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    PolitiKaREVISTA

    Nº3_ Março_2016

    ISSN 2358-9841

    federação | política | previdência social | saúde pública

    sistema tributário | investimentos públicos | educação

    Reforma do Estado

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    Nº3 MARÇO 2016 |  ISSN 2358-9841

    Organização

    Colaboração

    PolitiKaREVISTA

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    _ JUNHO 2015 PolitiK

    Renato Casagrande  Aspásia Camarago

    Ligia Bahia

    Leda Paulani

    Evilásio Salvador

    Denise Lobato Gentil

    César Benjamin

    4   6

    22

    48

    36

    58

    8270

    editorial federação

    política

    saúde pública

    investimentos públicos

    sistema tributário

    previdência social

    educação

    sumárioVISTA POLITIKA

    NSELHO EDITORIAL 

    nato Casagrandelos Siqueiraine Schwanxander Blankenagelar Benjaminrcia H. G. Rollembergael Araripe Carneiroiano Sandrilo Bracarensenfred Nitschaldo Saldíasia Bacelar de Araújomundo Pereira

    ETOR RESPONSÁVEL 

    nato Casagrande

    TOR 

    ar Benjamin

    ORDENAÇÃO EDITORIAL

    rcia H. G. Rollemberg

    NALISTA RESPONSÁVEL nderson Siqueira

    VISÃOeza da Rochanderson Siqueira

    OJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃOço Design

    GEM DE CAPA

    ÁTRIA; óleo/tela; autoria Pedro Bruno;rvo Museu da República; Instituto Brasileiro de Museus - Ibram,

    nistério da Cultura – MinC (nº de autorização 02/2016)

    NDAÇÃO JOÃO MANGABEIRA

    e própria – SHIS QI 5 – Conjunto 2 casa 2P 71615-020 - Lago Sul - Brasília, DFfax: (61) 3365-4099/3365-5277/3365-5279

    w.fjmangabeira.org.br w.tvjoaomangabeira.org.br book.com/Fjoaomangabeira - twitter.com/fj_mangabeira://fjmangabeira.org.br/revistapolitika

    MBOLDT-VIADRINA GOVERNANCE PLATFORM

    ser Platz 6, Im Allianz Forum17 Berlin - Germany+49 30 2005 971 [email protected]

    454 Revista Politika /Fundação João Mangabeira.

     – Vol. 1, n. 3, (jan – jun 2016). Brasília: Editora FJM, 2016

    Semestral

    Publicação on-line:

    ISSN: 2358-9841

    1.Política – Periódicos 2. Políticas públicas – Periódicos. I.

    Fundação João Mangabeira. II Revista Politika.

    CDD 32(05)

    CDU: 32

    TALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

    ha catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Wilians Juvêncio da Silva CRB 620

    Região. DOX Gestão da Informação.

    agem Português: 2.000

    agem Inglês: 500

    FUNDAÇÃO JOÃO MANGABEIRA

    DIRETORIA EXECUTIVA

    PRESIDENTE

    Renato Casagrande

    DIRETOR ADMINISTRATIVO

    Milton Coelho da Silva Neto

    DIRETOR FINANCEIRO

    Renato Xavier Thiebaut

    DIRETOR DE ASSESSORIA

     Jocelino Francisco de Menezes

    CONSELHO CURADOR 

    Membros Titulares

    PRESIDENTE

    Carlos Siqueira

    Serafim CorrêaDalvino Troccoli FrancaKátia BornÁlvaro CabralAdilson Gomes da SilvaEliane NovaisPaulo Afonso BracarenseManoel AlexandreBruno da Mata James LewisSilvânio Medeiros dos SantosFrancisco CortezGabriel Gelpke Joilson Cardoso

    CONSELHO CURADOR (SUPLENTES)

     Jairon Alcir do NascimentoPaulo Blanco BarrosoFelipe Rocha MartinsHenrique José Antão de Carvalho

    CONSELHO FISCAL 

    Cacilda de Oliveira Chequer Ana Lúcia de Faria NogueiraGerson Bento da Silva Filho

    CONSELHO FISCAL (SUPLENTES)

    Marcos José Mota CerqueiraDalton Rosa Freitas

    DIRETORIA EXECUTIVAMárcia H. G. Rollemberg

    COORDENAÇÃO DA ESCOLA JOÃO M ANGAB EIRAAdriano Sandri

    ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃOHanderson SiqueiraLuciana Capiberibe

    UM NOVO FEDERALISMO PARA O BRASIL: COMO CORRIGIRO NOSSO FEDERALISMO ASSIMÉTRICO E INCOMPLETO

    Riberti de Almeida FelisbinoVitor Amorim de Angelo

    GOVERNANÇA E INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICASNO BRASIL CONTEMPORÂNEO

    PERSPECTIVAS E CONSTRANGIMENTOSDO SISTEMA DE PREVIDÊNCIAPÚBLICA NO BRASIL

    POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL:NOTAS PARA O DEBATEDE ALTERNATIVAS

    O INJUSTO SISTEMATRIBUTÁRIO BRASILEIRO

    CAPITALISMO E ESTADO NO BRASILA SAGA DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS

    EDUCAÇÃO E PROJETO NACIONAL

    pyright ©Fundação João Mangabeira 2016

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    _ MARÇO 2016

    Renato Casagrande Por um Estado melho

    54ditorial

    Reforma do Estado é o tema geraldeste número da revista Politika,que a Fundação João Mangabeiraedita junto com a UniversidadeHumboldt-Viadrina, daAlemanha, com versões emportuguês, inglês e espanhol.

    É um tema central para nós.O Brasil conta hoje com umEstado forte e ágil para premiaramigos e punir adversáriospolíticos dos governantes,mas fraco e inoperante paramobilizar a sociedade em tornode um projeto nacional. Issodeixa o país à deriva.

    Essa crise do Estado temmúltiplas dimensões, como severá nos artigos desta terceiraedição. Aspásia Camargo tratado federalismo brasileiro, “uma dasmais antigas soluções queencontramos para administrarmelhor o nosso gigantismoterritorial, mas também o nossoproblema mais insistente e mais malresolvido”. Em uma trajetóriapendular, que alternoucentralização e descentralizaçãoexcessivas, consagramos um“federalismo trino” – ou seja, comtrês instâncias de governo – queé uma especificidade do Brasil.

    A arquitetura desse sistema

    apresenta muitas fissuras. A cargatributária tem se concentradodesde a década de 1990, pois aUnião amplia o recolhimentodos recursos que lhe sãoexclusivos, em detrimentodaqueles que precisam serrepartidos. Ao mesmo tempo,diante das omissões do governofederal, estados e municípios sãolevados a assumir novasresponsabilidades, para as quaisnão estão preparados. Aumentao desequilíbrio na distribuição de

    atribuições e recursos entre astrês instâncias de poder.

    A reorganização do nosso pactofederativo exigirá uma revisãoconstitucional. Talvez seja omomento de aprendermos com aConstituição da Alemanha, queadota o princípio da subsidiariedade,hoje expandido para toda a Europa.Trata-se de governar de baixo paracima: no momento de definircompetências, a sociedade civil temprioridade sobre o Estado; paracumprir as funções que a sociedade,sozinha, não consegue assumir,deve-se olhar, em primeiro lugar,para os poderes locais; se as tarefasestão além das capacidadesmunicipais, apela-se aos estados. Ogoverno federal só é chamado aatuar nas questões que ultrapassam ascompetências de todas as instânciasinferiores.

    Nossa construção institucionalsempre seguiu o caminhoinverso, imaginando soluções decima para baixo. Isso mostra que,mais do que uma simplesalteração nas leis, é de umamudança cultural que se trata.

    Riberti de AlmeidaFelisbino e Vitor Amorimde Angelo estudam as condiçõesde governabilidade presentes em

    nosso sistema político. Começamdestacando um paradoxo: temosuma democracia consolidada eapoiada, em tese, pela grandemaioria da população. Ao mesmotempo, essa mesma populaçãoconsidera que nossas instituiçõespolíticas não são confiáveis. A crisede representatividade atinge emcheio o Congresso Nacionale os partidos. Mesmo assim, osautores reconhecem que ambos sãoimprescindíveis para a manutençãoda capacidade de governar.

    Denise Lobato Gentil recusaa afirmação, tão difundida, de quea previdência social brasileira sejadeficitária. Registra que estamossujeitos a uma narrativacontraditória, pois o usoindiscriminado de desoneraçõestributárias a fim de estimular oinvestimento privado atingiufortemente a arrecadação dosistema de seguridade. O governoabriu mão de recursos previstosna Constituição para financiá-lo,enquanto anunciava a necessidadede combater um suposto déficit.

    Gentil demonstra que osnúmeros não confirmam a tesedo déficit e argumenta queas variáveis determinantes paraa sustentabilidade do sistema,no longo prazo, estão fora dele:o emprego formal, o patamardos salários, a produtividade dotrabalho. Para afastar o riscode um colapso no financimentodo sistema previdenciário “épreciso que o país cresça,aumente o nível de ocupaçãoformal e eleve a renda médiano mercado de trabalho,promovendo mobilidade social.A política econômica é oprincipal elemento que precisaentrar no debate sobre a ‘crise’

    da previdência.” Não é possívelanalisar a questão previdenciáriaem si mesma, desvinculada daevolução da economia comoum todo.

    Nosso quarto tema é a saúdepública. Nosso Sistema Único deSaúde (SUS) foi concebido paraatender a todos os cidadãos. LigiaBahia diz que o debate sobre eletem sido rarefeito e acidental, oque produz um “consenso vazio”,pois esconde a incapacidade de osistema atender a todos com

    Por um Estado melhor

    nato Casagrandeidente da FundaçãoMangabeira

    PolitiK

    qualidade. Houve iniciativas positivas,como a ampla cobertura de vacinação, oprograma contra a AIDS, os transplantes, areforma manicomial, o programa Saúde daFamília e o maior acesso aos medicamentos.A proibição da propaganda de cigarrostambém deve ser citada. Mas há umproblema crônico de subfinanciamentodo SUS, além da precariedade da gestão,que se reflete na percepção da opiniãopública sobre a baixa qualidade doatendimento. Isso garante uma medicina

    privada muito lucrativa. Os setores que seopuseram à aprovação do direito universalà saúde durante a elaboração do textoconstitucional nunca precisaram se opor aoSUS, pois os negócios nessa áreacontinuaram a prosperar.

    A questão do financiamentodas políticas de Estado nos remete aosistema tributário, o quinto tema da nossarevista, entregue à apreciação de EvilásioSalvador. Temos aqui mais umparadoxo: a necessidade de uma reformatributária é consensual há muitos anos,mas o tema não consegue avançar, poisenvolve um complexo conflitodistributivo entre sociedade e Estado,entre diferentes entes estatais e entregrupos sociais. O atual quadro recessivoagrava o problema, ao provocar grandesperdas na receitade arrecadação do Governo.

    Os princípios gerais enunciados naConstituição de 1988 – equidade,capacidade contributiva, progressividade –estão corretos, mas a legislação

    infraconstitucional posterior caminhouna direção oposta, aprofundando aregressividade do sistema ao transferir, cadavez mais, o ônus tributário para as rendasdo trabalho. Mais da metade da arrecadaçãodo Estado brasileiro vem de tributos queincidem sobre bens e serviços, e é baixa atributação sobre renda e patrimônio –exatamente o contrário do que ocorre nospaíses desenvolvidos. Essa é uma questãoessencial para iniciarmos uma nova etapa dedesenvolvimento.

    As intenções dos constituintes na áreatributária foram, em grande medida,

    frustradas. Estudo do Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (Ipea) mostra que asfamílias mais pobres destinam 32% de suarenda ao pagamento de tributos, enquantoas mais ricas destinam apenas 21%. Alémdisso, a desejada descentralização dascapacidades estatais começou a ser revertida

     já a partir de 1993, quando foi introduzidaa desvinculação de receitas dascontribuições sociais, que a União nãocompartilha com estados e municípios.

    Também aqui a ação governamental

    tem sido frustrante. As principaisiniciativas da presidente Dilma Rousseffna área tributária foram as desoneraçõesque beneficiaram as empresas. Nãohouve nenhuma iniciativa de propor umareforma abrangente, de caráterprogressista, cada vez mais importantepara o país.

    Chegamos, então, ao nosso sexto tema:a capacidade de investimento do setorpúblico. Leda Paulani recupera a nossatrajetória histórica e defende uma teseimportante: ao contrário do que dizem oseconomistas com maior visibilidade namídia, investimentos públicos e privadosnão concorrem entre si, mas sãocomplementares.O diagnóstico conservador, de que épreciso cortar os primeiros para aumentaros segundos, não se sustenta nem nahistória nem nos fatos da atual conjuntura.

    Paulani aborda uma questão centralpara o atual debate brasileiro: por que achamada “nova matriz macroeconômica”do governo federal deu errado? Grandes

    desonerações fiscais, acompanhadas daobrigação de produzir superávits primários,deprimiram o investimento público, que jáera muito baixo, e não estimularam o setorprivado a investir. Diante da queda nastaxas de crescimento, impulsionadatambém por uma situação internacionalmenos favorável, o governo aceitou odiagnóstico ortodoxo. O receituário quedele decorre vem agravando a situaçãofinanceira do Estado, pois o aumento dataxa básica de juros eleva a dívida pública,enquanto a recessão faz despencar aarrecadação.

    César Benjamin discute o tema“Educação e projeto nacional”. Critica avisão que reduz a educação a umaferramenta do crescimento econômico,mostrando que há outras questões defundo envolvidas. Na verdade, quando ademanda por educação se generalizou nomundo moderno, a correlação dela com aeconomia sequer havia sido estabelecida.Tanto na Europa do século XIX quantono Brasil do século XX, as redes deescolas públicas surgiram e se expandiram

    como expressões da afirmação dos Estadonacionais, que as sustentavam material eideologicamente. A crise da educaçãobrasileira, especialmente visível emdesastrosos indicadores de qualidade,reflete a crise do nosso Estado: “A falta deprojeto [nacional] é mais angustiante quea de dinheiro.”

    Fatores de natureza sociológica tambémcontribuem para a crise da escola: “Osprofessores ainda são formados para servir àsubjetividade cidadã, enquanto os alunos,cada vez mais, são portadores de umasubjetividade midiática, imagética, errática,que não facilita a permanência produtivaem uma sala de aula.”

    Não se trata, pois, de apenas pedir maisdinheiro e mais vontade política em apoioà educação. Nosso sistema educacionalprecisa passar por uma refundação.

    A Revista Politika traz sempre temas degrande relevância para o país – na primeiraedição “Reforma Urbana”, na segunda,“Trinta anos de Redemocratização”, eagora o terceiro número apresenta sete

    abordagens decisivas para a proposição daReforma do Estado brasileiro. Os temastratados aqui, certamente, não esgotam todo contexto. Há muito que avançar sobreoutros assuntos como segurança pública ereforma política, sempre sob reflexõespermanentes da Fundação João Mangabeirasegmentos sociais e detentores de mandatosdo Partido Socialista Brasileiro. Temosconvicção de que estamos contribuindopara um debate nacional mais qualificado nesperança que a sociedade seja, cada vezmais, atuante para construir uma nova ehistórica etapa para o Brasil.

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    Um novo federalismo para o Bras

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    Erradicar do federalismo ainfluência das oligarquiasO federalismo é uma das mais an-tigas soluções que encontramospara administrar melhor o nossogigantismo territorial, mas é tam-bém o nosso problema mais insis-tente e mais mal resolvido. Aolongo da história, oscilamos de

    forma pendular, ora centralizandoo Estado em demasia, ora o des-centralizando, às vezes tambémem demasia, como ocorreu na Re-pública Velha, quando o poder fe-deral limitava-se a administrar oscentros exportadores que lhe ali-mentavam os impostos.

    Em regimes democráticos, épreciso dizer, as oligarquias seapropriaram da estrutura maisdescentralizada do federalismopara contra ele usar o seu cavalo

    de Tróia, e em seu nome exercero velho poder. O patrimonialis-mo disfarçado de federalismo aca-bou gerando a contraofensivacentralista do E stado Novo.

    O feito se repetiu em 1946.Mesmo na democracia de 1988,precisamos estar alertas ao poderimperial de prefeitos que, muitas

    vezes, perdem seus mandatos porcometerem abusos e malfeitos. Noentanto, é preciso reconhecer queo exemplo vem de cima, do mo-delo patrimonial que se reproduzpara baixo.

    Fortalecer o municípiona federação desreguladaApesar das dificuldades crônicas edos vícios de origem acima desta-cados, que precisam ser blindadospela prática política, pelos novos

    AspásiaCamargoDoutora emsociologia pela Écoledes Hautes Étudesen Sciences Sociales,Universidade de Paris.

    emos uma situação de grave desequilíbrio.scem as responsabilidades dos municípios e dosados, enquanto os recursos disponíveis estãoa vez mais mal distribuídos. A centralizaçãoeral não trouxe eficiência e melhora dos serviços

    blicos. Há um crônico desequilíbrio entre ampetência dos entes federativos e a distribuiçãorecursos arrecadados. Os municípios absor vema vez mais responsabilidades, tentandoponder à omissão federal, enquanto seusursos minguam em igual proporção, na medidaque os repasses constitucionais diminuem,centrando recursos na União. O pacto federativorevisão constitucional são uma necessidadeergencial que não pode ser postergada.

    Um novo federalismo para o Brasilomo corrigir o nosso federalismo assimétrico e incompleto

    I. O federalismo incompleto na estruturapatrimonial do Estado

    costumes e pelas leis, é preciso reconhecer o papel,cada vez maior, que os municípios vêm assumindona estrutura caótica do federalismo brasileiro.

    Essa é a tendência que se firmou nos últimos25 anos, seja porque as instâncias superiores – dis-tantes do eleitor – não se sentem constrangidas acumprir suas funções, seja porque faltam recursos,seja porque, de fato, o prefeito acaba sendo obri-gado a improvisar tarefas, ocupando o vácuo po-lítico que se cria, sob a pressão direta da popula-ção e do eleitor.

    O federalismo não conseguiu exercer seus inú-meros objetivos constitucionais. Em realidade, per-maneceu incompleto, à espera das necessárias regu-lamentações que o tornariam mais prag mático e efi-ciente. Nem isso tivemos. Artigos da Constituiçãotão importantes quanto o 23 permanecem, inexpli-cavelmente, sem regulamentação, em uma área vitalpara o bom funcionamento da Carta, que é a da de-finição comum entre os entes federativos.

    Sem esta definição clara de competências preva-lece a incerteza dos entes federativos, em disputasconstantes uns com os outros, ou fugindo de suascompetências, dependendo do interesse ou desinte-resse que tenham pelo assunto em questão. O nú-mero de “fricções federativas” é muito grande.

    As fricções podem ocorrer em torno de proble-mas ambientais, de prédios e espaços públicos aban-donados, que perderam serventia, de tensões sociaisou de carências de infraestrutura. Vale o princípiogeral de que os entes federativos podem ou devemfazer tudo em certas situações, nada em outras, denatureza equivalente. É o imponderável que domi-na, enfraquecendo as instituições e deixando a po-

    pulação insegura e ressentida.Outras questões fundamentais sobre as compe-tências federativas permaneceram sem solução, co-mo, por exemplo, a heterogeneidade dos nossos 5.570municípios, equivocadamente tratados como iguais.Nenhum legislador se atreveu a classificá- los por ta-manho e renda, para fazer justiça federativa e obtermelhores resultados políticos.

    É necessário reconhecer que muitas atividades exer-cidas, de fato, pelos municípios não são, de direito, suaatribuição. Um encontro de contas deveria ser reali-zado em torno das competências reais assumidas e dosrecursos que são repassados para est ados e municípios.

       F   R   E   D

       C   A   R   D   O   S   O   /   S   H   U   T   T   E   R   S   T   O   C   K .   C

       O   M

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    Aspásia Camargo Um novo federalismo para o Bras

    98ederação

    A descentralização democráticaexige o federalismo fiscal, por meiode repasses automáticos maiores,vindos da União e dos estados, pa-ra os municípios; e, vindos daUnião, para os estados. A parcelahoje reservada aos estados e muni-cípios tem sido burlada pelo con-gelamento dos recursos fiscais aserem repartidos e pela ampliação

    das taxas e recursos exclusivos daUnião. Não resta dúvida: os 22,5%do imposto de renda e do i mpostosobre produtos industrializados re-servados aos estados e municípiostêm sido insuficientes, por causadas omissões dos entes superiorese da sobrecarga dos municípios.Seria justo aumentar de 22,5% pa-ra 25% os repasses, desde que elesfossem compatíveis com as funçõesconsolidadas de cada ente, elimi-nando boa parte da dependência e

    da subalternidade políticas em re-lação ao governo federal.

    Esses repasses devem ser calcu-lados tecnicamente, mas sabemos deantemão que em áreas críticas, co-mo as da saúde, do ensino técnicoe de segundo grau, da infraestrutu-ra da habitação, saneamento e trans-portes, o governo federal e os esta-dos não vêm cumprindo suas fun-

    ções. O agravamento da segurançapública tem sido muito onerosa pa-ra os estados e exige reparação porconta das omissões do governo fe-deral em sua função exclusiva decontrole das fronteiras externas einternas, o que facilita o contraban-do de armas e drogas, de responsa-bilidade exclusiva da União. Taiscompensações poderiam vir do or-çamento, fonte cada vez mais instá-vel, mas, sobretudo, dos repasses au-tomáticos dos fundos de participação.

    Municípios pequenos e pobres,a rebelião dos distritos isoladosOs municípios brasileiros são, emgrande maioria, compostos decidades muito pequenas, às vezesisoladas e sem renda própria. Es-sa situação os deixa politicamen-te dependentes de repasses fede-rais e estaduais, além de tecnica-mente despreparados para

    melhorar as condições em quevivem, sobretudo nas regiõesmais pobres.

    Mais grave é a situação dosdistritos situados em municípiosde grande extensão territorial,incapazes de atender as áreas maisisoladas e distantes. Abandonadopela sede, sempre mais bem ser-vida de atenção e recursos, ouporque está longe dela, ou porqueo tamanho de sua população nãomerece a devida atenção, o dis-

    trito permanece carente de ser-viços públicos. Essa situação decarência gerou, anos atrás, a pro-liferação descontrolada dos mu-nicípios, especialmente em algunsestados como Minas, Paraná eMaranhão. A tendência foi inter-rompida quando se passou a exi-gir o consentimento do Congres-so Nacional. Mas o problema doabandono, pela distância ou pelodesinteresse, persiste.

    Esse é o caso do município deBúzios, uma joia do litoral flumi-nense, centro turístico importan-te, que era tratado com displicên-cia por Cabo Frio, do qual acabouconseguindo se emancipar. Aemancipação não eliminou sua de-pendência política do município-

    -sede, nem tornou sua classe po-lítica melhor, mas permitiu a au-tonomia necessária para assumirsuas responsabilidades perante apopulação e para explorar melhorsua vocação turística e sua infra-estrura urbana.

    É preciso frisar que as regras dedistribuição equitativas, segundocritérios técnicos, dos fundos departicipação não foram devidamen-te regulamentadas. Os critérios dedistribuição continuam a ser regi-

    dos por regras puramente patrimo-niais. Até hoje o Congresso Na-cional não conseguiu regulamentaradequadamente a lei, apesar do pra-zo-limite, já ultrapassado, impostopelo Supremo Tribunal Federal,em um exemplo claro de que aomissão dos poderes gera a supre-macia do Judiciário, alimentandoa tendência à judicialização.

    A metrópole na orf andadedo federalismo incompleto O status especial da metrópole,recentemente regulada por leifederal, preenche o vazio jurídi-co em torno das regiões metro-politanas, de competência esta-dual, mas em geral abandonadasà própria sorte, vivendo de mi-galhas e atenções descontínuasdos governos dos estados.1 Issonão resolve os problemas crôni-cos, dentro da lógica do federa-lismo trino bras ileiro.

    Nosso federalismo valorizouos municípios menores, relegan-do as grandes cidades ao limbopolítico. Isso atinge especialmen-te as metrópoles, tratadas comoórfãs em nossa estrutura federa-tiva. O “municipalismo” acabouoferecendo abrigo ao sentimen-to comum, ideológico, dos pe-

    quenos municípios, cujos inte-resses estão bem representadospela Confederação Nacional dosMunicípios, liderada por PauloZuilkovski.

    Ex-prefeito de uma pequenacidade gaúcha, Zuilkovski orga-niza anualmente um lobby  em Bra-sília que protege os pequenos pre-feitos em busca de uma aliançaprivilegiada com a União. Ele che-gou a impor uma agenda nacionalpara capturar boa parte dos royal-

    ties gerados pelo petróleo no Ride Janeiro. Com as transferênciaconstitucionais em queda livre, situação agravou-se.

    No caso dos municípios metropolitanos, a arrecadação é baixa porque os municípios são pobres e, em geral, não têm vocaçãindustrial. Embora o populismdos prefeitos agrave a situaçãofiscal, são injustos os reduzidorepasses constitucionais, desproporcionais ao tamanho de suapopulações.

    No recente Estatuto da Metrópole, é lamentável que o fundo que estava previsto tenha sidvetado pela presidente, tornando estatuto mais um aparato legasem consequências práticas positivas para a administração públicas dessas cidades metropolitanas que padecem de graves carências em transporte, saúdesaneamento e habitação.

    A omissão metropolitana norevela a natureza de nosso federalismo, muito mais voltado para a distribuição geográfica doterritório do que para a concentração espacial de sua populaçãoComo resolver tal situação? Aregiões metropolitanas do estadde São Paulo estão avançando em

    suas ações coordenadas e em parceria. No Rio de Janeiro, apesado atraso acumulado, um programa de planejamento estratégico financiado pelo Banco Mundial acaba de ser iniciado, produzindo expectativas positivade racionalização das políticapúblicas no caos metropolitando Grande Rio.

    É urgente a criação de agências interfederativas de planejamento e gestão, capazes de or

    Nosso federalismo adquiriu

    características desequilibradas

    que hipertrofiam as funções

    federais, pesando cada vez

    mais sobre os municípios

    e reduzindo a importância

    dos governos estaduais.

       A   L   E   S   S   I   O

       M   O   I   O   L   A   /   S   H   U   T   T   E   R   S   T   O   C   K .   C

       O   M

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    Aspásia Camargo Um novo federalismo para o Bras

    1110ederação

    nizar ações estratégicas con-n tas de long o pra zo e deborar projetos de curto prazo,

    erecendo formas de colabora-o aos entes federados. E é pre-o retomar a criação dos fundosinvestimento metropolitanos,

    tados pelo governo federal,aindo recursos federais, estaduaisntermunicipais para as priorida- definidas pelo planejamento.

    esvaziamento dos estadoss dívidas federaisfederalismo brasileiro adquiriuacterísticas desequilibradas que

    pertrofiam as funções federais,ando cada vez mais sobre os mu-ípios e reduzindo a importâncias governos estaduais. Os estadosiam mais razões para se queixarque os municípios, ao discutirarte que lhes cabe em nosso fe-ralismo incompleto. A Consti-ção ignorou a histórica impor-

    ncia dos estados no federalismoundial, provavelmente encantadam a novidade que inventou, odito “federalismo tri no”.A trindade federativa dificulta

    uito a discussão das competên-s entre três entes. Não existeisprudên cia internacional sobreo. Diante do medo da improvi-

    ão, de seus prováveis riscos, damplexidade dos entes e das fun-es de Estado envolvidas, os le-ladores e assessores parlamen-es optaram pelo silêncio e a

    missão. O parágrafo 3o do Arti-23 permaneceu à espera. Nanstituição Federal, as compe-

    ncias estaduais se reduziram aase nada, permanecendo vagasndefinidas, comprimidas entreas poderosas instâncias: a fede-e a municipal.

    Com o endividamento dos es-tados, agravado pelo período in-flacionário que precedeu o PlanoReal, eles contraíram dívidas im-pagáveis com o governo federal,tendo em vista a correção e os ju-ros que foram impostos. A tal pon-to que a dívida dos estados é hojemaior do que quando o pagamen-to começou, configurando umarelação de especulação e usura en-tre o governo federal e os estados.

    O esvaziamento resultou tam-bém da privatização das empresaspúblicas e dos bancos estaduais quese disseminou nos estados, inclu-sive para evitar a penúria. Mas acompetência maior na regulaçãodas Regiões Metropolitanas emgeral não foi cumprida pelos esta-dos, que continuaram a tratar acapital e os município s de seu en-torno com dupla cautela: o medoda capital, sempre belicosa e ame-açadora para os projetos políticosdos governadores; e os municípiospobres dos entornos, concentran-do um caldeirão explosivo de pro-blemas sociais. Nos dois casos, asolução dependeria de recursosdisponíveis, em geral ausentes.

    A herança patrimonialista dosestados é ma ior do que a dos mu-nicípios brasileiros. Enquanto os

    primeiros, segundo a tradiçãoportuguesa, foram a alma da na-ção, criados a partir de interesseslocais congregados em torno dos“homens bons” do lugar, os es-tados, ao contrário, originaram--se do patrimonialismo imperial – com espírito semelhante ao dascapitanias hereditárias, segundocritérios arbitrários de definiçãode fronteiras, formalmente geo-gráficos mas também políticos,tendo como objetivo central a

    segurança e o fortalecimento dopoder central.

    Essas estruturas guardam o ran-ço patrimonialista e costumamfuncionar com fortes relações desubordinação e dependência po-lítica entre o governador e os pre-feitos, isto é, entre o rei e seus vas-salos. Cabe aos prefeitos “agradar”e obedecer à vontade do governa-dor, e cabe a este apaziguar, namedida do possível, as demandasdas prefeituras, sempre ávidas derecursos públicos. Esse padrão derelação costuma ser sólido, sedi-mentado pela cultura política.Quando suas regras são descum-pridas, os riscos são grandes, departe a parte.

    O enfraquecimento dos esta-dos levou o governo federal a res-suscitar uma hábil prática patri-monial, também herança portu-guesa, que é a de valorizar aaliança direta do poder central como poder local. Durante a Regên-cia iniciou-se a prática do muni-cipalismo cultivado pelo podercentral, para burlar os belicosospresidentes de província, estimu-lados pela liberdade maior que lhesfoi concedida pelo Ato Adicional.

    Cabe propor orçamentos

    regionalizados e

    um processo de

    desenvolvimento regional

    participativo que tenha como

    ponto forte as identidades

    naturais das regiões, com

    suas respectivas vocações.

    A prática federal de cultivaralianças com prefeituras repetiu-secom Vargas, no Estado Novo, quenomeou Juscelino Kubitschek pa-ra a delicada tarefa de coordenaçãopolítica dos prefeitos. Este foi ocaminho que valeu a Kubitscheka prefeitura de Belo Horizonte,ainda pelas mãos de Vargas e, pos-teriormente, o governo de Minase a Presidência da República.

    Com o enfraquecimento daspráticas patrimoniais é provávelque se reforcem tendências cen-trífugas em favor da regionali-zação dos estados. Essa tendêncianatural cria novas oportunidadesde desenvolvimento econômicoe de definição de vocações pro-dutivas que produzem mais au-tonomia quando o projeto é bem--sucedido.

    Muitas vezes o enriquecimen-to de determinadas regiões do es-tado as estimula a reinvidicar au-tonomia ou a negociar uma alfor-ria com o governador. No rastrodessa tendência, cabe propor umorçamento regionalizado e umprocesso de desenvolvimento re-gional participativo que tenha co-mo ponto forte as identidades na-turais das regiões, com suas res-pectivas vocações produtivas.

    O que poderia se propor pararesgatar os estados desse prolon-gado processo de esvaziamento,que já dura quase três décadas?Eles deveriam assumir um papelde liderança no desenvolvimentoregional, algo que dificilmentecaberia ao município, a não sercomo função subsidiária, e que ogoverno federal tem sido incapazde fazer. A regionalização seriacoordenada pelo governador e porconsórcios de municípios ou agên-

    cias regionais, com o suporte doorçamento regional e de fundosde desenvolvimento, sempre ze-lando pelo equilíbrio dos entesmunicipais, acima de partidos ede interesses locais.

    Desequilíbrio territoriale federalismo assimétricoConvém lembrar que o federalis-mo é um sistema de governo queparece ter sido inventado para oBrasil. Ele foi criado pelos pais dademocracia americana para unir ascolônias emancipadas sem prejudi-car suas autonomias. Essa “duplasoberania”, ao mesmo tempo fede-ral e estadual, funciona segundo oprincípio da “unidade na diversi-dade”. Tal filosofia prosperou noséculo XIX em países continentaisde extensa base territorial, eman-cipados de sua origem colonial ede formação política recente, comoos Estados Unidos, o Canadá, a Ín-dia, a Austrália e o Brasil.

    Essa engenharia política pros-perou graças à sua flexibilidade ecapacidade de adaptação, e seu su-cesso estendeu-se a outros paísesemancipados ou de unidade pro-blemática mais recente, como aAlemanha, a África do Sul e a Bél-gica, que buscaram acomodar su-

    as divisões territoriais internas –religiosas, étnicas ou culturais.O federalismo brasileiro é de

    natureza assimétrica, em função denossa morfologia social, constituí-da por um grande território compopulação reduzida, carente e dis-persa. Segundo Domingos Velasco,um dos fundadores do PSB, essequadro configura a baixa capaci-dade de gerar “coalescência”, istoé, uma sociedade civil presente eativa, capital social e a coesão ne-

    cessária para estimular organizaçãoprópria, construindo a democracia.

     Esta seria a clássica diferençacom os Estados Unidos, onde a co-lonização se desenvolveu, na maio-ria das antigas colônias, a partir da“arte de se associar”, levando a so-ciedade a empreender inúmerasações de caráter civil, sem a parti-cipação do governo. O mesmo mi-lagre vingou no norte da Itália, se-gundo Robert Putnam, a partir deuma leitura moderna de Tocque-ville.2  Para ambos, a vida comu-nitária anima e aquece o desenvol-vimento político. Tudo indica queé por esse caminho promissor quedeveremos seguir.

    As assimetrias provocadas porum grande território pouco ocu-pado se agravaram, produzindo for-tes desigualdades com a ocupaçãoeconômica feita em “ciclos de mo-nocultura”, com agricultura itine-rante e predatória. No final de ca-da ciclo, o resultado desolador erao abandono e a miséria que se ins-talavam junto com as populaçõesque permaneciam no local.

    Esse tipo de situação ocorreunas antigas áreas de exploração do-eouro, de cana e de café, bem co-mo nas regiões atingidas pela seca,especialmente no Nordeste. O pro-

    blema adquiriu dimensão políticae constitucional desde a década de1910, chamando a atenção para anecessidade de combater os núcle-os resistentes de miséria e pobreza.A Constituição Federal assumiuesse compromisso, e políticas deEstado se sucederam, no corpo deseus compromissos permanentes,para combater tais assimetrias e de-sigualdades. Precisamos avançarnessa direção, alimentando o de-bate federativo com novas soluções.

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    O princípio da subsidiariedade:descentralização com democracia

    Para garantir a alforria da sociedade civil, prisionei-ra do Estado, é preciso que se incentive a formaçãoe acumulação de capital social, “empoderando”3 asociedade e transformando-a em interlocutora per-manente de um poder público fortalecido.

    Dentro desse princípio geral – de ampliar aautonomia e o protagonismo da sociedade –, de-vemos redimensionar o federalismo femocráticopara livrá-lo dos vícios patrimonialistas que im-pregnaram os períodos de descentralização de-mocrática, permeáveis às oligarquias e a outrospoderes paralelos.

    Aplique-se a esse federalismo democrático o prin-cípio da subsidiariedade, consagrado no direito ale-mão e incorporado à Constituição Européia, quefunciona como uma espécie de dogma federativo,propondo-se a governar de baixo para cima, ao con-trário do que reza nossa tradição.

    O princípio da subsidiariedade estava presentena Igreja Católica na década de 1930 e foi introdu-zido na Constit uição Alemã de 1949, por Adenauer,sendo posteriormente adotado na Constituição Eu-ropéia. Franco Montoro foi grande adepto desseprincípio descentralizador, que inclui a sociedadecivil como o primeiro patamar na divisão das atri-buições federativas.

    Em um primeiro passo se estabelece a priorid adenatural da sociedade civil sobre o Estado na realiza-ção das competências; em seguida, cabe a priorida-de ao município, para cumprir funções que a socie-dade não consegue fazer; e ao estado, quando osmunicípios se revelarem incapazes; finalmente, aogoverno federal, quando nenhuma das instânciasabaixo dele tiverem capacidade ou predisposição na-tural para cumprir a f unção.

    No Brasil, a subsidiariedade funciona ao con-trário, de cabeça para baixo, cabendo ao governofederal a capacidade de tudo regular, ainda que de

    II. Corrigir o federalismo assimétrico e fortalecer a participação democrática forma mal definida e com baixacapacidade de execução, que atodos paralisa. A sociedade civil,tutelada, quase nada pode fazersem se render a uma numerosalinha de controles, em geral com-pletamente inúteis. As atividadesprodutivas, as regulações finan-ceiras, sociais e administrativaspermanecem, em boa parte, re-féns do governo e dependentesda autoridade deste. É o patri-monialismo em sua plenitude,mas dotado de uma inédita com-plexidade, cujo emaranhado pa-ralisa o próprio governo.

    O princípio da subsidiarieda-de impõe uma nova classificaçãode competências federativas, me-nos formal e mais pragmática,em função da situação real decada ente federado. É preciso fle-xibilizar a padronização rígida elevar em conta as diferenças emcada categoria. As prefeituras te-riam interesse nesse tipo de me-dida, que permitiria usufruir debenefícios inerentes à sua realcondição. Usaríamos assim oprincípio da subsidiariedade co-mo meio de correção do federa-lismo assimétrico brasileiro, comsuas extremas desigualdades es-paciais e sua heterogeneidade so-

    cial e cultural.Em nosso caso, essas compe-tências desiguais se manifestamnos níveis estadual e municipal.É urgente fazer uma revisão detais competências, segundo cri-térios técnicos e políticos quelevem em conta essas caracterís-ticas especiais e a capacidade re-al de cada município ou estado.Politicamente, devemos estimu-lar os municípios a assumir suasfunções, com o provimento de

    recursos necessários, mas corres-pondentes à sua real autonomiafinanceira, técnica, política e ad-ministrativa, correspondente àssuas justas atribuições.

    A subsidiariedade poderia serum instrumento classificatório im-portante, organizando melhor asreferidas competências que, hoje,são injustamente padronizadas eirreais. Essas competências deve-riam variar em função do tamanhoe da renda do município, além deseu isolamento dos centros dinâ-micos regionais.

    Muitos estados, especialmen-te ex-territórios, jamais tiverama assistência federal necessária epermanecem passivos e depen-dentes de recursos federais, semter poder nem instrumentos paracumprir plenamente suas funçõesfederativas. Nesse caso, cabe àUnião financiar o planejamentoestratégico desses novos estados,de modo que a médio prazo elesreduzam sua dependência dos re-cursos federais. 

    Desigualdades espaciais esociais e o desenvolvimentolocal sustentável

    Para resolver os problemas geradospor essa assimetria, especialmente

    a existência de desigualdades, aConstituição Federal determinaque a redução dos desequilíbriosregionais é uma prioridade de Es-tado, reconhecendo, corretamen-te, sua interdependência com osdesequilíbrios sociais. Distribuire equalizar melhor a renda nacio-nal é função do Estado, especial-mente da União.

    Tais esforços, como veremos,não foram até agora bem-suce-didos. As políticas de redução das

    desigualdades têm sido débeis,imprecisas, desfocadas e equivo-cadas. Ao longo dos anos, o go-verno federal demonstrou quetais políticas, sempre que possí-vel, podem deslocar-se para osestados por meio de fundos in-terfederativos e com o aporte decapitais privados.

    Ao longo de décadas, as polí-ticas federais e o Ministério da In-tegração Regional não consegui-ram reduzir, ou sequer amenizar,

    as desigualdades regionais, comoa Constituição Federal determina.A falta de infraestrutura e de

    recursos para investimentos agra-va o isolamento de muitas regi-ões, inviabilizando as oportuni-dades e estimulando a perma-nência de uma economia nãomonetária e autárquica. Enquan-to isso, estreitos espaços territo-riais, especialmente no Sudestee no Sul, concentram a produção,o consumo e a r iqueza, consoli-

    Atualmente, a

    máquina do Estado

    é, ao mesmo tempo,

    uma presa e um

    monstro devorador,

    voraz, ineficiente e

    ilegítimo, que nãoconsegue mais

    cumprir suas

    velhas e bem

    conhecidas funções.

       A   L   E   S   S   I   O

       M   O   I   O   L   A   /   S   H   U   T   T   E   R   S   T   O   C   K .   C

       O   M

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    Aspásia Camargo Um novo federalismo para o Bras

    1514ederação

    ndo a excessiva concentraçãorritorial da renda.

    De fato, seria possível promovervestimentos de infraestruturaessíveis, aproveitando melhor asocações naturais” e o potencialltural das nossas regiões e sub-giões. Conselhos de Desenvol-

    mento Sustentável, que se espa-ram pelo país a partir do finaldécada de 1990, seriam núcleos

    nâmicos de definição de projetoscapacitação de capital humano

    m torno de áreas protegidas, par-es, áreas de preservação ambien-e afins, para fins turísticos, cul-ais e de lazer. Esses projetos per-anentes ser i am melhorernativa econômica e social doe a ocupação predatória e itine-

    nte de terras pelo gado e a soja.É surpreendente que um par-

    e arqueológico como o da Ca-vara, no Piauí, de beleza inigua-el, impecavelmente preservadom o esforço da comunidadentífica internacional, possa en-ntrar-se até hoje subutilizado,mo tantos outros pelo Brasil afo-que poderiam estar contribuin-para gerar renda e distribuir

    queza. Passados mais de vinteos, o parque da Capivara con-ua à espera da construção de

    m modesto aeroporto que o co-ctaria diretamente com Pernam-co, facilitando a entrada dosristas e os trabalhos de manu-nção. De fato, os recursos doçamento são anualmente retira-s em benefício de outros inves-

    mentos. Políticas de desenvolvi-ento local, integrado e susten-vel que conseguiram vingar emgiões como Bonito, em Matoosso do Sul, poderiam renderais e melhores frutos.

    Desenvolvimento regional evocações produtivas: novaspolíticas de combate à pobrezaPolíticas de desenvolvimento re-gional fracassaram ou, no mínimo,não corresponderam aos esforçose aos recursos que se mobilizarampara resolver as iniquidades espa-ciais e sociais . Tais práticas se per-petuaram ao longo de décadas,criando clientelas próprias. Emvez de resolver , estimulam a de-pendência e uma cadeia de inte-resses políticos que, no governode Juscelino Kubitschek, foramidentificados como “os industriaisda seca”. Tais interesses, na ver-dade, procriam à sombra do setorpúblico. E a distância se perpetuaentre o Nordeste, nosso maiorterritório de pobreza, e o Sudes-te e o Sul, pólos mais desenvol-vidos do país.

    Os avanços modestos que serealizaram no curso das últimasdécadas foram incapazes de in-terromper o círculo vicioso dasdesigualdades e das diferenças en-tre a renda média brasileira e anordestina. Em 2013, essas desi-gualdades eram muito próximasàs de cinquenta anos atrás, quan-do, pelas mesmas razões, Kubits-chek criou a Sudene.

    A política de desenvolvimen-to sustentável para o Nordeste,que permite o ingresso na era doconhecimento, da tecnologia eda informação, foi bem repre-sentada pelo legado de EduardoCampos e pelo esforço bem-su-cedido de modernização da eco-nomia pernambucana, um dosobjetivos estratégicos de nossoprograma de governo. As refor-mas do Estado que defendemosdeveriam dar prioridade política,

    mas também econômica e social – mais uma vez –, à correção dasdesigualdades territoriais brasi-leiras. E examinar de perto deque maneira, dessa vez, essas po-líticas poderiam ser mais bem--sucedidas.

    O Nordeste modestamenteprogrediu (ou estacionou?) de12% para 14% do PIB nacionalem 2013, ao mesmo tempo emque sua população se reduziu pro-porcionalmente de 30% para 28%da população do país. Com a cri-se atual, a situação da região sedeteriora rapidamente, chegandoa comprometer os avanços sociaiscomemorados recentemente. Odesemprego e os cortes orçamen-tários atingem mais duramentea região, devolvendo às classes De E muitos dos que conseguiramascender a padrões de classe mé-dia ou acima da linha da pobre-za. A inflação e a queda dos sa-lários reais provocam regressãoeconômica, fazendo a renda dasfamílias encolher socialmente.De fato, 1,2 milhão de famíliasandaram para trás nos últimosdoze meses. Algumas caíram daclasse C para D; outras, na clas-se D, retornaram para a classe E.4 

    Da mesma forma, cabe cha-

    mar a atenção para o abandonoa que foram relegados os estadosdo Norte, potencialmente muitoricos, mas impossibilitados de sedefender das amarras e regula-ções federais, e de angariar porsi mesmos os fundos necessários – não para a repartiçã o patrimo-nial e corrupta dos Fundos deDesenvolvimento do Norte eCentro Oeste, mas para o real eefetivo desenvolvimento susten-tável da região.

    A centralização das competênciasfederais: partilha e fragmentaçãodo poderO excesso de centralização provocou, nomédio prazo, o esvaziamento e o esquarte- jamento do Estado brasileiro. Ao mesmotempo em que concentra poderes – falsospoderes –, ele é obrigado também a cederespaços cooptados, dividido em uma amplacoalizão de partidos e interesses fragmenta-dos, o que, como nos ensina a teoria das co-

    ligações, provoca uma inevitável paralisia.Quanto maior o número de pessoas em um amesma carroça, menos a carroça anda.

    Atualmente, a máquina deteriorada abri-ga diferentes facções do mesmo partido. E oque é mais grave: para consolidar aliançasque não funcionam. O Estado é, ao mesmotempo, uma presa e um monstro devorador,voraz, ineficiente e ilegítimo, que não con-segue mais cumprir suas velhas e bem co-nhecidas funções.

    O Parque Nacional

    da Capivara

    (PI) continua

    subutilizado e

    em processo

    de degradação,

    enquanto a região

    de Bonito (MS) é

    um caso de êxito

    de políticas de

    desenvolvimento

    local e regional.

       M   A   T   H   E   U   S   F   O   /   W   I   K   I   M   E   D   I   A

       C   O   M   M   O   N   S

       A   R   T   U   R   W   A   R   C   H   A   V   C   H   I   K   /   W   I   K   I   M   E   D   I   A

       C   O   M   M   O   N   S

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    Aspásia Camargo Um novo federalismo para o Bras

    1716ederação

    O orçamento padece de “rigi-dez cadavérica” e mal pode atenderàs demandas crescentes de uma so-ciedade ávida de pequenos (e gran-des) favores, mas amordaçada e im-potente. Uma economia de baixodinamismo vive submissa, sob tu-tela do Estado, dependendo de cré-ditos subsidiados e dos caprichos dopoder. A fonte secou. Somos umpaís pouco produtivo e muito en-dividado. Nosso empreendedoris-mo amordaçado busca cada vez maisos caminhos da informalidade ereivindica a alforria.

    Desburocratizar a máquinapara combater o “buraconegro” da centralização

    A idéia de que a burocracia s e ex-

    pande por si mesma, sendo lentapor indiferença ou inércia, é umdos mitos que se construíram emtorno do poder impessoal de suamáquina, que funciona como po-der opressor, a partir de seu gigan-tismo e de seu poder de controlaro cidadão comum. De fato, o quea burocracia procura é aumentarseu próprio poder, que se alimen-ta das regulações que o próprioEstado cria – novas leis, por exem-plo –, além de multiplicar, sempre

    que possível, suas funções de fis-calização e controle. Estas são umainesgotável fonte de recursos parao funcionário corrupto, cujos ga-nhos são marginais, e para a má-quina de Estado em si mesma, quese apropria da maior parcela dobolo. Regulações em excesso ge-ram burocracia em igual propor-ção. A burocracia, por sua vez,gera corrupção.

    Na esfera dos princípios preven-tivos de combate à corrupção, aprimeira lei de ferro é restringir acapacidade reguladora do Estadoao ponto necessário, evitando suaproliferação. A segunda é descen-tralizar a máquina de Estado, evi-tando que uma densa cadeia de in-teresses se crie à sua volta, em bus-ca de sua benevolência, de grandese pequenos favores que transformama atividade-fim em atividade-meio.

    O patrimonialismo do Esta-do se alimenta da possibilidadede dividir os recursos extraídosda máquina com parceiros e alia-dos, deles tirando o maior pro-veito possível. Tais práticas seinstalaram dentro do Estado des-de tempos imemoriais – o dasmonarquias absolutas – e só fo-ram controladas a partir da mo-dernização política que se insta-

    lou no século XVIII.Um emaranhado de regulaçõesgarante o poder fiscalizador doEstado e seu poder de transferirriquezas a cúmplices e protegidos.Qualquer tentativa de reduzir opoder paralisante e inibidor da má-quina e da burocracia que a co-manda desperta enormes resistên-cias que, na maioria absoluta dasvezes, acabam vencedoras.

    O melhor exemplo de boa ini-ciativa fracassada foi o de Hélio

    Beltrão. Ele tentou, em vão, des-burocratizar a fúria centralizado-ra e paralisante do regime militar,que Golbery do Couto e Sil va cha-mou de “buraco negro”, no jogopendular das sístoles e das diásto-les, isto é, dos ciclos de centrali-zação e descentralização da vidapolítica brasileira. Hélio Beltrãotentou simplificar a vida do cida-dão a partir de seus documentospessoais, símbolos invertidos desua cidadania.

    De fato, os malabarismos que aburocracia comete para infernizaro cidadão só rivalizam com o In-ferno de Dante ou com os proces-sos de Kafka em seu misterioso cas-telo. Em nome de sua identidade eda segurança do Estado, os atuaiscontroles se multiplicam, sempreem busca de uma ampliação das re-ceitas, nos mais diversos níveis. Car-teiras de identidade ou de motoris-ta, que poderiam ser definitivas,tornam-se temporárias ou provisó-rias, sob os mais diversos pretextos.A prestação desses serviços inúteisaumentou muito desde os temposde Beltrão, que, aos poucos, desis-tiu da sua missão impossível.

    A estratégia alternativa foi mu-dar de foco e escolher uma área re-gulatória cheia de contradições e

    embaraços que dificultavam suaação e a vida normal da econo-mia. Mesmo assim, os resultadosforam segmentados e pífios. Ou-tro problema é que, enquanto aComissão de Desburocratizaçãoeliminava papéis e regulações,de um lado, a lógica perversa dasregulações as recriavam, de ou-tro. O emaranhado de leis, de-cretos e resoluções se acumulade tal forma que paralisa e inibeo sistema produtivo em geral.

    que conquistamos nos últimos

    etenta anos, ao criarmos um

    stado moderno, regrediu a

    étodos tradicionais, vigentes

    a Repúplica Velha. Nesse

    ontexto, renasce o preconceito

    ontra os políticos.

    Para o bem da economia e doempreendedorismo brasileiro, épreciso retomar, com mais astú-cia e vigor – e com mais ousad ia –, a reforma da “ burocra cia car-torial”, iniciativa que Beltrão nosdeixou como legado de um so-nho inconcluso.5

    Vivemos, na realidade, a ten-dência oposta. A natureza do Es-tado se alimenta da ânsia de criare multiplicar poderes que possamser partilhados na distribuição derecursos e favores. O governofederal expande inexoravelmen-te sua máquina, em troca de le-aldade política para se perpetuarno poder. Não é por acaso queaumentam as despesas com a má-quina pública e com seus funcio-nários, que, paradoxalmente,crescem mais do que o PIB. Tra-ta-se de aumentar despesas e di-minuir receitas ou de criar mi-nistérios para acomodar cliente-las políticas que dão votos. Ouainda, para acomodar d isputasentre aliados do governo.

    O enxugamento, vez por ou-tra, é apenas a tentativa engano-sa de apaziguar a opinião públi-ca e de conter a voracidade po-lítica, que resultou em aumentodos ministérios, de 23 no gover-

    no Itamar Franco, para 30 noperíodo Fernando Henrique,chegando ao número inédito de39 ministérios com Dilma Rous-seff. Quanto maior o número deministérios e empresas estatais,menos recursos para cumprir asfunções gerenciais do Estado, noâmbito político-administrativo.

    No quadro atual, o Estado bra-sileiro se reduz a uma carcaça pe-sada e inútil, que precisa descen-tralizar suas funções. Cabe à União

    adequar-se a uma moderna filo-sofia de governo, fortalecendo seusmecanismos de governança: for-talecer suas atribuições genuínas einsubstituíveis, como capacitarquadros de alto nível, subsidiarfunções, estimular complementa-ridades que exijam sua naturalcompetência, remodelar suas es-truturas de governo. É urgenteseparar com clareza as funções deEstado e as funções de governo,requalificando o funcionalismo,além de redefinir os fluxos dosprocessos decisórios, estimulandoparcerias e ações integradas, dis-tribuindo funções e melhorandoa qualidade da gestão.

    As distorções se acumularamdurante a ditadura e continuaramno regime democrático, apesardo enxugamento forçado, pro-vocado pela crise da década de1990. O pecado capital é sempreo mesmo e gira em torno do mes-mo denominador comum: o Es-tado patrimonial confunde as di-mensões pública e privada. Daía facilidade com que a corrupçãopenetra no corroído tecido esta-tal, pois, afinal, o Estado é umaentidade superior a serviço in-condicional do monarca, de di-reito divino.

    Nosso presidencialismo, ape-sar de sacramentado por vigoro-sa competição eleitoral, guardaessas características imperiais, li-gadas a uma cultura política derelações hierárquicas, de indefi-nição entre o domínio público eo privado, e adocicado pelas re-lações pessoais, de cunho patriar-cal, inseminadas pelo nepotismoe pelas trocas de favor.

    O presidencialismo delega aoseu mandatário poderes simbo-

    licamente absolutos, além de pou-co controlados. Tais poderes sãoapropriados pelo aparelho Esta-tal, que tem dono, e se estendemà parentela, aos protegidos, aosamigos dos amigos.

    Por isso, a máquina de Estadoperpetua a iniquidade, é antide-mocrática, ignora os direitos hu-manos e alimenta desigualdadescom a má distribuição de seus ser-viços. Por isso, o Estado brasilei-ro parece cada vez mais distantedaqueles a quem deveria servir ede sua função principa l, que é de-fender o interesse coletivo.

    Mesmo as parcelas mais mo-dernas do Estado brasileiro, co-mo é o caso das empresas estatais – criadas na Era Vargas e, depois,no regime militar – regrediram,entregues aos negócios ligadosao capitalismo de Estado, mistode corrupção empresarial e desucateamento político-partidário.

    O que conquistamos nos úl-timos setenta anos, ao criarmosum Estado moderno, regrediu amétodos tradicionais, vigentesna República Velha, derrubadapela Revolução de 1930. Comonaquela época, renasce o precon-ceito contra os políticos, contraa anarquia e os excessos das de-

    mocracias liberais, uma apologiaindireta do Estado autoritário ecorporativo. 

    O colapso da segurançapública: guerra federativaentre os três poderes

    A sociedade, impotente, reage co-mo em Leviatã ao estado de guer-ra de todos contra todos. Nenhumdos três poderes cumpre sua parteou consegue dar conta de suas res-ponsabilidades legítimas.

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    Aspásia Camargo Um novo federalismo para o Bras

    1918ederação

    A segurança pública é o maisve problema federativo que en-ntamos hoje. Sendo missão dotado, sua responsabilidade recai

    m demasia sobre as polícias esta-ais, pois cabe ao governo fede-zelar por nossas fronteiras, atra-s das quais circula livremente ontrabando de armas e drogasra as grandes cidades brasileiras.A polícia estadual, hipertrofia-e mal preparada, sequer dispõeum eficiente sistema de perícia.us funcionários não têm exclu-idade no emprego público. Sãospreparados e expostos à cor-pção. Impossibilitada constitu-onalmente de agir à altura, a Po-a se vê obrigada e a se benefi-

    ar de recursos crescentestraídos de outras áreas vitais dosvernos estaduais. Pagamos o pre-do extermínio de policiais e dapulação brasileira.É necessário reforçar a respon-ilidade federal na política de se-

    gurança dos estados, exigindo tra-balho investigativo e policiamentoostensivo nos portos, aeroportos efronteiras estaduais. Além disso, apolítica de segurança deve exigir apresença direta do governo federalem áreas sublevadas, especialmen-te urbanas, hoje entregues à açãodas milícias e do tráfico.

    O sistema legal está gravemen-te comprometido. A Lei, que de-veria proteger o cidadão, em rea-lidade protege os criminosos, atra-vés de inúmeros procedimentoslegais e infraconstitucionais, comoo Código Penal, e mais ainda, aLei de Execução Penais, que pre-cisam ser revistos.

    Por uma questão de justiça,devemos adotar o princípio bá-sico de que a intensidade da pe-na deve corresponder à gravida-de do crime. As penalidades de-vem incidir, de forma exemplar,sobre o crime organizado e ocrime de morte, e ter como me-

    ta a redução dos homicídios emgeral. Cabe combater radical-mente quaisquer condutas querepresentem ameaças à vida. Damesma forma, cabe estimular,com as penalidades impostas, aconvivência e a paz social.

    O sistema carcerário precisa sercorrigido com urgência em suafilosofia e seu perfil de graves in- justiças sociais que penali zam ospobres, aqueles que não dispõemde assistência jurídica. Especial-

    O país se desagrega, pela

    desordem social, pelas

    injustiças acumuladas, pela

    ineficiência das instituições,

    pela desconfiança dos cidadãos.

    Uma nova repartição de

    recursos pode estar a caminho.

    mente os jovens negros, que nãoconseguem obter resultados posi-tivos de ressocialização. Ao deixara prisão, tampouco dispõem deassistência real que lhes permita areintegração social. A situação re-al e inaceitável é que as prisões,em vez de serem educativas, sãoas melhores escolas do crime. To-dos sabem disso.

    Não devemos aceitar a justifica-tiva de que as prisões estão cheiaspara, com esse argumento, atenuara pena e libertar o criminoso, espe-cialmente de crimes por morte. Emcompensação, urgentes providênciasdevem ser tomadas para que o sis-tema carcerário li bere os que já cum-priram a pena e lá continuam. Ouaqueles que, por falta de assistência

     jurídica, estão presos, mas poderiamser condenados a pagamento de mul-tas ou a penas alternativas.

    No país que estimula a judi-cialização, é preciso ampliar apunição através da multa, desdeque as mesmas tenham real in-cidência sobre a renda do infra-tor. Do contrário, a solução seriaenganosa.

    A política de segurança é pre-cária e está um século atrasada,pois ainda não conseguiu estimu-lar a profissionalização de seusquadros na área da perícia, queacelera e dá maior segurança àapuração dos crimes. É precisoseparar com mais clareza as fun-ções da polícia civil e da políciamilitar, a primeira investigativae a segunda, ostensiva. É conhe-cida a disputa entre os dois seg-mentos, o que enfraquece o siste-ma de segurança como um todo.

    Existe ainda uma surda com-petição entre a polícia civil e oPoder Judiciário, que resulta emincapacidade de identificar e pu-nir culpados. Essa fraqueza crôni-ca da perícia é a principal respon-sável por um número excessivo decrimes sem apuração conclusiva:uma percentagem de menos de 8%de infratores acaba na cadeia.

    Em suma, o Estado precisa re-forçar a polícia e as políticas pre-ventivas, protegendo as populaçõesvulneráveis e evitando que peque-nos delitos evoluam para crimesmais graves. Desenvolver políticas

    de inclusão e capacitação de jovensnegros é cortar pela raiz o exter-mínio em massa, modalidade decrime silencioso para o qual con-tribui o próprio poder público, embalas perdidas e confrontos de rua.

    A disputa entre os poderes écada vez mais visível, tanto nadistribuição desigual das despe-sas, quanto nos salários e na alo-cação dos recursos. A judiciali-zação crescente resulta, de umlado, da omissão dos poderes Exe-cutivo e Legislativo, que deixamespaços vazios para o Poder Ju-diciário ocupar; de outro, dapressão da cidadania sobre o Mi-nistério Público e o Poder Judi-ciário, tornando tentadora a açãodaqueles que enfrentam os po-deres omissos.

    O país, fragmentado, se desa-grega, pela desordem social, pelasinjustiças acumuladas, pela inefi-ciência das instituições, pela des-confiança dos cidadãos O dese-quilíbrio entre o governo federal,os estados e os mun icípios se agra-va. Uma nova repartição de re-cursos pode estar a caminho.

    III. O novo pacto federativo: Que fazer? Com quem fazer?

     Distribuir competências: quemfaz o que em nosso federalismotrino? O primeiro compromissodo pacto federativo é a descentra-lização com centralidade, procu-rando fortalecer as funções federaisde coordenação e de integração,mas buscando livrar o governo fe-deral das transferências de poderpara outra instância a partir dasnomeações federais nos estados,por exemplo, que garantem fide-lidade e vassalagem dos partidos,

    mas o obrigam a abdicar de for-mular e implementar políticas na-cionais. Precisamos aplicar commais clareza as diferentes compe-tências de nosso “federalismo tri-no”, distribuído entre o governofederal, os estados e os municípios.

    ■ Introduzir uma repartição co-erente entre competências e re-ceitas, estabelecendo como prio-ridade política uma redivisão doFundo de Participação dos Esta-

    dos (FPE) e dos Municípios(FPM), compatível com as trans-ferências de f unções e seus custosreais, assumidos por estados e mu-nicípios nos últimos anos.

    ■ Aumentar de 21,5% para 22,5%a transferência de recursos fede-rais através do FPM, para com-pensar o aumento crescente deatribuições municipais orginal-mente sob a responsabilidade fe-deral, como a saúde. Os muni-   C   E   L

       S   O

       P   U   P   O   /   S   H   U   T   T   E   R   S   T   O   C   K .   C

       O   M

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    Aspásia Camargo Um novo federalismo para o Bras

    2120ederação

    ios aumentaram suas respon-ilidades na área de saúde,eamento e habitação e os es-os na área de segurança pú-ca, ligada a contrabando e dro-, além de transporte e saúde.

    Elevar de 21,5% para 24,5% aquota do FPE e do FPM paraopiciar o verdadeiro equilíbrioerativo, e não apenas uma com-

    nsação menor, que não satisfazinguém. Esses recursos comple-ntares devem ser destinados avidades-fim, restringindo a ex-nsão de despesas com atividadesérfluas ou com a contrataçãopessoal, que vem inchando asfeituras. O objetivo do fundoa o de ampliar a renda dos mu-ípios através de impostos.

    Combater uma distorção que semulou com os anos: fruto doho patrimonialismo, cresceramransferências voluntárias do go-no federal, que se dirigem aceiros amigos, enquanto dimi-ram as transferências automá-

    as, de natureza democrática eversalista, que vão para fins de-minados e que garantem a iso-mia nas relações federativas.

    nstituir como regra democrá-a reguladora o princípio dabsidiariedade, que estabelece

    ma hierarquia de competênciasbaixo para cima, valorizandoociedade civil perante o Esta-e o município frente às suastâncias superiores, o estado eoverno federal.

    Regulamentar de forma adequa-o parágrafo único do Artigo 23Constituição Federal, que de-

    fine amplas competências comunsentre os entes federados. A falta de jurisprudênci a do federalismo tri-no deixou indefinidas as funções,por insegurança do legislador. Es-sa omissão acabou por criar umimbróglio federativo, ao permitirenorme superposição de funçõesentre os entes federados, junto comvazios e omissões, no que diz res-peito a um grande número de po-líticas públicas.

    ■ Promover a cooperação e a in-tegração entre municípios vizi-nhos de uma mesma região, atra-

    vés de diferentes tipos de parce-rias: consórcios, organizaçõessociais, empresas ou qualquer ou-tro tipo de organização. Zelartambém para que os consórciospossam se integrar verticalmen-te, associando o governo federalaos estados e municípios.

    ■ Criar conselhos de desenvolvi-mento sustentável, com visão es-tratégica e participativa de médioe longo prazos. Apostar no de-

    senvolvimento local, integradoe sustentável, a partir de uma vi-são de regionalização do desen-volvimento, abandonada nas úl-timas décadas, tendo como pila-res uma nova economia para asociedade do conhecimento, oempreendedorismo e a inclusãosocial, além da responsabilidadeambiental e do uso sustentáveldos recursos naturais, da cultura,do turismo e do lazer, para geraremprego e renda.

    ■ Exigir a regionalização dos go-vernos estaduais e de seu orçamen-to descentralizado, além de planosestratégicos regionais participati-vos. E impedir que a alocação derecursos se faça por critérios deproteção a aliados políticos.

    ■ Estimular a competição atravésdas boas práticas que possam serconfrontadas entre entes de pesoequivalente, como seria o casode municípios de até 10 mil ha-bitantes ou de mais de 500 m il.O federalismo é um sistema aomesmo tempo cooperativo ecompetitivo, e aí reside o equi-líbrio que dinamiza a federação.

    ■ Incorporar à Federação um en-

    te intermediário, a região metro-politana, cujo Estatuto da Me-trópole foi votado pelo Congres-so Nacional. No entanto, apresidente vetou a proposta doFundo Metropolitano, tornandoo estatuto mais um documentode utilidade discutível. Agênciasmetropolitanas precisam ser cria-das com fundos compostos porrecursos interfederativos, tendoem vista estimular iniciativas co-muns, reduzir desigualdades, pro-

    Há uma vinculação

    entre centralismo

    e corrupção, na

    medida em que

    os repasses

    automáticos do

    governo federal

    são substituídos

    por repasses

    voluntários.

    teger o meio ambiente e, sobre-tudo, incentivar atividades eco-nômicas produtivas.

    ■ Recuperar o nosso pacto fede-rativo, duramente reconquistado(e aperfeiçoado) pela Constitui-ção de 1988, que defendeu a des-centralização administrativa efiscal, e promoveu uma inovaçãosingular: incorporou o municí-pio como “ente federativo”, con-sagrando o municipalismo quevem da Colônia e do Império.

    A crise econômica e a amea-ça de desagregação política dasdécadas de 1980 e 1990 fortale-ceram o governo federal com umconjunto de emendas constitu-cionais e medidas provisórias querestauraram a centralização. Alémdisso, estimularam uma excessi-va dependência dos estados e mu-nicípios, ao mesmo tempo emque o governo federal recupera-va seus recursos perdidos. Vive-mos, portanto, um grave dese-quilíbrio fiscal: ampliação dasresponsabilidades dos municípiose dos estados, enquanto os re-cursos disponíveis estão cada vezmais mal distribuídos. Para agra-var a situação, a centralização

    federal não trouxe eficiência emelhora dos serviços públicos.Do ponto de vista territorial,

    existe um crônico desequilíbrioentre a competência dos entesfederativos e a distribuição derecursos arrecadados. Os muni-cípios absorvem cada vez maisresponsabilidades, tentando res-ponder à omissão federal, en-quanto seus recursos minguamem igual proporção, na medidaem que os repasses constitucio-

    nais d iminuem, concentrandorecursos na União. O pacto fe-derativo e a revisão constitucio-nal são, portanto, uma necessi-dade emergencial que não podeser postergada.

    Quais os limites toleráveis decentralismo e de arbítrio, e comoé possível corrigir a acumulaçãoexcessiva de funções federais,compatível com a boa governan-ça e com o funcionamento nor-mal da sociedade?

    Existe uma vinculação natu-ral entre centralismo e corrup-ção, como já apontou, no passa-do, Tavares Bastos6  na medidaem que os repasses automáticosdo governo federal são substitu-ídos por repasses voluntários,através de acordos e cumplicida-des políticas.

    Como se pode tratar de manei-ra equivalente os 5.570 municípiosbrasileiros, em sua maioria pobrese pequenos, mas com bases terri-toriais e populacionais heterogê-neas, e com capacidade de arreca-dação e de gerar riquezas tão dís-pares? Como controlar despesasque não se sustentam em arreca-dação e receitas próprias? Comoalimentar câmaras de vereadores eestruturas administrativas incom-patíveis com seus níveis de renda?

    Como tratar os estados, velhasestruturas obsoletas, herdadas doImpério, segundo um princípiode distribuição semelhante ao dascapitanias hereditárias, e que ho- je s e e ncontr am esvaz iados emsuas funções residuais, mas aindatêm poder patrimonial movidopelo arbítrio? ■

    Notas

    1. A lei denominada Estatuto da Metrópole foi regulamentada em 12 de janeiro de 2015 e determinprazo de dois anos para ser reconhecida e regulamentadas nos municípios que compõem a gra ndmetropole.

    2. Aléxis de Tocqueville, Democracia na Améric a e Robert Putnam, Making democracy Work: Civic Traditioin Modern Italy , Princeton University Press, 1992. Mais recentemente, Putnam retoma o tema em “AArte de Estar Juntos”, Better Together, Restoring the American Community, em coautoria com Lewis FeldsteinN,Y, Simon & Schuster Paperbacks, 2003.

    3. A palavra original em inglês é empowerment , isto é, dar mais poder a um segmento sub-representado o

    a alguma estrutura em igual situação.4. Segundo a Federação do Comércio do Estado de São Paulo, um reflexo desse rebaixamento aparece n

    perda do poder de consumo nos supermercados. Segundo o IBGE, em julho as famílias sairam dos supermercados com um volume 2% menor. A evolução do custo de vida por classe social nos doze mesemedida pela Fecomércio em julho de 2015, mostra que o custo de vida aumentou 8,73% para a classeA, 8,82% para a classe B, 9,87% para a classe C, 11,26% e 11,16% para as classes D e E. A classe E aumentou de 21,6% da população para 23,1%. A perda salarial foi responsável por uma queda de 2,5 pontos percentuais do rendimento médio das famílias no último ano.

    5. Hélio Beltrão parece ter se inspirado em Hélio Jaguaribe ao definir o Estado cartor ial em Cadernos dPovo Brasileiro, o precursor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), no início da década d1950.

    6. Tavare s Bastos, em A provincia , faz a mais antiga e contundente crítica da herança centralista portuguêsa e imperial, e das irracionalidades e aberrações políticas provocadas pela excessiva centralizaçãdo Império.

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    Governança e instituições democráticas no Brasil contemporâne

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    Governança e instituições democráticas no Brasil contemporâneo

     Já faz algum tempo que o Brasilvive um dilema parecido com ode outros países democráticos. Porum lado, suas instituições estãorazoavelmente estabelecidas e con-solidadas, em que pesem as dife-rentes propostas de reforma dosistema político-eleitoral. A de-mocracia brasileira, hoje, atendetanto aos princípios formais defi-

    nidos por Manin (1996)1

     para aexistência de um governo repre-sentativo como aos critérios for-mulados por Dahl (1989) para oestabelecimento de uma poliarquia.2

    Por outro lado, os brasileiros pa-recem confiar cada vez menos emsuas instituições políticas, colo-cando à prova, assim, o próprioregime democrático em vigor des-de a década de 1980. A expressãomaior deste dilema está na con-traditória combinação entre o que

    Santos e Avritzer (2003, p. 41-42)chamaram de “concepção hege-mônica de democracia” e “degra-dação das práticas democráticas”.

    Esse modelo hegemônico, es-tabelecido a partir da SegundaGuerra Mundial , deu forma a uma“democracia de baixa intensida-de”. Em outras palavras, o tipode regime político que se conso-

    lidou na segunda metade do sé-culo XX pressupunha uma con-tradição entre institucionalizaçãoe mobilização, valorizava a apatiapolítica, concentrava o debate so-bre o regime democrático nosseus desenhos eleitorais, apontavao pluralismo como forma de in-corporação partidária e disputaentre elites, e defendia uma solu-ção minimalista para o problemada participação política. Na me-dida em que o modelo hegemô-

    berti de Almeidaisbinotor em ciências sociaisUniversidade Federalão Carlos, com pós-torado pela Universidadedual Paulista Júlio

    Mesquita Filho e pelaversidade Federalão Paulo. Professor do

    grama de Pós-GraduaçãoSociologia Política daversidade Vila Velha (ES).ail: [email protected]

    or AmorimAngelotor em ciências sociaisUniversidade Federalão Carlos. Professorrograma de Pós-

    duação em Sociologiatica da UniversidadeVelha (ES).ail: [email protected]

    Pesquisas de opinião vêm mostrando uma baixa confiança dos cidadãos nasinstituições democráticas brasileiras, sobretudo nos partidos políticos. Oatual desenho do sistema político é composto por várias instituições. Suacombinação – ou seu desenho institucional – ensejou uma série dediscussões de natureza política e acadêmica. Este artigo expõe algumasparticularidades do sistema político brasileiro e os dilemas vividos pelanossa democracia, com reflexos para o seu funcionamento e o exercício daprópria governança. No tocante aos partidos, embora estejam em descrédito junto à sociedade civil, nosso argumento é que as legendas ainda sãoinstituições fundamentais para a garantia de governança.

    nico de democracia se consolidava, for-mularam-se propostas contra-hegemô-nicas, cujas críticas se concentravam,especialmente, na forma como a repre-sentação e a participação eram compre-endidas na concepção tradicional dedemocracia então predominante.

    Um dos sintomas visíveis do dilemaexpresso na contradição entre consoli-dação das instituições democráticas e

    falta de confiança na democracia é a“dupla patologia” (Santos e Avritzer,2003, p. 42), marcada pelo aumento daabstenção, pelo lado da participação, epelo distanciamento cada vez maior en-tre eleitos e eleitores, pelo lado da re-presentação. Se no Brasil, onde o votoé obrigatório, o abstencionismo tem al-cançado percentuais elevados, em de-mocracias como os Estados Unidos e aFrança, por exemplo, a proporção deeleitores que simplesmente não compa-recem às urnas – ou, quando o fazem,

    votam em branco ou nulo – perma neceem patamares dramáticos para um regi-me político que tem como um de seusprincípios fundamentais a eleição peri-ódica para a escolha de representantes.3 

    No caso da representação, os protes-tos de julho de 2013 em várias cidadesbrasileiras parecem indicar como o dis-tanciamento e a falta de identificaçãoentre eleitos e eleitores, a fragi lidade dos

    mecanismos de controle que estes têmsobre aqueles e a ausência de mandatosresponsivos em relação aos representadossão características do nosso quadro po-lítico atual. Nesse sentido, as manifes-tações populares a que o país assistiu hádois anos, longe de representarem umrevigoramento da democracia, podemser interpretadas, na verdade, como ex-pressão de uma inquietante descrençanos valores e nas instituições do regimedemocrático. Não obstante verbalizas-sem reivindicações concretas e reais, os

    protestos revelaram muito de intolerância e incompreensão, sem oferecer soluções aos problemas político-institucionapresentes na agenda de discussões nBrasil de hoje (Nogueira, 2013).

    Em seu trabalho sobre a confiança dobrasileiros na democracia, Moisés (2005p. 34) lembra que, no país, “a percepçãnegativa das instituições atravessa todos osegmentos de renda, escolaridade, idade

    distribuição ecológica, chegando a influina disposição dos cidadãos para participade processos políticos”. Se esse sentimento negativo sobre as instituições é generalizado entre os brasileiros, corroborando o diagnóstico da “patologia” defendido por Santos e Avritzer (2003), o que oestudiosos dizem do nosso sistema político? Os partidos, por exemplo, ainda têmalguma relevância nesse cenário de descrédito? Nesse contexto, a governançtende ao caos ou à ordem? O objetivo dotexto a seguir é discutir algumas particu

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    Riberti de Almeida Felisbino | Vitor Amorim de Angelo Governança e instituições democráticas no Brasil contemporâne

    2524política

    laridades do sistema político brasi-leiro e os dilemas vividos pela de-mocracia atual, com reflexos sobreseu funcionamento e o exercício dopróprio governo.

    Adesão democráticae desconfiança nasinstituiçõesDesde o final da década de 1970,a América Latina passou por umprocesso generalizado – mas bas-tante diferenciado internamente – de mudança de regimes pol íti-cos, dentro daquilo que foi cha-mado por Huntington (1994) de“terceira onda de democratização”.Nesse contexto, países como Bra-sil, Argentina, Uruguai, Paraguaie Chile fizeram a transição de re-gimes autoritários para regimesdemocráticos, liberal-representa-tivos. No meio acadêmico, o in-teresse pelo processo de consoli-dação dessas democracias e pelaqualidade dos novos regimes po-líticos deu origem a um amplo ediversificado conjunto de traba-lhos. Numa região marcada pelaviolência dos governos militaresque dominaram a cena política nasúltimas décadas do século XX, ointeresse dessa produção pode ser

    explicado pela importância que ademocracia representava na histó-ria dos países latino-americanos.

    No que se refere ao Brasil, em1995, uma década após o fim daditadura, o brasilianista ThomasSkidmore publicou um pequenoartigo, intitulado “Partidos tor-nam o Brasil ingovernável”, no jornal Folha de S. Paulo, questio-nando o que seria possível dizer,àquela altura, das instituições po-líticas democráticas brasileiras. Se-

    gundo Skidmore (1995), “o maissério é o caso do sistema eleitoral,que funciona mal e criou o siste-ma partidário mais fragmentadode qualquer democracia no mun-do”. Em sua opinião, “a coesãopartidária e as coalizões partidáriassão indispensáveis à administraçãoda política democrática [...] no en-tanto, o Brasil produziu uma fór-mula que virtualmente impossi-bilita tal comportamento partidá-rio responsável”. Na época,comentários desse tipo eram fre-quentes. Acreditava-se que a de-mocracia brasileira talvez não per-durasse muito mais tempo, emvista dos seus problemas e da fra-queza de suas instituições.

    Passadas mais de duas décadasdesde o artigo de Skidmore, nãoapenas a tese implícita em comen-tários dessa natureza não se con-firmou como trabalhos posteriorespassaram, por consequência, a ana-lisar a qualidade de um regimedemocrático que, em abril de 2015,completou três décadas – nesta que já é a nossa ma is longeva experi -ência democrática. Observandoparticularmente o contexto bra-sileiro, estudos como o de Moisés(2005; 2010) e do Latinobaróme-tro indicam que a democracia vem

    se consolidando no Brasil, mas,contraditoriamente, os brasileirosnão confiam nas instituições, so-bretudo nos partidos. Tal descon-fiança pode criar um “ambientefavorável a que os membros dacomunidade política sintam-sedescomprometidos com a vida pú-blica, podendo recusar-se a coo-perar com as diretrizes do Estadoou ignorar as leis e as normas queregulam e organizam a vida sociale política” (Moisés, 2010, p.12).

    Aqui, podemos notar o “di-lema” sobre o qual já falamos,produzido pela combinação con-traditória entre a expansão domodelo hegemônico de demo-cracia e a degradação das práticasdemocráticas. Os dados a respei-to do que ocorre no Brasil nospermitem deduzir que a descren-ça nos valores democráticos po-de gerar um ambiente de a nor-malidade institucional, colocan-do em dúvida as instituições emque se fundamenta própria de-mocracia. Por exemplo, em re-cente pesquisa que coordenamosno Espírito Santo a respeito damanifestação contra o governofederal ocorrida em agosto de2015,4 muito chamou a atençãoo fato de que, em contraste coma avaliação positiva da democra-cia como forma de governo, pou-cos manifestantes mostraram-seabertamente contrários a umaintervenção militar – o que re-presentaria a quebra da própriaordem democrática com a qualos respondentes, de maneira ge-ral, disseram se alinhar.

    Na Figura 1 é possível notarque a democracia é bem avaliadapor praticamente 3/4, sendo con-siderada “sempre a melhor forma

    de governo”. No entanto, uma vezperguntados sobre a democraciano Brasil, ou seja, sobre o regimerealmente existente , e não sobre umaconcepção teórica e filosófica doque venha a ser democracia, a re-lação se inverte. Apenas 1/4 dosmanifestantes se mostrou plena-mente confiante na democraciabrasileira, como mostra a Figura2. Além do reduzido suporte a es-se regime político entre os respon-dentes da pesquisa, outro dado

    A democracia é sempre amelhor forma de governo

    73,77%

    Totalmente contra 47,27%

    19,67%A democracia às vezes émelhor forma de governo

    Favorável sobalgumas circunstâncias

    3,01%NS/NR

    Totalmente favorável

    2,46%É indiferente ter ou nãouma democracia

    Contrário sobalgumas circunstâncias

    1,09%

    A democracia nunca é a

    melhor forma de governo

    Indiferentes

    Figura 1  Opinião em relação à democracia – Espírito Santo (2015)

    Fonte: Pesquisa “Manifestação 16/8: perfil e percepção dos manifestantes em Vitória (ES)”, 2015.

    Insatisfeito 29,51%

    28,14%Muito insatisfeito

    22,4%Regular

    3,01%Muito satisfeito

    15,85%Satisfeito

    1,09%NS/NR

    Figura 2  Satisfação com a democracia brasileir a – Espí rito Santo (2015)

    Fonte: Pesquisa “Manifestação 16/8: perfil e percepção dos manifestantes em Vitória (ES)”, 2015.

    Figura 3  Apoio à volta dos militares ao poder – Es pírito Santo (2015)

    Fonte: Pesquisa “Manifestação 16/8: perfil e percepção dos manifestantes em Vitória (ES)”, 2015.

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    Riberti de Almeida Felisbino | Vitor Amorim de Angelo Governança e instituições democráticas no Brasil contemporâne

    2726política

    bastante significativo foi o percentual elevado depessoas que admitiriam uma intervenção militarno Brasil, conforme a Figura 3, percentual que su-pera, na soma, a quantidade de manifestantes “to-talmente contrária” à interrupção da ordem demo-crática no país.

    Os resultados da pesquisa realizada no Espíri-to Santo convergem para os dados divulgados pe-lo Latinobarómetro sobre a adesão dos brasileirosà democracia, igualmente baixos. Também im-porta destacar que o mesmo instituto de pesquisavem aferindo, ao longo de muitos anos, que as le-gendas partidárias possuem uma baixa confiabili-dade no Brasil. Os gráficos ao lado mostram a os-cilação do apoio à democracia (Figura 4) e a cres-cente desconfiança em relação aos partidos(Figura 5) no país.

    Como podemos observar na Figura 4, 83% dossurveys realizados pelo Latinobarómetro constataramque o percentual dos brasileiros que preferem a de-mocracia a qualquer outra forma de regime políticonunca ultrapassou 50%, indic ando que a democracianão foi bem avaliada pelos entrevistados. Por outrolado, nos anos de 2009, 2010 e 2015, o Latinobaró-metro revelou que os respectivos percentuais che-garam a 55%, 54% e 54% do total, com um peque-no aumento na adesão ao regime democrático nopaís. Quanto à Figura 5, fica evidente que os parti-dos são instituições com pouca ou nenhuma con-fiança no interior da sociedade civil. Em pesquisarecente com os eleitores paulistanos, o Datafolhaidentificou que 71% dos entrevistados não têm pre-ferência por qualquer sigla partidária.5 Os dados dossurveys apresentados indicam a baixa aceitabilidade

    da democracia e das suas instituições. Apesar disso,como Freidenberg (2007, p.2) bem disse, a “Amé-rica Latina é hoje muito mais democrática do quehá trinta anos” (tradução dos autores).

    Desenho institucionale suas combinaçõesAs informações da Figura 6 (próxima página) mos-tram o atual desenho institucional do sistema polí-tico do Brasil, que combina o presidencialismo comum regime político democrático e um modelo deEstado federal. Tal estrutura também conta com a

             1         9         9         5

             1         9         9         6

             1         9         9         7

             1         9         9         8

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    ura 4  Adesão à democracia – Br asil (1995-2015)

    e: Pesquisa Latinobarómetro, 2015.

    A democracia é preferrível Indiferente ou não democraciaEm alguns momen