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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARISA DA COSTA
A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena:
um estudo linguístico-discursivo
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARISA DA COSTA
A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena:
um estudo linguístico-discursivo
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresenta à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, na Linha de Pesquisa Texto e Discurso nas modalidades oral e escrita, sob a orientação da Profª Drª Leonor Lopes Fávero.
SÃO PAULO 2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena: um estudo linguístico discursivo
Marisa da Costa
ERRATA
São Paulo- 2011
Página 22, linhas 16 e 17: onde se leem “linguagem não-verbal ” e “linguagens verbal e não-verbal ” leiam-se: “linguagem não verbal ” e “ linguagens verbal e não verbal ”.
Página 34, linha 29: onde se lê “Charolles (1987)”, leia-se “Charolles (1997).
Página 30, linha 12: onde se lê “o uso eficiente da linguagem voltado ”, leia-se “o uso eficiente da linguagem é voltado ”.
Página 35, linha 17: onde se lê “de nosso conhecimento prévio, que não é mais um elemento de coerência como os modelos cognitivos globais”, leia-se: “de nosso conhecimento prévio, que não é mais um elemento de coerência, como, por exemplo, os modelos cognitivos globais”.
Página 46, linha 10: onde se lê “a polifonia pode ocorrer tanto no nível do locutor quanto do enunciado ”, leia-se “a polifonia pode ocorrer tanto no nível do locutor quanto do enunciador ”.
Página 57, linha 13: onde se lê “em que se associam as expressões ‘familiar’ e ‘milionário’, na expressão familionarmente, leia-se “em que se associam as expressões ‘familiar’ e milionário na expressão familionariamente”.
Página 65, linha 12: onde se lê: “Cavalcante” (2003), leia-se: “Cavalcante, (2005)”.
Página 65, linha 24: onde se lê “b) quando o anafórico leva em conta os atributos do referente, leia-se “quando o anafórico não leva em conta os atributos do referente”.
Página 92, linha 13: onde se lê: Embasados no fato de que a subversão não tem valor argumentativo, leia-se “Embasados no fato de que a subversão tem valor argumentativo”.
Página 108, linha, 10, onde se lê: “CAVALCANTI , Mônica Magalhães. Anáfora e dêixis: quando as retas se encontram. In: KOCH, Ingedore Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 125-14.”, leia-se: “CAVALCANTE , Mônica Magalhães. Anáfora e dêixis: quando as retas se encontram. In: KOCH, Ingedore Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 125-14.”
Página 108, linha 5: onde se lê: “BRANDÃO, Helena Hatsue Nagamini. Introdução à análise do discurso 2. ed. rev. Campinas: Unicamp, 2004” , leia-se: “BRANDÃO, Helena Hatsue Nagamini. Introdução à análise do discurso 2. ed. 4ª reimpressão . Campinas: Unicamp, 2009” .
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me deu a vida, a força, a coragem, a sabedoria e os amigos.
A meus pais (in memoriam), pela formação de parte do que eu sou.
À minha Professora Orientadora, Professora Doutora Leonor Lopes Fávero que, com sua
sabedoria, chamou-me à certeza de meus propósitos, tornando factível este trabalho.
À Professora Doutora Esther Gomes de Oliveira e à Professora Doutora Vanda Maria da
Silva Elias que, com suas valiosas sugestões e observações, ajudaram-me a engrandecer
este trabalho.
A Maria Rodrigues de Oliveira, que veio a meu encontro antes mesmo que eu a ela
recorresse. Uma pessoa a quem defino como competente, profissional, incansável
pesquisadora e, sobretudo, como uma grande amiga.
A Rodrigo Leite da Silva, a quem carinhosamente chamo de amigo acadêmico, pelo
incentivo, pelo apoio, pelas gargalhadas.
A meus alunos, segunda razão pela qual desejo saber mais.
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho.
A mim mesma, pelo meu esforço, pela minha fé, pelo meu desejo de aprender, pela minha
persistência.
Diante do humor, podemos ter
sempre a reação de falar: – Ué!
não é que é isso mesmo.
Ziraldo
RESUMO
Esta dissertação situa-se na Linha de Pesquisa Texto e Discurso nas
modalidades oral e escrita do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua
Portuguesa. Tem, por propósito, investigar os recursos linguístico-discursivos
presentes nos cartuns de Maitena com vistas à produção do sentido do texto e,
por conseguinte, da comicidade nele presente. Como pressuposto, tem-se a
concepção interacional da linguagem, que reconhece o leitor como sujeito ativo e
participante na construção do sentido do texto. Os cartuns são um gênero
discursivo constituído de texto verbal e não verbal, cuja característica principal é a
atemporalidade e a universalidade temática e cujo propósito comunicativo
consiste em provocar uma reflexão social com certo grau de humor. Para atingir
nosso objetivo, apresentamos um panorama de outros gêneros que se utilizam da
linguagem icônico-verbal, com o fito de melhor situar o cartum como nosso objeto
de estudo. As teorias apresentadas por Possenti (2008), Travaglia (1990) e Rosas
(2002) acentuam a importância dos textos humorísticos como fontes de pesquisa
da linguagem. Nosso trabalho contribui, assim, como um reforço à ideia desses
autores na forma com que explora linguística e discursivamente o gênero em
questão.
PALAVRAS-CHAVE: Humor. Cartum. Produção de sentido.
ABSTRACT
This essay is related to the Research Field Text and Discourse in
spoken and written modalities of Portuguese Language Post-graduate Studies
Program. It has the target to examine the linguistic-discoursive resources which
appear on Maitena‟s cartoons, aiming the production of the meaning of the text
and, therefore, the comicality present in it. As a presupposed there is the
interactional language conception, which recognizes the reader as an active
subject, who participates in building the text sense. Cartoons are a discoursive
genre constituted by verbal and non-verbal text, which main characteristic is
atemporality and universal set of themes, and have the communicative proprosal
of promoting a social reflection with a certain grade of humour. To achieve our
target, we present a broad view of other genres that use the iconic-verbal
language aiming to better situate cartoon as our object of study. The theories
presented by Possenti (2008), Travaglia (1990), and Rosas (2002) stresses the
importance of humouristic text as a source of language research. Our essay
contributes, thus, as a reinforcement to these author‟s ideas in the way it explores
linguistic and discoursively the genre in question.
Keywords: Humour. Cartoon. Production of meaning.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 9
1 TEXTO, DISCURSO E GÊNERO .................................................................... 13
1.1 Texto e discurso ........................................................................................ 13
1.2 Gêneros do discurso: a realização da língua dentro de um campo
específico ................................................................................................... 14
1.3 Domínio discursivo ................................................................................... 18
1.4 Histórias em quadrinhos, tiras, charges e cartuns: diferentes gêneros
dentro de um quadro ................................................................................ 19
1.4.1 Histórias em quadrinhos ................................................................. 19
1.4.2 A linguagem dos quadrinhos ......................................................... 21
1.4.3 A tira .................................................................................................. 26
1.4.4 A charge ............................................................................................ 26
1.4.5 O cartum ........................................................................................... 27
1.5 Tipos de discurso ...................................................................................... 29
2 OS SENTIDOS DO TEXTO: FATORES INTERVENIENTES ..................... 33
2.1 Coerência textual ...................................................................................... 33
2.2 Intertextualidade e interdiscursividade ............................................ 42
2.3 Dialogismo e polifonia ..................................................................... 44
2.4 Contexto ..................................................................................................... 46
2.5 A questão dos implícitos ........................................................................... 49
3 O HUMOR EM DIFERENTES PERSPECTIVAS .......................................... 51
3.1 Contribuições linguísticas ........................................................................ 51
3.1.1 O homem é um animal que ri e faz rir .......................................... 54
3.1.2 Pelos chistes, Freud explica .......................................................... 55
3.1.3 Os scripts no humor ........................................................................ 58
3.2 Recategorização e humor ....................................................................... 61
3.3 A carnavalização em oposição à seriedade ......................................... 67
3.4 Détournement ............................................................................................ 68
3.5 Ironia em duas vozes ............................................................................... 72
3.6 Humor: suportes de veiculação .............................................................. 75
4 ANÁLISE DO CORPUS .................................................................................... 77
4.1 Coerência Textual ..................................................................................... 78
4.1.1 Focalização ...................................................................................... 78
4.1.2 Inferências ........................................................................................ 86
4.2 Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade ................................. 91
4.3 Recategorização ....................................................................................... 97
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 104
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 107
APÊNDICE A – Cartuns de Maitena utilizados a título de exemplificação na
fundamentação teórica. ......................................................... 113
9
INTRODUÇÃO
Uma pesquisa sobre língua exige o esclarecimento sobre qual
concepção de linguagem será adotada. Segundo Travaglia (2003), são três as
possibilidades com que se pode conceber a linguagem: a linguagem como
expressão do pensamento, a linguagem como instrumento de
comunicação e a linguagem como forma ou processo de interação.
A primeira concepção não considera, no ato de comunicação, as
expectativas do receptor em relação ao contexto de situação, não importando,
dessa forma, “quem fala”, “para quem fala”, “para que fala”. A segunda
concepção vê a linguagem como instrumento de comunicação ou como meio
para a comunicação, e a língua é vista como um código comum aos falantes
em que um emissor codifica e envia uma mensagem a um receptor pronto a
decodificá-la. A terceira concepção de linguagem caracteriza-se pelo diálogo
em sentido amplo e vê a linguagem como forma ou processo de interação.
Nessa concepção, os interlocutores interagem como sujeitos que ocupam
lugares sociais e, por isso, falam e ouvem desses lugares.
De acordo com Travaglia (2003), essa última concepção é
representada por todas as correntes de estudo da língua que podem ser
agrupadas sob o rótulo de Linguística da Enunciação, tais como a Linguística
Textual, a Análise da Conversação, a Semântica Argumentativa e todos os
estudos de alguma forma ligados à Pragmática. É, pois, dentro dessa última
concepção de linguagem que integra experiências sociais, culturais e históricas
dos indivíduos que daremos norte a nosso trabalho.
Nas teorias da linguagem como interação, a noção de coerência
apresenta-se como uma questão de sentido. Assim sendo, Koch & Travaglia
(2009) observam que a coerência deve ser vista como um princípio de
interpretabilidade do texto e ligada a sua inteligibilidade, pois é ela que faz com
que um texto faça sentido para os usuários. Sendo assim, dedicaremos um
espaço deste trabalho para reflexões acerca desse assunto com base
essencialmente em estudos da Linguística Textual.
Nossa pesquisa tem, por objetivo geral, estudar aspectos
linguístico-discursivos em textos humorísticos. Os objetivos específicos visam à
10
investigação desses recursos na produção do sentido cômico dos cartuns de
Maitena, bem como dos conhecimentos mobilizados pelo leitor para a produção
desse sentido, considerando-se o cartum como um gênero que só pode ser
compreendido na relação estabelecida entre a imagem e o texto. Tal
complexidade exige que o leitor mobilize seus conhecimentos para a leitura do
verbal, do não verbal e da conjugação dessas duas linguagens para a
compreensão do humor. Todavia, devido à existência de outros gêneros que
também se apropriam dessa conjugação, delineamos o nosso objeto de estudo
paralelamente a outros gêneros que a ele se assemelham, como as Histórias
em Quadrinhos, as Tiras e as Charges.
O entendimento da linguagem do cartum a partir da noção de gênero
do discurso é fundamental para a elucidação de seu propósito comunicativo.
Com pouca informação verbal, porém com o aparato da imagem, o cartum,
caracterizado pela atemporalidade e pelo anonimato das personagens, tem por
objetivo apresentar temas de caráter universal que conduzam o leitor a uma
atitude reflexiva, ou seja, sua finalidade é provocar uma observação social com
certa graça, sem necessariamente provocar o riso.
Cientes desses fatos, propomos as seguintes questões: Quais são
os recursos linguístico-discursivos utilizados nos cartuns de Maitena para a
produção do sentido do texto e, por conseguinte, para a produção da
comicidade e que conhecimentos são mobilizados, na busca desse sentido, a
ponto de considerarmos um cartum cômico ou não?
A fim de responder aos questionamentos propostos, adotamos os
seguintes procedimentos metodológicos: i) levantamento bibliográfico; ii)
constituição de um corpus a partir de cartuns selecionados dos livros Mulheres
Superadas 1 e Mulheres Superadas 2, da cartunista argentina Maitena; iii)
análise dos cartuns selecionados com vistas: a) ao levantamento dos recursos
linguístico-discursivos utilizados pela autora para a produção da comicidade; b)
à detecção dos conhecimentos ativados para a construção dos sentidos desses
cartuns pelo interlocutor.
A dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro
capítulo, apresentamos um panorama dos gêneros que se utilizam da
linguagem icônico-verbal, na tentativa de melhor situar o objeto de nosso
11
estudo: o cartum. Nesse mesmo capítulo, embasados na teoria de Bakhtin de
que a ação comunicativa do homem não é uma ação solitária, mas
constitutivamente dialógica, fazemos uma breve abordagem sobre os tipos de
discurso propostos por Orlandi (2009), pois entendemos que a forma como o
discurso se organiza é determinante para a dinâmica das relações entre o eu e
o tu.
O segundo capítulo trata de fatores intervenientes na produção dos
sentidos do texto, tais como: coerência textual, intertextualidade,
interdiscursividade, dialogismo, polifonia e contexto, conceitos que
implicam relações entre o leitor e o texto, entre um texto e outro, entre as vozes
do discurso, entre o texto e o contexto. Aborda, também, a questão dos
implícitos, responsáveis pelas relações entre a informação explícita no texto e
a informação inferível.
Nessas relações, destacamos o tema da coerência textual, que se
relaciona com os outros temas ao estabelecer, para o leitor, um princípio global
de interpretação. Devido a sua amplitude, a coerência subsume os processos
pelos quais os elementos cognitivos são ativados. (Cf. MARCUSCHI, 2008).
Relações de coerência são, sobretudo, relações de sentido.
Dedicamos o terceiro capítulo ao estudo do humor, já que os
produtores desse domínio valem-se do discurso humorístico para atingir seu
propósito comunicativo. Abordando as principais teorias sobre o humor, o
capítulo apresenta a proposta de Possenti a respeito da importância do estudo
de textos humorísticos para os estudos linguísticos. O humor, que em tempos
passados encontrou resistência nos estudos considerados “sérios” no meio
acadêmico, tem, hoje, graças a inúmeros trabalhos de autores renomados
como Travaglia, Possenti e Rosas, ocupado um lugar de destaque para os
estudos linguísticos. O texto de humor torna-se um interessante objeto de
pesquisa na área da Linguística Textual, porque, além de tratar de temas
controversos e operar com estereótipos é, também, “veículo de um discurso
proibido, subterrâneo, não oficial” (POSSENTI, 2008, p. 26).
Embora nosso trabalho não pretenda justificar o que provoca o
humor, acreditamos que os textos que tenham o objetivo de provocá-lo acabam
por oferecer subsídios para uma análise de como ocorre a interação do leitor
12
com o texto, na busca de um sentido que leve esse leitor a achar graça ou não
no enunciado.
No quarto capítulo, procedemos à análise do material escolhido. A
opção pelos cartuns deve-se ao fato de eles constituírem interessante fonte de
estudos linguísticos e discursivos, já que objetivam o humor e exploram as
linguagens icônica e verbal. Além disso, ao apresentar uma linguagem que
conjuga o verbal com o não verbal, amplia a visão que se tem em relação aos
fatores que, integrados, dão sentido ao texto.
O corpus é formado por dezoito cartuns de autoria da ilustradora
argentina Maitena Inéz Burundarena, publicados nas coletâneas Mulheres
superadas 1 e Mulheres superadas 2. Salientamos que, além dos dezoito
cartuns mencionados, exemplificamos as teorias que fundamentam nosso
trabalho com outros onze cartuns de Maitena, num total de vinte e nove
ilustrações dessa autora, com o intuito de melhor explorar as possibilidades do
gênero trabalhado.
13
1 TEXTO, DISCURSO E GÊNERO
1.1 Texto e discurso
Há uma diversidade de posicionamentos no que diz respeito às
relações entre texto e discurso: alguns autores apontam para os limites
existentes entre eles; outros assimilam as convergências que fazem da sintonia
texto/discurso uma unidade linguístico-social.
Para Koch & Travaglia (2009), discurso diz respeito a “toda atividade
comunicativa de um interlocutor, numa situação de comunicação determinada,
englobando não só o conjunto de enunciados por ele produzidos em tal
situação, como também o evento de sua enunciação”. O texto, por sua vez, é
entendido por esses autores como “unidade linguística concreta, que é tomada
pelos usuários da língua em uma situação comunicativa reconhecível e
reconhecida, independentemente de sua extensão”.
Guimarães (2009) observa que, mesmo que se prestem a
abordagens diferentes, texto e discurso estão implicados. Para a autora, o
vínculo entre as propostas da Linguística Textual e da Análise do Discurso abre
espaço para a captação do sentido do complexo texto/discurso; por isso, ela
propõe a substituição do termo “dicotomia texto/discurso” por “intersecção
texto/discurso”, pois a distinção entre os dois planos deve ser considerada
como mero instrumento operatório para elucidar alguns aspectos essenciais da
composição macroestrutural do texto, não como distinção absoluta de dois
domínios autônomos. A autora defende uma harmonização entre texto e
discurso sob o argumento de que o discurso não é outra coisa senão o mesmo
texto que se discursivisa, na medida em que o seu analista busca as intenções
não explicitadas.
Em concordância com Guimarães (id.), optamos por não fazer uma
partição rigorosa entre as regras de abrangência textual e as de abrangência
discursiva, pois julgamos que a ideia de intersecção entre texto e discurso é
mais adequada ao trabalho que pretendemos, seguindo o viés da análise
linguístico-discursiva.
14
1.2 Gêneros do discurso: a realização da língua dentro de um campo
específico
O entendimento do papel dos gêneros discursivos é fundamental
para a assimilação, de forma mais clara, do que ocorre quando utilizamos a
linguagem. Em nosso trabalho, tal entendimento é imprescindível para a
análise que faremos dos cartuns, tendo em vista sua particularidade como
forma discursiva.
Segundo Fiorin (2006), desde a Grécia, o Ocidente preocupava-se
em unir os textos que obedecessem a uma tipologia geral, pelas
especificidades e pelas diferenças encontradas. Para a clássica teoria dos
gêneros, a definição das formas poéticas manifestava-se em termos de
classificação.
Bakhtin (2003) define os gêneros como tipos relativamente estáveis
de enunciados, ou seja, os gêneros apresentam-se marcados por certa
regularidade no tocante ao conteúdo temático, ao estilo e à construção
composicional. O autor afirma que a riqueza e a diversidade dos gêneros
discursivos são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da atividade
humana e porque, em cada campo dessa atividade, é integral o repertório de
gêneros do discurso. Esse repertório cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo. O autor informa ainda:
Dispomos de um rico repertório de gêneros de discursos orais e escritos. Em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas, em termos teóricos, podemos desconhecer inteiramente a sua existência. [...] Nós falamos por gêneros diversos sem suspeitar de sua existência. (BAKHTIN, 2003, p. 282).
Por representarem formas específicas de uso da língua, os gêneros
do discurso, conforme postulado por Bakhtin, destacam a concepção
sociointeracionista de linguagem.
De acordo com Fiorin (id.), Bakhtin interessa-se menos pelas
propriedades formais dos gêneros que pela maneira como elas se constituem;
assim, o conteúdo temático relaciona-se ao domínio de sentido de que se
ocupa o gênero e não ao assunto do texto. A construção composicional, por
sua vez, está ligada ao modo de estruturação do texto, como as cartas, por
15
exemplo, que trazem em seu formato, indicação do local e da data, do nome de
quem escreve e da pessoa para quem se escreve. Quanto ao estilo, ele é
entendido por Fiorin (2006) como uma seleção de meios lexicais, fraseológicos
e gramaticais utilizados pelo produtor do texto – como efeito de sua
individualidade –, em função da imagem do interlocutor e como presume sua
compreensão do enunciado.
Para esse autor, a pedagogia tem ido de encontro às ideias de
Bakhtin ao fazer uma interpretação dos gêneros numa perspectiva normativa,
como modelos a que o texto deve obedecer.
Marcuschi (2008) refere-se aos gêneros como “gêneros textuais”,
explicando tal colocação em nota de rodapé:
Não vamos discutir aqui se é mais pertinente a expressão “gênero textual” ou a expressão “gênero discursivo” ou “gênero do discurso”. Vamos adotar a posição de que todas essas expressões podem ser usadas intercambiavelmente, salvo naqueles momentos em que se pretende, de modo explícito e claro, identificar algum fenômeno específico. (MARCUSCHI, 2008, p. 154)
Segundo esse autor, os gêneros têm um propósito que os determina
e lhes dá uma esfera de circulação. Marcuschi situa o gênero dentro de um
evento de comunicação, constituindo-se em um conjunto de ações linguísticas
recorrentes em situações típicas, como um jogo de futebol ou um congresso
acadêmico. Para ele, a escolha que se faz por um ou por outro gênero, tem em
vista as esferas da necessidade de atuação, o conjunto de participantes e a
intenção do locutor, considerando, em primeira instância, a natureza do
enunciado. Ao distinguir tipos de texto (narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção) de gêneros textuais, o autor adverte que tal distinção não
deve acarretar uma visão dicotômica, pois estes são dois aspectos
constitutivos do funcionamento da língua em situações comunicativas da vida
diária.
A função elementar dos gêneros, na vida social, é de organizar,
rotinizar e condicionar soluções para problemas comunicativos recorrentes,
afirma Bazerman (2005), informando também que sociedades diferentes não
têm o mesmo repertório de gêneros comunicativos e que os gêneros
comunicativos de uma época podem diluir-se em processos comunicativos
16
mais “espontâneos”, enquanto outros gêneros, até então pouco definidos,
podem se congelar em novos gêneros.
Para esse autor, ao criar formas tipificadas ou gêneros, também
somos levados a tipificar as situações nas quais nos encontramos. Quando nos
deparamos com documentos, percebemos certas características que parecem
sinalizar pertencerem a um gênero ou a outro e procuram realizar certo tipo de
interação conosco. Para caracterizar a forma com que os gêneros se
configuram e se enquadram em organizações, papeis e atividades mais
amplas, o autor propõe o conceito de conjunto de gênero como a coleção de
tipos de textos que uma pessoa, num determinado papel, tende a produzir, a
exemplo de um engenheiro civil que precisa produzir, entre os vários textos
exigidos por sua profissão, relatórios, avaliações de segurança, propostas e
assim por diante. Portanto, de acordo com esse conjunto, é possível identificar
o tipo de trabalho com que se ocupa uma pessoa.
Salientamos, conforme Bazerman (2005), que “novos” gêneros
textuais não são inovações absolutas sem uma ancoragem em gêneros já
existentes. Podemos, dessa forma, depreender que grande parte dos gêneros
tem origem em outros gêneros. Marcuschi, na apresentação à obra de
Bazerman (id.), observa que os gêneros nunca surgem num grau zero, mas
num veio histórico, cultural e interativo dentro de instituições e atividades
preexistentes; assim, o gênero escrito referente às leis e às ordens teria
advindo dos comandos orais das autoridades, e o gênero “carta”, com sua
comunicação direta entre dois indivíduos, pode ter servido como forma
transitória para outros gêneros. Para Bazerman (id.), de usos formais e oficiais,
as cartas evoluíram para incluir expressões pessoais. Conforme o autor, há
marcas do gênero “carta” em documentos como letras de câmbio, cartas de
crédito, livros do Novo Testamento, encíclicas papais e romances, por
exemplo.
Para Marcuschi (2003), o suporte ou o ambiente em que os textos
aparecem podem interferir no gênero do texto, pois há casos em que o próprio
suporte ou o ambiente em que os textos aparecem determinam o gênero
presente. A epígrafe, por exemplo, constituída de múltiplos gêneros como
poemas, provérbios ou máximas; torna-se efetivamente “epígrafe” quando
17
posta em determinado lugar de um livro ou de um trabalho acadêmico.
Portanto, é o gênero que determina a relação que o sujeito estabelece com o
texto.
Ressaltamos ainda que um gênero pode assumir a forma de outro,
acarretando o fenômeno da hibridização ou intertextualidade intergêneros, ou
seja, um gênero qualquer, ao ser utilizado em um plano de composição
diferente do esperado para o gênero, será interpretado no propósito
comunicativo do plano atual de apresentação. Usando o exemplo de
Koch & Elias (2006), o gênero “receita”, ao ser apresentado na moldura de uma
tira, terá o propósito da tira e não o da receita, imperando o predomínio da
função sobre a forma (MARCUSCHI, 2008). Assim, o leitor saberá que o
encaminhamento de sua leitura deve ser feito no propósito comunicativo da
tira, não levando a sério a receita apresentada, por entender que a tira tem por
objetivo a crítica por meio do humor.
Por fim, quando entendemos o funcionamento da língua no interior
de um gênero discursivo, podemos observar, num melhor ângulo, as várias
possibilidades do dizer que a língua oferece, nos diferentes tipos de texto que
circulam no mundo social. O processo interativo é determinante para que as
formas comunicativas componham um tipo de gênero e, quanto maior o
domínio das formas discursivas, maior será a liberdade de escolha para seu
uso. Pessoas com proficiência na língua podem sentir-se impotentes dada à
inabilidade de domínio de formas de gênero em determinadas esferas da
comunicação, ou seja, a vontade discursiva do falante realiza-se,
primeiramente, pela opção por certo gênero do discurso, pois são os gêneros
que organizam os nossos discursos, não sendo possível, pois, ocorrer
comunicação sem a concorrência dos gêneros.
Segundo Bazerman (2005), cada pessoa que escreve
competentemente para mais de uma área reconhece a necessidade de
escrever diferentemente para diferentes áreas, com diferentes estados
mentais, com diferentes motivos sociais, com diferentes ferramentas simbólicas
e com a consciência dos diferentes interesses e conhecimentos das
audiências.
18
O estudo por meio de gêneros contribui para a compreensão da
construção dos textos, considerando a natureza social da linguagem, princípio
fundamental da teoria de Bakhtin.
1.3 Domínio discursivo
Os domínios discursivos, entendidos como esferas da atividade
humana, operam como enquadres globais de superordenação comunicativa,
subordinando práticas sociodiscursivas orais e escritas que dão origem aos
gêneros. Dessa forma, na modalidade escrita, os gêneros cartum, editorial,
notícia e reportagem, dentre outros, pertencem ao domínio discursivo
jornalístico. Nas palavras de Marcuschi:
Entendemos como domínio discursivo uma esfera da vida social ou institucional (religiosa, jornalística, pedagógica, política, industrial, militar, familiar, lúdica etc. na qual se dão práticas que organizam formas de comunicação e respectivas estratégias de compreensão). Assim, os domínios discursivos produzem modelos de ação comunicativa que se estabilizam e se transmitem de geração para geração com propósitos e efeitos definidos e claros. (MARCUSCHI, 2008, p. 194).
Para o autor, a noção de domínio discursivo não abrange um gênero
em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo práticas discursivas
dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros que às vezes lhe
são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas
institucionalizadas e instauradoras de relações de poder.
A noção de domínio discursivo humorístico, para Silva (2007),
corresponde a um campo de interação definido por um conjunto de práticas
voltadas para um efeito risível. Segundo o autor, se no domínio discursivo
religioso prevalece a evocação do sagrado e no discurso acadêmico a do rigor
formal, no humorístico, a prevalência é da ambiguidade e da subversão.
Feita essa breve exposição sobre o conceito de gêneros do discurso
e sobre a noção de domínio discursivo, ressaltada sua importância para a
compreensão da prática social da linguagem, prosseguiremos nosso trabalho
com um panorama sobre os gêneros Histórias em Quadrinhos, Tiras, Charges
e Cartuns.
19
1.4 Histórias em quadrinhos, tiras, charges e cartuns: diferentes gêneros
dentro de um quadro
Os quatro gêneros acima, muito utilizados como objetos de
avaliação em concursos públicos, vestibulares e outras provas de seleção,
diversas vezes são apresentados sem distinção, devido a certas afinidades que
guardam entre si, no plano da expressão. Tais afinidades devem-se à
conjugação necessária da linguagem no nível textual e paratextual (não -
verbal) para sua interpretação.
É importante considerar, contudo, que os objetivos das histórias em
quadrinhos diferem daqueles dos cartuns, das tiras e das charges. Julgamos,
pois, necessário esclarecer as diferenças existentes, já que pertencem a
gêneros distintos apesar de se utilizarem da mesma linguagem e de formatos
semelhantes. Dessa forma, discorreremos sobre os quatro gêneros em pauta,
com ênfase para os cartuns, nosso objeto de análise.
O jornal Folha online, nas normas de seu 4º concurso de ilustração,
publicadas na edição de 15 de abril de 2010, assim resume as características
dos cartuns, das charges e dos quadrinhos:
o Cartum: Desenho de humor, retratando qualquer fato ou situação. Independe do contexto histórico ou temporal.
o Charge: Piada gráfica que faz referência a algum assunto recente, em especial de natureza política.
o Quadrinho: História que pode ser dramática ou humorística, narrada em forma de quadrinhos sequenciais.
1
O gênero tira não foi definido nas normas do concurso acima, talvez
pelo fato de ser considerado, pela empresa jornalística, como pertencente ao
gênero das Histórias em Quadrinhos já que, como estas, sua narração
efetiva-se na forma de quadrinhos sequenciais.
1.4.1 Histórias em quadrinhos
As histórias em quadrinhos (HQs) constituem um esquema narrativo
composto pelos códigos verbal e visual e o entendimento da maioria das 1Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/concurso_ilustracao-regulamento.shtml>.
Acessado em: 28/08/2010.
20
mensagens por elas transmitidas se dá pela interação entre tais códigos. Com
linguagem icônica ou icônico-verbal, sua organização constrói-se pela
sequencialidade dos quadros, marca fundamental desse gênero. Seus
elementos típicos são a moldura em forma de quadros, os desenhos e os
balões.
Quadrinhos, segundo Ramos (2010), seriam “hipergêneros”, ou seja,
um grande rótulo que une características semelhantes usadas em maior ou
menor grau por uma diversidade de gêneros, como as tiras, os cartuns e as
charges.
Diferentes registros icônicos da história do mundo têm
características que se assemelham às das histórias em quadrinhos, como os
desenhos dos homens das cavernas e murais fenícios, entre outros, conforme
Passarelli (2004). Ainda segundo a autora, o gibi Tico-Tico, de Angelo Agostine
– a quem Carlos Drummond de Andrade dedicou grandes elogios –, é
considerado o primeiro representante de expressão, no Brasil, das HQs.
Segundo Vergueiro (2009), a evidente popularidade do gênero
história em quadrinhos no mundo acabou por provocar, principalmente nos
educadores, um olhar crítico e desconfiado sobre a influência desse tipo de
leitura nos jovens e nos adolescentes, seu público alvo. Por esse motivo, as
HQs encontraram restrições para sua entrada em sala de aula.
As restrições apontadas por Vergueiro (id.) acabaram,
paulatinamente, por extinguir-se e, hoje, é muito comum a inclusão desse
gênero em manuais didáticos, tanto no âmbito escolar quanto em outras áreas
– governamentais ou privadas – com finalidades educativas. Como exemplo,
podemos citar a reprodução de autores clássicos, como o brasileiro Machado
de Assis que, em 2002, teve seu conto Pai contra mãe lançado em forma de
quadrinhos, e o austríaco Franz Kafka, que teve sua obra A metamorfose
adaptada para a forma icônico-verbal por Peter Kuper. Isso não só confirma o
fim das restrições ao gênero “quadrinhos”, como reforça sua utilização no
cenário educacional.
Temas religiosos têm sido objeto de trabalho por parte dos
profissionais da comunicação icônico-verbal, haja vista a narrativa da Via
21
Sacra2, representada iconicamente nas igrejas católicas, que pode ser
considerada uma espécie de história contada em quadrinhos. A propósito, o
americano Robert Crumb lançou, em 2009, uma versão quadrinizada do Livro
do Gênesis. No Brasil, Maurício de Souza fez uma parceria com a editora
Ave-Maria e o padre Luís Erlin para uma versão infantil da Bíblia, intitulada
Minha primeira Bíblia com a Turma da Mônica.
Atualmente, as histórias em quadrinhos ganham espaço na internet
com o surgimento das “HQtrônicas” (histórias em quadrinhos eletrônicas),
criadas para leitura na tela do computador. Segundo Franco (2008), a partir de
meados da década de 1980, muitos artistas dessas histórias passaram a fazer
uso do computador como instrumento para suas criações visando a um
aperfeiçoamento dos trabalhos a serem publicados na imprensa. Aos poucos,
surgem os primeiros trabalhos feitos em CD-ROM, incluindo animação e uso do
som. Com a popularização da internet, os quadrinistas tiveram a oportunidade
de veicular seus trabalhos on line. Para o autor (o ambiente virtual oferece a
possibilidade de uma diagramação dinâmica em que se pode explorar, além do
som, a narrativa multilinear, a interatividade e a tridimensionalidade dos
quadrinhos, fazendo romper o paradigma tradicional imposto pelo papel.
“Mangá telemático”, “HQinterativa”, “Quadrinhos on line” ou “HQnet” são outras
nomenclaturas propostas para Histórias em Quadrinhos veiculadas por meio do
computador. Para o autor, no entanto, o termo “HQtrônicas”, formado pela
contração da abreviação “HQ” com o termo “eletrônicas” é o mais adequado
por considerar que a veiculação ocorre não apenas por meio da internet, mas
também por CD-ROMs.
1.4.2 A linguagem dos quadrinhos
As linguagens organizam-se em sistemas aceitos e reconhecidos
pela sociedade que dela se utiliza. De acordo com Aguiar (2004), se é verdade
que a linguagem verbal desempenhou papel de suma importância na História
2Via Sacra é a narrativa icônica do percurso de Jesus desde o pretório de Pilatos até o sacrifício no monte
Calvário.
22
da Civilização, não é menos verdade que outras linguagens têm sido
enfatizadas também com relevância nos últimos tempos.
A comunicação ocorre por intermédio de algum tipo de linguagem
que o indivíduo utiliza por meio de códigos verbais e/ou não-verbais. Orlandi
(2009) chama a atenção, no entanto, para o fato de que a escola privilegia a
linguagem verbal em detrimento de outras linguagens, não levando em
consideração a convivência do aluno com a linguagem em suas diferentes
formas. Para a autora, o processo de compreensão é construído na articulação
entre as várias linguagens que constituem o universo simbólico.
A linguagem verbal tem, como unidade, a palavra. Organiza-se com
base na linguagem articulada, formada pela língua. A linguagem não verbal –
muito anterior na história da humanidade à linguagem verbal – emprega outros
tipos de unidades que não a palavra. Assim, as cores verde, vermelha e
amarela em um semáforo, os símbolos de identificação de reserva de vagas a
portadores de necessidades especiais, bem como o apito do guarda de
trânsito, são apenas alguns exemplos de linguagem não- verbal.
A combinação de unidades das linguagens verbal e não-verbal
constitui a linguagem mista, a exemplo das histórias em quadrinhos, das tiras,
das charges e dos cartuns, que abordaremos a seguir, para cuja produção de
sentido concorrem os textos escritos e as figuras, a exemplo do cartum a
seguir:
(Superadas 1, p. 41)
23
O exemplo de linguagem mista apresentado mostra que a
compreensão do cartum exige também a compreensão da relação do texto
com a imagem. Nesta apresentação, há uma crítica feita às mulheres que,
cedendo aos apelos da publicidade para parecerem sempre jovens,
submetem-se a procedimentos estéticos que, por vezes, acabam por
transfigurar a expressão facial. A mensagem do cartum está, pois, na interação
entre a fala da filha e a expressão caricata da mãe.
Segundo Vergueiro (2009), os quadrinhos são organizados no
sentido da leitura do texto escrito: do alto para baixo e da esquerda para a
direita. Em alguns países asiáticos, no entanto, essa representação ocorre da
direita para a esquerda, acompanhando a leitura da escrita japonesa e chinesa.
Ainda de acordo com esse autor, à linguagem icônica estão relacionadas
questões de enquadramento, planos, ângulos de visão, formato dos
quadrinhos, montagem de tiras e páginas, gesticulação e criação de
personagens, bem como a utilização de figuras cinéticas, ideogramas e
metáforas visuais.
São informativas também as linhas que demarcam o contorno das
imagens na formação dos quadrinhos. A tira a seguir, do cartunista Glauco,
reproduzida em Vergueiro (id.), omite essa demarcação sem, no entanto,
dificultar a compreensã7o do leitor que, de maneira fácil, pode entender a
mensagem pela demarcação imaginária dos quadrinhos.
24
(Vergueiro, 2009, p. 39)
As expressões corporais e faciais das personagens são importantes
para sua caracterização e, consequentemente, para a compreensão da
mensagem. Nessa tira, a expressão de contentamento do filho ao anunciar ao
pai que passara no vestibular “Papai! Passei! Passei!” dá lugar à expressão
de sua frustração na evolução da narrativa. A expressão corporal do pai, ao
fingir indiferença ao fato, aliada a sua fala “Não fez mais que obrigação” é
modificada no quadro seguinte pela expressão de satisfação em relação à
aprovação do filho.
De acordo com Vergueiro (2009), as expressões faciais evidenciam
os estados de ânimo dos personagens por códigos já convencionados. As
histórias em quadrinhos firmam-se, normalmente, em estereótipos para fixação
das características de um personagem junto ao público. Para o autor, algumas
representações apresentam forte carga ideológica e reproduzem preconceitos,
conforme apresenta:
25
E não se trata apenas de apresentar o herói como uma figura agradável ao olhar e o malfeitor com traços semiescos, mas às vezes até sub-repticiamente, salientar traços ou situações que fortalecem a visão estereotipada das raças, classes, grupos étnicos, profissões, etc. (VERGUEIRO, 2009, p. 53).
(Superadas 2, p. 86)
Percebemos, pela linguagem não verbal utilizada nesse cartum, a
imagem estereotipada da mulher loira relacionada à ideia de independência
sexual. A linguagem verbal do enunciado reforça o estigma da “loura burra” na
revelação da personagem de que sua filosofia está ligada ao ato de pensar.
Quanto aos balões, eles são um recurso representativo das falas
dos personagens e mostram, também, a ordem dessas falas, ou seja, balões
colocados na parte superior esquerda do quadrinho, por exemplo, devem ser
lidos antes daqueles colocados à direita e abaixo.
Ainda segundo Vergueiro (2009), os balões devem também
acompanhar as convenções dos diálogos: o balão que é lido primeiro no
quadrinho deve ser também aquele que representa a fala inicial em uma
conversa. As linhas que delimitam os balões também são convencionadas:
vozes baixas são transmitidas por linhas tracejadas; em formato de nuvem,
indicam pensamento; com traçado semelhante ao de uma descarga elétrica,
indicam que o som vem de aparelhos eletrônicos e também representam gritos;
com múltiplos rabichos nos balões, apresentam vários personagens.
26
O formato e a cor da letra utilizados também têm significado,
podendo representar o tom da fala. A cor de letra tradicional é a preta, a qual
indica neutralidade; portanto, qualquer cor de letra que fuja a esse padrão
levará a um resultado expressivo diferente. Letras com um tamanho menor
podem indicar tonalidade baixa; o negrito, por sua vez, pode sugerir um tom
mais alto ou uma fala mais emocional. O tom mais forte serve também para
dar ênfase a alguma palavra ou expressão, não indicando, necessariamente,
volume mais elevado.
Em relação à legenda, são elas representativas da voz onisciente do
narrador e servem para situar o leitor no tempo e no espaço em que ocorrem
as histórias. Por fim, também as onomatopeias são signos convencionais
utilizados para a representação verbal dos sons.
1.4.3 A tira
De acordo com Mendonça (2002), tira é um subtipo de HQ. Tem até
quatro quadrinhos e pode ser sequencial ou fechada, com um único episódio.
Com narrativa curta, a tira encontra espaço para publicação diária nos jornais.
Em seus estudos, Silva (2007) afirma que o aspecto dominante na linguagem
das tiras de humor não é o processo narrativo – típico dos gêneros de
aventura –, pois, em grande parte das tiras de humor, o objetivo não é o de
narrar uma história, mas sim de estabelecer uma visão crítica sobre um fato.
Na década de 1970, as tiras cômico-humorísticas passam a ser
publicadas com frequência nos jornais voltados para o público adulto. Como
autores de tiras conhecidos, podemos citar o argentino Quino e os brasileiros
Glauco e Laerte.
1.4.4 A charge
O termo charge data de 1680 e, conforme o Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa, significa: “o que exagera o caráter de alguém ou de algo
para torná-lo ridículo, representação exagerada e burlesca, caricatura”.
Apresentada normalmente em um único painel é, geralmente, veiculada em
27
jornais ou revistas e caracteriza-se pela construção do humor por meio da
apresentação de uma imagem caricatural. Tem, como foco, assuntos da
atualidade com temas específicos e retrata personalidades conhecidas. À
semelhança dos outros gêneros em quadrinhos, para cuja interpretação entra
em cena o entendimento dos códigos verbais e não-verbais, a charge
distingue-se desses por suas características específicas, as quais serão
apresentadas a seguir.
Segundo Teixeira (2001), a charge elege a política como objeto
privilegiado e a eficácia de seu discurso está ligada à sociedade na qual está
inserida. Outro caráter da charge é o fato de tratar de assunto ocorrido em
época definida, dentro de determinado contexto cultural, econômico e social
específico, dependendo, pois, do conhecimento de mundo e partilhado para
seu entendimento. Fora desse contexto, ela provavelmente perderá sua força
comunicativa, sendo, portanto, efêmera e localizada.
As charges relativas às matérias de primeira página assemelham-se,
muitas vezes, à voz da editoria do jornal, constituindo-se numa espécie de
editorial gráfico em que os chargistas mostram-se comprometidos com o
conteúdo do periódico (Cf. POSSENTI, 2008). Para Ramos (2010), a charge é
um texto de humor que aborda algum fato ou tema ligado ao noticiário
estabelecendo, com a notícia, uma relação intertextual.
1.4.5 O cartum
O humorista Chico Caruso apresenta o cartum como uma máquina
fotográfica que ajusta seu foco a uma realidade genérica. O termo cartoon
deve-se ao suporte em que eram confeccionados os cartuns: papel cartão.
Significava, a princípio, desenho animado ou caricatura. A acepção atual de
cartoon surgiu em 1841 nas páginas da revista inglesa Punch, a mais antiga
revista de humor. Em algumas línguas, a palavra cartoon não tem equivalente.
Na França, na Alemanha e na Itália, por exemplo, utiliza-se a própria palavra
cartoon, mantendo a grafia inglesa. No Brasil, o cartunista Ziraldo lançou o
neologismo “cartum” na revista Pererê, em 1964.
28
Diferente da charge, em que os personagens são identificáveis, os
personagens do cartum são anônimos. A principal marca de distinção entre a
charge e o cartum, no entanto, reside no fato de este não estar vinculado a um
fato do noticiário. Duas características fundamentais desse gênero são a
atemporalidade e a universalidade temática. Essa última caracterização, por si
só, justifica o fato de nosso objeto de análise, apesar de serem cartuns de
autora argentina, poderem ser entendidos, sem nenhum prejuízo, por leitores
brasileiros.
A título de exemplo da atemporalidade do cartum, apresentamos um
trabalho do cartunista Orlando, publicado na Folha de S. Paulo, em 19/05/1992,
e reproduzido em Possenti (2008)3. O cartum em questão foi veiculado há
dezoito anos, mas é passível de compreensão nos dias atuais.
(Possenti, 2008, p. 122)
O tema desse cartum é o desemprego. Ele explora o conhecimento
de mundo de que as crianças geralmente colocam seus pais em posição de
superioridade em relação aos pais de seus colegas. No cartum em tela, “ser
mais” é o que importa, mesmo que seja decorrente de um fato negativo: o
desemprego, tema de caráter universal e atemporal.
Na sequência de nosso trabalho, julgamos importante analisar os
tipos de discurso estudados por Orlandi (2009) – discurso lúdico, discurso
3Possenti não faz distinção entre charge e cartum em seu trabalho.
29
polêmico e discurso autoritário –, a fim de focalizarmos melhor o objeto de
nosso estudo.
1.5 Tipos de discurso
A noção de tipologia atende a uma necessidade metodológica para o
estudo do discurso, conforme Orlandi (id.). Existem, entretanto, tipologias de
diferentes ordens para apreensão do discurso, de acordo com a orientação
comunicacional. Segundo Maingueneau (2008), categorias como “discurso
didático” e “discurso prescritivo” indicam aquilo que se faz com o enunciado.
Essas categorias, para o autor, apresentam-se como classificações por
funções da linguagem ou como funções sociais, oscilando entre categorias
abstratas (polêmico, informativo, prescritivo) e as que dividem a sociedade em
classes ou setores de atividades como o “discurso pedagógico”, o “discurso
político”, “o discurso machista”, entre outros.
Orlandi (2009) propõe que se distingam três tipos de discursos: o
discurso autoritário, o discurso polêmico e o discurso lúdico. Os critérios
adotados para essa distinção derivam da interação e da polissemia. Da
interação resulta o critério que leva em conta a forma como se relacionam os
interlocutores; da polissemia resulta a forma de relação da disputa com o
objeto do discurso.
No discurso autoritário, não há reversibilidade de papéis entre os
interlocutores, pois há um elemento exclusivo que domina a palavra, na
imposição de um só sentido e na contenção de outras vozes discursivas. O
discurso polêmico, por sua vez, caracteriza-se pela dinâmica na troca de
papéis, isto é, pela reversibilidade que ocorre sob certas condições. Nesse tipo
de discurso, o locutor leva em consideração o interlocutor sob certa
perspectiva, buscando simetria na relação de disputa pela palavra. No discurso
lúdico, a polifonia é aberta e a reversibilidade é total.
Como exemplo de discurso autoritário, podemos citar o discurso
religioso, cuja finalidade é persuadir o auditório a respeito de valores que
ultrapassam os limites do conhecimento humano. Nesse discurso, o locutor fala
em nome de uma divindade e aqueles que têm fé não questionam sua palavra.
30
Esse discurso é assimétrico e autoritário por natureza, pois o locutor coloca-se
numa posição superior à do auditório, uma vez que detém a palavra de Deus –
que é inquestionável – e a transmite. Podemos entender, dessa forma, que o
discurso autoritário apresenta-se num enfoque monologal de negação da
existência de outra consciência.
O discurso polêmico pode ser ilustrado pelo discurso político, no
qual cada participante procura dar uma direção a seu discurso sob
perspectivas particularizantes e com a verdade disputada pelos interlocutores.
O discurso lúdico, por sua vez, caracteriza-se pela utilização da
linguagem pelo prazer, sendo possível o non sense. Dessa forma, não importa
a simetria ou a assimetria entre a posição dos interlocutores, mas a troca que
provoca o prazer do jogo. É a forma mais aberta e democrática do discurso. Tal
fator faz com que esse tipo de discurso surja como contraponto em relação aos
outros dois, já que, em relação às práticas sociais em geral, o uso eficiente da
linguagem voltado para fins mais específicos, a exemplo dos discursos
autoritário e polêmico.
Conforme Orlandi (2009), diferente do discurso religioso em que a
voz de Deus se fala na voz do padre e do discurso político, em que a voz do
povo se fala na do político, o discurso cômico não necessita de um estatuto
jurídico de seu locutor. Qualquer voz, independente de seu status, pode fazer
uso dele. É, pois, na possibilidade do confronto de várias vozes (polifonia) que
está sua principal característica. A autora observa, contudo, que não há tipos
puros de discurso, tampouco marcas exclusivas de um só discurso. A tipologia
estabelecida por ela funciona pelo jogo da dominância de um sentido com os
outros de forma que, no discurso polêmico, disputa-se um sentido; no discurso
autoritário, absolutiza-se o sentido; no discurso lúdico, o sentido ocorre por
uma variação de ecos. Para a autora, esses discursos são modos de ação ou
modos de interação, sendo preciso primeiramente fazer a análise do
funcionamento discursivo antes de avaliações categóricas a esse respeito.
A título de exemplificação de como o funcionamento discursivo é
determinante para o estabelecimento de uma tipologia, selecionamos a seguir
dois cartuns de Maitena.
31
(Superadas 2, p. 65)
A constatação, por parte da primeira interlocutora, de que esposas e
amantes têm inveja uma da outra pela relação que vivenciam com o mesmo
homem, instaura o cômico no cartum, já que rompe com a convenção de que
ser a esposa é estar em papel privilegiado. Dentro da convenção social,
quando duas pessoas se casam é por que têm o desejo de estarem sempre
juntas. Assim, o desejo amante de estar integralmente ao lado do homem
contrasta com o desejo da esposa em “ter de estar” com ele o tempo todo.
O cartum apresenta predominância do discurso lúdico,
considerando-se a interação entre as interlocutoras. No entanto, ao configurar
o posicionamento de outro ponto de vista pela fala da personagem, a cartunista
instaura um discurso polêmico com as vozes da sociedade.
32
(Superadas 2, p. 10)
O cartum apresenta duas mulheres maduras interagindo sobre
formas de esconder um “defeito”: a velhice. O imaginário social é de que
parecer velha é algo que deve ser evitado. O que provoca o cômico, nesse
exemplo, é a apresentação, de forma acentuada, que a segunda interlocutora
dá ao fato, enfatizando a impossibilidade de não se ver velha, voltando seu
discurso para um sentido único. A dimensão dada ao fato é ainda ampliada na
observância de que esta se maquila sem fazer uso de um espelho.
A situação de linguagem apresentada é, para nós, nesse cartum,
classificada como uma combinação do discurso lúdico com o autoritário, pela
forma com que a segunda interlocutora absolutiza o discurso. Num “eu”
impositivo, a interlocutora em questão modaliza seu discurso utilizando a forma
do infinitivo do verbo “ver” com valor imperativo.
Na apresentação ilustrativa desses dois cartuns, percebemos que
as categorias que tipificam o discurso devem ser consideradas não como
autônomas, mas como de dominância, de forma que o polêmico pode conter o
lúdico, ou o autoritário o polêmico etc.
33
2 OS SENTIDOS DO TEXTO: FATORES INTERVENIENTES
2.1 Coerência textual
Fávero (2003) pontua que muitos autores não distinguem coesão de
coerência, pois alguns as estudam sem rotulá-las e outros, como Beaugrande e
Dressler (1981), consideram-nas em níveis diferentes de análise. A coesão
manifesta-se, no nível microtextual, enquanto a coerência manifesta-se, em
grande parte, em nível macrotextual, afirma a autora, a qual também informa
que a coesão é uma relação linear entre as sentenças, não sendo necessária
nem suficiente para a coerência, já que pode haver textos destituídos de
coesão, cuja textualidade se dá no nível da coerência.
Coesão e coerência são dois fenômenos distintos, conforme Koch
(2003), porém, a autora adverte que existem zonas de imbricação entre as
duas, nas quais é difícil ou impossível o estabelecimento de uma separação
nítida entre esses dois fenômenos. Para Koch & Travaglia (2009), os conceitos
de coesão e de coerência formam uma espécie de par opositivo/distintivo, pois
enquanto a coesão é explicitamente revelada por meio de marcas linguísticas e
apresenta um caráter linear – já que se manifesta na organização sequencial
do texto –, a coerência é o resultado de processos cognitivos operantes entre
os interlocutores. Koch & Elias (2006), por seu turno, afirmam que as marcas
de coesão encontram-se no texto, enquanto a coerência se constrói a partir
dele, em dada situação comunicativa, com base em uma série de fatores de
ordem semântica, cognitiva, pragmática e interacional.
Tendo em vista as características de nossa pesquisa, não nos
alongaremos nas diferenças existentes entre coesão e coerência passando,
então, ao estudo individualizado da coerência.
O termo coerência pode ser utilizado em sentido geral para denotar
que alguma forma de relação de sentido foi estabelecida pelo usuário. De
acordo com Koch & Travaglia (2009), a coerência pode ser local (proveniente
do bom uso dos elementos da língua, em sequências menores, para expressar
sentidos que possibilitem realizar uma intenção comunicativa) ou global
(relacionada ao texto em sua totalidade).
34
Os autores abordam quatro possibilidades de coerência
mencionadas por van Dijk e Kintsch (1983), que são: a) coerência semântica
(relação entre significados dos elementos das frases em sequência em um
texto ou entre os elementos do texto como um todo); b) coerência sintática
(meios sintáticos utilizados para expressar a coerência semântica); c)
coerência estilística (uso de elementos linguísticos pertencentes ou
constitutivos do mesmo estilo ou registro linguístico); d) coerência pragmática
(relaciona-se com o texto visto como uma sequência de atos de fala).
Marcuschi (2007), postulando que coerência é um processo de
produção de sentido, observa que se deve dar atenção especial às noções de
referência, de significado, de cognição e de efeito de sentido envolvidas no
processo de produção da coerência. Para o autor, mais que um princípio de
materialidade textual, a coerência afigura-se como um critério de
processamento textual, seja na fala seja na escrita. O autor propõe a distinção
de ao menos três noções de coerência: a noção estrutural, que concebe a
coerência como uma propriedade do texto; a noção inferencial, perspectiva
em que a coerência ocorre mediante processos cognitivos lógicos manifestos
em atividades inferenciais; e a noção interacional, que toma como base, para
a produção de sentidos, os processos colaborativos no uso efetivo da língua.
Observamos, pelo exposto, que a construção da coerência decorre
de fatores linguísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.
Partindo do princípio de que há textos coerentes, perguntaríamos: “Há, então,
textos incoerentes?” Diversos autores tratam desse tema, dentre eles
Beaugrande e Dressler (1981), para os quais o texto coerente é aquele que faz
sentido para seus usuários, enquanto o texto incoerente é aquele no qual o
leitor/ouvinte não consegue descobrir nenhuma continuidade, comumente
devido às discrepâncias entre a configuração de conceitos, às relações
expressas e ao conhecimento de mundo dos receptores.
Charolles (1987) afirma que as sequências de frases não são
coerentes ou incoerentes em si, pois tudo depende dos interlocutores e da
situação comunicativa. Para esse autor, não há texto propriamente incoerente,
pois o receptor do texto age como se ele fosse sempre coerente e faz o
possível para encontrar um contexto para lhe atribuir um sentido.
35
Fávero (2003) resume a discussão sobre coerência e incoerência
textuais da seguinte forma:
O texto contém mais do que o sentido das expressões na superfície textual, pois deve incorporar conhecimentos e experiência cotidiana, atitudes e intenções, isto é, fatores não linguísticos. Deste modo, um texto não é em si coerente ou incoerente. Ele o é para um leitor/alocutário numa determinada situação. (FÁVERO, 2003, p. 60).
Quanto ao processo de criação de textos coerentes, Bernárdez
(1982) aponta para um processo que prevê: a) uma intenção comunicativa
possível; b) o desenvolvimento de um plano global que lhe favoreça em sua
intenção comunicativa, e c) a realização de operações necessárias para a
expressão verbal desse plano, de maneira a levar o ouvinte a reconstituir ou
identificar a intenção comunicativa. Às fases apontadas pela autora para a
formação de textos coerentes, agregam-se os princípios que propiciam o
estabelecimento da coerência.
De acordo com Fávero (id.), os estudiosos do texto ressaltam que a
coerência depende, antes de tudo, de nosso conhecimento prévio, que não é
mais um elemento de coerência como os modelos cognitivos globais, mas o
elemento base, subjacente a todos os outros. A compreensão de um texto
realiza-se pela ativação desse conhecimento, no qual se encontram os
conhecimentos linguístico, textual e de mundo.
O conhecimento linguístico é o saber implícito que faz com que
um indivíduo fale uma língua como falante nativo. (Cf. FÁVERO 2003, p. 71).
Koch & Travaglia (2008) o definem como o conhecimento que os interlocutores
detêm sobre a língua e sua estrutura. Para esses autores, embora não seja
possível apreender o sentido de um texto com base apenas nas palavras que o
compõem e na sua estrutura sintática, é indiscutível a importância dos
elementos linguísticos do texto para o estabelecimento da coerência.
O conhecimento textual, segundo Fávero (2003), está relacionado
à classificação do texto quanto a sua estrutura e quanto à interação autor-leitor.
Para essa autora, quanto mais conhecimento textual o leitor/ouvinte tiver,
melhor será a compreensão.
36
O conhecimento de mundo abrange todo o conhecimento
enciclopédico do mundo e da cultura dos interlocutores, adquirido tanto formal
como informalmente. O exemplo de Kleiman (2009, p. 20) de que não basta
aprender um sinônimo para serventia se não se é capaz de entender o conceito
de servidão, ilustra bem a relação que se estabelece entre o conhecimento
linguístico e de mundo.
O cartum a seguir ilustra a importância do engajamento do
conhecimento prévio do leitor para sua compreensão, já que o conhecimento
de mundo sobre o que é natureza morta é essencial para seu entendimento.
(Superadas 1, p. 122)
Koch & Travaglia (2008) afirmam que o conhecimento linguístico é
insuficiente para o estabelecimento do sentido de um texto, pois somente o
conhecimento de mundo dos usuários permite a construção de um mundo
textual, o relacionamento de elementos do texto – aparentemente sem relação,
por meio de inferências –, o estabelecimento da continuidade de sentido –
através do conhecimento ativado pelas expressões do texto na forma de
conceitos e modelos cognitivos – e a construção da macroestrutura, cruciais
para a compreensão. Os autores apontam para o fato de que o conhecimento
de mundo é armazenado na memória em blocos denominados modelos
cognitivos globais. Desses modelos, os autores citam os frames, os esquemas,
os planos, os scripts e as superestruturas.
37
Fávero (2003) afirma que os limites entre os modelos cognitivos
globais apresentados por diversos autores não são muito nítidos e
terminologias diferentes nem sempre significam teorias diferentes. Para a
autora, frame parece ser a noção mais abrangente, sendo mais produtivo
considerá-lo o modelo cognitivo mais global e com capacidade de abarcar os
demais, segundo suas palavras:
Quando alguém se defronta com uma situação nova, seleciona na memória uma estrutura lá armazenada – o frame; essa estrutura, porém, “pode ser adaptada para se adequar à realidade, mudando-se, quando necessário, alguns pormenores”. Assim, um professor provavelmente ativará, em Natal, elementos como: encerramento das aulas, correção de provas, entrega de notas; e um diretor de firma, gratificação aos funcionários, brindes, encerramento do exercício, balanços e outros. (FÁVERO, 2003, p. 64).
O cartum, a seguir, exemplifica as palavras da autora:
(Superadas 1, p. 73)
Vestido de noiva normalmente ativa frames relacionados à cerimônia
de casamento com todo o seu roteiro – igreja, festa, valsa, presentes –,
constante da fala da menina. Observamos, nesse cartum, no entanto, a
ativação de outra situação, do ponto de vista da mãe: a de que, quando era
magra, cabia no vestido.
Além dos conhecimentos linguístico, textual e de mundo, Koch &
Travaglia (2008, 2009) elencam o conhecimento compartilhado, a
38
inferência, a situacionalidade, a intencionalidade, a aceitabilidade, a
informatividade, a focalização, a intertextualidade e a relevância como
fatores de coerência.
O conhecimento compartilhado é aquele que os interlocutores
detêm sobre um mesmo assunto. Segundo Koch & Travaglia (2008, 2009), é
impossível que duas pessoas partilhem o mesmo conhecimento de mundo,
porém, é necessário que os conhecimentos do leitor e do produtor guardem
certo grau de similaridade para que possam compartilhar esses
conhecimentos, pois é isso que determina a estrutura informacional do texto.
Para esses autores, para que um texto seja coerente é preciso que haja
equilíbrio entre as informações dadas e as novas, já que um texto composto
apenas de informação nova seria ininteligível, ao passo que um texto formado
apenas de informação dada seria altamente redundante.
A inferência, segundo Beaugrande e Dressler (1981), busca
resolver problemas de continuidade de sentido. Para Koch & Travaglia (2008),
a inferência está ligada ao conhecimento de mundo do leitor e é usada para
estabelecer uma relação não explicitada no texto entre dois elementos desse
mesmo texto. Esses autores informam que, por vezes, o receptor faz
inferências imprevistas ou não desejadas pelo produtor. Por isso, vários
autores têm se preocupado em procurar meios que limitem as inferências
àquelas que julgam necessárias e/ou relevantes para a interação sem,
contudo, terem chegado a resultados satisfatórios.
A situacionalidade diz respeito à relação texto-situação. Refere-se,
portanto, à situação comunicativa. Conforme Koch & Travaglia (2008, 2009), a
situacionalidade exerce também um papel de relevância. Assim, um texto
coerente em dada situação pode ser incoerente em outra, daí a importância da
adequação do texto à situação comunicativa. De acordo com os autores, o
contexto de situação reflete-se não só no pragmático, mas também no
semântico, como evidencia o caso dos dêiticos e a especificidade do
significado dos homônimos, cujo sentido varia de acordo com a focalização
imposta ao texto pela situação em que ele é produzido.
A intencionalidade refere-se ao modo como os emissores usam os
textos para atingirem seus objetivos, produzindo textos adequados à obtenção
39
dos efeitos pretendidos. Segundo Fávero (1986), a intencionalidade, no sentido
estrito, é a intenção do locutor de produzir uma manifestação linguística
coesiva e coerente, ainda que essa intenção nem sempre se realize na sua
totalidade. De acordo com Marcuschi (2008), o problema maior no caso da
intencionalidade acha-se no conceito de sujeito que ela subentende, pois tudo
se passa como se o sujeito fosse dono do conteúdo e como se ele fosse uma
fonte independente e a-histórica.
A aceitabilidade, em sentido estrito, diz respeito ao que é aceito na
comunicação; em sentido amplo é a disposição ativa dos usuários da língua de
participar de um discurso e/ou compartilhar um propósito (Cf. FÁVERO, 1986,
p. 37). Para a autora, a aceitabilidade constitui-se num importante controle para
a seleção e motivação do uso das alternativas num texto, que estão na
dependência direta das intenções do locutor, que, por sua vez, irá utilizar
elementos linguísticos determinados na orientação do sentido pretendido. A
aceitabilidade pode ser entendida, então, como a contraparte da
intencionalidade.
A intencionalidade e a aceitabilidade são duas faces constitutivas do
Princípio de Cooperação de Grice, para quem toda conversação depende de
um esforço cooperativo entre os participantes numa base contratual mínima
entre os interlocutores, a qual deve conter os princípios que regulam qualquer
transmissão verbal de informação: a) (qualidade) dizer somente o que julga
verdadeiro; b) (quantidade) dizer só o necessário; c) (relevância) dar
informações relevantes e d) (modo) ordenar seu enunciado com clareza.
Exemplifica-se, pelo cartum seguinte, a interação entre os
participantes na relação com os princípios de Grice:
40
(Superadas 1, p. 131)
O “há” do verbo “haver” é utilizado para indicar existência de algo ou
tempo decorrido. Ao fazer a pergunta, o marido espera que a esposa dê uma
resposta relativa ao aspecto temporal: dias, semanas, meses ou anos. Ao
utilizar-se da expressão “há uns seis quilos”, a esposa associa o tempo em que
não utiliza o vestido, ao tempo em que adquiriu os quilos a mais, dizendo
apenas o que pensa ser relevante e necessário em sua resposta.
É possível, todavia, que o falante infrinja uma das máximas de modo
a ultrapassar os limites do Princípio de Cooperação; quando isso ocorre,
obriga-se o interlocutor a fazer cálculos de forma a deduzir o motivo da
violação. Quando duas pessoas interagem por meio da linguagem, elas se
esforçam por se fazerem compreender e procuram calcular o sentido do texto
de seus interlocutores, partindo das pistas contidas no texto e ativando seus
conhecimentos de mundo, da situação, etc. Assim, mesmo que um texto
pareça incoerente e não tenha explícitos os elementos de coesão, o receptor
vai tentar estabelecer sua coerência dando-lhe a interpretação que lhe pareça
cabível.
De acordo com Fávero (1985), a informatividade designa em que
medida os materiais linguísticos apresentados no texto são esperados,
conhecidos/desconhecidos por parte dos receptores. Para a autora, a
informatividade determina a seleção e o arranjo das alternativas no texto.
A focalização tem ligação direta com a questão do conhecimento de
mundo e do conhecimento compartilhado, pois o ouvinte/leitor depende de
41
crenças compartilhadas sobre o que está sendo focalizado para fazer a
interpretação adequada. Ela tem a ver com a concentração dos usuários em
apenas uma parte do seu conhecimento, bem como com a perspectiva pela
qual são vistos os componentes do mundo textual. Diferenças de focalização
podem causar problemas sérios de compreensão, impedindo o
estabelecimento da coerência. Um mesmo texto, dependendo da focalização,
pode ter várias leituras. Apreende-se em Koch (2008) que há um
relacionamento entre a língua e a focalização, ou seja, o que é dito influencia a
focalização e vice-versa.
A intertextualidade é definida por Guimarães (2009) como sendo
um processo de incorporação de um texto em outro, reproduzindo-o ou
transformando-o. Koch & Elias (2006) dizem que a intertextualidade ocorre
quando, em um texto, está inserido outro texto produzido anteriormente, que
faz parte da memória social de uma coletividade. A identificação da presença
de outros textos por parte do leitor, porém, em muito, dependerá de
conhecimento prévio.
Em acordo com as ideias de Giora (1985), Koch & Travaglia (2009)
adotam a relevância discursiva como outra condição indispensável para o
estabelecimento da coerência. Para Giora, um texto é coerente quando o
conjunto de enunciados que o compõe pode ser interpretado como tratando de
um mesmo tópico discursivo. O requisito de relevância exige que o conjunto de
enunciados que compõem o texto seja relevante para um mesmo tópico
discursivo subjacente.
Em resumo, a coerência está ligada à possibilidade de se encontrar
um sentido global para o texto, sendo seu estudo um fator complexo que só se
estabelece na relação do leitor com o texto. Para haver coerência, é preciso
que haja, de alguma forma, relação entre os elementos constituintes do texto. A
relação estabelecida pode não ser só semântica, mas também pragmática,
entre os atos de fala, ou seja, entre as ações que realizamos ao falar.
A intertextualidade é fator de coerência importante no processo de
produção de sentido de um texto e, portanto, de sua compreensão. Por isso,
além do exposto anteriormente, o assunto merecerá um tópico à parte em
nosso trabalho.
42
2.2 Intertextualidade e interdiscursividade
O conceito de intertextualidade surge, inicialmente, como um foco de
estudo no campo da literatura, como a inclusão de um texto em outro por
intermédio das citações textuais para efeitos de reprodução ou de
transformação. A ocorrência intertextual dá-se por meio de três processos: o da
citação, o da alusão e o da estilização.
A citação firma-se por mostrar a relação discursiva explicitamente,
podendo confirmar ou transformar o sentido do texto citado. Ao confirmar, o
discurso citado reforça o argumento do produtor do texto, mostrando ao leitor
que existe uma comunidade que compartilha da mesma ideia.
A alusão reproduz a ideia central de algo já discursado, aludindo a
um discurso já conhecido do público em geral, exigindo, do leitor/ouvinte, certa
cultura para sua compreensão.
A estilização é uma forma de reproduzir os elementos de um
discurso já existente, como uma reprodução estilística do conteúdo formal ou
textual, com o intuito de reestilizá-lo.
De acordo com Fiorin (2006), o termo intertextualidade é introduzido
como pertencente ao universo bakhtiniano por Júlia Kristeva, em sua
apresentação de Bakhtin, na França, publicada em 1967, na revista Critique.
Isso se justifica porque aquilo que Bakhtin denomina de enunciado, Kristeva
denomina texto. A difusão do termo, no entanto, é feita por Roland Barthes; a
partir de então, as relações dialógicas passam a ser denominadas de
intertextualidade. Segundo Bakhtin (1988), o enunciado é da ordem do sentido;
o texto, do domínio da manifestação desse sentido.
Para Fiorin (2006), se há uma distinção entre enunciado e texto, há
relações dialógicas entre enunciados e textos, passando a existir
interdiscursividade e intertextualidade. Dessa forma, a intertextualidade passa
a ser a relação dialógica materializada em textos. Segundo o autor, toda a
intertextualidade implica a existência de uma interdiscursividade, mas nem toda
interdiscursividade implica uma intertextualidade a exemplo de que, quando o
discurso não mostra, no seu fio, o discurso do outro, não ocorre
intertextualidade, mas, sim interdiscursividade.
43
Koch (2006) aponta para a existência de dois tipos de
intertextualidade: a intertextualidade explícita e a intertextualidade
implícita. O primeiro caso ocorre, segundo a autora, quando no próprio texto é
feita menção à fonte do intertexto, como acontece nas citações, nas
referências, nas menções, nos resumos, nas resenhas, nas traduções e no
discurso de autoridade, como também em situações de interação face a face,
no caso de retomada do texto do parceiro para encadear sobre ele ou para
contraditá-lo.
Temos um exemplo de intertextualidade explícita, com citação direta
do texto primitivo, na forma de paródia, na figura abaixo.
(BERGOCCE, 2008, p. 46)
O segundo caso apresenta-se quando se introduz, no texto,
intertexto alheio, sem qualquer menção da fonte, com o propósito de seguir-lhe
a orientação argumentativa ou para colocá-la em questão para argumentar em
sentido contrário. Nesse caso, espera-se que o leitor/ouvinte seja capaz de
reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto fonte, em sua
memória discursiva. Sem esse reconhecimento, a construção pretendida do
sentido não tem efeito.
O cartum seguinte serve como demonstração de intertextualidade
implícita:
44
(Superadas 1, p. 146)
A depreensão do sentido desse texto está relacionada à
competência leitora que capacita aquele que lê a ativar o enunciado primitivo
“um zero à esquerda”, convencionalmente utilizado para expressar que alguém
não tem valor. A substituição de zero por seio implica o reconhecimento de
que, naquele momento, ela, a mãe, só tem importância na hora da
amamentação do recém-nascido, centro das bajulações.
Além de trocadilhos como o apresentado acima, a intertextualidade
implícita pode ser ilustrada, dentre outras possibilidades, pela prática do
détournement, como mostrado no capítulo 3 deste trabalho.
Como vimos, um discurso nunca é totalmente autônomo. Fiorin
(2006) reserva o termo intertextualidade para os casos em que a relação
discursiva é materializada em textos; a interdiscursividade, por sua vez, se
constitui nas relações dialógicas. A questão do interdiscurso, segundo o autor,
aparece sob o nome de dialogismo, quando tratado por Bakhtin.
2.3 Dialogismo e polifonia
Para Bakhtin (1988), a orientação dialógica é naturalmente um
fenômeno próprio de todo discurso. Conforme suas palavras:
45
Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar. (BAKHTIN, 1988, p. 88).
Para o autor, todo discurso é orientado para uma resposta, pois ao
se constituir na atmosfera do “já dito”, acaba por regular o discurso do locutor;
em outras palavras, o enunciador, para constituir seu discurso, leva em
consideração o discurso do outro.
Fiorin (2006) apresenta três conceitos de dialogismo: o primeiro é o
dialogismo constitutivo, que não se mostra no fio do discurso, pois há sempre
outro que o mostra. Assim, quando se afirma que homens e mulheres têm a
mesma capacidade, comparecem dois discursos: o que preconiza a igualdade
entre os dois e o que reafirma a superioridade do homem.
O segundo trata da incorporação, pelo enunciador, da voz ou das
vozes de outros no enunciado. Muitas vezes isso ocorre de forma mais
explícita e clara na inserção do discurso do outro no enunciado pelos
procedimentos do discurso. Pode, ainda, ser apresentada de forma
internamente dialogizada pela paródia, pela estilização, pelo discurso indireto
livre e pela polêmica.
O terceiro refere-se à historicidade dos enunciados pois, como
afirma o autor, sendo constitutivamente dialógicos, os enunciados são sempre
históricos. Nessa concepção, a história não é exterior ao sentido, já que é ele,
o sentido, que é histórico, por constituir-se fundamentalmente no confronto, na
contradição, na oposição das vozes que se entrechocam na arena da
realidade. Dessa maneira, é na captação das relações do texto com a história
que se pode apreender o movimento dialético de constituição do sentido.
Salientamos que os termos “dialogismo” e “polifonia” são utilizados
muitas vezes sem distinção. Para Barros (2003), os textos são dialógicos
porque resultam do embate de muitas vozes sociais, vozes que, quando se
deixam escutar, podem produzir efeitos de polifonia ou de monofonia quando o
diálogo é mascarado e uma só voz se faz ouvir.
46
Ducrot (1980, apud Brandão, 2009) adota o conceito de polifonia de
Bakhtin, operando-o numa área especificamente linguística para contrapor-se à
ideia de unicidade do sujeito falante. Segundo essa tese, o autor especifica três
propriedades do sujeito: a) ser ele o agente de toda atividade psicofisiológica
necessária à produção do enunciado; b) ser ele o agente dos atos ilocutórios
executados na produção do enunciado (atos de asserção, ordem, pergunta
entre outros; c) ser designado no enunciado pelas marcas da primeira pessoa
“eu”, “meu”, “aqui”.
Em sua tese, o autor distingue locutor de enunciador e afirma que a
polifonia pode ocorrer tanto no nível do locutor quanto do enunciado. Dessa
forma, o locutor constitui-se para o autor como o responsável pelo enunciado; o
enunciador, como o ser que se exprime na enunciação, sem que, no entanto,
lhe seja atribuída a responsabilidade pela fala.
Assim, para Ducrot, em Paulo me disse: eu preciso estudar, temos
duas figuras de locutor: um responsável pela totalidade do enunciado e outro
responsável por parte da enunciação eu preciso estudar. Desse modo, as
formas expressas pelos pronomes me e eu referem-se a locutores diferentes,
cujas vozes mostram-se linguisticamente demarcadas. No caso de Paulo disse
que, infelizmente, precisa estudar, o modalizador infelizmente refere-se à
perspectiva de Paulo e não à do locutor responsável por todo o enunciado.
Tomando por base a formulação de Ducrot (1980), Koch (2006)
relaciona a polifonia com a noção de intertextualidade. Para a autora, o
conceito de polifonia é mais amplo que o de intertextualidade, pois, enquanto
nesta faz-se necessária a presença de um intertexto cuja fonte é explicitamente
demonstrada ou não; naquela exige-se que se represente, em determinado
texto, perspectivas ou pontos de vista de enunciadores diferentes.
2.4 Contexto
As concepções de contexto variam não só no tempo, como também
de autor para autor. Não encontramos, assim, definições únicas e precisas
sobre o que é contexto, pois o termo significa coisas diferentes em modelos
diferentes de pesquisa.
47
Para Hanks (2008), a forma como esse conceito é tratado depende
de como são construídos outros elementos como a concepção que se tem de
linguagem, de discurso etc. Para esse autor, o contexto é um conceito teórico,
estritamente baseado em relações, não havendo, portanto, contexto que não
seja “contexto de”, ou “contexto para”.
Na pesquisa sobre textos, em sua fase inicial, o contexto era visto
como o entorno verbal, o co-texto. Segundo Koch (2003), com o advento da
Teoria dos Atos de Fala e da Teoria da Atividade Verbal, a Pragmática
incorpora a presença dos interlocutores na compreensão do contexto,
voltando-se para o estudo e a descrição de suas ações em situação de
interlocução. Para van Dijk (2004), antes que os usuários da língua sejam
capazes de relacionar as informações recebidas com o conhecimento
linguístico mais geral e outros conhecimentos arquivados na memória, eles
devem analisar o contexto em relação ao qual um determinado ato de fala é
realizado.
Na Teoria dos atos de fala, Austin (1990) distingue três tipos de ação
linguística: os atos locucionários, os ilocucionários e os perlocucionários. O ato
locucionário é a simples enunciação de uma sentença; o ato ilocucionário está
relacionado à força ilocucionária (de pergunta, de asserção, de ordem,
promessa) sobre um conteúdo proposicional. O ato perlocucinário, por sua vez,
destina-se a exercer certos efeitos sobre o interlocutor (persuadi-lo, agradá-lo).
A Teoria da Enunciação formulada por Bakhtin explica os
significados dos enunciados produzidos pelas falas dos indivíduos de uma
determinada língua, levando em consideração não só o sentido desses
enunciados, como também suas condições de produção, ancoradas pelo
espaço de enunciação. O enunciado amanhã estarei livre, em diversas
situações de enunciação, pode ter sentidos diversos, já que pode tratar apenas
de uma simples constatação, se consideramos que o dia seguinte refere-se a
um sábado e que o falante não trabalha nos finais de semana; pode tratar
também de um convite para um passeio, pode ainda referir-se à finalização de
um processo de divórcio ou de qualquer outro impedimento que faça com que o
falante tenha a sensação de estar aprisionado.
48
A incorporação dos interlocutores na compreensão do contexto, no
entanto, mostra-se insuficiente se não considerarmos que eles se movimentam
em um tabuleiro social. Assim, aos poucos, outro tipo de contexto passou a ser
levado em consideração: o contexto sociocognitivo. Van Dijk (2004) coloca
como problema o seguinte: “Como o ouvinte sabe que o falante, ao produzir
uma sentença, está fazendo uma promessa ou uma ameaça? Que informações
devem ser passadas para o ouvinte a fim de que ele seja capaz de atribuir à
sentença uma determinada força ilocucionária?” As respostas às questões do
autor podem vir, segundo ele próprio, de vários pontos e por diversos canais:
a) da propriedade das estruturas dos enunciados (determinadas por
regras gramaticais);
b) das propriedades paralinguísticas (velocidade, ênfase,
entonação);
c) da observação/percepção real do contexto comunicativo
(presença e propriedade dos objetos, pessoas etc.);
d) dos conhecimentos/crenças já armazenadas na memória a
respeito do falante, de suas idiossincrasias, ou sobre outras características da
situação social;
e) dos conhecimentos e das crenças relativas aos tipos de interação
e de estruturas dos contextos precedentes à interação;
f) dos conhecimentos e crenças derivados de atos de fala, i.e, partes
precedentes do discurso nos níveis micro (local) e macro (global);
g) da semântica geral, em particular a convencional, conhecimentos
sobre a inter(ação), regras etc.;
h) de outros tipos de conhecimento de mundo (frames).
Para que duas pessoas possam compreender-se mutuamente é
necessário que, pelo menos em parte, seus contextos sociocognitivos sejam
semelhantes, ou seja, que tenham conhecimentos compartilhados (Cf. KOCH,
2003). A autora postula que o contexto cognitivo engloba todos os demais tipos
de contexto. O contexto, da forma como é entendido hoje na Linguística
Textual, abrange não só o co-texto, como também a situação de interação
imediata, a situação mediata, (entorno sociopolítico-cultural) e também o
contexto sociocognitivo dos interlocutores. A mobilização dos diversos
49
conhecimentos, por ocasião do processamento textual, realiza-se por meio de
estratégias de ordem:
Cognitiva: as inferências, as focalizações, a busca da relevância;
Sociointeracionais: preservação das faces, polidez, atenuação etc.;
Textuais: conjunto de decisões concernentes à textualização,
tomadas pelo produtor do texto, tendo em vista seu projeto de dizer (pistas,
marcas, sinalizações).
Gumperz (1998) designa como pistas de contextualização os sinais
verbais e não verbais utilizados pelos usuários da língua na interação face a
face. Como exemplo dessas pistas, o autor cita a prosódia (entonação, acento
de intensidade, mudanças de clave); os sinais paralinguísticos, como pausas,
hesitações, sobreposições de turnos, tom e volume de voz; a escolha do
código ou do registro; as formas de seleção lexical, as expressões fisionômicas
ou qualquer movimento do corpo que sugira apoio, discordância, oposição,
ironia, ênfase etc.
Na escrita, Dascal e Weizman (apud KOCH, 2003), ao analisarem textos
jornalísticos, mencionam as aspas, a seleção lexical, certas questões retóricas,
o uso de algumas formas de tratamento, e assim por diante, como pistas
importantes para a captação do sentido esperado pelo produtor, assim como a
diagramação, a localização do texto na página ou no veículo – no caso de
jornais de revistas –, o tipo de letra, os travessões, os parênteses e os
destaques (itálico, negrito), entre outros.
2.5 A questão dos implícitos
Sobre os implícitos, Ducrot (1987) ensina que o primeiro traço
observável no subentendido consiste no fato de que existe sempre, para um
enunciado com subentendidos, um “sentido literal” do qual eles estão
excluídos. O autor salienta que o subentendido reivindica a possibilidade de
estar ausente do próprio enunciado e de somente aparecer quando um ouvinte,
num momento posterior, refletir sobre o referido enunciado. A detecção do
subentendido ocorre por meio de um uma espécie de raciocínio; porém, como
esse raciocínio consiste em retirar do enunciado as conclusões nele
50
implicadas, é difícil de compreender como o locutor poderia rejeitar a
responsabilidade do subentendido e proteger-se por de trás do sentido literal
de suas palavras, deixando, ao seu interlocutor, a responsabilidade pela
interpretação.
Os pressupostos de um enunciado continuam a ser afirmados pela
negação desse enunciado ou por sua transformação em pergunta, informa
Ducrot (1987) o qual acrescenta que o pressuposto não pertence ao enunciado
da mesma forma que o posto. Para descrever esse estatuto particular do
pressuposto, seria possível dizer que ele é apresentado como um quadro
incontestável no interior do qual a conversação deve necessariamente
inscrever-se, ou seja, como um elemento do universo do discurso.
A respeito da identificação dos pressupostos e dos
subentendidos, Maingueneau (1996) postula que qualquer falante de português
pode, em princípio, identificar os pressupostos, enquanto a decifração dos
subentendidos é mais aleatória. Acrescenta que o subentendido, tirado do
enunciado, é inferido de um contexto singular e sua existência é sempre
incerta; já o pressuposto, tirado da enunciação, é estável.
Procuramos, neste capítulo, apresentar conceitos que intervêm na
produção do sentido do texto e que, por isso, servirão de guia à análise de
nosso corpus. No próximo capítulo, trataremos do humor e de aspectos
linguísticos e discursivos que o envolvem.
51
3 O HUMOR EM DIFERENTES PERSPECTIVAS
Aquele que se propõe a estudar o humor atualmente, mesmo que
sob pontos de vista diversos aos estudados, não poderá deixar de ver as
contribuições de Bergson, de Freud e de Raskin, já consagrados pela literatura
do humor, mesmo visando a objetivos variados, como no caso de Freud, cuja
obra presta-se a fins psicanalíticos. No Brasil, Possenti (2008) e Rosas (2002)
valem-se dos estudos desses autores para a fundamentação de seus
trabalhos, os quais visam a explicar não o porquê, mas como estes textos
funcionam de forma linguística.
3.1 Contribuições linguísticas
Em suas pesquisas sobre piadas, Possenti (2008) defende a ideia
de que os estudos sobre textos humorísticos são fontes expressivas para os
estudos linguísticos por pelo menos três razões: A primeira, pelo fato de as
piadas versarem sobre temas socialmente controversos e, por isso, relativos a
domínios discursivos “quentes”, como racismo, política e instituições em geral,
defeitos físicos (considerados, também como defeitos, a velhice, a calvície, a
obesidade), entre outros. A segunda razão é que as piadas operam,
sobretudo, com estereótipos, fornecendo, assim um material valoroso para
pesquisas sobre representações; a terceira, porque elas quase sempre são
veículos de um discurso subterrâneo, não oficial ou pouco oficial. O argumento
mais forte, no entanto, é o fato de as piadas serem peças textuais que exibem
um domínio da língua, de certa forma complexo, já que qualquer domínio que
uma teoria linguística tematize pode ser exemplificado por uma piada.
A figura a seguir, extraída de BERGOCCE (2008), confirma a
posição de Possenti sobre o fato de os textos humorísticos serem objetos
profícuos para estudos linguísticos.
52
(BERGOCCE, 2008, p. 46)
A utilização do termo “privado” como adjetivo, no primeiro quadrinho,
e como verbo, no segundo, codifica a diferença entre os dois meninos no
tocante ao acesso à educação. Sendo essa uma questão social grave em
nosso país, a tirinha poderia não ser bom exemplo de texto humorístico, no
entanto, ela o é. O efeito cômico é provocado pela quebra de expectativa na
resposta do segundo garoto, a quem o ensino é negado. Se entendermos que
não fazer parte do ensino privado representa estar privado do ensino,
entenderemos também o que se diz do descaso do Estado em relação ao
ensino. O fato de os protagonistas da conversa serem duas crianças acentua a
problemática social, pois coloca, no centro da cena, as vítimas do sistema
educacional público.
De acordo com Possenti (2008), a diferença entre estudos sobre
piadas realizados por linguistas e os empreendidos por pesquisadores de
outras áreas do conhecimento reside na pergunta a que se busca responder.
Assim, para o autor, a preocupação linguística deve ter como pergunta o como;
caso a preocupação seja, no entanto, sociológica, psicológica ou antropológica,
é o porquê que deve nortear o questionamento. O autor cita Raskin (1987), o
qual lamenta que os estudiosos do humor tenham se fixado no uso da palavra,
sublinhando, principalmente, questões ambíguas no momento em que já se
tem uma linguística do discurso apta a explicar melhor os chistes, que se
sustentam em pressuposições, inferências, implicaturas, estratégias
conversacionais, entre outras. Para Possenti, no entanto, o humor da palavra
apresenta grande sofisticação e pode oferecer aos linguistas outros atrativos
além da polissemia, como no exemplo:
53
(Conversa de meninos de três anos) – Ontem eu vi uma camisinha no pátio! – O que é pátio? (POSSENTI, 2008, p. 82)
Segundo comentários do autor, observamos que o que faz desse
texto um texto humorístico é a subversão dos valores, ou seja, um menino de
três anos conhecer uma palavra que se supõe não ser de seu domínio, devido
a sua pouca idade, mas desconhecer outra que lhe poderia ser familiar.
Em suma, no entender desse autor, para que a linguística possa dar
sua contribuição ao campo do humor, deve ser feito o questionamento sobre a
característica textual verbal da piada. Rosas (2002), que tem seus estudos
voltados à tradução do humor, questiona a visão mecanicista que reduz o ato
tradutório ao transporte de significados equivalentes de uma língua para outra,
equivalendo a dizer, em suas palavras:
Tendo sido predeterminado pelo autor, o significado “adere” ao texto, cabendo ao tradutor apenas identificá-lo e repassá-lo ao leitor. Diante dessa apologia do significado “predestinado” torna-se fácil entender a razão das máximas depreciativas em torno da tradução – como traduttore traditore – ou de expressões como “complexo de Judas”, que José Paulo Paes cunhou para referência àquilo que denominou de “enfermidade profissional”. (ROSAS, 2002, p.18)
Para a autora, os estudos que unem tradução e humor encontraram
e ainda encontram resistência para definirem-se como objetos dignos de
pesquisa acadêmica por conta da influência do gerativismo – linha
predominante na linguística teórica por quase quarenta anos – para o qual não
interessavam conceitos como contexto e interpretação.
Para Travaglia (1990), o humor é uma atividade ou faculdade
humana cuja importância se deduz de sua enorme presença e disseminação
em todas as áreas da vida humana. Ele aparece como uma forma de revelar e
de flagrar outras possibilidades de visão de mundo gerando, quando em busca
de uma verdade, conflito e desequilíbrio ao desorganizar padrões
convencionados.
O autor acredita que não só a Linguística Textual, como também a
Análise do Discurso podem dar excelentes contribuições à pesquisa sobre o
humor. Assim, as formações discursivas da Análise do Discurso podem ajudar
54
a explicar, por meio do plano histórico-social, certos fatos de humor étnico, tais
como o estabelecimento cômico de alguns pré-juízos ou preconceitos, como
aqueles circulantes no Brasil sobre algumas etnias, a exemplo do próprio
brasileiro, tido como esperto e sagaz.
Lauriti (1990) considera que a condição necessária para que um tipo
de discurso possa apresentar o título de humorístico é o fato de engendrar um
efeito de sentido “não sério”, por intermédio de um modo de interlocução que
se aponta como jogo, como brincadeira, metacomunicativamente, como um
“modus ridens”.
De forma abrangente, podemos dizer que as teorias sobre o humor
podem ser classificadas em três grandes campos: campo social, campo
psicanalítico e campo cognitivo (Cf. ATTARDO, 1994). No campo social,
deparamo-nos com Bergson (1983) [1940]; no campo psicanalítico, com Freud
(1977) [1905]; no campo cognitivo, com Raskin (1987) [1944].
3.1.1 O homem é um animal que ri e faz rir
Bergson (1983) [1940], em O Riso – ensaio sobre a significação do
cômico, chama a atenção para três aspectos acerca do riso: a) não há
comicidade fora do que é humano; b) existe certa insensibilidade que
acompanha o riso; c) o riso sempre irá exigir uma terceira pessoa que dele
compartilhe, atentando-se para o fato de que todo riso é sempre o riso de um
grupo, já que seu meio é a sociedade.
No primeiro aspecto, o autor observa que uma paisagem poderá ter
vários qualificadores, como bela, insignificante, feia, entre outros, mas jamais
será risível, pois a comicidade é própria do que é humano. Poderemos até rir
de um animal, mas isso só ocorrerá porque teremos surpreendido nele uma
atitude de homem ou certa expressão humana.
No segundo aspecto, de que é preciso estar insensível para
estarmos abertos ao riso, Bergson associa o riso ao envolvimento que temos
em relação à situação provocadora do riso ou quando esquecemos a afeição
que sentimos por uma pessoa quando rimos dela.
55
No terceiro aspecto, podemos afirmar que, para Bergson, o riso,
por ser social, tem um caráter dialógico, pois não se deixa acontecer sozinho,
mas em uma interação viva com o discurso do outro. Para esse autor, as
pessoas riem como forma de castigo à rigidez do hábito, isto é, pelo desvio de
um comportamento automatizado; assim, uma mudança brusca de atitude
causará riso, pois se a mudança ocorre involuntariamente, é porque reflete um
ato desajeitado do indivíduo. Dessa forma, um tombo provoca o riso porque a
queda representa uma ruptura no conjunto dos gestos sociais e, por isso,
acaba por ser corrigida pelo riso.
Com a propalada virtude curativa do riso, de Hipócrates, somada à
máxima aristotélica de que o homem é o único ser vivente que ri, o
Renascimento descobre os filósofos do riso. Assim, o riso passa a ser visto
como uma força criadora, positiva regeneradora. Conforme Bernardi (2009):
Para os humanistas, o riso e o sério formavam as duas maneiras opostas e possíveis de ver o mundo e tudo o que é essencialmente humano. No entanto, a opção por um ou por outro desses paradigmas tem implicações sobre a história e sobre a produção sociocultural humana. Movido por circunstâncias especiais (as fronteiras históricas de que fala Bakhtin) e por entender a importância de ver o mundo na sua totalidade, o Renascimento incorporou, entre seus valores, os meios de avaliar e representar a realidade a partir dessas duas óticas. Assim, a grande literatura da época vai aceitar, sem traumas, as duas visões de mundo, convicta de que a realidade é feita de opostos. (BERNARDI, 2009, p. 81)
Submetidos à ordem rígida no século XVII, o riso e o cômico são
colocados num plano secundário, como pertencentes à literatura popular e de
menor expressão.
3.1.2 Pelos chistes, Freud explica
Para Freud (1977) [1905], é possível chegar ao inconsciente por
meio da análise dos mecanismos expressivos da linguagem dos sonhos e dos
chistes. Em suas palavras:
O trabalho de condensação nos sonhos produz, não estruturas compostas, mas quadros que nos recordam com exatidão uma coisa ou uma pessoa, exceto por um acréscimo ou por uma alteração
56
derivada de alguma fonte: modificação precisamente do mesmo tipo encontrado nos chistes. [...] Não podemos pôr em dúvida que em ambos os casos somos confrontados com o mesmo processo psíquico, ao qual podemos reconhecer devido a seus resultados idênticos. Uma analogia tão abrangente entre a técnica do chiste e a elaboração onírica sem dúvida aumentará nosso interesse na primeira e suscitará em nós uma expectativa de que uma comparação dos chistes com os sonhos ajudará a lançar luz sobre os chistes. (FREUD, 1977, p. 43)
A piada, a anedota e o gracejo são definidos por Freud como
chistes, entendendo-se o chiste como o cômico que se utiliza da palavra e do
dizer. Para o autor, a realização do chiste ocorre a partir de situações que
envolvem desejos reprimidos, sendo o riso um escape para a energia psíquica.
Ao discutir as técnicas de elaboração dos chistes, Freud dá relevância ao
prazer que essa elaboração causa e o quanto isso se relaciona com o
inconsciente. O autor afirma que quem ouve um chiste e compreende seu
significado, ri, libera a energia recalcada de um conteúdo inconsciente. Não só
o ouvinte/leitor da piada, como também seu produtor/emissor beneficia-se
psicologicamente da piada que lhe serve como uma válvula de escape.
Para Freud, portanto, a comicidade é uma descoberta que causa
prazer. O cômico faz referência a eventos ou objetos lúdicos, estando o humor,
por sua vez, ligado ao comportamento individual, à medida que o indivíduo
encobre seus próprios infortúnios e vê neles o aspecto engraçado.
Para esse psicanalista, o humor é uma questão de “economia de
gasto psíquico.”. Ao classificar os chistes em maliciosos e inocentes, Freud
considera que os primeiros conduzem ao prazer por abrandarem os controles
morais. Assim, as piadas que tematizam o sexo permitiriam ao indivíduo a
liberação das ansiedades reprimidas sobre esse tema. Os chistes inocentes,
por seu turno, dizem respeito ao afrouxamento dos nossos controles e estão
relacionados à fase inicial de aquisição da linguagem, quando a criança produz
a troca de sons e se confunde na aquisição de sentidos, fazendo com que o
adulto ache graça.
No dizer de Rosas:
No chiste tendencioso sempre está em vigor uma finalidade substitutiva da ação – a realização de um desejo recalcado, seja agressivo, seja sexual – que opera no sentido de acrescentar ao prazer da técnica do chiste, o prazer de fugir a um recalque. Porém,
57
ao lado do chiste tendencioso (ou “carregado”, por assim dizer), Freud reconhece a existência do que denominou “chiste inocente”: aquele que não visando substituir a ação, contém em si mesmo seu fim, ou seja, não tem que ocultar um conteúdo recalcado, um tabu ou interdito. (ROSAS, 2002, p. 28)
Quanto à forma dos chistes, Freud propõe uma tipologia que
contempla três grupos: condensação, múltiplo uso do mesmo material
linguístico e duplo sentido. Nesses três grupos, Freud reforça sua teoria da
obtenção do prazer por meio da economia psíquica.
O primeiro grupo, o da condensação, tem como base a integração
de duas palavras na construção de novo termo, com significação própria, como
no clássico exemplo do autor, em que se associam as expressões “familiar” e
“milionário”, na expressão “familionarmente”, num chiste em que um pobre
agente da loteria ao gabar-se por ter tido um contato breve com o rico Barão
Rothschild diz: [...] Doutor, sentei-me ao lado de Salomon Rothschild e ele me
tratou como um seu igual – bastante familionariamente. (FREUD, 1977, p. 29).
No segundo grupo, do múltiplo uso do mesmo material
linguístico, não há fusão de palavras para a construção do elemento novo,
mas há o aproveitamento do mesmo material linguístico com valor semântico
diferente. O aproveitamento pode ser observado quanto à alteração da forma e
quanto à alteração do conteúdo. Para Freud, quanto mais sutil essa alteração,
melhor é o chiste, pois maior é a impressão de que algo está sendo dito de
modo diferente pelas mesmas palavras.
Por fim, o grupo do duplo sentido é apontado por Freud como o
mais produtivo e ocorre quando as mesmas palavras prestam-se a múltiplos
usos, sendo as anedotas eróticas exemplos abundantes dessa modalidade.
Possenti (2008) observa que Freud fez, mesmo que intuitivamente,
análises dos chistes que podem ser vistas como discursivas. Entre diversos
exemplos de chistes a que Freud aduz em sua análise, citaremos um, a título
de justificarmos a observação de Possenti:
O médico a cujos cuidados se confiou a Baronesa em sua gravidez, anunciou que ainda não chegara o momento de dar à luz e sugeriu ao barão que enquanto esperavam jogassem cartas no cômodo vizinho. Após um momento um grito de dor da Baronesa feriu os ouvidos dos dois homens: “Ah, mon Dieu, que je souffre!”. Seu marido levantou-se de um salto mas o médico fez lhe sinal que se assentasse: “Não é
58
nada. Vamos continuar com o jogo!” Pouco depois, novos brados da mulher grávida: “Mein Gott, was für Schmerzen!”. “Não vai entrar professor?”, perguntou o Barão. “Não, não, não. Ainda não é a hora” Finalmente chegou da porta próxima um inconfundível grito de “Ai, ai, ai”. O doutor largou as cartas e exclamou: “Agora é a hora”. (FREUD, 1977).
Nessa exemplificação, Freud mostra a consciência que o falante tem
na utilização da língua. A baronesa sabe que seu comportamento “diz” coisas
sobre ela, portanto, ao interpretar a dor que ainda, de fato, não sentia,
utilizou-se dos gritos à maneira de sua posição social. Sua encenação, no
entanto, não perdura, visto que o sentimento real de dor foi capaz de
desnudar-lhe o comportamento. A reação do médico mostra que ele foi capaz
de inferir, por seu conhecimento de mundo, o momento propício à intervenção,
compreendendo que o sentido do primeiro e do segundo apelos da baronesa
eram diferentes do segundo. Freud, ao fazer a análise do chiste, faz a seguinte
observação:
Este bem sucedido chiste demonstra duas coisas pela modificação gradual do caráter dos gritos de dor emitidos por uma aristocrática dama na hora do parto. Mostra também como a dor faz com que a natureza primitiva irrompa entre as diversas camadas de verniz de educação e como uma decisão importante pode ser adequadamente tomada na dependência de um fenômeno aparentemente trivial. (FREUD, 1977).
Observamos, pelo comentário de Freud, que o autor considera
apenas como relevante o fato de que a dor faz com que a natureza irrompa
entre as diversas camadas de verniz de educação. Comentário coerente, haja
vista seus objetivos de estudo, voltados à área da psicanálise.
3.1.3 Os scripts no humor
Em nossos estudos, encontramos a proposta de Raskin (1987)
[1944] para uma teoria semântica do humor, baseada em frames e scripts.
Para o autor algumas condições são necessárias para a caracterização do
chiste: a) uma mudança do modo de comunicação bona-fide (de boa fé,
confiável) para o modo non bona–fide de contar piadas; b) o texto a ser
considerado chistoso; c) o texto ser compatível em parte, ou totalmente, com
59
dois scripts diferentes; d) uma relação de oposição entre os dois scripts; e) um
gatilho óbvio ou implícito, que permite passar de um script para outro. A piada
seguinte é apresentada por Raskin como um exemplo de sua tese:
– O doutor está em casa? (pergunta o paciente com voz rouca)
– Não – sussurra em resposta a jovem e bela esposa do médico.
– Pode entrar.
Nesse exemplo, se o leitor/ouvinte não considerar o modo non
bona-fide de contar piadas, o texto parecerá incoerente, pois, para ser coerente
dentro de um modo bona-fide, a resposta da esposa deveria ser a de que ele
voltasse mais tarde ou a sugestão, dada a ausência do marido, de que ele
procurasse um outro médico. Como tal resposta não ocorre, o leitor/ouvinte
logo trata de perceber o “caso” como um caso de adultério, numa situação
plausível, mas, nesse caso, irreal.
O cartum a seguir ilustra a teoria de Raskin no que diz respeito à
mudança de um script a outro, levando-se em conta a compatibilidade entre os
dois:
(Superadas 2, p. 81)
A fala da primeira personagem sugestiona a ativação do script de
relacionamento íntimo. O uso de reticências reforça tal ideia, permitindo que se
complete o enunciado com o script ativado. A resposta da primeira
60
interlocutora, de que suas concessões aos desejos do namorado são as de
assistir a jogos de futebol, leva o leitor a observar a compatibilidade entre os
scripts, já que o pedido indireto do namorado para que a namorada faça o que
ele gosta, não só dá margem ao primeiro entendimento, como permite o
redirecionamento para a construção da piada.
França (2006) aponta para o fato de que a alteração do modo
bona-fide para o modo non bona-fide de contar piadas, da teoria de Raskin,
desafia os Princípios Conversacionais de Grice, no tocante às Máximas da
Qualidade e da Relevância, cujas regras preveem que se diga apenas o que se
julga confiável e relevante, ou seja, o leitor/ouvinte da piada, devido a sua
competência humorística, não espera que o que se conte em uma anedota seja
verdadeiro, tampouco relevante. De acordo com a autora, ao associar a teoria
semântica do humor ao modo de comunicação non bona-fide, Raskin
pretendeu estabelecer a forma como o leitor/ouvinte percebe se aquilo que está
lendo/ouvindo é uma piada – e que, por isso, deve ser lida/ouvida como uma
brincadeira ou um enunciado sério, confiável, relevante.
Inferimos, pelos apontamentos de França (2006), que há uma lógica
própria para a conversação nos textos humorísticos que não pode ser
submetida às mesmas regras postuladas por Grice para a comunicação séria
do cotidiano. A violação às Máximas da Relevância e da Qualidade passa,
portanto, a ser a regra da piada. Nesse ponto, Attardo (1994) destaca que o
fato de se perceber que o falante violará o princípio de cooperação não altera a
condição da violação, apenas a torna óbvia. Para Grice (1982), os diálogos são
esforços cooperativos reconhecidos, já que cada participante reconhece neles
um propósito comum ou um conjunto de propósitos que orienta a conversa.
Nesse sentido, observa-se que uma das estratégias utilizadas por aqueles que
produzem humor é fingir que tal reconhecimento não ocorre, como no exemplo
abaixo, que tomamos emprestado de Travaglia.
Médico: Dói? Paciente: Não, eu só estou gritando para assustar a enfermeira. (TRAVAGLIA, 2003, p. 88)
A noção de script, muitas vezes tomada pela mesma noção de
frame, é fundamental para o entendimento da teoria de Raskin, merecendo, por
61
isso, um parêntese. Segundo Attardo (id.) um script é uma porção organizada
de informação a respeito de alguma coisa, em sentido amplo. É uma estrutura
cognitiva internalizada pelo falante, que lhe proporciona informação sobre
como as coisas são feitas e organizadas. Para Fávero (2003), os
conhecimentos são conceitos que representam sequências de acontecimentos
ou eventos sem estarem diretamente ligados a campos lexicais e sim a campos
conceituais, como no exemplo: “Luzia queria aprender um novo idioma, então
sua mãe a matriculou em X”. Nessa situação não é difícil perceber que X pode
ser facilmente substituído por escola de línguas ou em qualquer outro lugar em
que se possa aprender o novo idioma. O conceito utilizado por Raskin em sua
teoria, no entanto, é um conceito de script a partir de itens lexicais. Assim, o
modelo clássico de restaurante, com mesas, cadeiras, cardápio, prato, pedido,
é exemplo do que ele entende como script.
Silveira e Nélo (2009) também estudaram o texto narrativo de humor
a partir das noções de frame e script, em um trabalho que dá relevância ao
papel da cognição nesse tipo de produção textual. Para as autoras, o risível,
nas crônicas de humor, explica-se pelas estratégias cognitivas do leitor que,
percebendo rompidas suas expectativas anteriormente representadas por um
marco de cognição, vê-se obrigado a processar a nova informação em um novo
contexto de cognição.
3.2 Recategorização e humor
Entre os vários estudos linguísticos que se fazem sobre textos
humorísticos, a recategorização metafórica tem sido analisada como uma
ocorrência que pode servir como gatilho para o humor. De acordo com Lima
(2007), tal análise, no entanto, demanda uma abordagem não só no aporte
teórico do campo da Linguística Textual, como também das vertentes do
cognitivismo, num enlace entre os dois campos. Segundo Cavalcante (2005), a
recategorização é, por definição, uma alteração nas associações entre
representações categoriais parcialmente previsíveis. Consoante Leite (2007), a
recategorização metafórica é um fenômeno textual que se manifesta, de modo
62
particular, como forma nominal referencial e desempenha um papel
argumentativo na produção do sentido.
De acordo com Koch (2006), a formação de categorias depende de
nossas capacidades perceptuais e motoras. Marcuschi (2007) afirma que não
existem categorias naturais porque não existe um mundo naturalmente
categorizado. Para ele, as coisas ditas são coisas discursivamente construídas
e a maioria de nossos referentes são objetos de discurso.
Para Koch (2005), a discursivização ou textualização do mundo por
meio da linguagem não consiste em um simples processo de elaboração de
informações, mas em um processo de reconstrução do próprio real, conforme
afirma:
Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação: a realidade é construída, mantida e alterada não apenas pela forma como nomeamos o mundo, mas acima de tudo pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele. Interpretamos e construímos nossos mundos na interação com o entorno físico, social e cultural. (KOCH, 2005, p. 34)
Assim, analisar a referência sob uma perspectiva interacionista e
discursiva pressupõe uma concepção de língua que não se esgota no código
nem implica uma correspondência direta com o mundo.
Segundo Mondada e Dubois (2003), a instabilidade das categorias está
vinculada a suas ocorrências, uma vez que se situam nas práticas do sujeito,
em que os locutores negociam uma versão provisória, contextual, coordenada
do mundo. Para esses autores, tal instabilidade lança a desconfiança do leitor
sobre toda descrição única, universal e atemporal do mundo.
Observamos, no próximo cartum, a construção das categorias como
objetos de discurso.
63
(Superadas 2, p. 32)
Com a indagação feita à mãe, a menina tenta entender como
surgem as categorias pelas quais os sujeitos compreendem o mundo. A prática
de tirar a parte superior do biquíni pode ser categorizada como topless para a
mãe, sem nenhum prejuízo à sua imagem, como uma prática da modernidade.
Como a pergunta foi feita à mãe, infere-se que a avó, tentando mascarar seu
comportamento, tenha tentado explicar, à neta, a sua atual postura como uma
prática filosófica de viver.
Mondada e Dubois (2003) chamam a atenção para a questão da
variabilidade das categorias como dependente do contexto, no envolvimento
também do ponto de vista ideológico adotado. Assim, um piano pode ser
categorizado como um móvel pesado e incômodo ou como um instrumento
musical, da mesma forma que um indivíduo pode ser igualmente tratado como
um “traidor” ou como um “herói”.
O cartum a seguir é exemplo de como a categorização depende de
nossa percepção sobre o mundo.
64
(Superadas 2, p. 139)
Com uma chave de fenda na mão, como que a consertar o que
parece ser uma tomada, e com a caixa de ferramentas a seu dispor, a filha, de
forma implícita e de acordo com sua percepção, categoriza a época de
juventude de sua mãe, como um tempo ruim, em que as mulheres se privavam
de opinar, não se cuidavam, tinham poucas oportunidades de lazer e viviam
para cuidar dos afazeres domésticos. Esse mesmo tempo, no entanto, é
categorizado pela mãe como um “paraíso”, numa demonstração de que a
época atual nada tem a acrescentar a seu bem estar no mundo. A
apresentação da mãe, no estereótipo de pessoa bastante idosa, com os
cabelos brancos e com o corpo envergado contrasta com a postura da filha,
ajoelhada, no chão, de forma a evidenciar a diferença de idade entre as duas e,
por conseguinte, da visão de mundo de uma e de outra em relação às épocas
retratadas.
Para Mondada (2005) a questão da referência atravessa a filosofia
da linguagem e assume, na Linguística, formas teóricas diferenciadas. De um
lado a referência é vista dentro de um modelo de correspondência entre as
palavras do discurso e os objetos de mundo, de outro lado é concebida como
um processo dinâmico e intersubjetivo que se estabelece na interação,
constituindo-se, dessa forma, em uma atividade discursiva.
65
Nas palavras de Koch:
Não se entende aqui a referência no sentido que lhe é mais tradicionalmente atribuído, como simples representação extencional de referentes do mundo extra mental, mas, sim, como aquilo que designamos, representamos, sugerimos quando utilizamos um termo ou criamos uma situação discursiva referencial com essa finalidade: as entidades designadas são vistas como objetos de discurso e não como objetos do mundo. (KOCH, 2006, p. 57)
Assim, o referente passa a ser tomado pela noção de
objeto-de-discurso e a ideia de referência passa a ser tomada pela noção de
referenciação, evidenciando a ideia de processo que caracteriza o ato de
referir. Cavalcante (2003) observa que quando passamos da noção de
referência para a de referenciação, acabamos por questionar os processos de
discretização e de estabilização, implicando em uma visão dinâmica que
considera o sujeito sócio-cognitivo e não somente o sujeito “encarnado”.
Para Marcuschi (2007), o processo referencial caracteriza-se melhor
quando considerada a interatividade entre os falantes da língua. Segundo ele,
o entendimento de que a linguagem é uma atividade colaborativa pressupõe
seu envolvimento com a questão referencial. Isso explicaria, por exemplo, o
caso de A saber, com segurança, que B sabe o mesmo que ele quando usa a
expressão X para referir-se à entidade Y.
Numa proposta de classificação e de recategorização lexicais, Apothéloz
e Reichler (1995, apud Lima 2007) determinam três níveis de ocorrência do
processo: a) quando a transformação é operada pelo próprio anafórico; b)
quando o anafórico leva em conta os atributos do referente; e c) quando o
anafórico leva em conta os atributos do referente e os homologa. Esta proposta
de classificação considera a forma como se manifestam as expressões
anafóricas do discurso; dessa forma, observamos que as expressões
anafóricas não são usadas somente para apontar para um objeto- de -discurso,
mas podem ser usadas, também, para modificá-lo.
Segundo Koch e Elias (2006), na construção dos referentes textuais,
estão envolvidas as seguintes estratégias de referenciação:
66
Introdução (construção): quando um objeto até então não
mencionado é introduzido no texto;
Retomada (manutenção): quando um objeto já presente no texto
é reativado por meio de uma forma referencial, de modo que o
objeto-de-discurso permaneça em foco;
Desfocalização: quando um novo objeto de discurso é introduzido,
passando a ocupar posição focal, mantendo, contudo, o objeto
em stand by, ou melhor, disponível para utilização imediata
sempre que necessário.
As recategorizações metafóricas usadas como gatilhos para o humor
estão entre as ocorrências das transformações operadas pelo processo
anafórico. De acordo com Leite (2007), uma expressão pode tomar a forma de
uma metáfora ao acrescentar um novo ponto de vista argumentativo à
expressão referencial antecedente, recategorizando-a. De Lima (2007),
extraímos o exemplo que ilustra tal ocorrência:
O cara chega para o amigo e fala: Minha sogra morreu e agora fiquei em dúvida, não sei se vou trabalhar ou se vou pro enterro dela... O que é que você acha? E o amigo: Primeiro o trabalho, depois a diversão. (PIADAS SELECIONADAS, 2003, p. 25)
Em Leite, encontramos outro exemplo:
Na redação do jornal: – Não deu pra sair a notícia do seu casamento – fala o repórter para um figurão. – Tivemos uma catástrofe mais importante. (SARRUMOR, 1999, p. 226)
Constatamos, no primeiro exemplo, a recategorização metafórica de
enterro da sogra como diversão e, no segundo exemplo, a recategorização
metafórica de casamento por catástrofe.
A recategorização metafórica a que Lima (2007) deu ênfase em
textos de humor é apresentada por Koch (2006) como uma manobra lexical de
orientação argumentativa, sobretudo, em textos opinativos.
67
3.3 A carnavalização em oposição à seriedade
A concepção carnavalesca de mundo, de Bakhtin, marca oposição à
seriedade, negando o discurso autoritário e opondo a força centrípeta desse
discurso à força discursiva centrífuga do riso (Cf. FIORIN, 2006, p. 89).
Conforme inferimos em Bakhtin (1981), o carnaval é constitutivamente
dialógico, pois opõe duas realidades: uma oficial, monoliticamente séria e triste
e outra, a da praça pública, a do riso. Diferente da festa de carnaval que temos
na atualidade, em que o indivíduo tem uma posição mais de expectador, o
carnaval a que se refere Bakhtin é o carnaval da participação ativa do homem,
de uma festa que se vive e não apenas se presencia. Essa vida carnavalesca é
uma vida desviada de sua ordem natural, sendo, em certo sentido, “uma vida
às avessas”, “um mundo invertido” (monde à l’enver). Em outras palavras, o
carnaval desvia, de forma transitória, o curso normal das relações humanas.
Com a eliminação momentânea da distância entre os homens, entra
em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar. A
liberdade que se usufrui no carnaval não admite hierarquias nem discursos
autoritários. Dessa forma, vislumbra-se uma possibilidade de mundo em que
todos são iguais.
Os festejos de tipo carnavalesco ocupavam lugar de destaque na
vida das mais amplas massas populares da Antiguidade grega e especialmente
romana, onde os festejos centrais – mas não os únicos – de tipo carnavalesco
eram as Saturnais, festas oferecidas a Saturno, deus da fertilidade, ao qual
estava associado um reino de abundância. Nesses festejos, os escravos
tornavam-se momentaneamente senhores de seus amos e eram atendidos por
esses da mesma forma que lhes atendiam.
Para estudar a carnavalização, Bakhtin busca textos da Idade
Média, em que se debochavam das Escrituras Sagradas. Neste período, sob a
cobertura da liberdade legalizada do riso, era possível a paródia sacra. Contra
o supremo, também o riso carnavalesco dirige-se para a mudança dos poderes
e das verdades, para a mudança da ordem universal. De acordo com o autor:
Na Idade Média, a vastíssima literatura do riso e da paródia nas línguas populares e no latim estava, de um modo ou de outro,
68
relacionada com os festejos de tipo carnavalesco, com o carnaval propriamente dito, com a “festa dos bobos”, com o livre “riso pascal” (risus paschalis), etc. Na Idade Média, quase toda festa religiosa tinha, em essência, seu aspecto carnavalesco público-popular (sobretudo festejos como o Corpus Christi). (BAKHTIN, 1981, p. 147)
Bakhtin (1981.) afirma ainda que o carnaval é uma grandiosa
cosmovisão que liberta do medo e aproxima ao máximo o mundo do homem e
o homem do homem, com as mudanças e sua alegre relatividade, opondo-se à
seriedade oficial, unilateral e sombria.
Em síntese, para Bakhtin (id.) a literatura carnavalizada é a literatura
que, direta ou indiretamente, sofreu a influência de diferentes modalidades do
folclore carnavalesco (antigo ou medieval). Para o entendimento disso, é
necessário que se abandone a interpretação simplista de carnavalização como
fenômeno boêmio e banal e se passe a entendê-la segundo a cosmovisão
descrita pelo autor.
3.4 Détournement
O détournement consiste na produção de um enunciado que
apresenta as marcas linguísticas de uma enunciação proverbial. Como uma
variante do texto cômico, o détournement pode ser considerado um texto
paródico reduzido (Cf. Lauriti, 1990). Ele implica sempre uma modificação, no
plano do significado e no plano do significante, tendo como base os provérbios
que operam principalmente com a competência ideológica do indivíduo, ao
filtrar uma lição de moral.
Antes de darmos sequência à caracterização do détournement,
faremos uma breve exposição sobre paródia e provérbios, pois são conceitos
que se interrelacionam na formação do détournement, entendido, por nós,
como parodização proverbial.
Sobre paródia, em Sant‟Anna (2003), há uma definição curta e
funcional encontrada por ele no dicionário de Brewer como “uma ode que
perverte o sentido de outra ode”, na implicação de que originalmente a ode era
um poema a ser cantado. Para Fávero (2003), “paródia significa canto paralelo
(de para = ao lado de e ode = canto), introduzindo a ideia de uma canção
cantada ao lado de outra”.
69
A partir da noção de desvio, Sant‟Anna diferencia paródia, paráfrase
e estilização. Assim, a paráfrase surge como um desvio mínimo; a estilização
como um desvio tolerável; a paródia como um desvio total. Em outras palavras,
no dizer do próprio autor, “a diferença entre esses termos está em que „a
paródia deforma, a paráfrase conforma e a estilização reforma‟”. Para ele, a
paródia é sempre inauguradora de um novo paradigma por estar ao lado do
novo e do diferente.
Examinando a natureza carnavalesca da paródia, Bakhtin (1981)
observa que a paródia é um gênero organicamente estranho aos gêneros
considerados puros da Antiguidade (tragédia, epopeia), sendo, ao contrário,
própria dos gêneros carnavalizados. Na Idade Moderna, há uma ruptura da
paródia com a cosmovisão carnavalesca da Antiguidade, que a tudo parodiava.
Josef (1980) afirma que a paródia mostra-se como uma escrita
transgressora que engole e transforma o texto primitivo, reestruturando-se
sobre ele ao mesmo tempo em que o nega. Em consonância com Fávero,
Lauriti (1990) vê a paródia como uma linguagem que, na ruptura com a
convenção, cria novas formas de ver o mundo, sendo um discurso que se
distancia da verdade constituída. Para ela, na paródia, as vozes estão
orientadas em diferentes sentidos e podem enfatizar diferentes aspectos,
conforme afirma:
[...] ela pode recair sobre o estilo do texto primitivo; pode-se parodiar a maneira típico social ou caracterológico individual de o outro ver, pensar e falar. Além disso, ela tanto pode agir apenas sobre as formas superficiais como sobre os princípios mais profundos do discurso do outro. (LAURITI, 1990, p. 208)
Fávero (2003) observa que a marca principal da paródia é a luta
entre vozes, o que implica seu caráter dialógico, dissonante e polissêmico.
Os provérbios, como modelos cristalizadas por uma comunidade,
são uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas no mundo. (Cf.
MAINGUENEAU, 2008). A natureza do provérbio é fundamentalmente
polifônica, pois o enunciador apresenta sua enunciação como uma retomada
de inúmeras enunciações anteriores. Isso significa dizer que o enunciador faz
com que seja ouvida, por intermédio de sua própria voz, a voz da sabedoria
70
popular (vox populi) evidenciando uma citação de autoridade. O enunciador
apoia-se nele para introduzir uma situação particular em um quadro
preestabelecido, delegando ao co-enunciador a tarefa de determinar a relação
entre eles. Assim, o provérbio “Água mole em pedra dura tanto bate até que
fura” é convencionalmente associado à ideia de perseverança.
De acordo com Fernandes4 (1961, apud Lucena, 2006), a apelação
aos provérbios ocorre porque se pensa ou se acha que os outros pensam “que
tudo está ali”, com a convicção de que os provérbios exprimem a verdade. Para
esse autor, os provérbios fazem parte do ajustamento das pessoas a
determinadas situações sociais.
Sabemos que os provérbios fazem parte do folclore e, de acordo
com alguns estudiosos, sua existência é tão antiga quanto a história da própria
humanidade. Os provérbios são transmitidos de um para outro e sobrevivem às
novas gerações que surgem.
No Brasil, por meio de adornos de para-choques, os provérbios
transitam por todo o território nacional. Para Cohen (1991), o entendimento da
relação entre os provérbios, países e culturas não pode fugir à análise de
algumas circunstâncias étnicas, históricas e geopolíticas que permitem sua
disseminação. Os provérbios brasileiros são, de acordo com esse autor,
irônicos, sábios e pacatos, reflexos da característica pacifista de seu povo e
das diferenças socioeconômicas que existem no país, sendo comum a
repetição de provérbios como “Alegria de pobre dura pouco” ou “Quando a
esmola é muita, o santo desconfia”.
Segundo Lucena (op. cit.), os provérbios, por constituírem um
gênero oral, são de fácil memorização e possuem amplos recursos da retórica
e da poesia como, por exemplo, a metonímia, a metáfora, a aliteração, entre
outros.
Retornando à noção de détournement, Grésilon e Maingueneau
(apud KOCH, BENTES e CAVALCANTE, 2007) preconizam a existência de um
détournement do tipo lúdico e outro do tipo militante. O primeiro apresenta a
modificação de um provérbio de forma “inocente”, apenas com o intuito de
4FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na Cidade de São Paulo. São Paulo: Anhambi S/A.
1961.
71
brincar com as palavras, sem compromisso de adesão ou de recusa à ideia
expressa no provérbio. O segundo, com utilização estratégica, pode tanto
valorizar a carga ideológica contida no provérbio, tomando-lhe a mesma
direção, como contraditá-la, orientando-a para um novo sentido.
Para Maingueneau (2008), todo slogan aspira a ter a autoridade de
um provérbio, a ser universalmente conhecido e aceito pelo conjunto de
falantes de uma língua. Para ele, em um slogan como “Beleza é fundamental”
existe a captação do gênero provérbio, pois, não sendo um provérbio, a
expressão possui propriedades linguísticas semelhantes às de um provérbio,
podendo ser utilizado como tal.
No caso de “Os cães ladram, os Lee Cooper passam” existe a
captação de um provérbio reconhecido, ou seja, a imitação opera a partir de
um texto que favorece tal reconhecimento: “Os cães ladram, a caravana
passa”. Para o autor, portanto, quer se trate de captar ou de subverter, a
imitação se dá em dois planos: o do gênero do discurso e o do texto
reconhecido.
O détournement comporta, basicamente, as estratégias de captação
e de subversão. Quando o enunciador utiliza-se da autoridade do provérbio a
seu favor, temos a captação do provérbio a exemplo de “Quem procura acha”
para “Quem procura acha, aqui!”. A subversão, por sua vez, ocorre na
discordância de vozes.
De acordo com Koch, Bentes e Cavalcante (2007), o détournement
ocorre, em grande parte dos casos, pela estratégia de subversão, numa
contradição ao texto fonte, por intermédio da negação de uma parte ou do todo,
pelo apagamento da negação que aquele encerra, ou ainda pelo acréscimo de
expressões adversativas, como em “devagar se vai ao longe, mas chega-se
muito tarde”; “É mais fácil um camelo passar pelo olho de uma agulha do que
um rico entrar no reino do céu sem subornar o porteiro”. “Água mole em pedra
dura, tanto bate até que a água acaba”. Percebemos, pelo demonstrado, que
no détournement o humor nasce da ruptura com o previsível. Em sua utilização
lúdico-humorística, o détournement constrói-se pela subversão decorrente do
confronto entre o mesmo e o diferente, na expressão do conflito entre o
garantido e institucionalizado e a tematização de seu deslocamento.
72
Segundo as autoras, o détournement tem sempre valor
argumentativo em diferentes graus. Assim, no exemplo “Cão que ladra, não
morde”, convertido para “Cão que ladra não morde enquanto ladra”, a
argumentação contida no provérbio de que as pessoas que esbravejam não
são capazes de atitudes mais drásticas desfaz-se pelo acréscimo da oração
adverbial de tempo “enquanto ladra”, que argumenta em contrário à primeira
ideia.
Possenti (2010, p. 132) utiliza-se do aforismo de Millôr Fernandes
Ser pobre é um pecado venial. Se conformar com isso é um pecado mortal
como exemplo de subversão e do confronto entre vozes, já que tratar a
aceitação da pobreza como pecado grave é dialogar com doutrinas religiosas
que a consideram quase que uma virtude.
Em suma, concluímos que o détournement, ao romper com as
“verdades” pré-estabelecidas pelas estruturas convencionadas, acaba por
relativizar o discurso, que se pretendia absoluto, na construção de um novo
modelo.
3.5 Ironia em duas vozes
A palavra ironia provém do grego eiróneía, que significa
dissimulação, fingimento. Segundo MUECKE (1995), ironizar é dizer alguma
coisa de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de
interpretações subversivas.
Para Aristóteles (2005), a ironia quadra melhor ao homem livre do
que a bufonaria, pois ironizamos para nos deliciarmos, enquanto bufoneamos
para deliciar os outros. Propp (1992) [1976] aproxima a ironia do paradoxo e
afirma que, se no paradoxo conceitos que se excluem mutuamente são
reunidos apesar de sua incompatibilidade, na ironia se expressa com as
palavras um conceito, mas se subentende outro contrário a ele. Para o autor, a
comicidade que advém da ironia explica-se pelo fato de ela constituir um dos
aspectos da zombaria. Brait (1996) postula que é possível saltar de uma
concepção retórica da ironia para uma concepção que a considere dentro de
uma perspectiva discursiva. Para a autora:
73
A ironia pode ser enfrentada como um discurso que através de mecanismos dialógicos oferece-se basicamente como argumentação direta ou indiretamente estruturada, como paradoxo argumentativo, como afrouxamento de ideias e de normas institucionais, como instauração da polêmica ou mesmo como estratégia defensiva. É possível assim abandonar a série caracterizada como sendo a das figuras de linguagem, da frase de efeito de um texto que compõe, e mesmo da comicidade, delineando-se o horizonte de outra perspectiva. (BRAIT, 1996 p. 58)
Segundo a autora, a dupla leitura mobilizada por um enunciado
irônico envolve formas de interação entre os sujeitos, bem como a relação
entre o objeto da ironia e as estratégias linguístico-discursivas que põem em
movimento o processo. Dessa forma, o produtor da ironia chama a atenção do
destinatário para o seu discurso, convocando-o a uma construção
interpretativa. Nesse sentido, lembramos o Princípio de Cooperação de Grice,
para quem a comunicação depende de um esforço cooperativo entre os
participantes.
A ironia é, conforme Brait, uma categoria estruturadora de textos que
denuncia um ponto de vista, promovendo uma argumentação indireta. Conta
para isso, com a perspicácia do destinatário – intérprete final – para
concretizar-se em sua significação. Nas palavras da autora:
[...] o discurso irônico joga essencialmente com a ambiguidade, convidando o receptor a, no mínimo, uma dupla descodificação, isto é, linguística e discursiva. Esse convite à participação ativa coloca o receptor na condição de co-produtor da significação, o que implica necessariamente sua instauração como interlocutor. (BRAIT, 1996, p. 96).
O processo da ironia evidencia conceitos como intersubjetividade,
conhecimentos partilhados, convivência e comprometimento entre os sujeitos
de forma que, mesmo assinalado por valores atribuídos ao enunciador, o
procedimento irônico passa a exigir do leitor/ouvinte a mobilização de seus
valores culturais no trabalho de interpretação. Dessa forma, percebemos que a
participação do leitor/ouvinte dá-se de forma a ultrapassar o nível linguístico do
processo da ironia, afirma Brait.
Para a autora, devemos estudar a ironia como um procedimento
intertextual e interdiscursivo, numa concepção que a relaciona à ideia de
heterogeneidade discursiva, isto é, o discurso construído a partir do discurso do
74
outro. Ainda, segundo a autora, para haver ironia, existe a opacificação do
discurso que, em outras palavras, significa o enunciador produzir um discurso
de forma a chamar a atenção não apenas para o que está dito como também
para a forma de dizer e para as contradições existentes entre as duas
dimensões.
Depreende-se, pela leitura de Ducrot (1987), que a ironia pertence
ao grupo das manifestações polifônicas que se contrapõe à ideia de unicidade
do sujeito. Assim, quando em um enunciado retoma-se o que o outro disse (e
que, por isso, o locutor não assume como seu), observa-se um movimento de
polifonia. O autor, ao distinguir locutor de enunciador, exemplifica:
[...] quando há uma retomada (em um sentido mais largo deste termo, e que não implica nem repetição literal, nem paráfrase). L, a quem se censurou por ter cometido um erro, retruca: “Ah! eu sou um imbecil; muito bem, você não perde por esperar!”. L é aqui ainda o produtor das palavras e é ele igualmente que é designado pelo eu. Mas a responsabilidade do ato de afirmação realizado no primeiro enunciado não é certamente L que assume – já que justamente L tem a modéstia de o contestar: ao contrário, L o atribui a seu interlocutor I (mesmo que I não tenha, de fato, falado de bobeira. Mas somente feito uma censura que, segundo L, implica em boa lógica para I, a crença na imbecilidade de L). (DUCROT, 1987, p.180)
Dessa forma, concluímos que os enunciados podem apresentar
declarações que não condizem com o ponto de vista daquele que as enuncia,
sendo que, na ironia, isso acontece de forma mais evidente. Segundo
Maingueneau (2008), a ironia ocorre quando o enunciador subverte a sua
própria enunciação. Para ele, o fato de alguém apontar a gentileza de outro
alguém que acaba de ser grosseiro é como uma encenação, em que a voz que
ele escuta ressoa como a de outro, que ele põe em cena, e que dele se
distancia.
Para Castro (2005), a ironia apresenta-se como um caso típico de
bivocalidade – marca principal da obra de Mikhail Bakhtin – pois a
consideração pelo discurso do outro implica o reconhecimento do segundo
contexto como forma de percepção da ironia.
O discurso irônico também tem sido estudado pelas relações com as
Máximas postuladas por Grice (1982), no tocante ao princípio da qualidade, em
que se espera veracidade em um enunciado. Nesse caso, a interpretação de
75
que a fala é contraditória ocorre pelo processo inferencial que leva o
ouvinte/leitor ao estabelecimento de implicaturas. O enunciador sinaliza, por
meio de marcas, que o que ele diz não é o que efetivamente pretende dizer.
Tais marcas transparecem na oralidade pela entonação, enquanto na escrita,
ela é revelada por índices que marcam distanciamento, como reticências,
palavras enfáticas e aspas, dentre outros.
Por fim, lembramos que a ironia, não sendo uma condição para a
existência do humor, a ele relaciona-se. Julgamos que a abordagem feita neste
tópico sobre a ironia é mais condizente, para nosso trabalho, que outras mais
tradicionais e que a limitam a mera figura de linguagem. Ao considerar o
receptor como intérprete final do enunciado irônico, a perspectiva adotada
acaba por considerar, também, a linguagem como uma atividade do sujeito,
como um lugar de interação.
3.6 Humor: suportes de veiculação
Os textos humorísticos são veiculados de diversas formas e em
suportes variados. Podemos citar, como meios de veiculação para esses
textos, os jornais, as revistas especializadas, os programas de televisão e de
rádio, entre outros. Daremos destaque ao humor na imprensa escrita, já que
ela é um veículo que, tradicionalmente, serve como suporte para os cartuns,
objetos deste trabalho.
O humor na imprensa escrita aparece em cadernos diversos. De
acordo com Possenti (2010), a publicação do humor no caderno cultural implica
reconhecê-lo como cultura ou arte; quando publicados em forma de charges ao
lado dos editoriais, a implicação é a da expressão de opinião comprometida
com os ditos noticiários “quentes” do jornal. Para o autor, as charges relativas
às matérias de primeira página apresentam, muitas vezes, a mesma voz da
editoria, só que em outro registro.
Os critérios que orientam a organização do humor nesse tipo de
imprensa relacionam-se com o grau de ligação com as notícias em evidência.
Assim, há o humor dos que têm compromisso com o conteúdo do periódico e o
humor dos que não têm esse tipo de compromisso, afirma Possenti (2008).
76
O primeiro caso está relacionado ao humor dos chargistas, já
comentado no capítulo 1. Como exemplo de chargistas conceituados na
imprensa brasileira, podemos citar Ziraldo, Angeli e Caco Galhardo.
Recentemente, destaca-se o jovem João Montanaro que, aos 14 anos, assina
charges políticas aos sábados na Folha de S.Paulo. O segundo caso volta-se a
outros tipos de humor e aparece, de forma mais livre, na disposição do
periódico e sem comprometimento com as matérias em destaque. Os autores
desse tipo de humor são normalmente consagrados, a exemplo de Luís
Fernando Veríssimo, Jô Soares e José Simão que, com a autonomia
conquistada, publicam com mais liberdade, apesar de, eventualmente,
guardarem relação com os fatos mais destacados na imprensa.
Feitas essas considerações acerca do humor, lembramos que, para
Travaglia (1990), humor e riso são indissociáveis, mas o riso a que ele se
refere não é, necessariamente, o riso audível, mas, sim, aquele que se entende
de forma mais ampla, como um movimento de satisfação do espírito.
Destacamos que, em nosso trabalho, não faremos distinção entre
humor e comicidade; por isso, sempre que nos referirmos a “humor”, o
estaremos fazendo na concepção de Travaglia (id.).
77
4 ANÁLISE DO CORPUS
O corpus, conforme já exposto, é representado por dezoito cartuns
de Maitena, nas seguintes categorias de análise: Focalização, Inferências,
Interdiscursividade, Intertextualidade, Polifonia e Recategorização. A
organização por blocos deve-se a uma questão metodológica no intuito de
enfatizar os recursos analisados, sendo difícil fazer uma partição rigorosa,
quando se fala em produção de sentido, dada a sua complexidade. Os critérios
utilizados para a análise ancoram-se em estudos da Linguística Textual,
conforme explicitado na introdução.
Para uma contextualização do nosso corpus é necessário que se
faça uma breve apresentação da autora dos cartuns selecionados e de seu
trabalho. Maitena Inés Burundarena trabalhou como ilustradora gráfica para
jornais e revistas argentinos, fez animações para programas televisivos e foi
roteirista de TV. Em 1993, foi convidada pela revista Para ti, de maior tiragem
em seu país, para escrever uma página semanal sobre o universo feminino.
Vem publicando, a partir de 1999, seus trabalhos nos jornais espanhol El Pais,
francês Le Figaro, italiano La Stampa, mexicano El Universal, português
Público, entre outros. No Brasil, seus cartuns tiveram publicação no Caderno
Equilíbrio, do jornal Folha de São Paulo, e na revista Claudia.
Dos cartuns veiculados nos jornais, surgiram algumas coletâneas,
dentre elas, as reunidas sob os títulos Curvas perigosas, Mulheres alteradas,
Mulheres superadas. A temática principal de Maitena é a inquietação da mulher
com o seu estar no mundo.
78
4.1 Coerência Textual
4.1.1 Focalização
Cartum 1: Superadas 1, p. 135
O cartum 1 apresenta dois homens em um provável ambiente de
trabalho, pelo que inferimos a partir da indumentária (camisas sociais e
gravatas) e pelo ambiente (mesa e telefone). O primeiro falante tem, como foco
de insatisfação, a dependência da mulher; o segundo focaliza, justamente, a
independência como fator de desconforto.
Pela interjeição “ufa!” e pela expressão do primeiro interlocutor,
intuímos que ele está cansado com os constantes pedidos da mulher. Ainda
com relação ao primeiro interlocutor, as cores da camisa e da gravata (cinza
clara e cinza escura) contribuem para um apagamento da sua imagem.
Também podemos supor que o primeiro interlocutor não seja casado, pela
ausência da aliança.
O segundo interlocutor aparenta tranquilidade e demonstra maior
preocupação com a aparência, como percebemos pela combinação das cores
da camisa e da gravata. A aliança na mão esquerda explicita uma relação
oficial. Pela sua posição (mão no ombro do amigo) percebe-se que ele procura
acalmar o primeiro, apresentando-lhe uma situação que, para ele, é pior.
79
O humor, neste cartum, é construído pela perspectiva particularizada
dos interlocutores. A diferença de focalização, nesse caso, provoca a reflexão
sobre o que seja estar bem ou mal no mundo em diferentes contextos. O leitor
passa a ter certa identificação com um ou com o outro falante e passa a rir da
ideia que, para ele, é inusitada. A afirmação do segundo falante, de que a
independência da mulher é um incômodo, encontra eco no discurso machista,
que vê o homem como o provedor da família, tema controverso na sociedade
atual.
Cartum 2: Superadas 1, p. 123
Esse cartum apresenta duas mulheres sentadas à mesa, em
ambiente que sugere ser um restaurante, pelos objetos que se encontram
sobre a mesa. Reflete a inquietação da segunda personagem com relação ao
marido tê-la trocado por outra mulher da mesma idade que ela. A personagem
Clarinha parece não ter tido essa mesma vivência em seu casamento, já que
Focalização 1: Não existe coisa
pior para um homem que ter uma
mulher dependente.
Focalização 2: A independência
financeira da mulher causa
desconforto para o homem.
Ruptura: É pior ter uma
mulher independente.
80
seu comentário aparece modalizado pela forma linguística “não deve haver
coisa pior”. O aspecto cômico deve-se à forma como a segunda interlocutora
posiciona seu sentimento de forma mais “aguda”, como se dissesse que ser
trocada por uma mais jovem é mais aceitável. A observação dessa
interlocutora tem respaldo no discurso da sociedade que vê o homem como
que inclinado a relações motivadas pelo aspecto físico. A mobilização do
conhecimento desse discurso faz com que o leitor compreenda a agudeza com
que a personagem apresenta sua versão.
,
Entendendo que mais nova pode significar “melhor” e da mesma
idade pode significar “igual”, observamos a “superioridade” da apreensão da
segunda já que, ausente o motivo físico (responsabilidade externa à
personagem) para a troca, resta o motivo comportamental e intelectual
(responsabilidade interna à personagem).
Na análise desse cartum, rememoramos as posições de Bergson
(v. capítulo 3 deste trabalho), o qual associa o riso ao envolvimento que temos
em relação à situação provocadora do riso, pois, dentro do contexto de quem
viveu a situação, a apresentação do cartum pode provocar sentimentos
contrários ao do riso.
Focalização 1: Não existe coisa pior
que ser trocada por uma mulher mais
nova.
Focalização 2: Ser trocada por uma
mulher da mesma idade é menos
aceitável, já que, na condição de
igualdade, o motivo da separação é
de natureza mais complexa, razão
que amplia o sentimento de
inferioridade da mulher.
Ruptura: é pior ser trocada
por uma mulher da mesma
idade.
81
Cartum 3: Superadas 2, p. 60
No cartum acima, são apresentados dois meninos, provavelmente
no quarto do primeiro, já que os dois estão sentados sobre uma figura que
sugere uma cama, onde o primeiro abre o presente que acaba de receber de
sua avó. O primeiro menino mostra-se irritado pelo fato de, em todo
aniversário, receber roupas como presentes de sua avó. O segundo o consola
(pela expressão do tapinha no ombro), dizendo-lhe que, pior que receber
roupas, é ganhar joguinho didático.
A coerência deste cartum está no conhecimento partilhado de que
os familiares costumam dar presentes úteis para as crianças que,
normalmente, desejam brinquedos. Jogos didáticos, apesar de serem
considerados pelos adultos como brinquedos, não são vistos da mesma forma
pelas crianças, já que desejam brincar sem o compromisso da aprendizagem.
Salientamos o uso do diminutivo “joguinho” utilizado pelo segundo menino que,
Focalização 1: Não existe coisa pior
que ganhar roupas no aniversário.
Focalização 2: Não existe coisa
pior que ganhar joguinhos
didáticos no aniversário, pois
estes não são considerados
propriamente brinquedos.
Ruptura: É pior ganhar
joguinho didático.
82
de forma irônica, amplia seu desprezo por esse tipo de presente. O
reconhecimento, por parte do leitor, de que crianças e adultos focalizam de
forma diferente a “utilidade dos presentes”, desencadeia o humor do cartum.
Cartum 4: Superadas 1, p. 64
Nesse cartum, temos a replicação do verbo comer nas formas
“comê-lo” / “comi” em acepções diferentes e, neste enunciado, antagônicas.
Para a primeira interlocutora, o sentido é de “saborear”, “desfrutar”,
nutrir-se de coisa boa; para a segunda, o sentido é de “destruir”, “eliminar” o
que é ruim. O contraste, construído pelo mesmo verbo, causa a comicidade do
cartum e revela a característica antitética do estilo de Maitena.
A relação intertextual ocorre, em sentido amplo, pela memória social,
na lembrança que os leitores têm do hábito das mães de ostentarem a
formosura de seus bebês. A segunda interlocutora, porém, remete o leitor ao
costume das mães de se queixarem do comportamento dos filhos quando eles
ultrapassam o limite da infância.
Focalização 1: Filho bebê –
motivo de alegria.
Focalização 2: Filhos são
motivos de alegria e de
descontentamento.
Filho adulto – motivo de desconte.
83
Cartum 5: Superadas 1, p. 85
O cartum 5 apresenta uma mulher que, ao analisar seu corpo com
celulite, constata a impossibilidade de afastar-se de seu lado “humano”.
A ideia de que a tecnologia afasta o homem de seu lado humano é
rompida nesse cartum pela substituição do valor que se dá ao sentido da
palavra “humano”. A acepção que a personagem dá para a palavra, no primeiro
balão, corresponde à de calor humano, que tem sido enfraquecido nas
relações, hoje, mecanizadas pela tecnologia. De forma implícita, no segundo
balão, a expressão tem valor de “imperfeição”, no mesmo sentido de que “errar
é humano (ter defeitos)”. Quem é humano está sujeito à imperfeição. A
personagem, por ser humana e, consequentemente “imperfeita”, tem celulite.
A produção do cômico dá-se pela ambivalência com que se constrói
o termo “humano”. No cartum em questão, a mudança de foco acaba por
provocar também uma mudança temática, que desloca o tema das relações
humanas frente à tecnologia para as inquietações da mulher com a questão da
Focalização 1: A tecnologia
afasta as pessoas de seu lado
humano.
Focalização 2: É impossível
para o ser humano afastar-se
de seu lado humano.
Ruptura: A celulite aproxima as pessoas de seu lado humano.
84
estética. A mudança temática, nesse caso, não interfere na coerência, haja
vista que a prática comunicativa do cartum reside na provocação ao humor.
Observamos, na análise dos cartuns referentes a esse bloco, que a
produção do sentido cômico se estabelece pela interação do leitor com as
diversas abordagens dos temas, focadas pelas personagens.
Chamamos a atenção para os cartuns 1, 2 e 3, nos quais a
cartunista utilizou-se da estrutura de pergunta e resposta, de forma semelhante
à dos jogos de adivinhas, contando com a competência metagenérica do leitor
na produção do sentido, dada sua configuração intergenérica. Os jogos de
adivinhas, as famosas brincadeiras de charadas para decodificar enigmas,
costumam ter, em sua decifração, uma resposta inesperada. Sobre a estrutura
própria dos jogos de adivinhas, afirma Marini (1999, p. 68): A estrutura
canônica “O que é o que é?”, anuncia, sem sombra de dúvidas, que se está
diante de uma adivinha. Entretanto, a estrutura interrogativa pode variar quanto
a sua forma.
Muitas charadas sofrem reconstrução como forma de atualização de
seu enigma, como no exemplo: “O que é o que é? Tem bico, mas não bica, tem
asa mas não voa”. A palavra “bule” é a resposta esperada. Em sua forma
reconstruída, entretanto, a charada traz, como solução, “passarinho morto”:
“Tem bico, mas não bica; tem asa, mas não voa”. A resposta inesperada,
nesse caso, é um dos fatores de construção do sentido do texto, justamente
por estar contida no gênero charadas, em que o leitor já espera a quebra do
script.
Ao fazermos uma correlação desses três cartuns com os jogos de
adivinhas reconstruídos, observamos que Maitena utiliza estruturas à
semelhança desse tipo de jogo, como se constata nos seguintes quadros:
Jogos de adivinhas:
ENIGMA RESPOSTA ESPERADA RESPOSTA RECONSTRUÍDA
O que é, o que é? Tem bico, mas não bica, tem asa mas não voa?
Bule. Passarinho morto.
85
Cartuns 1, 2 e 3
PERGUNTA (ENIGMA) RESPOSTA ESPERADA RESPOSTA
RECONSTRUÍDA
Alguma coisa te deixa pior? Não. Sim. [...]
Não deve haver coisa pior. Não. Tem, sim. [...]
Tem coisa pior? Não. Tem... [...]
Nesses cartuns, as respostas afirmativas para a existência de
situações piores que as propostas rompem com as expectativas do interlocutor
que, primeiramente, situa o tema abordado, no foco do primeiro personagem,
para depois voltar a sua atenção a coisas mais desagradáveis que as focadas
por ele. O movimento polifônico ocorre pelas várias vozes que falam de
perspectivas ou pontos de vista diferentes, levando o interlocutor à percepção
de diferentes mundos discursivos aos quais são submetidos pelo jogo de saber
o que é pior.
Com base nos exemplos apresentados, representativos desse
conjunto de cartuns, concluímos que o sentido do humor constroi-se pela
ruptura, que desconcentra o leitor do primeiro foco, para levá-lo a uma
possibilidade argumentativa ainda não imaginada por ele. Diante do “novo”, o
leitor se vê na condição de pensar: “Ué! não é que é isso mesmo?”.5
5“[...]Diante do humor podemos ter sempre a reação de falar: – Ué! Não é que é isso mesmo.” Expressão
utilizada por Ziraldo no artigo Ninguém entende de humor. (Cf; TRAVAGLIA, 1990, p.68)
86
4.1.2 Inferências
Cartum 6: Superadas 1, p. 10
Um rapaz reclama com a namorada que o estilo de vida dele não
encontra correspondência ao estilo dela na relação dos dois. Sua vestimenta,
sua postura e sua própria fala o caracterizam como “moderninho”, “ousado”
“aventureiro” (usa brinco, cabelos desfiados pelo corte, óculos de sol e
camiseta em cor viva). A garota, por outro lado, apresenta uma postura ereta,
mão no bolso, cabelos arrumados). Ao requisitar que a namorada o exponha a
emoções fortes – dada a primeira inferência de que, para ele, o relacionamento
é monótono – o interlocutor é surpreendido com a resposta de que as
emoções fortes e as vertigens serão possíveis quando ela o apresentar a seus
pais.
O leitor/ouvinte só perceberá o cômico, na resposta da jovem, se
fizer a inferência de que seus pais são conservadores, fato esse que provocará
um embate no possível encontro com o namorado.
87
Cartum 7: Superadas 1, p. 138
É perceptível, nessa apresentação, que as duas interlocutoras
pertencem a classes sociais diferentes. A leitura do não verbal ajuda na
produção do sentido, já que representa, pelo estereótipo da vestimenta, o lugar
social de cada uma. A primeira interlocutora é apresentada com roupas simples
e com os cabelos ajeitados com lacinho. A segunda, maquilada e vestida
socialmente, é caricaturizada como pertencente a uma classe social mais
elevada em relação à primeira.
A inferência feita pela segunda interlocutora sobre a profissão do
namorado da filha da outra ser a de pintor de quadros (artista) justifica-se por
seu contexto social, que entende essa profissão como de status, de fama. A
primeira interlocutora, ao contrário, e devido também a seu contexto social,
surpreende a segunda ao responder que imaginava ser ele um pintor de
paredes, profissão, para ela, considerada como de “gente que trabalha”. A
expressão linguística “imaginei outra coisa” mostra claramente que há uma
diferença entre o que uma e outra entendem sobre a situação.
Lembramos que são os marcos de cognição dos grupos sociais,
construídos pelos conhecimentos sociais, que fazem com que cada grupo
tenha um ponto de vista específico. Grupos sociais com marcos de cognição
sociais diferentes costumam entrar em desacordo. Isso justifica o porquê de o
88
sentido intencionado pela primeira ter sido contrariado pela inferência da
segunda.
Cartum 8: Superadas 1, p. 113
Só é possível apreender o efeito cômico pretendido nesse cartum
com o conhecimento partilhado que se tem sobre o discurso dos homens
casados em adiarem a separação para assumirem outro compromisso. A
aparência da primeira interlocutora demonstra que ela é jovem e que, talvez,
pela pouca idade, desconheça tal argumento (a blusa cor de rosa e o jeito do
cabelo lhe dão um ar de ingenuidade). A segunda interlocutora (fumando,
tomando cerveja), aparentando ser mais experiente que a primeira, deixa
transparecer, em sua expressão, conhecimento desse discurso em decorrência
de sua vivência pessoal em relação ao assunto.
89
Cartum 9: Superadas 1, p. 11
Em consulta, a paciente indaga ao médico sobre em qual parte do
corpo deve-se injetar colágeno para preenchimento do vazio existencial.
O conhecimento enciclopédico sobre o fato de que as mulheres
utilizam-se de procedimentos estéticos, injetando colágeno para preenchimento
de rugas é essencial para a compreensão do cartum. Também pertence ao
conhecimento de mundo o fato de que muitas mulheres procuram, na
intervenção estética, formas de driblar insatisfações de ordem não estéticas.
Cartum 10: Superadas 1, p. 145
Uma mulher expõe à amiga suas inquietações em relação a um
possível encontro com alguém que ela conheceu pela internet.
90
Ao contrário das características apresentadas pela interlocutora para
o homem com o qual se corresponde (magra, alta, ruiva e de olhos cinza), a
mulher é apresentada no cartum como baixa, gordinha e com aparência não
condizente com os padrões de beleza estipulados pela sociedade. Há um
discurso social de que esse padrão é o que deve ser alcançado pelas mulheres
que querem ser bem sucedidas com os homens, como um modo de ser
fisicamente. Embora não negue a importância de outras características
importantes para a mulher, como a de ser amorosa, inteligente etc., tal discurso
maximiza o padrão estético.
Em sites de relacionamento, muitas vezes, os interlocutores
apresentam um falso ethos na tentativa de conquistar o parceiro. O
conhecimento de tal prática, aliado à imagem mostrada no cartum, a qual não
corresponde às características que a interlocutora diz ter passado para o
pretendente, é responsável pelo efeito cômico.
Os cartuns 7, 8, 9, 10 e 11, apresentados nesse grupo, comprovam
que a produção do sentido considera as inferências utilizadas nas relações
estabelecidas com os elementos não explicitados. Como já destacado no
capítulo 2, as inferências estão ligadas ao conhecimento de mundo. Entender
as estratégias que levam o leitor à compreensão dos sentidos apresentados,
nesses cartuns, é também entender o texto como um evento comunicativo em
que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas.
91
4.2 Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade
Cartum 11: Superadas 1, p. 80
Duas jovens conversam sobre a perda da custódia de uma delas
pela mãe. A representação da filha em padrão não convencional (que aparece
fumando, com cabelo verde, batom azul, colar em forma de coleira e utilizando
piercings) induz o leitor à construção de uma imagem negativa sobre ela, razão
pela qual, a rejeição da mãe é capaz de provocar o humor. A apresentação
visual da amiga (cuja fivelinha no cabelo e a mão na cintura lhe dão um ar de
“mocinha”) acentua a diferença entre as duas.
A situacionalidade dá coerência ao texto à medida que transmite ao
leitor, de forma estereotipada, a imagem da filha como “problemática”, numa
situação que poderia motivar o leitor a aceitar a rejeição.
Observamos, nesse cartum, a estratégia de subversão, semelhante
à estrutura do détournement. A situação apresentada transgride a tradição,
pois a vox populi é de que toda mãe luta pela guarda de um filho num processo
de separação conjugal. Esse procedimento contraria, pois, a moral do senso
comum. A resposta da garota rompe com a expectativa inicial do leitor ao
afirmar que a mãe teve de ficar com ela justamente por ter perdido o processo.
Percebemos que, para a mãe, ficar com a filha, passou a ser uma obrigação,
92
numa espécie de padecimento sem paraíso, negando a máxima de que “ser
mãe é padecer num paraíso”.
A palavra “mãe” é carregada de sentido. Não raras vezes,
ouvimos/lemos em slogans publicitários que “mãe é amor”, que “mãe é aquela
que se sacrifica de todas as formas pelos filhos”, que “mãe é sempre mãe”,
numa espécie de coroação por um papel quase que sagrado. Esse cartum
apresenta, de forma carnavalizada, o descoroamento da figura consagrada da
mãe. A mãe desconsagrada, em vez de lutar, como mártir, pela guarda da filha,
luta por renunciá-la, voltando-se contra o curso “normal”, rompendo com o
previsível.
Concluímos, portanto que, nesse cartum, há uma refutação de vozes
e de ideias pré-construídas que se contrapõem ao “mundo em repouso” que a
ideia de ser mãe veicula. Embasados no fato de que a subversão não tem valor
argumentativo, podemos depreender que, na figura apresentada, existe o
argumento no sentido de se retirar do papel de mãe a imagem santificada de
mulher que tudo suporta em nome dos filhos.
Observamos, no cartum apresentado, semelhança à estrutura do
détournement, na destruição de “verdades” representadas socialmente pelos
marcos de cognições sociais. A subversão, nesse caso, não é feita pelo
intertexto, pois o reconhecimento que se faz do que é subvertido não decorre
da presença de outro texto, mas pela de outro discurso; ou seja, o que se ativa
na memória não é um texto original, mas uma representação. O quadro abaixo
explicita de que forma se dá tal semelhança.
PADRÃO DESVIO PARADIGMA
VIGENTE NOVO
PARADIGMA
A mãe briga para ter a guarda da filha.
A mãe briga para não ter a guarda da filha.
Ser mãe é padecer no Paraíso.
Mãe = mulher santificada
Ser mãe é viver no Paraíso Ser mãe é não padecer Mãe = mulher humana
93
Cartum 12: Superadas 1, p. 72
Quando pensamos no ritual de cumprimento aos noivos em
cerimônia de casamento, temos em mente os desejos, por parte dos
convidados, de felicidade eterna. Todavia, nesta apresentação, a naturalidade
da fala da senhora com a declaração de que haverá uma separação, causa
surpresa ao casal – pelo que percebemos pelos seus olhares – e ao leitor por
duas razões: primeiro, pelo fato de ser esse um cumprimento oposto ao
esperado pela rotina já consagrada; segundo, porque não é um tipo de
constatação que se espera de uma senhora representante de uma geração que
guarda padrões tradicionais em relação ao casamento. A comicidade do cartum
é provocada pela forma discrepante de felicitação no cumprimento aos noivos,
na antecipação do fim do casamento.
Marcado pelo texto visual e verbal, notamos, neste cartum, o discurso
parodístico no palco de luta entre as vozes da sociedade moderna, que tende a
aceitar a efemeridade das relações conjugais e a voz do discurso religioso,
subvertendo os valores cristãos, que pregam o casamento como um contrato
espiritual cujo término, feito no juramento da cerimônia, só pode ocorrer com a
morte.
94
PADRÃO DESVIO PARADIGMA VIGENTE
NOVO PARADIGMA
Em uma cerimônia de casamento, os noivos são cumprimentados com votos de felicidade eterna.
Em uma cerimônia de casamento, os noivos são cumprimentados visualizando-se um término de relação.
Até que a morte os separe, posição imposta pela religião.
Até que a vida os separe, posição aceita pela sociedade moderna.
Cartum 13: Superadas 2, p. 20
O cartum apresenta um casal “comum”, comentando a relação de
outro casal com apresentação estereotipada de união por interesse.
Observamos, no casal alvo do comentário, a feição orgulhosa de um
ostentando o outro na forma do que eles representam: ele, poder; ela, beleza e
juventude.
No julgamento que a mulher faz à união do segundo casal, fica
implícita a ideia de que ela e o parceiro já desconhecem a razão de estarem
juntos. Sua expressão, aliada à confissão de que sente inveja do outro
relacionamento, permite a inferência de que ela vive uma relação desgastada.
Pela expressão “pode ser inacreditável pra você”, é possível inferir
que a fala da mulher é uma fala-resposta, regulada por um possível comentário
crítico do parceiro (e da sociedade) em relação à situação apresentada. Dessa
95
forma, a mulher incorpora a voz do companheiro no enunciado, na polêmica de
seu discurso. O operador argumentativo “pelo menos” modaliza o tom do
enunciado, ao deixar subtendido que existem outros argumentos mais fortes
sendo veiculados. Observamos, portanto, que o enunciado presente nesse
cartum relativiza o discurso da sociedade, numa espécie de discurso crítico
sobre outra forma possível de relação.
Cartum 14: Superadas 2, p. 13
Um homem e uma mulher relacionam a utilização de jóias aos
valores específicos de uma época. A correspondência que a mulher faz entre
“ego” e “umbigo” é uma alusão a expressões detonadoras de egoísmo, do tipo
“Olhar para o próprio umbigo”, “Preocupar-se com o próprio umbigo”, “Voltar-se
para o próprio umbigo”. Essas expressões são comumente utilizadas quando
se quer dizer que alguém é indiferente ao que está a sua volta, que não se
importa com o que acontece de “seu umbigo para fora”. O piercing, hoje, na
moda, é usado por homens e mulheres em diferentes partes do corpo, antes
não imaginadas: língua, nariz, genitália e umbigo. A produção do sentido do
enunciado do cartum dá-se na relação que o leitor faz entre essa prática
discursiva e a utilização de piercing no umbigo. Essa relação só é possível no
entendimento de que a língua desenvolve-se a partir de práticas sociais.
96
Cartum 15: Superadas 1, p. 127
O cartum apresenta dois homens conversando sobre o
relacionamento do primeiro interlocutor com uma moça mais jovem. Com
aparência que revela uma idade muito superior à dela, anunciada por ele como
trinta anos a mais, o homem também é apresentado como baixinho, gordo e
careca. A moça, por sua vez, é caracterizada como jovem, loura e de corpo
bem definido. A expressão “gosta de mim pelo que sou”, dita pelo primeiro
interlocutor, é forma cristalizada em referência à ideia de ser (essência) em
oposição à ideia de ter (possuir). Nesse caso, a crença primeira é de que a
moça gosta dele pelo que ele é e não pelo que ele tem. Essa crença é
valorizada pelo gesto de sua mão no próprio peito, como uma representação
de seu interior. Tal ideia, no entanto, é desviada pela fala do segundo
interlocutor que, de forma irônica, reavalia e transforma a qualidade de “ser” do
amigo como a de um “milionário” (recategorização). A aproximação de sentidos
dos verbos “ser” e “ter” causa efeito cômico ao contrariar o paradigma do
confronto com que, muitas vezes, se apresentam esses verbos.
A forma com que o primeiro interlocutor marca, linguisticamente,
hostilidade à voz social, no uso das expressões “e daí? Hein? Pensem o que
quiserem”, evidencia a presença do aspecto polifônico do enunciado maior do
cartum. A ironia serve, pois, como recurso de demarcação da presença do
outro no discurso.
97
Observamos, nesse grupo de cartuns, que a produção do sentido se
estabelece também no reconhecimento do discurso do outro, instaurado
historicamente pelos sujeitos que, por sua vez, se instauram e são instaurados
por esses discursos.
4.3 Recategorização
Cartum 16: Superadas 2, p. 41
Neste cartum, a esposa recategoriza o “lugar desconhecido” a que
se refere o esposo como as atividades rotineiras no acompanhamento da vida
dos filhos; construindo, de forma irônica, outra versão que possa satisfazer o
desejo do marido. Dessa forma, por meio da desfocalização, a esposa põe em
cena o seu problema: o de não compartilhar com o cônjuge as suas “viagens”
no cotidiano com os filhos.
A leitura do não verbal, com a mão da mulher apontando para si
mesma reforça a ideia de que a questão colocada por ela é que deve estar em
posição focal.
O pressuposto compartilhado referente ao descomprometimento de
muitos pais nesse universo de cuidados com os filhos é responsável pela
construção do constrói o humor.
98
Cartum 17: Superadas 1, p. 20
Uma mulher, desesperada pelo fato de o marido ainda não ter
retornado, recebe da(o) amiga(o) o consolo de que o acontecimento que o
fizera se atrasar possa ser de pouca gravidade. Ao fazer a interpretação da
mensagem, a personagem infere um possível acidente. Ao dizer que tem que
ser otimista, pois pode ter sido só um acidente na estrada, a personagem
recategoriza a situação do possível acidente como uma situação positiva, se
comparada à possibilidade de o marido estar com outra mulher.
A produção do sentido cômico dá-se pela forma com que a
personagem reavalia uma situação trágica, como um acidente, como motivo
para tranquilizar-se.
99
Cartum 18: Superadas 2, p. 27
Ao dizer que, com a separação, a amiga se livrou do marido como
algo de que não utiliza há muito tempo, a segunda personagem recategoriza a
“utilidade” do esposo da outra como um objeto de uso, que, se inútil, deve ser
descartado para o fluir das boas energias, conforme a filosofia do Feng-Shui.
O sentido cômico vincula-se ao saber partilhado sobre os discursos feministas
que, muitas vezes, relegam o homem à posição de objeto de uso doméstico e
sexual.
Observamos que os cartuns 16, 17 e 18, apresentados neste último
bloco, referente à recategorização, são exemplos de como os objetos de
discurso são construídos e reconstruídos durante a interação verbal, atendendo
a um propósito argumentativo.
100
QUADRO SINÓTICO
LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE
PÁGINA
Superadas 1, p. 135 Ufa! Alguma coisa te deixa pior do que uma mulher que não trabalha e fica te pedindo dinheiro para tudo?
Sim, ter uma mulher que trabalha e nunca te pede nada... porque ganha mais do que você...
- Focalização 78
Superadas 1, p. 123 Não deve haver coisa pior do que seu marido te trocar uma mais nova...
Tem sim, Clarinha, que ele te troque por uma da sua idade...
- Focalização 79
Superadas 2, p. 60 Ih, todo aniversário minha vó faz a mesma coisa! Tem coisa pior que ganhar roupa?
Tem... ganhar um joguinho didático...!
- Focalização 81
Superadas 1, p. 64 Ah, estou babando tanto com meu bebê! Foi assim com você? Quando teus filhos eram pequenos, não te dava vontade de comê-los?
...Sim, e depois, quando cresceram, fizeram tanta besteira que às vezes me pergunto por que não comi!
- Focalização 82
Superadas 1, p. 85 Esse papo de que a tecnologia afasta a gente do lado humano é besteira... eu tenho celular, computador, laptop, agenda eletrônica, e--mail...
E continuo com celulite!
- Focalização 83
101
LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE
PÁGINA
Superadas 1, p. 10 ...É que eu gosto da vertigem, da aventura, das emoções fortes, entendeu? E você nunca me expõe a nada...!
Tá legal... Vou te apresentar a meus pais.
- Inferências 86
Superadas 1, p. 138 Quando minha filha me disse que o namorado se dedicava à pintura, eu me acalmei porque imaginei outra coisa, entendeu?
Que pintava quadros, que expunha!
Não, que pintava apartamentos... que trabalhava!
Inferências 87
Superadas 1, p. 113 É casado sim... mas está se separando, sabe?
Uhh! Imagino... Só não se separa porque a mulher está doente e é meio doida, né?
Ééé... Como sabe? Conhece ele?
Inferências 88
Superadas 1, p. 11 Desculpe, doutor, mas... onde é que se injeta colágeno para preencher o vazio existencial?
- - Inferências 89
Superadas 1, p. 145 Conversamos por várias semanas, trocamos e-mails... Ele diz que é alto, moreno e de olhos verdes... mas não sei se devo encontrá-lo!
Não seja desconfiada! E por que não acreditar nele?
...porque eu disse que era magra, alta, ruiva e de olhos cinza...
Inferências 89
102
LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE
PÁGINA
Superadas 1, p. 80 É, meus pais se divorciaram mal pra caramba, sabe? E minha mãe perdeu o processo pela custódia no tribunal...
Ih, que chato! Você a vê...?
Claro, ela teve que ficar comigo...
Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade
91
Superadas 1, p. 72 ...Decidi dar os abajures de presente para que, quando se separarem, cada um possa levar um sem brigar...
É, pode ser inacreditável pra você, mas me dá uma inveja
Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade
93
Superadas 2, p. 20 É, pode ser inacreditável pra você, mas me dá uma inveja...
Pelo menos os dois sabem por que estão juntos...
- Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade
94
Superadas 2, p. 13 ...As jóias sempre foram usadas para enfeitar as partes do corpo que merecem destaque... numa certa época, foram os decotes, em outra as mãos... os brincos também! Para emoldurar o rosto, dar brilho ao olhar...
Ah é? E nestes tempos de tanto individualismo, histeria e ego... onde são usadas?
Onde mais? No umbigo!
Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade
95
Superadas 1, p. 127 ...Sim. Tenho 30 anos a mais, e daí? Hein? Pensem o que quiserem. Enfim... eu sei que ela gosta de mim pelo que sou!
...Um milionário. - Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade
96
103
LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE
PÁGINA
Superadas 2, p. 41 ...Não falo de uma viagem só por viajar, é para conhecer algo novo, ir a um lugar desconhecido...
...Bom, se é assim, você pode levar os meninos ao médico... ou ir a uma reunião da escola...
- recategorização 92
Superadas 1, p. 20 E o que quer que eu pense? São duas da manhã e ainda não voltou para casa! Saiu com uma mulher! Entendeu? Ele tem outra!
Calma, deve ter acontecido alguma coisa...
Ah, tem razão. Tenho que ser otimista. Pode ser só um acidente na estrada!
recategorização 97
Superadas 2, p. 27 O feng-shui é alucinante! Trata de modificar o espaço para alterar nossos destinos, entendeu? Por exemplo... diz que é preciso se livrar de tudo o que você não usa há mais de um ano...
Ahh... Agora entendi por que sua vida mudou. Você se separou?!
- recategorização 98
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embasados nas teorias da Linguística Textual, fizemos, neste
trabalho, um estudo dos mecanismos linguístico-discursivos presentes nos
cartuns de Maitena, responsáveis pela construção do sentido do texto e, por
conseguinte, da comicidade, própria da intenção comunicativa do gênero
trabalhado. A análise foi feita considerando as diversas teorias da Linguística
Textual, as quais orientam nosso olhar para a produção do sentido,
principalmente pela concepção de linguagem adotada por nós, que concebe o
leitor como sujeito do ato de leitura, como um ser social capaz de construir um
sentido para o que lê, num processo de colaboração com o uso efetivo da
língua.
Ao interpretar a linguagem do cartum, todavia, esse sujeito-leitor
pode ou não perceber um movimento cômico que o leve a achar graça no
enunciado, pois isso dependerá da mobilização de seus conhecimentos de
mundo, enciclopédico, linguístico, genérico e textual, quando da interação com
o texto que, no caso do cartum, conjuga-se à imagem. A intencionalidade do
autor em provocar o humor em um texto, portanto, não é o suficiente para
provocar o riso. Cumpre salientar, no entanto, que, sendo o propósito
comunicativo do cartum a provocação do humor, aquele que ri não estará rindo
sozinho, já que, com ele, há os que compartilham da mesma crença.
De maneira geral – e estrategicamente –, na promoção do risível, a
cartunista utiliza-se do diálogo, de forma recorrente, com o intuito de romper,
na interlocução, com as expectativas do leitor em relação a seus
conhecimentos e crenças (frames), conduzindo-o a outra orientação
argumentativa. A partir do jogo lúdico, Maitena instaura a polêmica com a
sociedade, apresentando discursos institucionalizados ao lado de outros que,
por estarem ainda em discussão na sociedade, apresentam-se como novos.
Essa estratégia torna latente o aspecto dialógico a que se refere Bakhtin
(1988), pois sendo o dialogismo o princípio constitutivo da linguagem, o
reconhecimento do discurso alheio passa a ser um pressuposto para a
interação. Nesse ponto, rememoramos as ideias de Bergson (1983)[1940], para
105
quem o riso não se deixa acontecer sozinho, mas em uma interação viva com o
discurso do outro.
Constatamos, pela análise referente à focalização, que um dos
recursos utilizados pela autora para dar comicidade aos seus cartuns é a
ruptura entre as diferentes focalizações que, num primeiro momento,
concentram o leitor em um paradigma discursivo para, depois, desviá-lo para
outro. Os cartuns analisados apresentam, dessa forma, uma caricatura da vida
cotidiana sob um enfoque duplo, permitindo ao leitor a formação de uma nova
compreensão das normas e valores advindos dos discursos sociais. Tal
constatação encontra eco nas palavras de Travaglia (1990), para quem o
humor aparece como uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades
de visão de mundo, gerando conflito ao desorganizar padrões convencionados
quando da busca de uma verdade.
Quanto às inferências, enfatizamos o processo inferencial como
estritamente relacionado a um conjunto de saberes de natureza histórica, social
e cultural, sem os quais não se podem estabelecer relações de sentido. No
caso dos cartuns, as inferências são realizadas quando se é capaz de
apreender as informações disponíveis, não só pelos componentes verbais,
como também pelos não verbais.
Em relação à polifonia, interdiscursividade e intertextualidade,
demos relevância ao processo intertextual e interdiscursivo, bem como
evidenciamos o movimento polifônico. Nos cartuns apresentados nesse bloco
observamos, de forma mais nítida, o entrechocar das vozes sociais.
No tópico referente à recategorização, atentamos para a forma como
os sujeitos representam os objetos do mundo em uma situação discursiva, de
acordo com os pressupostos compartilhados na interação e com outros fatores
contextuais.
Com base nos resultados obtidos da análise, podemos afirmar que o
sentido do texto não está no texto; tem, contudo, sua construção a partir dele
quando o sujeito-leitor é capaz de estabelecer, no momento da interação, as
relações autorizadas por:
a) reconhecimento do discurso do outro (interdiscursividade);
b) focalização;
106
c) forma de utilização do léxico (modalizações/categorização/
recategorização);
d) inferências na busca do implícito;
e) reconhecimento do uso social que se faz da língua;
d) conhecimentos constituídos (de mundo, enciclopédico, textual,
intergenérico e linguístico);
e) propósito comunicativo do gênero;
f) relacionamento dos textos entre si (intertextualidade);
g) conjugação do verbal com o não verbal.
A percepção do jogo linguístico-discursivo que promove o sentido do
humor está, de forma intrínseca, ligada aos fatores acima relacionados.
Em consonância com Possenti (2008), estamos certos de que os
gêneros que pertencem ao domínio humorístico podem ser fontes expressivas
para estudos linguísticos. Dessa forma, consideramos o nosso trabalho
relevante, pois o cartum, dentro desse mesmo domínio (humorístico),
apresenta-se como um gênero de abrangência múltipla à investigação da
construção do sentido. Devido à característica icônico-verbal do gênero em
questão, acreditamos ter contribuído também com a valorização de estudos no
universo da imagem ligada à palavra.
Os resultados não se pretendem conclusivos – haja vista o universo
de possibilidades oferecidas por esse gênero discursivo – e merecem, portanto,
ser complementados por outras pesquisas voltadas ao funcionamento da
língua.
De natureza anárquica – própria do humor que lhe é característico –,
com textos curtos e com o apoio da imagem, o cartum apresenta-se de forma
dinâmica para o leitor, reduzindo-lhe a resistência à leitura. Constitui-se, dessa
forma, em um gênero aliado àqueles que se dedicam ao ensino e à
aprendizagem da língua. Ademais, indaga-se: por que não aprender a língua
rindo?
107
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TEXTO FONTE
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113
APÊNDICE A – Cartuns de Maitena utilizados a título de exemplificação na fundamentação teórica.
CARTUM PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO
EXEMPLIFICADA PÁGINA
Superadas 1, p. 41 ...Mamãe, lembra quando a gente era parecida?
- - Linguagem verbal e não-verbal
22
Superadas 2, p. 86 Você deve achar que sou uma dessas histórias compulsivas que se assanham para qualquer um... e no entanto, na hora da sedução, eu também tenho minha filosofia... “Penso, logo excito.”
- - Linguagem verbal e não-verbal
25
Superadas 2, p. 65 ...Olha, sempre que um cara tem duas mulheres, as duas têm inveja uma da outra. Uma inveja que a outra coma com ele todo dia, vá com ele a toda parte e durma com ele toda noite...
E a outra? ...Que não. Tipos de discurso 31
Superadas 2, p. 10 Sabe qual é a melhor coisa para não se ver velha?
Sei. Não se ver. - Tipos de discurso 32
114
CARTUM PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO
EXEMPLIFICADA PÁGINA
Superadas 1, p. 122 ...Imagino que isso que está na mesa é uma natureza-morta que você vai pintar, né?
- - Conhecimento de mundo
36
Superadas 1, p. 73 Mamãe! Quando lha seu vestido de noiva, você se lembra da igreja, da festa, da valsa, dos presentes?
Não. Lembro de quando ele cabia em mim.
- Frames 37
Superadas 1, p. 131 ...Você diz que não tem o que vestir, mas seu armário está cheio, Carolina... Olha este vestido, por exemplo, é lindo! E há quanto tempo não usa, hein?
...Há uns seis quilos...
- Aceitabilidade (Princípio de cooperação)
40
Superadas 1, p. 146 ...E eu sou o quê, hein? Um seio à esquerda?
- - Intertextualidade 44
Superadas 2, p. 81 Ele não me pede diretamente... Faço porque ele gosta. Por um homem, as mulheres são capazes de qualquer coisa!
É, Paulinha, mas com o sexo não tem que fazer concessões...
Que sexo? Quisera eu! O que faço é ver futebol.
Mudança de script (Teoria de Raskin)
59
Superadas 2, p. 32 Mãe... Por que, se você tira a parte de cima é topless... E se a vovó tira é naturalismo?
- - Categorização 63
115
CARTUM PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO
EXEMPLIFICADA PÁGINA
Superadas 1, p. 80 Mas mãezinha, vocês eram bonecas! Não opinavam, não trabalhavam, não tinham responsabilidades, nem sabiam o que era uma terapia, andavam por aí cheias de celulite, assando massa, visitando amigas e colocando renda em camisolas. Em que mundo viviam?
No Paraíso. - Categorização 64