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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Emerson Cappelletti DISCURSO LITERÁRIO E ENSINO: Caminho para a formação do leitor literário MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2010

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ... · A meu grande parceiro, Paulo, por ter tido toda a paciência nos momentos de ... experiência didática com os alunos

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Emerson Cappelletti

DISCURSO LITERÁRIO E ENSINO:

Caminho para a formação do leitor literário

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Emerson Cappelletti

DISCURSO LITERÁRIO E ENSINO:

Caminho para a formação do leitor literário

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção do

título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a

orientação da Professora Doutora Sueli Cristina

Marquesi.

SÃO PAULO

2010

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BANCA EXAMINADORA:

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Dedico este trabalho à minha mãe que, em sua

sabedoria ingênua, apontou-me o caminho para a

leitura dos clássicos universais.

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AGRADECIMENTOS

À minha família por ter me dado todo apoio e paciência nos momentos em que

mais sofri para o cumprimento de minhas metas de leitura.

A meu grande parceiro, Paulo, por ter tido toda a paciência nos momentos de

ausência promovidos pelos estudos.

À Professora Doutora Sueli Cristina Marquesi por toda a generosidade e

competência demonstradas durante a orientação.

Às Professoras Doutoras Irenilde Pereira dos Santos e Neusa Maria O. B. Bastos,

componentes da banca examinadora, por terem apontado caminhos para a

realização mais efetiva de meu trabalho.

Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua portuguesa.

À Roseli, secretária da DE – Guarulhos Sul, pela paciência que sempre

demonstrou.

À Lourdes, secretária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua

Portuguesa, pela habitual atenção prestada a mim e a todos os alunos.

Aos amigos e coordenadores Simone Pannocchia Tahan e Eduardo de Oliveira,

por toda a gentileza que dispensaram em relação ao tempo para a aplicação da

experiência didática com os alunos de sétimos anos.

Aos meus alunos pelo envolvimento que dispensaram a mim nos momentos mais

difíceis de meus estudos.

Aos colegas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa,

pelos momentos de cumplicidade que me proporcionaram.

Ao Fábio Monteiro, professor de História, pelo ombro amigo e encorajador.

Ao Maurício, professor de matemática e futuro mestre, pelos momentos

engraçados.

Ao Colégio Parthenon, onde trabalho há mais de onze anos, pelo apoio

incondicional em relação à realização de meu trabalho e pela confiança

depositada no profissional que sou.

À SEE por ter promovido o subsídio financeiro para a realização deste trabalho.

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RESUMO

A publicação dos PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998) para o

ensino fundamental marcou um considerável avanço no tocante ao ensino da

leitura no país. Se antes esse ensino estava centrado na análise de um

compêndio de excertos literários – modelos para o bem escrever e ler -, hoje

encontra nos gêneros textuais jornalísticos e cotidianos sua principal fonte para a

elaboração de intervenções pedagógicas..

Os avanços empreendidos por essa mudança não encontram

correspondentes no ensino da leitura literária, já que a literatura parece ter

perdido sua importância dentro dos parâmetros curriculares, da escola e da

própria sociedade. Some-se, às poucas orientações didáticas encontradas no

documento oficial, o fato da existência de uma também escassa pesquisa

acadêmica sobre ensino e discurso literário.

Daí surge o principal objetivo deste trabalho ligado à corroboração de uma

estratégia de leitura denominada compartilhada pelos PCN. Para tanto,

propusemos a aplicação integral de uma sequência didática cuja elaboração nos

foi guiada pelos aspectos teóricos da Educação, da Linguística e da Pragmática

do discurso literário. Essa sequência trouxe a proposta de leitura integral do

conto inglês Alice no País das Maravilhas cuja tradução foi realizada por Ana

Maria Machado. Dois grupos de alunos foram formados, um que leu a obra

proposta autonomamente e o outro que foi acompanhado pelo pesquisador

enquanto a leitura integral do conto era realizada em voz alta.

Partimos, depois, para a comparação dos resultados com a finalidade de

comprovar a nossa hipótese de que os alunos, que tiveram a supervisão do

pesquisador e professor e foram guiados pela sequência didática, apresentaram

maior aproveitamento dos dados contextuais e intertextuais da obra literária.

Concluímos que nossa hipótese é verdadeira, já que a leitura compartilhada –

orientada pela sequência didática - revelou-se como importante ferramenta de

ensino e aprendizagem da leitura literária na escola.

Palavras-chave: língua portuguesa, discurso literário, prática de ensino,

linguística, ensino de leitura, leitura compartilhada, contexto, intertextualidade.

Emerson Cappelletti

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La publication des PCN de la Langue Portugaise (BRÉSIL, 1998) pour

l´enseignement « fondamental » (Cours Primaire) prend un essor considérable

quant à l´enseignement de la lecture dans le pays. Si auparavant cet

enseignement se centrait autours de l´analyse d´un compendium d´extraits

littéraires – critères pour une bonne écrite et lecture -, à cette date il trouve dans

les genres textuels journalistiques et quotidiens sa principale source pour

l´élaboration d´interventions pédagogiques.

Les essors entrepris par ce changement ne décèlent aucune correspondance au

sein de l´enseignement de la lecture littéraire, du moment que la littérature parait

avoir perdu son importance parmi les paramètres disciplinaires de l´école et de la

société elle-même. À l´infime orientation didactique trouvée dans le document

officiel, se joint aussi le fait de l´existence d´une recherche académique

insuffisante en ce qui concerne l´enseignement et le discours littéraire.

Ce propos donne lieu au principal objectif de ce travail renforcé par une stratégie

de la lecture dénommée de « participation» par les PCN. Dans ce sens, nous

avons proposé l´application intégrale d´une séquence didactique, dont

l´élaboration a été dictée par les aspects théoriques de l´Education, la

Linguistique et la Pragmatique du discours littéraire. Cette séquence énonce la

proposition d´une lecture intégrale du conte anglais pour enfants « Alice au pays

des Merveilles » traduit par Ana Maria Machado. Deux groupes d´élèves sont

constitués, un groupe a lu l´œuvre proposée de façon autonome, et l´autre groupe

est suivi par le chercheur tout au long de la lecture intégrale du conte qui se

réalise à haute voix.

Nous partons, par la suite, à une comparaison des résultats afin de prouver notre

hypothèse que les élèves qui reçoivent la supervision du chercheur et professeur,

orientés par une séquence didactique, présentent un plus grand et plus expressif

bénéfice des données contextuelles et intertextuelles de l´œuvre littéraire. Nous

concluons donc que notre hypothèse est correcte puisque la lecture de

«participation » – qui suit la direction d´une séquence didactique – se révèle être

un outil important de l´enseignement et de l´apprentissage de la lecture littéraire à

l´école.

Mots-clefs : langue portugaise, discours littéraire, pratique de l´enseignement,

linguistique, l´enseignement de la lecture, lecture « de participation ».

Emerson Cappelletti

RÉSUMÉ

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ABSTRACT

The publication of the Portuguese Language National Curricular Parameters

(Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN) (BRASIL, 1998) for primary education

represented a significant stride in reading education in Brazil. Where the underlying

learning methodology had once relied on a compendium of literary excerpts – models of

good writing and reading – today journalistic and daily life narrative genres constitute the

primary source for the administration of pedagogical activities.

The progress secured through this new approach finds no corresponding

equivalent in literary education, given the apparent decline of literature’s centrality within

the curricular parameters of schools and society. Add to the sparse didactic guidance

provided in the official document the scarcity of academic research on literary education

and discourse.

Therein lies the principal objective of this study aimed at corroborating shared

designated reading within the framework of the PCN. To this end, we proposed the full

application of a didactic sequence, the development of which is driven by theoretical

aspects of the Education, Linguistics, and Pragmatics of literary discourse. The strategy

gave rise to undertaking a full reading of the British story Alice in Wonderland, translated

into Portuguese by Ana Maria Machado. Two groups of students were formed, one

which read the story without supervision and another monitored by the researcher as the

story was read out loud.

We proceeded to compare the results of the study with a view to demonstrating

our hypothesis that those students supervised by the researcher and teacher and

guided by the didactic sequence displayed greater progress in respect of the literary

work’s key textual and intertextual elements. We concluded that our hypothesis holds,

insofar as shared reading – guided by the didactic sequence – emerged as an important

tool for literary teaching and learning in schools.

Keywords: Portuguese language, literary discourse, educational practice, linguistics,

literary education, shared reading.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................9

CAPÍTULO I: DISCURSO LITERÁRIO E INTERTEXTUALIDADE: ESPELHOS DE

ALICE ..................................................................................................................... 16

1.1 Modelos estratégicos de análise do discurso ....................................17

1.2 Maingueneau: o modelo de pragmática literária ............................... 20

1.3 Intertextualidade e Discurso Literário ............................................... 23

1.4 Alice: labirinto intertextual ................................................................. 32

1.5 Leis do discurso e intertextualidade: a construção

dos sentidos....................................................................................... 37

CAPÍTULO II: O CONTEXTO DA OBRA LITERÁRIA: OS CONTEXTOS

DE CARROLL E DE SUA ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS ........................... 48

2.1 As personagens e os elementos transgredientes em Alice no País

das Maravilhas ........................................................................................ 50

2.2 Um discurso muito louco ................................................................... 56

2.3 O contexto histórico: transgressão e submissão .............................. 64

2.4 A gênese do maravilhoso: da “contação” de histórias para o

texto escrito............................................................................................. 69

CAPÍTULO III: A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO E A

LEITURA COMPARTILHADA ............................................................................... 79

3.1 Caracterização da Pesquisa ............................................................ 80

3.2 Procedimentos Metodológicos ......................................................... 88

3.3 Discussão dos dados ...................................................................... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 112

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................117

ANEXOS ............................................................................................................. 123

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INTRODUÇÃO

Nada está decidido, porque o poder prático reside, em última instância, nas mãos dos professores. São eles que, através da experiência com as crianças, escolhem e continuarão escolhendo os “livros para as aulas”, que seria conveniente chamar pelo seu nome: “os clássicos”.

Anne Marie Chartier

Sabemos que a formação de leitores em língua portuguesa constitui objeto

de estudo de vários estudiosos da Linguística e da Didática por toda a história da

educação. A necessidade de formar alunos proficientes em leitura e escrita é um

dos pontos que guia a elaboração de atividades voltadas para o ensino da língua

materna. Sabemos também que as práticas de leitura abordadas em sala de aula

estão ainda, muitas vezes, voltadas para a decodificação dos sinais, o estudo das

sílabas, das palavras, das frases e, por fim, de textos inteiros. Quando os alunos

se tornam capazes de decodificar textos inteiros, acredita-se que a formação do

leitor está concluída. Ainda não há uma clara distinção entre ler e compreender.

Práticas educativas, como essas, não levam em conta a importância da

formação da compreensão leitora nos alunos e fazem parte do resultado de uma

formação deficitária dos profissionais de educação. Mesmo quando há propostas

governamentais para a mudança da situação de leitura no Brasil, elas não levam

em consideração a formação adequada dos educadores que devem aplicá-las e

sala de aula. Na maioria das vezes, os professores elaboram atividades centradas

na abordagem dos aspectos linguísticos do texto e relegam a proposta

pragmática de compreensão e a análise do discurso para um segundo plano, e

isto quando relegam, pois, na maioria dos casos, ela é inexistente nessas

intervenções.

Neste trabalho, consideramos que ler constitui mais do que a decodificação

de sinais escritos; ler constitui a busca de sentidos para o texto e, nessa busca,

chegamos à compreensão global de um texto. Temos consciência também de

que, para ler, é necessário considerar os conhecimentos prévios que o leitor

possui sobre o assunto e a interação que se concretiza com o suporte de leitura,

seja um livro ou jornal. Influências cognitivas - tais como as crenças, as opiniões

ou atitudes e até mesmo a motivação ou os objetivos diferentes - atuam na

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construção da representação sobre o evento ou o enunciado, o que faz com que,

ao ler um mesmo texto, diferentes leitores construam sentidos diferenciados,

produzindo diferentes tipos de inferências. Sabemos que, numa abordagem

interativa de leitura, três elementos são importantes para a construção dos

sentidos: o autor, o texto, o leitor e o contexto em que se concretiza o evento

comunicativo.

Considerando-se essa abordagem do ensino de leitura, não podemos

deixar de citar a publicação dos PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998). Com

eles, os professores se viram diante da mudança de paradigmas na abordagem

do ensino de leitura. Segundo esses parâmetros, algumas estratégias devem ser

trabalhadas para que se formem alunos leitores: círculos de leitura, leitura

compartilhada, leitura em voz alta pelo professor e leitura silenciosa. Neste

trabalho, nós nos detemos aos estudos da construção dos sentidos por meio da

estratégia denominada pelos parâmetros de LEITURA COMPARTILHADA. Trata-

se de uma estratégia didática prevista por meio de sequenciação de conteúdos e

de objetivos de leitura que, sozinhos, os alunos não conseguem atingir.

O professor deve ter em mente que a leitura é uma habilidade humana,

possui existência histórica, está associada à adoção do alfabeto como forma de

comunicação e à aceitação da escola como instituição responsável pela

aprendizagem (Zilberman, 1998, p.14). Se a instituição escolar é encarada como

a responsável pela formação de leitores, torna-se obrigação do professor

aproximar os alunos de textos escritos, bem como contribuir para o processo de

construção dos sentidos para os textos. Portanto, não adotamos a postura

assumida por muitos de que a formação de leitor passa primeiramente pelo

prazer. O prazer não será por nós entendido como causa, mas como

consequência de uma intervenção pedagógica consistente em que o modelo de

leitura é declaradamente o do professor.

Cabe, também, ao professor de nossos tempos o planejamento de

atividades consistentes para a formação leitora dos alunos e a elaboração de

sequências didáticas eficientes com objetivos de leitura que devem ser

alcançados ao final de uma intervenção pedagógica. Por isso, sabemos da

importância de intervenções com objetivos bem delineados que possibilitem o

avanço da competência leitora dos alunos, que favoreçam a capacidade de inferir

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e comprovar a inferência por meio do texto. Não nos esqueçamos de que a leitura

pressupõe a ativação de conhecimentos prévios, alguns dos quais se constituem

pela maturidade do leitor, pela transmissão familiar, pela escola ou por outros

lugares (CHARTIER, 1995).

Se a compreensão de um texto está associada à experiência que se

construiu anteriormente à intervenção escolar, como organizar sequências

didáticas que sejam eficientes para a formação da compreensão leitora do

discurso literário? Podemos formar leitores literários capazes de aprender

conceitos de análises literária e linguística importantes para a elaboração de

interpretações da obra? Serão os alunos capazes de relacionar conceitos

construídos durante a leitura compartilhada para a construção da interpretação do

texto estético? Enfim, todas essas perguntas podem ser resumidas numa única

questão: O professor, embasado nos aspectos teóricos sobre o discurso literário,

é capaz de propor uma intervenção pedagógica para que ocorra uma

aprendizagem eficiente por parte dos alunos das especificidades literárias?

Se a leitura é uma atividade interativa, podemos propor uma sequência

didática em que determinado número de alunos esteja envolvido na leitura de um

conto bastante longo, e trabalhado integralmente em sala, totalmente lido em voz

alta pelo professor e pelos alunos. Como já apontamos, trata-se da leitura

compartilhada proposta pelos PCN de Língua Portuguesa. Esse tipo de situação

didática possibilita a troca de informações com o professor em sala e permite uma

análise mais pormenorizada dos dados obtidos após a aplicação da sequência

didática.

O conceito de sequência didática nos chega por meio de Dolz & Schneuwly

(1996) – neste trabalho encontramos, também, as terminologias intervenção

pedagógica ou didática, as quais consideramos correlatas. Definida como um

conjunto de atividades que constitui uma unidade de ensino, ela propicia o

desenvolvimento e a construção do conhecimento relativos à expressão escrita e

oral de determinado gênero respeitando as capacidades reais dos alunos.

Estendemos o conceito dos autores supracitados para a leitura, afinal, para que

os alunos produzam textos escritos ao final de uma sequência didática, há

necessidade anterior da análise e interpretação dos gêneros textuais com que os

alunos entram em contato. Entendemos, juntamente com os autores, que as

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atividades propostas devem favorecer o desenvolvimento das capacidades

discursivas e linguístico-discursivas:

Enfim, as estratégias de ensino supõem a busca de intervenções no meio escolar que favoreçam a mudança e a promoção dos alunos a uma melhor mestria dos gêneros e das situações de comunicação que lhes correspondem. Trata-se, fundamentalmente, de se fornecer aos alunos os instrumentos necessários para que progridam (...). Neste sentido, as sequências didáticas são instrumentos que podem guiar as intervenções dos professores. (DOLZ & SCHENEUWLY, 1996, p.58-59)

Sabemos que a sequência didática é instrumento relevante para a prática

educativa, entretanto ela por si só não basta para a realização de nosso trabalho.

É preciso mais do que uma boa intervenção, já que temos a tarefa de observar

leitores de romances ou contos longos, algo que constitui um dificultador para a

pesquisa qualitativa; além disso conhecemos que há poucos estudos dos

resultados de situações de leitura de romances ou contos inteiros. Chartier (1995)

afirma que se torna complicado observar leitores enquanto leem, por exemplo, À

procura do tempo perdido, vai mais longe ao dizer que talvez seja teoricamente

impossível. Entretanto, acreditamos na possibilidade de determinar algumas

variantes quando comparamos grupos de mesma faixa etária em situações de

leitura diversas com acompanhamento integral do pesquisador.

Entendidos os conceitos de leitura e de sequência didática, delimitamos

nossos objetivos ligados diretamente à insatisfação da instituição de ensino no

tocante à formação de leitores literários na escola. São eles:

• Confirmar a importância de estratégias de leitura diversas, sobretudo da

leitura compartilhada formulada à luz dos aspectos teóricos da Didática,

da Linguística e da Análise Literária.

• Propor estratégias de trabalho para o ensino de leitura e para a

formação do leitor literário juvenil por meio da intertextualidade e da

análise do discurso literário.

• Ratificar a importância da leitura em voz alta de clássicos da literatura

universal pelo professor e perceber se essa intervenção pedagógica

aproxima o leitor juvenil de obras consideradas inacessíveis.

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• Corroborar a importância dos estudos do contexto linguístico e de dados

cotextuais como fatores importantes para a compreensão de obras

literárias.

Com o intuito de alcançarmos a possibilidade de observar teoricamente

algumas variantes do ensino de leitura de textos literários mais longos,

determinamos alguns procedimentos que nortearam nosso trabalho de pesquisa:

Primeiramente, pensadas as perguntas de pesquisa, realizamos um

levantamento bibliográfico relacionado ao ensino de leitura e à análise pragmática

de discursos, esta que motivou um aprofundamento de pesquisa na pragmática

do discurso literário. Dessa forma, pudemos delimitar o tema desta pesquisa,

sobretudo nos estudos de Maingueneau (1995, 1996, 2006).

Posteriormente, para a seleção da obra que motivou a elaboração da

sequência didática, levamos em consideração que se trata de alunos

pertencentes ao Ensino Fundamental; por isso deve ser um livro, que,

presumidamente, possa encantá-los e desafiá-los; optamos por Alice no País das

Maravilhas, de Lewis Carroll, traduzido e adaptado por Ana Maria Machado. É

uma obra, aparentemente, destinada aos públicos infantil e juvenil que apresenta

várias adaptações conhecidas pelos alunos (inclusive uma de Disney). Ademais,

trata-se de um conto que traz exemplos bastante adequados sobre o uso da

intertextualidade e do jogo de palavras. A concretização da obra também é

bastante influenciada pelos contextos de produção.

Delimitamos ainda mais o perfil dos alunos acompanhados e determinamos

que o trabalho de interação aconteça com os alunos do Colégio Parthenon,

instituição particular de ensino em Guarulhos, no Estado de São Paulo. São

alunos de doze anos pertencentes ao sétimo ano da instituição divididos em dois

grupos: o primeiro grupo lê sozinho o conto proposto; o outro tem

acompanhamento do professor, que realiza a leitura em voz alta e aplica uma

sequência didática planejada. Depois da leitura realizada, os alunos respondem a

questionários (ANEXO D) que comprovem a qualidade da leitura e a

concretização dos objetivos planejados na sequência didática. Reafirmamos que

esse é justamente o enfoque de nosso trabalho: a ratificação de uma prática de

ensino proposta pelos PCN sob a forma de sequenciação de conteúdos

conceituais.

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Por fim, realizamos a análise dos dados aferidos por meio de questionários

respondidos pelos alunos. Procuramos evidenciar de que forma os alunos, que

têm o acompanhamento do professor, apresentam uma qualidade de leitura

superior àqueles que leem sozinhos.

O tema deste trabalho insere-se na linha de pesquisa Leitura, Escrita e

Ensino. Para realizá-lo, adotamos como base de pesquisa os fundamentos sobre

as máximas conversacionais de Grice (1975); sobre a intertextualidade de

Kristeva (1977), Genette (1982), Koch (2002, 2003, 2004, 2006), Koch & Elias

(2006) e Koch et al (2007); sobre os estudos de coerência textual e construção de

sentidos de Koch & Travaglia (1993); sobre os estudos do discurso e interação de

Ducrot (1984), van Dijk (2004), Adam (2008); sobre os estudos de polifonia e

dialogismo de Bakhtin (1992, 1998, 2008); sobre a pragmática do discurso literário

de Maingueneau (1995, 1996, 2006) e van Dijk (1999); sobre a formação do leitor

literário de Colomer (2002, 2005); sobre as questões pertinentes à prática

pedagógica dos professores em intervenções de leitura de Azevedo (2004),

Kleiman (1989, 1995, 2003), Lajolo & Zilberman (1991a e 1991b), Solé (1998) e

Zilberman (1998); sobre os estudos da Literatura infantil de Burgess (1996),

Morais (2004) e Oliveira e Palo (2006); sobre os estudos de contexto da obra

literária de Maingueneau (1995, 1996, 2005, 2006); sobre os estudos de análise

literária de Bakhtin (1998, 2003, 2008), Holquist (1969), Kristeva (1969), Lajolo &

Zilberman (1991a e 1991b), Oliveira & Palo (2006) e Warner (1999).

Baseamo-nos, para a realização de nossas análises, na tradução brasileira

de Machado (2003) de Alice no País das Maravilhas.

.Esta dissertação está dividida em três capítulos, além de Introdução e

Conclusão.

O Capítulo I traz uma revisão dos modelos estratégicos de análise do

discurso que fundamentam o modelo de Maingueneau (2006) e uma exposição

sobre os estudos da intertextualidade e das leis do discurso que nos auxiliam na

análise estética da discursividade literária. Em seguida, passamos ao estudo do

texto literário valendo-nos dos conceitos e modelos expostos. Por fim,

apresentamos a importância da intertextualidade como fator de construção da

coerência do discurso de Alice no País das Maravilhas, evidenciando que as leis

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que regem o discurso literário são transgredidas para a concretização poética da

obra.

O Capítulo II traz uma análise contextual de Alice no País das Maravilhas,

obra do século XIX, época vitoriana inglesa. Apresenta também a influência do

contexto na produção da obra literária e sua importância para compreensão do

discurso literário. No Capítulo, apresentamos as forças que geram um romance e

uma obra poética e as relações que podem ser realizadas entre a publicação de

uma obra e o momento em que se encontra na História da Literatura. Expomos

também a força das personagens para gerar sentidos importantes em relação aos

contextos em que elas são criadas e em que são retomadas.

O Capítulo III apresenta a relação das bases teóricas que fundamentam

nosso posicionamento acerca do ensino de leitura literária e das intervenções

didáticas relevantes para a formação de leitores. Nele, evidenciamos, por meio da

pesquisa-ação, a importância da leitura compartilhada em sala de aula, indo ao

encontro daquilo que propomos neste trabalho e respondendo à nossa pergunta

principal de pesquisa que se relaciona com a possibilidade – ou a impossibilidade

- de formar leitores literários na escola guiados por atividades planejadas pelo

professor. Fica evidente, neste Capítulo, o refinamento de leitura a que chegam

os alunos guiados pela sequência didática e pelo acompanhamento integral do

professor.

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CAPÍTULO I

DISCURSO LITERÁRIO E INTERTEXTUALIDADE: ESPELHOS DE

ALICE

Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. — "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." — dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" — e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: — "Tatu não vê a lua..." — ela falasse (...) Só a pura vida.

Guimarães Rosa “A menina de lá” in Primeiras Estórias

Neste capítulo, situamos as linhas de análise do discurso literário a fim de

reunir uma base teórica consistente para a concretização dos objetivos previstos

na introdução desta dissertação. Parece-nos correto afirmar também que os

bases teóricas apresentadas neste capítulo promovem o aprofundamento dos

estudos sobre obra Alice no País das Maravilhas, uma vez que o conto passa a

ser relevante não somente do ponto de vista literário, mas também sob o enfoque

da Linguística e da Didática.

Começamos pela exposição de modelos propostos por estudiosos como

Bakhtin (2008) e van Dijk (1999); para, em seguida, realizarmos a exposição do

modelo de Maingueneau (1995, 1996). Informamos que esse último teórico

revisita toda a história da análise do discurso literário para a construção de um

modelo que, neste trabalho, consideramos mais completo.

Procedemos, assim, à revisão dos aspectos teóricos do discurso literário e

das condições sociais de sua produção, bem como dos conceitos sobre

intertextualidade e sobre as Leis do Discurso, sempre voltados para as

especificidades do literário.

Passemos, agora, à exposição dos modelos de análise do texto literário,

para, depois, nós nos determos em dois aspectos fundamentais: a

intertextualidade e a transgressão discursiva em Alice no País das Maravilhas

cujas personagens serão denominadas – numa terminologia bakhtiniana - de

transgredientes.

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1.1 - Modelos estratégicos de análise do discurso

O discurso literário assume papel central no livro Problemas da Poética de

Dostoiévski, obra em que Bakhtin, como crítico da obra de Dostoiévski, define o

discurso no âmbito da metalinguística, área que não está em oposição aos

estudos linguísticos da época de publicação, mas que seria uma extensão, um

aprofundamento deles. Notamos que o teórico percebe que os estudos

estruturalistas do final da década de 20 não seriam suficientes para abranger o

discurso literário em toda a sua magnitude. Nas palavras do próprio autor,

podemos notar a relevância dada a outros elementos que não o material

cotextual, há de se elaborar um modelo de análise do discurso que vá além dos

limites da linguística:

...as nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na metalinguística, subentendendo-a como um estudo – ainda não-constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística. As pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a linguística e devem aplicar seus resultados. A linguística e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas estudam sob diferentes ângulos de visão. Devem completar-se e não fundir-se. (BAKHTIN, 2008, p. 207)

Em outros trabalhos, para definir discurso, Bakhtin (1998) opta por um

caminho em que considera os aspectos contextuais das obras literárias, não

somente o seu cotexto, mesmo que o estudo dos contextos não possua a devida

relevância para a época. Segundo o autor, o discurso é a língua em sua

integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística,

obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns

aspectos da vida concreta do discurso (Bakhtin, 2008, p. 208). É importante

afirmar que Bakhtin não descarta a importância da linguística de sua época, mas

apresenta a importância que esses aspectos da vida concreta do discurso

assumem na análise literária. Para elaborar sua análise sobre a obra de

Dostoiévski, Bakhtin inaugura os conceitos de dialogismo e polifonia, importantes

para os estudos posteriores sobre a pragmática do discurso literário e sobre o

sociointeracionismo discursivo, estabelecendo, desse modo, um modelo

estratégico de análise.

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Por outros caminhos, van Dijk (2004) também constrói seu modelo

estratégico de análise do discurso voltando-se para as vertentes históricas de

análise linguística que o antecederam, é óbvio que sem se deter especificamente

ao literário. O autor expõe a linha histórica da evolução dos estudos da Linguística

Textual, levando em consideração a sociolinguística, a psicologia e a inteligência

artificial. Denomina, por fim, sua proposta de análise discursiva como estratégica

(van Dijk, 2004) em que a consistência analítica se dá por meio de um modelo

mais dinâmico, de base processual on-line. Expondo pressupostos relevantes

para a construção de seu modelo, van Dijk opta por separá-los em cognitivos e

contextuais.

No que se refere aos cognitivos, o autor afirma que são as construções

mentais que os locutores realizam sobre determinado acontecimento enunciativo

e que essa realização se dá por meio de dados linguísticos e visuais. Quando

ouvimos uma narrativa, realizamos essas construções mentais sobre o

acontecimento e entramos nos limites dos pressupostos construtivistas. O autor

destaca ainda a importância dos conhecimentos adquiridos sobre os eventos

comunicativos para que a construção mental se dê de forma adequada. Se o

locutor atribuir um caráter de interpretação aos eventos, ele estará no nível dos

pressupostos interpretativos. Caso a construção mental e a interpretação do

evento aconteçam simultaneamente, teremos o pressuposto on-line. (van Dijk,

2004)

Quanto aos contextuais, o autor afirma que são os pressupostos ligados a

uma situação sócio-cultural mais ampla, já que os usuários de uma língua

constroem representações que não consideram somente os aspectos textuais,

mas também o contexto social (pressuposto da funcionalidade), as intenções dos

interlocutores envolvidos no discurso (pressuposto pragmático ampliado para

pressuposto interacionista), os lugares de interação (pressuposto situacional).

Segundo van Dijk, esses são os pressupostos que compõem seu modelo de

análise do discurso e que influenciam na significação dos enunciados. Modelo

que, para o teórico, é suficientemente geral e flexível, já que não existe um

processo único, mas processos de compreensão que variam de acordo com

diferentes situações, de diferentes usuários de língua, de diferentes tipos de

discurso (van Dijk, 2004, p. 21).

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Em outro trabalho (van Dijk, 1999), o autor elabora considerações sobre o

discurso literário. De acordo com seus apontamentos, percebemos que, antes de

qualquer discussão sobre uma pragmática da literatura, devemos compreender o

conceito de comunicação literária e de suas implicações nos estudos literários,

também chamado de poética. O autor aponta como falha a ideia de que os

estudos da literatura modernos se concentrem na análise do texto literário, e não

no processo da comunicação literária, além disso, reconhece uma variedade de

estudos sobre os contextos da literatura (psicológico, social e histórico), mas que

se encontram às margens da análise literária. Por fim, van Dijk afirma que, para

que se construa uma pragmática para o discurso literário, há de se levar em conta

uma teoria de todas as propriedades relevantes da comunicação literária, já que o

status de literário pode ser influenciado pelos contextos psicológico, social e

histórico, enfim, pelo contexto de comunicação. Todos esses aspectos não

prescindem do material linguístico que qualquer texto - literário ou não - oferece-

nos.

De modo confluente e demonstrando a importância do entendimento da

história da crítica literária para a construção de um modelo de análise do discurso,

Maingueneau (2006) explicita uma problemática que envolve o uso da

terminologia “discurso literário”. Para o autor, o termo soa ambíguo e designa, por

um lado, a vinculação a um estatuto pragmático relativamente bem caracterizado

e, por outro, uma unidade estável que permite o agrupamento de um conjunto de

fenômenos que são parte de épocas e sociedades diversas entre si.

Maingueneau (2006) propõe ainda uma separação entre os termos

discursividade literária e discurso literário, esse está relacionado às condições de

literatura moderna e aquela está associada ao acolhimento das variadas

configurações, admitindo assim uma irredutível dispersão de discursos literários.

O autor expõe ainda que a elaboração de uma proposta de análise do discurso

literário não é aplicável a obras de todas as épocas e de todos os países, por isso

a necessidade de concentração de esforços analíticos em algumas obras e em

algumas épocas sob alguns aspectos definidos. A dificuldade de uma elaboração

de proposta analítica literária se dá por conta dos diferentes contextos históricos e

geográficos em que se situam as obras, que devem ser levados em conta para

um análise literária substancial.

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1.2 – Maingueneau: o modelo de Pragmática Literária

O caminho percorrido por Maingueneau, para a construção de um modelo

de análise do discurso literário, tem seu ponto de partida nos estudos filológicos

do final do século XIX, época em que esses estudos literários gozam de uma

considerável hegemonia. A filologia está centrada nos estudos dos textos antigos

e medievais que atingiram o cânone de textos estéticos; outras áreas do saber

humano voltam suas atenções para o estudo de textos em geral, sem valor

estético. Apesar de o surgimento da Linguística ter ocorrido no mesmo século1,

ainda assim a literatura era um corpus destinado aos estudos dos filólogos. A

história da filologia constitui na França uma redução de amplitude, já que, na

Alemanha, por meio do empreendimento estilístico de Leo Spitzer, a filologia

possuía um projeto mais amplo que não se detinha somente a aspectos verbais

do texto e a determinada época de produção literária, fator que colocava a

Alemanha um passo a frente nas questões de análise de textos estéticos.

(Maingueneau, 2006)

Spitzer, segundo Maingueneau (op. cit, p. 19), propõe que a obra deve ser

apreendida como uma totalidade orgânica em que todos os aspectos exprimem o

espírito do autor, princípio espiritual que lhes confere unidade e necessidade.

Para Spitizer, o analista do discurso literário deve partir dos dados linguísticos do

texto a fim de empreender uma busca da natureza de um grande escritor. O estilo

desse “grande escritor” não está tão somente ligado a um conjunto de

procedimentos na linha da retórica, mas também a uma visão particular de mundo

que atinge a mentalidade coletiva. Enquanto na França a crítica literária da época

estava centrada na História da Literatura, na Alemanha estava nas mãos dos

estetas que voltavam sua atenção para o material linguístico que revelava os

contextos de produção artística. Em ambos os casos não se enxergam teorias

concretas sobre o texto literário.

Em seguida, ainda nas primeiras décadas do século XX, surge a

Abordagem Marxista de análise literária, que não representa grande avanço em 1 Maingueneau considera que o surgimento da Linguística se dá com a fundação da Societé de linguistique de Paris em 1867, portanto, final do século XIX.

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relação aos estudos filológicos anteriores. Essa abordagem analítica volta seus

esforços para a comprovação de que uma obra literária traz reflexos ideológicos,

mais precisamente sobre a luta de classes. A literatura, numa visão atomizadora,

é o veículo de posicionamento ideológico de prosadores e poetas que constroem

uma consciência coletiva por meio de textos estéticos.

Maingueneau expõe-nos ainda as abordagens estruturalistas de crítica

literária, inimigas dos estudos filológicos, melhor dizendo, da História Literária. Na

vertente estruturalista, temos tão somente a preocupação com a análise interna

das obras e a recusa a propostas fragmentárias. A obra deve ser encarada como

um produto sem sujeito, havendo, portanto, a negação de leituras originais por

parte do leitor, que estaria escravizado por aquilo que é determinado pela língua,

e a negação da História no processo de formação de ideias. Percebemos críticas

a esse modelo nestas palavras de Maingueneau:

Com o estruturalismo, estava-se nas antípodas dos empreendimentos precedentes, dado que se trata de, em nome de um postulado da “imanência”, recusar a sujeição do texto à consciência...Longe de consumar a ruptura com a estética romântica, o estruturalismo literário, apesar da reivindicação teatral de um “processo sem sujeito”, teria a tendência de se apoiar noutro aspecto da estética romântica: a afirmação do autotelismo da obra de arte, relegando por isso ao segundo plano a inscrição das obras literárias nos processos enunciativos e nas práticas discursivas de uma sociedade. (MAINGUENEAU, 2006, p. 28-29)

A década de 60 do século XX marca a tentativa de dissociação de texto e

contexto. O estruturalismo, baseado numa linguística estruturalista já passada,

favorece naturalmente o desenvolvimento da corrente pragmática de análise de

discurso da década de 70. Estudos públicos de Benveniste sobre a enunciação

em 1958 e de Jakobson sobre os dêiticos em 1957, bem como os livros de Austin

sobre os atos de fala em 1962 marcam a recusa aos preceitos do estruturalismo.

Somente os elementos cotextuais não dão mais conta de se formular um modelo

de análise literária consistente. Maingueneau afirma que o surgimento de novas

correntes centradas na enunciação, na subjetividade e no empreendimento

genérico marca caminhos divergentes entre o estruturalismo e as ciências da

linguagem. Surgem, por fim, as abordagens discursivas.

Também na década de 60, surgem outras abordagens na crítica literária.

Dentre elas, citamos a Teoria da Recepção, voltada para a relação entre a obra e

o horizonte de expectativa da obra literária; nesse modelo o leitor assume papel

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relevante. Surge, na mesma época, o enfoque sobre os processos cognitivos com

nítida orientação para a cooperação do leitor no processo comunicativo. Essas

abordagens se recusam a pensar a obra como um universo recluso em si mesmo,

como expressão de uma criação solitária; o leitor se encontra incluído no

momento da constituição da obra, que só pode ser chamada der “obra” por meio

dos processos cognitivos e práticas que lhe conferem significados.

Concomitantemente, ganham forças os estudos sobre a intertextualidade, que

postulam a superioridade do interdiscurso sobre o discurso (Maingueneau, 2006).

Notamos que os estudos sobre a intertextualidade ressaltam uma

orientação já vigente na década de 60: a de que a obra não constitui um produto

solitário, mas sim seria o cruzamento de múltiplas vozes e de múltiplos textos,

noção que remete ao conceito de polifonia bakhtiniana.

Ao construir sua pragmática para o discurso literário, Maingueneau (1996)

afirma a importância de o discurso literário constituir uma encruzilhada de vozes.

Apresenta, assim como Bakhtin (2003), a importância do empreendimento

genérico para a análise do discurso literário, denominando-o como macroatos de

linguagem ou de valor ilocutório global. Em sua Pragmática para o discurso

literário, Maingueneau elabora um modelo de análise que leva em conta todos os

elementos envolvidos no discurso: intenções dos interlocutores, contexto e

cotexto. O teórico relativiza o posicionamento de Searle (1972) de que a ficção

constituiria um fingimento, e apoia-se em Genette (1982), que prefere denominar

a ficção como um ato de linguagem indireta:

Todavia deve-se estar atento para o fato de que a noção de ficção não coincide absolutamente com a de literatura e de que a literatura é constituída de obras e não de enunciados isolados. Não se conseguiria reduzir a ficção literária a uma atitude do locutor com relação à sua própria enunciação, pois uma das singularidades do discurso literário é precisamente tornar problemática a própria noção de enunciador, dissociar o indivíduo que escreve das representações do autor que a instituição literária permite definir. (MAINGUENEAU, 1996, p. 28)

Em estudos posteriores, Maingueneau (2006), a fim de construir uma

pragmática para o discurso literário e elencar fatores observáveis nesse tipo de

comunicação, apoia-se na teoria da comunicação mais geral. Para o teórico, as

leis que regem os “discursos reais” podem ser sobrepostas à literatura que seria

entendida como uma representação ficcional da realidade comunicativa que nos

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cerca. Afirma, ainda, que todo discurso traz elementos básicos e imprescindíveis:

o fato de ser uma organização transfrástica, o que não o reduz ao tamanho de

uma frase, apesar de haver discursos de uma frase somente; uma forma de ação,

numa relação direta aos atos ilocutórios de Searle (1972); uma interação, afinal

toda enunciação é um intercâmbio; uma orientação, pois possui objetivos; uma

contextualização, já que ocorre num contexto; uma autoria, dado que possui

pontos de referência de pessoa, tempo e espaço; uma orientação normativa, já

que é regido por leis; e, por fim, uma interdiscursividade, visto que o menor

enunciado mantém relações intertextuais com outros enunciados.

O caminho traçado por Maingueneau (1996, 2006) aponta-nos para um

aprofundamento, não somente da noção de discurso literário, mas também da

construção de um modelo de análise. Após elaborar uma pormenorizada linha

histórica da crítica literária, Maingueneau orienta-nos para alguns conceitos

relevantes sobre a construção de sentidos da e na literatura, que vão além de

uma simples especulação sociológica ou textual. Conceitos como o de paratopia,

embreagem paratópica, cenografia, pressupostos e subentendidos, leis do

discurso, contrato literário, ethos, veículo e obra, código de linguagem e

interlíngua, gêneros discursivos e posicionamentos, intertextualidade e contexto

constituem um modelo complexo de análise do discurso literário. Entretanto nos

fixaremos mais detidamente sobre dois desses aspectos que, para a análise de

Alice no País das Maravilhas, parecem-nos mais adequados ao trabalho de

pesquisa que pretendemos elaborar: a intertextualidade e o contexto da obra

literária.

1.3 – Intertextualidade e discurso literário

Para a abordagem do primeiro aspecto e sua relação com a discursividade

literária, recorremos aos conceitos de intertextualidade sob o ponto de vista de

Genette (1982), Maingueneau (1996) e Koch et al (2007). Depois da exposição

dos posicionamentos assumidos acerca do tema, ressaltamos a importância

desse levantamento teórico para a concretização do discurso literário intertextual

em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, traduzido e adaptado por Ana

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Maria Machado. A compreensão teórica desses conceitos nos auxilia na análise

do discurso literário.

Naturalmente, nossos esforços se voltaram para a abordagem de um outro

conceito sobre o qual se baseiam os estudos sobre a intertextualidade: a polifonia

bakhtiniana. Sabemos que temos nas mãos uma teoria densa que não poderia se

esgotar num texto de natureza breve, portanto, devemos centrar nossa atenção

para os conceitos de transtextualidade de Genette (1982), já que Maingueneau

(1996) e Koch et al (2007) apoiam suas abordagens sobre intertextualidade nos

estudos do teórico francês.

Expostos os conceitos, apresentamos sua aplicação diretamente na obra

literária que analisamos neste trabalho. O conto Alice no País das Maravilhas

representa exemplo perfeito de uso da intertextualidade em provérbios, parlendas

e cantigas populares e isso constitui fator determinante para a construção dos

sentidos mais globais do conto. Temos como intenção promover essa

interpretação nos alunos, portanto, entendemos a análise intertextual e discursiva

da obra como fator decisivo para a análise do discurso literário.

O conceito mais consensual e correto sobre a intertextualidade nos traz a

noção de que obras se sucedem, se depositam em estratos, não se eliminam e

terminam por criar um espaço intertextual. Os sentidos provêm de um diálogo, ou

de uma ressonância de obras dentro da obra e essa ressonância está, em parte,

ligada a determinado tempo. Nenhum texto é criado independentemente de outros

que lhe antecedem; um texto atual qualquer toma um outro de uma maneira, mais

ou menos visível, dependendo das intenções do autor. Se for definida dessa

forma, a intertextualidade é anterior às décadas de 60 e 70, momento em que

ocorre a intensificação e disseminação do tema por meio dos estudos de Julia

Kristeva; ela estaria no final da década de 20, nos aspectos teóricos de Bakhtin

(2008).

Antes de situarmos a abordagem teórica de Kristeva (1969), é importante

propor uma definição da polifonia bakhtiniana, uma vez que muitos teóricos

modernos ligam a polifonia aos estudos preliminares sobre intertextualidade.

Primeiramente, concordamos com Brait (2008), para quem o conceito de polifonia

não deve ser confundido com o de dialogismo, porque este é o princípio dialógico

constitutivo da linguagem e aquela se caracteriza por vozes polêmicas em um

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discurso. Há gêneros dialógicos monofônicos (uma voz que domina as outras

vozes) e gêneros dialógicos polifônicos (vozes polêmicas). Segundo a autora, o

texto irônico é sempre polifônico, mas um artigo de opinião não é polifônico

porque há uma voz dominante sem efeito polêmico. Em relação ao gênero

romance, Brait, recorrendo a Bakhtin, afirma que todos os romances apresentam

diferentes vozes que se defrontam, manifestando diferentes pontos de vista

sociais sobre um dado objeto; portanto, é gênero polifônico por natureza.

Ainda nessa abordagem da importância do empreendimento dos gêneros

no discurso literário, Kristeva (1969), quando apresenta ao público francês a obra

A Poética de Dostoievski, explica que a escolha por um determinado gênero

textual já é carregada de intenções e sentidos. Conforme Kristeva (1969), a noção

de gênero é, para Bakhtin, o depósito de uma memória literária, já que ler um

gênero literário e compreendê-lo significa a entrada no tempo da própria literatura,

dimensão que representa a superação dos estudos formalistas russos. Em

sentido confluente, Maingueneau (2006) aborda em seus estudos a importância

do empreendimento genérico do autor de obras literárias. Para ele a noção de

gênero e memória associada aos estudos sobre polifonia nos remete à noção de

interdiscurso, numa clara separação entre os conceitos de intertextualidade e de

interdiscursividade. Tanto Kristeva, ao citar Bakhtin, quanto Maingueneau, ao

propor suas teorias sobre o interdiscurso, permitem-nos afirmar, de antemão, que

a polifonia, o dialogismo e, consequentemente, a intertextualidade se concretizam

nos diversos gêneros por meio dos quais se elaboram os discursos.

Sem abordar diretamente a noção de interdiscurso ou de memória literária,

Genette (1982) define intertextualidade em Palimpsestes de modo a separá-la em

categorias observáveis. Para o autor, ela não constituiria um elemento solitário,

mas estaria ligada a outras categorias de intertexto, denominando o conjunto

desses cinco níveis por transtextualidade. Percebemos, no autor, um

prolongamento do pensamento de Bakhtin (2008), para quem o discurso encontra

o discurso do outro em todos os caminhos que o levam rumo a seu objeto, e não

pode não entrar com ele em interação viva e intensa (Bakhtin apud Maingueneau,

1996, p. 27). A transtextualidade para Genette está dividida da seguinte forma:

A intertextualidade, que constitui uma relação de copresença entre dois

ou mais textos de forma explícita ou implícita (alusões, plágios, citações);

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a paratextualidade, que é a relação que um texto mantém com o conjunto

que o compõe (organização de títulos, advertências, prefácios, posfácios e notas);

a metatextualidade, que está voltada para a crítica literária em geral,

entendida como um comentário de um texto a outro texto sem necessariamente

citá-lo;

a arquitextualidade, que estabelece uma relação do texto com o estatuto

a que pertence (tipos de discurso, tipologia textual, estilos e modos de

enunciação, gêneros literários etc).;

a hipertextualidade , que estabelece uma relação entre um hipotexto (texto

de origem) e um hipertexto (texto derivado).

Recorremos a Koch et al (2007) para compreender mais adequadamente a

hipertextualidade. As autoras afirmam que, para a concretização da

hipertextualidade, um texto deve ser derivado de um outro texto – que lhe é

anterior, por transformação simples, direta, ou, de forma indireta, por imitação

(Op. cit., p. 134). Teríamos aqui incluídos os pastiches, as paródias e o

travestimento burlesco.

Genette (1982) ressalta que, na hipertextualidade, estão incluídas todas as

relações de união entre um hipertexto e um hipotexto, sobre o qual se faz uma

referência que não é como um comentário. O hipertexto é derivado de um outro

texto por meio de uma operação de transformação. As transformações simples

podem ser exemplificadas como transposição da ação de um hipotexto numa

outra época, como O Ulisses, de James Joyce. Já as transformações indiretas

(imitação) engendram um novo texto por meio de uma transposição

preliminarmente genérica, como a Eneida de Virgílio. Nesse ponto, teríamos um

diálogo bastante grande com Koch et al (2007), que aprofundam a noção de

hipertextualidade. Na abordagem das autoras, encontramos a noção de

intertextualidade temática, que, dependendo de sua construção genérica, pode

incluir também a intertextualidade estilística. Notemos que não existe somente

uma intertextualidade de forma, pois a forma emoldura intenções:

Descartamos a possibilidade de existência de uma intertextualidade apenas de forma, como por vezes se costuma postular, já que defendemos a posição de que toda a forma necessariamente emoldura, enforma determinado conteúdo, de determinada maneira. A

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intertextualidade estilística ocorre, por exemplo, quando o produto do texto, com objetivos variados, repete, imita, parodia certos estilos ou variedades linguísticas: são comuns os textos que reproduzem a linguagem bíblica, um jargão profissional, um dialeto, o estilo de um determinado gênero, autor ou segmento da sociedade. (KOCH et al, 2007, p. 19)

Segundo as pesquisas que realizamos, não podemos considerar as cinco

categorias da intertextualidade como classes estanques, sem relações recíprocas

entre elas. Quando há uma nota de rodapé numa obra literária, remetendo o

hipertexto a seu correspondente hipotexto, temos a combinação da

metatextualidade, da paratextualidade e da hipertextualidade. Somos,

naturalmente, obrigados a considerar a nota de rodapé como caráter decisivo

para a construção de significados e para a ressignificação do intertexto. A

comunicação entre as categorias é fator que não pode ser desconsiderado.

Afirmamos, baseados nos estudos dos teóricos abordados neste capítulo,

que o discurso literário apresenta uma aproximação da hipertextualidade que não

pode deixar de ser notada. É certo que algumas obras são mais hipertextuais do

que outras, entretanto todas se filiam, em menor ou maior grau, a hipotextos.

Parece-nos claro também que, quanto menos uma obra literária revelar a

hipertextualidade, mais a construção dos sentidos estará a cargo do leitor que

poderá estabelecer relações mais ligadas a seu próprio repertório e julgamento.

Koch et al (op. cit.) ampliam a noção de intertextualidade proposta por

Genette (1982), dividindo a intertextualidade em duas vertentes: a stricto sensu e

a lato sensu. Dentro da vertente stricto sensu, encontramos os casos de

intertextualidade temática (que está relacionada à retomada de temas, por

exemplo, A Gota d´Água, de Chico Buarque, retoma Medeia de Sêneca); a

estilística (que está ligada à imitação de determinados estilos ou variedades

linguísticas); a implícita (que é a retomada sem marcas de fonte) e a explícita

(que é a retomada com marcas de fonte).

As autoras afirmam que a ocorrência de casos de intertextualidade implícita

pode se dar por captação, em que o texto de origem serve como base genérica

ou temática para o texto derivado sem inversão dos conteúdos temáticos; ou por

subversão, em que a base é a mesma da captação, ocorrendo, entretanto,

inversão do tema, o que gera efeitos críticos ou humorísticos. Apesar de a

captação e subversão fazerem parte da intertextualidade implícita, nada impede

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que elas estejam submetidas à intertextualidade explícita, já que basta uma

menção às fontes para que o texto derivado tenha sua origem manifestadamente

declarada.

Koch et al (Op.cit.) retomam o conceito de détournement proposto por

Gréssillon & Maingueneau (1984). Para eles, o détournement consiste na

construção de um enunciado com marcas proverbiais, mas que não pertencem à

cultura de provérbios já existentes. Para os autores, esses enunciados podem

possuir duas orientações, uma lúdica e outra militante. No détournement lúdico,

teremos o jogo de palavras ou de sons; no militante, teremos uma crítica com

intenções de ironia, ridicularização, contradição, adaptação a novas realidades.

Kock et al (Op.cit.) preferem não adotar essa separação, pois acreditam que todo

détournement é essencialmente militante, já que sempre orienta o interlocutor

para a construção de novos sentidos.

De acordo com Koch et al (op. cit.), numa análise mais pormenorizada, os

détournements podem ocorrer em casos de retextualização de provérbios,

poemas, frases feitas, canções e ditos populares por substituição de fonemas e

de palavras; por supressão de fonemas e palavras; por transposição (contradição

ao texto fonte); por acréscimo de adversidades, de outros conectivos, de

inversões de polaridade (negativa/positiva). A análise da transposição proposta

pelas autoras é relevante para o entendimento da obra literária com que

trabalhamos, já que a maioria dos casos de intertextualidade em Alice se dá por

meio desse artifício. No item 1.4, explicitaremos como ela acontece na obra que

estudamos.

Finalizando, Koch et al ainda expõem outros casos importantes de

détournement. Dentre eles, destacamos aquele que apresenta um

empreendimento textual genérico, como a retomada de fábulas de Esopo por

Millor Fernandes. Sob um ponto de vista mais restrito, as autoras consideram

como caso de détournement “genérico” somente quando o mesmo se refere ao

gênero fábulas; mas sob um ponto de vista mais amplo, denominado

intertextualidade lato sensu, encontramos os estudos sobre a intertextualidade

genérica à qual o détournement de fábulas e contos de fadas podem pertencer.

Koch et al (op.cit.) ratificam a importância dos gêneros textuais na construção do

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discurso intertextual e, numa aproximação evidente ao conceito de

arquitextualidade de Genette (1982), as autoras afirmam:

Para Bauman e Briggs (1995), os gêneros não podem ser devidamente caracterizados como um lócus de realização de propriedades imanentes de textos ou de performances particulares. Baseando-se em Bakhtin, os autores consideram que os gêneros são fundamentalmente intertextuais, já que os processos de recepção de um determinado gênero pressupõem uma ligação necessária com textos e/ou discursos anteriores. Os autores afirmam que, diferentemente da maioria dos exemplos de discurso reportado, esta ligação se dá não com enunciados isolados, mas com modelos gerais e/ou abstratos de produção e recepção de textos/discursos. Sendo assim, sugerem que a criação de relações intertextuais por meio da manipulação dos gêneros servem para, simultaneamente, produzir ordenação, unidade e limites para os textos e, também, para mostrar seu caráter fragmentado, heterogêneo e aberto. (KOCH et al, 2007, p.89)

Apresentamos a seguir um esquema da abordagem de Koch et al (2007)

para que possamos visualizar de maneira mais adequada a organização dos

conceitos explicitados pelas pesquisadoras. Isentamo-nos de antemão do

aprofundamento que a autora faz da Linguística Antropológica na segunda parte

do livro em análise, já que nos parece mais correto adotar a primeira parte dos

estudos, centrados na abordagem de intertextualidade de Genette (1982) e nos

conceitos de intertextualidade stricto sensu, afinal, trabalharemos mais adiante

com exemplos retirados da obra Alice no País das Maravilhas.

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Esquema 1 baseado na teoria consultada em Koch et al (2007)

INTERTEXTUALIDADE

INTERTEXTUALIDADE STRICTO SENSU

INTERTEXTUALIDADE LATO SENSU

POLIFONIA

TEMÁTICA IMPLÍCITA ESTILÍSTICA EXPLÍCITA

CAPTAÇÃO SUBVERSÃO

DÉTOURNEMENT

TRANSPOSIÇÃO SUBSTITUIÇÃO ACRÉSCIMO

ADVERSIDADE NEGAÇÃO/ AFIRMAÇÃO

SUPRESSÃO

OUTROS PALAVRAS FONEMAS

LÍNGUÍSTICA ANTROPOLÓGICA

Bauman e Briggs (1995)

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Não nos esqueçamos de que Maingueneau (1996) aponta a importância da

compreensão dos conceitos sobre a transtextualidade para a constituição da

discursividade literária. A intertextualidade é um aspecto que assume relevância

na análise do discurso. O foco desses estudos recai sobre os conceitos de

arquitextualidade e hipertextualidade e, mesmo que não sejam explicitamente

apresentados por Maingueneau (1996), permite a inferência de que o

empreendimento genérico e tipológico de uma obra literária é importante para

uma análise discursiva consistente, uma vez que a escolha entre os gêneros e

tipos constitui fonte de significações.

O autor expõe ainda um problema terminológico, pois para a análise do

discurso ocorre a distinção entre intertextualidade e interdiscurso. A primeira é

constituída pelo conjunto de textos com o qual um texto particular entra em

relação; o segundo é o conjunto de gêneros e tipos de discurso que interagem

numa dada conjuntura (Maingueneau, 2006, p. 164), ou seja, representa a

comunicação em sua concretização. Maingueneau afirma que o privilégio sobre a

intertextualidade na análise do discurso literário não interfere necessariamente no

entendimento “textualista” da literatura, portanto o essencial não seria uma

afirmação de intertextualidade radical, mas o modo como cada posicionamento

gera essa intertextualidade, isto é, os autores de literatura assumem um

posicionamento intertextual quando escolhem um determinado gênero discursivo

ou tipo textual.

Ao introduzir essa noção de posicionamento, Maingueneau (op. cit) expõe-

nos que o discurso literário mantém uma relação essencial com a memória. O

posicionamento implica um certo percurso do arquivo literário, e a escolha do

autor por determinadas formas marcadas pela tradição torna-se mais importante

do que o próprio intertexto. A definição por uma forma e a exclusão de outras

determinaria, segundo Maingueneau, uma construção de identidade do escritor:

Para se posicionar, para construir para si uma identidade, o criador deve definir trajetórias próprias no intertexto. Mediante os percursos que ele traça no intertexto e aqueles que exclui, o criador indica qual é para ele o exercício legítimo da literatura. Ele não se opõe a todos os outros exercícios tomados em bloco, mas essencialmente a alguns deles: O Outro é qualquer um, mas aquele que é primordial não ser.(MAINGUENEAU, 2006, p.163)

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O autor afirma que, quando se fala em intertexto literário, pensa-se em

outros textos literários, entretanto, as obras não se alimentam somente de outras

obras, mas também de relações com enunciados que, numa determinada

conjuntura, não vêm da literatura. Em estudos anteriores, Maingueneau (1995)

afirma que a literatura não é determinada somente pelos intertextos, mas também

pela tensão entre um “não lugar” (que representa uma negação a determinadas

formas e textos anteriores) e um “lugar” (que representa o posicionamento, a

afirmação). O mesmo teórico (1995, p.174) define isso como a embreagem

paratópica, que é constituída pelos elementos de ordens variadas que participam

simultaneamente do mundo representado pela obra e da situação paratópica

através da qual se define o autor.

Notamos que as noções de embreagem paratópica e de interdiscurso

confluem com o conceito de polifonia de Bakhtin (1929), já que, para

Maingueneau (1996) o texto é uma encruzilhada intertextual em que a palavra do

enunciador é constantemente habitada por outras, tessitura de vários ecos que

podem confluir ou divergir. Enfim, conjunto de vozes polêmicas num discurso,

constituindo-o como monofônico (confluente) e polifônico (divergente).

1.4 - Alice: labirinto intertextual

A obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, traduzida e

adaptada por Ana Maria Machado constitui um mosaico de vozes que faz do

conto um campo de investigação bastante frutífero. Neste momento do trabalho,

enfocaremos a tradução brasileira que manteve a exploração intertextual proposta

por Carroll, que, ora, entenderemos como posicionamento do autor. Certamente,

vamos nos preocupar também com o posicionamento de Ana Maria Machado,

como elemento precípuo para a construção do labirinto intertextual. Segundo

Maingueneau (2006), a noção de posicionamento está ligada à construção de

uma identidade da própria obra literária:

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Refletir sobre a emergência das obras é considerar o espaço que lhes dá sentido, o campo em que se constroem os posicionamentos: doutrinas, escolas, movimento...Trata-se da construção de uma identidade enunciativa que é tanto “tomada de posição” como recorte de um território cujas fronteiras devem ser incessantemente redefinidas. Esses posicionamentos não são apenas doutrinas estéticas mais ou menos elaboradas; são indissociáveis das modalidades de sua existência social, do estatuto de seus atores, dos lugares e práticas que eles investem e que os investem. (MAINGUENEAU, 2006, p. 151)

Para respeitar a literatura nonsense do original, Ana Maria Machado se

baseia em aspectos da cultura brasileira para que o público infantil se aproxime

da obra; esse será o posicionamento da autora. Cantigas populares e poemas de

poetas consagrados fazem parte do mundo “incoerente” e assumem a forma

parodística no sentido bakhtiniano, fazendo da Alice de Machado um conto

polifônico, em que as vozes entram em choque para a caracterização da literatura

nonsense.

Percebemos que no conto adaptado ocorre o travestimento burlesco

proposto por Bakhtin (2008), uma vez que as vozes polêmicas de Alice promovem

o polifonismo. Encontramos uma Alice inglesa travestida à moda brasileira,

matizada pelas cores nacionais, pela cultura popular. Esse travestimento promove

simultaneamente a aproximação a um clássico da literatura inglesa e a uma

revisão das culturas popular e erudita de nosso país. Conjunto que engendra o

riso por meio da paródia.

Alice, quando tenta recitar A casa de Vinicius de Moraes, atrapalha-se na

composição e organização das palavras. Ela troca as cenas enunciativas, da casa

engraçada passa para a escola engraçada. O mundo fantasioso da casa

inexistente de Vinícius de Moraes ganha contornos fantásticos num outro

ambiente do qual a obra de Ana Maria Machado certamente fará parte: a escola.

Esse ambiente torna-se o espaço do imaginário da criança, onde as ações são

livres. Temos nesse caso ocorrência da hipertextualidade e da arquitextualidade

propostas por Genette (1982), já que Ana Maria Machado opta por manter o

gênero poesia infantil, as descrições e os versos tetrassílabos e pentassílabos

(redondilhas menores):

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Era uma casa Muito engraçada Não tinha teto Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela não Porque na casa Não tinha chão Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa Não tinha parede Ninguém podia Fazer pipi Porque penico Não tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na rua dos bobos Número zero. (MORAES, 1991, p. 28)

Era uma escola Muito engraçada, Não tinha livro, Não tinha nada. Ninguém podia Estudar lição, Porque o lápis Caía da mão. Ninguém podia Aprender besteira Porque na sala Não tinha carteira. Ninguém podia Fazer dever Ia tremer. Ninguém podia Escrever com giz Porque entrava Pó no nariz. Mas era feita Com bom capricho Na Rua do Gato, País do Bicho. (MACHADO, 2003, p. 53)

Fato semelhante ocorre com as cantigas “como pode um peixe vivo viver

fora d´água fria?”; “meu limão, meu limoeiro” e “boi-da-cara-preta”. A protagonista

tenta apresentar seus conhecimentos sistematizados e o resultado é desastroso;

algo que corrobora um mundo em que a ordem natural é a menos importante, por

isso o discurso é (re)(des)construído. A importância está direcionada para a

reconstrução dos sentidos e para o efeito humorístico daquilo que é considerado

simples “brincadeira” das palavras. A intertextualidade constitui na obra estudada

uma ferramenta discursiva que contribuirá para a manutenção da literatura

nonsense empreendida por Carroll e corroborada por Ana Maria Machado.

Vejamos:

Como pode um peixe vivo Viver fora da água fria Como pode um peixe vivo Viver fora da água fria Como poderei viver Como poderei viver Sem a tua, sem a tua Sem a tua companhia (RETIRADO DA TRADIÇÃO POPULAR)

Como pode um crocodilo viver dentro da água fria? Navegando pelo Nilo, boca aberta de alegria... Como poderá viver? Como poderá nadar? Sem um peixe, sem um sapo, na bocarra a mastigar

(MACHADO, 2003, P. 25)

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No caso dessa cantiga e de outros exemplos de intertextualidade contidos

na obra, notamos a preocupação da adaptadora na manutenção estrutural da

versificação e da métrica (quadras e redondilhas maiores). Afirmamos que, em

todos os casos de intertextualidade de Alice, podemos encontrar a noção de

détournement trabalhada por Gréssillon & Maingueneau (1984) e ampliada por

Kock et all (2007), para quem todo détournement é essencialmente militante e

orienta o leitor para a construção de novos sentidos. No caso das cantigas

populares, é perceptível a preocupação da adaptadora em construir sentidos

variados que contribuem para a significação da obra. Alice está num mundo sem

muita coerência; torna-se natural que ela não consiga recitar a cantiga que,

mesmo no mundo real, já perdeu seu valor entre as crianças.

A recriação da cantiga torna-se fonte de análise, já que não vemos mais a

solidão como fator importante, mas, sim, o questionamento de como se pode viver

sem comer, sem alimento. Na cantiga original, ocorre a aproximação entre o peixe

viver fora da água fria e o eu lírico viver sem o outro, além de notarmos a

presença do eu lírico mais marcada, dado que temos o texto em primeira pessoa.

O eu-lírico da cantiga recriada não se preocupa com a solução; afasta-se do

questionamento; está em terceira pessoa; preocupa-se não com a solidão do

crocodilo, mas com a alimentação. Essas afirmações corroboram a postura

militante da adaptadora: as pessoas estão mais preocupadas com as

necessidades primeiras de sobrevivência, e não com as companhias.

Em Dorme Neném ocorre enunciação semelhante, pois, por meio da

intertextualidade, constrói-se significação militante em détournement de caráter

lúdico, em que os desvios promovidos pela recriação auxiliam na construção dos

significados:

Dorme, neném, que a Cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar. (Retirado da tradição popular)

Dorme, neném, Do meu coração, Papai foi pra roça Mamãe ta no portão. (Retirado da tradição popular)

Dorme, neném, Do meu trambulhão, Papai foi à caça, Mamãe faz pimentão. (MACHADO, 2003, p. 64)

Os dois primeiros exemplos são retirados da cultura popular. O primeiro

carrega um significado considerado por muitos como mais assustador: a criança

se vê sozinha e corre o risco de ser capturada pela Cuca. Como crianças sempre

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estão dispostas a brincar com letras de cantigas, “dorme neném” sofreu algumas

transformações com o passar dos anos. A substituição de “ a cuca vem pegar” por

“do meu coração” carrega a cantiga de afetividade, e Ana Maria Machado optou

por essa segunda versão da cantiga para reconstruir o discurso, afinal

“trambulhão” tem referência sonora com “do meu coração”.

A cantiga recriada pela adaptadora carrega também significados que

confluem com a cena enunciativa em que se encontra a protagonista da obra:

uma marquesa segura um bebê que chora muito e tenta fazê-lo dormir, enquanto

uma cozinheira faz uma sopa com muita pimenta que incomoda a todos que estão

presentes na casa. “Trambulhão” não existe no dicionário de língua portuguesa,

portanto, o neologismo nos permite algumas aproximações com “trambolho” e,

nesse caso, a criança seria um incômodo para a Marquesa, e com “trambolhão”

que, na botânica, é entendido como uma árvore (angiosperma) à qual pertencem

todas as espécies de pimentas.

Podemos citar outros exemplos de intertextualidade que contribuem para a

significação da cena enunciativa em que estão inseridas as personagens, como a

dos diálogos entre Alice e a Falsa Tartaruga, quando são retomadas a marcha de

carnaval Ó jardineira, a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, e a cantiga Sapo-

Cururu. Reafirmamos que todos esses exemplos contribuem para a compreensão

geral da obra em análise, ou seja, para a construção da coerência discursiva:

Ó jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, Deu dois suspiros e depois morreu (...) Vem jardineira, vem, meu amor, Não fiques triste, que este mundo é todo teu Tu és muito mais bonita Que a camélia que morreu... ORLANDO SILVA

Ó tartaruga, por que estás tão triste? Mas o que houve com o camarão? É que a enguia deu um choque nele, E agora dança com o tubarão... Vem, tartaruga, vem, meu amor, Não fiques triste, que o linguado é todo teu, Tu és muito mais bonita Que a lagosta que morreu. (MACHADO, 2003, p. 103)

Os exemplos de intertextualidade aqui expostos demandam um

aprofundamento da construção do discurso literário em Alice, dada a variedade de

enunciações que não são facilmente resolvidas numa leitura mais desatenta dos

dados linguísticos, do cotexto. Compreender a intertextualidade em Alice é

legitimar a obra como um discurso coerente, como enunciação implícita.

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Maingueneau, ao se referir à obra literária, alerta-nos sobre as especificidades do

discurso literário:

Para legitimar suas transgressões das leis do discurso, a literatura sempre pode invocar uma distinção entre o sentido manifesto e o sentido verdadeiro da obra. O conjunto do texto funciona então como um vasto ato de linguagem indireta que exige do destinatário um trabalho de derivação de um sentido escondido. Ocorre com essas justificações o mesmo que com outras do mesmo tipo: elas fazem parte da obra, que se define pela relação entre seus textos e a chave interpretativa que este pretende impor ao leitor. (MAINGUENEAU, 1996, p. 149)

As construções intertextuais em Alice constituem a sua própria coerência

discursiva. Não nos esqueçamos de que estamos nos limites do discurso literário,

logo, as transgressões discursivas, apesar de parecerem incoerentes, fazem-nos

refletir que é nessa incoerência que reside um ponto gerador de sentidos para a

obra. O posicionamento da adaptadora - assumido como forma de manter o

posicionamento inicial do autor Lewis Carroll, que retirou, para a confecção do

original, cantigas típicas e ditos populares da tradição inglesa do século XIX – é

coerente, está em situação de concordância com o conto original. Mais ainda, o

resultado estético é semelhante àquele produzido por Carroll quando do

lançamento da obra na Inglaterra.

Neste momento de nossa análise, torna-se importante resgatar a coerência

discursiva da obra literária que analisamos. Para que consigamos essa

empreitada, devemos recorrer aos aspectos teóricos sobre a transgressão das

leis do discurso, já que é neles que encontramos a chave de interpretação de

Alice e de nós mesmos.

1.5 - Leis do discurso e discurso literário: a cons trução dos sentidos

Sabemos que, ao produzir enunciados, os interlocutores tomam um

posicionamento a favor da compreensão, e, para realizá-la, cooperam entre si na

construção de enunciados compreensíveis. Surge-nos, neste momento, uma

questão que nos parece crucial: Alice é um conjunto de enunciados que, fora do

discurso literário em que se insere, constituiria um amontoado de diálogos e

situações incoerentes. Nenhum diálogo entre as personagens possui sentido

numa primeira leitura. Alice, mesmo caindo em um buraco sem fundo, pensa em

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recitar canções, retomar lições aprendidas na escola. A personagem não estranha

que um coelho possa falar, mas que ele use colete e relógio:

Por isso estava pensando (do jeito que podia, porque fazia tanto calor que estava morrendo de sono e se achando meio burra) e tentando resolver se, para ter o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas, valia a pena ter o trabalho de se levantar e colher as flores, quando, de repente, um coelho branco, de olhos cor-de-rosa, passou correndo junto dela. Não havia nada de muito especial nisso. E Alice nem achou esquisito demais quando ouviu o coelho falar sozinho: - Ai, meu Deus! Meu Deus! Eu vou chegar atrasado! – Quer dizer, mais tarde, quando lembrou disso, ela achou que devia ter-se espantado, mas na hora achou perfeitamente natural... é que de repente ela se deu conta de que nunca antes tinha visto um coelho com bolso de colete, nem com relógio para tirar do bolso. (MACHADO, 2003, p. 13-14).

Antes de tentarmos reconstruir alguma coerência da obra em análise,

façamos uma breve abordagem sobre as máximas conversacionais de Grice

(1975). A teoria do Princípio de Cooperação (ou Princípio Cooperativo) traz uma

constatação de que, no diálogo, as pessoas fazem esforços cooperativos no

intuito de tornarem esta comunicação efetiva, reconhecendo na mesma um ou

mais propósitos comuns. Durante a evolução do diálogo de Alice consigo mesma

e do Coelho consigo mesmo, alguns movimentos conversacionais podem ser

eliminados sob a alegação de não serem adequados ou apropriados a uma

determinada situação. Por meio do princípio de cooperação, Grice estabelece um

princípio geral, que deveria ser seguido pelos atores de um diálogo, que é o de

fazer sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que

ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está

engajado (GRICE, 1975, p. 86).

Para servir como norteadoras deste princípio, Grice elaborou algumas

regras as quais chamou de Máximas Conversacionais de Quantidade, de

Qualidade, de Relevância e de Modo . A máxima da quantidade, como o próprio

nome diz, está relacionada à quantidade de informações contidas num enunciado

e essa quantidade deve possuir um nível exato de informatividade, nem mais para

não cansar o outro, nem menos para não comprometer a compreensão. A

máxima de Qualidade está ligada ao valor de verdade de um enunciado; segundo

Grice, não devemos informar nada que não possamos provar nem que

acreditemos ser falso. A máxima de relação está associada “a relevância que

determinado enunciado assume numa situação comunicativa. Por fim, a Máxima

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de Modo está ligada à maneira como um enunciado é construído, devendo-se

evitar a obscuridade, a ambiguidade e a desordem. Notamos que na obra Alice no

País das Maravilhas, a fim de se constituir como discurso literário, ocorre a

ruptura com as máximas de Grice, sobretudo com a de Modo.

A ambiguidade perpassa toda a obra. São frequentes os exemplos de uso

de vocábulos em vários níveis de significação, como exemplo, o momento em que

as personagens tentam se secar depois de terem caído num mar de lágrimas - o

camundongo decide contar uma história longa, que ele define como árida; a

personagem já antecipa para o leitor que árido quer dizer seco e, portanto, deve

ajudá-los a resolver o problema de estarem com frio e molhados. Entretanto, não

podemos pensar somente no primeiro significado de árido, mas em outros, afinal

o rato conta, ao mesmo tempo, uma história seca e de difícil compreensão:

- Arrã...! – disse o Camundongo, limpando a garganta, com ar solene. – Todos prontos? Então lá vai. Esta é a coisa mais árida que eu conheço, e como árido quer dizer seco, deve funcionar. Silêncio, vocês todos, por favor! (MACHADO, 2003, p. 31)

Afirmamos que o jogo de palavras perpassa a obra inteira e em muitos

momentos podemos perceber o uso de vocábulos em significados diversos.

Podemos encontrar palavras que, agrupadas ou invertidas, resultam em

significados diferentes. A obra rompe com a semântica tradicional e inova, ao

buscar o engajamento do leitor para a construção da enunciação, da artisticidade

do discurso literário, valendo-se de um termo de Bakhtin (1998), que define a

enunciação do discurso literário, apoiado nos estudos da poesia e do romance,

como discurso concreto. Se é concreto, não é incoerente dentro do mundo da

obra. Percebemos a artisticidade bakhtiniana em Alice que, ao se lembrar de sua

gata, Dinah, elabora um jogo de palavras que trabalha com sons e significados:

- Acho que a Dinah vai sentir muita saudade de mim hoje de noite. Dinah era a gata dela. - Tomara que alguém lembre de dar um pires de leite para ela na hora do jantar. Ah, minha Dinah querida! Eu queria tanto que você estivesse aqui comigo... Quer dizer, eu sei que aqui pelo ar não tem nenhum ratinho nem camundongo e que você adora esses bichos. Mas talvez você conseguisse pegar um morcego, quem sabe? Mas será que ia gostar? Também ia sentir um amor cego pelo morcego? (...) - Ia sentir amor cego por morcego ... E será que o morcego também sente amor cego? (MACHADO, 2003, p. 17-18)

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É-nos correto afirmar que, apoiada na criação de Lewis Carroll, Ana Maria

Machado cria seu objeto discursivo, promovendo um entrelaçamento dialógico em

que coexistem aspectos do texto original inglês e aspectos de nossa cultura

nacional. Bakhtin (1998), ao falar das vozes múltiplas de um texto, aproxima-se

daquilo que tratamos neste trabalho: a adaptação constitui uma obra literária à

parte e significativa dentro do contexto da literatura infanto-juvenil; torna-se um

clássico da literatura brasileira. A construção estilística da obra se faz num diálogo

intermitente e simbiótico, em que a adaptação se alimenta do original,

contribuindo para a elaboração de novos paradigmas de construção semântica da

obra. As palavras de Bakhtin, acerca daquilo de que falamos até este momento,

corroboram a questão de inovação da adaptação brasileira:

Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outro, por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamento e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico. O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. (BAKHTIN, 1998, p. 86).

Já dissemos que Alice reconstrói sua coerência por meio de enunciações

implícitas em que o leitor assume papel decisivo para reconstruir as leis básicas

do discurso. Reside, justamente na quebra de toda a lógica discursiva, a

coerência da obra carrolliana, reafirmando-a como discurso de outra ordem,

baseada no real, mas numa recriação estética, artística. Ducrot (1984), apoiado

nas máximas conversacionais, elabora algumas leis que regem o discurso e, sem

se apoiar diretamente no literário, apresenta a importância delas para a

compreensão dos significados. O autor adota o termo significação aos valores

semânticos atribuídos à frase e sentido para os valores atribuídos ao enunciado,

que deve ser entendido como um conjunto de atos de fala. Ducrot afirma ainda

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que, para um mesmo enunciado, podem existir variados sentidos ligados às

condições de enunciação, ou seja, é necessário, então, conhecer não só a frase,

mas a situação em que ela é empregada para saber o que fez aquele que a

enuncia (DUCROT, 1984, p. 91).

O estudioso admite que os enunciados são atos de fala compostos por

frases que podem assumir sentidos diferentes de acordo com a situação

contextual. Para Ducrot, nem sempre, somente o sentido das frases permite sua

total compreensão, há a necessidade concreta de se partir da significação para o

sentido, essa que é permeada de intenções discursivas. Acrescentem-se a essa

problemática do discurso os atos de fala derivados, já que a proferição de uma

frase pode resultar em atos de fala bem diversificados ligados à cena enunciativa.

A teoria de Ducrot sobre leis que regem o discurso está apoiada na

plurissignificação dos enunciados, dadas as diferentes situações comunicativas:

Vamos mais longe. O estudo de diálogos efetivos mostra que o encadeamento de réplicas se funda, geralmente, menos sobre o que foi dito pelo locutor do que sobre as intenções que, segundo o destinatário, teriam levado o locutor a dizer o que disse. Responde-se, por exemplo, a “Parece que este filme é interessante” (p) com “Eu já o vi” (q), porque se supõe, por exemplo, que p é dito a fim de propor a ida ao cinema para ver o filme, e que q dá um motivo para não ir. Se se admite que estas intenções fazem parte do sentido, tem-se uma razão a mais – considerando-se que a determinação depende das circunstâncias da fala – para admitir que o sentido não se deduz diretamente da significação. (DUCROT, 1984, p. 91)

Para Ducrot, a fim de que se construam paradigmas de análise do discurso

centradas em leis, é necessário partir-se primeiramente de uma análise semântica

da frase, em seguida rumar para uma significação e, por fim, chegar ao sentido.

Somente da significação para a construção dos sentidos, é que seriam levadas

em conta as condições de fala. Nesse caminho processual, Ducrot ressalta a

importância do componente retórico, com a seguinte função na enunciação:

O papel do componente retórico consiste, então, em preencher os espaços vazios inscritos na significação da frase, fazendo isto segundo as instruções encontráveis nesta significação. Em termos matemáticos, a significação é, neste caso, uma função, a situação de discurso é seu argumento, e a interpretação retórica consiste em calcular o valor da função quando aplicada ao argumento. (DUCROT, 1984, p. 92)

Num caminho de ampliação do conceito de componente retórico, Ducrot

(Op.cit.) afirma que esse componente é ele próprio uma função dentro da

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comunicação. Se juntarmos a significação da frase mais as intenções

comunicativas dentro de determinada situação comunicativa, caminharemos para

o sentido do enunciado e para sua enunciação. Ducrot, além de explicitar as

especificidades do componente retórico, expõe a importância do sentido literal

dentro da construção de enunciados. Para o autor toda significação parte de um

sentido literal que poderá ser alterado de acordo com a cena enunciativa na qual

interpretante e enunciador se colocam em posição favorável à compreensão.

Ducrot (1984), numa revisita aos estudos dos fatores de textualidade,

aponta-nos cinco fatores: intencionalidade, aceitabilidade, informatividade,

intertextualidade, coesão e coerência. É-nos claro que esses aspectos que

favorecem a construção e compreensão de textos são afetados pelos estudos

pragmáticos e interacionais. Há cooperação entre os atuantes de uma

determinada situação comunicativa que caminham para a decodificação de

enunciados que nem sempre se mostram literais, por isso a necessidade da

busca de subentendidos.

Não nos cabe aqui aprofundar a distinção entre pressupostos e

subentendidos, proposta por Ducrot (1984) e por Maingueneau (1996), mas saber

que a persecução deles na leitura de obras literárias constitui base para a

interpretação do discurso literário. Sejam de caráter cotextual (pressupostos) ou

contextual (subentendidos), os implícitos constituem ferramentas de

compreensão. Portanto, parece-nos mais correto tentar compreendê-los na

análise de Alice no País das Maravilhas. Maingueneau (1996) esclarece-nos

sobre a relevância dos subentendidos para a construção dos sentidos na

literatura:

Pudemos perceber que o implícito desempenha um papel essencial: dizer nem sempre é dizer explicitamente, a atividade discursiva entrelaça constantemente o dito e o não dito. Não foi de menor interesse para a pragmática ter proporcionado um estatuto de pleno direito às proposições implícitas, além da categoria tradicional da elipse sintática. Esse interesse pelo implícito é aliás natural, se pensarmos que a pragmática concede todo o peso às estratégias indiretas do enunciador e ao trabalho de interpretação dos enunciados pelo co-enunciador. Muitas vezes o locutor enuncia o explícito para fazer o implícito passar, invertendo a hierarquia “normal” para chegar a seus fins. (MAINGUENEAU, 1996, p. 89)

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Segundo Maingueneau (1996), os subentendidos mantêm relações de

semelhança com os tropos, esses que são classificados como um tipo de

implícito. Para o autor, o esforço de decodificação dos tropos é semelhante à

decodificação dos subentendidos, já que o coenunciador parte do sentido literal

para a compreensão do enunciado, reconhece a literalidade como não pertinente

e finalmente chega a uma nova interpretação. Alice no País das Maravilhas é uma

obra permeada de tropos situacionais e linguísticos, dado que a quebra das leis

do discurso desemboca numa grande alegoria sobre os movimentos

persecutórios de um “eu” concreto, real. A protagonista Alice encontra a si mesma

por meio da tensão existente entre o concreto e o fantasioso, entre a lei e a

subversão dessa mesma lei. Por isso os diálogos são surreais, quebram com a

lógica discursiva corrente para se estabelecerem de modo coerente dentro do

mundo literário. Vejamos a transcrição do diálogo entre Alice e a Lagarta:

A lagarta e Alice se olharam em silêncio durante algum tempo. Finalmente, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e se dirigiu à menina, numa voz lânguida e sonolenta: - Quem é você? Não era exatamente um início de conversa dos mais animadores. Alice respondeu, meio encabulada: - A senhora me desculpe, mas no momento eu não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. - O que quer dizer com isso? – perguntou a Lagarta, severa. - Explique-se - Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas. Mas não posso explicar a mim mesma. Porque não estou sendo eu mesma, entende? - Não entendo coisa nenhuma - disse a Lagarta - Bom, talvez a senhora ainda não tenha passado por isso e não tenha descoberto. Mas quando se transformar numa crisálida – porque isso vai acontecer um dia, sabe? – e, depois disso, numa borboleta, acho que vai se sentir meio esquisita, não vai? - Nem um pouquinho – disse a Lagarta. - Pode ser que seus sentimentos sejam diferentes – disse Alice. – Mas eu tenho certeza de que seria esquisitíssimo para mim. - Para você? Você?! – disse a Lagarta, no maior desprezo. – Mas quem é você? (MACHADO, 2003, p. 50-51)

Nesse pequeno trecho do diálogo entre a Lagarta e Alice, várias leis do

discurso são postas à prova e não é nosso objetivo, neste momento, enumerá-las.

O diálogo entre as personagens nos chama atenção justamente nos pontos em

que se relaciona à quebra da coesão sequencial e da coerência (Koch, 2004).

Observemos o dêitico isso utilizado no diálogo, a plurissignificação está presente

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no enunciado, afinal, não podemos entender se “isso” se refere a não saber quem

é, levando-se em consideração que implicitamente se trata de uma investigação

filosófica do “eu”; ou se “isso” retoma todo o enunciado anterior proferido pela

menina e, nesse caso, a Lagarta não entendeu como a menina não pôde se

explicar. Podemos ainda traçar outros significados para o enunciado, a Lagarta

não entende o enunciado inteiro e profere “O que quer dizer com isso?”, numa

tentativa de cooperar com o diálogo e fazê-lo progredir, entretanto a progressão é

truncada.

O truncamento do diálogo entre Alice e a Lagarta, bem como de outros

diálogos do livro, constitui uma marca característica da obra. Os diálogos não

fluem, não possuem encadeamentos lógicos, as respostas dadas pelos atuantes

do diálogo nem sempre correspondem ao que se espera. Quebram-se as lógicas

do discurso e constroem-se novos e inusitados significados. A atitude provocativa

da Lagarta pode não representar um diálogo, mas um monólogo, lembremo-nos

de que a menina costumava falar consigo mesma e fazia disso uma brincadeira,

na qual costumava se dar bons conselhos. Esse jogo dialógico e alegórico

permite compreender que os sentidos da obra apontam para um encontro que se

efetiva consigo-mesma:

Em geral, ela se dava muito bons conselhos a si própria (só que quase nunca os seguia), e às vezes se repreendia com tanta severidade que ficava com os olhos cheios de lágrimas. Uma vez, ela lembrava bem, tentou puxar as próprias orelhas por ter roubado num jogo de croquet que estava disputando consigo mesma, porque era uma dessas crianças que gostam de fingir que são duas. (MACHADO, 2003, p. 20).

A leitura, em que se tem a obra como um grande monólogo sobre a

procura de uma identidade, é-nos ratificada pelo tamanho em que se encontra

Alice no momento do diálogo, sete centímetros, que é exatamente o mesmo

tamanho da Lagarta, o que nos permite deduzir que há o espelhamento entre o

eu Alice e o eu Lagarta numa busca de constituição do eu verdadeiro . A

metáfora da lagarta contribui para a leitura, afinal, uma lagarta se transforma em

borboleta e Alice se transformará numa adulta diferente, de quem a irmã mais

velha parece sentir uma ponta de inveja, já que não consegue mais adentrar o

País das Maravilhas:

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Finalmente, ela imaginou como aquela sua irmãzinha pequena, em algum tempo, ia se transformar em mulher feita. E como ela guardaria, nos anos mais maduros, o coração simples e amoroso de sua infância. E como reuniria em volta de si outras crianças, seus filhos, e faria seus olhinhos ficarem brilhantes e curiosos, com muitas histórias estranhas, talvez mesmo o sonho que tivera com o País das Maravilhas muito tempo antes. (MACHADO, 2003, p. 128)

As transgressões às leis do discurso encontradas na literatura são apenas

aparentes, assim como o são as referências intertextuais das quais já falamos

anteriormente. Essas “incoerências” nos permitem entrar em diálogo com a obra e

buscar os sentidos da mesma, preencher aqueles espaços que são

aparentemente vazios. O discurso literário reserva especificidades em relação aos

outros discursos, mas reserva características que os fazem um discurso coeso e

coerente. Cada nova leitura torna mais complexo o labirinto de interpretações ao

encerrar o texto um pouco mais em seu próprio labirinto. Por um lado, os leitores

de textos literários devem empreender um esforço para se aproximar ao máximo

do texto para legitimar suas leituras e, por conseguinte, enfraquecer o grau em

que o texto é enigmático; por outro, é preciso que esse texto seja sempre

inacessível para dar valor à sua interpretação. O conto Alice nos parece

inacessível quando submetido às normas discursivas, mas se torna claro quando

é submetido a essas mesmas normas, já que a transgressão é geradora de

sentidos, segundo Maingueneau:

Toda clareza é enganosa: mesmo textos que parecem extremamente transparentes exigem do destinatário que derive sentidos ocultos. A missão do verdadeiro intérprete é descobrir o ponto a partir do qual a clareza se obscurece, o texto permite que se aponte o enigma que se espera que encerre. Não pode assim haver texto defeituoso, mas apenas intérpretes ineficientes (...) sejam quais forem as transgressões das leis do discurso ou das normas do gênero de que a obra é culpada, o quadro hermenêutico garante que, num nível superior, essa falta é apenas aparente e que as exigências da comunicação são respeitadas: cabe ao destinatário descobrir as interpretações de alcance mais amplo que o texto propõe ao bom entendedor.(MAINGUENEAU, 2006, p. 74)

É justamente nesse ponto que nos apoiamos para a elaboração de uma

exposição teórica sobre o Discurso Literário. A teoria nos aponta caminhos para a

elaboração de sequências didáticas que deem conta de formar leitores literários.

Para que nossos alunos (re)construam a obra literária de modo eficaz,

precisamos estudá-la e analisá-la de forma a nos tornarmos modelos de leitor

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proficientes. Torna-se urgente mostrar a nossos alunos que eles podem ler

literatura e que a experiência pode ser prazerosa.

Temos de apresentar para nossos alunos que Alice, ao lado das outras

personagens do conto, constitui uma embreagem paratópica (Maingueneau,

1995) criada por Lewis Carroll e adaptada por Ana Maria Machado, já que a

existência e a pertença da protagonista a uma sociedade são problemáticas. A

solução para essa problematicidade começa a ser encontrada no mundo

maravilhoso, por meio da relação de pertença, afinal a menina é uma personagem

ficcional. Dois mundos entram em choque: “o real”, cuja exegese é naturalmente

ficcional, e o “mágico”, em cuja paratopia tudo se resolve. Nessa tensão entre os

dois mundos, encontra-se a interpretação do livro Alice e de qualquer obra

literária.

A adaptadora recria o original engendrando uma nova obra para o público

infantil de uma cultura que não é a inglesa. Alice ganha contornos de brasilidade

que possibilitam a leitura do conto por crianças brasileiras. Os intertextos são

revelados, diferentemente do original que promove dificuldades até mesmo para

as crianças inglesas. Esses intertextos devem ser trabalhados para que as

interpretações do discurso literário sejam consistentes.

O levantamento bibliográfico acerca da intertextualidade, da compreensão

dos conceitos sobre as Máximas Conversacionais, das Leis do Discurso de

Ducrot, do Contrato literário de Maingueneau, dos princípios de textualidade

possibilitam uma retomada das práticas de leitura em sala de aula. Se levarmos

em conta a importância de conceitos como a hipertextualidade e a

arquitextualidade, coerência discursiva, construção de significados de

enunciados, frases e palavras, poderemos promover a formação do leitor literário

de modo mais consistente.

As paratopias de Maingueneau permitem a reconstrução dos significados

das obras literárias consideradas inacessíveis ao grande público, permitem

também a compreensão dos sentidos no interdiscurso, dado que cria uma tensão

entre o lugar a que pertence uma obra e a negação deste mesmo lugar, tensão

que engendra a polifonia discursiva proposta por Bakhtin. Aprofundaremos o

conceito de paratopia no segundo capítulo.

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Terminamos este capítulo com a percepção de que os conhecimentos

sobre as especificidades do discurso literário, intertextualidade e leis do discurso

literário são relevantes para a elaboração de sequências didáticas sistematizadas,

que tenham como objetivo a aproximação dos alunos em relação à leitura

estética. Não se trata de um trabalho simples, afinal envolve um planejamento

adequado da atividade e o entendimento de conceitos complexos. Apresentar

para os alunos esses conceitos, durante a leitura compartilhada, é dever do

professor que planeja suas atividades de formação leitora. A discussão em sala

de aula sobre esses elementos constitui aspecto relevante para a construção dos

sentidos de qualquer obra literária.

No Capítulo 2 de nosso trabalho, abordaremos um outro aspecto

importante para a o entendimento do discurso literário: o contexto da obra

ficcional.

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CAPÍTULO II

O CONTEXTO DA OBRA LITERÁRIA:

Os contextos de Carroll e de sua Alice no País das Maravilhas

A personagem não interessa a Dostoiévski como um fenômeno da realidade, dotado de traços típico-sociais e caracterológico-individuais definidos e rígidos, como imagem determinada, formada de traços monossignificativos e objetivos que, no seu conjunto, respondem à pergunta: “quem é ele?” A personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante.

Mikhail Bakhtin, 2008

A obra literária pode e deve ser analisada por outras vertentes que não

aquelas que se baseiam somente no material verbal que ela nos oferece. Tendo

em vista a evolução dos estudos linguísticos sobre a pragmática do texto literário,

faz-se necessário um olhar mais atento para a produção de literatura dentro de

um contexto original que engendra um texto artístico ou daquele de retomada da

obra que se concretiza no momento em que é revisitada. Para tanto, procuramos

compreender os contextos de produção que influenciaram a escrita de Alice no

País das Maravilhas do escritor inglês Lewis Carroll.

Entramos em contato com algumas vertentes que influenciam e

influenciaram a análise de obras literárias, como apresentado no Capítulo 1,

quando reconstruímos a linha temporal dos modelos de análise literária.

Percebemos que, grosso modo, elas se dividem em algumas linhas, uma que

chamamos de estruturalista, que considera a obra como autônoma de seu

contexto, temos, portanto, uma abordagem do texto como objeto de arte, de

contemplação e que terá sua validação de significado pela recepção, ou seja, o

leitor assume papel importante na decifração da obra. E outra que chamamos de

discursiva, que leva em conta o contexto de produção do autor, os processos de

construção do discurso e até mesmo o contexto de retomada da obra, esse, por

vezes, associado aos contextos educativos.

Neste trabalho, assumimos como base analítica a vertente discursiva, pelo

fato de ela englobar linhas possíveis de análise, nas quais não se dispensam a

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linguagem nem seus contextos concebíveis. Consideramos o discurso em sua

totalidade.

Entendemos que o discurso é o lugar de onde emanam todas as

interpretações possíveis de textos artísticos (de outras naturezas também), chave

para as práticas narrativas, endosso da linguagem em ação. Todo texto chega à

categoria de discurso quando as demais forças coerentes com os universos da

linguagem ganham espaço na obra, por isso a impossibilidade de separar texto do

contexto, seja o de produção ou o de retomada.

Do texto ao discurso, formula-se a autenticidade de assimilação da

literatura; pode-se chegar à maior completude de compreensão do objeto, pois

sabemos que o enunciado se concretiza em determinado contexto; esse que é

parte importante da enunciação. Tendo em vista o percurso da linguagem à obra

literária em contexto, percebemos as relações que coexistem entre autor e obra;

as forças que geraram tal romance ou tal obra poética e a força das personagens

que geram sentidos importantes em relação ao contexto em que são criadas e

aos novos contextos ficcionais que recriam.

Não basta simplesmente recuperar o contexto histórico e geográfico de

uma obra literária para que possamos afirmar que os sentidos dela estão

entendidos e interpretados. Para o entendimento dos contextos, devemos analisar

as forças históricas que engendraram o texto literário associadas aos contextos

comunicativos e ficcionais representados pelas personagens. Por isso precisamos

compreender, antes de qualquer análise contextual, que os contextos

comunicativos ficcionais têm apoio na realidade circundante do autor; são, na

verdade, a representação de uma realidade concreta.

Neste Capítulo, analisamos, primeiramente, a construção das personagens

e das situações comunicativas em que estão inseridas. Depois compreendemos

de que modo as transgressões discursivas constituem transgressões aos

contextos reais. Analisadas as transgressões discursivas e suas relações com os

contextos concretos, finalizamos com um estudo do contexto moralista de criação

literária para as crianças do século XIX na Inglaterra. Consideramos que há

inúmeras formas de análise de contexto da obra literária; contudo, em nosso

trabalho, deter-nos-emos na análise da representação de contextos

comunicativos reais e no contexto de produção da obra inglesa.

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A opção pelos contextos da obra inglesa se deve ao fato de já termos

explicitado o posicionamento da tradutora e adaptadora Ana Maria Machado no

capítulo anterior. Ela está inserida num contexto atual de criação estética para

crianças, por isso, escolhe exemplos de intertextualidade que podem ser

compreendidos pelos jovens do século XXI. No entanto, a autora mantém a

escolha genérica de Carroll (conto fantástico nonsense) e a construção das

situações comunicativas. Essa manutenção de gênero e de representação nos

remete ao século XIX, contexto do autor Lewis Carroll.

2.1 - As personagens e os elementos transgredientes em Alice no País das

Maravilhas

Alice no País das Maravilhas, como já deixamos entrever, traz uma

protagonista que vive suas aventuras num espaço onírico. Nesse universo, as

personagens que encontramos são animais personificados, objetos com forma

humana, cartas de baralho falantes, enfim, são seres que pertencem ao

fantástico, entenda-se esse termo na acepção literária que lhe é dada. O encontro

com essas personagens motiva diálogos e situações que se caracterizam pelo

nonsense. Ressalte-se que não fazemos uma mera exposição de fatos

contextuais, mas a influência destes sobre a enunciação literária. Recorreremos,

sobretudo ao trabalho Maingueneau (1995) que aborda questões sobre a obra, o

escritor e o campo literário; nos conflitos e tensões relacionados a estas três

categorias.

Entendamos que os discursos, enquanto histórias, não surgem in vácuo,

mas são produzidos e lidos pelos usuários em situações específicas nas quais

constroem uma representação não só do texto pelos elementos linguísticos, mas

também de um contexto pragmático e social da/na obra literária. Por conseguinte,

ao escrever uma história, o escritor se empenha em caracterizar um ato social em

um ato de narração, um ato de afirmar ou prevenir o leitor com respeito a algum

fato caracterizado no tempo e no espaço.

Essas considerações mostram que não se pode dissociar a cena enunciativa

de uma história narrativa, um ficcionista de um universo discursivo, que é

constituído por vários campos (político, religioso, filosófico, científico, entre

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outros). Cada campo é formado de vários espaços que são os chamados

interdiscursos (Maingueneau, 2005). Nesses campos de tensão, são encontrados

os significados da obra literária, e da importância do contexto histórico e dos

fatores biográficos como determinantes da enunciação literária.

São óbvias as bases bakhtinianas assumidas por Maingueneau para

elaborar sua teoria sobre os campos ou territórios ideológicos que influenciam a

poética de qualquer autor de literatura, que afetam diretamente os

posicionamentos assumidos. Bakhtin (1998) faz referência à importância dos

posicionamentos adotados pelos autores literários quando aborda a problemática

do conteúdo da obra literária. Para ele, um posicionamento só é importante se

puder se relacionar a outros pontos de vista criadores; sem essa tensão dialógica,

não há discurso. Bakhtin considera o domínio da cultura vigente como fator

decisivo para a criação literária, e esse domínio não pode ser considerado como

algo meramente territorial, mas como fronteiriço, já que é nas fronteiras que se

estabelece o lugar tenso de criação discursiva literária:

Não se deve, porém, imaginar o domínio da cultura como uma entidade espacial qualquer, que possui limites, mas que possui também um território interior. Não há território interior no domínio cultural: ele está inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo lugar, através de cada momento seu, e a unidade sistemática da cultura se estende aos átomos da vida cultural, como o sol se reflete em cada gota. Todo ato cultural vive por essência sobre fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno, torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre. (BAKHTIN, 1998, p. 29)

Bakhtin, ao abordar a questão do conteúdo da representação artística,

acrescenta ainda que a arte está ligada à realidade, já que dela se alimenta. O

produto estético pode e deve ser compreendido dentro de um mundo do qual

tiramos uma representação. Engana-se aquele que tenta unificar a significação da

obra estética, pois não há ruptura entre a arte e os valores do conhecimento e do

ato ético, entretanto, para ser classificada como arte, deverá propor uma

inovação. Essa proposta de inovação se concretiza por meio de sua constituição

estética sem deixar de lado os fatores éticos (esses que devem ser entendidos na

concepção da concretude dos elementos que regem a vida humana). Alice é uma

obra que se liga a determinado momento histórico da Inglaterra e do próprio autor

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que nos traz uma narrativa cujo resultado estético filia-se ao conceito de

originalidade proposto por Bakhtin:

A arte cria uma nova forma como uma nova relação axiológica com aquilo que já se tornou realidade para o conhecimento e para o ato: na arte nós sabemos tudo, lembramos tudo (no conhecimento não sabemos nem lembramos nada, não obstante a fórmula de Platão); mas é justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da originalidade, do imprevisto, da liberdade tem tal significado, pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a originalidade, a liberdade – o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do ato, e é ele que na arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a atividade do artista como sendo livre. (BAKHTIN, 1998, p. 34)

Ainda baseados nos estudos de Bakhtin sobre as questões estéticas do

romance, afirmamos que a obra literária é viva e significante do ponto de vista

cognitivo, social, político, econômico e religioso num mundo que também é vivo e

significante. Bakhtin afirma que a realidade não pode se opor à arte, dado que

nenhuma realidade é neutra. Mesmo quando o esteta tenta se opor à realidade,

ele ainda está fazendo referência a ela. Bakhtin afirma que:

É preciso lembrar de uma vez por todas que não se pode opor à arte nenhuma realidade em si, nenhuma realidade neutra: pelo próprio fato de que falamos dela e a opomos a algo, nós, como que a definimos e lhe damos uma valor; é preciso apenas sermos claros com nós mesmos e compreender o verdadeiro sentido da nossa apreciação. Tudo isso pode ser expresso sinteticamente da seguinte forma: pode-se opor a realidade à arte somente como algo bom ou verdadeiro pode ser oposto ao belo. (BAKHTIN, 1998, p. 31)

Torna-se nítida a confluência entre os estudos de Bakhtin (1998) e de

Maingueneau (1996). Ambos concordam que é impossível um resultado

artístico/estético neutro, sem observação do contexto real como fator

propedêutico da construção literária. Para os dois estudiosos, a posição do artista

literário e de sua tarefa plástica pode e deve ser entendida no mundo em relação

a todos os valores do conhecimento, não é propriamente o conteúdo que une a

ética e a estética, muito menos há necessidade de unificação, já que, para

Bakhtin não ocorre ruptura:

Não é o material que se unifica, se individualiza, se totaliza, se isola, se completa, ele não precisa nem de unificação, pois nele não há ruptura, nem de acabamento, ao qual ele é indiferente, pois para precisar dele o material deveria participar do movimento axiológico e semântico do ato; mas sim é a composição axiológica da realidade vivida multilateralmente, é o evento da realidade.

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A forma esteticamente significante é a expressão de uma relação substancial com o mundo do conhecimento e do ato... (BAKHTIN, 1998, p. 36)

Não podemos deixar de lado a questão do discurso das personagens dentro

da narrativa literária. São elas também produtoras de discursos e é nessa

produção que reside, no caso de Alice no País das Maravilhas, a polifonia, o

conflito entre discursos. Para que uma personagem seja representante de um

discurso polifônico, faz-se preciso que seus posicionamentos no mundo ficcional

destoem de posicionamentos que seriam usuais na realidade contextual concreta.

Todas as transgressões, que são construídas em Alice, constituem o conflito

polifônico. Entretanto, não podemos nos esquecer de que há muitas confluências

entre Lewis Carroll e sua Alice ficcional. Alice, assim como Carroll, é também uma

contadora de histórias e o será no futuro.

Além da criação de personagens, a questão da análise da palavra (em

nosso caso, temos de analisar cada palavra dos discursos proferidos pelas

personagens no mundo ficcional) também assume papel importante na obra de

Bakhtin. Em sua Estética da Criação Verbal, publicada originalmente em 1979, ele

afirma que o leitor deve atentar para cada palavra que constitui a estética de uma

obra:

Em uma obra literária cada palavra tem em vista ambos os elementos, exerce função dupla: orienta a compenetração e lhe dá acabamento, mas esse ou aquele elemento pode predominar. Nossa tarefa imediata é examinar aqueles valores plástico-picturais e espaciais que são transgredientes à consciência e ao mundo da personagem, à sua diretriz ético-cognitiva no mundo, e o concluem de fora, a partir da consciência do outro sobre ele, da consciência do autor-contemplador. (BAKHTIN, 2003, p.25)

Além de evidenciar a importância da plasticidade da palavra na construção

de significados, Bakhtin (2003) apresenta a relevância de compreendermos o

contexto de produção da obra literária como fator determinante para que

cheguemos à enunciação do ato enunciativo e estético. Entretanto, entrevemos,

por meio do uso do adjetivo transgredientes, que não basta somente uma

reprodução das situações reais ; é necessário ir além de, para lá, para um lugar

em que a criação estética transgride as situações cotidianas, apesar de calcar-se

sobre elas. É nessa transgressão que se encontra a totalidade e a unidade

coerente da obra literária. Alice no País Maravilhas constitui transgressão da vida

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cotidiana por meio de elementos maravilhosos/mágicos, logo toda situação

comunicativa em que se encontra a protagonista baseia-se num transgrediente da

realidade.

Para que compreendamos a construção de personagens estéticas, torna-se

necessária a compreensão de dois conceitos trabalhados por Bakhtin (2003): o de

de autor pessoa e o de autor outro . É natural, para o autor-pessoa, que ele

projete seus valores nos valores da personagem, que projete sua vivência na

vivência da personagem, entretanto devemos negar a posição assumida em

alguns ambientes escolares em que se estuda o autor-pessoa, elemento ético e

social da vida, como fator precípuo e único para a análise literária. Precisamos

projetar nossos olhares para o autor-outro que se transforma em elemento

estético da literatura:

Em seu conjunto, o que acabamos de dizer não visa, absolutamente, a negar a possibilidade de comparar de modo cientificamente produtivo as biografias do autor e da personagem e suas visões de mundo, comparação eficiente tanto para a história da literatura quanto para a análise estética. Negamos apenas o enfoque sem nenhum princípio, puramente factual desse tema, que atualmente domina sozinho e se funda na confusão do autor-criador com o autor-pessoa, e na incompreensão do princípio criador da relação do autor com a personagem: daí resultam a incompreensão e a deformação – no melhor dos casos a transmissão de fatos apenas – da personalidade ética, biográfica do autor, por um lado, e a incompreensão do conjunto da obra e da personagem por outro. (BAKHTIN, 2003, p. 9)

À primeira vista, poderíamos cometer o engano de descartar qualquer

referência biográfica de autores na análise de obras literárias, entretanto,

estejamos atentos às palavras de Bakhtin, para quem a análise puramente

contextual e biográfica só tem sentido se associada à uma leitura estética e

polifônica, em que os contextos ficcionais entrem em conflito com os contextos

reais. Alice no País das Maravilhas dá conta dessa vertente estética para se

firmar como obra que atinge o cânone da universalidade. Para que o autor outro

se firme na narrativa, o objeto é a própria realidade transgredida, carnavalizada. O

passeio que engendra a história maravilhosa torna-se um passeio de investigação

de firmamento no mundo real: temos a ficção a serviço da realidade.

Os diálogos são transgredidos, as narrativas dentro da narrativa são

transgredidas, além de o tempo ficcional constituir uma transgressão à realidade.

O controle do tempo é algo desejado pelos homens e, no mundo das Maravilhas,

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ele está a serviço das personagens, desde que não se revoltem contra ele.

Percebemos que a compreensão do mundo ficcional deve se fazer em oposição

aos fatos concretos da vida cotidiana que são imprescindíveis para a realização

estética.

Na obra, encontramos a transgressão do tempo real por meio de

personagens como o Coelho Branco, que está sempre atrasado, e do Chapeleiro

Maluco, que, por conta da parada e da personificação do tempo, situa-se num

eterno chá da tarde. O Chapeleiro, depois de uma discussão com o Tempo, perde

o domínio sobre as horas e o relógio marca indiferentemente seis horas da tarde:

Se você conhecesse o Tempo como eu conheço, não falaria assim – disse o Chapeleiro – Não é uma coisa que se possa gastar, é gente. - Não estou entendendo – disse Alice. - Claro que não está! – afirmou o Chapeleiro (...) Aposto que você nunca falou com o Tempo! - Talvez não – respondeu Alice com cuidado – mas já marquei as batidas do tempo muitas vezes nas minhas aulas de música. - Ah, então é por isso... Você bateu, e ele não gosta de apanhar. Mas se você o tratasse bem, ele faria com o relógio quase tudo que você quisesse. Por exemplo, imagine que eram nove horas da manhã, hora de começar as aulas. Era só você pedir baixinho ao tempo e, num piscar de olhos, o relógio disparava! Uma e meia, hora do almoço. - Ia ser ótimo, mesmo – disse Alice pensativa. – Mas aí eu ainda não ia estar com fome... - Talvez não, durante algum tempo – concordou o Chapeleiro. – Mas você podia deixar ficar um tempão à uma e meia, quanto você quisesse. - É assim que você faz? – perguntou Alice. (...) - Eu não! Nós tivemos uma discussão em março (...) E desde então – continuou o Chapeleiro, sempre se lamentando – ele não quer fazer mais nada do que eu peço. Agora está sempre parado nas seis horas. (...) Ah, quer dizer que é por isso que a mesa está posta com todas essas coisas para um chá? - Exatamente – suspirou o Chapeleiro. – É sempre hora do chá, e nem temos tempo para lavar a louça entre um chá e outro. (MACHADO, 2003, p. 73-75)

Percebemos, por meio do trecho citado, aspectos pertencentes ao gênero

maravilhoso e que se baseiam em necessidades humanas: o controle das horas

para obtenção de prazer e até para a realização das tarefas. O tempo da narrativa

é o tempo do sonho, das vontades centradas no princípio do prazer, entretanto

podem trazer resultados desagradáveis, como estar situado sempre num chá,

sem poder lavar a louça, devendo somente mudar de lugar para que a situação

de enunciação se repita interminavelmente. A transgressão temporal é somente

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aparente, já que, mesmo no espaço onírico, somos escravos do tempo e de suas

vontades.

Assim, realizamos até este ponto do trabalho uma exposição das principais

transgressões propostas por Lewis Carroll e adaptadas para a língua portuguesa

por Ana Maria Machado. Aprofundemo-nos um pouco mais e perceberemos que

as transgressões podem ser divididas em três grandes grupos, sobre os quais

vamos nos deter mais atentamente agora.

2.2 - Um discurso muito louco 2.

Em Alice no País das Maravilhas entramos em contato com diferentes

formas de transgressão contextual: as linguísticas, as dos valores e convenções

sociais e as de caráter histórico.

As transgressões linguísticas estão presentes nos jogos de palavras em

que vocábulos assumem significados diferentes daqueles que são esperados

pelos interlocutores, na aparente incoerência dos diálogos e nas narrativas feitas

pelas personagens. Os significados primeiros das palavras são trocados por

outros significados; juntos, vocábulos adquirem sentido na enunciação, como o

caso de amor, cego, morcego que sobrepostos se amalgamam e formam outros

vocábulos.

As transgressões de natureza linguística ocorrem também nos contos orais

realizados por algumas personagens, como no caso já transcrito neste trabalho

em que o Camundongo intenta contar uma história seca (direta, sem meneios)

para que os ouvintes se sequem . Paradoxalmente ao sentido do vocábulo seco

(objetivo), a história está repleta de palavras longas e sem sentido aparente.

Temos ainda a história contada pela Lebre de Março e pelo Chapeleiro sobre três

meninas que vivem no fundo de um poço e puxam melado do fundo dele,

quebrando com a coerência de que para puxar era preciso estar fora do poço.

Além da aparente falta de coerência, as narrativas dentro do conto perdem o

caráter fundamental de qualquer sequência narrativa: o conflito.

Segundo Adam (2008), o conflito constitui o núcleo do processo narrativo,

elemento perturbador da situação inicial e que desencadeia uma série de ações

2 Referência ao capítulo “Um chá muito louco” de Alice no País das Maravilhas.

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que promovem uma mudança, uma transformação, chamada pelo teórico de

situação final. Adam (2008) divide ainda o núcleo do processo da sequência

narrativa em três categorias: o nó, a re-ação ou avaliação e o desenlace ou

resolução. Em Alice, as histórias recontadas pelas personagens cessam na

ambientação ou na situação inicial, não percebemos nunca uma elaboração de

um conflito adequado para elas. Vejamos:

- Você já esteve com a Falsa Tartaruga? - Não, nem sei o que é isso. - É coisa que serve para fazer Sopa Falsa de Tartaruga. - Nunca vi nem ouvi falar – disse Alice. - Então venha já, que ela lhe conta a sua história – disse a Rainha. (...) Não tinham ido muito longe, quando viram a Falsa Tartaruga à distância, triste e sozinha em cima de uma pedra. Ao se aproximarem, Alice ouviu que a Tartaruga dava uns suspiros de cortar o coração. Ficou morrendo de pena: - Por que ela está tão triste? – perguntou ao Grifo. - É tudo mania dela, sabe? Não tem tristeza nenhuma. Venha! (...) - Essa mocinha aqui...- apresentou o Grifo – ela quer saber da sua história, é isso... - Eu vou contar – disse a Falsa Tartaruga, num tom cavernoso. – Sentem-se aí, os dois, e não digam nada até eu terminar. Eles se sentaram e ninguém disse nada durante alguns minutos, Alice pensou: “Não consigo imaginar com essa história vai acabar, se não consegue nem começar”. - Há muito tempo – disse a Falsa Tartaruga, finalmente – eu era uma Tartaruga de verdade. Essas palavras foram seguidas de um silêncio comprido, apenas quebrado por algum guinho ocasional do Grifo e pelos soluços altíssimos da Falsa Tartaruga. Alice já estava quase levantando e dizendo: - Muito obrigada pela sua história. Interessantíssima... Mas não consegui deixar de achar que devia haver mais alguma coisa. Por isso, ficou sentada e não disse nada. - Quando nós éramos crianças – continuou, finalmente a Falsa Tartaruga (...) fomos à escola do mar. A professora era uma velha Tartaruga – que nós chamávamos Dona Jabotá... - Se ela era uma Tartaruga e não um Jaboti, por que é que vocês chamavam de Dona Jobotá? - Porque mal a gente chegava na escola, ela já botava ideia e lições nas nossas cabeças, claro! – respondeu a Falsa Tartaruga, zangada. – Francamente você é uma chata... (...)

Finalmente, o Grifo disse para a Falsa Tartaruga: - Vamos em frente, companheira... não fique o dia todo parada... (...) E a Falsa Tartaruga continuou, com essas palavras: - É isso, nós fomos à escola do mar, mesmo que você não acredite... - Eu não disse que não acreditava – interrompeu Alice. - Disse, sim – insistiu a Falsa Tartaruga. (...)

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- Lá nós tivemos a melhor educação possível. Para falar a verdade, nós íamos à escola todo dia. - Eu também ia à escola todo dia – disse Alice. – Não tem nada de mais nisso, não precisa ficar tão prosa. - E a sua escola tinha aulas extras? – perguntou a Falsa Tartaruga, meio aflita. - Tinha sim. Aulas de francês e música. - E de roupa lavada, tinha? – insistiu a Falsa Tartaruga. - Claro que não! – respondeu Alice ofendida. - Ah, então não era uma escola tão boa... -disse a Falsa Tartaruga aliviada. – Na nossa, tinha. Vinha bem no fim da conta. Extras: francês, música e roupa lavada. - Vivendo no fundo do mar, não podia fazer muita diferença (...) - Bom a gente tinha aula de Mistéria... - respondeu a Falsa Tartaruga, contando nas barbatanas – Mistéria Antiga e Mistéria Moderna... E Jografia. Também tinha aula de Parte. A professora de Parte era uma Enguia Velha, que vinha uma vez por semana. Mas as aulas de Desdenho quem dava mesmo era a ajudante dela, uma Traça, que nos ensinava a traçar todas as linhas. E a Enguia ensinava o resto: era ela quem punha a gente no colo e fazia cócegas, para as aulas de Colo-rir, e era ela quem se enroscava feito um cinto em volta da gente, ficava só com o olho de fora e ensinava Cintura a Olho... (...) - O julgamento está começando. (MACHADO, 2003, p. 91-108)

Torna-se evidente que a história da Falsa Tartaruga, assim como outras

histórias dentro do conto Alice no País das Maravilhas, não possuem um conflito,

nem mesmo percebemos de que modo a situação final é diferente da inicial. Alice

está engajada na história, respeitando o princípio da aceitabilidade, entretanto a

história não flui e a protagonista pensa em sair de lá. As narrativas recontadas

pelas personagens perdem seu fio condutor e são interrompidas por outras

situações narrativas; no caso da transcrição, um julgamento para saber quem

roubou as tortas da Rainha de Copas. Esperávamos que a Falsa Tartaruga nos

contasse como ela havia deixado de ser uma Tartaruga verdadeira e que isso

teria alguma relação com a vida escolar dela, contudo terminamos sem saber o

que aconteceu à personagem para que ela se transformasse numa Falsa

Tartaruga.

Vemo-nos obrigados a reconstruir ou abandonar a história da Falsa

Tartaruga, ou ainda, compreender, num princípio de respeitabilidade à coerência

discursiva, em que se torna legível a referência a diálogos entre crianças sobre

escolas em que estudam - uma acha sua escola melhor que a do outro. Nesse

ponto é que reside a verossimilhança da situação enunciativa em que estão

envolvidas as personagens, afinal o diálogo se assemelha à realidade sem ser a

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verdade. Concordamos com Kristeva (1969), que a literatura assume um papel

transcendente, acima do discurso real em que ocorrem afrontamentos em relação

às situações reais e às instituições discursivas. A literatura não é somente o

espelho do real, mas transcende essa realidade:

La litterature elle-même, arrivée à la maturité qui lui permet de s´écrire aussi comme une machine e non plus uniquement de parler comme un miroir, s´affronte à son propre fonctionement à travers la parole; le mécanisme de ce fonctionement touché, l´oblige à traiter de ce qui n´est pas un problème inhérent à son trajet, mais qui la constitue inévitablement pour le recepteur (le lecteur=l´auditeur), de ce masque indispensable qu´elle prend pour se construire à travers ce masque: du vraisemblable. (KRISTEVA, 1969, p. 149) 3

Atentemo-nos às disciplinas que são ensinadas na escola do mar. Todas

elas possuem relação com as disciplinas tradicionais das escolas reais, contudo

ocorre o jogo de palavras: Artes torna-se Parte, Geografia torna-se Jografia etc.

Percebamos o fato de as aulas de desenho serem ensinadas por uma Traça, já

que a Traça (larva de mariposa) tem em seu próprio nome embutida a habilidade

de traçar (construir traços). Ocorre, nesse caso, aproximação semântica de

palavras homógrafas. Processo semelhante, só que numa aproximação

paronímica, ocorre com “cintura a olho” que apresenta aproximação fonética com

“pintura a óleo”, além de possuir relação íntima com a situação enunciativa: a

enguia se enrolava na cintura e ficava com um olho de fora. Estamos no plano

daquilo que Julia Kristeva (1969), ao analisar a obra de Roussel, define por

verossimilhança semântica:

La parole agglutine tout ce qui s´écarte de la structure, assimile toute difference aux normes du principe naturel. Les combinaisons sémiques les plus absurdes se vraisemblabilisent dans la parole. L´alliage de deux séries disjonctives n´apparaît absurde que d´un lieu à distance temporelle et spatiale par raport au discours produit: c´est le lieu de la différenciation logique, extérieure au lieu de la parole identifiante (...) la absurdité logique se profile comme une anteriorité indispensable au vraisemblable discursif. (KRISTEVA, 1969, p. 159-160)4

3 A literatura, alcançada a maturidade que lhe permite se inscrever como uma máquina e não mais unicamente como um espelho, afronta-se com seu próprio funcionamento por meio da palavra; o mecanismo de seu funcionamento atingido a obriga a tratar daquilo que não é um problema inerente de seu trajeto, mas que a constitui inevitavelmente para o receptor, dessa máscara indispensável que ela veste para se construir: a verossimilhança. 4 A palavra (entendida como discurso) aglutina tudo aquilo que se descarta de sua estrutura, assimila todas as diferenças em relação às normas de princípio natural. As combinações sêmicas mais absurdas se tornam verossimilhantes dentro da palavra (discurso). A ligação de duas séries

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As transgressões dos valores e convenções sociais ocorrem por meio de

observações que não seriam educadas no contexto real e por meio do julgamento

sobre o roubo das tortas em que as convenções são desestabilizadas (A Rainha

de Copas tenta promover um desequilíbrio no julgamento, que deveria ser justo,

por meio da força; solicita que se passe para a sentença “Cortem a cabeça!”

antes de o julgamento ocorrer) ou ainda nos jogos de críquete promovidos pela

rainha em que não se encontram regras claras. Vejamos a transcrição da

passagem do capítulo em que se narra “Um chá muito louco”:

A mesa era bem grande mas os três se amontoavam num canto. - Não tem lugar! Não tem lugar! – gritaram quando viram Alice se aproximando. - Está cheio de lugar! – exclamou ela indignada, e se sentou numa poltrona grande, na cabeceira. - Tome um pouco de vinho – ofereceu a Lebre de Março, num tom encorajador. Alice olhou bem a mesa toda, e viu que só havia chá. - Não estou vendo vinho nenhum – observou. - Claro. Não tem vinho - disse a Lebre. - Então não foi muito educado você oferecer – disse Alice, zangada. - Também não foi muito educado você se sentar sem ser convidada – disse a Lebre de Março. - Eu não sabia que a mesa era sua. Está posta para muito mais gente, com muito mais de três lugares. - Você precisa cortar o cabelo – comentou o Chapeleiro, que estava observando Alice com muita curiosidade e agora falava pela primeira vez. - Você devia aprender a não fazer comentários tão pessoais – disse a menina, severa. – É muito grosseiro. (MACHADO, 2003, p. 71-73)

Em toda a narrativa, percebemos a protagonista tentando aplicar as regras

de convivência que ela conheceu no mundo real – que já se trata de uma

representação e que é totalmente verossímil -, entretanto essa tentativa é

frustrante para a menina, pois tudo funciona de um modo bem diverso. É

consensual pensar que as convenções que regem a boa convivência entre

pessoas não permitiriam que oferecêssemos a uma visita algo que não

possuímos, muito menos que não a convidássemos para se sentar a mesa. No

mundo fantasioso da menina, isso é possível. Trata-se de um espaço onde as

normas de gentileza, educação, polidez são postas à prova. Alice, na maioria das disjuntivas parece absurda somente do ponto de vista espacial e temporal em relação ao discurso produzido: é o lugar de diferenciação lógica, exterior ao lugar da palavra identificadora (...) o absurdo lógico se delineia como uma anterioridade indispensável à verossimilhança discursiva.

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vezes, questiona essa falta de referência que as personagens do mundo

maravilhoso possuem, mas sucumbe a elas, percebendo que se trata de um

mundo à parte do seu. Morais (2004) diz que o século XIX marca um forte

moralismo religioso e ético, além de um apego às tradições familiares. Nesse

contexto moralista e convencional, torna-se lógico o apego de Alice às regras de

boa convivência.

Entretanto, à medida que Alice tenta argumentar e aplicar os princípios da

verossimilhança, mais ela se aproximará do mundo concreto, mais ela estará

próxima de sair do labirinto em que se meteu. Como no caso do julgamento para

descobrir quem roubou as tortas:

- Regra 42: Todas as pessoas com mais de um quilômetro e meio devem se retirar do tribunal. Todo mundo olhou para Alice. - Eu não tenho um quilômetro é meio de altura – disse ela. - Tem sim – disse o Rei. - Quase três...- disse a Rainha. - É, mas de qualquer modo, não vou embora. Além do mais, essa regra não existia. Vocês acabam de inventar. - Nada disso. É a regra mais antiga do livro. - Então devia ser a número 1 – disse Alice. (...) - Você nunca deu nem sofreu ataques, não é minha querida? Dirigira a pergunta à Rainha, que respondeu, furiosa, jogando um tinteiro em cima do Lagarto: - Claro que não, nunca! (O coitado do Teco tinha parado de escrever com o dedo em sua lousa, depois de descobrir que dedo não deixa marca. Mas agora recomeçou, apressado, usando a tinta que escorria em seu rosto.) - Então, essas palavras são um ataque contra a Rainha! (..) – Foi um trocadilho! – acrescentou o Rei, zangado. Todo mundo riu. - Que o júri agora dê seu veredito – repetiu ele, provavelmente pela vigésima vez naquele dia. - Nada disso – disse a Rainha. – Primeiro a sentença, depois o veredito. - Mas que besteira mais absurda! – disse Alice em voz alta. – Como é que alguém pode querer a sentença antes? - Cale a boca! – disse a Rainha, roxa de raiva. - Não calo! – disse Alice. - Cortem-lhe a cabeça! - Quem liga para vocês? – disse Alice, que já tinha crescido até voltar a seu tamanho verdadeiro. Vocês não passam de cartas de baralho... (MACHADO, 2003, p. 119-126)

É mister notarmos que as convenções sociais são quebradas, um mundo em

que o esperado é substituído pelo inesperado. Para que entendamos de que

modo a situação é surreal e de que modo o tipo de contexto social é

desconstruído, consideramos relevante buscar apoio nos esquemas de análise

contextual propostos por van Dijk (2004). Segundo o estudioso, a análise do

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contexto é importante para a compreensão de um ato de fala qualquer, já que o

contexto constitui, numa terminologia de Bakhtin (2003), plano de fundo para o

ato de fala. Exemplifiquemos o modelo proposto: num ato de fala, um fiscal de

tíquetes de trem solicita que o passageiro lhe mostre o tíquete que lhe dá direito à

viagem. Tanto o fiscal quanto o fiscalizado possuem conhecimentos sobre as

funções, as posições que exercem no ato de fala, bem como das relações de

autoridade que um exerce sobre o outro.

Maingueneau (1996), para a construção de sua pragmática para o discurso

literário, apoia-se no mesmo modelo de análise, entretanto, exclui o tipo de

contexto social, a instituição e o frame. Para nossa análise do julgamento sobre

as tortas, apoiar-nos-emos em van Dijk (2004) por apresentar um modelo mais

completo. Primeiro, façamos uma análise de um julgamento, que mais se

aproxima da representação da realidade, para depois expormos o

empreendimento transgressivo de Carroll. A análise do contexto ficcional

carrolliano em comparação a contextos mais verossímeis corrobora o que já

expusemos sobre as transgressões dos valores e das convenções na obra

literária que analisamos. Não basta para Carroll a verossimilhança, é necessário o

nonsense. Vejamos:

Tipo de Contexto Social: Institucional Público.

Instituição: Poder Judiciário.

Frame: Julgamento de um fora-da-lei. Há, portanto, uma contravenção ou

um crime.

A – Estrutura do frame:

a) Cenário: Tribunal.

b) Funções: O Rei (X) juiz

O acusado Valete (Y)

A menina Alice testemunha, ela é uma depoente (Z)

O júri (W).

c) Propriedades: X tem como prerrogativa a autoridade de julgamento. Y é

acusado por um crime. X exerce sua autoridade e Y tenta se defender das

acusações. Z tem subsídios, pois presenciou algo ou sabe de algo para ser

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considerada testemunha. W deve ter atenção ao julgamento para inocentar ou

culpar Y.

d) Relação: X detém a autoridade sobre a condução do julgamento. X

determina a ordem e a seriedade exigida pela situação comunicativa. Z

presenciou algo sobre o delito do acusado. W se mantém em silêncio para que

possa tomar decisão sobre a culpa ou inocência.

e) Posições: X julga provas sobre a possível culpabilidade de Y, esse é

julgado por aquele. Z presenciou algo relevante para a condução do julgamento. Z

pode inocentar ou culpar Y pelo delito.

B) Convenções do Frame:

1 – Depoentes devem falar somente na sua vez.

2 – O rei é uma autoridade e deve ser respeitado.

3 – O júri se mantém em ordem e local específico. Não tem a palavra no

julgamento.

4 – Deve haver provas para a comprovação da culpa.

5 – Deve haver a ocorrência de um delito.

6 – A testemunha age como tal e nunca como um advogado de defesa.

7 – O veredicto precede a sentença etc.

Lembremo-nos de que o modelo acima constitui uma aproximação com os

julgamentos reais e, por meio da leitura da obra, percebemos que a mera

reprodução de contextos concretos não constitui objetivo do autor de Alice no

País das Maravilhas. O júri não se comporta adequadamente ao cenário em que

se encontra; eles escrevem com o dedo em lousas, pois não possuem tinta para

fazer as anotações. Alice não age somente como testemunha; na verdade ela

nem havia testemunhado nada; a menina age como a advogada de defesa do

Valete acusado. A Rainha exige que se cumpra a sentença antes de o veredicto

ser dado. Enfim, um contexto que exigiria ordem é desconstruído de modo a

reafirmar a literatura nonsense de Carroll. Some-se a todas essas “incoerências”

situacionais o fato de não haver crime nenhum, pois as tortas não foram roubadas

e estiveram no Tribunal o tempo inteiro, como prova de delito que não ocorreu.

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Por fim, temos as transgressões históricas , já que, num mundo em que

ocorria a primazia dos contos de fadas para crianças, surge uma ruptura: a obra

não traz elementos de formação moral ou cultural, pelo contrário questiona-os em

toda a narrativa. Relevante perceber que Carroll tenha adotado exatamente a

estrutura do conto maravilhoso como base para a construção do conto Alice no

País das Maravilhas, entretanto a adoção dessa base estrutural representa mais

um elemento transgressivo: contos maravilhosos podem ser bons, desde que

esteja isentos de conteúdos de formação moral.

As situações comunicativas concretas são a base de criação da obra;

portanto, os dados contextuais são importantes na medida em que revelam

aspectos da obra e constituem um transgrediente para a análise discursiva e

estética. Não somente a estética é relevante para que se chegue à enunciação

empreendida pelo autor, mas também todo o contexto real e ficcional e, no caso

de Alice, duplamente ficcional, já que não se trata, como já dissemos, de

representação artística da verdade, mas de representação carnavalizada da

realidade. Nesse jogo de busca de significações, autor e leitor entram em diálogo.

Pensando na importância do autor e do leitor de obras literárias, somos

remetidos às colocações de Maingueneau (2005), que nos afirma que a instância

de subjetividade enunciativa possui duas faces: por um lado, ela constitui o sujeito

em sujeito de seu discurso; por outro, ela o assujeita. Para o autor, a rede

semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a

definição das relações desse discurso com o seu outro. Assim como foi citado

primeiro por Bakhtin (1998, p.118), todo enunciado de um discurso tem dois lados

concretizados pelos enunciadores (autor e leitor), faces que são indissociáveis.

É fato que o leitor desempenha um papel bastante importante na construção

dos significados de uma obra literária, afinal, vê-se obrigado a interagir com os

contextos e com as transgressões propostas pelos autores. A leitura de Alice no

País das Maravilhas é um exemplo disso, afinal, a interação entre autor e leitor e

a operação de vários conhecimentos por parte do último promove a interpretação

literária, ou uma leitura mais adequada dos eventos narrativos. Associe-se a isso

a importância de conhecermos os contextos de produção e histórico que

engendram um cânone literário.

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2.3 - O Contexto Histórico: transgressão e submis são

Concordamos com van Dijk (2004) quando afirma que a forma e a

interpretação de uma história qualquer inserida num ato de fala podem ter uma

função de ato de narração pretendida pelo ato de enunciação, ou seja, a forma

como recontamos uma história traz intenções marcadas por nossa forma de

enxergar o evento narrativo, caso o presenciemos, ou de recontá-lo, caso

tenhamos sido informados sobre ele. Sobre os estudos dos elementos de

linguística para o texto literário, Maingueneau (1995) diz que, quando se trata do

gênero literário, “a narração e a noção de situação de enunciação” não recebem,

necessariamente, um sentido evidente do escritor; esse deverá ser construído por

aquilo que o mesmo teórico chama de paratopia , definida como a negociação

difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria

impossibilidade de se estabilizar.

A situação de enunciação implica fatos de certa relação entre o momento e o

lugar por meio dos quais o autor literário enuncia os acontecimentos culturais,

políticos e sociais, utilizando também, a diversidade linguística cultural na obra de

uma determinada região. Inferimos, por intermédio das afirmações dos dois

estudiosos citados, que a forma de contar e recontar a história da menina num

mundo mágico sofre a influência dos contextos histórico e geográfico em que se

encontra a obra analisada. Também, parece-nos correto dizer que os contextos

ficcionais de Alice constituem exemplos de paratopias, afinal ocorre a negociação

difícil entre um lugar mágico e um lugar real, esse que não permitia espaço para o

sonho.

Entendamos, então, o contexto histórico e de produção em que se insere a

publicação do romance Alice no País das Maravilhas. Charles Lutwidge Dodgson,

cujo pseudônimo literário era Lewis Carroll, nasceu em 1832 e morreu em 1898.

Terceiro de dez filhos, possuía senso de proteção em relação aos irmãos mais

novos, viveu a maior parte de sua vida na chamada época vitoriana (governo da

rainha Vitória no período de 1837 a 1901). A Inglaterra provava de grande

desenvolvimento econômico; de fortalecimento do comércio; de consolidação do

poder da Coroa; de descobertas filosóficas, científicas e tecnológicas que

contribuíram para a corrosão dos valores morais vigentes.

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O contexto histórico exigia de autores para crianças a escritura de livros

moralizantes, em que as virtudes deviam ser cultivadas. As obras primavam por

valores pedagógicos e familiares e não pelo prazer de contemplação estética. A

função dos autores e literatos ingleses do século XIX era a de entretenimento e

de transmissão de valores morais. As crianças eram educadas para se comportar

como adultas, baseando a educação dos pequenos no binômio culpa e

aprovação, ambos resultavam num sentimento de medo (Morais, 2004).

Movimento semelhante aconteceu no Brasil, segundo Lajolo & Zilberman

(1991b), com quem Oliveira e Palo (2006) mantêm pensamento convergente.

Para as autoras, ocorre, na literatura infantil do século XIX, uma voz moralizante

que definem como voz adulta. Em lado oposto, e com objetivos diferentes,

encontramos a voz da criança, que é libertária e permite a contemplação estética

da obra infantil. Essa voz adulta é facilmente percebida neste poema de Olavo

Bilac que expomos a título de constatação da presença da voz moralizante:

Meu filho! termina o dia... A primeira estrela brilha...

Procura a tua cartilha, E reza a Ave Maria!

O gado volta aos currais...

O sino canta na igreja... Pede a Deus que te proteja E que dê vida a teus pais!

Ave Maria!... Ajoelhado,

Pede a Deus que, generoso, Te faça justo e bondoso,

Filho bom, e homem honrado;

Que teus pais conserve aqui Para que possas, um dia,

Pagar-lhes em alegria O que sofreram por ti.

Reza, e procura o teu leito, Para adormecer contente; Dormirás tranquilamente,

Se disseres satisfeito:

"Hoje, pratiquei o bem: Não tive um dia vazio,

Trabalhei, não fui vadio, E não fiz mal a ninguém."

O poema do parnasiano Bilac, poeta parnasiano, tem sua temática voltada

para a voz adulta e moralizante. A criança já inicia em dívida com os adultos, para

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quem deve pagar por sua existência por meio do trabalho, além de ter de zelar

por suas orações. O medo está presente no poema, a criança deve rezar para

não perder a figura adulta que representa sua proteção num mundo de perigos

para os não iniciados. Apesar do comportamento adulto esperado da criança, ela

é vista como um arremedo de um adulto, sem o qual ficará impossibilitada de

sobreviver.

Em oposição à literatura infantil vigente no século XIX, Alice não é um

compêndio de valores morais e pedagógicos, uma vez que ocorre a negação

deles. A protagonista não é a típica criança que se submete - ela contesta, muitas

vezes de modo inconsciente, os valores escolares, as convenções interpessoais.

Ela demonstra sentimentos que uma criança do século XIX não poderia

demonstrar. Um exemplo: no início da narrativa, Alice está cansada da companhia

da irmã, por isso segue o Coelho Branco, esse que representa a porta de entrada

para um mundo, onde se empreende uma busca solitária da menina: Alice exerce

seu protagonismo sem interferência adulta.

Mais ainda, ela busca o espaço onírico como forma de subversão do mundo

concreto – ainda ficcional - em que ela está inserida. Na obra, não há valores,

virtudes e pedagogia em jogo. Não há, sobretudo, culpa, medo e necessidade de

aprovação. Alice quebra com o mundo adulto para se firmar como criança, por

isso terá reservado um futuro como adulta saudável, numa explícita crítica ao

pensamento vitoriano. Mesmo quando tenta se comportar como uma criança do

século XIX, o resultado se torna hilário para o leitor, pois tudo dá errado.

Além do desastroso comportamento de Alice no Mundo das Maravilhas,

deparamo-nos com a ridicularização da figura real, que propõe sentenças nunca

cumpridas, ninguém a respeita, as relações de poder que exerce sobre as outras

personagens são parcialmente questionadas. A Rainha de Copas é uma figura

que impõe regras absurdas, que revela descontrole emocional na gerência dos

súditos, que tem seu poder questionado por Alice no final da narrativa. A Rainha

de Copas, em muitas leituras, poderia relacionar-se à figura da Rainha Vitória,

numa clara referência à monarquia parlamentarista, modelo de governo em que a

rainha torna-se figura simbólica.

A menina Alice, no final da narrativa, questiona tudo o que a cerca. Afirma

que todos não passam de cartas de baralhos, valendo-se de um processo

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metonímico: as cartas remetem a um jogo do qual a menina não quer mais fazer

parte, pois o compreende com perfeição e percebe que pode controlá-lo. Afinal,

para subverter a sociedade é necessário conhecer os mecanismos de

funcionamento. O jogo de baralhos é o próprio jogo social de modo metafórico;

precisamos entendê-lo para questioná-lo e tornarmo-nos parte importante dele.

Nessa passagem do conto, percebemos a iniciativa individual se sobrepondo aos

interesses incoerentes do grupo.

Nesse contexto, o moralismo coletivo se contrapõe às iniciativas individuais.

Por isso Alice no País das Maravilhas, inspirada numa criança de 6 anos, cujo

nome fornece títulos para as duas obras infantis de Carroll, constitui uma

subversão à ordem vigente no século XIX. Notamos que Lewis Carroll lê o

contexto histórico que o rodeia para a criação da obra e, paratopicamente. O

autor cria um espaço fronteiriço em que todas as relações são questionáveis. Ao

mesmo tempo surge um mundo, que não está eximido de expor a realidade

concreta do autor. Maingueneau nos explica o problema da paratopia do escritor

que representa uma pertinência impossível a qualquer mundo:

Longe de enunciar num solo institucional neutro e estável, o escritor alimenta sua obra com o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à sociedade. Não é uma espécie de centauro, uma parte do qual estaria imersa na gravidade social e a outra, a mais nobre, voltada para as estrelas, mas alguém cuja enunciação se constitui através da própria impossibilidade de se designar um lugar verdadeiro. Além, a inscrição do campo literário na sociedade se revela igualmente problemática. Decerto esse campo faz, em certo sentido, “parte” da sociedade, mas a enunciação desestabiliza a representação que normalmente fazemos de um lugar, com um fora e um dentro. Os “meios” literários são de fato fronteiras. A existência social da literatura supõe ao mesmo tempo a impossibilidade de se fechar sobre si e a de confundir a sociedade “comum”, a necessidade de jogar nesse meio-termo (...) A pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar, mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Essa localidade paradoxal, vamos chamá-la paratopia. (MAINGUENEAU, 1995, p. 28) .

Dodgson, ou Carroll, vive o paradoxo paratópico: o autor de Alice está numa

relação de pertença a um lugar histórico, geográfico, concreto e real, ao qual se

opõe e se submete. Nessa negociação difícil entre submissão e oposição,

constrói-se a paratopia carrolliana: num contexto em que se fortalecia o Realismo

Francês por toda a Europa, surge uma obra ficcional que paradoxalmente não

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aborda a realidade tal qual conhecemos, mas que, ao mesmo tempo, retrata-a

realisticamente para os leitores mais proficientes. O questionamento, tipicamente

realista da sociedade, está inserido na obra que nos traz um mundo de fantasias.

Paradoxo que evidencia a impossibilidade de estabilização da obra. Lugar não

estável que nos remete a um outro espaço contextual: o da situação comunicativa

que engendrou a obra.

2.4 - A gênese do maravilhoso: da “contação” de his tórias para o texto

escrito

A gênese da obra se deveu a um passeio que o matemático fizera com as

irmãs Liddell. As meninas pediram ao senhor Dodgson que lhes contasse uma

história. Alice no País das Maravilhas nasceu, portanto, como texto oral. Em

1862, num dia de verão, Lewis, as três meninas e o reverendo Canon Duckworth

fizeram mais um de seus passeios de barco, com piquenique. Sobre esse

passeio, Alice Liddell, em artigo publicado pelo New York Times (1928)5, conta:

The begining of Alice was told to me one summer afternoon,when the sun was so hot we landed in the meadows down the river, deserting the boat to take refuge in the only bit of shade to be found, which was under a newly made hayrick. Here from all three of us, my sisters and myself, came the old petition, 'Tell us a story' and Mr. Dodgson began it. Sometimes to tease us, Mr. Dodgson would stop and say suddenly, 'That's all till next time.' 'Oh,' we would cry, 'it's not bedtime already!' and he would go on. Another time the story would begin in the boat and Mr. Dodgson would pretend to fall asleep in the middle, to our great dismay.6

Com Marina Warner (1999), conhecemos que os contos maravilhosos têm

sua origem na oralidade. Passados de geração para geração, esses contos

sofreram modificações no decorrer do tempo. Afinal, a expressão “Quem conta

um conto aumenta um ponto” é pertinente para explicar variadas versões de

histórias maravilhosas como “Chapeuzinho Vermelho” ou “A Gata Borralheira”. Os

contos de fadas tradicionais foram resultados de pesquisas feitas por autores 5 http://www.alice-in-wonderland.net/alice1a.html 6Tradução: “O início de Alice me foi contado numa tarde de verão, quando o sol estava muito quente que decidimos descer para procurar um pedaço de sombra embaixo de um celeiro recém-construído. Nesse lugar, eu e minhas três irmãs pedimos que o Sr. Dodgson nos contasse uma história e ele começou a contar uma. Às vezes, ele parava e dizia “Isso é tudo, fica para a próxima vez”, e nós chorávamos porque ainda não era hora de dormir. Num outro momento, ele nos contaria a história no próprio barco e fingia dormir no meio para nosso grande desalento.

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como Perrault, Grimm e, posteriormente, por Andersen que foram recolhidos da

sabedoria popular e depois adaptados para crianças.

A autora, por meio de pesquisas consistentes, afirma que os contos de

fadas têm sua origem na tradição oral e surgiram em ambientes domésticos. Os

contos maravilhosos devem ser entendidos, segundo Warner, como tagarelices

de mulheres fiandeiras de histórias que, tal como Sherazade, compunham-nas de

modo a perpetuá-las no imaginário feminino e, depois, no imaginário infantil.

Outra informação nos chega por meio da estudiosa: apesar de os contos de fadas

terem sido organizados por homens, muitos deles ainda mantiveram o anonimato

por meio de pseudônimos femininos. Exemplo disso é a obra Os contos da

Mamãe Gansa, de Charles Perrault, esse que prefere não expor seu nome em

uma obra destinada ao público infantil. No Brasil, temos Contos da Carochinha,

obra que traz no título uma narradora ficcional feminina cujos textos foram

organizados por Figueiredo Pimentel (Lajolo & Zilberman, 1991a). Marina Warner

(1999) comprova sua teoria por meio da exemplificação. Vejamos:

Portanto, embora os escritores e colecionadores do sexo masculino tenham dominado a produção e a disseminação de contos maravilhosos populares, esses frequentemente eram transmitidos por mulheres no ambiente íntimo ou doméstico (...) Marguerite de Navarre, em Heptaméron, atribui as histórias a dez oradores, cinco deles mulheres; elas também, como a narradora de As mil e uma noites, defendem seu próprio argumento, velado por uma camada de entretenimento, e, ocasionalmente, fantasia licenciosa (...) o veneziano Giovan Francesco Strapola relatou história contadas por um círculo de damas numa coleção de fantasias divertidas e às vezes escabrosas, cheias de motifs de contos de fadas e improbabilidades, chamada “Le piacevoli notti”, publicada em 1550; o napolitano Giambattista Basile, em “Lo cuonto de li cunti” apresentou como fonte um grupo de velhas encurvadas e enrugadas.(WARNER, 1999, p. 42)

Não temos dados cotextuais para afirmar que a história de Alice traz um

narrador do sexo feminino, apesar de a própria Alice afirmar que se não

estivessem escrevendo uma história sobre ela, ela mesma o faria. Podemos, sim,

afirmar que a obra escrita está permeada de referências ao texto oral e que,

talvez acidentalmente, tenha se originado como os contos maravilhosos

tradicionais, ou seja, por meio do conto oral.

É certo que a narrativa criada por Carroll se liga aos contos maravilhosos

tradicionais, sobretudo na questão genérica, entretanto não nos esqueçamos de

que a obra também se afasta da tradição, já que não tenta apresentar fundos

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morais nem está ligada a uma cultura popular. A cultura popular do século XIX

está representada nas passagens da história de Alice, entretanto o olhar sobre

essa cultura é de um erudito. De modo diferente, a gênese dos contos

maravilhosos tradicionais está na cultura popular que é transmitida pelo próprio

povo por meio da oralidade e, somente depois, organizada na escrita pelas mãos

de um erudito.

Guardadas as diferenças entre as origens da narrativa de Carroll e a dos

contos maravilhosos tradicionais, pensemos nos dados contextuais que

engendram a história oral contada às três meninas. Exemplos de referências ao

passeio original podem ser retirados da narrativa: algumas personagens, como o

Coelho Branco, foram retiradas daquilo que se via no próprio passeio real; o

ratinho Dormundongo, que dormia durante a narrativa das meninas que puxavam

melado de dentro de um poço numa relação direta com as atitudes de Dodgson,

que fingia dormir no meio da narrativa de Alice, deixando as irmãs Liddell

ansiosas. Há outros exemplos dessas referências ao passeio pelo rio Tâmisa,

entretanto a mais explícita é essa que transcrevemos, traduzida por Ana Maria

Machado em redondilhas maiores e encontrada na introdução do livro:

Num dourado entardecer Rio abaixo a deslizar,

Os dois remos nem pediam Nossos braços a remar.

Mãos pequeninas fingiam Nosso passeio guiar.

Três meninas bem cruéis

Em todo esse encantamento Inventaram de ouvir

Um conto nesse momento. Três linguinhas a implorar

Podem ser grande tormento.

A Primeira exige história, Bem mandona se revela. Gentil, espera a Segunda

“Que tenha absurdos nela”. E a Terceira interrompe Toda hora, a tagarela.

Mas quando se faz silêncio,

Elas seguem a fantasia De uma criança que sonha

Terras novas de poesia, Conversando com animais E crendo que isso ocorria.

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Encontramos nas sextilhas a narrativa do passeio real que engendrou Alice

no País das Maravilhas. Referências ao passeio pelo rio Tâmisa, ao pedido das

irmãs Liddell para que o Reverendo Dodgson lhes contasse uma história e à

própria história escrita estão presentes nos versos. Percebemos que a primeira

forma de transmissão do texto de Carroll impregna de elementos a versão final

escrita do livro. Fatores contextuais da versão oral são retomados na escrita e na

reescrita da narrativa com que entramos em contato. Notamos que o passeio

constitui o próprio suporte da história oral, portanto é a sua midialogia.

Para entendermos a importância dos suportes, recorremos a Maingueneau

(1995), apoiado nos estudos de Debray (1991)7, que, ao se referir à questão da

midiologia como fonte produtora de significados, afirma que os meios pelos quais

são construídos os enunciados são importantes para a construção de sentidos na

literatura, portanto, acessar a informação de que a obra nasce de um passeio

entre dois adultos e três meninas é importante para a compreensão da narrativa,

já que constitui seu primeiro suporte material, midialógico:

A transmissão do texto não vem após sua produção, a maneira como ele se institui materialmente é parte integrante de seu sentido (...) Decerto as obras aparecem em algum lugar, mas deve-se levar em consideração sua pretensão constitutiva de não se encerrar num território (...) A midiologia é conduzida de modo que leve em consideração elementos muitos diversos. Uma mesa de refeição, um sistema de educação, um café, um púlpito de igreja, uma sala de biblioteca, um tinteiro, uma máquina de escrever, um circuito integrado, um cabaré (...) são feitos para difundir informação. Não são mídia, mas entram no campo da midiologia enquanto locais e objetos de difusão, vetores de sensibilidade e matrizes de sociabilidades. Sem este ou aquele desses canais, esta ou aquela ideologia, não haveria a existência social que conhecemos através deles. (MAINGUENEAU, 1996, p. 85).

Num aprofundamento das questões midialógicas, Maingueneau (1996)

torna-se mais explícito em relação à importância da retomada das cenas originais

de enunciação, que se tornarão parte indissociável do texto artístico, já que

constituem veículo/suporte para a construção de sentidos do texto literário:

Em primeiro lugar, apreendemos o contexto da obra como campo onde o escritor se posiciona, depois como veículo. Porém, enquanto enunciado, a obra também implica um contexto: uma narrativa, por exemplo, só se

7 DEBRAY, R. — Cours de médiologie générale, s/l 1991.

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oferece como assumida por um narrador inscrito num tempo e num espaço que compartilha com seu narratário. Deve-se levar em conta essa situação de enunciação, a cenografia que a obra pressupõe e, em troca, valida. Ao mesmo tempo na obra e fora dela, essa cenografia constitui um articulador privilegiado da obra e do mundo. (MAINGUENEAU, 1996, p. 121).

Entendido o passeio como o primeiro suporte material da narrativa que

começara a se desenhar, Carroll elabora a primeira versão escrita da obra.

Depois de ouvir a história, segundo informação de Duckworth, Alice teria pedido a

Lewis que colocasse a história contada no papel e a desse para ela. O autor

passou a noite inteira escrevendo um primeiro rascunho. Uma primeira

transformação é sofrida pelo texto: não se tem mais o texto oral, mutável e

irrecuperável em sua forma; o primeiro rascunho inicia o trabalho de fixar o que a

memória não faria.

O rascunho foi revisado numa viagem de trem e o autor ampliou ainda mais

a história inicial. Torna-se certo que Carroll, nessa passagem do oral para o

escrito, manteve elementos do texto original, entretanto, outros elementos se

perderam, já que se torna impossível para nós, seus destinatários, vivenciar a

cena enunciativa e analisar elementos com a gestualidade e a entonação, tão

relevantes para a construção de sentidos.

Em 26 de novembro de 1864, o manuscrito foi entregue como presente de

Natal para Alice Liddell com o título de Alice´s Adventures Under Ground. A

materialidade do texto sobre o suporte livro marca a distância entre o texto

original, em que a relação do autor e dos ouvintes seria sempre coletiva e sujeita

aos caprichos da memória, e o texto escrito, próprio para uma situação íntima e

pessoal, em que a leitora Alice se manteria longe do autor e poderia, ela própria,

matizar a leitura com suas lembranças da história original.

Posteriormente, um novelista amigo de Dodgson, Henry Kingsley, leu o

manuscrito e sugeriu sua publicação, sem que houvesse a indicação de ser um

texto para crianças. Um novo tipo de leitor se apresenta para o texto de Lewis,

impregnando-o de seus horizontes, de suas expectativas. Além disso, vemos o

início de reconhecimento do sistema para a obra do escritor, como digna de ser

publicada. A obra começa a ser reconhecida como literatura, mas Carroll não se

decide imediatamente e pede a leitura de um outro amigo, autor de histórias

infantis, George Mac Donald.

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Esse amigo leva o manuscrito e o lê para seus filhos. Muda-se, aqui, a

situação leitora, pois, enquanto Alice Liddell podia ter uma relação individual com

o texto, os filhos de George participaram de uma situação coletiva de leitura, em

que um leitor experiente orienta a leitura de leitores (ou não-leitores) mais jovens.

É possível pensar que, durante sua leitura, Mac Donald tenha impregnado o texto

de seus próprios sentidos e entonações, o que nos sugere que seus filhos “leram”

outro texto que não o manuscrito presente nas mãos do pai.

Deparamo-nos com um Dodgson conhecedor do mercado de publicações.

Alguém que “sondou o mercado” antes de fazer sua incursão editorial. Temos

diante dos olhos alguém com consciência do sistema literário, que envolve obra,

público e autor. Maingueneau (1995) afirma que não basta levar uma vida boêmia

ou frequentar cenáculos para ser um criador, o importante é a maneira particular

como o escritor se relaciona com as condições de exercício da literatura de sua

época (op. cit., p. 45). Temos aqui uma relevante afirmação que nos leva a

compreender de maneira mais adequada a importância do contexto histórico em

que se insere a obra, entretanto torna-se necessário conhecer um pouco da

história da literatura infanto-juvenil no mundo.

Já dissemos que Perrault se recusa a assinar sua obra infantil (Lajolo &

ZIilberman, 1991a), fato imitado por alguns escritores que o sucederam; não nos

esqueçamos de que Lewis Carroll é um pseudônimo. A adoção de pseudônimos

está relacionada ao fato de a literatura infantil ter sido considerada produção

artística menor, entretanto o século XIX se tornara um ambiente profícuo para a

disseminação de obras destinadas às crianças e Carroll sabia disso, por isso o

cuidado que ele manteve para adentrar o mercado editorial com uma obra que

fosse relevante para o contexto e época em que o literato se insere. Tudo isso

sem abandonar o uso de um outro nome que separasse sua obra ficcional da

científica:

As relações da literatura infantil com a não-infantil são tão marcadas, quanto sutis. Se se pensar na legitimação de ambas através dos canais convencionais da crítica, da universalidade e da academia, salta aos olhos a marginalidade da infantil. Como se a menoridade de seu público a contagiasse, a literatura infantil costuma ser encarada como uma produção cultural inferior. Por outro lado, a frequência com que os autores com trânsito livre na literatura não-infantil vêm se dedicando à escrita de textos para crianças, somada à progressiva importância que a produção literária infantil tem assumido em termos de mercado e de oportunidade para a profissionalização do escritor, não deixam margens para dúvidas: englobar ambas as facetas da produção literária no

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mesmo ato reflexivo é enriquecedor para os dois lados. (LAJOLO & ZILBERMAN, 1991a, p. 11)

Compreendidas as condições de produção da literatura infantil no século

XIX como um momento em que começa a ocorrer a valorização de escritores que

dedicavam obras literárias às crianças, devemos nos lembrar de que Carroll, ou

Dodgson, conhecia o mercado editorial, como escritor de tratados científicos

sobre matemática e lógica, por isso tentava prever a aceitação de sua obra

ficcional por meio de várias leituras que influenciaram a transformação e produção

da obra. Nesse ponto, encontramos o conceito de bio/grafia (Maingueneau, 1995,

p. 46), projeção da vida na escrita ou o contrário. Dodgson já possuía grande

renome dentro dos meios científicos e optou por assinar a narrativa sob

pseudônimo, uma forma de não ter visto associada a obra ficcional àquela

produzida sobre a lógica e a matemática. Respeita, dessa forma, o cientificismo

vigente no final do século XIX.

Notamos que a noção de bio/grafia está relacionada entre os dois

conceitos que abarca: o de vida (bio) que se projeta na escrita (grafia) e vice-

versa. A existência do criador desenvolve-se em função da parte de si mesma

constituída pela obra já terminada, em curso de remate ou a ser construída. Em

compensação, porém, a obra alimenta-se dessa existência que ela já habita

(Maingueneau, 1995, p. 46). Podemos afirmar que essa é outra paratopia

carrolliana: o paradoxo entre o cientista e o novelista.

Dodgson decidiu revisar o texto, de modo a tirar as referências ao

piquenique original. Essa proposta pode estar relacionada aos problemas

pessoais que enfrentava com a família Liddell, principalmente com a mãe das

meninas, ou pode ser atribuída à sua consciência de escritor, ciente de que o que

é válido para um texto oral pode não ser válido para um texto literário de sucesso.

Foram incluídos capítulos, piadas e trocadilhos e alguns poemas foram alterados.

Como se vê, os leitores ingleses dessa primeira versão não leram o mesmo

texto que Alice e os dois amigos de Dodgson leram. É justo, afirmar, portanto, que

os valores que foram dados ao texto ao longo do tempo se modificaram. Seus

significados foram construídos de maneiras diferentes, não apenas pelas

diferenças entre os leitores, mas pelas diferenças situacionais condicionadas

pelas próprias edições. À medida que se modificavam as situações de

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enunciação, modificavam-se os suportes e sentidos atribuídos ao passeio original,

mas a opção pelo nonsense estava em todas as versões.

A escolha de uma literatura relacionada ao nonsense também parece ter

sido influenciada pela profissão do autor de Alice. Holquist (2000) aproxima o

nonsense das relações abstratas da matemática e da lógica e recria o conceito de

absurdo. A obra não deve ser considerada absurda, apesar de parecer. Trata-se

de uma obra de transgressão de uma lógica com a qual o leitor está acostumado.

Os sentidos de Alice se constroem num processo de interação entre

autor/obra/leitor.

É tarefa também da protagonista do conto reconstruir os “absurdos” de

maneira coerente. A menina é a interlocutora principal entre o mundo maravilhoso

e o leitor, pois elucida-nos aquilo que pode parecer incoerente, apresenta-nos o

modo de funcionamento de um lugar onde animais e cartas de baralho se

personificam. Alice questiona a coerência daquele mundo diferente do seu,

contudo, termina por se submeter às regras e à ordem lá impostas. Nessa

submissão, Alice liga o mundo real repressor ao mundo imaginário, onde terá de

também seguir regras. Não se trata de um lugar maravilhoso como preconiza o

título, mas um lugar onde se preconizam as representações já conhecidas por

Alice e pelo leitor. É certo que, depois, essa submissão se transformará em

processo de autoconsciência da protagonista, que se rebelará contra as

incoerências cometidas no julgamento final.

Partindo-se desse ponto de contato entre a matemática e o nonsense,

reiteram-se as diferenças entre a literatura produzida por Dodgson e aquilo a que

chamamos de absurdo. Alice não é uma obra sobre o absurdo; trata-se de uma

manipulação lógica da linguagem que deverá ser desvendada ao longo da

narrativa. Segundo Holquist (2000), o absurdo lida com a ordem e a desordem; o

nonsense somente com a ordem, constitui uma violência contra a semântica,

mas, como é sistemático, pode ter seu sentido (re)construído. Determinamos,

desse modo, o sentido da obra como uma representação artística da realidade

transmutada para o espaço onírico e aparentemente incoerente.

Outra fonte de construção de sentidos são os silogismos linguísticos

construídos pela heroína. Por meio deles, ela pode até duvidar se ela era ela

mesma, ou se era uma outra. Alice fica em dúvida se ela é Mabel, pois a colega é

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“burra” e, na descrição da protagonista, não consegue decorar lição alguma.

Entretanto, quando Alice tenta recitar as lições aprendidas, as palavras não saem

muito corretamente, logo, Alice é Mabel. Carroll nos chama a atenção para a

construção lógica da linguagem, para o fato de que ela não é somente algo que

conhecemos, mas algo que está em processo e que representa descobertas. No

caso da obra, a descoberta do próprio “eu”.

Buscar a identidade torna-se objetivo inconsciente de Alice. Ela só

necessita da toca do Coelho como porta de entrada que tem como função levá-la

ao autoconhecimento. Porta que apresenta somente esta função: porta de

entrada, não constitui porta de saída, pois, no fim do livro, Alice não atravessa

novamente a toca para escapar do País das Maravilhas. Alice acorda crescida e

modifica a situação inicial da narrativa voltando para seu verdadeiro lar -

transfigurada como qualquer personagem de contos maravilhosos. É possível,

então, estabelecermos uma relação interessante: se Alice apenas “chega” ao País

das Maravilhas e não “sai”, ela, com efeito, ou nunca voltou de lá; ou, de outro

modo, nunca esteve em outro lugar. Assim, ou sua viagem a modifica

internamente por completo, transformando-a de modo profundo e irremediável; ou

ela, a bem da verdade, viajou sem sair do lugar, isto é, abstraiu-se, filosofou.

Ficamos com a opção da abstração, da filosofia. Novamente o autor, a

protagonista e os leitores se perdem num jogo de xadrez em que cada peça

contextual e cotextual constituem chaves para a compreensão da obra.

Diálogo entre a protagonista e seus leitores, as descobertas que esbarram

de Alice e em sua própria existência ressignificada são reveladas aos leitores no

final do livro. A irmã da protagonista que contava uma história vê Alice como

mulher feita rodeada de crianças ávidas por histórias, oportunidade em que a

heroína poderia recontar suas próprias aventuras com o gato, o chapeleiro, a

lebre... e como ela sentiria todas as tristezas simples que eles sentissem e teria

prazer com todas as suas alegrias singelas, lembrando sua própria vida de

criança e os dias felizes de verão. (Machado, 2003, p. 128). Alice adulta não

seria separada das crianças, pois sua experiência a faria sempre ver o mundo

pela lógica infantil. Carroll leva sua frustração em relação ao afastamento imposto

pela família Liddell ao desfecho, demonstra que somente quem vê o mundo de

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modo particular pode se aproximar de crianças e manter a felicidade, isenta de

outras conotações a aproximação que desejava em relação à Alice Liddell.

Terminamos este Capítulo acrescentando que levantamos dados

relevantes para uma compreensão global dos contextos e intertextos da obra

analisada. Propomos, agora, que entendamos as estratégias didáticas que farão

nossos alunos chegarem a uma interpretação adequada de Alice. No terceiro

Capítulo, traremos a aplicação da sequência didática, da qual já falamos

anteriormente. Por meio de sua aplicação, notaremos a concretização do objetivo

precípuo desta dissertação: a corroboração de uma indicação didática dos PCN

de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental 2, chamada de leitura

compartilhada. Sua aplicação permitirá uma reflexão sobre nossas práticas

pedagógicas e sobre como podemos formar leitores literários. Torna-se evidente

que essa formação de leitores literários passa por estratégias de colocar em

evidência os aspectos teóricos que já expusemos até este momento de nosso

trabalho.

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CAPÍTULO III

A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO E A LEITURA

COMPARTILHADA

A literatura corresponde a uma realidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. Antônio Candido. O direito à literatura (1995)

A formação de leitores literários é um desafio para os professores da

atualidade. Sabemos que ocorre um interesse cada vez menor para o letramento

literário, entretanto, acreditamos que ele seja de suma importância para a

formação integral do indivíduo, afinal a busca de implícitos empreendida na

compreensão leitora de textos literários auxilia na retomada de intenções de

autores de gêneros diversos. Entendemos que as estratégias adotadas pelos

professores são determinantes para que ocorra a aproximação do aluno

adolescente com os clássicos da literatura, menosprezados pela escola, dado o

seu nível de complexidade. Não raro, encontramos estudos sobre o trabalho com

gêneros literários menos longos, como a crônica, o conto, mas poucos estudos

sobre romances.

Neste capítulo, situamos a importância do ensino da leitura literária na

sexta série do ensino fundamental, também chamado de sétimo ano. Procuramos

entender de que forma o uso dos fundamentos da abordagem pragmática pode

interferir nos processos de compreensão leitora de textos literários. Evidenciamos

de que forma os estudos teóricos subsidiam nossa intervenção didática e

sustentam nossa afirmação de que é possível propor estratégias eficazes para

que os alunos se aproximem de textos estéticos. Para que consigamos

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concretizar nossos objetivos, partimos da premissa de que os alunos poderão

construir sentidos por meio da mediação do professor que serve como modelo de

leitor literário para o aluno, por isso optamos pela estratégia da leitura

compartilhada.

A estratégia de compartilhamento do texto, em que o professor se torna

figura central do processo de ensino e aprendizagem, é uma das propostas de

ensino de leitura constantes nos PCN de Língua Portuguesa para o ensino

fundamental 2. Representa ainda um instrumento relevante de interação entre

alunos e professor no momento da própria leitura, fator que nos possibilita uma

intervenção in situ, isto é, essa estratégia nos possibilita uma formação no

momento da própria leitura e no local em que ela se realiza. Os PCN ratificam, por

meio da definição da estratégia aqui abordada, nossos procedimentos de

investigação:

Além das atividades de leitura realizadas pelos alunos e coordenadas pelo professor, há as que podem ser realizadas basicamente pelo professor. É o caso da leitura compartilhada de livros em capítulos que possibilita ao aluno o acesso a textos longos (e às vezes difíceis) que, por sua qualidade e beleza, podem vir a encantá-lo, mas que, talvez, sozinho não o fizesse. A leitura em voz alta feita pelo professor não é prática comum na escola. E, quanto mais avançam as séries, mais incomum se torna, o que não deveria acontecer, pois, muitas vezes, são os alunos maiores que mais precisam de bons modelos de leitores.(BRASIL, 1998, p.73)

Tendo em vista que nossa pesquisa está voltada para a compreensão da

intertextualidade e para a importância dos estudos sobre o contexto literário como

fatores que possibilitam a construção de sentidos em eventos sociais de leitura,

apresentamos, neste momento, a investigação de base empírica, por meio da

qual expomos como os sujeitos constroem sentidos em situações de interação.

Para alcançar uma exposição adequada, torna-se necessário o

detalhamento dos procedimentos adotados e dos resultados obtidos. Comecemos

pela caracterização da pesquisa.

3.1 Caracterização da Pesquisa

Esta pesquisa apresenta-se como uma investigação qualitativa, por meio

da qual o pesquisador elabora raciocínios interpretativos centrados em dados

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estatísticos e em respostas de caráter dissertativo produzidas pelos informantes.

Tivemos em mãos a possibilidade de mesurar precisamente alguns aspectos de

nossa pesquisa, fato que poderia caracterizá-la como quantitativa; entretanto,

levamos em consideração outros aspectos que não somente os dados

percentuais e os gráficos. Nosso processo de coleta dos dados não apresentou

distanciamento razoável do objeto pesquisado, tendo em vista que os valores e

crenças do pesquisador influenciaram diretamente a análise dos resultados

obtidos.

Gunther (2006), professor pesquisador do Departamento de Psicologia da

Universidade de Brasília, defende que, na pesquisa qualitativa, os informantes

não sejam vistos em ambientes artificiais, ou seja, a coleta dos dados é feita em

ambientes reais e não modificados para que se produza um determinado efeito.

Além disso, a análise dos dados obtidos leva em consideração a historicidade dos

elementos envolvidos no estudo. Para o professor, a concepção do objeto de

estudo qualitativo sempre é visto na sua historicidade, no que diz respeito ao

processo desenvolvimental do indivíduo e no contexto dentro do qual o indivíduo

se formou. (Gunther, 2006, p. 210)

Outro fator determina a natureza dessa pesquisa: o professor é o

pesquisador. Além disso, nossas conclusões estão centradas em dados objetivos

que vão produzir um resultado subjetivo, logo, notamos, novamente, o caráter

qualitativo de nossa pesquisa. Trindade (2003) diz que a análise de dados

quantitativos e dos cruzamentos entre as diversas informações coletadas vai

produzir algo qualitativo e possibilitar ao pesquisador tirar conclusões que não

poderiam ser tiradas sem o levantamento e o cruzamento de informações

quantitativas.

Esclarecemos, ainda, que não nos baseamos somente no produto de

leitura, mas também na análise do processo de leitura. Consideramos que esse

processo deve apontar para a construção de sentidos múltiplos para o texto

literário, um processo em que o aluno consiga elaborar correspondências entre a

pragmática do texto literário e a interpretação. Sabemos, portanto, que os alunos

conseguem estabelecer relações entre as características da obra, os elementos

do contexto histórico e as particularidades da discursividade literária. Essas

relações resultam na construção de sentidos para o texto. Compreendemos a

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obra como uma representação estética que, por mais distante que esteja da

realidade, ainda assim é uma representação da verdade circundante do autor e

do leitor.

Classificamos esta pesquisa como pesquisa-ação, já que partimos do

problema da formação de leitores literários nas salas de aula do ensino

fundamental para a proposição de pesquisa que intente solucioná-lo. A pesquisa-

ação é um tipo de metodologia de pesquisa na qual o pesquisador deve estar

empenhado em solucionar algum problema, que se torna objeto de estudo, por

meio de uma ação. Segundo Thiollent (2005, p.16), uma das possíveis definições

para esse tipo de pesquisa é a seguinte:

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Como procuramos a solução de um problema sobre a formação de leitores

literários, uma série de ações foi pensada: formulamos algumas intervenções que

poderiam influenciar a leitura dos alunos; propusemos estratégias para que a

leitura de clássicos fosse incentivada em sala de aula; elaboramos listas de

adaptações de clássicos que seriam lidos na roda de leitura e implementamos a

leitura compartilhada: o grupo, com o qual trabalhamos, lê quatro livros por ano

letivo. E é justamente na leitura compartilhada que surgiu nosso principal

questionamento: Seria essa estratégia realmente importante para a formação de

leitores? Poderíamos aproximar nossos alunos de livros considerados mais

complicados centrando a leitura na figura do professor?

Por meio de nosso trabalho, pudemos entrar em contato direto com o

problema durante dois meses, afinal, a leitura integral aconteceu num processo

de interação entre alunos e pesquisador, fato que permitiu a reelaboração

constante da sequência didática (ANEXO A).

Gil (2007) afirma que a pesquisa-ação tem sido alvo de discussões e

dúvidas por parte da comunidade cientifica, já que muitos a consideram como

desprovida de objetividade e cientificidade. Contudo, o mesmo autor afirma que

essa modalidade de pesquisa tem sido muito proveitosa para pesquisadores

identificados por ideologias reformistas e participativas (p. 55). Nós concordamos

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com o autor nesse aspecto, uma vez que essas características reformistas

representam mais adequadamente o perfil do pesquisador do problema proposto

neste trabalho.

Recorremos também a Franco (2005), que afirma que o ambiente onde a

pesquisa-ação é realizada deve ser o próprio ambiente onde as práticas

acontecem, em nosso caso, a própria sala de aula. Além disso, os indivíduos

participantes, incluindo os pesquisadores e pesquisados, devem estar envolvidos

na criação de compromissos com a formação, com o desenvolvimento de

procedimentos crítico-reflexivos sobre a realidade e com o desenvolvimento de

uma dinâmica coletiva que permitam o estabelecimento de referências contínuas

e evolutivas no sentido de compreensão dos significados construídos e em

construção.

A fim de responder às questões elaboradas sobre a validade da estratégia

de leitura compartilhada, optamos pela leitura integral, em contexto de pesquisa,

do livro Alice no País das Maravilhas, por tratar-se de um importante conto da

literatura infantil universal, que oferece dificuldades para jovens alunos. Além da

relativa dificuldade, o conto traz um rico arsenal para a análise literária, dado que

apresenta vários exemplos de intertextualidade do tipo détournement, com forte

apelo lúdico. Apresenta, também, jogos de palavras e aspectos contextuais da

produção literária que são retomados na própria obra, como já vimos nos

Capítulos 1 e 2 desta dissertação.

O grupo de alunos escolhido pertence ao Colégio Parthenon, instituição de

ensino privado e situada em Guarulhos, na Grande São Paulo. Segundo a

coordenadora do colégio, há alguns anos ocorre a construção e reformulação de

um projeto de leitura calcado nas premissas dos PCN: rodas de leitura com títulos

adequados à faixa etária dos alunos, leituras compartilhadas de títulos

considerados difíceis, leituras de textos jornalísticos. Poderíamos optar por um

colégio estadual, mas, baseando-nos nas próprias orientações dos PCN sobre o

ensino de leitura, precisaríamos de uma escola com bom acervo de livros e com

um projeto didático consistente voltado para o ensino de leitura. Além desses

aspectos, precisaríamos de que os alunos tivessem, cada um, o exemplar do

livro, e isso não seria possível dentro de um colégio público, já que não há

exemplares suficientes para todos os alunos.

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Os alunos têm doze anos e estão no sétimo ano do Ensino Fundamental.

Escolhemos o livro, segundo a faixa etária e maturidade em que se encontram.

Os alunos foram divididos em dois grupos: o primeiro leu o livro sozinho na

biblioteca sem acompanhamento do professor (14 alunos), valendo-se, dessa

forma, da estratégia de leitura autônoma; o segundo grupo (treze alunos) leu com

acompanhamento integral do professor que interveio como mediador para buscar

atenção dos alunos a aspectos relevantes da obra lida. São alunos que

pertencem à mesma série e que já mantêm um relacionamento desde as séries

iniciais.

Para a elaboração da sequência didática, levamos em consideração os

preceitos trabalhados por Dolz & Scheneuwly (2004), além das orientações

fornecidas por Solé (1998) para o ensino de leitura: motivação, antecipação,

levantamento do conhecimento prévio, formação de repertório, leitura,

interpretação e compreensão. Os primeiros nos ajudaram na formulação dos

objetivos que empreendemos com a sequência didática, afinal, tivemos de fazer

os alunos construírem algumas representações adequadas acerca da pragmática

do discurso literário. A segunda autora contribuiu para definirmos os conteúdos a

serem ensinados, as estratégias de ensino, a sequenciação dos conteúdos e a

organização social da atividade empreendida.

Orientações dadas por Kleiman (1993, 2003) e Kleiman et al (2003a), sobre

as questões do ensino de leitura por meio de projetos temáticos, também foram

importantes para o planejamento da sequência didática. A leitura de aspectos

teóricos sobre o ensino de leitura nos auxiliou na tomada de consciência de que

qualquer estratégia de leitura literária, que se empreenda com os discentes,

estará fadada ao fracasso se prescindir de objetivos ou se não estiver ligada a um

itinerário crescente de atividades. De maneira confluente aos teóricos com que

entramos em contato, Tereza Colomer também ressalta a importância dos

objetivos de leitura previamente pensados pelo educador:

Os professores sentem-se seguros ao afirmar que ler livros com os meninos e as meninas ajuda a se familiarizarem com a língua escrita, facilita a aprendizagem leitora e propicia sua inclinação para a leitura autônoma. Diferentemente, não se entende muito bem que relação pode ter esta atividade com a possibilidade de programar um itinerário crescente de aprendizagens e, em consequência, os professores não costumam estabelecer objetivos concretos de desenvolvimento. (COLOMER, 2007, p. 33)

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Segundo Colomer (2007) os problemas se agravam no secundário

espanhol, equivalente a nosso fundamental 2 e médio, quando os professores

consideram a desorientação dos alunos em relação às leituras literárias juvenis

como um mal menor e não como uma literatura substancial, importante para a

formação leitora. Preocupam-se, geralmente, com a leitura de obras que

subjetivamente consideram superiores. A autora afirma, também, que a falta de

critérios para a escolha da boa literatura relaciona-se à frágil formação dos

docentes que entram em conflito com os planos oficiais de estudo. Estamos

certos de que problema semelhante ocorre no Brasil.

Consideramos que, para ocorrer uma intervenção didática produtiva,

precisamos estabelecer uma relação de prazer entre os alunos e o texto. Os

alunos devem gostar do texto lido e tornar a leitura relevante e devem perceber

que existe a possibilidade de aprendizado por meio do contato com a obra

literária. Nas palavras de Azevedo (2004), temos o que é necessário para a

formação leitora de clássicos que possibilita um contato direto com o discurso

poético, com a linguagem aparentemente menos lógica:

É importante deixar claro: para formar um leitor é imprescindível que entre a pessoa que lê e o texto se estabeleça uma espécie de comunhão baseada no prazer, na identificação, no interesse e na liberdade de interpretação. É necessário também que haja esforço, e este se justifica e se legitima através dessa comunhão estabelecida. (AZEVEDO, 2004, p. 39)

A sequência didática foi construída e aplicada de modo a promover uma

situação de interação comunicativa prazerosa para os alunos e para o

pesquisador, que é professor da escola, mas não da turma escolhida. Levamos

em consideração a construção de uma atividade lúdica, em que os elementos

relevantes da leitura surgissem à medida que a leitura se desenvolvia.

Observamos como os sentidos podem ser construídos numa situação em que as

relações interpessoais são importantes para a construção dos sentidos da obra

literária.

Torna-se importante, neste momento, expor como foram sequenciados os

conteúdos trabalhados com os alunos, dado que a ordem da intervenção

pedagógica constituiu a parte mais relevante dos procedimentos de pesquisa.

Transcrevemos na íntegra a sequência didática, para que se entenda o trabalho

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analítico de construção de sentidos empreendido pelo pesquisador e pela

coordenação pedagógica do colégio. Na sequência, encontramos traçados os

objetivos gerais, sugerimos orientações didáticas centradas na obra, trouxemos

objetivos específicos em cada uma das seis intervenções, propusemos trabalhos

com conteúdos pragmáticos e linguísticos retirados no momento da leitura em voz

alta.

A intervenção I trouxe o trabalho com o levantamento do conhecimento

prévio dos alunos acerca da obra literária proposta. Em seguida, trabalhamos com

a formação de repertório, para tanto sugerimos uma pesquisa centrada em

aspectos da obra e do autor. Mais adiante, realizamos a leitura das redondilhas

que iniciam a obra e que abordaram o passeio de barco de Carroll e das irmãs

Lidell. Por fim, discutimos questões sobre o gênero literário e propusemos

questões que estimulassem os alunos para a leitura. Enfim, tratou-se de uma

intervenção que recuperou os contextos de produção do discurso literário lido.

A intervenção II marcou um trabalho mais consistente dos elementos

paratextuais da obra – prefácio e posfácio – em comparação à pesquisa proposta

na intervenção I. Devíamos marcar um trabalho sequenciado em relação â

construção dos sentidos da obra literária, por isso essa intervenção trouxe uma

investigação do perfil da protagonista Alice e do gênero nonsense do conto.

Acreditamos que o perfil indeciso da menina promoveu a sustentação do

significado maior de busca da identidade que pode ser empreendida por qualquer

ser humano. Pensamos que conseguimos construir o perfil por meio da leitura do

primeiro capítulo que recebe o título “Na toca do coelho”, momento em que Alice

se vê caindo num poço sem fundo e tentando encontrar uma coerência para tudo

o que estava acontecendo.

A intervenção III aprofundou ainda mais a leitura, já que os conceitos de

intertextualidade começaram a ser trabalhados com os alunos por meio de

trechos da obra. A pergunta “quem sou eu” apareceu e se consolidou como a

base do conto. As primeiras parlendas, ditados e cantigas surgiram no Capítulo II

do livro e foram interpretados pelo professor para que os alunos percebessem as

referências aos textos originais – todos brasileiros. Em seguida, a intervenção

previu um trabalho de antecipação de leitura por meio do título do capitulo III

intitulado “Um corre-corre e uma história comprida”, ocorreu, também, a

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confirmação ou a refutação das hipóteses levantadas pelos alunos por meio da

leitura integral do capítulo. Nesse momento da leitura, ocorreu também a

interpretação de figuras e da disposição do texto em forma de rabo de rato,

evidenciamos a iconicidade da obra. Por fim, ratificamos a intertextualidade e a

iconicidade presentes na obra por meio da leitura em voz alta do capítulo IV

intitulado “O coelho dá um teco”.

A intervenção IV permitiu a abordagem da função filosófica da literatura por

meio da leitura do capítulo V intitulado “Conselhos de uma lagarta”. Encontramos,

novamente, a pergunta central da obra – quem é você? -. A lagarta foi entendida

como um espelho de Alice que, por sua vez, é espelho do leitor. Nesse capítulo,

Alice também foi confrontada por uma pomba que questiona se a protagonista é

uma serpente ou uma menina. Os alunos notaram, também, a referência

intertextual ao poema “A casa” de Vinícius de Moraes. Por fim, ocorreu a leitura

do capítulo VI intitulado “Porco e pimenta”, momento em que Alice conheceu a

Duquesa e ocorreu a transformação de uma criança em porco, corroborando o

gênero ficcional nonsense e maravilhoso. Os alunos entraram em contato com

outros trechos intertextuais baseados em cantigas populares brasileiras.

A intervenção V intensificou o ritmo de leitura, afinal, presumimos, que o

trabalho de formação do repertório e os objetivos da sequência já estavam

devidamente evidenciados nas intervenções didáticas anteriores. Quatro capítulos

da obra literária foram lidos e aprofundaram-se os conceitos de intertextualidade e

da construção dos sentidos do discurso literário. Evidenciamos questões

importantes para a leitura previamente prevista pelo professor e outro dado sobre

o perfil da protagonista foi levantado: Alice aceitou o discurso autoritário da

Rainha sem contestação. Esse aspecto foi importante para a construção da

identidade da protagonista, pois no final descobre que não deve ter medo das

personagens autoritárias, pois não passam de cartas de baralho. Alice entra em

contato com personagens que são retiradas do contexto real de Carroll.

A última intervenção marcou o enfoque no crescimento da protagonista e

na construção de sua identidade. Devemos prever a amarração dos sentidos

levantados durante a leitura em voz alta, dos aspectos contextuais da Inglaterra

do século XIX e da quebra desses paradigmas sociais da época. Ocorreu, na

obra, o destaque da realidade sobre o sonho, este que marcou de modo

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determinante aquela. Alice será uma adulta consciente em relação ao mundo que

a circunda sem perder a capacidade de sonhar. Mais detalhes podem ser

observados no ANEXO A.

Percebemos que, além do prazer de ler, alguns pontos relevantes para a

interpretação da obra foram determinados. Primeiramente, os alunos tiveram a

oportunidade de manifestar aquilo que já possuíam como conhecimento prévio

sobre a obra. Levantado o conhecimento prévio, partiu-se para o aprofundamento

do conhecimento sobre a obra e sobre o contexto. Por fim, a leitura foi realizada

uma vez por semana, durante dois meses, às sextas-feiras pela manhã.

Tínhamos 50 minutos por semana para a aplicação da estratégia que nos serviria

de base para a coleta de dados. Para obtermos os resultados desejados, alguns

procedimentos foram adotados e, sobre eles, falamos a seguir.

3.2 – Procedimentos Metodológicos

Antes de qualquer interação verbal, a professora efetiva da turma separou-

a, aleatoriamente, em dois grupos, determinando, dessa forma, os alunos que

ficariam com o pesquisador e aqueles que ficariam com a professora na

biblioteca. Ficou convencionado que o grupo que ficou na biblioteca e realizou a

leitura silenciosa da obra foi chamado de A e aquele que ficou com o pesquisador

e realizou a leitura compartilhada foi chamado de B. O Grupo A contou com 14

informantes, o Grupo B contou com 13.

A primeira interação verbal entre pesquisador e informantes do Grupo B

aconteceu de modo a levantar o conhecimento prévio dos alunos acerca de Alice

no País das Maravilhas. Dessa forma, o pesquisador procurou sensibilizar os

alunos para a leitura compartilhada, afirmando que muitos aspectos que

conheciam sobre a obra, geralmente centrados em adaptações de Disney,

diferiam da obra escrita no século XIX. Ao final dessa aula, solicitamos que os

informantes realizassem pesquisas sobre autor e obra, levando em consideração

aspectos biográficos do autor, obras principais, e contexto de produção literária,

no caso, a literatura vitoriana inglesa do século XIX. Sabíamos, de antemão, que

os alunos já eram habituados a realizar esse tipo de levantamento. Informamos

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que, desde a primeira interação, havia em sala uma assistente da coordenação

que realizava a ata das aulas.

Acreditamos, juntamente com Kleiman (1989b), que o conhecimento prévio

não está somente ligado ao conhecimento de mundo dos alunos, mas também a

outros níveis de conhecimento como o linguístico e o textual. O conhecimento

linguístico volta-se para o agrupamento de palavras formando frases; o textual

está voltado para a análise dos tipos textuais. Percebemos que, apesar de a

autora não citar os estudos de gêneros, parece-nos mais correta essa

determinação. Neste trabalho, notamos que os conhecimentos textuais

influenciaram a construção dos sentidos dos alunos que leram sozinhos na

biblioteca.

Após esse trabalho inicial, realizamos a discussão dos elementos de

pesquisa que os alunos trouxeram para a sala de aula. Anotamos aspectos

relevantes no quadro negro para posterior retomada e iniciamos a leitura

compartilhada pelos elementos paratextuais do livro: prefácio e posfácio, já que

ambos trazem elementos relevantes para a construção de sentidos da obra

literária. Descobrimos a gênese da obra: um passeio de barco pelo rio Tâmisa e

aspectos da biografia de Carroll, como o fato de ser matemático, de ser um

contador de histórias para meninas, de sua amizade com a família Liddell e do

término dessa amizade. O pesquisador promovia a discussão por meio de

perguntas previstas na sequência didática (ANEXO A).

Formado um repertório mínimo, realizamos a leitura em voz alta do poema

que introduz o romance. Traduzido por Ana Maria Machado em redondilhas

menores, o poema retoma o contexto de produção e de criação da obra que

analisamos. Antecipações sobre o texto foram realizadas entre pesquisador e

pesquisados, seguindo as estratégias de ensino de compreensão leitora

propostas por Solé (1998), que trata da importância do levantamento do

conhecimento prévio, da relevância ou irrelevância de elementos textuais, da

revisão e recapitulação daquilo que já foi lido, da elaboração e confirmação de

inferências. Preocupamo-nos, também, em construir um ambiente em que a

leitura da ficção constituísse uma forma de leitura de nossa realidade, afinal,

como já dissemos no Capítulo 2, o autor pertence a uma realidade, entretanto o

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autor a nega na própria ficção. Fazemos referência aqui ao conceito de paratopia

elaborado por Maingueneau (1995).

Em seguida, para a construção das características da literatura nonsense

cuja primeira representação é atribuída a Lewis Carroll; evidenciamos, no próprio

texto, como o nonsense se constrói e, sempre que surgiam exemplos na obra,

parávamos e tentávamos reconstruir a coerência textual. Já dissemos, no

Capítulo 1 desta dissertação, que a incoerência discursiva do texto literário é

apenas aparente, já que o texto estético instaura uma nova ordem discursiva

(Maingueneau, 2006).

Procedemos à leitura do conto Alice no País das Maravilhas, propondo a

atenção dos alunos aos seguintes aspectos:

a) Iconicidade da obra: aspectos filosóficos da obra – busca de

identidade da personagem central do conto.

b) Trabalho de intertextualidade (o pesquisador tomou o cuidado de

reproduzir as canções que engendraram os détournements);

c) Jogos de palavras como característica da subversão discursiva;

d) Aspectos contextuais da obra;

e) Significação profunda do texto literário.

No tocante à iconicidade da obra, levamos em consideração que, por se

tratar de um texto artístico, o conto nos permitiria a polissemia textual. Exemplos

da obra não nos faltaram para que pudéssemos encaminhar os alunos para a

estrutura profunda do texto. Alice, desde as primeiras páginas, tenta reconstruir

uma identidade, procurar seu lugar no mundo em que está inserida. Quando ela,

finalmente, chega ao final de sua queda, a primeira pergunta que se faz é “quem

sou eu”, o que nos possibilitou a leitura da busca por si mesma e que as outras

personagens do conto eram alter-egos da própria menina. Um outro momento da

obra que ratifica nossa leitura é o diálogo entre a menina e a lagarta, que se inicia

com a pergunta “quem é você?”.

No trabalho com a intertextualidade, procuramos apresentar para os alunos

o trabalho que Ana Maria Machado empreende em sua tradução e adaptação

brasileira do conto inglês. As cantigas de roda, os poemas e outros exemplos

retirados da sabedoria popular constituíram um dos principais focos de

preocupação para construção dos sentidos. Os alunos estavam envolvidos no

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jogo lúdico promovido pelos détournements de caráter lúdico promovidos pela

adaptadora. Agimos em conformidade com a análise proposta no Capítulo 1 desta

dissertação.

Demos atenção aos jogos de palavras presentes no conto. Lewis Carroll,

quando da escritura, ofereceu ao público inglês uma obra rica em trocadilhos em

que as palavras se aglutinam e se separam gerando significados inusitados para

os vocábulos e frases resultantes. Baseados em Bakhtin (1998), ressaltamos

esse trabalho de língua realizado por Carroll e adaptado por Machado no Capítulo

1 desta dissertação, quando abordamos as questões do texto literário e seu jogo

polissêmico.

Em relação aos aspectos contextuais do texto, além da socialização das

pesquisas realizadas pelos alunos, realizamos a leitura do prefácio (ANEXO B) e

do posfácio (ANEXO C) do livro. Ambos são fontes de aspectos contextuais

relevantes para a construção dos sentidos e do contexto da obra. Neles,

encontramos dados da gênese da obra; aspectos biográficos de Lewis Carroll;

foto da menina Alice a quem o conto foi dado como presente; contextualização da

época vitoriana; ilustrações de outras versões e explicações sobre as escolhas

da tradutora e adaptadora. O confronto das pesquisas com os dados do prefácio e

do posfácio permitiu um trabalho de relações entre esses dados e o texto lido.

Realizadas todas essas etapas, percebemos que os alunos construíram os

sentidos do texto por meio da leitura compartilhada e, em sua grande maioria,

basearam-se no mesmo modelo de leitura realizada pelo pesquisador. Os alunos

atingiram, portanto, os objetivos determinados pelo pesquisador.

Por fim, os alunos dos dois grupos responderam a um questionário

(ANEXO D) que trazia perguntas de natureza dissertativa, que permitiram a

análise qualitativa dos resultados; e, de natureza objetiva, que permitiram a

análise quantitativa.

3.3 – Discussão dos dados

Já ressaltamos nos capítulos anteriores a importância do conhecimento

adequado por parte do professor para a elaboração de intervenções que visem à

formação do leitor literário. Sabemos que um trabalho proveitoso de leitura

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depende da influência que o professor pode exercer sobre os alunos como um

modelo de leitura. Embasamos esse posicionamento nas palavras Martins (1984),

quando a autora se refere à função do professor nos contextos de aprendizado de

leitura:

A função do educador não seria precisamente a de ensinar a ler, mas a de criar condições para o educando realizar a sua própria aprendizagem, conforme seus próprios interesses, necessidades, fantasias, segundo as dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta. Assim, criar condições de leitura não implica apenas alfabetizar ou proporcionar acesso aos livros. Trata-se, antes, de dialogar com o leitor sobre sua leitura, isto é, sobre o sentido que ele dá, repito, a algo escrito, a um quadro, a uma paisagem, a sons, imagens, ideias, situações reais ou imaginárias. (MARTINS, 1984, p. 34)

O professor é, portanto, figura relevante no processo de formação de

leitores e é ele quem deve motivar a leitura literária em sala de aula, pois a

literatura exerce um papel de leitura da própria vida cotidiana. Entendemos que,

com a análise e interpretação do discurso literário, formamos seres capazes de

ler, interpretar a realidade e interferir nela. Entretanto, não basta somente ler

obras com os alunos; é importante o estudo prévio delas para que se atinjam

objetivos anteriores à realização e concretização da estratégia em sala de aula.

Notamos, no gráfico abaixo, que 100% dos alunos pesquisados, pertencentes aos

dois grupos de análise, aprovam a estratégia da leitura compartilhada e apontam

os seguintes motivos para que haja regularmente a estratégia na escola.

Informamos que os alunos poderiam ter escolhido mais de uma razão:

Razões da existência da leitura compatilhada

Compreensão da obra

Formação de leitor

Aprendizado de Cultural Geral

Auxílio na aprendizagem daescrita

Formação de vocabulário

Diversão maior

Figura 1

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Razões Incidência de Respostas Percentual Compreensão da obra 9 23,68 Formação de leitor 10 26,32 Aprendizado de Cultural Geral 6 15,79 Auxílio na aprendizagem da escrita 6 15,79 Formação de vocabulário 5 13,16 Diversão maior 2 5,26 Totais 38 100

Tabela 1 – Por que a leitura compartilhada é import ante na escola?

É relevante a observação de que 25 apontamentos de um total de 38

respostas – os alunos poderiam escolher mais de uma razão – apontam para a

compreensão da obra, a formação do leitor e o aprendizado da cultura geral.

Esses três motivos de aprovação em relação à estratégia permitem a inferência

de que os alunos compreendem os objetivos precípuos de ter o professor em

situações de modelo de leitura. Lembremo-nos de que a leitura da obra literária já

estava previamente preparada por meio de uma intervenção didática, como forma

de ensino de compreensão de textos complexos.

Não nos esqueçamos de que tínhamos em mãos um objeto estético de

difícil compreensão, por isso o professor – entendido como o modelo de leitura a

ser alcançado - foi figura central no processo de ensino e aprendizagem para a

interpretação dos sentidos do texto. Isso não quer dizer que os alunos foram

passivos diante da intervenção; eles participaram ativamente da experiência

lúdica, foram convocados a descobrir os jogos de palavras: à medida que a leitura

se desenvolvia, o papel dos alunos aumentava no processo de compreensão. A

autora, que nos serviu de fonte, afirma que:

Nas propostas de “leitura dirigida” (Cassady Schimitt e Baumann, 1989; Cooper, 1990; Smith e Dahl, 1989, entre outros) parte-se do princípio de que o professor é que convida os alunos a resumir determinados pontos, os induz a avaliar suas previsões e a tornar a prever, os leva a fazer perguntas...Nestas propostas também se utiliza um estilo bastante direto: “Explique aos alunos que...Diga aos estudantes...Diga aos seus alunos...”. As recomendações das propostas, por outro lado, não diferem das que vimos...A principal divergência encontra-se na atribuição exclusiva ou quase exclusiva de responsabilidade ao professor. Como já comentamos, é preciso que os alunos compreendam e que usem compreendendo as estratégias apontadas. Do meu ponto de vista, isto so é possível em tarefas de leitura compartilhada, nas quais o leitor vai assumindo progressivamente a responsabilidade e o controle do processo. (SOLÉ, 1998, p.121)

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Nos momentos em que nos deparávamos com exemplos de intertexto, no

momento da leitura do conto, os alunos eram motivados a descobrir o texto

original por meio de cantos ou recitais do texto derivado. Já expusemos no

Capítulo 1 alguns exemplos de intertextualidade que nos ajudaram na construção

dos aspectos lúdicos da leitura compartilhada. Há, no livro, um outro exemplo de

intertexto baseado na poesia de Gonçalves Dias; acreditávamos que os alunos

não descobririam o texto fonte, contudo os informantes a conheciam. Quando

questionados sobre o conhecimento que já possuíam, uma informante respondeu:

A gente fez um recital na terceira série...decoramos um monte de poesias e essa poesia das palmeiras estava lá...foi ela que recitou...Você lembra? (dirigindo-se a uma colega)...Nós apresentamos para os outros...não foi só essa não...tinha muitas e nós decoramos todas...por isso adoro poesia...

Tendo em vista que a análise dos dados quantitativos depende

naturalmente do contexto de aplicação da pesquisa, optamos por um ambiente

em que houvesse um projeto de formação leitora que abrangesse todas as etapas

de ensino e aprendizagem dos alunos envolvidos na pesquisa. Como já

dissemos, a escola apresenta como estratégia de formação leitora a roda de

leitura, a leitura silenciosa e a prática da leitura compartilhada. No ensino

fundamental II, os alunos leem 4 livros por ano com o auxílio do professor e com

objetivos de leitura bem delineados. Resolvemos, dessa forma, o problema posto

por Colomer (2007) acerca da formação completa do leitor literário.

Estamos certos de que o prazer em relação à leitura literária advém de

esforços empreendidos na construção dos sentidos da obra. Sem esforço não há

prazer. O mero contato dos alunos com pseudoleitores pouco contribui para a

aproximação das crianças à leitura. Conforme Azevedo (2004), não basta dizer

que ler é uma “aventura indescritível”, mas que ela se constrói à medida que

lemos e que empreendemos esforços na decifração dos sentidos. Segundo os

dados que aferimos, o nível de aceitação do livro pelos alunos em nossa pesquisa

atingiu 100%, quando realizada a leitura compartilhada e 64,29%, quando lido

silenciosamente:

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Vocês Gostaram do livro que acabaram de ler?

0

20

40

60

80

100

120

GRUPO A GRUPO B

Estratégia

Per

cent

ual

sim

não

Figura 2

Resposta Percentual GRUPO A

Percentual GRUPO B No. Alunos GRUPO A No. Alunos GRUPO B

Sim 64,29 100 9 13 Não 35,71 0 5 0 Totais 100 100 14 13

Tabela 2

Percebemos que a influência do professor, como modelo de leitura,

permitiu à totalidade dos alunos (GRUPO B) experimentar uma atividade que

envolveu aprendizado e prazer. O índice de alunos que afirmaram gostar do livro,

mas que realizaram a atividade de leitura sozinhos (GRUPO A), também foi alto

(64,29%) e creditamos esse alto índice ao projeto consistente de leitura da escola

em que aplicamos a pesquisa.

O caráter formador da literatura é diferente da função pedagógica.

Enquanto o pedagogismo emprenha-se em ensinar, num sentido positivista,

transmitindo conceitos definidos, a ficção estimula o desenvolvimento da

individualidade. O leitor em formação terá mais estímulo imaginativo com a ficção

do que com a recepção de postulados que devam ser decorados (Souza, 2004).

Concordamos com a autora no tocante ao caráter imaginativo da obra literária,

entretanto, opomo-nos a essa colocação de que a literatura não pode estar ligada

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a um ato de ensinar conceitos. O próprio texto estético pode ser uma fonte

inesgotável de construção de conceitos.

Por conseguinte, nosso empreendimento na formação de leitores está

ligado não somente a uma experimentação lúdica, mas também a uma

construção de conceitos. Dessa forma, concretizamos a função da escola que é

ensinar e empreendemos a formação de leitores literários por meio de projetos

educativos consistentes.

Apontamos no Capitulo 1 desta dissertação, a importância da

intertextualidade como caminho para a construção dos sentidos em Alice no País

das Maravilhas. Acreditamos que, para a depuração dos sentidos de um texto

literário, torna-se necessária a compreensão de conceitos, por isso, depois de

ilustrar, por meio de exemplos, a concretização do empreendimento intertextual

da obra lida, acreditamos que os alunos fossem capazes de definir

intertextualidade. Nenhum aluno do Grupo A considerou-se capaz de definir o

conceito de intertextualidade, por conseguinte não conseguiram exemplificá-lo

com a obra. Em relação ao grupo B, algumas variáveis devem ser observadas:

Primeiro, 61,54% dos alunos do Grupo B (8 informantes) afirmaram ser

capazes de definir intertextualidade, índice alto, se levarmos em conta a idade e a

profundidade do conceito. Entretanto, a definição de todos os alunos era que a

intertextualidade se tratava de um “jogo de palavras”, esse que realmente ocorre

na obra, como foi analisado no Capítulo 1. Afirmamos que os jogos de palavras

constituem uma das especificidades da obra ao lado da intertextualidade e

sabemos, também, que os conceitos se cruzam pelo caráter lúdico que possuem.

Esse cruzamento lúdico entre os conceitos de jogos de palavras e

intertextualidade nos fez presumir que os alunos levaram em consideração a

ludicidade como fator determinante para a construção do conceito de intertexto.

Segundo, apesar de esses alunos não conseguirem construir um

significado para o conceito, 76,92% (10 informantes de um universo de 13)

conseguiram exemplificá-la adequadamente com trechos da obra lida; o que nos

fez inferir que eles apresentaram dificuldades na abstração do conceito, mas que

sabiam encontrá-lo em exemplos práticos da própria obra. Apresentamos, agora,

de que forma os alunos expuseram a prática do conceito na leitura:

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Exemplos de intertextualidade retirados da obra

0

5

10

15

20

25

30

35

40

A Casa Peixe Vivo Dorme nenê VersosIniciais

História doPoço

Não trouxe olivro

Percentual

Figura 3 Referência intertextual Percentual Qtde. Alunos A Casa 37,5 3 Peixe Vivo 12,5 1 Dorme nenê 12,5 1 Versos Iniciais 12,5 1 História do Poço 12,5 1 Não trouxe o livro 12,5 1 Totais 100 8

Tabela 3 – Referências intertextuais citadas pelos alunos

Terceiro, os 23,08% restantes, ou seja, três alunos não exemplificaram

adequadamente. Um deles pelo fato de ter esquecido o livro no dia da pesquisa;

os outros dois apontaram exemplos que não constituíam, de acordo com o

pesquisador, exemplos de intertexto. Por isso, o pesquisador decidiu entender as

razões que levaram os alunos a exemplificarem com os versos iniciais que trazem

informações contextuais de produção do conto e com a história do poço em que

três meninas puxam melado de dentro do poço. Esse último exemplo está

relacionado à aparente incoerência discursiva do livro.

Vejamos a primeira explicação:

Ah...professor...o autor criou uma obra baseado num passeio. Ele contou uma história para as meninas, quando ele escreveu o livro, ele pegou de novo essa história e colocou no livro. Ele fez intertexto do texto dele mesmo. Né?

Segunda explicação:

Eu li nas pesquisas que o autor contava contos de fadas para as meninas. Será que a história de puxar melado do poço não tem a ver com alguma história de fada da época das meninas?

Percebemos que o conceito de intertextualidade foi entendido pelos dois

alunos que não exemplificaram de modo esperado. Há coerência nas respostas

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dadas por eles, num sentido mais amplo, intertextualidade é a retomada de textos

anteriores. No caso da primeira resposta, o conceito foi abstraído, apesar de não

ser bem exemplificado; na segunda, o aluno faz uma inferência falsa que poderia

ser discutida e descartada em um segundo momento de intervenção didática.

Ao lado da intertextualidade, tivemos como objetivo a relevância de

aspectos contextuais como fatores importantes para a construção dos sentidos do

discurso literário. Centramos nossa posição em nossos estudos realizados sobre

o contexto da obra literária expostos no Capítulo 2 desta dissertação

(Maingueneau, 1995, 1996 e 2005); e acreditamos, junto do autor, que o contexto

é importante na compreensão da obra. No caso de nossa pesquisa, o

comportamento da menina revela um padrão exigido das crianças do século XIX

da época vitoriana. Quando perguntados sobre a importância dos contextos

geográfico e histórico da obra literária, 28,57% dos informantes do Grupo A, que

realizaram a leitura sozinhos, responderam que não sabiam se os contextos eram

relevantes. Esse índice subiu para 100%, quando os alunos realizaram a leitura

com o professor:

Reconhecimento da Importância do Contexto

0,00%

20,00%

40,00%

60,00%

80,00%

100,00%

120,00%

sim não não sei

GRUPO A

GRUPO B

Figura 4

Possibilidade de resposta GRUPO A GRUPO B Sim 71,43 100 Não 0 0 não sei 28,57 0 Totais 100,00 100

Tabela 4 - Você compreende a importância dos contextos histórico e geográfico de escritura da obra como algo importante para a construção de sentidos?

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Quando analisamos a incidência de respostas sem nos preocuparmos com

a divisão em dois grupos, notamos que 25 alunos, ou 88,89% de todos os

informantes, responderam que os contextos são importantes para a construção de

sentidos da obra literária. Atribuímos, mais uma vez, essa consciência dos alunos

a um trabalho constante em relação à leitura compartilhada na escola onde

aplicamos a pesquisa. Esbarramos, desse modo, em valores que são formados

durante todo o tempo em que os alunos se mantêm na Instituição de Ensino.

No segundo momento da pergunta, os alunos deveriam expor as razões

que levaram a personagem Alice a se comportar de uma maneira educada no

Mundo das Maravilhas. Uma leitura possível seria dizer que era somente uma

caracterização da personagem, todavia essa característica da protagonista é

revelada frequentemente de modo caricatural, fato que revela intenções do autor.

Expusemos no Capítulo 2 que a paródia ocorre na obra que analisamos e que o

exagero constitui críticas ao contexto em que se inseria a menina, um contexto

moralizador que determinava o comportamento da criança como uma cópia do

adulto. Notemos a qualidade de respostas dos alunos do Grupo B:

Informante 1:

Alice se comporta de modo educado, pois era uma criança inglesa, e no tempo que o livro foi escrito, essas crianças eram bem educadas e respeitavam os mais velhos.

Informante 2:

Pois de onde ela veio (mundo real), as crianças tinham que ser pequenos adultos muito educados. Ela se descobre e entende que ela não precisa ser uma pequena adulta e sim ela mesma, como uma criança normal que quer brincar.

Informante 3:

Pois era do século XIX e, naquela época, tinha que ser educado e no Mundo das Maravilhas as pessoas não eram.

Informante 4:

Porque onde ela morava, a educação era muito importante. Mostra a educação que ela tinha.

Informante 5:

Porque ela tenta impor as regras do mundo real no mundo das maravilhas. O conto me deu uma visão mais direta do que ela tenta fazer e não consegue.

Informante 6:

Porque no século XIX a Inglaterra estava muito rica e as pessoas tinham respeito uma com as outras. Alice tenta ser igual às pessoas da Inglaterra no Mundo das Maravilhas.

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Informante 7:

A Alice se comporta assim, pois ela vive em uma época em que as crianças se comportam como adultos.

Informante 8:

Ela queria mostrar que sabia ser educada.

Informante 9:

Ela era uma menina do século XIX, da época Vitoriana, e as meninas, nessa época, deviam se comportar como adultas.

Informante 10:

Porque nesse tempo era a Rainha Vitória que governava, e as crianças tinham de se comportar como adultos.

Informante 11:

Porque as crianças do século XIX deveriam se comportar com muita classe, ou seja, como verdadeiros adultos.

Informante 12:

Porque era da época se comportar daquele modo.

Informante 13:

Na Inglaterra do século XIX, as crianças deviam ser educadas. Ela tenta ser educada mesmo no Mundo das Maravilhas.

É mister notar que os alunos apontam a época vitoriana como um ponto

importante para as atitudes da menina no Mundo das Maravilhas. Segundo

nossas pesquisas teóricas, apontamos que, à época em que foi escrita a obra

Alice, as pessoas primavam pela boa educação nas relações. Alice faz mesuras,

sabe da importância de ser bem educada para que obtenha resultados dos

outros, mesmo que naquele Mundo as coisas não funcionem dessa forma, Alice

tenta mostrar que conhece as regras que regem seu cotidiano concreto. Os

alunos pertencentes ao Grupo A não dispunham dessa informação

Aferimos as respostas de natureza dissertativa e obtivemos os seguintes

resultados:

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Qual é a relação entre o comportamento educado de A lice e o contexto de produção?

02468

101214

Conseguirinformações no

Mundo dasMaravilhas

É o jeito dela. Amenina era educada

Para não se dar malnum mundoestranho.

O livro é para jovense deve fornecer bons

modelos decompartamento.

Ela somente sonhaque é educada.

Ela está num mundoestranho e isso faz

compreender ocontexto da obra.

Na Inglaterra doséculo XIX, cobrava-

se umcomportamentoadequado dascrianças que

deveriam seguir omodelo dos adultos.

GRUPO BGRUPO A

Figura 5

Dos 13 alunos pertencentes ao Grupo B, 12 responderam adequadamente

a pergunta que envolvia relações com as pesquisas feitas, com as discussões em

sala de aula e construíram o significado da obra literária. Concordamos com

Bakhtin (2008) e Maingueneau (2006) quando afirmam que a obra literária é uma

representação estética da realidade que circunda o autor literário, portanto

esperávamos que os informantes compreendessem esse conceito para a

construção dos sentidos do discurso literário trabalhado em sala de aula. Mais

uma vez, notamos que os alunos que estiveram com o professor na leitura

compartilhada, revelaram maior consciência em relação ao conceito:

Literatura e representação da realidade

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

Sim Não

GRUPO A

GRUPO B

Figura 6

Grupos/Possibilidade de Resposta Sim Não Totais GRUPO A 14,29 85,71 100 GRUPO B 69,23 30,77 100

Tabela 6 – Você acredita que a obra literária lida é uma representação da realidade?

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Notamos que 69,23% dos alunos pertencentes ao Grupo B afirmaram que

a obra é uma representação, enquanto 85,71% daqueles pertencentes ao Grupo

A afirmaram que a obra não representa de forma alguma a realidade, o que nos

fez inferir que esses alunos se fixaram numa leitura mais voltada para a narrativa,

que é classificada como maravilhosa, do que para as pesquisas feitas sobre o

livro estudado – lembremo-nos de que os alunos do Grupo B não realizaram

pesquisas e não leram informações paratextuais do livro. Concluímos, ainda, que

leitores menos proficientes raramente buscam outras informações sobre a obra

literária com a qual entram em contato e necessita, portanto, da interferência do

professor, que age como um mediador entre a compreensão da obra e os alunos.

Acreditamos que, à medida que formamos o leitor, essas práticas passam a fazer

parte das práticas de leitores maduros.

Ressaltamos, também, que 71,43% dos alunos do Grupo A reconheceram

que o contexto é gerador de sentidos, conforme vimos na Figura 4; entretanto não

se valeram de ferramentas conhecidas para reconstruírem aspectos contextuais

da obra lida. Todos os alunos que realizaram a leitura sozinhos não leram

informações importantes como prefácios e posfácios, o que promoveu resultados,

como os apresentados na Figura 7. Observamos que os alunos estavam

habituados a essa prática de pesquisa sobre as obras literárias lidas, entretanto,

eles não a realizam sozinhos e necessitam da mediação do professor. Trata-se de

uma conscientização que não é colocada como prática rotineira na leitura.

Quando cruzamos os dados obtidos e apresentados no Figura 6 com o

gráfico abaixo (Figura 7), surpreendeu-nos o fato de os alunos, quando

perguntados sobre a construção discursiva, terem apontado o discurso da obra

como aparentemente incoerente e que é reconstruído pela realidade circundante.

Esperávamos que a maciça maioria afirmasse que o discurso era totalmente

incoerente e que não permitia qualquer resgate de sentido. Sabíamos que o

controle da interpretação, que os alunos pudessem realizar da obra, poderia fugir

ao nosso controle imediato, dado que ler não significa somente um ato de diálogo

entre autor e leitor e que, nesse processo de leitura, não haveria o autor no

momento da intervenção para dirimir possíveis dúvidas que surgissem no

processo.

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No gráfico a seguir, percebemos que mais da metade dos informantes do

Grupo A acredita que a literatura pode trabalhar com discursos aparentemente

incoerentes, o que nos fez concluir que os alunos já se encontram num bom nível

de leitura literária.

Construção do discurso na obra lida

0102030405060708090

Totalmente incoerente,torna-se impossível

resgatar algumacoerência.

Aparentementeincoerente, afinal,

podemos reconstruir acoerência por meio da

realidade que nos circundae que circundava a obra.

Não entendi nada dosdiálogos e daquelas

histórias malucas quenunca apresentavam fim.

GRUPO A

GRUPO B

Figura 7

Grupos/Respostas Totalmente incoerente

Aparentemente incoerente

Nenhuma compreensão Totais

GRUPO A 21,43 57,14 21,43 100 GRUPO B 15,38 84,62 0 100

Tabela 7 – A coerência do discurso literário em Alice pode ser considerada totalmente incoerente? Aparentemente incoerente ou você não entendeu nada da leitura que realizou?

Interessou-nos, neste momento, que 8 informantes do Grupo A – 57,14% -

responderam que o discurso é reconstruído pela realidade que circunda a obra e

nos circunda, entretanto, desses 8 alunos, 7 responderam que a obra não tinha

base na realidade. Essa discrepância forçou o pesquisador a procurar novamente

os alunos para entender de que forma os informantes se posicionaram em relação

à pergunta. Primeiro, entendamos as razões que levaram esses alunos a

responderem que a obra era “irreal”:

Informante 1:

Não, pois não aconteceu na vida real, a história é inventada.

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Informante 2:

Porque os fatos que ocorrem no livro são sobrenaturais. Há muitas coisas que seriam impossíveis, como um baralho de cartas falantes.

Informante 3:

Porque Alice entra em um mundo de sonhos e imaginação, nada é normal, tudo é cheio de ilusões.

Informante 4:

Ela vai para um mundo totalmente diferente.

Informante 5:

Pois acontecem coisas que no mundo real não aconteceriam.

Informante 6:

Porque é uma fantasia, um conto de fadas.

Informante 7:

Há,na história, animais falantes e cartas vivas. O nome da história já diz tudo: “Alice no País das Maravilhas”.

As respostas dos informantes estão situadas no plano da possibilidade de

a narrativa ser factível. Todos ressaltaram o caráter maravilhoso da obra,

estiveram ligados, durante a realização da atividade de leitura, aos fatos narrados

e não à representação desses fatos como elementos retirados da realidade

concreta. Baralhos e animais falantes não são reais, logo o livro apontou para um

mundo à parte, tratava-se de um conto de fadas, de fantasia. Esses elementos

não encontraram símiles em nosso cotidiano e impossibilitaram a obra como algo

que encontraríamos em nosso dia-a-dia.

Quando questionados por que motivos responderam que a obra era

aparentemente incoerente, o informante 1 afirmou que não teve tempo de

terminar o livro, portanto não entendeu a obra; o 2 afirmou que ela aprendeu a ser

uma pessoa melhor, que, como nas fábulas, havia um ensinamento moral a ser

seguido, por isso a obra é coerente; o 3 disse que tudo era uma mentira da

menina; o 4 afirmou que a menina cresceu, portanto a obra seria uma

representação do crescimento; o 5 disse que a menina se transformou numa

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pessoa mais sábia; o 6 disse que a menina ficou mais corajosa; por fim, o 7

ressaltou que tudo não passou de um sonho.

Notamos nas respostas dos alunos uma incidência de respostas voltadas

para o caráter de fábula da história. Os informantes 2, 3, 4, 5, 6 apontaram que a

finalização da obra resolve a aparente incoerência do conto. Eles afirmaram que

ocorre a transformação da personagem como modelo a ser seguido por aqueles

que leram ou lerão a narrativa. Por fim, o informante 7 apontou que reconstruiu a

coerência explicitando que no sonho é tudo possível, logo, se a menina estava

sonhando, era natural que coisas irreais acontecessem. Essas respostas nos

permitiram a inferência de que nenhum dos alunos que leu sozinho conseguiu

perceber que as situações narradas estão voltadas para a representação de

contextos reais. Os informantes, que analisamos nesse momento, voltaram seus

esforços de construção dos sentidos para o gênero que leram, já que aplicaram

sua história de leitores de fábulas para resolver o desfecho da narrativa.

E neste ponto, na forma como se lê um texto, que buscamos a

historicidade de leitura dos indivíduos envolvidos na pesquisa. Eles conheciam os

contos de fadas e as fábulas, haviam trabalhado com os gêneros no sexto ano e

sabiam que esses textos trazem ensinamentos morais, comportamentos a serem

seguidos. Levando em consideração essa historicidade, afirmamos que não são

leitores imaturos, dado que foram capazes de transpor um conhecimento

adquirido a uma nova leitura. Conheciam que a coerência de Alice no País das

Maravilhas residia em seu caráter fabulístico.

O fato de os informantes do Grupo A terem direcionado a interpretação da

obra para o conhecimento textual, que já possuíam, denota uma estratégia de

leitor proficiente. Lembremos que esses alunos não tiveram acompanhamento do

professor, nem tiveram contato com os objetivos de leitura estabelecidos na

intervenção didática. Apresentaram, portanto, maturidade para ativar o

conhecimento prévio sobre a estrutura e organização do gênero. Cardoso-Silva

(2006), baseado em Kleiman (1989b), define esse tipo de ativação prévia como

conhecimento textual:

O conhecimento textual, conjunto de noções e conceitos sobre o texto, faz parte do conhecimento prévio e desempenha um papel importante na compreensão de textos. Possibilita a classificação do texto do ponto de vista de sua estrutura, materializada em sua marcação formal. (CARDOSO-SILVA, 2006, p. 33)

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Permitimo-nos uma inferência maior em relação à competência leitora

apresentada pelos alunos do Grupo A: eles não só conhecem estruturalmente os

contos maravilhosos, como conhecem, também, as funções sociais que esses

textos desempenham num processo comunicativo. Conseguiram construir

conhecimentos sobre os gêneros, ativando-os de modo a construir sentidos.

Entretanto, não era somente isso que esperávamos. Contávamos que os

informantes chegassem à conclusão de que os fatos narrados na obra são

paródias de contextos reais; que a obra é baseada numa menina que realmente

existiu. Por fim queríamos resgatar que a obra se tratava de uma fábula sobre o

crescimento, dessa forma haveria, de acordo com o pesquisador, um

entendimento maior da “lógica” nonsense proposta por Carroll.

Essas leituras só foram possíveis com os alunos pertencentes ao Grupo B.

Dos 13 informantes do Grupo B, 11 afirmaram que o discurso em Alice era

aparentemente incoerente e, quando questionados sobre a representação da

realidade, 10 informantes trouxeram aspectos que mostram a competência

adquirida por meio da leitura do prefácio, do posfácio e das pesquisas.

Exemplificaram adequadamente como a coerência é construída por meio da

representação da realidade. Observemos as respostas dos informantes do Grupo

B sobre as relações entre realidade e ficção:

Informante 1:

Primeiro, o fato que ele pegava coisas que realmente existiam e colocava na história. E também, Alice Liddell foi inspiração de Lewis para criar a Alice personagem.

Informante 2:

O texto mistura o real com o imaginário como a parte do Tribunal. Havia aquela peruca branca e júri que escreviam seus nomes em quadros etc.

Informante 3:

Foi um fato que ocorreu só que com a imaginação criou mais coisas.

Informante 4:

Porque tudo não passa de uma fantasia, de um sonho.

Informante 5:

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Lewis Carroll fez o livro baseado no comportamento das pessoas na Inglaterra e a paisagem do lugar onde eles estavam passando.

Informante 6:

Mostra que as crianças sonham com muitas coisas.

Informante 7:

Pois ela (Alice) descobre quem ela realmente é.

Informante 8:

Em nosso mundo real não existem fantasias e muito menos o País das Maravilhas.

Informante 9:

Está baseada em Alice e na sua vida.

Informante 10:

Porque tem fatos reais levados para a brincadeira, coisas sérias que ele brinca com as palavras.

Informante 11:

Pois há coisas surreais na história, como cartas de baralhos vivas e animais que falam.

Informante 12:

O júri era muito parecido com a realidade.

Informante 13:

Porque ela fica maior e menor, o coelho fala etc.

Os informantes 8, 11 e 13 do Grupo B não conseguiram relacionar a

realidade à ficção. Esses informantes situaram suas leituras no aspecto

maravilhoso do conto lido, portanto, para eles, tornou-se impossível estabelecer

qualquer apoio da criação estética na realidade. Já o informante 3 esboçou uma

relação entre realidade e fantasia afirmando que o conto trata de algo que

realmente aconteceu – presumimos, no caso desse informante, que ele se referiu

ao passeio de barco entre Lewis Carroll e as irmãs Liddell. Realizamos um

segundo contato com o informante 3 e ele nos disse que a história era mesmo

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baseada num passeio real. É notório que os índices dos alunos que não

conseguiram exemplificar a realidade retratada na obra é baixo em relação aos

alunos do Grupo A.

O informante 10 é aquele que mais se aproximou do conceito de paródia.

Ele verbalizou como funciona a retratação da realidade na obra de uma maneira a

resultar em situações engraçadas; afinal as situações representadas foram

carnavalizadas, invertidas e questionadas. Por intermédio da assertiva do

informante 10, presumimos que ele percebeu o caráter parodístico da obra

literária lida em sala de aula.

De modo mais global, notamos que os alunos puderam trazer aspectos que

contribuíram para a composição da obra e suas relações com a realidade: o

passeio das meninas pelo rio Tâmisa, a representação do júri, a descoberta e

construção de uma identidade da protagonista. Já os alunos que leram sozinhos

não se sentiram motivados para realizar pesquisas, logo não puderam expor

exemplos adequados da paródia empreendida por Carroll; os alunos do Grupo B

expuseram análises mais apuradas em que as interpretações não estão

centradas somente no conto, mas em informações contextuais.

Tornou-se nítida a superioridade na qualidade de leitura dos alunos do

Grupo B em relação aos do Grupo A. Os integrantes do Grupo B apresentaram

uma maior destreza para oferecer sentidos mais adequados aos objetivos de

leitura propostos na sequência didática. Observemos as interpretações finais a

que chegaram os alunos dos dois grupos no gráfico abaixo:

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O que entendeu ao final da narrativa:

0

1

2

3

4

5

6

7

8

Não terminou olivro

Foi tudo umsonho

A menina émentirosa e

deveria aprendero valor daverdade.

A meninacresceu, enxergaa realidade e se

transformaránum adulto

melhor.Enfrentará

adequedamenteos desafios davida adulta comcoragem. Elaresponde à

pergunta: quemsou eu?

Não entendi Que cada vezque ela comia oubebia, a menina

crescia oudiminuía

no. d

e al

unos

Grupo A Grupo B

Tivemos, nos dois grupos, uma leitura “equivocada” da obra. Presumimos

que essa leitura se deveu à aplicação de conceitos trabalhados em séries

anteriores: os alunos acreditavam ler um conto maravilhoso, portanto, deveriam

encontrar um fundo moral para a história, por isso responderam que a menina

mentiu e deveria encontrar o valor da verdade.

No Grupo B, um informante não conseguiu terminar o livro, fator que fugiu

ao controle do pesquisador. Na leitura compartilhada, garantimos que todos

realizassem a leitura completa do conto. Esse fato revelou a superioridade da

estratégia, que não deve ser utilizada em todos os casos de leitura. Devemos ter

em mente que a formação do leitor deve ser empreendida por meio de estratégias

diversas.

Em ambos os grupos, um aluno não compreendeu a narrativa. Os dois

classificaram sua leitura como nula ou não perceberam nada que fosse relevante

na história.

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Dois alunos do grupo A perceberam somente que a menina crescia ou

diminuía quando comia ou bebia algo. Esse dado revela uma leitura superficial da

história, factual sem inferências sobre os modelos que são fornecidos pela obra.

Nessa leitura factual não cabem leituras estéticas que promovem a polissemia do

discurso literário.

Num nível mais elaborado de leitura, mas ainda literal do conto, 5 alunos

do Grupo A responderam que tudo não passou de um sonho, ou seja, a

incoerência do sonho é aplicada à incoerência com a qual eles estiveram

expostos durante a leitura, fato que explicaria toda a narrativa. Do Grupo B, três

alunos se situaram nessa leitura mais factual. Não se trata de uma leitura

inadequada, como já expusemos em páginas anteriores deste trabalho, entretanto

não tinha relação com os objetivos que estabelecemos para a atividade.

A compreensão que foi considerada mais adequada à profundidade que

esperávamos dos alunos se situa na resposta de que ocorre o amadurecimento

da menina, que passa a enxergar a realidade de um modo mais maduro, sem

perder o olhar de criança, podendo se transformar num adulto melhor, contador

de histórias, assim como o foi Lewis Carroll. Nesse nível de leitura, que envolvia

uma série de conhecimentos adquiridos na intervenção didática, 53,85% dos

alunos do Grupo B apresentaram compreensão desses sentidos; enquanto que

somente 21,43% dos alunos pertencentes ao Grupo A chegaram a esse

refinamento interpretativo.

Para nossa intervenção pedagógica no sentido de formar leitores literários

proficientes, levamos em consideração estratégias que auxiliariam nossos

informantes no caminho da compreensão textual. Tínhamos em mente que se

tratava de uma tarefa árdua que não se encerra numa atividade, mas num

conjunto de estratégias com objetivos voltados para a construção de maneiras

possíveis para a interpretação do texto literário. Acerca dessa dificuldade,

observemos as seguintes colocações sobre o ato de compreender como aspecto

cognitivo, impossível de ser ensinado:

Dessa forma o ato de compreender é considerado como complexo e múltiplo, por envolver um conjunto de processos, atividades, recursos e estratégias mentais próprio do ato e que constitui a atividade em que o leitor se engaja para construir o sentido do texto escrito. Em outras palavras, envolve o entendimento de frases e sentenças, de

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argumentos, de provas formais e informais, de objetivos, de intenções, muitas vezes de ações e motivações. A compreensão, como um processo cognitivo, não pode ser ensinada, mas qualquer indivíduo pode pôr-se a par de conhecimentos dos aspectos que envolvem a compreensão e das diversas estratégias que compõem os processos a fim de neles se integrar em busca de uma interação. (CARDOSO-SILVA, 2006, p. 32).

Confirmamos, por meio de nossa pesquisa, que podemos intervir de

maneira adequada na formação da compreensão leitora em nossos alunos.

Devemos estar atentos para o fato de que ler não é um ato solitário. Ler implica

compartilhamento e construção de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas

também com a sociedade. Os sentidos são resultado de compartilhamentos de

visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço. Quando lemos,

abrimos portas de nosso mundo e do mundo do outro: entre o que é nosso e o

que é do outro, encontra-se o sentido do texto, que se completa.

Acreditamos que o mundo não esteja completo, nem que tudo esteja dito;

se estivesse, não faria sentido ler. Temos como certo que o bom leitor é aquele

que agencia, com os textos, os sentidos do mundo. Além disso, reconhecemos

que o trabalho com a pragmática do discurso literário com ênfase nos dados

cotextuais, intertextuais e contextuais contribui de modo bastante eficaz para o a

construção de sentidos da obra literária.

Enfim, Alice cresceu, como nós também crescemos. Ler significa ler-nos,

afinal nós também crescemos a cada nova leitura ficcional. O ato da leitura nos

permite compreender a realidade pelos olhos da ficção.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No ensino, as competências abrangem os saberes plurais trazidos pelo planejamento, pela organização, pela preparação cognitiva da aula e pela experiência prática advinda das interações em sala de aula. Philippe Perrenoud

A proposição de sequências didáticas que sejam construídas de modo a

formar a chamada competência leitora dos alunos foi o objetivo da investigação

que concretizamos por meio desta dissertação. Tivemos em mãos um problema

que nos direcionou para a busca de estratégias a fim de que os alunos pudessem

se aproximar de textos literários mais complexos. Associado a nosso problema,

conhecíamos as poucas considerações teóricas sobre as estratégias de formação

do leitor literário. Essas poucas considerações se revelaram imprecisas e

fragmentadas para que pudéssemos resolver o problema da leitura no ensino

fundamental 2.

Durante anos, empiricamente, trabalhamos a estratégia da leitura

compartilhada em sala de aula. Trata-se da situação de aprendizagem em que o

professor é o modelo de leitura a ser alcançado pelos alunos, e percebemos que

ela se revelou como importante ferramenta para a aproximação de alunos em

relação aos textos literários. Contudo, não nos bastava a afirmação de que a

estratégia era boa, já que não pudéramos medir o grau de apropriação da leitura

literária por parte dos alunos.

Vimos que, associada ao problema da fragmentação dos aspectos teóricos

da didática acerca do trabalho com a literatura nas primeiras séries do ensino

fundamental 2, estava a questão de não termos a medida exata de validação da

estratégia pedagógica da leitura compartilhada - proposta pelos PCN de Língua

Portuguesa. Por conseguinte, precisávamos associar os aspectos teóricos

fragmentados que tínhamos em mãos a uma outra base teórica que estivesse a

serviço da aprendizagem, optamos pela teoria linguística sobre a pragmática do

discurso literário. A base deste trabalho foi a pragmática literária, todavia

precisávamos de mais bases teóricas.

Associamos, então, os aspectos teóricos da Linguística e da Literatura à

teoria da elaboração de sequências didáticas voltadas para a aprendizagem da

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escrita de gêneros textuais diversos. Fizemos as devidas adaptações da situação

didática, já que quisemos corroborar uma prática de leitura e não de escrita e

optamos por aplicá-la com os alunos de sétimo ano – também chamados de sexta

série -, afinal, tratava-se de um grupo com o qual já haviam sido realizadas várias

estratégias para a formação do leitor literário, dado que é hábito da escola o

trabalho com rodas de livros e com a leitura compartilhada. Tivemos a real

necessidade da existência de uma história anterior de leituras literárias por parte

dos alunos, logo, pareceu-nos mais adequada a aplicação com os alunos que já

haviam passado pelo sexto ano.

A respeito dos aspectos teóricos da Linguística sobre o discurso literário,

afirmamos que eles nos serviram para o estabelecimento do modelo de leitura

que seria trabalhado pelo professor em sala de aula. Era concreta a necessidade

de se estabelecerem modelos que nos serviriam como parâmetros para mesurar

a apropriação discente dos conceitos literários e, para tanto, foi-nos de suma

importância trabalhos acadêmicos anteriores que uniam as pesquisas

investigativas às práticas pedagógicas. Ademais, tínhamos noção de que não

havia modelos a serem seguidos, mas a serem construídos.

Levando em consideração a importância do planejamento das aulas,

elaboramos a intervenção pedagógica que trazia objetivos bem delineados. Foi-

nos necessário que os alunos, ao final da leitura compartilhada, conseguissem

compreender conceitos linguísticos relevantes para a construção dos sentidos da

obra literária: a intertextualidade e o contexto da obra ficcional. A inter-relação

entre a pragmática para o discurso literário e o contexto da obra ficcional

constituiu o cerne da leitura dos alunos e do professor.

Separamos a turma de sétimo ano em Grupo A e Grupo B. O primeiro leu

a obra na biblioteca sem nenhum auxílio, o segundo leu com o professor sob a

estratégia da leitura compartilhada. Desse modo, pudemos comparar

adequadamente a apropriação dos conceitos pertinentes à construção de sentido

da obra literária em cada grupo. Percebemos, conforme apresentado no Capítulo

3, que os alunos que tiveram o acompanhamento do professor, puderam construir

mais adequadamente os sentidos da obra ficcional. A apropriação de conceitos e

a aplicação deles na própria obra para a construção dos sentidos foram

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nitidamente superiores com os alunos que tiveram acompanhamento e estiveram

sob as orientações de um planejamento da atividade.

Surgiu, assim, a primeira resposta que procurávamos: atividades de leitura

literária bem planejadas e com objetivos bem delineados servem para o trabalho

com conteúdos que, muitas vezes, são ensinados isoladamente, sem

contextualização textual. Concluímos que não basta dizer aos alunos que existem

sentidos subjacentes a um texto literário se não apresentamos no próprio texto

essa subjacência. Abstrair pura e simplesmente o conceito de intertextualidade ou

de contexto da obra literária não tem sentido se não estiver a serviço da

interpretação do texto estético.

Não nos bastou ensinar o que é intertextualidade; foi-nos preciso

apresentar como ela se concretiza na produção do texto literário. Não nos bastou

afirmar que compreender o contexto de produção da obra literária nos auxilia na

construção dos sentidos; foi-nos necessário o estabelecimento de relações entre

o contexto e o produto estético. Em relação aos alunos que leram a obra sem

orientações didáticas, eles não dispuseram de dados contextuais e intertextuais

para a construção dos sentidos, dado que partiram diretamente para a leitura do

conto sem a investigação prévia necessária para a (re)construção do texto,

intertexto e contexto.

Respondemos, assim, nossa questão central desta pesquisa já que o

professor, desde que embasado em aspectos teóricos consistentes sobre a

discursividade literária e sobre as propostas de ensino e aprendizagem de leitura,

pode construir sequências didáticas que deem conta da compreensão de

conceitos e da aplicação deles na própria obra literária. Elaboraram-se, por

conseguinte, os alicerces de compreensão de um texto que traz sentidos

subjacentes. Tornou-se certa a afirmação de que o professor é mediador entre o

aluno e o conhecimento, e de que é tarefa do verdadeiro educador traçar

previamente um caminho para que o aluno seja um leitor de textos literário.

Convém destacar que a sequência didática proposta neste trabalho previu

investigações prévias sobre o autor, a obra e o contexto. A leitura compartilhada

estava norteada pela formação anterior necessária para a compreensão dos

sentidos do texto. Previmos também o trabalho com o caráter lúdico, o que tornou

a leitura dos momentos intertextuais de Alice no país das maravilhas mais

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prazerosa e produtiva. Já os alunos que não estiveram sob as orientações do

professor situaram a leitura em repertório frágil e equivocado baseado em

adaptações duvidosas da obra literária que analisamos.

Outro fator que comprovou a eficácia da leitura compartilhada programada

pelo professor foi a interpretação final a que chegaram os alunos supervisionados.

A maioria dos integrantes do Grupo B afirmou que ocorria um processo de

crescimento da protagonista do conto, enquanto que os alunos pertencentes ao

outro grupo preferiram afirmar que a menina havia acordado de um sonho. Ora, a

construção dos sentidos da obra literária deve transcender o próprio texto num

embasamento cotextual, intertextual e contextual; logo, os alunos que não

participaram da atividade não estabeleceram essas relações e optaram pelo

sentido mais aparente: o sonho.

Notamos que a tarefa mecânica de leitura sem direção só perpetua o

problema da compreensão inadequada dos textos literários. Essa estratégia, para

os leitores em formação, muitas vezes, mostra-se inócua e corrobora o

afastamento total dos alunos em relação às obras consideradas artísticas. Essas

obras passam a ser encaradas como difíceis e incompreensíveis, o que promove

o desinteresse futuro dos alunos e frustra o objetivo da formação de leitores de

literatura.

Concordamos que a elaboração dos sentidos da obra literária deve estar

direcionada para o próprio conhecimento construído sobre ela; portanto, para

alunos em fase de formação, intervenções pedagógicas mais eficazes e

direcionadas devem ser propostas, já que promovem a construção intertextual e

contextual significativa da obra que se lê. Quando esses elementos estão

associados, os sentidos ultrapassam os limites da mera observação de símbolos

escritos e chegam ao prazer de contemplação da arte.

Acreditamos que nosso trabalho seja uma contribuição para a área do

ensino de literatura no ensino fundamental 2; afinal, nesta dissertação apontamos

caminhos que podem ser trilhados pelo professor de língua materna que se vê,

muitas vezes, sem direcionamento adequado para o ensino de literatura. Nossa

contribuição não está voltada somente para a Didática, mas também para as

pesquisas linguísticas futuras, já que nos apoiamos em pesquisas sobre a

pragmática do discurso literário.

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É-nos certo afirmar que a ligação entre a Linguística e o Ensino constitui

fonte para a elaboração de atividades direcionadas para a formação dos alunos.

Entretanto essas atividades pressupõem um professor que esteja sempre

envolvido com as práticas educativas e com sua formação pessoal. Preparar o

aluno exige também preparar o professor.

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SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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ANEXO A

SEQUÊNCIA DIDÁTICA

A LEITURA DE “ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS”

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Objetivos gerais: Remontar o contexto histórico de produção da obra. Fazer com que os

alunos de sétimo ano percebam a intertextualidade presente no conto. Promover uma

leitura consistente do conto, valendo-se de conceitos pragmáticos. Fazer com que o aluno

perceba a construção da intertextualidade presente no conto lido. Promover a leitura de

implícitos do discurso literário. Comparar resultados entre a leitura atingida pelos alunos

que a realizaram com o professor e aqueles que realizaram sozinhos.

Orientações Didáticas Gerais:

• Atentar para o fato que a obra é intertextual. Ana Maria Machado se preocupou em

buscar exemplos da cultura brasileira para adaptar a obra, considerada complicada

até para as crianças inglesas da contemporaneidade;

• Fazer com que os alunos percebam as referências intertextuais. Na leitura em voz

alta, o professor deverá cantar as canções brasileiras e mostrar para os alunos que

elas não faziam parte do original. O aluno deverá perceber que se trata de uma

estratégia da tradutora/adaptadora;

• Resolver dúvidas de vocabulário;

• Demonstrar a validade lógica de alguns silogismos trabalhados por Carroll: o

mundo é incoerente, mas o discurso é coerente;

• Retomar, sempre que preciso for, o contexto de produção da obra em estudo;

• Ler o livro inteiro em voz alta.

INTERVENÇÃO I

Objetivo: Preparar os alunos para a leitura de um clássico da literatura. Levantar o

conhecimento prévio e formar repertório para leitura da narrativa. Motivar para a leitura.

Comparar dados.

Orientações Didáticas:

• Levantar com os alunos aquilo que eles conhecem sobre Alice no País das

Maravilhas (certamente trarão aspectos da adaptação realizada por Disney);

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• Anotar na lousa as observações feitas pelos alunos;

• Iniciar a leitura das redondilhas que iniciam o livro e questionar:

a) Você sabe o que é uma redondilha? (o professor deverá salientar a popularidade das

redondilhas, classificadas como “medida velha” muito utilizadas em textos que

abordam a cultura popular);

b) Qual é o tema principal dessas redondilhas?

c) Será que leremos uma história sobre um passeio de barco?

d) Ora, se for um passeio? Que relação há com as versões que conheço da história?

e) É um livro autobiográfico? Será que a história é interessante? Por que o livro é

considerado um clássico da literatura infantil?

f) É uma história “boba” sem nenhuma importância para nós?

g) Na contra-capa encontramos uma referência à xilogravura? Você sabe como é feito

esse tipo de ilustração? Você sabe o que é um cordel? A ilustradora optou por essa

técnica por quê?

• Propor que os alunos façam uma pesquisa sobre Lewis Carroll e sobre a obra Alice

no País das Maravilhas (os alunos do colégio são capazes de realizar pesquisas

dessa natureza);

• Discutir com os alunos os aspectos interessantes que eles levantaram sobre o autor

e a obra:

a) Onde nasceu? Como viveu? Qual é a gênese da obra? Por quais transformações ela

passou? Que dificuldades podemos enfrentar antes de iniciar a leitura?

b) Qual era o contexto histórico? De que maneira ele influencia a feitura do conto?

c) Por que o autor foi afastado da menina Alice e das irmãs dela?

d) O conto que vamos ler apresenta diferenças em relação às adaptações com as quais

vocês entraram em contato?

e) O que é literatura nonsense? Vocês já ouviram falar nesse tipo de literatura? Por

que será que Alice é classificado como um conto nonsense?

• Sistematizar a pesquisa na lousa, para que todos tenham os apontamentos no

caderno;

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• Comparar com as primeiras anotações realizadas no caderno, validar as verdadeiras

e desconsiderar as falsas.

INTERVENÇÃO II

Objetivos: Reconstruir por meio de dados textuais a personalidade da protagonista do

conto. Demonstrar como se concretiza a literatura nonsense no conto.

Orientações didáticas:

• Ler em voz alta a apresentação do livro “Um passeio inesquecível” e confirmar os

dados da leitura com os dados obtidos nas pesquisas;

• Ler o capítulo I – “Na toca do coelho” e propor, após a leitura completa do capítulo

as seguintes questões:

a) De que maneira Alice trabalha com questões que podem ser consideradas absurdas?

b) Que aspectos da personalidade da menina podem ser levantados por meio de nossa

leitura?

c) Como Alice trabalha as relações interpessoais?

d) Alice tinha um hábito muito estranho: ela se aconselhava em voz alta. Que você

pode dizer sobre isso? Nossa maneira de provar o mundo se dá por meio de uma

reflexão, de uma voz interna que nos auxiliar nas novas experiências que vivemos?

e) Como Alice encarava o ato de ler? Lembre-se da afirmação que faz sobre livros

“sem figura nem conversa”? (Essa pergunta é importante para o entendimento

de uma leitura possível do livro: um livro sem diálogos nem figuras pode ser

um livro sobre nós mesmos. Alice descobre que alguém poderia escrever um

livro sobre ela, se ninguém o fizesse, ela mesma o faria. Temos o aspecto

metalinguístico como um dos eixos de leitura da obra.).

• Discutir com os alunos os aspectos de literatura nonsense empregados pelo autor no

primeiro capítulo (os alunos conseguirão perceber que há acontecimentos que

fogem da normalidade cotidiana: cair num grande poço e não se machucar,

conhecer um coelho falante que está atrasado).

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INTERVENÇÃO III

Objetivos: Promover o entendimento dos silogismos e das relações intertextuais que a

obra mantém com cantigas e poemas da cultura popular brasileira. Perceber a iconicidade

presente nos capítulos lidos.

Orientações Didáticas:

• Ler o capítulo II – “A lagoa de lágrimas”;

• Atentar para os silogismos “falsos” trabalhados pelo autor, fato que revela a ligação

do autor com a lógica e a matemática;

• Mostrar que a pergunta “Quem sou eu” perpassará o conto inteiro. Alice é alguém

que se encontra num mundo incoerente. Trata-se de uma questão fundamental da

filosofia. Alice só sairá do mundo incoerente, se gostar daquilo que os outros

pensam que ela é. Somos aquilo que os outros querem que nos sejamos.

• Trabalhar com os alunos a intertextualidade que está presente em todo o conto. A

cantiga de roda “Como pode um peixe vivo viver fora da água fria” é retomada de

uma maneira incoerente;

• Evidenciar que a intertextualidade é característica da obra lida. Nesse primeiro

momento, o professor deverá revelar as intenções da tradutora/adaptatora que tinha

como principal objetivo aproximar as crianças brasileiras de uma importante obra

do século XIX, por isso optou por adaptar cantigas e poemas infantis do século

XIX inglês para textos correspondentes em português e mais atuais.

• Antes de ler o capítulo III “Um corre-corre e uma história comprida”, o professor

deverá tentar antecipar leituras com as seguintes questões:

a) Que relações pode haver entre um corre-corre e uma história bem comprida?

b) Se olharmos somente as figuras do capítulo, o que será que acontecerá com Alice

nesse capítulo?

• Ler o capítulo e confirmar/recusar as hipóteses levantadas pelos alunos;

• Demonstrar o jogo de palavras que, assim como a intertextualidade e a lógica,

perpassa a obra inteira: ambiguidade da palavra achar (pensar/encontrar), jogo de

palavras com o demonstrativo “isso”;

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• Trabalhar a iconicidade da obra: a forma da distribuição do texto da “história

comprida” contada pelo rato tem o formato de um rabo comprido de rato;

• Ler o capítulo IV (o professor não precisará levantar aspectos desse capítulo, a

simples leitura em voz alta já permitirá que os alunos percebam a continuidade

temática da obra).

INTERVENÇÃO IV

Objetivos: Ampliar as relações que podemos fazer entre a literatura e a filosofia.

Evidenciar uma das leituras possíveis de “Alice”, a da busca do autorreconhecimento.

Orientações Didáticas:

• Ler o capítulo V – “Conselhos de uma lagarta”;

• Demonstrar que as personagens do mundo das maravilhas pode ser um

espelhamento da protagonista que durante todo o livro tenta dominar o mundo

incoerente e dar-lhe determinada coerência. Alice pode entrar em contatos com

alter egos;

• Evidenciar que Alice tem exatamente a mesma altura da lagarta e que a pergunta

“quem é você?” é pergunta básica da filosofia. Nós nos reconhecemos pelo que não

somos, e essa é a busca de Alice, o empreendimento maior que a protagonista

possui. Ela empreende uma viagem a um mundo incoerente para buscar a coerência

de sua própria existência;

• Demonstrar para os alunos que o diálogo com o Gato de Cheshire é uma

complementação à busca filosófica do “si-mesmo” iniciada com a pergunta da

lagarta. O Gato afirma que ele é louco e que a menina também o é, o bicho se vale

de um silogismo para concluir que Alice para estar num mundo como aqueles só

poderia fugir do padrão da racionalidade do mundo;

• Mostrar que há outros silogismos que corroboram a lógica da linguagem

empreendida por Carroll: caminho que Alice deverá tomar, por exemplo;

INTERVENÇÃO V

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Objetivos: Trabalhar mais detalhadamente o conceito de intertextualidade.

Orientações Didáticas:

• Ler os capítulos VII - “Um chá muito louco”, VIII – “O Campo de Croquet da

Rainha”, IX – “A história da falsa tartaruga”, X- “A Quadrilha das lagostas”; XI –

“Quem roubou as tortas”;

• Evidenciar que Alice começa a compreender o funcionamento “maluco” do mundo

das maravilhas. Ela entende as convenções e domina seu discurso para não assustar

os seres daquele mundo;

• Evidenciar a intertextualidade implícita: marcha de carnaval, poema de Gonçalves

Dias, cantiga de roda;

• Demonstrar a importância da intertextualidade para a compreensão geral da

narrativa em estudo;

• Fazer com que os alunos percebam o discurso autoritário da rainha que manda

cortar a cabeça de todos. Alice aceita a autoridade sem questionamentos (isso é

importante para a compreensão da obra, afinal, quando Alice quebra com a lógica

daquele mundo e aplica a lógica do mundo “normal”, ela desobedece à rainha e se

reconhece naquele mundo);

INTERVENÇÃO VI

Objetivos: Finalizar a leitura da obra e dar corpo para a interpretação global do conto.

Orientações Didáticas:

• Ler o capítulo XII – “O depoimento de Alice”;

• Mostrar que Alice prova de contextos típicos dos adultos naquele mundo;

• Demonstrar a metáfora do crescimento. Alice não precisa mais de elementos

mágicos para crescer, o entendimento do mundo, conseguido a duras penas, é

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concretizado no julgamento. Ela revela que não precisa ter medo deles, afinal “não

passam de cartas de baralho”;

• Levantar com os alunos o sentimento da irmã em relação ao sonho da menina

Alice. Ela tenta entrar no mundo das maravilhas por meio dos elementos externos

(chocalho de uma cabra, ratinhos do campo nadando em poças, capim se mexendo

etc), entretanto ela não concretiza a entrada no mundo das maravilhas e percebe que

aquela experiência foi única e vivida pela irmã mais jovem que “um dia seria uma

mulher feita e reuniria crianças à sua volta e contaria histórias para ela”. Alice seria

capaz de sentir todas as tristezas simples que elas sentissem e “teria prazer com

todas as suas alegrias singelas, lembrando sua própria vida de criança e os dias

felizes de verão”;

• Retomar a vida e obra do autor: Carroll gostava de meninas, a obra é redentora do

autor. Ele era um homem que soube entrar no mundo das maravilhas e

compreender os sentimentos infantis;

• Evidenciar que o próprio Carroll era uma pessoa especial, autorizado a entrar em

contato efetivo com crianças;

• Retomar o livro “sem imagens nem figuras” do primeiro questionamento de Alice.

Um livro sem imagem nem figuras pode ser um livro sobre nós mesmos, Alice

percebeu que havia amadurecido naquele mundo, que o livro que ora lemos é um

livro que alguém escreveu sobre ela (lembrar que Alice diz que se ninguém

escrevesse um livro sobre as maravilhas por ela vividas, ela mesma o escreveria);

• Afirmar que o livro traz bastante do contexto inglês vitoriano: as mesuras, a boa

educação, os chás da tarde com a família e com a Lebre de Março e com o

Chapeleiro Maluco, a compreensão lógica da realidade.

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ANEXO B

PREFÁCIO DO LIVRO ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS – Tradução de Ana Maria Machado

(2003)

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UM PASSEIO INESQUECÍVEL

Ana Maria Machado

Quem não gosta de ganhar presente de Natal? E de passear de barco num dia de verão? Pois este livro é as duas coisas ao mesmo tempo. Foi escrito como "um presente de Natal para uma criança querida, em memória de um dia de verão ", nas palavras de seu autor, Lewis Carroll. E quando surgiu, em sua primeira versão, era um livro escrito à mão, exemplar único, em que Carroll punha no papel uma história que tinha inventado durante um passeio meses antes, numa tarde dourada de uma sexta-feira, 4 de julho (verão no hemisfério Norte) de 1862. Um ano depois de Carroll ter-se ordenado diácono, que foi o ponto em que ficou em sua carreira de sacerdote anglicano, porque era tão gago e tão tímido que não tinha coragem de fazer sermões em público.

Esse passeio ainda lembrado mais de um século depois, graças à obra-prima que dele surgiu, reunia dois religiosos e três meninas (filhas do diretor do Christ Church Colege, na Universidade de Oxford). Num bote, desceram o rio Tâmisa por uns cinco quilômetros, até uma aldeia onde fizeram um piquenique, sentados na grama da margem. As três irmãs eram: Lorina, com 13 anos; Alice, com 10; e Edith, com 8. Dos dois religiosos, um ia ser muito famoso, embora não como padre nem como professor de matemática - que também era. Sua fama viria por seus outros talentos, o de contar histórias, o de tirar fotografias, o de inventar jogos lógicos. Talvez por achar que essas atividades não parecessem suficientemente sérias para um religioso, o reverendo Dodgson inventou pseudônimo. E foi com esse nome inventado, o de Lewis Carroll (cujas iniciais, L. C., em inglês se pronunciam quase como Alice), que ele se tomou famosíssimo como o criador de um dos livros mais fascinantes de todos os tempos. E como o fundador da literatura infantil de verdade, aquela que não fica querendo ensinar nada nem dar aulinha, mas faz questão de ser uma exploração da linguagem, matéria-prima de toda obra literária de qualidade.

Enquanto o bote deslizava rio abaixo, Carroll ia inventando uma história, com elementos da paisagem e animais que eles viam (uma toca de coelho, uma poça d'água, uma casinha com chaminé, uma lebre, um gato, um sapo, um peixe, um porco, pássaros) e elementos da vida que as meninas viviam (a escola, professores, as diferentes matérias que estudavam, os poemas e canções que toda criança tinha que decorar; as danças e jogos populares na época, os poderes constituídos - rei, rainha, tribunais, soldados). Encantadas, as meninas ouviam e não deixavam que ele parasse, sempre pedindo mais. A história durou a tarde inteira e, no fim, Alice pediu que Carroll a escrevesse para ela, o que ele começou a fazer nessa mesma noite, anotando para não esquecer. E continuou nos dias e meses seguintes, até passar a limpo e lhe mandar no Natal o livro completo.

Hoje em dia, porém, não se pode mais dizer que o livro de Carroll seja para crianças. Mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos, países de língua inglesa, as crianças pequenas têm dificuldade de entender tudo o que está escrito nele, podem apenas seguir as aventuras dos personagens, como no desenho animado de Walt Disney ou nas inúmeras adaptações infantis do livro, que sempre pulam pedaços, cortam diálogos e jogos de palavras, simplificam coisas. Às vezes até se metem a simplificar tanto, que a história acaba perdendo o sentido. E fica muita gente sem gostar de Alice simplesmente porque não consegue entender uma história tão maluca e meio aflitiva, justamente porque o sentido escapa ao leitor.

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Essa questão do sentido é importantíssima quando a gente fala de Carroll. Como ele era professor de matemática e um estudioso de lógica e filosofia, era fascinado pelo sentido e o não-sentido de tudo. Ou pelo nonsense, como dizem os ingleses. Um termo que não tem tradução exata em português, mas que não designa uma coisa sem sentido, e sim algo que tem um sentido inverso, uma lógica ao contrário, vizinha do absurdo, mas nem por isso menos lógica. Como, por exemplo, a discussão que há no livro quando a Rainha manda decapitarem o Gato de Cheshire. Se "decapitar" é cortar a cabeça, separá-la do corpo, será possível "decapitar" um Gato que é só cabeça? Ou basta haver uma cabeça para poder haver decapitação? Afinal, só não se pode decapitar o que já não tem cabeça...

Alice no País das Maravilhas é uma série de encontros com brincadeiras desse tipo. E para o leitor atento, sua descoberta é uma alegria extra. Divirta-se.

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ANEXO C

POSFÁCIO DO LIVRO ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS –

Tradução de Ana Maria Machado (2003)

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ANEXO D

QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS PELOS ALUNOS DOS

SÉTIMOS ANOS DO ENSINO FUNDAMENTAL (6as. SÉRIES)

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Questionário: ( ) Li na biblioteca ( ) Li com o Professor Emerson 1 - Você gostou do livro que acabou de ler? ( ) Sim ( ) Não 2 – Você leu as informações complementares do livro: prefácios e posfácios? ( ) Sim ( ) Não 3 – Você pode explicar o que significa intertextualidade? ( ) Sim ( ) Não Explique o que é intertextualidade:

Dê exemplos de intertextualidade com os quais entrou em contato durante a leitura da obra:

4 – Você compreende a importância dos contextos histórico e geográfico de escritura da obra como algo importante para a criação de sentidos? ( ) Sim ( ) Não ( ) Não sei 5 – Por que Alice se comporta de modo muito educado no Mundo das Maravilhas? Isso faz compreender o contexto de produção da obra? Explique.

6 – A leitura compartilhada é uma estratégia frequente na escola. Você acredita que ela seja importante para a formação de leitores? ( ) Sim ( ) Não Por quê?

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7 – As pesquisas foram importantes para que compreendêssemos a obra? ( ) Sim. ( ) Não. ( ) Não fiz pesquisas, li a obra diretamente. 8 – Você sabe como a obra surgiu? ( ) Não sei ( ) Sei Como? Explique a importância disso para o entendimento da narrativa:

9 – A literatura tem relação com a realidade que nos circunda, trata-se de uma representação. No caso da obra Alice no País das Maravilhas, podemos dizer que ela está baseada no real? ( ) Sim ( ) Não Explique: 10 – A construção do discurso em Alice é: ( ) totalmente incoerente, torna-se impossível resgatar alguma coerência, ( ) aparentemente incoerente, afinal, podemos reconstruir a coerência por meio da realidade que nos circunda e que circundava a obra. ( ) confuso, não entendi nada dos diálogos e daquelas histórias malucas que nunca apresentavam fim. 11 – O que você entendeu do final da narrativa? Que representação está por trás do crescimento de Alice?