época, e o corte da língua do homem

que afirmasse o contrário.

Verifica-se, a partir do mencionado, o desprezo pelo saber

dos habitantes, a depreciação de suas experiências e a

sustentação da legitimidade de uma proposição, ainda que esta

não se configure como a mais adequada, pela coerção econômica

e brutalidade. Como já descrito, há apagamento de memórias,

saqueio de riquezas e extermínio dos residentes e de sua

cultura. Isto é, constitui-se uma relação de desigualdade na

qual os povos descendentes do hemisfério boreal se sentem

autorizados a intervir, principalmente através de violências

física e simbólica, nos territórios onde chegam em nome de

Deus, da razão e da civilização. Assim, exterminam a

originalidade existente, caracterizam aqueles que encontram

como um intermediário inferior ao homem branco e superior ao

macaco e utilizam os seus valores e modelos de sociedade para

forjar uma versão na qual figuram como salvadores de uma

sean islas y no saven qué sea tierra firme ni curan salvo de comer y de

mujeres‖. COLÓN, Cristóbal. Relación del viaje a Cuba y Jamaica. Carta de

Cristóbal Colón a los Reyes Católicos. Disponível em:

http://www.biblioteca.tv/artman2/publish/cristobal_colon/index.shtmll.

Acessoem 31 de maio de 2017. 44 ―fize el viento contrario bueno y bolvía a la Juana tierra firme, con

propósito de seguir la costa d'ella que yo avía dexado, hasta ver si era

isla o tierra firme‖

Page 160: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

160

população bestial. Apesar de toda selvageria, entram na

história – escrita por eles mesmos – como: descobridores,

desbravadores, conquistadores e vencedores. Afinal, através de

um crime quase perfeito, extinguem quase todas as

possibilidades de resgate de relatos que apresentam a outras

perspectivas dos fatos.

A legitimação da Europa como o centro de distribuição e

validação dos discursos, uma das faces do eurocentrismo,

implica a concepção de que todo o não-europeu está

hierarquicamente situado numa posição inferior ou anterior,

precisando, desta forma, ascender ou avançar dentro da ideia

constitutiva de progresso. Este ponto de vista anuncia uma

única via possível de ingresso no domínio de um mundo

civilizado no qual vigora o frescor do novo sustentado pelos

pilares da racionalidade-científica: assemelhar-se aos que se

consideram criadores e protagonistas da modernidade. O

reconhecimento deste lugar de enunciação como o único

propagador de verdades corrobora a sua consolidação hegemônica

como um espaço não-situado, por isso destituído de interesses

e particularidades. Porém, a neutralidade do olhar não existe,

pois ele sempre é lançado não apenas por um determinado

posicionamento, mas também por um corpo que é atravessado por

características como: raça, classe, gênero, sexualidade. Vale

lembrar que, os sujeitos também se deslocam e carregam consigo

a inscrição de uma história. Assim, a hierarquização incide

não apenas na questão dos territórios, mas também na estrutura

daqueles que carregam consigo traços que se distinguem do que

se considera padrão de ―homem civilizado‖.

Logo, no rastro do artigo de Joaze Bernardino-Costa e

Ramon Grosfogel45, entende-se que a dicotomia superioridade e

inferioridade incidem não apenas na questão de uma

espacialidade geopolítica, mas também nas marcas que o corpo

45 BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón (2016) ―Decolonialidade e

Perspectiva Negra‖. Estado e Sociedade, v. 31, n.1: pp. 15 -24

Page 161: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

161

carrega consigo objetiva e subjetivamente. Da mesma forma que

o norte compreende-se a partir de um status superior em

relação ao sul, o indivíduo europeu ocidental –concebido como

o autêntico sujeito racional - posiciona-se de forma mais

privilegiada do que aqueles que dele diferem, apresentados

como primitivos e associados às esferas da natureza. Logo, a

noção de desigualdade hierarquiza a relação entre povos e

seres que se julgam em situação mais elevada em relação aos

outros e, em vista disso, outorgam-se o direito de: conduzi-

los à direção que eles creem como ideal, representá-los dentro

do campo subalterno que lhes reservam e até aniquilá-los sob o

pretexto de preservação da ordem. Esta dinâmica é recorrente

em situações que englobam racismo, por exemplo, no qual uma

etnia considera-se no direito de subjugar outra devido a uma

pretensa superioridade. Ela se mantém através de um sistema

que sustenta seus interesses que se imiscui no poder político,

na cultura, na epistemologia, entre outros meios.

Na América do Sul, especificamente onde hoje conhecemos

como Brasil, o regime colonial, tal como o conhecemos, é

inaugurado em 1500 com a chegada de Pedro Álvares Cabral, mas

o processo de dominação goza de longa vida. Ele incide nos

meios ambientais, sociais e intelectuais do nosso território.

Outrora pertencente a diversas nações indígenas que aqui

residiam, os europeus começam a impregnar a sua ordem sobre o

solo que encontram. Enquanto a ambição impulsiona o assalto às

riquezas nativas e o desequilíbrio na relação entre os

indivíduos e a natureza, o ímpeto de ocupar o espaço invadido

penetra as entranhas de terras e mulheres. Assim, a partir de

1532, segundo data Gilberto Freyre em Casa grande & senzala,

constitui-se um novo modelo de sociedade cujas bases se fincam

na agricultura, no núcleo patriarcal, no trabalho escravo e na

miscigenação racial. Segundo o sociólogo, a família se

configura como a força propulsora da colonização e se

Page 162: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

162

constitui como elemento central na constituição aristocrática

local. Cito:

A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem

nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o

grande fator colonizador do Brasil, a unidade produtiva,

o capital que desbrava o solo, instala a fazenda, compra

os escravos, bois, ferramentas, a força social que

desdobra em política, constituindo-se na aristocracia

colonial mais poderosa da América (FREYRE, 2003, p.81)

Inicia-se, sob o signo da exploração, a escrita de uma

versão da história na qual se apresenta um país que, tendo sua

solidez aniquilada, aparece como uma sombra projetada por um

obstáculo europeu. Sob a luz das ideias de razão, religião e

civilização, a metrópole manipula o perfil da colônia aos seus

moldes de forma que qualquer barbárie ganha, sob a sua

perspectiva, contornos justos. No que concerne à subjugação

humana, por exemplo, observa-se inicialmente uma

inferiorização a respeito da figura dos indígenas, pois, como

já apresentamos, eles são caracterizados com frequência nos

documentos europeus como bestiais e inocentes. Cito a carta de

Caminha: ―Parece-me gente de tal inocência que, se nós

entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos,

visto que não tem nem entendem crença alguma, segundo as suas

aparências. (CAMINHA, S/D, 11-12).

Porém, no século XVI, com a chegada dos primeiros navios

negreiros em domínios brasileiros, a escravidão dos cidadãos

oriundos de países africanos revela uma das mais perversas

formas de relações entre homens, embora nem mesmo a humanidade

lhes fosse concedida. Desagregados da própria terra e

provindos de distintos países, a população africana

transportada e comercializada desumanamente tem a sua mão-de-

obra explorada e seus corpos e culturas açoitados de forma

brutal. Verifica-se, assim, que ambos, indígenas e negros, são

animalizados, objetificados e mortos com o fim de atender aos

interesses da metrópole e das famílias que constituem a

aristocracia local. Neste aspecto, discorda-se da teoria de

Page 163: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

163

Freyre acerca da relação harmônica entre o contato de

distintos povos. Segundo o pesquisador:

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de

todas da América a que se constitui mais harmoniosamente

quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de

quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de

aproveitamento dos valores e experiências dos povos

atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização

da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador

com a do conquistado. (FREYRE, 2003, p.160)

A coexistência pacífica e enriquecedora entre os povos

nada mais é que um engodo estimulado pela iluminação de uma

perspectiva colonialista. No próprio discurso de Freyre, é

notório o aspecto hierarquizante que se estabelece, vide a

contraposição: povos atrasados e adiantados. Embora o

pesquisador brasileiro se empenhe na tese da existência de uma

relação mais amistosa entre portugueses e povos originários,

em comparação com os espanhóis, não há uma ―reciprocidade

cultural‖ tal como se expressa no trecho em destaque. Vale

dizer que esta falsa ideia de comunhão, que culmina no

conceito de democracia racial, é um dos aspectos responsáveis

por silenciar, ao longo de anos, um debate justo sobre a

condição da população não-branca no nosso país. Sobre esta

questão, Abdias Nascimento diz:

Desde os primeiros tempos da vida nacional aos dias de

hoje, o privilégio de decidir tem ficado unicamente nas

mãos dos propagadores e beneficiários do mito da

―democracia racial‖. Uma ―democracia‖ cuja

artificiosidade se expõe para quem quiser ver; só um dos

elementos que a constituem detém todo o poder em todos

os níveis político-econômico-sociais: o branco. Os

brancos controlam os meios de disseminar as informações;

o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as

armas e os valores do país. Não está patente que neste

exclusivismo se radica o domínio quase absoluto

desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de

―democracia racial‖? (NASCIMENTO, 2017, p.54)

Os domínios do senhor e do escravo são bem demarcados

desde a chegada das primeiras embarcações em solo brasileiro.

Quando não são exterminados, os indígenas, cunhados como sem

alma, são impelidos a adotar a cultura daqueles que adentram

em suas terras e servem de mão-de-obra para os que dela se

Page 164: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

164

apropriam. Além da violência da invasão de espaços e corpos,

muitos adoecem e morrem por acometimento de doenças trazidas

do norte. Porém, é imprescindível destacar que, apesar de todo

o genocídio, há resistência dos povos originários. No século

XVI, por exemplo, ocorre a confederação dos Tamoios, entre

1556 e 1567, na qual os Tupinambás lideram um levante contra

os portugueses; ademais, é preciso recordar que parte desta

população também se dirige para o interior com o fim de manter

a autonomia a respeito das próprias vidas e culturas,

liberdade inimaginável em espaços ocupados por europeus46.

A dialética torna-se mais ilustrativa com o advento do

tráfico de pessoas que são escravizadas no Brasil oriundas de

diversos países africanos iniciado no século XVI. Trazidos em

condições precárias por meio de navios nos quais são

transportados em porões de forma amontoada e expostos a

enfermidades distintas, cidadãos de várias nacionalidades são

avaliados e comercializados como objetos. Uma vez adquiridos

por um senhor, são submetidos a trabalhos árduos e jornadas

exaustivas. A mão-de-obra de indivíduos escravizados é

utilizada não apenas nas atividades que envolvem o cotidiano

da casa-grande, mas também, e principalmente, na produtividade

econômica do país, como: no século XVI nas plantações de cana-

de-açúcar, no século XVIII na extração de ouro e diamantes, no

século XIX no ciclo do café. Ainda no rastro de Abdias

Nascimento:

O papel do negro escravo foi decisivo para o começo da

história econômica de um país fundado, como era o caso

do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Sem

o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria

existido. O africano escravizado construiu as fundações

da nova sociedade com a flexão e a quebra da sua espinha

dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a

própria espinha dorsal daquela colônia. (NASCIMENTO,

2017, p.59)

46 Sobre a resistência indígena, ler mais em: RESENDE, Maria Leônia Chaves

de. LANGFUR, Hal. Minas Gerais indígena: a resistência dos índios nos

sertões e nas vilas de El-Rei. Disponível em:

http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a02.pdf Acesso em 08 de junho.

Page 165: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

165

É fundamental reiterar que, assim como os indígenas,

também há resistência em relação ao processo escravagista.

Destino de muitos negros que escapam da subordinação, o

quilombo se torna um espaço de fortalecimento dos povos

diaspóricos. No caráter individual, destacam-se os líderes

Dandara e Zumbi dos Palmares, nomes importantes quando se

trata do combate à escravidão e da preservação da cultura

afrodescendente. Portanto, entende-se que, apesar de toda

perversidade existente entre senhor e escravo em terras

brasileiras, tanto indígenas quanto negros não aceitam de

forma passiva a condição de dominação que se estabelece. Os

atos de insubordinação constituem esta história, embora, por

muitas vezes, estejam à sombra das narrativas oficiais. É

imprescindível enfatizá-los, visando ao estímulo para a

insurgência de todos aqueles que, ainda hoje, encontram-se sob

algum regime de sujeição.

Infelizmente, é impossível remontar exatamente a presença

dos povos não-brancos no nosso país em suas colaborações e

revoltas, bem como sua exploração e genocídio. Em artigo para

a Folha de São Paulo acerca das comemorações dos 500 anos do

país, José Murilo de Carvalho expressa que não se trata de

descobrimento, mas sim ―encobrimento do Brasil‖. O encontro do

português com a nossa terra é agressivo e marca o início de um

genocídio, sem pudores na utilização do termo, como Florestan

Fernandes destaca no prefácio da obra de Abdias Nascimento.

Conforme afirma o historiador mineiro, não tivemos um

Bartolomé de Las Casas para denunciar a violência contra os

indígenas e reivindicar proteção aos povos originários, um dos

motivos pelos quais dificulta a apuração da extensão precisa

da mortandade dos que aqui habitavam. A respeito do número de

negros ingressantes no país em razão do tráfico de pessoas,

assinala-se que em 1891, por exemplo, o então Ministro das

Finanças, Rui Barbosa, ordenou a destruição dos documentos

relacionados à escravidão. A tentativa de eliminar as sombras

Page 166: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

166

que permeiam a sociedade brasileira só as torna mais potentes.

Tal como afirma Carl Gustav Jung, também é preciso dialogar

com a face mais obscura com o fim de uma compreensão mais

coerente, e mais abrangente, de si.

A manipulação de dados oficiais somada à sustentação de um

discurso idílico sobre a nossa história apresentam um

simulacro da memória do país prejudicial para a compreensão da

nossa concepção enquanto povo brasileiro. Ao longo de séculos,

prega-se uma igualdade entre os cidadãos e uma pacificidade no

encontro das diversas nações que compõem a população

inexistentes no cotidiano. Vale lembrar que, ainda hoje, o

número de negros mortos e em situação social de

vulnerabilidade é exorbitante, mas as suas vidas consistem em

apenas estatísticas, como a morte dos jovens em Costa Barros47

cujo carro fora alvejado por mais de cem tiros pela polícia e

Cláudia Silva Ferreira arrastada por mais de trezentos metros

por uma viatura da PMERJ48; em situação semelhante estão os

indígenas que são expulsos dos seus espaços e mortos para

atender à ganância do Estado e das elites, como a morte dos

Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, e as investidas de

desapropriação dos habitantes da Aldeia Maracanã no Rio de

Janeiro. Estes são apenas alguns de muitos exemplos que

ilustram a condição cotidiana dos povos não-brancos no nosso

país.

Um dos legados da situação colonial no Brasil, o racismo é

silenciado durante muito tempo. A idealização de uma nação

isenta de conflitos étnico-raciais evidentes permeia o

imaginário brasileiro e, ainda que contradito pela realidade,

é responsável pela aceitação de que o debate sobre tais

questões é desnecessário no país. Ao sinal de mínima

racialização, principalmente quando se trata de discussões

sobre a implementação de ações afirmativas, abundam acusações

47 Bairro do Rio de Janeiro. 48 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro;

Page 167: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

167

de tentativas de criar um apartheid num Estado onde reina a

convivência igualitária de todos os cidadãos. Uma reflexão

sobre o texto da antropóloga brasileira Lélia González, Mito

da democracia racial: uma militância, ilustra esta concepção e

sugere, pelo menos, duas leituras possíveis. A primeira

constitui a noção de uma militância empreendida pelas classes

dominantes, donos da terra e intelectuais visando ao

arraigamento da concepção de homogeneidade responsável pela

manutenção dos seus privilégios. Este movimento brada pela

meritocracia e seus seguidores são cegos para a herança

histórica que deixaram para o país. Por sua vez, a segunda

leitura é uma convocação para que o povo negro, principalmente

as mulheres, porque elas compõem a base da pirâmide social,

atuem no interior do poder para lutar contra esta visão. É

preciso assumir as nossas diferenças e, assim, encontrar o

respeito responsável por uni-las.

Embora leis49 se sobreponham para assegurar a liberdade e

a garantia dos direitos de negros e indígenas, o cotidiano

demonstra que ainda há muita desigualdade entre brancos e não-

brancos no país. A conquista da coexistência entre cidadãos

distintos entre si precisa de um movimento que atue

concomitantemente nas três instâncias do tempo: passado,

presente e futuro. Os dois primeiros através do re-

conhecimento pelo qual o prefixo –re exprime o resgate de

outras perspectivas da narrativa da história – no mesmo

movimento do símbolo Sankofa cujo olhar se volta para trás com

o fim de buscar no passado a ressignificação no presente50 – e

conhecimento que, em sua origem latina, forma-se a partir do

49Embora se saiba que muitas vezes estas leis sejam convenientes àqueles que

estão no poder. 50 O conceito de Sankofa se assemelha à ideia expressa por Walter Benjamin

em ―Sobre o conceito de história‖, especificamente a nona tese, a partir do

desenho AngelusNovus, de Paul Klee, no qual o anjo da história volta o seu

rosto para o passado, onde se acumulam ruínas que se dispersam sobre os

nossos pés; impossibilitado de se deter para acordar os mortos e juntar os

fragmentos, é impelido para o futuro por uma tempestade, o progresso, para

o qual ele fica de costas enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.

(BENJAMIN, 1994)

Page 168: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

168

prefixo –com (junto) e do verbo gnoscere (saber); desta forma

uma possível interpretação etimológica se encaminha para a

ideia de ―saber junto‖. Isto é, um apreender que considera a

partilha, a associação com o mundo e com os demais. Esta

dinâmica possibilita apontar para o futuro com mais esperança.

É preciso reiterar que, embora se tenham abarcado alguns

aspectos sobre processos que em sua essência são muito mais

amplos e complexos do que o apresentado - colonização,

racionalidade, escravidão, resistência, genocídio e racismo -

não há intenção de se prolongar e tampouco se aprofundar na

natureza e nas vicissitudes dos temas, pois um trabalho de tal

porte demanda tempo e um debate multidisciplinar. Porém,

acredita-se na impossibilidade de propor um giro

epistemológico do norte ao sul sem que haja uma introdução dos

pontos em destaque, uma vez que eles se encontram infiltrados

em nossas terras, corpos e pensamentos, direta ou

indiretamente. É inegável que, especificamente no Brasil,

desde aquele encontro de 1500, muitas coisas mudaram. A

chegada dos povos europeus e, posteriormente, dos africanos

alterara profundamente as relações do homem com os meios

ambientais e sociais. Por isso, antes de se deslocar em

direção às demais reflexões, é imprescindível resgatar outras

perspectivas de iluminação para a memória e encontrar as

sombras para que, desta forma, não nos tornemos reféns de uma

história única, aquela tão perigosa que ChimamandaAdichie

(2009)51 nos adverte para termos cuidado: ―Quando nós

rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há

apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um

tipo de paraíso. ‖

51 Palestra ministrada para o Ted: Ideasworthspreading em julho de 2009,

traduzida para o português por Erika Rodrigues. Disponível em

https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/t

ranscript?language=pt-br. Último acesso em 17/06/2017.

Page 169: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

169

4.2 Sombras da Literatura

No princípio quando era o verbo

de tão pequeno me achava grande,

uma enorme sombra diante de um sol pequeno.

(Sérgio Vaz)

As ruínas do passado se acumulam de modo que alcançam os

nossos pés. Ora tropeçamos ou pisamos sobre os escombros ora

desviamos na ginga para evitar a dor. Ainda que, muitas vezes,

elas machuquem ou se agrupem de forma a imobilizar aquele que

deseja seguir o próprio caminho, o condicionamento inculcado

pelo complexo de inferioridade incita a desconsiderar a dor,

elevar o olhar para o belo e reproduzir reflexões pertencentes

ao mundo das ideias mesmas, tal como aquele designado por

Platão que nos ensina a desprezar a riqueza das sombras.

Reitero a palavra reproduzir, pois segundo a hegemonia

epistemológica que insiste em defender a neutralidade e a

objetividade do saber, o sujeito racional capaz de elaborá-lo

se inclina para a universalidade e não se ocupa das coisas

pequenas do mundo ou particularidades. Assim, segundo este

pensamento eurocêntrico, cabe aos pensadores do sul tentar

acompanhar o perfil das projeções lançadas pelo norte como um

corpo que se angula a uma determinada posição da luz com o fim

de projetar uma sombra que se adeque ao corpo que a projeta.

Questiono-me: se os países europeus impõem seus valores no

processo colonizador dos países do sul de forma que se

configurem ao seu modo e semelhança, o pensamento não se

apresenta mais facilmente como universal? Afinal, eles se

propagam de um lugar e encontram acolhimento na recepção de um

público criado aos seus moldes. Creio que esta pergunta

motivaria outra tese, mas é preciso lembrar que,

historicamente, as elites nacionais dos países que sofreram um

processo de colonização, como os sulamericanos, espelham-se52,

52 ―Aplicada de maneira específica à experiência histórica latino-americana,

a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que

Page 170: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

170

em grande parte, nas potências europeias53 e mantêm laços

estreitos com a sua cultura54. No Brasil, especificamente,

quando se trata das esferas artístico-crítico-epistemológicas,

recorda-se que, até a criação das primeiras universidades do

país, os jovens das famílias mais abastadas se dirigem para o

continente das metrópoles para cursar o ensino superior. Logo,

quando regressam para as terras brasileiras, deparam-se não

apenas com um modelo de sociedade diferente do que

experimentam no exterior, mas também gozam de prestígio, sobem

um degrau em relação aos locais que ainda não se deslocaram e,

muitas vezes, adotam valores e hábitos daquela sociedade.

Conforme afirma Frantz Fanon: ―quanto mais assimilar os

valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da

sua selva‖ (FANON, 2008, p.34).

A existência de uma centralidade distribuidora dos

saberes, temas e problemas é um aspecto de grande valia para a

reflexão que se almeja desenvolver. Um exemplo simples, mas

bastante provocador, está presente em Discurso sobre o

Colonialismo, de AiméCesaire. O autor da Martinica convoca o

leitor a pensar sobre a diferença de comoção existente a

respeito das barbáries presentes no nazismo e no processo

colonialista. Segundo o autor, a indignação mais latente

referente ao primeiro não se justifica necessariamente pela

selvageria do homem contra o seu semelhante, o crime em si,

mas sim pelo fato de que pela primeira vez um europeu aplica

na Europa meios de subjugamento que, até então, seus

compatrícios só tinham usado nas populações das terras

distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho

não é de todo quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços

históricos europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas,

ao mesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos

nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial

e distorcida. ‖ (QUIJANO, 2005, p.129) 53 Quando me refiro à influência europeia, penso especificamente em

leituras, costumes, vestimentas, entre outros aspectos; ainda que o anseio

de se europeizar não se adeque à realidade brasileira. 54 Embora se saiba que, a partir do século XX, haja uma presença mais

influente da cultura norte-americana.

Page 171: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

171

invadidas. Conforme abordado no subcapítulo anterior, os

instrumentos utilizados com a finalidade de dominar as

populações da América, por exemplo, indicam uma atuação tão

perversa quanto a existente no hitlerismo, porém não recebe

pesares com a mesma proporção, pois se aplica ao Outro e não

ao mesmo de si.

É preciso reiterar que não há intenção de desqualificar um

genocídio em proveito do outro, porque qualquer investida

contra a vida humana é em si absurda, porém é fundamental

assinalar a distinção de relevância entre as violências55. A

abordagem do exemplo instiga a reflexão sobre o

transbordamento dos impasses europeus para outros povos cujas

histórias também são marcadas por agressões extremas, muitas

vezes ignoradas em benefício do pensamento sobre questões

estrangeiras tomadas como relevantes para toda humanidade. A

título de elucidação, menciona-se a teoria literária que,

historicamente, mantém de forma majoritária um diálogo com

obras que sustentam o nazismo como o ápice do mal e

menosprezam a ação perversa que atingem seus irmãos em

territórios da América e da África. Adorno pergunta em sua

Dialética negativa sobre a possibilidade da criação artística

após Auschwitz e os críticos brasileiros se empenham em pensar

sobre tal viabilidade, mas ainda não há o mesmo esforço

coletivo em refletir sobre a possibilidade de re-conhecimento,

assim como o apresentamos antes, da arte de áreas periféricas

diante do genocídio outrora implementado pelo estrangeiro e

hoje pelo Estado aos seus cidadãos.

Portanto, observa-se que a colonização também incide sobre

a produção e distribuição do conhecimento. Aníbal Quijano

assinala que a situação colonial reconfigura historicamente, a

partir da Europa, a identidade geocultural dos países que a

vivenciam. O pesquisador peruano destaca três operações por

55 Vale lembrar que, ainda hoje, século XXI, no campo geopolítico um

atentado isolado na França abala mais o mundo do que o genocídio

implementado em Alepo, na Síria.

Page 172: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

172

meio das quais o reordenamento se efetiva: a expropriação das

populações colonizadas dos descobrimentos culturais mais aptos

para o desenvolvimento do capitalismo, a repressão das formas

de produção do conhecimento destes povos e a imposição do

aprendizado da cultura dos dominadores em tudo o que for útil

para a reprodução da dominação. Desta forma, instala-se o que

ele designa uma ―nova intersubjetividade mundial‖ a partir da

qual a Europa incorpora distintas histórias culturais a um

único domínio que lhe pertence. Cito as palavras do autor:

A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias

culturais a um único mundo dominado pela Europa,

significou para esse mundo uma configuração cultural,

intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à

articulação de todas as formas de controle do trabalho

em torno do capital, para estabelecer o capitalismo

mundial. Com efeito, todas as experiências, histórias,

recursos e produtos culturais terminaram também

articulados numa só ordem cultural global em torno da

hegemonia europeia ou ocidental . Em outras palavras,

como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa

também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas

as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em

especial do conhecimento, da produção do conhecimento.

(QUIJANO, 2005, p. 121)

Tal dinâmica confere ao centro hegemônico um pólo de

universalidade dos quais os demais derivam. Isto é, enquanto o

núcleo elabora e distribui os movimentos criativo-crítico-

epistemológicos legitimados como aplicáveis a toda humanidade,

as margens se ocupam de adaptá-los às suas particularidades.

Por sua vez, quando as últimas empreendem alguma produção

original a partir do local ao qual pertencem, prontamente o

fruto da sua criação é caracterizado como etnocêntrico, ou

seja, particular de um grupo étnico, de uma nação. A partir da

escala de classificação oriunda desta abordagem, o universal

figura como mais relevante, porque supostamente abrange um

interesse geral; os demais, em contrapartida, consistem em

matérias de valor apenas para uma comunidade específica, sem

conexão com outras realidades. A naturalização desta concepção

é prejudicial à atividade da reflexão, uma vez que se nega a

problematizar o sistema sobre o qual o conhecimento se

organiza ao longo de séculos. Por isso, é fundamental colocá-

Page 173: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

173

la também em questão para preservar a prática que é própria do

desdobramento do pensamento.

Entende-se que toda criação intelectual e artística está

impregnada das experiências do corpo que a desenvolve, pois

aquele que a compõe o faz a partir de determinada perspectiva.

Como afirma o filósofo Julio Cabrera no título do seu artigo

―Europeu não significa universal. Brasileiro não significa

nacional‖, as elucubrações da mente humana são necessariamente

políticas. A diferença entre um projeto que se lança como

universal e designa os demais como políticos ou singulares

consiste na instauração de uma concepção hegemônica na qual se

vigora uma ideia de neutralidade de um saber objetivo e

absoluto capaz de camuflar seus aspectos ideológicos para se

colocar hierarquicamente numa posição superior em relação aos

demais. Um exemplo elucidativo mencionado pelo investigador

argentino é a crença de alguns pesquisadores - ele se refere

especificamente aos filósofos, mas defendo a abrangência para

outras áreas – de que ―quando alguém fala em ‗idealismo

alemão‘ refere-se a algo destinado à humanidade, mas quando se

fala em ‗filosofia brasileira‘ não expressa nada que tenha

sentido‖ (CABRERA, 2014, p.20).

No que concerne à Literatura Brasileira, especificamente,

as línguas e as culturas da Europa têm influência direta em

sua formação. Seguindo os escritos de Antonio Candido (1999),

lembra-se que a destruição de grande parte da cultura dos

povos originários, bem como a sua aculturação, e a

transposição do ―equipamento espiritual‖ da metrópole para a

colônia geram uma presença potente das letras europeias no

Brasil. A literatura é um dos sistemas que se estruturam pela

―dialética do localismo e do cosmopolitismo‖, nomenclatura do

crítico brasileiro, no qual se alternam períodos de um

nacionalismo latente - quando se busca a valorização dos

elementos do país e até a tentativa de superar a presença

estrangeira, como a tentativa de Mário de Andrade de imprimir

Page 174: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

174

no literário uma língua brasileira – e outros em que há uma

conformidade de adequação aos padrões europeus sem a

preocupação de constituir uma obra originalmente do país.

A partir do momento em que se desestruturam as referências

locais de cultura existentes, a reconfiguração se funda com a

chegada dos portugueses. Sob o olhar do outro, surgem as

manifestações literárias responsáveis por desnudar, através

das letras, as características da terra e da população que

encontram. Anteriormente mencionada, a carta de Pero Vaz de

Caminha marca o início dos registros em língua portuguesa no

país e inaugura um período no qual estrangeiros desvelam por

meio de crônicas, cartas e diários os pormenores do lugar onde

chegam, ora imprimindo fotograficamente o que se apresenta ora

inserindo aspectos fantasiosos distantes da realidade. O

caráter informativo se mescla à expressão subjetiva de homens

que veem no solo com que se deparam uma potência para o seu

ímpeto de dominação. Segundo Candido, o espanto diante das

novidades fomenta o uso da hipérbole, responsável por

manipular durante dois séculos – ―ampliando, suprimindo,

torcendo, requintando‖ – os fatos tais como eles se apresentam

(CANDIDO, 2014, p.103)

Posteriormente, com a reorganização da população uma ordem

social nova se estabelece. O reordenamento ocorre a partir,

principalmente, da presença de grupos indígenas resistentes ao

extermínio implementado com a entrada do homem branco, da

entrada de milhares de cidadãos oriundos de diversos povos

africanos, da chegada de europeus de distintas nacionalidades

e dos que aqui nascem desde então, miscigenados ou não. No

sistema em vigor, a divisão de classes já se manifesta e tem

em sua elite a pequena parcela da população, majoritária,

senão exclusivamente masculina, que acessa à educação formal.

Um dos mais conhecidos autores brasileiros do período

designado como barroco, Gregório de Matos representa o tipo

social característico desta elite: filho de família abastada

Page 175: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

175

que estuda em colégio jesuítico, dirige-se para cursar o

ensino superior na Europa, especificamente Portugal, onde,

depois de formado, representa político-juridicamente o Brasil

e, por fim, retorna ao país com um cargo garantido e trazendo

consigo a cultura da nação que o abrigou e dos lugares por

onde esteve.

O deslocamento das classes mais altas garante não apenas a

legitimação da língua portuguesa nos domínios do Brasil, mas

também a importação dos movimentos culturais do velho

continente para o país. No que concerne à literatura, os

estilos e assuntos chegam por via dos que ingressam ou

daqueles que retornam. Desta forma, ainda que surjam alguns

escritores com nacionalidade brasileira, a produção literária

sofre influências dos modelos europeus. Ademais, o acesso

restrito à educação limita o domínio linguístico do idioma,

por isso as habilidades da leitura e da escrita representam,

desde então, um instrumento de poder em nossa sociedade. Uma

vez que apenas a Constituição de 1988 reconhece a obrigação

formal do Estado de assegurar a educação pública para todos os

cidadãos do país, a proficiência do português pertence a uma

parcela mínima da população, desigualdade existente ainda

hoje56, pois, até aquele momento, o ensino de qualidade é uma

oportunidade reservada às famílias das classes mais altas.

Portanto, ler constitui uma atividade de um grupo privilegiado

do país cujas bibliotecas se fundam majoritariamente a partir

de obras europeias. Já a respeito da escrita, o produzido

durante a era colonial é contaminado por tais ideias tanto em

forma quanto em conteúdo, apesar de muitas vezes os temas e

problemas estrangeiros não corresponderem ao entorno social no

qual os escritores estão imersos.

56 É preciso lembrar que, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional de

Amostras por Domicílio), em 2016 ainda há 12,9 milhões de pessoas

analfabetas no país. Sendo que, de acordo com o INAF (Instituto de

Alfabetismo funcional), apenas 25% desta parcela domina plenamente o

idioma.

Page 176: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

176

Ainda tomando como base os escritos de Candido, entende-se

que apenas na segunda metade do século XVIII, sob as reformas

implementadas pelo Marquês de Pombal, o Brasil inicia um

processo de emancipação intelectual. Imbuído da tarefa de

fortalecer Portugal para superar a crise na qual o país se

encontra durante o período, ele implementa mudanças

administrativas que englobam a colônia. Entre as quais,

ressaltam-se a retirada do monopólio jesuítico do ensino e a

criação de aulas régias, consequentemente, afasta o controle

da igreja sobre a estrutura educacional. De acordo com o

crítico, na mesma época, a formação europeia dos jovens

nobres, outrora predominada pelos estudos jurídicos,

diversifica-se e amplia o número de habilitações científicas

presentes no país. Quando retornam, anseiam implementar os

conhecimentos na sociedade de origem; ademais, o contato com

as ideias iluministas soma-se a tais fatores e gera uma

atmosfera propícia para os movimentos autonomistas que têm na

Inconfidência Mineira um dos seus principais expoentes.

É fundamental reiterar que, já no século seguinte, a

chegada da Coroa portuguesa modifica a dinâmica da vida

brasileira, principalmente das elites. No que tange ao

literário, o início das atividades da imprensa, a chegada da

tipografia e a inauguração de bibliotecas públicas são alguns

dos elementos responsáveis por dinamizar a arte das letras no

Brasil. Alguns anos depois, com o advento da independência, a

agitação ao redor da ideia da composição de uma literatura

genuinamente brasileira ganha um vulto mais amplo. Tal

autonomia se alicerça na afirmação de uma originalidade do

produzido e no rechaço da influência portuguesa. Porém, mesmo

que, progressivamente, a atividade literária tenha começado a

ganhar um impulso para seguir caminho próprio, ainda se

verifica uma preocupação latente de corresponder aos modelos

europeus.

Page 177: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

177

No Romantismo, por exemplo, o movimento indianista

influenciado pela ideia do ―bom selvagem‖, de Jean-

JaquesRosseau, almeja ao enaltecimento da figura do indígena.

Contudo não é raro encontrar a construção dos personagens de

forma idealizada ou estereotipada. Em Iracema, por exemplo, a

representação da protagonista é constituída a partir de um

olhar que a infantiliza e a subordina ao europeu; além disso é

descrita de forma sexualizada na narrativa, não à toa o

narrador a apresenta como a ―virgem dos lábios de mel‖. Por

sua vez, aquele com quem terá um filho é identificado como um

―jovem guerreiro‖ que se autodeclara do sangue ―do grande povo

que primeiro viu as terras de tua [do pajé] pátria‖. A

comparação das personagens já ressalta a hierarquização destas

presenças no romance de José de Alencar. Cita-se abaixo um

trecho no qual Martim, apresentado por Iracema como um enviado

de Tupã, chega à cabana de Araquém, tem suas necessidades

saciadas pela personagem principal e recebe a oferta de homens

e mulheres disponíveis para protegê-lo e servi-lo:

O mancebo sentou-se na rede principal, suspensa no

centro da habitação.

Iracema acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que

havia de provisões para satisfazer a fome e a sede:

trouxe o resto da caça, a farinha-d‘água, os frutos

silvestres, os favos de mel e o vinho de caju e ananás.

Depois a virgem entrou com a igaçaba, que enchera na

fonte próxima de água fresca para lavar o rosto e as

mãos do estrangeiro.

Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho pajé

apagou o cachimbo e falou:

— Vieste?

— Vim, respondeu o desconhecido.

— Bem vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de

Araquém. Os tabajaras têm mil guerreiros para defendê-

lo, e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te

obedecerão. (ALENCAR, S/D)57

A demanda de criação de uma literatura nacional que versa

com suas próprias raízes ganha ênfase em dois períodos

específicos: o Romantismo, como já mencionado, e o Modernismo

cujos contornos ganham formas no início do século XX. Neste

57 Disponível em

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/iracema.pdf

Page 178: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

178

último, uma vez mais, busca-se a autonomia da nossa produção,

todavia segundo Antonio Candido, já não há mais um vínculo

forte com a necessidade de desagregação das letras

portuguesas, porque já não se acredita na potência da antiga

metrópole de exercer influência direta ou se apresentar como

um obstáculo para a cultura do país. O alvo dos modernos é a

ruptura com a própria tradição de um ―academismo58‖ que se

forma na arte brasileira e a libertação estética dos moldes

estrangeiros. O compromisso com uma representação alicerçada

nos valores do país é implementado e, para isso, torna-se

fundamental colocar as lentes que permitem compreendê-lo em

suas vicissitudes e não apenas como um borrão sobre o qual se

criam possibilidades de realidade. Elaborado por Oswald de

Andrade, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil é um exemplo da

efervescência da época:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de

ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são

fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento

religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os

cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica

rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o

ouro e a dança. Toda a história bandeirante e a história

comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o

lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma

cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A

riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de

jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado

doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e

dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel.

Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de

dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi

assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos

cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade

universitária. Mas houve um estouro nos aprendimentos.

Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas

sopradas. Rebentaram. A volta à especialização.

Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de

casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas.

Alegria dos que não sabem e descobrem. (ANDRADE, 1976)59

58 Termo de Antonio Candido (2014) 59 ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto

Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e

crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes;

Brasília: INL, 1976.

Page 179: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

179

No que concerne à crítica sobre a erudição caricatural que

se instala na arte brasileira, os modernistas logram êxito.

Afinal, eles censuram o modo de atuação do grupo no qual se

inserem. Como consta no fim do manifesto mencionado, o desejo

é por: ―Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações

de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia‖.

Pertencentes à classe de ―bacharéis‖ sobre os quais eles

mesmos debocham, provinham, majoritariamente, de famílias

ricas, constroem uma perspectiva de Brasil autêntico a partir

deste ângulo de observação e, por isso, não é raro encontrar

em tais escritos uma visão que flerta com a estereotipia. Eles

portam os óculos escuros que amenizam tons sociais que reluzem

na época e concentram no sudeste o berço de suas teorias

gerando uma visão restrita em contraponto ao que desejam. O

tema da valorização da riqueza étnico-racial ilustra o nosso

debate. Ele está expresso no manifesto de Oswald e faz parte

do projeto de resgatar a presença dos povos participantes da

formação do país. Porém, a preocupação de apresentar uma

identidade brasileira genuína desconsidera a situação de

desigualdade vigente, apartando-se dos conflitos e

sustentando a ideia de cordialidade que culmina em uma imagem

folclórica sobre o país.

Conforme observado, a formação da literatura brasileira,

apesar de derivar das letras europeias, pouco a pouco começa a

ganhar singularidade. Porém, uma questão se inscreve no rastro

das reflexões de Cuti60: esta arte literária brasileira é

composta por todos e para todos os brasileiros? Isto é, há uma

igualdade de representação dos grupos que compõem o país tanto

na produção quanto na distribuição e no consumo desta

literatura? Não é preciso acessar dados estatísticos para

constatar que não existe uma equivalência de participação,

pelo menos nas três instâncias mencionadas, de uma pluralidade

60 Na introdução do livro Literatura negro-brasileira, Cuti afirma: ―Afinal,

o Brasil é dos brasileiros, porém é preciso acrescentar que é de todos os

brasileiros‖ (CUTI, 2010, p.11) – grifo presente no original

Page 180: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

180

social. Porém, para que se mantenha o rigor científico,

menciona-se o estudo organizado por Regina Dalcastagnè,

professora titular da Universidade de Brasília, no qual se

traça um perfil de representação a partir da análise de

romances brasileiros, lançados entre 1990 e 2004, pelas

editoras centrais no período delimitado61. Em alguns resultados

quantitativos, observa-se que:

O romance brasileiro é majoritariamente escrito por

homens (72,7%) e sobre homens (62,1% das personagens do

sexo masculino, proporção que sobe para 71,1% quando são

isolados os protagonistas).

Quando são isoladas as obras escritas por mulheres, 52%

das personagens são do sexo feminino, bem como 64,1% dos

protagonistas e 76,6% dos narradores. Para os autores

homens, os números não passam de 32,1% de personagens

femininas, com 13,8% de protagonistas e 16,2% dos

narradores. Fica claro que a menor presença das mulheres

entre os produtores se reflete na menor visibilidade do

sexo feminino nas obras produzidas.

Mas a personagem do romance brasileiro contemporâneo

também é branca (79,8%), heterossexual (81%) e rica ou

de classe média (82,9%). Nota-se, desde já, que o

romance brasileiro abriga uma parcela muito pequena da

pluralidade de trajetórias estruturalmente condicionadas

presentes na nossa sociedade. (DALCASTAGNÈ, 2010, p. 47)

Embora seja uma pequena fotografia de um cenário amplo, os

dados da pesquisa são relevantes para a interrogativa

apresentada no parágrafo anterior. O protagonismo dos homens

brancos de classe média e alta nos romances, seja como autores

seja como personagens, influencia a representação presente nas

narrativas. Vale lembrar que tal constituição não é gratuita,

afinal, desde os primeiros passos das letras após a

reconfiguração do Brasil, a elite detém o seu domínio, por

isso étnico-racialmente ela é constituída por pessoas brancas

das classes mais privilegiadas. Por sua vez, como herdamos um

modelo patriarcal daqueles que impuseram seus domínios sobre a

nossa terra, tradicionalmente a mulher não participa

ativamente da vida pública do país até meados do século XX,

61 Indica-se a leitura dos textos ―Representações restritas: a mulher no

romance brasileiro contemporâneo‖ e ―Um mapa de ausências‖, de Regina

Dalcastagnè, onde a autora justifica a razão e a forma pelas quais

implementa tal recorte.

Page 181: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

181

salvo raras exceções. Assim, por mais que tenham uma formação

educacional através de preceptores, seus escritos ficam

restritos ao âmbito privado. Logo, o panorama exposto é um

indício de uma literatura elaborada por e para grupos

delimitados, sem contemplar a pluralidade social do país.

Em vista do apresentado sobre a história da literatura

brasileira e o panorama breve de um período mais

contemporâneo, é possível afirmar que a presença da população

não-branca é ínfima. Nesta trajetória, no que concerne à

inscrição de indivíduos negros, grupo no qual se concentra a

análise a partir de agora, afirma-se que, apesar de um aumento

gradativo ao longo dos anos, ela ainda é minoritária. Algumas

causas justificam este cenário, entre as quais destaco: o

apagamento de autoras e autores pela crítica, a dificuldade de

acesso das classes mais baixas à educação e o branqueamento de

escritores. Sobre o primeiro aspecto, assinala-se que a

organização de compêndios sobre a história da literatura

enfatiza a atuação masculina, principalmente dos pertencentes

a uma elite. Embora escritores como Castro Alves, Luiz Gama,

Cruz e Souza e Lima Barreto figurem na composição literária

brasileira, seus nomes aparecem de forma apartada, porque são

uma exceção em sua época. Por isso, não encontram um movimento

de vulto que os acolha coletivamente em seus temas; ademais

não contam com um público que encontre representatividade em

seus escritos.

A respeito da dificuldade de acesso à educação, lembra-se

que a abolição da escravatura dos cidadãos negros só ocorre

oficialmente de forma plena no século XIX com a Lei Áurea. Até

então, o lugar social que ocupam é subalternizado e raros são

os que conseguem alguma ascensão. Mesmo após este evento, este

grupo ainda se encontra deslocado na sociedade, porque embora

formalmente haja garantias legais de liberdade, não há

qualquer preocupação com a sua realocação social. Por isso,

muitos mantêm uma relação estreita com as atividades que

Page 182: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

182

realizavam até a promulgação da lei, em condições semelhantes

às que vivenciaram até então, outros encontram-se

marginalizados por não possuírem posses tampouco meios para se

inserir no mercado de trabalho. Sobre esta questão reflete

Abdias Nascimento:

Em 1888, se repetiria o mesmo ato ―liberador‖ que a

história do Brasil registra com o nome de Abolição ou

Lei Áurea, aquilo que não passou de um assassinato em

massa, ou seja, a multiplicação do crime, em menor

escala, dos ―africanos livres‖. Atirando os africanos e

seus descendentes para fora da sociedade, a abolição

exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado e a

igreja. Tudo cessou, extinguiu-se todo o humanismo,

qualquer gesto de solidariedade ou de justiça social: o

africano e seus descendentes que sobrevivessem como

pudessem. (NASCIMENTO, 2017, p.79)

Esta conjuntura somada à tardia universalização do ensino

público no país culmina em uma desigualdade histórica em torno

da educação formal de brancos e negros no Brasil. Desde o

século XX, com a implementação de políticas afirmativas62,

inicia-se um projeto que almeja reduzir esta diferença, porém

a herança advém de séculos, logo tal equidade avança, mas

ainda há muito o que fazer. Sobre o analfabetismo no país de

pessoas de 15 anos ou mais, verifica-se que, segundo material

do INEP63 com ano base de 2001, enquanto 7% dos brancos não

sabem ler e escrever, o número de negros e pardos está acima

do dobro, ele sobe para 16,6%. Se esta proporção está presente

no século XXI quando o sistema de cotas vigora em alguns

setores, é possível imaginar como a disparidade é maior no

intervalo de tempo que o antecede. Portanto, o contato dos

negros com as letras não foi facilitado resultando na

disparidade de sua atuação na literatura tanto como escritores

quanto como leitores.

62 Ler mais em Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma

reparação histórica, de Petrônio Domingues. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

24782005000200013. 63

http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485745/Mapa+do+analfabetismo+no+

Brasil/a53ac9ee-c0c0-4727-b216-035c65c45e1b?version=1.3

Page 183: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

183

O terceiro aspecto de destaque é a respeito do

branqueamento de autores, principalmente de um dos nomes mais

ilustres da nossa literatura: Machado de Assis. Símbolo de

genialidade da escrita, não há um comprometimento da crítica

hegemônica de marcar seu corpo étnico-racialmente, mas é

importante lembrar que, considerando a trajetória dos povos de

descendência africana no país, tal declaração é

representativa, porque desnaturaliza o ideal de que os negros

sempre estão em posição subalterna. Neutralizar este aspecto é

uma maneira de silenciar a história de um grupo e impedir que

ele se reconheça como parte constitutiva da memória do seu

país. Conforme João Gabriel do Nascimento afirma no título do

seu artigo, o escritor é ―o branco imposto e o negro

conquistado‖. Quando reflete sobre a representação de Machado

de Assis por um ator branco em uma propaganda veiculada, em

2011, pela Caixa Econômica Federal, ele registra um momento

recente que retoma o debate sobre a questão. A tentativa de

branquear o autor – primeiro presidente da Academia Brasileira

de Letras e um dos maiores escritores do país – é uma forma de

assaltar uma parcela da presença do negro na história da

literatura. Resgatá-la não deixa de ser uma forma de

reconquistá-la.

Além das problemáticas que influenciam a participação de

escritores e leitores negros na literatura nacional, enfatiza-

se a questão desta presença no próprio texto, principalmente

até o século XX, quando os Movimentos Negros ganham maior

vulto no Brasil. No período que antecede tal efervescência,

observa-se, à luz dos escritos de Cuti, que tal representação

se efetiva a partir de três perfis de escritores: os brancos,

os negros que não adotam o posicionamento de um sujeito étnico

e os que se posicionam desta maneira. Sobre o primeiro grupo,

Cuti assinala que, embora alguns autores brancos insiram

personagens negras nos seus escritos, não há subjetivação dos

mesmos. Geralmente, eles estão envoltos pela atmosfera dos

Page 184: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

184

estereótipos e corroboram o lugar atribuído socialmente ao

negro. Lembro a representação das mulheres negras em O

Cortiço, de Aluísio Azevedo onde Rita Baiana é a mulher negra

sexualizada e Bertoleza é aquela que tem a força de trabalho

explorada.

Por sua vez, quando se trata de autores negros é preciso

dizer que, independente de assumirem ou não um posicionamento

étnico-racial nos textos, eles constituem em si uma

resistência. Afinal, o ato de escrever em uma sociedade que

lhes reserva espaços sociais subalternizados já é

significativo para o panorama da história da nossa literatura.

Outro aspecto de ressalva consiste no fato de que estes

escritores sabem que a recepção dos seus textos alcança,

majoritariamente, uma crítica e um público brancos. A garantia

de prestígio no meio literário até o século XX também decorre

da correspondência de um horizonte de expectativas composto

por estes leitores. Portanto, eximir-se de determinados temas

também é uma maneira de assegurar uma possibilidade de êxito

na sociedade64, principalmente em períodos nos quais o processo

escravagista está em voga ou que a cordialidade das raças é um

tema presente. Sobre o ponto, Cuti afirma:

Escritores negros sempre tiveram de contar, como

qualquer outro artista, com a recepção branca. Ora, se o

escritor conhece a concepção de raça que predomina na

sociedade (no Brasil, a ideia de que não há

discriminação racial, ou quando muito apenas um ―racismo

cordial‖), procurará não ferir a expectativa literária

para não comprometer o sucesso do seu trabalho. Assim,

são aspectos lúdicos das formas culturais que procurará

empregar para dar um colorido negro-brasileiro a seu

trabalho, ou então um prosseguimento à exploração das

mazelas para provocar a comiseração do leitor. As

questões atinentes à discriminação racial tenderão a

ficar subjacentes ao texto, pois podem ser o ―tendão de

Aquiles‖ da aceitabilidade da obra e prejudicar o

sucesso almejado. (CUTI, 2010, p.28)

64 Regina Dalcastagnè, em ―Pluralidade e escrita‖ apresenta um discurso

semelhante quando destaca que o pesquisador ganha prestígio ao estudar um

autor consagrado, mas quando sua escolha recai sobre uma voz dissonante,

corre o risco de ser enquadrado em ―nichos menos valorizados na

Academia‖..‖É um investimento simbólico diante de nossos pares‖.

(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 10)

Page 185: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

185

A crítica não valoriza os textos de Machado de Assis que

enfatizam a questão do negro, apesar do autor se ocupar dos

temas cotidianos da sociedade brasileira. Por sua vez, as

análises dos escritos de Luiz Gama marcam a sua negritude e

denuncia a sociedade na qual se insere, vide o poema ―Quem sou

eu? ‖ em que discute poeticamente o termo bode que atribuem

aos negros. De igual maneira, Maria Firmino dos Reis

compromete-se com a sua ancestralidade. Considerada a primeira

romancista abolicionista brasileira, compõe Úrsula, publicado

em 1859, e denuncia os horrores do processo escravagista. Logo

no prólogo, a autora destaca as dificuldades de escrever sendo

uma ―mulher brasileira, de educação acanhada‖. As personagens

negras aparecem em sua narrativa e possuem não apenas uma

visão crítica da sua condição, mas também mantêm um olhar

ativo sobre as suas origens africanas. No conto A escrava, uma

das personagens afirma: ―Por qualquer modo que encaremos a

escravidão, ela é, e sempre será um grande mal. ‖ (REIS, 2009,

p. 242). Estes são alguns, entre outros exemplos que inscrevem

a obra da autora nos domínios de um espaço literário onde se

adota a questão do negro não de forma estereotipada, mas por

uma perspectiva crítica.

Considerando os fatores expostos, entende-se que por

condições histórico-sociais a constituição canônica da

literatura brasileira garante a sua solidez no bojo de uma

elite e deixa à sombra vozes que a ela não pertencem. Por um

longo período, os espaços literários e as silhuetas que não se

enquadram ao padrão estabelecido são designados, a partir

dele, como menores e recebem – com o fim de demarcar um status

secundário - títulos como periféricos e marginais. Poucos são

os que aparecem nos anais da história das letras e o que se

exibe sobre os tais é apenas o suficiente para escorar o

discurso frágil da existência de uma democracia

representacional. Aqueles que defendem com autoridade a sua

existência, ainda que oriunda de um lugar dissonante, e se

Page 186: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

186

inscrevem com autoridade para imprimir a própria enunciação,

prontamente são silenciados ou depreciados, numa tentativa de

manter incólume as bases sobre as quais um grupo restrito

estrutura seus privilégios.

No entanto, conforme vimos, é imprescindível atentar para

o que escapa à incidência direta da luz com o fim de descobrir

a sua potência e visualizar outras possibilidades de

constituição do todo. Desprezar o sombrio não é a melhor

estratégia, porque o seu fortalecimento traz o impulso

indispensável para reconfigurar todo um cenário que, aos olhos

de alguns, parece impecável. Porém, aqui, diferente do que

propõe Jung, tampouco há espaço apenas para um diálogo

amigável, porque os diretores da história não estão dispostos

à renunciar a exclusividade do seu protagonismo na condução

das norma(s)ativas. Não há concessões, por isso as sombras de

outrora impõem a sua presença e a ela atribuem a legitimidade

necessária para se constituírem como sujeitos das narrativas.

Elas se apropriam da escrita de si e, ao delinearem as

próprias vicissitudes que as formam, não rechaçam, mas

reconhecem a face umbrosa que as acompanha de um passado que

lhes fora arrancado. Portanto, libertam-se dos grilhões do

corpo que insiste em projetá-las e se compromete não só na

constituição de um eu, mas no re-conhecimento de outros que

com ela se unem na tentativa de uma definição mais plural do

que se compreende como Brasil e, consequentemente, Literatura

Brasileira.

Page 187: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

187

Page 188: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

188

5. As sombras vão escrever, e numa boa!

O lixo vai falar, e numa boa.

(Lélia González)

Uma voz negra ecoa em um dos encontros de pesquisadores

nacionais mais importantes do Brasil, a ANPOCS, Associação

Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Em

pretoguês65, Lélia González inicia a sua fala em 31 de outubro

de 1980 na reunião do Grupo de Trabalho sobre ―Temas e

problemas da População Negra no Brasil‖ e a primeira parte do

discurso intitula-se: ―Cumé que a gente fica?‖.

Através de uma epígrafe longa, a antropóloga narra a

história de uma festa promovida por brancos para apresentar um

livro sobre negros em que os primeiros ocupam os assentos à

mesa enquanto os últimos se ajeitam em cadeiras por trás

deles, sem que haja qualquer preocupação de acomodá-los no

mesmo espaço ao custo de algum aperto para aqueles já bem

posicionados. Incomodada com a situação, uma das negras se

levanta e vai reclamar no microfone sobre o que acontece na

festa. Diante da denúncia, a confusão se instala, a festa

acaba e os brancos reclamam da falta de postura daquela que se

manifesta contra a desigualdade presente.

Segundo seus críticos, não há um comportamento adequado da

moça diante da benevolência dos anfitriões ao conceder-lhes um

convite. Isto é, a mulher não retribui com seu silêncio o ato

de generosidade daqueles que estudam sobre a sua história sem

se preocupar em estabelecer qualquer diálogo. A ruptura da

cordialidade é o gatilho para o confronto, afinal, ela

participa de uma festa onde se apropriam da história do seu

povo sem, ao menos, oferecer-lhe um espaço de participação. Ao

toque da primeira ação contra a passividade, o simulacro de

aceitação dos convidados se desfaz. O acordo dos espaços

reservados e dos papeis de cada participante da festa estão

65 Termo utilizado por Lélia González para tratar das marcas de

africanização do português do Brasil.

Page 189: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

189

definidos e espera-se que não haja quebra de protocolos. No

entanto, basta uma revolta, para que o grito engasgado de cada

oprimido se levante e o ódio do opressor se manifeste. Assim,

as máscaras caem, o baile de fantasias chega ao fim e as faces

se mostram tais como são.

A epígrafe de González nos remete à uma releitura da

caverna de Platão. O berço onde o Ocidente acalenta os

primeiros momentos de sua história do conhecimento foi

embalado sob o ritmo da concepção idealista. A trajetória do

conhecimento ocidental se desenvolve a partir do mito que

privilegia o mundo das ideias em detrimento do sensível.

Conforme vimos no início da tese, consoante a tal perspectiva,

o lugar das sombras é cunhado sob a marca das aparências e

desprovido de valoração epistêmica. Neste mito, as ações se

desenrolam a partir do homem que, outrora acorrentado,

liberta-se e conhece não só os objetos que dão forma às

sombras – única visão que tinha anteriormente – mas também sai

da caverna, vê o sol e tudo o que compõe o exterior do lugar

onde estivera confinado. No diálogo, Sócrates questiona Glauco

se o indivíduo que vivencia a experiência não sente pena dos

companheiros que permanecem no espaço subterrâneo e o

interlocutor confirma a dó do sujeito acerca da condição dos

demais. Além disso, pergunta se ele não seria ridicularizado

se voltasse para a caverna e, frente à competição de distinção

de sombras, não conseguisse a nitidez necessária para

distingui-las – pela cegueira causada pela escuridão. Mais uma

vez, Glauco consente.

A alegoria platônica se vale das imagens descritas para

estabelecer uma hierarquização entre o apreendido através dos

sentidos e das ideias. Isto é, consoante esta perspectiva, a

realidade tal como se experimenta através do corpo comporta

apenas simulacros ao passo que no âmbito das ideais puras

concentra-se o conhecimento acerca das essências. É

fundamental ressaltar a exaltação ao espaço reservado ao

Page 190: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

190

inteligível e a depreciação das sombras, posto que elas

remetem de forma metafórica às aparências capazes de ludibriar

a visão de mundo dos prisioneiros. Vale destacar também que o

privilégio do ex-cativo de transitar entre os dois mundos

suscita um sentimento de superioridade em relação aos outros,

uma vez que durante a realização da experiência, segundo

Sócrates, haveria a possibilidade do homem se compadecer dos

companheiros. Este pesar se embasa no seu juízo de que todos

os demais, ao conhecerem os domínios da luz, rejeitariam a

morada das sombras. Na alegoria, a hipótese de rejeição das

ideias apenas abarca a condição de não as conhecer, porém não

se propõe a possibilidade de que alguns dos prisioneiros

prefiram a caverna à luz, mesmo depois de conhecer os seus

aspectos. A imposição da preferência sobre o luzente exclui a

escolha individual.

Na alegoria da caverna, a conjectura proposta considera

uma concordância daquele que é libertado com a supremacia do

mundo das ideias, pois esta seria uma valoração lógica de

acordo com os interlocutores. Consoante a tal pressuposição,

aquele cuja preferência se situe na caverna, o faz por uma

inabilidade espiritual de compreender, verdadeiramente, a

essência das coisas mesmas. Porém, propomos aqui uma nova

perspectiva. E se a possibilidade de sair da caverna fosse

comum a todos, já no primeiro momento, e a liberdade

propiciasse eleger o local de preferência? Afinal, a valoração

se impõe a partir da perspectiva de um indivíduo e o suposto

temor de sair dos companheiros levam em consideração o que

acontece a ele sem que a vivência seja acessível aos demais.

Pergunto, então ao leitor, alguns destes homens também não

poderiam escolher seu abrigo sob a luz do fogo mantendo o

diálogo com as sombras? A imposição de um único juízo a partir

da desigualdade de oportunidades dos habitantes incide na

ideia de que, apenas um grupo restrito de privilegiados sinta-

se no direito de estabelecer as regras para os demais com base

Page 191: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

191

na própria experiência sem considerar o que escapa à sua visão

de mundo. Logo, a validação de discursos só preza pelos que se

coadunam com os seus interesses, caso contrário, são cunhados

de forma depreciativa ou seus enunciadores são caracterizados

como incapazes de apreciar os valores supremos selecionados.

A alegoria da história do conhecimento no ocidente se

estabelece a partir da ordenação na qual poucos acessam os

saberes impostos como relevantes e os outros são detraídos por

se manterem na esfera do imediato. Assim, os primeiros se

autodesignam porta-vozes do todo, posto que se consideram como

mais aptos a compreender o mundo devido à manutenção de uma

relação estreita com a esfera da razão. No entanto, não há uma

discussão acerca da desigualdade existente no âmbito inicial

da questão, o porquê de que, inicialmente, apenas uma pessoa

acesse ao mundo das ideias e os demais só tenham a

oportunidade de desfrutá-lo depois do contato com as

impressões da vivência do primeiro homem a conhecer ambos os

mundos. Verifica-se, a partir do apresentado, que a narrativa

que comporta a epistemologia ocidental já revela em si um

caráter discriminatório responsável por designar os

autorizados a transitar nas esferas do saber e a legitimação

de apenas um meio de aquisição de instrução, ou seja, os

territórios da luz. Espera-se o silêncio diante do cenário

estabelecido e qualquer manifestação deve corroborar o

vigente, consolidado em estruturas mantidas ao longo de

séculos.

Após a longa digressão sobre Platão, apresentamos o mote

do presente capítulo: a rebelião. Decide-se denunciar a

disposição desigual no campo do conhecimento. É o momento em

que os habitantes da caverna questionam sobre os seus direitos

de acesso aos dois mundos, as sombras decidem se desassociar

dos corpos que a geram inscrevendo a própria presença e o caos

se estabelece na calmaria, até então, presente. Este cenário

permite um retorno à epígrafe de Lélia González. Não se sabe

Page 192: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

192

sobre a veracidade da narrativa acerca da festa, porém nos

interessa a desordem implementada por conta da discordância em

relação às injustiças existente no ambiente. O levantar de

vozes daqueles que são designados ao silêncio e à aceitação

ganha protagonismo e a revolta coletiva promove a

desestruturação hierárquica em voga. Esta ruptura de

expectativa não é aceita, mas ainda assim elas não recuam e

dizem: As sombras vão falar, e numa boa!

Enquanto uma outra perspectiva da alegoria de Platão

introduz o nosso capítulo, a apresentada pela intelectual

brasileira cumpre a tarefa de introduzir o pensamento da

autora sobre racismo e sexismo na cultura brasileira. Com o

fim de discutir o motivo de identificação entre dominado e

dominador, capaz de manter por anos a crença da democracia

racial, por exemplo, ela traz a baile Freud e Lacan através de

uma citação de Jacques-Alain Miller em que o escritor francês

afirma que a análise busca seus bens na ―lata de lixo da

lógica‖ e, por isso, ela desencadeia o que a última domestica.

Ela propõe um pensamento via psicanálise sobre a seguinte

questão ―por que o negro é isso que a lógica da dominação

tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? ‖.

Diferente do que impõem como natural - ―o negro falado,

infantilizado, tratado como terceira pessoa‖ - ela assume a

própria voz com todos os riscos que o ato implica. Consciente

de que ―Nós negros estamos na lata de lixo da sociedade

brasileira‖, González destaca a frase da epígrafe: ―O lixo vai

falar, e numa boa‖.

No rastro das palavras da pensadora, enuncio o mote do

presente capítulo: as sombras vão escrever, e numa boa! Após o

diálogo com as sombras que permeiam o passado do Brasil e

aquelas que se formam ao longo da construção do cânone da

Literatura Brasileira, interessa-nos o momento em que elas se

apropriam da palavra e se inscrevem como sujeitos do discurso.

Através da metáfora, dedico o capítulo derradeiro a escrita de

Page 193: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

193

nós, mulheres negras, que ao longo de séculos aparecemos no

espaço literário como meras projeções e em aparições escassas,

mas que, desde o fim do século XX, decidimos meter o pé na

porta do literário e exibir a nossa escrevivência66. Desta vez,

não nos contentamos com a posição de objeto e tampouco

versamos sobre temas predeterminados para as nossas letras.

Assumimos nosso espaço de representação e mostramos que a

nossa escrita tem carne, alma e a sombra diaspórica que nos

acompanha.

A escrita da mulher negra nasce de um corpo preto permeado

pelas experiências, possibilidades e interdições que ele

vivencia67. Tanto o expresso quanto o silenciado na matéria

literária perpassam a relação que a autora mantém com a

estrutura física na qual habita. Quando tal condição incide

esteticamente na narrativa, imprime no texto a subjetividade

de sujeitos que vivenciam o mundo a partir da história que

carregam na cor da sua pele. É uma literatura que surge de

outra perspectiva e, por isso, propicia a construção de novos

imaginários. Deste modo, escapa das armadilhas da estereotipia

e expressa artisticamente as complexidades que envolvem a

situação de ser negra em determinada sociedade ou em

deslocamento.

Considerando a relevância da escrita de mulheres negras

como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, propomos

uma análise na qual se contemplam duas obras representantes do

que se designa como literatura negro-brasileira ou afro-

brasileira. Sabe-se que ainda há um debate latente sobre o uso

da nomenclatura que classifica a produção literária elaborada

por autores negros com temáticas que abarcam tal identidade no

país. Neste estudo, priorizamos a primeira terminologia devido

à concordância com os argumentos de Cuti a respeito do

66 Termo utilizado por Conceição Evaristo no depoimento ―Da-grafia desenho

de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita‖ 67 Ideia concebida por Conceição Evaristo no artigo ―Literatura negra: uma

poética de nossa afro-brasilidade‖ publicado na revista Scripta.

Page 194: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

194

distanciamento que o termo afro pode suscitar na inserção

deste corpus na esfera do que se denomina como Literatura

Brasileira. O escritor acredita que a vinculação das

composições a uma origem continental enfraquece o elo de suas

conexões particulares com o conjunto de obras pertencentes à

cultura do país em questão. Visto que os textos escolhidos

para apreciação englobam as discussões sobre as problemáticas

do ser negro no nosso país, entendemos que a classificação

―literatura negro-brasileira‖ parece mais adequada. Sobre a

designação, ele afirma:

Denominar de afro a produção literária negro-brasileira

(dos que se assumem como negros em seus textos) é

projetá-la à origem continental de seus autores,

deixando à margem da literatura brasileira, atribuindo-

lhe, principalmente, uma desqualificação com base no

viés da hierarquização das culturas, noção bastante

disseminada na concepção de Brasil por seus

intelectuais. ―Afro-brasileiro‖ e ―afro-descendente‖ são

expressões que induzem a discreto retorno à África,

afastamento silencioso do âmbito da literatura

brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero

apêndice da literatura africana. Em outras palavras, é

como se só à produção de autores brancos coubesse compor

a literatura do Brasil. [...]. Como em um navio tumbeiro

literário são misturadas as literaturas para venda em

outras partes do mundo. Essa negação de singularidades

nacionais enfatiza ainda a dominação global, com

roupagem de um novo tráfico, agora de livros. (CUTI,

2010, p. 35-36)

Na obra das autoras que convido para o debate, destaca-se

a discussão sobre o que é ser mulher na sociedade brasileira.

Em Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus expressa -

através da escrita de si – o cotidiano da mulher favelada que

busca no lixo o meio de sua sobrevivência física e

espiritual68. Em meio a questões existenciais, também reflete

sobre aspectos sociais de seu entorno bem como sobre fatores

político-econômicos do seu país. Por sua vez, em Olhos d‟água,

Conceição Evaristo constrói um universo ficcional por meio de

contos no qual as personagens nos provocam à reflexão sobre a

potência das mulheres das classes mais baixas mesmo diante das

68 Lembra-se que Carolina também utiliza os papeis que encontra no lixo para

escrever seus diários.

Page 195: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

195

adversidades da vida. Exploramos ficcionalmente a

subjetividade de sujeitos em condições limite e conseguimos

humanizar o olhar diante de circunstâncias banalizadas pelas

manchetes dos jornais.

A escolha das literatas e de ambos os livros, em

específico, justifica-se pela composição de textos nos quais

as mulheres figuram não só como protagonistas, mas também como

condutoras da narrativa. Ainda que os reveses da vida

atravessem as suas existências, a lucidez diante dos fatos e a

solidez diante das mortes sucessivas que experimentam elucidam

a humanidade presente nos episódios que vivenciam. Os escritos

despertam a nossa sensibilidade para a condição humana em

tempos sombrios quando o capital vale mais do que a vida e a

hierarquiza, de modo que valores morais e financeiros se

imiscuem, justificando-se mutuamente. Os indivíduos excluídos

da ordem estabelecida, porque não dispõem dos recursos para

mantê-la ou que buscam sobrevivência –econômica, física,

espiritual – em espaços não autorizados pela sociedade são

invisibilizados ou objetificados. Há uma perda da sua dimensão

humana e, consequentemente, da sua participação sócio-

cultural, uma vez que na área político-econômica só servem

para compor o cenário ideal para a promessa dos que almejam o

poder.

As duas autoras observam a dinâmica social a partir de

lugares periféricos e conhecem a energia criativa existente no

entorno do foco luzente. Espectadoras privilegiadas do teatro

burguês, conseguem o distanciamento necessário para constituir

uma visão crítica do mundo que as cerca. Elas se deslocam

entre os espaços e, em cada um, assumem uma posição

específica, o que proporciona uma redefinição de suas

identidades. Digo, a escrita de Carolina Maria de Jesus revela

sua movimentação entre a cidade e a favela. Na sala de visitas

urbana, ela é uma catadora de lixo invisibilizada, destratada

por conta do odor resultante do seu trabalho ou alvo da

Page 196: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

196

compaixão alheia. Por sua vez, no quarto de despejo, a sua

afirmação como escritora e a tentativa de se diferenciar dos

hábitos dos demais gera uma distinção na concepção que tem de

si. No livro Olhos d‟agua, Conceição Evaristo se ocupa da

criação ficcional que privilegia personagens inseridas nas

margens, mas que não deixam de interagir com os espaços do

centro, seja fisicamente, como a personagem Maria, do conto de

mesmo nome, que começa com uma empregada doméstica que leva os

restos de comida da festa dos patrões para os filhos e fica

curiosa para saber se eles gostarão dos sabores que até então

nunca tinham experimentado, como o melão, seja através dos

meios de comunicação, como Dona Esterlinda, de A gente

combinamos de não morrer que acompanha a vida burguesa por

meio das telenovelas.

O aspecto fragmentário é outro fator relevante

compartilhado pelas suas composições. Enquanto a criação de

Carolina Maria de Jesus se expressa em forma de diário,

marcado pelas particularidades que envolvem as frações dos

dias e dos anos, o trabalho de Conceição Evaristo eleito para

análise se organiza ao redor de uma seleção de contos que,

devido às próprias características, concentra um teor alto de

tensão ficcional em uma forma narrativa curta. Embora os

fragmentos contenham uma autonomia em si, há um laço estético

que os une em conjunto. Arrisca-se dizer que tal estruturação

reflete as experiências de inter(rompimentos) destas mulheres

cujas próprias histórias são marcadas por descontinuidades69.

Desta forma, elas impulsionam o leitor para um movimento

constelar cujas partes são imprescindíveis, em igual grau de

importância, para a compreensão do todo. Além disso, é uma

maneira pela qual se garante a liberdade de reestruturação do

texto, sem que a autora imponha o seu próprio ponto de vista

àquele que se debruça sobre o seu escrito.

69 Ilustro: ambas nascem em Minas Gerais, mas mudam de cidade; têm

dificuldade de publicar os livros e depois vivenciam o êxito das

publicações. Suas vidas são marcadas por mudanças contínuas.

Page 197: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

197

A respeito da linguagem, destaca-se a insubmissão à norma

culta da língua portuguesa pela história que não se silencia

por conta da limitação formal de expressão. Em Quarto de

despejo, verifica-se o entrave do olhar crítico diante da

inscrição ortográfica de letras que se alternam por

apresentarem semelhanças fonológicas. À primeira vista, o

leitor mais rigoroso incomoda-se diante das inadequações

linguísticas oriundas do descumprimento das regras ditadas

pela gramática normativa. Porém, ao longo da narrativa, o

conteúdo se impõe de forma que incorporamos o pretoguês e ele

já não se torna um motivo de desconforto. Já nos diálogos

diretos das personagens construídas por Conceição Evaristo,

encontra-se a marcação oral tal como ela se apresenta para

alguns falantes da língua, porque são estruturas consolidadas

no seu ambiente comunicativo. No conto nomeado ―A gente

combinamos de não morrer‖, a frase é repetida entre amigos que

estão em meio a uma troca de tiros na favela. O leitor

ambientado na sociedade carioca reconhece a variação em voga e

identifica que a falta de concordância manifesta um recurso

estilísticos da escritora.

Apesar das adversidades para ingressar no mundo literário,

elas conseguem o reconhecimento público dos seus textos

nacional e internacionalmente. Estas mulheres não silenciam

suas letras diante dos obstáculos, porque são deles que saem

os temas de suas poéticas. Como diz Carolina Maria de Jesus:

―Os políticos sabem que sou poetisa. e que o poeta enfrenta a

morte quando vê o seu povo oprimido‖ (JESUS, 2014, p.39). No

caso dela, embora digam que Audálio Dantas a descobriu,

concordo com o ponto de vista de Conceição Evaristo no qual

afirma que, na verdade, a escritora descobriu o jornalista,

quando diante daquela presença menciona a existência do seu

livro. O primeiro impresso de sua obra, Quarto de despejo, sai

quando ela tem pouco mais de 45 anos. Já a escritora de Olhos

d‟água começa a publicar através do coletivo Quilombhoje e

Page 198: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

198

financia a primeira e a segunda edições do primeiro livro

individual, PonciáVicêncio, a partir de 2003. Só quando o

livro é indicado para o vestibular da Universidade Federal de

Minas Gerais, UFMG, em 2008, a editora assume os custos da

publicação. Entre a escrita e a publicação, há um intervalo

considerativo e sobre essa demora Conceição Evaristo diz:

Tudo para as mulheres negras chega de uma forma mais

tardia, no sentido de alcançar tudo o que nos é de

direito. É difícil para nós chegar nesses lugares. E eu

fiquei pensando esses dias, quando foi que Clementina de

Jesus aparece? Com mais de 60 anos. E a Jovelina Pérola

Negra? A própria Ivone de Lara, quando ela vai ter mais

visibilidade na mídia? E olha que estamos falando de

produtos culturais que, entre aspas, "são mais

democráticos". E a literatura, que é uma área mais do

homem branco, apesar do primeiro romance ser de Maria

Firmina dos Reis, uma mulher negra, as mulheres negras

vão chegar muito mais tarde.

Essa longa espera tem muito a ver com esse imaginário

que se faz da mulher negra, que a mulher negra samba

muito bem, dança, canta, cozinha, faz o sexo gostoso,

cuida do corpo do outro, da casa da madame, dos filhos

da madame. Mas reconhecer que as mulheres negras são

intelectuais em vários campos do pensamento, produzem

artes em várias modalidades, o imaginário brasileiro

pelo racismo não concebe. Para uma mulher negra ser

escritora, é preciso fazer muito carnaval primeiro.

(EVARISTO, 2017))70

Mesmo com todas as tentativas de interdição por parte da

crítica brasileira tradicional, a recepção dos textos tem

êxito. O alcance público dos escritos tarda, mas, assim que se

efetiva, demonstra a potência que guarda em si. Considerando

as obras das autoras citadas, verifica-se que, muitas vezes,

quando o lixo escreve, o luxo da estética aparece. Há aqueles,

como Ivan Cavalcanti Proença, que afirmam a impossibilidade de

Quarto de despejo constituir-se como parte da esfera do

literário. O crítico faz um discurso depreciativo da obra

durante uma homenagem à intelectual de Sacramento, no ano de

2017, na Academia Carioca de Letras. Ele afirma: ―Ouvi de

muitos intelectuais paulistas: ‗Se essa mulher escreve,

70 Entrevista concedida à Djamila Ribeiro para a revista Carta Capital

publicada em 10/05/2017.

Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/conceicao-

evaristo-201cnossa-fala-estilhaca-a-mascara-do-silencio201d

Page 199: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

199

qualquer um pode escrever'‖71. É latente o julgamento da obra a

partir da figura da autora e o receio da popularização de uma

arte que, ao longo de séculos, ficara restrito a um grupo

pequeno e privilegiado. Este argumento nos convida a

questionar: se o trecho a seguir fosse atribuído a Émile Zola

teria a mesma recepção? :

...Às oito e meia da noite eu já estava na favela

respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro

podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que

estou na sala de visita com seus lustres de cristais,

seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando

estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora

de uso, digno de estar num quarto de despejo. [...] Sou

rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no

quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.

(JESUS, 2014, p.37)

Convicta do valor de ambas para a composição das nossas

letras, proponho, nas linhas a seguir, uma reflexão sobre a

importância da apropriação da escrita e da representação por

grupos que, ao longo da construção da História Literária,

ficaram à sombra do que se apresenta como Literatura

Brasileira. Quando estas sombras tomam as letras para si e

valorizam temas que produzem uma reflexão crítica sobre a

condição que experimentam na sociedade, inscrevem solidez,

profundidade e cor em si de maneira que se fazem sujeitos. No

momento em que começam a formar um corpo também projetam uma

silhueta umbrosa, e no que concerne aos povos negros pode-se

dizer que esta que a acompanha é a própria diáspora que sempre

a cercará. Uma sombra sempre presente na qual vemos o nosso

perfil, enquanto indivíduos negros, mas não conseguimos

remontar integralmente por conta da destruição de nosso

passado. Outra possibilidade é a presença, na zona umbrosa,

daqueles que ainda não se apropriaram da escrita de si, mas

que na medida que percebem o movimento de seus semelhantes,

sentem-se motivados a assumir a própria representação na

sociedade.

71 http://www.revistaforum.com.br/2017/04/20/professor-branco-diz-que-obra-

de-carolina-maria-de-jesus-nao-e-literatura-e-provoca-embate-no-rj/

Page 200: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

200

A partir dos textos, almeja-se contribuir para a formação

de uma crítica comprometida com a pluralidade social do país.

Só assim, reconheceremos que a arte literária está sim aberta

a ―qualquer um‖ e não apenas àqueles que se encontram fechados

em seus gabinetes empenhados na sustentação de discursos

racistas, classistas, misóginos, homofóbicos, entre outras

formas de opressão, para assegurar o status inacessível do

literário. Desta forma, acredita-se encorajar a participação

de outros perfis de autores, editores e leitores na produção

da Literatura Brasileira e, consequentemente, possibilitar a

elaboração de textos que propiciem tanto um olhar crítico

sobre a nossa composição enquanto sociedade na formação de

novos imaginários.

5.1. Carolina Maria de Jesus, a escre(vida) das letras

... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que

sabemos o que encerra.

(Carolina Maria de Jesus)

Palabra por palabra yo escribo la noche.

(Alejandra Pizarnik)

Os dias passam e demonstram a brevidade da vida marcada

pela página de um diário. Não é o purgatório nem o inferno,

mas sim a favela e o asfalto em diálogo contínuo suturados

pela presença de uma mulher negra, catadora de lixo, mãe e

escritora. Nada passa desapercebido pelo seu olhar atento e o

cansaço dos dias não a impede de gravar no papel as impressões

de um mundo composto por muitas sombras. Elas estão por toda a

parte e revelam que, muitas vezes, não é através da luz, mas

sim por meio dos domínios umbrosos que encontramos as pistas a

partir das quais conhecemos mais sobre a vida, tal como vimos

na Comedia. Porém, diferente daquelas que conhecem o passado e

o futuro, tal como afirma Farinata no Inferno dantesco, no

Page 201: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

201

texto de carolineano as sombras nos apresentam o presente com

todo o jogo de claro-escuro que o engloba.

Carolina Maria de Jesus é escritora e protagonista da

narrativa da própria história. Em Quarto de despejo, publicado

em 1960, acompanhamos alguns de seus dias entre os anos de

1955 e 1960. Porém, a constituição do diário não se restringe

às expressões dos sentimentos da autora, mas também se ocupa

da análise arguta sobre os eventos de seu entorno. Entre

questões existenciais, imiscuem-se diversos temas, como os

políticos, econômicos, sociais e geográficos. Não à toa,

investigadores de diversas áreas do saber utilizam o livro

como corpus de seus estudos. Por meio de um processo

caleidoscópico, o leitor é convidado a ingressar na sociedade

brasileira do seu interior para o exterior, desvendando-a em

suas múltiplas faces.

Esta pluralidade é fruto de um corpo que está no mundo e

através dele se afeta, participando de uma realidade complexa

cujo fluxo nos atinge continuamente. Vale destacar o verbo

―afetar‖ da última frase, porque ele traz consigo o

acometimento da sensibilidade na relação do homem com o meio.

É o elemento sensível que propicia o perpassar de sua escrita

por temas diferentes de forma estética e crítica. Quando a

educadora AzoildaLoretto da Trindade discorre sobre o afeto,

fornece uma trilha possível para compreender a originalidade

do texto de Carolina Maria de Jesus. Percebe-se que o entorno

atinge a autora de forma que o registro dos fragmentos do seu

cotidiano bebe na maneira pela qual ela se coloca no mundo, ou

seja, presente, vigilante e questionadora. Por isso, não se

caracteriza apenas como descritivo, porque há um refinamento

estético da sensibilidade que agrega literariedade ao texto,

uma vez que é o fruto de suas afetações. Como ela afirma, ―Eu

tenho a mania de observar tudo, contar tudo marcar os fatos‖

(p.53). Menciono Azoilda Trindade que constroi parte de

Page 202: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

202

Fragmentos de um discurso sobre afetividade à luz do conto O

mundo, de Eduardo Galeano:

Em outras palavras, porque o mundo é um montão de gente,

um mar de fogueirinhas e para que as fogueirinhas

existam, queimem, sejam calmas ou tenham a intensidade

capaz de incendiar outras pessoas, é fundamental a nossa

afetividade. Porque afetividade tem relação direta com o

influenciar e ser influenciado, potencializar,

possibilitar. Porque afetividade está relacionada ao

gostar de gente, propiciar encontros, contatos, afetos e

afetações. Porque afetividade nos reporta ao corpo e

porque os corpos são potências, possibilidades,

amorosidade. A afetividade é uma manifestação corporal,

uma expressão corporal fundamental para os encontros,

contatos, para as expressões de desejos, pensamentos

individuais e coletivos, de emoções as mais diversas, de

sentimentos como amor, ódio, cuidado. Em síntese, a

forma, a maneira como estou/sou no mundo afeta o mundo,

as pessoas. (TRINDADE, 2006, p.103)

Na escrita carolineana, eventos simples, como a

impossibilidade de dar um par de sapatos para a filha no dia

do seu aniversário, desencadeiam uma série de reflexões sobre

questões socioeconômicas - ―atualmente somos escravos do custo

de vida‖ - e existenciais - ―Pensei na vida atribulada que

levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na

rua o dia todo. E estou sempre em falta‖. Através de imagens,

insere o leitor na esfera que a envolve: ―A Vera não tem

sapatos. E ela não gosta de andar descalça. Faz uns dois anos

que eu pretendo comprar uma máquina de moer carne. E uma

máquina de costura‖. Embora precise sacrificar seu corpo e

energia para o aparato de triturar vidas do Estado, ela não

consegue fornecer a infraestrutura básica para os filhos.

Porém, mesmo quando os suprimentos faltam, as palavras

abundam, possibilitando a formação da rede de retalhos cosida

entre a vida e a escrita na qual a escritora repousa e de onde

nascem seus sonhos e pesadelos.

Ainda que as frases curtas e os temas se alternem com

rapidez, conseguimos encontrar o fio pelo qual as partes se

suturam: a escre(vida). Talvez um gérmen precedente da

escrevivência, de Conceição Evaristo, sua sucessora. Entre

Page 203: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

203

parêntesis, a palavra vida ganha destaque, mas também se

inscreve dentro de um limite. Esta demarcação indica a

efemeridade dos dias que se intercalam dentro de uma

existência finita, a exiguidade de recursos para manter a

sobrevivência física e espiritual e as fronteiras pelas quais

a autora atravessa em busca de tais provisões. Porém,

associada a esta margem, está a raiz do verbo escrever

―escrev-― que se entranha na ―vida‖ por meio da letra ―v‖ e

com ela se imiscui, apesar das divisas impostas. Na obra

Quarto de despejo, as duas instâncias se entrelaçam de forma

que ambas se nutrem para manter o viço diante das condições

adversas. Vale dizer também que, a semelhança proposital com o

termo atrevida se justifica pela ousadia da escritora de se

afirmar em um meio que, continuamente, empenha-se em excluir

indivíduos com suas características sociais: mulher, negra,

pobre e moradora de favela. A insubmissão de assumir uma

identidade que o mundo lhe nega é um ato de coragem.

Acompanhar a mente ágil de Carolina Maria de Jesus não é

uma tarefa fácil.Ela demanda a atenção plena do leitor, uma

vez que os escritos se compõem de fragmentos do cotidiano, das

reflexões e da poesia da cuidadosa catadora de palavras. No

período em análise, há dias em que na mesma data constam

descrições de suas atividades - ―Deixei o leito, fui buscar

água - questões políticas – ―Eu, sempre fui ademarista‖ -

constatações pessoais - ―suporto as contingências da vida

resoluta‖- relatos sobre as jovens da favela – ―Come qualquer

coisa. Tem estomago de cimento armado‖ – afirmações de sua

escrita ―Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas

desagradáveis me fornece os argumentos.‖– apresentações de

sonhos - ―Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui‖ –

pensamentos sobre o impacto dos vícios nas famílias, quando

expressa a fala do filho - ―O homem que bebe não compra

roupas. Não tem radio, não faz uma casa de tijolo.‖ –

comparações entre o cotidiano da favela e a vida pública, como

Page 204: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

204

a associação da bagunça das mulheres da favela com o

comportamento de um político da época – ―As intrigas delas é

igual a de Carlos Lacerda que irrita os nervo. E não há nervos

que suporta. Mas eu sou forte!‖ (JESUS, 2014, 17-21). Os

exemplos mencionados estão todos em 19 de julho de 1955.

Porém, há outras ocasiões nas quais ela escreve apenas uma

linha, como em 10 de agosto de 1958: ―Dia do papai. Um dia sem

graça‖ (JESUS, 2014, p. 108), e é o suficiente para exprimir o

que lhe acomete.

No corpus em análise, nota-se o agrupamento de ideias em

pelo menos, quatro espaços principais: a favela, o asfalto,

céu e o papel. No primeiro âmbito, o aspecto coletivo está

presente, porque há uma interseção dos indivíduos que ali

habitam. As partilhas material e comunicacional são constantes

e entrelaçam as existências dos moradores. A torneira de onde

se pega água é a rede social de onde se distribuem as

notícias, ―enquanto esperam a sua vez de encher a lata vai

falando de tudo e de todos‖ (JESUS, 2014, p.57), ou seja, as

mulheres transbordam no período em que abastecem suas

vasilhas. Nesta esfera, as brigas também se destacam, pois

elas ganham, com frequência, a participação da vizinhança.

Conforme assinala a autora, quando se trata das desavenças

entre as mulheres no quarto de despejo, ―o que elas podem

resolver com palavras transformam em conflitos‖ (JESUS, 2014,

p.50), A aparição de trechos nos quais Carolina narra

desentendimentos com e entre os demais moradores é recorrente.

Muitas vezes, o consumo de álcool culmina em excessos e ela

reconhece o prejuízo que esta droga gera para o indivíduo – ―E

o dinheiro gasto em cerveja faz falta para o escencial‖

(JESUS, 2014, p.21) e para a comunidade, porque no dia em que

o guarda a interpela a respeito da diminuição do número de

chamadas da Rádio Patrulha, ela responde: ―é o dinheiro que já

não sobra para a aguardente‖ (JESUS, 2014, p.36). Sobre o

caráter coletivo, ressalto um trecho do livro:

Page 205: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

205

Em poucos minutos o boato circulou que a Vera ganhou cem

cruzeiros. E pensei na eficiencia da lingua humana para

transmitir uma noticia. As crianças aglomeravam-se. Eu

levantei e fui sentar perto da casa de D. Mariana. E lhe

pedir um pouco de café. Já habituei beber café na casa

do seu Lino. Tudo que eu peço eles emprestado, eles

empresta. Quando eu vou pagar, não recebem‖ (JESUS,

2014, p.24)

Por sua vez, a cidade causa, concomitantemente, fascínio e

desolação. O encantamento das ―mulheres e crianças tão bem

vestidas‖ (JESUS, 2014, p.69), a presença ―das casas com seus

vasos de flores e cores variadas‖ (JESUS, 2014, p.69) e a

―coroa de ouro que são os arranha-céus (JESUS, 2014, p.41) a

levam a uma comparação com o paraíso. No entanto, chama

atenção uma conversa entre ela e um homem cuja aparência

denuncia uma tontura de fome. Carolina pede para que ele

aguarde, porque vai vender uns papeis para lhe comprar uma

média, mas o homem recusa diante da justificativa de que a

catadora trabalha muito e não é justo que utilize seus

proventos para ajudá-lo. A impossibilidade de conseguir

dinheiro por conta de sua velhice resulta na fala de que na

cidade ―tudo é a dinheiro‖ e ele já não encontra emprego por

conta da idade. Segundo seu discurso, parece que há uma

resignação diante da morte e sua última frase é: ―Eu sei que

vou morrer porque a fome é a pior das enfermidades.‖ (JESUS,

2014, p54). Neste fragmento, é importante assinalar a solidão

na qual se encerram os pobres que habitam na cidade. Ali,

distante dos seus quilombos, encontram-se solitários na luta

pela sobrevivência. Ninguém se interessa pelos seus dilemas,

mas, naquele espaço, uma sombra reconhece a outra.

O preconceito dos moradores da área urbana esvazia as

subjetividades dos corpos pobres que compõem o cenário da

cidade de maneira objetificada. Frequentemente, as pessoas em

situação de rua e os transeuntes cujas aparências não dialogam

com os códigos sociais dos espaços citadinos figuram como

ameaças potenciais para a ordem burguesa. O esquivo do olhar

diante de suas presenças revela a dificuldade da sociedade de

Page 206: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

206

enfrentar as próprias sombras. Por isso, de forma recorrente,

há uma tendência de apreciá-los tal como os demais componentes

do ambiente. Digo, um ser humano coberto e adormecido no chão

já não gera qualquer comoção e tem a mesma relevância de uma

lata de lixo da qual os pedestres desviam para evitar o

tropeço ou o contato com o odor que exala. A recusa de auxílio

se apoia em justificativas frágeis embasadas em uma moral

burguesa mais fétida do que aqueles que não dispõem do banho

diário. Negam-se auxílios imediatos pelo conceito prévio de

que a condição na qual se encontram advém da indisposição para

o trabalho, censuram o estado de ebriedade sob a justificativa

de que sua situação provém da fraqueza diante do vício e

apoiam atos de extermínio para poupar a própria visão do

fracasso coletivo do modelo de sociedade sustentado.

Carolina, por sua vez, distingue o mal-estar da bebida e

da fome, assim como gostaria que reconhecessem que quando anda

suja não é por falta de higiene, mas sim por não ter como

comprar sabão (JESUS, 2014, p.98) A identificação da

necessidade do outro gera uma cumplicidade entre ambos, visto

que ela se propõe a lhe doar parte dos seus proventos escassos

e ele nega porque sabe da dificuldade da mulher para consegui-

los. A empatia do episódio nasce do elo sensível do encontro

entre duas sombras invisibilizadas no centro metropolitano. Os

moradores da região atribuem o estado do homem ao efeito de

entorpecentes e, por isso, o censuram, porque não discernem os

sintomas da fome. A catadora de lixo, por sua vez, encaminha a

mirada para o corpo frágil e detecta as manifestações de uma

condição bastante familiar. Logo, acolhe o seu semelhante com

oferta de comida e palavras, pois sabe que, muitas vezes, a

carência não é somente física, mas também espiritual.

Depois de perpassar o concreto das ruas, destacam-se as

passagens em que a autora discorre sobre o céu. Sobre este que

designamos o terceiro espaço, encontramos referências com alto

teor poético, como: ―Quando despertei o astro rei deslisava no

Page 207: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

207

espaço‖(JESUS, 2014, p.11), ―As nuvens deslisa-se para o

poente. Apenas o frio nos fustiga.‖ (JESUS, 2014, p.46) e

―Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é

horrivel pisar na lama.‖ (JESUS, 2014, p.58). A esfera celeste

lhe oferece a beleza gratuita capaz de transportá-la, por

alguns instantes, para uma atmosfera mágica. Porém, o encontro

é breve, porque as urgências da vida se impõem e o descenso do

olhar encontra, rapidamente, a realidade nua e crua, tal como

se observa na última das três frases mencionadas. Na poética

em análise, não há muito espaço para a fuga, porém, a mirada

em direção ao céu, é uma maneira de tomar um pouco de ar antes

de submergir mais uma vez nas águas turvas do cotidiano. Mesmo

que, às vezes, a angústia da terra também se reflita naquele

que a encobre. Talvez seja esta capacidade de apreciar a face

bela do mundo que permita a sobrevivência de alguns seres em

meio ao chacoalhar de um mar revolto que afoga tantos outros.

Faço referência a um destes momentos na narrativa:

... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens

vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas

suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o

astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se.

As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A

noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu

azul. Há varias coisas belas no mundo que não é possível

descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços,

quando vamos fazer compras. ofusca todas as belezas que

existe. (JESUS, 2014, p. 43)

O último espaço que colocamos em evidência é o papel.

Conforme a escritora diz, ―Deus devia dar uma alma alegre para

o poeta.‖ (JESUS, 2014, p.138), mas como a poesia nasce das

almas inquietas, é possível que a felicidade lhes roube a

vontade de escrever pela necessidade de simplesmente gozar os

bons dias. Os pensamentos sensíveis traspõem a realidade

rígida e conseguem encontrar a beleza nos cenários mais

adversos: ―E as lágrimas dos pobre comove os poetas. Não

comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os

idealistas das favelas [...] (JESUS, 2014, p.53). O ato de

Page 208: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

208

imprimir o cotidiano no papel organiza os pensamentos e a

realidade desta mulher, causa receio ao redor para aqueles que

temem ver o seu nome registrado no livro misterioso e

desestabiliza as nossas verdades. Mais ainda, a escritora sabe

o poder das palavras porque elas ―ferem mais do que espada. E

as feridas são incicatrisaveis‖ (JESUS, 2014, p.48). Ao longo

da leitura, observa-se que o fio da lâmina de suas letras

penetra na pele em direção às entranhas para fazer com que

sintamos algo parecido com a dor no estômago daqueles

golpeados pela fome.

O teor poético do diário de Carolina Maria de Jesus advém

da ressignificação de um entorno miserável, através das

palavras, para um público que já se encontra anestesiado pela

espetacularização da dor promovida pelas publicações

midiáticas. A repetição das mazelas da escassez, da maneira

dura de conseguir ganhar o mínimo para sobreviver e da

impossibilidade de atender os desejos mais simples dos filhos,

a partir da perspectiva de quem a vivencia, conferem outros

significados à realidade. A intensidade das experiências ganha

tonalidades: ―Cor roxa. Cor da amargura que envolve o coração

dos favelados‖ (JESUS, 2014, p. 34), ―Para dissipar a tristeza

que estava arroxeando a minha alma [...] (JESUS, 2014, p.154),

―É época das flores brancas, a cor que predomina. É o mês de

Maria e os altares deve estar adornados com flores brancas‖

(JESUS, 2014, p. 36), ―Quando puis a comida o João sorriu.

Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a

nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia‖ (JESUS, 2014, p.43) e

―Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo

amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se‖ (JESUS, 2014,

p.44). A escrita carolineana concede densidade e cor a

situações que estão esvaziadas e obscuras para uma parte da

população que não as experimenta. Outros autores podem

descrevê-las, é claro, mas o corpo que passa por esta condição

Page 209: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

209

consegue inserir uma subjetividade mais sólida do que aquela

oriunda apenas da observação.

A percepção externa sobre a favela e seus moradores surge

a partir do ponto de vista dos habitantes das casas de

alvenaria e do olhar invisível dos transeuntes da cidade.

Aqueles que residem próximo ao quarto de despejo, mas não,

necessariamente, dentro dele e nutrem uma repugnância pelos

seus moradores. Ela descreve: ―percebo os seus olhares de odio

porque eles não que a favela aqui. Que a favela deturpou o

bairro. Que tem nojo da pobresa‖ (JESUS, 2014, p.55). Estes

vizinhos representam a manifestação do ódio de classe presente

no país. Ainda que coabitem o mesmo espaço onde se localiza a

favela, tentam diferenciar-se como superiores, diminuindo-os

continuamente pela condição de pobreza. Ilustra-se com a fala

de uma das residentes: ―— Podia dar uma enchente e arrazar a

favela e matar esses pobres cacetes. Tem hora que eu revolto

contra Deus por ter posto gente pobre no mundo, que só serve

pra amolar os outros‖ (JESUS, 2014, p.56). Não é raro

encontrar episódios em que eles também reclamam da atenção que

os agentes culturais dedicam à favela (JESUS, 2014, p.81) e da

proteção que os políticos cobrem os favelados (JESUS, 2014,

p.32). No entanto, sabe-se que tais acusações não se

configuram como verdade. Geralmente, a presença do Estado se

faz para explorar as necessidades mais básicas daquele povo.

Por sua vez, o que designo como olhar invisível dos

transeuntes da cidade é aquele lançado por cidadãos que tem

acesso à infraestrutura básica para viver e inferiorizam os

que estão em uma condição social que os obriga a buscar na rua

o suprimento de suas necessidades, como: habitação e

alimentação. Eles ignoram a presença do outro de si pelas ruas

e, quando estes se aproximam, já entendem como uma ameaça ou

solicitação de esmola, conforme já discutido. Em determinado

momento, a autora apresenta um episódio no qual a filha entra

no bar para pedir agua e lhe dão 6 cruzeiros, pois ―pensaram

Page 210: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

210

que ela estava pedindo esmola‖(JESUS, 2014, p.129). Ainda

hoje, anos 10 do século XXI, a quantidade de pessoas em

situação de rua assombrosa. A concepção do senso comum é que

eles não têm interesse em trabalhar e não possuem família.

Ademais, a sujeira dos corpos causa rechaço, porém, como

destaca a catadora, nem sempre é uma questão de desleixo. Na

escassez, escolhas são imprescindíveis e já se sabe quem ganha

na disputa entre a comida e o sabão, pois como ela diz: ―se

ando suja é devido a reviravolta da vida de um favelado‖.

Por sua vez, a percepção do interior da favela em relação

ao mundo não é ingênua tampouco inexistente. A escritora

demonstra uma visão crítica a respeito dos eventos econômicos

e políticos do país. Como obtém dinheiro por meio da coleta de

papel, a imprevisibilidade dos ganhos torna o controle do

pouco que arrecada obrigatório. A entrada e saída de dinheiro

são praticamente instantâneas, porque, com regularidade, os

provimentos do dia saciam as carências da ocasião e a comida

consiste em uma das urgências principais. Por isso, o debate

sobre os preços é recorrente. Ilustra-se a afirmativa com o

trecho no qual ela expõe sua opinião sobre o aumento da

passagem estabelecido por um político preterido nas urnas,

Adhemar Dantas. Após dizer que o povo deveria ir no Palacio do

Ibirapuera e na Assembleia dar ―uma surra nestes politicos

alinhavados que não sabem administrar o país‖ (JESUS, 2014,

p.129), exprime: ―Quem viaja quatro vezes de ônibus, contribui

com 600,00 para a C.M.T.C. Desse geito, ninguém mais pode.‖

(JESUS, 2014, p.129). Num trecho poético, ela agrega:‖ Os

preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte.

Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais

feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.‖ (JESUS,

2014, p.60)

Sobre a política, há explanações tanto do período

eleitoral quanto da atuação dos governantes. De acordo com

Carolina, quando eles querem um lugar no poder, vão à favela

Page 211: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

211

em busca de votos, mas depois ignoram as demandas de seus

moradores. Constantemente, no caderno publicado, alternam-se

conversas sobre o cenário político do país. Esta temática

aparece a partir do ponto de vista da autora, em suas

reflexões – em um episódio no qual conversa com o tenente da

polícia e, diante da expressão da autoridade de que a favela é

um ambiente propenso para o desvio de conduta, ela pensa: ―se

ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os

políticos‖ (JESUS, 2014, p.29). Porém, também está presente

nas prosas tanto nas redondezas – em 19 de julho de 1955 ela

sai para buscar água e conversa com a vizinha sobre as

preferências de cada uma em relação a Ademar de Barros e Jânio

Quadros (JESUS, 2014, p.18) – quanto com os que estão em

outros espaços, como numa conversa de rua – quando durante o

trabalho na rua lhe perguntam sobre sua opinião a respeito de

Carlos Lacerda e ela responde ser ―Muito inteligente. Mas num

tem educação. É um politico de cortiço. Que gosta de intriga.

Um agitador‖ (JESUS, 2014, p.15). Faço referência a um trecho

que alude ao tema de forma bastante reflexiva:

... Quando um politico diz nos seus discursos que está

ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para

melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso

voto prometendo congelar os preços, já está ciente que

abordando este grave problema ele vence nas urnas.

Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos

semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa

sensibilidade[...] Quem deve dirigir é quem tem

capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa

o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é

fome, a dor, a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-

se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do

pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos

livrar o paiz dos politicos açambarcadores. (JESUS,

2014, p.38)

É interessante notar que não há desinteresse em relação ao

cenário nacional e tampouco desvinculação dos problemas

individuais com a cena governamental. De fato, nem sempre a

posição apresentada contém teor progressista, mas não existe

ingenuidade no tocante à postura dos dirigentes de Estado, e

de seus aspirantes, em relação aos mais pobres. A população

Page 212: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

212

aproveita os eventos promovidos com o fim de angariar votos

para suprir algumas necessidades imediatas, porém nem sempre o

desfrutar do benefício se converte em fidelidade na urna. Há

um discernimento sobre a conveniência de haver espaços de

carência para manter a atividade da máquina eleitoral com

discursos reprovadores da desigualdade e promessas falsas para

extingui-la. Diferente da percepção externa cujo pré-conceito

leva à crença de uma alienação total dos moradores das áreas

mais pobres, os escritos de Carolina demonstram que uma

catadora de lixo pode elaborar pensamentos críticos sobre a

cena do país.

Vale lembrar, como assinala Joel Rufino, que toda reflexão

sobre a autora não pode desconsiderar a sua composição

triádica. Segundo o historiador, há uma diferença entre a

mulher, a escritora e a personagem criada pela mesma. Em

relação à primeira, pouco se saberá, uma vez que constitui o

ser para-si, tal como designa Jean-Paul Sartre. Já sobre a

segunda é possível traçar um perfil graças ao acesso à sua

produção. O fluxo de consciência presente nos trechos da

edição utilizada para análise mostra uma mente perspicaz cuja

inquietude perscruta o entorno em busca de elementos para se

apropriar e examinar. Geralmente, o registro acompanha a

impressão sobre os fatos. Digo, não se restringe à inscrição

das aparências e busca a essência daquilo que se apresenta.

Carolina Maria de Jesus explora o mundo da mesma maneira que

os pesquisadores, sempre em busca das sombras que envolvem o

objeto. Porém, a localização em uma perspectiva diferenciada

torna o seu texto original e representativo. Se a sociedade a

relega ao espaço do irrelevante ou execrável, ela demonstra

que a sombra é capaz de expressão e, independente dos

obstáculos que se interpõem à escrita, toma posse do discurso

para inscrever o seu ponto de vista e as suas complexidades.

Desta forma, não se contenta em ser objeto de análise, mas

Page 213: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

213

coloca a si como ser pensante capaz de desbravar o mundo e

apresentar as suas impressões e criações.

Por sua vez, a personagem de si criada pela autora tem

traços do que Rufino designa como bovarismo. Isto é, com o fim

de elucidar a forma pela qual ela se compreende no mundo, ele

faz uma comparação entre Carolina Maria de Jesus e Emma

Bovary. De acordo com seu ponto de vista, ambas são

semelhantes no que se refere à ―distância entre o que se

pretende ser e o que se é realmente‖ (RUFINO, 2009, p.29), ou

seja, a vida imaginada com uma estrutura diferente da vivida.

O crítico explica que a autora não se reconhece em seus irmãos

de classe, mas sim em homens brancos que, em sua concepção,

teriam mais qualidade. Concorda-se, em parte com a afirmação.

Verifica-se que ela é crítica em relação ao lugar que ocupa na

estrutura social, mas é notório que, por mais que

materialmente a realidade a recorde sobre a sua condição de

mulher negra favelada, há um interesse pelo espiritual que a

distingue dos que com ela convivem. Em vários trechos, nota-se

uma tentativa de se apartar do meio seja por não consumir

álcool, não se envolver em confusão ou por ter cuidado nos

relacionamentos por conta de seus filhos. Ela preza pelo

intelecto de forma que este é o valor que faz com que admire

determinadas pessoas em detrimento de outras.

O anseio de dominar as palavras lhe é tão caro quanto o de

saciar a fome. As perguntas sobre o livro e os comentários

sobre o seu gosto de ler e escrever mexem com a sua vaidade,

porque para ela a capacidade intelectual é entendida como um

distintivo social. Muito se comenta sobre a personalidade

forte da escritora e no livro de Joel Rufino, inclusive,

assinala-se a ideia de que ela tenha sido uma ―pobre sozinha‖

por não ter interesse em se organizar coletivamente e por não

estimar o compartilhamento da vida com os demais. No entanto,

entendemos que o seu compromisso com o objetivo de se tornar

escritora é de tal ordem que adota uma postura diferente

Page 214: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

214

daqueles que a cercam. A sua compreensão sobreo literato é de

um sujeito diferenciado pelo trabalho com as palavras, por

isso, de alguma maneira, ela se distancia e se dedica

cotidianamente às letras para alcançar a meta que criou para

si.

A convicção de que conseguiria publicar o livro lhe dá

forças para suportar o cotidiano árduo. Ela não vacila em

relação aos escritos, porque publicá-los, em sua concepção,

não é uma hipótese, mas uma certeza, vide os verbos que

utiliza ao falar sobre eles: ―Eu percebo que quando este

Diário for publicado, vai maguar muita gente‖ (JESUS, 2014,

p.78).‖e ―há de existir alguém que lendo o que eu escrevo

dirá...isto é mentira! Mas as miserias são reais‖ (JESUS,

2014, p.46). Ciente da dinâmica de poder do próprio país,

revela: ―os editores do Brasil não imprime o que escrevo

porque sou pobre e não tenho dinheiro para pagar‖ (JESUS,

2014, p.133). Por isso, decide mandar os originais para os

EUA. Diante da negativa, expressa: ―Cheguei na favela. Triste

como se tivessem mutilado meus membros [...] A pior bofetada

para quem escreve é a devolução de sua obra‖ (JESUS, 2014,

p.154). Conforme visto, a rejeição do material faz com que ela

se sinta destituída de uma parte de si. Esta imagem corrobora

a hipótese de que a identidade de autora é uma certeza em seu

íntimo e, quando refutam os originais, é o momento em que o

mundo lhe declara: Carolina Maria de Jesus não é autora.

Este evento ocorre em janeiro, precisamente no dia 16.

Todavia, alguns meses depois, dia 8 de junho, encontra um

bilhete no chão de sua casa sobre a edição da obra. O

jornalista Audálio Dantas, de quem ela chamara atenção por

repreender os meninos no dia da inauguração de um parque com a

ameaça de que colocaria o nome deles em seu livro, deixa um

bilhete embaixo da porta e avisa também sobre a matéria que

sai no dia 10 no jornal O Cruzeiro. A emoção a envolve, porque

o grito por tanto tempo guardado no silêncio do caderno,

Page 215: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

215

finalmente se liberta para o mundo. Assim como a Sombra de

Alejandra Pizarnik, ela não se contenta com a casa e busca o

jardim onde resgata a alegria de viver o que se é. O jardim de

Carolina Maria de Jesus é retirar a sua obra do âmbito do

privado e levá-la para o público, porque desta forma, a partir

do olhar do outro, uma parte de sua identidade é assegurada.

Diante da recepção da obra, é possível afirmar: sou uma

escritora. A publicação é a flor azul que se abre, salvando-a

do precipício do pensamento, e permite que ela se veja sobre o

cisne:

O jardim, as vozes, a escrita, o silêncio.

— Não faço outra coisa além de procurar e não encontrar.

Desta forma, perco as noites.

Sentiu que era culpada de algo grave.

— Eu acredito nas noites – disse.

Motivo pelo qual não soube responder a si: sentiu que

lhe enfiavam uma flor azul no pensamento para que não

seguisse o curso do seu discurso até o fundo.

— É porque o fundo não existe – disse.

A flor azul se abriu em sua mente. Viu as palavras como

pequenas pedras disseminadas no espaço negro da noite.

Em seguida, passou um cisne de rodinhas com um grande

laço vermelho no pescoço interrogativo. Uma garotinha

que parecia com o cisne montava sobre ele.

— Esta garotinha fui eu – disse Sombra. (PIZARNIK, 2014,

p. 403)

Encontrar-se naquele espaço é a conjunção com todas as

possibilidades de si. Portanto, da mesma forma que o Texto de

Sombra da poeta argentina expressa, ela anseia existir para

além de si e como ela é, sem se contentar com o silêncio do

espaço em que nasce. Ela diz: Escritora!, o mundo nega e ela

reafirma: escritora, sim! Carolina Maria de Jesus não se cala

para manter a ordem estabelecida. A confiança a respeito da

própria identidade lhe garante a energia necessária para

conseguir, apesar das adversidades, mostrar seu pensamento

para o mundo. Mesmo sem dispor de uma estrutura mínima que lhe

permita produzir, como aquela sugerida por Virgínia Woolf, de

quinhentas libras anuais e de um teto todo seu, empenha-se no

trabalho intelectual e desenvolve uma obra original. Através

de uma produção que se desdobra em diversas formas, Carolina

Page 216: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

216

Maria de Jesus invade a cena literária e projeta-se não só

nacional, mas também internacionalmente, visto que seus

escritos ganham traduções para diversos idiomas.

O registro da luta da catadora apresenta o outro lado

desta figura que permeia o cenário dos grandes centros. Uma

mulher maltrapilha na cidade em busca de papel e de comida

trabalha diariamente pela sobrevivência de sua família. Ela

não é só arrimo da casa, mas também é responsável pela ordem

do seu barraco e a educação dos seus filhos. Além disso, é uma

escritora e se afirma como tal. Diante da fome e das condições

precárias, dedica-se com afinco à leitura e à escrita, porque

a erupção da expressão é mais intensa do que os obstáculos

capazes de impedi-la. Carolina Maria de Jesus, a escre(vida)

das letras, insere matizes e profundidade na literatura

produzida pela mulher negra. Através da escrita de si, pulsa a

subjetividade que transpassa vida, escrita e sociedade. No

momento em que se apropria da caneta, está segura da

relevância do próprio discurso e leva para o mundo o cotidiano

duro e, por vezes, poético de mulheres que inscrevem as marcas

da vida não só nas cicatrizes tatuadas em seus corpos e almas,

mas também na tinta impressa no papel.

Entende-se, no curso de nossa análise, que o diário é o

meio pelo qual a escritora – tradicionalmente relegada à

sombra da estrutura social e literária – inscreve a própria

presença no mundo. Desta forma, revela a complexidade que a

compõe e anula os conceitos prévios responsáveis pela

simplificação de sua existência. A partir do momento em que

talha as vicissitudes que a compõem, ressignifica os

imaginários que rondam o perfil social ao qual pertence. Isto

é, demonstra que a mulher negra e favelada não é um objeto do

mundo, mas sim um sujeito ativo capaz de refletir sobre

aspectos existenciais, políticos, econômicos e estéticos do

seu entorno. Através da Literatura, ela resgata o protagonismo

Page 217: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

217

e a humanização de indivíduos preteridos socialmente e

demonstra que a literatura é um direito de todos.

Quando se apodera da escrita de si e se in-corpora ao

grupo de escritores, Carolina Maria de Jesus materializa sua

presença no âmbito das letras. Porém, sabe-se que a natureza

umbrosa da qual advém propicia a criação de um texto que se

forma através de uma perspectiva distinta daquela produzida

pelo cânone. Quarto de despejo não compreende a autorreflexão

burguesa, situada no centro, diante das mudanças que a afetam

por conta da reestruturação do mundo, mas sim o desdobramento

do pensamento e o registro de uma representante das margens, a

partir da própria vivência, acerca do cenário degradante da

ordem que este grupo estabelece nas sociedades e nas

individualidades, por mais que não se afirme como tal. Desta

forma, ela gera uma tensão no padrão em vigência, porque

tensiona as verdades do centro a partir do que o circunscreve.

Assim, as silhuetas projetadas pelo corpo social e

literário tomam posse da tinta e imprimem corpo em sua

existência e produção. Este movimento provoca instabilidade na

estrutura em voga, pois estimula a participação ativa daquelas

que outrora não se sentiam autorizadas para compor as

estruturas instituídas. Contudo, a dinâmica em questão nasce

do âmbito periférico e, por isso, reconhece que a

materialização de si culmina na formação de outras projeções.

Isto é, no momento em que se incorporam, elas produzem outras

sombras e as empoderam a ingressar no universo do qual, agora,

fazem parte. A inserção de novas integrantes ocorre através de

um movimento horizontal – e não vertical-hierárquico - o que

contribui para a formação de um elenco de autores da

Literatura Brasileira mais inclusivo e, consequentemente,

plural.

A consolidação das sombras por elas mesmas provoca

rachaduras na concepção tradicional de literariedade e abre

espaços para abarcar o literário através de outras

Page 218: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

218

perspectivas. Uma dinâmica diferente se estabelece com

características mais democráticas e colaborativas. Muitos

literatos e literatas assumem seu protagonismo e narrativas no

rastro da produção de Carolina Maria de Jesus. A estrutura

hegemônica teme a popularização da arte e esta mulher

demonstra, através da própria produção, que qualquer pessoa

pode sim escrever Literatura. Conceição Evaristo, por exemplo,

autodesigna-se uma herdeira da tradição fundada pela sua

antecessora. A escre(vida) das letras escreve a vida das

sombras nas letras e as letras das sombras na vida. De forma

destemida, ela registra ―As sombras vão escrever, e numa

boa!‖e a potência de suas palavras intervém nos pilares que

sustentam a arte literária, abrindo possibilidades para outras

sombras que por ela queiram ingressar. Portanto, semelhante ao

verso de Alejandra Pizarnik, ―palavra por palavra, elas

escrevem a noite‖.

5.2. Conceição Evaristo:na vida das sombras caço as sombras da vida

uma página preta

não dá conta da nossa demanda

mas já é um outro negro começo

(Cristiane Sobral)

As mãos deslizam suavemente sobre o papel dando forma a

signos que pouco a pouco geram um mundo ficcional e uma

autora. O que se inscreve é a soma das histórias ouvidas, a

imagem das paisagens oferecidas ao olhar, os odores da

existência, o sabor da imaginação e o bom trato da textura das

palavras. Cada personagem, episódio, silêncio, frase ou

pontuação tem o seu sentido, porque nada é gratuito no espaço

em construção. A Criadora é uma mulher preta que num mundo de

luzes artificiais capazes de cegar os sentidos determina: Haja

sombra! E vendo que a sombra é boa, a coloca em diálogo com

luz. Do encontro nasce a penumbra, porque os raios advêm de

Page 219: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

219

uma fonte mais extensa, distinta daquela que outrora, por seu

modelo puntiforme, estabelecia o limite preciso responsável

pelo estabelecimento de dicotomias. Nesta cosmogonia, a

estética se inscreve na inter-ação, através da pluralidade,

respeitando a diferença e a presença de cada um dos elementos

que a compõem. E a vida, humm a vida, ela se estabelece no

não-lugar entre o claro e o escuro tal como ela mesma é. Nesta

história, nenhuma nudez será castigada e todas as sombras

serão registradas.

Acostumados com a estrutura de um sistema cujas bases se

fincam na separação de opostos, aprendemos a nos apegar a

extremos com o fim de encontrar um porto seguro. Sujeito ou

mundo? Razão ou corpo? Forma ou conteúdo? Estas são algumas

das perguntas que permeiam o modelo de história que herdamos.

No início do ensaio Literatura e Metafísica, Simone de

Beauvoir ilustra bem tais dilemas. Ela conta que aos dezoito

anos já tinha o hábito da leitura e destaca a intensidade de

sentimentos que a acometiam quando se debruçava sobre a ficção

ou à filosofia nesta idade. Quando fechava o livro, tanto o

tratado quanto o romance, sentia-se plena de forma que não

sabia onde encontrava autenticamente o seu prazer. A

necessidade de se ater a apenas um dos pólos lhe gerava a

angústia da responsabilidade de escolher um único guia em

direção a verdade. Ela diz:

Depois de ter pensado o universo através de Spinoza ou

Kant, perguntava-me ―Como se pode ser suficientemente

fútil para escrever romances?‖ Mas quando abandonava

JulienSorel ou Tess d‘Uberville, parecia-me vão perder

tempo a fabricar sistemas. Onde se situava a verdade?

Sobre a terra ou na eternidade? Sentia-me dividida.

(BEAUVOIR, 1965, p. 79)

Após a apresentação da questão, Beauvoir afirma que todos

os espíritos sensíveis que apreciam os sabores da literatura e

os odores da filosofia encontram-se, em algum momento, com

este impasse. De forma objetiva, ela sugere uma pista para

resolvê-lo: ―é no seio do mundo que pensamos o mundo‖

Page 220: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

220

(BEAUVOIR, 1965, p. 80). Ora, seguindo a indicação da autora

entendemos que, ao invés de decidirmos pela exclusão de uma

opção em prol da outra, estas formas de expressão são

possibilidades de explorar o mundo tal como ele se apresenta

para os indivíduos. Sabe-se que, quando expõe a situação, a

filósofa considera o debate entre realismo e idealismo, em

voga na filosofia do século XX, porém vamos nos ater ao

aspecto da frase que valoriza a ideia do desbravamento do

entorno em suas conciliações e múltiplas vicissitudes.

O mundo e os indivíduos são entidades complexas em

interação mútua. Segundo dados da ONU, a população mundial

estimada em 2017 é de 7,6 bilhões de habitantes. Quantos modos

de ver permeiam um planeta com este contingente humano? Não é

justo legitimar somente uma maneira de abordá-lo na medida em

que todas estas pessoas podem ser uma, nenhuma e cem mil. Por

sua vez, cada um destes seres o vivenciam desde um aspecto

geográfico com as próprias histórias, culturas e memórias. Que

prejuízo não compreender que as alternativas são infinitas

quando se trata de descrevê-lo e representá-lo! Se é no seio

do mundo que pensamos o mundo, diversas histórias cabem em uma

história de forma que a maneira mais justa de compreendê-la é

na interseção de seus inúmeros aspectos. Ademais, é preciso

lembrar que para além do homem, há um espaço dividido

imaginariamente em pontos cardeais e colaterais atravessados

pelos cruzamentos do tempo: presente, passado e futuro.

Conceição Evaristo é uma autora consciente de que o mundo

não repousa na tranquilidade de uma única versão. Ela sabe que

toda narrativa carrega o rastro das somas que compõem o

indivíduo que a enuncia. Quando produz o depoimento Da-grafia

desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha

escrita, convoca a memória para mostrar um dos rios que

deságua no mar de suas obras. Logo, a primeira imagem que

apresenta é a formação de um sol pelas mãos da mãe através do

encontro do graveto com a terra. Ela revela que este é um dos

Page 221: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

221

primeiros sinais gráficos com que teve contato e indica que a

imagem criada exigia não só o movimento dos dedos, mas também

do corpo da genitora. Este movimento-grafia, tal como o

designa, é a maneira pela qual a figura materna invoca a

presença solar. Portanto, a inscrição não é apenas uma

representação, mas também um chamado por aquilo a que ela

remete. A vivência descrita é um dos motivos pelos quais

Evaristo afirma ter descoberto ―a função, a urgência, a dor, a

necessidade e a esperança da escrita.‖ Logo depois, recorda o

encontro com o âmbito utilitário da escrita, uma vez que a

mulher que lhe deu à luz era lavadeira e repassava a lista de

devolução de roupas limpas para as patroas.

A mão solar tinha como ofício esfregar as roupas,

inclusive íntimas, de terceiros e ela mesma fora a guia das

primeiras letras da autora e se incumbia de folhear os poucos

impressos que chegavam à casa. Através delas também lhe chegam

os primeiros cadernos e as primeiras listas de tarefas.

Posteriormente, a autora adiciona a presença da tia de quem

Conceição Evaristo herda o gosto de registrar os fatos

cotidianos. A necessidade do acompanhamento escolar dos irmãos

enquanto a mãe se dedica à manutenção da casa a leva, com o

passar dos anos, a ensinar as tarefas para as crianças da

vizinhança no quintal de casa e, assim, começa a ganhar

algumas moedas dos pais em gratidão pelo desenvolvimento

escolar dos seus filhos. A partir deste relato, observa-se um

resgate da história da autora em um ato de reconhecimento das

diversas experiências que engrossam o mar de sua escrita. Ela

diz:

[...]creio que a gênese de minha escrita está no acumulo

de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das

palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e

adjacências. Dos fatos contados a meia-voz, dos relatos

da noite, segredos, histórias que as crianças não podiam

ouvir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava

todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia

palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo

ou dor dependendo do enredo das histórias. De olhos

cerrados eu construía as faces de minhas personagens

Page 222: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

222

reais e falantes. Era um jogo de escrever no escuro. No

corpo da noite. (EVARISTO, 2007)

A escrita no escuro, no corpo da noite, configura-se em

nossa análise como aquela que ganha vida pela perspectiva da

sombra e, por isso, apresenta um olhar distinto daquele ao

qual nos habituamos a dirigir a determinados agentes da

Literatura. Enquanto mulher negra oriunda das classes

populares, Conceição Evaristo inscreve-se como escritora e dá

vida e subjetividade às personagens que, geralmente, estão à

margem da estrutura social. No livro Olhos d‟água, por

exemplo, Duzu-Querença é uma mendiga, Maria trabalha como

empregada doméstica, Ana Davenga é mulher do chefe do tráfico,

estas são algumas mulheres que protagonizam o conjunto de

contos que integram o livro. Elas não aparecem de forma

coadjuvante, mas estão no centro da tensão ficcional através

da qual a narrativa curta se desenvolve.

A escolha do livro de contos também merece destaque,

porque se configura como um conjunto de relatos breves cujas

partes mantém autonomia, mas, em conjunto, expressam

possibilidades de totalidade a partir do ponto de vista em que

se apoia, tal como num caleidoscópio. A constituição

fragmentária fornece a liberdade necessária para o leitor

definir não só o próprio método de leitura, mas também

preencher as lacunas que as narrativas apresentam. Conforme

dito, nada é por um acaso na construção ficcional, por isso os

silêncios também têm a sua função e dialogam, principalmente,

com as experiências daqueles que no texto se debruçam. Logo,

verifica-se que a imersão no texto evaristeano exige

participação ativa na leitura, porque a sua realização se

efetiva no encontro com os olhos que o exploram. Em Clases de

Literatura, livro onde estão transcritas aulas que

JulioCortazar ministra em Berkeley em 1980, há um trecho no

qual o escritor de Rayuela compara a estrutura do conto com a

da fotografia para tratar do intercâmbio capaz de contribuir

Page 223: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

223

com a constituição do conteúdo a partir das pistas presentes

no cenário pequeno que se recorta:

Certa vez, comparei o conto com a noção de esfera, a

forma mais perfeita no sentido de que está fechada em si

mesma e cada um dos pontos infinitos da sua superfície

são equidistantes do invisível ponto central. [...] o

conto tende por auto definição à esfericidade, a se

fechar, e é aqui onde podemos fazer uma dupla comparação

pensando no cinema e na fotografia: o cinema seria o

romance e a fotografia, o conto. [...][o conto e a

fotografia] projetam uma espécie de aura fora de si

mesma e deixa a inquietude de imaginar o que se tinha

para além, à esquerda ou à direita. {...] são ao mesmo

tempo uma estranha ordem fechada que lança pistas sobre

as quais nossa imaginação como espectadores ou leitores

podem tomar e transformar em uma matéria mais rica.72

(CORTÁZAR, 2014, p.31)

No entanto, a atividade não se restringe à ocupação dos

vazios deixados pela autora, porque as próprias temáticas

introduzidas em suas narrativas não permitem uma apreciação

passiva do enredo. A pobreza, a violência e a desigualdade

social são algumas das questões abordadas. Contudo, gera-se

uma expectativa, porque a história não é apresentada a partir

da espetacularização da mídia, tampouco pela visão

desinteressada da classe média. O narrador dos contos

compromete-se a expressar as paixões e corp(oralidades) das

personagens envolvidas nos episódios. Nos contos mencionados,

o protagonismo das mulheres ilustra a visão a partir da qual a

trama se realiza. Através de Ana Davenga, vivemos os momentos

de tensão da personagem quando as batidas na porta quase à

meia-noite prenunciam a entrada de todos menos a do seu homem

e uma série de lembranças lhe assaltam o coração sob a

interrupção de frases que a recordam da ausência do

72―Alguna vez he comparado el cuento con la noción de esfera, la forma

geométrica más perfecta en el sentido de que está totalmente cerrada en sí

misma y cada uno de los infinitos puntos de su superficie son equidistantes

del invisible punto central. […] el cuento tiende por autodefinición a la

esfericidad, a cerrarse, y es aquí donde podemos hacer una doble

comparación pensando también en el cine y en la fotografía: el cine sería

la novela y la fotografía, el cuento. [el cuento y la fotografía] proyectan

una especie de aura fuera de sí misma y deja la inquietud de imagina lo que

había más allá, a la izquierda o a la derecha. […] son al mismo tiempo un

extraño orden cerrado que está lanzado indicaciones que nuestra imaginación

de espectadores o de lectores puede recoger y convertir en un

enriquecimiento de la foto‖ (CORTÁZAR, 2014, p.31). Tradução nossa.

Page 224: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

224

companheiro. Por sua vez, logo nas primeiras linhas, Maria

deixa uma reflexão quando fere a palma de sua mão no momento

em que corta o pernil para a patroa e deduz: ―Faca a laser

corta até a vida‖ (EVARISTO, 2016, p.40). Em seguida, aflige o

leitor nos segundos em que, após encontrar o pai de seu filho

primogênito no ônibus, onde lhe faz perguntas sobre o menino e

cochicha sobre algumas saudades, ele anuncia um assalto e,

depois da descida, um dos passageiros grita que ela conhecia

os ladrões. Já a narradora de Dudu-Querença nos afeta desde a

primeira imagem do conto quando diante da lata vazia a

personagem: ―lambeu os dedos gordurosos de comida,

aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado

presos debaixo de suas unhas‖. Logo depois, remonta-se a

chegada da menina à cidade, onde a promessa de uma vida nova é

prontamente revelada como uma casa de prostituição. (EVARISTO,

2016, p.31).

Cada uma, do seu jeito, mexe com instâncias do nosso ser

adormecidas por conta da repetição cotidiana das mazelas

sociais pelos veículos de comunicação. É difícil passar

incólume pelas situações apresentadas, porque é uma

oportunidade de refletir sobre outras faces possíveis das

histórias que nos apresentam. Os holofotes das câmeras incidem

sobre a morte do chefe do tráfico, as redes sociais viralizam

o linchamento promovido pelos que se autodesignam ―homens de

bem‖, o olhar cruza com corpos estirados pelo chão da cidade

como se eles fizessem parte do cenário urbano; enquanto o foco

luzente incide de forma que nos conduz a uma apreciação

parcial– classista, racista, machista – e desumana da vida,

Conceição Evaristo se ocupa de buscar a matéria de sua

narrativa nas sombras projetadas por esta luz. Assim,

interessa-se sobre os afetos dos bandidos, as angústias da

empregada doméstica e a anestesia mesclado ao medo daquelas

que se dedicam ao comércio do próprio corpo. O universo que

ganha vida através das suas mãos é um organismo vivo permeado

Page 225: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

225

de claroescuro, por isso se aproxima da vida e nos ajuda a

pensar o mundo em seu seio, tal como nos sugere Simone de

Beauvoir.

Embora tenhamos enfatizado, até então, em algumas das

narrativas protagonizadas por mulheres, decidimos analisar

mais detalhadamente o conto: ―A gente combinamos de não

morrer‖. A escolha se justifica pela capacidade da autora de

formar uma esfera perfeita tal como aquela sugerida por

Cortázar. Não que os demais escapem desta qualidade, mas na

trama em destaque a construção formal evidencia uma

constituição de vozes equidistantes que, em conjunto,

estruturam um todo sem, necessariamente, enfocar apenas um

ponto central. A partir de um jogo de luz e sombra entre falas

e silêncios, percebe-se a organicidade das relações a partir

de personagens conscientes da sua condição no mundo. O

discurso em primeira pessoa se insere em meio ao que é

expresso pelo narrador não-participante e permite uma

abrangência da matéria narrada através de perspectivas

distintas. Desta forma, nota-se que, assim como diz a canção

de Caetano Veloso, ―cada um sabe a dor e a delícia de ser o

que é‖, ou seja, diante de suas escolhas e das fatalidades da

vida cada membro sente-se lúcido a respeito da situação na

qual se encontra.

O papo é reto já nas primeiras linhas, uma vez que o

leitor se encontra imediatamente em meio à cena de ação na

qual ocorre uma troca de tiros. Sob o ―pipocar‖ dos disparos

de arma de fogo, ―a morte brinca com balas nos dedos gatilhos

dos meninos‖ (EVARISTO, 2016, p.99). Isto é, a ideia de

finitude humana e a alusão ao armamento interrompem a

possibilidade vocabular recreativa do campo infanto-juvenil.

Nota-se que, apesar da pouca idade dos participantes, o jogo é

o risco no chão do destino e o vacilo é pago com a vida, pois

não há lugar para o café-com-leite tampouco possibilidade de

pedir licença. No baile dos projéteis, cada um se empenha em

Page 226: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

226

manter o ritmo da respiração ativo e uma voz entoa o juramento

feito outrora: ―— A gente combinamos de não morrer‖. De forma

uníssona, um deles declama o verso cuja força se dirige não

apenas à resistência dos demais, mas acima de tudo o proclama

para si, como uma forma de não se render ao medo. O pacto

firmado é o elo vital de cada integrante do grupo, por isso,

entoá-lo diante do perigo, é a maneira mais eficaz de invocar

a sua potência.

A insubordinação à norma culta soa também como uma

rebeldia diante da morte do logos, aquele que, segundo

Aristóteles, caracteriza o homem enquanto tal. O espaço no

qual o episódio se insere tem as próprias leis e esta

afirmação fica clara no quadro apresentado em seguida quando

se descreve um dos meios pelos quais se dá cabo à vida: o

micro-ondas. Um corpo na lixeira carbonizado e, assim, ―a

morte incendeia a vida, como se estopa fosse‖ (EVARISTO, 2016,

p.99). No repositório onde se descarta o que já não tem

utilidade, extingue-se a vida e nasce a morte cujos sinais se

expressam através da fumaça que se erige no ar. De acordo com

as regras em questão, não há possibilidade de expressar

sentimentos, principalmente se o sujeito for do sexo

masculino. Então, o vapor da chama é a justificativa de Dorvi,

a primeira personagem mostrada na trama, para o lacrimejar de

seus olhos. Enquanto a fumaça da morte sobe, as lágrimas da

vida descem e mantêm um diálogo de intensidade para justificar

―qualquer gota ou rio-mar que surgisse e rolasse pela face‖

(EVARISTO, 2016, p.99).

A aspiração do pó interrompe os atravessamentos entre o

viver e o morrer. Porém, não é a partícula de potência de vida

como aquela descrita no livro de gênesis da escritura sagrada

cristã, da qual todos vêm e para a qual todos retornarão73, que

enche o pulmão do menino. O consumo de cocaína é a tentativa

73 ―No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela

foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás. ― (GENÊSIS: 3, 19)

Page 227: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

227

de se manter ativo diante da paralisia provocada pelo temor.

Digo, tentativa, porque o ―pó contaminado‖, ou seja, misturado

com outras substâncias não lhe proporciona o resultado

imaginado e ele o compara a ―talco para pôr na bunda de neném‖

(EVARISTO, 2016, p.100). Assim como a substância voltada para

a pele das crianças, o pó alivia as irritações da alma dos

adultos. A imagem que poderia remeter apenas à pouca

concentração de cocaína que a torna incapaz de lhe oferecer

torpor, aquele mesmo proporcionado para as classes sociais

mais altas em seus delírios, aponta para as primeiras

reflexões em primeira pessoa da personagem. Dorvi lembra do

recém-nascimento do filho e a incapacidade de encará-lo em sua

pequenez.

A imagem revela a dificuldade do garoto de lidar com o

aspecto frágil da vida, seja com as próprias lágrimas ou com o

nascimento do filho. Diante do corpo indefeso, ele ensaia

―cutucar o putinho com a ponta da escopeta‖ (EVARISTO, 2016,

p.100). A sucessão de sons das palavras - ―putinho‖, ―ponta‖,

escopeta‖ – demonstra que o ruído do projétil já está

entronizado em seu ser e ato de acariciar a criança com a arma

sugere uma realidade onde o afeto também nasce da rigidez e as

pulsões da vida e da morte estão sempre lado a lado. Dorvi

manifesta o desejo de que a criança se mantivesse ―na barriga

da mulher‖ ou que ficasse, como ele diz, ―incubado como

semente dentro do meu caralho‖ (EVARISTO, 2016, p.100), como

se o lugar da debilidade fosse somente no interior do corpo. A

partir do momento em que o mais vulnerável é exteriorizado, é

necessário que se envolva na proteção de fortaleza para

sobreviver à realidade dura que se impõe.

Diante da proximidade do instrumento ao corpo do filho, a

mãe se afasta com o pequeno e o pai afirma: ―Não sei para que

o medo‖ (EVARISTO, 2016, p.100). Com uma frase semelhante,

inicia-se a participação da mãe da criança na narrativa: ―Não

sei porque o medo‖ (EVARISTO, 2016, p.100). O entrelace está

Page 228: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

228

na incompreensão acerca do sentimento, mas enquanto para Dorvi

este elo se faz pela finalidade – não entende o propósito do

temor - Bica o enreda por meio da causa, uma vez que a origem

da consciência do perigo lhe gera estranhamento. Afinal, o

medo nunca a fez recuar, ao contrário, sempre fora uma força

propulsora. Ela afirma ―É como se o medo fosse uma coragem ao

contrário. Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo de dor

e pânico‖ (EVARISTO, 2016, p.100). O trecho poético demonstra

como esta dinâmica se efetiva: inicia-se com o medo,

transforma-se em coragem, ambos se misturam e por fim se

associam com outras sensações. Vale notar que, em meio à

aglutinação, surge uma referência ao gemer – ―coragemedo‖ e o

leitor já não sabe se a expressão é fruto de prazer ou dor,

porque ao longo da narrativa ambos se enredam de forma que uma

se efetiva como a sombra da outra, da mesma maneira que vemos

a vida e a morte pelos olhos de Dorvi.

O olhar poético de Bica compara o cenário do tiroteio a

uma festa na qual ―balas enfeitam o coração da noite‖

(EVARISTO, 2016, p.100). Mais uma vez, a beleza da vida é

cravejada pela rigidez da realidade, porque no espaço onde

habita o curso dos dias supera as narrativas ficcionais. Em

discurso direto, a jovem expõe que não gosta de filmes da

televisão, tendo em vista que nas películas ―morre e mata de

mentira‖ (EVARISTO, 2016, p.100). Ela sabe que ali, na favela,

―a morte é leve como a poeira‖(EVARISTO, 2016, p.100) e ―a

vida se confunde com um pó branco qualquer‖(EVARISTO, 2016,

p.100). Assim sendo, não há espaço para o encantamento pelo

simulacro a ponto de confundi-lo com o real tal como ocorre no

mito de Pigmaleão ou de Narciso. Ao contrário, a existência é

que vez ou outra traz consigo a neblina do irreal

materializado, como se os olhos almejassem não acreditar na

imagem que se impõe diante da retina. Há pouco espaço para

fantasia, porque o lema é ―um tapa, dois tapas, três tiros...‖

(EVARISTO, 2016, p.100).

Page 229: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

229

Nem a música pueril escapa das problematizações. Bica

relembra a canção entoada pela mãe quando ela e o irmão eram

pequenos: ―Um elefante amola a gente, amola! Dois elefantes

amola a gente, amola, amola!...‖ (EVARISTO, 2016, p.100). Após

a lembrança, a menina diz ―A vida é tanta amolação‖ (EVARISTO,

2016, p.100) e recorda a irritação do irmão diante da cantiga

que a fazia feliz. Outra vez, verifica-se o desdobramento dos

significados. Pensada para o entretenimento, a cantiga

infantil é o gatilho para a reflexão a respeito da vida. O

substantivo amolação remete ao aborrecimento. Por sua vez, o

verbo amolar sugere tanto ao ato de importunar quanto à ideia

de afiar. Através do canto, a mãe sublima os pesos da vida ao

mesmo tempo em que provoca a irritação nos filhos como se,

desta forma, os preparasse para rasgar as cargas que a vida

lhes colocará sobre as costas. O embalo serve para despertá-

los para os infortúnios que se multiplicam durante a execução

da sinfonia dos dias.

O jogo de perspectivas é frequente na trama. Na construção

do texto, Conceição Evaristo está atenta para as versões de

uma história e tal percepção se prolonga também para as

palavras. Os elementos da narrativa se desdobram e sugerem

faces diversas de si. O episódio das lágrimas de Dorvi, a

frase ―não sei para que/porque o medo‖, a multiface do pó e da

amolação são alguns exemplos que ilustram algumas das

refrações concebíveis a partir do texto. Esta característica

se estende à percepção dos fatos, porque cada personagem nos

oferece uma abrangência específica do que se apresenta na

trama. Porém, vez ou outra, os desmembramentos se amalgamam e,

em meio às fusões, outras possibilidades surgem tal como a

penumbra que se imiscui no espaço entre luz e sombra de

neologismos coragemedo. O claroescuro é o espaço do leitor,

nas entrelinhas, no entrelugar é onde a narrativa se efetiva

como gérmen de reflexão.

Page 230: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

230

No rastro da reminiscência, Bica traz o evento da morte do

irmão para a narrativa. O dia quando, após olhar a mãe de

soslaio depois dela ficar rouca e soluçar de tanto entoar a

música do elefante, pede a benção e sai. Segundo a jovem, ele

não chega a descer o morro, ―vacilou, dançou‖ (EVARISTO, 2016,

p.101), e a mãe recebe a notícia fatídica que o corpo do filho

está estirado no chão. Chegando ao lugar da execução, ela

acende uma vela e ―uma fumacinha-menina dançava ao pé de

Idago‖ (EVARISTO, 2016, p.101). À luz dos estudos de Roberto

Casati, lembra-se que a chegada da morte é concomitante à

perda da sombra, tendo em vista que o corpo deitado já não

projeta o seu duplo umbroso. No entanto, a narrativa em

análise enfatiza a última resistência: os pés. Alumiada pela

vela, a base de sustentação do corpo é a única capaz de

produzir sombra e mantém, assim, alguma resistência à extinção

da vitalidade. A morte é apresentada a partir do rasgar da

carne, da perspectiva do corpo e sem possibilidade de

transcendência:

Só ela, a fumacinha, a mãe e eu ali velamos o corpo do

meu irmão. Um tapa, dois tapas, elefantes, patas pisam

na gente. Escopetas, como facas afiadas, brincam

tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida.

Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo

tombou. Penso em Dorvi. Apalpo o meu. Peito, barriga,

pernas... Estou de pé. Meu neném dorme. Ainda me resto e

arrasto aquilo que sou. (EVARISTO, 2016, p. 101)

A fala de Dona Esterlinda segue as trilhas poéticas da

matéria de Bica, sua filha. A ―seca sonata‖ de balas ainda

ecoa enquanto a mão de Bica e do falecido Idago demonstra

irritação e troca o canal da televisão para uma ―programação

mais amena‖ capaz de ―entorpecer‖ os seus sentidos. Sob a

―saraivada de balas‖, cada participante encontra a droga que

lhe permite assegurar alguma sanidade. Esta mulher a encontra

na TV, onde a novela proporciona a vivência de uma outra

realidade. A ficção televisiva adormece o ruído incessante das

balas e representa ―a cachaça‖ que a transporta para um mundo

mais colorido do que aquele com a qual ela se encontra

Page 231: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

231

cotidianamente. Ela expressa que não gosta ―de ver os crimes,

roubos e nem noticiários de guerra‖ (EVARISTO, 2016, p.102).

Afinal, o espetáculo da violência promovido pela mídia não se

compara à produção cruel do cotidiano da mulher. Se a rajada

de balas lhe rouba o sono, a televisão, por meio do ficcional,

viabiliza um encontro com o sonho de viver a serenidade da

classe média por alguns minutos.

Este movimento proporciona um flerte com o pensamento de

Guy Debord, em sua teoria sobre A sociedade do espetáculo.

Para o autor francês, o espetáculo é um meio de dominação da

burguesia sobre o proletariado, uma vez que aliena o indivíduo

para as questões essenciais do mundo e para a problematização

da própria condição. No entanto, Conceição Evaristo promove

uma outra abordagem sobre o tema, na medida em que a fábrica

de representação é o instrumento pelo qual alguns membros das

classes populares conseguem acessar a atmosfera onírica, tendo

em vista que a urgência dos dias exige a manutenção do estado

de alerta constante. Não há ingenuidade frente à luta de

classes, mas o acompanhamento da trama na casa dos ―Rodrigues

Magnânimo‖ permite um momento breve de sono que a realidade

lhe rouba. Desta forma, conserva a saúde mental para enfrentar

os elefantes que permeiam a sua rotina74.

Conforme observado, a família da novela possui sobrenome

em contraponto às personagens apresentadas no texto em análise

que são identificadas pelo apelido ou apenas pelo nome. Este

aspecto demonstra uma marca de distinção social característica

da sociedade brasileira. Na casa ficcional, tudo é grande e a

beleza resgata a lembrança do filho Idago que, segundo ela,

poderia trabalhar na televisão. Sobre o filho, ela destaca os

talentos para a música e revela que o passar dos anos o tornou

74 Não promovo aqui o desmerecer da teoria de Guy Debord. Entende-se a

dimensão da alienação diante dos regimes políticos que se impõem, mas a

imagem de Dona Esterlinda propicia a reflexão sobre o uso da máquina do

espetáculo, de forma consciente, com o intuito de dormir quando a realidade

afoga o indivíduo.

Page 232: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

232

mais ―calado‖ e ―irritado‖, afinal: ―Tudo amolava Idago‖. Em

meio à fala, assinala a cantiga que aprendeu com a mãe e

acredita que os seus antepassados lhe tenham ensinado também.

Na sua memória se inscreve a versão de Idago para quem ela

acredita ―o mundo era só amolação‖: ―uma mãe amola a gente,

uma irmã amola a gente, um inimigo amola a gente, um policial

amola a gente‖ (EVARISTO, 2016, p.102).

A figura de Idago sombreia as falas de sua mãe e ganha

mais personificação sobre o ponto de vista de Bica. Ela

descreve o irmão como traidor e revela que, desde a infância,

a característica o acompanha. Naquele mundo, sabe-se sobre o

poder da informação e a delação é paga com o corpo ou a vida.

O jovem X-9 experimenta os dois castigos. Inicialmente, ainda

na escola, ele denuncia os companheiros que pegam a merenda e

entrega outras irregularidades. Após o aviso para a mãe cuidar

da boca traidora do filho de onze anos, derramam um vidro de

pimenta ―goela adentro daquele que cultivava a língua

venenosamente solta‖ (EVARISTO, 2016, p. 103). Ali, as

palavras são cuidadosamente manejadas com o fim de selecionar

o dito e o silenciado e, desta maneira, preservar o ―código de

honra‖ vigente. Senão, o descuido com a medida do discurso

custa a vida, porque: ―As palavras, às vezes, feriam segredos

e escorregavam pela ladeira abaixo parando lá na delegacia‖

(EVARISTO, 2016, p.103). O deslize do verbo, tomba o jovem.

Este é o meio de evitar o telefone sem fio que desce a

informação da boca ao pé do morro como o traçar de um bondinho

que se desloca para a parte mais baixa do teleférico.

A roda da narrativa passa novamente a fala para Bica,

consoante ao parágrafo anterior, e depois retorna para Dorvi.

Sobre a explosão do vulcão que fumega da matéria do não dito,

ele assinala a potência da lava transbordante. Quando se torna

o dito, espalha-se e carrega o que está no seu caminho. Como

um rizoma, os assuntos se bifurcam e Dorvi sabe que os seus

superiores estão informados da dívida no entorno da sua área.

Page 233: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

233

Por isso, na cascata de responsabilidades, ele é encarregado

de cobrar dos demais o que lhe exigem também. No acerto de

contas, a tortura é uma das formas da vingança e ele lembra

que ―faca amolada corta e pode ser um jogo lento‖ (EVARISTO,

2016, p.103). Sentimos o afilar da lâmina no momento em que

confessa ―arrancar os bagos‖ (EVARISTO, 2016, p.103) do

traidor. Na cadeia hierárquica cada parte responde pelo todo,

logo ― a dívida do outro é minha dívida‖ (EVARISTO, 2016,

p.103). De acordo com a lógica descrita, o compromisso com o

outro não deixa de ser um compromisso consigo e, assim, forma-

se a ética do jogo. Quando ele se desestabiliza é sinal de

movimento das placas subjacentes na tentativa de deslocar as

que estão no topo para, desta maneira, tomar o seu lugar.

Quem está no cume, enxerga o redor de maneira privilegiada

e tem a sensação de que o mundo está aos seus pés. Dorvi

descreve a casa do chefe e menciona a vista para o mar.

Olhando a grandeza das águas que se encontram com o horizonte,

ele revela o desejo de uma ―morte lenta e calma‖ (EVARISTO,

2016, p.104) resguardada pelo fundo do oceano. Durante o

devaneio, há um flerte desmedido com o cenário. Ele entende

que, ao olhar o mar de cima do morro, ao invés de ser grande

diante do mundo, torna-se pequeno em meio à vastidão das

águas. A percepção de ser uma partícula da poeira do universo

permite a expressão dos seus sentimentos mais íntimos: revela

a predileção por Bica entre outras mulheres, o carinho pelo

filho, o medo quando não tem a escopeta por perto, o amor pelo

âmbito marítimo. Nas ondas de tal pensamento, confessa sonhar

com a viagem profunda após à morte. Afinal, mais uma vez,

nota-se que a vida já está esvaziada de imaginário e toda

possibilidade onírica se encontra fora da própria existência,

seja na ficção – como Dona Esterlinda – ou na morte, no mar de

Dorvi:

Quero a morte lenta e calma. Quero boiar no profundo

fundo do mar. Quero o fundo do mar-amor, onde deve

reinar a calmaria. É lá no profundo fundo que vou

Page 234: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

234

construir um castelo para a morada do meu filho. Bica,

predileta minha, vai também. Ela sabe que da ponta da

escopeta também sai carinho. No fundo do mar, mundo

algum explode. Bica, dileta minha, a vida explode.

Explode, ode, ode, ode... Mar-amor. O meu desejo é um

castelo de areias? Nem sei... (EVARISTO, 2016, p. 104)

A paz da morte é um anseio para quem vive o turbilhão dos

dias. Não há espaço para o inferno na reflexão de Dorvi,

porque a profundeza é a calmaria das zonas marítimas abissais

onde o corpo não submerge, mas boia de forma leve,

descarregado dos elefantes da vida. Tampouco há ilusão sobre a

morada preparada à espera dos novos habitantes, mas o castelo

que sonha em construir para o filho é fruto das suas mãos. O

fogo é o elemento da realidade, a fumaça quente que sobe nos

eventos cotidianos do morro. Isto é, a convivência com os

aspectos satânicos está na terra em que seus pés pisam: o

fumegar dos corpos, o ódio, a tortura. Logo, busca-se o

destino final no mar-amor e não no maremoto ininterrupto do

intervalo entre o nascimento e a morte. A lírica deste espaço

deságua na beleza do mar-amor onde ―o mar‖ brinca com suas

letras e propicia o sonho de Dorvi de alcançar algum

horizonte, na junção do céu e do oceano, levado pelo seu

―barco estrela de três lugares‖ ocupado pela sua trindade

divina: ―predileta minha, putinho meu e eu‖ (EVARISTO, 2016,

p.104).

O vislumbrar da morte se alterna com as observações sobre

a vida. Dois aspectos se destacam no discurso de Dorvi: o

retorno à questão do pó e as disputas na favela. Em relação ao

primeiro, ele não apenas afirma a crença de que este é o

elemento que nos entrelaça, mas também reconhece que o risco

diferenciado da poeira de cada um. Consoante as suas palavras,

―[...] meu pó corre mais perigo. Meu pó vira cinza rápido. ‖ e

nesta linha traz o aspecto da disputa ―Quem incendeia? Pode

ser a polícia, pode ser qualquer um de nós mesmo, grupos

rivais‖ (EVARISTO, 2016, p.104). De igual maneira que um

filósofo pré-socrático, ele defende a formação de um mundo

Page 235: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

235

através do elemento ―pó‖. Esta é a substância da qual somos

feitos e, em uma de suas formas, viabiliza a fusão do homem ao

mundo, economicamente ou psicologicamente. Ele diz: ―A

primeira vez eu não sabia aspirar tudo. Os desejos, os sonhos,

a viagem, tudo se atracou na minha garganta‖ (EVARISTO, 2016,

p.104). Se no início é difícil engolir as frustrações da vida,

com o tempo, o pó lhe faculta devorá-la e digeri-la, através

do dinheiro que adquire em sua venda ou a anestesia diante dos

problemas.

Na gira da narrativa, retorna-se pela última vez à fala de

Dona Esterlinda. No rastro da fala de Dorvi ―A terra vai

explodir no mundo-canal da televisão‖ (EVARISTO, 2016, p.

104), a mulher comenta o final da novela. Se o mar é vastidão,

a fuga da matriarca não passa de uma vala por onde corre água,

geralmente insalubre. Sua frustração consiste na ausência de

final feliz para a empregada da novela, porque em outro

folhetim chorou quando a babá casou com o filho do patrão.

Contudo, ela assume que as lágrimas diante do aparelho não se

resumem aos sentimentos provocados pela ficção, mas também

―por outras coisas‖, ―pela vida ser tão diferente‖ e ―por

coisas que não gosta nem de pensar‖ (EVARISTO, 2016, p. 105).

As lágrimas de felicidade provocadas pela dramaturgia é a via

de expressão da dor, tendo em vista que o pranto de fraqueza

exprime fragilidade, um estado inadequado no ambiente cuja

força-motriz é a resistência. O lamento mescla-se às

circunstâncias externas para se justificar, a emoção da novela

é a explicação para o brotar dos ―olhos d‘água‖ da mesma

maneira que a fumaça esclarece o lacrimejar de Dorvi durante a

troca de tiros.

Em seguida, a mulher inicia uma reflexão lúcida sobre os

filhos e o genro. O fim trágico de Idago lhe marca a alma, mas

não se observa uma divagação longa por parte da mãe sobre o

ocorrido. A atenção se volta para Bica, menina inteligente e

atenta desde tenra idade, e sua relação com Dorvi, que regula

Page 236: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

236

a sua faixa etária, mas não é o tipo de menino com quem

Esterlinda gostaria que a filha se envolvesse. Embora para os

demais pareça que a novela a desconecte das questões da vida,

ela está ciente da dívida do pai do seu primeiro neto. Sabe

que ele não é o companheiro ideal para Bica e deseja para

menina um outro destino. O discurso em primeira pessoa de Dona

Esterlinda comprova a sua consciência a respeito dos eventos

do entorno. O cuidado para que a jovem não se transforme uma

parideira, a preocupação sobre o seu envolvimento amoroso com

um narcotraficante e a percepção de sua acuidade intelectual

demonstram o domínio da figura materna a respeito da filha. A

certeza de que Dorvi está por um fio ilustra a clareza de

ideias sobre o que ocorre na comunidade, mas quando puxa

assunto com a filha, ela desconversa, porque como declara Dona

Esterlinda poeticamente: ―Bica é escorregadia feito baba de

quiabo‖ (EVARISTO, 2016, p.106).

O novelo se enrola e resgata a última aparição de Dorvi.

Conforme dito, aos seus olhos, aprendemos a apreciar as coisas

por um outro ponto de vista. Ele apresenta detalhes sobre a

dívida do companheiro e sabe que no baile em que se encontra o

eu e o outro se enredam de forma que se consubstanciam em um.

O prazo vale para ambos, a morte de um implica também na do

outro. O pacto de vida, transforma-se no selo de morte e

frente ao fato Dorvi afirma não sentir medo ―Penso no risco

que estou correndo. Risco não, tudo já está certo. A solução

está definida. O destino traçado‖ (EVARISTO, 2016, p.106).

Ressalta-se o jogo de palavras risco e traço, no qual o

primeiro sugere imprecisão e o último a marca forte e exata.

Dorvi está seguro a respeito das consequências de suas

escolhas, por isso não vacila mediante à hipótese da morte. É

preciso lembrar que, no fim dos dias, inicia a sua jornada no

seu mar-amor.

A partir da narrativa do rapaz, o leitor aprende a olhar o

fato por um outro lado. Esta afirmação pode ser exemplificada

Page 237: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

237

por meio de uma frase explícita – Nosso traço de vida virou às

avessas. Morremos nós, apesar de que a gente combinamos de não

morrer – ou pelas infiltrações em sua fala ―A morte às vezes

tem um gosto de gozo? Ou o gozo tem um gosto de morte‖

(EVARISTO, 2016, p.106). Em referência à dúvida, lembra do dia

em que gozou de prazer no seu primeiro enfrentamento –

―atirei, gozei, atirei, gozei, gozei... Gozei dor e alegria‖ -

quando arrancou sozinho um dente de leite – ―Minha mãe me

chamou de homem. Cuspi sangue. Limpei a baba com as costas da

mão, ainda tremendo um pouco, mas correspondi ao elogio. Eu

era um homem‖ (EVARISTO, 2016, p.107) e as pulsões daquele

momento no qual a linha da sua existência se equilibra: ―Hoje

outro prazer ou desprazer formiga o meu corpo por dentro e por

fora. Vou matar, vou morrer‖ (EVARISTO, 2016, p.107). As três

situações corroboram a habilidade de Dorvi de contemplar o

mundo pela luz e pela sombra.

Finalmente, o leitor chega à participação derradeira de

Bica, narrativa que encerra o conto. Logo no início, ela

anuncia a morte de Neo que será mais uma na linha de tiro

entre os que já caíram e os que tombarão. Jovens cuja data de

nascimento e de morte se aproximam e evidenciam a vida breve

daqueles que pagam com a vida a ruptura do código de ética do

lugar ou que se envolvem em sua principal atividade econômica.

Diante das perdas, Bica mais uma vez apalpa o corpo e conclui:

―aqui estou eu‖ como uma necessidade de tocar a própria

materialidade para se certificar da vitalidade que a habita.

Ela se questiona: ―ainda há dor por vir? ‖ (EVARISTO, 2016,

p.107) e lembra de Dorvi, assinalando a proximidade entre o

nome do pai do seu filho com o anúncio de dor. A ausência de

notícias e seu desaparecimento ―daquele que leva a mulher à

conclusão de que ele matou – encontram Neo marcado pelo tiro

de sua escopeta – e morreu. Porém, já não sabemos se aquele

que lhe oferece ―um presente incompleto e um futuro vazio‖

(EVARISTO, 2016, p.108) consegue embarcar com calma para o

Page 238: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

238

fundo do mar, uma vez que a narrativa se inscreve na carne, na

materialidade dos dias e as poucas transcendências surgem

apenas através dos devaneios narcótico e ficcional.

Consoante ao aprendizado deixado pelo navegante do mar-

amor, é imprescindível perscrutar as sombras da existência. ―A

gente combinamos de não morrer‖ é o pacto de vida, mas também

pode ser o selo de morte. Isto é, o acerto de preservar o

corpo em sua energia vital, mas a partir do momento em que a

não-vida abrange os dias – como a necessidade constante de

fuga por conta da dívida – assumir o fim é a maneira mais

honrada de se manter presente. A jura interna torna-se a

comunhão responsável por atrelar as existências em suas

possibilidades e ela não é exclusividade dos meninos. Bica

revela a promessa das meninas de juntar as suas menstruações

para selar a irmandade entre si. O componente sanguíneo está

presente em ambas as uniões, no entanto, enquanto para as

mulheres o sangue íntimo inicia a aliança, para os homens a

manutenção do elo consiste em não o derramar. O vínculo

simbólico é entendido como a armadura responsável pela

resistência da entrega de si ao sacrifício. Não é o diabo quem

recolhe a assinatura de sangue com o fim de capturar almas,

mas é o coletivo que, ao misturar sua seiva vermelha, ata a

permanência de corpos e afetos.

Dorvi marca a sua presença no mundo através da renovação

oral do acordo, mas a filha de Dona Esterlinda o faz por meio

da escrita e assim se revolta, liberta-se e sangra. Certo dia,

na escola, voluntaria-se para escrever no quadro as palavras

que formou durante a aula de separação de sílaba. Ela levanta

e escreve ―pó, zoeira, maconha‖ com o fim de desconcertar a

professora, porém, conforme a lista aumenta, o desconforto a

atinge, uma vontade súbita de voltar ao seu lugar é a única

que a ronda e problematiza ―se é que tenho algum‖ (EVARISTO,

2016, p.108). Bica sabe que, tradicionalmente, a vida

resguarda para os seus o mesmo destino de Dorvi e Idago; sob

Page 239: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

239

este ponto de vista, a escola não seria o seu lugar, na

verdade, além do não-lugar a sociedade só lhe garante a morte.

Estas são as duas possibilidades de vida que lhe ditam.

Todavia, o apreço pelas palavras propicia o encontro de uma

via diferente para expressar a própria inquietação

existencial:

Mas escrever funciona para mim como uma febre

incontrolável, que arde, arde, arde [...] Gosto de

escrever palavras inteiras, cortadas, compostas, frases,

não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido

ou carregada de vazio dependuradas no varal da linha.

Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na

corda bamba da vida. (EVARISTO, 2016, p. 108)

As palavras se dependuram ―no varal da linha‖ (EVARISTO,

2016, p.108) e Bica se equilibra na corda da vida. A escrita

manifesta a sua rebeldia e a liberdade de organizar as letras

no papel é um meio de escapar das limitações da vida. No papel

em branco, ela prescreve as regras e um novo mundo se compõe.

A jovem mãe lê um verso que enuncia: ―Escrever é uma maneira

de sangrar‖ – saberia ela sobre o flerte com Ernest Hemingway?

A tatuagem dos signos na folha de papel perfura a pele

imaculada da literatura para traçar os desenhos da sua escrita

e a navalha da crítica rasura a candura dos versos daqueles

cujos textos reluzem como cadáveres embalsamados despidos de

substância. Bica defende a escrita que vela a decomposição

dos corpos abandonados pelo Estado, em vida ou morte, com

todas as entranhas e sob o odor marcante do seu apodrecimento.

Como a chibata que marca a pele, a palavra ricocheteia a folha

e o leitor presencia o verter do sangue pelos orifícios do

texto:

Outro dia, tarde da noite, ouvi um escritor dizer que

ficava perplexo diante da fome do mundo. Perplexo! Eu

pedi para ele ter a bondade, a caridade cristã e que

incluísse ali todo tipo de fome, inclusive a minha, que

pode ser diferente da fome dos meus. Falei, mas pelo

menos naquele momento, me pareceu que ele fazia ouvidos

moucos. Quem sabe os nossos Orixás que são Humanos e

Deuses descrevam para esse escritor outras e outras

fomes, aumentando, assim, mais ainda, a perplexidade

dele. (EVARISTO, 2016, p. 108)

Page 240: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

240

A menção ao cristianismo é um contraponto às religiões de

matrizes africanas. Se o judaico-cristão embasa sua crença na

figura de um Messias distanciado e único, as divindades das

culturas africanas estão em meio ao homem. Apesar do caráter

divino, elas também se imiscuem no âmbito terreno e, por isso,

estão mais próximas das questões humanas. Desta forma,

verifica-se, mais uma vez, o privilégio do vivido ao

transcendido, principalmente porque o último consiste – de

acordo com o narrado – em um meio de se apartar, por um tempo

breve, das agruras dos dias que insistem em se impor. Logo,

Bica confessa que, embora reclame da novela da mãe, sabe que

este é o meio pelo qual ela consegue inspirar um pouco de ar

para não se afogar entre as ondas do mar de tiros que a cerca

e das marés de fatalidade que insistem em arrastá-la pela

correnteza de lágrimas. Não há possibilidade de alienação,

―ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe

que a verdade da telinha é a da ficção‖ (EVARISTO, 2016,

p.109) Para quem sempre ―costurou a vida com fios de ferro‖

(EVARISTO, 2016, p.109), não é difícil diferenciar o aço do

algodão. A loucura seria uma das vias que permitiria vestir a

armadura de aço imaginando portar um suéter de algodão, mas

sabemos que não é o caso de Dona Esterlinda.

Em termos conclusivos, Bica relembra o pacto entre Dorvi e

os companheiros e faz uma observação ―Eu sei que não morrer,

nem sempre é viver‖ (EVARISTO, 2016, p.109). Através da frase,

ela demonstra consciência do esvaziamento presente na palavra

―vida‖ quando um indivíduo nasce na favela desprovido de

oportunidades. Principalmente, quando decide se inserir na

atividade econômica do narcotráfico na qual o código de ética

segue as próprias determinações e a morte é a pena a ser paga.

Enquanto ela escreve, ―a sonata seca‖ das balas mantém seu

ritmo e mostra que, entre uma baixa e outra, a dinâmica do

comércio é intermitente. Este é o prenúncio de corpos caídos

no chão envoltos pela poça de líquido rubro ou do cheiro de

Page 241: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

241

fumaça daqueles que são incendiados. A rotina é contínua, mas

há resistência, como a persistência de sangrar pela escrita e

assim amenizar as dores da realidade e alcançar uma fresta de

liberdade. Ao tempo que algumas pessoas se questionam sobre o

próprio destino após a morte, no universo do morro a

problemática é: há vida no passar dos dias? quantas mortes

cabem em uma existência?

Sob o ponto de vista das três personagens com perfis

distintos, identificam-se questões existenciais de sujeitos

cuja posição social é periférica. Elas exprimem a complexidade

de indivíduos atravessados pela situação de violência que

vivenciam, por isso é fundamental associar os seus dilemas

pessoais à realidade na qual estão imersos. A partir da

perspectiva do centro, o operário do tráfico, a dona de casa

amante de novelas e a aluna problemática da escola são figuras

desprovidas de humanidade e reflexão. Segunda tal concepção,

os atos que empreendem são gratuitos, uma vez que a sua

agressividade ou passividade são movidos pela paixão e

destituídos de um caráter lógico. Desta forma, esvazia-se o

caráter racional de pessoas em determinadas condições sociais

de modo que se criem justificativas para a sua domesticação,

animalização ou infantilização. Consequentemente, no âmbito

moral, o senso comum se sente à vontade para julgá-los,

encarcerá-los ou eliminá-los, tendo em vista que se habilitam

a intervir nos seus corpos e conduzir as suas escolhas. Assim

como a sombra, esta presença no mundo deve se restringir ao

silêncio, contentar-se com o conteúdo homogêneo e obscuro que

lhe oferecem e se limitar aos movimentos ditados pelo corpo

que a manipula.

No entanto, quando Conceição Evaristo se apropria da

representação das figuras em questão, propicia a sua

inscrição, em primeira pessoa, na narrativa. Assim sendo,

descobrimos a consciência que elas têm sobre a própria

condição e as especificidades dos seus corpos e pensamentos.

Page 242: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

242

As personagens têm nomes, apresentam seus dramas e nos

convocam a refletir pelo prisma periférico a respeito dos

aspectos sociais do nosso país. Lembra-se o trecho no qual

Bica rememora as investidas dos alunos em pegar a merenda da

escola e coloca em questão se aquilo é um roubo ou apenas uma

apropriação do que lhes pertence por direito. Também se

destaca o discurso de Dona Esterlinda sobre o conteúdo da

televisão quando ressalta as campanhas que a tudo se opõe, mas

que, de fato, ela já não sabe se são contra ou a favor das

causas sobre as quais se levantam. Por meio de suas palavras,

a vida das sombras caça as sombras da vida e permite uma

reorganização do imaginário do leitor sobre determinados tipos

sociais marcados pela estereotipia.

É preciso assinalar que, embora a violência permeie o

enredo, há uma manutenção do elemento poético. A expressão da

matéria narrada não se desenvolve apenas através da

agressividade, mas sim por meio da sensibilidade daqueles que

são acostumados a ―costurar a vida com fios de ferro‖

(EVARISTO, 2016, p.109). Da mesma maneira que a flor nasce no

asfalto, a linguagem evaristeana conserva a potência de vida,

beleza e arte em meio à concretude da guerra urbana e da

desigualdade social. Conceição Evaristo nos convoca a perceber

o afeto do grito em uníssono ―A gente combinamos de não

morrer‖ durante um tiroteio e nos convida a entrar nas águas

do mar-amor no decurso do entorpecimento de uma das

personagens. Assim como Bica, o leitor experimenta a

coragemedo de prosseguir uma leitura capaz de encher os olhos

d‘água – tal como o título do livro – tanto por causa da dor

que provoca quanto da habilidade artística da autora de criar

poesia a partir de uma matéria narrada rígida e, à primeira

vez, presente em um contexto improvável. A resistência da arte

diante das agruras da vida cunha o texto.

Os estudiosos recorrem aos registros de Plinio, o Velho, e

de Quintiliano com o fim de remontar a história da arte

Page 243: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

243

pictórica. Segundo pesquisas, como a desenvolvida por Victor

Stoichita, a pintura nasce do contorno da sombra de um homem.

Seguindo a versão do naturalista romano, uma jovem desenha o

perfil de seu amado formado pela luz de uma vela na parede

para guardar uma lembrança daquele que deixa a cidade.

Posteriormente, o pai da menina, aplica argila sobre o molde e

o dota de releve. Butades utiliza seus conhecimentos de oleiro

para conceder forma ao que, inicialmente, consistia apenas em

uma silhueta bidimensional desprovida de profundidade. Vale

dizer que o historiador de arte romeno assinala que este mito,

em conjunto com o da Caverna, de Platão, sugerem um diálogo

tendo em vista que ambos são etiológicos: o primeiro se

associa à origem da arte e a segunda do conhecimento. Ele sabe

o risco de promover esta discussão, afinal são coisas

distintas em contextos diferentes, mas reconhece que em termos

hermenêuticos é possível pensar que os dois mitos trazem um

conceito de origem vinculado à sombra. Cito: ―a projeção

originária é o negativo de uma mancha, é uma sombra. A arte

(verdadeira) e o conhecimento (verdadeiro) consistem na

superação da situação limite do seu nascimento.‖ (STOICHITA,

1997,p.10)

Em cotejo com a história da pintura, proponho uma reflexão

sobre a literatura de Conceição Evaristo. Quando esta mulher

negra oriunda das camadas populares se apropria da caneta para

construir o texto ficcional, ela dá voz e profundidade a

personagens comumente relegados a uma aparição coadjuvante nas

narrativas. Desta forma, proporciona novas maneiras de

representação de tipos sociais tatuados com a tinta dos

estereótipos e estimula a criação de outros imaginários. Digo,

no momento em que representa os dilemas de Dorvi e a

configuração do seu entorno, verifica-se que há uma

humanização do sujeito que comumente aparece marginalizado na

sociedade. O amor pelo filho e pela companheira, as lágrimas

durante o confronto e o fascínio diante do mar resgatam o

Page 244: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

244

caráter sensível que o habita. Escutá-lo no espaço ficcional

propicia a contemplação da realidade a partir de um ponto de

vista diferente e nos leva à reflexão sobre a postura que

mantemos diante deste Outro de mim mesmo. A sociedade empenha-

se em aniquilá-lo, talvez por temor com o encontro de uma de

suas possibilidades existenciais mais umbrosas, mas

aprendemos, à luz de Jung, que esta não é a melhor estratégia.

Vale lembrar que a literatura, ao longo de anos, empreende

o mesmo movimento, porque ignora ou subjuga todos aqueles que

não fazem parte do grupo legitimado para representar e/ou ser

representado. Como escritores, eles aparecem apenas como a

sombra que corrobora a materialidade do corpo que os

identifica. Conforme vimos, a presença de escritoras,

principalmente negras, surge nos compêndios da história

literária como um adorno em meio a uma constituição

majoritariamente masculina e branca. No que concerne às

personagens, ―a ficção ainda se ancora num passado escravo‖,

tal como afirma Evaristo em seu artigo Literatura negra: uma

poética de nossa afro-brasilidade. No espaço ficcional, os

negros ainda são confinados em papeis que reproduzem o lugar

que a sociedade lhes reserva nos âmbitos de subalternidade,

docilidade, sexualidade e passividade. As mulheres, por

exemplo, surgem como empregadas domésticas, prostitutas e

cuidadoras. Suas existências se justificam nas relações que

estabelecem com os protagonistas e aparições se fazem de forma

silenciada ou terceirizada, ou seja, apresenta por um narrador

ou por uma outra personagem.

Logo, entende-se como sombras da literatura estas figuras

que, apesar de presentes quando incide a luz da crítica, são

apresentadas como irrelevantes para a estruturação do corpo

que fundamenta esta arte. No entanto, conforme temos visto, a

presença da sombra é expressiva para o literário, por isso é

imprescindível buscar a sua voz nesta área. Se na primeira

parte da tese nos ocupamos de sua importância na formação

Page 245: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

245

estética do texto, observa-se, a partir do texto de Conceição

Evaristo, que a escrita da sombra e a sua representação rompem

o silêncio a que estão condenadas, matizam tonalidades

distintas no texto, talham profundidade e sopram uma

vitalidade distinta para esta arte. Ademais, conscientes de

que a matéria que formam lança novas sombras, não se instituem

como uma centralidade, mas sim como pluralidade acolhedora de

novas perspectivas. Como no conceito ético de Ubuntu,

acredita-se na prática de solidariedade – ao invés de

classificação – na qual vigora a ideia de que: ―eu sou porque

nós somos‖.75

No momento em que inscreve a subjetividade de personagens

periféricos na literatura, Conceição Evaristo contribui para o

crescimento de uma história literária mais plural e

representativa em sua produção e em seu conteúdo. Ela se

compromete com a declaração da sua identidade como escritora,

da mesma maneira que Carolina Maria de Jesus, e se empenha

para estimular o re-conhecimento literário daqueles que são

deslocados socialmente para um espaço marginal. Verifica-se o

movimento de uma autora que, à sombra do que se determina como

cânone, constroi uma ficção ao redor dos dramas dos que estão

também na área periférica. Assim, ela não apenas se anuncia

como parte constituinte da arte literária, mas também inclui

vozes que, até então, eram, majoritariamente negligenciadas,

no espaço literário. Acredita-se que esta dinâmica imprime uma

reestruturação nos domínios do que se compreende como

Literatura Brasileira, uma vez que promove uma força na qual

as margens tensionam o centro de maneira que este começa a se

desestabilizar como o único detentor de solidez.

Outrora, as estruturas canônicas e críticas projetavam ao

redor de si sombras para legitimar a materialidade do próprio

corpo. Isto é, a menção a obras consideradas menos relevantes,

75 Disponível em: http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-

africana-que-nutre-o-conceito-de-humanidade-em-sua-essencia.

Page 246: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

246

como as escritas por mulheres, por exemplo, corroborava a

robustez do que se instituía como literatura maior. A

constituição do padrão, da norma, da Literatura com letra

maiúscula se constroi em oposição ao que dela escapa. No

entanto, quando estas sombras se apropriam da escrita,

afirmam-se como sujeitos e se comprometem com uma

representação conectada à poética da negro-brasilidade, elas

demonstram a potência que advém das áreas excêntricas e se

desenvolvem para além das influências do núcleo. Assim sendo,

promovem uma composição marcada pela pluralidade de

perspectivas sem o estabelecimento de hierarquizações, como:

maior / menor, central / periférica, Literatura/ literatura.

Reconhece-se o caráter plural do grupo de escritores e as

possibilidades diversas de espaços, personagens, temas que

compõem o âmbito literário. Consequentemente, expande-se a

própria noção de literariedade.

Este tipo de ocupação do espaço literário incentiva a

democratização de uma arte que, conforme visto em capítulos

anteriores, organiza-se, historicamente, em torno de uma

elite. Sabe-se que, em um país que hoje ainda mantém 12,9

milhões de analfabetos, ainda há desafios no que tange à

acessibilidade efetiva da literatura para todos os cidadãos,

em termos de produção, recepção e distribuição. Conforme

afirma Antonio Candido, a fruição da literatura também se

constitui como um direito. Restringi-la apenas a grupos

privilegiados é uma forma de privar grande parte da população,

se consideramos que a maioria não a acessa efetivamente, de

desfrutar de um bem capaz de ―dar formas aos sentimentos e às

visões de mundo‖ – desta forma ―ela nos organiza, nos liberta

do caos e, portanto, nos humaniza‖ – e de conscientizar sobre

o assalto de recursos, já que esta arte também se empenha em

―focalizar as situações de restrições de direitos, ou de

negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação

espiritual‖. A afirmação e legitimação de autoras como

Page 247: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

247

Conceição Evaristo, bem como a poética que elas nos

apresentam, promovem um cenário de denúncia e resistência

matizado por tonalidades diferentes, plural em suas formas e

inclusivo em seus domínios. A gira do literário absorve novos

participantes e a cada novo ingresso, há uma mudança de ritmo,

de estrutura e a reorganização se efetiva do todo para as

partes e não ao contrário.

É preciso aprender com a presença e a voz das sombras, que

são maioria, de que a fé, unicamente na luz, pode ser cega. É

imprescindível atentar para o discurso daquelas que rodeiam o

foco luzente e admitir a sua valoração na história da

humanidade. A partir do momento em que elas se apropriam do

espaço literário, demonstram a potência de sua presença e

materializam o corpo de uma arte das letras em que ―é tudo

sobre os nossos mais de cem anos de solidão vivendo em quartos

de despejos. ‖, como versa o poeta Sergio Vaz. Tendo em vista

que se estruturam de maneira que conseguem ―viver com os

aparecidos‖ e ―protestar, ao invés de exaltar o silêncio em

que se nasce‖, conforme declama a poesia de Sombra de

Alejandra Pizarnik, reconhecem que outros ainda estão à margem

da roda e os incentivam a compô-la. Há uma consciência de que

a cada ingresso, uma sombra diferente se forma, por isso se

comprometem a escutá-la, ainda que sua voz, à primeira

audição, seja dissonante da melodia em curso. É uma in-corpor-

ação contínua, isto é, elas estimulam a entrada de corpos que

assumem verbalmente a sua forma e atuam no meio em que se

inserem.

A luta pelo reconhecimento da poética das sombras é um

clamor para que haja uma insurgência daqueles que ficaram à

margem da tradição do luzente. Numa sociedade onde a razão e a

luz se legitimam como esferas de verdade e subjugam tudo a que

delas escapa, resgatar a presença da sombra é um ato de

insubordinação. Na literatura, especificamente, há uma ruptura

com a ordem estabelecida pelo cânone e uma reconfiguração dos

Page 248: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

248

limites do que se define como literariedade. Elas assumem a

origem umbrosa da qual provêm e não se contentam com a

reprodução do silêncio e dos papeis que a confinaram ao longo

dos anos. Ademais, não compactuam com a abordagem negativada

da sua presença, caracterizando-a apenas nas instâncias da

falta, do pesar ou do sofrimento. A sua inscrição é marcada

por resistência, luta e manifestação de possibilidades e

perspectivas de vida. Com Carolina Maria de Jesus, Conceição

Evaristo e tantas outras, vamos, no rastro do título da

palestra de Angela Davis, ―Atravessando o tempo e construindo

o futuro da luta contra o racismo‖, o machismo, o classismo, o

capacitismo, a homofobia, a transfobia e todas as opressões

que constrangem um indivíduo a tomar posse de uma caneta e

dizer com orgulho: Eu faço literatura! Assim, cruzamos a luz

da história e nos juntamos às sombras para construir um

presente de luta e um futuro de uma arte literária mais

inclusiva e plural.

Page 249: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

249

À sombra de uma conclusão

Coloriu

Desabrochou que simpatia

O sol sorriu de alegria

Papai chorou de emoção, emoção

Sou a continuação

Não tenho reino e sou princesa

Meus pais são a minha riquesa [sic]

Que guardo no meu coração

Muito bom os meus avós que barato

São dos meus pais o retrato

E eu a filiação.

(Lair Marques Ferreira)

―Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra

disse‖: ―Coloriu/ Desabrochou que simpatia/ O sol sorriu de

alegria‖. Este era o meu avô, um amante das letras, que talvez

soubesse que diante de nós o sol sorri, porque acredita no

diálogo que nasce da aurora com as sombras. Um sujeito

conhecido como professor entre os seus pares, porque era

ajudante de laboratório da faculdade de medicina da Souza

Marques, mas também pintor, porteiro do colégio Pedro II,

letrista, compositor, mas, acima de tudo, um daqueles do qual

sou a continuação. Conforme menciona nos versos, não tenho

reino, porém este fato não diminui o valor da herança deixada:

uma fita k7 – provavelmente com algum samba guardado – e um

espelho de microscópio que, quando me perco em meio à luz,

vislumbro minha imagem na tentativa de ver as diferenças

existentes entre os lados plano e côncavo até chegar à

conclusão de que estamos, a todo o tempo, permeados por

distorções. Esta riquesa, com s, eu guardo no meu coração e

através desta inscrição linguística constantemente recordo a

particularidade dos valores que trago da minha tradição.

Talvez ele soubesse que aquela vida que coloriu e

desabrochou no Rio de Janeiro às 10:15h de 30 de outubro de

1984 não se contentaria com o silêncio do lugar em que nasceu.

Por isso, cultivou com carinho, enquanto os pais trabalhavam,

aquela sombrinha que pouco a pouco cresceu ao som do samba que

fazia com o ruído da palma das mãos, do fundo do balde, da

Page 250: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

250

caixinha de fósforo ou do objeto que estivesse disponível para

gerar um batuque. Tomava dela a tabuada e desvelava com prazer

a formação das palavras quando solicitava atenção com o fim de

elucidar que ―logia‖ significa estudo e, a partir de então,

jogar com a morfologia: Biologia – estudo da vida, Zoologia –

estudo dos animais. Demonstrava o cuidado de desenhar as

letras do mural que iria compor a parede da escola infantil da

sobrinha e o esmero de pintar uma casa como se fosse um

quadro. Nas lições cotidianas, a arte estava sempre presente;

porém não era aquela da galeria, biblioteca ou teatro, mas um

jeito de criar diferente, a partir da ―riquesa‖ oriunda da

possibilidade de conhecer outras perspectivas do entorno

gerando sensibilidade de valores que se guardam no coração.

A busca da beleza em meio ao mundo, o respeito ao processo

criativo e a valoração do elemento sensível são alguns

aspectos aprendidos no quintal de uma casa em Bento Ribeiro.

Não era o saber da escola e depois constatei que tampouco o

era da universidade, mas sim um aprendizado presente onde não

há incidência direta de luz, em algum ponto onde ela encontra

um obstáculo e forma uma silhueta que nos intriga. Outrora tão

rejeitada por Platão, descobri que para não se perder na

claridade desmedida do mundo das ideias, é necessário

preservar os conhecimentos oriundos da sombra. Nem sempre o

olhar se acostuma com um ambiente cuja luminescência gera

cegueira, por isso é necessário reconhecer a relevância do

saber desenvolvido em outros espaços, principalmente naquele

onde o claroscuro se desenvolve demonstrando a coexistência

necessária entre luz e sombra para a produção de saberes e

não-saberes.

Somos frutos de uma geração marcada pela influência da

luz, da razão, da verdade. Historicamente, hierarquizamos,

subjugamos e aniquilamos seres, saberes e prazeres em nome

destas instâncias. Ao longo do que se determina como

modernidade, os domínios da sombra, da sensibilidade e das

Page 251: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

251

possibilidades carregam consigo a insígnia do negativo, uma

vez que não geram riqueza monetária tampouco conhecimento

segregador, elementos tão caros a um sistema responsável por

dividir as pessoas em categorias. A fé apaixonada pelo âmbito

da luminescência cega os sentidos e o intelecto de forma que o

indivíduo nega o próprio Deus que venera ao devotá-lo. Digo, a

aceitação dogmática da luz como fonte exclusiva das potências

positivas e a subjugação de tudo aquilo que dela escapa

contrapõe os valores sustentados pelo próprio campo de

princípios que a engloba cuja validação pressupõe verificação

e contestação.

Deve-se lembrar, no entanto, que a concepção de moderno

adotada pelas sociedades ocidentalizadas não é originária das

nossas terras. Ela advém de povos invasores imbuídos de um

ideal de supremacia responsável por categorizar o mundo a

partir de padrões estabelecidos pela sua cultura. Assim,

aprendemos a adaptar a nossa produção epistemológico-

artística, bem como a sua história, a uma estrutura pré-

moldada com o fim de alcançar alguma legitimidade crítica do

nosso pensamento. Adotamos a luz como referência norteadora

das nossas ideias e começamos também a rechaçar o âmbito das

sombras sem constatar que, ao rejeitá-las, negávamos a nós

mesmos.

A proposta de um reconhecimento da história das sombras

almeja contribuir como um contraponto à tradição dedicada à

trajetória da luz. Provavelmente, após tantas discussões, o

leitor que alcança o capítulo derradeiro se questiona: bom, o

que ou quem são as sombras? Afinal, ao longo do debate,

acredita-se corroborar a tese de que estes elementos têm

relevância para a literatura. Porém, é possível englobá-las em

uma designação específica? Já peço perdão àquele que se lança

à leitura em busca de uma resposta única para a questão. A

nossa pesquisa investe na realização poética da palavra, por

isso a cunhamos no plural, porque concordamos com a

Page 252: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

252

multiplicidade das suas significações. Em sua concepção mais

estrita, a sombra é a projeção umbrosa resultante da

interceptação dos raios luzentes por um objeto opaco, mas

quando ingressa no campo literário apresenta-se como uma

metáfora cujos desdobramentos demonstram as faces distintas

presentes em sua estrutura. Ela pode ser esta projeção que nos

acompanha, o passado rejeitado por sua aparência perversa ou a

escrita de vozes cujo gênero, etnia, classe, sexualidade,

capacidade física ou mental que escapa da normatividade

imposta. Verifica-se que a sua natureza consiste em propiciar

uma outra perspectiva sobre o claro, o evidente, o natural.

Inicialmente, seguimos os passos do historiador da arte

Victor I.Stoichita e nos dedicamos a conhecer as sombras na

literatura. Este percurso indica algumas entre outras trilhas

que nos conduzem à presença da sombra no texto literário.

Verifica-se que tanto a poesia quanto a prosa adotam a

silhueta umbrosa para a sua constituição estética em

diferentes épocas. É preciso dizer que, ao longo da pesquisa,

houve a necessidade de excluir materiais que contribuiriam

potencialmente para a formação do corpus, uma vez que nos

comprometemos com o cumprimento de um prazo determinado.

Acredita-se que, um estudo mais alongado e amplo, permitiria

traçar caracterizações mais pormenorizadas. Contudo, a partir

do conjunto analisado, verificam-se, pelo menos, três maneiras

de inserção da silhueta na esfera do literário, ou seja, ela

aparece como: um elemento em si, uma estrutura dissociável do

corpo que a projeta e em associação direta com este, mas

assumindo um perfil diferenciado. Cada uma das realizações,

colaboram com o enriquecimento metafórico das obras em

análise.

O estudo em questão confirma a nossa tese de que a sombra

tem relevância para a história literária ocidental. Da mesma

forma que Victor I. Stoichita perscruta as sendas do perfil

umbroso na pintura com o fim de fundamentar a importância

Page 253: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

253

desta figura na área pictórica, a primeira parte da

investigação se esforça em compreender tal presença na

literatura. Tanto os materiais selecionados para a elaboração

dos capítulos quanto os demais que não os compuseram,

comprovam o valor estético deste duplo para o campo literário,

seja como personagem, objeto/imagem ou propriamente na forma

de projeção. Portanto, evidencia-se a hipótese de que a

análise da manifestação estética deste ente contribui para a

compreensão sobre os domínios da sombra na representação

ocidental.

No entanto, conforme visto, a busca pelas poéticas das

sombras não se restringe à análise de textos que se encontram

imersos no continente onde se enfocam os raios de luz.

Tampouco se contenta somente com a representação da figura.

Por isso, a segunda parte da tese consiste na apreciação das

sombras da literatura, ou seja, das margens que a compõem para

além do cânone e propiciam uma movimentação cuja dinâmica não

tende para uma hierarquização segregadora de autores e textos,

mas sim para uma constituição plural e inclusiva no âmbito

literário. Em cotejo com aspectos históricos, entende-se que

os povos do sul facilitam o encontro com estas vozes, tendo em

vista que o enfoque nas obras europeias lança sombras nas

produções austrais. Além do mais, a própria construção de suas

histórias inscreve-se sob a sombra de um passado marcado por

aniquilações e silenciamentos diversos em nome do império da

luz. Os aspectos citados justificam o giro da nossa análise

para o sul, especificamente para a obra literária de mulheres

negras brasileiras.

É preciso dizer que, neste ponto, evidenciam-se as

relações entre o eu e o outro que se aproximam bastante da

associação entre a luz e a sombra. Digo, os dois primeiros

Page 254: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

254

pólos, luz x eu76, apresentam – aparentemente - a esfera do

conhecido, o ponto pelo qual se relativiza o entorno. Por sua

vez, sombra e outro, compreendem um semelhante ao qual não

tenho acesso, uma presença ausente que não domino e que,

portanto, idealizo. Esta tendência é apresentada pelo encontro

entre europeus e os povos originários na América onde ambos os

grupos criam imaginários sobre os demais porque constroem uma

visão sobre o novo a partir das próprias perspectivas e

interesses. Consoante a tais informações, a intolerância e a

ambição levam não só à estereotipia, mas também à aniquilação,

culminando num extenso genocídio nas terras do sul. Estas

dicotomias se tensionam de maneira que os primeiros polos

compreendem entidades ocidentalmente reconhecidas como

positivas e/ou neutros, ao ponto que os segundos marcam o

negativo.

A partir do deslocamento empreendido, ansiamos pelo

encontro com a poética construída pelas sombras, porque

acreditamos na pressuposição de que quando se apropriam do

discurso, elas não se satisfazem com o lugar secundário que

ocupam em relação ao corpo que tradicionalmente a apresenta a

partir de uma visão distorcida ou emudecida. No momento em que

tomam posse da escrita, imbuem-se de uma potência própria

capaz de imprimir cor, profundidade e subjetividade na sua

presença e nas suas palavras de forma que geram uma vida

oriunda das esferas sombrias e, por isso, sabem não só

valorizá-las, mas também reconhecer que, quando conseguem

incorporar-se ativamente ao círculo, lançam com a sua

materialidade outras sombras no espaço literário. Logo,

empenham-se em motivá-las a se apropriar do direito de

usufruir deste bem, seja como autores, personagens ou

leitores, e não se contentarem com a passividade de serem

76 Sabe-se que, em termos psicanalíticos, este ―eu‖ também está permeado de

sombras. Por isso, aqui, considero a ideia de Ego como um meio de

reconhecimentos deste eu, o seu lado mais luminoso.

Page 255: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

255

representadas por outrem, ficando assim passível à

estereotipia ou ao apagamento de sua presença.

Com o objetivo de elucidar as estratégias de inscrição das

sombras da literatura, apresentei a escrita autobiográfica de

Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo, e a composição

ficcional de Conceição Evaristo no livro Olhos d‟água,

especificamente, através do conto A gente combinamos de não

morrer. Ambas, mulheres negras oriundas de meios periféricos,

afirmam-se na posição de escritoras e acreditam na potência do

texto que escrevem. Enquanto a primeira constroi uma escrita

de si em tons introspectivos cotejando com questões

existenciais, políticas, econômicas e estéticas a partir da

visão das margens da cidade, a última, por sua vez, segue a

via ficcional para dar vida a personagens que ficam à sombra

da sociedade, concedendo-lhes não apenas subjetividade, mas

também voz. Através destas narrativas, reconhecemos a

representação literária produzida por e sobre perfis sociais -

tradicionalmente simplificados ou silenciados por escritores

pertencentes ao cânone - que se apropriam do direito à

literatura e se responsabilizam pela própria inserção no

espaço em questão.

No momento em que tomam o que também lhes pertence por

direito, demonstram a profundidade e as tonalidades de suas

constituições identitárias e a complexidade estética de seus

escritos. Em vista disso, abolem qualquer ideia de

neutralidade capaz de alcançar uma suposta universalidade e

demonstram que as poéticas advêm de corpos que estão no mundo,

marcado por experiências e atravessados por diálogos. Ainda

que os sujeitos criem outras realidades no espaço literário,

eles estão impregnados de uma forma de ser no mundo e no

processo criativo este corpo é indissociável do texto a que dá

vida. A capacidade de um texto dialogar com outras existências

e manter uma atualidade ao longo dos tempos não é oriunda da

habilidade do autor de sair de si e buscar uma suposta

Page 256: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

256

objetividade de apresentar literariamente o mundo, mas sim de

encontrar no seio da sua experiência as afetações que o

permitem se sensibilizar para as questões de ser humano num

universo marcado por instabilidades.

Adotando a perspectiva das sombras para desenvolver uma

apreciação crítica da literatura, acredito contribuir para o

enriquecimento do repertório de uma arte cuja história é

marcada por uma elitização centralizadora que se entende como

iluminada e, por isso, entende-se como responsável por

delimitar um padrão de literariedade excludente e silenciador

que só reconhece o pensamento que projeta as suas ideias. O

desenvolvimento de uma teoria comprometida com a formação de

um corpo crítico consciente de que a arte é democrática

permite uma ampliação das nossas estratégias de análise, uma

vez que reconhecemos que a literatura está presente não apenas

em livros na estante, mas também em cadernos num barracão, e

na legitimação de escritores até então improváveis, como uma

ex-empregada doméstica. É preciso lembrar que Conceição

Evaristo, por exemplo, custeia suas primeiras publicações

diante da negativa das editoras. Logo, compreende-se a

urgência de uma discussão sobre a legitimação dos saberes,

tendo em vista que as instituições ainda são resistentes às

produções exteriores aos seus domínios. O conhecimento e a

arte não são exclusividades do meio acadêmico, ele está em

toda a parte, basta que saibamos acalmar a loucura da retina

para vê-los nas experiências mais simples. Cito, em caráter

ilustrativo, o cenário literário das periferias de São Paulo a

partir dos Saraus da Cooperifa e do projeto Poesia nos Muros,

ambos com o apoio do poeta Sergio Vaz, escritor que se engaja

em promover as vivências poéticas em áreas pobres da cidade.

Ao longo de anos dedicamos a nossa reflexão aos domínios

da luz. Afinal, ela é atraente com seu brilho intenso e

magnanimidade. Porém, vez ou outra, deixamo-nos ludibriar pelo

foco luzente da vida e ignoramos as sombras que se lançam em

Page 257: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

257

seu entorno. Esta tese é uma tentativa de resgatar o diálogo

da literatura com estas figuras capazes de nos mostrar um

outro lado possível da representação. Elas nos ensinam a

dinâmica do re-conhecimento que, conforme explicado, consiste

no retorno em busca do que foi silenciado pela crítica e no

saber junto para a construção de uma história literária mais

justa e plural. Eu, Marcelle Ferreira Leal, uma sombra

inicialmente cultivada no quintal de Bento Ribeiro convoco as

minhas semelhantes, através da Poética das Sombras,

apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, à

apropriação da tinta para que no âmbito literário consigamos

colorir e desabrochar uma crítica na qual também sejamos

sujeitos. Assim, almejamos o encorajamento de outras

companheiras para que se apropriem da escrita e nos ofereçam

as suas perspectivas de Teoria Literária, porque o movimento

que nos interessa se embasa na essência solidária de ubuntu,

isto é, eu sou porque nós somos.

Page 258: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

258

6. Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

______. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008.

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Ítalo Eugenio Mauro. São

Paulo: Editora 34, 2014.

______. De vulgarieloquentia. Dante Alighieri; tradução, introdução e notas

de Tiago Tresoldi; prefácio de Henrique SagebinBordini. Porto Alegre:

Thiago Tresoldi Editore, 2011.

______. 2: Purgatorio [Commedia]. Dante Alighieri ;conilcommentodi Anna

Maria ChiavacciLeonardi. - Milano :Mondadori, 1991.

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

2002.

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça.

Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos

principais manifestos vanguardistas. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL,

1976.

ARISTÓTELES. De anima. Aristóteles; apresentação, tradução e notas de Maria

Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2012.

______. Ética a Nicômaco. Aristóteles; Tradução de António de Castro

Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

______. ; HORÁCIO; LONGINO – A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna.

São Paulo: Cultrix: EDUSP, 1981.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.

Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. Homens em tempos sombrios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo:

Companhia de bolso, 2008.

AUERBACH, Erich. ―Dante e Virgílio‖. In. Ensaios de Literatura Ocidental.

Erich Auerbach; org. Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr.; tradução de

Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34,

2007.

______. Dante: poeta do mundo secular. Erich Auerbach; Tradução de Raúl de

Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

______. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São

Paulo: Perspectiva, 2013.

AZEVEDO, Aluisio. O Cortiço. Rio de Janeiro: O Globo/ Klick Editora. S/D.

BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Gaston Bachelard; Tradução de

Gloria de Carvalho Lins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

______. A Poética do Devaneio; Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São

Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009 (Biblioteca do Pensamento Moderno.

Page 259: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

259

______. A Psicanálise do Fogo; Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins

Fontes, 1999 (Biblioteca do Pensamento Moderno).

BARROS, Manuel. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2015.

BEAU, Nathalie ; MEYNIAL, Éliane. Rencontre avec Christian Bruel. In. Revue

des livres pour enfants, no 212, 2003, p. 66-70.

BEAUVOIR, Simone de. Literatura e Metafísica. In. ______. O existencialismo

e a sabedoria das nações; tradução de Manuel de Lima e Bruno de Ponte.

Lisboa: Minotauro, 1965, p 79-85.

______. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Millet. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2009.

BENJAMIN. Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão.

Tradução, introdução e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo:

Iluminuras, 1993.

______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história

da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994

– (Obras escolhidas v. 1)

______. Origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Lisboa:

Assírio e Alvim, 2004.

BERND, Zilá. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Moderna, 1994.

BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón (2016) ―Decolonialidade e

Perspectiva Negra”. Estado e Sociedade, v. 31, n.1: pp. 15 -24

BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida.

Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

BOFF, Leonardo. Quatro sombras afligem a realidade brasileira. Rio de

Janeiro: Jornal do Brasil, 21 de março de 2016. JB 21/03/2016. Disponível

em: http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2016/03/21/quatro-sombras-

afligem-a-realidade-brasileira/

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007.

BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São

Paulo: Editora 34, 2000.

BRUEL, Christian; GALLAND, Anne. A história de Júlia e sua sombra de

menino. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo: Scipione, 2010.

BUBER, Martin. Eu e Tu. Martin Buber; Tradução de Newton Aquiles von Zuben.

São Paulo: Centauro, 2001.

BUTLER, Judith. Dar cuenta de sí mismo: Violencia ética y

responsabilidad.Traducción de HoracioPons. Buenos Aires: Amorrortu, 2009.

CABRERA, Julio. ―Europeu não significa universal. Brasileiro não significa

nacional‖. Nabuco: Revista Brasileira de Humanidades, n. 2, nov.

2014/jan./fev. 2015.

Page 260: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

260

CAMINHA, Pero Vaz. A carta de Pero Vaz de Caminha. Biblioteca Nacional: RJ,

Disponível em:

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura brasileira: momentos decisivos.

Belo horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 1999.

______. Literatura e sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio

de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014.

______. GOMES, Paulo Emílio Salles., PRADO, Décio de Almeida e ROSENFELD,

Anatol. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014.

CARVALHO, José Murilo de. "O encobrimento do Brasil." São Paulo: Folha de

São Paulo, 03 de outubro de 1999. FSP 3-10-99. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_6_4.htm.

CASATI, Roberto. A descoberta da sombra: De Platão a Galileu, a história de

um enigma que fascina a humanidade. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001.

CASTRO, Cláudia Maria de. A inversão da verdade: notas sobre O nascimento

da tragédia. Kriterion [online]. 2008, vol.49, n.117, pp.127-142.

CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Noémia de Sousa.

Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

CHAMISSO, Adelbert von. A história maravilhosa de Peter Schlemihl. Tradução

de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Estação liberdade, 1989.

CHAMISSO; HOFFMAN; GOGOL; ANDERSEN – Contos dos homens sem sombra. Lisboa:

Editorial estampa, 2003.

CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire Étymologique de la langue grecque :

histoire des mots. Paris : Klincksieck, 1999.

CHENOUF, Yvane. Le Sourire qui mord : interview / Yvanne Chenouf. In. Les

actes de lecture, 7, octobre 1984, p. 127-139.

COLÓN, Cristóbal. Relación del viaje a Cuba y Jamaica. Carta de Cristóbal

Colón a los Reyes Católicos. Disponível em:

http://www.biblioteca.tv/artman2/publish/cristobal_colon/index.shtmll.

Acesso em 31 de maio de 2017.

CONNIE ZWEIG E JEREMIAH ABRAMS (Orgs.) – Ao Encontro da sombra. O potencial

oculto do lado escuro da natureza humana. Tradução de MerleScoss. São

Paulo: Cultrix, 2012.

CORTÁZAR, Julio. Clases de Literatura: Berkeley, 1980. Buenos Aires:

Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2014.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Ed. Da

UFSC, 2014.

CUENCA, J.P. Corpo Presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

CURIEL, Ochy. Los aportes de las afrodescendientes a la teoría y la

práctica feminista: desuniversalizando el sujeto mujeres. I. FEMENÍAS,

María Luisa. Perfiles del feminismo iberoamericano. Buenos Aires:

catálogos, 2007.

Page 261: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

261

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território

contestado. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.

______. Representações restritas: a mulher no romance brasileiro

contemporâneo. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos

(Orgs.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São

Paulo: Editora Horizonte, 2010.

DAVIS, Angela. Angela Davis: Construindo o futuro da luta contra o racismo.

Transcrição de Naruna Costa. Blog da Boitempo, 28 de julho de 2017.

Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/28/angela-davis-

construindo-o-futuro-da-luta-contra-o-racismo/

______. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEBORD Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do

espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997.

DESCARTES, René. O Mundo ou Tratado da Luz e O Homem. Tradução de Marisa

Carneiro de Oliveira e Franco Donatelli.Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O duplo: o poema petersburguense; Tradução, posfácio e

notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2013.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução PolaCivelli. São Paulo:

Perspectiva, 1972.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006. 2. ed.

Florianópolis: Editora Mulheres,2013.

______. Conceição Evaristo: ―Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio‖

[13 de maio, 2017]. São Paulo: Carta Capital. Entrevista concedida à

Djamila Ribeiro.

______. Da grafia-desenho da minha mãe, um dos lugares de nascimento de

minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações

performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo

Horizonte: Mazza Edições, 2007.

______. Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. In

Scripta, v. 13, n. 25. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2009.

______. Olhos d‟água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional,

2016.

______. PonciáVicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Frantz Fanon; tradução de

Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FLUSSER, Vilém. A história do diabo. Revisão técnica de Gustavo Bernardo.

São Paulo: Annablume, 2008.

FOUCAULT, Michel. A história da loucura; Tradução: José Teixeira Coelho

Netto São Paulo: Perspectiva, 1972.

FRAZER, James. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

Page 262: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

262

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob

o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003

GALLAND, Anne; BRUEL, Christian. A história de Júlia e sua sombra de

menino. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo: Scipione, 2010.

GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas & outros poemas. Org. e introd.

Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GILSON, Etienne. ―Qu'est-ce qu'une ombre? (Dante, Purg. XXV).‖ In Dante et

Béatrice: Études dantesques, 22- 45. Paris: Vrin (a primeira parte foi

publicada como parte de ―Trois études dantesques pour le VIIe centenaire

de la naissance de Dante,‖ Archives d'histoire doctrinale et littéraire du

moyen âge 40 [1965]:72-93).

GOETHE, J. W. Fausto. Tradução de Jenny Klabin Segall.; Tradução,

apresentação e notas Marcus Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2004.

______. Fausto. Tradução de Jenny K. Segall. Belo horizonte: Ed. Itatiaia,

1997.

GONZALEZ, Lélia. ―A democracia racial: uma militância‖. Revista Uapê –

Revista de Cultura. No. 2. 2000.

______. "Por um feminismo afrolatinoamericano". Revista Isis Internacional,

Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988b.

______. "Racismo e sexismo na cultura brasileira". In: SILVA, L. A. et al.

Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais

Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p. 223-244, 1983.

HAUPT, Sabine. La sombra en la literatura moderna. Un pequeño panorama. In:

Victor I. Stoichita (Org.): Para una historia cultural de la sombra. Madrid

2010, S. 59-102.

HEGEL, G.W.F. ―Consciência de si‖. In. Fenomenologia do Espírito. Trad.:

Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007.

HOFMANNSTHAL, Hugo Von. A mulher sem sombra. Tradução Nicolino Simone Neto.

São Paulo: Illuminuras, 1991.

HOMERO. Odisseia. Homero; edição bilíngue; tradução de Trajano Vieira;

Posfácio e notas do tradutor; ensaio de Ítalo Calvino. São Paulo: Editora

34, 2014.

hooks, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, Florianópolis,

v. 3, n.2, p. 464-478, ago./dez. 2005.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro:

Ed. Objetiva, 2001.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução de Cid Knipel.

São Paulo:CosacNaify, 2010

JAA TORRANO; HESÍODO - Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de

JaaTorrano. São Paulo: Iluminuras, 1991.

JESUS, Carolina Maria de.Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1986.

Page 263: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

263

______.Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2005.

______.Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo : Francisco

Alves, 1960.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Tradução de Dora Ferreira da

Silva. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1978.

______. Psicologia do inconsciente. Tadução de Maria Luiza Appy.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1980.

______. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas a Winterthur.

Tradução de Lorena Richter.Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

KOJÈVE, A. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos

Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/EDUERJ, 2002.

KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito Tradução de

DonaldsonGarschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In:

Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LAERCIO, Diogenes.Vidas, opiniones y sentencias de los filósofos más

ilustres. Traducción de José Ortiz y Sanz. Buenos Aires: Librería ―El

Ateneo‖ Editorial, 1947.

LEWIS & SHORT. A Latin dictionary founded on Andrews' edition on Freund's

Latin dictionary. Revised enlarged and in great part rewriten. Oxford,

1991.

LEVINE, Robert M. Cinderela negra : a saga de Carolina Maria de Jesus.

Robert M. Levine e osé Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,

1994.

LÉVY-LEBLOND, Jean-Marc. A velocidade da sombra: nos limites da ciência.

Tradução de Maria Idalina Ferreira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

______. Crítica da moral cansada. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

______. O Saber e os Ventos do Não Saber. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.

LOPES, Nei. Dicionário literário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Pallas,

2011.

LOWI, Michael. Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da

modernidade. Tradução de Nair Fonseca. São Paulo: Boitempo, 2015.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro 1: o processo de

produção do capital; Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

______. A sagrada família, ou, A crítica da Crítica crítica contra Bruno

Bauer e consortes / Karl Marx e Friedrich Engels ; tradução, organização e

notas de Marcelo Backes. São Paulo : Boitempo, 2011.

MATOS, Olgária C.F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo.

São Paulo: Moderna, 1993.

Page 264: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

264

MONTECCHI, Fabrizio. Viagem pelo reino da sombra. Trad. ValmorBeltrame.

In:BELTRAME, Valmor (Org.). Teatro de Sombras: técnica e linguagem.

Florianópolis: UDESC, 2005.

MUCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Tradução de

Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processos de um

racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2017.

NASCIMENTO, João Gabriel .‖O branco imposto e o negro conquistado: Machado

de Assis na propaganda da Caixa Econômica Federal‖. Revista da Associação

Brasileira de Pesquisadores(as) Negros

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de

Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução

de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

PANOFSKY, Erwin. La perspectiva como forma simbólica. Tradução Virginia

Careaga. Barcelona: Tusquets Editores, 2003.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São

Paulo: Cosac Naify, 2012.

PEREGALLI, Enrique. A América que os europeus encontraram. São Paulo:

Atual, 1994.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização de Maria AlieteGalhoz. 3. ed.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

PHILIPPIDES, Katerina. "Mostellaria". The LiteraryEncyclopedia.

Firstpublished 24 April 2007

[http://www.litencyc.com/php/sworks.php?rec=true&UID=21412, acesso em abril

de 2016]

PICON, Gaëtan. O escritor e sua sombra. Tradução de Antônio Lázaro de

Almeida Prado. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970.

PIZARNIK, Alejandra. Poesía completa. Buenos Aires: Editorial Lumen, 2014.

PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Tradução de Maurício Santana Dias.

Sâo Paulo: Cosac Naify, 2015.

PIZARNIK, Alejandra. Poesía completa. Barcelona: Editorial Lumen, 2014.

PLATÃO. Diálogos (contém Banquete, Fédon, Sofista e Político). Traduções de

José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa. São Paulo:

Abril Cultural, 1972 (Os Pensadores).

______.A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores).

PLAUTO. A Comédia do Fantasma („Mostelaria‟). Tradução de Reina Marisol

Troca Pereira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014.

POE, Edgard Allan. Histórias extraordinárias. Tradução de José Paulo Paes.

São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Page 265: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

265

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.

In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e

ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires, Colección

Sur Sur, 2005a, pp.118-142.

QUILOMBHOJE. Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo:

Conselho de Participação e desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985

QUINET, Antonio. Um olhar a mais:Ver e ser visto na psicanálise. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

RAMA, Angel. A cidade das letras. Tradução de Emir Sader. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1985.

RANK, Otto. O duplo. Porto Alegre: Dublinense, 2013.

REDAÇÃO. Professor branco diz que obra de Carolina Maria de Jesus não é

literatura e provoca embate no RJ. Revista Fórum: Rio de Janeiro, 20 de

abril de 2017. Disponínel em:

https://www.revistaforum.com.br/2017/04/20/professor-branco-diz-que-obra-

de-carolina-maria-de-jesus-nao-e-literatura-e-provoca-embate-no-rj/

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. LANGFUR, Hal. ―Minas Gerais indígena: a

resistência dos índios nos sertões e nas vilas de El-Rei‖.. Tempo, 2007,

vol.12, no.23, p.5-22.

REIS, Maria. Úrsula. Florianópolis: Editoras Mulheres; Belo Horizonte: PUC

Minas, 2009.

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. A Cosmogonia de Inauguração do Templo de Jerusalém -

o SitzimLeben de Gn 1,1-3 como prólogo de Gn 1,1-2,4ª. 2008. Tese de

doutorado – PUC-Rio, Rio de Janeiro. 2008

RILKE, Rainer Maria. Poemas. Rainer Maria Rilke; Tradução de José Paulo

Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

______. Rodin. Rainer Maria Rilke; tradução de Daniela Caldas. Rio de

Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

ROCHA JUNIOR, Roosevelt Araújo da. O mundo das sombras em Homero e

Virgílio: Complexidades e Intertextualidades. 2000. 155f. Dissertação

(Mestrado em Letras Clássicas). Curso de Pós-Graduação da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2000.

SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: um escritora improvável.

Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

SARTRE, J. P. Entre quatro paredes. Tradução de Alcione Araújo e Pedro

Hussak. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005

______. O que é literatura?. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo,

Editora Ática, 1993.

______. O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de

Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

SAXE, Facundo.¿Una literatura de la memoria queer? La tematización de la

memoria y las sexualidades disidentes en textos culturales argentinos y

Page 266: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

266

alemanes recientes.III Congreso Internacional Cuestiones Críticas. Rosario;

Año: 2013.

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de Beatriz Viegas-Faria.

Porto Alegre: L&PM Editores, 1998.

SOBRAL, Cristiane. ―Contra hegemonia‖. In. Cadernos Negros 37. Antologia da

poesia afro-brasileira. São Paulo: Ed. Quilombhoje, 2014.

STIERLE, Karlheinz. A ficção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro:

Caetés, 2006.

STOICHITA, Victor I. Breve historia de la sombra. Tradução de Anna Maria

Coderch. Madrid: Siruela, 1999.

TANIKAZI, Junichiro. Em louvor da sombra. Tradução de LeikoGotoda. São

Paulo: Companhia da Letras, 2007.

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução de

Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

______. O espírito das luzes. Tradução de Mônica Cristina Correa. São

Paulo: Editora Barcarolla, 2008.

______. Goya à sombra das luzes. Tradução de Joana Angélica d'Avila Melo.

São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

______. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa

Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.

TRINDADE, AzoildaLoretto da. ―Fragmentos de um discurso sobre afetividade‖.

In: Caderno Modos de Brincar, 3 TMP. Disponível em:

http://www.acordacultura.org.br/sites/default/files/

kit/Caderno1_ModosDeVer.pdf

VALE, Simone Do. Pequena História da Radiografia. Revista Contemporânea

(UERJ. Online), v. 13, p. 59-67, 2009.

VAZ, Sergio. Flores de Alvenaria. São Paulo: Global Editora, 2015.

______. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.

VIRGÍLIO. Eneida. Virgílio; edição bilíngue; tradução de Carlos Alberto

Nunes; organização, apresentação e notas de João Angelo Oliva Neto. São

Paulo: Editora 34, 2014.

VITA, ANA CARLOTA R. História da maquiagem, da cosmética e do penteado: Em

busca da perfeição – São Paulo: Anhembi Morumbi, 2008.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Luz e sombras: uma experiência (onírica) noturna e um

fragmento de carta. Ludwig Wittgenstein; Tradução de Edgard da rocha

Marques. São Paulo: Martins Fontes, 2012 (Coleção tópicos).

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Tradução de Bia Nunes de Sousa, Glauco

Mattoso. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

Page 267: POÉTICAS DA SOMBRA: DE PROJEÇÕES A SUJEITOS DA … · Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade

267

ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (org). Ao encontro da sombra: O Potencial

Oculto do Lado Escuro da Natureza Humana. Tradução de MerleScoss. São

Paulo: Editora Cultrix, 2012.

Video:

ADICHIE, ChimamandaNgozi. (outubro de 2009). ChimamandaAdichie: o perigo de

uma única história. [Arquivo de vídeo]. Extraído de:

https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/t

ranscript?language=pt-br

Sites:

Museu Rodin: www.musee-rodin.fr (Último acesso em dezembro de 2016)

Academia.edu: https://www.academia.edu/15514688/De_Vulgari_Eloquentia

Breizh-info: http://www.breizh-info.com/2014/11/27/19545/lorient-salon-du-

livre-jeunesse-propagande-subventions-multiples (Último acesso em abril de

2017)

Le Centre national de la littérature pour la jeunesse :

http://lajoieparleslivres.bnf.fr (Último acesso em abril de 2017)

Le Figaro: http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2014/02/14/01016-

20140214ARTFIG00041-les-livres-de-la-discorde.php (Último acesso em abril

de 2017)

Dossier de Presse: Exposition Christian Bruel:

http://fr.calameo.com/read/003559605f93c009b03d9 (Último acesso em abril de

2017)

Légifrance: https://www.legifrance.gouv.fr (Último acesso em abril de 2017)

500 años de México en documentos: http://www.biblioteca.tv (Último acesso

em abril de 2017)

Biblioteca Nacional: objdigital.bn.br/ (Último acesso em abril de 2017)

Inep - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais:

www.inep.gov.br/(Último acesso em abril de 2017)

Instituto Paulo Montenegro – INAF: www.ipm.org.br/inaf/ (Último acesso em

abril de 2017)

TED - https://www.ted.com/ (Último acesso em abril de 2017)