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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Por que a Lógica deveria se ocupar da rotação?
Como o conteúdo realista de Principles of Mathematics continua a Dialética das
Ciências da fase idealista de Russell
MARCOS AMATUCCI
Tese apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para a obtenção do título de
DOUTOR em Filosofia, área de
Lógica e Filosofia da Ciência,
sob a orientação do Prof. Dr.
Mário Ariel González Porta.
São Paulo
2019
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos a reprodução total ou parcial desta
Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura____________________________________________________________
Data ____________________________________
e-mail: [email protected]
Marcos Amatucci
Por que a Lógica deveria se ocupar da rotação?
Como o conteúdo realista de Principles of Mathematics continua a Dialética das
Ciências da fase idealista de Russell
Tese apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para a obtenção do título de
DOUTOR em Filosofia, área de
Lógica e Filosofia da Ciência,
sob a orientação do Prof. Dr.
Mário Ariel González Porta.
Aprovada em ____/____/________
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Dr. Mário Ariel González Porta (Orientador) – PUC/SP
____________________________________________________
Dr. Edélcio Gonçalves de Souza – FFLCH/USP
____________________________________________________
Dr. Pedro Monticelli – FSB/FAPCOM
____________________________________________________
Dr. Orlando Bruno Linhares – U. Mackenzie
____________________________________________________
Dr. Luiz Marcos da Silva Filho – PUC/SP
Dedico este trabalho aos heroicos membros do
Grupo de Pesquisa Origens da Filosofia Contemporânea.
5
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). Código de financiamento 001. No. de
Processo: 001.88887.151823/2017-00.
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES). Financial code: 001.Process:
001.88887.151823/2017-00
6
Agradeço aqui e serei eternamente grato a
Mário Ariel Gonzalez Porta, por ter-me ensinado Filosofia.
Agradeço aos professores Edélcio Gonçalves de Souza e Pedro Monticelli pelas
oportunas e generosas contribuições por ocasião do exame de qualificação.
Agradeço à amada Cláudia por ter ficado ao meu lado durante todo o doutorado.
E aos meus colegas da PUC e da USP pelas produtivas e agradáveis conversas, sem as
quais eu seria ainda mais ignorante.
7
RESUMO
Principles of Mathematics, de 1903, é tido como o primeiro livro realista de Russell, que
rompe com o idealismo e inicia o projeto logicista, de fundamentação da Matemática pela
Lógica. O objetivo deste trabalho é demonstrar a tese de que Principles of Mathematics,
e o rompimento de Russell com o idealismo britânico, são o resultado direto da resolução
dos problemas encontrados ao longo do programa Dialética das Ciências, que se inicia
em 1895 e culmina com Principles. Seguindo a doutrina neo-hegeliana, os problemas das
ciências são considerados por Russell como antinomias, as quais devem sofrer um duplo
tratamento, o de eliminação das antinomias evitáveis e o da superação das inevitáveis
através de uma transição dialética para uma nova ciência, ciência por ciência. Tais
problemas não encontraram solução no interior naquela doutrina, levando Russell a um
rompimento gradativo com os princípios idealistas. Principles portanto continua a
Dialética das Ciências, não é um novo começo a partir de uma ruptura. Assim, o
conhecimento do programa Dialética das Ciências é fundamental para compreender o
rompimento de Russell com o idealismo, que teve como pivô a Teoria das Relações. O
estudo trata o papel da Dinâmica Racional, presente em Principles e pouco
compreendido, como metonímia da incompreensão geral do caráter de continuidade
existente entre a Dialética das Ciências idealista e a fundamentação da Matemática
realista. O trabalho conclui que Principles não inicia o projeto logicista de maneira
isolada, mas como resultado da resolução das antinomias da Dialética das Ciências.
PALAVRAS-CHAVE: Bertrand Russell; Principles of Mathematics; Dialética das
Ciências; logicismo; Filosofia da Matemática.
8
ABSTRACT
Principles of Mathematics, 1903, is regarded as Russell's first realist book, which breaks
with idealism and begins the logicist project of grounding mathematics by logic. The aim
of this work is to demonstrate the thesis that Principles of Mathematics and Russell's
disruption with British idealism are the direct result of solving the problems encountered
throughout the Dialectic of Sciences program, beginning in 1895 and culminating in
Principles. Following the neo-Hegelian doctrine, the problems of science are considered
by Russell as antinomies, which must undergo a double treatment, the elimination of
avoidable antinomies and the overcoming of the inevitable ones through a dialectical
transition to a new science, science by science. Such problems found no solution within
that doctrine, leading Russell to a gradual break with idealistic principles. Principles
therefore continues the Dialectic of the Sciences, it is not a new beginning from a rupture.
Thus the knowledge of the Dialectic program of the Sciences is fundamental to
understand Russell's break with idealism, which was centred on Theory of Relationships.
The study deals with the role of Rational Dynamics, present in Principles and little
understood, as a metonymy of the general incomprehension of the character of continuity
between the idealistic Dialectic of Science and the foundation of realistic mathematics.
The paper concludes that Principles does not initiate the logistic project in isolation, but
as a result of the resolution of the antinomies of the Dialectic of Sciences.
KEYWORDS: Bertrand Russell; Principles of Mathematics; Dialectics of Sciences;
logicism; Philosophy of Mathematics.
9
SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................................... 7
abstract .............................................................................................................................. 8
1. Introdução – o problema ......................................................................................... 13
1.1. Aρχή και τέλος: caracterizando o idealismo do qual Russell parte, e o realismo
onde chega .................................................................................................................. 18
1.2. O Programa Tiergarten ou a Dialética das Ciências ........................................ 23
2. O neo-hegelianismo herdado por Russell ............................................................... 26
2.1. A recepção do idealismo alemão na grã-bretanha ........................................... 26
2.2 McTaggart ............................................................................................................ 30
2.3 Lotze ..................................................................................................................... 32
2.2. O artigo Russell’s Debt to Lotze de Milkov .................................................... 35
2.3. Discussão ......................................................................................................... 40
3. O Desenvolvimento da Dialética das Ciências ....................................................... 45
3.1. Visão geral do Programa Tiergarten ................................................................ 45
3.2. A transição dialética de uma ciência para outra............................................... 47
3.3. A Dialética das Ciências e as contradições ou antinomias .............................. 48
3.4. A Matemática britânica no Século XIX: referência e intuição ........................ 50
3.4.1. Referencialismo ........................................................................................ 50
3.4.2. Intuitivismo ............................................................................................... 54
3.5. A Aritmética, suas antinomias, e a transição dialética para a Geometria ........ 56
3.5.1. Difficulties of Continuous ........................................................................ 59
3.5.2. Number and Quantity ............................................................................... 71
3.5.3. On Quantity .............................................................................................. 84
3.5.4. Transição dialética .................................................................................... 93
10
3.6. A Geometria, suas antinomias, e a transição dialética para a Cinemática ....... 94
3.6.1. A encruzilhada .......................................................................................... 96
3.6.2. O desenvolvimento da Geometria e as concepções de espaço: Continente e
Grã-Bretanha. ....................................................................................................... 100
3.6.3. A concepção de espaço no século XVII ................................................. 101
3.6.4. Dentro da própria geometria ................................................................... 102
3.6.5. A dificuldade (Geometrias não-euclidianas) .......................................... 106
3.7. O Ensaio sobre os Fundamentos da Geometria ............................................. 112
3.7.1. Foundations of Geometry e Kant ........................................................... 113
3.7.2. As condições de possibilidade da Geometria Projetiva: axiomas .......... 115
3.7.3. As condições de possibilidade da Geometria Métrica: axiomas ............ 125
3.7.4. A Livre Mobilidade ................................................................................ 126
3.7.5. O Axioma das Dimensões ...................................................................... 127
3.7.6. O Axioma da Distância........................................................................... 127
3.7.7. As consequências filosóficas do estudo da Geometria e a transição dialética
132
3.7.8. As contradições da Geometria ................................................................ 134
3.8. A Cinemática e a Dinâmica (Matéria e Movimento) ..................................... 138
3.8.1. Various Notes-I ...................................................................................... 142
3.8.1. Various Notes-III .................................................................................... 145
3.8.2. Various Notes-IV .................................................................................... 147
3.8.3. Various Notes-VI .................................................................................... 147
3.8.4. Various Notes-VII .................................................................................. 152
3.8.5. Various Notes-X ..................................................................................... 152
3.8.6. Various Notes-XI .................................................................................... 153
3.8.7. Various Notes-XII .................................................................................. 154
11
3.8.8. On Dynamics .......................................................................................... 155
3.8.9. On Causality ........................................................................................... 157
4. Conclusão: por que Principles é a CONTINUAÇÃO da Dialética das Ciências por
outros meios .................................................................................................................. 162
4.1. Como Principles continua a Dialética das Ciências ...................................... 162
4.1.1. A trilha dos documentos ......................................................................... 165
4.1.2. A (tortuosa) trilha dos conteúdos............................................................ 172
4.1.3. O problema das relações e a transição para o realismo .......................... 187
4.1.4. Peano e a Lógica de Russell em Principles ............................................ 192
4.1.5. Outras mudanças da Dialética das Ciências para o Principles ............... 208
4.2. Comentários Finais ........................................................................................ 209
5. Referências ........................................................................................................... 212
6. Glossário ............................................................................................................... 218
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 Múltiplas forças atuando sobre um ponto material e sua resultante (exemplo).
........................................................................................................................................ 16
Figura 2 - Razão cruzada da Geometria Projetiva ........................................................ 103
Figura 3 - O Absoluto de Cayley .................................................................................. 105
Figura 4 - Construção do Quadrilátero de Staudt. A partir de Russell (1897). ............ 117
Figura 5 - Figuras qualitativamente similares na Geometria Projetiva. ....................... 120
Figura 6 - Evolução do pensamento de Russell da Dialética das Ciências até Principles.
Fonte: autor.. ................................................................................................................. 164
12
LISTA DE ABREVIAÇÕES
Auto. ………………………... The autobiography of Bertrand Russell Vol. 1: 1872-1914
Difficulties of Continuous… On Some Difficulties of Continuous Quantity
Foundations of Geometry… An Essay on the Foundations of Geometry
Fundamental Ideas………… The Fundamental Ideas and Axioms of Mathematics
Leibniz ……………………… A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz
Mathematical Reasoning…… An Analysis of Mathematical Reasoning being an inquiry…
My Philosophical…………… My Philosophical Development
Notes on……………………… Notes on the Logic of the Sciences
Number and Quantity……… On the Relations of Number and Quantity
On Causality………………… On Causality as Used in Dynamics
On Dynamics………………… Four Notes on Dynamics
On Quantity………………… On Quantity and Allied Concepts
Papers n…………………… The Collected Papers of Bertrand Russell v. n
Principles……………………… Principles of Mathematics (o livro1)
Recent Work………………… Recent Work in the Philosophy of Mathematics
Relations……………………… The Classification of Relations
Various Notes – i…………… Various Notes on Mathematical Philosophy no. i
Why do we regard…………… Why do we regard Time, but not Space, as necessarily a Plenum?
1 Alguns autores abreviam como Principles os rascunhos que antecederam o livro; aqui os rascunhos serão
indicados como tais.
13
POR QUE A LÓGICA DEVERIA SE OCUPAR DA ROTAÇÃO?
“… how, or why, should Logic care about rotation?”
Grattan-Guinness “The search for Mathematical Roots
1870-1940”
1. INTRODUÇÃO – O PROBLEMA
Em seu The search for Mathematical Roots, Grattan-Guinness estranha o fato de que o
livro de Russell Principles of Mathematics culmine com uma parte inteira (Parte VII,
“Matéria e Movimento”) sobre mecânica, ou, como prefere Russell, utilizando o termo
tradicional, Dinâmica Racional. Diz Grattan-Guinness:
6.7.5 Parte 7, Junho de 1902: dinâmica sem estática2, e dentro da
Lógica? [Título] Esta parte, ‘Matéria e Movimento’, foi montada
principalmente por importação [do rascunho de 1899-1900] de
‘Principles’ (§6.3.3); uma lâmina [do manuscrito] é datada de Junho de 1900. Ele tratou de alguns aspectos da dinâmica, seguindo
estudos de 1898 (Papers 2, 83-110); por algum motivo ignorou a
estática. Em adição a conter muito da parte mais antiga do texto, é
sua parte mais fraca, além da mais curta (34 páginas); [...]. Pode-se
suspeitar de um compreensível desejo de terminar este enorme e
cansativo livro o mais cedo possível. GRATTAN-GUINNESS, 2000
p. 322.
Dois parágrafos abaixo, continua:
[...] a empreitada tomada nesta Parte parece boa demais para ser
verdade, ou mais especificamente, para ser logicista; como, ou por
que, a Lógica deveria ocupar-se da rotação? id. ib.
Este estranhamento de Grattan-Guinness segue uma interpretação standard, em certo
ponto incentivada pelo próprio Russell3, de que este, uma vez tendo rompido com o neo-
hegelianismo em favor de uma visão realista por volta de 1899, abandona completamente
seus projetos anteriores e levanta em Principles of Mathematics (Principles) um projeto
logicista para fundamentar a Matemática (incluso a Geometria), uma vez que estas não
podem mais contar com as intuições puras de espaço e tempo para sua fundamentação.
2 Não trataremos aqui da estática. Contudo, o próprio Russell explica este ponto: “Agora, a força só pode
se manifestar pela produção de movimento: a concepção estática de equilíbrio de forças apenas se deduz
da concepção dinâmica.” RUSSELL, 1959 p. 45. 3 Quando este dá conta deste período no seu autobiográfico My Philosophical Development (My
Philosophical), por exemplo.
14
Segundo esta visão, a “virada” realista e o projeto logicista de Russell fazem com que
este rompa definitivamente com qualquer resquício de hegelianismo e kantianismo.
Grattan-Guinness toma como comprovação de que Russell reconhece seu suposto erro de
introduzir dinâmica em seu projeto logicista, o fato de que esta “desaparece” no Principia
Mathematica, cerca de dez anos depois.
O objetivo principal deste trabalho é demonstrar a tese de que: Principles of
Mathematics, e o rompimento de Russell com o idealismo britânico, são o resultado
direto da resolução dos problemas da encontrados ao longo do programa Dialética das
Ciências. Tais problemas não encontraram solução no interior naquela doutrina, tendo
sido a teoria das relações o ponto fulcral do rompimento. Principles portanto continua a
Dialética das Ciências, não é um novo começo a partir de uma ruptura. Esta é a tese
central.
A compreensão do Programa Tiergarten4 é fundamental para compreender o rompimento
de Russell com o idealismo, e a importância de sua Teoria das Relações neste
rompimento; o papel da Dinâmica Racional presente em Principles é justamente o de
evidenciar esta ligação, estando ali presente como órgão vestigial, provavelmente em
desuso, mas que comprova os caminhos da evolução do organismo.
Assim, o tratamento de matéria e movimento é continuação de um programa iniciado em
sua fase idealista, e é este o motivo de constar de Principles.
A passagem da fundamentação Lógica da Matemática, principalmente os estudos sobre o
continuum5 e o infinito, e em particular da Geometria, para o tratamento de matéria e
movimento; a axiomatização e a busca de ferramental lógico para a fundamentação da
Matemática consistem em uma continuação consequente da resolução dos problemas da
Geometria encontrados no Programa Tiergarten.
4 Ou “Dialética das Ciências”. O projeto é assim chamado por Russell e os manuscritos são agrupados sob
esta égide em Papers 2. Neste estudo trataremos indistintamente o projeto por Programa Tiergarten ou
Dialética das Ciências. 5 Russell utiliza os termos em Latim continuum e o plural continua, manteremos esta grafia no caso dos
substantivos, utilizando os termos em Português contínuo/a/os/as para os adjetivos. Esta regra será quebrada
quando falarmos do “contínuo-numérico” (number-continuum), em On Quantity mais à frente, que é outro
tipo de continuum, a saber, a uma série infinita de números, e não uma quantidade.
15
A compreensão do Programa Tiergarten e do papel da Dinâmica Racional é fundamental
para compreender o contexto no qual se inicia o projeto logicista de Russell, pois este
projeto, neste período, é apenas parte do projeto mais geral de resolver de maneira realista
os problemas encontrados em sua fase idealista (não obstante possa eventualmente ter-se
tornado o centro de suas preocupações num período mais à frente).
Ainda, em sua crítica à Parte VII do Principles 6, Grattan-Guinness, apoiando-se numa
resenha de Hardy do Principlespara o Suplemento Literário do Times, aponta um
“pressuposto obviamente errado” sobre causalidade no interior da discussão sobre a
Dinâmica:
No próximo Capítulo Russell busca estabelecer cadeias causais
como implicações; infelizmente ele faz a pressuposição obviamente
errada de que ‘de um suficiente [finito] número de eventos em um
suficiente número de momentos, um ou mais eventos a um ou mais
momentos podem ser inferidos’ (p. 478). (id. ib)
Esta crítica de Grattan-Guinness vem explicitamente (p. 329) da resenha de Hardy. Nela
este, após afirmar que, do ponto de vista do projeto logicista, Russell “parece ter provado
o seu ponto”, diz o seguinte sobre a Parte em tela:
Mas a Dinâmica do Sr. Russell não nos parece tão boa; e em
particular sua explicação de causalidade parece definitivamente
errada. ‘Causalidade é o princípio em virtude do qual a partir de um
suficiente número de eventos em um suficiente número de momentos
um ou mais eventos em um ou mais novos momentos podem ser
inferidos.’ E o Sr. Russell segue a explicar que na dinâmica real,
nossos dados devem ser o todo do estado do mundo em dois
momentos de tempo, e de que destes dados seu estado a qualquer
outro momento pode ser inferido. Mas certamente isto é
matematicamente não-verdadeiro. É suficiente matematicamente
saber as posições e velocidades de todas as partículas do mundo a
qualquer momento. O Sr. Russell, banindo a velocidade, necessita
substituí-la por mais dados de posições. Mas para fazer isso
necessita-se não de mais um conjunto de posições, mas de um
infinito número de tais conjuntos, pois a velocidade de uma partícula
pode apenas ser calculada a partir de um conhecimento de suas
posições em infinitos momentos de tempo [at infinitely many times].
[...] Se uma partícula for projetada verticalmente, podemos saber sua
posição se soubermos sua velocidade. Mas não podemos calcular seu
movimento se soubermos apenas sua posição original e sua posição
a um tempo subsequente. Suponha que ela tenha sido projetada do
solo, e tomemos um segundo momento no qual ela encontre o solo
6Seguimos aqui uma notação mnemônica para as obras de Russell, explicitada na Lista de Abreviações, que
se encontra logo após o Sumário.
16
novamente. Como podemos dizer que ela não esteve em repouso?
HARDY, 1903 pp. 265-266.
Em que pese que a preocupação de Hardy pertencer à Cinemática, que deve examinar a
trajetória, e não à Dinâmica, que trata das causas do movimento, vamos, em consonância
com esta crítica adicional da Parte VII mostrar também que esta concepção de causalidade
na dinâmica de Russell, correta ou errônea, também é fruto da resolução de problemas
metafísicos do período idealista, iniciados no Programa Tiergarten, e continuados em sua
fase realista, principalmente em seus estudos sobre Leibniz. Neste, Russell explicita uma
antinomia (como chama) sobre a atuação de múltiplas forças sobre um ponto. A antinomia
consiste no fato em que múltiplas forças reais atuando consecutivamente sobre um ponto
não causam um efeito real, mas a resultante, que não é real, é o efeito observável daquelas
causas. Isto, segundo ele, coloca em questão causalidades de eventos individuais (que
podem não ter efeito). Vide Figura 1.
Figura 1 Múltiplas forças atuando sobre um ponto material e sua resultante (exemplo).
A tentativa de resolver esta antinomia resultou na formulação de causalidade que
prevaleceu em Principles. Ainda, a compreensão do projeto Tiergarten lança luz sobre as
razões que teriam levado Russell a trocar o idealismo pelo realismo, outras do que
simplesmente “seguir Moore”, conforme ele mesmo declara em My Philosophical
Development (My Philosophical).
Em My Philosophical, Russell reproduz alguns textos que classifica como “A Dialética
das Ciências”, onde se vê de maneira muito resumida a ligação que faz entre Geometria
e dinâmica. Trata-se da relatividade do espaço com relação a um corpo: um triângulo num
espaço geométrico7 deve poder “mover-se” para outra região sem perder suas
propriedades. Mas na Geometria as figuras não se “movem” de fato, pois o movimento
pressupõe força aplicada a uma matéria.
Agora, a força só pode se manifestar pela produção de movimento:
a concepção estática de equilíbrio de forças apenas se deduz da
7 De curvatura constante; mas a discussão mais elaborada da Geometria e dos tipos de espaço será realizada
mais adiante. Aqui expomos a ideia geral de Russell a este respeito, no livro não-técnico My Philosophical.
Resultante
F4 F3 F2
F1
17
concepção dinâmica. Portanto, a Geometria envolve considerações
de matéria, e matéria deve ser considerada primariamente como
aquilo que produz movimento em outra matéria [...] RUSSELL,
1959 pp. 44-45.
A compreensão do que acontece aqui requer o exame deste conceito de “matéria” do qual
Russell se utiliza para atacar o problema que encontrou. Este problema já aparece (não
exatamente com esta formulação) em seu estudo sobre Geometria, apresentado como tese
de fellowship para o Trinity College, Cambridge: An Essay on the Foundations of
Geometry (Foundations of Geometry). É neste estudo que os problemas da dinâmica
primeiramente se apresentaram a ele, e foram tratados sob a perspectiva idealista. Mais
tarde, depois da “virada” realista, eles reaparecem no seu A Critical Exposition of the
Philosophy of Leibniz (Lebniz) sob a forma do paradoxo da aceleração resultante de várias
acelerações – que dará origem à estranha formulação de causalidade que vemos no
Principles.
Russell explicita – de forma ainda mais resumida – a continuidade destas questões no
Prefácio do Principles:
Há cerca de seis anos atrás, eu comecei uma investigação sobre a
filosofia da Dinâmica. Eu fui de encontro à dificuldade de que,
quando uma partícula é sujeita a várias forças, nenhum dos
componentes da aceleração realmente ocorre, mas apenas a
aceleração resultante, da qual aquelas são partes; este fato tornou
ilusória a causalidade de particulares por particulares tal qual é
afirmada, à primeira vista, pela Lei da Gravitação. Parece também
que a dificuldade relativa ao movimento absoluto é insolúvel numa
teoria de espaço relacional. A partir desses dois fatos eu fui levado a
um reexame dos princípios da Geometria, e daí à filosofia da
continuidade e do infinito, e daí a uma perspectiva de descobrir o
significado de qualquer [any] na Lógica Simbólica. RUSSELL, 1905
pp. xvi-xvii.
Nosso intento é desenvolver estes elementos aqui esboçados, dando conta de suas
dificuldades técnicas, e mostrar a continuidade que estes problemas oferecem, de cujas
soluções o levaram até o Principles.
18
1.1. Aρχή και τέλος: caracterizando o idealismo do qual Russell parte, e
o realismo onde chega
Gostaríamos de escrevem em um parágrafo que o idealismo de Russell era assim e assim,
e em outro parágrafo que o posterior realismo de Principles era assim e assim. Entretanto,
aqui não há preto e branco, mas uma grande quantidade de tons de cinza de fronteiras
embaçadas.
O caráter especificamente britânico do neo-hegelianismo ao qual Russell explicitamente
se filiava antes de 1900, é caracterizado no próximo Capítulo. Veremos que, apesar das
declarações em contrário, Russell estava mais próximo de Kant do que de Hegel. Em My
Philosophical, declara:
Toda vez que Kant e Hegel estavam em conflito, eu tomava o lado
de Hegel. Eu estava muito impressionado pelo Metaphysische
Anfangsgrüde der Naturwissenschaft de Kant e produzi elaboradas
notas sobre ele... My Philosophical, p. 42.
(Ou seja, Russell mal acaba de declarar-se mais hegeliano do que kantiano e
imediatamente passa a falar deste e não daquele. Este trecho é uma metáfora do
relacionamento de Russell com os dois idealistas alemães.)
O fato é que Russell nunca foi muito afeto ao monismo; tendo sido introduzido, logo que
adentrou Cambridge em 1890, ao idealismo por McTaggart, o qual é declaradamente
pluralista (veja-se citação do próprio na seção com seu nome). Mais tarde, mesmo antes
de ter uma teoria das relações completamente desenvolvida, Russell já criticaria as
limitações das relações dentro do monismo de Bradley, o qual as afirmava
intrinsecamente redutíveis a adjetivos, tendo o status de mera terminologia útil.
Não obstante Russell define McTaggart como hegeliano; o que não é de se estranhar,
considerando-se a nebulosa mistura em que o neo-hegelianismo britânico amalgamava
Kant e Hegel
Bradley se filia ao idealismo absoluto de Hegel: monista, e cujo Absoluto é inatingível
pela mente humana, motivo pelo qual nosso pensamento é intrinsecamente
autocontraditório, posto que parcial, e assim é obrigado a aderir à doutrina de verdades
parciais, ou gradação de verdades.
.
19
Todos esses aspectos delineados acima serão objeto de detalhamento no próximo
Capítulo. Por ora vamos caracterizar o idealismo e o posterior realismo de Russell.
Quando define seu idealismo transcendental, Kant o faz em contraposição ao de Berkeley,
o qual caracteriza como dogmático. Em suas próprias palavras:
... tudo o que é intuído no espaço e no tempo, portanto todos os
objetos de experiência possível para nós, são apenas fenômenos, i.e.,
meras representações que, tal como são representadas – como seres
extensos ou séries de modificações –, não têm uma existência
fundada em si mesma fora de nossos pensamentos. A essa doutrina
eu denomino idealismo transcendental. (...) Nosso idealismo
transcendental, pelo contrário, concede que os objetos da intuição
externa, exatamente como são intuídos no espaço, são também reais,
assim como todas as modificações no tempo, tal como o sentido
interno que as representa. Pois, uma vez que o espaço já é uma forma
daquela intuição que denominamos externa, e sem objetos no mesmo
não haveria qualquer representação empírica, nós podemos e
devemos assumir como reais os seres extensos nele, e o mesmo vale
para o tempo. KANT, 1989 (CRP) B 520.
Não é claro que Russell adote o idealismo transcendental assim descrito, ipsis literis. Não
é claro por um motivo: nem em sua fase idealista nem no realismo de Principles, Russell
está preocupado com o mundo exterior ou sua epistemologia, com exceção do tratamento
do espaço. Esta preocupação seria de Moore. A ontologia russelliana – bastante discutida
– restringe-se aos objetos da Lógica e da Matemática. O que se pode dizer, de forma
negativa, é que Russell se afasta do monismo de Hegel (ao menos em sua versão
britânica), pouco fala sobre o Absoluto, e quando o faz é para criticar Bradley, novamente
no contexto da teoria das relações. Pode-se, temerosamente, afirmar por exclusão que o
idealismo de Russell está mais próximo do idealismo transcendental de Kant.
Em que pese que em My Philosophical Russell afirme que o projeto da Dialética das
Ciências “deveria terminar com uma prova de que toda a realidade é mental” (p. 42),
devemos lembrar que este tardio livro de memórias foi escrito após Análise da Matéria e
Análise da Mente, onde Russell volta sua atenção a questões ontológicas mais gerais, já
em sua perspectiva realista. O fato é que, em sua fase idealista, Russell está focado nos
objetos da Matemática.
No tratamento do espaço, Russell tateia neste período entre diversas concepções, desde a
kantiana “adaptada” para as geometrias não-euclidianas em Foundations, até mera
possibilidade de movimento (no caso do espaço vazio) numa concepção próxima de
Leibniz, passando pelo Plenum, próximo a Descartes. Por fim, em Principles termina por
20
adotar o espaço absoluto de Newton sob a argumentação de que é a concepção que pode
ser pensada com menos contradições.
Seria mais sensato afirmar que Russell adota concepções idealistas, de Hegel (mormente
no que concerne à dialética e, muito importante neste período, à mereologia); e de Kant,
principalmente no que se refere ao método de discussão de condições de possibilidade.
Tanto a dialética e a mereologia, quanto o método abdutivo de pesquisar condições de
possibilidade, são ontologicamente neutros no que se refere ao mundo exterior. O que isto
significará na prática filosófica de Russell neste período ficará mais claro ao longo do
trabalho.
Ainda, como veremos em Milkov, mais à frente, a partir de 1896 Russell aproxima-se
gradativamente do idealismo teleomecanista de Lotze, à medida em que toma contato
com a obra deste filósofo; sendo um dos principais eventos o curso de Lotze ministrado
por McTaggart ao qual Russell atende no início de 1898.
A situação não é muito diferente no que diz respeito à sua adesão ao realismo, que
mostraremos ao longo do trabalho ter sido fruto do desenvolvimento interno de sua
filosofia, na busca da resolução das antinomias das ciências, em que se afasta
gradativamente das concepções idealistas e aproxima-se das concepções realistas, puxado
pelo problema do pluralismo na teoria das relações.
Assim como Hegel e Kant são misturados no neo-hegelianismo britânico, muitas vezes
Moore e Russell são assim vistos no que diz respeito ao realismo. Moore é quem estava
preocupado com o mundo exterior, como expressa no The Refutation of Idealism
(MOORE, 1903). Lá Moore trata da metafísica do mundo “externo”, contrapondo um
mundo material (como chama) ao esse est percipi:
Não há, portanto questão de como “sair do círculo de nossas próprias
ideia e sensações”. Meramente ter a sensação já é estar fora daquele
círculo. Significa conhecer algo que é tão verdadeiramente e
realmente não uma parte da minha experiência, quanto qualquer
coisa que eu jamais conhecer. MOORE, 1903, p. 451
Este trecho denota a preocupação de Moore com o idealismo. Russell por sua vez
preocupava-se mais com o pluralismo, que diretamente afetava sua teoria das relações:
Moore estava mais preocupado com a refutação do idealismo,
enquanto eu mais interessado na rejeição do monismo. Os dois
estavam, no entanto, bem proximamente conectados. Eles estavam
conectados através da doutrina das relações, a qual Bradley havia
21
destilado a partir da filosofia de Hegel. Eu chamei esta a ‘doutrina
das relações internas’ e eu chamei minha visão de ‘doutrina das
relações externas’8. A doutrina das relações internas sustentava que
toda relação entre dois termos expressa, primariamente,
propriedades intrínsecas dos dois termos e, em última análise, a
propriedade do todo o qual os dois compõem. My Philosophical, p.
54.
É possível imaginar a colisão que Russell teve, a partir de uma doutrina de relações
internas, com a antinomia dos pontos, os quais não têm propriedades intrínsecas, e só
podem ser definidos por meio de relações espaciais.
O tipo de realismo que Russell tem ao escrever Principles claramente está mais aplicado
aos objetos da Lógica e da Matemática do que ao mundo exterior. Começa a desenvolver
um realismo platônico, no que acompanhará Frege, e no Prefácio de Principles revela
algumas evidências de platonismo, cuja adoção ainda atribui a Moore. Não obstante,
como os termos de suas proposições denotam, e denotam um mundo plural, o denotado é
um objeto do mundo independente da mente; então quando suas proposições se referem
a termos do mundo, referem-se a um mundo que possui objetos independentes entre si e,
em nossa interpretação, do sujeito que considera a proposição. Mas esta última parte é,
referente ao mundo exterior, é uma interpretação; o idealismo de McTaggart poderia
acomodar-se objetos externos plurais e independentes entre si. O que é certo é o realismo
platônico e o pluralismo de relações irredutíveis a adjetivos.
No que diz respeito às questões de Filosofia, minha posição, em
todos os aspectos principais, é derivada do Sr. G. E. Moore. Eu
aceitei dele a natureza não-existencial das proposições (exceto tais
em que aconteça afirmarem existência), e sua independência de
qualquer mente conhecedora (knowing mind); também o pluralismo
no que diz respeito ao mundo, ambos, aqueles de existentes e aquele
de entidades, como composto por um número infinitamente grande
de entidades mutuamente independentes, com relações as quais, são
finais (ultimate), e não redutíveis a adjetivos de seus termos ou do
todo o qual eles compõem. Principles, p. xviii.
O platonismo se revela na descrição de proposições independentes da mente conhecedora.
Não são reais (não se localizam no espaço e no tempo), mas são objetivos.
8 Conforme veremos, a doutrina de Bradley é mais ampla do que Russell interpreta, admitindo relações
“externas” para objetos suficientemente distantes para serem considerados partes de “todos” diferentes,
mesmo porque qualquer todo que não o Absoluto é para Bradley uma abstração capaz apenas de suportar
gradações de verdade.
22
Há ainda a reconhecida influência de Lotze, não só sobre Russell, mas sobre todos os
idealistas britânicos. Esta influência e suas características são extensamente discutidas no
próximo capítulo.
Em resumo podemos caracterizar o idealismo de Russell como composto de elementos
do realismo transcendental de Kant, principalmente; eivado de traços do idealismo
absoluto de Hegel aqui e ali; e seu realismo, principalmente um realismo platônico do que
diz respeito aos objetos da Lógica e da Matemática, possivelmente estendido aos objetos
reais, mas que certamente não eram o centro das preocupações de Russell no período aqui
descrito.
23
1.2. O Programa Tiergarten ou a Dialética das Ciências
Em um trecho bastante citado9 de My Mental Development, Russell conta sobre seus
planos para o trabalho futuro:
Eu recordo uma manhã de primavera quando eu caminhava pelo
Tiergarten10, e planejava escrever uma série de livros em filosofia
das ciências, crescendo gradualmente em concretude quando eu
passasse da Matemática para a Biologia; eu pensava que também
escreveria uma série de livros sobre questões sociais e políticas,
crescendo gradualmente em abstração. Por último eu atingiria uma
síntese hegeliana num trabalho enciclopédico tratando igualmente de
teoria e prática [practice]. O esquema era inspirado por Hegel, e
ainda assim algo dele sobreviveu à mudança em minha filosofia.
RUSSELL, 1944, p. 11 [nossa ênfase].
Embora Russell não precise qual manhã foi essa, neste trecho autobiográfico ele está
relatando o período entre 1894 e 1898: “Nos anos de 1894 a 1898, eu acreditava na
possibilidade de provar, através da Metafísica, várias coisas sobre o Universo que meus
sentimentos religiosos me faziam pensar importantes.” [p. 11]; período muito extenso,
tratando-se de Russell. Entretanto sabemos que Russell graduou-se em Cambridge em
1894 e casou-se em dezembro desse ano; e após sua lua-de-mel atendeu a cursos de
economia na Universidade de Berlim a partir de janeiro de 1895 (sua esposa tinha planos
de participar ativamente de reformas políticas e sociais junto com seu marido11), e então
passou “a maior parte do ano de 1895 em Berlim, estudando economia e a Social-
Democracia Alemã” [p. 10]. Portanto, seu passeio pelo Tiergarten deve ter ocorrido neste
ano.
Não obstante, seus manuscritos do ano de 1894, conforme organizados pela McMaster
University nos The Collected Papers of Bertrand Russell12, ainda são trabalhos escolares
para as disciplinas que cursou (por exemplo, Paper on History of Philosophy para a
disciplina de Ward, onde comenta criticamente Descartes, Leibniz, Locke e Hume; e
outros manuscritos de caráter estudantil). Os trabalhos classificados pelos organizadores
de Papers 1 (BLACKWELL et al., 1983) como “profissionais” começam em 1895.
Embora haja um punhado deles neste volume (principalmente, os primeiros escritos sobre
9 Por exemplo, em Griffin, The Tiergarten programme GRIFFIN, 1989 também presente em GRIFFIN,
1991. 10 Parque localizado no centro de Berlim. 11 Cf. GRIFFIN, 2003. 12 Doravante mencionados como Papers seguidos do volume.
24
Geometria que ensaiavam seu Foundations), no Papers 2 (GRIFFIN; LEWIS, 1990) os
organizadores dedicam toda uma Parte denominada The Dialectic of the Sciences (A
Dialética das Ciências), seguindo o nome que o próprio Russell lhes atribuiu em My
Philosophical. Estes manuscritos, em adição àqueles de Geometria de Foundations e
Papers 1, constituem o “core” da produção idealista do programa Tiergarten.
A ideia do programa era suplantar as contradições das ciências individuais (conforme a
concepção neo-hegeliana de ciências) numa síntese dialética de todas as ciências. Esta
ideia é desenvolvida mais adiante.
Neste período Russell chama-se a si próprio de hegeliano “de pleno direito” (“full-fledged
Hegelian”):
Eu terminei meu livro sobre a fundamentação da Geometria em
1896, e passei imediatamente para o que eu pretendia ser um
tratamento similar na fundamentação da Física, tendo a impressão de
que os problemas relativos à Geometria estavam resolvidos. Eu
trabalhei na fundamentação da Física por dois anos, mas a única
coisa que eu publiquei que expressam minha visão daquele período
foi um artigo sobre número e quantidade [...] Eu era nesse tempo um
hegeliano de pleno direito, e almejava a construção de uma Dialética
das Ciências, a qual deveria terminar com a prova de que toda a
realidade é mental. Eu aceitei a visão hegeliana de que nenhuma das
ciências é realmente verdadeira, uma vez que todas dependem de
alguma abstração, e toda abstração leva, mais cedo ou mais tarde, a
contradições. My Philosophical, pp. 41-42.
Entretanto, é consenso entre os comentadores que suas principais influências são os neo-
hegelianos13 ingleses Bradley, McTaggart, James Ward, e Lotze. Do idealismo alemão
ele se vale mais de Kant do que de Hegel, a medir pela quantidade de citações14.
No caso do programa Tiergarten, é de McTaggart a interpretação de que uma teoria
completa do Absoluto seria possível (em contraposição a Bradley que acredita que não é
possível), e supõe-se que a ideia de uma Dialética das Ciências que culminasse com uma
metafísica do Absoluto seja uma influência desta interpretação, e não de Hegel
diretamente.
13 Utilizaremos o termo neo-hegelianos, novamente seguindo Griffin, para caracterizar o hegelianismo
anglo-saxão tal qual influenciou Russell. Claro está que, tratando-se de Filosofia, evidentemente não se
trata de um bloco homogêneo. Bradley guarda importantes divergências com McTaggart e Ward,
explicitadas no texto na medida do necessário; e Russell tomará elementos ora de um ora de outro. O
próximo Capítulo tratará do movimento neo-hegeliano em maior detalhe. 14 Griffin, op. cit.
25
Os documentos agrupados em Papers 2 sob o título de “A Dialética das Ciências” são em
número de 16 e consistem nos seguintes:
1) Nota sobre a Lógica das Ciências – (circa 1896)
2) Várias Notas sobre a Filosofia da Matemática (1896-1898). Estas notas são
numeradas em algarismos romanos, de I a XVII. Iniciam-se justamente com a
transição da Geometria para a Dinâmica, passando pela discussão do contínuo no
espaço e tempo, e terminando com o a priori e as categorias na Matemática.
3) Quatro Notas sobre a Dinâmica (circa 1896)
4) Comentário sobre Hannequin, Essai critique sur l’hypothèse des atomes dans la
Science contemporaine (1896)
5) Sobre algumas dificuldades da Quantidade Contínua (1896)
6) Comentário sobre Couturat, De l’Infini mathématique (1897)
7) Sobre as Relações de Número e Quantidade (1897)
8) Movimento em um Plenum (1897)
9) Por que consideramos tempo, mas não espaço, como necessariamente um
Plenum? (1897)
10) Comentários sobre Love, Theoretical Mechanics (1898)
11) Sobre a causalidade como usada na Dinâmica (1898)
12) Sobre a Quantidade e conceitos afins (1898)
13) A Classificação das Relações (1899). Este artigo lido na Sociedade Aristotélica já
demonstra um rompimento com o neo-hegelianismo, embora não seja considerado
pelos comentadores como o primeiro a fazê-lo (o primeiro seria “Seems, Ma’am?
Nay, it is!” de 1897).
No Papers 1, uma série de trabalhos de 1895 e 1896, numerados de 40 a 44, são agrupados
sob o título Parte VI – Fellowship e primeiros artigos profissionais, os quais iniciam-se
com a revisão para o Mind do livro de Heymans. Devido à unidade temática – tratam da
Geometria e preparam o trabalho apresentado para sua Fellowship em Cambridge (bem
como denotam as transformações no pensamento de Russell no período), o Foundations
of Geometry – são aqui tomados como parte do Programa Tiergarten.
14) Observações sobre Espaço e Geometria (On Space)
i. Introdução
ii. Introdução alternativa ou suplementar
iii. Nota. Sobre o significado de aprioridade tal como aplicada à Geometria
26
15) A Lógica da Geometria.
16) O a priori na Geometria [1896]
Nossa análise deste material será mais detalhada nos tópicos relativos às teses objetivadas,
e apenas descritivo onde não disser respeito a elas. De maneira geral, analisaremos o
necessário para responder a Grattan-Guinness sobre a ligação entre a Parte VII do
Principles e a Filosofia da Matemática, tomando esta ligação como metonímia da
trajetória de Russell até Principles.
Para facilitar o entendimento do caminho percorrido nos manuscritos, que muitas vezes
têm um caráter de rascunho, com ideias tateando antes de chegar a uma conclusão mais
definitiva, vamos adiantar onde Russell vai chegar no desenvolvimento da Geometria.
O surgimento das Geometrias não-euclidianas (que Russell chama de Metageometria, no
singular), coloca em questão o caráter apodítico da intuição pura de Kant, uma vez que
Kant identifica a intuição pura de espaço com o espaço euclidiano. A tese de Russell
consiste em separar os axiomas que podem ser comuns a todas as Geometrias, e
estabelece-los como “logicamente a priori”, e, portanto, certos. Quanto aos axiomas
específicos da Geometria euclidiana, Russell irá considerá-los “empíricos” e apenas
“aproximados”. O “aproximado” deriva do fato da Geometria euclidiana poder ser
considerada uma aproximação de qualquer outra Geometria desde que sua curvatura não
seja muito acentuada. Como a Geometria só é possível em espaços de curvatura constante
(caso contrário o Princípio da Livre Mobilidade é ferido), a Metageometria poderá ser
considerada uma aproximação da Geometria euclidiana. Com esta estratégia Russell
reformula a intuição pura de espaço de Kant em uma “sensação de espaço”, uma vez que
resultados aproximados são característica de eventos sensoriais, e não de intuições
puras.
Esta forma final, porém, só é atingida no Foundations of Geometry publicado.
2. O NEO-HEGELIANISMO HERDADO POR RUSSELL
2.1. A recepção do idealismo alemão na grã-bretanha
O neo-hegelianismo britânico é um idealismo tardio e bastante peculiar, se comparado ao
alemão. Ele surge como reação da Filosofia aos ataques do materialismo que, embora de
pouco fundamento filosófico, leva a opinião pública para um realismo ateu alimentado
27
pelo avanço da ciência e da técnica, colocando em cheque a religião e a própria
importância da Filosofia. Esta intenção é explícita na obra de Sterling (O Segredo de
Hegel), introdutor pioneiro de Hegel aos britânicos.
Não é possível aqui esgotar este assunto, mas ele é importante para o entendimento do
projeto de Dialética das Ciências de Russell, das antinomias das ciências encontradas por
ele (e, muitas vezes, do porquê ele as considerava antinomias), e de como a doutrina das
relações internas obstruiu caminho das soluções, levando Russell, depois de esgotadas
outras tentativas, ao rompimento com ela e posteriormente com o idealismo. Sem o
quadro de referência do neo-hegelianismo britânico muitas destas questões sequer fazem
sentido.
O influxo do idealismo alemão na Grã-Bretanha tem início na segunda metade do Século
XIX, “uma geração inteira após a morte de Hegel” (METZ, 1930 p. 237). Passmore
(PASSMORE, 1966) fala em uma inversão de papéis: o idealismo nasce nas ilhas em seu
ocaso no continente. Ali, o empirismo viceja, a Filosofia realiza a volta a Kant, e resta
pouca metafísica para inspirar os britânicos. Entre os metafísicos remanescentes está
Lotze, sendo este um dos motivos de sua grande influência no neo-hegelianismo britânico
(além, é claro, do valor de seu trabalho).
Este influxo não foi uma invasão completamente estrangeira, na medida em que veio
atender a necessidades internas da filosofia britânica de oferecer respostas ao
materialismo, conforme mencionado acima. Segundo Metz (op. cit.), o pensamento
idealista na filosofia britânica foi precedido por uma correspondente atmosfera intelectual
na literatura: Coleridge estudou Kant na Alemanha e foi professor e amigo de Green; este
foi seu executor literário. Influência semelhante exerceu Carlyle. “Foi a partir destas
direções mais do que de círculos estritamente filosóficos que o novo movimento recebeu
seu ímpeto mais forte.” (id. ib.).
Metz acredita que o movimento idealista britânico avançou por etapas. O primeiro
estágio, dos pioneiros, ocorre na década de 1870 e consiste em superar problemas de
tradução, construir comentários e incorporar o idealismo alemão no currículo acadêmico;
ao mesmo tempo em que o tradicional empirismo britânico era combatido com novas
ideias. Desta primeira fase participam Stirling, Green, Caird, Wallace e outros. Não
obstante ser primariamente exegético, este trabalho foi transformador e criativo, dando
ao neo-hegelianismo cores próprias fora do continente. Foi com Green, em Oxford, que
28
o idealismo consolidou-se na Grã-Bretanha. Green é “um kantiano pelas lentes de Hegel”
METZ, 1930 pp. 272-273.
A segunda geração, de Bradley, McTaggart, Bosanquet, Seth (Pringle-Pattison15), e
outros, já procura dar novas soluções aos problemas enfrentados por Hegel e Kant. Hegel
– cujos trabalhos foram todos vertidos para o Inglês – foi o mais influente; Kant vindo
em seguida. Mas, de maneira geral, os britânicos tratam Hegel e Kant como um todo
único; aqui e ali são colocados um contra o outro. Em situação semelhante encontra-se
Russell ele mesmo. Compare-se a descrição de Metz: “Mas todo o sistema idealista
alemão era usualmente tomado em conjunto como um só todo, exibindo um
desenvolvimento orgânico e necessário de Kant a Hegel, mesmo se estes dois, vez ou
outra conflitavam um com o outro.” METZ, 1930 p. 256, com a do próprio Russell sobre
si próprio: “Sempre que Kant e Hegel estavam em conflito, eu me alinhava com Hegel”
RUSSELL, 1944, p. 42 (My Philosophical). O que Russell relata ter acontecido consigo
é o que Metz relata ter acontecido com os neo-hegelianos britânicos em geral.
Mander (MANDER, 2011) estabelece o critério quantitativo de uso (citações) de Hegel e
de Kant, para dividir os idealistas ingleses em hegelianos (Wallace, McTaggart e Caird)
e kantianos (Green e novamente Caird). O fato do critério objetivo colocar Caird em
ambos os grupos reforça a tese de Metz que Hegel e Kant encontravam-se amalgamados
no pensamento neo-hegeliano. Ademais, Hegel não podia ser compreendido por si
próprio, Kant era necessário para seu domínio.
Stirling apresenta Hegel como um “continuador ingrato” de Kant; o primeiro teria
construído um grande edifício, mas trêmulo, sobre as bases firmes fincadas pelo segundo.
Mas Stirling falava de fora da academia, e sua influência limitava-se às livrarias.
Passmore divide o movimento neo-hegeliano entre os “absolutistas” e os “personalistas”.
Os primeiros são monistas, com Bradley como principal representante, acreditando que o
mundo é o espírito Absoluto que contém partes; os segundos pluralistas, acreditando em
espíritos individuais (selves). Estas diferenças refletem-se na doutrina das relações: os
primeiros consideram relações “externas” de maneira muito restrita, como terminologia
útil, mas as relações na realidade são internas – podem ser resolvidas logicamente em
15 Seth mudou seu nome em determinado momento para Pringle-Pattison por motivos familiares; a literatura
trata-o ora por um ora por outro nome; espero com esta nota poupar os leitores do martírio de descobrir por
si próprios que se trata do mesmo filósofo.
29
termos de qualidades dos relata. Os segundos adotam a doutrina das relações externas,
sendo Seth (Pringle-Pattison) e McTaggart seus representantes. Apesar disso não há
uniformidade na doutrina das relações, por exemplo, Green antecede Bradley, mas tem
outra doutrina de relações. O fato é que o idealismo alemão foi adotado aos retalhos na
Grã-Bretanha. Veja-se discussão sobre McTaggart, mais à frente.
Bradley trabalhou por meio século em Oxford sem dar aulas devido a problemas de saúde;
ficou conhecido pelos seus textos. Foi o primeiro filósofo britânico a ser condecorado
com a Ordem do Mérito (O. M.). Não gostava de ser chamado de hegeliano, e quando
reconhecia alguma dívida para com Hegel logo continuava com algo como, “mas o leitor
deve ter em mente que somente eu sou responsável pelo que eu digo”; e recomenda
Herbart como “antídoto” para Hegel. De acordo com Metz, permaneceu “virtualmente
intocado por Kant” (op. cit. p. 323). É com Bradley que o hegelianismo britânico ganha
sua personalidade própria. Além de Herbart, outras influências sobre Bradley são Lotze
e Sigwart, principalmente na Lógica, e Volkmann na psicologia. O débito de Bradley com
estes filósofos alemães reflete-se em seu anti-psicologismo, que também chega a Russell.
Entretanto, nenhuma influência é decisiva o suficiente para evitar que a filosofia de
Bradley seja completamente própria e original. Bradley afirma que as abstrações que
fazemos ao predicar levam a contradições. Para ele, nossa sensação é uma unidade –
quando percebemos um tecido vermelho, por exemplo, percebemos uma unidade e não
uma coisa e uma qualidade. Quando passamos ao plano do pensamento, separamos o
vermelho da coisa vermelha e predicamos. Este é um processo de abstração que leva
necessariamente a contradições. Por este motivo, o mundo descrito pelo pensamento é
eivado de contradições: é um mundo de aparências e não a realidade. Este traço
racionalista é claramente verbalizado pelo filósofo: “se fatos e princípios colidem, tanto
pior para os fatos16”. A contradição do juízo, criada pela abstração que separa a unidade
coisa-qualidade, para depois uni-los, consiste em que a) ou afirmamos de algo, algo que
ele não é; ou afirmamos uma tautologia. Assim, se todo o pensamento é contraditório, o
Absoluto não pode ser pensado.
Em termos gerais, poderíamos listar nove traços comuns ao neo-hegelianismo britânico,
raros entre as monumentais diferenças existentes entre os filósofos a ele pertencentes (de
Mander, op. cit.):
16 Presuppositions of a Critical History apud Passmore op. cit. p. 60.
30
a) Há uma unidade subjacente a todo o conhecimento.
b) O conhecimento comporta camadas hierárquicas de verdade, de diferentes ordens.
c) A Filosofia gera conhecimento.
d) A área de interesse da Filosofia é a realidade considerada como um todo.
e) Sendo o todo o objeto da Filosofia, e sendo a unidade a “substância” do
conhecimento, a Filosofia é ela mesma um todo unitário.
f) Ênfase na Metafísica: as questões filosóficas desde a Lógica até a Ética são
metafísicas.
g) Como a realidade é ideal, a Lógica é inseparável da Metafísica.
h) Foco em questões sociais e políticas, e atuação social frente à crueza da
industrialização inglesa.
i) Grande inter-relação e trabalho conjunto entre os idealistas eles mesmos.
2.2 McTaggart
McTaggart exerce uma influência direta e pessoal em Russell. Em sua autobiografia,
Russell descreve sua amizade com McTaggart, que se inicia quando adentra Cambridge,
e só rompida no início da Primeira Guerra, quando Russell adere ao movimento pacifista,
e, segundo ele, McTaggart acaba por capitanear seu desligamento de Cambridge.
McTaggart era um hegeliano, e naquele tempo [entre 1890 e 189417]
ainda jovem e entusiasta. Ele exerceu uma grande influência
intelectual sobre a minha geração, apesar de, em retrospecto, eu
penso que não foi uma boa influência. Por dois ou três anos, sob sua
influência, eu fui um hegeliano. (Auto., p. 88)
Russell encontra McTaggart em 1890, duas semanas após chegar a Cambridge. Antes de
seu contato com ele, Russell era um “utilitarista, e com inclinações para o empirismo”
GRIFFIN, 1991 p. 47; McTaggart teria declarado o utilitarismo “estéril” e o empirismo
“cru”, e teria dito a Russell que uma abordagem mais sofisticada poderia ser encontrada
em Hegel.
McTaggart era de muitas maneiras idealmente talhado para ser
mentor de Russell. De um lado, seu desenvolvimento intelectual foi
17 “Apesar de que após 1898 eu não aceitava mais a filosofia de McTaggart, eu permaneci próximo dele,
até uma ocasião durante a Primeira Guerra...” (id. ib.) Isto é, esta influência ocorre durante a elaboração
da Dialética das Ciências. Não obstante Russell atende ao curso de McTaggart sobre Lotze na Quaresma
de 1898.
31
de um paralelismo bem próximo ao de Russell. Em 1885 quando ele
chegou em Cambridge, McTaggart era um materialista ateu, tinha
Mill como uma de suas divindades e tinha lido e aceito (por um
tempo) Herbert Spencer. Tudo isto ele tinha em comum com Russell,
o qual estava tentando escapar das consequências depressivas destas
doutrinas [...] McTaggart, como Russell, sentia uma necessidade
emocional pelo misticismo, mas, também como Russell, demandava
rigor intelectual tanto quanto. GRIFFIN, 1991, p. 48.
Dois anos depois de sua chegada, Russell teve suas habilidades intelectuais reconhecidas
pela sua eleição para “Os Apóstolos”18. Lá alinhava-se com McTaggart em diversas
discussões, como na polêmica sobre a aceitação de mulheres na sociedade ou não.
McTaggart, que possuía um papel proeminente na Sociedade, provocou seus membros no
sentido de que podiam estar perdendo “algo de real valor” em não admitir mulheres.
Russell preparou um paper defendendo esta posição e leu para a sociedade em fevereiro
de 1894, com o título “Lööberg or Hedda?” (DEACON, 1985).
Finalmente, Russell dedica seu primeiro livro a McTaggart, “a cujos discurso e amizade
este livro deve sua existência” (Foundations of Geometry, caput).
McTaggart é personalista e pluralista. Esta segunda fase do idealismo britânico opunha-
se à ideia do Absoluto como um espírito único (representada ali principalmente por
Bradley) em favor de uma concepção de realidade como uma “Eterna República”
composta por mentes interligadas entre si e com Deus. Esta concepção tem dificuldade
de encaixar Deus; relega a Ele um modesto papel de primus inter pares cuja função é um
tanto confusa. “J. E. McTaggart corta o nó Górdio: Deus precisa partir. O real é uma
comunidade de selves finitos.[...] Ele é, em termos de habilidade, o Bradley do Idealismo
Personalista.” (Passmore, op. cit., p. 75).
Mais tarde McTaggart contaria com suas próprias palavras como se considera:
Ontologicamente sou um idealista, desde que acredito que tudo o que
existe é espiritual. Eu sou também, em um sentido do termo, um
idealista personalista. Pois eu acredito que cada parte do conteúdo
do espírito recai sobre algum self, e que nenhuma parte dele recai
sobre mais de um self; e que as únicas substâncias são selves, partes
de selves, e grupos de selves ou partes de selves. [...] Como há mais
substâncias do que uma só, elas devem existir em relação uma com
as outras – apesar de que, é claro, relações também existem entre
18 The Cambridge Conversazione Society, “The Society” como Russell chamada, ou The Apostles, seu
apelido secreto provavelmente oriundo do fato de que foram 12 seus fundadores. Era um grupo altamente
seleto, ao qual somente por convite se podia adentrar, que se reunia Sábados à noite para discutir um paper
que um dos membros apresentava.
32
qualidades e relações, da mesma maneira que ambos, qualidades e
relações, têm qualidades. MCTAGGART, 1924 pp. 251-253.
McTaggart, de acordo com Milkov, ministrou o curso de Lotze que Russell atendeu.
Entretanto (ou ademais), parece consenso que o hegelianismo de McTaggart guardava
distância do Hegel real, estando provavelmente mais próximo de Lotze. Milkov afirma
que “Desafortunadamente, o estudo de McTaggart sobre Hegel [Studies in Hegelian
Dialetic] estava longe de ser verdadeiramente hegeliano” MILKOV, 2008 p. 186; e
Passmore que “ninguém jamais se convenceu de que o Hegel ele descreve existe fora da
imaginação fértil de McTaggart.” (PASSMORE, 1966 p. 76).
Voltemo-nos, pois, a Lotze.
2.3 Lotze
Não podemos neste estudo fazer mais do que uma brevíssima incursão nos principais
traços do idealismo peculiar de Lotze, com o intuito de entender sua influência sobre
Russell; em seguida analisamos mais detalhadamente o trabalho de Milkov que trata
diretamente da influência de Lotze sobre Russell.
Lotze é o terceiro alemão mais influente na Grã-Bretanha. Isto ocorre por ao menos três
fatores históricos (além dos filosóficos). Primeiro, muitos ingleses tiveram contato direto
com Lotze em Göttingen (Seth ou Pringle-Pattison, James Ward e R. B. Holdane). Lotze
era visto como herdeiro direto de Hegel, e seus textos eram bem menos impenetráveis do
que os deste. “Era consequentemente suposto que ele fornecia o melhor caminho para o
mundo misterioso de Hegel [...] e muitos que foram afastados pelo monismo rígido de
Hegel encontraram satisfação no sistema19 mais solto de Lotze” (Metz p. 257).
Passmore acredita que a falta de um sistema é o que garantiu a Lotze sua influência, pois
cada filósofo podia pegar o que lhe fosse útil20. Beiser (BEISER, 2014) afirma que esta é
uma característica de Lotze e Trendelenburg:
19 Metz utiliza o termo “sistema” de forma ampla; refere-se por exemplo aos “sistemas” de Bradley, de
Bosanquet e de McTaggart (p. 271); onde claramente não há “sistemas” no mesmo sentido do sistema de
Hegel. 20 Uma certa passagem do Prefácio da Lógica tem sido utilizada fora de contexto para dizer que o próprio
Lotze instruía o leitor a assim proceder; mas na verdade Lotze se refere especificamente ao Livro Segundo:
“O Livro Segundo não necessita de prefácio; é bastante livre das amarras de [um] Sistema, e apenas põe
junto o que quer que eu pensei ser útil. A seleção da matéria poderia ser bem diferente em muitas partes,
muito poderia ser acrescentado, e muito, será pensado, poderia ser omitido. O leitor poderia considerá-lo
um Mercado aberto, onde ele pode simplesmente passar reto pelas mercadorias que não precisa.” LOTZE,
1884 p. x.
33
Tendo encorajado fortemente seus estudantes a pensarem por si
próprios, nenhum dos dois formou uma escola ou teve discípulos.
Suas influências, portanto, vieram não no atacado – numa doutrina
completa ou sistema fechado – mas aos pedaços – em muitas
sugestões espalhadas e ideias disparatadas. Seu legado também
repousou pesadamente em seus exemplos: sobre como ler um texto
cuidadosamente, sobre como pensar em um problema de maneira
completa e detalhada, sobre como escrever e argumentar com
clareza. BEISER, op. cit. p. 2.
Green, Bosanquet e Bradley (dentre outros) participaram da tradução System of
Philosophy para o inglês. Além deste, Logic, Metaphysic (ambos em três volumes),
Microcosmus e sua série de seis “Outlines” também foram traduzidos.
O terceiro mais importante motivo pela adoção de Lotze na Grã-Bretanha é que, como
vimos, a Alemanha realizava sua volta à Kant, com grande crescimento do empirismo, e
restavam poucos “fornecedores de metafísica” para serem importados por filósofos
britânicos desejosos de uma alternativa para enfrentar o materialismo, o ateísmo e o
realismo ingênuo. Lotze era um deles, talvez o principal, último remanescente de um
idealismo metafísico, anti-psicologista e não-ateu.
Não obstante, Lotze não é imune à “volta à Kant”:
A Metafísica de Lotze começa com uma explicação do propósito da
filosofia, um começo apropriado, e deveras necessário quando a
própria identidade da filosofia estava em jogo. É notório que Lotze
defina o propósito da filosofia em termos essencialmente
epistemológicos, i.e., como um exame ‘dos pressupostos básicos da
investigação’. Esta é uma clara reação contra o sistema maduro de
Hegel, o qual inicia-se com metafísica, com o conhecimento do
Absoluto. Implicitamente, mas deliberadamente e decididamente,
Lotze estava tomando a filosofia de Kant, o qual fez da crítica do
conhecimento o ponto inicial de sua filosofia. Portanto, os termos
que Lotze utiliza para definir a filosofia são kantianos. Beiser, op.
cit. p. 155.
Ademais, sua formação médica e a influência de Herbart o afastou de Hegel em direção
ao realismo, e sua epistemologia o afastou do realismo, deixando-o numa posição
intermediária. Por motivos financeiros, optou por obter uma profissão mais prática antes
de dedicar-se à filosofia, e escolheu medicina. Estudou em Leipzig na década de 1830,
que vivia uma efervescência do método experimental, com Fechner, Volkman e os irmãos
Ernst e Eduard Weber. Estes conduziam experimentos pioneiros em psicologia e
fisiologia. Com eles, Lotze aprendeu a importância da mensuração, do experimento e da
observação. Este foi um importante contrapeso realista em seu idealismo, que acaba
34
adquirindo traços peculiares – traços estes que atravessam o canal e chegam à Grã-
Bretanha, afastando ainda mais de Hegel o novo idealismo, já eivado da forte
personalidade dos idealistas britânicos.
Apesar de Lotze rejeitar o realismo ingênuo, ele ainda pensa que sua
explicação do processo de percepção é compatível com algum grau
de realismo. Ele está convencido que nenhuma explicação da
sensação puramente idealista pode ser satisfatória; não podemos
assumir que as atividades do sujeito sozinhas são a fonte da sensação,
a qual sempre requer algum estímulo externo. [...] Pois mesmo que
não haja similaridade de conteúdo entre sensação e estímulo, há
ainda uma proporcionalidade entre eles [...] mudanças na
intensidade, duração e velocidade do estímulo causam mudanças
correspondentes na sensação. (id. p. 224)
Lotze chama sua própria posição de idealismo teleológico.
É ‘idealismo’ porque limita nosso conhecimento ao mundo das
aparências, a como as coisas aparecem para nossa consciência, a
nossas formas de intuição e pensamento sobre o mundo. É
‘teleológico’ em ao menos dois sentidos. Primeiro, em um sentido
pragmático, porque ele justifica nossas categorias básicas, e nossa
crença na realidade das coisas, apelando para o propósito que elas
ajudam a atingir. Segundo, num sentido metafísico, porque ele
conecta o mundo das aparências com o mundo dos valores – o
normativo e o natural – através do conceito de propósito. Enquanto
o sentido pragmático refere-se aos fins humanos, o sentido
metafísico aponta para os fins do cosmo mesmo. (id. p. 163).
Lotze constava da lista de leituras que Harold Joachim deu a Russell a pedido deste.
Joachim era irmão da esposa do tio de Russell, Rollo. Desta lista também constava a
Lógica de Bradley, e a de Bosanquet.
Griffin relata que Lotze também constava da lista de leitura da parte II do Tripos21 de
Ciências Morais de Cambridge. Depois de terminar o Tripos I de Matemática, Russell
mudou-se para os Tripos I e II de Ciências Morais. O Tripos I de Ciências Morais
consistia em Lógica tradicional (silogismo, indução, teoria de termos e proposições); o
Tripos II consistia em Lógica simbólica, estatística, método científico, probabilidade e
aprofundamentos dos tópicos do Tripos I. A lista de leituras do Tripos II continha a
21 O ensino de Cambridge era todo voltado à preparação para grandes exames chamados Tripos. Isto foi
motivo de crítica de muitos estudantes e professores, inclusive do próprio Russell. Além disso, a
Matemática em Cambridge era aplicada, pois sucessivos Deans consideravam esta uma contribuição da
universidade ao desenvolvimento social da Inglaterra; e isto, aliado ao sistema de Tripos, colocou a
Matemática de Cambridge em atraso em relação aos desenvolvimentos teóricos da Matemática Pura do
Continente – não só da Alemanha, mas também da Itália.
35
Lógica de Lotze (traduzida por Bosanquet); Princípios de Lógica de Bradley; a Lógica
de Bosanquet; a Lógica de Sigwart; e ainda, Venn, Boole e Jevons em Lógica simbólica
(GRIFFIN, 1991 pp. 24-26).
2.2. O artigo Russell’s Debt to Lotze de Milkov
Este artigo merece uma seção própria e uma análise detalhada, por dois motivos: primeiro,
porque ele dá suporte a algumas de nossas afirmações, contrariando outras; e segundo,
porque a discussão que Milkov faz sobre a influência de Lotze em Russell atinge o cerne
de nossa discussão da passagem do programa Tiergarten para o Principles. Milkov
apresenta um ponto de vista próprio (isto é, não acompanhado por nenhum outro
comentador) sobre a “virada” de Russell de 1898, o qual não pode passar sem discussão
neste estudo.
No artigo (MILKOV, 2008), Milkov afirma que a filosofia de Russell foi influenciada
por Lotze, entre 1896 e 1898, através de três eventos concretos, os quais deixam
evidências em seus escritos subsequentes a cada evento. Apresentaremos os três eventos
de maneira concisa e em seguida passamos a detalhá-los.
No primeiro evento, em 1896, a leitura de Lotze pela recomendação de Joachim e por
constar do programa de Ciências Morais de Cambridge, reflete-se em seu trabalho de
fellowship, depois Foundations of Geometry, que apresenta o Princípio de Diferenciação,
oriundo de Lotze. Segundo este princípio, os objetos de cognição humana são complexos
segmentados que possuem partes diversas.
No segundo evento, a releitura da Metafísica em 1897, Russell afirma que o dilema
monismo-pluralismo depende de como vemos espaço e tempo: como adjetivais ou como
relacionais, respectivamente22. Mas apenas afirma a relação entre os dois pares de
concepções, sem tomar nenhum caminho.
22 Isto é, se adotamos a teoria das relações internas (como Russell chama a teoria de Bradley), de que todas
as relações podem ser reduzidas a qualidades de partes de um mesmo todo, com relação a espaço e tempo,
temos que concomitantemente adotar uma posição monista: toda a realidade é parte de um Absoluto; se, ao
invés disto, adotarmos uma teoria de relações externas, que une “termos” (como posteriormente Russell
chamaria em sua nova teoria do juízo) distintos e que não podem (as relações) ser reduzidas a qualidades,
com relação a espaço e tempo, então temos que concomitantemente adotar uma posição pluralista – a
realidade é composta por diversas coisas diferentes (“selves” para os personalistas). No último Capítulo,
quando verificarmos o aprendizado de Russell da Dialética das Ciências relativo à teoria das relações,
exploraremos mais explicitamente porque a interpretação de Russell é apenas uma simplificação da teoria
de relações de Bradley.
36
Russell opta pela concepção relacional apenas em 1898, após atender ao curso de Lotze
ministrado por McTaggart em janeiro-fevereiro de 1898 (o terceiro evento).
Não obstante a afirmação de Milkov, as anotações de aula de Russell mostram que ele
contrapõe as ideias de Lotze expostas por McTaggart com suas próprias considerações
críticas. A mudança na concepção de relação, se ocorreu por este episódio, o foi pela
crítica à concepção de Lotze. As anotações dizem o seguinte sobre as relações:
Relações entre duas ideias é uma terceira ideia e portanto não pode
ser explicada. Fala de relações entre coisas ou entre coisas e ideias.
O certo é falar de relações entre ideias, não entre coisas. O que quer
que seja que valha aqui está em cada um [dos relata?]. Se uma
relação existe, [é] algo diferente [de] se uma relação não existe. No
caso de ideias, [a] diferença é [uma] diferença mental, não de ideias.
Portanto relações podem ser entre ideias. Mas, [no] caso de coisas,
[a] relação não pode flutuar no ar: a única coisa a ser mudada é [são]
as coisas relacionadas. Relação entre coisas significa mudanças
correlatas. É claro que ideias são afetadas pela relação, mas a relação
não é meramente esta afetação. No que concerne a coisas, temos
mudança em A e mudança em B [relata]. Parece ter feito [as] coisas
diferentes, e perdido a relação. Isto é desenvolvido na Metafísica
pela unidade das coisas. RUSSELL, Lent Term 1898., pp. 2-3.
Estas aulas teriam ajudado Russell a desenvolver uma nova teoria do juízo entre abril e
junho do mesmo ano. Esta nova teoria do juízo diz que proposições relacionam termos
distintos entre si (e não afirmam qualidades ou relacionam internamente partes de um
todo). Espaço e tempo, acompanhando esta concepção, são séries de momentos com
relações externas entre si.
As aulas de McTaggart sobre Lotze ajudaram Russell a desenvolver sua nova teoria do
juízo entre abril e junho de 1898; esta nova teoria afirma que juízos são relações externas
entre termos diferentes entre si (o que implica pluralismo). De acordo com isto, espaço e
tempo são séries de lugares e momentos distintos com ligações externas entre si.
As discussões entre Russell e Moore tiveram lugar entre maio e junho de 1898, após
Russell desenvolver esta concepção. Tais discussões, ao contrário do que afirma o próprio
Russell em My Philosophical, não foram a causa de sua “virada”.
Milkov afirma que a forma de hegelianismo de Russell é “vago e genérico”, podendo ser
rastreado por quatro características:
[...] a influência de Hegel sobre Russell é vaga e genérica. Podemos
rastreá-la através de quatro exemplos: 1. A aceitação da prova
ontológica da existência de Deus. 2. O projeto para uma transição
37
dialética de uma ciência para outra e para uma enciclopédia das
ciências. A ideia era que, quando desenvolvidas em isolamento, as
ciências são incompletas e enredadas em contradições; esta
incompletude pode ser neutralizada apenas através de uma transição
dialética para uma ciência mais ampla. 3. A propensão de Russell
pelos paradoxos a qual o ajudou a descobrir o paradoxo das classes.
4. A principal tarefa de Russell como filósofo era, além disso,
estabelecida em termos hegelianos: acima de tudo, ele esforçou-se
para resolver alguns problemas da Lógica e Matemática (ruins) de
Hegel – para acertá-las com a ajuda das ideias de Cantor e
Weierstrass. Esta, contudo, é de fato uma forma muito solta de
hegelianismo. (Milkov, op. cit., pp. 186-187)
Se esta forma “solta” de hegelianismo moldou a forma e a direção da filosofia de Russell,
seu conteúdo foi muito mais fortemente influenciado por Lotze: “Em resumo, Lotze deu
a Russell tanto os temas e problemas específicos quanto os meios de lidar com eles.” (id.
ib.)
Evidências desta influência aparecem em Foundations of Geometry, RUSSELL, 1900
(Leibniz), e Principles. No primeiro, uma seção inteira é dedicada à filosofia do espaço
de Lotze; no segundo, Lotze é o filósofo do século XIX mais citado (e não Bradley ou
Frege); e no terceiro novamente um Capítulo inteiro é dedicado à concepção de espaço e
substância de Lotze.
Milkov descreve a filosofia de Lotze como caracterizada pelo princípio de que processos
físicos, biológicos, psicológicos, sociais, éticos e culturais devem ser descritos
mecanicamente; e que a metafísica só deveria ser perseguida quando esgotados os
recursos da descrição mecânica23. Guardadas estas ressalvas, a ciência pode então
perscrutar as razões de um ser superior.
O próprio Lotze chamou esta concepção, combinada com o princípio
do mecanismo, de ‘teleomecanismo’. Resumidamente, o método do
‘teleomecanismo’ ou do ‘idealismo teleológico’ é o de perseguir a
verdade em alguma conexão teleológica. Ao mesmo tempo, Lotze
insistiu que os cientistas deveriam investigar elementos do ser
supremo [highest being] somente quando alcançassem problemas
fundacionais. (id. p. 188)
Milkov compara o teleomecanismo de Lotze àquela abordagem descrita por Russell em
Principles – que devemos perseguir investigações metafísicas somente ao alcançar
indefiníveis tais como número, tempo, cores etc.
23 Isto é, em termos de encadeamento causal que exclui causas finais e forças vitais. cf.: AUDI, 1999 p.550.
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A seguir detalhamos os três impactos.
O primeiro impacto de Lotze em Russell diz respeito à noção de ordem espacial e ordem
temporal. Russell aceita a ideia de Lotze que para que o pensamento seja possível os
objetos de pensamento devem ser complexos – compostos de elementos claramente
diferentes (o simples é impensável pois os objetos do pensamento só podem ser pensados
através de alguma complexidade). A complexidade só pode ser alcançada se nos
referirmos a termos individuais.
Paralelamente, na percepção deve haver um “princípio de diferenciação”, segundo o qual
as coisas apresentadas o são como várias. Russell chama este elemento de diferenciação
de “forma de externalidade”. O argumento de Russell na teoria da percepção é paralelo
ao argumento na teoria do juízo (pensamento): os objetos de percepção devem ser
complexos pois para percebê-los devemos diferenciar suas partes e relacioná-las – e estas
devem ser externas umas às outras.
Para os seres humanos, espaço e tempo são fundamentais para suas formas de
externalidade. Além disso Russell distingue entre espaço vazio e ordem espacial. Espaço
vazio para Russell é a possibilidade de se estabelecer relações espaciais entre figuras e
dentro de figuras. O espaço vazio é conceitual24 e a priori; é diferenciado através da
matéria, e a unidade da diferenciação é o átomo.
Estas noções de Russell vêm de duas ideias de Lotze (apesar de sua crença de que teriam
vindo de Bradley e Bosanquet): a distinção entre espaço vazio e ordem espacial de
Foundations of Geometry seguem a distinção lotzeana entre extensão e lugar-momento,
a qual não existia em Kant.
A distinção consiste em afirmar que extensão se refere a uma multiplicidade infinita de
possíveis direções; enquanto que o lugar e momento no tempo dão realidade às
possibilidades. Com esta concepção Lotze opunha um espaço objetivo ao espaço
subjetivo de Kant25.
24 “Mas podemos concordar, a respeito do espaço vazio, que o ‘infinito todo dado’ é realmente dado? Não
devemos, a despeito do argumento de Kant, considera-lo como totalmente conceitual?” Foundations of
Geometry§ 204. 25 O argumento de Lotze, que Russell reproduz em Foundations of Geometry, é que se o espaço fosse
subjetivo, outros seres (não humanos) teriam um espaço diferente do nosso. Russell acredita que o
argumento é cogente e acrescenta que mesmo “Tom, Dick ou Harry” poderiam ter intuições diferentes.
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A segunda ideia de Lotze que Foundations of Geometry utiliza é o seu atomismo, que já
estaria presente na Revisão de Hannequin, de 1896. De acordo com essa concepção,
átomos são os últimos blocos constituintes do Universo, e permanecem imutáveis em
todas as composições das quais participam. Além disso são pontuais, isto é, sem extensão.
Extensão só é possível se há pontos que possam ser identificados e diferenciados.
O segundo impacto de Lotze sobre Russell ocorre em 1897 quando este relê a Metafísica,
e reflete-se no texto “Why do we regard time, but not space, as necessarily a plenum?”
(Why Do We Regard) 26. Em uma nota que brevemente antecede Why Do We Regard,
“Can we make a dialectical transition from punctual matter to the plenum?” Russell se
refere explicitamente a Lotze. Ali Russell coloca ênfase na análise Lógica dos problemas
metafísicos: distingue entre dois conceitos de espaço e tempo: como relações ou como
adjetivos do Absoluto; afirma qu