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Políticas Públicas: o Estado e o social

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A POLÍTICA MUDOU DE LUGAR

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A POLÍTICA MUDOU DE LUGAR

OCTAVIO IANNI

Sociólogo, Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor de A sociedade global, entre outros

globalização desafia radicalmente os quadros dereferência da política, como prática e teoria. Hácategorias básicas da ciência política que pare-

cem ter perdido a vigência ou estão necessitando dereelaboração. Dadas as transformações geoistóricas emcurso no século XX, são bastante evidentes os desenvol-vimentos da transnacionalização, mundialização ou, maispropriamente, globalização. São transformações que nãosó atravessam a nação e a região, mas que também con-formam uma realidade geoistórica de envergadura glo-bal. Trata-se de uma realidade emergente, porém já bas-tante evidente e, simultaneamente, carente de categoriasinterpretativas.

Entre as categorias do pensamento político que pare-cem desafiadas pelos dilemas e horizontes que se abremcom a globalização estão: sociedade civil, Estado, parti-do político, sindicato, movimento social, opinião públi-ca, povo, classe social, cidadania, soberania e hegemo-nia, entre outras. À medida que essas e outras categoriasforam elaboradas com base na dinâmica da sociedadenacional, como emblema por excelência das ciências so-ciais, provavelmente elas pouco ou nada respondam àsexigências da reflexão sobre a dinâmica da sociedademundial. Sim, as relações, os processos e as estruturas dedominação, mais característicos da sociedade global, comonovo emblema das ciências sociais, podem estar criandodesafios radicais à política, como prática e teoria.

Cabe reconhecer, desde o início, que está em curso umacrise generalizada do Estado-Nação. A crescente trans-nacionalização da economia não só reorienta como reduza capacidade decisória do governo nacional. Em pratica-mente todos os setores da economia, sem esquecer as fi-nanças, as injunções externas são, com freqüência, deci-sivas para a adoção de diretrizes por parte do governo.

Também no campo dos transportes, habitação, saúde,educação e meio ambiente cresceram muito as sugestões,os estímulos, as orientações, os financiamentos e as im-posições de organizações multilaterais, dentre as quaisdestacam-se o Fundo Monetário Internacional (FMI) e oBanco Mundial (Banco Internacional de Reconstrução eDesenvolvimento – Bird). Sem esquecer que, muitas ve-zes, as diretrizes dessas organizações articulam-se comos interesses das corporações transnacionais ou dos paí-ses dominantes no âmbito do capitalismo.

Sendo assim, está em causa a crise do princípio da so-berania nacional. Ao intensificarem e generalizarem asinjunções “externas”, as condições e as possibilidades dasoberania alteram-se, redefinem-se e também reduzem-se. Se cresce a importância das injunções “externas”, con-figurando a dinâmica da globalização, pode reduzir-se aimportância das forças sociais “internas”, no que se refe-re à organização e às diretrizes do poder estatal. Daí ohiato crescente entre a sociedade civil e o Estado. Sãoevidentes os descompassos entre as tendências de boa parteda sociedade civil quanto aos problemas sociais, econô-micos, políticos e culturais e às diretrizes que o Estado élevado a adotar. Talvez se possa dizer que, enquanto asociedade civil está predominantemente determinada pelojogo das forças sociais “internas”, o Estado parece estarcrescentemente determinado pelo jogo das forças sociaisque operam em escala transnacional. Um aspecto parti-cularmente esclarecedor desse impasse revela-se no âm-bito da reforma do Estado. São muitos os países nos quaiso Estado vem sendo reestruturado, com a desregulaçãoda economia, privatização das empresas produtivas esta-tais, abertura de mercados, reforma dos sistemas de pre-vidência social, saúde, educação, etc. Em todos esses ca-sos, é evidente a interferência de injunções “externas”,

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através das corporações transnacionais e das organizaçõesmultilaterais, cujas diretrizes, em geral, se conjugam. Semesquecer que as injunções “internas”, isto é, aquelas rela-tivas aos setores sociais subalternos, têm escassa ou ne-nhuma presença na maneira pela qual se realiza a reformado Estado. Daí o divórcio entre as tendências fundamentaisda sociedade civil e as orientações predominantes no Esta-do. Sim, as tensões entre o globalismo e o nacionalismo,traduzidas nas diretrizes e práticas neoliberais, agravamos desencontros entre as tendências reais ou potenciais dasociedade civil e as orientações que se impõem, ou sãoadotadas, no âmbito do aparelho estatal.

Portanto, as forças predominantes na sociedade civil têmreduzidas possibilidades de influenciar ou reorientar asdiretrizes governamentais. Visto que o Estado é crescen-temente obrigado a atender às condições e injunções dasorganizações multilaterais e das corporações transnacio-nais, as orientações das forças predominantes na socieda-de civil, no que diz respeito ao povo, aos setores sociaissubalternos ou à maior parte das classes assalariadas nãoencontram condições políticas ou jurídico-políticas de rea-lização. Precisam reavivar suas instituições ou organiza-ções de atuação política, ou mesmo criar novas, tendo emconta a envergadura dos processos e estruturas que sub-mergem muito do que é nacional do âmbito do global. Aglobalização está pondo as classes subalternas na defensi-va, que passaram a depender de novas interpretações enovas práticas, diagnosticando relações, processos e es-truturas de dominação e apropriação mundiais.

Estão em causa, pois, as condições de construção erealização da hegemonia, seja das classes e grupos sociaissubalternos, seja de outros e novos arranjos compreen-dendo subalternos e dominantes que desafiem as diretri-zes dos blocos de poder organizados e atuantes nos mol-des do neoliberalismo. Assim, forças sociais importantesda sociedade civil defrontam-se com obstáculos às vezesintransponíveis para traduzir-se em governo, governabi-lidade, dirigência ou hegemonia. A construção de hege-monias conflitantes, alternativas ou sucessivas, pode serum requisito essencial da dialética sociedade civil e Esta-do. Sem hegemonia, fica difícil pensar não só em sobera-nia nacional, mas também em democracia, mesmo ape-nas política.

Ocorre que a hegemonia, em suas diferentes modali-dades de expressão e realização, tem estado cada vez maissob o controle das organizações multilaterais e das cor-porações transnacionais. Essas instituições habitualmentedetêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes dese sobrepor e impor aos mais diferentes estados-nacionais.Por meio de sua influência sobre governos ou por dentrodos aparelhos estatais, burocracias e tecnocracias, esta-belecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem

às sociedades civis, no que se refere a políticas econômi-co-financeiras, de transporte, habitação, saúde, educação,meio ambiente e outros setores da vida social nacional.Nesse sentido é que as condições e possibilidades de cons-trução e exercício da hegemonia podem ser decisivamen-te influenciadas pelas exigências da globalização, expressana atuação das organizações multilaterais e das corpora-ções transnacionais.

As organizações multilaterais e as corporações trans-nacionais são novas, poderosas e ativas estruturas mundiaisde poder. Elas se sobrepõem e impõem aos Estados nacionais,compreendendo extensos segmentos das sociedades civis,isto é, das suas forças sociais. É claro que essas estruturasmundiais de poder têm crescido muito em agressividade eabrangência, influenciando nações e regiões e alcançandocom freqüência o âmbito propriamente global. Atuamsegundo cartografias, mapas do mundo, diretrizes geo-econômicas ou, mais propriamente, geopolíticas de alcanceglobal. São estruturas de poder econômico-político, comimplicações sociais e culturais muitas vezes de grandeinfluência e abrangência. Expressam os objetivos e as práticasdos grupos, classes ou blocos de poder predominantes emescala mundial. Naturalmente, respondem aos objetivos eàs práticas predominantes não só em países centrais, potênciasmundiais ou imperialistas, como também em âmbitotransnacional, mundial ou propriamente global. Já se for-maram e continuam a desenvolver-se estruturas globais depoder, respondendo aos objetivos e às práticas dos grupos,classes ou blocos de poder organizados em escala realmenteglobal.

Sendo assim, desloca-se radicalmente o lugar da polí-tica. Ainda que se continue a pensar e agir em termos desoberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tantoquanto de nacionalismo e Estado-Nação, modificaram-seradicalmente as condições “clássicas” dessas categorias,no que se refere às suas significações práticas e teóricas.

“Três elementos da regionalização e da globalizaçãoprecisam ser reconhecidos: primeiro, o modo pelo qual osprocessos de interdependência econômica, política, legal,militar e cultural estão mudando a natureza, o alcance e acapacidade do Estado moderno, e de como a sua capaci-dade ‘regulatória’ está sendo desafiada e reduzida em al-gumas esferas; segundo, o modo pelo qual a interdepen-dência regional e global cria cadeias de decisões e atuaçõespolíticas inter-relacionadas entre os Estados e os seus ci-dadãos, alterando a natureza e dinâmica dos próprios sis-temas políticos nacionais; e, terceiro, o modo pelo qual asidentidades culturais e políticas estão sendo redesenhadase reavivadas por tais processos, levando muitos grupos,movimentos e nacionalismos, em âmbito nacional e regio-nal, a questionar a representatividade e a confiabilidadedo Estado-nação” (Held, 1995:136).

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Uma face importante da realidade política global com-preende a formação das corporações transnacionais damídia, que organizam e agilizam não só os meios de co-municação e informação, mas também a eleição, seleçãoe interpretação dos fatos, sejam estes sociais, econômicos,políticos ou culturais. Muito do que ocorre no mundo –da África e Indonésia ao Caribe ou do Oriente ao Ociden-te –, seja importante ou irrelevante, divulga-se pelos qua-tro cantos do mundo por intermédio dos recursos e dasdiretrizes das corporações da mídia, compreendendo as mo-dalidades impressas e eletrônicas. É a mídia que forma econforma, ou influencia, decisivamente as mentes e oscorações de muitos, da grande maioria, em todo o mundo,compreendendo tribos, nações e nacionalidades, ou con-tinentes, ilhas e arquipélagos. Isto não significa que o lei-tor, o ouvinte, o espectador, a audiência ou o público sãoinermes, passivos. É claro que eles são sempre ativos,radicados no jogo das atividades sociais, compreendendoas condições concretas de vida e trabalho. E não há dúvi-da de que as situações sociais em que se inserem os indi-víduos e as coletividades são fundamentais no processode elaboração ou desenvolvimento da sua consciência so-cial. Mas também é claro que os meios de comunicação,informação e análise organizados na mídia e na indústriacultural agem com muita força e preponderância, no modopelo qual se forma e conformam as mentes e os coraçõesda grande maioria, pelo mundo afora.

“A sofisticação da tecnologia de persuasão, no últi-mo meio século, modificou as velhas regras da comu-nicação humana. Na medida em que a indústria da pu-blicidade e relações públicas tornava-se cada vez maishábil em controlar a opinião pública, as posturas, ascrenças e os sistemas de valores, foi tornando-se umimperativo manter o segredo e capacitar a população areprimir a consciência daquilo que os manipuladoresestão tramando. O controle da percepção não pode seralcançado se for reconhecido, o que fez com que proli-ferassem os controles perceptivos em níveis conscien-tes e inconscientes (...) A suscetibilidade humana àpersuasão ideológica é baseada na promessa eternamen-te não cumprida de sentido e ordem, uma resposta es-tereotipada à solidão, à monotonia, ao medo e às amea-ças de fome, doença, insegurança e caos político, moralou social. Estas ameaças são incessantemente suscita-das pela mídia comercial. A mensagem constante damídia com estas ameaças mantém a busca compulsivapor perguntas e respostas, causas e efeitos, e compro-missos ideológicos. A mensagem da mídia indica a úl-tima direção do consumo, divertimento, da política, dosnegócios, da indústria, das questões militares e da reli-gião, com suas relativas promessas de reduzir a ansie-dade” (Key, 1993:313-319).

Nesse sentido, a mídia transformou-se no intelectualorgânico das classes, grupos ou blocos de poder domi-nantes no mundo. Um intelectual orgânico complexo,múltiplo e contraditório, mas que atua mais ou menosdecisivamente por sobre os partidos políticos, os sindica-tos, os movimentos sociais e as correntes de opinião pú-blica. Enquanto estes continuam a operar principalmenteno âmbito local e nacional, a mídia atua e predomina tam-bém em escalas regional e mundial, formando e confron-tando movimentos de opinião pública, em diferentesesferas sociais – que compreendem tribos, nações e nacio-nalidades – ou atravessando culturas e civilizações. “Aesfera da mídia faz tempo que conta com suas corpora-ções globais, as quais tendem a tornar-se crescentementemaiores e mais poderosas, à medida que o século correpara o seu fim” (Sreberny-Mohammadi, 1991:123).

Sob muitos aspectos, a mídia transnacional acaba trans-formando-se também no intelectual orgânico dos grupos,classes ou blocos de poder atuantes em escala mundial; sem-pre com fortes ingerências em assuntos sociais, econômi-cos, políticos e culturais também regionais e nacionais.

“As mudanças que abalam o mundo criam inseguran-ça. Elas exigem que o povo reavalie e mude de atitudes,de modo a administrar as novas mudanças. O povo buscaorientação e informação, mas tem também uma forte ne-cessidade de entretenimento e recreação. Para fazer facea essas diversas necessidades, uma corporação global damídia tem responsabilidades especiais. A comunicação éum elemento básico de qualquer sociedade. A mídia tor-na essa comunicação possível, ajuda a sociedade a com-preender as idéias políticas e culturais, além de contribuirpara formar a opinião pública e o consenso democrático.Hoje, a sociedade usa a mídia para exercer uma forma deautocontrole. Com estas responsabilidades como pano defundo, os executivos da mídia devem estar cientes das suasobrigações, respeitando princípios éticos em suas ativi-dades” (Bertelsmann, 1993:4). Sem esquecer a mobiliza-ção de todos os tipos de tecnologias, ou de todos os re-cursos da razão instrumental, para realizar eficazmenteos meios e os fins destinados a garantir o “autocontrole”da sociedade. “Para combater a resistência do público àtelevisão e à publicidade, a manipulação das emoçõestornou-se ainda mais sofisticada. Ciências sociais e téc-nicas psicológicas foram acrescentadas ao arsenal, com oobjetivo de condicionar o comportamento humano”(Bagdikian, 1993:223).

Note-se que a atuação da mídia está sempre acom-panhada ou complementada pela publicidade, que pu-blicidade não tem sido apenas de mercadorias, no sen-tido convencional. A publicidade está presente napolítica, religião e diferentes esferas da cultura, tantoquanto nos bens de consumo corrente. Ela envolve a

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informação e a interpretação de coisas, gentes e idéias,de tal modo que o leitor, o ouvinte, o espectador, aaudiência, ou o público são informados, orientados,induzidos, subordinados ou manipulados. Assim, nas-ce o consumismo, crescente e avassalador, sôfrego ecompulsivo. Mais que isso, a publicidade devido aomodo pelo qual induz ao consumo faz com que indiví-duos, coletividades e multidões, consciente ou incons-cientemente, elejam o consumismo como um exercícioefetivo de participação, inserção social ou mesmo decidadania. São muitos os que se comportam e imagi-nam como se o consumismo fosse o mais imediato,objetivo e evidente exercício de cidadania.

Deve-se lembrar que a mídia, como meio de comuni-cação, informação e interpretação, envolvendo publici-dade e consumismo, ou a indústria cultural, tem sido emtodos esses e outros níveis, cada vez mais imagem, muitomais do que palavra. Ou seja, a mídia compreende pala-vras, sons, cores, formas e movimentos, em geral articu-lados na profusão das imagens. Na época do globalismo,quando também se intensificam e generalizam as tecno-logias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, o mundoestá sendo colocado sob o signo da imagem. Em largamedida, é assim que a realidade social, econômica, polí-tica e cultural, nos âmbitos local, nacional, regional emundial transforma-se em realidade virtual.

“A preeminência da palavra, dos grandes relatos e tam-bém do discurso político tem sido nos anos recentes subs-tituída pela imagem. Vivemos imersos em uma cultura daimagem, que altera a idéia que fazemos da política. Parabem ou por mal, já não podemos pensar a política à mar-gem da televisão. Quando o dom da palavra é inibido pelamanipulação da imagem, mudam as estruturas comunica-tivas nas quais se apóiam tanto as relações de representa-ção como as estratégias de negociação e decisão. As téc-nicas de marketing não substituem, mas modificam acapacidade decisória do cidadão. Enquanto os políticoscompetem empenhadamente pela atenção, sempre limita-da, do espectador, este deve enfrentar mudo a invasão deestímulos. Fragmentada em milhares de instantâneosinconexos, a política acaba sendo reconstruída como umcaleidoscópio de flashes. Há uma superoferta de informa-ção que não faz senão ressaltar a erosão dos códigos deinterpretação. Isto nos remete aos desafios que enfrentamas culturas políticas. Além do seu impacto estritamentepolítico, a televisão ilustra a decomposição dos códigoscom os quais habitualmente interpretamos o mundo. Umaavalanche de imagens fugazes e repetitivas dilui a reali-dade, ao mesmo tempo em que a torna avassaladora. Odesconcerto do nosso “sentido de realidade’’ reflete o re-dimensionamento das noções de espaço e tempo’’(Lechner,1996:68).

Esse é o contexto em que o ouvinte, o telespectador, aaudiência ou o público podem ficar mais ou menos inde-fesos diante das forças predominantes na sociedade. Fi-cam preparados para tomar o consumismo como exercí-cio efetivo de cidadania. Consideram muito do que é arealidade virtual como se fosse experiência, vivência ouexistência, deleitando-se ou indignando-se no exercícioda práxis imaginária.

O cartão de crédito torna-se, de fato e de direito, o car-tão de identidade e cidadania de muitos, em níveis nacio-nal e mundial. A credibilidade do passageiro, viajante,turista, consumidor, cliente ou outra modalidade de in-tercâmbio e circulação social está relacionada à carteirade identidade, ao título de eleitor, à carteira de trabalho,ao passaporte e ao cartão de crédito. Em praticamentetodas as partes do mundo, esses e outros documentos ousignos entram no processo de caracterização ou qualifi-cação do indivíduo, juntamente com a idade, sexo, cor,língua, religião e outros signos. O que ocorre no mundocontemporâneo, e em escala acentuada e generalizada, éque o cartão de crédito torna-se o principal documentode identidade, credibilidade ou cidadania, transformandoo seu portador em cidadão do mundo, mas enquanto con-sumidor, alguém situado no mercado. E o consumismo,por implicação, transforma-se em expressão e exercíciode cidadania, cotidiana, recorrente e universal. Assim seforma o cidadão do mundo, o cosmopolita, “alheio” à po-lítica, mas produzido no jogo do mercado, como uma es-pécie de subproduto da lógica do capital.

São vários os indícios de que a política mudou de lu-gar. Na medida em que a sociedade nacional transformou-se em província da sociedade global, são evidentes osdeslocamentos ou esvaziamentos dos princípios de sobe-rania, hegemonia e cidadania, sem esquecer democracia.Se é verdade que esses princípios situam-se classicamen-te no âmbito da sociedade nacional, do Estado-Nação, oudo contraponto sociedade civil e Estado, então fica evi-dente que a soberania, a hegemonia, a cidadania e a de-mocracia mudaram de lugar, perderam significados, ousimplesmente transformaram-se em ficções jurídico-po-líticas de um mundo pretérito.

Para esclarecer este problema, no que se refere à sobe-rania, hegemonia, cidadania e democracia, cabe mergu-lhar na análise do que é ou pode ser o globalismo, com-preendendo não só a emergência de estruturas mundiaisde poder, mas também a emergência de uma incipiente,mas evidente, sociedade civil global. Já são evidentes al-guns indícios de uma sociedade civil de âmbito global. Odesenvolvimento das relações, processos e estruturas dedominação e apropriação, com alcance mundial, indica aformação de uma configuração geoistórica, isto é, simul-taneamente social, econômica, política e cultural. São

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relações, processos e estruturas envolvendo diretamenteas condições e as possibilidades de construção ou recons-trução da soberania, hegemonia, cidadania e democracia,em escalas nacional e mundial.

Na época do globalismo, crescentemente dinamizadopelas tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas,a política se desterritorializa, realizando-se principalmentena mídia impressa e eletrônica, compreendendo o marke-ting, o videoclip, o predomínio da imagem, da multimí-dia, do espetáculo audiovisual. Ao mesmo tempo que sedescola, desenraíza ou desterritorializa, a política trans-forma-se em realidade virtual. Tanto é assim, que o dis-curso político torna-se cada vez mais exíguo e fragmen-tário, com apelos ao coloquial, afetivo, privado, suave ouinócuo. Muitas vezes parece réplica ou caricatura do pro-grama de auditório, do show de televisão ou da telenove-la. Está longe do debate político partidário, do comício,da praça pública, do público ou do povo, estes como co-letividades de cidadãos no sentido “clássico”. Transfor-ma o público e o povo em ouvintes ou telespectadorespassivos e inermes, maravilhados ou indignados. Mas unse outros, o político e o público, o partido e o povo, trans-figurados em realidade virtual, uma ficção paródica, umsimulacro pasteurizado.

Esse é um mundo sistêmico e tem sido crescentementearticulado, em vários níveis e em diferentes configurações,com base nos ensinamentos e nas tecnologias cibernéticas,eletrônicas e informáticas. A partir dos interesses que pre-dominam na economia política mundial, mas influenciandoa política e a cultura, desenvolve-se uma crescente e abran-gente articulação sistêmica do mundo. As corporações trans-nacionais, as organizações multilaterais, os blocos regionaise os Estados nacionais não só se baseiam em tecnológicassistêmicas como também conjugam-se em moldes sistêmi-cos, em suas geoeconomias, em seus mapas do mundo. E éclaro que essa ampla e crescente articulação não se restringeà nova divisão transnacional do trabalho e da produção.Transborda para todos os setores da vida social, compreen-dendo a política, a cultura e a religião, isto é, o cristianismo.Conforme a conjuntura, em âmbito local, nacional ou regio-nal, a articulação sistêmica intensifica-se e generaliza-se. Issoestá ocorrendo cotidianamente, nas diretrizes e atividadesde corporações transnacionais, organizações multilaterais,blocos regionais e Estados nacionais; em geral, à revelia deamplos setores populares das sociedades nacionais, compre-endendo grupos e classes subalternos, partidos políticos emovimentos sociais.

É claro que o mundo sistêmico não é monolítico. Estáatravessado por diversidades e desigualdades, naciona-

lismos e fundamentalismos, blocos regionais e imperia-lismos. Juntamente com os processos de integração, de-senvolvem-se processos de fragmentação. A rigor, o glo-balismo tem agravado as condições sociais e engendradonovas, em todos os níveis, nos quatro cantos do mundo.Mas subsistem e desenvolvem-se, simultaneamente, asarticulações sistêmicas, organizando o globalismo desdecima, desde os interesses dos blocos de poder dominan-tes e contraditórios que prevalecem no mundo.

É claro que as condições de vida e trabalho, assimcomo as de luta e emancipação, das classes subalter-nas situam-se nesse cenário. Mais do que isso, as con-dições de luta e emancipação dos grupos e classes su-balternos, em todo o mundo, dependem da inteligênciadas configurações e dos movimentos da sociedade glo-bal, formando-se como o novo palco da história. Aí pas-sam a se desenrolar outras e novas lutas sociais, alémdas que se desenvolvem habitualmente em níveis lo-cais, nacionais e regionais. Mais do que isso, as lutaslocais, nacionais e regionais adquirem outros signifi-cados, como ingredientes e expressões das lutas queocorrem em escala mundial. Esse é também o cenáriodas ressurgências mundiais do cristianismo e islamismo,tanto quanto das manifestações de nazifascismo. Esseé o cenário em que emergem as manifestações sociais,econômicas, políticas e culturais do que se pode deno-minar de neo-socialismo. Por enquanto, no entanto, aglobalização pelo alto, inclusive no que se refere à suaorganização sistêmica, está sendo articulada pelosideais e pelas práticas de cunho neoliberal. São váriasas ideologias políticas, assim como as utopias, que as-sinalam aspectos fundamentais das configurações e dosmovimentos desse novo palco da história. Esse é o palcono qual a política está sendo reterritorializada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A DIMENSÃO POLÍTICA DADESCENTRALIZAÇÃO PARTICIPATIVA

MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Professor de Ciência Política da Unesp e Pesquisador Sênior da Fundap

esde meados dos anos 70 e, de modo ainda maisacentuado, após o início efetivo da redemocrati-zação do país, a idéia de descentralização tem

sido uma constante na vida brasileira, ocupando lugarparticularmente relevante na agenda de reformas do se-tor público, sobretudo no que se refere ao problema daformulação e implementação de políticas sociais.

Como tem sido enfatizado por diversos pesquisadores,estabeleceu-se uma certa confusão entre descentralização,democratização e participação, como se a descentraliza-ção contivesse em si mesma o impulso necessário parafrear o autoritarismo, democratizar a sociedade e ampliara participação dos cidadãos. É que a descentralização,como valor e como proposição operacional, acabou sen-do historicamente determinada pela luta em favor da de-mocratização, tendendo a ser vista como instrumento dela,já que direcionada para reduzir uma intervenção estatalarbitrariamente centralizadora, fragmentada, iníqua e ex-cludente. Ou seja, “a luta pelo fim do Estado autoritário ede seus mecanismos e arranjos de poder fortementecentralizadores fez com que a descentralização se tornas-se, para muitos, sinônimo incontestável de democracia”,fator que “levaria, por si só, a maior eqüidade na distri-buição de bens e serviços e a maior eficiência na opera-ção do aparato estatal” (Silva, 1995:22).

A Constituição de 1988, como se sabe, desempenhouimportante papel na legitimação do princípio da descen-tralização, tanto ao definir um novo tipo de arranjo fede-rativo com significativa transferência de decisões, fun-ções e recursos do Executivo Federal para os estados emunicípios, quanto ao consagrar a fórmula, estabelecidanos artigos 194 e 204, da “descentralização participati-va” para a gestão da nova área da seguridade social (saú-de, previdência e assistência social). Com isso, a descen-

tralização, que se vinha afirmando desde o final dos anos70, adquiriu características particulares: não se trata maisde uma descentralização meramente técnica, fiscal ouadministrativa, mas de uma descentralização que tambémse quer de natureza política, já que se pretende colada àparticipação da sociedade. Com o que ficou ainda maisreforçada sua vinculação à idéia de democratização, já queestaria direcionada para ampliar a participação das comu-nidades e “aproximá-las” do governo, propiciando assimum maior controle das ações e decisões governamentais,uma gestão pública mais justa e menos autoritária, e as-sim por diante.

Estamos frente, portanto, a uma proposta que porta con-sigo uma dupla característica. A descentralização que setenta hoje implementar deseja transferir encargos e, aomesmo tempo, co-responsabilizar a sociedade civil nagestão pública. Ou seja, ela deseja não apenas “aliviar”as instâncias centrais de governo (“desresponsabilizá-las”e desonerá-las em nome da eficiência, da eficácia e daefetividade), mas também envolver a sociedade civil – comtoda sua complexidade associativa e com todos seus inte-resses – no processo mesmo da gestão.

Acontece que descentralização e participação não sãotermos, e muito menos operações, necessariamente com-plementares. Nem toda descentralização leva automati-camente a maior participação. A descentralização podeser “imposta”, estabelecida. A participação não, pois de-pende de fatores histórico-sociais e de graus de amadure-cimento político-ideológico e organizacional que muitasvezes só aparecem após um longo período de tempo. Comojá foi observado, “a participação não se descentraliza. Elaexiste ou não no processo, não cabendo ao órgão centralconcedê-la ou delegá-la”. Embora prevista em diversosdispositivos descentralizadores, a participação da comu-

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nidade nem sempre se efetiva; muitas vezes, acaba até mes-mo por ser abertamente manipulada por “oligarquias” ougrupos de interesse. “O que a descentralização permite éuma melhor canalização ou vocalização das demandassociais da população, mas isso só ocorre em comunida-des que estão mobilizadas na defesa de seus interesses.Assim, a descentralização pode ser um instrumento depoder das comunidades organizadas, mas também podeser um instrumento de opressão das comunidades combaixo grau de consciência e organização” (Medici,1995:96).

Isso significa que a implementação de um modelo degestão descentralizada e participativa está longe de seruma operação simples, que dependa exclusivamente deboas doutrinas, refinadas tecnologias gerenciais, recur-sos metodológicos modernos ou mesmo de uma impetuo-sa vontade política.

A operação não é simples, antes de tudo, porque dizrespeito tanto ao envolvimento de instâncias sob contro-le do Estado – como prefeituras e câmaras municipais –,quanto ao envolvimento de entidades, movimentos e di-nâmicas societais que fogem da esfera estatal. Nessa me-dida, a gestão pública politiza-se fortemente, expondo-sepor inteiro ao contato com os interesses organizados dasociedade. Em decorrência, todo o esforço por gerenciaro processo de descentralização é amplificado, passando arequerer novos recursos e energias. Isto porque é muitomais difícil descentralizar de modo participativo do quesimplesmente “municipalizar” ou remeter a responsabili-dade pela gestão dessa ou daquela política para outrasinstâncias de governo que não as “centrais”.

Além disso, a operação é tão mais complexa na medi-da em que implica uma espécie de “perda”, abdicação ou“roubo” de poder: do centro para entidades periféricas,do Estado federal para as instâncias subnacionais, do es-paço da democracia representativa para o espaço da “de-mocracia direta”, e assim por diante. Este fato que, numpaís como o nosso, cuja estrutura administrativa e cujoprocesso decisório estão tomados por um jogo federativofracamente cooperativo, cortado por práticas predatóriase por uma forte manipulação política dos fundos públi-cos, representa uma autêntica reviravolta. Precisamentepor isso, existem motivos de sobra para se imaginar que aimplementação efetiva de um modelo de gestão descen-tralizada e participativa não só encontrará inúmerasresistências políticas e culturais, como também far-se-áacompanhar, por um lapso de tempo difícil de estimar, dasobrevivência de práticas, mentalidades e valores nostál-gicos de uma época pretérita, mais centralizadora.

Por outro lado, a operação também fica complicada pelolado da sociedade civil e dos movimentos sociais. É queestes, ao serem conclamados a participar do processo

descentralizador, acabam por ser envolvidos nos compli-cados e desgastantes meandros da gestão pública. Ocorre,assim, uma espécie de requalificação da esfera da partici-pação: dilata-se a vertente dos “interesses” em detrimentoda opinião política, sobrecarregam-se os protagonistas deobrigações técnico-gerenciais em prejuízo das atividadesde esclarecimento e educação política. Promove-se, destaforma, uma certa “despolitização” de parcela significati-va do movimento social de cidadania, que é arrastado paraa vocalização de interesses tópicos, em geral particularis-tas, direcionados muito mais ao fustigamento dos gover-nos do que à oposição democrática ao Estado. Aumentam,além do mais, os “custos da participação” mencionadospor Carlos Estevam Martins, já que aqueles que desejamparticipar ficam obrigados não só a ampliar o tempo dedi-cado a deslocamentos e reuniões como também, e sobre-tudo, a arcar com o custo derivado da necessidade de acu-mular e absorver novas informações, regra geral denatureza técnica mais sofisticada (Martins, 1994:215-217).Dado que a operação resulta em poucos ganhos de escalaimediatos – seja no campo específico da melhoria da gestãopública, seja no que se refere ao fortalecimento das organi-zações “civis” –, o risco de desmobilização e retrocesso nomovimento de cidadania cresce expressivamente.

Em suma, com o binômio descentralização/participa-ção imagina-se não só melhorar a performance do serviçopúblico em termos de eficiência, eficácia e efetividade, mastambém democratizar o Estado. Ou seja, formou-se entrenós uma espécie de consenso: ou se consegue descentrali-zar e estabelecer critérios participativos na gestão públicaou esta continuará definhando, sem conseguir cumprir suasfunções e atender às expectativas da sociedade. A pers-pectiva da descentralização, na verdade, foi-se difundin-do com tanta firmeza na área pública, nos recintos acadê-micos e nos ambientes estruturados pelos movimentossociais que parece ter adquirido força suficiente para im-por-se categoricamente e converter-se em padrão efetivode gestão.

Os inegáveis méritos técnicos, gerenciais e políticosda proposição, porém, nem sempre são analisados criti-camente pelos que estão envolvidos nos processosdescentralizadores. São tratados ora como itens de umaboa doutrina, ora como conquista de um movimento pelacidadania que nem sempre faz sentir sua presença. Entreos que se empenham para que a proposta descentraliza-dora avance, poucas vezes tem-se percebido, por exem-plo, a necessidade de se fixar critérios rigorosos para adescentralização, com a conseqüente banalização do temaconexo da coordenação. Tampouco costumam ser consi-derados os variados aspectos de ordem política e culturalque podem bloquear ou “corromper” os modelos descen-tralizados de gestão, transformando-os no avesso do aves-

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so, em formas disfarçadas de clientelismo, ineficiência einoperância. Além do mais, como a descentralização ten-deu a se tornar um valor de “todos” – ajustando-se aosdiscursos liberais, conservadores ou social-democratas,assim como às preocupações dos que querem resolver acrise fiscal e financeira do Estado e aos programas dosque desejam ampliar as margens de justiça social –, tor-nou-se vital perceber a substância real (teórica e política)das diversas propostas descentralizadoras, o que nem sem-pre é levado em conta.

Pior que isso, porém, é constatar que, embora seja pos-sível reconhecer que a descentralização das políticas so-ciais já está se tornando uma realidade no Brasil, seusefeitos “no que diz respeito à igualação de oportunidadese à inclusão econômico-social têm sido extremamente li-mitados” (Albuquerque e Knoop, 1995:1).

Além do mais, a vida não parece ser maleável ao dis-curso: apesar de se falar tanto em descentralização e par-ticipação, pouco se avança no sentido da implantação efe-tiva de estruturas descentralizadas e participativas.Pode-se, portanto, perguntar: dado o consenso que pare-ce ter-se formado em torno da questão, o que está blo-queando e dificultando o avanço da descentralização par-ticipativa no Brasil?

COMPLICANDO O ARGUMENTO

Para começar a discutir esta questão com alguma con-sistência, é interessante recordar rapidamente uma dascaracterísticas mais marcantes da dinâmica brasileira daúltima década. Ao longo desses anos – que, como sabe-mos, coincidem com a passagem do país para uma fasemais densa de reorganização democrática –, registra-se umgrande predomínio das políticas de estabilização sobretodos os demais esforços governamentais. O combate àinflação tornou-se estratégico na vida brasileira e na per-formance do Estado. E sabemos muito bem que toda equalquer política de estabilização requer um conjunto de“sacrifícios” da sociedade, mas também um conjunto de“adaptações” do próprio aparato público, que tende a seconcentrar fortemente no combate à inflação e a rever umasérie de questões estratégicas (a do déficit público, porexemplo). Ao mesmo tempo, na experiência brasileira, nemsempre a busca de estabilização tem conseguido preser-var o desenvolvimento; trabalha-se com a idéia de que aeconomia não pode “aquecer-se” e de que o Estado preci-sa arrefecer seu ímpeto desenvolvimentista e atrofiar seusmecanismos de regulação e intervenção, de modo a redu-zir gastos, encargos e dívidas. Seja como for, o fato é queo predomínio das políticas de estabilização na agenda go-vernamental não tem facilitado a implementação de ou-tras políticas no âmbito do Estado.

Embora se reconheça que o fim da inflação é um pres-suposto efetivo para que novas políticas possam ser ado-tadas e para que se alcance um padrão mais racional eprodutivo de ação estatal, também é evidente que o com-bate à inflação não se faz com base em um único métodoou política, podendo ser mais cruel ou menos cruel com odesenvolvimento econômico, com os setores desfavore-cidos e com o futuro do país. Ao menos em tese, quantomais uma política de estabilização utiliza mecanismosrecessivos e socialmente injustos e quanto mais é conce-bida de modo exclusivista, como a “grande meta” dosgovernos, mais ela tende a hegemonizar as ações gover-namentais e a dificultar a adoção de outras políticas pú-blicas.

A realidade seria simples se o problema fosse apenasesse. O problema é muito mais grave, pois as diversaspolíticas de estabilização adotadas na última década (ex-ceção feita à primeira fase do Plano Cruzado), além decomplicarem o delineamento e a implementação de polí-ticas por parte dos governos, acabaram por ser formatadasem um quadro marcado por uma série de problemas e pelaaceleração das múltiplas crises típicas do final do séculoXX, que problematizaram de modo muito particular asrelações Estado-sociedade e política-cidadania.

As crises deste fim de século estão de tal modo en-trosadas que é como se estivéssemos diante de uma únicagrande crise. Não há mais dimensões da vida que estejamdistantes do fenômeno. A crise é tão forte e está tão gene-ralizada que cria a sensação de estarmos inteiramente es-magados por ela, incapacitados para encontrar qualquertipo de refúgio ou saída. A tal ponto que falar em criseacaba sendo muitas vezes um exercício sem sentido, a jus-tificativa para todo tipo de desacerto, inação, incúria, pas-sividade e desorientação. Apesar disso, é impossível nãodar a devida ênfase à crise em que nos encontramos. Ela éreal e precisa ser analisada com todo rigor. Precisa, tam-bém, ser tratada como um fato abrangente, repleto denegatividade mas também de positividade: afinal, toda crisetraz consigo elementos de questionamento e renovação queajudam a dissolver cristalizações conservadoras a impul-sionar a criatividade e a preparar o futuro. Em suma, crisenão é sinônimo de morte e pode, muitas vezes, ser vividacomo o início de um novo caminho.

A primeira dessas crises – a mais importante e segura-mente a que condensa as demais – é a crise do Estado. Acrise do Estado, como sabemos, tem várias dimensões.Trata-se de uma crise da intervenção do Estado na eco-nomia, de uma crise dos processos de regulação, de umacrise na capacidade de formular, implementar e planejarpolíticas, de uma crise da representação política. Trata-se, pois, de uma crise geral, não de uma crise que digarespeito a esse ou aquele governo, nem que tenha sido

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provocada por um ou outro erro governamental, por umou outro defeito político facilmente identificável. É umacrise de natureza estrutural que vem, digamos assim, domundo, chega ao Brasil e se combina com algumas ca-racterísticas da história nacional bastante cristalizadas. Acrise do Estado é também uma crise da administração, doaparato administrativo com que se governa. O que signi-fica dizer que é uma crise da gestão, do funcionalismo,da forma de organização da burocracia pública, e assimpor diante. É ainda uma crise da dimensão política doEstado, das instituições com as quais se viabilizam as re-lações entre Estado e sociedade, regulam-se os conflitosentre os grupos e processam-se as demandas e reivindi-cações societais. Como já acentuou Martins (1994:304),a crise manifesta-se sob a forma de uma desarticulação:“Há um desencontro entre a sociedade e o Estado. A so-ciedade não se identifica com o Estado existente, não oapóia nem o prestigia. O Estado, por sua vez, não conse-gue reagir e, muito menos, impor-se, assumindo a posi-ção que lhe cabe na liderança do processo nacional.” Exa-tamente por isso, a crise do Estado – instituição centralda sociedade – espelha e exponencia a crise dos própriosfundamentos da ordem social.

Uma segunda crise é a crise da federação, que integraa crise do Estado, mas tem uma dimensão bastante par-ticular. Hoje, no Brasil, a relação entre a União, os esta-dos e os municípios já não obedece, rigorosamente, a umpadrão. As regras a partir das quais os níveis da federa-ção se relacionam já não são suficientes para fixar nexosvinculatórios, responsabilizações recíprocas ou repartiçõesnegociadas de encargos e receitas. O pacto que deveriasustentar a federação não funciona mais.

São vários os sintomas dessa crise da federação. Semquerer nos deter em um assunto que tem ocupado a aten-ção de tantos pesquisadores,1 vale destacar, para efeitoda discussão que aqui nos interessa, alguns pontos.

O mais forte indicador da crise da federação é a inope-rância reformadora do governo federal. Apesar de firme-mente apoiado na disposição de realizar profundas refor-mas estruturais na vida brasileira, o Executivo federal nãoconsegue superar as dificuldades e resistências que seantepõem insistentemente a seus projetos. Independente-mente de indicar a maior ou menor dose de habilidadecom que o governo se porta neste terreno, a inoperânciagovernamental revela com clareza que o Executivo fede-ral – “centro” da federação – já não mais opera como ar-ticulador dos interesses da sociedade, nem como fator deprocessamento de seus conflitos e reivindicações.

Mas a inoperância reformadora do governo federal, alémde espelhar a crise da federação, é sobredeterminada poroutro dado da situação política nacional: é que o sistemapolítico não facilita a formação de bases parlamentares

sólidas para os governos, seja pela excessiva “liberdade”que é concedida aos políticos vis-à-vis seus partidos, sejapelos efeitos fragmentadores derivados do modo mesmocomo são organizadas as eleições, invariavelmente carac-terizadas, dentre outras coisas, por uma forte competiçãointrapartidária e por uma disputa política bastante desre-grada (Nicolau, 1993). As reformas empacam, sobretudo,porque o sistema federativo, em sua dimensão imediata-mente política, não possibilita maiores sintonias entre osníveis federal, estadual e municipal: o que uma dada coli-gação partidária define como diretriz no “centro”, porexemplo, não é necessariamente seguido nas instânciassubnacionais, que funcionam em outro ritmo, com outrasprioridades, com base em coligações diferentes, etc. Atensão entre os acertos de “cúpula” e as motivações dasbases estaduais e municipais explode no Congresso Na-cional, inviabilizando qualquer programação de reformas.Não se trata, neste caso, apenas de inoperância do Execu-tivo federal (ou de sua base parlamentar), mas de uma ino-perância reformadora generalizada.

Isso significa que a crise da federação alcança clara-mente o plano da representação política. Como se sabe, oscidadãos dos diversos estados federados participam daesfera política superior da nação conforme regras institu-cionais politicamente estabelecidas. No caso brasileiro, osestados se fazem representar na Câmara dos Deputadosde modo proporcional à sua população, de modo que ne-nhuma das unidades federadas tenha menos de oito ou maisde 70 deputados. Já o Senado Federal é composto de re-presentantes dos estados eleitos segundo o princípio ma-joritário: cada unidade elege três senadores. Essa sistemá-tica, como tem sido apontado por diversos estudiosos(Nicolau, 1993; Lima Jr., 1991; Trindade, 1992), acaboupor introduzir na representação política brasileira umaacentuada “desproporcionalidade” na composição das ban-cadas de cada estado na Câmara dos Deputados, fato ge-rador de diversas distorções: super-representação dos es-tados menos populosos (regiões Norte, Nordeste eCentro-Oeste); sub-representação das regiões Sul e Sudes-te; peso diferenciado do voto nas eleições para deputadofederal. Em decorrência, acaba por ser deformada a com-posição partidária da Câmara e impactada negativamentea disposição “modernizadora” do Poder Legislativo, já queos partidos mais “ideológicos” tendem a sofrer mais como sistema, pois captam votos sobretudo nos grandes cen-tros urbanos, regra geral localizados nos estados maiores.Desdobramento quase inevitável: cresce a perda de confi-ança da opinião pública na política e aumenta a animosi-dade para com a idéia mesma de representação, para comos próprios institutos representativos.

O espaço da governabilidade, além do mais, é con-dicionado hoje pela crise fiscal do Estado brasileiro, agu-

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dizada ao longo dos anos 80, em meio aos efeitos dareconstitucionalização do país, dos sucessivos planos deestabilização econômica e da negociação da dívida ex-terna. Em decorrência, o Executivo deixou de ser o gran-de investidor e o grande financiador, com o qual estavamtodos acostumados, e os recursos federais, relativamentediminuídos, passaram a ser intensamente disputados,muitas vezes de modo predatório e desregrado. Por outrolado, o menor protagonismo do Governo Federal estimu-lou o aprofundamento da disputa por recursos fiscais en-tre as instâncias subnacionais. Passou-se, assim, a viverem clima de desarranjo fiscal, exponenciado pela com-petição aberta entre estados e municípios no que se refe-re, por exemplo, à instalação de indústrias, à concessãode subsídios e vantagens tributárias. Isto desencadeouentre os governadores, e muitas vezes entre os prefeitos,uma verdadeira guerra de natureza predatória e liqui-dacionista, uma guerra que traz em si o germe da nega-ção da idéia mesma de federação. Vive-se em clima deleilão, para saber quem oferecerá mais vantagens aos in-vestidores, uma corrida desenfreada para se apropriar dosbenefícios decorrentes da instalação de uma empresa emuma dada região, seja em termos fiscais-tributários, sejaem termos de geração de empregos ou dinamização domercado (Affonso, 1995a).

A dimensão fiscal da crise também ajuda a entender avelocidade com que se avançou, nos últimos anos, no ter-reno da descentralização, sobretudo no que se refere, comoé evidente, ao seu aspecto propriamente tributário. Se éverdade que a Constituição de 1988 promoveu uma ex-pressiva transferência de recursos fiscais para os estadose, sobretudo, para os municípios, também é verdade quea isto não correspondeu um progresso mais expressivo noque diz respeito à harmonização do processo de descen-tralização ou mesmo das relações federativas. Segundodiversos pesquisadores, não se sustenta a idéia de que anova Constituição proporcionou aos estados e municípiosganhos de receitas sem a contrapartida de encargos. O maiscorreto é afirmar que, ao longo dos anos 90, as esferassubnacionais de governo aumentaram sua capacidade fi-nanceira e assumiram maiores encargos, “embora de ma-neira descoordenada e diferenciada entre as regiões”.Passou-se a viver, no país, nos quadros de “um arranjofederativo razoavelmente descentralizado mas ainda nãoconsolidado, extremamente desorganizado e conflitivo”(Affonso, 1995a:67).

Um último sintoma da crise da federação está no fatode que sociedade já não vê a burocracia federal como pro-tagonista efetiva do processo de desenvolvimento e deorganização do Estado, tal como ocorreu durante boa parteda história republicana posterior a 1930. Hoje, estão pos-tos em xeque sua idoneidade, seu “desinteresse”, sua ca-

pacidade de manter-se impermeável às pressões cliente-listas. A burocracia federal, além do mais, tem sido siste-maticamente desorganizada pelas sucessivas tentativas dereformar “quantitativamente” a administração pública, aolongo da última década e meia. Acabou por se tornarmenos “competitiva” que as burocracias estaduais e mu-nicipais, cuja performance melhorou nos últimos anos,acompanhando a própria dinâmica do desenvolvimentoregional, com suas correspondentes necessidades de pla-nejamento e coordenação estatal.

Esta combinação de crises – do Estado, da administra-ção, da federação, da representação política – está na basedo desajuste que se verifica no campo da descentraliza-ção. Embora prevista em lei e aceita como meta meritóriapor todos, a descentralização produz poucos resultados.Permanece no papel, a espelhar uma grave desarticula-ção política e societal. A espelhar, antes de tudo, umaespécie de “omissão” do centro, isto é, uma ausência decomando unificado, legitimado e em condições de coor-denar, planejar e viabilizar a descentralização. Como de-monstrou Marta Arretche ao analisar os principais pro-gramas sociais brasileiros, em nenhuma das áreas pôde-seregistrar a presença de uma “política deliberada de des-centralização por parte do governo federal”, com a con-seqüente confusão em termos de divisão de encargos,competências e recursos. Parte dos avanços que podemser observados, por exemplo, na área da assistência so-cial, deve-se a iniciativas de governos estaduais e muni-cipais, responsáveis por uma elevação da despesa públi-ca em programas assistenciais. “À ausência de uma direçãodo ‘centro’ soma-se o caráter heterogêneo e difuso dosinteresses envolvidos, o que dificulta enormemente a for-mação de uma coalizão pró-descentralização, com con-seqüências evidentes sobre o caráter errático do proces-so” (Arretche, 1996:55).

Em suma, a descentralização participativa avança a du-ras penas, quando avança, em boa medida porque “falta”governo central, ou seja, faltam coordenação, regulaçãoe planejamento no que se refere à implantação do novomodelo de gestão. Opera, aqui, o paradoxo já apontadopor vários autores: para que a descentralização se com-plete é preciso mais (e não menos) governo central, ouseja, requer-se um movimento prévio de fortalecimentodo governo central. “Longe de implicar desestatização, adescentralização requer reestatização, vale dizer, purifi-cação do poder estatal, reconquista dos territórios inva-didos e reafirmação da singularíssima posição do Esta-do frente à vida dos homens em sociedade” (Martins,1994:310). Dado que o processo da descentralização secaracteriza invariavelmente pela reiteração de desigual-dades, por batalhas políticas e choques de interesses lo-cais, regionais e estaduais, ele está sempre na dependên-

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cia da intervenção de uma instância superior, ao menosem tese, descolada dos particularismos e capaz de totalizaros termos em disputa: “A superação das dificuldades nãopode ocorrer apenas por iniciativa dos governos locais,dada exatamente sua heterogeneidade na capacidade demobilizar recursos próprios e dada a escala local de suaatuação. Apenas o governo central pode desempenhar essatarefa, sob pena de que se aprofundem as desigualdadesregionais” (Arretche, 1996:57). O princípio constitucio-nal da descentralização participativa, portanto, em quepesem seus méritos técnicos e a adesão generalizada deque desfruta, não se transforma em fato, acabando por seaproximar perigosamente daquela tendência à “descen-tralização desagregadora, desvirtuada e regressiva, que de-veria ser chamada de centrifugação” (Martins, 1994:297).

A necessidade de se atribuir claras funções de coman-do e coordenação ao Executivo federal tem sido ampla-mente tratada pela literatura especializada. Assim, porexemplo, afirma-se que “só a União pode traçar uma es-tratégia nacional de combate à pobreza e de redistribui-ção de renda; só ela pode coordenar esforços de estados emunicípios; só ela pode estabelecer programas integra-dos e articular espacialmente as intervenções na área desaúde, educação, assistência e habitação” (Aureliano,1997:53). Do mesmo modo, reconhece-se que “não hárazão para pensar que descentralização implique inexo-ravelmente redução da importância da instância nacional.Ela pode resultar seja na criação de novos âmbitos de ação,seja na definição de novos papéis normativos, regulado-res e redistributivos que convivam com a expansão dasresponsabilidades de estados e municípios” (Almeida,1996:16).

Cabe reconhecer, portanto, que “o que está hoje emjogo não é mais a disjuntiva descentralização e centrali-zação, mas a definição de qual descentralização e, princi-palmente, para que descentralizar”. Trata-se de saber comodescentralizar uma federação assentada sobre profundasdisparidades regionais sem comprometer sua articulação,que é, em última instância, “sua razão de existir” (Affonso,1995a:68).

Chega-se, assim, a um verdadeiro ponto arquimediano.Se é verdade que o Estado está em crise e, dentro do Es-tado, a administração e a representação estão em crise,como é possível avançar, rapidamente, em termos de for-mulação e implementação de novas políticas públicas ouem termos de introdução de novas estruturas administra-tivas e de novos procedimentos gerenciais? Se há um mal-estar na federação, como é que as coisas poderiam ga-nhar velocidade maior? Como o processo poderia ser mais“simples” ou harmonioso? Embora não impeçam que sereconheçam avanços e conquistas, estas são questões quenos obrigam a admitir que os avanços dependem de mui-

to empenho e têm ocorrido ao sabor de iniciativas desco-nectadas, erráticas, como se as energias reformadoras deque dispomos colidissem com uma realidade que parececonspirar contra a implementação de todo e qualquer tipode reforma.

EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO

Devemos agregar a esse quadro o que tem sido cha-mado, nos últimos tempos, de processo de globalização.Impossível não fazê-lo, mesmo que pela enésima vez. Éque a globalização produz efeitos que complicam aindamais as relações Estado-sociedade.

Globalização é o conceito que se tem utilizado paradefinir a atual fase histórica de organização das relaçõesinternacionais e de estruturação das economias nacionais.Corresponde, portanto, ao processo de objetivação docapital. A globalização, nesse particular, radicaliza umadas mais típicas características constitutivas do capitalis-mo: a internacionalização, ou seja, a abertura e a integra-ção dos mercados nacionais. Embora contenha em si ogerme de uma “nova ordem mundial”, a globalização,sobretudo em seus momentos iniciais, provoca especial-mente desorganização e desordem. Ela se impõe ao Bra-sil porque o Brasil faz parte do mundo e deseja se inte-grar ao mundo. Queremos que as portas do mundo seabram para o país e acabamos por abrir as portas do paíspara o mundo. Somos invadidos pelo mundo: uma ava-lanche de produtos importados, intensas transações co-merciais e financeiras, empresas estrangeiras se instalan-do, associadas ou não a empresários nacionais, inúmerasfusões e incorporações. Mas as coisas vão além. O mun-do entra no país pela via da quebra da soberania; não ape-nas da econômica, mas da soberania como princípio maisgeral. Nas palavras de um atento analista, “global e glo-balização são termos que não devem ser confundidos cominternacional e internacionalização. Global e globaliza-ção referem-se não a relações entre nações, mas a forçassupranacionais que, sem ter compromissos maiorescom suas bases territoriais de origem, condicionam portoda parte o funcionamento das sociedades nacionais”(Martins, 1997:20).

O Estado nacional hoje, em qualquer lugar do mundo– mais em alguns países, menos em outros –, já não podeser dono de suas fronteiras nem senhor absoluto de suasações, tem menos autonomia para decidir qual políticaadotar, como alocar seus recursos, como se relacionar comseus credores, etc.

É acentuado o impacto negativo de tal processo sobreo desempenho do Estado. O Estado, que por sua própriatrajetória histórica já não vinha a pleno vapor, chega aofinal do século buscando estabelecer um novo tipo de re-

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lação com o mundo e, com isso, tendo de empenhar ener-gias – energias intelectuais, energias técnicas, recursoshumanos, recursos financeiros – para monitorar essa novarelação. A globalização, em suma, desorganiza o Estado.Faz com que esta instituição mergulhe em grave proces-so de esvaziamento e perca funções, recursos e poder:“Faltam-lhe, cada vez mais, condições para controlar suasfinanças. Falta-lhe também capacidade para atuar comomotor do desenvolvimento já que as decisões de investi-mento, assim como a geração de progresso técnico, sub-metem-se cada vez menos a critérios decorrentes de al-gum tipo de planejamento governamental. Faltam-lhe,finalmente, os meios para atender, de modo satisfatório,as necessidades de educação, saúde, habitação, segurida-de, meio ambiente e segurança pública” (Martins, 1997:40).

Em decorrência desta grave erosão das bases territo-riais, da autonomia e das capacidades do Estado-Nação,a globalização desorganiza o sistema político, afetandoparticularmente a democracia e os partidos políticos. Amenor soberania do Estado faz par com a menor sobera-nia popular: cresce o desinteresse político, diminui a dis-posição de participar politicamente – isto é, em prol deuma opinião “geral”, não de uma demanda tópica –, dila-ta-se a distância entre o cidadão e a política. Em lugardisso tudo, multiplicam-se iniciativas e movimentos des-conectados da intermediação política, voltados paraalgum tipo de “ação direta”, para o fustigamento do Es-tado, para a defesa de interesses particulares. Em decor-rência, a governabilidade democrática fica dificultada etende a se esvaziar de capacidade reformadora (Noguei-ra, 1995).

A globalização também se combina a uma profundaredefinição da questão produtiva e, particularmente, daquestão do trabalho. Traz consigo uma revolução tec-nológica de proporções avassaladoras, que mexe comas estruturas da produção, interfere na relação traba-lho/máquina, altera a divisão do trabalho, afeta a for-ma de gerenciar as indústrias, provoca desemprego. Pro-voca desemprego no Brasil, provoca desemprego nosEstados Unidos. O chamado desemprego estrutural podeser maior ou menor conforme o país, conforme as po-líticas de governo, conforme o padrão industrial. Sejacomo for, a revolução tecnológica não é um fator quedinamiza a criação de empregos. De alguma maneira,o vínculo entre globalização e revolução tecnológicaextingue postos, anacroniza profissões e expulsa pes-soas do mercado formal de trabalho. Desorganiza otrabalho e, com isso, as bases mesmas da vida em so-ciedade, na medida em que amplia as margens da ex-clusão, promove a expansão do trabalho informal, au-menta a sensação de insegurança dos indivíduos,

dessencializa as funções e os equilíbrios da família, eassim por diante.

Desorganiza também o mundo dos interesses, ao abrirespaço a novas e incessantes polarizações entre incluídose excluídos, entre “inempregáveis” e desempregados, entrejovens e antigos trabalhadores e a novos segmentos e no-vos valores profissionais; ao transformar as expectativas,os cálculos e as visões de futuro – o que acaba por vitimizaros tradicionais institutos de organização e representaçãode interesses. Ao mesmo tempo, tensiona ainda mais asrelações entre os grupos sociais, entre os interesses parti-culares e o “interesse geral”, entre as reivindicações tópi-cas e a demanda política, entre o discurso corporativo e aopinião democrática, entre os sindicatos e os partidospolíticos.

Como se não bastasse, a globalização ainda desorga-niza os espaços territoriais, excluindo países e regiõesdo concerto econômico, promovendo polarizações entreregiões de um mesmo país, estimulando a adoção de prá-ticas segregacionistas voltadas para a defesa da estabili-dade de certas posições grupais ou geopolíticas. Nas pa-lavras de Martins (1997:33), “existem ilhas de afluênciaespalhadas por todos os continentes, circundadas pormanchas mais ou menos extensas de atraso, estagnação edesalento. Além disso, a distribuição espacial da prospe-ridade é eminentemente instável: qualquer área que hojeé privilegiada pode amanhã ser marginalizada em proveitoda expansão de alguma outra nova área emergente. Piorainda: como essas desconexões dependem apenas do jogode forças objetivas e externas, as regiões vitimadas nadapodem fazer para evitá-las”.

Podemos imaginar o efeito dessas “desorganizações”sobre a nossa base social impregnada historicamente depobreza e exclusão. O estrago é exponenciado: os po-bres do passado andam de mãos dadas com os pobres dofuturo. A revolução tecnológica e a globalização aumen-tam o número de excluídos e inviabilizam muitas empre-sas nacionais. “Complicam” a economia e geram desem-prego não só porque dilapidam patrimônios, mas tambémporque condenam à morte certas atividades especializa-das, liquidando com os trabalhadores que não são capa-zes de se reciclar. Estes serão pobres daqui a alguns anos,porque o sistema produtivo não precisará mais deles. Omesmo ocorre com quem perde o emprego e perambulapor um período relativamente longo em busca de uma novacolocação: fora do mercado concreto, esse trabalhadorcorre o risco de ficar superado pela revolução tecnológi-ca e de não conseguir mais um emprego.

As “desorganizações”, além de tudo, exponenciam acrise da federação antes mencionada. No mínimo, tornamainda mais difícil a superação da tendência à descentrali-zação anárquica, a recomposição da federação e a dimi-

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nuição das pressões centrífugas que a tensionam e estio-lam.

Tudo isso gera uma forte ampliação da demanda so-cietal, que, por sua vez, acaba por esbarrar dramaticamentena “desorganização” do Estado: a sociedade dos “excluí-dos”, dos pobres de ontem e de hoje, já não pode contarincondicionalmente com um aparato estatal vocacionadopara dar cobertura, proteger, integrar, compensar dese-quilíbrios, traçar políticas sociais. Em boa medida, a me-nor autonomia dos Estados nacionais e as políticas neoli-berais de “desregulamentação” seguidas por muitos delesobstaculizam a execução dessas suas tradicionais funçõessociais.

PARADOXOS E CONTRADIÇÕES

Em suma, a situação histórico-social com a qual nosdefrontamos está marcada por paradoxos. Ela exige for-mas mais sofisticadas e firmes de intervenção estatal, mascorrói as bases mesmas do Estado; exige novas modali-dades de gestão pública mas cria todo tipo de dificuldadepara sua adoção. A lentidão com que se progride (ou não)rumo a métodos gerenciais mais ágeis e eficientes estádiretamente associada às possibilidades de se conseguiratravessar bem esse fim de século. Justamente porque esseavanço é tão urgente e tão necessário, ao mesmo tempoem que estão em crise sujeitos e instituições vocacionadospara a intermediação e a direção política, estamos perma-nentemente expostos ao risco da paralisia. Assim comoestamos expostos ao risco de nos atirarmos erraticamenteem busca do melhor modo de progredir, acabando comisso por inviabilizar a própria progressão. Estamos pre-midos demais pela urgência de fazer “alguma coisa”. Es-tamos carentes demais de instâncias capazes de unificare coordenar esforços e idéias. É algo semelhante ao su-jeito que se joga tão obstinada e cegamente sobre o obje-to de seu desejo que acaba por tropeçar em seu própriodesejo, perdendo a chance de realizá-lo.

Não se trata de uma metáfora gratuita: ela serve paramostrar que hoje em dia, dadas as condições concretas emque se trava a batalha pela erradicação da pobreza e pelarenovação da vida política e administrativa do país, a im-plementação do modelo descentralizado e participativo degestão é muitas vezes atropelada pela necessidade mesmade reformar. Se não temos boas diretrizes governamen-tais, se não fixamos corretamente as prioridades, se nãoplanejamos a reforma e não buscamos implementá-la comrealismo, construindo os apoios políticos de que ela ne-cessita e dominando o instrumental técnico e gerencial in-dispensável, acabamos por ser engolidos pela vontade dereformar. Isto vale de modo muito particular para a im-plementação do princípio da descentralização participati-

va. Nunca antes estivemos perante um consenso tão largoem favor deste princípio. Tudo parece impulsionar a rea-lidade para esta direção. Porém, se os obstáculos ao avan-ço diminuíram na quantidade, eles aumentaram na quali-dade. Hoje, é impossível não considerar a questão: comodar curso a uma operação que é essencialmente política edemocrática num momento em que a política já não pro-voca tanta aderência? Em que “faltam” sujeitos capazesde agregar vontades em nível superior? Em que as insti-tuições de intermediação e a idéia mesma da intermedia-ção não gozam de muito prestígio?

Na medida em que a descentralização se quer partici-pativa e, portanto, conclama a sociedade a participar, elatraz o mundo dos interesses para a esfera pública. Trazpara a esfera pública os interesses em estado bruto, ex-pressos por uma miríade de entidades dos mais variadostipos. Toda essa multiplicidade de interesses invade, agora,até mesmo com estímulo e proteção legal, a esfera dagestão. E isso num momento em que se vive, no Brasil,uma situação muito particular de crise política. Uma cri-se que não tem a ver com a atuação dos políticos, dospartidos ou das instituições políticas, mas sim com oatritamento das articulações entre a sociedade e a políti-ca. Na medida em que a sociedade se diferenciou e sefracionou demais, a política não conseguiu acompanhá-la; ficou, digamos assim, sem muitas condições de pro-cessar as tensões, as demandas, as pressões dos múltiplosinteresses que emergem na sociedade. Em decorrência,os interesses afirmam-se com soberania quase absoluta,congelam-se neles mesmos e tendem, com isso, a ficarainda mais predatórios, ou seja, a buscar para si o máxi-mo possível de vantagens, de recursos, de posições depoder, etc. A sociedade, assim, se coloca em posição dehostilidade diante da política. Tudo isso complica extre-mamente o processo da descentralização participativa eimpõe novas exigências aos seus gestores.

Trata-se, no fundo, de compreender um fato essencial:o Brasil tornou-se moderno. Foi alcançado por uma mo-dernização precária, é verdade, desigual, perversa, bruta,impregnada de resquícios de eras pretéritas, mas nem porisso menos moderna.

Ficamos modernos sem nos convertermos em uma so-ciedade mais justa, equilibrada ou harmoniosa. Não nostornamos um povo melhor: estamos mais carentes, maispobres, mais cruamente cortados por desigualdades gri-tantes. Mas o país se modernizou. Conseguiu consolidarseu parque industrial, vai-se tornando uma economia com-petitiva, já produz tecnologia avançada, possui uma agres-siva indústria cultural. Em que pesem nossas imensas áreasde pobreza, já não parecem prevalecer na sociedade ospadrões tradicionais de organização da vida, das cabeças,da política, dos credos, das relações humanas. Estamos

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mais modernos até mesmo porque algumas elites dizemque os problemas diminuíram.

Somos modernos sobretudo naquilo que a moderniza-ção tem de mais singular: o aumento da diferenciaçãosocial. Toda sociedade, ao se modernizar, assiste à multi-plicação de seus grupos sociais, de suas individualidades,de seus interesses. Mas, como contraponto, surgem tam-bém tendências à formação de novas e superiores instân-cias de agregação (sindicatos, partidos, associações). E asociedade passa a viver tensionada por essas duas forçasque se negam e se completam: a da diferenciação-frag-mentação e a da agregação superior. Quanto mais se fazsentir a força da agregação – que depende tanto da insti-tucionalidade política da sociedade quanto, sobretudo, dograu de integração nela existente e de seus padrões cultu-rais historicamente constituídos –, menos riscos corre asociedade de ver o processo da diferenciação projetar-secomo fragmentação e “des-solidarização”. Seja como for,o povo que se torna moderno torna-se mais individualistae mais vazio de vida comunitária.

A crise do Estado e da política, bem como as fortestransformações socioeconômicas e tecnológicas estão dei-xando as sociedades indefesas, sem recursos para esca-par da fragmentação. Elas estão sendo comidas pelo cor-porativismo, ou seja, por uma agregação inferior, dedicadaa viabilizar interesses estritamente particulares, que, en-tre outras coisas, impede a política de funcionar comoespaço de universalização, de construção do “bem co-mum”. Assim, os interesses se exacerbam, tendendo sefechar em seus particularismos, “desinteressando-se” devínculos coletivos mais expressivos e perdendo de vistao valor da construção de determinados “interesses gerais”.

Isso acontece nos diversos cantos do planeta. Mas en-tre nós, que formamos um povo historicamente carentede tradições democráticas, de instituições estáveis, deequilíbrio social, a fragmentação explode com a força deum tornado. Invade todos os poros da sociedade, afetan-do particularmente as instâncias originariamente conce-bidas para processar demandas e viabilizar alguma “paz”entre os interesses. A fragmentação não respeita partidosnem ideologias, atropela sindicatos e movimentos sociais,reproduz-se de modo irrefreável, levando ao surgimento,dentro de cada pedaço da sociedade, de inumeráveis lín-guas e linguagens, uma mais estranha que a outra.

O ápice é o Congresso Nacional, onde não se conse-gue pôr em curso uma dinâmica procedimental que faci-lite o entendimento, a aprovação de leis, a tomada de de-cisões e a responsabilização do Executivo. Os consensossurgem com dificuldade espantosa, como se ninguémpudesse ceder em relação a nada, como se todos cami-nhassem às cegas, ofuscados por seus próprios umbigos.Quando se cede, é quase sempre com base numa lógica

de “troca”, de barganha, às vezes de chantagem. O coti-diano legislativo se despovoa de partidos e de grandescorrentes de idéias. Torna-se o reino dos lobbies e das“corporações”: ruralistas, nordestinos, paulistas, bancá-rios, evangélicos, empresários, metalúrgicos, médicos,professores e outros quantos viabilizarem.

Eventualmente, essas “bancadas” se diluem, os deputa-dos refluem para os partidos e há algumas votações gerais.No dia-a-dia, porém, a guerra dos interesses prevalece, ge-rando paralisia e confusão, potenciação dos atritos com oExecutivo, rebaixamento da competição política. Pior do queisso: incapacitação política geral. Desguarnecido de decisõese responsabilizações parlamentares, o Executivo fica lento,errático, improdutivo. Ao mesmo tempo, deixando de cum-prir suas funções, o parlamento torna-se ele mesmo um in-teresse, fecha-se em si, e desgasta-se perante a sociedade. Opróprio Executivo ajuda a transmitir para a sociedade a ima-gem de que o Legislativo não coopera. Resultado: a socie-dade vira as costas para a política e para seus políticos, per-de a confiança neles. Com isso, fica sem condições de imporo chamado “interesse público” e se entrega a seus interessesde parte, que pulam gulosamente sobre o Estado e o contro-lam.

A modernização está nos fragmentando. Está nos im-pedindo de encontrar um eixo para estruturar a ação coti-diana e delinear uma perspectiva para o país. A fragmen-tação refreia o impulso reformador da política. Torna-amenos compreensível e menos valorizada diante da po-pulação. Rouba-lhe sentido. Retarda, tumultua e onera oavanço das reformas que todos sabem ser indispensáveis.

EXIGÊNCIAS E REQUISITOS DADESCENTRALIZAÇÃO PARTICIPATIVA

Quais os requisitos que faltam, então, para que a des-centralização participativa ganhe coerência e velocidade?Se o quadro traçado anteriormente é minimamente ver-dadeiro, o primeiro deles é encontrar uma forma de equi-librar participação e representação. Pois não se podehipostasiar a vertente participação, como se ela fosse in-dependente e pudesse resolver todos os problemas. Nomundo moderno, aliás, participação sem representação nãoleva a lugar nenhum. Isso significa que é preciso encon-trar um equilíbrio entre a manifestação de direitos e inte-resses particulares, que se afirmam pela participação, e aconstrução de “interesses gerais”, que se formam pela viada luta política, da representação e do Estado.

A participação como “critério gerencial” não pode dei-xar de prestar atenção a isso. Será preciso inventar ummodo de alcançar esse equilíbrio, pois inexistem modelosque possam ser seguidos e aplicados. Além do mais, a vidasocial é dinâmica e rigorosamente conflituosa, e os equi-

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líbrios são sempre precários. No mundo em que vivemos,causas, direitos e interesses explodem e se renovam inin-terruptamente. Impossível encontrar uma solução ótimaou definitiva para os vínculos entre representação e parti-cipação. Ainda assim, deve-se sempre tentar avançar dealgum modo nessa direção. No mínimo, para que o pro-blema não fique relegado a uma posição secundária nasdiscussões.

O segundo requisito é conseguir um outro equilíbrio,só que agora no plano da federação: o requisito do equi-líbrio federativo, digamos assim. Este não resultará ex-clusivamente de avanços legais, ou seja, de uma nova lei,de uma nova Constituição ou de uma emenda constitucio-nal. Mas passará, necessariamente, por um amplo enten-dimento político nacional, que leve à depuração dos vá-rios interesses regionais e à remodelação das instituiçõesque dão vida à federação. Passará, mais ainda, por umaprofunda mudança de valores, de modo a remover os tra-ços da cultura clientelista e fisiológica, bem como o cará-ter “corporativo” e a perspectiva paternalista presentes emmuitos segmentos do setor público e em muitas entidadesda sociedade civil. Passará, enfim, por uma limpeza nacultura política e administrativa dos brasileiros, porqueas idiossincrasias da federação já impregnaram a alma dasociedade, já contagiaram operadores políticos, técnicos,parlamentares, associações e entidades, que vivem emfunção da federação e que vão ter de mudar sua maneirade pensar e viver a federação. O equilíbrio entre União,estados e municípios, entre impostos e encargos, entrenormatização, controle e execução, é um requisito de gran-des proporções, correspondente à grandeza territorial doBrasil, e que, por isso mesmo, não poderá ser alcançadono curtíssimo prazo ou por efeito de uma nova legisla-ção. Portanto, a passagem da modalidade de federalismocentralizado, congênita ao presidencialismo brasileiro,para uma modalidade de federalismo cooperativo precisaobrigatoriamente ser incluída nas discussões, já que faráparte da agenda durante bom tempo.

O terceiro requisito aponta para a necessidade de des-centralizar sem perder a capacidade de articulação e co-ordenação. A gestão descentralizada que interessa tem deser participativa e cooperativa, sob pena de não se com-pletar. Ela requer, por isso, a recuperação do planejamentocentral e a difusão da idéia de planejamento em todas asinstâncias subnacionais. Requer um governo nacional quegoverne e, ao mesmo tempo, seja capaz de abrir mão depoder, isto é, seja capaz de desvincular-se da utilizaçãoclientelista das políticas sociais como moeda de troca nosacordos políticos; um governo, em suma, que impulsionea construção de um poder local efetivamente democráti-co, capacitado para garantir a execução das políticas des-centralizadas. Requer uma definição clara de quem coor-

dena o que, e de quais serão as funções de cada esfera degoverno no planejamento e na execução das políticas so-ciais. A falta de clareza na definição de funções ou a mera“entrega” de receitas e encargos para os níveis subnacio-nais – tal como ocorre, por exemplo, na área da assistên-cia social 2 – não pode ser vista como fator de estímulo àdescentralização, mas apenas como expressão de omis-são e descoordenação.

O quarto requisito, por fim, diz respeito particularmenteaos técnicos e gestores de políticas públicas, personagensnão da política-representação, mas da política-execução.Trata-se do desafio de adquirir uma outra cultura técni-ca. Nossa cultura gerencial está hoje desfocada: ainda nãoconsegue, por uma série de problemas, entrar no novomundo que temos pela frente. Essa cultura gerencial teráde ser forçosamente reciclada. Precisamos mudar nossamaneira de pensar a gestão das políticas públicas e traba-lhar no Estado. Precisamos descartar os restos de “patri-monialismo” que privatizam a esfera pública, assim comoa dinâmica formalista que nos atormenta o cotidiano – adinâmica que torna os gestores dependentes da norma, detal modo que se mantenham permanentemente preocupa-dos, às vezes exclusivamente, com o controle dos pro-cessos e não com os resultados. Trata-se, em suma, deestabelecer outro tipo de hierarquia. O que é mais impor-tante: as normas ou os resultados, os regulamentos esta-tutários ou a criatividade das pessoas? Uma grande quan-tidade de normas que colidem e se justapõem, ou aexistência de normas claras, consistentes e respeitadasrigorosamente?

A nova cultura gerencial deve estar capacitada a de-senvolver a gestão cooperativa, a promover a cooperaçãoe a colaboração institucional. Isso tem a ver diretamentecom a descentralização almejada, com a necessidade deaprimorar as relações federativas, com a revolução tecno-lógica em curso, com sua impressionante capacidade dedifundir e processar informações com grande rapidez. Éum critério que pode ser o eixo de uma nova forma depensar o complexo mundo de hoje. Como viver no mundoda complexidade sem a perspectiva da cooperação e dacomunicação, isto é, da cooperação comunicativa? Coo-peração, aqui, não é sinônimo de solidariedade, mas deinterinstitucionalidade, de um processo em que as agên-cias trabalhem sintonizadas, articuladas, otimizando seusrecursos particulares, intercambiando idéias, socializan-do conquistas e responsabilidades. O capítulo da gestão deredes, da gestão intergovernamental ou interorganizacionaldeverá integrar, assim, de maneira privilegiada, a nova cul-tura gerencial. É em torno dela que devemos concentrar osesforços de treinamento e formação, sem os quais uma novaforma de gestão dificilmente conseguirá se difundir e ga-nhar aderência no setor público.

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Se aceitarmos que os termos, os requisitos e as exi-gências da descentralização participativa são os que aquiexpusemos, podemos então concluir enfatizando que oprocesso apenas ganhará velocidade e coerência se seguiralgumas boas “regras de prudência” para poder contor-nar os obstáculos com que se defronta. A primeira dessasregras é a da flexibilidade: descentralizar com base na ri-gorosa consideração da heterogeneidade do País. A se-gunda, a do gradualismo: para descentralizar, é precisoentabular negociações entre as três esferas de governo eentre os entes públicos e o setor privado; é preciso reno-var valores e procedimentos; é preciso agregar capacida-de gerencial na ponta da execução. Tudo isto demandatempo (Aureliano, 1997:53).

Assim, não dá para imaginar que o processo será fácilou possa ser acelerado simplesmente por decreto. Sabe-se que a gestão de políticas sociais não é algo simples eque, para ser bem feita, requer uma complexa massa crí-tica, composta de conhecimentos, recursos humanos, cul-tura administrativa, e assim por diante. Quando pensa-mos em descentralização, talvez imaginemos a existência,no plano municipal e/ou regional, de condições “ótimas”em termos de recursos humanos, conhecimentos técnicose nível de capacitação, embora saibamos o quanto isto édifícil na esfera pública brasileira, sobretudo no plano mu-nicipal. Mesmo porque a massa crítica a que nos referi-mos não se confunde com nenhuma das características,digamos assim, do governo em geral. Não se trata, porexemplo, de sensibilidade política, honestidade ou cons-ciência ética, por mais indispensáveis que sejam essas qua-lidades. Trata-se de uma massa crítica de natureza técni-co-gerencial – o que é bem diferente. Não basta que ummunicípio ou região tenha sido governado por políticossensíveis, honestos, leais com sua comunidade. Hoje, es-ses atributos são insuficientes para o governar. As prefei-turas terão de dominar um arsenal técnico-gerencial quenão possuem.

O quadro brasileiro é evidentemente diferenciado. Háprefeituras, independentemente de seu tamanho ou de suaimportância, cuja experiência administrativa e técnico-gerencial já foi suficiente para acumular essa massa críti-ca. Mas essa não é, ao que tudo indica, a situação da grandemaioria dos municípios. O que é exitoso no Ceará, não énecessariamente em São Paulo ou no Rio Grande do Sul,e aquilo que se mostra difícil em São Paulo talvez não oseja no Nordeste, e assim por diante. Como ter um mode-lo único de descentralização em um país tão grande e comtamanha heterogeneidade? Melhor: como fixar um únicocronograma de organização do sistema descentralizado?Nem sempre o que é mais desenvolvido do ponto de vistaeconômico/social, por exemplo, é o que está mais pro-penso à descentralização, até mesmo porque o pólo mais

desenvolvido é sempre o mais complexo do ponto de vis-ta da política, da articulação da sociedade, dos interesses,das parcerias, dos conflitos.

Isso deve servir de alerta para que não tentemos acele-rar demais o processo, correndo o risco de sermos atro-pelados por ele no momento da operacionalização. No casodas diversas áreas sociais, por exemplo, é preciso dese-nhar com cuidado uma fase de transição, na qual se possatransferir recursos, atribuições, responsabilidades geren-ciais e de coordenação. Um processo de descentralizaçãoque pretendesse delegar radical e abruptamente todas asresponsabilidades para o nível local certamente não fun-cionaria. Feito isto de modo progressivo, maiores são aschances de respeitar as particularidades locais e equacio-nar suas carências e necessidades. Dessa perspectiva, ofator capacitação será vital: estaremos protagonizando umprocesso de construção da descentralização participati-va, para o qual os próprios executores deverão ser igual-mente construídos, isto é, formados, treinados e capaci-tados.

Um segundo complicador nasce da inversão do argu-mento anterior: não basta apenas uma nova capacidadegerencial, é preciso que a nova capacidade gerencial sejaacompanhada de uma nova capacidade de entendimentopolítico e de uma nova consciência ética. Isso fica evi-dente quando pensamos a dinâmica do mundo atual. Quaisos riscos que municípios, nações e sociedades corremhoje? São os riscos derivados da tentativa de alcançarsoluções particularistas, soluções egoístas. Seria trágico,por exemplo, se nossos municípios adquirissem capaci-dade gerencial mas optassem por colocar em prática po-líticas de tipo segregacionista. Políticas destinadas a im-pedir a livre circulação de migrantes pobres, a desviar –sem qualquer plano maior, sem qualquer política popula-cional mais consistente – o fluxo migratório para outrasregiões. Não se trata de um exemplo gratuito, pois sabe-mos que fatos como esses acontecem em muitos municí-pios brasileiros (no próprio Estado de São Paulo), com oapoio da população, que não quer ter sua segurança e sua“privacidade” sujadas, perturbadas, incomodadas pelachegada de pobres. A adesão a formas abertas ou veladasde “paroquialismo mundializado” – baseadas em cone-xões econômicas extra-nacionais, na formulação de polí-ticas unilaterais de atração de investimentos e em moda-lidades de isolacionismo segregacionista (Vainer, 1996)– está hoje inscrita na “lógica” da globalização.

Pode-se também ter capacidade gerencial e, ao mesmotempo, colocar em prática políticas ao estilo do velho clien-telismo localista, baseadas na disputa predatória dos fun-dos públicos, que comprometem as relações dos municí-pios entre si, tensionam a própria convivência no interiorda federação e, nessa medida, impedem que as políticas

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públicas ganhem maior coordenação e mais eficácia e efe-tividade, e gerem um padrão superior de justiça social. Nãotem sido incomum, na vida brasileira dos últimos anos, odesencadeamento de processos em que as esferas subna-cionais de governo procuram maximizar suas demandascom o objetivo de aumentar a captação de receitas. O queé feito, invariavelmente, de modo unilateral: cada muni-cípio tenta resolver seus problemas independentemente dequalquer outra consideração e valendo-se de todos os es-tratagemas possíveis. Nesses processos, ganham os muni-cípios com maior capacidade de vocalizar suas demandase de mobilizar recursos políticos para pressionar por elas,ampliando-se ainda mais o padrão de desigualdade do país.

Essa é uma realidade que se nos impõe, e que é maisforte do que nossos valores e nossas convicções. Temosde conviver com ela e aprender a dominá-la. A dinâmicaegoísta conspira contra a descentralização participativa,pois impede que a descentralização se faça acompanharde sinergia, ou seja, de maiores esforços de articulação ede cooperação. Dela decorre nosso grande problema: comofazer para que a descentralização seja efetivamente parti-cipativa e cooperativa, isto é, como impedir que a descen-tralização acabe por reforçar ainda mais as tendênciasunilaterais e isolacionistas hoje presentes na vida nacio-nal? É um problema efetivamente complicado, pois essastendências muitas vezes são reforçadas pela pressa dogoverno federal em descentralizar e transferir encargos.Pressa que se combina perigosamente com a mencionadavoracidade predatória de muitos municípios, agravandoainda mais a situação.

As providências para que se leve a bom termo o com-bate a esses problemas, completando-se a passagempara uma forma concertada de federalismo cooperati-vo e de descentralização participativa, dependem daativação de muitas energias. Estas estão firmementeassentadas na esfera da política, pois dependem de acor-dos e negociações que transcendem radicalmente a di-mensão da técnica, da norma e do gerenciamento. Po-rém, se, nas diversas instâncias de governo, o gestorde políticas não inova sua tecnologia e sua linguagem,não amplia sua cultura e seus conhecimentos, prová-vel que o processo fique ainda mais travado e defor-mado. Hoje é vital, para qualquer um, encarar seria-mente o desafio da qualificação, aprimorar a capacidadetécnico-política de conhecer criticamente o mundo,governá-lo e transformá-lo. Essa é uma questão deci-siva e, ao mesmo tempo, dramática, pois todos sabe-mos o quanto o Estado brasileiro está atrasado no quese refere à valorização do seu pessoal. O êxito do pro-cesso de descentralização participativa, porém, encon-tra aqui seu verdadeiro ponto de inflexão.

NOTAS

1. Bom exemplo de pesquisa em profundidade a respeito dos diversos aspectosda crise da federação é a abrangente, multidisciplinar e interinstitucional pes-quisa realizada pela Fundação do Desenvolvimento Administrativo – Fundap,em fase de publicação: Affonso e Silva, 1995a, 1995b, 1995c e 1996.

2. Na assistência social, como se sabe, em que pese todo o amplo e meri-tório esforço de fixação legal de princípios para a descentralização (coma Lei Orgânica de Assistência Social, Loas, de 1993, por exemplo), bemcomo o estabelecimento de uma concepção moderna de assistência so-cial na Constituição de 1988, ainda predomina a ambigüidade: embora ogoverno federal esteja imbuído tão-somente de funções normatizadoras ereguladoras, ele ainda detém significativo poder para estabelecer rela-ções com entidades assistenciais ou mesmo para atuar diretamente nasinstâncias subnacionais, fato que fica ainda mais complicado pela ausên-cia de maior clareza na definição das competências de estados e municí-pios e pela existência, no próprio âmbito federal, de diversas iniciativasconcorrentes e múltiplos focos de comando. O quadro está marcado, por-tanto, pela reiteração de procedimentos tradicionais, pela fraqueza dacoordenação e pela falta de uma definição mais precisa dos mecanismosde cooperação entre as três esferas de governo.

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O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIALBRASILEIRO

em direção a um modelo descentralizado

MARTA T. S. ARRETCHE

Professora do Departamento de Ciência Política da FCL/Unesp – Araraquara

urante o regime militar, as relações intergover-namentais no Brasil eram de fato muito maispróximas às formas que caracterizam um Esta-

do unitário do que daquelas que caracterizam as federa-ções. Com efeito, governadores e prefeitos das capitais ede cerca de 150 cidades de médio e grande portes foramdestituídos de base própria de autonomia política: sele-cionados formalmente por eleições indiretas e medianteindicação da cúpula militar, sua autoridade política nãoera derivada do voto popular. Além disso, todos os go-vernadores e prefeitos detinham escassa autonomia fis-cal: a centralização financeira instituída pela reforma fis-cal de meados dos anos 60 concentrou os principaistributos nas mãos do governo federal e, ainda que tenhaampliado o volume da receita disponível dos municípiosuma vez realizadas as transferências,1 estas estavam su-jeitas a estritos controles do governo federal. Finalmen-te, os governadores não tinham autoridade sobre suas basesmilitares, uma vez que as polícias militares estaduais fo-ram colocadas sob controle do Exército Nacional. Ora,relações intergovernamentais desta natureza caracterizamos estados unitários, nos quais o poder político no planolocal é uma delegação do governo central, fonte exclusi-va da autoridade política (Riker, 1987).

Foi um Estado dotado destas características que insti-tuiu o Sistema Brasileiro de Proteção Social, até então umconjunto disperso, fragmentado, com reduzidos índicesde cobertura e fragilmente financiado por iniciativas go-vernamentais na área social. Esta forma de Estado mol-dou uma das principais características institucionais des-te Sistema: sua centralização financeira e administrativa.As políticas federais de habitação e de saneamento bási-co eram formuladas, financiadas e avaliadas por uma agên-cia federal e executadas por uma série de agências locais

dela dependentes. Os diversos programas de assistênciasocial eram formulados e financiados por organismos fe-derais e implementados por meio de outra série de agên-cias públicas e organizações semi-autônomas privadas. Asfatias federais do ensino fundamental – particularmenteos programas de reforço alimentar e de apoio à educaçãobásica – eram diretamente formuladas, financiadas e im-plementadas por agências do governo federal.2 A políti-ca de saúde, ainda que dispersa entre diferentes institui-ções, também era executada supondo a centralizaçãofinanceira e administrativa do Inamps e os programasverticais do Ministério da Saúde. Tal formato institucio-nal era compatível com o tipo de Estado vigente durantea ditadura militar, para o qual estados e municípios eramagentes da expansão do Estado e da execução local depolíticas centralmente formuladas. Nestes termos, gran-de parte da atividade de planejamento no plano local con-sistia em formular projetos de solicitação de recursos parao governo federal, nos termos previstos pela agência fe-deral encarregada da implementação de uma dada políti-ca (Medeiros, 1986).

É importante, contudo, destacar o fato de que tal for-ma de expansão do Estado capacitou estados e municí-pios, ainda que de modo inteiramente desigual no espaçoterritorial brasileiro, dotando-os de uma não desprezívelcapacidade técnica (em termos de recursos administrati-vos e humanos), que torna possível hoje a descentraliza-ção de programas sociais. Em outras palavras, políticasemanadas do governo federal quando da vigência do Es-tado centralizado fortaleceram as capacidades adminis-trativas de estados e municípios, seja pela reprodução noplano local de estruturas organizacionais do governo cen-tral, seja pela criação de empresas públicas induzidas poraquela forma de expansão estatal (Arretche, 1996a).

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RECUPEROU-SE O ESTADO FEDERATIVO...

Ao longo dos anos 80, recuperaram-se as bases doEstado federativo no Brasil. A democratização – particu-larmente a retomada de eleições diretas para todos os ní-veis de governo – e a descentralização fiscal da Consti-tuição de 1988 tornaram possível que governo federal,estados e municípios tivessem fontes autônomas e inde-pendentes de autoridade política, bem como dispusessemde bases fiscais para o exercício desta autoridade. A au-toridade política de governadores e prefeitos deriva dovoto popular direto e ainda que, no momento presente, ogoverno federal e os diversos estados e municípios en-frentem graves problemas de natureza fiscal, estes nãodecorrem da inexistência de autoridade tributária. Aocontrário, decorrem em parte de fenômenos tais como aguerra fiscal e elevados níveis de endividamento relacio-nados ao tipo de autoridade tributária conferido a estadose municípios pela Constituição de 1988.

A reforma do Sistema Brasileiro de Proteção Socialintegrou a agenda do processo de democratização e, des-de então, diversas dimensões de suas características es-truturais têm sido objeto de propostas de mudança. Ouniverso dos beneficiários e o escopo dos benefícios, asformas de financiamento, as modalidades de gestão e adistribuição de competências entre os níveis de governotêm sido intensamente questionados e, em alguns casos,já foram modificados.

Este processo de reforma, contudo, tem se processadosob regime democrático – o que implica, entre outras coi-sas, a possível alternância de orientação política no po-der em qualquer nível de governo – e sob um estado defato federativo – o que pressupõe que as relações inter-governamentais operem por meio de processos de nego-ciação distintos daqueles vigentes para os estados unitá-rios. O longo processo de reformas do Sistema Brasileirode Proteção Social está associado ao fato de que, reali-zando-se nas condições mencionadas, a formulação e aimplementação de políticas estão sujeitas a um maiornúmero de possíveis pontos de veto, o que envolve “idase vindas” e custos de negociação mais elevados. Assim,o modo pelo qual se tomam decisões em estados federati-vos e democráticos torna o processo de reformas neces-sariamente mais longo e (aparentemente) tortuoso.

É certo que as especificidades de cada política setorialtêm forte impacto sobre as possibilidades e o ritmo dasreformas, assim como a heterogeneidade dos estados emunicípios brasileiros tem sido um elemento obs-taculizador para a aprovação de novos desenhos de polí-ticas nacionais. No entanto, interessa destacar aqui que arecuperação das bases federativas do Estado brasileirocausa impactos no processo de reformas do Sistema Bra-

sileiro de Proteção Social, dado que a efetiva implanta-ção de políticas públicas propostas pelo governo federalsupõe, pelo menos por definição, a adesão de governado-res e/ou prefeitos.

Não há dúvida de que fatores de ordem econômica in-terferem nas possibilidades de exercício da autonomiapolítica e, portanto, na decisão pela “adesão”. A “penú-ria” fiscal de estados e municípios localizados em regiõesde pobreza aguda limita o exercício da autoridade políti-ca, uma vez que a reduzida base de taxação implica a quaseinexistência de autonomia fiscal. Porém, neste caso, a fra-gilidade fiscal não nega o princípio federativo. A neces-sidade de recursos por parte de uma determinada unidadeda federação passa a ser um dos elementos de barganhado nível de governo que esteja buscando implementar umadada política, seja ele federal ou estadual, que podem es-tar implementando políticas diferentes entre si. Há aí,portanto, margem para decisão e negociação políticas.3

Além disto, esta é a realidade de uma parte dos municí-pios brasileiros, derivada da enorme heterogeneidade re-gional. Para o conjunto do país, a possibilidade de um nívelde governo (estadual ou municipal) não aderir a uma dadapolítica federal (que não esteja constitucionalmente defi-nida) é, de fato, uma prerrogativa derivada da recupera-ção do Estado federativo ao longo dos anos 80.

DESCENTRALIZAR O SISTEMA BRASILEIRODE PROTEÇÃO SOCIAL

No campo do debate sobre a reforma do Sistema Bra-sileiro de Proteção Social, ganhou posição de elevadoconsenso o papel positivo a ser desempenhado pela des-centralização dos programas sociais.4 Na verdade, a des-centralização passou a ser um componente (praticamen-te) inquestionável e imprescindível do referencial5 depropostas de reforma para a área social.

Contudo, até muito recentemente, as avaliações sobre adinâmica deste processo chamavam a atenção fundamental-mente para as dificuldades sob as quais este vinha se reali-zando. Há consenso quanto à avaliação de que se descentra-lizaram recursos, mas não atribuições. Porém, descentralizaratribuições quando já foram descentralizados recursos, e sobum estado federativo, revelou-se tarefa difícil e complexa:entre outras razões, porque a descentralização efetiva decompetências supõe justamente a adesão das unidades fede-rativas para as quais pretende-se transferi-las.

Mais que isto, as análises sobre a dinâmica dos pro-cessos de descentralização em curso, quando examinadassob a ótica das diversas políticas sociais, revelavam quea ausência de uma política nacional comandada pelo go-verno federal era, de fato, um forte obstáculo à imple-mentação destas reformas. Ao lado de outros fatores, como

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a fragilidade das coalizões políticas pró-descentralizaçãoe a capacidade de articulação política dos interesses fa-voráveis à manutenção das estruturas centralizadas, a(in)definição do governo federal, associada à sua crisefiscal, não só limitava enormemente a possibilidade deaprovação ou implantação de reformas de tipo descen-tralizador, mas também tornava desordenada e caótica aimplementação das reformas já aprovadas (Almeida, 1995;Arretche, 1996b; Silva e Cruz, 1996; Viana, 1996). As-sim, até pouco tempo atrás, considerava-se que o gover-no federal representava um obstáculo à descentralizaçãodas políticas sociais. Há claros indícios de que este qua-dro mudou.

Este artigo pretende demonstrar que, se forem consi-deradas as principais políticas da área social (educação,desenvolvimento urbano, assistência social e saúde), jáexiste uma estratégia do governo federal que busca im-plantar um novo modelo descentralizado de gestão. Veja-se a normatização e implantação da municipalização doSistema Único de Saúde, a definição federal por formasdescentralizadas de gestão no ensino fundamental, a for-mulação de uma nova Política Federal de Desenvolvimen-to Urbano e a implantação das medidas preconizadas naLei Orgânica da Assistência Social. Tais medidas vêmsendo adotadas paulatinamente ao longo dos anos 90 eencontram-se em estágios distintos de implantação. Po-rém, no seu conjunto, denotam a existência de uma estra-tégia do governo federal em direção à constituição de ummodelo descentralizado de gestão de suas políticas sociais.

Estas iniciativas cobrem parcela preponderante dasações federais na área social, particularmente aquelaspassíveis de serem transferidas para os governos locais.Com efeito, permanecem sob competência exclusiva daUnião o financiamento e a gestão dos benefícios previ-denciários federais, do programa de seguro-desempregoe das pensões para idosos e deficientes. São também deresponsabilidade do governo federal a formulação e aimplementação de programas, no interior das diversaspolíticas setoriais (saúde, educação, saneamento, habita-ção, assistência social), destinados a reduzir desigualda-des regionais na capacidade de oferta de serviços. E,finalmente, cabe ao governo federal responder por pro-gramas nacionais de combate a condições graves demiserabilidade. De fato, as funções associadas a estes pro-gramas devem estar sob responsabilidade da União, de-vido à escala das operações e seu caráter redistributivo.

Processos decisórios distintos no interior de cada po-lítica setorial explicam esta convergência; no entanto, éinegável que a prioridade governamental quanto à políti-ca de ajuste fiscal associada à hegemonia do referencial“pró-descentralização” nas burocracias dos ministérios daárea social constitui poderosa alavanca nesta direção.6

Uma série de cautelas deve ser tomada com relação àsevidências de que medidas administrativas em direção aum modelo descentralizado vêm sendo executadas. A pri-meira diz respeito à fragilidade das instituições brasilei-ras, à facilidade com que “de uma canetada” destróem-seórgãos e agências de longa tradição sem, muitas vezes,qualquer previsão ou medida efetiva em direção à manu-tenção/preservação dos serviços, patrimônio, pessoal eoutros organismos a eles vinculados e, mais ainda, semqualquer cuidado com o impacto sobre os seus beneficiá-rios.7 Por esta razão, um eventual retrocesso na imple-mentação destas medidas não está descartado, visto queo seu caráter é ainda recente e, portanto, fragilmente ins-titucionalizado e não está descartada a hipótese de umare-centralização derivada da alternância de orientaçãopolítica no governo federal. Assim, se é verdade que aorientação federal tem atuado no sentido de instituir umnovo modelo de gestão descentralizada, este seguramen-te ainda não se encontra consolidado.

Em segundo lugar, existe, na prática, uma larga distân-cia entre regulamentação/definição legal das políticas e suarealização efetiva. Questões referentes ao timing de im-plantação de medidas jurídico-institucionais, às resistên-cias de setores politicamente organizados e às enormesdiferenças entre estados e municípios brasileiros quanto àcapacidade técnica de absorção de novas funções consti-tuem ainda sérios obstáculos à descentralização em qual-quer de suas vertentes. Estas evidências reforçam a idéiade que ainda não se pode falar de um novo modelo, masapenas e tão-somente da crescente consolidação de umarcabouço de medidas do governo federal destinadas a darum formato descentralizado à gestão de suas políticas.

Neste sentido, chama-se a atenção para o objeto sobanálise. É certo que nos estados federativos, e resguarda-das constitucionalmente competências exclusivas e con-correntes, nada impede que estados e municípios tomeminiciativas nos mais diversos setores de política social,instituindo os mais diversos tipos de inovações em maté-ria de proteção social. Porém, não é isto o que se analisaaqui, mas sim o processo de transição da política federalpara a área social, política esta que, sob o regime militar,caracterizou-se por elevado grau de centralização e quevem se encaminhando nos anos mais recentes em direçãoa um modelo de tipo descentralizado. Em outras palavras,demonstrar-se-á que o governo federal vem desenvolven-do políticas explícitas em direção à distribuição de com-petências entre os níveis de governo, e que, neste senti-do, vem consolidando um projeto de descentralização deatribuições de gestão para estados e municípios.

Uma última cautela: se é verdade que a descentralizaçãovem se impondo como orientação explícita das burocraciasdo governo federal, também é verdade que esta não se insta-

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lou completamente. Há programas federais que ainda sãogeridos de forma centralizada: o Programa do Livro Didáti-co dá seus primeiros passos nessa direção, permanecendoainda sob gestão centralizada; o Ministério da Saúde man-tém programas que são geridos de forma verticalizada e aPolítica Federal de Desenvolvimento Urbano encontra-se emfase de tramitação legislativa. Seria impreciso falar de umnovo modelo descentralizado; apenas há fortes evidênciasde que o governo federal age nesta direção e de que estemodelo, portanto, pode vir a se consolidar.

O GOVERNO FEDERAL BUSCADESCENTRALIZAR COMPETÊNCIAS

Bandeira do movimento sanitarista desde o final dadécada de 70, a descentralização da Política Nacional deAtenção à Saúde – assim como a universalização do acessoaos serviços – consolidou-se como um princípio de ges-tão a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde em1986 e na Constituição de 1988. Desde então, um con-junto – às vezes errático – de leis, normas operacionais eportarias ministeriais vem regulamentando um longo pro-cesso, ainda em curso, de institucionalização de regras eprocedimentos de um sistema integrado e hierarquizadode prestação de serviços.

Com a instituição das AIS – Ações Integradas em Saú-de –, medida destinada a enfrentar os problemas de ges-tão do sistema causados pela superposição e pulveriza-ção de funções e recursos, deram-se passos importantesna direção da descentralização. Porém, na verdade, estatomou impulso efetivo com a implantação do Suds – Sis-tema Único e Descentralizado de Saúde. Com o Suds, atra-vés de convênios, os estados incorporaram as funções dasDiretorias Regionais do Inamps (convênios e pagamen-tos de serviços das redes conveniadas), a rede própria deatendimento do Inamps e os funcionários deste órgão (in-corporados em grande parte aos quadros do serviço esta-dual). Este foi, portanto, um período de reforço da fun-ção dos estados na gestão do sistema, dado que asSecretarias Estaduais de Saúde passaram a gerir a redeprópria do Inamps e parte da rede privada conveniada.

Favorecida pela correlação política favorável à imple-mentação de reformas do início do governo Sarney, oímpeto da estadualização foi sensivelmente reduzido coma mudança dos quadros dirigentes do Ministério da Saú-de e da direção nacional do Inamps, na segunda metadedeste mandato. Mais do que isto, esse processo foi abrup-tamente interrompido em 1991, quando o governo fede-ral – paralelamente a uma redução de recursos da ordemde 3 bilhões de dólares entre 1990 e 1992 (Piola eCamargo, 1993) – voltou a assumir a administração e orepasse de recursos para a rede conveniada e estabeleceu

uma relação direta com os municípios, reduzindo a parti-cipação dos governos estaduais.

A partir de 1990, passou-se por uma fase negociadade institucionalização do processo de descentralização.A Lei Orgânica da Saúde de 1990 e, posteriormente,as Normas Operacionais Básicas (NOBs) aprimorarama gestão pluriinstitucional, com a criação de conselhosnos âmbitos nacional, estadual e municipal, responsá-veis pelas diretrizes políticas do setor. A criação dascomissões bipartites e tripartites de gestores consoli-dou o cenário da negociação entre os diferentes níveisde governo. Definiu-se explicitamente o municípiocomo gestor específico dos serviços e estabeleceram-se os diferentes níveis de adesão destes ao SUS, bemcomo as responsabilidades e as formas de repasses derecursos que lhes correspondem.

Fortalecendo a relação entre governo federal e muni-cípios, a estratégia supõe graus distintos de responsabili-dade sobre a gestão dos serviços. A municipalização so-mente pode ocorrer por solicitação municipal, a qual podese dar mediante três formas de adesão: a gestão incipien-te; a gestão parcial; e a gestão semiplena dos serviços,cujas atribuições podem ser observadas no Quadro 1. Éexigência para a adesão do município ao processo demunicipalização, e, portanto, a qualquer uma das situa-ções de gestão citadas, que este institua um órgão localencarregado da gestão da política de saúde, o ConselhoMunicipal de Saúde (de composição paritária entre pres-tadores e usuários), e o Fundo Municipal de Saúde, o qualviabiliza a realização de transferências “fundo a fundo”e, ao mesmo tempo, implica contrapartida financeira lo-cal. Além disto, para o enquadramento em cada uma dasmodalidades de gestão, existem exigências referentes àcapacidade administrativa instalada para implementaçãodas tarefas que lhe correspondem.

Assim, o processo de municipalização supõe a deci-são municipal de aderir à política federal de saúde e, des-te modo, obter o montante de recursos previstos para cadacondição de gestão. Para tal, é necessário adequar-se àsnormas federais e, por este processo, construir no planolocal um conjunto de instituições definidas pela União.

Vale ressaltar que permanecem no âmbito do Ministé-rio da Saúde as ações de controle de endemias e de doen-ças específicas, bem como a implementação de programasnacionais dirigidos a grupos populacionais específicos,como, por exemplo, o Programa de Saúde da Família e oPrograma de Agentes Comunitários de Saúde.

Com relação ao ensino fundamental, ainda que suagestão esteja preponderantemente sob responsabilidadede estados e municípios, o governo federal tem uma atua-ção importante de normatização das bases curriculares, ede financiamento do ensino e de apoio à construção, ma-

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nutenção e capacitação das redes escolares, bem como àoferta de alimentação e material escolares.

No que diz respeito às atividades de apoio, finan-ciadas basicamente através da quota-federal do Salário-Educação, a participação do governo federal no ensinofundamental não é de modo algum irrelevante, seja pelovolume de recursos que mobiliza,8 seja pela naturezados programas que oferece.9 O Programa de Manu-tenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental(PMDEF), o Programa Nacional de AlimentaçãoEscolar (PNAE), o Programa Nacional do LivroDidático, o Programa de Saúde do Escolar, o Programade Apoio Tecnológico e o Programa de TransporteEscolar são hoje os principais programas federais deapoio ao ensino fundamental da rede pública. Geridospelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Educação), após a incorporação da Fundação de Apoioao Estudante (FAE) a este órgão, a maior parte delesvem sendo gerida de forma descentralizada.

Até 1994, a totalidade dos recursos do FNDE era trans-ferida a outros órgãos federais, estados, municípios eONGs mediante convênios negociados individualmente.A partir de 1995, foram criados o PMDEF e o Programade Apoio Tecnológico, os quais – sem eliminar totalmen-te a negociação de convênios – destinam uma parte da-queles recursos para atividades de melhoria das instala-ções escolares e compra de material escolar.

O PMDEF opera de modo a transferir recursosdiretamente para as unidades escolares, exigindo que estascriem unidades executoras próprias (Associação de Paise Mestres, caixa escolar ou um conselho escolar).Eliminado o princípio da negociação de projetos na gestão

QUADRO 1

Distribuição de Atribuições do Sistema Único de Saúde,segundo os Níveis de Governo

Brasil – 1990-93

Funções ÓrgãosUnião

- Planejamento, regulação e normatização do SUS; - Ministério da Saúde- regulação das relações público-privado e da atividade privada; - Conselho Nacional de Saúde- pagamento dos serviços médicos, ambulatoriais e hospitalares da - Comissão Intergestores Tripartite

rede conveniada (pública e privada); - Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde – Conass- acompanhamento, fiscalização, controle, avaliação e aplicação dos - Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – Conasems

recursos federais;- coordenação em nível nacional do Sistema de Informações em Saúde;- cooperação técnica a estados e municípios;- apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico.

Estados

- Formulação da política estadual de saúde; - Secretaria Estadual de Saúde- coordenação e planejam. da rede e do processo de programação integrada; - Conselho Estadual de Saúde- estabelecimento de padrões de atenção à saúde no âmbito estadual; - Comissão Intergestores Bipartite – Cibe- supervisão e cooperação técnica e financeira a municípios; - Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde – Cosems- coord. das negociações entre os gestores;- execução de ações em saúde, em caráter supletivo aos municípios;- gerenciamento das unidades públicas de maior complexidade e dos

sistemas de referência regional.

Municípios

- Planejamento, controle e execução das ações e serviços, segundo - Executivo Municipala condição de gestão: - Conselho Municipal de Saúde

- incipiente: credencia, autoriza, contrata e avalia a rede privada; - Fundo Municipal de Saúdeautoriza os quantitativos de AIHs; controla e avalia os serviços ambulatoriais ehospitalares públicos e privados; presta ações básicas de saúde eexecuta ações de vigilância sanitária;

- parcial: além do anterior, gerencia as unidades ambulatoriaispúblicas existentes no município;

- semiplena: além do anterior, assume a gestão do sist. municipal de saúde:a prestação de serviços e gerenciamento da rede pública(exceto hospitais de referência).

Fonte: Lei n. 8.080/90; Lei n. 8.142/90; Norma Operacional Básica – NBO 01/90; NBO 01/93.

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deste programa, estabeleceu-se um valor anual a serrepassado a cada escola, valor este variável segundo onúmero de alunos matriculados em cada escola e de acordocom a localização (com valores cerca de 40% maiselevados para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste,com exceção do DF). No caso de a unidade escolar possuiruma unidade executora própria, a SME ou a SEE firmamconvênios com o FNDE, mas o recurso vai diretamentepara a escola (Quadro 2). Na ausência de unidadeexecutora própria, os órgãos estaduais ou municipaisfirmam o convênio, recebem o dinheiro e realizam dire-tamente as compras.

O Programa de Apoio Tecnológico visa modernizar asescolas das redes estaduais e municipais de ensino fun-damental. Em 1995, viabilizou a aquisição de um kit deequipamentos (um aparelho de TV de, pelo menos, 20polegadas, um videocassete com quatro cabeças, umaantena parabólica, um suporte para TV e vídeo e uma caixade fitas VHS). Com base nos dados cadastrais do PMDEF,distribuiu recursos inicialmente a todas as escolas commais de 250 alunos e, posteriormente, àquelas com maisde 100. O repasse foi feito diretamente às SecretariasEstaduais e Municipais (ver modalidades no Quadro 2),para que estas adquirissem o kit para suas respectivas re-des escolares.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),mais conhecido como Programa da Merenda Escolar, é omais antigo programa de suplementação alimentar do país.Visa a oferta universal de refeições durante os dias leti-vos a toda a rede pública e filantrópica de ensino pré-es-colar e de 1o grau. Após uma experiência que obteve poucoêxito em 1986 e 1987 (respectivamente, com 83 e 154municípios),10 a FAE – Fundação de Apoio ao Estudante– tem perseguido a meta da municipalização da aquisi-ção, armazenamento e distribuição de alimentos, a partirde 1993.11

A municipalização ocorre mediante adesão voluntáriado município que, comprovando condições de infra-es-trutura e capacidade administrativa e funcionamento doConselho de Alimentação Escolar,12 passa a receber umvalor per capita13 por aluno matriculado e a gerir a exe-cução do programa para as escolas das redes estadual emunicipal. Para os casos de não-adesão, o recurso é re-passado para a Secretaria Estadual de Educação, que ficaencarregada da gestão da merenda escolar. Está previstaainda a gestão diretamente pela FAE, caso o estado nãoaceite receber os recursos financeiros. Nestas condições,o programa vem operando segundo três modalidades degestão: municipalizada; atendimento pela SEE; e atendi-mento pela FAE e SEE.

Observe-se que há um mecanismo comum a estes pro-gramas: o governo federal “oferece” um montante “x” de

recursos para a execução de uma dada atividade e estipu-la as condições sob as quais a adesão (e, portanto, o aces-so a tais recursos) pode ocorrer. Por este mecanismo, aUnião busca induzir estados e municípios a criarem noplano local um conjunto de condições técnicas (para aexecução das tarefas) e de instituições políticas (para agestão dos programas).

Entretanto, esta estratégia diz respeito à forma pela qualo governo federal tem gerenciado sua participação noapoio às atividades educacionais de estados e municípios.No entanto, a definição federal pela municipalização doensino básico não se restringe a esta dimensão. Ela dizrespeito também à normatização das condições sob asquais estados e municípios prestam seus próprios servi-ços educacionais.

A legislação federal – de caráter constitucional –, aovincular no mínimo 25% da receita de impostos e trans-ferências de estados e municípios ao ensino, direciona paraa educação parte dos ganhos de receita obtidos pela des-centralização fiscal de 1988. No Estado de São Paulo, ocrescimento do gasto em educação do conjunto dos mu-nicípios entre 1988 e 1995 foi da ordem de 60%, supe-rando o aumento do gasto total no mesmo período, daordem de 47% (Arretche e Rodriguez, 1996:17).14

Porém, esta elevação de patamares de gasto não signi-ficou alteração da distribuição de matrículas entre as re-des municipal e estadual. Vale dizer que a expansão dogasto em educação não implicou que os municípios assu-missem, por iniciativa própria, a gestão da rede estadualde ensino básico, o que equivaleria a um efetivo processode transferência de atribuições e de alteração dos padrõesde cobertura. Na verdade, as pesquisas revelam que hámunicípios que expandiram significativamente o gasto emeducação, mas sem ampliar as matrículas no ensino bási-co: aumentaram a oferta e a qualidade do ensino pré-es-colar e da merenda escolar ou financiaram outras ativida-des, como o transporte escolar (Rodriguez, 1996). Emoutras palavras, a maior participação dos municípios nofinanciamento à educação não implicou necessariamentemaior participação na cobertura do ensino fundamental,considerado pelo governo federal a prioridade nacional.

Além disso, alguns estados brasileiros – com forte par-ticipação do nível estadual na gestão das redes de ensinofundamental e sob grande pressão de gasto dela derivada– têm encontrado dificuldades e resistências para a ade-são municipal às tentativas de municipalização de suasredes de ensino.

A Emenda Constitucional que cria o Fundo de Desen-volvimento do Ensino Fundamental e de Valorização doMagistério – FDEFVM –, de iniciativa do MEC, visa indu-zir a destinação dos recursos constitucionalmente vincula-dos à educação: 60% destes devem ser aplicados no ensino

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QUADRO 2

Distribuição de Atribuições dos Principais Programas doMinistério da Educação e Cultura, segundo Níveis de Governo

Brasil – 1993-1995

Funções ÓrgãosPrograma de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental - PMDEFUnião

- Aplicar parte dos recursos do Salário-Educação em atividades de apoio às - FNDE escolas de ensino fundamental com base no número de alunos matriculados - Secretaria de Educação Fundamental/MEC por escola e em sua localização. - Secretaria de Controle Interno/MEC

- Secretaria de Educação Especial/MEC- Secretaria de Educação Média e Tecnológica/MEC

Estados

- Firmar convênios com o FNDE: - Secretarias Estaduais de Educação- em favor das escolas estaduais, como: convenente (quando a escola possui unidade executora própria) ou convenente/executora (quando a escola não possui unidade executora própria);- em favor das escolas municipais, como suconvenente/executora, em caráter supletivo da Prefeitura.

Municípios

- Firmar convênios com o FNDE em favor das escolas municipais, como: - Secretarias Municipais de Educação convenente (quando a escola possui unidade executora própria) ou convenente/ executora (quando a escola não possui unidade executora própria).

Programa de Apoio TecnológicoUnião

- Aplicar parte dos recursos do Salário-Educação em atividades de apoio às - FNDE escolas de ensino fundamental com base no número de alunos matriculados por escola e em sua localização.

Estados

- Firmar convênio com o FNDE – para aquisição do kit de equipamentos para - Secretarias Estaduais de Educação as escolas estaduais (convenente/executora) ou subconvencionar as Prefeituras Municipais (subconvenente/executora), em caráter supletivo.

Municípios

- Firmar convênios com o FNDE para a aquisição de kit de equipamentos - Prefeitura Municipal para as escolas municipais. - Secretaria Municipal de Educação

Programa Nacional de Alimentação EscolarUnião

- Definir diretrizes de programação dos executores; - FNDE- prestar assessoria técnica aos executores;- alocar recursos financeiros com base no per capita estabelecido e no número de alunos matriculados em cada unidade escolar.

Estados

- Executar as ações do programa (aquisição e armazenamento de produtos, - Secretarias Estaduais de Educação distribuição de alimentos) para os municípios que não aderirem à municipalização. - Conselho de Alimentação Escolar- manter atualizado o cadastro de matrículas da rede oficial de ensino;- co-financiar a execução do programa.

Municípios

- Executar ações do programa (aquisição e armazenamento de produtos, - Secretaria Municipal de Educação distribuição de alimentos); - Conselho de Alimentação Escolar- co-financiar a execução do programa.

Fonte: Ministério da Educação e Cultura – MEC.

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fundamental, prioridade do governo federal.15 Observe-seque, por esta iniciativa, a União interfere diretamente no graude autonomia de gasto dos níveis subnacionais de governo:parte dos recursos de impostos e transferências devem tra-duzir-se em matrículas no ensino fundamental ou ser trans-feridos para outro nível de governo.16

Com relação à Política Federal de Assistência Social,foi seguramente com a aprovação da Loas – Lei Orgâni-ca da Assistência Social –, em dezembro de 1993, que seinstituiu uma proposição explícita de reordenamento dasfunções entre os três níveis de governo.17

No modelo de descentralização proposto, o municípiodeve ser o locus privilegiado da execução dos serviçosassistenciais, o que inclui a prestação direta de serviços ea gestão dos convênios com entidades assistenciais. Estedesenho institucional implica clara opção pela municipa-lização, pois caberia aos estados um papel acessório, nosentido de que estes devem atuar nas situações em que osmunicípios não possam desempenhar a contento suas fun-ções, qual seja, ações que demandem uma rede regionalou apoio aos consórcios.

Para viabilizar o fluxo de recursos financeiros deste novomodelo, devem ser instituídos fundos de assistência socialem todos os níveis de governo, de modo que as transferên-cias possam realizar-se “fundo a fundo”. Paralelamente, paraevitar a dispersão, fragmentação e superposição de ações

características da área, está previsto que o sistema opere comcomando único em cada esfera de governo. Finalmente, paradar organicidade à concepção participativa, está prevista tam-bém a institucionalização de conselhos de assistência socialem todos os níveis de governo.18

A nova institucionalidade proposta – e em processo deimplantação – prevê que a política federal de assistênciasocial será gerida preferencialmente segundo uma distri-buição de funções pela qual cabe ao governo federal opapel de financiador e normatizador e, aos municípios, opapel de formulador e executor das políticas no planolocal. Neste sentido, resta um reduzido papel a ser desem-penhado pelos estados e fortalecem-se as relações entreExecutivo federal e municípios (Quadro 3).

Ainda que aprovada em 1993, até o final de 1994 oExecutivo federal não tomou iniciativas no sentido deimplementar as disposições preconizadas pela Loas. Opresidente Itamar Franco limitou-se a sancioná-la. Foiapenas no início de 1995 que a Medida Provisória no 813,de 01/01/95, extinguiu o Ministério do Bem-Estar Sociale criou a Secretaria de Assistência Social (SAS), vincula-da ao Ministério da Previdência e Assistência Social. Estaficou encarregada de coordenar a Política Federal de As-sistência Social e de implementar as medidas preconiza-das na Loas, o que significa coordenar a transição domodelo anterior – centralizado – para um modelo descen-

QUADRO 3

Distribuição de Atribuições da Política Federal de Assistência Social,segundo os Níveis de Governo

Brasil – 1993

Funções ÓrgãosUnião

- Coordenar e normatizar o sistema e a Política Federal de - Secretaria Nacional de Assistência – SAS/MEC Assistência Social; - Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS- conceder e gerir os benefícios de prestação continuada; - Fundo Nacional de Assistência Social- apoiar técnica e financeiramente programas de combate à pobreza de âmbito nacional;- executar ações assistenciais em caráter de emergência;- celebrar convênios com entidades de assistência social.

Estados

- Apoiar técnica e financeiramente programas de combate à - Órgão Executivo Estadual pobreza de âmbito estadual; - Conselho Estadual de Assistência Social- apoiar técnica e financeiramente associações e consórcios intermunicipais; - Fundo Estadual de Assistência Social- executar diariamente programas, quando a relação custo-benefício justificar;- coord. das negociações entre os gestores;- executar as ações assistenciais em carater de emergência.

Municípios

- Executar (prioritariamente) programas assistenciais de forma direta ou indireta; - Executivo Municipal- executar ações assistenciais em caráter de emergência. - Conselho Municipal de Assistência Social

- Fundo Municipal de Assistência Social

Fonte: Lei Orgânica da Assistência Social – Loas/93.

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tralizado, no qual parte das funções anteriormente desem-penhadas pelas agências federais passarão a ser realiza-das por estados e municípios. A mesma medida provisó-ria extinguiu as Fundações LBA e CBIA, ficando a SASencarregada de transferir seu quadro de pessoal, convê-nios e patrimônio para estados, municípios ou outros ór-gãos da esfera federal.

Desde sua criação, a SAS, através de seus Escritóri-os Regionais e em conjunto com segmentos organiza-dos em prol da implantação da Loas nos estados, vemdesenvolvendo intenso trabalho de criação da nova ins-titucionalidade prevista no modelo descentralizado, oque reforça a hipótese de que, ao normatizar o proces-so de descentralização, o governo federal induz a cria-ção de determinadas capacidades institucionais nosdemais níveis de governo.

Finalmente, a definição de uma nova Política Federalde Desenvolvimento Urbano só veio a ocorrer efetivamen-te a partir de 1995. O fechamento do BNH em 1986, afragmentação de suas atribuições entre os distintos órgãosque lhe sucederam e a alta taxa de rotatividade em car-gos-chave dos organismos federais durante os governosSarney, Collor e Itamar dificultaram enormemente a ca-pacidade de formulação de políticas neste nível de gover-no (Arretche, 1996b). Paralelamente, nesta área, o pro-cesso de formulação de reformas tem sido caracterizadopor forte polarização entre distintos segmentos organiza-dos. Embora haja um relativo consenso quanto à necessi-dade da descentralização, questões como a privatizaçãodos serviços, as modalidades de participação de segmen-tos organizados da sociedade civil na gestão da política,a definição das instâncias apropriadas para a liberação dosrecursos federais e o controle sobre os recursos externosdividem de modo quase antagônico as forças políticas li-gadas à área de desenvolvimento urbano (Arretche, 1995;Arretche, 1996b). A utilização de “brechas” jurídicas e/ou institucionais para o exercício do poder de veto porparte dos interesses conflitantes tem marcado o processodecisório dos esforços de reforma. Intenso debate e não-decisão têm sido a tônica do setor.

A implementação de uma modalidade descentralizadade gestão da política federal foi uma iniciativa das buro-cracias do Ministério do Planejamento e Orçamento e, naverdade, encontra-se em estágio de implantação, atravésda alocação dos recursos do FGTS. Existe uma Lei dePolítica Urbana, de iniciativa do Executivo, em tramita-ção no Legislativo; assim, a ação federal tem sido basea-da em portarias federais.

Basicamente, considera-se que as necessidades de in-vestimento nas principais áreas do desenvolvimento ur-bano são de tal ordem que o governo federal não podemais cumprir o papel de principal financiador da expan-

são dos serviços que havia cumprido quando da vigênciado BNH. Neste sentido, a abertura do setor aos investi-mentos privados, a utilização de recursos externos e o co-financiamento de estados e municípios impõem-se comouma necessidade. Ao lado disso, a capacitação adminis-trativa dos municípios brasileiros (particularmente no Sule Sudeste), a maior eficiência decorrente da proximidadeentre prestadores e usuários, os problemas de gestão diag-nosticados no modelo centralizado anterior e as novasregras constitucionais justificariam a adoção do princí-pio da descentralização como norma fundamental de atua-ção do governo federal.

Assim, caberia à União um papel predominantementenormativo e de fomento: definição das normas da políticafederal, organização de sistemas nacionais de informação,co-financiamento à execução de programas e correção/compensação de desigualdades regionais (particularmen-te apoio à institucionalização de políticas nos estados doNorte, Nordeste e Centro-Oeste). Caberia aos estados opapel de definição de parâmetros locais dos padrões deoferta dos serviços, bem como de regulação e controle dosprogramas, que seriam executados primordialmente pelosmunicípios e/ou pelo setor privado. Caberia ainda aos es-tados o papel de desempenhar supletivamente a execuçãode programas naquelas situações em que o nível munici-pal não puder fazê-lo. Áreas metropolitanas, conurbaçõese intervenções de escala regional justificariam a ação dosgovernos estaduais, mas os municípios seriam a instânciamais adequada para a gestão e a execução dos programasde intervenção urbana (Quadro 4).

A proposta do governo federal é a de que se estabele-ça uma distinção entre as funções de regulação e controledos serviços prestados e a função de execução de progra-mas. As primeiras devem ser exercidas pelo poder públi-co e, preferencialmente, pelo nível estadual, de acordocom princípios, metas, normas e diretrizes estabelecidaspelo governo federal. A segunda pode ser atribuída a agen-tes privados ou públicos e, entre estes últimos, ainda quese considere que devam ser preferentemente desempenha-das pelo nível municipal, podem ser desempenhadas tam-bém por órgãos executivos de âmbito estadual.

A nova sistemática de alocação de recursos do FGTS– principal fonte de financiamento do governo federal –busca deslocar para instâncias colegiadas nos estados adefinição das áreas prioritárias para a aplicação dos mon-tantes destinados a cada unidade federativa. O Ministériodo Planejamento e Orçamento, através da Secretaria dePolítica Urbana, define as prioridades dos programas fe-derais, sendo que as instâncias colegiadas – ou um equi-valente estadual – selecionam, hierarquizam e acompa-nham no plano estadual as propostas de empréstimo dosagentes executores (Portarias MPO 114/95 e 35/96).

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O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRO: EM DIREÇÃO A UM MODELO ...

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Caso a unidade da federação não constitua tal ins-tância colegiada – de representação paritária entre go-verno do estado, governos municipais e sociedade ci-vil –, a Sepurb desempenha supletivamente suasfunções, alocando um máximo de 50% dos recursosprevistos para o estado em questão. Esta norma consti-tui, na verdade, uma espécie de penalização para aque-les estados que não aderirem à nova proposta de orde-namento de funções. Com base nesta “orientação”, as27 unidades da federação firmaram convênios com ogoverno federal durante o segundo semestre de 1995para a instalação destes organismos.

EM DIREÇÃO A UM MODELODESCENTRALIZADO

O Sistema Brasileiro de Proteção Social vem desen-volvendo um longo processo de reforma de suas princi-

pais características institucionais. Entre estas, a substitui-ção de um padrão centralizado – instituído durante o re-gime militar e sob um estado de tipo (quase) unitário –por um modelo descentralizado encontra-se, sem dúvida,em estágio avançado.

Até muito recentemente, avaliava-se que a ausência deuma política ativa do governo federal nessa direção re-presentava um forte obstáculo à sua implementação. Esteartigo pretendeu demonstrar que, nos principais setoresde política social, já existe uma estratégia descentraliza-dora deste nível de governo e que, portanto, aquele diag-nóstico já não é mais correto.

A prioridade ao ajuste fiscal como política de gover-no, associada à expectativa de que estados e municípios– particularmente, os municípios – assumam maiores atri-buições no financiamento dos programas sociais, está nocerne desta estratégia. Porém, é inegável que, ao instituirum novo modelo de transferência de recursos, a engenharia

QUADRO 4

Distribuição de Atribuições da Política Federal de Desenvolvimento Urbano, segundo Níveis de GovernoBrasil – 1995

Funções ÓrgãosUnião

- Estabelecimento de diretrizes gerais, políticas e programas - Secretaria de Política Urbana – Sepurb/MPO de desenvolvimento urbano; - Grupo Interministerial de Integração das Ações de Saneamento- definição de normas, critérios e padrões técnicos para - Conselho Nacional de Política Urbana a aplicação dos recursos federais, bem como fiscalizar a sua aplicação; - Fundação Nacional de Saúde – Funasa/MS- apoio técnico e financeiro aos municípios, particularmente do Norte e Nordeste; - Comitê Nacional de Habitação- edição de normas gerais de direito urbanístico; - Câmaras Técnicas de Habilitação, Saneamento, Transporte e Gestão Urbana- estabelecimento de planos nacional e regionais de ordenação de território; - Caixa Econômica Federal: ag. operador- financiamento dos programas de habilitação, saneamento e limpeza urbana.

Estados

- Coordenação, com o governo federal, da definição das prioridades de - Instâncias Colegiadas de Âmbito Estadual investimento dos recursos federais no plano estadual; - Executivos de Âmbito Estadual- coordenação, regulação e controle da prestação de serviços de saneamento básico, definindo parâmetros mínimos de prestação de serviços;- planejamento e execução de programas e políticas, suplementares aos municípios;- planejamento e execução de tarefas de âmbito metropolitano, microrregional e de aglomerações urbanas;- co-financiamento dos investimentos federais;- exercer o poder concedente dos serviços de saneamento básico, nas situações em que um município não puder fazê-lo;- apoio a capacitação técnica dos municípios mais carentes.

Municípios

- Prioritariamente: planejamento e execução de programas e políticas - Executivo Municipal (competência normativa e executiva); - Conselhos Municipais ou Regionais- promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento - Fundos Municipais ou Regionais e controle do uso do solo;- co-financiamento dos investimentos federais;- exercício do poder concedente dos serviços de saneamento básico.

Fonte: Ministério do Planejamento e Orçamento/Sepurb.

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administrativa instituída busca produzir um determinadocomportamento naqueles estados e municípios que aderi-rem a seus programas.

Ainda que cada política setorial tenha um desenho es-pecífico, pode-se caracterizar uma certa orientação go-vernamental. Trata-se de instaurar uma nova modalidadede gestão dos programas federais na área social. No Sis-tema Único de Saúde, para os programas de assistênciasocial, de desenvolvimento urbano e parte importante dosprogramas de apoio ao ensino fundamental, o governo fe-deral define normas e transfere os recursos sob sua admi-nistração para que estados e/ou municípios definam as for-mas de execução das políticas.

Para tal, estão definidos tetos financeiros, isto é, mon-tantes (relativamente) fixos de recursos, que são variá-veis de acordo com a política em questão e a região geo-gráfica. O teto financeiro é, assim, o limite máximo decomprometimento do governo federal para a execução deuma determinada política no local ao qual ele está desti-nado. Este não necessariamente coincide com o montan-te de recursos necessário à sua implementação no planolocal. Na verdade, o acesso a tais recursos constitui o prin-cipal atrativo para a adesão aos programas federais.

Visto que este acesso é regulamentado por uma sériede requisitos definidos pelo papel normatizador do go-verno federal, esta regulamentação induz a adoção de umdado comportamento: contrapartida no financiamento, ins-tituição de conselhos de participação e controle, institu-cionalização de órgãos locais de gestão, regularização dascontas municipais junto ao governo federal e, obviamen-te, a implantação de padrões técnicos definidos para cadapolítica setorial.

Neste sentido, se sob as políticas do regime militar, ogoverno federal adotou uma forma de expansão do Esta-do que, embora centralizadora, capacitou técnica e admi-nistrativamente – ainda que de modo inteiramente dife-renciado no território nacional – estados e municípios, sobo “pretendido” modelo descentralizado, esta mesma rela-ção pretende induzir tais níveis de governo à adoção dedeterminadas modalidades de gestão pública. Trata-se deavaliar o sucesso desta estratégia.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

A autora agradece os comentários de Vicente Rodriguez e Zairo Cheibub à ver-são original deste texto.

1. Se considerarmos o indicador “receita disponível”, isto é, o montante de re-cursos de que dispõe efetivamente cada nível de governo uma vez realizadas astransferências, temos que entre 1960 e 1988 esta sofreu uma queda significativano que diz respeito aos estados (de 34% do total da receita tributária para 26%),mas, no que diz respeito aos municípios, esta sofreu elevação (de 6,5% do totalda receita tributária em 1960 para 11,4% em 1988) (Serra e Afonso, 1991). Estedado indica que a centralização tributária na União significava que os estados e

municípios dispunham de uma margem muito pequena de recursos a serem apli-cados livremente, isto é, o governo federal (seja para uma parte das transferên-cias automáticas, seja para a quase totalidade das transferências negociadas) vin-culava as transferências a itens de despesa e, deste modo, a centralização tribu-tária implicava falta de autonomia de gasto ou estreita margem decisória paraestados e municípios, mas não significava indisponibilidade de recursos.

2. Nos programas da merenda escolar e do livro didático, a compra do materialera realizada pelas agências do governo federal e, posteriormente, distribuídapelo território nacional, o que dá uma idéia de seu grau de centralização, umavez que o transporte de alimentos adquirido de forma centralizada em um paíscom dimensões continentais é indiscutivelmente irracional.

3. Tendler e Freedheim (1994) descrevem como o governo do estado do Cearáobteve a adesão de prefeitos resistentes à implementação do Programa de Agen-tes de Saúde, implementado no estado a partir de 1987, com características or-ganizacionais distintas daquelas previstas pela política federal de saúde.

4. Em outro trabalho, Arretche problematiza este consenso, buscando demons-trar que várias das expectativas postas em torno da descentralização não são umproduto necessário da transferência de atribuições às unidades locais de governo(Arretche,1996a).

5. O conceito de referencial de política pública (Jobert e Muller, 1987; Muller,1990) diz respeito ao horizonte conceitual possível de identificação dos problemase das soluções para cada política particular em uma dada conjuntura histórica.“Elaborar uma política pública significa construir uma representação, uma ima-gem da realidade sobre a qual se quer intervir. É por referência a esta imagemcognitiva que os atores organizarão sua percepção do sistema, confrontarão suassoluções e definirão suas proposições de ação: a este conjunto de imagens cha-maremos de referencial de uma política. (...) A cada momento, o referencial deuma política é constituído de um conjunto de normas prescritivas que dão senti-do a um programa político, definindo critérios de escolha e modos de designa-ção de objetivos” (Müller, 1990:42-3) (grifo e a tradução são nossos).

6. Na administração FHC, esta é uma orientação explícita de governo. Esta ad-ministração considera que o Estado não deverá mais ser o grande produtor debens e serviços. Por razões de ordem fiscal, dever-se-ia compatibilizar a descen-tralização fiscal derivada da Constituição de 1988 com uma distribuição maisracional de encargos, bem como dever-se-ia buscar construir formas de parceriacom a sociedade civil e com o setor privado. Por razões de democratização doprocesso decisório, dever-se-ia descentralizar para tornar as decisões sobre a ofertade serviços mais próxima do cidadão, facilitando mecanismos de controle e par-ticipação. Finalmente, por razões de eficiência e eficácia, dever-se-ia descentra-lizar para evitar duplicidade de ações e possíveis desequilíbrios entre oferta eprocura, derivados da dificuldade de informações própria aos sistemas centrali-zados (Presidência da República, 1996). Mas, como poderá ser observado, pelaanálise que segue, as medidas descentralizadoras por parte da burocracia federalvêm sendo instituídas ao longo dos anos 90, anteriormente, portanto, ao governoFernando Henrique Cardoso.

7. Evidentemente, a dimensão deste “cuidado” está associada à capacidade devocalização política destes beneficiários.

8. Em 1996, a execução da quota-federal do Salário-Educação representou R$634,4 milhões e o produto da aplicação da receita do Salário-Educação foi de R$150,09 milhões, sendo estas as principais fontes de recursos da atuação do FNDEem programas de ensino fundamental (FNDE, 1997).

9. O apoio financeiro à construção escolar, à aquisição de materiais (televisões,veículos, livros) e à merenda escolar são em vários estados brasileiros um com-ponente essencial do financiamento das atividades educacionais.

10. As dificuldades desta experiência estão relacionadas à capacidade de pres-são política das forças contrárias à descentralização da merenda escolar.

11. Oficializada para os estados em dezembro de 1992, a municipalização damerenda escolar começou a ser implementada em 1993 apenas nas capitais. Emseguida, foi estendida às cidades com mais de 50 mil habitantes. Em 1994, apolítica foi estendida a todos os municípios que preenchessem as condições es-tipuladas pela FAE.

12. Constituído por representantes do órgão da administração pública, dos pro-fessores, dos pais e alunos, de trabalhadores e, se desejado, de representantes deoutros segmentos da sociedade.

13. Este valor corresponderia a 15% das necessidades nutricionais diárias deum escolar.

14. Em pesquisa de campo realizada junto a seis municípios paulistas, consta-tou-se que, na ausência de qualquer política indutora por parte do governo esta-dual, a maior elevação do gasto municipal tendeu a ocorrer dominantemente na-quelas políticas em que a legislação federal induz a participação municipal nofinanciamento e/ou gestão do setor: a obrigatoriedade federal de 25% de gastoem ensino e a universalização do acesso aos serviços de saúde, definidas consti-tucionalmente em 1988 (Arretche e Rodriguez, 1996:38).

15. Por esta Emenda Constitucional cria-se em cada estado um fundo de equaliza-ção, composto por 60% das receitas vinculadas à educação nos estados e municí-pios. Tais recursos serão redistribuídos entre estes últimos de acordo com o númerode alunos matriculados no ensino fundamental em suas respectivas redes escolares.

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O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRO: EM DIREÇÃO A UM MODELO ...

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16. Espera-se que, nos estados em que o ensino fundamental é ofertado predo-minantemente pela rede estadual, este mecanismo represente um forte incentivoà municipalização das redes escolares.

17. As mais importantes decisões da área de assistência social até o início dosanos 90 dizem respeito à sua inserção no campo da seguridade social, à incorpo-ração da Doutrina da Proteção Integral e à adoção do princípio da universalida-de como princípio constitucional. Assim, até 1993 — particularmente com a Cons-tituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica daSaúde —, os avanços neste campo dizem mais respeito à definição de um campoparticular de direitos e menos à distribuição de competências entre os três níveisde governo para sua implementação.

18. Segundo o art. 30 da Loas, é condição para os repasses federais a efetivainstituição e funcionamento: do Conselho de Assistência Social, de composiçãoparitária entre governo e sociedade civil; do Fundo de Assistência Social, comorientação e controle dos respectivos Conselhos de Assistência Social e do Pla-no de Assistência Social.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(3) 1997

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A

CRISE FINANCEIRA NOS ESTADOSproblemas e propostas de solução

CARLOS ANTONIO LUQUE

Secretário Adjunto da Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo.Professor do Departamento de Economia e Administração da USP

crise do financiamento do setor público brasileirovem sendo discutida há vários anos, proporcio-nando um debate bastante intenso sobre o papel

do setor público, suas formas de financiamento e, parti-cularmente, sobre as medidas que devem ser adotadas paraaumentar a eficiência dos gastos públicos.

De forma geral, o teor das discussões em nossa econo-mia revela que existe um diagnóstico bastante aceito acercados gastos efetuados pelo setor público. Argumenta-se queos custos dos serviços públicos são muito elevados pelamá administração dos recursos públicos. Acrescenta-se,simultaneamente, que a carga tributária no Brasil já é bas-tante elevada e que, portanto, existiria a necessidade de seracionalizar os gastos governamentais a fim de que a ofertade serviços públicos pudesse ser aumentada, não apenasem quantidade como também em qualidade.

Dentro dessa argumentação, aceita-se a idéia de que aadministração dos recursos públicos é bastante difícil, emfunção de inúmeras distorções que foram sendo geradasao longo do tempo, especialmente na área dos recursoshumanos. As questões da estabilidade, da garantia do sa-lário integral para os aposentados, das baixas remunera-ções que prevalecem, de modo geral, para a maioria dosfuncionários, em contrapartida aos elevados salários quealgumas categorias recebem, etc., somente poderiam serresolvidas caso os administradores públicos tivessem àsua disposição instrumentos adequados. As chamadasreformas administrativas e da previdência viriam justa-mente para proporcionar tais instrumentos.

Enquanto prevaleciam as altas taxas de inflação, o pro-cesso inflacionário gerava recursos para que o setor pú-blico financiasse seu déficit e, ainda que as distorções seagravassem continuamente, criava mecanismos que per-mitiam o adiamento de medidas necessárias para eliminá-

las. A inflação produzia e acentuava inúmeras distorçõese, simultaneamente, gerava mecanismos para superar, ain-da que temporariamente, as próprias distorções.

Com o advento do Plano Real e a estabilização dospreços, os problemas de financiamento vieram à tona,exigindo a imediata adoção de medidas para que as con-tas apresentassem um equilíbrio real e, portanto, a neces-sidade de se disponibilizar aos administradores públicosos instrumentos adequados para que esse equilíbrio fossealcançado.

Evidentemente, a estabilidade monetária é condiçãonecessária para que o país encontre alternativas para de-senvolver um processo de crescimento econômico carac-terizado por elevadas taxas de crescimento. Inclusive, osefeitos benéficos proporcionados pela estabilidade mo-netária já foram sentidos no âmbito do setor público, como crescimento expressivo das receitas logo após o iníciodo Plano Real. Por outro lado, junto com a estabilidademonetária, veio um aumento das despesas salariais e dasdespesas com juros. Na área salarial, os salários reais dei-xaram de ser corroídos pela inflação, enquanto as despe-sas com juros se elevaram pelo fato de as taxas reais te-rem se tornado muito altas.

Esta situação atingiu particularmente os estados emunicípios, em face, por um lado, da ausência de meca-nismos de financiamento e, de outro, de não terem à suadisposição instrumentos mais adequados para racionali-zar os gastos.

O objetivo deste artigo é tentar discutir, à luz da expe-riência do Estado de São Paulo, até que ponto a reformaadministrativa possibilitará a economia de recursos, ouseja, em que medida promoverá o aumento da eficiênciados gastos públicos de modo a elevar o aumento da ofer-ta de bens públicos necessários para atender à população.

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CRISE FINANCEIRA NOS ESTADOS: PROBLEMAS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO

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O artigo é divido em duas seções. Na primeira, serão apre-sentadas, inicialmente, as formas de financiamento dodéficit do setor público, procurando-se ilustrar os efeitosda estabilidade monetária sobre as contas públicas esta-duais e destacando-se os efeitos sobre os salários e a dí-vida. Na segunda seção, será discutida mais profundamen-te a questão da administração dos recursos humanos,destacando-se alguns aspectos da estrutura salarial vigente,bem como algumas informações sobre a evolução dosgastos com custeio. Segue-se, finalmente, um sumáriocontendo as principais conclusões do artigo.

INFLAÇÃO, DÉFICIT PÚBLICO EFINANCIAMENTO

A partir do momento em que os gastos públicos supe-ram a arrecadação de tributos, exige-se a utilização dealguns mecanismos de financiamento. De maneira bas-tante esquemática, apresenta-se, na equação a seguir, comopoderia ser representada a restrição orçamentária da União.

(1) G - T = DM + DB - DRonde: G representa os gastos do governo, T o volume detributos, M o estoque de moeda, B o volume de títulospúblicos e R o volume de reservas internacionais.

Por outro lado, caso se definisse a restrição orçamen-tária em âmbito estadual, as fontes de financiamento deum determinado déficit ficariam circunscritas apenas àvenda de títulos, pois estas entidades não podem emitirmoeda, nem administram as reservas internacionais.

Embora os Estados não possam utilizar a emissão demoeda para financiar o déficit, a inflação representava umafonte de financiamento para equilibrar receitas e despe-sas. Isto porque, ao utilizar seu poder de emitir moeda, aUnião pode gerar um aumento do nível geral de preços,dando origem assim ao imposto inflacionário; ou, então,o aumento da oferta de moeda acaba sendo absorvido porum aumento dos encaixes reais. Neste caso, o aumentoda moeda financiaria o déficit da União sem gerar, noentanto, pressão inflacionária.

Admitindo a presença da inflação, os agentes econômi-cos que conseguem indexar melhor suas receitas relativa-mente à indexação de suas despesas acabam se benefician-do do fenômeno inflacionário. Nos estágios iniciais de umprocesso inflacionário, as receitas tributárias, por não esta-rem adequadamente indexadas, acabam crescendo menos doque as despesas. Isto porque, nessas etapas do processo in-flacionário, o impacto negativo do aumento de preços sobreas receitas reais do governo é superior àquele sobre os salá-rios reais que, embora declinando, sempre possuem um graude indexação superior ao das receitas.

Por outro lado, a presença da inflação e particularmenteda sua aceleração faz com que as taxas reais de juros ex post

acabem sendo muito menores do que as taxas reais de jurosex ante. Dessa maneira, o governo consegue atrair recursos,oferecendo uma taxa real de juros que, na prática, não ocor-rerá, pois a aceleração da inflação reduz os juros reais.

Assim, numa primeira fase do fenômeno inflacioná-rio, um aumento da taxa de inflação gera uma elevaçãono déficit, devido ao fato de que as receitas em termosreais se reduzem de maneira mais significativa do que asdespesas. Entretanto, a partir de uma determinada fase,especialmente quando o processo inflacionário torna-secrônico, a indexação na economia generaliza-se para osdiversos contratos e, no caso do setor público, as receitasficam mais bem indexadas do que as despesas, em parti-cular as despesas salariais e juros. Nesta fase, a elevaçãoda taxa de inflação diminui o déficit.

Por outro lado, a indexação salarial dos funcionáriospúblicos nunca foi tão acentuada como as receitas de im-postos. Basta lembrar que, num período de altas taxas deinflação, caso fosse atrasado ou adiado algum aumentosalarial, isto já proporcionava uma redução bastante sig-nificativa dos salários reais.

A partir do momento do início do Plano Real, o declí-nio das taxas de inflação reduziu os mecanismos de fi-nanciamento tanto da União como dos Estados. A Uniãoperdeu o imposto inflacionário bem como os recursosderivados do maior grau de indexação das receitas emrelação às despesas. Entretanto, como possui o poder deemitir moeda e administra as reservas internacionais, elatem ainda mecanismos para o financiamento do déficitsem exercer pressão inflacionária.

A situação dos Estados é completamente distinta, poisperderam praticamente todas as fontes de financiamento.Com a diminuição das taxas de inflação, as despesas cres-ceram de maneira significativa, particularmente aquelascom pessoal e com juros. Para se ter uma idéia do impac-to do processo inflacionário sobre os salários reais, bastalembrar que, em 1992, a inflação média observada noscinco primeiros dias úteis do mês era de aproximadamente5%, em 1993, de 6%, e no primeiro semestre de 1994, deaproximadamente 9%. Considerando que os funcionári-os recebem no quinto dia útil de cada mês e aplicando-seesse percentual sobre o valor da folha salarial, tem-se umaestimativa do ganho que a inflação proporcionava ao Es-tado.

No Gráfico 1 apresenta-se, a título ilustrativo, a perdasalarial devida ao fato de o pagamento ser efetuado no quin-to dia útil e não no final do mês, durante o período de 1992-97, para o caso do vencimento dos médicos. Foi calculada arelação entre o salário real pago no quinto dia útil e aqueleefetuado no primeiro dia do mês. Como se percebe, duranteo período anterior ao Plano Real, dependendo da taxa deinflação, as perdas salariais mensais podiam atingir 8%. A

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GRÁFICO 1

Relação entre Variações do Salário Real dos Médicoscom Pagamento no 5o Dia Útil e sem o 5o Dia Útil

Estado de São Paulo – 1992-97

Fonte: Prodesp; SEP.

partir do início do Plano, com a redução das taxas de infla-ção, essas perdas praticamente desaparecem.

Esse simples fato já beneficiava as finanças estaduais, semcontar com o declínio dos salários reais provocado pela in-dexação frágil a que os trabalhadores na economia brasilei-ra estavam submetidos particularmente os funcionários pú-blicos. Portanto, os salários reais eram muito mais flexíveisquando a inflação era alta do que após o Plano Real.

Essa maior flexibilidade dos salários reais represen-tava um mecanismo de ajuste para as contas públicas,pois, à medida que o volume de receitas flutuasse, ou àmedida que se quisesse obter recursos para financiaroutras atividades, a flexibilidade dos salários reais pos-sibilitava a geração de tais recursos. O fenômeno in-flacionário beneficiava as contas públicas pelos diver-sos impactos que promoviam sobre os salários reais.Evidentemente, a partir do momento em que as taxasde inflação diminuem, essa fonte de financiamento éreduzida substancialmente.

Por outro lado, as taxas reais de juros, também a partirdo Plano Real, tornaram-se muito elevadas, aumentandode maneira considerável as despesas com juros. Até oinício do Plano Real, ainda que as taxas reais de jurosfossem elevadas, a aceleração do processo inflacionárioacabava reduzindo-as de maneira significativa. A partirdo momento em que as taxas de inflação se reduzem de

maneira significativa, as taxas reais ex ante aproximam-se das taxas ex post.

A partir do Plano Real, as taxas reais de juros cresceramquase continuamente, superando durante alguns meses a faixade 30% ao ano. No início de 1996, começaram a reduzir-sede maneira sistemática até atingir a faixa de 16% ao ano apartir de 1997. Esse comportamento das taxas de juros cau-saram impacto na evolução das dívidas públicas, acentuan-do ainda mais o desequilíbrio financeiro dos Estados.

Naturalmente, a manutenção de altas taxas de juros noinício de planos de estabilização representa uma estraté-gia bastante importante para o sucesso do programa. En-tretanto, as taxas observadas na economia brasileira su-gerem que sua magnitude foi acima do necessário, assimcomo sua manutenção por um longo período.

O reflexo dessa política monetária pode ser visualiza-do através da evolução da dívida pública do Estado deSão Paulo. No final de 1992, as dívidas contratual emobiliária alcançavam a cifra de R$ 23,1 bilhões, pas-sando para R$ 26,6 bilhões no final de 1993, para R$ 40,1bilhões, em 1994, chegando a R$ 59,9 bilhões, em 1996.

Observando o comportamento da dívida mobiliária,cuja evolução depende basicamente das taxas reais de jurosdefinidas pela política monetária, vale lembrar que em 30de junho de 1994 a dívida mobiliária do Estado giravaem torno de R$ 7,2 bilhões, passando para R$ 11,3 bi-

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92 93 94 95 96 97

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lhões no final de 1994. Em maio de 1997, quando foi efe-tuado o acordo da dívida com o governo federal, o valoralcançava R$ 20,0 bilhões.

É evidente que um crescimento da dívida proporcio-nado por taxas reais de juros tão elevadas não pode sersuportado com recursos de origem fiscal e exige um ou-tro tipo de solução que passa, necessariamente, por umaredução das taxas reais de juros e alongamento de prazosou desmobilização de ativos.

No tocante às taxas reais de juros, não se pode esque-cer que, além de seu impacto fortíssimo sobre as despe-sas estaduais, elas também inibem o crescimento da re-ceita pelo seu efeito recessivo sobre a atividade econômica.

Portanto, apesar do crescimento das receitas públicasapós o advento do Plano Real, o aumento expressivo dafolha salarial e das despesas de juros dificultou sobrema-neira a gestão das finanças públicas estaduais.

Evidentemente, não se deve entender que as finançaspúblicas estaduais estivessem equilibradas quando as taxasde inflação eram elevadas e que a diminuição do fenômenoinflacionário, a partir do Plano Real, veio comprometer oequilíbrio financeiro. Na realidade, as finanças públicas jáestavam totalmente desequilibradas, pois não existiam me-canismos mais adequados de financiamento, sendo a infla-ção a única solução. Ao final de 1994, a situação financeirado Estado de São Paulo era praticamente insustentável. Casomedidas saneadoras não tivessem sido tomadas a partir de1995, certamente a situação tornar-se-ia sem controle, poisa oferta de diversos serviços públicos seria profundamenteafetada pela incapacidade do Estado em pagar a própria fo-lha salarial. É óbvio que o fenômeno inflacionário não podeser interpretado como uma solução duradoura, pois não ape-nas representa o resultado de uma distorção proveniente noâmbito das contas públicas, ou seja, a ausência de outrasfontes para financiar um determinado déficit, como tambémdesorganiza todo o sistema de informações dos diversosmercados, comprometendo, conseqüentemente, toda a or-ganização econômica e impedindo um processo de cresci-mento econômico mais estável.

Entretanto, a ausência do fenômeno inflacionário, de umlado, e o crescimento das despesas públicas, de outro, aca-baram exigindo medidas imediatas para equilibrar as con-tas. Considerando que na sociedade, de modo geral, existe anoção de que a carga tributária já é bastante elevada, a alter-nativa é a redução dos gastos públicos através da adoção demedidas que consigam racionalizar melhor os gastos.

PERSPECTIVAS DE RACIONALIZAÇÃO DOSGASTOS PÚBLICOS

Nesta seção, serão discutidas, a partir de algumas obser-vações sobre a estrutura salarial prevalecente no setor pú-

blico e das características do custeio dos serviços, as pers-pectivas de redução dos custos através das inúmeras medi-das que tradicionalmente têm sido apontadas como funda-mentais para proporcionar uma economia de recursos.

A Questão Salarial

Existe uma noção bastante cristalizada acerca da existênciade um excesso de funcionários públicos. Essa noção sugereque, com rápidas medidas, poder-se-ia reduzir os gastos as-sociados à folha salarial, diminuindo, conseqüentemente, oscustos relacionados aos serviços públicos.

Apenas para se ter um panorama da situação geral dosfuncionários públicos, apresenta-se, na Tabela 1, a evo-lução do número de funcionários públicos ativos nas ad-ministrações direta e indireta (autarquias e fundações), queno final de 1992, era de 715.282, elevando-se para 722.968no fim de 1994. Esse número reduziu-se para 714.562 em1995 e para 670.396 em 1996. Por outro lado, o númerode servidores inativos, que em 1992 era de 220.305, pas-sou para 258.869 em 1996. Quando se consideram os fun-cionários ativos e inativos, nota-se que, entre 1992 e 1996,o número de funcionários caiu de 935.587 para 929.265.

Portanto, a primeira observação que pode ser feita é ade que, independentemente das dificuldades impostas pelaatual legislação, é possível dispensar um número signifi-cativo de funcionários. Apesar desses esforços para a re-duzir o número de funcionários ativos – expressos pelodecréscimo observado entre 1994 e 1996, quando passamde 722.968 para 670.936 –, o número total de funcioná-rios dependentes do Tesouro, neste período, decresceu demaneira bem menos intensa, ou seja, de 960.926 para929.265 em função do aumento do número de inativos.

TABELA 1

Evolução do Número de FuncionáriosEstado de São Paulo – 1992-96 (1)

1992 1993 1994 1995 1996

Ativos 715.282 724.867 722.968 714.562 670.396

Adm. Direta 617.917 628.258 621.789 615.816 580.864Autarquias 84.494 83.088 87.122 87.317 79.947Fundações 12.871 13.521 14.057 11.429 9.585

Inativos 220.305 229.682 237.958 246.565 258.869

Adm. Direta 170.126 178.017 184.116 192.745 202.652Autarquias 50.179 51.665 53.842 53.820 56.217

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento – SEP.(1) Os valores referem-se ao número de funcionários existentes no mês de dezembro.

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Em função dos baixos salários reais prevalecentes, dasconseqüentes demandas por aumentos salariais, da própriaqueda da taxa de inflação, dos mecanismos automáticos deaumento dos salários representados pelos pagamentos refe-rentes ao tempo de serviço, etc., observa-se que a massa sa-larial cresceu de maneira significativa nesse período. Em1992, os gastos salariais na administração direta eram de R$6,9 bilhões, passando para R$ 9,3 bilhões em 1995 e paraR$ 11,1 bilhões em 1996.

Apesar desse crescimento das despesas salariais indicarum aumento do salário real médio, a sensação reinante namaioria dos servidores públicos é a de que a remuneração édefasada quando comparada à do setor privado. Esses bai-xos níveis salariais comprometeriam a eficiência dos servi-dores e o próprio fornecimento dos serviços públicos.

Ao se comparar os salários do setor público e os do setorprivado, é necessário ter extrema cautela, pois, pela sua pró-pria natureza, os serviços públicos demandam funções ecaracterísticas específicas sem contrapartida adequada como setor privado, como, por exemplo, os servidores ligados àjustiça, segurança, etc. A inexistência de profissionais simi-lares no setor privado, se não impossibilita, pelo menos difi-culta as comparações entre os dois setores.

Por outro lado, não se pode esquecer que os determi-nantes da evolução salarial no setor privado se diferen-ciam daqueles do setor público. Isto porque a lógica deatuação do setor privado na produção dos bens e serviçosé totalmente distinta daquela referente ao setor público.No setor privado, a produção dos bens é orientada dentrodos princípios da maximização dos lucros ou da minimi-zação dos custos, o que implica relacionamentos especí-ficos com a mão-de-obra empregada e com os outros re-cursos utilizados. No caso da produção de bens públicos,a lógica gera relacionamentos muito distintos com os re-cursos humanos.

Tais diferenças acabam sendo traduzidas em menoresrestrições à entrada ou saída dos trabalhadores no setorprivado, fazendo com que os fatores de mercado, carac-terizados genericamente pelos excessos de demanda ou deoferta influenciem diretamente nos salários do setor pri-vado. Se, de um lado, o setor privado tem menores restri-ções à entrada ou à saída de trabalhadores, por outro, emface do grau de competição entre empresas do mesmo se-tor, desenvolvem-se mecanismos internos de trabalho queprocuram proporcionar aos trabalhadores conhecimentosespecíficos da empresa, a fim de evitar maior grau de ro-tatividade. Também não se pode desconsiderar que, até oadvento do Plano Real, as correções salariais para o setorprivado estavam estabelecidas nas diversas leis salariais.

Em resumo, é possível afirmar que, no setor privado,os salários vinculam-se mais diretamente às condições domercado de trabalho e às distintas características de cada

trabalhador genericamente catalogadas como condiçõesde eficiência ou produtividade.

No âmbito do setor público, as condições são muitodiferentes. Em primeiro lugar, os mecanismos de entradae saída dos trabalhadores são completamente distintos. Aburocracia dos concursos públicos e as condições de es-tabilidade que tradicionalmente os servidores públicospossuem impedem, ou pelo menos dificultam, que as con-dições de mercado sejam fatores determinantes na evolu-ção salarial. No setor público, os salários dependem mui-to mais da permanência do servidor numa determinadafunção, através dos anuênios, qüinqüênios, etc., do quede avaliações de seu desempenho. Por outro lado, os me-canismos de saída também são complexos. Os servidorespúblicos adquirem facilmente a estabilidade, sendo quesua saída pode ocorrer somente quando existir uma faltaconsiderada grave e sujeita a todo um processo adminis-trativo.

Naturalmente, o crescimento da folha salarial depen-de do aumento do nível de emprego e dos salários no-minais. Como visto anteriormente, pelo menos duran-te os últimos anos, não houve nenhum crescimento maisexpressivo do emprego. Pelo contrário, quando com-parados os anos de 1994 e 1996, verifica-se um decrés-cimo do número de funcionários. O principal fator queexplica o crescimento da folha salarial reside nos pró-prios aumentos concedidos a título de recuperação desalários corroídos pelo processo inflacionário. A ele-vação dos salários nominais decorre também de meca-nismos próprios que refletem aumentos endógenos,como, por exemplo, promoções automáticas, qüin-qüênios, anuênios, etc., que acabam elevando a folhasalarial. No Estado de São Paulo, alguns estudos reve-lam que tal crescimento deve situar-se entre 3% e 6%ao ano. Evidentemente, quando a inflação era bastanteelevada, um crescimento dessa magnitude praticamen-te não possuía nenhum impacto real, pois era absorvi-do pela inflação. Entretanto, nos padrões inflacio-nários atuais, todo crescimento nominal da folha trans-forma-se em crescimento real.

De qualquer forma, há um consenso generalizado deque existe um inchaço da máquina do setor público emsuas mais distintas esferas. De forma geral, a partir dessaidéia, parte-se para a proposta de redução do quadro defuncionários, o que economizaria recursos na folha sala-rial que poderiam ser aproveitados em outras áreas, comoinvestimentos ou pagamento de dívidas. Considerando quea estabilidade representa um dos empecilhos para a dis-pensa de funcionários, as medidas propostas pela refor-ma administrativa têm procurado produzir novas regraspara a estabilidade, como, por exemplo, a ampliação doperíodo para aquisição da estabilidade e a possibilidade

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CRISE FINANCEIRA NOS ESTADOS: PROBLEMAS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO

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TABELA 3

Rendimento Real Médio dos Assalariados do Setor Públicono Trabalho Principal (1), por Nível de Instrução

Grande São Paulo – 1994-95

Rendimento Real Médio dos Assalariados do Setor Público (2)Períodos Total Analfabeto 1o Grau 1o Grau 2o Grau 3o Grau

Incomp. Comp.

1994(3) 822 (4) 431 486 631 1.2191995 991 (4) 521 578 733 1.442

Variação Anual1995/1994 20,6 (4) 20,9 18,9 16,2 18,3

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento – SEP. Convênio Seade – Dieese.(1) Inflator utilizado – IPC – Fipe. Valores em reais de julho de 1996.(2) Exclusive os assalariados que não tiveram remuneração no mês.(3) Dados captados em mais de uma referência monetária e convertidos para reais.(4) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria.

de perda do cargo para o servidor que apresentar insufi-ciência de desempenho, além de outros mecanismos.

Certamente, proporcionar maior grau de flexibilidadepara os responsáveis pela administração dos recursos hu-manos é fundamental para que se consiga eliminar umasérie de distorções, proporcionando maior racionalidadeaos gastos públicos na área salarial. Entretanto, supor quea quebra da estabilidade possa ser um mecanismo suficien-te para eliminar todas as distorções existentes dentro doquadro de funcionários e especialmente ser um instrumen-to para proporcionar volume substancial de recursos vaiuma distância muito grande.

Cabe lembrar que o excesso de funcionários públicosnão pode ser generalizado para todas as funções ou ativi-dades. Diversas áreas apresentam um excesso de funcio-nários, porém, existem ainda novas funções que nem fa-zem parte dos cargos públicos. Por outro lado, deve-selembrar que o excesso de funcionários depende de inú-meros fatores, sendo que um dos mais importantes estáatrelado à questão salarial. À medida que a deterioraçãosalarial foi aumentando, houve uma diminuição da efi-ciência e motivação dos funcionários, o que acarretou anecessidade de um maior número de funcionários paradesenvolver um mesmo volume de serviços.

Além disso, a redução dos investimentos impediu, demodo geral, a adoção de normas e práticas mais moder-nas de administração, o que, aliado aos tradicionais me-canismos burocráticos existentes no setor público, redu-ziu o grau de eficiência dos servidores públicos.

Através da Tabela 2 verifica-se a distribuição sala-rial por decil e o percentual apropriado da massa derendimentos apresentada pelos setores público e pri-vado, em 1995.1

Em primeiro lugar, cabe destacar que, enquanto no se-tor privado o salário médio era de R$ 716 em 1995, nosetor público este correspondia a R$ 991, ou seja, 38%superior. Quando se efetua a distribuição salarial por decis,percebe-se que, em todos, o rendimento médio é mais ele-vado no setor público do que no privado. Por outro lado,verifica-se que o percentual apropriado por decis se asse-melha consideravelmente tanto no setor público como noprivado.

Nas Tabelas 3 e 4 apresentam-se os rendimentos reaismédios observados nos setores público e privado, discri-minados pelo grau de educação formal, para 1994 e 1995.Tanto para os trabalhadores que completaram o primeirograu quanto para os que não o completaram, o salárioobservado no setor público é superior ao do setor priva-do. Tomando-se o ano de 1995 como base, observa-se queos trabalhadores com o primeiro grau incompleto rece-biam em torno de 14% a mais do que os equivalentes dosetor privado. No caso dos trabalhadores com o primeirograu completo, o diferencial favorável aos trabalhadoresdo setor público caía para 5%. Efetuando os mesmos cál-culos para 1994, verifica-se que os trabalhadores do se-tor público com primeiro grau incompleto recebiam apro-ximadamente 15% a mais do que os equivalentes do setorprivado. Com relação aos trabalhadores com primeiro graucompleto, os salários eram praticamente iguais nos doissetores.

Tais resultados sugerem que os trabalhadores do setorpúblico com grau de instrução equivalente ao primeirograu recebem, em média, mais do que no setor privado.Isto deriva de distintas práticas prevalecentes na admi-

TABELA 2

Rendimento Real Médio e Percentual Apropriado daMassa de Rendimentos (1) no Setor Privado e Público

Região Metropolitana de São Paulo – 1995

GruposSetor Privado (2) Setor Público

Rendimento Médio %Apropriado Rendimento Médio %Apropriado

Grupo 1 130 1,8 186 1,9Grupo 2 216 3,0 277 2,8Grupo 3 269 3,8 365 3,7Grupo 4 324 4,5 470 4,7Grupo 5 390 5,4 588 5,9Grupo 6 481 6,7 719 7,3Grupo 7 603 8,4 889 9,0Grupo 8 794 11,1 1.179 11,9Grupo 9 1.150 16,1 1.700 17,2Grupo 10 2.804 39,2 3.542 35,7

Média 716 991

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento – SEP. Convênio Seade – Dieese.(1) Inflator utilizado – IPC – Fipe. Valores em reais de julho de 1996.(2) Exclusive os assalariados que não tiveram remuneração no mês.Nota: Grupo 1: corresponde aos 10% das pessoas com menores rendimentos do trabalho.Grupo 2: corresponde aos 10% das pessoas com rendimentos do trabalho imediatamente su-periores aos do Grupo 1. Assim por diante, até o Grupo 10, que corresponde aos 10% daspessoas com maiores rendimentos do trabalho.

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TABELA 5

Percentual de Indivíduos com 3o Grau Completo ou Incompleto entre osAssalariados do Setor Público no Trabalho Principal (1), segundo Grupos

Grande São Paulo – 1994-95Em porcentagem

GruposAssalariados do Setor Público (2)

1994(3) 1995

Grupo 1 (4) (4)Grupo 2 (4) (4)Grupo 3 (4) 26,5Grupo 4 30,7 35,2Grupo 5 35,4 41,6Grupo 6 49,5 38,7Grupo 7 52,9 50,2Grupo 8 61,2 60,8Grupo 9 66,2 70,7Grupo 10 80,0 84,1

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento – SEP. Convênio Seade – Dieese.(1) Inflator utilizado – IPC – Fipe.(2) Exclusive os assalariados que não tiveram remuneração no mês.(3) Dados captados em mais de uma referência monetária e convertidos para reais.(4) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria.Nota: Grupo 1: corresponde aos 10% das pessoas com menores rendimentos do trabalho.Grupo 2: corresponde aos 10% das pessoas com rendimentos do trabalho imediatamente su-periores aos do Grupo 1. Assim por diante, até o Grupo 10, que corresponde aos 10% daspessoas com maiores rendimentos do trabalho.

nistração dos recursos humanos entre os setores públicoe privado. Em primeiro lugar, deve-se considerar que, emfunção do aspecto social do Estado, a amplitude do lequesalarial no setor público deve ser menor do que a preva-lecente do setor privado. Assim, os salários do setor pú-blico para os trabalhadores com menor qualificação ten-deriam a ser maiores do que os observados no setor privadoe para os trabalhadores com maior grau de qualificação asituação se reverteria.2 Por outro lado, no setor privado,os trabalhadores com menor grau de qualificação sofremmais os efeitos da rotatividade, por serem mais facilmen-te substituíveis. Com isso, seus salários tendem a sermenores do que os do setor público. A estabilidade fun-cional do setor público e os ganhos salariais dependentesdo tempo de serviço transformam-se também em fatoresque contribuem para que os salários médios sejam supe-riores aos do setor privado.

Quando se analisam os salários dos trabalhadores comnível de instrução equivalente ao segundo grau, verifica-se que são muito semelhantes nos dois setores: em 1994,o rendimento médio desses trabalhadores no setor priva-do era de R$ 662 enquanto no setor público era de R$631; em 1995, correspondiam a R$ 722 e R$ 733, respec-tivamente nos setores privado e público.

Ao se considerar os trabalhadores com nível de instru-ção superior, a situação é completamente distinta. Comose observa nas Tabelas 3 e 4, os trabalhadores do setorprivado com nível de instrução superior ganham signifi-cativamente mais do que os do setor público: em 1994, osalário médio no setor privado era de R$ 1.623, enquantono setor público a média era de R$ 1.219; em 1995, essesvalores correspondiam a R$ 1.442 no setor público e aR$ 1.885 no setor privado. Estes resultados indicam queos salários, no setor privado, superam entre 30% e 40%

os do setor público para os trabalhadores com grau deinstrução superior.

Isto sugere que, para os trabalhadores com grau de ins-trução superior, o setor privado acaba gerando oportuni-dades maiores, que se traduzem em salários médios maiselevados. No âmbito do setor público, as carreiras não sãotão bem estruturadas, sendo que a evolução salarial ficamais atrelada ao tempo de serviço, que, no caso dos tra-balhadores com instrução superior, gera um salário mé-dio inferior.

É interessante notar que no setor público a proporçãode trabalhadores com nível superior completo é proporcio-nalmente muito mais elevada do que no setor privado: em1995, 44,3% dos trabalhadores públicos possuíam instru-ção superior, enquanto no setor privado essa participaçãoera de 13,7%. Enquanto no setor privado os trabalhadorescom primeiro grau incompleto representavam 42,7%, nosetor público esse percentual era de apenas 15%. No setorprivado percebe-se que os trabalhadores com instruçãosuperior completa ou incompleta localizam-se fundamen-talmente nos decis superiores: aproximadamente 90% dostrabalhadores com esse grau de instrução estão nos gru-pos 7 e 8 da distribuição salarial. No setor público, a si-tuação é completamente distinta. Os trabalhadores com ins-trução superior (completa ou incompleta) distribuem-se apartir do terceiro decil (Tabela 5).

Esses resultados sugerem que o setor público não ofe-rece carreiras mais atraentes para os funcionários quepossuem nível superior completo, exceto algumas com

TABELA 4

Rendimento Real Médio dos Assalariados do Setor Privadono Trabalho Principal (1), por Nível de Instrução

Grande São Paulo – 1994-95

Rendimento Real Médio dos Assalariados do Setor Privado (2)Períodos Total Analfabeto 1o Grau 1o Grau 2o Grau 3o Grau

Incom. Comp.

1994(3) 626 264 375 498 662 1.6231995 716 315 454 549 722 1.885

Variação Anual1995/1994 14,4 19,3 21,1 10,2 9,1 16,1

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento – SEP. Convênio Seade – Dieese.(1) Inflator utilizado – IPC – Fipe. Valores em reais de julho de 1996.(2) Exclusive os assalariados que não tiveram remuneração no mês.(3) Dados captados em mais de uma referência monetária e convertidos para reais.

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salários médios mais elevados. Para os demais, de modogeral, o setor público apresenta poucas oportunidades deevolução salarial, pois a desestruturação das carreiras fazcom que a evolução salarial dependa fundamentalmenteapenas do tempo de serviço. Já no setor privado, os tra-balhadores com instrução superior encontram carreirasmais bem estruturadas e oportunidades de evolução sala-rial muito maiores, que se traduzem em salários médiosmais elevados.

Entretanto, se o setor público não oferece maiores opor-tunidades para as pessoas com grau de instrução supe-rior, como se explica a maior proporção de pessoas nosetor público com este nível de instrução?

A resposta a essa questão envolve inúmeros aspectos.Em primeiro lugar, não se pode esquecer algumas dasvantagens que o setor público oferece comparativamenteao privado. A própria estabilidade no emprego, a garan-tia de salários integrais na aposentadoria, bem como al-gumas outras vantagens (os funcionários públicos de modogeral têm maior acesso para obter alguns serviços públi-cos) são fatores que atraem mão-de-obra mais qualifica-da. Em segundo lugar, os atuais funcionários públicos,em sua maioria, entraram no serviço público há vários anosnuma situação salarial diferente. Em terceiro lugar, deve-se lembrar que, nas últimas décadas, com o desenvolvi-mento das técnicas poupadoras de mão-de-obra, o cresci-mento do emprego é lento e, conseqüentemente, o setorpúblico sempre representa uma alternativa para os traba-lhadores. Por último, o crescimento acelerado do ensinosuperior colocou no mercado um grande número de pes-soas que, para conseguir o emprego, tiveram que aceitarcondições de trabalho fora de sua área de especializaçãoe com salários menores.

À medida que as regras de estabilidade e, particular-mente, a manutenção da aposentadoria integral sejam al-teradas, certamente, o setor público deverá oferecer maio-res salários, mais próximos dos pagos pelo setor privado,sob pena de não conseguir atrair mão-de-obra mais bemqualificada. Nesta situação, a perspectiva é a de que, nospróximos anos, a proporção de pessoas com grau de ins-trução superior no quadro de funcionários públicos se re-duza.

Para ilustrar a situação salarial dos funcionários pú-blicos com grau de instrução superior, apresentam-se al-gumas informações sobre duas importantes carreiras noâmbito da administração pública: professores e médicos.Tomando-se como base os professores de nível III (comcurso superior completo, além de cursos de especializa-ção) e com jornada integral de trabalho (carga horáriaacima de 150 horas), verifica-se que, em setembro de 1996,seus salários enquadravam-se, em sua maioria, na faixaentre R$ 600 e R$ 1.000. Com relação aos médicos, estes

percebiam, na maioria, nessa mesma época, salários en-tre R$ 800 e R$ 1.400.

Esses resultados permitem dar uma idéia das dificulda-des para se eliminar, ou pelo menos reduzir significativa-mente, as distorções salariais que foram sendo acumuladasao longo das últimas décadas, provenientes da crescente cri-se financeira do setor público em suas várias esferas.

Durante muitos anos, o setor público atraiu pessoasbastante qualificadas em função de perspectivas futurasque acabarão não sendo realizadas. Esse fato é ilustradopela alta proporção de funcionários públicos que apresen-tam grau de instrução superior. Entretanto, com a deterio-ração salarial ocorrida ao longo do tempo e o crescentedistanciamento dos salários pagos pelo setor privado, onúmero efetivo de horas trabalhadas certamente reduziu-se, comprometendo o nível de eficiência, o que foi agra-vado pelo fato de que uma série de investimentos comple-mentares, que dariam melhores condições de trabalho emaior grau de eficiência, também não foram efetuados.

Tais distorções acabaram exigindo um maior númerode funcionários para exercer um mesmo volume de ser-viços, o que se constituiu, conseqüentemente, num im-portante fator para gerar o “inchaço da máquina públi-ca”. Desta maneira, à medida que a reforma administrativaproporcione melhores condições de administração dosrecursos humanos no setor público, deverá ser possívelobter maior grau de racionalidade dos gastos. Porém, nãose pode esperar que isto se traduza em ganhos substan-ciais de recursos para o Estado, pois certamente os salá-rios reais devem ser recuperados.

Por outro lado, não se deve esquecer que parcela subs-tancial dos servidores públicos está alocada nas áreas de se-gurança, educação e saúde – justamente aquelas que maisexigem um crescimento significativo da quantidade de servi-ços públicos, bem como um aumento substancial da quali-dade. Conseqüentemente, há poucos espaços para a reduçãodo número de funcionários.

O Custeio da Máquina Pública

Um outro importante item de gastos refere-se ao cus-teio da máquina pública. Apenas para se ter uma idéia dovolume de recursos envolvidos, apresentam-se, na Tabe-la 6, os gastos efetuados no Estado de São Paulo pelasadministrações direta e indireta (autarquias e fundações),durante o período 1994-96.

Este custeio representa, basicamente, compras de vá-rios produtos necessários para o fornecimento dos servi-ços públicos, bem como os diversos contratos assinadospela administração pública representados pela prestaçãode serviços, como, por exemplo, alimentação, segurança,limpeza, etc.

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Dentro da concepção de que a eficiência do setor pri-vado é maior do que a do setor público na produção debens e serviços, defende-se um processo mais intenso deterceirização de algumas atividades intermediárias que es-tariam atualmente sendo desenvolvidas pelo setor públi-co, o que geraria uma redução de custos significativa.

Argumenta-se que, à medida que determinados servi-ços sejam produzidos pelo próprio setor público, as es-truturas burocráticas dominantes e as técnicas adminis-trativas ultrapassadas acabam por gerar uma estruturacomplexa, elevando o custo dos serviços, o que viabilizaos processos de terceirização.

Entretanto, pelo menos aparentemente, os resultadosde processos de terceirização vis-à-vis com a produçãoprópria não são tão claros. Em primeiro lugar, cabe des-tacar que a partir de 1995 o Estado de São Paulo desen-volveu uma série de mecanismos para monitorar os pre-ços dos diversos serviços fornecidos pelo setor privado,conseguindo uma economia de cerca de 20% a 25%. Ve-rificava-se que a variância de preços dos diversos contra-tos era muito elevada, ou seja, um mesmo serviço seme-lhante era oferecido a preços muito distintos para asdiversas instituições públicas. Muitas dessas diferençaspodem ser explicadas por características próprias de cadacontrato que levam a diferentes preços, bem como pelofato de que o fenômeno inflacionário, ao destruir as in-formações de mercado, dificultava qualquer tipo de ava-liação mais correta sobre os preços pagos.

De qualquer forma, o fato revela que o setor público,quando efetua tais contratos, não se defronta com merca-dos mais competitivos, dando conseqüentemente oportu-nidades para que as empresas possam fixar preços acimadaqueles que poderiam ser obtidos em condições maiscompetitivas.

Tais estruturas não competitivas acabam gerando al-gumas oscilações nos preços de contratação por parte do

setor público, que dificultam a avaliação das vantagens/desvantagens dos processos de contratação dos serviços.

Essas observações sugerem que tanto numa forma comonoutra é necessário o desenvolvimento de mecanismos decontrole e monitoramento bastante ágeis, a fim de se po-der controlar os gastos efetuados com o custeio da má-quina pública.

CONCLUSÕES

Este artigo procurou analisar os efeitos da redução dastaxas de inflação a partir do lançamento do Plano Realsobre as finanças públicas, tomando como exemplo a ex-periência apresentada pelo Estado de São Paulo. Comovisto, ainda que a estabilidade de preços tivesse propor-cionado crescimento expressivo das receitas, as despesassalariais e despesas de juros aumentaram significativamen-te, anulando os efeitos do aumento das receitas.

Desta maneira, a partir do Plano Real, as instituições pú-blicas passaram a ter dificuldades crescentes de financiamen-to, especialmente estados e municípios, que perderam prati-camente todos os canais de financiamento, obrigando-os aapresentarem um equilíbrio entre receitas e despesas.

Entretanto, quando se analisa as despesas públicas,percebe-se que estas concentram-se em três grandes itens:despesas salariais, custeio e serviço da dívida. Conseqüen-temente, o campo de atuação para possíveis cortes maisprofundos seria na área salarial e no custeio.

No tocante à área salarial, argumentou-se que, emboraa reforma administrativa venha propiciar melhores con-dições para a administração dos recursos humanos, nãose pode esquecer que o inchaço da máquina pública de-pende significativamente dos baixos salários prevalecen-tes no setor público. Assim, à medida que se possibilite aredução do número de funcionários, certamente deveráocorrer um aumento dos salários reais, para que o volu-me de serviços oferecidos para a sociedade não diminua.Por outro lado, parcela significativa dos funcionáriospúblicos está alocada nas áreas de educação, saúde e se-gurança, que são justamente os setores com maior deman-da por serviços e, portanto, devem ser ampliados, o queexigirá maior número de funcionários.

Dessa forma, não se pode esperar que a reforma admi-nistrativa propicie maiores reduções da massa salarial e,considerando a necessidade de ampliação dos serviçospúblicos, deverá ocorrer crescimento dessas despesas.

No tocante ao custeio, ainda que existam espaços con-sideráveis para a sua redução – e o exemplo mais mar-cante é a própria experiência no Estado de São Paulo, queatravés do desenvolvimento de certos mecanismos demonitoramento dos preços dos contratos conseguiu redu-zir em torno de 20% os gastos –, o alcance é limitado,

TABELA 6

Evolução do CusteioEstado de São Paulo – 1994-96

1994 1995 1996

Total 1.928.306.335 2.033.108.527 2.100.084.308

Administração Direta 1.548.658.247 1.655.183.110 1.863.656.916

Autarquias (1) 260.429.651 269.802.276 165.148.207

Fundações (2) 119.218.437 108.123.141 71.279.185

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento – SEP.(1) Exceto universidades.(2) Exceto Fapesp.

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pois o custeio representa algo em torno de 10% do totaldas despesas.

Essas observações levam à conclusão de que o financia-mento do setor público no país é ainda uma questão em aberto.Isto é particularmente relevante quando se considera a no-ção generalizada de que os impostos transferidos pelo setorprivado ao setor público são muito mal aplicados, cujo re-flexo seria traduzido na reduzida disponibilidade de servi-ços à população, além de sua baixa qualidade.

A discussão acerca da eficiência dos gastos públicos, apartir da noção de que as instituições públicas, pela ausên-cia de mecanismos mais efetivos de controles, produzemserviços públicos a um custo muito elevado, tem enfatizadoa necessidade de que gastos excessivos sejam reduzidos. Eaparentemente parte-se do princípio de que a simples racio-nalização dos gastos públicos, nesse sentido, permite supe-rar todos os problemas de financiamento dos gastos.

Esquece-se, contudo, que a eficiência dos gastos pú-blicos tem também uma outra dimensão, representada pelaprópria alocação dos recursos públicos nas distintas áreasde atuação. Nesse sentido, a atual estrutura de gastos de-corre de processos históricos que refletem os principaisproblemas existentes em nossa sociedade e a forma pelaqual o Estado foi se estruturando para enfrentá-los. É fatoconhecido que nossa economia apresenta uma das pioresdistribuições de renda do mundo e que essa lamentávelcaracterística acarreta uma série de problemas sociais quedevem ser superados e que condicionam fortemente osgastos públicos nas áreas de segurança, saúde, educação,transportes públicos, etc.

O volume dos gastos efetuados nas áreas de segurançae saúde, por exemplo, não é desprezível, representando oesforço para superar os problemas que ocorrem nessasáreas. Entretanto, a estrutura da distribuição de renda e osproblemas sociais que daí derivam fazem com que o nú-mero de pessoas que necessitam de atendimento médicoem suas várias formas, o daquelas que cometem delitos eo número de policiais necessários para proporcionar ade-

quada segurança preventiva cresçam numa velocidadeacima daquela que pode ser equacionada através dos gas-tos públicos. O efeito dessa situação é que, por mais quese invista nesses setores, dadas as atuais condições sociais,sempre tenderemos a observar hospitais e presídios comsuperlotação e falta de policiamento preventivo. E, devi-do às atuais condições estruturais, a tendência é de quetais setores consumam gradativamente maiores recursospúblicos.

Portanto, é fundamental viabilizar recursos para aumen-tar os investimentos não apenas para atenuar os efeitosdos problemas estruturais, mas principalmente para eli-minar a causa básica de todas as distorções representadaspela distribuição de renda. Neste caso, o investimento maisrentável certamente é o investimento em educação emtodos os níveis.

Entretanto, à luz dos comentários anteriormente efe-tuados, a simples redução dos custos atuais de produçãodos serviços públicos seria insuficiente para proporcio-nar todos os recursos necessários e, conseqüentemente,seria preciso aumentar a carga tributária atual. Caso fos-sem aplicados corretamente os investimentos, particular-mente no setor de educação, seriam superadas, gradati-vamente, todas as distorções, podendo, posteriormente,reduzir os gastos públicos em algumas áreas e, conseqüen-temente, a carga tributária.

NOTAS

Este trabalho foi fruto de inúmeras discussões com várias pessoas. Entre elas,gostaria de destacar André Franco Montoro Filho, Pedro Paulo Martoni Branco,Sinésio P. Ferreira, Cecília Cukiermann e Carmem Pagotto.

1. As informações a seguir foram obtidas a partir da Pesquisa de Emprego eDesemprego, realizada pela Fundação Seade e Dieese. Os cálculos da distri-buição salarial foram efetuados também para o ano de 1994, que apresentouresultados bastante semelhantes aos verificados em 1995 e, portanto, não foramapresentados.

2. Como veremos adiante, é justamente esse resultado que encontramos, ou seja,para os trabalhadores de maior grau de educação formal, o setor privado remu-nera melhor do que o setor público.

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A

MODELO CORPORATIVO NO BRASILensaio para uma teoria da transição

ERICSON CRIVELLIAdvogado, Consultor jurídico da CUT e do Dieese

o nosso modelo sindical está imbricado ao Estado; o nos-so modelo sindical é corporativo. Qual é o significado econteúdo destas afirmações? Em verdade, a relação danossa estrutura sindical com o Estado e a sua naturezacorporativa são denunciadas quase cotidianamente den-tro e fora dos sindicatos brasileiros de orientação políticamais radical. Dentre estes, poucos, no entanto, demons-tram ter consciência da dimensão político-histórica destaafirmação. Para se compreender as circunstâncias quelevaram o Brasil a ter a atual estrutura sindical, é precisofazer uma retrospectiva histórica.

Desde o final do século XIX começaram a surgir noBrasil as primeiras e incipientes tentativas de organiza-ção sindical. Neste período, estas restringiam-se exclusi-vamente aos trabalhadores urbanos, muito embora o gran-de contingente da classe trabalhadora fosse constituídade trabalhadores rurais. Até o fim da primeira metade desteséculo, quase não se viram manifestações de organizaçãosindical. Na sua segunda metade, as tentativas de organi-zação foram, paulatinamente, ocorrendo nos diversos se-tores das atividades econômicas nos centros urbanos maispopulosos. O predomínio da mão-de-obra escrava, bemcomo as características de sua utilização, determinou obaixo grau de conflitualidade na área rural durante o sé-culo passado.

Ao longo das primeiras décadas deste século, a açãopolítico-sindical dos trabalhadores ampliou-se, sendo cria-da a primeira central sindical em 1906 e ocorrendo a pri-meira experiência de greve geral em 1917. No correr desteperíodo que encerrou-se em 1930, as organizações sindi-cais lograram alcançar visibilidade política perante o res-tante da sociedade, quebrando, em certos limites, o res-trito jogo político das oligarquias regionais capitaneadaspela oligarquia cafeeira paulista. Deve-se observar, ain-

té fins de 1994, a constatação da crise no nossosistema de relações de trabalho era um consensoentre os atores sociais e, ainda, entre os próprios

agentes do Estado. Mais que isto, havia um consenso de quedeveria haver alguma mudança nesta área. A idéia das mu-danças, como tantos outros temas caros à nossa vida repu-blicana, tem entrado e saído da agenda nacional ao sabordas circunstâncias. É um velho processo conhecido entre nósbrasileiros: o consenso paralisante. A verdade, está se des-cobrindo nos nossos dias, é que nenhum dos projetos, tantoos defendidos pelos trabalhadores, quanto os apresentadospor alguns setores do empresariado, tinha condições de serhegemônico na sociedade.

O professor José Eduardo Faria, em obra indispensável aosadvogados trabalhistas e acadêmicos em geral, chamou este fe-nômeno de “xadrez empatado” (Faria, 1995). Os politicólogosdiriam que faltavam ao príncipe, ou candidatos a príncipe mo-derno, virtù ou fortuna para fazer as mudanças desejadas. Nes-tes dias que se seguem, assalta-nos a sensação de que há umnovo príncipe disposto e astuto o suficiente para reinventar anossa república e, mais que isto, há virtù e fortuna suficientespara cumprir o seu mister. Ou como poderia dizer o professorFaria: “é chegado a hora do desempate.”

O presente artigo tem a finalidade de entender a trajetória dadiscussão das alternativas ao atual modelo sindical corporativoe, sobretudo, propor a elaboração de uma transição para o mes-mo. Este ensaio levou em consideração o trabalho que o autorfez na elaboração de um projeto de transição para a CUT.

A FORMAÇÃO DO MODELO DERELAÇÕES DE TRABALHO

Deve-se iniciar a análise da relação do movimento sin-dical com o Estado a partir de duas constatações básicas:

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da, que não foram só os operários que passaram a se ma-nifestar politicamente. As revoltas tenentistas também ex-pressavam reivindicações que iam muito além dos limi-tes dos quartéis, demonstrando o descontentamento dossetores médios urbanos que já vinham adquirindo impor-tância social e econômica em nossas cidades.1

Qual a relação do Estado, neste período, com a socie-dade brasileira e, em particular, com a classe trabalhado-ra e suas organizações sindicais? O Estado brasileiro or-ganizava-se, nesta época, na forma que classicamentedenominou-se de Estado Liberal, sobretudo no que se re-fere às atividades econômicas urbanas.2 Este Estado teveduas características básicas no que diz respeito à sua re-lação com as classes subalternas e com a trabalhadora emparticular: abstenção legal de regulação das relações tra-balhistas e controle repressivo do conflito social. Esta abs-tenção legal caracterizou-se pela não intervenção do Esta-do na organização da sociedade, nas atividades econômicase, por fim, não intervenção organizadora na representa-ção de interesses, ou seja, o capital e o trabalho. No casodas relações trabalhistas, significou a ausência de qual-quer legislação regulamentando a organização sindical, anegociação coletiva, ou mesmo direitos individuais paraos trabalhadores.

Quanto à segunda característica, é preciso deixar cla-ro a natureza desta abstenção de intervenção legal paraque não se tenha, ainda que palidamente, uma impressãode indiferença política na mencionada natureza liberal doEstado então existente. A intervenção do Estado ocorria,e de forma muito violenta por vezes, sempre quando aordem social estabelecida parecia estar sendo confronta-da no processo político-social. O exemplo disto foram asprisões e deportações de anarquistas, de lideranças sindi-cais em geral e outros opositores do jogo político oligár-quico.3 Não sem abundantes motivos, o último governoda República Velha celebrizou-se com a afirmação de quea questão operária era uma “questão de polícia”. Comose vê, o Estado desempenhou com muito zelo seu papelde polícia da ordem política e econômica.

Ocorre que, no decorrer dos anos 20, o sistema políti-co de sustentação do jogo político oligárquico começou afazer dissidentes entre as oligarquias regionais. No cená-rio mais amplo, o sistema político oligárquico passou asofrer forte contestação de setores militares, culminandona revolta do forte de Copacabana e na revolta militar emSão Paulo, em l924, que gerou a coluna Prestes. Nestemesmo período, os trabalhadores ampliavam suas orga-nizações sindicais e realizavam constantes greves. A im-pressão que se deve ter dos anos 20 é de grande instabili-dade e agitação política. E mais, os diversos setores quequestionavam o sistema político oligárquico reivindica-vam não só serem ouvidos, mas também um aumento do

papel do Estado na sociedade, seja para controlar os inte-resses dos setores oligárquicos, seja para diminuir as di-ferenças sociais intervindo nas relações entre capital etrabalho.

O ambiente político de crise dos anos 20 é propício paraa “importação” de um projeto político autoritário,4 queveio a ser o modelo corporativo. O corporativismo surgiuna Europa como um corpo de idéias sobre a organizaçãoda sociedade, que se propunha a ser alternativa à absten-ção típica do Estado liberal, que, segundo os ideólogoscorporativistas, tendia à desagregação das sociedades pordeixá-las entregues às suas lutas internas. Além disso, emcerta medida, surgiu também como uma alternativa ao so-cialismo soviético, que estava se iniciando com a vitóriabolchevique de 1917 e que, por isso, era uma ameaça pal-pável à ordem social capitalista. Segundo o projeto cor-porativo, nas suas formas mais vulgarizadas, o Estado or-ganizaria, no interior de suas instituições, a representaçãode trabalhadores e de patrões, visando “harmonizar” as re-lações de classe com os objetivos “nacionais”.5 No mode-lo ideal, ou tipo ideal, de Estado corporativo, segundo seusteóricos, o Parlamento seria substituído por uma CâmaraCorporativa que refletisse a organização sindical de tra-balhadores e patrões. A idéia central é que, segundo a óti-ca corporativa, cabia ao Estado organizar a sociedade e,assim, evitar o conflito no seu interior.6

Vários foram os países a experimentar o projeto polí-tico corporativo: o Estado Novo salazarista, em Portugal,iniciado nos anos 20 e que terminou com a Revoluçãodos Cravos, em 1974; o regime franquista, na Espanha,iniciado em 1936 e encerrado com as reformas políticasde 1979; o regime fascista, na Itália, iniciado em 1926 eencerrado com a derrota militar do regime em 1945. NoBrasil, as idéias corporativistas empolgaram diversos teó-ricos, entre eles Oliveira Vianna e Joaquim Pimenta, quechegaram ao poder com a vitória do movimento de Getú-lio Vargas, em 1930, integrando a equipe técnica do re-cém-fundado Ministério do Trabalho. Como se vê, a arti-culação política expressa no movimento de Getúlio Vargascongregou setores políticos, teóricos e técnicos, que ti-nham em comum um projeto político autoritário para su-peração dos impasses enfrentados pelo Brasil. Vale re-cordar que a resolução da “questão social” foi um doscompromissos da Aliança Liberal.

Com Vargas no poder, várias foram as iniciativas dereformas do sistema político até então vigente. Dentre es-tas, a criação do Ministério do Trabalho e, em 19/03/31, ainstituição por decreto, da organização sindical corporati-va (DL no 19.770).7 Como se estruturou a organização sin-dical prevista neste decreto? Primeiro, a representação éoutorgada pelo Estado, ou seja, o Estado diz quem e deque forma se representam os patrões e os trabalhadores.

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Segundo, cria-se a unicidade sindical, ou seja, só um sin-dicato pode representar um ramo de trabalhadores, que im-plica a concessão pelo Estado de um monopólio de repre-sentação. Terceiro, os sindicatos só podem se associar entresi na forma hierarquizada e piramidal das federações e con-federações, sem possibilidade de organização horizontalinter-ramos de trabalhadores. Quarto, o Ministério do Tra-balho é o órgão do Estado ao qual compete definir o con-junto de trabalhadores a serem representados, e que pas-sará a denominar-se de categoria, concedendo o registroou não a sindicatos que desejam exercer a representação.Quinto, o Estado é o órgão arrecadador da fonte de cus-teio dos sindicatos através do compulsório imposto sin-dical.

Quando Vargas chegou ao poder, os trabalhadores vi-nham organizando seus sindicatos há décadas, tendo jáestruturado federações e organizações mais gerais. Se estaafirmação é verdadeira, como conseguiu Vargas desmon-tar o processo de organização sindical autônomo fazendovaler o modelo e concepções impostas pelo Decreto de1931? O governo Vargas conseguiu implantar o modelosindical corporativo utilizando um processo político quecombinou concessão de direitos e repressão política. Destamaneira, o governo passou a criar diversos direitos indi-viduais de proteção dos trabalhadores, tais como a limi-tação da jornada de trabalho, o direito de férias, etc. Po-rém, condicionou o acesso a estes direitos somente aostrabalhadores sindicalizados nos sindicatos oficiais cria-dos dentro da estrutura do Decreto no 19.770. Aqueles quepermanecessem autônomos, além de seus associados nãoterem acesso a estes direitos, que eram velhas reivindica-ções da classe trabalhadora, seriam duramente reprimi-dos, sendo de 1931 a criação da Delegacia de Ordem Po-lítica e Social (Dops).8

E mais, o governo passou a legislar criando os mecanis-mos de tutela (direitos de proteção) individual dos trabalha-dores e atribuindo ao Ministério do Trabalho o papel de fis-cal dos direitos concedidos. Se o direito fosse ainda assimdesrespeitado, o trabalhador lesado poderia utilizar-se daassistência jurídica prestada pelo sindicato e propor umareclamação junto a uma das Comissões de Conciliação eJulgamento, que foram criadas nesta época e se constituíamno embrião da futura Justiça do Trabalho. Para prover ossindicatos de recursos, não só de assistência jurídica comotambém das demais atividades assistenciais impostas pelaprópria lei, foi criado o Imposto Sindical, renomeado poste-riormente de Contribuição Sindical.

O mesmo fez a legislação sindical quanto à possibili-dade da negociação coletiva, estabelecendo um sistemade controle do conflito que vigora até hoje. A lei passou aprever a possibilidade de celebração de Contrato Coleti-vo de Trabalho, denominação alterada para Convenção

Coletiva de Trabalho em 1967, entre sindicato de traba-lhadores e sindicato patronal, ou ainda, o Acordo Coleti-vo de Trabalho, que é um instrumento normativo cele-brado entre um sindicato de trabalhadores e uma empresa,respectivamente. A vigência destes instrumentos ficourestrita a um ou dois anos, devendo sua negociação ocor-rer somente na data-base determinada, inicialmente, peloMinistério do Trabalho. Como o modelo destina-se a evi-tar o conflito, caso as partes em negociação não cheguema um acordo, o caso pode ser remetido à Justiça do Tra-balho, que julga a pauta de reivindicações determinando,através de uma sentença, as condições de trabalho quedevem reger individual e coletivamente os trabalhadoresrepresentados pelo sindicato no dissídio coletivo.9

O efeito mais danoso deste modelo sindical é que elecapturou dos trabalhadores, na prática, sua cidadania, ad-mitindo-na de forma regulada (Santos, 1987). Esta pode-ria expressar-se se constituído, nas relações trabalhistasno Brasil, um processo de autodeterminação e autotutelados direitos dos trabalhadores. O que se quer dizer comisto? Pelo modelo criado no Brasil, o Estado concede di-reitos aos trabalhadores, tanto individuais como coleti-vos; ao Estado, através do Ministério do Trabalho, cabefiscalizar o cumprimento destes direitos; se persistir odescumprimento, o Estado, através da Justiça do Traba-lho, julga e manda aplicar o direito lesado; o mesmo ocorrena negociação coletiva que, se não alcançada uma solu-ção conciliatória, o Estado intervém através do podernormativo (de estabelecer normas) da Justiça do Traba-lho, para evitar o conflito direto, através do dissídio cole-tivo mencionado anteriormente.

Neste sistema, o ciclo da criação dos direitos e a fisca-lização e defesa destes direitos se processam sempre porinstituições estatais, cabendo aos trabalhadores um peque-no papel. É reduzido o espaço de autonomia dos traba-lhadores e seus sindicatos no processo de criação e reali-zação dos direitos que lhes são pertinentes. Este é oconteúdo do sistema autoritário de incorporação dos tra-balhadores na cidadania. Uma cidadania que não se com-pleta em face da restrição dos trabalhadores ao campo,da fruição de direitos, e não de construções de direitos.10

Como se sabe, o sistema contratual individual passou aexistir no Estado liberal com o reconhecimento do fatode os indivíduos viverem isolados em sociedade, e comcapacidade de serem sujeitos de direitos e obrigações nouso do conceito da autonomia da vontade. A superaçãoda ordem liberal reconheceu e, posteriormente, valorizou,em diversos sistemas jurídicos, os entes coletivos enquantosujeitos coletivos de direitos e obrigações. Com as restri-ções que sofre o sistema de negociação e contratação co-letiva no Brasil, os sindicatos não lograram ser sujeitosde direito na sua integralidade, em função não só da tute-

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la financeira, mas sobretudo do controle do conflito cole-tivo de trabalho através dos tribunais.

Esta é a lógica e a genialidade do processo de incorpo-ração autoritária dos trabalhadores no projeto nacional daera Vargas. Este padrão de relações de trabalho (indivi-duais e coletivas), é preciso lembrar sempre, passou asofrer forte questionamento em sua funcionalidade a par-tir do ressurgimento do movimento sindical no final dosanos 70, quando ainda estava em curso o regime autoritá-rio-militar, com acentuada rejeição ao seu estatismo.

A EVOLUÇÃO DA CRÍTICA AO MODELO

O movimento sindical que emerge no pós-Estado Novode Vargas tem uma convivência, em grande medida, har-moniosa com o modelo sindical corporativo. Ao contrá-rio de criticar o seu embricamento com o Estado, valeu-sedele para ampliar, através do controle de órgãos vincula-dos ao aparelho estatal, sua visibilidade e influência polí-ticas na sociedade brasileira.11 Uma vigorosa política demassas desenvolvida, entre outros locus, sobretudo nossindicatos no período pós-Estado Novo, não teve por ob-jetivo, entretanto, a construção de um projeto alternativoà política populista.12 Desta forma, a estrutura sindicalatravessou os anos que sucederam a redemocratização atéo golpe militar de 64 sem sofrer grandes contestações.

De maneira diversa, entretanto, o movimento sindical queemerge quando se inicia a crise do regime militar põe-se,desde o início, em uma posição de crítica com relação aocomprometimento da estrutura sindical com o Estado(Humphrey, 1982). Outro fator que distingue o movimentosindical deste período, comparativamente com o anterior, éa valorização das lutas sindicais com as temáticas e ativismocentrados no interior das empresas. Esta é a tônica dos me-talúrgicos do ABC paulista, dos bancários de São Paulo edas oposições sindicais.13 A crítica à estrutura sindical temsido apontada, inclusive, como um dos principais fatores quepossibilitaram a aproximação da direção sindical de SãoBernardo do Campo, assim como outras direções sindicaiscríticas à estrutura sindical, com as oposições sindicais.14 Noinício dos anos 80, articulou-se o Encontro Nacional dosTrabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical – Entoes,que congregou diversos setores emergentes do movimentosindical nos últimos anos do autoritarismo.15 As bandeirasde liberdade e autonomia sindical confluíram para a defesado texto da Convenção no 87 da Organização Internacionaldo Trabalho – OIT. Como é sabido, este tratado internacio-nal, até hoje não ratificado pelo Brasil, consagra o princípioda plena liberdade sindical, o que colide com o nosso mode-lo assentado no monopólio da representação.

Estes setores críticos à estrutura sindical uniram-se, em1981, às demais lideranças sindicais não comprometidas

com o regime militar, para realizar a 1a Conferência Na-cional da Classe Trabalhadora – Conclat. Este congressointersindical reuniu cerca de quatro mil trabalhadores ru-rais e urbanos. A principal deliberação desta articulaçãopolítico-sindical foi, sem dúvida, a criação de uma cen-tral sindical, a Central Única dos Trabalhadores. Desig-nada a criação da CUT para 1982, esta foi adiada para oano seguinte, em função das eleições gerais. A esta altu-ra, os setores identificados com o denominado sindicalis-mo “autêntico” estavam reunidos, em sua grande maio-ria, em torno do recém-criado Partido dos Trabalhadores.Estes setores resistiram em 1983 a uma nova tentativa deadiamento e realizaram, independente dos demais seto-res que participaram da formação do Conclat, o congres-so de fundação da CUT, em agosto.16 Esta central sindi-cal nasceu, entretanto, ligada à crítica da estrutura sindicalherdada da era Vargas, cuja alternativa centrava-se na ado-ção pelo Brasil da Convenção no 87 da OIT.

Quando a CUT chegou ao seu 3o Congresso em 1988,além de manter as bandeiras da autonomia e liberdade sin-dical, aprovou uma nova reivindicação, que dirigentes eassessores no seu interior vinham defendendo desde o iní-cio deste ano, de implantação do Contrato Coletivo deTrabalho. Mais precisamente, o modelo proposto foi o doContrato Coletivo de Trabalho Nacional Articulado.17 Aperspectiva de implantação do Contrato Coletivo associou-se às proposições apresentadas por esta central sindical,de imediato, com a luta pela superação do modelo sindi-cal corporativo. O seu lançamento político se deu comoresposta à permanência da estrutura sindical no novo tex-to constitucional. De outro lado, não menos ponderável,no entanto, ocorreu oportunamente como alternativa aproposta formulada pelo então governo Sarney de PactoSocial. Em face das circunstâncias em que se deu a suaproposição, não foi possível preparar-lhe uma discussãomais aprofundada e elaborada de todas as suas implica-ções políticas e jurídicas. O grau de improvisação inau-gural, como já se viu, marcou indelevelmente a discus-são do Contrato Coletivo de Trabalho. Seguiu-se à decisãouma verdadeira “febre” de pretensas minutas de ContratoColetivo de Trabalho por todas as categorias profissio-nais ligadas à central sindical, inicialmente, e, posterior-mente, nos demais setores sindicais.

A proposta do Contrato Coletivo de Trabalho, de abran-gência nacional, não foi primeiramente elaborada pelaCUT. Em verdade, é uma antiga bandeira do movimentosindical brasileiro. Para se ter uma idéia da origem da rei-vindicação, é preciso lembrar que os bancários, por exem-plo, já no 1o Congresso da Contec, em 1959, haviam defi-nido o Contrato Coletivo Nacional de Trabalho como umade suas reivindicações. Canedo (1986:141) observa queas lideranças sindicais da época enxergavam, no Contrato

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Coletivo de Trabalho, uma possibilidade de levar o movi-mento sindical para dentro das empresas, superando umdos entraves centrais que tem caracterizado nosso modelosindical.18 Este não era, como se observou, um dos objeti-vos principais do movimento sindical na época.

É forçoso ressaltar que as diferenças entre as proposições,do período histórico anterior e do contemporâneo, não sãopequenas. A pretensão maior contida na proposta do Con-trato Coletivo Nacional Articulado, como apresentado nofinal dos anos 80, era alterar toda a estrutura sindical herda-da do Estado Novo. Vai-se mais longe: era mesmo uma con-dição prévia e necessária para a sua implantação.19 Ao sefalar em Contrato Coletivo de Trabalho no período pré-64,entretanto, está se pleiteando a extensão da utilização de uminstituto jurídico já existente. O reaparecimento da propostado Contrato Coletivo está associado à crítica da estrutura sin-dical, porque a sua implantação tinha como pressuposto asua mudança. Fica evidente que se tratava de uma formula-ção política ambiciosa.

As tarefas a serem cumpridas através da proposta doContrato Coletivo Nacional Articulado, como se podenotar, eram ciclópicas para um prosaico instrumento ju-rídico-contratual. Distanciados pelo tempo, é possívelentender as confusões que se formaram em torno do tema,que se iniciaram pela sua própria nomenclatura, uma vezque nossa convenção coletiva já se chamou contrato co-letivo.20 A necessidade de se decifrar um enigmático con-teúdo oculto na nomenclatura exibia a sua própria fragi-lidade: o contrato coletivo seria apenas um dos detalhesem toda a sistemática institucional ligada à estrutura sin-dical corporativa que deveria ser alterada, no seu conjun-to, para a sua plena superação.

Apesar dos evidentes equívocos presentes na proposi-ção, em face do inicial ocultamento do conteúdo neces-sário à sua implantação, a proposta passou a ser reivindi-cada pelos mais diversos setores sindicais e econômicos.Logo, o significado da proposição passou a ter diversasconotações.21 O então governo Collor apresentou o pro-jeto de lei no 821 em 02/05/91, uma proposta de regula-mentação da negociação da coletiva e do artigo 8o da Cons-tituição Federal. Uma determinação expressa na entãopolítica salarial contida na Lei no 8.178/91 previa a pos-sibilidade de celebração de Contrato Coletivo de Traba-lho. Sobre o referido projeto governamental, vários auto-res se manifestaram, dentre estes, Braga (1991).

Luiz Antônio Medeiros, que posteriormente celebrizou-se como líder da central sindical Força Sindical, apresen-tou em outubro de 1990 uma primeira minuta de reivin-dicações do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo,intitulada também de Contrato Coletivo de Trabalho. Po-der-se-ia mencionar, ainda, outras iniciativas de menorrelevância político-sindical.22 O governo Fernando Hen-

rique, desde o seu início, através do seu ministro do Tra-balho, Paulo Paiva, tem reiterado o seu objetivo de im-plantar no Brasil o Contrato Coletivo de Trabalho. Di-versas outras iniciativas legislativas foram propostas, oque ampliou o leque de referências cruzadas necessáriasà compreensão do tema.23 A difusão do tema do ContratoColetivo de Trabalho por setores políticos tão diversosapresenta-se para alguns analistas, entretanto, como umdos sintomas do aprofundamento da crise do modelo sin-dical corporativo brasileiro.24

A verdade é que nos meios sindicais, sobretudo os vin-culados à CUT, esta discussão iniciou-se dando ênfase aoaspecto instrumental-formal, o que acabou se prestandoa equívocos e divergências improdutivas. Além do mais,fez com que a discussão migrasse do campo da compre-ensão política, o qual ainda hoje carece de uma discussãomais apurada sobre os aspectos relevantes de uma possí-vel transição da estrutura sindical, para um campo de com-preensão técnico-jurídico, que está, no mais das vezes,embebido no senso comum jurídico-juspositivista. Comoconseqüência, os interlocutores técnicos roubaram a cenados interlocutores políticos envolvidos no sistema de re-lações coletivas de trabalho.

O Contrato Coletivo, segundo a sua conceituação nospaíses que o adotaram, inicia-se na organização e luta sin-dicais, passando pela negociação coletiva e finalizandona formalização do contrato propriamente dito. É uma for-ma de regulação e formalização das relações coletivas detrabalho. Ressalte-se que, só na fase final do processodescrito, o conteúdo das negociações será disposto emnormas escritas segundo as regras juridicamente aceitaspelas instituições jurídicas, quer pelos princípios geraisdo direito coletivo do trabalho, quer pelo ordenamentolegal em matéria sindical. A forma jurídica é, de qual-quer modo, o último estágio.25

Outro aspecto complicador para a difusão da idéia do Con-trato Coletivo de Trabalho no Brasil é que a proposição ini-cial, como fora defendida pela CUT, adotava um tipo de con-tratação coletiva de trabalho transposta da experiênciasindical italiana. Este foi o caso do Contrato Coletivo Na-cional Articulado, que fazia referência expressa a uma ex-periência datada da contratação coletiva italiana. A propos-ta teve, ainda, a infelicidade adicional de não destacar emsua proposição os evidentes problemas referentes ao con-teúdo normativo do modelo inspirador, o qual estava procu-rando transpor para a realidade brasileira. O ciclo de contra-tação coletiva italiana, que se passou a denominar, sobretudona literatura de direito sindical e relações industriais, decontrattazione articolata, encerrou o modelo contratual quepredominou nos anos 50, marcado pela negociação e con-tratação centralizadas por ramo e negociadas em nível na-cional em uma categoria profissional ou intercategorial.26

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O processo de contratação iniciado na temporada con-tratual italiana de 1963 teve o aspecto positivo de esten-der a negociação e a contratação ao âmbito das empresas.Ocorre que, embora houvesse estendido a negociação aoplano local, manteve limitada a capacidade de interven-ção dos níveis locais de representação e ação sindicais.Logo, de todos os problemas existentes neste modelo, omais importante foi, sem dúvida, o controle e restrição àatividade contratual na base do processo negocial e, comoconseqüência, da atividade sindical nos níveis inferiores– nas localidades geográficas e locais de trabalho.27 Poroutro lado, do ponto de vista econômico, segundo a óticaempresarial, dava estabilidade e segurança ao resultadoalcançado na negociação, num modelo industrial que exi-gia pouca flexibilidade produtiva das plantas.

A forma como se pactuava internamente a sua enge-nharia negocial, colocou sobre questionamento o modelocontratual e também as lideranças sindicais das confede-rações sindicais italianas a ele ligadas. As confederaçõessindicais italianas, então mais representativas, estiveramem check no período de grande conflitualidade sindicalque se irrompeu no final dos anos 60, denominado pelaliteratura especializada “outono quente”.28 Seguiu-se a estaexperiência, traumática às forças políticas italianas tradi-cionais, um longo debate a respeito da democracia sindi-cal no processo negocial, que levou a uma revisão e pos-terior abandono do modelo de negociação e contrataçãocoletivas articuladas.

Ora, a referência ao modelo italiano, que tinha seu “cal-canhar de Aquiles” exatamente no controle centralizadodo processo de participação sindical na negociação e con-tratação coletivas, expôs e vulnerou o projeto da então li-derança desta central sindical aos setores à sua esquerdano espectro político, sobretudo no seu interior,29 o quecontribuiu, ainda mais, para um processo indesejável deideologização do debate em torno do tema. Faz-se aquium pequeno parênteses para mencionar a proposta de ne-gociação coletiva articulada, que foi defendida pelos ban-cários brasileiros no início dos anos 90. Como se sabe, esteé o único ramo de trabalhadores a alcançar um instrumen-to contratual em nível nacional. A Convenção ColetivaNacional dos Bancários e a proposta original de contrata-ção nacional articulada não guardam nenhuma semelhan-ça com a experiência contratual italiana.30

Os problemas já relacionados, associados a uma leitu-ra juspositivista que os quadros jurídico-sindicais fazemda nossa realidade, contribuíram para um certo “emba-ralhamento” dos significados envolvidos na proposta denovo modelo de contratação coletiva de trabalho. É for-çoso reconhecer que os operadores do atual padrão derelações do trabalho no Brasil que são, entre outros, ge-rentes de pessoal e recursos humanos em geral, advoga-

dos trabalhistas, dirigentes sindicais, juízes trabalhistas,classistas ou não, funcionários do judiciário trabalhista,estão todos envoltos por uma certa cultura corporativa.Esta cultura corporativa, seja qual for o personagem, di-ficulta pensar as relações trabalhistas sob novos pressu-postos que não os até agora vigentes.

Os fundamentos jurídicos com os quais se procuroucercar a proposta original, por outro lado, também adicio-naram problemas à proposição. Insinuou-se, inicialmen-te, uma volta ao direito civil.31 Aqui, novamente o mode-lo italiano ofusca a compreensão do caso brasileiro. Natransição do modelo corporativo italiano, com o fim daSegunda Guerra, mantiveram vigentes diversas normasreguladoras do mundo do trabalho que estão no CódigoCivil italiano. Em função, ou não, de uma transição polí-tica incompleta, também do ponto de vista da não elimi-nação de todo o ordenamento jurídico vigente no períodofascista, os conceitos jurídicos de direito do trabalho naItália passaram a operar também com normas legais oriun-das do direito civil.32 Como se vê, as condições em que seoperara a transição italiana para um sistema de autono-mia privada coletiva dos sindicatos também inspiraramas manifestações inaugurais da discussão contemporâneado Contrato Coletivo de Trabalho no interior do movi-mento sindical brasileiro.

As críticas, cada vez maiores, ao modelo de contrata-ção coletiva nacional articulada e sua disseminação pordiversos setores da sociedade, inclusive empresariais, fi-zeram com que a CUT retirasse a ênfase inicial dada aeste projeto. Como se viu, estando a idéia genérica docontrato coletivo disseminada pelos mais diversos seto-res e interesses políticos, esta acabou por evidenciar a po-breza substantiva da proposta inicialmente formulada. Apartir dos anos 90, passou-se, paulatinamente, a uma aná-lise sistêmica do modelo sindical corporativo e, em con-seqüência, a um esboço de proposição também marcadopelo corte sistêmico: a do sistema democrático de rela-ções coletivas de trabalho.

Segundo esta análise, as relações coletivas de trabalhono Brasil se dão através da inter-relação de atores sociaise instituições, num sistema. O sistema corporativo de re-lações coletivas de trabalho tem como atores sociais ossindicatos, patronais e de trabalhadores, as instituiçõesestatais da Justiça do Trabalho e o Ministério do Traba-lho. Este sistema, que é criticado, deveria, na formulaçãoatual desta central sindical, converter-se num sistemademocrático de relações de trabalho. É no conjunto de“peças” que compõe este sistema, que iria se discutir aadoção de um novo modelo de contratação coletiva detrabalho. O contrato coletivo de trabalho, ou melhor di-zendo, o modelo de contrato coletivo de trabalho a seadotar estará cercado pelos pressupostos dados pelo sis-

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tema que se está propondo. Assim, em uma rápida visãodo conjunto, o dito sistema democrático passa pela aboli-ção, no âmbito da Justiça do Trabalho, do poder normati-vo e do juizado classista e pela adoção de uma legislaçãode amparo à atividade sindical, mudança na legislaçãotrabalhista e, finalmente, pela representação no local detrabalho.33

Este novo tipo de abordagem das propostas de mudan-ça do modelo sindical incorporou novos e irrenunciáveistemas à agenda da mudança das relações de trabalho noBrasil. Entre eles, destaca-se a necessidade de uma revi-são crítica da legislação trabalhista e da transição propria-mente dita do modelo corporativo a um novo padrão. Arevisão da legislação trabalhista não será referida aqui;por ora, vale lembrar que a CLT tem sido alvo de ques-tionamentos quase com a mesma intensidade que o mo-delo sindical, ao qual está, aliás, umbilicalmente ligada.O que a visão sistêmica passaria a descortinar, inevita-velmente, era a necessidade de se sofisticar, gradualmen-te, o grau de detalhamento das propostas oriundas domovimento sindical.

Esta abordagem, no entanto, apresenta dificuldadespara sua discussão e implementação. A primeira delas,sem dúvidas, é que esta nova proposição veio a coincidircom a pauta de mudanças liberais introduzidas, tardiamen-te, com o início dos anos 90. O projeto de redução doEstado terminará, mais cedo ou mais tarde, por sugerir adeslegalização, enquanto este novo approach, ainda quereconhecendo a necessidade de desregulamentar a admi-nistração do conflito trabalhista, implica uma aposta deampliação da pauta de normatização estatal na área de ati-vidade sindical. Ademais, não seria exagerado falar-se daproximidade de uma crise dos próprios fundamentos cien-tíficos do Direito do Trabalho, enquanto ramo autônomodo Direito. E, em decorrência, os sindicatos passarão, tam-bém por estes motivos, a ser visualizados como uma ins-tituição em crise na sociedade.

A segunda dificuldade está na definição do processocom o qual se faria a transição do modelo sindical corpo-rativo para um sistema de relações de trabalho fundadoem regras democráticas. A partir deste ponto, na mesmamedida em que passou-se a discutir a mudança de sistemae sua legislação, foi-se colocando o problema do períodoque medeia o sistema corporativo, que se deseja abando-nar, e o outro, o qual se deseja adotar. E mais, a necessi-dade de definir medidas que devem reger este período. Éo problema da transição. A discussão da transição intensi-ficou-se nos meios político-sindicais e nos meios jurídi-co-científicos. Também no interior da CUT, e das demaiscentrais sindicais, a transição torna-se uma das referênciasna discussão crítica da estrutura sindical. Na central sindi-cal mencionada, especificamente, a transição passa, ain-

da, a ser objeto das decisões dos seus Congressos e reso-luções das plenárias nacionais que realiza periodicamente.

Desta maneira, a transição passa a merecer uma aten-ção especial dos atores e a ser focada pelos estudos emmatéria sindical. Quais as regras que regerão o períododurante o qual se está abandonando a estrutura corporati-va e, ainda, não se construíram as novas instituições jurí-dicas? Quanto deve demorar a transição? O que se estádisposto a perder – ceder – no curso deste processo? Estaé a tônica das discussões em torno da mudança da estru-tura sindical. Feito um quadro evolutivo das alternativasapresentadas, sobretudo, pela CUT que, em grande medi-da, esteve à frente das propostas discutidas neste campopela sociedade brasileira até meados dos anos 90, serãodetalhadas, a seguir, as considerações críticas sobre a tran-sição do sistema corporativo.

A MUDANÇA DO MODELO:UMA ENGENHARIA INSTITUCIONALNECESSÁRIA À TRANSIÇÃO

A eleição do presidente Fernando Henrique Cardoso e,nos últimos meses, o avanço das propostas de reforma cons-titucional no Congresso Nacional fazem crer que, mesmocom uma ausência inicial de um projeto de governo para areforma do sistema de representação de interesses, umaampla reforma do nosso sistema de relações de trabalhoretornará à ordem do dia mais cedo ou mais tarde comotem sido recorrente na última década de nossa história re-publicana. O que se vislumbra no horizonte pode ir muitoalém dos ensaios contidos nas recentes Medidas Provisó-rias (MPs) da desindexação dos salários, que iniciaram-secom a de no 1.053, do projeto de lei de flexibilização dotrabalho temporário, e com algumas medidas administra-tivas que constituem os primeiros ensaios de flexibiliza-ção do governo no campo das relações trabalhistas.34

Daqui em diante, ao que parece, de forma diversa dastentativas de governos passados, este governo deverá apre-sentar uma ampla reforma com possibilidades de vir a seviabilizar no parlamento. Este é um dado essencial quedifere dos ensaios governamentais anteriores, em particu-lar do projeto articulado no governo Collor pelo hoje “tu-cano” Antônio Kandir, sem olvidar o anódino governoItamar Franco. Quanto a este último, a única exceção ficapor conta do Fórum Nacional sobre Contrato Coletivo eRelações de Trabalho no Brasil, organizado no Rio de Ja-neiro pelo então ministro do Trabalho, Walter Barelli, en-tre 22 de setembro e 10 de dezembro de 1993.35 A inicia-tiva, ainda que deva ser louvada, não logrou concluir umprojeto para a mudança do modelo sindical. É este cená-rio, de proposições de mudanças profundas na nossa le-gislação trabalhista e sindical, que impulsionou as recen-

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tes investidas para a formulação de alternativas jurídicaspela CUT. Está em discussão no interior desta central sin-dical um projeto que tem como ponto de partida o fim dosindicato único e outras diversas mudanças.36

O que se pretende, no âmbito restrito deste artigo, édirigir o foco para o processo de transição em si. Temsido apresentada, com alguma insistência, a necessidade,para a construção de um novo modelo, de um período detransição. Mais que um lapso temporal que medeia doispontos, ou dois períodos historicamente delimitados, atransição tem que ser vista como um processo complexo,um período que merece uma reflexão e esforço de elabo-ração específica. O vocábulo transitar, vale recordar, sig-nifica sair de algum lugar em direção a outro. A estraté-gia de reforma do governo para o sistema de relaçõescoletivas de trabalho, como tem se mostrado até o pre-sente momento, não passa pela apresentação de um pro-jeto definido, ao menos pelas manifestações vistas até ago-ra. Tudo leva a crer que não haverá um ponto de partidae, tampouco, um ponto de chegada claramente propostose assumidos. Ademais, este é um dos maiores problemasa se definir num processo de mudança: os próprios mar-cos da transição.

Uma transição pactuada seria o cenário mais adequadoe desejado para o caso brasileiro, como meio de definiçãode sua engenharia político-institucional. Esta transiçãopactuada tem sido referida e sugerida, em diversas opor-tunidades, pelos mais diversos atores sociais representati-vos da ação sindical. Segundo entende-se aqui por transi-ção pactuada, esta passaria por uma compreensão préviae negociada, entre os atores coletivos que atuam no siste-ma de relações individuais e coletivas de trabalho e o Es-tado, ou seja, uma negociação tripartite. A primeira ne-cessidade política que impulsiona a transição negociada éa de se estabelecer um entendimento em torno do seu ter-mo a quo, ou seja, onde e como inicia-se a mudança dosistema. Se for admitido como sendo o cenário fértil à pac-tuação um equilíbrio de forças entre os vários segmentosenvolvidos na negociação, então pode-se vislumbrar as di-ficuldades para designar os próprios atores que serão ati-vos no processo de negociação.37

Por isso, deve-se admitir que a negociação passa ne-cessariamente por uma renúncia da capacidade resolutivado Estado, via regulamentação legal, do Poder Executivoe, entre os atores sociais, por uma interlocução seletivaentre aqueles com capacidade de influência e pressão maispróxima da equivalência entre si. Dito de outra forma, umgoverno com larga maioria parlamentar, ainda que comfranjas partidárias e parlamentares flexíveis, deve renun-ciar a sua capacidade de impor unilateralmente um proje-to orientador do debate; por outro lado, nem todos os ato-res sociais que formalmente reivindicam-se interlocutores

têm condições de apresentarem-se à mesa dos entendi-mentos. É preciso, de um lado, conter o apetite pelo exer-cício da maioria política por parte do governo e, de ou-tro, excluir as centrais sindicais menos expressivas eentidades sindicais patronais menos representativas do em-presariado.

Como se vê, a transição pactuada apresenta diversoscomplicadores para a sua implementação. As dificuldades,no entanto, não reduzem a sua maior adequação e nem de-vem desestimular a sua utilização para uma eventual transi-ção do modelo sindical corporativo brasileiro. Ainda quepresentes as condições político-institucionais favoráveis auma tal negociação político-social, a eficácia da concertaçãode uma transição sindical apresenta-se restrita no seu con-teúdo e possibilidades institucionais e políticas. O que se querdizer com isto? A pauta de medidas que comporiam a go-vernabilidade de um processo de transição não encontracondições políticas e institucionais, dado a tipicidade desteprocesso, por ser ampla no seu espectro de normatizaçãodesejado. Diversos são os motivos que sugerem este fato:diversidade e heterogeneidade de óticas e objetivos políti-cos entre os parceiros no processo; e, do ponto de vista ins-titucional, a transição pede reformas constitucional e da le-gislação ordinária, mais precisamente da Consolidação dasLeis do Trabalho (CLT), ambas com procedimentos decisó-rios e calendários políticos diversos. Como colocar fim àunicidade sindical da Constituição Federal e assegurar, aomesmo tempo, a redefinição necessária na contratação cole-tiva e outros fatores que compõem o subsistema de repre-sentação de interesses? As possibilidades de uma engenha-ria institucional de intervenção e governabilidade do processosão escassas.

Como se demonstrou, o marco zero da transição, queestá se chamando aqui de termo a quo, deveria ser nego-ciado não só como condição prévia, mas sobretudo pelaprópria natureza do processo de pactuação. Em que pesea possibilidade de negociação do ponto de partida, não sevislumbra condição de definição de um ponto de chega-da do modelo que substituirá o atual. Vários fatores le-vam a concluir que é, em certa medida, artificial determi-nar o ponto de chegada de uma transição desejada, ou seja,o seu termo ad quem. De outro lado, entretanto, é possí-vel e desejável estabelecer os limites e garantias que vi-gorarão no seu curso.38 Os processos de transição sãocaracterizados pela instabilidade e insegurança dos par-ceiros envolvidos. Cada um deles terá, como é previsível– e trata-se do fator que determinou o processo mesmo –,um projeto próprio com objetivos e idéias que seria o ter-mo ad quem da transição.

Os atores sociais irão, muito provavelmente, num ce-nário de plena liberdade sindical (fim do sindicato úni-co, do poder normativo da justiça do trabalho, etc.),

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sofrer uma redefinição das suas atuais formas. Em facedisto é fácil perceber que a transição tornar-se-ia umcaminho com curso forçado se, como já se pretendeuem alguns projetos do próprio movimento sindical nopassado, fosse desejado definir na partida toda a con-formação e desenho de um novo padrão de organiza-ção sindical e contratação coletiva. Pensando a expe-riência de outros países, conclui-se que não há, até opresente momento, nenhuma literatura política dedicadaà elaboração de uma teoria geral das transições dos sis-temas de relações de trabalho. Uma análise rápida dospaíses de expressão latina que também adotaram omodelo sindical corporativo pode, entretanto, sugeriralgumas conclusões provisórias, porém ilustrativas parao caso brasileiro. Pensa-se especificamente nos casosda Espanha, Itália e Portugal, mas deve-se aqui fazermenção à primeira advertência. A mudança do nossoatual padrão de relações coletivas e individuais de tra-balho se fará, enquanto subsistema de representação deinteresses, fora de um processo mais amplo de mudan-ça do sistema político.

O processo de mudança nas diversas experiências cor-porativas vividas na Europa Ocidental mencionadas tevealguns aspectos recorrentes. Primeiro, um grande processode mudança política: o fim do regime autoritário franquistana Espanha;39 a Revolução dos Cravos em Portugal e; ain-da, a deposição de Mussolini pelo grande Conselho e aposterior derrota militar da Itália na Segunda Guerra.40 Osegundo aspecto, também recorrente nestas experiências,é que ao fim dos regulamentos trabalhistas corporativos,em alguns países, seguiu-se o estabelecimento de proces-sos de negociação e contratação coletivas nacionais. Comexceção da experiência portuguesa, nas demais havia re-presentação nacional dos atores sociais contratantes, masa legislação em alguma medida estimulou estes proces-sos (Benites Filho, 1995).41

O objetivo principal a se seguir, no caso brasileiro, éuma transição pactuada entre os atores sociais e o Esta-do, portanto, uma concertação tripartite, estabelecendo asgarantias e objetivos mínimos na transição. O que se apre-senta a seguir são propostas para uma redefinição do pa-pel do Estado no mundo do trabalho no Brasil, num pos-sível processo de transição pactuada que se está sugerindo.Não se trata aqui de esboçar um modelo alternativo, masda efetivação de um modelo de plena liberdade sindical eo estabelecimento das regras do “jogo” no processo demudança. O eixo de um projeto de transição deveria estarbaseado sobre três pontos essenciais: liberdade sindicalplena; governo do processo de transição; e garantias le-gais e estímulos ao processo em si. Como se adiantou, atransição iniciar-se-ia com uma reforma do atual textoconstitucional, à qual se seguiria uma legislação ordiná-

ria que complementaria as mudanças, criando uma novamoldura jurídica à organização sindical.

A meta principal da transição seria a construção de ummodelo de representação sindical assentada também nolocal de trabalho e de plena liberdade sindical. Impõe-se,como ato de mudança principal, a eliminação dos concei-tos da unicidade sindical e categoria profissional estabe-lecidos no inciso II do artigo 8o da Constituição Federal.Impõe-se, ainda, a eliminação da representação classistados sindicatos no Judiciário trabalhista, inscritos nos ar-tigos 111o a 113o do texto constitucional. Por último, masnão menos importante, é a supressão do poder normativoda Justiça do Trabalho previsto no parágrafo 2o do artigo114o da Constituição. Ocorre que o fim do sindicato úni-co retirará a atual adequação jurídico-funcional dos de-mais institutos legais pertinentes ao modelo sindical emsi. Com o fim do sindicato único, poderia se ter mais deum sindicato disputando a representação de um mesmogrupo de trabalhadores. Nesta hipótese, a contratação co-letiva beneficiaria somente os associados? Ou, admitin-do-se a necessidade do estabelecimento da eficácia ergaomnes (eficácia universal), qual sindicato representariaos trabalhadores para a celebração da contratação coleti-va de trabalho?

Nota-se, desta forma, que vencido o primeiro momen-to da transição, impõe-se o início de um segundo período,que é o da construção de um novo marco legal para a re-presentação sindical num ambiente constitucional de li-berdade sindical plena. Este marco legal da representaçãosindical deve, em verdade, ter como foco central mais acontratação coletiva propriamente dita que a organizaçãosindical stricto sensu. Ou seja, o estabelecimento de re-gras mínimas para assegurar a existência da representa-ção unitária dos trabalhadores na empresa e, também, darepresentação sindical no local de trabalho, ambas ampa-radas, evidentemente, pelas garantias legais à atividadesindical. Então, a legislação deste segundo momento datransição é organizar a contratação coletiva de trabalho.

Desde o início, deve-se advertir que não faz nenhumsentido pensar a contratação coletiva com um modelo pri-vatista, no qual o resultado da contratação aplicar-se-iasomente aos trabalhadores inscritos no sindicato contra-tante. Seja por motivos gerenciais evidentes da impossi-bilidade de construção de normas de regulamentação domercado de trabalho aplicáveis somente aos trabalhado-res sindicalizados, seja porque deve a contratação coleti-va ser eleita, pelo modelo legal que irá se adotar, o obje-tivo central da representação sindical, um bem coletivo aser alcançado pelo novo sistema. Na hipótese menciona-da, a lei deverá estabelecer as regras de aferição do sindi-cato, ou sindicatos mais representativos, ao qual se atri-buiria a função contratual.42

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O problema crucial que se coloca para a transição émenos a definição do monopólio, ou oligopólio na hipó-tese de mais de um sindicato, para a contratação coletiva,do que a forma propriamente dita de se transitar do pri-meiro ao segundo momento, sem com isso destruir toda aorganização sindical atualmente existente. O grande de-safio está em se alcançar algum grau de garantia entre oprimeiro e o segundo momentos da transição. O dia se-guinte do fim da unicidade sindical abre um desafio quepode representar a destruição da rede de representaçãoatualmente existente. Aqui é preciso estar alerta de que oobjeto da transição não é a destruição da atual represen-tação sindical, mas sim a criação de um ambiente que pos-sibilite torná-la mais representativa quando rompidos ospilares do corporativismo. A atual representação sindicaltem se renovado, indiscutivelmente, em meio à democra-cia representativa, o que afasta, no caso brasileiro, um tra-tamento semelhante ao que foi aplicado às outras transi-ções de sistemas de representação de interesses. Aengenharia institucional da transição sugerida no projetoem discussão no interior da CUT parte de alguns requisi-tos que devem estar presentes na própria reforma consti-tucional, que seria o primeiro momento da transição.

Além das mudanças anotadas, a reforma constitucio-nal deveria propor a introdução de um novo artigo no Atodas Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).Este artigo seria o elo que levaria à travessia para o se-gundo momento da transição. Deveriam estar ali a garan-tia de registro dos atuais sindicatos e a indivisibilidadedo seu atual patrimônio. Por que isto? Não estaríamos ope-rando a transição do modelo sindical junto com o sistemade representação política mais geral. Os sindicatos cor-porativos brasileiros existem num ambiente de plena li-berdade política. Todas as forças políticas expressivas dasociedade brasileira podem se organizar dentro deles. Asdisputas pelas direções sindicais se fazem num ambientecom razoável possibilidade de alternância de poder. Ade-mais, o atual patrimônio não foi constituído no modelosindical pré-30, mas nos marcos do próprio corporativis-mo. O aspecto principal desta norma-elo seria, entretan-to, a prorrogação sine die do patrimônio jurídico, nego-cial ou não, das atuais categorias profissionais.

As Convenções e Acordos Coletivos, as sentenças nor-mativas seriam todas prorrogadas até que viessem a sersubstituídas por Contratos Coletivos a serem celebradosnum novo sistema. A prorrogação desta rede normativa,que hoje se estende sobre quase a totalidade dos traba-lhadores brasileiros, é, talvez, o único elemento institu-cional que poderia impulsionar a transição do primeiropara o segundo momento da transição, podendo comple-tar-se o ciclo de mudanças que colocaria fim à era Vargasna representação sindical. Ele parte da aposta que o “en-

gessamento” do complexo normativo existente não inte-ressa aos patrões, nem tampouco aos trabalhadores. Istofavoreceria à construção de um segundo consenso na tran-sição, para iniciar-se o segundo momento no qual se atua-ria sobre a legislação ordinária, em particular, sobre anormatização da negociação e contratação coletiva de tra-balho.

Estes são alguns dos pontos considerados essenciaisem uma discussão a respeito da transição do modelo sin-dical corporativo para um modelo que se assentaria naplena liberdade sindical. Tal mudança pede uma revisãodo papel que o Estado exerce nas relações capital-traba-lho no Brasil. O projeto ao qual se fez menção é apenasuma tentativa de encontrar uma porta de saída do modelosindical corporativo que construa um padrão mais ade-quado ao regime democrático e que preserve os direitosdos trabalhadores e suas organizações mais legítimas.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

1. Ver a respeito destes períodos, os estudos dos autores: Gomes (1979); Fausto(1976) e Vianna (1976).

2. Wanderley Guilherme dos Santos (1987) observa: “A tentativa de organizar avida econômica e social do país segundo princípios laissez-fairianos ortodoxosexpande-se, teoricamente, da abolição do trabalho escravo, em 1888, até 1931,quando o então chefe do governo revolucionário, Getúlio Vargas, anuncia, repe-tidamente, a necessidade de significativa intervenção do Estado na vida econô-mica com o propósito de estimular a industrialização e a diferenciação econômi-ca nacional.” A seguir, o autor reconhece que “as relações de trabalho no setoragrícola da economia jamais chegaram a se aproximar das condições de acumu-lação laissez-fairiana clássica. (...) A prevalência ideológica do laissez-faire é,portanto, restrita à área urbana da sociedade, cujas relações econômicas e so-ciais deveriam pautar-se pelos princípios que referem as organizações sociaiseuropéias no período que vai do início da industrialização às primeiras leis deregulação social”. O autor retomará estes argumentos em obra posterior, Razõesda desordem (1993).

3. Houve, inclusive, atividade legal de restrição à atividade sindical. Santos(1987:65), a este respeito, lembra que “entre 1883 e 1927, é possível relacionarpelo menos cinco leis repressivas da atividade político-sindical do operariadourbano, todas visando, sobretudo, à expulsão de trabalhadores estrangeiros pormotivos de militância sindical”.

4. Vários fatores fizeram dos anos 20 uma terra fértil à propagação de idéiasautoritárias. Fausto (1976:58-59) aponta com precisão a existência de um nú-cleo no movimento operário disposto a aceitar um projeto de colaboração de clas-ses e intervenção do Estado. Nos meios intelectuais e jurídicos vinha se confor-mando desde o início do século uma certa inteligentsia autoritária que teve emAlberto Torres, Azevedo Amaral e Oliveira Vianna os seus expoentes. Ver, en-tre outros, a este propósito Medeiros (1978) e Vieira (1981:89).

5. Nos limites deste estudo não se pode, evidentemente, explorar detidamente osaspectos que envolvem a formação das experiências corporativas. Além da crisedo liberalismo, para a qual o corporativismo surge como uma espécie de tertumgennus, já mencionada à exaustão pelos estudos acerca da matéria, é de se men-cionar, ainda, que a esta crise somava-se a crise dos Estados-Nações. Neste sen-tido, ver Lucena (1985:819-865).

6. Para uma compreensão do conceito de corporativismo, ver o estudo deSchimitter (1974). A respeito das categorias conceituais operadas por Schimitter,ver as pioneiras referências em português de Rodrigues (1983) e Costa (1986).Para uma análise do conceito de corporativismo societal versus corporativismoestatal na América Latina, ver Wiarda (1983). Ver, ainda, a respeito do assunto,obra instigante de Freitas Júnior (1989).

7. Em poucos meses de existência, o Ministério do Trabalho produziu diversosdecretos, em vasta atividade legiferante inédita até então. Ver Araújo (1981:52).

8. Ver Freitas Júnior (1989:91-101).

9. O dissídio coletivo é uma modalidade de ação ou procedimento judicial quetem, no entanto, natureza inquisitorial. É a forma legal de controle jurisdicional

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do conflito coletivo entre capital e trabalho que os processualistas corporativis-tas pensaram originalmente na Itália fascista. Dele, dissídio coletivo, costuma-se lembrar que não respeita a produção ampla de prova e outras garantias demo-cráticas afetas ao exercício jurisdicional do Estado, no conjunto de regras que amoderna doutrina processualista chama de due process of law. Esta modalidadede procedimento judicial, é curioso notar, vicejou desde os primeiros dias deforma vigorosa entre nós, enquanto na Itália teve uma aplicação muito restritano período corporativo, sendo totalmente abolida após a derrota militar do regi-me fascista. Vejamos o que dizem, a este respeito, os autores italianos: “Neicorso dei primi dieci anni della sua attività, chi corrispondono poi alli anniruggenti del regime, la Magistratura del lavoro nom pronunciò più di 16 sentenze.La verità è che la sua stessa esistenza ‘si rivelò presto presto sgradita in unoStato in cui ogni parvenza di conflittualità di classe tendeva ad essere mascheratao vietata’ in omaggio all’ideologia corporativa. In effetti, lo stesso ricorso allaMagistratura del lavoro testimoniava nom solo l’inconciabilità per via negozialidei contrasti, ma anche la persistenza di antagonismi sia pure residuali ed insiemel’impotenza degli organismi corporativi: il che nom poteva essere accettato.L’obbligatorietà del ricorso alla Magistratura, pertanto, si rivelò utile più chealtro come giustificazione normativa del divieto penale dell’azione diretta” Ghezzie Romagnoli (1993a). A respeito ainda da intervenção compulsória da Magistra-tura do trabalho nos conflitos coletivos, Treu (1984) observa: “Le sentenze dellaCorte, che di fatto nom furono numerose, avevano lo stesso effetto normativodei contratti collettivi.”

10. Aprofundou-se em outro estudo, Crivelli (1993), a discussão do nosso pa-drão autoritário de contratação coletiva, ocasião na qual o denominamos de modelode contratação restringida.

11. Vasta bibliografia ocupou-se do papel da classe trabalhadora e seus sindica-tos neste período e processo políticos, dentre os quais mencionamos Rodrigues(1968). Indicamos, ainda, dois clássicos para compreender a ambígua relação domovimento sindical com o Estado no Brasil, de Simão (1961) e de Touraine (1961).

12. A propósito da política desenvolvida pela esquerda brasileira no período,Ianni (1971) observou que esta “não formulou nem implantou uma interpreta-ção alternativa que correspondesse às possibilidades histórico-estruturais e nãosucumbisse ao fascínio da ideologia getuliana”.

13. Ver, a respeito da importância das oposições sindicais dos metalúrgicos de SãoPaulo e bancários de São Paulo na formação do novo sindicalismo, Castro (1995).

14. Esta é a opinião de Rodrigues (1997:77): “este encontro (entre o sindicalis-mo de São Bernardo e a Oposição Sindical), realizado num momento de declínioacentuado do regime militar e de ascensão do movimento de massas – cuja ex-pressão maior foram as greves por empresa em 1978 –, defendeu a autonomia eliberdade sindical, incorporando a implementação do contrato coletivo de traba-lho, o direito de greve irrestrito e a ratificação da Convenção 87 da OIT.”

15. Para maiores informações, ver Rodrigues (1997:94) e Rodrigues (1991).

16. Para maiores informações sobre a criação da CUT, entre outros, ver Castro(1995); Rodrigues (1997) e Rodrigues (1983).

17. Ver as Resoluções do 3º Congresso da Central Única dos Trabalhadores (CUT,1994).

18. Ver, ainda, sobre a história da contratação coletiva no setor bancário no pe-ríodo pós-64, Crivelli (1993). Siqueira Neto e Oliveira (1996) vão mais longe,lembrando que o Contrato Coletivo de Trabalho integrava a pauta de reivindica-ções dos sindicatos mais importantes na primeira República.

19. “A implantação do Contrato Coletivo de Trabalho, por exemplo, exigiria aalteração da estrutura sindical corporativa, que se caracteriza pela fragmenta-ção na representação sindical, pela descentralização e pulverização nas nego-ciações coletivas de trabalho e pela atuação sindical assistencial e burocratiza-da” Pochmann (1996:290). Zylberstajn (1997), em recente artigo, advoga a tesede que é possível alterar-se as relações coletivas de trabalho sem uma profundamudança nos alicerces do modelo sindical corporativo.

20. Em 1967, o Decreto-Lei 229 que alterou a redação do artigo 612 da Consolida-ção das Leis do Trabalho conferindo eficácia erga omnes aos instrumentos coleti-vos de trabalho, adota a nomenclatura de Convenção Coletiva de Trabalho que eraa denominação do decreto de 1931. A este respeito, ver Teixeira Júnior (1994).

21. O Ministério do Trabalho pôde, com a realização do Fórum Nacional sobreContrato Coletivo e Relações Coletivas de Trabalho, pesquisar e cruzar as opi-niões dos diversos atores sociais sobre o contrato coletivo e outros temas perti-nentes ao mundo do trabalho. Siqueira Neto (1994:147-181), baseado nestes es-tudos, concluiu pela existência de três visões a respeito do Contrato Coletivo deTrabalho: uma primeira, que vê a proposta como alternativa global ao atual sis-tema de relações de trabalho; uma segunda, como instrumento de desregulamen-tação pela prevalência da contratação coletiva sobre a Constituição Federal e alei; e, finalmente, uma terceira visão, a dos defensores da manutenção do atualmodelo corporativo, que defendem o contrato coletivo como instrumento de agre-gação de novos direitos e institutos jurídicos ao atual sistema.

22. A menção ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, filiado à central For-ça Sindical, objetiva apenas chamar a atenção aos contrastes entre os vários ato-res que defendem hoje a proposta do Contrato Coletivo de Trabalho. No âmbitoda representação da CUT, há dezenas de exemplos a serem citados dentre os

quais os sindicatos de bancários e metalúrgicos são apenas os mais visíveis àopinião pública.

23.Ver excelente quadro evolutivo das propostas legislativas apresentado porSiqueira Neto e Oliveira (1996:314-318).

24. “A radicalização da crise derivada do texto constitucional contribuiu paraque outras centrais sindicais, como a Força Sindical, e algumas associações deempregadores, como o PNBE, se lançassem também à defesa do CCT” SiqueiraNeto e Oliveira (1996:306).

25. Mazzoni (1972:114-132), em obra hoje clássica, destaca com muita precisãoque o Contrato Coletivo é “uma das formas da relação coletiva mas não a úni-ca”. O autor aponta, ainda, a forma, o conteúdo e a eficácia como os três princi-pais elementos integradores do instituto do Contrato Coletivo. Para uma com-preensão do conteúdo jurídico inserto no Contrato Coletivo de Trabalho existen-te no modelo italiano, ver Giugni (1991). Segundo Pera (1991), “si tratta di uncontratto essenzialmente normativo, normalmente stipulato tra organizzazionisindacali contrapposte ed eventualmente dai sindacati dei lavoratori (o anche dallacommissione interna) con la singola impresa”.

26. A contratação coletiva de trabalho nos anos 50 na Itália era centralizada nonível das confederações. Estas correspondem, no modelo italiano, às nossas cen-trais sindicais, porém exercem função contratual. Ver Cella e Treu (1982:165).

27. "Il decentramento è parziale sia per le materie, alquanto circoscritte, che sonodelegate, sia per gli agenti contrattuali competenti a trattare, che sono i sindacatiprovinciali di categoria di entrambe le parti (nom le, ancora inconsistenti, struturesindacali di azienda) (...) Il decentramento dunque è non solo circoscritto mamolto controllato, con due livelli tra loro istituzionalmente raccordati tramite leclausole di rinvio e con garanzia di tregua sindacale nelle pause temporaliintercorrenti tra un accordo e l’altro (clausole di tregua)”. Treu (1984) e Cella eTreu (1982:170).

28. A explosão operária que denominou-se “outono quente” constitui-se umaameaça não só para os industriais como para as lideranças sindicais, sobretudoas vinculadas ao Partido Comunista. Ver Abse (1996:69-70).

29. Dentre as críticas formuladas a este projeto, a que mais empolgou estes seto-res foi formulada por Freitas Júnior (1988:38-44).

30. Ver Crivelli (1993:134-137). Ainda do mesmo autor, Proposta de organiza-ção jurídica da negociação e contratação articulada, paper apresentado no ISeminário da Campanha Salarial de 1991. A observação restringe-se até a cam-panha salarial de 1994, quando ao menos formalmente foi mantido o projetonegocial. A campanha salarial de 1995 apresentou alterações nas minutas de rei-vindicações que representam uma mudança de rumo no projeto negocial do iní-cio dos anos 90.

31. “Outro aspecto fundamental da proposta é a transferência de parte da maté-ria doutrinária do contrato para a esfera do Direito Civil, o que equivale a abrirmão da ‘proteção’ estatal em favor da autonomia das partes para contratar livre-mente” Siqueira Neto (1989:28).

32. Estas considerações a respeito do modelo italiano estão longe de ser conclu-sivas a respeito do assunto. O Código Civil italiano, promulgado pelo rei VittorioEmanuele em 04/04/42, portanto no ocaso do regime fascista, mas vigente até osnossos dias, regulamenta as relações de trabalho em mais de uma centena deartigos (2.060 ao 2.226). Ver a respeito, Schelesinger (1997:303-332). De outrolado, não se deve desconsiderar o fato de que o contrato de trabalho, enquantomodalidade jurídica de regulação privada da relação entre patrões e emprega-dos, derivou dos contratos de locação de serviços, de natureza civilista. Com aevolução do conflito entre capital e trabalho é que impôs-se a necessidade daevolução das modalidades de contratação de natureza civilista para a laboral e,com isto, autonomizar o Direito do Trabalho como ramo científico do Direito.As relações típicas da venda do trabalho assalariado eram, também no Brasil,regulamentadas pelo Código Civil de 1916 quando ainda vigia o nosso modelode abstation of law. Um exemplo do debate que floresceu no Brasil no início doséculo está em Moraes (1986:23-28).

33. Para uma agenda de institutos legais e instituições a serem alteradas no Bra-sil, ver Crivelli (1997:165-203).

34. Observamos a época da edição da MP da desindexação: “Tenta estabele-cer um sistema de mediação administrativa dos conflitos cujo objetivoinconfesso é forçar o curso de futuras mudanças para um modelo sindicalassentado sobre as empresas” (Crivelli, 1996). Ver, sobre os projetos do mi-nistro Paulo Paiva para a sua pasta, entrevista concedida ao jornal O Estadode S.Paulo (24/04/95, p.A4). Sobre as propostas de flexibilização dos con-tratos de trabalho, ver O Estado de S.Paulo (13/02/96, p. B1). Ver, ainda,Crivelli (1995). O projeto de contrato temporário, uma vez aprovado, irámodificar, somado as alterações já efetuadas no artigo 442 da CLT, profun-damente o perfil legal do contrato de trabalho no Brasil com repercussõesainda imprevisíveis na doutrina e jurisprudência.

35. Ver a publicação Fórum nacional sobre contrato coletivo de trabalho e rela-ções de trabalho no Brasil. Brasília, Edição do MTb, 1994.

36. A respeito, ver projeto em discussão no interior da CUT, elaborado por um Gru-po de Trabalho que foi coordenado por Ericson Crivelli, a pedido da Secretaria Ge-ral da CUT, nos meses de março e abril de 1996. A partir das colaborações deste

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grupo interdisciplinar pode-se elaborar o Projeto de Emenda da Constituição e Pro-jeto de Lei de Transição que foram, posteriormente, levados à discussão no Conse-lho Jurídico da CUT e sua Executiva Nacional. Apresentado à última Plenária Na-cional, tornou-se o documento de referência para os debates sobre o assunto no Con-gresso Nacional desta central sindical realizado em agosto de 1997.

37. Ver sobre as condições para um pacto social, Freitas Júnior (1993:151-154).

38. O’Donnel e Schmitter (1988:23) advertem ao apontar as característicasdefinidoras dos processos de transição dos regimes autoritários a indefinição dealgumas regras. Em que pese estarmos tratando do subsistema, vale observar aadvertência: “É característico de uma transição o fato de, durante o tempo de seutranscurso, as regras do jogo político não se verem definidas. Estas regras en-contram-se não apenas em permanente mudança como também sujeitas à árduacontestação: os atores lutam não só para satisfazer seus interesses imediatos e/ou os interesses daqueles a quem se propõem a representar, mas, também, peladefinição de regras e procedimentos cuja configuração determinará prováveisvencedores e perdedores no futuro.”

39. Quanto à transição espanhola, sobretudo quanto aos aspectos jurídicos-constitu-cionais deste processo, ver Ramos (1988:67-81). Ver, ainda, a interessante pesquisacontida na tese de mestrado de Benites Filho (1995:37-81). Especificamente sobre atrajetória política da transição espanhola, ver Maravall (1988:110-159).

40. A respeito da transição política da Itália fascista para a democracia, verPasquino (1988).

41. A propósito da transição italiana, ver Ghezzi e Romagnoli (1993b).Ver, ain-da, Cella e Treu (1982).

42. No projeto da CUT, o sindicato mais representativo seria aquele que tiver aindicação majoritária dos membros das representações unitárias dos trabalhado-res no interior das empresas.

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A

GOVERNAMENTALIZAÇÃO DO ESTADO EDEMOCRACIA MIDIÁTICA

EDSON PASSETTI

Professor do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados emCiências Sociais da PUC-SP

s mudanças anunciadas pelo neoliberalismo, li-quidando com o Estado-providência através dasreduções drásticas na burocracia estatal e res-

tomadas de decisão. A governamentalização do Estado,portanto, passou a prescindir dos sindicatos, da empresaestatal ou mista, e diluiu os trabalhadores nos mais indis-tintos movimentos sociais de preservação de especifici-dades, domesticados alternadamente por partidos, sindi-catos, secretarias de governo e ministérios.

O clássico triângulo intervencionista, formado por em-presários, burocracia estatal e sindicatos, viu-se transfor-mado em um retângulo, formado por empresários e aburocracia privada vis-à-vis com o Estado gover-namentalizado e a burocracia estatal. Não é de estranharque, finalmente, Max Weber tenha se transformado noprincipal teórico capaz de responder aos desesperados ecarentes cientistas frente à nada psicanalisável crise dosparadigmas. Foi o mesmo Weber quem propôs interven-cionismo estatal com democracia e parlamento, defenden-do a continuidade de reformas no Estado e pretendendoencontrar saídas para as emergenciais questões sociais.O seu proposto liberalismo social, tão bem aceito entreacadêmicos e governantes, ajusta-se à economia organi-zada em monopólios, e não deve ser confundido com oneoliberalismo. Enfim, por ambos os lados da equação,entre Thatcher ou Blair, Reagan ou Clinton, Collor ou Car-doso – possíveis emblemas desta divisão entre neolibera-lismo e liberalismo social –, passamos por uma crise queredimensiona os responsáveis governamentais, ancoradosna continuidade da democracia parlamentar, e as novasformas de influência. Seria, então, o neoliberalismo ape-nas uma proposta de restauração, devendo ser entendidocomo parte da crise do intervencionismo? Mais do quederrotar o socialismo, o neoliberalismo seria o atestadode não superação do intervencionismo?

O intervencionismo entendido como forma de organi-zação da economia em monopólios, cujo ápice seria o

tauração da economia de mercado, não foram tão radi-cais. Entretanto, ficou a certeza, mais que momentânea,de que seu grande troféu, o fim do socialismo, parece terido com seus próprios ventos. Tirado o pó da economiamonopolizada e notado o pó que cada vez mais se acu-mula sobre as instituições dos trabalhadores, podemos afir-mar que o neoliberalismo é mais um arranjo em escalaplanetária que uma forma concreta de restauração da eco-nomia de mercado.

O neoliberalismo regozija-se: a grande maioria, nestefinal de século, é democrática. Todos querem ser ou di-zem ser democráticos. Alguns analistas interpretam os re-sultados eleitorais mais recentes – novamente tendo comoreferência a Inglaterra, mas agora com os trabalhistas –como sinal de decadência da expectativa neoliberal decontinuar governando. O neoliberalismo, entretanto, in-dependentemente dos resultados eleitorais imediatos, re-dimensionou o conflito político, excluindo gradativamenteos sindicatos das negociações e deixando quase intocadasas relações entre burocracia estatal e empresários na arti-culação midiática com o parlamento.

Nos dias de hoje, algumas coisas são evidentes. Pri-meiro, é impossível para o neoliberalismo abandonar acontinuidade da administração do que se governamen-talizou no Estado, e isto se deve aos princípios de con-quistas sociais estatizadas para as quais os sindicatos fo-ram fundamentais. As privatizações, por sua vez, nãodeixaram de lado o princípio do protecionismo, masredimensionaram as parcerias, beneficiando os burocra-tas do Estado, juntamente com o empresariado, contribuin-do para a redução de custos e afastando os sindicatos das

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socialismo, estabelece formas de associação para gover-nar que oscilam entre o já aludido triângulo formado porempresários, sindicalistas e burocracia estatal, até o go-verno totalizador da burocracia estatal com ou sem lide-rança carismática. Em todos os casos, sabemos que aburocracia estatal segue sendo invariante enquanto com-ponente da estrutura da sociedade fundada no interven-cionismo, e que o governo depende da transformação dopovo ou do proletariado em massa disciplinada, recruta-da para espetáculos cívicos e participante, como princi-pal legitimadora, do processo que pode ir da democraciaao despotismo. O intervencionismo depende dos indiví-duos organizados em massa para pretender perpetuar-se.Quando em retração, com o fim do socialismo, do welfarestate e a incapacidade de restauração do mercado peloneoliberalismo ele é, também, um processo que leva a umnovo acontecimento, a dissolução da massa, podendoanunciar outras formas de organização da sociedade.

A massa urbana, a grande personagem dos últimos doisséculos, foi sendo pouco a pouco dissolvida nos progra-mas governamentais, com ou sem anuência dos partidospolíticos. Abandonou a praça para se ajustar, através desuas lideranças, aos gabinetes. Passou a comparecer ape-nas quando convocada, desempenhando o que dela espe-ravam os ajustes políticos do momento, numa despedidamelancólica do espetáculo, como foi a apoteose globali-zante e estetizada da queda do socialismo europeu emdesmoronamento do Muro de Berlim. Lá se foi a massacomo símbolo de justiça social. Com o muro, desmoro-naram Lenines e todo o dominó socializante. A massa nãosurpreende mais, pede licença, inexiste.

Foi a incapacidade do socialismo de totalizar-se nasegunda metade do século XX, como pretendia na teo-ria, que deu campo ao ressurgimento de movimentosde revitalização da pequena propriedade, de minoriassociais e de perdas étnicas decorrentes da homogenei-zação realizada pelo Estado moderno. Diferentementeda crise do capitalismo monopolista, na primeira me-tade do século – que para responder à emergência dosocialismo fez crescer fascismos de toda sorte –, osocia-lismo desmoronou, muitas vezes apoiado no pró-prio ocidente, como no caso chinês, ou manteve-se ig-norado, como no caso cubano.

A globalização, neste tempo neoliberal, foi se desven-cilhando daquilo que não gerava produtividade com qua-lidade avaliada porque avalizada pelos especialistas.Gerou crescente desemprego, insuportável à gover-namentalização do Estado, que acabou tendo seus pata-mares congelados, acelerando a convivência de desem-pregados e desabrigados com o banditismo de todas asbandeiras, em que o narcotráfico se destacou como o seumais importante acontecimento produtivo.

A democracia, que até então era de massa, foi se tor-nando midiática, celebrando eletronicamente a continui-dade ritualística do exercício do sufrágio universal comoforma de controle sobre a população em movimento. Seueixo principal passou a ser a rede de cidades transforma-das em metrópoles. O intervencionismo, por sua vez, queoscilava entre o monopolismo e o socialismo, entre de-mocracia e totalitarismo de massa, viu esta mesma massarealinhar-se em segmentos controlados por sondagens queos despejavam ordenados e opinativos na vida política.Será que a revolução técnico-computo-comunicacionalconformará os indivíduos para um destino democráticoautorizado por neoliberais e liberais sociais? Sabemosapenas que esta revolução, simultaneamente, instala einterroga o neoliberalismo, mas não é exclusiva deste e oultrapassa; pode ser democrática ou transmutar seus va-lores; pode reiterar a reação ou condensar ações de supe-rações até atravessar, em definitivo, nietzscheanamente,os derradeiros dualismos.

Nem a democracia é mais a mesma com seus inte-lectuais universalistas e especializados, organizandopartidos políticos de múltiplas procedências sociais eeconômicas, debatendo no parlamento os destinos danação, nem a massa é a mesma, clamando desespera-damente por partidos específicos ou líderes carismáti-cos que lhe garantam direitos sociais compensadoresdas perdas geradas pela economia organizada em mo-nopólio. Não se faz mais direitos sociais como antiga-mente, vieram dizer os conservadores neoliberais, mas,em cada país, permanece a tolerância em patamaresdistintos mas rebaixados de acordo com o grau ante-rior de governamentalização do Estado.

A democracia não é mais parlamento, direitos civis,políticos e sociais. Querendo ser sempre mais, busca aeficácia, com maior integração e consenso. Em nome dagarantia às diferenças, ela aspira à integração total, ajus-tando a todos numa institucionalidade conservadora emque preponderam os dispositivos de segurança. E é assimque ela se apresenta tão eficiente a ponto de ser incorpo-rada tanto pelo discurso socialista, que pretende atuali-zar-se, quanto pelo neoliberal multiculturalista. Ela in-tenciona acomodar os participantes ou desvencilhar-sedeles de acordo com a maior consensualidade em relaçãoà dissolução da massa em grupos organizados e discipli-nados movimentos sociais. A democracia com parlamen-to precisa de todos. Busca saber o que desejam para ofe-recer formas acabadas para canalização de reivindicações.Ela quer atuar prevendo desejos, ofendendo subjetivida-des e oferecendo meios para que se encaixem, organizan-do-os para a maior ou menor possibilidade de atendimento.Para isto, a estatística, o saber do Estado moderno sobrea população, é agilizada em sondagens que proporcionam

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retorno imediato aos governos e os dinamiza. Os meiosde comunicação, entre os quais se destaca a televisão,atuam como malha difusora de valores consensuais e agen-te vigilante de segurança, dentro do processo de elogioao individualismo.

A dissolução das massas anuncia que a autoridade tra-dicional é que tem condições de humanizar a democracia.Pelo direito de chegar a seus deuses, querem Estado parasuas etnias e, portanto, qualquer fundamentalismo passa apleitear-se legítimo e democrático, para que tudo seja pre-servado e relativizado. Como conservadores, só vêem ofuturo reerguendo o passado num tribalismo restaurador.Nos tempos de dissolução do moderno Estado-Nação, juntocom as massas ali territorializadas, as etnias em que sedissolverem certas massas procuram encontrar-se nelecomo tribos especiais, quando não eleitas, de superiores:entre brancos na Bósnia, entre pretos hutus e tutsis, entrereligiosos judeus e muçulmanos, entre raças.

O racismo, tão propagado com o colonialismo, se viutransformado em preconceito no intervencionismo e agora,com o multiculturalismo, mostra-se tão intolerante e vio-lento quanto os outros em seu disfarce relativizador, emseu legalismo e separatismo, buscando com afinco con-tribuir para evitar a inevitável mestiçagem cultural.

Sabe-se que toda mudança gera perdas, que as mudan-ças podem ser propositais ou inevitáveis, e que as des-truições dos últimos dois séculos caracterizaram a preo-cupação com o corpo humano e sua saúde, materializadana biopolítica da população, um processo contínuo degovernamentalização do Estado. E é esta governamen-talização do Estado, por ora traduzida em ampliação, re-dução ou manutenção das políticas sociais, que nos inte-ressará no planeta globalizado, midiatizado e sob direçãoneoliberal.

NEOLIBERALISMO

“A estrela que urrava seu nome perfeito,Neste verão de esplendor,Ficou presa no espelho das telhas.O animal feroz será domesticado!”

René Char

Houve uma incontestável continuidade na passagemda sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Eladiz respeito ao uso da energia econômica da mecânica docorpo e de uma biopolítica da população como gover-namentalização do Estado.

O tempo da dominação, da exploração e da disciplinaexigia a utilização cada vez maior das energias econômi-cas do corpo, em função da contenção das energias polí-ticas. Mesmo assim, o século XIX gestou e fez aparecer

os communards de Paris, em 1871, e preparou a revolu-ção russa de 1917, atribuída pela oficialidade aos bolche-vistas.

As transformações ocorridas durante o século XX emtorno de um desenvolvimento cada vez mais sofisticadoda tecnologia ligando os pontos do planeta através demeios de comunicação velozes e eficazes e procurandomanter o sentido elitista da escrita, mostraram-nos umaclasse operária, no ocidente, cada vez mais próxima deum reformismo bernsteiniano que de um revolucionarismoà russa, como no oriente. De antemão, não seria equivo-cado afirmar terem sido as revoluções de fundo socialis-ta, no oriente, os meios necessários da época para a suaintegração no desenvolvimento urbano industrializante emilitarizado do século XX, que criou guerras até entãoinconcebíveis e coisificadoras do indivíduo em massa e,por isso, passíveis de extermínio.

Os liberais imaginaram-se criadores de um indivíduolivre da multidão confusa, integrado socialmente comopovo. Mas o século XIX os surpreendeu com o surgimentode uma massa urbana exigindo, mais do que direitos, le-gitimidade para suas propostas substitutivas à forma devida corrente. O tempo todo a história mostrava aos libe-rais a impossibilidade de capitalismo sem protecionismo.Era como se ela lhes falasse da inviabilidade do capita-lismo sem intervenção estatal da mesma maneira que osliberais procuravam mostrar que o socialismo só seriapossível em economia fechada, sem vínculos com o exte-rior, como um exercício teórico, tese definitivamente apre-sentada em 1922 por Ludwig von Mises (1938). A histó-ria mostrava que não se voltaria ao liberalismo de origem,do capitalismo de livre-concorrência; e o liberalismomiseano informava que não se iria ao “fim da história”.

Os socialistas viam o XIX como o tempo para suasidéias coletivistas substituindo o egoísmo liberal-bur-guês. Desdobravam-se em anarquistas, marxistas e re-formistas, lidando com maior ou menor amistosidadecom os sindicatos. Os liberais se viam assustados com amassa e imaginavam que uma restauração individualista domercado seria capaz de devolver a conquistada liberdade ju-rídico-política, agora ameaçada pelo revolucionarismo e peloreformismo. Marx abominava desde os primeiros escritos e,principalmente, no antológico Manifesto do Partido Comu-nista, os socialistas que pretendiam fazer do Estado trampo-lim para seu próprio bem-estar, defendendo políticas gover-namentais para os pobres. Também rejeitava a democracia,a nova religião da massa, com a qual Nietzsche, anos maistarde, fez coro. Preferia a ditadura do proletariado, idéiacom a qual Lenin compartilhou, independentemente dossobreavisos de Rosa Luxemburg ou da malquerência deMax Weber. Os reformistas sempre desejaram o Estadopara sua ocupação gradativa, elogiaram a democracia e

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viram nela um meio para a socialização gradativa dosmeios de produção. Sempre estiveram mais próximos deWeber que de Marx, apesar da retórica socialista.

Os liberais tiveram de resistir à história socialistadesde 1917, às idéias anarquistas procurando equacio-nar a tensão individualismo-coletivismo, aos reformis-tas em ação e a tudo aquilo que foi se avolumando, comoo nazismo e o fascismo, e que se podia entender sob oconceito de intervencionismo.

A restauração liberal de uma economia de mercado comdemocracia política foi posta em xeque durante toda pri-meira metade do século XX. Esta restauração confron-tava duas possibilidades: a contestação ordenada demo-craticamente pelo exercício do sufrágio universal e arestauração pelo alto, através de ação intervencionista comsentido inverso. Dividiu a crítica entre liberais e conser-vadores, espelhando a continuidade de Ludwig von Misesem Friedrich Hayek que preferiram apoiar o nazismo e ofascismo, porque postulavam situações temporárias deintervencionismo opostas ao socialismo, mais circunstan-ciais e menos ameaçadoras. Estabelecia-se assim a basepara uma ação autoritária de fundo neoliberal – como aocorrida no Chile desde a ditadura Pinochet – que o neo-liberalismo de Walter Lippmann, de Milton Friedman oude Hayek saúda e que o liberalismo de von Mises repudiana teoria, mas à qual faz vista grossa na história.

Mises pretendia a restauração da economia de merca-do através da democracia política, como reconhecimentopor parte dos cidadãos livres de que o socialismo era umembuste e que o mercado poderia devolver-lhes a buscapela felicidade como escolha racional. Hayek, bem alo-jado em Londres e compartilhando a amizade deKeynes, via a ação estatal como possibilidade de res-tauração do mercado, num lance anti-aristocrático deinversão teórica do suposto keynesiano. Hayek, maistarde, viria a ser o principal mentor do neoliberalismocontemporâneo, deixando de tratar a democracia polí-tica como meio para a restauração do mercado. Suainterpretação do combate ao socialismo pelo fascismoo levaria a encontrar, no âmbito da positividade da pró-pria intervenção, a possibilidade de restauração da de-mocracia econômica pelo autoritarismo como platafor-ma para a democracia política. Da mesma maneira queo tornaria tolerante com intervenções na saúde e naeducação, ajustando-se à continuidade da governa-mentalização do Estado.

A condição de viabilidade interpretativa para o neoli-beralismo está, portanto, na sua transitoriedade frente àcrise intervencionista, que atingiu tanto socialismos quantoo welfare state. Nunca houve outra crise senão a do pró-prio intervencionismo, que se traduz, desde os anos 70,na decadência do sindicalismo em nome da vida livre do

mercado, deixando inalterada, paradoxalmente, a conti-nuidade da relação burocracia estatal-empresários.

O neoliberalismo se mostrou, de início, eficaz ao teracesso ao governo desde Thatcher e Reagan. Isto assustoua esquerda, mas depois, ao deixar o caminho livre para acontinuidade da ação governamental dos socialistas deEstado através do parlamento e políticas sociais, dentroda prática de enaltecimento da democracia, foi cristalizandonos governos as trocas por lideranças mais ou menos con-servadoras, mantendo-se a mesma sinalização democráti-ca ou socialista. Este redimensionamento se fez: pelo acor-do com a China, celebrado por Richard Nixon e queculminou com o esfacelamento da URSS, capitaneado peladupla dinâmica perestroyka/glasnost; pela restauração domercado na América Latina, inicialmente fracassado como golpe de Estado no Brasil, mas revigorando-se com ogolpe chileno e direcionado agora com o Mercosul ou Naftaou Alca ou ...; pelo avanço aloprado dos autoritários ti-gres asiáticos e mostrando que o Japão era mais do queuma ilha formada por indivíduos detalhistas e obcecadospela técnica, mas potência econômica que nunca precisoude democracia a não ser quando midiatizada; pelo surgi-mento da Europa, via Comunidade Européia, que está longedos sonhos liberais de Kant ou dos sonhos anarquistas deProudhon, mas talvez apta a superar o Estado-Nação.

O neoliberalismo é a tentativa de retorno ao merca-do a qualquer custo, o que é antiliberal por excelência.É também a reação ao vai-e-vem planetário, provoca-do pelos acontecimentos dos anos 60, que instabilizouautoridades centralizadas nas universidades, mercados,famílias, partidos, comunicações, sensibilidades, e quegerou o elogio à autoridade centralizada da China – des-mantelada logo após a morte de Mao. É, ainda, a der-rota da maior potência militar do ocidente na úmidaselva asiática e o endurecimento dos socialismos emtodos os cantos, de balalaicas, livros vermelhos e sal-sas. Os jovens de todos os cantos denunciam e preten-dem abandonar o sentido centralizado da autoridade,instabilizando as instituições e fazendo aparecer outroslados da crise intervencionista. E foi esta instabilidadedas instituições que, desde os anos 70, fez a crise dointervencionismo traduzir-se em neoliberalismo, mastambém sinalizou para o surgimento de outras formasde resistência com diversas pretensões fora do lequeapresentado pelo “bom-mocismo” do multicultu-ralismo, com segurança e direitos difusos.

O acordo entre empresários, burocracia estatal e sin-dicatos entrou em crise. Alguém deveria pagar pela res-tauração do mercado e, inevitavelmente, em uma econo-mia baseada no consumo individual no mercado livre, sãoos trabalhadores que têm de encontrar respostas para sairdesta crise.

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O Estado moderno – caracterizado pelo monopóliolegítimo da força física, pela fusão de etnias em nacio-nalidade e língua e pela afirmação progressiva da li-berdade individual, desde o protecionismo mercantil –encontrou lugar para a associação entre empresários eburocracia do Estado. Em qualquer lugar, repleto deespecificidades e especialistas, esta burocracia soubeacomodar sua herança milenar aos ditames da moder-na organização secular do Estado moderno, ao se tor-nar proprietária dos meios materiais de gestão. A du-pla relação de propriedade criou o vínculo estreito entrea burocracia e o empresariado, levando Max Weber acompreender o mundo moderno a partir do espe-lhamento da organização burocrática da empresa noEstado. Um espelhamento meramente formal, posto queda burocracia privada se exige produtividade e da es-tatal, apenas que cumpra procedimentos.

O principal produto da burocracia estatal moderna seráagora rubricado em políticas sociais e de segurança, re-sultante de sua associação econômica com empresários,formando empresas de capital misto que tendem a desa-parecer por meio de privatizações ancoradas em magnífi-cos atos de resguardo monopolístico no campo das con-cessões. O neoliberalismo não assustou a administraçãoda governamentalização do Estado. Apenas recomendouo redimensionamento das políticas sociais, o que vemsendo levado a cabo através das parcerias entre burocra-cia estatal e organizações não governamentais, a maioriadelas financiadas por empresários, e de investimentos emsegurança interna ou no combate ao novo invasor, onarcotraficante, fazendo coro para o ajuste policial-mili-tarista. Entretanto, esta situação é camuflada em solidarie-dade ou defesa dos miseráveis, através de nova estratégiacalcada na justificativa da continuidade irreversível daspolíticas públicas, agora acomodadas sob a rubrica re-forma do Estado. São os folguedos democráticos da oca-sião, patrocinados por esse neoliberalismo tão detestávelna aparência.

Mas, e os trabalhadores, a população-cliente dos pro-gramas sociais do Estado? Parece pouco provável que ain-da se conteste o neoliberalismo como política de restau-ração de mercado, capaz de desmontar as políticassindicais. Então, ou os sindicatos se acomodam comoagentes intermediários de políticas sociais, oferecendocolônias de férias, advogados trabalhistas, dentistas, mé-dicos e quitutes, mediano empresário no setor de servi-ços e um acionista produtivista, ou seu destino é ser des-troçado pelo próprio trabalhador, antes do que possaesperar. Afinal, sua retórica internacionalista o fez desem-penhar com galhardia a representação dos trabalhadoresconfinados dentro dos limites territoriais. Os sindicatosformaram o mais perfeito complemento para o interna-

cionalismo de empresários e burocracia estatal, e se tor-naram parceiros de nacionalismos e protecionismos deburocracias e empresários retrógrados.

Nada se faz impunemente na sociedade disciplinar,explícita e cheia de marcas no corpo. Muito menos quan-do ela se transforma em sociedade de controle, na qual osindicato apareceu como necessário e fundamental suportepara conter as massas, seja renovando suas lideranças, sejaparticipando de acordos, com ou sem greves, em favordos filiados mas em nome da classe trabalhadora ou pro-letária. De qualquer lado, à direita ou à esquerda, o dis-curso político sempre apontou o sindicato como meio paracontinuidades, ora de capitalistas organizados em mono-pólios, ora de socialistas, enfim, continuidades interven-cionistas, exceção feita talvez ao episódico anarco-sindi-calismo, o que só viria a confirmar a regra.

O neoliberalismo sustenta a necessidade de interven-ção do Estado em países onde educação e saúde preci-sem ser sanadas, dentro de um patamar de similitudecom os países com suficiências nestas áreas. Seria umsimulacro? Provavelmente sim, em termos históricos.Mas, enquanto continuidade das reformas do Estado eda estabilidade do corporativismo burocrático, certa-mente não. Desta maneira, quer com o liberalismo so-cial a la Weber ou como neoliberalismo de múltiplasinspirações, quase nada se altera para a burocracia es-tatal e, conseqüentemente, para o empresariado. Asdisputas, quando acontecem no âmbito da gover-namentalização do Estado, dizem respeito ao camporestaurador de perda de influência dos sindicatos ou dasnecessárias reformas do Estado, no qual a associaçãocom organizações não governamentais, cada vez mais,sinaliza a viabilidade da manutenção do conjunto, atin-gindo-se os patamares atuais e congelados dos paísescom atendimento em saúde e educação. Agora, o queune todos os países são as garantias de um corpo-pla-neta, visto como ecopolítica. Nele, não se abandona adisciplina, apenas se a subordina aos dispositivos desegurança. Estamos na sociedade de controle.

O equilíbrio do neoliberalismo em escala planetáriaparece repousar nas condições de continuidade da rela-ção empresariado-burocracia estatal. As resistências, comosabemos, não são espaços institucionais, mas organizam-se em redes pela estratificação social. As resistências, noplural, vistas como diversas possibilidades de associaçãoentre trabalhadores, não prescindirão do relacionamentoprovocado pela midiatização das relações, e poderão darum basta ao intervencionismo para além da expectativaliberal. Se o neoliberalismo não é superação do interven-cionismo, não será a restauração dos sindicatos ou a apo-logia à democracia que organizará os trabalhadores paraa liberdade.

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DEMOCRACIA MIDIÁTICA

“E a sociedade, que tem medo de tudoque é vivo pois é necrofílica, engole tudo hojeporque tudo expresso no antigo suporteestá irremediavelmente morto.”

Lygia Clark

Seria a democracia midiática a forma neoliberal deorganização da política? Responder afirmativamente a estaquestão seria considerar o neoliberalismo como uma for-ma acabada de realização histórica, diretamente respon-sável pela superação do socialismo. Então, a democraciamidiática poderia ser entendida como forma presente doconservadorismo? Pode-se adiantar que, historicamente,ela precede a atual forma neoliberal e a sucede como pos-sibilidade emergencial para um novo cidadão contestador.

David Thoreau no seu Desobediência Civil, original-mente publicado em 1849, como Resistência ao GovernoCivil, fazia questão de separar o cidadão do súdito. O sú-dito era entendido como componente da massa, o indiví-duo que abdicou de sua cidadania, do dever de questio-nar o governo, o que se transformou em máquina, feitopara obedecer. O autor manifestava sua recusa à lealdadeincontestável ao Estado, da mesma maneira que os liber-tários mutualistas, os comunistas, os coletivistas e algunsindividualistas no século XIX. Pretendiam afirmar, comoProudhon o fizera, que o indivíduo deveria ceder cada vezmenos ao Estado, sendo cidadão e recusando a condiçãode súdito.

Este discurso político – que propugna liberdade demovimentação dos indivíduos para além das terri-torialidades nacionais, a suposta legitimidade do sobera-no para usar a força e a continuidade das guerras propi-ciadas pelos tratados de paz – apresentava aos indivíduosnovas situações institucionais para a ultrapassagem dotempo da propriedade privada. Como bons cidadãos, nodizer de Thoreau, estariam cada vez mais distanciados danecessidade parlamentar de democracia que, neste caso,seria apenas um meio para a superação da condição desúditos e a reafirmação da condição de cidadão em buscado autogoverno.

Veio o século XX e com ele a revolução russa, nosmoldes marxistas, adaptada pelo talento de Lenin, que fezsurgir em pleno país do retrocesso econômico e políticoa primeira revolução socialista com expectativa de conti-nuidade. Para quê democracia? Um conceito vazio deconteúdo frente à realização histórica da ditadura do pro-letariado através do partido, capaz de superar o reformis-mo da antiga social-democracia e suas “baboseiras” so-bre reforma do Estado. Sem reformas não existe Estadoe, muito menos, a alegada impessoalidade no recrutamento

burocrático e a meritocracia. Sem a ilusão da constantereforma para melhor atender aos interesses dos cidadãos,inexiste democracia parlamentar, inexiste igualdade.

O século XIX nos legou três importantes imagens, cria-das a partir da Revolução Francesa, que atingiram a re-volução russa e, das quais, pelo menos duas chegaram aosnossos dias. Para Pierre Ansart (1987), a imagem do cor-po social como unidade necessária, expressa por DeBonald e depois por Comte, traduzia a nostalgia monar-quista da condução dos cidadãos pelo comandante. ComAlexis Tocqueville, a imagem do indivíduo cidadão as-sumiu a superação da conservação monárquica pela di-nâmica gerada pela mobilidade. Finalmente, com Marx,que levou ao limite a idéia de exploração do trabalho lan-çada pelos saintsimonianos e desenvolvida por Proudhon,firmou-se a imagem do vampiro de classe. Durante todoo século XX, essas duas imagens nos rondam: a do indi-víduo-cidadão e a do vampiro explorador. A primeira éotimista, por evocar sua realização em todas as nações, eprudente, mas, mesmo assim, de difícil confirmação, ape-sar de perfeitamente assimilável ao neoliberalismo. A outraanuncia a união e a insurreição emancipatória, que se rea-liza via a modernização do messianismo e é dramática ebreve como os socialismos.

No século XX, a continuidade das imagens políticasherdadas do século anterior conviveu com a multiplica-ção dos recursos técnicos e com a arte abstrata revelandotoda a sua força. Entretanto, em substituição à kandinskiananecessidade interior do indivíduo em busca de sua auto-realização anulando ou reduzindo a figura, predomina napolítica a vontade de representação do mundo exterior, coma diversificação e a proliferação das imagens que alimen-tarão a cultura de massa no capitalismo ou no socialismo.Abstração e imagem, segundo George Balandier (1987),caracterizam a modernidade no nosso século, porém, ofigurativismo preponderou na formação da exterioridadepolítica do indivíduo do século XX, muitas vezes recor-rendo ao abstracionismo através da computação gráfica edas múltiplas edições de imagens em busca do efeito es-perado para surpreender audiências. O desprezo da políti-ca pela subjetividade faz parte tanto da concepção para-disíaca do socialismo quanto da escolha racional nomercado. Não há mais lugar para o político tradicional,como não há mais lugar para o indivíduo na massa. A po-lítica universalista é um simulacro.

Estamos, pois, no campo das imagens políticas do in-divíduo cidadão e do vampiro explorador, traduzidas paraa massa através de figurações pelos diversificados meiosde comunicação, num constante tecnomessianismo. Ansart(1993) caracterizou a teatralização do poder universalizadapela midiatização generalizada como conservadora, nãopor repetir emoções e reações como a autoridade tradicio-

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nal, mas por fazê-lo de modo rápido e renovado. É o tem-po da audiência como paródia do funcionamento demo-crático, da retórica das imagens, afirma Balandier (1993),do político como vedette. É a consolidação da televisãocomo o panóptico invertido, com o que concorda CarloFreccero (1994), salientando que o poder da maioria,pelo avesso do que imaginava a democracia de públi-co, passa a ser real através das sondagens e das or-ganizações corporativas em busca da paradisíacaconsensualidade. São imagens políticas agilizadas porfiguras eletrônicas.

É como se o Estado educador do século XIX, tão bemdescrito por Regis Debray (1994, 1996), com suas per-feitas imagens políticas, tivesse lançado as bases deste Es-tado sedutor que ultrapassa a persuasão como forma deobtenção do consenso, assim como a lei universalizante emoralizadora e a repressão física legítima como mecanis-mos de controle, avançando em direção à abertura para ajurisprudência, o singular e o ético como valores absolu-tos. É a democracia sem povo, com o anchorman no lu-gar do político. É o Estado baseado na comunicação, omito da direita, conservador, um telestado onde o produ-to a ser vendido é o governo girando em círculos pelastelerrealidades.

Antes de ser um locus alienante, ou solitário, o espaçosideral é o lugar para onde foram deslocadas a comunica-ção e as descobertas que superam as superfícies; e quenos oferece alternativas para o individualismo liberal ouo socialismo autoritário. Instala-se o que se pode chamarde cidadão midiático, o criador dentro da “multidão in-quieta”, como espera Noam Chomsky (1996), o que ab-dica do líder para buscar suas possíveis saídas, o que dei-xa de se ver súdito.

São os sujeitos que emergem da transformação da socie-dade disciplinar em sociedade de controle, na qual não estámais em jogo a extração das energias econômicas do corpoem detrimento das políticas. Procura-se, nesta sociedade,ocupar corpo e mente ao mesmo tempo e por mais tempo,oferecendo segurança pessoal e eletrônica. Instala-se, destafeita, a trava na relação Estado-mercado: não se pretendeminar as energias políticas do corpo, mas mostrar que a po-lítica no Estado é democrática e segura. Não há por que sepreocupar com política: ela é o bem que garante a segurançaao indivíduo e a produtividade com eficiência deste traba-lhador disciplinado e controlado. O mundo dos sujeitos su-jeitados permanece inalterado.

As mudanças após a Segunda Guerra, dividindo for-malmente o planeta em socialistas e capitalistas, não dei-xou de substituir gradativamente as concentrações demassa nas ruas e praças pelo educado uso da mídia ele-trônica, cujo destaque principal ficou com a televisão.Agora não é mais necessário o carisma, porque uma su-

cessão de imagens encadeadas, editadas com rigor e pre-cisão, acompanhadas ou não de texto, dramatizadas e comtrilha sonora, apresentam o novo eterno senhor do caste-lo. Ela ensina como votar, o que dizer aos adversários, omodo de se comportar, a ética, o estilo de vida e a ves-timenta, valorizando, aqui ou ali, mais ou menos, os itenssociais. Vota-se em todos os cantos, até onde o voto nãoserve para nada. Todos devem se sentir livres, como se aliberdade de votar não passasse de um adjunto adnominalna eloqüente frase do discurso do candidato e de seu par-tido. Todos devem se sentir como se houvesse a integra-ção sociedade civil-Estado, ou melhor, o predomínio dasociedade civil.

O Iskra e o Livro Vermelho, assim como os gigantes-cos outdoors de elogio ao heroísmo revolucionário, mui-to pouco se diferenciam dos anúncios de mercadoriascapitalistas: imagens políticas e de mercadorias tecnoló-gicas direcionadas para o consumidor. Da mesma manei-ra, ambas se assemelham às imagens de Leni Riefensthalpara o III Reich. Democratas, nacionalistas e socialistasde todo mundo uniram-se na produção de imagens para amassa, em nome da felicidade, da satisfação da necessi-dade e da maravilha racial e nacional.

As imagens políticas do vampiro e do indivíduo cidadãosão erotizadas, as minorias elogiadas, a maioria incensada,o ritual redimensionado, a democracia midiatizada. Sem amídia e os midiocratas deixam de ter sentido a política, aeconomia e as contestações. Importa estar “no ar”. Importaestar dentro da rede, como cidadão de telerrealidades, numapoliarquia gerida pelos midiocratas. A palavra de ordem é asenha para que o indivíduo, o associado, o grupo, a corpora-ção, o partido ou o movimento existam. Sem ter a senha,exigida até para se saber o irrisório salário, o acesso à vidase torna quase impossível.

Estamos no tempo da democracia midiática, em que osujeito sujeitado é ocupado, cooptado e fechado em cir-cuitos eletrônicos com medo e sozinho. Isso representa atransformação do humanismo em humanitarismo, reve-lado circunstancialmente pela telerrealidade como sinto-ma de humanidade.

Não estamos tão solitários assim... A indústria deixoua superfície para se tornar sideral, na mesma intensidadeque as comunicações no planeta se tornaram mais próxi-mas e instantâneas, criando possibilidades para que, den-tro da metrópole, com seu cosmopolitismo, aparecessemnovas formas de resistências.

Carlos Bethancourt (1996), profundamente influen-ciado pela obra Carne e Pedra, de Richard Sennett, quersaber o que acontece com a cultura cívica em um novoespaço público, onde estão presentes novas possibili-dades abertas pela técnica. Ela se transformaria em com-paixão cívica?

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Estamos entrando no campo proposto por GillesDeleuze (1994), de transferência das resistências paradentro da eletrônica. É a resposta ao multiculturalismo,que preconiza a vida em uma one earth. É a circulação deimagens da Terra toda, da Terra azulada de Gagarin ago-ra vista a qualquer hora, via satélite ou filme no telejornal.É a visão do solo de Marte. Se todos os mitos informamas culturas sobre o que lhe é estranho (o que vem do mar,para os indígenas da costa brasileira, tem por correlato oespaço sideral para o apocalipse bíblico), estamos frenteà dessacralização do espaço mitológico, com o redimen-sionamento dos mistérios em torno do acesso às informa-ções desterritorializantes.

É simultaneamente comércio eletrônico, correio ele-trônico, sabotagem eletrônica. Uma nova cultura cívicapode se instituir através das contingências, num espaçopropício para se discutir insuficiências, insatisfações eincompletudes, inclusive corporais. Como afirma Bethan-court, não estamos num espaço de despolitização, mas,ao contrário, nos encontramos diante da possibilidade deinvadir o “hyperespaço” e de nos dirigirmos para a cons-trução da revelação dos novos sujeitos planetários. Mas,como lembra Morin (1997), não se chega lá sem hiper-poesia,1 na resposta ao hipertexto e na superação do vín-culo econômico-técnico-burocrático. É uma auto-ética,para si e para os outros, que recusa as idéias de punição evingança, situando-se no centro da sabedoria. Torna pos-sível reabrir interiores no espaço eletrônico, uma rea-proximação à procedência kandinskiana, levando-nos aencontrar a política agora liberta da determinação impos-ta pela exterioridade, e ao incomensurável elogio à racio-nalidade, instituindo amistosamente outras sociabilidadesdescentralizadoras.

O cidadão midiático deixa de ser súdito de telerrea-lidades para ser sujeito de um novo percurso, livre dos uni-formes e das identificações policiais, para agir nesta de-mocracia direta, instituída pelas linhas da informáticacolocando obstáculos à segurança pelo livre direito de cadaum. Ele já não precisa de um líder para ter seus desejossupostamente realizados, nem das vanguardas, das elites,dos midiocratas, de seu templo e da televisão.

Mas a democracia midiática precisa de parlamentoscomo representação de representantes, como imagináriocentro de decisões, quando supostamente é reinstalado oprincípio de mercado, nem sempre livre, nem sempre re-gulado, redimensionado pela associação burocracia esta-tal-empresários. Aos demais, a condenação socialista, oexpurgo sindicalista, o humanitarismo multiculturalista,as efemérides religiosas ou as esperanças ambientais, desaúde, num corre-corre em direção ao planeta de todos.

Simulacros e solidões convivem com hackers, piratas,criadores e instaladores de vírus, surpreendendo em rede

os usuários em ação enquanto que os controladores rea-gem. Fica estabelecido um novo espaço para confrontos,onde não há condolências burocráticas aos chamados ex-cluídos, nem uma suposta imperativa razão de mercadopor sobre os trabalhadores. A democracia midiática, noneoliberalismo, cria, ao mesmo tempo, o súdito envoltonas telerrealidades humanistas e de justiça social e desti-natário das políticas para excluídos; e, os cidadãos, emrede de resistências, desvencilhados das venturas parla-mentares.

Neoliberalismo é, por isso e por quase tudo, a formada crise intervencionista no final do século XX, na socie-dade de controle midiatizada, na qual imagens políticasse fazem e refazem com velocidade para que os súditossejam mantidos.2 Controla, ajusta e molda princípios dis-ciplinares sobre o mundo da senha, redimensionando oindivíduo na diluição da massa, no atendimento virtualde seus desejos, na encenação democrática.

A NOVA FILANTROPIA

“Entre os mortais observam-se coisas estranhas.A lei suprema da justiça nos impõenecessidades novas e surpreendentes,transformando em amigos inimigos durose em hostilidade antigas amizades!”

Eurípedes

Final do século. O neoliberalismo pretende ser conti-nuidade e resposta ao “fim da história”, anunciado pelossocialistas autoritários. Não haverá mais lugar para o so-cialismo? A segurança, norteando o controle e a discipli-na, redimensionou a democracia e a governamentalizaçãodo Estado. É o processo de diluição da massa, de fim doEstado-nação e de instauração de uma democracia mi-diática, a forma preferencial do neoliberalismo?

Foucault (1979) chamava a atenção, por razões analí-ticas e não teóricas, para a importância da governa-mentalização do Estado frente à idéia de estatização dasociedade. Entendia, de maneira eqüidistante, tanto o amorcomo o ódio pelo Estado, que fascinava os estudos e de-bates da época. Como assinalou em Omnes et Singulatim,a questão não se encontra na oposição entre individualis-mo e coletivismo – que alimentou o confronto entre libe-rais e socialistas, mas que permaneceu obscurecida nodebate com o neoliberalismo. É da tensão entre individua-lismo e coletivismo que a noção de governamentalizaçãodo Estado vem se ocupar, ou seja, de como as técnicas degoverno se tornaram as questões políticas fundamentais.3

A massa está presente como principal agente de técnicasde governo e foi sobre elas que se atuou, tendo em vista amanutenção de certa margem de segurança para o próprio

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governo, gerando um ciclo de formação de uma mentalida-de que governa como governo justo e garantidor do acessoda pessoa na massa à condição de indivíduo.

O Estado, através das técnicas de governo, passou aser o principal agente da vida em sociedade. Passamos aconviver com um discurso intervencionista (liberal sociale socialista) em confronto com outro anti-intervencionis-ta (liberal e neoliberal), rivalizando-se ambos como es-tratégias de poder e resistências dentro de uma poliva-lência dos discursos como a apontada por Michel Foucault(1977). A noção de governamentalização do Estado atra-vessa estes discursos que colocaram a massa, quer sob adireção da elite quer da vanguarda, como o restante a sersalvo quando tomada e dirigida pela consciência de povoou de proletariado, para encontrá-la numa historicidadepresente na qual estas massas se fragmentam e, por rubri-cas distintas, seguramente se dirigem para o Estado mo-derno ou pleiteiam o estatuto de Estado moderno.

A governamentalização do Estado na sociedade decontrole acabou articulando a oficialidade das decisõespolíticas com o oficialismo das organizações não gover-namentais, instituindo um padrão, tanto neoliberal comoliberal social, que chamaremos de nova filantropia.

A nova filantropia expressa uma associação entre par-tes integrantes, Estado e sociedade civil, entre direitossociais e obediência confessional, articulando justiça,administração e governamentalização numa sociedade delei, regulamento, disciplina e dispositivos de segurançavoltados a uma população organizada em fragmentos einstrumentalizada pelo saber político.

Richard Sennet (1997) é quem mais se aproxima de umadescrição desta nova filantropia ao falar de compaixãocívica, a forma liberal social de anunciar o fracasso inevi-tável do welfare state. Ele entende a compaixão cívicacomo estímulo produzido por nossas carências e não por“boa vontade ou retidão política”, fruto do desvio doshomens da compreensão religiosa. A seu modo, e queren-do ser universalista, ele se posiciona atrás da teologia dalibertação ou pretende, tardiamente, redimensioná-la paraos tempos atuais.4 É o autor que mais bem expressa a novafilantropia, essa necessidade premente de se recuperar certaindividualidade, para a qual a religião acaba por se mos-trar, noutro refazer da autoridade tradicional, como o meiomais eficaz de exercício da caridade, pretendendo restau-rar certa dignidade à cidadania, subjetividade ao indiví-duo e esperanças aos excluídos, que anteriormente eramchamados oprimidos, dominados ou pobres.

A compaixão cívica apresenta-se como complementoà situação gerada pelo neoliberalismo e pela democraciamidiática: ela é reconhecimento da impossibilidade daretidão política no âmbito de uma ética da responsabili-dade, como alertava Max Weber, ao mesmo tempo que

afirma a combinação necessária entre Estado e indivíduosnestes tempos de superação do Estado providência. Masacima de tudo, com ou sem reformas do Estado, ela é si-nal do desespero frente à incapacidade do Estado de aten-der a miséria. Na primeira metade do século XIX, a fi-lantropia foi o exercício piedoso de uma burguesiaenriquecida para com os desvalidos. Agora, associada àburocracia estatal e financiando organizações não gover-namentais, funda uma nova filantropia com base na com-paixão, não mais religiosa, mas cívica, esquadrinhandoessa massa a ser assistida e superando a fase em que seesperava soluções do Estado como meio (welfare statede cidadãos pleiteando direitos sociais) ou fim (socialis-mo como justiça social).

A vida agora está redimensionada num estado de se-gurança que se afirma pela autoridade tradicional. Para-doxalmente, é através do reencantamento proporcionadopelos meios de comunicação que se qualifica o cidadãomidiático como aquele que é orientado pelos diversos ato-res, principalmente através da televisão, quando não pelaInternet. Por fora ou por dentro da mídia, a autoridadetradicional baliza a sociedade de controle. É compaixãocívica, mas é também humanitarismo como retradução dohumanismo. Se diz seguradora do cidadão, mas protegeo súdito obediente.

Entretanto, este cidadão midiático é também a realiza-ção de sujeitos integrados e distanciados destes meios decomunicação, menos como súditos e mais como cidadãospropriamente ditos. Estão fora desta nova filantropia, porescolha; não são os excluídos procurando quem os inte-gre, função principal deste discurso filantropista que man-tém, desta feita, com segurança acadêmica e compaixão,as idas pelo neoliberalismo, as voltas pelo liberalismosocial, o reacionarismo de um socialismo nostálgico e aredenção dos sindicalistas, todos eles com mirabolantespropostas para reformas do Estado. O discurso filantropistaliberal se ajusta, no devido tempo, ao neoliberal e às pro-postas sociais liberais.

O discurso neofilantropista externa a associação con-tínua entre burocracia estatal e empresários, realizada pelovínculo entre organizações governamentais e não-gover-namentais. Informa que a biopolítica da população estácedendo lugar a uma ecopolítica do planeta, este o novocorpo a ser restaurado depois da quase destruição provo-cada pelo progresso: pretende-se curar o corpo vitimadopelos efeitos da industrialização através das metodologiasde guerra e combate e se quer saber para fora de seu pró-prio contorno, buscando etéreos vínculos com outros pla-netas no sistema solar.

Dentro da estrela azulada tudo se movimenta, porqueo movimento é inevitável como são as mudanças; talvez,por medo, se invista tanto em segurança, se quer tanto

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segurança, se é tão conservador flanando dentro do mes-mo discurso político, como se se estivesse em busca deum outro, do novo. São agentes de segurança, policiais,câmeras escondidas nas prisões, nos hospitais, nas entra-das de edifícios, cartões eletrônicos, satélites de vigia,escutas, querendo dizer que estamos sendo protegidos poroutras diversidades que as políticas sociais.

As políticas de segurança subordinaram as políticassociais em nome de uma contenção eletrônica da guerrainterna na superfície, no Estado, na fábrica, nos escritó-rios, nas universidades, nos parques e nos banheiros, numtempo de divulgação da crescente pacificação dos gran-des confrontos bélicos no exterior, que descansam em so-lenes tratados. O neoliberalismo é também a atualizaçãodo panóptico de Jeremy Benthan: ele se tornou eletrôni-co, nos vigia e nos educa, nos mete medo e nos faz demo-cráticos, prisioneiros filantropos. “Alguém devia ter con-tado mentiras a respeito de Joseph K., pois, não tendo feitonada de condenável, uma bela manhã foi preso” (FranzKafka, abertura de O processo). E/ou: “Quando certa ma-nhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encon-trou-se em sua cama metamorfoseado num inseto mons-truoso” (Franz Kafka, abertura de A metamorfose).

Cada vez sabemos mais que há menos dualidades en-tre o céu e a terra, dois azuis no mesmo azul; que inexistecrise de paradigmas, mas apenas um acerto tradicionalentre eles. Isso é bom e mau; um bem e um mal.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

1. A compreensão, em sentido amplo, é remetida à concepção foucaultiana deestética da existência. Gilles Deleuze mostra a atualidade da filosofia de Nietzsche.“Nietzsche integra na filosofia dois meios de expressão, o aforismo e o poema.Estas mesmas formas implicam uma nova concepção da filosofia, uma novaimagem do pensador e do pensamento. Ao ideal de conhecimento, à descobertado verdadeiro, Nietzsche substitui a interpretação e a avaliação. Uma fixa o‘sentido’, sempre parcial e fragmentário, de um fenômeno; a outra determina o‘valor’ hierárquico dos sentidos e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem su-primir a sua pluralidade. O aforismo, precisamente, é ao mesmo tempo a arte deinterpretar a coisa e a coisa a se interpretar; o poema é ao mesmo tempo a arte deavaliar e a coisa a avaliar. O intérprete é o fisiólogo ou o médico, aquele que

considera e cria ‘expectativas’, que fala pelo poema. O filósofo do futuro é artis-ta e médico – numa palavra, legislador” (Deleuze, 1985:17).

2. A respeito do neoliberalismo, democracia e comunicação, na perspectivafoucaultiana, ver especialmente Barry, Osborne e Rose (1996).

3. De acordo com Foucault, podemos reconstruir as grandes economias no oci-dente compreendendo “o Estado de justiça, nascido em uma territorialidade detipo feudal e que corresponderia, grosso modo, a uma sociedade da lei; em se-gundo lugar, o Estado administrativo, nascido em uma territorialidade de tipofronteiriço nos séculos XV-XVI e que corresponderia a uma sociedade de regu-lamento e disciplina; finalmente, um Estado de governo que não é mais essen-cialmente definido por sua territorialidade, mas pela massa da população, comseu volume, sua densidade, e em que o território que ele a ocupa é apenas umcomponente. Este Estado de governo que tem essencialmente como alvo a popu-lação e utiliza a instrumentalização do saber econômico, corresponde a uma so-ciedade controlada pelos dispositivos de segurança” (Foucault, 1979:293).

4. “Entre os filósofos, esta exageração da piedade é, efetivamente, coisa nova;até o dia de hoje estiveram de acordo os filósofos no valor negativo da piedade.Basta citar os nomes de Platão, Espinoza, la Rochefoucauld e Kant, estes quatroespíritos tão dissemelhantes, mas conformes num ponto: no desprezo da pieda-de” (Nietzsche, 1992).

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O ‘SOCIAL’ NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC

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O ‘SOCIAL’NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC

pragmática, na Secretaria de Política Econômica, no Pla-nejamento, na Casa Civil e, last but not least, no Ministé-rio da Reforma do Estado.

O terceiro núcleo de poder econômico e capacidadede formulação poderia ser descrito como carioca. Malane principalmente Gustavo Franco são os defensores da es-tabilidade, conquistada depois de um laboratório socialde tentativa e erro conduzido durante quase uma década(1986-1994) pelos cientistas oriundos da PUC-RJ.

O fato é que a mágica desindexante dos cariocas final-mente deu certo quando o país pôde contar com uma con-juntura de abundância no mercado financeiro internacio-nal. Diga-se de passagem que, já em 1993, os fluxos decapitais para o Brasil davam um salto mesmo sem ter opaís domado o dragão inflacionário. Era, mais uma vez, ofenômeno da liquidez excessiva que, como nos anos 70,tem horror ao vácuo e ocupa até mesmo os espaços “emer-gentes”.

Diplomatas sociais-liberais, paulistas e cariocas com-partilham assim o centro decisório da vida nacional. É atra-vés da articulação entre esses grupos que parecem surgir,ao menos entre as elites, as possibilidades e os limites deformulação e execução de políticas sociais no país.

ECONOMIA PAULISTA

O processo de transição de uma economia inflacioná-ria com baixo investimento para uma economia estabili-zada com altas taxas de investimento é, na teoria e na prá-tica, talvez até mais difícil que a eliminação da inflação eda indexação em si mesmas.

Boa parte da teoria econômica desenvolvida na épocados “grandes economistas clássicos” (a era da EconomiaPolítica) ocupava-se do “exame de padrões de mudança

GILSON SCHWARTZ

Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Articulista e Editorialista da Folha de S.Paulo.Autor do livro Decifre a economia, entre outros

“Há um certo equívoco compartilhado por Kant e Weber.A certa altura eles tendem a superestimar a

consistência e a lucidez humana (...)As sociedades modernas não são sistemáticas e

consistentemente secularizadas;crenças luxuriantes, auto-indulgentes, da moda ou

extáticas estão presentes em mil formas,novas, velhas ou retrôs.”

Ernest Gellner (1974)

á um núcleo de inteligência em torno da presi-dência da República no Brasil que, há algumasdécadas, freqüenta os salões da corte federal. So-H

bretudo a partir dos anos da transição democrática, essenúcleo de elaboração e execução de políticas de Estadoficou ainda mais próximo da presidência. Originário dageração San Tiago Dantas no Itamaraty e tendo em JoséGuilherme Merquior uma de suas vertentes, esse grupoconstitui uma geração que resistiu às tentações tanto domarxismo quanto do liberalismo estrito. Diplomatas prag-máticos, talvez.

Merquior formulou uma versão tupiniquim de social-liberalismo, uma amarração meio social-democrata, meioliberal, que pelo menos desde o final dos anos 80premonitoriamente casava no mundo das idéias a aliançapolítico-partidária que consagraria Fernando Henrique Car-doso na presidência.

É conhecida a aproximação entre Collor e FHC, bemcomo, para quem tem os olhos suficientemente desem-baçados, a continuidade entre algumas das suas políticasde governo. Uma diferença, entretanto, sobretudo na áreaeconômica, vem de São Paulo. No governo FHC, paulis-tas comandam o BNDES e agem, igualmente de forma

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econômica de longo prazo” (Nelson e Winter, 1982). Nateoria neoclássica que veio depois, o foco concentrou-secada vez mais na empresa competitiva produzindo emcondições de tecnologia oferecidas.

Na teoria do desenvolvimento econômico, que se for-mulou depois, respeitando os limites metodológicos im-postos pela hipótese de parâmetros tecnológicos dados,criou-se imagens de take off e big push. Como ensinaMário Henrique Simonsen, entretanto, esses modeloscontinham “boa dose de fantasia”: “o grande impulso(big push) parecia um exercício de desenvolvimentocom oferta ilimitada de capital, precisamente o fatorescasso nos países subdesenvolvidos”(Simonsen eCysne, 1989).

A suposição de um parâmetro tecnológico e o examedo processo de crescimento como uma questão de dispo-nibilidade de recursos ou dotação de fatores constituem aessência da visão neoclássica de desenvolvimento. Trata-se de uma visão estática.

Todo modelo dinâmico, entretanto, remete à questãodo “motor” do dinamismo ou, em última análise, do sujei-to histórico capaz de liderar um processo de inovações eco-nômicas, institucionais e políticas. Na economia políticado desenvolvimento, pode ser necessário abandonar oaparato conceitual estático que, em última análise, funda-menta a macroeconomia da estabilização.

O “grupo paulista” vem portanto implementando me-didas de estímulo à retomada do desenvolvimento, políti-cas industriais e comerciais, além de reformas financeirascapazes de resgatar a capacidade de liderança do Estadona condução do desenvolvimento econômico. Trata-se,portanto, de uma reforma econômica do Estado, em queprivatização não equivale necessariamente à perda de so-berania e passividade estatal na sinalização e gerenciamen-to da retomada dos investimentos.

Nesse processo, os paulistas contam com o apoio prag-mático dos diplomatas sociais-liberais, que recuaram noprojeto de abertura da economia e deram continuidade àvocação estratégica continental do Brasil.

De certa forma, a política econômica do governo FHCaposta também num processo de substituição de importa-ções. Porém, enquanto no caso clássico a substituição deimportações ocorria por imposição de um estrangulamen-to externo, em que o capital nacional expandia a capaci-dade produtiva para contornar a ausência de investimentoexterno, no caso atual o governo acredita que o própriocapital estrangeiro, através de um novo ciclo de investi-mentos diretos, vai ampliar a produção local e substituirimportações.

Um processo de substituição de importações, com apoiofinanceiro, tarifário e fiscal do Estado (inclusive de go-vernos estaduais), mas amparado sobretudo na entrada de

capital estrangeiro, é o núcleo do modelo de desenvolvi-mento que aos poucos se esboça no período posterior àestabilização.

Para os formuladores do atual governo, essa substitui-ção de importações será capaz, a médio e longo prazos, dereverter os déficits na balança comercial, assegurando umatrajetória sustentável de financiamento do balanço de pa-gamentos.

Aquilo que para Simonsen era, por definição, a escassezfundamental do país subdesenvolvido, a escassez de capi-tal, torna-se a solução “ab ovo” do problema, no modelo atual.

O problema que continua em aberto, entretanto, é o datecnologia. A mudança tecnológica dos últimos 20 anosfoi tão dramática que os modelos tradicionais, tantoneoclássicos quanto clássicos ou de substituição de im-portações, tornam-se insuficientes.

Por ser tecnologicamente mais avançado, o investimentodireto da nova geração tem um conteúdo de importaçõesmaior, por definição (e mesmo de fluxos futuros deroyalties por patentes e propriedade intelectual).

Além disso, nos grandes grupos mundiais, criou-se umaestrutura produtiva globalizada em que o balanço de pa-gamentos do grupo multinacional não será, necessariamen-te, consistente com o de cada país hospedeiro de parte doseu ciclo produtivo.

O investimento estrangeiro na era da globalização refor-ça a conhecida estatística que mostra a predominância, nosfluxos de comércio internacionais, do comércio intra-firmas,um sistema “quase administrado”. Da mesma forma como,no auge do desenvolvimentismo, a verticalização total daprodução era uma utopia ingênua, a atração de investimentodireto estrangeiro hoje, como justificativa para a crença nummodelo sustentável (sobretudo do ponto de vista do balançode pagamentos), é ilusória.

Entretanto, não há como resolver conceitualmente aquestão. Seria necessário saber com precisão quanto doinvestimento estrangeiro destina-se à produção (para con-sumo local e para exportações), à aquisição de capacida-de produtiva existente (como na privatização, em larga me-dida), à modernização de sistemas adquiridos (porexemplo, informatização de ferrovias privatizadas), aos ser-viços cuja eficiência tem impactos gerais sobre a produti-vidade do sistema (telecomunicações, energia elétrica), aossetores em que há grande concentração de investimentosem bens finais de consumo sem impacto substitutivo rele-vante (caso de alimentos e bebidas, varejo, logística, lazere turismo e empreendimentos imobiliários).

O mínimo que se pode dizer é que um processo de subs-tituição de importações, num contexto de abundância decapitais externos (financeiros e produtivos) e de mudançatecnológica, tem desfecho menos previsível, em termos deimpactos sobre o balanço de pagamentos, do que um mo-

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delo tradicional em que o ponto de partida é uma restriçãode balanço de pagamentos. Operar com a hipótese de ajus-tes virtuosos na balança comercial e no balanço de paga-mentos, como no atual modelo econômico, é uma apostade alto risco.

A ALTA FINANÇA CARIOCA

O Rio de Janeiro, depois de perder a posição de capitalfederal, mergulhou num processo de centrifugação sociale cultural do qual ainda não saiu. É, por excelência, aindao melhor retrato do Brasil atual: a conjugação contígua dafavela e do Teleport, da praça financeira e da Praça 15, do“triângulo das Bermudas” onde se erguem as pirâmidesdo auge estatal (Petrobrás, BNDES, Banco do Brasil, Cai-xa Econômica Federal) e as ruínas da cultura do sambaurbano nas encostas da Lapa. De certa forma, o Rio deJaneiro desempenha também, ainda, a interface mais tra-dicional da sociedade brasileira com as cortes do Primei-ro Mundo.

A formulação dos modelos de inflação inercial tem sidoalvo de disputas de paternidade, mas o monetarismo hete-rodoxo que inspira os modelos de estabilização vem semdúvida das gerações que passaram por Mário HenriqueSimonsen, na EPGE-FGV-RJ.

A verdade é que desenvolvimentismo e liberalismo pre-dominaram alternadamente em várias fases da históriaeconômica brasileira. Corresponderam igualmente a fasesna economia internacional, em que cada tipo de ideologiatornava-se praticamente universal (liberalismo final doséculo 19 e euforia anterior à crise de 29, ciclos de desen-volvimentismo nos anos 30, 50 e 70).

É curiosa a correlação entre liberalismo, sobretudo emfinanças, e abundância de capitais. Para ser irritantementemarxista, pode-se até mesmo dizer que essas euforias li-beralizantes corresponderam “grosso modo” a períodos deaparentemente ilimitada disponibilidade de capitais nocircuito financeiro internacional. Os países “emergentes”de hoje são apenas a transfiguração histórico-dramáticadas “colônias”, com graus variados de superação do sub-desenvolvimento.

É interessante, por isso mesmo, examinar esse núcleoprodutor de crenças que é o sistema financeiro globalizado.Tradicionalmente liberal, sempre na vanguarda dos proje-tos de dominação, o sistema financeiro sempre foi constituí-do, muito antes da knowledge economy, como centroprocessador de informação e de formação de expectativas.

A combinação dessa vocação milenar ao networking como networking cibernético característico da revolução digitaldos últimos 20 anos resulta numa fabulosa máquinapanóptica, em que a definição de ganhos e perdas dependeda avaliação correta dos benchmarks, das médias de opinião

e das tendências apontadas por indicadores de risco, nas suasmais variadas formas (riscos políticos, comerciais, creditícios,soberanos, ambientais, etc.).

Pode-se dizer que o espírito do capitalismo ainda é aque-le: buscar no diferencial entre compra e venda um fator dealavancagem no desenvolvimento. No mercado financei-ro globalizado, essa taxa é um diferencial construído a partirde representações simbólicas de risco.

A DESCONSTRUÇÃO DO NÚMERO

O que buscar então “por trás” do número, uma realidadeaparentada à coisa em si do idealismo transcendental?Wittgenstein, que foi filósofo não só da linguagem mas tam-bém da matemática (repudiando sempre a filosofia profis-sional), foi um dos que lançou o alerta contemporâneo con-tra a pressuposição de um objeto ideal, tanto na vida quantona matemática.

Para Wittgenstein, o “acordo num julgamento” já nãoé mais um julgamento, mas uma “forma de vida”. O siste-ma de processamento de informações que se realiza atra-vés da “esfera financeira” é uma máquina de produzir juí-zos que pressupõe a maximização da lógica capitalistacomo ideal.

O consenso pró-capitalista, ideal liberal, torna-se por-tanto naturalmente a essência da ideologia financeira. É apartir desse ideal que se distanciam mais ou menos as opi-niões. Nos extremos do espectro, há heréticos de esquer-da e heterodoxos de direita.

A avaliação de riscos e oportunidades de acumula-ção de capital obviamente não se limita a uma questãoideológica. É possível examinar o campo das represen-tações econômicas através de uma infinidade de mo-delos matemáticos de comportamento de variáveis emdiferentes contextos informacionais, culturais e psico-lógicos, assim como cambiais, fiscais, financeiros etecnológicos.

As crises financeiras mais recentes, aliadas a crises cam-biais, em países asiáticos ou no México, são rapidamentedescartadas (às vezes no próprio dia em que ocorrem) comofenômenos transitórios, efêmeros. Celebra-se a superaçãoda crise do México em vários países subdesenvolvidos,quando o que ocorreu foi uma normalização das ope-rações financeiras, o estabelecimento de um novobenchmarking, a criação de um novo consenso sobre a sus-tentabilidade dos processos correntes de acumulação decapital.

Ao focalizar suas análises no espaço da macroecono-mia da estabilização e do crescimento, os economistas ca-riocas tradicionalmente refutaram como pura ideologia aformulação e execução de políticas industriais. O próprioGustavo Franco escreveu prolixamente sobre o tema e

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combateu idéias heterodoxas enquanto diretor da área in-ternacional do Banco Central.

A âncora cambial é, em última análise, um sinal quepode ser imediatamente compreendido pelo sistema de pro-cessamento de informações financeiro global e, dessa for-ma, aparece como uma condição necessária tanto para aestabilização dos preços domésticos quanto para a recu-peração da capacidade de endividamento externo do país.

Porém, o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Sefoi a abundância de crédito internacional que viabilizouo lançamento da âncora, como acreditar que a âncoraem si mesma é condição necessária para a preservaçãoda estabilidade dos fluxos externos de capitais? Natu-ralmente, trata-se de um círculo vicioso que se susten-ta ao longo do tempo enquanto perdurar um certo esta-do de confiança na capacidade do país de melhorar osvários indicadores que servem de benchmark de risco.O problema, como se viu nos episódios recentes (Mé-xico e Ásia), está exatamente na capacidade dos mer-cados de destruírem regimes cambiais quando ocorreuma reversão de expectativas.

TUDO PELO SOCIAL

O primeiro presidente civil na transição democrática,José Sarney, lançou o mote do “tudo pelo social”. Depoisde dez anos e de vários planos de estabilização fracassa-dos, a percepção de condições sociais insatisfatórias au-mentou, assim como a capacidade de organização dos se-tores populares.

Assim, a democratização brasileira continua conviven-do com um paradoxo fundamental: enquanto aos poucosse reconstrói a economia e se reformam as instituições,com uma gradual revisão de políticas públicas, a organi-zação social é submetida a tensões crescentes.

Também nesse terreno a revolução tecnológica impõeuma mudança de perspectiva, pois a tecnologia da infor-mação requer infra-estrutura educacional e social amplapara operar com eficiência. Enquanto a sociedade brasi-leira apresentar uma “dívida social” elevada, os indica-dores de risco do país continuarão altos, inclusive os derisco político.

As instituições de monitoramento internacional aospoucos incorporam também indicadores de risco institu-cional cada vez mais complexos, com destaque para ques-tões como corrupção, destruição do meio ambiente e li-berdade empresarial.

Entretanto, como ilustram os indicadores apresentadosnas Tabelas 1 a 3, a proteção social oferecida pelos paí-ses “emergentes” tem sido declinante exatamente no pe-ríodo de maior efervescência de capitais e confiança naintegração aos mercados globais.

TABELA 1

PIB per CapitaPaíses Selecionados – 1996

Países PIB per capita (US$ de 1993)

Hong Kong 21.560Cingapura 19.350Coréia do Sul 9.710Chile 8.900Venezuela 8.360Argentina 8.350México 7.010Uruguai 6.550Tailândia 6.350Colômbia 5.790Brasil 5.500

Fonte: PNUD, 1996.

TABELA 2

Evolução do PIB per CapitaPaíses Selecionados – 1993/1960

Países Selecionados %

Coréia do Sul 14,1Hong Kong 9,3Cingapura 8,0Indonésia 6,7Tailândia 6,4Malásia 4,7Brasil 3,9Colômbia 3,1Chile 2,8Argentina 2,5México 2,4Filipinas 2,2Venezuela 2,1Peru 1,6Uruguai 1,5

Fonte: PNUD, 1996.

TABELA 3

Gastos Públicos de Proteção SocialPaíses Selecionados – 1980-1991

Em porcentagem do PIB

Países Selecionados 1980-81 1985 1990-1991

América Latina (média) 4,1 3,5 3,9Argentina 7,1 5,8 3,7Brasil 7,4 5,9 7,5Chile 9,7 8,8 6,5México 3,0 2,4 2,1Coréia do Sul 0,3 0,4 0,5Cingapura 0,3 0,4 0,5

Fonte: FMI, Government Finance Statistics, apud Mila, Miotti, Quenan (1996).

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O ‘SOCIAL’ NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC

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Evidentemente, proteção social não é sinônimo de gastopúblico em proteção social. Em vários casos, a reduçãona rubrica deve-se à privatização de sistemas de previ-dência social, processo que de todo modo continua lentoe sob fogo cruzado, sobretudo no Brasil.

Curiosamente, a expressão “tudo pelo social” permite umasegunda leitura, em que se destaca menos a prioridade daspolíticas sociais e mais um tom justificatório, em que no“tudo” cabem principalmente os sacrifícios, a contenção docrescimento, os custos sociais da reforma produtiva e insti-tucional. É como se, apesar de tudo isso ou ainda que tendoque suportar tudo isso, em última análise, o resultado viessea confirmar-se como melhoria social.

O “social”, no modelo “social-liberal” que aos poucosvai se delineando através das ações da inteligência diplo-mática brasileira, de paulistas e de cariocas, assume um

papel entre compensatório e intervencionista que opragmatismo das nossas elites admite na ação do Estado.

NOTA

E-mail do autor: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GELLNER, E. Legitimation of belif. Cambridge University Press, 1974.

NELSON, R.N. e WINTER, S.G. An evolutionary theory of economic change.Harvard University Press, 1982.

SCHWARTZ, G.J.M. Keynes, um conservador autocrítico. São Paulo, Brasilien-se, 1984.

___________ . Decifre a economia. São Paulo, Saraiva, 1993.

SIMONSEN, M.H. e CYSNE, R.P. Macroeconomia. Ao Livro Moderno, 1989.

QUADRO 1

Os Quatro Modelos de Reforma Social

Ideologia liberal social-liberal social-democrata radical

Modeloflexibilização do reformas operacionais reformas reconstrução

mercado de trabalho nas políticas de Estado patrimoniais social

Eqüidade xcomplementares compatíveis independentes antagonismoEficácia

Estado mínimo compensatório intervencionista máximo

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COMUNIDADE SOLIDÁRIAum projeto que tem tudo para não ‘dar certo’

AUGUSTO DE FRANCO

Conselheiro da Comunidade Solidária e Membro da Secretaria Executiva do Fórum Nacional da Ação daCidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

É autor do livro: Ação local: a nova política da contemporaneidade, entre outros.

uito já se escreveu – e falou – sobre a Comu-nidade Solidária. As apreciações da inteligên-cia – acadêmica, tecnocrática ou militante deM

organizações sociais e políticas – foram bastante críticasdesde o princípio. Na imensa maioria dos casos, as críti-cas revelaram grande desconhecimento da proposta, po-rém não por culpa exclusiva dos críticos. Durante quasedois anos, tanto os responsáveis governamentais pela áreasocial quanto aqueles setores da sociedade que se envol-veram com a Comunidade Solidária permaneceramimersos na confusão advinda de um desenho inovador,porém conflitante com a cultura burocrática do Estado,com as culturas reivindicativas e denunciativas dos mo-vimentos sociais, com um arcabouço institucional inade-quado e com uma concepção de política social defasadadas possibilidades reais do momento em que vive o mun-do, ainda ligada à idéia de um Estado de bem-estar so-cial, que nunca mais haverá e mesmo que fosse possívelreeditá-lo, incapaz de responder ao conjunto de uma pro-blemática social como a nossa, na qual se manifesta emlarga escala o fenômeno da exclusão. Esta confusão sóinduziu ao equívoco e não permitiu, inclusive, a aplica-ção de uma estratégia de comunicação social que corri-gisse a desinformação generalizada, menos por falta demeios e mais por falta de clareza quanto aos procedimen-tos que poderiam ser adotados para superá-la.

Foi somente ao longo do tempo que os principais pro-motores e participantes da Comunidade Solidária seconscientizaram da magnitude dos obstáculos colocadosao cumprimento da missão institucional que reivindica-ram para si, o que pouco tem a ver com os óbices aponta-dos pela desinteligência inicial dos seus críticos maisapressados. É por esse motivo que, num vasto espectroque vai do insensato ao solerte, sucederam-se acusações

infundadas de que a Comunidade Solidária seria a adap-tação brasileira do Pronasol mexicano; de que a propostase reduzia, na prática, à distribuição emergencial de ali-mentos; de que o programa seria parte de um processo dedesmonte da área social; de que a criação da Comunida-de Solidária integrava um plano do governo para enfra-quecer deliberadamente os legítimos conselhos repre-sentativos e deliberativos da área social legalmenteinstituídos; de que estava havendo corrupção, clientelis-mo ou favorecimento político, ou seja, de que o progra-ma não passava de uma estratégia para conquistar ou for-talecer bases municipais aliadas, acumulando forças parafuturos embates eleitorais; de que se deu à questão socialum tratamento assistencialista, paliativo e benemerente,fato aliás confirmado pela presença do “primeiro-damismo”; de que o esforço desenvolvido pela Comuni-dade Solidária para desenvolver projetos inovadores naárea social não passava de “masturbação sociológica”;enfim – não por ser a última, mas para dar um remate nestalista de críticas desfocadas que foi ficando tão infindávelquanto a própria ignorância humana – de que, no geral epor todos os aspectos já evidenciados, desvelava-se a in-tenção, consciente, do governo, de esvaziar a área socialretirando-lhe o poder e os recursos e os instrumentos paraefetivar aquelas reformas estruturais capazes de eliminarou reduzir a iniqüidade. Em suma, a Comunidade Solidá-ria seria parte de uma conspiração perversa contra o so-cial – exigência, como só poderia ser, do ajuste liberal.

Talvez por inconsistentes, boa parte destas alegações,passados cerca de dois anos e meio da sua gênese, quaseque se desfizeram espontaneamente, poupando-nos hojedo esforço de discuti-las. Não fosse por isso, ainda assimnão valeria a pena debatê-las, porquanto este rol de fór-mulas acusatórias ligeiras passa ao largo da problemática

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realmente enfrentada pela Comunidade Solidária, da mes-ma forma como deixa de captá-la o novo discurso críticocentrado na insuficiência. Diz-se agora que tudo o quefoi feito – vá lá – pode ter sido útil e em alguns casos atémesmo inovador, mas insuficiente. A revista Veja, na suaedição de 18 de junho de 1997, exemplifica bem a novapostura crítica: num “país (que) ainda tem 19 milhões deanalfabetos (...) o Comunidade Solidária atinge menos de10.000 deles”. Uma vergonha! A esse último tipo de ob-jeção, mais atual, não se poderia escusar uma respostatambém atual – mas o que talvez redunde inútil. Vá-se ládizer-lhes que, por exemplo, a “Alfabetização Solidária”(um programa inovador promovido pelo Conselho daComunidade Solidária) é um projeto-piloto, um novosoftware que até agora foi testado de propósito em pe-quena escala para, depois de avaliado, ser expandido pro-gressivamente a uma escala capaz de atender às efetivasdemandas sociais, como, aliás, já começa a ocorrer, pu-lando de uma dezena para centenas de milhares dealfabetizandos. Retrucarão estes críticos que isso é umpreciosismo intelectual, de alguém que não tem sensibi-lidade para captar as urgências sociais, imaginando quebasta vontade política de priorizar a solução do proble-ma, despejando recursos financeiros para ações massivasde alfabetização, sem saber que, neste caso como em vá-rios outros, se não alterarmos o modo pelo qual os recur-sos são gastos e não modificarmos o desenho dos progra-mas, estaremos realimentando sistemas que simplesmentenão funcionam.

Porém qual é, afinal, a problemática realmente enfren-tada pela Comunidade Solidária? Decorridos 28 meses dasua criação, cabe uma resposta mais substantiva a estaquestão.

O Conselho e o chamado Programa da ComunidadeSolidária constituem tentativas de promover uma novarelação entre Estado e sociedade para o enfrentamentoda fome, da miséria, da pobreza e da exclusão social euma nova racionalização da atuação do Estado na áreasocial. Porém, talvez nunca tenham sido apresentados,de forma assim tão explícita, os pressupostos concei-tuais que fundamentam a missão institucional da Co-munidade Solidária, que podem ser resumidos nas trêsformulações seguintes:- a chamada questão social no Brasil não será resolvidaunicamente pelo Estado. A ação do Estado nessa área,conquanto necessária, imprescindível mesmo, é insufici-ente. Portanto, os principais problemas sociais do país nãopoderão ser enfrentados sem a parceria com a sociedade;

- uma intervenção eficiente do Estado na área social exigearticulação entre as diversas ações que são empreendidas.Sem esta articulação, intra-estatal, dos diversos órgãos go-vernamentais, nos – e entre os – três níveis de governo, o

Estado não conseguirá adotar uma nova racionalidade queevite o mal-aproveitamento dos recursos;

- o enfrentamento da pobreza requer convergência e inte-gração das ações. Nenhum resultado ponderável, em ter-mos de melhoria efetiva das condições de vida das popu-lações marginalizadas, poderá ser obtido apenas pordecisão e no plano abstrato da União e dos estados fede-rados, sem que se faça convergir as ações para promovero desenvolvimento integrado local.

Esses pressupostos colocam a parceria com a socieda-de, a articulação intra-estatal e a convergência e integra-ção das ações como novos desafios, para a política so-cial. Ao se colocar tais desafios, a Comunidade Solidáriaenfrenta dificuldades de grande magnitude, cuja explici-tação pode revelar a problemática global que a envolve.

A primeira dificuldade diz respeito às resistências da cul-tura burocrática do Estado e das culturas reativas dos movi-mentos sociais brasileiros de caráter setorial ou corporativo.Com algumas exceções, os governos, em geral, ainda têmuma idéia impressionista e negativa, inspirada pela mídia,ou decorrente de contatos desarmônicos com setores corpo-rativos, mantidos em passado distante ou recente, das possi-bilidades da participação cidadã. Assim, nas instâncias degoverno, vigora uma impressão geral segundo a qual: a) asociedade não está preparada para participar, como prota-gonista, das políticas públicas de combate à pobreza. Ob-serva-se aqui a vigência de uma visão ultrapassada, segun-do a qual o público ainda é considerado sinônimo de estatal(ou monopólio do Estado); b) a sociedade não pode com-partilhar da construção das condições políticas para tomar eimplementar decisões (isto é, da governança) a não ser atra-vés de seus representantes eleitos para o Legislativo e para oExecutivo. São desconhecidos aqui os limites das formas re-presentativas tradicionais que, se devem ser mantidas, for-talecidas e aperfeiçoadas, não excluem outras formas parti-cipativas pelas quais se aportam novos recursos, necessáriose fundamentais (que o Estado não possui) para dar um outroimpulso ao desenvolvimento; c) a sociedade é encarada pre-dominantemente como uma instância crítica, sempre de opo-sição ao governo, como um fator que atrapalha o bom anda-mento dos programas oficiais ou que contribui para desgastara sua imagem política dentro e fora do país. Deixa-se de captaraqui o imenso potencial criativo que jaz em repouso nas es-feras mercantis e não-mercantis da sociedade, adotando-seum parti pris defensivo em relação às organizações sociais.Destarte, os contatos dos governos com as organizações so-ciais ainda são cercados de cuidados, para evitar “proble-mas” e “confusões” que possam prejudicar de qualquer modoo “bom funcionamento” das instituições.

Evidentemente, diversos setores sociais organizadoscontribuíram para que se formasse, dentro das instânciasde governo, a impressão descrita anteriormente, o que

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gerou simetricamente, na sociedade civil, um clima dedesconfiança e de suspeição em relação a tudo o que vemdo governo. Estes preconceitos, de ambas as partes, são oresultado de uma velha política que ainda é praticada tantopelo Estado quanto por boa parte das organizações so-ciais. Todavia, começam a surgir no país novos movimen-tos (latu sensu) que procuram escapar da velha polariza-ção situação-oposição e superar a idéia arcaica de que asmudanças que visam melhorar a vida das pessoas estãocondicionadas à destruição de algum inimigo supostamen-te responsável por toda a iniqüidade. Por outro lado, nota-se também uma crescente abertura das instâncias gover-namentais para a parceria com a sociedade, nos âmbitoslocal, regional e nacional, seja através dos conselhos, sejaatravés da implementação de programas descentralizadose integrados que exigem a conjugação de esforços comoutros atores não-estatais. Foi unicamente graças a essaabertura que pôde ser criada e mantida em funcionamen-to a Comunidade Solidária.

A segunda dificuldade refere-se ao formato institucio-nal inadequado do sistema de organizações governamen-tais encarregadas da área social que só favorece à desco-nexão, ao paralelismo e à superposição, à fragmentaçãodas políticas públicas e à privatização clientelista, empre-sarial e corporativa do Estado, além de criar todo o tipode entraves burocráticos, dificultar a alocação e a libera-lização oportuna de recursos orçamentários e financeiros,reduzindo a capacidade administrativa do governo. Ade-mais, a divisão atual em ministérios e secretarias setoriaiscria feudos políticos e permite a organização de verda-deiras quadrilhas, o que não favorece a valorização dadimensão interfacial em cada setor, a priorização das po-líticas inter-setoriais e a emersão de uma nova institucio-nalidade transetorial. Foi a partir dessa visão que a Co-munidade Solidária colocou entre seus objetivos o depromover a articulação entre diferentes níveis de gover-no, visando a melhoria da gestão dos programas gover-namentais, selecionados em função do seu impacto posi-tivo sobre as condições de vida da população mais pobre.

A terceira dificuldade relaciona-se à própria concep-ção de política social. Embora o âmbito próprio da Co-munidade Solidária seja o do enfrentamento da miséria eda pobreza, diante do fenômeno da exclusão, mesmo umaatuação restrita a este âmbito acaba polarizando todo ocampo de ações de proteção e promoção social que sãodesenvolvidas quer pelo Estado quer pela sociedade equestionando a validade de uma política social que nãoseja, ao mesmo tempo, uma política de desenvolvimento– questão que ainda está para ser resolvida, inclusive noplano teórico.

Com efeito, ainda permanece sem resolução a questãodo encontro das políticas sociais com as políticas de

desenvolvimento (econômico). A política social continuacarecendo de um estatuto próprio. Pensa-se, habitualmen-te, que as questões sociais serão resolvidas em decorrên-cia do chamado crescimento econômico (com a conse-qüente geração de mais empregos e distribuição da renda).Porém, os fatos não ocorrem dessa forma, pelo menos nãonum país com as características do Brasil. O fenômenoda exclusão brasileira apresenta características próprias,ligadas, por exemplo, a aspectos raciais, de gênero, etá-rios, de saúde, da miséria, que resistem a investimentossociais convencionais. Portanto, é necessário desenvol-ver políticas sociais específicas de inclusão com caráterde promoção (e não apenas de proteção social) capazesde enfrentar as questões da feminilização da pobreza, daherança histórica de apartação da cidadania dos afrodes-cendentes, da desqualificação profissional de jovens e daexclusão de idosos, portadores de deficiência e doentescrônicos das atividades produtivas e das atividades so-cialmente significativas. Num país onde se manifesta ofenômeno da exclusão em larga escala, com profundasdesigualdades sociais e regionais e com áreas resistentesà emancipação através das políticas universais clássicas,se a política social não se confundir com uma política dedesenvolvimento, esta tenderá a reproduzir formas assis-tenciais – sempre necessárias, não há dúvida –, mas que,no limite, acabam “se alimentando da pobreza” ao se con-centrarem na compensação (ou correção) das defasagensde inserção produzidas pelo chamado “modelo econômi-co” ou advindas da herança das desigualdades historica-mente constitutivas da nação. Em outras palavras, a polí-tica social passa a ser uma política sobre os efeitos daexclusão, em seus diversos aspectos, ficando, por conse-guinte, sujeita a ser acusada de não atingir as “causas es-truturais” da iniqüidade. A geração e a reaplicação de no-vos softwares de políticas públicas e de novos “modelos”socioprodutivos, que consigam escapar da contradiçãoapontada anteriormente, exigem a ação local integrada econvergente, envolvendo os três níveis de governo, seto-res empresariais, organizações não-governamentais e co-munidade local. O encontro das políticas sociais com aque-las de desenvolvimento – ou melhor, a co-incidência destaspolíticas – deve se dar, necessariamente, no âmbito local,se se quiser potencializar soluções alternativas na dire-ção da conquista de modos de vida mais sustentáveis, nãobaseados predominantemente na (impossível) universa-lização do emprego e na (limitada) capacidade de atraçãode capitais. Só no âmbito local torna-se possível concre-tizar as múltiplas parcerias entre Estado, mercado e so-ciedade civil, capazes de multiplicar os recursos disponí-veis no sentido de produzir resultados ponderáveis namelhoria integral das condições de vida das populaçõesmarginalizadas. Mesmo que não tenha sido, explicitamen-

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te, com base nesta compreensão que a Comunidade Soli-dária decidiu focalizar as ações em favor das áreas e po-pulações mais necessitadas, ela é a que responde pelosfundamentos da orientação adotada.

Mas há ainda uma última – e potencialmente fatal – difi-culdade, que diz respeito ao tempo. É óbvio que nenhumdos desafios mencionados anteriormente pode ser superadono curto prazo, na duração do mandato de um governo, cons-tituindo tarefa talvez para mais de uma geração. Na melhorhipótese, em menos de 20 anos, ou antes de 2020 – para usarum marco temporal que está se consolidando como horizonteestratégico no Brasil e em outros países do mundo – dificil-mente se conseguirá observar os efeitos da superação de taisdesafios em termos da integração massiva dos excluídos. Issosignifica que, por mais que avance no desempenho da suamissão institucional, sempre se poderá dizer que a Comuni-dade Solidária não “deu certo” enquanto dezenas de milhõesde brasileiros continuarem marginalizados da cidadania – edo mercado e da propriedade e da política e da cultura – enão tiverem acesso satisfatório aos recursos da vida civili-zada moderna.

Esta última dificuldade coloca a questão da sustenta-bilidade política – quer dizer, da continuidade daquelaspolíticas de longo prazo – diante da alternância democrá-tica do poder. Tal questão não foi – e nem poderia ser –resolvida pelo governo federal, muito menos pela Comu-nidade Solidária (embora o seu Conselho venha procu-rando contribuir nesta direção através do exercício dainterlocução política, que visa construir progressivamen-te consensos sobre temas centrais de uma agenda socialpara o país, como será visto mais adiante). Ela exige umentendimento estratégico amplo, um verdadeiro pacto so-cial em torno de prioridades, medidas, instrumentos eprocedimentos de ação que devem ser mantidos para alémdos mandatos dos governantes. As dimensões deste arti-go, entretanto, não permitem um tratamento adequadodeste tema tão crucial – matéria, aliás, para uma verda-deira reforma da política nas repúblicas e nos governosrepresentativos modernos.

Examinando objetivamente o quadro de dificuldades apre-sentado anteriormente, poder-se-ia concluir que a Comuni-dade Solidária tem tudo para não “dar certo”. Como não éum projeto que possa ser implementado centralizadamente,nem unicamente a partir do Estado, nem sujeito às dinâmi-cas convencionais da negociação sob pressão com gruposorganizados para defender interesses particularistas, sofre,ao mesmo tempo, a oposição de todos os estatismos ecorporativismos que ainda vicejam na sociedade brasileira.Ao procurar se desvencilhar do clientelismo, da política debalcão e de um assistencialismo que, ao fim e ao cabo, senutre da pobreza e a reproduz, conta com a resistência, den-tro do que já se chamou de “aparelho de Estado”, de todos

os setores aos quais não interessa a mudança de uma práticaque sempre utilizou a política social como uma moeda detroca e de promoção política, sobretudo naquelas ações vol-tadas para o atendimento das populações que não dispõemde meios para prover suas necessidades básicas. Por último,não se enquadra nos marcos teórico-programáticos da de-clinante “Estatal-Democracia” – curiosamente chamada deSocial-Democracia, uma vez que sempre se concentrou naocupação e na reforma de velhas instituições estatais, semousar inaugurar uma nova institucionalidade pública a par-tir da Sociedade Civil. Entretanto, esta nova institucionali-dade, à qual se adequaria o desenho inovador da Comunida-de Solidária, ainda não existe e sua construção não poderáse dar da noite para o dia. Em suma, a Comunidade Solidá-ria é uma proposta francamente à frente do seu tempo e queprecisa, para se realizar, de um tempo que não possui. Porisso não pode “dar certo”. Inexplicavelmente, porém, ela vemavançando. Exemplos disso são alguns resultados obtidos.

No que se refere à atuação do Conselho da Comunida-de Solidária, a apresentação de resultados é problemáti-ca, porque pode desinformar mais do que esclarecer, casonão fique explícito o que ele realmente faz. Para resumir,o Conselho da Comunidade Solidária busca, fundamen-talmente, contribuir para a convergência de esforços en-tre Estado e sociedade, do ponto de vista tanto políticoquanto de projetos concretos de desenvolvimento social.Sob o prisma político, o Conselho vem realizando, desdemeados de 1996, rodadas de interlocução com o objetivode construir uma agenda mínima de consenso sobre prio-ridades, medidas, instrumentos e procedimentos de açãosocial a ser adotados quer pelo governo (ou por outrasinstâncias do “primeiro setor” – o Estado), quer por or-ganizações da sociedade (do “segundo setor”, lucrativo –o mercado; e do “terceiro setor”, não-lucrativo – a socie-dade civil). Até o momento, foram realizadas quatro ro-dadas de interlocução – sobre Reforma Agrária; RendaMínima e Educação Fundamental; Segurança Alimentare Nutricional; e Criança e Adolescente –, envolvendocentenas de interlocutores governamentais, empresariaise sociais e gerando tanto consensos de natureza maisprogramática (identificando, 24 prioridades) quanto en-caminhamentos concretos (traduzidos em cerca de 80 pro-postas de medidas), cuja implementação vem sendo acom-panhada por Comitês Setoriais formados por membros doConselho. Ainda para 1997 estão programadas mais duasrodadas de interlocução política sobre Alternativas deOcupação e Renda e Marco Legal (regulatório das rela-ções entre o Estado e o Terceiro Setor). Tudo deverá re-sultar, no final do ano, numa síntese preliminar de Agen-da Mínima Social para o Brasil.

Por trás desse esforço de interlocução política há umadeterminada visão estratégica que foi sistematizada há

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mais de um ano pelos membros do Conselho e que pode-ria ser resumida nos quatro pontos seguintes:- existe um “outro lado da moeda”, ou seja, é possível aconvivência de uma política de estabilidade da moeda comuma política social antiexcludente. Mas para que os efei-tos sociais das medidas antiinflacionárias possam criarcondições para um efetivo e adequado enfrentamento daexclusão brasileira, é necessário que Estado e a socieda-de negociem um “real” projeto de desenvolvimento paraa área social, que estabeleça uma nova relação do econô-mico com o social, na qual este último ganhe atenção se-melhante à conferida ao primeiro;

- o reconhecimento da necessidade e da insuficiência doEstado deve apontar para a busca de uma sinergia Esta-do-mercado-sociedade civil como caminho para revertera realidade da exclusão social;

- para tornar disponível a quantidade necessária de recur-sos do Estado e da sociedade no enfrentamento da misé-ria e da pobreza, é preciso desencadear um amplo movi-mento nacional nesta direção – talvez das proporções deum new deal –, capaz de dinamizar potenciais que exis-tem, mas que estão adormecidos;

- esta ampla mobilização nacional exige uma soluçãopolítica: um entendimento estratégico entre parcela sig-nificativa dos principais atores das esferas do Estado, domercado e da sociedade civil sobre a importância a serdada à questão social e sobre as prioridades e medidascapazes de traduzir em ação concreta tal atenção.

Do ponto de vista das ações concretas de desenvolvi-mento social, o Conselho vem implementando, em par-ceria com o governo, empresas e organizações da socie-dade civil, projetos inovadores com o objetivo de gerarnovas abordagens, novas rotinas, novos padrões de atua-ção e novos modelos de relacionamento que permitam areaplicação, em escala mais ampla, dos programas que semostrarem bem-sucedidos. Deste ponto de vista, o papelinovador do Conselho é o de desenvolver experimentos,testados inicialmente como pilotos, que, uma vez avalia-dos coletivamente, possam ser realizados na escala ne-cessária para atender às demandas efetivas da sociedade.Em especial, encontram-se neste processo de transição,de experiências-piloto para uma escala mais abrangentede atuação, quatro projetos inovadores, cuja experimen-tação tem revelado grande potencial de generalização denovas formas de enfrentamento de problemas sociais demodo mais eficiente, participativo e descentralizado, en-volvendo sempre uma nova relação de parceria Estado-sociedade: alfabetização solidária; capacitação de jovens,universidade solidária; e promoção do voluntariado. Esta“operação do piloto à escala”, pouco compreendida atéagora, nada tem a ver com políticas assistencialistas e

compensatórias, e só por total desconhecimento ou má-fé poderia assim ser confundida. “Do piloto à escala” sig-nifica, por exemplo, que um programa bem-sucedido decapacitação de jovens, que hoje atenda a milhares de pes-soas, poderá, amanhã, atingir centenas de milhares e, de-pois, quem sabe, alguns milhões.

Também não é fácil falar das realizações da parte go-vernamental da Comunidade Solidária, coordenada pelasua Secretaria Executiva. Em primeiro lugar porque nãoé a Comunidade Solidária que promove, banca ou realizadiretamente os programas – ela apenas prioriza, articulae estimula a sua convergência em certas áreas escolhidasa partir de critérios objetivos, fornecidos pela combina-ção de indicadores de pobreza e indigência. Por trás des-ses resultados, há um imenso trabalho de organização quedificilmente se torna visível, existe uma rede de entida-des governamentais e não-governamentais, da qual parti-cipam interlocutores ministeriais, estaduais e municipais,autoridades e lideranças municipais, instituições do Ter-ceiro Setor, etc. Assim, apresentar apenas os resultadosnuméricos obtidos dificulta a compreensão da propostaporque, ao invés de revelar, de certo modo oculta o ver-dadeiro trabalho, quase subterrâneo, da Comunidade So-lidária, na articulação entre diferentes níveis de governopara a melhoria da gestão dos programas selecionados ena focalização das ações visando a potencialização do seuimpacto. Em segundo lugar, porque a apresentação denúmeros favoráveis tem sempre um sabor de discursooficial, “chapa-branca” – e por isso mesmo inconfiávelou desconfiável diante da prática manipuladora de nos-sos governos em passado distante ou recente. Números,ademais, sempre podem ser questionados – embora nestecaso não o estejam sendo concretamente, quer dizer, coma contestação de números alternativos, inclusive pela fal-ta de instrumentos de verificação independentes, o quenão deixa de indicar o amadorismo e o despreparo dasoposições sociais e políticas que existem no país. Pode-se, em terceiro lugar, não gostar dos números apresenta-dos, seja porque são “ruins” ou “pequenos”, isto é, pordemais insuficientes diante da magnitude das carências,seja porque são “bons” ou “grandes”, atestando o acertodas ações e com isso fortalecendo politicamente o gover-no sob cuja responsabilidade tais ações foram empreen-didas. Neste último caso, a “lógica” perversa, mas aindavigente, da relação política oposição-situação recomen-da questionar os números – não tanto os “maus”, massobretudo os “bons”. Esta “lógica” diz que não se podereconhecer como boa nenhuma iniciativa que parta doinimigo político, para não fortalecê-lo, porque, se forematestados os bons resultados do inimigo, perderá contun-dência o discurso eleitoral futuro, invariavelmente basea-do na exposição dos maus resultados do governo findante.

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COMUNIDADE SOLIDÁRIA: UM PROJETO QUE TEM TUDO PARA NÃO ‘DAR CERTO’

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Por todos esses motivos, torna-se quase inóquo apresen-tar números. No entanto, eles estão aí. E a menos que se-jamos todos uns farsantes e falsificadores, devem ser le-vados em conta numa avaliação desse inexplicáveldesempenho da Comunidade Solidária.

Todos os programas selecionados pela ComunidadeSolidária aumentaram a sua cobertura. O combate à des-nutrição materno-infantil saltou de 250 municípios aten-didos, beneficiando 500 mil pessoas em 1994, para 802municípios, atingindo 1 milhão e 200 mil mães e criançasem 1996, o que contribuiu para reduzir 45% da interna-ção hospitalar por desnutrição de crianças menores de cincoanos. O número de agentes comunitários de saúde, que em1994 era de 29 mil profissionais atendendo 17 milhões depessoas, passou para 34,5 mil em 1995, atendendo 20,5milhões de pessoas, e para mais de 44 mil em 1996, aten-dendo a 26 milhões de pessoas. Em 1996, cerca de 550mil famílias foram beneficiadas pelos programas de abas-tecimento de água potável e de esgotos sanitários (nãoexistem dados comparativos porque o programa foi cria-do em 1996, o mesmo ocorrendo com outros dados forne-cidos a seguir). A merenda escolar foi assegurada, no biê-nio 1995-96, para 33 milhões de alunos das escolas públicase filantrópicas de ensino fundamental durante cerca de 160dias letivos – 60% a mais do que em 1994. Em 1995, fo-ram distribuídos 3 milhões de cestas de alimentos em 525municípios, enquanto em 1996 este número atingiu 7,5milhões, atendendo 1 milhão e 500 mil famílias em 1.094municípios, comunidades indígenas e acampamentos desem-terra. Em 1995, o transporte escolar foi levado a 316municípios, sendo que, em 1996, mais de 624 municípiosreceberam esse serviço. Em 1996, 1 milhão e 400 mil crian-ças dos municípios mais pobres receberam cestas de saú-

de do escolar (contendo creme dental, escovas, óculos,etc.). Cestas de material escolar (kit aluno/professor/es-cola) foram distribuídas para 265 municípios, em 1995, epara 827 municípios, em 1996, nas capitais foi implanta-do um programa de ação preventiva para diagnosticar, tra-tar e acompanhar alunos com problemas de saúde, aten-dendo a cerca de 100 mil escolares da 1a série do 1o grau.Em 1996, foi implantado um programa de fortalecimentoda agricultura familiar, com a concessão de 650 milhõesde reais de créditos a pequenos agricultores. Na área ur-bana, um programa de geração de emprego e renda con-cedeu, em 1995, 173 milhões de reais em créditos a pe-quenos e médios empreendedores, enquanto em 1996foram concedidos 440 milhões de reais. Na área rural, fo-ram aplicados, em 1996, 883 milhões de reais, permitindoa criação e a manutenção de 175 mil empregos. Além dis-so, 1 milhão e 200 mil trabalhadores foram qualificados erequalificados profissionalmente em todo o país.

Tudo isso é muito pouco se comparado aos carecimen-tos sociais básicos da população brasileira. Porém, só pormilagre se conseguirá fazer com que, em mais 18 mesesde trabalho que restam da atual gestão federal, os índicesatinjam os níveis requeridos pelas efetivas demandas dasociedade. Portanto, deste ponto de vista – poupando-nosda náusea de ter que ouvir, daqui a alguns meses, maisesta obviedade retumbando como se fosse uma grandedenúncia –, já se deve concluir, por antecipação, que a Co-munidade Solidária não “dará certo”. E também porque, tal-vez, esta não seja a discussão mais relevante daqui para frentee sim uma outra: a de saber se ela está ou não está “no cami-nho certo”. Uma resposta positiva a esta questão deveriaobrigar política e eticamente os próximos governos a asse-gurarem a sua continuidade.

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E

O POTENCIAL DA POLÍTICALOCAL INTEGRADA

exemplo da criança

LADISLAU DOWBOR

Professor da PUC-SP e da Universidade Metodista-SP. Autor de O que é poder local.Foi secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São Paulo

stamos acostumados a que a gestão social sejaum capítulo menor do desenvolvimento, centra-do nas atividades econômicas. Em outros termos,

o nobre seria a empresa, o banco, enquanto a saúde, aeducação, a cultura, etc. representariam o esparadrapo so-cial para os pobres. Hoje constatamos que as duas maio-res locomotivas econômicas dos Estados Unidos não sãoa indústria automobilística e o complexo militar-indus-trial, mas a indústria da saúde, que representa 14% do PIBnorte-americano, e a chamada entertainment industry. Ouseja, ainda utilizamos conceitos centrados na política eco-nômica, na reprodução do capital, enquanto o essencialdas atividades realmente existentes se deslocou para aspolíticas sociais.

Os paradigmas de gestão das políticas sociais aindaestão nas fraldas. Toda a nossa ciência administrativacontinua discutindo taylorismo, fordismo, toyotismo, he-rança do século que se organizou em torno do automó-vel. O que é fordismo aplicado a uma maternidade: linhade montagem? Gestão just in time?

E o que é produtividade em uma área em que o objeti-vo maior é ter o mínimo de “produto”, o mínimo de inter-venções médicas, o mínimo de doenças? Um povo é sau-dável quando utiliza poucos medicamentos, não quandoutiliza muitos. As atividades de reprodução social estãose deslocando para uma área em que os paradigmas tradi-cionais da gestão e os conceitos básicos simplesmentefuncionam de outra forma.

A herança administrativa que temos é, de um lado, aimensa pirâmide burocrática de administração pública,hoje completamente ultrapassada frente à dimensão dosdesafios das políticas sociais e à necessidade de políticaságeis, flexíveis e diferenciadas. De outro lado, a gestãoprivada centrada na maximização do lucro. Os efeitos de

uma tal gestão podem ser constatados, por exemplo, nasfaculdades privadas, que freqüentemente não passam demeras fabriquetas de diplomas, fornecendo atestados deascenção social mais do que conhecimentos técnicos efe-tivos; ou nas intermédicas, em que casos escabrosos demanipulação dos doentes se tornaram a norma, e não maisa exceção.

Na área da cultura, que incluímos nas políticas sociais,vale lembrar recentes declarações do dono do gigantescomonopólio mundial de mídia, Rupert Murdoch, em quese manifesta indignado com a decisão do governo norte-americano de impor limites à sua capacidade de manipu-lação de informações, e o acusa de socialismo. Trazendoà luz uma pérola rara, que resume bem o “à vontade” dosgrandes monopólios das políticas sociais, Murdoch diz,com espanto: “Se o socialismo está morto, por que nãodeita?”1

Muito interessante é também o exemplo do “priornotice” exigido pelas empresas que anunciam em jornaise revistas, condicionando a colocação de anúncios a umaverificação de conteúdos. Recentemente, a Pentacom,agência publicitária da Chrysler, ameaçou a revista Esquirede retirar seus anúncios se fosse publicado um estudo sobresexualidade, e passou a exigir que todos os artigos da revis-ta fossem submetidos à Chrysler em um prazo que permi-tisse à empresa retirar seus anúncios, se não concordassecom os conteúdos. É a versão neoliberal da liberdade deimprensa (Le Monde Diplomatique, 1997).

A importância de se discutir políticas sociais resulta,assim, do fato de que esta área se tornou dominante den-tro do processo global de reprodução social, enquanto osparadigmas da gestão social, adaptados do velho EstadoProvidência ou da empresa privada centrada no lucro, sim-plesmente não correspondem ao que é necessário.

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A discussão que se segue está centrada em uma políti-ca social concreta, relativa à criança e, em particular, àcriança carente; e sugere que as políticas nesta área de-vem ser integradas em função dos resultados, radicalmentedescentralizadas, organizadas em torno de parcerias so-ciais amplas e apoiadas na gestão participativa da socie-dade civil. De certa forma, trata-se de um estudo aplica-do de políticas sociais, pois os próprios conceitos eparadigmas das políticas sociais devem partir de respos-tas concretas a situações reais. O problema da criança éum destes problemas, e um dos mais gritantes.2

UM DESAFIO PARA O MUNICÍPIO

Em primeiro lugar, é importante recordar a gravidadeda situação que estamos enfrentando. As cifras interna-cionais mostram-nos que, em 1993, 13 milhões de crian-ças morreram vítimas da pobreza, da desnutrição e dedoenças. Mais de 150 milhões de crianças vão para a camacom fome todas as noites, e este número pode chegar a180 milhões no final do século. Cerca de 130 milhões decrianças no mundo inteiro não têm acesso à escola, e umnúmero cada vez maior permanecerá na escola apenas otempo necessário para cair num analfabetismo secundá-rio pouco tempo mais tarde. Cerca de 100 milhões demeninos e meninas trabalham, muitos deles em condiçõesintoleráveis.

Essas cifras representam milhões de tragédias indi-viduais e um sofrimento que a comunidade mundial nãopode mais aceitar. As 100 mil crianças assassinadas oumutiladas por minas terrestres, o meio milhão de crian-ças-prostitutas no Brasil e as crianças que tecem tape-tes na Ásia, mutiladas para toda a vida a fim deatender às necessidades dos mercados de produtossuntuários, denotam uma profunda e perversa orienta-ção do desenvolvimento, que deve ser vigorosamentecombatida e mudada.

Enquanto em outras épocas esses dramas sociais po-diam ser explicados pela penúria ou por epidemias incon-troláveis, nada justifica sua existência no final do milê-nio. O mundo produz, anualmente, cerca de 22 trilhõesde dólares em bens e serviços, cerca de 4.200 dólares porhabitante, o suficiente para garantir a cada ser humanouma vida confortável e digna. Produz, diariamente, maisde um quilo de grãos por pessoa, o que bastaria para eli-minar a penúria e a fome, se um pouco menos fosse dadoao gado e um pouco mais às crianças. Sabe-se que a defi-ciência de vitamina A faz com que cerca de 500 mil crian-ças percam a visão parcial ou totalmente todos os anos, oque poderia ser evitado de modo simples e barato: os gas-tos necessários se contam em centavos por criança. Háalgumas regiões, onde de 30% a 40% da renda familiar

são gastos na compra de água, enquanto a economia é cen-trada em artefatos de luxo. Isto demonstra o quanto nos-sas prioridades econômicas desviaram-se dos objetivoshumanos básicos e do simples bom senso.

As crianças têm pouco poder e pouca voz. Suas tragé-dias individuais são tragédias dispersas no tecido socialdas áreas urbanas, suburbanas e rurais. Um espirro daindústria automobilística provoca calafrios em todos ospaíses e na economia internacional. Mas 150 milhões decrianças famintas espalhadas pelo mundo raramente sãonotícia e nunca afetam o rumo das decisões políticas.

Estes milhões de tragédias silenciosas explodem nalinha de frente das administrações locais, onde os desam-parados, com freqüência, são vizinhos ou amigos e oseventos têm dimensão familiar. Nos níveis global e na-cional, pressões políticas e econômicas pouco legítimas,mas reais, podem sustentar a produção e a exportação dearmas, a concentração da renda, políticas ambientaisdestrutivas ou até mesmo o tráfico de drogas. Mas no ní-vel local, os problemas sociais têm presença mais forte eos prefeitos podem se aproveitar do fato de que a causadas crianças é uma das poucas metas unânimes da huma-nidade. Além disso, no nível local, a situação pode serencarada na sua dimensão real e na sua diversidade. Asadministrações locais, com toda sua fraqueza e falta derecursos, possuem uma enorme vantagem: estão mais pertodas pessoas, dos problemas reais.

É provável que uma pesquisa universal sobre a neces-sidade de se fazer mais pelas crianças recebesse unani-memente respostas positivas. No entanto, tão pouco é feito.Na verdade, como no caso do meio ambiente e de outrasquestões difusas, todos têm um interesse parcial, porém,ninguém está permanentemente empenhado em resolvero problema. E o interesse difuso por um rio limpo temmuito menos penetração política que o interesse focali-zado de uma corporação que pode economizar milhõespoluindo-o. No nível local, interesses difusos tornam-seinteresses focalizados, a poluição causa perda do valorda propriedade, a pobreza ocasiona inquietação, a faltade um sistema de esgoto provoca doenças nos morado-res. No nível local, interesses difusos têm mais chancesde ser incorporados a políticas concretas.

O CONTEXTO EM EVOLUÇÃO

Esta é uma era de mudanças profundas. Alguns eixosde transformação do contexto do nosso desenvolvimentopodem ser destacados: as novas tecnologias, a crescentepolarização econômica, a globalização e a urbanização.

Estamos no meio de uma profunda revolução tecnoló-gica. Nos últimos 20 anos, os computadores, as teleco-municações, a biotecnologia, novas formas de energia,

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novos materiais e uma vasta renovação científica dupli-caram o volume do conhecimento técnico que a humani-dade acumulou durante a sua história. Este progresso podesignificar que, mais do que em qualquer outro momento,possuímos as capacidades técnicas para enfrentar as difi-culdades do nosso desenvolvimento. Mas, se considerar-mos que nossa evolução rumo a melhores instituições éincomparavelmente mais lenta, essas mesmas tecnologiaspodem ser um desastre. Cada vez mais, armas químicasletais estão sendo disseminadas pelo mundo. Navios pes-queiros extremamente poderosos, dotados de equipamen-tos eletrônicos para localizar os cardumes, estão simples-mente exterminando a vida nos oceanos. A sofisticadaextração química do ouro, com a utilização de mercúrio,está envenenando todo o sistema da bacia amazônica. Amanipulação, sem qualquer controle ou regulamentação,do código genético de animais e seres humanos, o uso in-discriminado de agrotóxicos e muitas outras tecnologiasavançadas mostram, de maneira sombria, como os sereshumanos brandem com pouca maturidade novas ferramen-tas de impacto planetário.

Esse desenvolvimento, que segue dois ritmos dife-rentes – de um lado, as rápidas mudanças tecnológicase, de outro, a lenta evolução das nossas instituições eda organização social –, gera uma polarização econô-mica cada vez maior entre ricos e pobres. Três bilhõesde pessoas sobrevivem com uma renda per capita de350 dólares por ano, ou menos de 30 dólares por mês,enquanto os países da OCDE ostentam uma renda mé-dia de 22 mil dólares. Em termos práticos, isso levou aque em 1988 os gastos por criança em educação básicachegassem a cerca de 2 mil dólares nos Estados Uni-dos contra 240 dólares nos estados árabes, 180 naAmérica Latina, 86 no sul da Ásia, 70 na África sub-saariana e 55 no leste da Ásia. As despesas com saúdechegaram aproximadamente a 1.500 dólares por pes-soa nos países de alta renda, em 1990, enquanto nospaíses em desenvolvimento ficaram em apenas 41 dó-lares, 36 vezes menos. De acordo com o Banco Mun-dial, do 1,7 trilhão de dólares investido em saúde nomundo, em 1990, cerca de 90% foram gastos em paí-ses de alta renda. A brecha está se aprofundando poruma razão muito simples: os países em desenvolvimentopodem investir no seu próprio desenvolvimento cercade 20 a 30 vezes menos que os países desenvolvidos.

As crianças estão encurraladas nesse processo peloimpacto geral da pobreza, pela destruição das suas redestradicionais de sobrevivência, pelas potentes drogas quí-micas que lhes são oferecidas, pelos rios contaminadosonde brincam, pelo acesso cada vez mais difícil à águapotável, pelo ar poluído que respiram, pela violência dasguerras modernas, pela substituição da agricultura alimen-

tar por culturas de exportação, pelas proteínas que escas-seiam nos rios e oceanos, pelas florestas que desapare-cem e pelos climas que mudam. A tecnologia modernaexige um rápido progresso de nossas instituições a fim desubordinar a capacidade técnica às nossas efetivas neces-sidades como seres humanos. Mais do que novas tecno-logias, precisamos de maior capacidade de gestão social.

Tem-se escrito muito sobre a dimensão global do de-senvolvimento econômico. Na verdade, enquanto algu-mas atividades estão se globalizando, outras estão setornando mais locais, e é mais conveniente consideraresse processo como um reordenamento geral dos ní-veis de decisão e dos espaços da reprodução social.Assim, além do “alcance global”, estamos testemunhan-do a nova força de blocos; a ressurreição de regiona-lismos subnacionais, particularmente quando corres-pondem a identidades culturais e étnicas; o reforço dasregiões metropolitanas, que tendem a formar uma “redemundial de cidades”, fundamental para a rede de ser-viços internacionais; e o novo papel das cidades e doespaço local em geral, que tendem a assumir em suaórbita de decisões um número cada vez maior de seto-res relacionados às nossas necessidades diárias.

A importância do espaço metropolitano e local estáaumentando rapidamente, em parte devido à intensidadeda urbanização. Embora o ritmo da urbanização seja bas-tante diferente nas várias regiões do mundo, o fato é quea população urbana está aumentando em aproximadamente57 milhões de habitantes por ano. O impacto institucio-nal dessa mudança profunda na base demográfica do de-senvolvimento está se tornando cada vez mais claro: a es-magadora maioria das nossas necessidades diárias, queabrangem desde escolas e médicos para crianças a peque-nos negócios, programas de emprego, hortifrutigranjei-ros, transporte e outros, pode ser solucionada ou regula-da localmente, com pouca intervenção do Estado central.Assim, quando a nossa estrutura demográfica era predo-minantemente rural, com a maioria da população disse-minada pelo campo, era natural que as decisões estives-sem centralizadas na capital e correspondessem ao governocentral ou estadual. Atualmente, cada cidade média pos-sui, ou está adquirindo rapidamente, a capacidade de de-cidir sobre suas próprias necessidades de desenvolvimen-to, e o espaço administrativo dos prefeitos está crescendorapidamente.

Neste contexto em evolução, o desafio a ser enfrenta-do pelos prefeitos é particularmente difícil: a rápida ur-banização, ao lado do aprofundamento geral da brechaeconômica, significa que eles se encontram na linha defrente e têm de enfrentar milhares de problemas explosi-vos no âmbito social, econômico e de infra-estruturas comrecursos limitados. Em outras palavras, eles são os pri-

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meiros a se defrontar com os problemas, mas estão noúltimo escalão na hierarquia de decisões.

Por outro lado, a crise também pode ser vista comouma oportunidade. No espaço local, as pessoas podem seorganizar mais facilmente para participar, pode-se obternovas soluções através de tecnologias apropriadas, alémdo que os administradores locais conhecem seus proble-mas e suas necessidades muito melhor do que as distan-tes burocracias. Isto é da maior importância no tocante àspolíticas voltadas às crianças, pois estas dependemusualmente de um grande número de ações diferenciadase finamente sintonizadas, que freqüentemente chegam aproblemas individuais, nos quais são essenciais o conhe-cimento e a capacidade de decisão locais.

REPENSANDO AS INSTITUIÇÕES

Décadas de políticas gerais padronizadas, privadas ouestatais, evidenciaram suas limitações. Está claro que osprogramas devem ser fortemente adaptados às necessi-dades locais, apoiados por instituições que busquemsinergias e flexibilidade através de uma coordenação prá-tica das ações. Este enfoque orientado para resultados émais bem sustentado por redes com intensos fluxos deinformação e comunicação do que pela tradicional pirâ-mide de decisões estratificadas. Equipar as instituiçõeslocais para que possam lidar melhor com os problemasdas crianças implica um diversificado conjunto de ações.

Organização da Participação das Comunidades – Cente-nas de infortunados projetos “pára-quedas” ensinaram-nosque a principal condição para que um programa funcione éque a comunidade interessada “se aproprie” dele e se identi-fique profundamente com os seus objetivos. Na verdade nin-guém gosta de sentir-se “assistido” ou de receber ajuda comouma espécie de diploma de incapacidade pessoal. Centenasde experiências bem-sucedidas, abrangendo desde empreen-dimentos sociais na Itália até programas de reintegração decrianças em Santos, demonstraram o quanto essas iniciati-vas podem ser produtivas quando as comunidades interes-sadas as assumem. Para isto, é preciso que a organização dacomunidade e as políticas de participação estejam no centrodo enfoque institucional.

Recrutamento de ONGs – As organizações comunitáriase as ONGs estão se tornando cada vez mais importantes.O Relatório sobre Desenvolvimento Humano de 1993estima que o trabalho das ONGs envolvia cerca de 100milhões de pessoas nos anos 80 (hoje são mais de 250milhões), canalizando aproximadamente 7 bilhões dedólares a programas destinados à diminuição da pobreza,ao fornecimento de crédito para os pobres, à capacitação

de grupos marginalizados, à luta contra a discriminaçãode gênero e à assistência emergencial. Há uma im-pressionante expansão de novas organizações, e é naturalque surjam aquelas de seriedade duvidosa. De qualquermodo, as ONGs não podem substituir a iniciativagovernamental. Mas, a partir de uma coordenação sólida,pode-se realizar um trabalho interligado com elas,aproveitando seu espírito voluntário e seus baixos cus-tos, de modo a tornar mais efetivos os programasgovernamentais.

Organização dos Atores Sociais – As administraçõeslocais deveriam criar foros específicos para gerar consensosobre os problemas-chave das políticas municipais paracrianças. Estes deveriam incluir representantes do mun-do empresarial, dos sindicatos, das organizações comu-nitárias, das organizações não-governamentais, de cen-tros de pesquisa e dos diversos níveis de governo presentesno município, a fim de assegurar que a administração sejamais participativa. Exemplos exitosos de políticas locaispara crianças evidenciam uma grande capacidade para a“engenharia social”, ao estabelecer sistemas flexíveis deparcerias em diversos níveis.

Coordenação Intergovernamental – Os distintos escalõesde governo (local, estadual e central), bem como empresaspúblicas, freqüentemente coexistem no espaço de um muni-cípio com pouca coordenação e, por isso, suas funções sesoprepõem, produzindo confusão onde deveria haversinergias. É comum que 30% ou 40% dos servidores públi-cos de um município pertençam a outros escalões e hierar-quias de governo, e que atuem sem qualquer articulação coma prefeitura, em geral nem sequer informando-a sobre as suasatividades. O problema é particularmente agudo em regiõesmetropolitanas. A organização de programas conjuntos orien-tados a resultados concretos, com permanente coordenaçãoe fluxo de informação entre as instituições, pode produziruma melhora muito significativa na produtividade de pro-gramas destinados às crianças.

Programas Intermunicipais – Embora tradicionalmen-te se considere que quando um problema extrapola os li-mites de uma prefeitura deve ser levado às autoridades es-taduais ou centrais, tornou-se evidente que a cooperaçãoe a coordenação intermunicipais podem produzir resulta-dos impactantes. O consórcio intermunicipal para servi-ços de saúde em Penápolis, por exemplo, demonstrou oquanto pode ser produtiva para um grupo de muni-cipalidades a coordenação horizontal dos programas desaúde, com a otimização do uso das diversas infra-estru-turas e serviços. A coordenação horizontal também pro-duz bons resultados no tocante a programas ambientais.

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Cooperação Descentralizada – As formas tradicionais deajuda oficial ao desenvolvimento, quando não diretamen-te orientadas ou fortemente ligadas a organizações locais,têm se mostrado ineficazes. A maioria das agências mul-tilaterais ou bilaterais ainda efetua esforços muito tímidospara melhorar a situação das populações diretamente afe-tadas. Grande parte dos fluxos de ajuda não chega às pes-soas que dela necessitam. Uma estimativa da GTZ basea-da em projetos desenvolvidos no Equador mostra que, parauma prefeitura iniciar um projeto com dinheiro proveni-ente de fora o período médio de negociações é de 43 me-ses, e o número médio de instituições que devem dar suaaprovação é de 16. Se considerarmos as silenciosas emer-gências enfrentadas pelos prefeitos nas áreas que admi-nistram, esta demora e o custo burocrático são inadmissí-veis. Acordos entre cidades do norte e do sul, com cláusulascontratuais específicas para programas de apoio às crian-ças, podem ser muito efetivos. Programas governamen-tais bilaterais poderiam canalizar a ajuda mediante taisacordos. A canalização de fundos através das ONGs tam-bém tem sido muito produtiva e poderia ser incentivada.Também deveria ser apoiada a destinação direta de fun-dos multilaterais às prefeituras, vinculada à criação deconselhos municipais de base ampla para a defesa das crian-ças ou de outros mecanismos participativos nas cidadesdestinatárias. As agências multilaterais ou bilaterais po-deriam dar uma contribuição muito importante ao desen-volvimento da cooperação descentralizada.

Rede de Intercâmbio de Experiências Municipais – Osfluxos de comunicação e intercâmbio de experiências têmsido muito ineficazes e caros, no âmbito das administra-ções municipais. Diversas organizações de cidades, comoa Iula – União Internacional de Autoridades Locais, o Iclei– Conselho Internacional para Iniciativas Locais para oMeio Ambiente, a FMCU – Federação Mundial CidadesUnidas e outras em nível nacional, vêm desenvolvendoredes para estimular as comunicações. A criação de umarede permanente de informação por computadores, basea-da na conferência dos Prefeitos Defensores das Crianças,poderia ser um importante instrumento de intercâmbio deinformação, aproveitando os novos instrumentos de co-municação extremamente baratos e flexíveis. O movimen-to Prefeito/Criança, desenvolvido pela fundação Abrinq,tem cumprido, em parte, esta função. A Unicef e outrasagências, com sua rede internacional, também poderiamser de grande ajuda nesta área.

Estas e outras ações podem ser consideradas no qua-dro de uma tendência geral de se criar formas atualizadasde administração local. Certamente, as opções serão di-ferentes nos diversos ambientes institucionais, mas a ne-cessidade de repensar nossas instituições é geral.

ESTRATÉGIAS

Ante a grande variedade de situações sociais, econô-micas e institucionais das municipalidades do mundo in-teiro, não existem receitas universalmente válidas. Con-tudo, algumas orientações gerais têm dado bons resultados.

Princípio da Descentralização – Exceto em circunstân-cias claramente definidas, que requerem a mediação dosníveis mais elevados da pirâmide administrativa, as deci-sões deveriam ser tomadas no nível mais próximo possí-vel da população envolvida. Referimo-nos aqui à capaci-dade real de tomar decisões, com descentralização derecursos e de autoridade. Este princípio de “proximida-de” é essencial para as ações na área social que, em últi-ma instância, devem atingir indivíduos e famílias. Issonão significa que se deva dar ao governo central “braçosmais compridos”, através da abertura de escritórios lo-cais, mas sim permitir que as comunidades com estrutu-ras participativas administrem efetivamente as atividades.

Participação no Poder3 – Estamos lidando com cidadãos,presos no tumulto da modernização caótica, e nossa açãonão é uma questão de assistência, mas de direitos. Maisdo que uma perda de coisas, a pobreza é a perda do direi-to às opções. A Convenção dos Direitos da Criança, de1990, nos oferece uma estrutura conceitual e ética. Fazercom que as pessoas apreendam e entendam este enfoque,treinar as equipes municipais de trabalho para respeitaros pobres e excluídos, não é apenas uma obrigação ética,mas um fator crucial para o sucesso de políticas orienta-das às crianças. Portanto, os programas não deveriam serplanejados apenas para obter uma eficácia técnica espe-cífica, mas para permitir que as pessoas assumam o con-trole do seu próprio avanço.

Ações que se Reforçam Mutuamente – As comunidadespensam seu próprio desenvolvimento como um processointegrado, e não como a soma de iniciativas setoriais se-paradas. Isto não significa que ações setoriais especializa-das devam deixar de existir, mas sim que a sua eficáciapoderia ser melhorada pela integração em nível local.Assim, o programa de Serviços Básicos Urbanos pode tor-nar-se um importante instrumento para a implementaçãode ações que se reforcem mutuamente, para a convergên-cia inter-setorial e para a organização comunitária.

O Papel das Mulheres – As políticas locais para as crian-ças não podem ser dissociadas do papel das mulheres noprocesso. Uma importante razão é que famílias coman-dadas por mulheres com filhos freqüentemente represen-tam a área mais crítica de pobreza e exclusão. Além dis-

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so, as mulheres estão envolvidas mais diretamente comos resultados práticos em termos do bem-estar da crian-ça, e sua associação à administração dos programas con-tribui muito para torná-los mais eficazes. Finalmente, aorganização das mães em redes de solidariedade promo-ve a tão necessária igualdade de gênero.

Administração Orientada para Resultados – Emborapossa parecer óbvio insistir nos resultados, o fato é queas instituições públicas, assim como muitas privadas, fre-qüentemente tendem a obedecer a uma lógica burocráti-ca. Existem inúmeros exemplos de organizações formal-mente dedicadas a políticas sociais que seguem rotinasabsurdas de sobrevivência institucional. São necessáriosindicadores claros de produtividade, assim como o envol-vimento direto das comunidades interessadas nos resul-tados, rotação nas equipes entre responsabilidade buro-crática e trabalho de campo, avaliação externa da eficiênciada instituição e organização das instituições ou progra-mas em torno de resultados finais claramente formulados.Estas e outras medidas podem ser uma garantia de que asdiferentes estruturas organizadas correspondam aos ob-jetivos sociais, e não a seus próprios interesses.

Importância da Comunicação – Embora os trabalhado-res sociais sérios evitem a publicidade e o uso político dasua atividade, é inegável que a comunicação, em suas di-versas formas, é essencial para a aceitação social e o apoioàs iniciativas locais dirigidas às crianças. O foco não deveser apenas a mudança das condições destas, mas tambémdas mentalidades impregnadas de preconceitos presentesna maioria das nossas sociedades. A comunicação e a in-formação devem ser atividades permanentes dentro decada programa. A ex-prefeita de São Paulo, Luisa Erun-dina, que logrou resultados excepcionais com suas políti-cas direcionadas aos pobres durante sua gestão, teve seufuturo político avaliado de forma realista, ainda que ab-surda, pelos seus adversários: “O trabalho para os pobresnão gera visibilidade política.” A defesa das crianças deveproduzir sociedades mais humanas nas nossas muni-cipalidades. As crianças devem se transformar em cartãode visitas das cidades.

Simplificação dos Regulamentos – Todos aqueles que ti-veram experiências diretas em administrações municipaissabem o quanto os regulamentos e a legislação adminis-trativa podem ser fantasticamente intrincados. Um estudorecente do governo norte-americano concluiu que, com apreocupação de evitar que o dinheiro público fosse rou-bado, complexificou-se de tal modo a estrutura legal quese tornou virtualmente impossível usar o dinheiro de ma-neira produtiva. As administrações municipais são parti-

cularmente vulneráveis a esse problema, já que seus fun-dos provêm das mais variadas instituições e, por isso, de-vem responder a diferentes níveis de controle, enquantoseu poder para mudar ou contornar regulamentos é limita-do. De maneira geral, a estrutura legal está completamen-te ultrapassada pelas modernas técnicas de gerenciamen-to e raramente permite respostas rápidas e flexíveis àsdificuldades dos menos favorecidos. Iniciativas como aaprovação de procedimentos especiais em casos de emer-gência, a simplificação da legislação e dos regulamentos,e a criação de comissões participativas compostas por fi-guras respeitadas localmente para supervisionar os pro-gramas, entre outras, devem ser tomadas a fim de criar umambiente regulador mais favorável aos usuários.

Controle Participativo – O controle sobre o que aconte-ce com os fundos e sobre seus resultados é uma tarefaenfadonha, porém, necessária. A transparência é essen-cial tanto para a eficiência dos programas quanto para asua credibilidade política. Em nível nacional, não exis-tem muitas opções, a não ser basear-se em regulamentose no trabalho burocrático pesado. Já na administraçãomunicipal, na qual os programas são aplicados através deorganizações formadas por pessoas que freqüentementese conhecem, os controles burocráticos formais podem sersubstituídos pela gestão participativa. Quando um progra-ma é supervisionado por um grupo de cidadãos proemi-nentes de origens bastante diferentes, fica muito difícil asua cooptação para iniciativas ilegítimas. A participaçãodireta das organizações comunitárias no projeto e na ges-tão dos programas, assegura um alto grau de transparên-cia quanto a seus resultados. De qualquer maneira, con-troles participativos que não excluam uma auditoriaexterna especializada tendem a ser mais eficazes que osregulamentos burocráticos e os inevitáveis fiscais.

Organização da Informação – Nas prefeituras, o baixonível de organização da informação é a regra, não a exce-ção, e conseqüentemente a níveis mais elevados da admi-nistração pública. É preciso realizar um grande esforçonesta área. A estrutura tradicional de um “banco centralde informações” está sendo substituída por um sistemaflexível de redes, de modo a permitir uma permanenteatualização e sua utilização sistemática por todos os ato-res sociais da municipalidade. Assim, a combinação denovas tecnologias a uma filosofia participativa nas polí-ticas voltadas às crianças pode permitir que os prefeitos eas comunidades organizadas tomem suas decisões comum entendimento muito melhor da situação geral do mu-nicípio e com um acompanhamento permanente de açõesespecíficas. A informação bem organizada também é es-sencial para que as autoridades municipais possam infor-

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mar melhor a população sobre a situação das crianças,tornando mais efetivos os programas de comunicação.

Autoridade Técnica e Política – Embora pouco discuti-da, a definição do papel do especialista, em um mundode crescente complexidade técnica, é essencial à imple-mentação de programas. A sedução da tecnocracia é muitoreal e deve ser enfrentada abertamente. O enfoque comu-nitário do distrito de saúde, por exemplo, está baseadoem comissões de saúde eleitas pela comunidade, que de-cide quais deverão ser suas prioridades, enquanto a equi-pe da municipalidade apresenta os dados técnicos neces-sários para suas decisões. Este novo equilíbrio entreadministração, avaliação técnica e os objetivos comuni-tários é essencial para a reforço das comunidades e para asustentabilidade e efeitos a longo prazo dos programas.

Formação – Não há dúvidas de que políticas sérias emdefesa das crianças não dependem apenas de soluçõestécnicas adequadas, mas de um novo enfoque que, fre-qüentemente, implica mudanças culturais. O estreito en-foque de treinamento técnico deve ser revisto em favordo entendimento de que todos os atores sociais que parti-cipam da defesa das crianças no município devem estarpermanentemente aprendendo uns com os outros, comoutras prefeituras, com as comunidades. Os programas detreinamento deveriam estar diretamente ligados à organi-zação da informação municipal e aos programas de co-municações. São impressionantes os resultados obtidoscom a participação direta das comunidades na definiçãodos currículos de treinamento: as pessoas sabem sobre oque querem aprender. Pode ser essencial tembém um en-foque orientado aos usuários. Mas, sobretudo, os progra-mas de formação devem deixar de ser um curto capítulofinal na definição de programas para se tornarem partecentral destes.

Além da importância individual dessas estratégias, quedeverão ter maior ou menor ênfase dependendo de cadasituação, a verdade é que a descentralização, a participa-ção, a formação de redes, ricos fluxos de informação eoutras modificações na forma em que organizamos asnossas ações estão dando origem a ambientes mais de-mocráticos e transparentes.

AÇÕES-CHAVE

As situações que usualmente enfrentamos derivam deum conjunto de causas interdependentes, e não apenas deum problema. Transformaram em sistemas e nossas soci-edades se habituaram a elas. Portanto, é preciso promo-ver políticas baseadas em um entendimento efetivo dainterligação dos problemas. Isso significa que o processo

deve ser assumido pelas comunidades que vivenciam osproblemas, e embora o nível de decisão nacional devadeterminar as metas gerais dos diversos setores, comosaúde, educação e outros, bem como fornecer parte dosrecursos necessários, sua implementação tem de ser locale integrada.

O círculo vicioso geral foi adequadamente descritocomo a espiral da pobreza, crescimento demográfico edeterioração ambiental (PPE). A Cúpula da Terra de 1992foi dedicada ao problema ambiental, a Conferência doCairo de 1994 focalizou o problema do crescimento dapopulação e a Cúpula Mundial sobre DesenvolvimentoSocial de Copenhague de 1995 preocupou-se principal-mente com o problema da pobreza. A Conferência deBeijing sobre a promoção das mulheres e a Conferênciade Istambul sobre Assentamentos Humanos (Habitat II)contribuíram no mesmo sentido. Estamos nos tornandogradualmente mais conscientes da interdependência dosproblemas em todas partes.

Em nível local, a espiral assume diferentes formas. Porexemplo, em algumas grandes cidades, a impermeabili-zação do solo em larga escala está provocando freqüen-tes inundações. A terra urbana em áreas que alagam é,geralmente, mais barata, e por isso atrai os mais carentes.Assim, os locais em que a água fica concentrada são obs-truídos pelos barracos e os córregos tornam-se depósitosde lixo sólido. Portanto, temos a mais alta concentraçãodemográfica nas áreas menos apropriadas para a mora-dia, onde a água da chuva mistura-se com água de esgo-to, originando dramáticos problemas de saúde que, porsua vez, provocam problemas escolares, de emprego eassim por diante. Cada prefeito certamente tem um oudiversos exemplos de como os problemas estão articula-dos em diversas áreas do seu município.

Um importante enfoque integrado – que diz respeitodiretamente às condições das crianças – é a iniciativa dosServiços Urbanos Básicos, cujas estratégicas estão basea-das em intervenções multisetoriais que se reforçam mu-tuamente, bem como nos princípios de organização co-munitária, participação e poder local de decisão; naconvergência e complementariedade dos serviços; nobaixo custo e identificação de unidades operacionais parao planejamento e implementação dos programas. Atual-mente, os prefeitos estão cada vez mais conscientes daimportância de integrar, ou pelo menos coordenar, as di-versas iniciativas desse tipo, como Planos Locais de Açãopara Crianças, Agenda 21 Local, Planos Locais de Ação,entre outros.

O esforço de integração significa que as comunidadesdeveriam poder combinar de maneira adequada as diferen-tes ações de acordo com situações específicas. Este enfoquecomplementa as iniciativas setoriais mais tradicionais:

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Saúde – Como ficou demonstrado nestes últimos anos,uma sólida ação preventiva no setor de saúde pode me-lhorar bastante a situação das crianças. Devem-se enfati-zar, particularmente, ações de baixo custo e alto impacto,como programas de imunização, terapia de reidratação oral(ORT), sal iodado, vitamina A e aleitamento materno.Estas campanhas nacionais contam com o apoio geral. Masa maioria delas depende da capacidade organizativa emnível local, particularmente para atingir os mais carentes,o núcleo da população excluída. Pois, ações capilares quedevem atingir todas as famílias, todas as mães e todas ascrianças não podem depender de enormes estruturas bu-rocráticas. Só as organizações locais podem ter um ma-peamento preciso e informação atualizada sobre situaçõesespecíficas, e responder de maneira flexível à mudança.

Nutrição – Os programas nutricionais dependem em gran-de medida das metas a serem atingidas. Em alguns casos,como nos programas de alimentação das escolas, foramlogrados excelentes resultados através da combinação delegislação e orientação nacional com a flexível gestão lo-cal dos programas. Chegar aos mais carentes é particular-mente difícil, porque estes não entram regularmente emcontato com as estruturas capilares da saúde e da educa-ção. Novamente aqui, as estruturas municipais são essen-ciais, pois só as organizações locais podem ajustar as po-líticas às situações individuais. Uma ponte direta entre osprogramas internacionais de ajuda à alimentação e asmunicipalidades poderia melhorar significativamente suaeficácia. E as organizações locais podem trabalhar melhorse, em nível nacional, houver uma campanha de apoio paraconscientizar as pessoas sobre a necessidade de ajuda.

Água e Esgoto – Como muitos pobres tendem a ser em-purrados para áreas onde praticamente não há infra-es-trutura, os programas de água e esgoto são essenciais paraas crianças carentes. Por outro lado, o problema da águaestá se tornando crítico em todo o mundo. Segundo umapublicação do Banco Mundial, “a água contaminada podeser fatal. As doenças causadas pela água matam anual-mente 3 milhões de pessoas, particularmente crianças, erepresentam mais de um bilhão de casos por ano. Mais deum bilhão de pessoas no mundo não têm acesso à águapotável, e 1,7 bilhão não possui esgoto. Estes problemasnão se restringem aos países em desenvolvimento”. Osautores deste trabalho consideram que “com a criação deprocedimentos legais e reguladores apropriados e com umaestrutura geral de coordenação, o serviço de fornecimen-to de água poderia ser descentralizado, melhorando ocontrole e a eficiência em nível local e comunitário. Di-versos países estão incentivando associações de usuáriosa assumir maior controle do fornecimento de água”. O

setor de água e esgoto é um caso típico em que a admi-nistração local deve ser combinada com políticas inter-municipais e com soluções específicas, como o sistemade gestão por bacias hidrográficas.

Educação – Esta é outra área onde a iniciativa local podeser essencial. Nenhuma burocracia complexa é melhor doque o simples interesse dos pais e da comunidade quantoao melhoramento das oportunidades oferecidas às suascrianças, e eles deveriam estar associados à gestão e aocontrole da educação. Além disso, novas tecnologias po-dem abrir importantes perspectivas para uma compreen-são mais ampla da educação, envolvendo televisão, ví-deo e outras técnicas que estão se tornando cada vez maisbaratas. A educação comunitária, se for realmente apro-priada pela comunidade, pode se transformar num instru-mento poderoso na promoção das crianças. E, novamen-te, as municipalidades conhecem suas realidades e podemresponder com políticas finamente sintonizadas às diver-sas necessidades. E esse setor é um campo privilegiadopara parcerias entre a administração local, empresários,ONGs e instituições científicas regionais.

Relação Urbano-Rural – A história da humanidade é ru-ral. Apenas neste século, pode-se dizer, é que nos transfor-mamos em sociedades urbanas. O caos rural, provocado pordiferentes causas na África, na Ásia ou na América Latina,expulsou bilhões de pessoas. Sem dúvida as situações sãomuito diversas. Mas é essencial reincorporar, de forma ino-vadora, o componente rural da modernidade. De certa ma-neira, a dimensão rural da nossa existência deverá serreconstruída a partir das cidades, começando pelos cinturõesverdes que respondem aos problemas da fome e do desem-prego, e passando pelo lazer que tanto falta às cidades, arestauração do nexo ambiental urbano-rural, etc.

Emprego – As pessoas deixaram de ser capazes de sobrevivernas áreas rurais, e as recentes inovações tecnológicas estão racio-nalizando serviços e manufatura. Assim, muitos dos que se es-tabeleceram precariamente nas periferias urbanas, expulsos daagricultura, estão sentindo novamente as engrenagens da mo-dernidade econômica com a contração do emprego urbano. Esteé um problema mundial, porém as cidades pobres enfrentamsimultaneamente o peso da pobreza e o custo da modernidade.Nas atuais estruturas, a pessoa que não tem emprego simples-mente não pertence a lugar nenhum e, de certa, forma deixa deser um cidadão. Com a transformação estrutural do emprego,devemos recuperar a capacidade da organização comunitária paraabsorver socialmente as pessoas em diferentes formas. Consi-derando as estruturas de emprego mundiais, este é um problemaque deve ser enfrentado de maneira inovadora e com uma pers-pectiva de longo prazo.

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Situações Especialmente Difíceis e Atendimento aosMais Vulneráveis – Milhões de crianças têm de traba-lhar em condições desumanas, estão sujeitas à prostitui-ção e à violenta repressão policial ou até mesmo aos es-quadrões da morte. Os meninos de rua transformaram-senum dos maiores problemas, devido ao recente e caóticoprocesso de urbanização. Não existem soluções técnicas“padrão” para esses problemas. Os prefeitos têm de lide-rar a batalha, sabendo que devem enfrentar preconceitosprofundamente enraizados e sistemas de exploração eco-nômica que só mudarão com uma nova mentalidade, umnovo respeito pelo ser humano.

RUMO A ADMINISTRAÇÕES MUNICIPAISMAIS EFICIENTES

Como vimos, as municipalidades estão na linha de fren-te dos problemas, mas no mais baixo escalão das deci-sões administrativas. E o forte processo de urbanizaçãoestá fazendo com que, a cada dia, suas tarefas se tornemmaiores e mais urgentes. Seguindo a tendência geral mo-derna rumo à democratização, à descentralização e à ges-tão participativa, as administrações municipais terão delutar para melhorar seu nível de eficiência.

Isto significa que os prefeitos, individualmente mastambém através de iniciativas intermunicipais, têm demelhorar as condições gerais do seu trabalho, pois estãomais bem equipados para promover as necessárias políti-cas relacionadas com as crianças.

Na mudança de rumo necessária para assegurar a efi-ciência, as tarefas passam, gradualmente, do governocentral para as municipalidades e, portanto, os fundoscorrespondentes devem ser descentralizados. Nestaárea, existem enormes diferenças. A Suécia, por exem-plo, gasta 72% dos seus recursos públicos no nível lo-cal de administração e, assim, a ação descentralizada écoberta por fundos descentralizados. Esta proporçãopode ser comparada aos 8% ou 12% dos países em de-senvolvimento. A descentralização da verba freqüen-temente enfrenta fortes resistências políticas, porém éessencial para o desenvolvimento de políticas locais.A pressão conjunta das municipalidades tem dado bonsresultados neste campo.

Além disso, a ação conjunta dos prefeitos é necessáriapara aumentar o orçamento destinado pelo governo cen-tral à infra-estrutura urbana. O rápido crescimento dapopulação urbana através da migração dos mais pobresprovoca a urbanização descapitalizada, com forte impac-to sobre a saúde e o meio ambiente. Como os vastos inte-resses econômicos podem pressionar muito mais forte-mente o governo central do que a presença política demilhares de dramas sociais esparsos, é imprescindível que

os prefeitos, que enfrentam diretamente esses problemas,lutem por investimentos orientados socialmente.

Os prefeitos também têm de lutar por uma presençamaior nas decisões relativas às políticas macroeconômi-cas. É preciso reconsiderar as restrições aos subsídios aospobres urbanos bem como a estrita imposição de políti-cas de custo-benefício. É urgente um desenvolvimentohumano sustentável e políticas macroeconômicas compa-tíveis. Os governos locais, que freqüentemente pagam oscustos políticos e humanos dos ajustes, deveriam ter umapresença mais forte nas decisões e na formulação de polí-ticas compensatórias. De fato, em áreas como emprego,parece bastante óbvio que os prefeitos deveriam desem-penhar um papel mais importante na discussão da políti-ca macroeconômica.

Finalmente, os governos centrais deveriam adotar umapolítica muito mais flexível quanto às relações interna-cionais dos governos locais. Como vimos, na era da al-deia global é essencial que as cidades aprendam com ou-tras cidades do mundo e que possam receber ajuda externasem ter de passar por sucessivas camadas de intermediá-rios. Experiências recentes nas quais a verba foi direta-mente transferida para governos ou comunidades locais,com a implementação garantida mediante parcerias entreáreas pública, privada e comunitária, demonstraram queos fluxos de ajuda estão maduros para um importante es-forço de reengenharia de gestão.

De qualquer maneira, as atuais tendências mostram queo espaço local está atingindo a maioridade e as adminis-trações municipais, que assumem um papel de coordena-ção do processo de gestão social integrada, estão abrindocaminho para profundas mudanças em direção a um de-senvolvimento mais humano e mais ético.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]. Textos disponíveis na home page: http://ppbr.com./ld.

O presente texto é uma versão ampliada de um estudo feito no quadro da Unicefe elaborado em vista de uma reunião internacional de prefeitos.

1.“Murdoch (1997:2) se irrita particularmente contra o cerceamento da sua li-berdade de fazer propaganda de cigarros, já que é membro do conselho de admi-nistração da Phillip Morris.

2. Uma proposta integrada de políticas sociais pode ser encontrada no capítulo11 de A reprodução social, atualmente no prelo, e acessível na home page: http://ppbr.com/ld.

3. Não há palavra em português que traduza sequer aproximadamente o termoempowerment.

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N

ACESSO À JUSTIÇA E REINVENÇÃO DOESPAÇO PÚBLICO

saídas possíveis de pacificação social

RENATO SÉRGIO DE LIMA

Sociólogo, Analista da Fundação Seade

ão obstante as várias transformações observa-das no Brasil, nas últimas décadas, no sentidoda consolidação do modelo democrático de go-

verno, persistem sérias dificuldades em equacionar o hia-to entre democracia política e democracia social, pois, en-tre os vários fatores desta realidade, a estrutura estatal res-ponsável pelo controle social – em especial os aparelhospolicial e judiciário – ainda se pauta numa “lógica em uso”que desconsidera, nas suas raízes, direitos básicos de ci-dadania e que opera a partir da persistência de modos vio-lentos de resolução de conflitos.

Neste artigo, pretende-se discutir como a crise dosistema judiciário brasileiro se relaciona com a persis-tência de modos violentos de resolução de conflitos nointerior da sociedade brasileira, bem como “problema-tizar” as propostas de pacificação social colocadas nodebate público sobre reforma do Poder Judiciário. Noentanto, por se tratar de um tema complexo e que nãose esgota numa única perspectiva, a análise se restrin-girá a um recorte específico: investigar como o siste-ma judicial brasileiro está preparado e estruturado paramediar conflitos e se, na atualidade, ele tem consegui-do cumprir este papel.

Nesta linha, cabe, por um lado, pensar como a pro-vocação por parte da sociedade ajuda a desobstruir osmecanismos de acesso à Justiça e, por outro, conside-rar os vários significantes socioeconômicos-culturaisque norteiam nossa cultura política, entre eles o nívelde desenvolvimento do país (inserção e posição do paísna economia mundial), a cultura jurídica dominante,em termos dos grandes sistemas ou famílias de direito,e o processo histórico por via do qual essa cultura jurí-dica se instalou e se desenvolveu num determinado país.Isto é necessário para uma completa compreensão da

conflitualidade contemporânea (Souza Santos et alii,1996). Significa dizer que, mesmo considerando todasas iniciativas tomadas ao longo dos últimos anos, nosentido de universalizar o acesso ao aparelho judiciá-rio, os conflitos da sociedade brasileira somente toma-rão o rumo dos tribunais se estes forem plenamente en-tendidos como os instrumentos mais legítimos e eficazesde resolução de conflitos e se eles não estiverem muitodistantes do que a população acredita ser justiça (Ta-vares dos Santos e Tirelli, 1996).

Contudo, vive-se atualmente para além de uma cri-se social, na qual pobreza, medo, violência e desem-prego emergem como algumas das faces visíveis doprocesso de precarização das condições de vida da po-pulação e contribuem para o crescimento da litigiosi-dade social – são faces daquilo que Dahrendorf (1991)chamou de “conflito social moderno”, ou seja, os dile-mas e impasses da sociedade contemporânea entre pro-dução de riqueza e distribuição de direitos. Ao que tudoindica, o Brasil vivencia uma crise moral, que “produzgolpes profundos nas pautas de uma sociabilidade co-tidiana”, legitima a descrença nos aparatos públicos deformulação e execução de políticas e se funda no des-respeito e no desinteresse pelo bem público (Silva,1994). Assim, não é de se estranhar que, em função dainexistência de marcos bem definidos de um espaçopúblico capaz de lidar com a alteridade, mecanismosextra-oficiais de resolução de conflitos (violência po-licial, acerto de contas, linchamentos, torturas e todasorte de violações aos direitos humanos e civis) sejamtão comumente adotados e tolerados pela populaçãobrasileira, concorrendo com a Justiça pública na defi-nição dos espaços de mediação e de distribuição dassanções. Neste cenário, o que está em jogo é a forma

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como a sociedade brasileira lida com os seus conflitose os meios que ela elege para legitimamente solucioná-los.

ESTADO MODERNO E PODER JUDICIÁRIO

Junto com os poderes Legislativo e Executivo, o Po-der Judiciário constitui-se em um dos pilares fundadoresdo Estado constitucional moderno. Contudo, o significa-do que ele vem assumindo, ao longo dos últimos dois sé-culos, tem evoluído perceptivelmente. Numa tentativa delocalizar no tempo e no espaço alguns destes significa-dos assumidos pelo Poder Judiciário, Sousa Santos et alii(1996) distinguem três grandes períodos históricos da“função judicial nas sociedades modernas”: do Estado-liberal; do Estado-providência; e de crise do Estado-pro-vidência.

O primeiro período, segundo os autores, compreendetodo o século XIX e prolonga-se até a Primeira GuerraMundial, caracterizando-se pelo pouco peso político atri-buído aos tribunais, comparativamente aos poderes Exe-cutivo e Legislativo, e pela sua longa duração, fato que otornou de fundamental importância na consolidação domodelo judicial moderno. No campo do pensamento ju-rídico, este período caracteriza-se, entre outras, por idéi-as como a individualização do processo penal – um lití-gio somente pode ser tomado em função dos indivíduos(isoladamente) que dele participam e de que a validadede uma decisão judicial está circunscrita a um determina-do processo, não tendo validade geral – ou a crença pelaqual a independência do Poder Judiciário reside no fatode este estar total e exclusivamente submetido ao impé-rio da lei, sendo o rigor técnico um elemento essencial.Como resultado, seja em função do vertiginoso desenvol-vimento da economia capitalista pós-revolução industrial,que fez emergir energicamente a macrolitigiosidade so-cial, seja devido à atuação restritiva da ação do Estadopor parte dos tribunais, que limitava a intervenção na re-gulação social e econômica, pode-se concluir que a posi-ção institucional do Poder Judiciário o formatou a umaprática judiciária tecnicamente exigente, mas eticamentefrouxa, inclinada a traduzir-se em rotinas e, por conse-guinte, a desembocar numa Justiça trivializada. Nestecenário, o Judiciário se viu neutralizado politicamente eserviu de ingrediente essencial da legitimidade políticados demais poderes, uma vez que garantiu que a produ-ção legislativa destes chegasse aos cidadãos “sem distor-ções” (Sousa Santos et alii, 1996).

O segundo período, chamado de período do Estado-providência, começou a ser gestado nos “países centrais”no final do século XIX, vindo a tomar sua forma acabadasomente após a Segunda Guerra Mundial. Neste período,o significado sociopolítico dos tribunais era outro, com-

pletamente diferente daquele verificado no primeiro pe-ríodo. Sousa Santos et alii (1996) destacam que “ajuridificação do bem-estar social abriu caminho para no-vos campos de litigação nos domínios laboral, adminis-trativo e da segurança social, o que, nuns países mais doque noutros, veio a se traduzir no aumento exponencialda procura judiciária e na conseqüente explosão da liti-giosidade”. Como resultado, a maioria dos países adotoumecanismos de informalização e automatização da Justi-ça. Da mesma forma, “a distribuição das responsabilida-des promocionais do Estado por todos os seus poderes fezcom que os tribunais tivessem que se confrontar com agestão da sua cota-parte de responsabilidade política (...)No momento em que a justiça social, sob a forma de direi-tos, se confrontou, no terreno do judiciário, com a igual-dade formal, a legitimação processual-formal em que ostribunais se tinham apoiado no primeiro período entrouem crise. A consagração constitucional dos direitos sociaistornou mais complexa e ‘política’ a relação entre Consti-tuição e o direito ordinário e os tribunais foram arrastadosentre as condições do exercício efetivo desses direitos”(Sousa Santos et alii, 1996). Se aceitassem a neutralizaçãopolítica do primeiro período, os tribunais certamente evi-tariam pressões externas em favor de mudanças e conse-guiriam o apoio dos demais poderes, mas, por outro lado,perderiam qualquer utilidade prática na sociedade. Se as-sumissem sua cota-parte, tal como assumiram, veriam-sediante de pressões e demandas cada vez maiores e acaba-riam por competir com os poderes Legislativo e Executi-vo, na tentativa de garantir uma tutela mais eficaz sobreos direitos de cidadania (Sousa Santos et alii, 1996). Emresumo, os tribunais assumiram uma posição fundamen-tal nos “países centrais” e o desempenho da Justiça pas-sou a ter uma maior relevância social, ou seja, as questõesda capacidade, da legitimidade e da independência do Ju-diciário estavam na ordem do dia destes países.

O terceiro período, que foi intitulado período de crisedo Estado-Providência, emergiu no bojo do colapso domodelo de Bem-Estar Social, que por sua vez ganhou forçano final da década de 70 e início da de 80, e persiste atéhoje. Incapacitados financeiramente, os Estados vêem-sediante de enormes desafios futuros (crise fiscal, globali-zação, explosão de litigiosidade, dentre outros) que oslevam a repensar toda a atividade judicial. Desta manei-ra, são repostas na ordem do dia questões sobre a forma-ção profissional dos magistrados e operadores do direito,sobre a organização do poder judicial e do sistema judi-ciário, sobre a cultura judiciária dominante e sobre ospadrões e orientações políticas do associativismo dosmagistrados (Sousa Santos et alii, 1996). Ainda não épossível ter clareza sobre qual modelo de Estado vemsucedendo o Estado-Providência, mas já é possível vis-

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verifica-se que no Sudeste este percentual é de 27,4%, noNorte de 19,9% e no Sul de 29,9%. Como agravante, den-tre as pessoas de 18 anos ou mais que se envolveram emalgum tipo de conflito, 42,7% preferiram não acessar aJustiça e resolveram o conflito por conta própria, abrindomargens à violência e a outras formas de resolução deconflitos.

Por outro lado, uma maior procura dos tribunais porparte da população coloca em xeque o atual modelo deorganização judiciária, uma vez que este não comportanovas demandas. Atualmente, 24% dos cargos de juízesde primeira instância estão vagos; a média brasileira é deum juiz para 26,5 mil habitantes, contra cerca de um juizpara cada 3,5 mil habitantes na Alemanha. As estatísticasexistentes mostram o congestionamento dos tribunais emtodos os graus e modalidades. Na Justiça Comum de pri-meiro grau, só no primeiro trimestre de 1995, em 17 esta-dos brasileiros, deram entrada 578 mil processos, sendojulgados 348 mil, ou 60% do total. Na Justiça Federal deprimeiro grau, no mesmo período, entraram 161 mil pro-cessos e foram julgados 47%. Já no caso da Justiça doTrabalho de primeiro grau, no primeiro semestre de 1995,deram entrada 894 mil processos, sendo julgados 835 mil,ou 93%. Tendo em vista que 1.744 juízes estão em exer-cício no país, a média corresponde a 479 processos julga-dos por juiz, em seis meses, ou 79 por mês, ou ainda 3,6por dia (ONU, 1996; Veja, 11/12/96). No caso da JustiçaCriminal, estima-se em cerca de 290.000 processos/anoo volume que dá entrada no Judiciário, isto apenas emSão Paulo.

Não obstante esta realidade, várias iniciativas têm sidotomadas no âmbito do Poder Judiciário para torná-lo maispróximo e concreto da população. Em alguns estados daFederação, foram criados os fóruns regionais. Em outros,como no Rio de Janeiro e em São Paulo, vários tribunaisde pequenas causas foram transformados em juizadosespeciais para causas cíveis e relacionadas aos direitosdo consumidor. No Rio de Janeiro, foi criado o disque-Justiça, em que, pelo telefone, podem ser feitas reclama-ções. Em São Paulo, o Tribunal de Justiça implantou umsistema que permite, por telefone, saber o andamento dosprocessos que estão sendo objeto de análise em segundainstância (ONU, 1996).

No Espírito Santo, foi criada a Justiça Volante, que vaiaos locais onde ocorreram acidentes de trânsito. Em 93%dos casos, foi obtido algum tipo de acordo. No âmbito daJustiça Criminal, ainda no Espírito Santo, foi implantadauma Central de Flagrantes, para crimes punidos com penade detenção, sob responsabilidade de um juiz singular.Nesta Central, o réu é interrogado na hora e toma conhe-cimento da sentença cinco dias depois. Por fim, criou-sea Justiça Itinerante, que percorre os bairros para atender

lumbrar alguns dos impactos que tal crise vem causandono significado sociopolítico assumido pelos tribunais. Nãoobstante todas as diferenças existentes de país para país,neste período tudo leva a crer que todos caminham parauma “flexibilização” dos modelos regulatórios, ou seja,os tribunais hoje têm que repensar a maneira como estãoinseridos na sociedade e, por conseqüência, como podemcontinuar se legitimando enquanto espaços adequados paraa mediação de conflitos. Não basta apenas criar mecanis-mos de acesso à Justiça, é necessário que os tribunais se-jam compreendidos como os foros mais eficientes na re-solução dos conflitos sociais (Sousa Santos et alii, 1996).

O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL

Paradoxalmente, no Brasil, o Poder Judiciário se vêdiante de uma série de questionamentos que o inseremnas discussões-chaves dos três períodos analisados, aomesmo tempo em que o excluem da temporalidade dosmesmos, pois a realidade dos tribunais hoje no país re-mete à discussão sobre como foi formada nossa culturajurídica e nos faz perguntar se ainda não estamos nos de-batendo com questões mal resolvidas de períodos ante-riores, mesmo porque no Brasil não se constituiu um pe-ríodo de Estado-Providência, nos estritos termos que osautores citados o caracterizam.

Desta forma, nas últimas décadas, a permanência decontrastes e paradoxos tem sido característica da vida ju-rídica e judicial brasileira. À medida que surgem novostipos de conflitos, a maioria das leis vai envelhecendo e,embora os legisladores venham respondendo ao desafioda modernização das instituições de direito com a cria-ção de novas leis, a cultura técnico-profissional da ma-gistratura parece defasada, incapaz de se repensar à luzda aplicação de leis mais modernas. “Apesar do maioracesso à Justiça, por causa das demandas encaminhadaspor segmentos sociais que somente agora estão ingres-sando no universo jurídico, as tradicionais deficiênciasburocráticas do Judiciário têm bloqueado a fluidez de suasdecisões. Apesar da multiplicação do número de consu-midores de serviços judiciais, nem todas as sentenças têmsido acatadas. Por fim, enquanto parcelas crescentes dasociedade vão reivindicando novas formas de justiça e depráticas jurídicas, os ritos e procedimentos continuamincompreensíveis, misteriosos e muitas vezes kafkianospara a maioria esmagadora da população” (Faria, 1992).

Seja como for, os dados da PNAD (1988) comprovama tese de que o Judiciário é algo distante, ausente da vidacotidiana da maioria da população brasileira. Segundo estapesquisa, apenas 27,9% da população brasileira que este-ve envolvida com algum tipo de problema criminal mo-veu ação judicial. Se consideradas as regiões do país,

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aos casos que exijam instauração de processos e para pres-tar serviços cartoriais (registro civil, emissão de documen-tos) e sociais (atendimento odontológico) (ONU, 1996).

A maior esperança do atual sistema judiciário em aten-der às demandas crescentes e desafogar os tribunais en-contra-se nos chamados Juizados Especiais Cíveis e Cri-minais, que julgam causas cíveis no valor de até quarentasalários mínimos e processos criminais com pena máximade até um ano de prisão. Nos casos criminais, com a con-cordância do acusado e do defensor, é possível a suspen-são condicional do processo (não da pena) por um perío-do de prova de dois anos, sem discutir a culpabilidade doacusado, sem interrogatório, sem a produção de provas e,se o acusado passar pelo período probatório, sem registrodo antecedente. No entanto, pode ser necessária a repara-ção do dano (ONU, 1996). Numa outra direção, a possibi-lidade da adoção das Súmulas Vinculantes vem merecen-do debates acalorados no interior do Judiciário. Na opiniãode alguns, elas evitariam que ações iguais fossem julga-das repetidamente, desafogando o sistema. Para outros, elaspodam a capacidade de interpretação das leis, fundamen-tal à modernização do Direito.

Entretanto, mesmo considerando as iniciativas toma-das no sentido de facilitar o acesso à Justiça e as dificul-dades concretas enfrentadas pelo Poder Judiciário no co-tidiano da atividade judicial, o sistema judicial brasileiroestá desfocado de seu principal objetivo, que é a media-ção eficaz de conflitos através da aplicação da Justiça (deuma concepção de justiça que todos aceitem como a maislegítima). Assim sendo, mais do que o acesso à Justiça, acompreensão que a população faz dela pode ser a chavepara se pensar saídas possíveis de pacificação social. Emoutras palavras, de nada adiantará criar mecanismos dedesobstrução do Judiciário, visando a facilitação do aces-so à Justiça, se não for questionado o modus operanti dostribunais, pois, do contrário, em pouco tempo soluçõesinovadoras repetirão os vícios e estrangulamentos do sis-tema. Como exemplo, a imprensa vem noticiando que amorosidade já faz parte do cotidiano dos Juizados Especi-ais, impondo aos cidadãos as mesmas condições observa-das nas demais instâncias judiciais.

Da mesma forma, as autoridades judiciárias se vêempressionadas pelo volume crescente de demandas e des-locam o eixo base do Judiciário. Significa dizer que, emmuitos casos, as pressões exercidas pelos órgãos máxi-mos do Poder Judiciário, entre estes as corregedorias, vãono sentido de cobrar uma maior produtividade dos juí-zes, mesmo em detrimento das especificidades de cadacaso. Um exemplo bastante ilustrativo deste fato pode serobtido através do diário de campo da pesquisa “O Joveme a Criminalidade Urbana em São Paulo” (1996), realiza-da pela Fundação Seade, em convênio com o Núcleo de

Estudos da Violência – NEV/USP. Neste diário, estão ano-tados relatos de funcionários e juízes narrando que, du-rante o período de coleta de dados da pesquisa (1993), asVaras Especiais da Infância e da Juventude foram objetode inúmeras correições e que nos registros destas Varasconstam as recomendações feitas pela Corregedoria paraaumentar o fluxo de processos julgados, diminuir o tem-po de julgamento de processos e uniformizar normas eprocedimentos técnicos-processuais. Numa primeira lei-tura, não se encontra nada de extraordinário nestes fatos,mas, se considerados os resultados da pesquisa citada –ou seja, distribuição desigual de medidas socioeducativassegundo características étnicas, de gênero e de idade dosjovens infratores (porcentagem maior de internações paranegros e mulheres) – constata-se uma preocupação cen-trada apenas na racionalidade técnica da Justiça, cuja ló-gica desconsidera o conteúdo mesmo das sentenças judi-ciais. É certo que tal questão remete para a discussão sobrea independência do magistrado, que tem que ser preser-vada, mas também é certo que muitas vezes o princípiode eqüidade perante às leis parece comprometido.

Ao menos esta é a conclusão de uma outra pesquisarealizada no âmbito do Núcleo de Estudos da Violência,da Universidade de São Paulo, ao indicar que o sistemade Justiça Criminal, no Brasil, trata de forma diferencia-da a população negra e a branca (Adorno, 1995). Os re-sultados da pesquisa demonstram que “não há diferençasentre o ‘potencial’ para o crime violento praticado pordelinqüentes negros comparativamente aos brancos. Noentanto, réus negros tendem a ser mais perseguidos pelavigilância policial, revelam maiores obstáculos de acessoà justiça criminal e maiores dificuldades de usufruir dodireito de ampla defesa, assegurado pelas normas consti-tucionais. Em decorrência, tendem a merecer um trata-mento penal mais rigoroso, representado pela maior pro-babilidade de serem punidos comparativamente aos réusbrancos. Como se demonstrou, as sentenças condenatóriasse inclinam a privilegiar os roubos qualificados1 por réusnegros. Tudo parece indicar, portanto, que a cor é pode-roso instrumento de discriminação na distribuição da jus-tiça” (Adorno, 1995).

Paralelamente à discriminação pela cor da pele, o avan-ço obtido pelo movimento de mulheres, no que tange àconquista formal de direitos, parece diluído na persistên-cia de práticas de violência contra a mulher, em especialno espaço da casa, pelos companheiros e maridos. “Osdados sobre mulheres vítimas apontam para uma práticasistemática de violência pelos maridos” e “revelam queas violências físicas se repetem mais quando cometidascontra a mesma mulher do que contra o mesmo homem.Trata-se, pois, de violência rotinizada na relação conju-gal” (ONU, 1996).

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No limite, significa dizer que o Poder Judiciário acabapor reproduzir as profundas desigualdades observadas nointerior da sociedade brasileira, reforçando estigmas eexclusões, e, ao invés de se transformar num importantemarco de referência, divulgando os instrumentos de me-diação de conflitos e garantidores da cidadania plena, iso-la-se num mundo estranho à maioria da população, semmuita perspectiva de oferecer, a curto prazo, saídas pos-síveis de pacificação social.

CONCLUSÃO

Neste breve, mas inquietante, panorama da realidade dosistema judicial brasileiro foi possível perceber, mesmo quesuperficialmente, os vários entraves que impedem aconsolidação da democracia no país. Como bem ilustrouSantos (apud Adorno 1995), “não são poucos os obstáculosque contribuem para impedir, nesta sociedade, a uni-versalização da cidadania plena, entre os quais a permanênciade extremas desigualdades sociais – a despeito das profundastransformações experimentadas no modelo de desen-volvimento econômico-social a partir da segunda metadedeste século –, a par do acentuado corporativismo queintroduz sério desequilíbrio na organização de interessescoletivos e da baixa participação dos cidadãos nas orga-nizações representativas dos distintos grupos sociais. Tudoconverge no sentido de preservar uma sociedade profun-damente dividida, atravessada por diferentes identidadesculturais, estilos de vida e padrões de consumo que impedema constituição de uma esfera de realização do bem comum.Tais características societárias dificultam sobremodo ainstitucionalização dos conflitos, cujas soluções, com muitafreqüência, apelam para o domínio das relações inter-subjetivas, permanecendo restritas à esfera do mundo privado,cujas regras de regulamentação da conduta não obedecem,como se sabe, aos mesmos princípios que regulam o Estadodemocrático de Direito. Tais conflitos tendem a ser solvidosà base de relações entre fortes e fracos, sem a mediação domundo das instituições públicas e das leis”.

Portanto, pensar alternativas que aproximem o Judici-ário da violenta realidade da sociedade brasileira signifi-ca, de um lado, pressionar o sistema judicial existente, nosentido de forçá-lo a se posicionar e garantir direitos, e,por outro, pensar quais mecanismos poderiam ser adota-dos como forma de conter e, efetivamente, resolver osconflitos. Talvez uma sugestão fosse incorporar a contri-buição de outros atores que não o Estado. No âmbito doPoder Judiciário, propostas como a justiça comunitária –ou, numa outra vertente, a arbitragem – deveriam ser maisbem debatidas e analisadas. Mecanismos de controle ex-terno do Judiciário, do Ministério Público e da Políciadeveriam ser prontamente estruturados. No âmbito do

Estado, a adoção de políticas de redução de desigualda-des torna-se imperiosa – um exemplo de medida que po-deria contribuir para com a Justiça social são os progra-mas de complementação de renda (renda mínima). Emalguns estados e municípios, estes programas têm revela-do um potencial de sucesso muito grande.

Talvez, ainda, dever-se-ia reanimar a discussão desen-cadeada com a emergência de novas demandas e de novosatores sociais, no bojo da explosão de litigiosidade que oBrasil vem observando nas duas últimas décadas e que vemcontribuindo na regulação democrática da sociedade. Poresta proposta, os movimentos sociais, que subverteram alógica da relação Estado e sociedade civil ao quebrar omonopólio do Estado no planejamento e na gestão de po-líticas públicas, conquistando muitas de suas bandeiras, eas Organizações Não-Governamentais – ONGs, que colo-cam aos Estados-Nações questões sobre direitos humanos,ecologia como direitos universais acima das soberaniasnacionais e territoriais, têm papel-chave na modelagem deum novo ordenamento legal e de resolução de conflitos,capaz de superar os desafios postos.

Assim sendo, a atuação dos movimentos sociais e dasONGs sinaliza para um horizonte de sentido, em que po-líticas públicas possam ser debatidas e negociadas noâmbito de interesses múltiplos e diversos (Silva, 1994).Sinaliza para a descoberta do “sentido do espaço público(...) no qual as diferenças se expressam e se representamnuma interlocução possível: no qual valores circulam,argumentos se articulam e as opiniões se formam; no qualparâmetros públicos podem ser construídos e recons-truídos, como balizas para o debate em torno de questõespertinentes; espaço no qual, enfim, a dimensão ética davida social pode constituir-se numa moralidade públicaque depende, por inteiro, da convivência democrática comas diferenças e os conflitos que eles carregam, exigindo,por isso mesmo, de cada um, a cada momento, o exercí-cio dessa capacidade propriamente moral de discernimentoentre o justo e o injusto, cuja medida, por ser desprovidade garantias e pontos fixos (...) só pode ser construídaatravés de uma permanente e sempre renovada interlocu-ção” (Telles, 1994).

Diante do exposto, é possível concluir que o processode pacificação social no Brasil e o reconhecimento dosTribunais como foros mais adequados para a resolução deconflitos, sejam estas civis ou criminais, passam pela(re)constituição de esferas públicas de diálogo e media-ção, e pela constituição de um espaço público capaz delidar com a alteridade e tirar da crise social lições que per-mitam estabelecer regras e parâmetros de um novo con-trato social, mais justo e democrático. Entretanto, nossosistema judicial não está preparado nem estruturado, a curtoprazo, para cumprir este papel.

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NOTAS

E-mail do autor: [email protected].

1. Este artigo analisou apenas os casos de roubos qualificados.

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