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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC - SP Anderson Jacob Rocha O sujeito-autor em discursos testamentais Doutorado em Língua Portuguesa São Paulo 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC - SP

Anderson Jacob Rocha

O sujeito-autor em discursos testamentais

Doutorado em Língua Portuguesa

São Paulo 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC - SP

Anderson Jacob Rocha

O sujeito-autor em discursos testamentais

Doutorado em Língua Portuguesa

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa, sob orientação do Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento.

São Paulo 2019

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BANCA EXAMINADORA

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DEDICO esta tese aos meus filhos, Heitor

Simão Rocha e Júlia Simão Rocha. Vocês

são motivos de meus direcionamentos em

busca de minha “alma racional”.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 88887.150478/2017-00.

This study was financed in part by Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Finance Code 88887.150478 / 2017-00.

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AGRADECIMENTOS

Ao longo de nossa vida, aprendi que a gratidão é um sentimento que nos faz melhores

todos os dias. Este período de doutoramento me trouxe desafios e aprendizados. Por isso, de

forma imensurável, agradeço ao meu orientador e amigo, o professor doutor Jarbas Vargas

Nascimento. A sabedoria científica e a humanidade dele são exemplos de vida para todos.

Agradeço aos meus professores doutores da PUC-SP, Luiz Antônio Ferreira, João Hilton

Sayeg de Siqueira e Jeni Silva Turazza (in memoriam), pelas experiências de vida e

aprendizados. Agradeço aos professores doutores Izilda Maria Nardocci e Rudney Soares de

Souza por me proporcionarem contribuições valorosas no Exame de Qualificação. Ao

Secretário de Cultura e Patrimônio Histórico, Carlos Jorge de Paula Ribeiro e à professora

Adriana Beatriz Rocha, Presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, pela

autorização de pesquisa documental no Centro de Memória Prof. Antônio Theodoro Grilo, em

Passos, MG. Agradeço pelo apoio do historiador Raphael Luiz. Ao professor doutor Anderson

Ferreira, pela participação em uma de minhas orientações com o meu orientador. Agradeço

ao professor doutor Ramon Chaves, por me ajudar na composição de meu projeto inicial.

Agradeço à professora mestre Sandra Regina Marcelino Pinto, pela amizade e apoio.

Agradeço aos meus colegas do grupo de pesquisa Memória e Cultura na Língua Portuguesa

Escrita no Brasil, André Lopes, Ricardo Celestino, Carlos Batista, Lorena Nobre, Nilson

Rodrigues, Losana Prado e Márcio Cano, pelo apoio fraterno e cheio de sabedoria. Gratidão

à Lourdes Scaglione, secretária do Programa de Estudos Pós-graduados de Língua

Portuguesa da PUC-SP. Agradeço pela existência do professor doutor Luiz Fernando Silveira

Fonseca, meu amigo e incentivador, que nos deixou um pouco antes dessa tese ficar pronta.

Agradeço à professora Mara Correa Senna, minha amiga, pela ajuda na construção do

abstract. Aos meus amigos Vivaldo S. Souza Filho, Edna S. Souza, Eduardo Collares, Ana

Carina Z.B.Collares (in memorian), Thiago Souza, Ruller Rodrigues, Paula Reis, Gisele

Ribeiro, César de Aquino, Hellen Rose, Geraldo Donizeti Pereira, Alexandre de Almeida, Sílvia

Rodrigues, Márcio Valadão e Alba Otoni, minha gratidão pela amizade e apoio em momentos

desafiadores. Gratidão aos meus pais, José Dias da Rocha e Ilda Izabel Jacob Rocha, ao

meu irmão Emerson Jacob Rocha, à minha cunhada Alessandra G. Rocha e aos meus

sobrinhos Vinícius, Paloma e Amanda. Gratidão aos amigos de PUCSP, Márcia Pituba,

Priscila Harka, Andreia Cunha, Eric Fernandes, Luciana Boaventura, Marcelo Santos, Karina

Pires, Isabel Oliveira, Luana Ferraz e Sonia Maria.

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RESUMO

ROCHA, Anderson Jacob. O sujeito-autor em discursos testamentais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

O objetivo desta tese é examinar discursos testamentais materializados linguisticamente em Passos, MG, no século XIX, a fim de observar as condições de autoralidade de um sujeito enunciador que possui uma condição discursiva indivual, preservando em seus enunciados, as regularidades enunciativas constituídas por instituições sociais, marcadas naqueles discursos de constituição jurídico-religiosa. Para que possamos compreender aspectos discursivos reveladores de circuntâncias de memórias coletivas do século XIX, foi preciso conhecer o tipo de sujeito participante do discurso testamental, cuja autoralidade foi revelada por intermédio de enunciações reconhecidas pelas categorias de condições sócio-históricas de produção, interdiscursos, cenografia e ethos discursivo. Para isso, optamos pela Análise do Discurso de linha francesa, principalmente as perspectivas propostas por Dominique Maingueneau (1990; 1997a; 1997b; 2004; 2005; 2007; 2008a; 2008b; 2010a; 2010b; 2013; 2015), como uma disciplina capaz de nos dar suporte para realizar as análises reveladoras de enunciações de pessoas e lugares do século XIX e entendermos questões social-psíquico-religosas que, ainda, ecoam nos tempos atuais.

Palavras-chave: Análise do Discurso; Testamento; Discurso Testamental; Autoralidade; Século XIX.

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ABSTRACT

ROCHA, Anderson Jacob. The Subject-Author in testament discourses. Doctoral dissertation. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

The objective of this dissertation is to examine testament discourses materialized linguistically in Passos - MG, in the nineteenth century, in order to observe the authorship conditions of an enunciating subject who owns an individual discursive condition, preserving in his/her statements, the regularities enunciated by social institutions, marked in those discourses of juridical-religious constitution. In order to understand the discursive aspects revealing the circumstances of collective memories of the nineteenth century, it was necessary to know the kind of subject was participating of the testament discourse, whose authorship was revealed through statements recognized by categories of social-historical production conditions, inter-discourses, scenography, and discursive ethos. To achieve this, the French discourse analysis was chosen, principally the perspectives proposed by Dominique Maingueneau (1990; 1997a; 1997b; 2004; 2005; 2007; 2008a; 2008b; 2010a; 2010b; 2013; 2015), as a discipline able to provide us with basis to perform the revealing analyses of statements of people and places in the nineteenth century and understand social-psychic-religious matters, which, still, echo in current times.

Key-words: Discourse Analysis; Testament; Testament Discourse; Authorship; Nineteenth Century.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

CAPÍTULO I .............................................................................................................. 16

AS CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DE TESTAMENTOS ..... 16

1.1 A concepção de condições sócio-históricas de produção ............................... 16

1.2 A religião como instituição social no século XIX ............................................. 17

1.3 A cidade de Passos e suas relações com a Igreja no século XIX, em Minas Gerais ................................................................................................................... 21

1.4 Testamento: concepção e evolução histórica ................................................. 28

1.4.1 Origem, concepção, formas e evolução histórica do Testamento ............ 28

1.4.2 A atuação da Igreja por meio das irmandades ......................................... 31

1.4.3 O Testamento e as irmandades no século XIX em Passos ..................... 34

1.5 O purgatório: a origem do terceiro local .......................................................... 36

1.5.1 Purgatório: um mundo povoado de aparições ......................................... 38

1.5.2 O purgatório de São Patrício .................................................................... 40

1.5.3 Origem da condição de sofrimento do purgatório .................................... 41

1.5.4 O Submundo da mitologia antiga ............................................................. 43

1.5.5 Hades: o senhor do Submundo ............................................................... 44

1.5.6 As geografias do Submundo .................................................................... 45

1.6 A natureza jurídica dos testamentos ............................................................... 47

1.6.1 As testemunhas ....................................................................................... 49

1.6.2 A sucessão testamentária ........................................................................ 49

1.6.2.1 A sucessão em caso de não haver testamento ............................ 52

CAPÍTULO II ............................................................................................................ 55

ANÁLISE DO DISCURSO: FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ........ 55

2.1 A trajetória do interesse pela noção de discurso ............................................. 55

2.2 A linguística do discurso e a análise do discurso ............................................ 59

2.3 Contribuições de Foucault para a noção de discurso ..................................... 60

2.4 Contribuições de Maingueneau para a análise de discurso ............................ 62

2.4.1 Os fundamentos da análise do discurso .................................................. 62

2.4.2 A noção de corpus em análise do discurso.............................................. 64

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2.4.3 A questão dos gêneros de discurso em Maingueneau ............................ 67

2.4.3.1 Os gêneros instituídos por Maingueneau ..................................... 70

2.4.4 O primado do interdiscurso ...................................................................... 71

2.4.5 Ethos Discursivo ...................................................................................... 74

2.4.6 Cenas de enunciação .............................................................................. 76

2.4.6.1 Cena englobante .......................................................................... 81

2.4.6.2 Cena genérica .............................................................................. 81

2.4.6.3 Cenografia .................................................................................... 81

CAPÍTULO III ............................................................................................................ 83

A AUTORALIDADE EM ANÁLISE DE DISCURSO ................................................. 83

3.1 Por uma concepção de autor em Barthes, Foucault e Chartier ....................... 83

3.2 A noção de autor em Maingueneau ................................................................ 91

3.3 Autoralidade e Ethos discursivo ...................................................................... 94

CAPÍTULO IV ............................................................................................................ 99

AS CONDIÇÕES DE AUTORALIDADE EM DISCURSOS TESTAMENTAIS .......... 99

4.1 Procedimentos metodológicos ........................................................................ 99

4.2 A organização do discurso testamental passense do século XIX ................. 100

4.3 As unidades de análise do Discurso testamental .......................................... 101

4.3.1 As condições sócio-históricas de produção ........................................... 101

4.3.1.1 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 1 ........................................................................................ 101

4.3.1.2 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 2 ........................................................................................ 103

4.3.1.3 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 3 ........................................................................................ 104

4.3.1.4 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 4 ........................................................................................ 106

4.3.2 As unidades de análise com base no interdiscurso ............................... 107

4.3.2.1 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 1 ........................................................................................ 108

4.3.2.2 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 2 ........................................................................................ 110

4.3.2.3 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 3 ........................................................................................ 111

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4.3.2.4 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 4 ........................................................................................ 112

4.3.3 A categoria de análise com base na cenografia .................................... 113

4.3.3.1 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 1 ........................................................................................ 114

4.3.3.2 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 2 ........................................................................................ 114

4.3.3.3 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 3 ........................................................................................ 114

4.3.3.4 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 4 ........................................................................................ 115

4.3.4 A categoria de análise com base no ethos discursivo ........................... 115

4.3.4.1 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 1 ........................................................................................ 115

4.3.4.2 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 2 ........................................................................................ 119

4.3.4.3 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 3 ........................................................................................ 120

4.3.4.4 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 4 ........................................................................................ 123

4.3.5 A categoria de análise com base na autoralidade ................................. 124

4.3.5.1 A autoralidade do discurso testamental 1 ................................. 125

4.3.5.2 A autoralidade do discurso testamental 2 ................................. 127

4.3.5.3 A autoralidade do discurso testamental 3 ................................. 129

4.3.5.4 A autoralidade do discurso testamental 4 ................................. 132

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 134

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 138

ANEXOS ................................................................................................................. 143

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INTRODUÇÃO

Ao definirmos um espaço para a exploração das manifestações de uma

comunidade e de suas práticas discursivas enunciadas em testamentos do século

XIX, examinamos a constituição da autoralidade em discursos testamentais

produzidos em Passos, cidade do sudoeste de Minas Gerais, cuja história cultural

abarca práticas comuns daquela sociedade.

Por se tratar de um documento em que se materializam as leis de sucessão

testamentária, constantes na “Consolidação das Leis Civis” de 1858, bem como nas

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1853, a análise da materialidade

linguística dos testamentos nos possibilitam a percepção de questões históricas,

jurídicas, religiosas e sociológicas que nos remetem a conjunturas do século XIX. A

partir disso, esta tese apresenta um estudo que abarca o interdiscurso, a cenografia,

o ethos discursivo e a autoralidade em discursos testamentais a fim de dectarmos

aspectos discursivos que nos possibilitam a compreensão circunstâncias da memória

coletiva daquela época.

Esta pesquisa fundamenta-se na Análise do Discurso de linha francesa (AD)

que se constitui como uma disciplina da Linguística e da Comunicação, cujo

arcabouço teórico-metodológico nos permite reconhecer as categorias do

interdiscurso, da autoralidade e das cenas enunciativas dos discursos testamentais,

que podem ser analisados, porque, segundo Maingueneau (1997a) toda produção de

linguagem se configura como discurso. Considerando o testamento como produto da

enunciação situado em um tempo histórico, as análises empreendidas focaram na

participação dos sujeitos ali constituídos por meio dos discursos pertencentes àquela

sociedade.

Assim, para Maingueneau (2005), é possível analisar um discurso, a fim de

explicar o seu funcionamento que está articulado com sua inscrição histórica, pois só

se pode estudar algo específico do discurso, quando ele é considerado em relação a

outros. Além disso, discursos de outras ordens se relacionam em espaços de

regularidade.

Para dar conta daquilo que afirmarmos anteriormente, o problema de nossa

tese está na seguinte questão: em que medida o interdiscurso, a cenografia e o ethos

discursivo constituem condições de autoralidade nos discursos testamentais?

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A partir disso, em nossa tese, tivemos a condição de observar se o sujeito

enunciador assume a sua condição individual e preserva os enunciados

historicamente constituídos pelas instituições ou se as condições de autoralidade

estão somente na voz de outros enunciadores.

Para isso, ao definirmos um espaço para a exploração das manifestações de

uma comunidade e de suas práticas discursivas enunciadas em testamentos do

século XIX, examinamos a constituição da autoralidade em discursos testamentais

produzidos em Passos, cidade do sudoeste de Minas Gerais, cuja história cultural

abarca práticas comuns daquela sociedade.

Dessa maneira, exploramos a forma da autoralidade e como se instala no

funcionamento dos discursos testamentais. Para isso, propomos os seguintes

objetivos específicos: identificar os interdiscursos e o ethos do discurso testamental

para confirmar o estatuto jurídico-religioso do século XIX, em Passos, MG; verificar as

cenografias constituídas nos discursos selecionados; e identificar a forma como o

sujeito garante a sua autoralidade nesse tipo de discurso.

Ao considerarmos os sujeitos enunciadores dos discursos testamentais

localizados no sudoeste mineiro, na segunda metade do século XIX, percebemos um

posicionamento do campo discursivo religioso católico que promete a salvação da

alma, regido por interdiscursos do campo jurídico presentes em testamentos que são

materialidades linguísticas oficiais.

Assim, conseguimos vislumbrar a constituição de autoralidade desses

discursos testamentais já que, por um lado, foi possível perceber características

discursivas individuais por serem marcadas pelo sentimento natural da aproximação

da morte aliadas com a valência de uma enunciação que parte de uma ordenação

jurídico-religiosa. Por outro lado, foi viável analisar vozes discursivas de outros

enunciadores, pois, apesar de o discurso testamental envolver um ato personalíssimo,

carrega discursos provenientes de corporificações diversas, tais como os

testamenteiros cujas presenças eram exigidas por lei, padres, irmandades da igreja,

testemunhas e familiares.

Como se tratam de investigações que necessitam de uma perspectiva

interdisciplinar e por conta de questões enunciativo-discursivas dos sujeitos que

aparecem por meio dos efeitos de sentido, debruçamo-nos no estudo das condições

sócio-históricas de produção a partir daquele recorte cronológico que nos permitiu

fazer uma análise superior, acima do plano do texto, levando-nos ao desvelamento

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das relações dos discursos testamentais com a história, a sociologia, a ciência

jurídica, a teologia e outros tipos de cultura, entre elas, a mitologia grega e a

concepção de morte.

Por admitirmos que as interdiscursividades se conectam por formações

discursivas e que se relacionam a partir da enunciação dos sujeitos envolvidos no

discurso testamental, podemos dizer, mais uma vez, que todos eles são marcados

pela história e são movimentados pelas características intersubjetivas encontradas na

análise dos discursos testamentais. Ao entrarmos em uma messe que possui a

formalidade de uma materialidade jurídica, aliada com uma natureza religiosa, foi

praticável a visualização da expressão daquilo que já foi dito. Dessa maneira,

entendemos tais discursos a partir do estudo de algumas categorias da AD, a saber:

as condições sócio-históricas de produção, o interdiscurso, a autoralidade e as cenas

enunciativas.

No primeiro capítulo, estudamos as condições sócio-históricas de produção dos

testamentos, apresentando os testamentos e suas relações com a Igreja Católica,

bem como suas concepções e suas origens. Para entendermos as condições de

produção do testamento instaurado no sudoeste mineiro, apresentamos um estudo

sobre a Igreja e a cultura em Passos e lugares circunvizinhos, no século XIX, bem

como as referências jurídicas e religiosas. Dessa forma, percebemos que a memória

coletiva e a identidade cultural foram constituídas pelas posições sociais entre os

sujeitos testadores e os seus herdeiros, amparados por um processo legalizado, e por

uma concepção de morte que circunda, entre outras noções, o culto às almas do

purgatório.

No segundo capítulo, abordamos os fundamentos teórico-metodológicos da

Análise do Discurso de linha francesa (AD), que nos mostram a trajetória do interesse

pela noção de discurso. Assim, levantamos as origens da Análise do Discurso e sua

relação transdisciplinar com a psicanálise, o marxismo histórico e a Linguística.

Como a AD foi se constituindo em um novo campo de estudo conforme a

ampliação dos modos de apreensão da língua que consideram o sujeito que é

envolvido pela interação, por consequência, pelo modo de atuar sobre o outro,

implementamos as categorias atuais de análise as cenas de enunciação, os gêneros

de discurso e ethos discursivo, tendo em vista a noção de interdiscurso respaldada,

principalmente, por Maingueneau (2008b).

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No terceiro capítulo, tratamos da autoralidade para entender as enunciações

situadas nos discursos testamentais que apontam a relação entre autor e escritor em

um ambiente no qual se deve considerar as questões da subjetividade e do

interdiscurso por meio das memórias coletivas nas análises das marcas enunciativas

que estão nos discursos testamentais produzidos em Passos, na segunda metade do

século XIX.

No quarto capítulo, apresentamos o corpus e os procedimentos metodológicos

para a pesquisa e fizemos uma análise que levou em conta as condições sócio-

históricas, as interdiscursividades, o ethos discursivo e a cenografia em discursos

testamentais. Isso nos permitiu vislumbrar a figura de um enunciador que se impõe a

partir do respaldo do discurso jurídico-religioso e, que por ter uma corporificação

ameaçada pelo estado de morte, assume uma condição plena de uma autoralidade

personalíssima.

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CAPÍTULO I

AS CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DOS TESTAMENTOS

1.1 A concepção das condições sócio-históricas de produção

Buscamos reconhecer a origem das condições sócio-históricas de produção

pelo fato de entendermos que não se faz Análise do Discurso sem perceber tudo o

que envolve as determinações culturais e sociais. Por isso, debruçamo-nos nessa

necessidade de prestar a atenção naquilo que nos possibilita realizar análises

discursivas que estão entranhadas no cerne social e que esperam um olhar que as

entenda para o bem do futuro da própria sociedade.

Pêcheux (2014) nos revela que os princípios fundamentais da AD são

provenientes das condições ideológicas da reprodução/transformação das relações

de produção. Dessa forma, o autor considera que, na AD, a compreensão da

historicidade advém da observação dos sentidos que estão em um texto, onde se

concebe a língua como um acontecimento em um sujeito que é determinado pela

história. Isso revela que

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (PÊCHEUX, 2014, p. 146).

A partir disso, Pêcheux (2014) postula que, na religião, no conhecimento, na

política e outros, há um condicionamento relativo entre eles em espaços regionais,

pois a instância das ideias é percebida como formações ideológicas com

características regionais e, por isso, acomodam-se em posições de classes. Em

outras palavras, Maingueneau (1997a, p. 11) aponta que “a análise do discurso

depende das ciências sociais e seu aparelho está assujeitado à dialética da evolução

científica que domina este campo”, uma vez que a AD conserva especificidades com

as condições sócio-históricas de produção de sentido porque ele entende que todo

enunciado é o resultado dessa produção e se relaciona com outros enunciados, tanto

os reais, quanto os virtuais.

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Courtine (2014) utiliza a expressão “condição de produção do discurso” que é

apresentada, posteriormente, pela sigla CP e relata que deriva, em primeira ordem,

da Psicologia social advinda da Análise de conteúdo. Em segunda instância, ele

destaca que a Sociolinguística faz parte da origem da noção de CP e diz que ela

assume o papel da “ordem indireta”, pois

Se a sociolinguística se dá como objetivo “evidenciar o caráter sistemático da co-variância das estruturas linguísticas e sociais e, eventualmente, estabelecer uma relação de causa e efeito” (Bright, 1966), ela admitirá como variáveis sociológicas “o estado social do emissor, o estado social do destinatário, as condições sociais da situação de comunicação (gênero de discurso), os objetivos do pesquisador (explicações históricas), etc. (Marcellesi, 1971a, p. 3-4). Guespin (1971, p. 19) reconhece nisso “variáveis sociolinguísticas, responsáveis pelas CP do discurso.” (COURTINE, 2014, p. 46)

Assim, percebe-se que Courtine (2014) reconhece a atuação da

Sociolinguística de forma indireta na AD. Isso ocorre por haver uma reinterpretação

desses parâmetros sociolinguísticos na “análise sociolinguística francesa do

discurso.”1 Ele também entende que as CP do discurso são definidas por alinharem a

Linguística, a Psicologia e a Sociologia que são multidisciplinares. Assim, um

processo discursivo é descoberto, quando o elemento imaginário se forma a partir de

lugares que foram definidos de forma objetiva e que são representados

subjetivamente nas situações concretas de comunicação.

Com estas considerações acerca das concepções das condições de produção,

podemos dar prosseguimento às questões de condições sócio-históricas de produção

do discurso aqui estabelecido.

1.2 A religião como instituição social no século XIX

Para entendermos as questões da formação de uma sociedade no século XIX,

estudamos os fatores arraigados diretamente com os posicionamentos religiosos, pois

as comunidades formadas no século XIX eram constituídas por meio das freguesias,

que são chamadas atualmente de paróquias, e tinham como líder, um padre da Igreja

Católica. Ele era o responsável pela manutenção dos costumes cristãos que

1 Para Courtine (2014), a análise sociolinguística francesa do discurso é aquela que admite a função social do emissor, do destinatário, do gênero de discurso e dos objetivos do pesquisador. Essas variações também são responsáveis pelas CP do discurso.

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norteavam os costumes vigentes. Tendo isso como ponto de partida, verificamos

quais são as análises dos estudos sociológicos referentes à religiosidade daquele

recorte cronológico, para entendermos a constituição do pensamento social daquele

tempo.

Durkheim (1975) faz uma espécie de confissão, dizendo que, até o ano de

1895, não havia conseguido uma visão esclarecedora da essência da religião na

sociedade. Ele já se considerava apto para tocar nesse assunto diante de uma

perspectiva sociológica que pudesse revisar outras investigações anteriores e

reorganizá-las, tendo como base aquelas novas conquistas investigativas.

Para a construção desse novo olhar, Durkheim buscou, na Antropologia de

Robert Smith, os conhecimentos sobre a história da religião, a fim de obter uma

mudança que culminou em uma série de artigos publicados na Revue L´Année

Sociologique2. Tratam-se de trabalhos que apresentam um novo paradigma de estudo

da sociologia e que nos dão a noção sobre os aspectos sociológicos da segunda

metade do século XIX, entre eles, as características entre o profano e o sagrado, bem

como a religião como uma composição social e individual ao mesmo tempo.

As pesquisas de Durkheim (2003) concebiam a religião como uma instituição

social, cujo papel era garantir uma disciplina, a fim de equalizar a sociedade. Dessa

forma, seus estudos sobre a religião eram apenas uma alternativa para estabelecer

correlações entre a sociedade e o indivíduo como ser social.

A partir de 1895, Durkheim expôs uma teoria que abrangeu a natureza das

manifestações religiosas. Para isso, adotou uma forma básica de conhecimento sobre

a Religião toteísta, cujas práticas religiosas são realizadas por clãs aborígenes da

Austrália. A intenção foi a de voltar às partes mais simples da sociedade para analisar

símbolos e ritos a fim de conhecer ações idiossincráticas do subconsciente de

indivíduos ligados a um grupo social. A preocupação foi de apresentar a definição de

uma religião primitiva dessa maneira:

Dizemos de um sistema religioso que ele é o mais primitivo que nos é dado observar, quando ele preenche as duas condições seguintes: em primeiro lugar, que se encontra em sociedades cuja organização não é ultrapassada por nenhuma outra em simplicidade; é preciso, além disso, que seja possível explicá-lo sem fazer intervir nenhum modelo tomado de uma religião anterior (DURKHEIM, 2003, p. 5).

2 L'Année Sociologique é uma revista acadêmica de sociologia criada por Durkheim em 1898, a fim de pudesse divulgar suas próprias pesquisas, as de seus alunos e outros pesquisadores que quisessem atuar dentro do seu novo modelo de estudo sociológico.

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Essa ideia de visualizar os aspectos simples da Religião, privilegiando signos

externos, consistia na visão de reconhecer tais sinais a partir da análise de religiões

mais complexas. Durkheim afirma que as crenças são estados de opinião permeada

por representações cujos ritos demonstram os modos de ação, ordenando os

fenômenos religiosos. Esses modos de ação, a saber, comportamentos, prescrições

e valores, revelam o sagrado no mundo. Assim, são os ritos que reordenam a posição

social do indivíduo, à medida que se desprende das ações cotidianas e ordinárias para

adentrar, por um momento, no mundo sagrado. As crenças permanecem vivas quando

representam as ações coletivas ligadas ao sagrado.

No mesmo viés das questões sociológicas, Jahnke (2011) aborda os conceitos

das Ciências do Espírito que estão apoiados na base da Sociologia de Marx Weber,

apontando que nos fatos espirituais, objeto das Ciências do Espírito, há a distinção de

diversas etapas:

Por um lado, trata-se daqueles processos e estados que não permitem uma projecção para o exterior, como estados emocionais, maneiras de pensar e querer, e que são objecto da percepção interior. O pensamento discursivo relaciona estes elementos a nível da experiência interior. Por outro lado, os factos espirituais entram na explicação da constituição de uma percepção exterior, ao integrar o objecto da percepção numa conexão psíquica, ou seja, ao revelar os processos e estados interiores que colaboraram na construção da representação do objecto. Encontramos, ainda, os factos espirituais no mundo exterior devido a um processo de transferência a outros seres humanos, motivado pelas suas manifestações vitais. A possibilidade da transferência e a relação de afinidade entre estes factos espirituais é o fundamento da sua compreensão e – em última análise - da conexão destes factos espirituais no mundo histórico e social. (JAHNKE, 2011, p. 52).

Essa afirmação da conexão dos fatos espirituais define o objeto das Ciências

do Espírito porque ela ocorre no mundo histórico-social e, por isso, ficam cristalizados

tais fatos nas instituições. É dessa forma que se fundamenta uma manifestação de

vida que está presente sempre no âmbito histórico-social. Ela é denominada espírito

objetivo, pois a organização é uma característica marcante, já que “o indivíduo

manifesta-se em formas definidas no meio social e que, por isso mesmo, representam

algo comum.” (JAHNKE, 2011, p. 54).

A manifestação é constantemente mantida pela totalidade à qual todos

possuem acessibilidade. Dessa maneira, fica legitimada uma inferência entre a

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manifestação do outro com algum fato interior da vida dele, pois essa expressividade

vem em um formato que é reconhecido pelos indivíduos da comunidade na qual estão

inseridos.

As Ciências do Espírito são definidas a partir da compreensão das formas

objetivas do espírito, que são consubstanciadas em ações humanas, tendo como

norte, parâmetros sociais e históricos, típicos de uma organização social. E mais,

Os dados das Ciências do Espírito, as objectivações da vida, resultam em última análise da vivência humana. Em qualquer facto histórico, social e cultural, manifesta-se a forma, como uma pessoa viveu uma situação e a “elaborou” em acções que assumem formas típicas, definidas pelo meio social e cultural. Isto significa que é possível regressar a partir deste facto à vivência subjacente. A compreensão de um facto, através da recondução à vivência de onde emanou, distingue-se do conhecimento das Ciências da Natureza, onde as impressões são substituídas por uma concepção abstracta das relações de espaço, tempo, massa e movimento. O conhecimento nas Ciências do Espírito distingue-se pela tendência de recuar até à vivência que se exprime em determinadas formas. (JAHNKE, 2011, p. 55).

De fato, para Jahnke, o objeto das Ciências do Espírito são os fatos espirituais

que se manifestam por meio de ações humanas que relacionam o interno e o externo

de cada indivíduo, como uma interligação entre a vivência, a expressão e a

compreensão. O destaque vai para a relação da compreensão que serve como um

método para acessar os fatos da consciência por meio da experiência interior que nos

leva a um estado transcendental capaz de restaurar as maneiras e as condições

interiores. Assim, visualizamos fatos espirituais em outras pessoas porque

A expressão dos factos espirituais em manifestações de vida dos seres humanos ocorre sempre no contexto de uma determinada realidade histórico-social, ou seja, concretiza-se em formas definidas no meio social, o que, devido ao seu substrato comum, permite a sua compreensão. (JAHNKE, 2011, p. 56).

A manifestação de vida será compreendida porque teve como objetivo a

reconstituição de uma situação que foi vivida pelo sujeito que se exteriorizou a partir

de condições que foram definidas pela cultura. Por isso, a partir do item posterior

apresentaremos as reconstituições da igreja católica nos sujeitos de Passos, do

século XIX.

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1.3 A cidade de Passos e suas relações com a Igreja no século XIX, em Minas Gerais

Conforme Grilo (1990), em 1814, o território onde está o atual município de

Passos, MG, pertencia, oficialmente, ao termo da Vila de São Carlos do Jacuhy,

denominado hoje, Jacuí. Passos, nessa época, era um pequeno arraial no qual se

localizavam brancos pobres que construíram taperas e ranchos muito simples,

formando uma povoação que procurava vestígios do ouro, conhecidas como

faisqueiras, no sertão. Em 1820, o povoado começou a ficar movimentado, porque

fazendeiros, motivados pela ação do Governo do Rei D. João VI no Brasil, começaram

a colonizar os sertões, aproveitando as facilitações de negócios de compra e venda

de áreas ocupadas.

Migraram para essa região, vindos do arraial de Nossa Senhora das Candeias

(Candeias, MG), Manoel José Lemos e seu cunhado, João Pimenta de Abreu. Eles

compraram terras nas proximidades do Rio Grande e formaram, juntamente com suas

famílias, a Fazenda Soledade e a Fazenda Cachoeira. Esses fazendeiros foram os

que ajudaram a constituir aquela povoação, onde não havia escravos, porque pessoas

de posses foram surgindo aos poucos. A busca pelo ouro não era objetivo daquelas

pessoas, pois o que importava era o cuidado com as fazendas.

O Padre José de Freitas e Silva, filho de Dona Faustina das Neves, viúva de

Antônio de Freitas e Silva, família que também se instalou em terras dos rios Grande

e São João, foi quem construiu a igrejinha de Santo Antônio, a primeira daquela

localidade.

A partir de 1825, houve um movimento no arraial passense, para que o Bispado

de São Paulo autorizasse a construção de uma nova capela, já que a de Santo Antônio

era muito pequena para ter um padre a sua disposição. A construção do novo templo

Senhor dos Passos ficou a cargo de seu idealizador, Domingos Barbosa Passos, que

era o curador dos bens da Igreja, naquele lugar. Por aí, já temos a ciência do porquê

do nome atual da cidade e sabemos que os interesses da Igreja e dos fazendeiros

tornaram-se as primazias do local.

Segundo Franco (2003), para termos uma ideia da influência da Igreja Católica,

é necessário dizer que por uma interpretação ambígua da demarcação, feita pelo

Papa Bento XIV, em 1745, e a consequente criação das dioceses de São Paulo e

Mariana, houve um conflito de interesses entre os representantes dessas dioceses.

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Demoradas discussões eclesiásticas sucederam-se até que, em 1759, o bispo de

Mariana deixou clara, numa carta, a intenção de colocar a decisão nas mãos do colega

de São Paulo, que, por sua vez, recuperou as paróquias que haviam sido tomadas

pelo bispado de Mariana e seguiu à frente do devocionário sul-mineiro.

Grilo (1990) diz que para a constituição civil do povoado, Manoel José Lemos

engendrou o movimento para a criação do juizado de paz, tendo em vista a resolução

de problemas de demarcação de divisas, porque algumas áreas pretendidas já eram

ocupadas pela população pobre. A criação desse juizado seria um meio legítimo de

reorganizar o povoado. O líder desse movimento, Lemos, foi o primeiro juiz de paz do

povoado, em 1831. Nessa data, foi feito o primeiro recenseamento. Em 1838, outro

censo apontou o crescimento da população e do arraial. Criou-se, então, a freguesia

do Senhor Bom Jesus dos Passos.

As terras férteis do Rio Grande e a promissora atividade econômica local

chamaram a atenção de várias famílias de outros cantos de Minas Gerais, como:

Lavras do Funil, Campanha, São João Del Rei, Aiuruoca, entre outras e, também, de

terras paulistas. Alguns fatores da região atraiam esses novos grupos:

a) alguns já tinham familiares residindo aqui; b) o Arraial crescera e ficava numa região que todo mundo achava boa e bonita; c) as pastagens formadas em nossa região eram excelentes e favoreciam o desenvolvimento de engorda de gado de forma muito lucrativa. Neste último caso poderíamos acrescentar também que a fertilidade do solo vinha possibilitando colheitas muito boas e especialmente o cultivo da cana de açúcar, pois alguns engenhos já instalados aqui ofereciam lucros compensadores. (GRILO, 1990, p. 82)

Além disso, a riqueza gerada foi maior, quando esses fazendeiros adotaram

uma prática chamada invernada. Essa atividade consistia em fechar uma pastagem

formada com capim colonhão ou capim gordura, e a mão-de-obra tornara-se uma

facilidade, pois esse tipo de serviço não requeria muito esforço.

Dessa forma, o movimento invernista reorganizou a vida social do arraial

passense, porque trouxe excelentes resultados econômicos aos fazendeiros. Um fato

que nos mostra isso se deu, quando açougueiros da capital do Brasil, Rio de Janeiro,

comercializavam a carne do gado das invernadas do Senhor dos Passos. O comércio

cresceu em vista da necessidade de diversificação dos produtos que eram primordiais

para a vida no campo.

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José Caetano Machado foi um dos que chegaram a essa região. Oriundo de

Lavras, ajudou a constituir a nova organização municipal e trabalhou, para que o

arraial fosse decretado como vila. Com isso, a Câmara da vila de Jacuí deu um

parecer favorável para a criação da vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos.

O Dr. Bernardino José de Queiroz sancionou a Lei Provincial, nº 386, desse modo:

A Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais decreta: Art. 1º - Ficam elevadas à categoria de Vilas as seguintes Freguesias: § 1º - A do São Bom Jesus dos Passos do Município do Jacuhy, com a denominação de Vila Formosa do São Bom Jesus dos Passos, compreendendo em seu Município a Freguesia do mesmo nome e as da Ventania e Carmo. § 2º - A do Patafúfio do Termo de Pitangui com a denominação de Vila do Patafúfio, compreendendo em seu Município a Freguesia do mesmo nome e as de Santa Anna de S. João Acima e do Morro de Mateus Leme desmembradas aquela do Município de Bonfim e esta do de Sabará e assim mais os Distritos de São Gonçalo e Santo Antonio de S. João Acima, desmembrados do Termo de Pitangui. Art. 2º - Os habitantes destes novos municípios ficam obrigados a construir à sua custa (...) há uma frase riscada os edifícios necessários para as sessões da Câmara e do Conselho de Jurados e a Cadeia com suficiente segurança para a prisão dos réus. Art. 3º - Não obstante a disposição do artigo antecedente serão instaladas as Vilas logo que os habitantes prontifiquem quaisquer outros edifícios para servirem interinamente; devendo contudo ser suprimidas as Vilas, se no prazo de dois anos não se mostrar satisfeito o ônus do artigo 2º. Art. 4º - Ficam revogadas as disposições em contrário. Sala da Comissão, 6 de outubro de 1848. Horta e Araújo Oliveira. (GRILO, 1998, p. 18)

Na observância dos artigos 2º e 3º do texto final da lei, os líderes da recém vila

agiram com rapidez para cumprirem as prescrições ali impostas. Grilo (1998) afirma

que os pedidos formais de adequação à nova condição foram enviados pela Câmara

Municipal da vila de São Carlos do Jacuhy. Em virtude disso, em 4 de agosto de 1850,

houve a primeira eleição municipal com a seguinte lista de vereadores: José Caetano

Machado que foi o vereador mais votado e, portanto, deu posse aos demais

vereadores por determinação da Câmara de Jacuhy; Jerônimo Pereira de Mello e

Souza que foi o secretário das primeiras sessões e viria a ser o futuro Barão de

Passos; o Sargento-mor Manuel Cardoso Osório, o Capitão Manoel José Lemos,

aquele que saiu de Candeias, MG; Camilo Antonio Pereira de Carvalho que pertencia

ao arraial de Santa Rita do Rio Claro, Nova Rezende, nos dias atuais; o Padre

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Fortunato José da Costa do arraial de Nossa Senhora das Dores do Aterrado: Ibiraci;

Fidelis Rodrigues de Faria do arraial de Carmo do Rio Claro.

José Caetano Machado, presidente da Câmara Municipal, deu posse aos

vereadores da vila, em 7 de setembro de 1850. Foi um acontecimento marcante da

região em decorrência dos novos distritos que passaram a pertencer ao Termo da vila

do Senhor dos Passos. São eles: arraiais de Nossa Senhora do Monte do Carmo do

Rio Claro (Carmo do Rio Claro), São Sebastião da Ventania (Alpinópolis), Santa Rita

do Rio Claro (Nova Rezende), Nossa Senhora das Dores do Aterrado (Ibiraci) e Santa

Rita de Cássia (Cássia).

Segue o texto do ato de instalação e posse da Câmara da Vila:

Ato da instalação e posse da Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos: Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo - de mil oitocentos e cinqüenta, vigésimo ano da Independência do Brasil, aos sete dias do mês de Setembro do dito ano, nesta Povoação do Senhor Bom Jesus dos Passos, desmembrada do Município de Jacuí e ora elevada à Vila, e pertencente à Comarca de Três Pontas, Província de Minas Gerais, aonde reside o Cidadão Brasileiro Tenente Coronel José Caetano Machado - vereador mais votado da Câmara Municipal do novo Município, estando de posse do dito emprego, segundo consta do edital da Câmara Municipal da Vila de São Carlos de Jacuí, datado de 18 de agosto do corrente ano, sendo aí, em casa que serve interinamente para as sessões da Câmara Municipal desta Vila, em conformidade da lei provincial número trezentos e oitenta e sete e Portarias do Exmo. Sr. Presidente da Província de vinte e sete e vinte e nove de maio do corrente ano, elevando esta Povoação à categoria de Vila, manda seja instalada e dada posse no dia de hoje, sete de setembro, com a denominação de Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos, em conformidade com a dita lei e portaria, houve o mesmo cidadão por instalada e de posse a mencionada Vila; e estando presentes os vereadores eleitos para a Câmara Municipal, a saber: o Sargento-mor Manoel Cardoso Osório, o Capitão Manoel, José Lemos, o Reverendo Padre Fortunato José da Costa, o cidadão Camilo Antonio Pereira de Lelis (de Carvalho) e Fidelis Rodrigues de Faria, o mesmo cidadão José Caetano Machado, como vereador mais votado na referida Câmara lhes deferiu o juramento aos Santos Evangelhos, na forma da Lei em presença de grande concurso de cidadãos do novo Município, que em sinal de demonstração do seu regozijo, repetiram frequentemente os Vivas Nacionais, à Nossa Santa Religião Católica Apostólica Romana; Constituição do Império, e a S.M. Imperial, o Sr. D. Pedro II e, para constar, o dito Presidente mandou lavrar este ato em que se assina com a Câmara e mais cidadãos presentes, depois de lhes ser lido por mim Jerônimo Pereira de MeIo e Souza, secretário interino, por ainda não haver, que o escrevo e assino. (Seguem-se as assinaturas): José Caetano Machado, Presidente; Vereador Manoel José Lemos, Vereador Manoel Cardoso Osório, Vereador Camilo Pereira; Vereador Padre Fortunato José da Costa;

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secretário Jerônimo Pereira de MeIo e Souza, vereador Fidelis Rodrigues de Faria. Pessoas presentes: José Fernandes de Paula, Raimundo Nato Brasileiro, José Ferreira Corrêa, João Cândido de MeIo e Souza, José Pimenta de Abreu, Manuel Joaquim Bernardes, Antonio Ferreira de Carvalho, Heitor Fernandes da Silveira, Pedro José de Alcântara Pádua, Urias Antonio da Silveira, Vigário Francisco de Assis Pinheiro Ulhoa Cintra, Francisco Ferreira Bernardes, Ludovico Lirimo de Anchieta, Irmão Justiniano Anjos Vieira, José Vieira da Natividade, João Ferreira da Silva, Leonel Gonçalves Gomide, João Pena de Miranda, Joaquim Rodrigues Chagas, Nicolau Tolentino de Brito, Antonio Joaquim da Silva, Fortunato Ribeiro de Andrade, Antonio Barbosa da Silva, José Francisco Bueno, Manuel Lemos Júnior, João Caetano Machado, José Carlos Lima, Bernardo Alves Pereira, Manuel Mendes da Luz, Antonio Caetano de Faria Loulou. (GRILO, 1998, p. 32)

Os vereadores daquela época tinham que contribuir financeiramente com a

Câmara, porque essa não tinha recursos ainda. Com o tempo, o município foi

crescendo diante da ação invernista por todos os cantos, ficando relegada a segundo

plano, a produção de alimentos. Talvez, seja por isso que Grilo (1998) afirma a

existência de um registro em ata da câmara de vereadores de Passos de 1853, que

trata da crise aguda de altos preços dos alimentos e propõe ações para diminuir os

impactos. Os menos favorecidos, obviamente, foram os mais prejudicados. Muitas

famílias sobreviveram às custas das benesses dos fazendeiros, mas, apesar dessa

preocupação compartilhada com os governantes locais, aconteceram várias mortes

em consequência da fome.

A vila crescia cada vez mais e, por isso, começou a faltar água, à medida que

as casas e ruas surgiram, impedindo, assim, o acesso às fontes. A violência, também,

começara a se instalar. Contudo, a Câmara sempre conseguia apresentar propostas

para a solução dos problemas. O fiscal contratado fazia uma espécie de relatório que

chamava a atenção de todos.

Em 19 de junho de 1852, um ofício do Presidente da Província comunicava

que, por uma decisão Imperial, os Termos de Passos e de Jacuí haviam sido reunidos,

ou seja, naquele momento, Jacuí passava a pertencer ao Termo Passense. Depois

disso, ao final do mesmo ano, a vila do Senhor dos Passos tornava-se sede da Vara

Eclesiástica. Organizadas pelo bispado, essas varas tinham a função de decidir

questões canônicas de menor complexidade e, ao mesmo tempo, solucionar conflitos

interparoquiais. A Vara Eclesiástica sempre era constituída em lugares mais

populosos e tinha um vigário responsável que exercia o papel de interlocutor do bispo

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diocesano e os vigários das paróquias vizinhas. Além de ser o juiz dos casamentos e

celebrar o sacramento do crisma, conhecido por ser a confirmação do batismo, em

caso de extrema necessidade. As paróquias que pertenciam à Vara Eclesiástica

passense eram as do Carmo do Rio Claro, Ventania e Bom Jesus dos Passos, todas

elas do bispado de São Paulo.

As resoluções da Igreja Católica eram provenientes das Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 e reimpressas em 13 de

agosto de 1853 por conta das diferenças entre o Brasil Colônia e o Brasil Império.

Essas constituições deixaram expostas as intenções da existência delas, ou seja,

afirmamos que apesar da Igreja se constituir como um “Império distinto” por ter a

preocupação de guiar a vida espiritual de seus fiéis, ela estava subordinada ao Império

Civil.

Em Franco (2003), vimos que isso se confirma porque o padre era considerado

o homem da lei, e a Igreja era vista como uma organização jurídica por causa de sua

ação de punições e ameaças feitas aos pecadores. Desse modo, na visão popular e

do estado, a Igreja era a expressão da lei e cabia a ela salvar as almas ou mandá-las

para o inferno ou, ainda, conduzi-las ao purgatório. Mesmo com toda essa força civil,

o clero situado no sul de Minas Gerais tinha atividades e desafios no dia a dia:

A missão sacerdotal acontece de maneira integrada à múltiplas circunstâncias da vida do padre, de modo que é impossível dissocia-lo daquilo que o padre realiza, independentemente do caráter dessas circunstâncias. No século XIX não era diferente. A vida do sacerdote, fosse pároco ou não, estava envolta numa gama de atividades e desafios que preenchiam o seu cotidiano. Por força do padroado, às vezes o padre era forçado a atividades burocráticas civis e, não raro, havia desobediência, sobretudo em relação às normas canônicas. (FRANCO, 2003, p. 64).

Tais desobediências ao sistema da Igreja do Brasil tinha relação com a vida

pobre na qual vivia a maioria dos padres e seus desafios frente às disputas políticas

chefiadas pelos fazendeiros e as irmandades. Desse modo, o clero sucumbia, muitas

vezes, àquele sistema de dominação financeira e condicionamento social. Os padres

quase não tinham acesso a outros padres e isso causava-lhes solidão e sofrimento.

Quem não se adequasse aos interesses locais eram dispensados, principalmente os

menos experientes.

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Fora essas questões das misturas civis com as religiosas, segundo Grilo (1998)

havia uma crescente economia por conta da pecuária e das ações políticas junto ao

governo da Província e ao próprio Imperador. Por isso, houve um movimento que

culminou no decreto que transformaria a vila em cidade.

Penso não haver dúvida de que a transformação da Vila Formosa em Cidade de Passos foi resultado da ação política das mesmas lideranças que há mais de dez anos tinham conseguido a criação da Vila. Entre estas, certamente o nome do Comendador José Caetano Machado, que era Cavaleiro da Ordem de Cristo desde 1849, deve ser lembrado como a mais importante por ter exercido todo o empenho político junto à Assembléia Provincial e por ter feito acompanhar o processo de todo o seu prestígio junto ao Imperador. (GRILO, 1998, p. 60)

Desse modo, a Lei nº 854 de 14 de maio de 1858 diz em seu artigo único: A

Vila de Passos, da Comarca de Sapucaí, fica elevada à categoria de Cidade, com a

mesma denominação, revogadas as disposições em contrário, (GRILO, 1998, p. 61).

A denominação oficial da vila era Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos, mas

com a popularização do nome, a vila tornou-se a cidade de Passos. O nome religioso

continua sendo usado nos dias atuais, assim: Paróquia Senhor Bom Jesus dos

Passos.

A partir do ato oficial que a decretou como cidade, Passos foi marcada com a

preocupação de mudanças em sua arquitetura. As casas da cidade começaram a ser

construídas como se fossem um retrato das sedes das fazendas. Segundo Grilo

(1998, p. 65), essas casas eram “grandes mas simples, com muitas janelas – sinal de

‘grandeza’ do proprietário - porque indicavam muitos cômodos, significando grande

parentela, domínio de muita gente, inclusive de escravos...”. No entanto, as Igrejas

construídas, entre outras edificações urbanas, mostraram a preocupação com a

aparência da cidade. Assim, fica caracterizado que a prática religiosa se constituiu

como uma forte tendência característica na comunidade passense da segunda

metade do século XIX.

Com o tempo, o município foi adquirindo um número expressivo de escravos.

Conforme Noronha (1969), Passos chegou a ter 5.623 escravos e, segundo o mesmo

autor, a Câmara informou que o valor deles era de 1.297:750$000 (um mil duzentos e

noventa e sete contos, setecentos e cinquenta mil réis). No entanto, seguindo a

tendência nacional, havia alguns ideais abolicionistas, cujos festejos foram mais

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explícitos com a chegada da notícia sobre a Lei Áurea. Há um registro da Câmara

municipal passense, com data de 25 de outubro de 1888, no qual se encontram os

agradecimentos a Sua Alteza Imperial pela Lei Áurea. Anteriormente a esse fato, há

registros oficiais nos quais a Câmara municipal se preocupava em alertar a população

sobre os maus tratos dados aos escravos.

Fez-se necessária esta menção acerca do sistema escravocrata passense uma

vez que os testamentos, objetos do tópico seguinte e, por conseguinte, de nossa tese,

que serão tomados, posteriormente, como discursos que apresentam cenas

relacionadas aos negros escravos, que eram vistos como posses e que, por isso,

deveriam pertencer aos testamentos.

1.4 Testamento: concepção e evolução histórica

Tendo o testamento como um instrumento existente na história humana, desde

o surgimento da escrita e, portanto, reprodutor de práticas sociais, cabe-nos revelar

quais são as condições jurídicas, religiosas, antropológicas, sociais e filosóficas, a fim

de entendermos os aspectos de sua condição nas mais variadas culturas.

1.4.1 Origem, concepção, formas e evolução histórica do Testamento

O costume de usar o testamento como um documento de despojamento de

bens é muito antigo. Segundo Gama (1953), os Hebreus, antes da Lei Mosaica, já

utilizavam esse documento em seus clãs, como é possível constatar em alguns

capítulos do livro do Gênesis, entre eles: 3Gn 15,3; 4Gn 25, 5 e 5Gn 48, 21-22. Dessa

forma, a feitura dos testamentos vem desde os tempos antigos passando pelo Egito,

se estendendo pela Grécia.

Conforme Grivot (2014), ainda que tenham se destacado nas artes, arquitetura,

medicina e agricultura, os egípcios pouco colaboraram com as questões de direito. As

relações neste sentido eram de ordem prática por meio contratos, testamentos, atos

3 E acrescentou: “Como não me deste descendência, um dos servos de minha casa é que será o meu herdeiro!” 4 Abraão deu todos os seus bens a Isaac. 5 Em seguida, Israel disse a José: “Estou para morrer, mas Deus estará com vocês e os levará de novo para a terra de seus pais. A você, e não a seus irmãos, eu darei Siquém, que eu tomei dos amorreus com minha espada e arco”.

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administrativos, decisões judiciárias etc. Não havia leis e costumes escritos e, por

isso, o sistema jurídico era determinado por proposições individualistas.

O direito sucessório do antigo Egito teve, em uma primeira fase, uma

característica familiar que se constituía pelo pai, mãe e filhos. Não havia prevalência

do homem na família, pois o casal tinha os mesmos direitos. Homem e mulher podiam

dispor de seus bens em vida ou depois dela. Também não havia distinção entre o

gênero e/ou as idades.

Na segunda fase, o direito egípcio adotou uma postura em que considerava a

oligarquia sacerdotal que se sustentava por intermédio de hereditariedade dos cargos.

O direito público e o privado caminharam juntos, conforme o poder marital e paternal.

Houve desigualdade na relação de primogenitura e vantagem para os homens.

Na última fase, os egípcios retomaram alguns pontos da primeira fase tais como

igualdade jurídica entre filhos e filhas, que eram livres para dispor em vida ou depois

da morte. Com os domínios persa e romano este tipo de regime se esvaiu.

Conforme Gama (1953), dois eram os tipos de testamento que se praticava em

Roma, a saber: aqueles que eram elaborados em tempos de paz, apresentados às

assembleias para serem aprovados ou rejeitados e os que eram constituídos em

períodos de guerra em que os soldados, depois da preparação para a peleja, diante

de três ou quatro testemunhas, nominavam os seus herdeiros. A estrutura

paradigmática dos testamentos obedecia à configuração dos testamentos vigentes

desde a antiga Grécia.

Leão (2006) expressa que esse documento grego deveria ser constituído de

livre vontade e gozo total de das faculdades mentais do testador. Dessa forma, quem

tivesse alguma doença ou estivesse sobre o efeito de droga ou sofresse coação ou

pressão de mulher, não poderia fazer o testamento. Quem morresse sem deixar a

testamentaria, apenas as filhas poderiam herdar de forma direta que, por sua vez, só

poderiam dispor de tais bens após darem à luz. Eram esses filhos que deveriam

assumir as benesses deixadas pelo avô. Isso esclarece que a linha masculina era

privilegiada. Os gregos só conheceram esses termos oficiais dos testamentos com o

jurista Sólon, pois antes disso, era permitida a prática de disposição de bens apenas

na situação da falta de filhos naturais.

Na linha do tempo, características gregas foi delineando o modo romano de se

elaborar um testamento. No entanto, caiu em desuso por alguns séculos e reapareceu

no século XII com uma concepção distinta daquela da antiguidade romana, que o

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considerava “apenas um ato de direito privado destinado a regulamentar a

transmissão dos bens” (ARIÈS, 2014, p. 250) e, por isso, assegurava um caráter, em

primeiro lugar, político e, depois, religioso.

Essa diferença de concepção, segundo Ariès (2014), surgida na Idade Média,

constituiu-se com a presença de monges mendicantes em novos lugares. Esta

representação eclesiástica mais espalhada foi essencial, para que os ideais dos

claustros fossem, aos poucos, se tornando parte da vida de todos, ou seja, as orações

de intercessão, os tesouros da Igreja, a comunhão dos santos e o poder dos

intercessores eram referências que advinham das abadias e penetravam na cultura

das novas cidades. Ariès nos mostra o encurtamento de distância desse tipo

concepção da representatividade eclesiástica dizendo que

Se as massas laicas se abriram então a essas ideias, foi porque já estavam prontas para recebê-las: anteriormente era grande demais a distância entre a mentalidade dessas massas e a das sociedades monásticas, ilhotas da cultura escrita, precursoras da modernidade. Nos meios urbanos dos séculos XIII - XIV, pelo contrário, as duas mentalidades tinham se aproximado. (ARIÈS, 2014, p. 250)

Há dois meios responsáveis por esta aproximação: o testamento e a

irmandade. O testamento possibilitou para cada temente a Deus, a possibilidade de

obter as dádivas por meio das reciprocidades de orações, que eram garantidas pelas

famílias e irmandades, ainda que o fiel não fosse tão adepto a elas.

Ariès (2014) afirma que a volta do uso corrente do testamento a partir do século

XII, se notabilizou por ser, em primeira instância, um ato religioso que era exigido pela

Igreja. Mesmo que a pessoa não era provida de bens, a Igreja exigia que todos o

fizessem, sob pena de excomunhão e, por consequência, não poderia ser enterrado

na Igreja e no cemitério. Ao fiel eram impostos a confirmação da fé e o reconhecimento

dos pecados por meio de um ato público que deveria ser escrito ad pias causas.

Ao pesquisar a obra de Almada (1991), percebemos que este caráter de

cumprimento do dever religioso na produção dos testamentos sempre foi legitimado

pela Igreja Católica, a partir do século XII. Por meio do Direito Canônico, a Mater

Eclesiae favoreceu as disposições testamentárias em benefício próprio. Com isso, a

privação da comunhão e da sepultura seria um castigo para os crentes abastados que

não utilizassem a disposição da testamentaria direcionada às benesses doadas à

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Igreja. Caso acontecesse tal omissão no do texto testador, os herdeiros aprovariam a

concessão de uma parte da herança à Igreja em proveito da alma do falecido.

Nessa concepção institucional religiosa, justifica-se a afirmação de Pagoto

(2004), quando aponta que, geralmente, a elaboração do testamento era feita muito

tempo antes do falecimento do testador. Isso se deve a um pensamento de que se

corria o risco de morte súbita ou violenta. Assim, a salvação da alma ficaria

prejudicada, porque não seria possível saber quais eram as últimas disposições e

vontades do testador, pois o início da preparação da alma para o dia do juízo final

configurava-se com a elaboração da materialização testamento que tinha como

primazia a religião católica.

Na elaboração do testamento

... o testador se preocupava em relatar não somente suas últimas vontades terrenas, mas também servia como um mecanismo de confissão, em que o redator apontava seus pecados, seus infortúnios, suas deslealdades e dívidas pendentes, tanto divinas quanto terrenas, pois acreditavam que só confessando todos os seus pecados e “descarregando sua consciência” poderiam alcançar a Salvação da Alma. (PAGOTO, 2004, p. 32)

Na complexidade histórica dos testamentos produzidos na segunda metade do

século XIX, a Igreja católica no Brasil voltou-se apenas para os comandos vindos de

Roma. O episcopado brasileiro defendia que a Igreja de Roma era o ponto mais alto

da verdade, ou seja, a verdade católica era absoluta e os movimentos liberais e

protestantes faziam parte de ações ilusórias e passageiras que formavam uma

organizada conspiração contra os interesses apostólicos romanos. Percebemos,

então, uma postura conservadora e preparada para enfrentar as instigações do

inferno.

1.4.2 A atuação da Igreja por meio das irmandades

As irmandades, instituições iniciadas a partir do século XIV, foram diretamente

responsáveis pela aproximação da sociedade laica com os ideais da Igreja. Elas eram

formadas por benfeitores leigos voluntários, que se associavam aos monastérios para

auxiliar os padres e os monges no ritual para os mortos. Além de servir como modelo

de uma nova forma de piedade, esse trabalho de ajudar os clérigos era realizado,

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também, com a intenção de receber o benefício do acesso às orações que, ao longo

da história, eram reservadas apenas aos monges.

Neste processo, houve uma clericalização da morte, termo instituído por Ariès

(2014, p. 243), significando que “o adeus dos vivos em torno do túmulo é apagado, se

não substituído, por uma massa de missas e de orações no altar”. As finalidades das

obras de misericórdia, objetivos de ação dessas irmandades, ficavam marcadas nos

altares das capelas estabelecidas nas igrejas e que pertenciam àquelas associações.

Elas são muito significativas por conta da tradição escriturária e pela preocupação de

cultuar a morte, deixando os defuntos em primeira instância, nas mãos dos

eclesiásticos. Esta crença da prática da caridade, obras de misericórdia, é explicada

da seguinte forma:

A iconografia das Obras de Misericórdia provém da parábola do Juízo Final no Evangelho de Mateus, fonte principal, como vimos no Capítulo 3, da escatologia da baixa Idade Média. “Quando o Filho do Homem vier em sua majestade sentar-se no trono no meio das nações reunidas, separará as ovelhas dos bodes.” Às ovelhas, colocadas à sua direita, o rei dirá: “Vinde, ovelhas de meu Pai, tomai posse do reino que vos foi preparado desde a origem do Mundo. Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber; era um estrangeiro [hospes] e me acolhestes, nu e me vestistes, doente e me visitastes, prisioneiro [in carcere] e viestes me ver”. As primeiras representações do Juízo Final tinham deixado “em branco” essas cenas comoventes a tal ponto que a iconografia ainda se sustentava no grande sopro do final dos tempos. (ARIÈS, 2014, p. 244).

Pinturas escatológicas da Idade média eram organizadas pelas irmandades e

retratavam cenas nas quais mendigos, peregrinos e miseráveis recebiam os devidos

cuidados na intenção de reconhecer a própria imagem de Cristo. A única ilustração

que não fazia parte das exposições dos altares e dos vitrais das igrejas era a de Cristo

atrás das grades de uma prisão. Este tipo de pensamento consistia em perceber o

“lado do bom homem que dá dinheiro ao carrasco para suavizar a tortura, ou que dá

de beber e de comer aos condenados no pelourinho” (ARIÈS, 2014, p. 245).

A motivação de cultuar a morte para a autoafirmação dos defuntos perante o

Além, estava em primeiro lugar. A confraria garantia as orações aos mortos, bem

como enterrava-os em seus sepulcros, que eram fixados no piso das capelas e que,

por isso, o afiançamento dos cultos para que as almas pudessem alcanças o descanso

eterno com mais facilidade.

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Coe (2005) confirma que ser enterrado nas igrejas, a fim de facilitar a ascensão

ao céu, era uma crença surgida na idade média e que se expandiu até o século XVIII.

No entanto, Pagoto (2004) diz que esse tipo de ação se estendeu até o século XIX.

Acreditava-se que o morto somente ressuscitaria no juízo final se estivesse enterrado

próximo à imagem de algum santo dentro da igreja, isto é, havia a crença de que

quanto mais próximo o corpo ficasse de uma imagem de santo, mais possibilidades

tinha a alma do defunto para alcançar a salvação eterna.

Essa devoção aos santos era fundamental já que o culto aos mortos se tornou

o principal objetivo das irmandades. Os santos eram considerados excelentes

advogados, principalmente, àqueles que tinham certeza de sua passagem pelo

purgatório. Os santos e suas respectivas irmandades eram sempre mencionados nos

testamentos, a fim de que pudessem ser um elo entre o céu e a terra, por ser esse

tipo de intercessão uma ajuda muito importante para o alcance do Reino dos céus.

Além disso, Ariès (2014) destaca que todos aqueles que criam e descansavam

na paz da Igreja, eram considerados “santos”; por isso, não precisavam temer o juízo

final que, desde o século XII, povoava a memória coletiva religiosa com grandes

dramas escatológicos.

A prática de se enterrar o morto no chão da igreja nos mostra que somente as

pessoas mais abastadas conseguiam uma aproximação junto à mater eclesiae. Essa

observação está no fato de que apenas as pessoas que podiam pagar as

mensalidades eram convidadas a participar, ou seja, na prática, o candidato deveria

possuir uma condição socioeconômica para ter o direito ao acesso a uma irmandade.

Além disso, o espaço físico da igreja foi ficando disputado, porque não

comportava todos os finados de posses. Era uma questão de prestígio social. Para

resolver isso, muitos fiéis que detinham bens contentavam-se em ser enterrados nas

imediações do templo sagrado.

“O pobre era enterrado onde morria, nem sempre em terra da igreja, pelo

menos antes do século XVI. Foi por essa razão que as irmandades se encarregaram

de amortalhá-lo com suas orações.” (ARIÈS, 2014, p. 247). Dessa forma, eis o

segundo motivo pelo qual as irmandades seguiam em suas ações: a assistência aos

pobres, pois como a miséria os atrapalhava de conseguir as intercessões espirituais,

cabia àquela entidade laica de intenções religiosas, a assistência no momento da

morte e no enterro dos pobres.

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Assegurar os rituais fúnebres pomposos das paróquias era a terceira motivação

para a existência da irmandade, na idade média. As irmandades se tornaram

tradicionais instituições da morte por causa das realizações e organização das

exéquias, com ênfase especial aos cortejos.

Essas preocupações das irmandades com a preparação para a morte, o

cuidado com os rituais fúnebres, as recomendações do discurso testamental e a

assistência aos pobres eram ações, que ajudariam as almas, principalmente “aquelas

que mais precisarem”, como diz uma das orações do rosário, ou no terço dele, feita

em ambientes com práticas católicas. Para que possamos entender o porquê desses

cuidados, precisamos conhecer a origem de um espaço chamado purgatório que se

apresentava como um terceiro lugar surgido a partir das oposições céu e inferno.

1.4.3 O Testamento e as irmandades no século XIX em Passos

As marcas culturais da sociedade delineadas pelos testamentos de Passos,

MG e lugares circunvizinhos, no século XIX, se mostram, quando é possível encontrar

neles, a declaração de que o testador participava de muitas irmandades.

No caso passense, figuravam: Irmandade do Rosário (dos homens pretos e dos homens brancos); Irmandade do Santíssimo Sacramento; Irmandade do Senhor dos Passos, e Irmandade de Nossa Senhora do Carmo (ou do Monte Carmelo), sediada em São João del Rei, que foi uma das mais poderosas da região, além de outras. (GRILO, 2003, p. 3)

O mesmo autor registra que há determinações expressas nos testamentos

passenses que concedem aos herdeiros do testador ou mesmo aos seus

testamenteiros, a obrigação de quitar os débitos com as irmandades das quais

pertenciam. Além disso, era comum a menção de mandar celebrar um número de

missas com o corpo presente, conforme a quantidade de padres que estivessem

presentes naquela ocasião. O sujeito testante também detalha aos testamenteiros, o

número de missas, que deveriam ser rezadas, após a realização do funeral, contendo

o nome do celebrante, o valor da esmola para cada celebração, as intenções de missa

para outras almas etc. Conforme a lei expressa no título I das Constituições Primeiras,

todos tinham que usar os seus inventários e testamentos, para que pudessem

quantificar as missas, que deveriam ser celebradas após a morte e dividi-las entre os

santos de devoção.

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Isso acontecia porque havia uma preocupação grande com o destino da alma,

haja vista a concepção católica do século XIX sobre céu, inferno e purgatório.

Acreditava-se que, após a morte, poucos conseguiriam ir diretamente para o céu, ou

seja, apenas os santos e os puros de coração. Dessa forma, restava para a maioria

dessas almas, o purgatório, que era considerado um lugar de purificação, no qual o

pecador arrependido de seus pecados esperava pelo julgamento da Corte Divina. A

partir disso, é possível compreender o porquê dos pedidos insistentes aos vivos, para

que mandassem rezar muitas missas em favor do testador na hora de sua partida.

Para isso, as orações realizadas nos oito dias após a morte eram cruciais para o

defunto porque sua alma poderia alcançar a graça de ter os pecados perdoados pelo

Supremo Tribunal Divino.

Ademais, a necessidade de anunciar a morte de alguém, principalmente da

parte mais abastada da sociedade, fez com que surgisse a ideia de usar os sinos das

Igrejas, para que os ricos pudessem confirmar suas posições privilegiadas na

sociedade. Em sua origem primeira, os sinos eram usados para avisar a população

de alguma ameaça. O fato de avisar um novo falecimento gerou um incômodo para

todos, pois o uso dos sinos tornou-se exagerado. Assim, a Igreja teve que criar uma

regulamentação, para que o abuso não continuasse. Vejamos um trecho que consta

nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:

Justamente se introduzio na Igreja Catholica o uso, e signaes pelos defuntos; assim para que os fiéis se lembrem de encommendar suas Almas a Deos nosso Senhor, como para que se incite, e avive nelles a memória da morte, com a qual nos reprimimos, e abstemos dos pecados. Porem porque a vaidade humana, e outros menos piedosos respeitos, tem introduzido neste particular alguns excessos; para que daqui em diante os não haja, ordenamos, e mandamos, que nisso haja toda aquella moderação que a prudência Cristhã, e religiosa pede. (...). (CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS, 1853, p. 291).

Em sua continuidade, o artigo 828 discorreu sobre o uso dos toques de acordo

com alguns critérios: três sinais breves e distintos deveriam ser dados, quando morria

um homem. Quando falecia uma mulher, dois sinais. Na ocorrência fatal de um menor

de sete até quatorze anos, para ambos os sexos, que o documento expressa como

macho e fêmea, um sinal apenas deveria ser dado. Os sinais deveriam ser repetidos

na hora do cortejo fúnebre e, também, no momento do sepultamento. Em suma, para

os homens, não poderia passar de nove sinais. Para as mulheres, seis sinais e para

as crianças menores, entre sete até quatorze anos, três sinais.

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Por se tratar de algo oriundo da cultura e costume do povo, não há como saber,

se as regulamentações da Igreja foram bem aceitas, naquela época, haja vista as

muitas cidades do interior sul-mineiro, que utilizam, em nossos dias, este recurso

como algo marcante em funerais.

Com os elementos registrados oficialmente por meio de testamentos, inferimos

que a Igreja se tornou a base institucional e estrutural da formação da sociedade

passense do século XIX. Conforme Grilo (2003), os patrimônios iniciais dos arraiais

eram doados aos santos padroeiros. Além disso, a religião católica organizava as

funções sociais dos locais em formação.

1.5 O purgatório: a origem do terceiro local

Vovelle (2010) relata que ao apresentar o seu estudo sobre as almas do

purgatório, proposto na obra Vision de la mort et de l’au-delà en Provence d’après les

autels des âmes du purgatoire (XVe-XXe), edição de 1970, por meio de investigações

em igrejas provençais, para duas autoridades no assunto, padre De Dainville e o

cônego Platelle, foi admoestado sobre o estado raso de sua pesquisa porque suscitou

o purgatório a partir do século XV, apenas. Os pareceres daqueles eclesiásticos

salientaram a necessidade de consulta nos dicionários e enciclopédias da fé católica,

pois, apontaram que, desde a Igreja primitiva, existe a oração aos mortos, bem como

citaram São Paulo que alerta os cristãos a passarem pelo fogo purificador, e Santo

Agostinho que trata da mesma questão. Além disso, era preciso ir às fontes do antigo

testamento e de muitos padres da Igreja.

Com isso, Vovelle, alguns anos depois, conseguiu acesso à obra O nascimento

do purgatório, de Le Goff (1981), tendo acesso, dessa forma, a subsídios que

respondessem as suas indagações e que pudessem abranger o imaginário sobre o

purgatório com método moderno e fora dos moldes do pensamento escolástico.

Conforme Ariès (2014), uma nova concepção na linguagem da Igreja sobre o

medo da condenação estava surgindo em novas versões das celebrações litúrgicas.

A temeridade em relação ao inferno ainda prevalecia, como nos aponta Ariès nestes

textos visigóticos sobre o dia do Juízo Final:

“Arranca as almas dos repousantes do suplício eterno. ” “Que sejam libertos das cadeias do Tártaro. ” “Que sejam liberados de todas as dores e sofrimentos do Inferno.” “Que ela seja arrancada às prisões do Inferno [ergastulis].” “Que lhes seja concedido escapar ao castigo do Juízo, aos ardores do fogo.” (ARIÈS, 2014, p. 200-201).

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Entretanto, havia um sentimento de confiança de que Deus pudesse considerar

a possibilidade de não deixar o crente para sempre sobre o poder de Satanás.

Para aguçar ainda mais o imaginário popular, configurações terríveis foram

colocadas nos funerais e se conservam até os dias de hoje:

A missa fúnebre romana pertence ainda ao fundo mais antigo de confiança e de ação de graças, com o Réquiem [Requiem aeternam dona eis Domine]. Do mesmo fundo provêm também as antífonas como In Paradisum e o Subvenite. Em compensação, as orações da absoute, que é, como vimos, a única cerimônia religiosa antiga celebrada em presença do corpo e sobre o corpo – o Libera -, se prendem a essa segunda camada, já discretamente presente nos textos visigóticos: Não abras processo para teu servidor [...] que a graça lhe permita escapar ao castigo da justiça [...]. Livra-me, Senhor, da morte eterna [...]. Tremo e temo quando chega a inspeção das contas [discussio], quando a cólera for se manifestar. Dia de cólera, aquele dia. (ARIÈS, 2014, p. 201).

Estes tipos de textos evocam o Juízo e difundem a ideia de clérigos e monges

de que a condenação era algo muito provável, uma vez que o formato dessas orações

é sombrio e demonstra desespero. Esta situação da incerteza da salvação se tornou

tão insuportável que “descobriam-se e desenvolviam-se meios de preveni-la, na

esperança de comover a misericórdia divina, mesmo depois da morte.”. (ARIÈS, 2014,

p. 202). Para isso, deveria haver a intercessão dos vivos pelos mortos que, por muito

tempo, foi uma ideia por onde pairavam dúvidas acerca de sua implementação visto

que se imaginava ser impossível mudar o julgamento de Deus e com isso, haveria um

abrandamento (mitigatio) na sina do censurável. Para confirmar isso, Vovelle aponta

que

Se os padres gregos dos primeiríssimos séculos já haviam debatido acerca desses pontos, foi Santo Agostinho, no século V, quem primeiro contribuiu de maneira decisiva na definição, não de um local, mas das penas purgatórias, entre a morte e a ressureição final para os pecadores, que poderiam ser aliviadas pelos sufrágios dos vivos. Quadro de reflexão que os padres e os espirituais da Alta Idade Média, da Irlanda à Inglaterra ou da Gália, contribuíram para enriquecer, sem, no entanto, sair de uma aproximação real. (VOVELLE, 2010, p. 27)

Ariès (2014) confirma que a admissão dessa definição se confirmou com a

representatividade de Gregório, o grande, papa em 590, quando tal pensamento sobre

a entrega dos absolutamente maus e absolutamente bons, depois da morte, às

chamas do purgatio, e não ao fogo do inferno.

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Conforme Vovelle (2010), o teólogo parisiense doutor Pierre le Mangeur foi o

responsável por usar o termo purgatorium (purgatório), em 1170, originado, segundo

Cunha (2010), do latim medieval que tem como raiz porgar XIV / do latim purgare

(purgar - purificar, limpar, remir).

De acordo com Vovelle (2010), por meio do concílio de Lyon, em 1274, foi

promulgado, de forma inédita, o dogma do purgatório, a partir de uma memória

coletiva escatológica, própria da idade média, que reconhecia somente dois espaços:

paraíso e inferno. Apenas para confirmar o já foi dito, nesta concepção, só havia lugar

para os cristãos puros e os impuros. A confusão sobre a questão dos espaços era

legítima, já que havia indagações sobre o lugar daqueles que estavam entre a pureza

e a impureza, ou seja, aqueles cristãos que eram bons, mas não totalmente. Tal

preocupação com a definição de um terceiro local era proveniente da noção que se

tinha da aproximação do final dos tempos. Dessa forma, na baila de Le Goff (1981),

vemos a introdução de um conceito de categoria intermediária entre céu e inferno,

bons e maus que substituiu uma concepção de julgamento individual onde havia um

sistema binário - ou o paraíso ou o abismo. Isso introduziu, conforme o autor, “o tempo

humano na economia da salvação”.

Houve considerações constantes sobre esse novo local advindas de vários

teólogos, entre eles, Tomás de Aquino. A Igreja sempre teve agentes que

continuavam os estudos e, como isso, delinearam sobre o purgatório. Por

consequência, séculos depois, em 1439, no concílio de Florença, o debate sobre este

assunto foi encerrado com a proclamação definitiva do dogma do purgatório.

1.5.1 Purgatório: um mundo povoado de aparições

Segundo os estudos de Vovelle (2010), no século XII, os monges

enclausurados viviam sonhando com os aparecimentos que retratavam as visões

imagéticas sobre o purgatório. Na Irlanda havia uma visão do Além, chamada de

Tnugdal ou Túndalo que viera, conforme Zierer e Messias (2011), da vida

contemplativa e do privilégio de acesso ao mundo erudito por meio do conhecimento

das letras que aqueles monges possuíam. Para que os cristãos pudessem ficar

atentos às atitudes no mundo para pleitearem um espaço no paraíso, os monges

produziam compêndios educativos que, entre outros temas, relatavam as viagens

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imaginárias que tratavam do inferno, do purgatório e do paraíso. Estes manuais

cristãos pedagógicos foram muito difundidos na Europa porque

Na perspectiva da hierarquização eclesiástica, os monges encontram-se no patamar social mais elevado. Eles buscam lugares isolados para refletir e contemplar a Deus. Por esse motivo eram considerados os mais puros da sociedade e próximos dos anjos. (ZIERER; MESSIAS, 2011, p. 71)

A Visão de Túndalo foi escrita no século XII por um monge irlandês que

pertencia à ordem de Cister. A história dessa viagem imaginária é protagonizada pelo

cavaleiro pecador Túndalo que foi destacado por Deus para ser viajante até o Além,

passando por regiões infernais e celestiais que estavam na crença do judaísmo e do

cristianismo. Terra e Leite (2011) destacam que nesta narrativa de Túndalo estão

contidas as manifestações culturais populares da idade média e que ela não se

interessa pelos ensinamentos da filosofia e da teologia advindos dos grandes

pensadores ocidentais e dos sínodos da Igreja Católica. O que se faz presente

naquelas histórias é a preocupação constante com os apontamentos feitos à

população, inclusive com ameaças e favorecimentos, para que ela pudesse sempre

privilegiar a espiritualidade em detrimento dos prazeres do mundo, haja vista a

aproximação da morte.

Zierer e Messias (2011) salientam, ainda, que a história de Túndalo possui uma

interdiscursividade com narrativas anteriores e citam uma do século VIII, escrita pelo

monge Beda, anglo-saxão que, segundo o site didascalion, por ter tido como mestres

os monges irlandeses do monastério de Jarrow, apresentou a cultura céltica dos

monastérios irlandeses do século VII. Conforme Paula (2011), a narrativa dele, A

viagem de Drythelm, conta a história de um homem íntegro, Drythelm, que morre, mas

de forma repentina retorna a viver. Por isso, ele distribui a riqueza que possuía entre

os familiares e os pobres, retirando-se para um mosteiro. Como foi dada a ele a

chance de viver novamente, deveria ser uma vida diferente daquela que havia tido, de

acordo com os preceitos da Igreja. No mosteiro, Drythelm teve uma visão onde em

uma viagem, visita lugares “estranhos” e “desconhecidos” com a companhia de um

guia anônimo. No imaginário da primeira fase da viagem havia fogo e gelo que

compunham a gangorra do sofrimento, seres bizarros com cheiros que causavam

repulsas. Na segunda parte da viagem, chegaram na boca do inferno:

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Globos de fogo com almas dentro que desciam e subiam de um lugar abaixo da terra; (...). Nesse lugar estavam as almas de quem não havia confessado seus pecados. Mas ali não era o inferno. Quando a escuridão parecia dominar a existência de Drythelm, seu Guia o leva a um lugar repleto de jardins e flores. Era um lugar aprazível aos olhos, segundo relato do próprio Drythelm. Ele também conheceu pessoas que viviam nessa parte da sua viagem e que traziam uma sensação de paz. Sua visão das pessoas era intermediada por um muro. Esse lugar aconchegante era “habitado” por pessoas que fizeram boas obras, mas ainda não eram suficientemente perfeitas para serem admitidas imediatamente após a morte no Reino dos Céus. O Guia, porém, informou a Drythelm que aquele lugar não era o céu. (PAULA, 2011, p. 217)

Após isso, Drythelm resolveu se autoflagelar para obter a honra de ser acolhido

pelo Pai Celestial. Dessa maneira, tornou-se um exemplo para a sociedade medieval

porque suas atitudes eram consideradas agradáveis aos olhos de Deus.

A partir desse e de outros modelos de história com o mesmo propósito,

podemos considerar que foram os precursores do pensamento sobre o purgatório já

que havia a necessidade de um local que elaborasse o luto como forma de fazer

permutas para o alcance do Reino do Céus.

1.5.2 O purgatório de São Patrício

Ainda no levantamento de narrativas que contemplam as tradicionais viagens

que passam por caminhos que contém o abismo total, a esperança do perdão divino

e o regozijo celestial, Vovelle (2010) aponta uma descrição que ultrapassou o sucesso

dos outros relatos mencionados. Conforme Navarro (2011), trata-se da narração do

purgatório de São Patrício, escrita entre 1180 e 1184, cuja autoria é imputada a Henri

de Saltrey, monge cisterciense inglês de Huntingdonshire que conta no Tractatus de

Purgatorio Sancti Patricii, a história de São Patrício (o cavaleiro Owein/Owain) que faz

a viagem em vida ao purgatório, inferno, paraíso terrestre e céu (parcialmente) ao

adentrar uma caverna para purificar os mais variados tipos de pecados cometidos,

tais como roubo, latrocínio, furto, saques etc.

O sucesso dessa narrativa pode ser explicado pela densidade de volumes e

línguas que abordam tal história, é o que nos revela o fragmento a seguir:

El Tractatus se conserva en 30 versiones en casi todos los idiomas europeos. En la actualidad, se disponen de 150 manuscritos del texto latino. Uno de las versiones más populares es la versión anglo-

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normanda de La Leyenda del Purgatorio de San Patricio por Marie de France. Una versión versificada en inglés medio se conserva en el manuscrito Auchinleck (Biblioteca Nacional de Escocia: Advocates´ MS 19.2.1 (Auchinleck), fols. 25r-31v. [c. 1330-40]6. (NAVARRO, 2011, n.p.)

A versão latina desse tratado é atribuída ao abade Hugh de Sartris na qual ele

aborda temáticas teológicas sobre o outro mundo, em seis partes que compõe a

introdução. Além disso, há relatos sobre o ceticismo dos irlandeses em relação aos

ensinamentos de São Patrício, mostra atitudes pagãs praticadas na Irlanda, conta

como Cristo revela o Purgatório de São Patrício ao santo, descreve sobre a história

anterior sobre o purgatório e aponta quais são os rituais praticados pelos peregrinos

antes de entrar no Purgatório de São Patrício.

Navarro (2011) menciona que nos dias de hoje, supostamente, o lugar onde

está a entrada para o Purgatório de São Patrício está localizado em Lough Derg,

County Donegal na Estação Island, perto da Isla de los Santos, na Irlanda do Norte:

Ulster. No entanto, segundo a lenda, a entrada está fechada desde o século XVI.

No local, há uma montanha onde foi construída uma torre e uma basílica na

qual são realizados os ritos religiosos que suprem a falta da ‘viagem’. São ritos

compostos de orações

vigilias, y ayunos durante tres días. La peregrinación al Purgatorio de San Patricio tiene lugar a principios de Junio y finaliza el 15 de Agosto, día de la Asunción de la Virgen María. Tras la experiencia de tres días, los peregrinos salen renovados espiritualmente y fortalecidos en su fe7. (NAVARRO, 2011, n.p.)

Segundo a crença, todas as vezes que o demônio tentar incomodar um fiel por

conta dos pecados cometidos, ele deverá fazer o que São Patrício fazia: invocar o

nome de Jesus Cristo.

1.5.3 Origem da condição de sofrimento do purgatório

Apesar de haver, a partir do século XIII, conforme Vovelle (2010), uma

conceituação mais definida pela Igreja em relação ao purgatório, a tradição das

6 O Tratado é preservado em 30 versões em quase todos os idiomas europeus. Atualmente, 150 manuscritos do texto latino estão disponíveis. Uma das versões mais populares é a versão anglo-normanda de A Lenda do Purgatório de São Patrício, de Marie de France. Uma versão versificada em inglês médio é preservada no manuscrito de Auchinleck. 7 Vigílias e jejue por três dias. A peregrinação ao Purgatório de São Patrício acontece no início de junho e termina no dia 15 de agosto, o dia da Assunção da Virgem Maria. Depois da experiência de três dias, os peregrinos saem espiritualmente renovados e fortalecidos em sua fé.

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narrativas que embalavam as viagens ainda continuavam mesmo em um estado de

sentimento de que se tratava de coisa arcaica. As ordens religiosas mendicantes,

como a dos Franciscanos, Dominicanos, Carmelitas e outras ordens, praticavam

sermões que eram abundantes em aparições de assombrações alusivas ao

purgatório.

Em 1260, o bispo de Gênova, Jacopo da Varazze, escreveu um agrupamento

de biografias de santos, tendo como objetivo propalar preceitos morais para conseguir

um número maior de fiéis para a Igreja Católica. Esta compilação alcançou enorme

sucesso entre os religiosos que a utilizavam como referência para os sermões deles,

na Idade Média.

De acordo com Rocha (1999), a Divina Comédia – Purgatório, de Dante

Alighieri, abarca as doutrinas patrísticas para embasar sua crença referente ao

purgatório que foi consolidada no início da Idade Média com Santo Agostinho e,

posteriormente, São Tomás de Aquino. Nela, ele trata o purgatório é tratado como

uma montanha onde é preciso subir e vencer as dificuldades dela para ter o

merecimento do céu. A confirmação desses obstáculos está presente no excerto

abaixo:

O purgatório está separado do mundo habitado por um imenso oceano, numa ilha cujo acesso é dificultado por um mar agitado e tempestades que afundam qualquer embarcação que tente se aproximar, como o navio de Ulisses, narrado no Canto XXVI do Inferno. Uma vez na ilha, é preciso ter fôlego de alpinista para escalar os rochedos que levam à entrada do purgatório. A porta é estreita e fechada com duas chaves. Um anjo armado com uma espada guarda a entrada. (ROCHA, 1999, n.p)

Esse purgatório de Dante, segundo Vovelle (2010), dá novos ares a esta

temática porque ele a expressou de forma literária e, com isso, pode colocar toda a

sua habilidade para se inspirar e escrever, a partir disso, sobre a invocação dos sete

círculos do purgatório que, conforme Rocha (1999), possuem forma de terraços

apertados na montanha. Ali, os pecados, de acordo com a gravidade deles, são

purgados. São nove áreas de purgação na montanha. “Duas ficam antes da entrada

guardada pelo anjo. As outras sete, que representam os sete pecados capitais, ficam

entre a porta e o pico da montanha onde está o Paraíso Terrestre ou Jardim do Éden.”

(ROCHA, 1999, n.p.)

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Quanto mais se escala a montanha, mais os pecados vão perdendo a força e,

por isso, decrescem em gravidade. Uma parede de fogo é que separa o Purgatório do

Paraíso Terrestre e para ter o direito da tentativa de transpô-la, a pessoa pecadora

deve se arrepender em vida, não importando a gravidade dos pecados dela.

Os padres Alexandrinos no século II, faziam comentários sobre esta questão

do purgatório, tendo como referência a bíblia, “Eu garanto: daí você não sairá,

enquanto não pagar até o último centavo” - Mateus, 5, 26 (BÍBLIA, 1990, p. 1.243).

Santo Agostinho confirmou isso nas obras dele e, dessa forma, a Igreja agregou este

pensamento as suas doutrinas.

1.5.4 O Submundo da mitologia antiga

Embora Vovelle (2010) tenha relatado, a partir dos conselhos de autoridades

eclesiásticas, sobre a necessidade de se considerar a preocupação da Igreja primitiva

com a oração pelos mortos, Ariès (2014) salienta que havia uma tradição pagã que

cultuava oferendas aos mortos para acalmá-los e, dessa forma, impedi-los de voltar

ao mundo dos vivos. Esta ação não continha a intenção de atenuar o sofrimento

causado pelo mundo do inferno. O autor nos revela, ainda, que a não ser pelo texto

do antigo testamento que narra o seguinte:

38Após reunir o seu exército, Judas chegou até a cidade de Odolam. No e sétimo dia, depois de se purificarem conforme o costume, cele-braram o sábado. 39No dia seguinte, como a tarefa era urgente, os homens de Judas foram recolher os corpos daqueles que tinham morrido na batalha, a fim de sepultá-los ao lado dos parentes, nos túmulos dos antepassados.40 Foi então que encontraram, por baixo das roupas de cada um dos mortos, objetos consagrados aos ídolos de Jâmnia, coisa que a Lei proibia aos judeus. Então ficou claro para todos o motivo da morte deles.41 E todos louvaram a maneira de agir do Senhor, que julga com justiça e coloca às claras as coisas escondidas.42Puseram-se em oração, suplicando que o pecado cometido fosse totalmente cancelado. O nobre Judas pediu ao povo para ficar longe do pecado, pois acabava de ver, com seus próprios olhos, o que tinha acontecido por causa do pecado daqueles que tinham morrido na batalha. 43Então fizeram uma coleta individual, reuniram duas mil moedas de prata e mandaram para Jerusalém, a fim de que fosse oferecido um sacrifício pelo pecado. Ele agiu com grande retidão e nobreza, pensando na ressurreição.44 Se não tivesse a esperança na ressureição dos que tinham morrido na batalha, seria coisa inútil e tola rezar pelos mortos. 45Mas, considerando que existe uma bela recompensa guardada para aqueles que são fieis até à morte, então esse é um pensamento santo e piedoso. Por isso,

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mandou oferecer um sacrifício pelo pecado dos que tinham morrido, para que fossem libertados do pecado - 2 Macabeus 12, p. 38-46 (BÍBLIA, 1990, p. 631-632)

A tradição judaica não conhecia tais ações em relação aos defuntos. Assim,

esse texto é o primeiro que a Igreja cogitou sobre a origem das orações pelos mortos.

Ele é considerado ser do século I a.C. A apreciação moderna difere nessa narrativa

dois núcleos:

Uma, antiga, em que a cerimônia era destinada a expiar o pecado de idolatria cometido pelos mortos: encontraram-se sobre seus corpos amuletos pagãos. A outra, que seria um acréscimo, faz entrever a ideia de ressureição: ressuscitarão apenas aqueles que forem liberados dos seus pecados. Era essa a razão por que os sobreviventes suplicavam ao Senhor. (ARIÈS, 2014, p. 194)

Tanto para os judeus, quanto para a Igreja, quando se fala em cultismos

considerados pagãos é porque estão atrelados a crenças politeístas. Dessa maneira,

podemos nos remeter às explicações sobre morte advindas da mitologia antiga que

influenciou a cultura ocidental onde há traços que revelam o porquê de muitas ações

do homem hodierno. Para ficarmos cientes dessas influências, consideraremos os

mitos que traçam um mapa do submundo e as viagens que ocorriam nele.

1.5.5 Hades: o senhor do Submundo

Conforme Sears (2015), Hades pertencia ao grupo dos seis deuses primordiais,

entre os doze do monte Olimpo. No entanto, ele não era sociável por conta da

supremacia que exercia por governar o Submundo que era o lugar onde as almas ou

sombras ficavam depois da morte. Os domínios do Olimpo foram sorteados entre os

deuses, Hades ficou com o reino dos mortos e isso veio ao encontro de como ele se

portava: era recluso, sombrio e tenebroso. Todavia, ainda que os antigos o

descreviam como um deus frio, não atribuíam a ele, maldade. Hades gostava de

solidão. Por isso, era o rei supremo do Submundo porque a maioria dos deuses

ficavam longe de lá. Até o próprio Zeus não o incomodava.

A mitologia diz que na única vez em que esteve no mundo dos mortais,

conheceu a filha de Deméter e Zeus. Ficou encantando com tanta beleza de

Perséfone que a raptou e a levou consigo para o mundo dos mortos. Os mitos dizem

que Deméter, deusa da terra, ficou desesperada por causa do desaparecimento da

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filha e a procurou no mundo inteiro. Por conta disso, as colheitas foram se perdendo

havendo fome e muito sofrimento para as pessoas, surgindo o primeiro inverno no

mundo. Zeus convocou Hermes para ir ao Submundo e persuadir Hades a deixar que

Perséfones voltasse para casa. Como era uma ordem de Zeus, Hades disse que a

cumpriria, mas por outro lado, era impedido a fazer tal ação porque utilizou a lei das

todo-poderosas Moiras que rege a proibição de consumir alimento do Submundo sob

pena de ficar lá para sempre. Dessa forma, Hades instigou Perséfone a comer

sementes de romã. Foi dessa forma que a amada ficou com ele porque nem mesmo

Zeus poderia contrariar as leis das Moiras.

Zeus não ficou parado com isso e preparou um acordo no qual Perséfone ficaria

ao lado de Hades durante quatros meses e os outros oito meses, com a mãe. Alguns

mitos dizem que a quantidade de meses foi pareada, ou seja, seis e seis. Esse mito

explica o porquê das mudanças das estações. Quando Perséfone está ao lado da

mãe, no mundo dos vivos, a natureza faz brotar as flores, os frutos. Quando ela está

no mundo dos mortos, com o marido Hades, tudo murcha e morre.

1.5.6 As geografias do Submundo

O Submundo foi dividido em três regiões pela mitologia grega. Uma para os

mortais excepcionais, outra para o povo comum e, por último, para os malvados. A

primeira região, chamada de Elísio ou Campos Elísios, era um paraíso do qual

homens e mulheres que se destacaram em vida, aproveitavam com conforto e

felicidade constantes. A segunda, Campos de Asfódelos, era a região em que a

maioria das pessoas habitavam porque se tratava de um lugar que não era bom, nem

ruim. Lá, as sombras faziam as mesmas atividades que realizavam na vida no mundo

dos vivos. Muitas vezes, elas não detinham a individualidade delas porque as

lembranças não existiam naquele lugar. Por isso, habitavam e realizavam os afazeres

de modo automático, como se fossem máquinas.

O Tártaro, conhecido como o verdadeiro inferno, era a terceira região do

Submundo. Um lugar temido por todos, inclusive pelos deuses, por ser sombrio e

escuro. A localização dele era tão profunda que se comparava com a distância entre

a Terra e os céus. Os mortos perversos eram castigados pelas Erínias que utilizavam

chicotes e cobras para açoitá-los, bem como colocavam alimentos diante das sombras

famintas para que as mesmas sofressem por não poder tocá-los.

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Há alguns nomes que são utilizados para se reportar ao Submundo: Hades,

Terra dos Mortos, Regiões Inferiores, Casa de Hades e Regiões Infernais. Para os

gregos antigos, falar o nome de Hades ou sobre o reino dele era uma atitude que

trazia muito azar.

Mesmo com a divisão de regiões e os nomes que se referiam ao Submundo,

ainda havia outras visões da Casa de Hades que nos levam a conhecer rios que

circundavam a Terra dos Mortos. As primeiras imaginações mitológicas acreditavam

que o Submundo estava no limítrofe da terra dos vivos com o traçado da costa do

oceano. Posteriormente, os mitos diziam que a Terra de Hades situava-se abaixo da

terra. O Submundo era composto de várias entradas por meio de cavernas e lagos.

Sears (2015) demonstra aqueles rios que cercavam a Terra dos Mortos: Aqueronte,

era o rio da Dor; Cócito, do Lamento; Leite, do esquecimento; Fregetonte, rio do Fogo

e Estige, rio do Ódio.

Quando alguém morria, Hermes vinha recolher a sombra (ou alma) dessa pessoa para leva-la ao Submundo. Como era necessário cruzar um ou mais rios, a sombra precisava contratar os serviços de Caronte, o barqueiro dos mortos. Caronte não trabalhava de graça; exigia uma moeda como pagamento. Se um candidato a passageiro não pudesse pagar a taxa, ficaria condenado a vagar pelo litoral durante cem anos antes de poder efetuar a travessia. Mesmo depois de pagar e entrar no barco, as sombras tinham de fazer a maior parte do trabalho: elas remavam enquanto o barqueiro simplesmente guiava. (SEARS, 2015, p. 80).

Na antiguidade, as pessoas tinham o costume de colocar debaixo da língua do

morto, uma moeda, para que ele pudesse entregá-la ao barqueiro Caronte como

pagamento da travessia dos vários rios até chegar ao reino de Hades.

Do filme americano épico de guerra, “Tróia”, de 2004, dirigido por Wolfgang

Petersen, com roteiro escrito por David Benioff, baseado na Ilíada, de Homero,

destacamos o seguinte diálogo entre Heitor, príncipe de Tróia e o guerreiro mais forte

de lá, e Aquiles, o maior guerreiro da Ilíada e herói grego.

Heitor: - Eu vi este momento em meus sonhos. Farei um pacto com você, com os deuses como testemunhas. O vencedor permitirá que o derrotado tenha rituais funerários apropriados. Aquiles: - Não há pactos entre leões e homens (e tira o capacete). - Agora sabe com quem está lutando. Heitor: (tira o capacete também) – Achei que estivesse lutando contra você, ontem. (Heitor tinha matado Pátroco, primo (amigo) de Aquiles,

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que fingiu ser Aquiles usando o capacete, a armadura e a espada dele). - E gostaria que tivesse sido verdade. Mas, dei ao rapaz a honra que ele merecia. Aquiles: - Deu a ele a honra da sua espada! Vai perder seus olhos, suas orelhas e sua língua. Vai vagar pelo mundo dos mortos, cego, surdo e mudo. E todos os mortos saberão: “este é Heitor, o tolo que pensava ter matado Aquiles”8. (TRÓIA, 2004)

Fica claro que na adaptação da Ilíada para que fosse composto o filme, há

alguns momentos ilustrativos que diferem da obra escrita por Homero. Um exemplo

disso é que, diferentemente do que nos conta Sears (2015), no filme, as moedas são

colocadas nos olhos do cadáver e não debaixo da língua. Talvez, tenha sido o jeito

que os diretores cinematográficos encontraram para mostrar tal prática, já que seria

mais dificultoso mostrar isso em imagens. Todavia, conserva-se a questão da

preocupação dos rituais funerais, também chamados, de jogos funerais para que as

almas (sombras) não ficassem vagando no mundo dos vivos com sofrimento.

Tanto na Ilíada como no filme há a cena na qual Aquiles prende o corpo de

Heitor pelos pés e o arrasta com sua biga – carro de guerras de duas rodas, movido

por dois cavalos – até o lugar onde se localizavam os gregos. À noite, Príamo, pai de

Heitor, de forma escondida, vai ao acampamento dos gregos pedir a Aquiles o corpo

do filho. Aquiles se comove tanto com o apelo que atendeu ao pedido e prometeu uma

trégua até que fosse realizado o funeral adequado para Heitor.

1.6 A natureza jurídica dos testamentos

Mesmo que percebamos essa configuração histórica pautada na Igreja católica,

faz-se importante na constituição das condições sócio-históricas de produção, o

levantamento de como os testamentos deveriam ser materializados a partir da

observação das regras vigentes daquela época.

No Brasil, a história nos mostra que, no século XIX, as leis civis, com pequenas

modificações, eram provenientes de Portugal. Em 22 de dezembro de 1858, a

Consolidação das Leis Civis foi autorizada pelo Imperador D. Pedro II. Em seu título

III, capítulo IV que é nomeado Das formas dos testamentos, configura o testamento

desta maneira:

8 A transcrição, os detalhes contextuais e os destaques são meus.

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Artigo 1.053. O testamento é de quatro especies, á saber: § 1.º Publico, feito por Tabellião: § 2.º Cerrado, com instrumento de approvação: § 3.º Particular, escripto pelo testadôr: § 4.º Nuncupativo, ou feito de viva voz. (FREITAS, 2003, p. 621)

Para que o testamento público tivesse validade, deveria ser escrito pelo

tabelião no livro de notas e ser assistido por cinco testemunhas varões e maiores de

quatorze anos. As testemunhas, se soubessem e pudessem, podiam assinar com o

testador. No caso desse não saber escrever, uma testemunha podia assinar por ele a

seu pedido, mas, segundo Pagoto (2004) geralmente, o próprio tabelião assinava.

A validade do segundo tipo de testamento, o cerrado com instrumento de

aprovação, deveria ser escrito pelo testador ou por outra pessoa a que solicitasse,

inclusive o tabelião, depois de tê-lo aprovado. Se ocorresse de outra pessoa ter

escrito, o testador deveria assiná-lo. Contudo, se o testante não soubesse assinar, o

documento seria assinado pela pessoa que o escreveu.

O testador precisaria entregar ao tabelião o testamento perante cinco

testemunhas varões, maiores de quatorze anos. O tabelião, por sua vez, perguntaria

ao testador, diante das testemunhas, se realmente aquele se fazia um documento

valioso, bom e firme. Depois da confirmação, acrescentar-se-ia, no final do

testamento, o instrumento de aprovação.

Na circunstância de não ter espaço na última folha do testamento, para que

houvesse o instrumento de aprovação, o tabelião deveria inserir sua assinatura

pública e declará-lo no instrumento. Isso careceria das assinaturas das cinco

testemunhas e do testador, caso soubesse ou pudesse assinar. Em contrário, uma

das testemunhas poderia assinar por ele, desde que colocasse embaixo da assinatura

que fez aquilo por pedido do testante já que ele não sabia ou não podia fazê-lo.

O tabelião precisaria cerrar o testamento depois da conclusão do instrumento

de aprovação, bem como, todas as orientações tinham que ser seguidas a fim de que

o testamento pudesse obter validade. Além disso, o tabelião teria de declarar fé ao

especificar no instrumento.

Há uma nota em citação de rodapé esclarecendo que

Não resulta nulidade de não rubricar o Tabellião as laudas do testamento, não havendo lei que exija tal requisito; que aliás sempre se observa, e oferece uma garantia.

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Mas haverá nulidade, se alguma das cinco testemunhas não assignar o instrumento de aprovação, assignando á rogo dela alguma das outras. É solenidade essencial a assinatura de todas, como exige a Ord. L. 4º T.80 § 1º. (FREITAS, 2003, p. 628)

A lei era dura com o tabelião no descumprimento dessas regências, pois ele

perderia o ofício e sofreria sanções da lei. Ademais, o ato de aprovação seria

cancelamento.

O testamento particular, terceiro da lista, deveria ser feito pelo testador, senão,

a seu rogo, outra pessoa poderia cumprir tal ato, mas, para isso, o documento deveria

ser subscrito por cinco testemunhas varões, maiores de quatorze anos, de mais a

mais, o testador ou o escritor do testamento. O documento teria que ser lido perante

as testemunhas e, depois, assinado por elas. Também, deveria ser publicado em

juízo, após a morte do testador, citando as partes interessadas.

O quarto e último tipo de testamento era feito de viva voz ao tempo da morte.

Para que tivesse validade, fazia-se necessária a participação de seis testemunhas,

homens ou mulheres. Caso o testador se convalescesse da enfermidade, o

documento perdia seu valor.

1.6.1 As testemunhas

O artigo 1.063 prescreve que os homens menores de quatorze anos e as

mulheres menores de doze anos, não poderiam ser testemunhas. Além do mais, os

loucos, os filhos pródigos, os mudos, os surdos, os cegos, o herdeiro instituído e seus

filhos que ainda estão em poder dele, o pai que está em poder do filho herdeiro

instituído, os irmãos do herdeiro instituído, se estiverem sob o poder do pai deles,

também não poderiam ser testemunhas.

Segundo o artigo 1.064, o legatário, bem como aqueles que estivem sob o

poder dele, poderiam ser testemunhas. O legatário é aquele que recebe um legado,

isto é, ele foi escolhido. O herdeiro é aquele que recebe uma herança por força de lei.

1.6.2 A sucessão testamentária

O estatuto jurídico adotado para a composição de testamentos no Brasil da

segunda metade do século XIX, trouxe discursos que definiam como deveriam ser as

sucessões no caso de bens testados, de bens não testados e quando os testamentos

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eram considerados nulos. Pesquisar sobre isso é atestar se os discursos testamentais

de Passos e região do século XIX, seguiam fielmente o discurso jurídico instaurado

nas Consolidações de leis civis.

O capítulo II divulgou em seu artigo 993, aqueles que não podiam fazer

testamento que são os menores de quatorze anos, e as menores de doze; Os filhos-

famílias (menores), ainda que tivessem o consentimento dos pais; Os loucos e os

esbanjadores (pródigos); Os mudos e surdos de nascença; E os religiosos professos.

O artigo 994 diz que no testamento feito por loucos, quando são afetados por

loucura contínua, não é válido, mesmo que as disposições de últimas vontades

pareçam sensatas como se fossem de outra pessoa em estado normal. O artigo

posterior menciona que havendo intervalos lúcidos, o testamento teria validade nestas

voltas em estado de clareza, mas seria preciso constatar isso sem dúvidas. O

testamento feito antes da loucura era válido.

Nos artigos 996 e 997 falam que se há dúvidas em relação à feitura do

testamento em tempo de remissão da loucura, deve-se considerar o bom-senso no

texto. Se as disposições fossem razoáveis, deveria haver a presunção de que

tivessem sido compostas no tempo da lucidez momentânea.

Os religiosos seculares podiam testar livremente, mesmo em vida dos pais e

ascendentes, consta no artigo 998.

Há no artigo 1.005 a menção de que os filhos ilegítimos, sejam eles de qualquer

espécie, podem ser instituídos herdeiros por seus pais no testamento,

independentemente se há herdeiros descendentes e ascendentes, como explica o

artigo seguinte.

Para que os filhos ilegítimos tivessem direito à sucessão, quando não há filhos

legítimos, era necessário terem sido filiados pelo pai em testamento ou escritura

pública, conforme o artigo 1.007.

Sobre os herdeiros necessários, aqueles que são os descendentes (filho, neto

e bisneto), ascendentes (pai, avô, bisavô) e o cônjuge, os artigos 1.008 a 1.015 regem

que eles têm direito a duas partes dos bens do testador que só pode dar qualquer tipo

de direcionamento a partir da terça dele. A terça era a parte de que o testador

dispunha livremente.

Caso o testador não incluísse e nem deserdasse os herdeiros necessários,

mesmo sabendo da existência deles, deixando apenas a sua terça à disposição, por

uma instituição tácita, o testamento teria validade em relação à terça deixada. No

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entanto, na disposição de toda a herança, sem considerar conscientemente, herdeiros

necessários, o testamento perderia a validade quanto a sua instituição. Apenas aquilo

que era destinado a terça dele, teria valor.

Haveria a adoção dessa última parte para o caso de haver deserdação de

herdeiros necessários, sem declaração de causa legítima. No caso de haver tal

declaração, o herdeiro que fora instituído, deveria comprovar a legitimidade e

veracidade daquela causa expressa. Dessa forma, o testamento teria validade, em

contrário, o testamento seria considerado nulo e somente sua terça seria respeitada

em favor das disposições. Se herdeiros necessários fossem preteridos por ter havido

suposição de morte, o testamento não teria validade por completo.

A nulidade completa do testamento se daria caso aparecesse algum filho

legítimo depois do testamento feito, independentemente da ciência ou não desse filho.

Art. 1.016. São causas legitimas para deserdação dos descendentes por seus ascendentes (30): (Art. 982 § 4º) § 1º. Se os descendentes por qualquer modo attentárão contra a vida dos ascendentes, ou derão para tal fim conselho, favor, ou consentimento (31): § 2º. Se irosamente lhes-puzerão as mãos (32): § 3º. Se gravemente os-injuriarão, tanto mais em logar publico (33): § 4º. Se tivérem cópula carnal com a madrasta, ou concubina, do pai; ou com o padastro, ou mancebo, da mãi (34): § 5º. Se accusárão criminalmente aos ascendentes, ou deles denunciarão; com damno de suas pessoas, e bens (35): § 6º. Se os-impedirão de fazêr testamento (36): (Arts. 982 § 3º, e 1028 a 1031) § 7º. Se desamparárão os ascendentes, que cahirão em alienação mental, não lhes-prestando os socorros precisos durante a enfermidade (37): (Art. 982 § 7º) § 8º. Se a filha-famílias, antes de têr vinte e um anos, deixou-se corromper tendo cópula com algum homem (38): (Art. 982 § 8º) § 9º. Se o filho-familias em qualquer idade, e a filha-familias antes dos vinte e um annos, casarem sem consentimento dos pais, ou suprimento deste pelo Juiz na fórma do Art. 105 (39). (Arts. 101, 102, 103, e 982 § 8º). (FREITAS, 2003, p. 610-611)

Também havia leis que permitiam a deserdação dos ascendentes pelos seus

descendentes. No artigo 1.018 há a orientação para deixar sem direito os ascendentes

que tivessem procurado a morte dos descendentes, por qualquer motivo. No caso de

terem tido relações sexuais com a nora ou concubina do filho e, no outro lado, com o

genro ou mancebo da filha.

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A tentativa em impedir os descendentes em fazer o testamento, o esforço de

atentar contra a vida da mãe do filho ou vice-versa e o abandono de filho com

problemas mentais eram causas legítimas de deserdação também.

Outras prescrições em relação aos herdeiros estão expressas a partir entre os

artigos 1.022 e 1.031 e delineiam que os bens aforados, isto é, que se encontram no

foro, no conhecimento do juiz, também deveriam pertencer ao herdeiro instituído. Na

ocorrência de muitos herdeiros instituídos, não importa se colaterais ou estranhos,

todos deveriam entender-se nomeados, desde que não houvesse um retalhamento

de bens na partilha.

Se a parte da terça do testador estivesse destinado a outrem, os descendentes

ou ascendentes teriam o direito que obedecia a regra de sucessão constante no artigo

9799. Todos os herdeiros, especificados ou legítimos, tinham direito à posse civil dos

bens. Na condição de herança jacente, ou seja, de não haver herdeiro instituído ou

legítimo, nomeava-se um curador a fim de zelar e aguardar o aparecimento de um

herdeiro. Caso contrário, o juiz deveria decretar a arrecadação da herança. Isso

significa que o estado ou o município ficasse com aqueles bens.

A liberdade das disposições de últimas vontades tinha a proteção da lei. Não

era permitido que alguém fizesse qualquer tipo de coação no momento de o testador

fazer o testamento. O artigo 1.029 expressa que “Aquelle, que por meio de força,

ameaças, ou engano, impedir o testador de deixar herança, ou legado, á outrem,

pagará em dobro o prejuízo causado.” (FREITAS, 2003, p. 615)

Seria anulado o testamento em situações onde se provava que o testador

tivesse sido constrangido a fazer o testamento por força ou por ameaça. Do mesmo

modo, a nulidade prevaleceria caso o testador quisesse fazer revogação do

testamento e fosse impedido pelos herdeiros instituídos.

1.6.2.1 A sucessão em caso de não haver testamento

Testamento tácito é aquele que é considerado por conta da intenção do

falecido, ou seja, a pessoa morta por algum motivo repentino, faleceu e não deixou

testamento, ficou intestado. A essência em conhecer algumas dessas leis presentes

nas ordens jurídicas do século XIX está em entendermos o motivo de tanta

preocupação em morrer sem deixar a testamentaria.

9 “Na linha dos descendentes, e ascendentes, a transmissão da posse civil da herança verifica-se ao infinito em todos os grãos”.

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O artigo 959, do título III “Da herança”, do capítulo I “Da sucessão á intestado”

traz a sucessão na seguinte ordem: Aos descendentes; Na falta de descendentes, aos

ascendentes; Na falta dos anteriores, aos colaterais até o décimo grau por direito civil,

a saber, o irmão do falecido é colateral em segundo grau. O primeiro sobrinho (filho

do irmão do falecido) e o tio são colateral em terceiro grau. O segundo sobrinho e o

primeiro primo (filho do tio do falecido) são colaterais em quarto grau. E dessa forma

em diante até o décimo grau; Na falta de todos os anteriores, ao cônjuge sobrevivente

e em último lugar, ao estado.

O artigo 960 mostra a sucessão pela ordem dos herdeiros descendentes: os

filhos descendentes e os ilegítimos sucessíveis. Os primeiros possuem direito a

sucederem o pai (a mãe), mesmo que sejam filhos de mães distintas (pais distintos).

O procedimento para os filhos chamados ilegítimos é igual, desde que tenham sido

reconhecidos por escritura pública como filhos naturais, como diz artigo 961,

obedecendo o artigo 212.

O artigo 962 rege que na concorrência entre filhos naturais com filhos legítimos,

o documento de reconhecimento do pai, feito antes do casamento dele, era

indispensável para que os naturais possam ter direito à sucessão paterna. Em

contrário, no artigo seguinte consta que no caso de herança materna, os filhos naturais

poderiam ser admitidos na sucessão apenas com a apresentação da certidão de

batismo.

Sobre esta diferenciação entre o reconhecimento de filhos naturais de homens

e mulheres, há um comentário na lei que diz o seguinte:

Prov. n. 29 de 23 de Fevereiro de 1848, e Av. n. 279 de 17 de Dezembro de 1853. Como a Lei de 2 de Setembro de 1847 só trata de filiação paterna (Vid. Not. ao Art. 213), é forçoso conceder, que pelo nosso actual Direito os filhos naturaes, tenhão, ou não, sido reconhecidos por sua mãi, succedem á esta; ou sós, ou concorrendo com filhos legítimos; ou nascessem antes do casamento de sua mãi, ou ao tempo de sua viuvez. É uma concessão, que rupugna! (FREITAS, 2003, p. 565).

Abaixo desse texto, há uma resposta do legislador acerca do comentário feito

em relação à distinção de reconhecimento de filhos naturais entre mulheres e homens.

<<Não se-pôde dizer uma concessão (Rebouças Observ. p. 129) o que justamente importa o reconhecimento de um direito, e menos uma concessão que repugna herdar o filho natural á sua mãi, etc.>> (FREITAS, 2003, p. 565).

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Após isso, segue a tréplica referente à resposta acima:

Na observação ao Art. 959 negou-se-me a liberdade de aportuguesar uma preposição latina, e agora nega-se-me a liberdade de pensar! Uma censura razoável não enfraquece o imperio da lei, quanto mais que a minha repugnância refere-se á concurrencia de filhos naturaes com legitimos na herança materna, e não ao modo possível de provar a maternidade. Se ha legitimidade para filhos, a coherencia ao menos impõe distincção no saliente efeito da sucessão hereditaria. (FREITAS, 2003, p. 565).

Estes fragmentos nos dão a possibilidade de análises relativas ao discurso

daquilo que pairava no pensamento da sociedade do século XIX, com as questões

discursivas presentes no ordenamento jurídico.

O artigo 965 legisla que os herdeiros ascendentes sucedem o pai e/ou a mãe,

excluindo os irmãos daquele que não deixou testamento. Na falta dos pais, deverá se

considerar os ascendentes com melhor nível nos graus. Em nota, observa-se que “se

no mesmo gráo concorrem ascendentes da linha paterna e materna, a herança divide-

se em duas partes iguaes, uma para cada linha, ou existão todos os avós, ou tenha

falecido algum deles.” (FREITAS, 2003, p. 571).

Elencamos até este ponto esses artigos que guiam os procedimentos em caso

de morte que não permitiu a feitura do testamento, mas que supõe tacitamente a

vontade de quem morreu. Além disso, fez-se necessária este conhecimento para

aqueles casos em que o testamento foi invalidado por não ter cumprido as exigências

discursivas da lei.

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CAPÍTULO II

ANÁLISE DO DISCURSO: FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.1 A trajetória do interesse pela noção de discurso

Para Maingueneau (2015), é complicada a abordagem da disciplina análise do

discurso já que nesta há contornos amplificados que impedem, mesmo com os

estudos de atores considerados fundadores dela tais como E. Goffman, L.

Wittgenstein, M. Foucault ou M. Bakthtin, reconhecê-la como uma ciência acabada.

Distante disso, cada um desses estudiosos apontados abrangeu somente parte desse

longo campo de pesquisa.

Análise do discurso foi uma expressão inédita utilizada pelo linguista S. Harris,

em um artigo dele de 1952, intitulado “Discourse Analysis”. Este termo era tratado

numa perspectiva estruturalista no qual ‘análise’ é a decomposição e ‘discurso’ é

apontado como uma unidade constituída de frases. Faraco (2003) ao revisitar Harris

cinquenta anos depois, aponta que o precursor considera que o

Discurso é o linguístico que ultrapassa os limites da sentença e discurso é o conglomerado não arbitrário de sentenças. O primeiro sentido – a ideia de um nível superior à sentença – se justifica pelo próprio envolvimento de Harris com uma linguística de níveis; o segundo atribui a esse nível superior uma organização, o que, por si, dá sustentação à proposta de uma análise. Em seguida, o autor classifica seu método de formal, na medida em que enfoca a distribuição dos elementos linguísticos em ambientes linguísticos por meio de critérios puramente morfossintáticos e sem depender do conhecimento que temos do significado desses elementos – o que novamente não surpreende, considerando sua filiação ao distribucionalismo americano. O objetivo de Harris, com o desenvolvimento desse método formal, é estabelecer padrões de recorrência dos elementos linguísticos de tal modo que podemos não saber o que o texto está dizendo, mas podemos descobrir como está dizendo. Na sequência, Harris vai dizer que os métodos criados para o estudo da sentença são suficientes para analisar o que vai além dela. Com isso, ele preserva o pressuposto distribucionalista dos níveis e garante uniformidade metodológica para sua proposta, o que revela uma certa prudência em não multiplicar o que não precisa ser multiplicado. A Análise do/de Discurso (AD) não seria para Harris, portanto, um novo método, mas a expansão do velho método a um novo objeto, objeto que, no fundo, se distingue do velho objeto apenas na sua extensão. Continua sendo um objeto recortado no estritamente linguístico e analisado exclusivamente em sua imanência. A AD seria uma análise apenas intralinguística. (FARACO, 2003, p. 248)

Essa postura conceitual de Harris quer considerar que o linguístico ultrapassa

os limites da sintaxe, ou seja, por meio da análise sintática é possível observar aquilo

que ultrapassa os limites da sentença, bem como saber o porquê das disposições

textuais que podem revelar os elementos essenciais para a comunicação humana.

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Dessa forma, vemos que o objetivo de Harris era apenas analisar a estrutura

de um texto, sem a pretensão de se considerar as condições sócio-históricas,

aproximando, dessa maneira, do estruturalismo francês dos anos 1960 que requeria

uma análise em que o texto era considerado o próprio princípio e fim, ficando distante

dos conceitos e problemas da Análise de Discurso da atualidade. No entanto, nos

Estados Unidos, França e Inglaterra estavam atentos aos problemas da Análise do

Discurso daquela época e que ainda ecoam.

Ainda que não tivesse sido um projeto unificado daqueles países, esta

concentração nos estudos da Análise do Discurso proporcionou o avanço mundial

nesse campo de pesquisa e, a partir de 1980, diversas correntes teóricas foram postas

em convergência. A diversidade dessas disciplinas abasteceu o estudo do discurso

com a pesquisa da Etnografia da comunicação (Hymes, Gumperz), que era muito

ligada à Antropologia, com o estudo da Etnometodologia (Garfinkel), que se

autodenominava uma corrente sociológica e, também, com a Análise conversacional

(Sacks), que possui como método, a análise das interações orais. Goffman, que

estudou os ‘os rituais de interação’ do cotidiano, por meio da ‘apresentação em si’,

também está nesse rol de pensadores, cujos trabalhos foram partilhados num mesmo

campo de pesquisa, ainda que tivessem divergências. Após isso, essas correntes

progrediram com os subsídios científicos das teorias pós-estruturalistas do discurso,

advindos das ideias de Michel Foucault e Ernesto Laclau e dos Cultural Studies, em

relação ao gênero sexual que é abordado em J. Butler (1990).

Beneficamente, o estudo do discurso foi sendo ampliado, a partir das

contribuições da Filosofia e da Linguística. A primeira, durante o século XX, observou

e analisou a questão da linguagem quando discutiu a ideia de L. Wittgenstein, de que

apenas com uma análise prévia da linguagem é que surgem os conceitos da filosofia.

Dessa maneira, tratou-se de um linguistic turn, isto é, da virada linguística que

focava na Filosofia e em outras ciências humanas, principalmente no intercâmbio

entre filosofia e linguagem. Além disso, os postulados de J. Austin sobre os “atos de

fala” também contribuíram para que essas reflexões filosóficas ajudassem nas

questões da linguagem. A segunda, recebeu a infiltração das correntes pragmáticas

que consideravam a fala como uma importante atividade, bem como intensificavam a

construção do sentido pela característica contextual. A nova disciplina, a Linguística

Textual, surgida também a partir de 1960, buscou refletir sobre as regularidades para

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além da frase, fornecendo aos analistas do discurso subsídios para a melhor

compreensão da estruturação dos textos.

Tendo em vista estas diferentes aborgens sobre a noção de discurso, há a

constatação dessa instabilidade no campo da AD. O ‘discurso’ pode ser entendido de

duas maneiras, segundo Maingueneau (2015, p. 23). Ele é “como um substantivo não

contável (“isto deriva do discurso”, “o discurso estrutura nossas crenças” ...);”

Maingueneau continua dizendo que o discurso também é “como um “substantivo

contável que pode referir acontecimentos de fala (“cada discurso é particular”, “os

discursos se inscrevem em contextos”...ou conjuntos textuais mais ou menos vastos

(“os discursos que atravessam uma sociedade..”).

Essa dupla apropriação da noção de discurso permite que ele seja referido

como objeto empírico (“há discursos”) concomitantemente com aquilo que ultrapassa

o ato particular da comunicação (“o homem é submetido ao discurso”). Assim, temos

essa noção estabelecida por teorias filosóficas e por estudos empíricos sobre o

funcionamento dos textos. Para os linguistas, a concepção de discurso é definida

como ‘o uso da língua’. Desse modo, a Linguística concebe o discurso em três

oposições: discurso e frase, discurso e língua e discurso e texto.

No primeiro, o discurso é uma unidade linguística “transfrástica”, já que é o

encadeamento de frases. Em seguida, quando se opõe discurso e língua, concebe-se

a língua como sistema que a utiliza em contextos. Por último, há diferentes

associações na relação entre discurso e texto quando a partir de um conjunto de textos

é possível visualizar apenas um discurso, aproximando-se, dessa forma, da visão de

Foucault ou, quando é concebível verificar um discurso em cada texto a partir da

junção Discurso = Texto + Contexto. Para essa ideia da junção de texto e contexto

para definir discurso, Adam a reconheceu em primeira instância, mas depois disso,

afirmou que essa fórmula é enganosa, porque demonstra que há uma oposição e um

complemento de texto e discurso. Maingueneau destaca o conceito de Adam, ao dizer

que os conceitos de texto e discurso são sobrepostos porque, a depender do olhar do

tipo de análise eleita, eles se complementam.

Fora do contexto linguístico, o sentido de discurso se ancora nas ciências da

linguagem que se interagem por meio de correntes teóricas orientadas pelas ciências

humanas e sociais:

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... a filosofia da linguagem ordinária (L. Wittgenstein) e a teoria dos atos de fala (J. Austin, J. R. Searle), a concepção inferencial do sentido (H. P. Grice), o interacionismo simbólico (G. H. Mead), a etnometodologia (H. Garfinkel), a escola de Palo Alto (G. Bateson), o dialogismo de M. Baktin, a psicologia de L. Vigotsky, a arqueologia e a teoria do poder de M. Foucault, ele próprio integrado a uma corrente identificada nos Estados Unidos com o nome de “pós-estruturalismo”, em que é associado a pensadores com J. Derrida, G. Deleuze, J. Lacan, E. Laclau, J. Butler... A noção de discurso entra igualmente em ressonância com certas correntes construtivistas, particularmente a sociologia do conhecimento de P. L. Berger e T. Luckmann, autores de A construção social da realidade (1966). (MAINGUENEAU, 2015, p. 25)

De maneira disseminada, Maingueneau propôs oito ideias-força em torno da

palavra discurso. Temos, dessa maneira, a noção de discurso que está ligada a várias

correntes teóricas, como já foi mencionado. Segundo o mesmo autor, quando se diz

que o discurso é uma organização além da frase é porque o discurso move estruturas

distintas daquelas da frase, pois está submetido a um grupo social por meio de regras,

seja no modo dos gêneros de discurso (uma confissão, uma dissertação de mestrado,

um livro de anedota, uma sessão de psicanálise etc), seja na transversalidade desses

gêneros (um diálogo, uma explanação, um relato etc).

Outra ideia-força, de Maingueneau (2015, p. 25), aborda o discurso como uma

forma de ação porque, quando se fala age sobre o outro e isso não significa que está

atrelado somente em uma representação do mundo. Segundo a corrente teórica dos

atos de fala, as enunciações constituem-se de atos para modificarem situações de

promessas, sugestões, afirmações, interrogações etc. Em um nível superior, esses

atos passam a fazer parte de discursos de gêneros determinados tais como panfletos,

consulta médica, telejornal etc, para que seus destinatários mudem. Além disso, as

atividades verbais são relacionadas a atividades não verbais.

A interatividade que abarca dois ou mais parceiros, é uma atividade verbal que

reforça a ideia-força do discurso. Assim, o discurso se torna interativo mesmo que a

enunciação seja produzida sem um destinatário aparente. É possível afirmar que há

interatividade constitutiva, pois existe troca de enunciadores virtuais e/ou reais. Além

disso, Maingueneau (2015, p. 26) afirma que “qualquer enunciação supõe a presença

de uma outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relação à

qual constrói o seu próprio discurso”. Desse modo, em uma conversação a palavra

“destinatário” não é abrangente porque segundo Maingueneau (2015, p. 26) “pode dar

a impressão de que a enunciação é apenas a expressão do pensamento de um locutor

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que se direge a um destinatário”. As expressões interactantes, colocutores e

coenunciadores são as preferidas para se usar nesse contexto.

O discurso contextualizado faz parte desses conceitos sobre o discurso porque

um enunciado em dois lugares diferentes corresponde a dois discursos distintos. Tudo

irá depender dos contextos onde estão os coenunciadores, dos lugares e papéis

sociais que desempenham. Outro tipo de discurso é aquele que é assumido por um

sujeito. Ele só acontece quando pertence a um sujeito (referência pessoal, temporal,

espacial), ou seja, esse tipo de discurso aponta quem é o responsável por aquilo que

foi dito e também indica a atitude que é tomada em relação ao coenunciador dele.

Todo comportamento social, bem como qualquer atividade verbal são regidos

por regras. Portanto, o discurso é orientado por normas, porque todo enunciado possui

razão de existir. As trocas verbais, todas, simples ou elaboradas, seguem as máximas

conversacionais ou as leis do discurso.

Os últimos dois tipos de discursos apontados por Maingueneau como ideias-

força da AD, nos dão a dimensão de que o enunciado, por um lado, só pode ser

interpretado a partir da relação que se faz, conscientemente ou não, com outros tipos

de enunciados que são bases para a construção de sentido dele. É o discurso que se

assume no bojo de um interdiscurso. Por outro lado, o sentido é dinamicamente

construído e reconstruído no âmbito das práticas sociais, cujas ações são promovidas

por indivíduos que pertencem a estruturas sociaisde diferentes níveis. Tudo isso

porque o sentido é construído socialmente pelo discurso.

Diante dessas ideias-força frente à noção de discurso, as correntes teóricas

vão priorizar aquelas que mais se adequam em suas pesquisas. Isso não significa que

os pesquisadores ignorarão as outras noções de discurso, pois todas elas estão

familiarizadas, isto é, podem possuir posições comuns, mas também pode se opor.

Isso significa que não se constituem como um núcleo duro, pois as ideias-força da

noção de discurso possuem maleabilidade por serem, conforme Maingueneau,

questões de prioridade.

2.2 A linguística do discurso e a análise do discurso

Tanto Possenti (2009) quanto Maingueneau (2015) apontam para a questão

das confusões que ainda são geradas acerca das definições dos conceitos da Língua,

da Linguística do Discurso e da Análise do Discurso. Aquele autor afirma que até

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mesmo nos departamentos de Linguística há um desdém em relação ao material

linguístico. Este diz que é possível que tais embaraços advenham da definição de que

a Análise do discurso é uma subdisciplina da linguística que estuda fatos da língua.

Dessa maneira, busca-se o discurso que é considerado uma unidade superior à frase

já que se sabe que o discurso é conhecido por relevar a memória de um povo, de um

lugar ou de pessoas.

Para fazer uma reflexão a respeito disso, Possenti atesta que por questões

ligadas ao processo de significação, muitos estudos abrem mão da análise do material

linguístico, para se dedicarem exclusivamente a fatos circunstanciais e situacionais.

Esta negação das abordagens linguísticas voltadas para o formalismo pode ser

reconhecida como repulsa dos exageros reducionistas que pairavam sobre quem

precisava estudar a língua para obter algum tipo de ascensão social. É compreensível

essa impressão de que as análises meramente linguísticas tornam-se algo

repugnante, no entanto, não se pode esquecer que essas maneiras tratar a língua

foram e ainda são, em alguns lugares sociais, formas residentes em um espaço da

história, provenientes do cientificismo de Saussure. Portanto, isso não pode significar

que haja a necessidade de haver uma implicância eterna, pois toda ciência precisa ter

um ponto de partida e é natural que vá se readequando a novas realidades, como foi

o caso do estruturalismo.

Consideramos que entender como se dá o processo de pesquisa em Análise

do Discurso nos permite perceber essas questões diferenciais entre a Linguística e

Análise do discurso.

2.3 Contribuições de Foucault para a noção de discurso

Para Foucault (2012), o discurso deve ser analisado a partir do enunciado que,

por sua vez, não se encontra nem nas palavras, nem nas frases e bem menos, em

atos onde há enunciados que visam apenas situações comunicacionais e propósitos.

Ao enunciado cabe dar condição para que haja a possibilidade de se analisar signos.

Ele age no espaço externo dos signos, no limite deles, para encontrar regularidades,

que só vem à tona quando aparecem as regras de formação de um discurso.

É dessa forma que ele define que discurso nada tem a ver com unidades

materiais como são os livros. Essas unidades devem ser consideradas quando

participam de uma proposta descritiva dos acontecimentos discursivos e uma maneira

diferente porque

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a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e, consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimento do discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar? (FOUCAULT, 2012, p. 26)

A partir disso, Possenti (2009) pondera que entre alguns nomes de autores

fundamentais da AD, entre eles, Baktin, Maingueneau, Courtine e Pêcheux, Foucault

é o que está mais distante das questões linguísticas e isso poderia coloca-lo em grupo

daqueles que consideram uma oposição entre AD e linguística. E acreditamos que

esse lugar da oposição pertence a ele, pois Foucault, ainda que fosse um filólogo e

crítico literário, sua essencial era a filosofia, a história das ideias e a crítica social cujo

pensamento estava voltado para uma história crítica da modernidade. Possenti (2009)

lembra que a concepção de discurso de Foucault está diretamente ligada àquilo que

vem antes da materialidade textual, ou seja, a pesquisa discursiva. O termo discurso

é sempre tratado como um ponto central em sua obra que de uma perspectiva

analítica metodológica, usa o nome arqueologia para representar a análise do

discurso no modo arquivo que é diferente de uma arqueologia que investiga o subsolo.

Foi dessa forma que a partir das regularidades seguintes: ordem, correlação,

funcionamento e transformação instalados na obra Arqueologia do Saber, é que se

pode ter uma noção de formação discursiva. Os enunciados dessa formação não

estão relacionados com as materialidades linguísticas, conforme já replicamos, bem

como não se reduzem às propoposições, frases, pois estão voltados a regularidades

ligadas a ideologias e teorias advindas das questões marxistas relacionadas com a

formação social e formação ideológica. Para Foucault (2012, p. 141), o termo discurso

deve sempre ser visto como o “conjunto de enunciados que vêm do mesmo sistema

de formação; assim, poder-se-ia falar de discurso clínico, discurso econômico,

discurso da história natural, discurso psiquiátrico”. Esse conjunto de enunciados se

apoia na mesma formação discursiva e por ela surge o prinícipio da dispersão que

garante a existência simultânea dos enunciados.

Após essas constatações, Foucault propõe um outro tipo de pesquisa cujo

enfoque está na mudança do saber para o poder. Isso significa a representação da

tramitação da fase arqueológica para a genealógica, que retrata a escolha do conceito

de dispositivo no lugar do objeto episteme para analisar práticas não-discursivas.

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Deste ponto, é preciso salientar que “as práticas discursivas não são pura e

simplesmente formas de fazer discursos. Eles tomam forma no conjunto de técnicas,

instituições, padrões de comportamento, tipos de transmissão e difusão” (FOUCAULT,

2000, p. 241) e práticas não discursivas estão nas condições históricas, sociais,

políticas, filosóficas etc e podem ser identificadas por meio da verificação da

procedência e da emergência dos discursos que estão ligados aos fatos do poder que

pode revelar os mecanismos de dominação, de controle, de subserviência e até de

benesses que estão difusos nas práticas cotidianas.

2.4 Contribuições de Maingueneau para a análise de discurso

Como vimos, Pechêux, Courtine, Baktin, Foucault e outros foram precurssores

da AD. Por considerarmos Dominique Maingueneau partícipe de mesma monta e por

meio dele, defenderemos a nossa tese sobre autoralidade em discursos testamentais

do século XIX, abordaremos a partir do próximo ítem, as orientações teóricas sobre a

AD advindas de suas pesquisas.

2.4.1 Os fundamentos da análise do discurso

Maingueneau (1990) quer retomar o assunto no nível dos fundamentos da AD

por ter percebido que muitos estudiosos dessa área justificam suas pesquisas,

considerando apenas a garantia advinda da Linguística por haver uma lacuna causada

pelo desinteresse nas estruturas textuais. O objetivo desse resgate da discussão em

torno dos fundamentos da AD é para que não haja enfoque em devaneios sem

critérios e não volte a ter como suporte teórico, a Filologia tradicional e a Análise de

Conteúdo.

O próprio Maingueneau (2010a), no capítulo “Filologia e análise do discurso”,

da obra Análises textuais e discursivas, discute a problemática da continuidade ou não

entre a Filologia e a AD. Além disso, há a indagação por parte dele, se as pesquisas

desenvolvidas tratam o discurso como uma “nova Filologia” ou se há uma apreensão

dos enunciados de forma complexa e distinta. Maingueneau continua as reflexões

salientando que é estranho ter aguardado tanto tempo para que houvesse uma

abertura na questão das relações entre Filologia e Análise do Discurso já que esta é

de 1960. Ainda que a AD tenha surgido com um pensamento contrário ao o da

Filologia, foi a Análise de Conteúdo que impôs limites em relação a ela.

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Tudo isso nos indica a preocupação de Maingueneau em mostrar que a AD

deve ser percebida como uma parte das ciências humanas que considera todas as

estruturas que se propõem a fazer análises de textos, sem que se desprezem as

discursividades que há neles. Por isso, ele indaga, por um lado, a Filologia tradicional

que deixa de lado a textualização do sentido para privilegiar apenas o contexto

histórico e social de um documento, a fim de chegar perto da forma desejada pelo

autor. Por outro lado, critica a Análise de Conteúdo que privilegia a captação de um

saber que se esconde atrás da superfície textual onde está a intenção do autor.

Em meio a esses estudos que privilegiam o estruturalismo que visa às

abordagens estritamente linguística e lógica, surge a escola francesa de Análise do

Discurso que traz um contraponto em relação à de vertente anglo-saxônica que dá

ênfase ao estudo das preposições para tentar aliviar as tensões causadas pelo atraso

na investigação da linguagem. Além disso, a emergência da AD de linha francesa que

propunha sobrepor o corpus de literatura, se amparou na teoria de Althusser. Isso é

compreensível tendo em vista que a conjectura intelectual da França daquela época,

tinha a preocupação de entender e mesclar a tradição epistemológica e o

estruturalismo, apontando que a ideologia dos homens se atém ao modo de como

eles vivem e se relacionam com as condições de existência que os cercam.

Maingueneau confirma isso dizendo que

Na ideologia os homens exprimem não suas relações com suas condições de existência, mas o modo como eles vivem suas relações com suas condições de existência: o que supõe ao mesmo tempo relação real e relação “vivida, imaginária”. (...) Na ideologia a relação real é investida inevitavelmente pela relação imaginária: relação que antes exprime uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionária), ou mesmo uma esperança ou uma nostalgia, do que descreve uma realidade”. (MAINGUENEAU,1990, p. 67)

O fato de haver a necessidade de se instituir uma ciência da ideologia, nos faz

compreender o papel da Análise de Discurso, nascida da Linguística e do marxismo

como um novo propósito de abordagem política. Isso fundamenta o pensamento de

Althusser que compõe uma ciência da ideologia proveniente da “teoria da ideologia

em geral” e da “teoria das ideologias particulares”, que revelam posições de classe e

confrontam, frente às representações ideológicas, formação imaginária e relações

reais dos sujeitos.

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No entanto, Maingueneau trata o termo “análise” em um nível que facilite a

compreensão da concepção de análise de discurso, pois para esse autor,

[...] a escola francesa de análise de discurso se afirma como uma “análise” (= uma psicanálise) aplicada aos textos. Há aí muito mais que uma coincidência de nomes: é a materialização de uma certa configuração do saber em que o mesmo termo “análise” funciona ao mesmo tempo sobre os registros linguístico, textual e psicanalítico. (MAINGUENEAU, 1990, p. 69).

Na esteira da produção intelectual francesa em torno da sexta década do

século XX, o marxismo apresentado por Althusser, a psicanálise de Lacan e o

estruturalismo linguístico formam a tríade na qual as intervenções realizadas em uma

dessas estruturas de pensamento, atingem as outras também. Assim, estudar os

processos que deformam os posicionamentos ideológicos nos levam para uma

perspectiva althusseriana de que a discursividade se encontra na ideologia e os

discursos que sofrerão as análises são objetos do campo político.

2.4.2 A noção de corpus em análise do discurso

Para entrarmos nos estudos que envolvem a noção de corpus em AD, faz-se

necessário entendermos as relações entre texto e discurso num primeiro momento,

para podermos refletir sobre os resultados provenientes das comparações que

surgem entre texto e corpus.

Há entre os analistas do discurso a concordância de se utilizar, de forma

natural, o termo “discurso” e, dessa forma, concentram-se nele. No entanto, o termo

“texto” é muito empregado porque se diz que ele interfere no discurso. Neste

momento, cabe indagar como é a relação entre esses dois termos que muitos

estudiosos os consideram sinônimos. Maingueneau (2015) considera que a

complexidade entre eles está além de apenas estabelecer relações de proximidade e

realiza reflexões cujo escopo está em estabelecer dois vieses: um discurso que é

associado a um conjunto de textos e um discurso disseminado a cada texto. Para o

primeiro viés, aponta que os discursos atravessam os propósitos das composições

particulares dos textos. Assim, dentro do prisma de M. Foucault existe um tipo de

discurso que abrange um conjunto de textos de gêneros distintos. No discurso do papa

podemos depreender vários tipos de textos: encíclica, motu proprio, mensagens,

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homilias, angelus, cartas apostólicas etc. Ademais, discurso corresponde, nesta

percepção conceitual, a vários tipos de associações. Um tema qualquer, por exemplo,

pode evocar inúmeros discursos, como por exemplo, o discurso sobre a mulher, o

discurso sobre o negro, o discurso sobre saúde pública etc. Outra constatação é que

em textos de uma determinada área da sociedade convoca discursos tais como:

discurso pedagógico, discurso jornalístico etc, bem como há discursos de produções

verbais específicas como são os tipos dos discursos do movimento sem-terra,

discursos dos motociclistas, discursos dos caminhoneiros etc.

O segundo viés traz aquela ideia de que cada texto apresenta um discurso,

pois:

As pessoas produzem textos para fazer passar uma mensagem, para exprimir ideias e crenças, para explicar algo, para levar outras pessoas a fazer certas coisas ou a pensar de certa maneira, e assim por diante. Pode-se designar este conjunto complexo de objetivos comunicacionais como o discurso que sustenta o texto e é o motivo principal de sua produção. Mas, finalmente, são os leitores ou os ouvintes que devem construir o sentido a partir do texto, para fazer dele uma unidade comunicacional. Em outros termos, eles devem interpretar o texto como um discurso que faça sentido para si. (MAINGUENEAU, 2015, p. 36)

Lembramos a nossa menção acima com a preocupação de Adam (2010) na

afirmação de que não basta colocar as oposições e complementariedades dos

conceitos de texto e contexto para analisar o discurso. É preciso que eles se

sobreponham e se recubram dentro dos olhares escolhidos para a análise.

A partir disso, Maingueneau (2015) fez um agrupamento dos conceitos de texto

e os chama de eixos principais. O objetivo é abordar as diferentes perspectivas sobre

os usos de “texto” para que a AD possa utilizá-los em suas razões distintas. Há o

texto-estrutura que é aquele trabalhado pela linguística textual, a fim de estudar as

sequências que estão além da frase. Texto-produto que está ligado a gêneros de

discurso que se comunicam por meio oral, escrito e visual. Enfim, o texto-arquivo, que

não se associa a uma atividade de discurso, mas pode ser transmitido, modificado,

comentado, reempregado etc porque se fixam em uma estrutura material ou em

memória. A noção de texto-arquivo está relacionada diretamente com o corpus dessa

pesquisa e faz parte de um dos dois fenômenos que envolvem este tipo de texto. Esse

fenômeno está pautado nas materialidades que carregam realidades históricas, isto

é, são textos materiais que estão em um suporte e dependem de recursos

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tecnológicos, apontados por Maingueneau: pergaminho, tabuletas de argila, escâner,

gravador, base de dados digitais etc. Esses materiais dependem da tecnologia a que

está condicionada para as suas épocas. Nos dias de hoje, quem possui um disquete

¾, por exemplo, com materialidades inéditas e importantes, passará por dificuldades

para conseguir um aparato tecnológico que apresente tais materiais.

O outro fenômeno que Maingueneau considera recoberto pela noção de texto-

arquivo são os textos que não dependem de nenhum outro tipo de suporte físico

particular, pois eles são reconhecidos pela profundidade que apresentam. Em

qualquer época e/ou lugar serão admitidos e poderão, ao longo do tempo, serem

repassados com gêneros diversos e, por isso, o autor considera um desafio relacionar

esses dois tipos de texto-arquivo. A utilização cada vez maior da Word Wide Web nos

coloca que o texto não pode ser considerado uma unidade fechada por conta dos

objetivos diversos da rede. Para ele, com o aparecimento de técnicas de registro de

imagens e sons desde o final do século XIX, a materialidade texto se transfigura

pluralizada. Em tempos modernos, qualquer discurso de vias orais pode ser capturado

por uma série de aparatos tecnológicos.

A partir dessas áreas que empregam o texto, percebemos o surgimento de

interesses para a Análise do Discurso interesses diversos. Todavia, é preciso ficarmos

atentos porque a AD só pode estudar textos que são constituídos como corpus

composto por vários textos, por recorte de textos ou, também, por um texto apenas.

Segundo Maingueneau (2015), os analistas do discurso, para dar respostas a

uma problemática, escolhem os materiais que pensam ser adequados para isso e,

dessa forma, constituem os corpora, tendo em vista os contextos dos métodos que

serão utilizados. Há os corpora que reúnem textos já existentes e os que são

resultados de transcrições. Ao transcrever uma conversa, uma palestra ou um

programa de rádio, o analista dá a esse tipo de corpora características de textos.

Maingueneau afirma que transcrições distintas podem surgir a partir dos

objetivos e das vias que o pesquisador possui para constituir o corpus para as

análises. Isso é viável porque a informática nos traz possiblidades múltiplas de

armazenamento de dados e que podem se tornar corpora que serão elaborados pelos

pesquisadores.

Conforme esse autor:

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A dupla formada por discurso e texto remete a uma polaridade constitutiva de todo estudo da comunicação verbal: a fala se apresenta ao mesmo tempo como uma atividade e como uma configuração de signos a analisar. Bastam transformações ideológicas ou inovações (as duas estão, em geral, associadas) para modificar profundamente as condições de textualidade e, consequentemente, a relação entre texto e discurso. (MAINGUENEAU, 2015, p. 40)

Dessa maneira, toda análise pretendida irá depender do tipo ou gênero de

discurso escolhido para ser estudado, pois é o pesquisador que levanta os dados e

traça as escolhas metodológicas.

2.4.3 A questão dos gêneros de discurso em Maingueneau

A AD, segundo Maingueneau (1997a), considera que toda produção de

linguagem se configura como discurso. Pelo discurso, é possível estudar o modus

vivendi de um grupo social do passado ou do presente e, pesquisar sobre o discurso

de um grupo do passado pode-nos ajudar a entender as práticas de determinados

grupos, no presente. Ao abordar sobre as unidades tópicas, Maingueneau (2015) diz

que para produzir um enunciado, os usuários comuns, no papel de destinatários ou

de testemunhas, identificam as atividades verbais nas quais estão envolvidos. É dessa

forma que eles categorizam o universo do discurso. Além desses usuários, há aqueles

pertencentes a comunidades de especialistas que categorizam os discursos tendo em

vista necessidades específicas.

A partir disso, o autor aponta três níveis de categorização que se

complementam. Em primeira instância, o analista do discurso deve observar os

diversos tipos de discurso, pois são eles que realizam o sentido e os efeitos das

categorizações. Depois disso, o analista deve criar repertórios e classificar atividades

discursivas do domínio da vida social, tais como: mídias, educação, política, religião

etc, sempre com critérios rigorosos.

O terceiro nível aponta que o analista do discurso deve categorizar os tipos de

unidades que são seus objetos de trabalho, ou seja, deverá observar as unidades que

são mais utilizadas, geralmente. Tópicas e não tópicas são os tipos de unidades

constituídas, conforme vimos anteriormente.

As unidades tópicas são oferecidas pelas práticas sociais e se situam na

dilatação das categorizações dos atores sociais, sem que se confundam

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necessariamente. A categoria gênero de discurso dá suporte a essas categorizações

porque é entendida como instituição comunicativa que é determinada sócio-

historicamente. Os exemplos deixados por Maingueneau nos dá a dimensão daqueles

pré-recortes situados nas categorizações sociais: jornal televisivo, consulta médica,

roteiro turístico, reunião do conselho de administração.

A atividade discursiva é constituída pelos gêneros de discurso que, por sua vez,

só conseguem ser considerados quando são integrados aos tipos de discurso que

designam práticas discursivas que acoplam gêneros com o mesmo objetivo social.

Vários tipos de discursos podem ser considerados aqui.

Maingueneau (2015, p. 66) afirma que tipos e gêneros de discurso se

relacionam mutuamente porque todo tipo é uma rede de gêneros; todo gênero se

reporta a um tipo. Entretanto, o mesmo autor salienta que a noção que se possui de

tipo de gênero ainda cabe um aprimoramento. Ainda que ele cite, como exemplo, uma

comunicação em um congresso de medicina como um tipo de discurso científico que

apresenta inúmeros gêneros de discursos (conferência de abertura, mesas-redondas,

pôsteres, comunicações etc.), além da própria medicina que é uma disciplina distinta,

considera que o interesse pela noção de tipo de discurso carece de estudos bem mais

aprofundados.

Maingueneau (2005) disserta que os gêneros de discurso são o núcleo da

atividade discursiva. No entanto, eles são constituídos efeitos de sentido apenas

quando se unem aos tipos de discurso, considerados como unidades de classe

superior. Tipo de discurso, neste caso, é denominado dessa maneira, porque

designam práticas discursivas, que são de um mesmo ramo de atividade ou que fazem

parte de um agrupamento de gêneros estáveis por pertencerem a um mesmo fim

social. Dessa forma, podemos vislumbrar tipos de discursos tais como: discurso

administrativo, publicitário, religioso etc.

Tipos e gêneros de discurso devem ter cooperação mútua, pois “todo tipo é

uma rede gêneros; todo gênero se reporta a um tipo” (MAINGUENEAU, 2015, p. 66).

Logo depois dessa conceituação, esse mesmo autor apresenta o panfleto político,

como exemplo. Afirma que ele é um gênero de discurso que deve “ser integrado em

uma unidade mais complexa, constituída pela rede dos gêneros decorrentes do

mesmo tipo de discurso, no caso, político”.

De todo modo, Maingueneau alerta que a noção de tipo de discurso carece de

estudos mais detalhados porque esclarece que, apesar do panfleto pertencer ao grupo

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do discurso político, há nele a condição de espelhamento das posições desse mesmo

grupo. Ele nomeia isso de posicionamento do grupo uma vez que possui uma

responsabilidade diante das possibilidades de ser um panfleto anarquista, comunista,

centrista, de extrema-direita ou extrema-esquerda. Esses diversos posicionamentos

políticos nos leva a um campo discursivo que é um lugar onde há os confrontos.

Maingueneau exemplifica isso dizendo

que uma comunicação em um congresso de medicina resulta do tipo de discurso científico não deve levar a esquecer que se trata também de um gênero que pode ser integrado a outros dois tipos de unidades: o congresso científico como instituição de fala na qual coexistem múltiplos gêneros de discurso (conferência de abertura, mesas-redondas, pôsteres, comunicações..), mas também à medicina, como disciplina distinta de outras. Como estes exemplos mostram, a noção de tipo de discurso só é pertinente se permanecer vaga. (MAINGUENEAU, 2015, p. 66-67)

A partir disso, Maingueneau relata que é possível que um gênero de discurso

de enquadre em três modos de agrupamento: a esfera de atividade, o campo

discursivo e o lugar de atividade. Fazer a relação da esfera de atividade com um

gênero de discurso não é uma tarefa fácil, pois um mesmo gênero de discurso pode

se relacionar com diversos tipos de esferas de atividade.

A concepção de campo discursivo está relacionada com posicionamentos que

se encontram em um mesmo espaço por não serem estruturas estáticas. Teremos,

desse modo, entre os posicionamentos centrais, posicionamentos dominantes e

dominados. Em relação aos posicionamentos periféricos, Maingueneau (2015, p. 68)

diz que “pode se tratar de posicionamentos que, em um estado anterior, se

encontravam no centro do campo e foram marginalizados; de posicionamentos que

pretendem constituir um subcampo relativamente independente em relação ao

centro.”.

Ao estudarmos os lugares de atividade, percebemos que os gêneros de

discurso, em sua maioria, são produzidos em espações institucionais. Cabe ao

analista estudar os gêneros que são conhecimentos naqueles lugares institucionais,

mas ocorrem em outros espaços considerados não oficiais, mas são importantes para

as atividades discursivas. Imagine as pequenas reuniões que há na sala de

professores antes do início das aulas ou no intervalo delas? Esses gêneros são

consumidos em um lugar não-oficial, mas fazem parte de atividades discursivas

pertinentes e pertencentes ao espaço escolar.

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2.4.3.1 Os gêneros instituídos por Maingueneau

A noção de gênero de discurso vem sendo levada em conta aos poucos pela

AD. Em Maingueneau (2008b), encontram-se tratativas sobre a importância que o

estudo dos gêneros ocupa na disciplina AD e classifica-os em gêneros autorais, que

são determinados pelo autor ou editor; gêneros rotineiros, são aqueles com ampla

frequência nas práticas sociais; gêneros conversacionais, que apresentam dificuldade

de categorização. Além disso, explana sobre os gêneros instituídos, que podem

ser denominados de gêneros de primeiro grau, segundo grau, terceiro grau, quarto

grau e quinto grau. Aqui é possível perceber que Maingueneau (2004) avança em

relação àquilo que disse sobre os gêneros instituídos de modo I, II, III e IV.

Maingueneau (2008b) intitula esses gêneros instituídos, como vimos, de primeiro ao

quinto grau e, ainda, realiza mudanças conceituais, como veremos. O primeiro se

caracteriza por não estar propenso a variações porque impõem condições de

produção e não pertencem a um autor propriamente dito. É o caso de catálogos

telefônicos, certidões de nascimento etc. O segundo tipo, intitulado gênero instituído

de grau II, possui texto individualizados porque são regidos por normas do ato

comunicacional, tais como: jornais televisivos, guias de viagem etc. Para o terceiro

tipo, gênero instituído de grau III, não há cenografia preferencial. Ele suporta

variações. Uma carta pode, por exemplo, apresentar uma cena genérica de programa

eleitoral. O gênero instituído de grau IV exigem cenários de fala inventados:

propagandas, canções folclóricas, programas de entretenimento na TV etc. O gênero

instituído de grau V não possui um padrão preestabelecido. O próprio autor, com sua

experiência individual categoriza a produção verbal dele. Rótulos genéricos, como

jornais, talk show, palestra, além daqueles que produzem textos e os nomeiam

conforme queiram.

As diferenças entre as pesquisas de Maingueneau de 2004 e 2008b, estão no

gênero instituído de modo IV que foi considerado autoral. Ele não segue um modelo

e estabelece uma cena original que dê sentido à própria atividade verbal para

conquistar o seu público. O autor, dessa maneira, é individualizado e cabe a ele a

ação de auto-categorizar sua produção verbal.

Denominações como “meditação”, “utopia”, “relatório”, etc., podem contribuir de maneira decisiva para definir de que forma e em que esfera o texto correspondente deve ser recebido. Neste caso, o nome dado não pode ser substituído por um outro (um “devaneio” não é uma

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“fantasia”), não é uma simples etiqueta que permite identificar uma prática verbal, mas a consequência de uma decisão que faz parte de um ato de ‘posicionamento’ no interior de um certo campo e que está associado a uma ‘memória intertextual’. É em relação a esta memória que os atos de categorização genérica ganham sentido e é esta mesma memória que conserva o traço do gesto dos autores. (MAINGUENEAU, 2004, p. 51)

Ao tratar o gênero instituído de modo IV como um gênero autoral, Maingueneau

(2004) considerava que a identidade do autor era construída por meio da própria

enunciação. É por isso que Maingueneau afirmava a aparição da problemática na

noção de gênero. Já na pesquisa que divulgou em 2008b, Maingueneau postula que

os gêneros instituídos de IV e V grau são muito parecidos, pois deles é preciso

constituir cenografias a fim de convencer seus auditórios e, por isso, criam sentido

para suas atividades discursivas que estejam alinhadas ao conteúdo dos seus

enunciados. Desse modo, afirma que o gênero instituído de modo IV é imposto por

restrições sociais. O gênero de modo V, depende da identidade do autor.

2.4.4 O primado do interdiscurso

Maingueneau (2007) considera que a AD se torna mais notável e respeitada ao

ser conectada aos estudos dos fenômenos transfrásticos, pois muitas pesquisas dela

não se apresentam de modo claro quando estão nos limítrofes com os estudos da

linguística. No entanto, afirma que, apesar de não haver exclusividade em relação ao

conceito de análise do discurso, considerá-la como um estudo que abrange

fenômenos de coerência e coesão textuais é ir de encontro a tudo aquilo que escola

francesa propôs no estudo dela. Esse mesmo estudo aponta o seguinte em relação

aos conceitos de Linguística do discurso e Análise do discurso:

Com certeza, o discurso não constitui um domínio tão aberto quanto <<a educação>> ou <<a imprensa>>, por exemplo, mas não é por isso que ele poderia ser saturado por uma única disciplina. Nessa perspectiva, defendi a ideia (Maingueneau, 1995) de que o discurso somente se torna verdadeiramente objeto de um saber se ele for assumido por diversas disciplinas que possuem cada uma um interesse específico: sociolinguística, teorias da argumentação, análise do discurso, análise da conversação, análise crítica do discurso (a <<CDA>> anglo-saxã), etc. Nessa ótica, distinguem-se análise do discurso e linguística do discurso, compreendendo esta o conjunto das disciplinas que abordam o discurso. O interesse que governa a análise do discurso seria o de apreender o discurso como

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intricação de um texto e de um lugar social, o que significa dizer que seu objeto não é nem a organização textual, nem situação de comunicação, mas aquilo que as une por intermédio de um dispositivo de enunciação específico. Esse dispositivo pertence simultaneamente ao verbal e ao institucional: pensar os lugares independentemente das palavras que eles autorizam, ou pensar as palavras independentemente dos lugares com os quais elas estão implicadas significaria permanecer aquém das exigências que fundam a análise do discurso. (MAINGUENEAU, 2007, p. 18).

De posse desses conceitos, cabe a quem quer atuar como analista do discurso,

a missão de dar o papel principal para a noção de gênero e para a detecção dos

interdiscursos que, segundo esse autor, “o interdiscurso tem precedência sobre o

discurso. Isso significa propor que a unidade de análise pertinente não é o discurso,

mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 20). Por esta condição, levantamos aqui a discussão

sobre o interdiscurso que o Maingueneau chamou de primado do interdiscurso.

Para ele, há um espaço de regularidades que são constantes e é isso que

constitui uma identidade que, embora seja visualizada dentro do molde baktiniano,

será tratada em um quadro mais restrito na AD. Por termos condições de propor

diversas formas diferentes de se privilegiar o interdiscurso, a AD opta por um modelo

teórico-metodológico e uma validação mais assertivos.

O interdiscurso está para o discurso como o intertexto está para o texto. — Pode-se designar por interdiscurso um CONJUNTO DE DISCURSOS (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos, de épocas diferentes...). Deste modo, Courtine chama interdiscurso a "uma articulação contraditória de 'formações discursivas referentes a formações ideológicas antagônicas". — Se se considerar um DISCURSO ESPECÍFICO, pode-se também designar por interdiscurso o conjunto de unidades discursivas com as quais ele estabelece relações. Segundo o tipo de relação interdiscursiva que se privilegie, poderá tratar-se de discursos citados, discursos anteriores do mesmo gênero, discursos contemporâneos de outros gêneros etc. (MAINGUENEAU, 1997b, p. 62).

Em decorrência desses aspectos conceituais sobre o interdiscurso, é preciso

dizer que, para Maingueneau, esses diversos modos de se privilegiar o interdiscurso

não são análogos à exceção das oposições sobre a noção de discurso já que os

discursos podem ser entrelaçados por meio das formações discursivas e ideológicas.

Baseado na perspectiva desenvolvida por Authier-Revuz, Maingueneau

considera que na apreciação da heterogeneidade enunciativa os linguistas possuem

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o caminho da heterogeneidade “mostrada” e da heterogeneidade “constitutiva” para

perceber a presença do “Outro” nos discursos. O primeiro caminho possível, a

heterogeneidade “mostrada” pode ser constatado apenas por meio dos discursos

citados, palavras entre aspas, particitações, auto-correções etc. Desse forma, vemos

que são os aparelhos linguísticos é que proporcionam tal constatação. No segundo

caminho a ser percorrido, não há uma marca linguística visível, pois o enunciado do

“Outro” está tão mesclado ao texto que não permitem a sua apreensão tendo como

método a análise linguística em seu sentido restrito.

É daí que aparece o cenário do primado do interdiscurso que está instaurado

nessa heterogeneidade constitutiva haja vista a sua união do “Mesmo do discurso e o

seu Outro” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 31) em uma relação emaranhada.

Mesmo que seja mais do que duvidoso que entre o “Outro” da psicanálise lacaniana, por exemplo, e os “Outros” das teorias das enunciação, da ideologia ou do discurso existam pontos de coincidência precisos e interessantes, essas formulações aparentemente próximas quanto ao caráter “polifônico” da fala ou do descentramento do sujeito de enunciação contribuem para suscitar uma espécie de unanimidade. É-se então naturalmente levado a “redescobrir” as pesquisas de “precursores”, em particular as do “círculo de M. Bakhtin”, que fazem da relação com o Outro o fundamento da discursividade. (MAINGUENEAU, 2008, p. 32).

Com isso, Maingueneau quer esclarecer o seu ângulo sobre a noção de

interdiscurso já que a considera extremamente imprecisa e para especificar sua

perspectiva, a desdobrou em uma tríade: universo, campo e espaço discursivos. Para

Maingueneau (2008a), a noção de universo discursivo não serve para quase nada ao

analista porque é constituída por um conjunto de formações discursivas que se dão

em um ambiente determinado. Mesmo sendo um conjunto finito, não consegue

representar partes específicas com predisposição para serem analisados em outros

domínios.

Daqui surge o conceito de campo discursivo que, segundo Maingueneau,

estando em certa conjuntura, isto é, no universo discursivo, se porta como um local

onde há formações discursivas sejam elas, políticas, filosóficas, psicanalísticas ou

sociológicas. Maingueneau faz a classificação de conjunto de formações discursivas

que se encontram em um mesmo escopo, tais como o embate, o debate e a aliança.

Há neles um discurso que demonstra função social bem semelhantes, no entanto, não

se coadunam quando se trata do preenchimento dessa função social. Por exemplo,

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analisar um discurso de um governante que atua em uma linha de políticas sociais,

que pressupõe a sociologia marxista, dá para perceber a diferença no preenchimento

da função social quando se tem a análise de um discurso científico do marxismo.

A partir dessas formações discursivas cabe ao analista do discurso separar os

discursos dominantes dos dominados que ficarão em planos diferentes e, dessa

forma, aparece a necessidade de se fazer uma delimitação por meio das posições

enunciativas em determinado espaço discursivo. Segundo Maingueneau,

é-se então conduzido a isolar, no campo, espaços discursivos, isto é, subconjuntos de formações discursivas que o analista, diante de seu propósito, julga relevante pôr em relação... Essas hesitações na deteminação dos componetes pertinentes ao espaço discursivo não são nada retóricos. Poderíamos achar que basta considerar qual (is) outro (s) discurso (s) do campo é (são) citado (s) e recusado (s) pelo discurso “segundo” para identificá-lo (s) como o (s) discurso (s) “primeiro (s)” através do (s) qual (is) aquele se constituiu. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 35).

Assim, no progresso da pesquisa do analista, vão surgindo hipóteses fundadas

sobre os saberes dos textos e do conhecimento histórico que podem ser confirmadas

ou refutadas.

O autor explica posteriormente que essa relação constitutiva fica evidente por

raros paradigmas na superfície discursiva e é isso que se deve levar em conta, pois

na invocação final, é preciso considerar os fundamentos semânticos do discurso. Ao

considerar aquelas hipóteses dentro do espaço discursivo, há a apuração do primado

do interdiscurso que oportuniza a constituição de um sistema onde existe uma

especificidade de um discurso circunscrito por uma rede semântica e que estabelece

contato com o conceito de relações desse discurso que envolve o Outro. Maingueneau

em nota esclarece que a utilização desse Outro, em letra maíscula, não corresponde

com a definição de Outro do psicanalista Lacan. Portanto, não é concebível que no

espaço discursivo se localize o Outro seja pela materialidade linguística, seja pelo

discurso, pois ele possui variadas relações.

2.4.5 Ethos Discursivo

Ao longo de sua trajetória, Maingueneau tem se preocupado com a noção de

ethos discursivo como algo que possui uma relação muito forte com as cenas de uma

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enunciação. Na constatação dessa combinação, ele afirma que o enunciador está

mais ou menos livre para escolher a sua cenografia, pois nos mais variados discursos

há uma subdivisão de papéis visto que tudo dependerá dos objetivos e dos

coenunciadores para os quais é destinado o discurso.

Apresentamos os enunciados como sendo o produto de uma enunciação que implica uma cena. Mas isso não basta: toda fala procede de um enunciador encarnado; mesmo quando escrito, um texto é sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além do texto. (MAINGUENEAU, 2013, p. 104)

Desse ponto, Amossy (2016) considera que a noção de ethos é fundamental

posto que um autor se envolve com aquilo que chama de noção de tonalidade que

substitui com mais qualidade, a noção de voz uma vez que se relaciona tanto com

escrita como com a fala. Há aí a constatação da “dupla figura do enunciador”: caráter

e corporalidade que são explicitados dessa maneira:

No conjunto, vê-se que a análise do discurso segundo Maingueneau retoma as noções de quadro figurativo apresentadas por Benveniste e de ethos, proposta por Ducrot, dando-lhes uma expansão significativa. A maneira de dizer autoriza a construção de uma verdadeira imagem de si e, na medida que o locutário se vê obrigado a depreende-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma inter-relação, entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficácia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adesão. Ao mesmo tempo, o ethos está ligado ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, ou melhor, ao processo de sua legitimação pela fala. A noção de ethos estabelecida pela análise do discurso encontra, assim, a sociologia dos campos, mas privilegia “o imbricamento de um discurso e de uma instituição”, 26 ou seja, recusando a retórica a partir da qual Maingueneau retoma a ideia de discurso eficaz, recusando-se totalmente a considera-lo uma “coleção de procedimentos a serviço de um conteúdo que procura encontrar uma forma”.27 (AMOSSY, 2016, p. 16)

A partir disso, fica mais compreensível a questão do ethos em Maingueneau

(2008b), quando ele afirma que ao irmos além da “maneira de dizer” e da “maneira de

ser”, entramos em um lugar enunciativo que traz sentido às ações humanas, isto é,

ainda que se tente negar as dimensões do ser, o discurso constituinte não deixa

escapar por ser portador de uma esquematização do corpo.

Aqui entra a questão da noção de ethos que tem, por um lado, origem no

mostrado, ou seja, percebemos o enunciador por meio do ato de enunciação que

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legitima o discurso dele, pois a personalidade do enunciador é revelada por meio do

modo como faz a enunciação já que “o poder de persuasão de um discurso consiste

em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido

de valores socialmente especificados” (MAINGUENEAU, 2013, p. 108). No entanto,

não se pode desprezar o ethos prévio, chamado anteriormente de pré-discursivo, pois

o público também constrói a imagem do ethos do enunciador, mesmo antes de ter

havido fala. Por outro lado, há o ethos dito no qual o enunciador fala sobre si mesmo.

Maingueneau (2008b), de posse do conceito de retórica apontada por

Aristóteles, concorda com algumas ideias de ethos, ponderando que isso se dá sem

que haja pré-julgamento da forma de exploração delas. Dessa maneira, considera que

“o ethos é uma noção discursiva”, pois é o discurso que o constitui; “o ethos é

fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro.”; “o ethos é uma

noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva)” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 63).

A partir disso, o autor deixa claro que prefere conceituar ethos não apenas na

dimensão verbal, mas também diante dos fatores que congregam as determinações

físicas e psíquicas que estão ligadas ao ‘fiador’ pelas representações coletivas.

2.4.6 Cenas de enunciação

Segundo Maingueneau (2008b), a noção de formação discursiva advinda de

Foucault (2012), se tornou base da escola francófona da Análise do Discurso por meio

de Pêcheux. Foi muito valorizada em seu início, no entanto, mesmo sem sofrer

apagamento, entrou em declínio a partir de 1980. Para ele, é preciso mostrar interesse

por aquela noção. Para isso, faz-se necessário discutir sobre as naturezas dos

propósitos dos analistas do discurso e da própria análise do discurso.

Maingueneau diz que o próprio leitor se confunde sobre as concepções de

formação discursiva na visão de Foucault; porque elas se perdem em duas injunções

contraditórias: definição de sistemas e desfazimento de toda unidade. Desse modo,

até mesmo os estudiosos de Foucault têm tido trabalho por conta dos enunciados que

estão submetidos a uma mesma regularidade e da dispersão que ultrapassa qualquer

coerência.

Para Maingueneau (2008b), Pêcheux possui uma visão muito mais clara de

‘Formação discursiva’ tomada de empréstimo do filósofo parisiense e que se instaura

no bojo das discussões althusserianas, que usam os termos ‘Formação social’ e

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‘Formação ideológica’. Esses termos, clássicos do Marxismo, definem ‘formação

discursiva’ como algo que determina o que pode e deve ser dito que vem sempre na

forma de um discurso: sermão, panfleto, exposição, programa etc, a partir de uma

posição dada em uma conjuntura dada.

Seguindo com a problemática sobre a noção de formação discursiva entre

Pêcheux e Foucault, Maingueneau salienta que os corpora referenciais desses dois

pesquisadores são muito distintos. O primeiro usa exemplos da luta política. O

segundo, da história das ciências. No entanto, mesmo não enxergando clareza na

noção de ‘Formação discursiva’ de Foucault, Maingueneau entende e, por isso,

pondera que o emprego desse termo é atribuído, quando um analista está diante de

um conjunto de textos, que não apresenta uma categorização de forma clara.

Maingueneau afirma que o termo ‘posição’, de Pêcheux, se difere de

‘posicionamento’. Este é definido dentro de um campo discursivo e ele o utiliza no

lugar de ‘formação discursiva’. Aquele, instaurado no âmbito das lutas sociais.

Maingueneau afirma que as práticas verbais ‘predelineiam’ espaços que são

chamados unidades territoriais. Essas práticas verbais são formatadas em tipos de

discursos que ecoam na sociedade (discurso administrativo, publicitário, político,

religioso etc.) e as subdivisões que podem ser apresentadas a partir deles. Esses tipos

de discurso são considerados heterogêneos, porque agrupam gêneros que fazem

parte de um aparelho institucional e que dependem de um mesmo posicionamento.

Por um lado, Maingueneau apresenta as unidades transversas que são aquelas

que traspassam muitos gêneros de discurso. Para falar sobre isso, apresenta três

tipos de registros: os linguísticos, que se definem por meio de bases enunciativas; os

funcionais, que são aqueles que classificam os desempenhos linguagem; e os

comunicacionais, que são definidos pelas linhas linguísticas enunciativas, funcionais

e sociais. Abrimos um parêntese aqui para dizer que Maingueneau cita três tipos de

registros: a tipologia linguística, que em verdade, as considera enunciativas porque

são dependentes de finalidades e conteúdos do discurso; A tipologia funcional que faz

divisão dos discursos segundo a finalidade deles e; A tipologia situacional que é

constituída por meio da definição de gêneros de discurso regidos por um processo de

análises sócio- históricas.

Esses registros são critérios que organizam a categoria de estatuto tipológico,

para que o analista possa manipular. A diferença está em nomear o terceiro tipo de

tipologias situacionais ao invés de registros funcionais. Ao fechar esse parêntese, é

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preciso pontuar que, por outro lado, para o autor, o analista do discurso é quem

determina as unidades não tópicas a serem estudadas. Elas não dependem de

preestabelecimentos, distinguindo-se das unidades territoriais, e, também, reúnem

enunciados instaurados na história, diferentemente das unidades transversas.

Com isso, o analista poderá elencar e pesquisar sobre algum tipo de discurso

presente em um momento de interação que pretende estabelecer enlaces propícios

ou não nas relações humanas.

Apenas o pesquisador pode determinar as estratégias que delimitem as

unidades e, com isso, envolver tipos de corpus distintos. Maingueneau afirma que a

nomenclatura ‘formação discursiva’ pode ser discutida nas unidades não tópicas, pois

a caracterização dela está na delimitação e na pesquisa de momentos discursivos que

se encontram em vários tipos de corpora. Como o pesquisador é quem define o seu

objeto de estudo e os discursos não tópicos se caracterizam por uma existência

percebida, mas que fica oculta por não serem reconhecidos pela sociedade, a partir

disso, é possível termos como referência a ação de o analista poder pesquisar

unidades não tópicas em unidades tópicas.

Esse tipo de alusão é possível por conta do foco do estudo de interdiscursos

que o pesquisador poderia empreender. É possível perceber discursos de certos

setores de atividades da sociedade em discursos não tópicos? Há a presença de

subdivisões de gêneros de discurso, mesmo de forma inconsciente, em mídias sociais

que apresentam diversidades de unidades tópicas. Tomamosmo discurso “Iniciando

os trabalhos” pertencente a ritos maçônicos e a atas forenses e governamentais. É

muito comum vermos em mídias sociais, as pessoas divulgando fotos do happy hour

da sexta-feira com aquele discurso.

Além disso, Maingueneau alerta que as unidades tópicas são fundamentais

para que haja análise do discurso, pois elas são oferecidas pelas práticas sociais e se

situam na dilatação das categorizações dos atores sociais, sem que se confundam

necessariamente. No entanto, o autor afirma que não pode haver análise do discurso

sem as unidades que contradigam os limites estabelecidos, ou seja, as unidades não

tópicas que, por meio de formações discursivas e dos percursos, são importantes para

o processo investigador do analista.

Maingueneau (2008b) aponta que a Arqueologia do Saber, de Foucault, traz

inúmeras dificuldades do ponto de vista da análise do discurso e ressalta que o mesmo

se beneficiou do sucesso que as teorias pragmáticas alcançaram pelo viés das teorias

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da enunciação. Depois disso, faz crítica sobre o corpus de referência de Foucault, As

palavras e as coisas, considerando-o reduzido em vista da amplitude das reflexões

sobre as ‘unidades do discurso, formações discursivas, função enunciativa etc’.

De outro modo, Maingueneau afirma que não se pode criticar aquele autor

apenas por se apoiar em um corpus limitado, mas indaga se a especificidade dele

altera a própria teoria. Ademais, pondera que a crítica dele está pautada na concepção

de análise de discurso que possui e que quando a obra foucaultiana foi publicada, não

havia parâmetros que pudessem conectá-la aos saberes dispostos na época. No

entanto, a partir dos conhecimentos que foram surgindo, ela foi sendo cada vez mais

elucidada. A partir disso, Maingueneau confirma que foi incitado a ler a teoria de

Foucault que, contrariamente, não fazia o mesmo com os textos de outros. No término

da parte I, explica o seguinte:

Minha leitura foi também infiel no sentido de haver interrogado essa obra a partir do espaço de uma disciplina cuja univocidade Foucault recusa. Se devêssemos comentar Foucault como filósofo, deveríamos procurar compreender a ambivalência de A Arqueologia e mostrar como, simultaneamente, ela estrutura e desfaz seu discurso. Porque o desenvolvimento de seu pensamento não é ambivalente por acidente; é a condição de um modo de pensar que instaura meticulosamente um mundo conceitual, mas que, ao mesmo tempo, esquiva, por meio de uma série sempre aberta de negações ou denegações, toda fundação e todo território. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 34)

Maingueneau (2008b) também trata dos conceitos de análise do discurso onde

é abordada em primeira instância, a questão dos discursos constituintes que, segundo

esse autor, estão acima de qualquer outro tipo de discurso por possuírem autoridade

própria, ou seja, eles são a fonte, o princípio que dão aos atos da coletividade,

sentidos provenientes do espaço que esses discursos constituintes ocupam no

interdiscurso.

Isso quer dizer que a noção de discurso constituinte está na questão de que

ele só pode ser autorizado por si próprio, pois é o afiançador das mais variadas

práticas discursivas sociais que legitimam as ações dos membros da sociedade. Os

mais evidentes são o discurso religioso, o científico e o filosófico.

Ao falarmos disso, é importante trazermos de Maingueneau, como se dá a

constituição dos discursos constituintes. Eles são provenientes de duas dimensões

que se apresentam na instauração daquilo que é legal. Assim, o discurso estabelece

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a legitimidade dele e constitui seu aparecimento no interdiscurso. E na formação dos

modos de organização e de coesão discursiva. Essa constituição organiza os

elementos que fazem parte da “totalidade textual”.

A Análise do Discurso está centrada na indissociabilidade dessas duas

dimensões porque elas convergem para a constituição no sentido jurídico-político,

pois o texto carrega sentidos que servem de norma e garantia ao lugar-comum da

coletividade. Dessa forma, discurso constituinte atravessa e é atravessado nos outros

discursos constituintes. Ele irá se firmar com uma constante renegociação de seus

estatutos.

A discussão em torno da “formação discursiva” de Foucault, de certo modo,

volta à tona, quando Maingueneau diz que os discursos constituintes se confundem

nos diversos posicionamentos, no entanto, considera fraca essa noção de

posicionamento que enxerga apenas estatutos separados (doutrina, escola, teoria,

partido, tendência etc). Para ele, é na comunidade que se pode avaliar os enunciados,

pois os mesmos preservam a memória por meio de normas partilhadas pelos

membros dessa comunidade e que estão atreladas a distintos posicionamentos.

Essas comunidades são chamadas por ele de discursivas e estão divididas em

duas partes: as que geram discurso e as que produzem, pois os discursos

movimentam os diversos papéis sociodiscursivos, além dos atores. A negociação

entre o lugar e o não lugar da enunciação é tratada como localidade paradoxal que é

chamada de paratopia.

A paratopia é, ao mesmo tempo, aquilo que permite o acesso a um lugar e que

cerceia qualquer pertencimento. Mencionamos sobre a paratopia aqui, de forma

breve, porque, na esteira dos discursos constituintes, ao falar sobre a cena de

enunciação, Maingueneau reafirma que a situação de enunciação não pode ser posta

em um quadro preestabelecido porque não pode ser modificado, nesse caso. Ela se

estabelece como cenografia onde enunciador e co-enunciador estão em um lugar e

em um momento que atestam a existência dela.

No item anterior, vimos por meio de Maingueneau (2008b), a abordagem sobre

o ethos. Para esse autor, o ethos proporciona ao destinatário um lugar inscrito na cena

de enunciação que está sobreposto nos planos complementares intitulados de cena

englobante, cena genérica e cenografia.

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2.4.6.1 Cena englobante

A cena englobante faz parte do tipo de discurso que coloca as pessoas a par

de qual tipologia discursiva está representada em um determinado corpus e de que

maneira esse corpus se dirige ao leitor.

2.4.6.2 Cena genérica

A cena genérica traz à baila a questão de gêneros de discurso, pois para

Maingueneau (2008b) é necessário considerar o gênero quando a pesquisa envolve

o tipo de discurso. Sem isso, haverá uma dificuldade em situar o co-enunciador na

cena de um discurso. Essa questão do estudo de gêneros de discurso também

envolve a cena englobante, pois, juntas, cena genérica e cena englobante, formam o

quadro cênico do texto onde é proposta a linguagem usual daqueles sujeitos que estão

em relação.

2.4.6.3 Cenografia

Maingueneau (2008b) considera que é o discurso que impõe sua cenografia.

Basta que os seus leitores aceitem o lugar que se pretende a partir da imposição

dessa cenografia, inclusive os universos de sentido que fazem parte dela. Dessa

forma, a cenografia compreende a figura do enunciador e co-enunciadores que se

encontram em um momento (tempo) e em um lugar (espaços ideológicos e históricos).

Para fazer ilustração disso, Maingueneau (2008b) discute sobre cenografia

epistolar e debate público. A carta não é vista como um gênero de discurso, mas como

cenografia de carta privada estimulada por diversos discursos de outros gêneros. Em

seguida, diz que a cena englobante que segue um estatuto pragmático, escolhe o

discurso que interpelará o leitor. Segundo Maingueneau (2008b), a cena englobante

não dá conta de descrever as atividades discursivas onde os sujeitos estão

envolvidos. Assim, a cena genérica é definida por gêneros de discurso particulares,

utilizando linguagens internas e externas (sociolinguageiras), seguindo uma

classificação de gêneros e subgêneros e utiliza a carta como exemplo.

Maingueneau (2008b) analisa o gênero epistolar para falar da cenografia

referente à carta do Presidente francês François Mitterrand quando era candidato à

reeleição presidencial, em 1998. Por meio dela, esse autor afirma que, mesmo que se

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trate de uma carta enviada para todas as famílias francesas, se percebe que a cena

englobante é o discurso político, sua cena genérica, um programa eleitoral e sua

cenografia, uma carta privada.

Com esses espaços voltados para a constituição da cena englobante, cena

genérica e cenografia temos respaldo suficiente para estabelecermos as nossas

análises diante de discursos testamentais do século XIX.

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CAPÍTULO III

A AUTORALIDADE EM ANÁLISE DE DISCURSO

3.1 Por uma concepção de autor em Barthes, Foucault e Chatier

A partir do contato com a novela Sarrasine, de Balzac, cuja narrativa se baseia

em um personagem que é castrado e se disfarça de mulher, sendo descrito como uma

mulher cheia de medos, desejos irracionais, distorções instintivas, coragem não

justificada, arrogância e uma agradabilíssima delicadeza de sentimentos, Barthes fez

o mundo pensar sobre a questão de até que ponto um autor ainda é considerado

depois de deixar a sua materialidade linguística pronta. Assim, delineara uma

provocante temática acerca da relevância do autor, da criticidade e do leitor.

Barthes (2004), por meio do exemplo da novela de Balzac, questiona se o autor

daquela narrativa seria o próprio Balzac com suas experiências pessoais filosóficas

sobre a mulher, o herói da novela ou o autor Balzac com os seus pensamentos

literários sobre a mulher. Barthes afirma não ser possível saber disso porque a escrita

é o aniquilamento de vozes e é desse modo que ela se torna neutra, pois vai perdendo

a sua identidade a partir do corpo de quem a registra, tornando-se independente do

sujeito que escreveu.

Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde esta multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura (...) (BARTHES, 2004, p. 64).

É possível perceber que Barthes quer enfatizar o leitor como uma potência

existente por meio da obra, mas que, ao mesmo tempo, existe de forma desvinculada

de uma obra. Para ele, “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor”

(BARTHES, 2004, p. 65). Sendo a enunciação a marca do tempo existente, o que

interessa, em realidade, é o aqui e o agora que tem como pressuposto teórico, a

performatividade, visto que

Em França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de pôr a própria linguagem no lugar

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daquele que até então se supunha ser o seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia - impossível de alguma vez ser confundida com a objetividade castradora do romancista realista - atingir aquele ponto em que só a linguagem atua, «performa», e não «eu»: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (o que é, como veremos, restituir o seu lugar ao leitor). (BARTHES, 2004, p. 59).

Assim, a linguagem se constitui em um ambiente onde cabe multiplicidade de

construção de sentidos por conta das milhares de culturas diferentes. O autor possui

o poder de organizar os tecidos, mas sem o controle dos fios que os formam. Para

Barthes, não importa quem escreveu, pintou, projetou porque a capacidade da escrita

pertence à humanidade desde a sua existência. Portanto, não há um autor

inaugurante.

Barthes utiliza o termo “scriptor”, para dizer que esse não possui paixões,

humor, sentimentos e impressões porque busca a escrita em um “imenso dicionário”

onde há um emaranhado de signos que possuem significações diversas por estão

alojados nas multiplicidades culturais.

Um ano depois da reflexão que considerou a escrita como algo independente,

surgiu a obra Quem é o autor? advinda de uma conferência realizada na Societé

Française de Philosophie, em 1969. Nela, Foucault justificou a não expressão sobre

obras e autores no livro As palavras e as coisas porque a intenção era a de apresentar

a sua inquietação sobre em que condições as práticas discursivas específicas

funcionam. Essa justificativa surgiu depois de ter feito uma mea-culpa sobre a questão

de ter sido ingênuo ao tratar de Marx, por exemplo, de forma insuficiente, como a

crítica apontara.

Ele não se coloca na ingenuidade por causa de sua obra, pois demonstra que

a real intenção não era reproduzir o que Buffon, Lineu, Cuvier e Darwin disseram.

Antes de tudo, quis apresentar quais foram os métodos que esses estudiosos

utilizaram para apresentarem as suas teorias e sua inocência consistia em não

considerar a possibilidade de sofrer crítica quando comparou o trabalho daqueles

autores.

Foucault se antecipa ao questionamento sobre por que teria usado nomes de

autores em seu livro As palavras e as coisas se a sua intenção estava voltada para as

condições de funcionamento de práticas discursivas específicas? O autor justifica

dizendo que a sua vontade era a de posicionar as grandes unidades discursivas tais

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como a história natural ou economia política, localizando, analisando e descrevendo-

as. Para isso, precisaria descobrir com que métodos seria possível escandir essas

unidades discursivas. Foi a partir dessa indagação que resolveu citar o nome dos

investigados.

Dessa forma, aponta sobre a pretensão de examinar, de modo exclusivo, a

relação do texto com o autor e de como o texto se posiciona considerando que o autor

é um sujeito exterior e anterior ao texto, pois considera, em primeira temática, que o

sujeito que escreve está sempre desaparecendo porque a escrita não fica aprisionada

em sua interioridade e, diante isso, possui identidade com exterioridade manifesta.

Em segundo tema, aborda a questão da aproximação da escrita junto à morte para

registrar a imortalidade do herói presente nas epopeias e narrativas gregas. Foucault

afirma que a cultura do herói que é sacrificado ainda jovem para ter o reconhecimento

pela morte, é uma narrativa que afirma essa ligação com o assassinato do autor.

Esse tema da narrativa ou da escrita feitos para exorcizar a morte, nossa cultura o metamorfoseou; a escrita está atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida; apagamento voluntário que não é para ser representado nos livros, pois ele consumado na própria existência do escritor. A obra que tinha o deve de trazer a imortalidade recebeu agora da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular, a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. Tudo isso é conhecido; faz bastante tempo que a crítica e a filosofia constataram esse desaparecimento ou morte do autor. (FOUCAULT, 2002, p. 36)

É dessa forma que ele quer dizer que as marcas das particularidades de um

sujeito escritor vão sendo apagadas por ele próprio. Isso significa que na ação de

escrever o autor se faz de morto porque a marca dele aparece por meio de sua

ausência. A partir disso, indaga sobre o conceito de obra e quais são os elementos

que a constituem. Tudo aquilo que um indivíduo escreve ou diz pode fazer parte de

uma obra? No caso desse indivíduo ser um autor, toda escrita ou fala dele faz parte

da obra que deixou? Aqui, quando se fala de “toda escrita ou fala”, ele está

questionando se nisso entram os aforismos, as anotações, as emendas e notas de

rodapé, indicações de encontros ou endereços, recibos de lavanderia etc. Isto é, os

traços ou as marcas deixadas pelo autor, mesmo com estas características últimas

mencionadas, podem fazer parte de sua obra? Segundo o filósofo, ainda que

consideremos que não façam parte, isto é uma ação que continua indefinida.

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Por meio desse questionamento sobre a noção de obra, Foucault se depara

com outra problemática que está relacionada com o nome do autor. Segundo ele, a

relação que existe entre o nome próprio e o indivíduo que o carrega, não é a mesma

que se dá entre autor e o nome, pois estas relações não são isomórficas e exemplifica

desse modo:

Pierre Dupont não tem os olhos azuis, ou não nasceu em Paris, ou não é médico, etc., mesmo assim Pierre Dupont continuará sempre a referir-se à mesma pessoa; a ligação de designação não será por isso afectada. Pelo contrário, os problemas postos pelo nome de autor são muito mais complexos: se descubro que Shakespeare não nasceu na casa em que se visita hoje como tal, a modificação não vai alterar o funcionamento do nome de autor; mas se se demonstrasse que Shakespeare não escreveu os Sonetos que passam por seus, a mudança seria de outro tipo: já não deixaria indiferente o funcionamento do nome de autor. E se se provasse que Shakespeare escreveu o Organon de Bacon muito simplesmente porque o mesmo autor teria escrito as obras de Bacon e as de Shakespeare, teríamos um terceiro tipo de mudança que alteraria inteiramente o funcionamento do nome de autor. O nome de autor não é, portanto, um nome próprio exactamente como outros. (FOUCAULT, 2002, p. 43)

Foucault, portanto, enxerga que o nome do autor está longe de ser um nome

próprio porque a função dele assegura uma função de classificação nos discursos.

Nessa visão, os discursos serão recebidos de modos diferentes uma vez que

dependem da ação de determinados estatutos e culturas que consideram que o nome

do autor é importante para dar credibilidade ao texto que o filósofo intitula de “função-

autor”.

A função-autor é aquela que dá ao discurso as modalidades de existência, de

circulação e de funcionamento dentro dos espaços sociais e foi caracterizada de

quatro maneiras, consideradas fundamentais para o filósofo. A primeira delas está

atrelada ao sistema jurídico e institucional onde autor é responsável pelas possíveis

transgressões sociais dentro do seu discurso, por isso, esses discursos tornam-se

escopo de apropriação penal.

A segunda característica identificada na função-autor é que não há um

processo uniforme de recepção no que diz respeito a todos os discursos, pois é

preciso considerar todas as épocas em todas as civilizações. Alguns discursos não

precisam de um autor para determinar o seu sentido e eficácia. Por exemplo,

modernamente, um internauta pode se contentar com afirmações advindas da rede

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mundial de computadores, mesmo que não haja a menção de um autor. Há textos de

blogs de empresas que utilizam o marketing digital como meio de divulgar conteúdos

que, em tese, beneficiam um futuro cliente, pois os conhecimentos são produzidos

com a intenção de sanar uma necessidade de alguém de modo gratuito e, dessa

forma, conquistar a confiança dele. Após o oferecimento desses conteúdos gratuitos,

a empresa faz uma oferta na intenção de vender. Esses textos, normalmente, não

possuem um autor explícito.

Mesmo nas áreas nas quais o autor precisa aparecer (a literatura, a filosofia e

a ciência), há algumas condições em relação à importância de constar a autoria. Na

idade média, o texto científico tinha mais valor quando trazia o seu autor. A partir do

século XVII essa condição começou a declinar-se até o seu desaparecimento. Já para

a literatura, a premissa era outra, pois a atribuição a um autor na Idade Média, não

existia, enquanto que no século XVII, havia um fortalecimento na inclusão do nome

do autor.

A terceira característica da função-autor está em apontamentos feitos por meio

de analogias e estudos que são parecidos com o mesmo método que e exegese usa.

Para se definir o valor de autor, é necessário observar fatos linguísticos distintos,

transformações e deformações. Desse modo, a atribuição a um autor não é feita de

modo espontâneo. Como por exemplo, a exegese descobriu que nem todas as

epístolas de Paulo, do novo testamento, foram escritas por ele. Para que os primeiros

cristãos pudessem ter mais confiabilidade no texto, os autores, discípulos de Paulo,

utilizavam o nome do apóstolo para dar mais prestígio ao texto por conta do seu

histórico de estudos e pelo modo como se converteu ao cristianismo. Das trezes cartas

do novo testamento, atribuídas a Paulo, seis são conhecidas como deuteropaulinas.

São elas: 2ª Tessalonicenses, Colossenses, Efésios, 1ª e 2ª Timóteo e Tito.

Foucault ainda apresentou uma quarta e derradeira característica onde

demonstra que a função-autor não representa uma individualidade real. Pelo contrário,

para o filósofo, essa quarta característica aponta que todos os discursos possuem

uma multiplicidade de “eus”, pois um mesmo sujeito pode transmitir várias

discursividades ao longo de suas escritas, nos distintos contextos nos quais percorre.

O exemplo que ele usa é o do sujeito que fala em a um prefácio de um tratado de

matemática. A fala desse mesmo sujeito é diferente quando se trata de uma

demonstração ou apresentação de obstáculos e dificuldades que ocorrem durante o

trabalho dele.

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Ao querer apagar a figura do autor, Foucault quer mostrar que todos os

escritores são compositores de discursividades e, por isso, esses discursos

instaurados sofrem transformações diversas posteriormente porque são

heterogêneos. Para ele, o apagamento do autor possui um objetivo específico de

aproveitar as formas próprias dos discursos e isso pode nos motivar a pensar no

porquê de ele utilizar a fala de Beckett: “Que importa quem fala; alguém disse: que

importa quem fala”. Nessa baila, Roger Chartier é um dos expoentes que aproveitou

o questionamento e os apontamentos de Foucault para continuar no preenchimento

de lacunas em relação à existência ou não do autor.

A conferência de Michel Foucault deixou algumas arestas que permitiu a

Chartier, autor do livro O que é um autor?, ratificar a proposta do filósofo francês por

meio de pesquisas sobre impressos provenientes da História Cultural. Utilizamos o

verbo ratificar porque tal esforço empreendido pelo professor e historiador não nega

a proposição de Foucault, pois o objetivo do regresso ao conteúdo daquela

conferência foi dar mais substância para o pensamento crítico sobre os processos de

reflexão sobre a autoralidade dos textos.

Quais são as outras extensões que tratam da materialidade do discurso? Essa

é uma questão que visa contribuir no exame da ordem do discurso, pois para Chartier

(2010), um leitor só encontra um texto quando se propõe ir atrás de um formato

específico, uma vez que a ordem do discurso é sempre determinada pela

materialidade. Além disso, pondera que, quaisquer que sejam os textos, é necessário

atrelar os seus estudos com os formatos que caracterizam a própria existência, bem

como com outros que se apropriam de dados que lhes dão sentido.

É perceptível, portanto, a aproximação da teoria de Foucault para que

houvesse uma interlocução que contribua para a busca de mais respostas. Por isso,

quando o historiador vai ao encontro das ideias do filósofo, a intenção é fazer parte

da defesa dela. É óbvio que essa tentativa foi arriscada, no entanto, ao apoderar-se

das ideias foucaultianas sobre o apagamento do autor, tornou-se autor delas também.

Isso possibilitaria a ele, a reflexão crítica em torno delas.

Em seu livro A História Cultural, Chartier (1988) fala sobre as diferenças entre

os textos, os impressos e as leituras que preveem sentidos diversos que podem levar

os leitores a uma prática de leitura que criam espaços imprevisíveis. Por isso, a

investigação fala sobre o paradoxo que envolve a história da leitura que considera o

condicionamento do leitor pela característica poderosa que o texto possui. Isso nos

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remete ao desaparecimento da prática de uma leitura independente e, ao mesmo

tempo, é preciso considerar a independência do leitor que é um atributo importante

para que haja a construção de sentidos nem sempre pretendidos,

o que significa encarar os actos de leitura como uma coleção indefinida de experiências irredutíveis umas às outras. Transformar em tensão operatória aquilo que poderia surgir como uma aporia inultrapassável e o desígnio, a aposta, de uma sociologia histórica das práticas de leitura que tem por objetivo, identificar, para cada época e para cada meio, as modalidades partilhadas do ler – as quais dão formas e sentidos aos gestos individuais -, e que coloca no centro da sua interrogação os processos pelos quais, face a um texto, é historicamente produzido um sentido e diferencialmente construída uma significação. (CHARTIER, 1988, p. 121)

Chartier elencou um texto espanhol antigo que veio logo depois dos primeiros

momentos do surgimento da impressa para delimitar o trabalho realizado entre os

textos, as impressões e os modos de leitura.

No prólogo desse texto, Fernando de Rojas faz uma interrogação sobre qual

seriam os motivos que pudessem esclarecer o fato de sua obra ter sido interpretada

de formas diferentes, desde quando houve a primeira edição, em 1499, em Burgos.

A questão é simples: como é que um texto que é o mesmo para todos aqueles que o leem pode tornar-se um «instrumento de lid o contienda a sus lectores para ponerlos en diferencias, dando cada una sentencia sobre ella a sabore de su voluntad»? E a partir desta interrogação de um autor antigo sobre um velho texto que gostaríamos de formular as propostas e as hipóteses essenciais que estão na base de um trabalho empenhado, sob diversas formas, na história das práticas de leitura, entendidas nas suas relações com os objectos impressos (que não são todos os livros, longe disso) e com os textos a que servem de suporte. (CHARTIER, 1988, p. 122)

O historiador aponta que, para Rojas, há contrastes na ocasião da recepção do

texto porque os próprios leitores pertencem a uma diversidade de características e de

humores e nisso, há também, uma pluralidade de predisposições e perspectivas.

Chartier (2012) indica três articulações que, juntas, podem dar condições de

determinação da estrutura dos regulamentos, de verificar as adaptações que são

feitas e quais são os tipos de valores que se fazem ao utilizar os objetos.

No processo de demonstração da primeira articulação, Chartier retoma a

categoria autoria porque entende que o sentido também se constitui por meio dela.

Isso nos leva à volta a um enunciado recalcado que dentro dos parâmetros freudianos,

trata-se de um mecanismo de defesa de quem enuncia, pois o recalque é uma

instância psíquica que divide a consciência do inconsciente. É por isso que no ato

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enunciativo há a organização de traços de memórias que ficam retidos no inconsciente

porque são marcas de nossas experiências afetivas.

Para Freud (2007), as vivências ficam recalcadas no inconsciente para que não

apareçam a todo momento no nosso consciente. Portanto, segundo a teoria

psicanalista, um inconsciente muito bem recalcado não traria à tona os sofrimentos já

vividos, evitando, dessa forma, a angústia. O problema que há nisso tudo é que o

processo psíquico dos sujeitos funciona o tempo todo e o inconsciente quer trazer de

todo modo as ideias recalcadas para o consciente e ele consegue fazer isso, já que a

nossa instância psíquica não é imune às falhas.

Voltando para os pressupostos teóricos de Chartier, falar em enunciado

recalcado não elimina a figura do autor como um produtor experimental, nem as

questões da originalidade psicológica. O que ele quis dizer é que a função-autor tem

por ação a classificação e a divisão dos discursos a partir das escolhas que se faz da

materialidade linguística. Isso nos mostra que a perspectiva dos textos está vinculada

aos processos subjetivos de um sujeito-autor que se apresenta ora anonimamente,

ora na coletividade com legitimação que é reconhecida socialmente. A revista de

História do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP nos ajuda

nessa leitura sobre Chartier dizendo que

Os objetos produzidos pressupõem, por isso, nos usos que fazem das prescrições retóricas do seu gênero, uma presença classificatória que os distribui segundo os regimes de legibilidade e intencionalidade de uma função autoral. Sua própria forma prescreve os modos e os sentidos com que devem ser lidos - literatura, filosofia, ciência, religião, política, poesia como se a representação fosse ao mesmo tempo mimética e judicativa, como diz Weimann, ou representativa e avaliativa. Assim, se os objetos discursivos modalizam o sentido da sua representação segundo um "ponto de vista", ou seja, se eles fazem uma transformação do material que se pode caracterizar como a deformação de um valor de uso da matéria semiótica da língua e das convenções retóricas de representação, a determinação dessas convenções e dos critérios dessas deformações será básica para se determinar a forma mentis que organiza o discurso como um padrão ou um modelo cultural. (HANSEN, 1995, p. 124)

A partir dessas relações feitas pelo autor empírico, surgem a segunda e a

terceira articulações apontadas por Chartier. A segunda articulação está voltada para

a significação do texto, mas, ao contrário do que se poderia pensar, ela não evita a

matéria, ou seja, a materialidade linguística é considerada porque ordena as

perspectivas advindas das apropriações.

A terceira está ligada com o ouvinte ou o leitor quando eles se tornam autores

guarnecidos com a mesma autoridade do autor que estão em contato. Isso é chamado

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de consumo produtivo porque o leitor que se tornou parte da autoria irá dar

significação às variadas representações e posicionamentos. Chartier disse que é por

isso que se deve considerar as regulamentações e as comunidades leitoras, as

categorizações, as organizações onde circulam, os ciclos, as memórias etc.

Assim, esta noção de apropriação em Chartier pode se relacionar com as

exigências de iniciativas individuais que podem, até mesmo, dar outro sentido

considerando o original ao fazerem uso dos objetos. O tom de Foucault em relação à

apropriação é divergente já que o filósofo usa isso como uma ferramenta para colocar

ordem para as instituições que determinam os sinais da repressão nos sujeitos.

Por meio das três articulações apresentadas com o ponto de vista da

apropriação, Chartier dá luz à matéria para que os objetos falem por si mesmos. Isso

faz com que se dê ênfase aos múltiplos sentidos que advém das condições e da

materialidade.

3.2 A noção de autor em Maingueneau

Considerando a importância do artigo de Roland Barthes, A Morte do Autor,

Maingueneau (2010b) afirma com surpresa que os analistas do discurso,

principalmente os que atuam com os corporas escritos, ainda não estão atentos à

temática da autoralidade que foi levantada, também, por Foucault que, em 1969,

questionou em uma conferência: O que é um autor?

Para Mangueneau, o discernimento de autor é pertencente à noção de texto,

pois é possível considerar o texto como uma instância para a qual se vincula um

posicionamento autoral ainda que essa autoralidade não seja constituída de um

indivíduo singular, corporificado e provido de um estado civil. Para ele, a autoralidade

deveria ser uma questão central para a AD, já que há a sobreposição mútua de textos

e lugares sociais. Dessa forma, é possível considerar a existência de uma

categoria híbrida, que implica ao mesmo tempo o texto e o mundo do qual este texto participar, O autor é uma instância que enuncia (atribui-se-lhe um ethos e a responsabilidade de alguns gêneros de textos, em particular os prefácios), mas também certo estatuto social, historicamente viável. A reticência dos analistas do discurso em relação à autoralidade pode, no entanto, ser compreendida, se considerarmos as condições nas quais se desenvolveu seu campo de pesquisa. (MAINGUENEAU, 2010b, p. 26).

Maingueneau afirma que é possível levantar um contraponto para tentar

justificar esta falta de curiosidade dos analistas em examinar a autoralidade. Tratam-

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se das questões da polifonia linguística e de tudo aquilo que circunda a

heterogeneidade ou a modalização. Mesmo estando em um lugar que pertence ao

linguístico, transbordam fontes enunciativas delas. Assim, a autoridade vai além do

campo linguístico e se mostra na associação entre o jurídico e o texto que se organiza

em formatos históricos específicos. É desse modo, que ele ameniza a questão da não

valorização da categoria autoral.

Para Maingueneau (2010b), é preciso velar o princípio fundante da noção de

autor que restringe a palavra “autor” à produção verbal. Este alerta serve para afirmar

que a noção de autor não pode estar atrelada a apenas aos enunciados. Ele cita que

no universo jurídico é possível encontrar designações tais como: “o autor de facadas”,

“o autor da agressão”, “o autor do excesso de velocidade” e acrescentamos, “o autor

da ação”.

No entanto, o que realmente interessa para Maingueneau está na indagação

de saber em quais condições um enunciado possui a tendência de se ter um autor,

haja vista a dificuldade de se conceber essa noção em uma conversação já que

uma produção verbal, parece, não é autorizável, isto é, atribuível a um autor, a não ser que ela seja objeto de uma re-presentação que permita enclausura-la, apreendê-la do exterior, como um todo de maneira a atribuí-la a uma entidade escolhida entre um conjunto de candidatos possíveis, colocada como responsável. Neste último termo se misturam intimamente atribuição de origem (X é a causa do enunciado) e dimensão ética (X deve poder “responder por ele”, reconhece-lo como sendo seu). A ideia de uma responsabilidade partilhada e dinâmica, como é o caso em uma conversação, repugna ao uso que comumente se faz do nome “autor”. (MAINGUENEAU, 2010b, p. 28).

Para dar mais fôlego à questão da autoralidade, Maingueneau traz à baila três

dimensões sobre a noção de autor como proposição de esclarecimento de tudo o que

envolve a temática.

Intitulada “autor-responsável”, a primeira dimensão é considerada a mais

evidente por pertencer a uma instância que possui um “estatuto historicamente

variável que responde por um texto”. (MAINGUENEAU, 2010b, p. 30). O autor-

responsável não é o enunciador que possui correlação com o texto. Também não se

trata do produtor “em carne e osso” e instituído em um estado civil.

Essa instância não possui relação com a literatura porque para “ser o autor de

um texto” basta pertencer a qualquer gênero discursivo já que poderá ser

encaminhado a um responsável.

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Na segunda dimensão, Maingueneau fala da instância “autor-ator”, ou seja,

aquele que atua com o mundo da escrita sem necessariamente ser um profissional.

Nesta organização há variações porque dependem de lugares, épocas e as posições

escolhidas como é o caso, por exemplo, de um arquiteto que escreve, semanalmente,

para uma coluna de jornal que trata sobre “bem-estar e convivência”. A palavra “autor”,

dessa maneira, será correspondente a “escritor”, “homem das letras”, “intelectual” etc.

A terceira dimensão é aquela em que o autor possui correlação direta com uma

obra. Maingueneau utiliza o termo “auctor” para que se evite a confusão com a palavra

“autor”, pois nela há a presença natural de um “responsável”. No caso de “auctor”,

apenas alguns indivíduos alcançam esse status. Esse fato é devido à associação

deles a uma obra que Maingueneau chama de Opus que não é um compilado de

textos dispersos.

Em verdade, Opus já possui uma raiz etimológica do latim opus, eris que

significa obra, mas, para este caso, a sua utilização é definida para justificar que um

Opus “pode até ser constituído por um único texto, mesmo que só um texto dele tenha

chamado a atenção” (MAINGUENEAU, 2010b, p. 30).

Esse analista francês faz considerações sobre o “autor” para que essa figura

possa ser reconhecida em várias etapas. Na primeira etapa, Maingueneau aponta

para aquela autoralidade que está em um produtor que convive com uma dispersão

de textos e se torna responsável por eles. É o caso, por exemplo, de um jornalista que

assina notícias ou reportagens de um jornal diário.

Em outra etapa, a publicação de um ou diversos textos pelo próprio produtor

podem qualifica-lo como um “autor”. Textos dispersos reunidos em um Opus também

podem fazê-lo um “auctor”. Na impossibilidade do produtor fazer a reunião dos textos,

seja por incapacidade, seja por morte, um terceiro poderá fazer a ponte entre o

“auctor” e terceiros. Esse organizador possui o poder de constituir ou até mesmo,

desconstruir um “auctor” a depender do tipo de intervenção realizada.

Maingueneau aponta outro tipo de etapa que se dá no reconhecimento da

plenitude de um “auctor”. Para isso, ele precisa ser reconhecido, isto é, possuir uma

imagem de autor. Tudo dependerá dos envolvidos no processo. Um nível bem raso

dessa plenitude está em um autor que publica sua obra, mas é reconhecido apenas

por amigos e familiares. Esse nível de “autoctoridade” amplia-se quando o mesmo é

citado pela mídia por diversas vezes. Ressalta, ainda, que um produtor muito

reconhecido pode trazer junto a sua obra, um volume de textos de outros produtores.

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A escolha desses textos é proveniente de um critério que segue a linha de

pensamento pessoal.

Em última etapa, Maingueneau aborda o estatuto de “auctor” maior. Esse termo

surge a partir do momento que rascunhos, cartas privadas, atividades escolares,

anotações, diários íntimos etc são publicados. Isso demonstra o prestígio

extraordinário desse tipo de “auctor”.

3.3 Autoralidade e Ethos discursivo

Como vimos, Mangueneau pondera que a questão autoral está ligada ao

pertencimento da noção de texto, pois é ele que carrega a disposição do autor que,

no caso dos corpora testamentais, trata-se de uma pessoa singularizada e

corporificada, além de ter uma posição em seu estado civil. Se essa questão da

autoralidade deveria ser, para Maingueneau, primordial para a AD por conta das

múltiplas relações textuais e sociais, podemos reafirmar isso em razão da

especificidade desse tipo de discurso no qual cabem enunciados que trazem questões

de ordenação jurídico-religiosa, mas que têm por princípio, o respeito pelas vontades

enunciativas do autor que ali possui o protagonismo de seu legado nos ambientes

sociais dos quais pertence.

Se se considera que um autor por possuir um ethos e a responsabilidade da

participação em um gênero de discurso, além de sua inserção na regularidade social

e histórica, o nosso campo de pesquisa está alinhado com esta perspectiva uma vez

que a enunciação testamentária do século XIX é revestida de competência para dizer

que aquele enunciador corporificado irá compor um ato personalíssimo do direito,

conforme descrevemos no capítulo I. Isso nos mostra que daquele lugar linguístico há

um manancial enunciativo que é organizado por uma dimensão histórica

particularizada.

Mesmo sem ficar explícito na enunciação, o ethos está lá, na forma falada ou

escrita. Elas envolvem uma subjetividade no discurso e dessa maneira, aquilo que foi

dito possui uma autoralidade por ser representado por um corpo que enuncia por meio

de um tom. Essa corporalidade possui um modo de existência e de movimento nos

espaços sociais que põem à vista traços psicológicos, reveladores daquele ethos.

Maingueneau exalta que o corpo que enuncia adquire um aprendizado por meio

de costumes globais, pois essa corporeidade e caráter afiançadores são provenientes

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de um conjunto de performances sociais que são valorizadas ou desavalorizadas e é

nelas que a enunciação se apoia para confirmá-las ou modificá-las.

O universo de sentido propriciado pelo discurso impõe-se tanto pelo ethos como pelas “ideias” que transmite; na realidade, essas ideias se apresentam por intermédio de uma maneira de dizer remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em uma experiência vivida. O texto não se destina a ser contemplado, configurando-se como enunciação dirigida a um coenunciador que é preciso mobilizar, fazê-lo aderir fisicamente a um determinado universo de sentido. O poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores socialmente especificados. (MAINGUENEAU, 2010b, p. 108).

Considerando que a AD ainda possui um vasto campo a ser investigado em

alguns aspectos, Maingueneau sempre foi claro na exposição de suas pesquisas ao

dizer que as categorias de autoralidade e de ethos merecerem mais atenção por parte

dos analistas. Quando ele sustenta que o destino do texto enunciado não é a sua

contemplação por considerar o coenunciador como um agente que necessita

mobilizar-se rumo à construção de sentido, é possível fazer uma inferência sobre as

questões complexas de autoralidade e ethos que apontamos aqui.

Apesar de haver correlações daqueles conceitos sobre autoria e ethos,

juntamente com essa questão do papel do coenunciador, precisamos estabelecer

base de escolhas para indicar como estamos pretendendo preencher uma lacuna

neste campo de pesquisa por conta da especificidade de nosso corpora que é do

século XIX e foi instituído no gênero discursivo testamental.

Por se tratar de enunciados que são estabelecidos por um ordenamento

jurídico-religioso, nosso corpora requer uma atenção especial nesse quesito já que os

coenunciadores conhecem esse tipo de obrigações e que elas precisam ser

cumpridas em razão de um processo que envolve leis constituídas em um código civil,

conhecido como Consolidações das leis civis, e por outro da Igreja Católica, chamado

de Consolidações do Arcebispado da Bahia que circulavam no Brasil. Nesse sentido,

faz-se necessário dizer que aquela questão da mobilização que o coenunciador

deverá fazer, será obrigatória no sentido de acatar todas as disposições de última

vontade atestadas e lavradas naqueles discursos testamentais, pois além do respaldo

discursivo ordenado em leis, há a constatação do ethos religioso vindo das memórias

sociais constituídas nos discursos por meio da religião católica e a religiosidade

popular praticada.

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É por isso que esse discurso é intitulado jurídico-religioso. Ainda que a essência

do motivo da construção desse tipo de discurso seja a forma jurídica, o que está em

ênfase na pauta é a motivação religiosa instaurada e marcada na vida cotidiana

daquele recorte temporal. Dessa forma, lembramo-nos do filósofo Nietzsche (2016)

que afirma que o homem que acredita em um ser supremo torna-se dependente e por

isso, não pertence a si mesmo, mas ao ente da ideia que pertence à crença dele.

Assim, a cena de enunciação instaurada por um procedimento que circunda o

destinatário é proposta por esse ethos que conhece a obrigação legítima do

ordenamento jurídico e se apoia, também, nas inscrições determinadas pelas

constituições de enunciados que consideram a fé. Sobre essas questões enunciativas

sobre fé, colocamos aqui a reflexão do filósofo alemão do século XIX, Nietzsche, que

afirmou:

É contra este instinto teológico que guerreio: encontro vestígios dele por toda parte. Todo aquele que possui sangue teológico em suas veias é cínico e desonrado em todas as coisas. Ao pathos que se desenvolve dessa condição denomina-se fé: em outras palavras, fechar os olhos ante si mesmo de uma vez por todas para evitar o sofrimento causado pela visão de uma falsidade incurável. As pessoas constroem um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva das coisas; fundamentam a boa consciência sobre uma visão falseada; após terem-na tornado sacrossanta com os nomes “Deus”, “salvação” e “eternidade” não aceitam mais que qualquer outro tipo de visão possa ter valor. Descubro este instinto teológico em todas direções: é a mais disseminada e mais subterrânea forma de falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um teólogo considera verdadeiro é necessariamente falso: aqui temos praticamente um critério da verdade. Seu profundo instinto de autopreservação não lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a influência dos teólogos seja sentida, há uma transmutação de valores, os conceitos de “verdadeiro” e “falso” são forçados a inverter suas posições: tudo que é mais prejudicial à vida é nomeado “verdadeiro”, tudo que a exalta, a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante é nomeado “falso”… Quando teólogos, através “consciência” dos príncipes (ou dos povos -), estendem suas mãos ao poder, não há qualquer dúvida quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista, aspira ao poder. (NIETZSCHE, 2016, p. 20)

Como o objetivo da enunciação testamental é registrar todos os seus atos que

à luz da conhecida sabedoria divina pregada pela religião e pela religiosidade, podem

ter falhas que atrapalhem o seu acesso ao céu, o discurso da disposição testamentária

apela para a crença religiosa marcada pelo ethos coletivo. Dessa maneira, a

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existência do discurso jurídico serve como suporte para garantir o cumprimento

daquelas vontades discursivas materializadas naquele documento.

Após estes apontamentos, possuindo como escopo as condições sócio-

históricas de produção e das teorias sobre autoralidade, ethos e demais categorias da

AD, de Maingueneau e outros, propomos um tipo de autoralidade que indica a

especificidade do discurso testamental materializado em Passos, sudoeste de Minas

Gerais, no século XIX.

Após as inferências circunscritas neste espaço e a fim de constituir a nossa

observação por meio da materialidade testamentária, vimos que há um discurso que

depende do contexto jurídico-religioso para se firmar perante a co-enunciadores uma

vez que, em grande maioria, em sua vez de corporeidade e condição civil, não possuía

letramento suficiente para enunciar de próprio punho e nem conhecimento que

bastasse para cumprir as exigências legais. Essa dependência se faz por causa da

necessidade legal já que eram exigidos testamenteiros ordenados para realizarem a

constituição material dos enunciados desse tipo de autor. Concomitantemente a isso,

a autoralidade concebida está no sujeito que se estabelece não apenas pela questão

regimental cartorial e religiosa, mas por sua condição de moribundo ou que prevê a

proximidade desse estado para exprimir enunciados de última vontade.

Essa relação de dependência da instância do discurso jurídico-religioso

combinada com a não preocupação com os discursos socialmente instituídos, traz ao

discurso testamental uma enunciação de um autor-sujeito. Esse tipo de autoralidade

específica do discurso testamental do século XIX, não se apoia na totalidade do

conceito sobre ethos, de Barthes, corroborado por Maingueneau (2010b), que diz que

Ethé sont les attibuts de l’orateur (et non ceux du public, pathé): ce sont les traits de caractere que l’orateur doit montrer à l’auditoire (peu importe as sincérité) pour faire bonne impression: ce sont ses airs. [...] l’orateur énonce une information et em même temps il dit: je suis ceci,je ne suis pas cela10. (BARTHES, 1970, p. 212).

Isso ocorre porque na enunciação testamental a preocupação é o alcance da

vida eterna prometida pelo efeito do pathos que acomete o discurso social e que, na

10 Ethos são os atributos do falante (e não os do público, pathos): são as características de caráter que o falante deve mostrar ao público (independentemente da sinceridade que seja) para causar uma boa impressão: estas são as suas músicas. [...] o orador declara uma informação e ao mesmo tempo diz: Eu sou isto, não sou isso.

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condição de uma enunciação que está em um corpo, individualizada e com um status

social civil, aflora em um ethos que é dependente de um estatuto jurídico, portanto,

necessita de testemunhas e testamentários para constituir a materialidade linguística

e do próprio gênero testamental usado na época, mas que se estabelece com uma

autoria própria. O autor-sujeito, portanto, é o enunciador que, apesar daquela relação

de dependência e de assujeitamento dos discursos jurídico-religioso-sociais, impõe

desejos que precisam ser cumpridos após a morte do indivíduo.

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CAPÍTULO IV

AS CONDIÇÕES DE AUTORALIDADE NOS DISCURSOS TESTAMENTAIS

4.1 Procedimentos metodológicos

Para a constituição do corpus, encaminhamos um ofício para a Presidente do

Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Passos, MG, Professora Adriana

Beatriz Rocha, que nos autorizou a realizar nossas pesquisas documentais em

testamentos do século XIX, arquivados no acervo do Centro de Memória Professor

Antônio Theodoro Grilo, situado no prédio tombado com a denominação “Estação

Cultura”.

Começamos pela separação de inventários com datas entre 1856 e 1864. Tais

documentos revelam as disposições de última vontade do testador, conforme exige o

estatuto jurídico vigente à época. Separamos, identificamos e fotografamos as

materialidades linguísticas que carregam o discurso testamental. Foram quatro ao

todo. Dois deles feitos por homens, a saber, João Pimenta de Abreu e Justino

Rodrigues de Sousa e dois deles foram materializados por mulheres: Maria Joaquina

do Espirito Santo e Mathilda Candida da Silveira.

Para facilitar as referenciações sobre esses discursos, nós os nomeamos como

discurso testamental 1, discurso testamental 2, discurso testamental 3 e discurso

testamental 4, respectivamente. Eles foram transcritos de uma forma que mantivesse

a fidelidade do formato em relação ao número de linhas da materialidade discursiva

original. Selecionamos os discursos da segunda metade do século XIX porque é o

período em que a cidade de Passos foi emancipada e, por isso, eles se apresentam

em maior número.

Seguindo o critério sobre a questão do olhar próprio que o analista necessita

dar ao seu corpora, o nosso enfoque está na apresentação de como a ordenação

discursiva testamental é exposta por meio do material linguístico direcionado pelo

enunciador cuja corporeidade pode estar no testador ou no testamenteiro constituído

legalmente. Dessa forma, para questões do entendimento de como se dá a disposição

dos discursos pesquisados, apresentamos a estrutura desses discursos.

Na análise, focamos na cenografia e no ethos discursivo que dela emerge,

tendo em vista as condições sócio-históricas de produção e as relações

interdiscursivas que se estabelecem nesse espaço. Na sequência, verificamos em que

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condições se dá a autoralidade nesse discurso. Essas análises serão constituídas por

recortes dos discursos selecionados.

4.2 A organização do discurso testamental passense do século XIX

No gênero de discurso testamental há a característica de expressar

materialidades linguísticas que carrega, as disposições de última vontade de alguém

que pressente a morte. Nelas constam discursos jurídico-religiosos corporificados por

uma enunciação que visa à salvação da alma por meio de princípios cristãos. De

maneira geral, o ordenamento discursivo se delineia por meio da seguinte estrutura

linguística:

a) na introdução do discurso testamental, há a invocação de Deus ou da

Santíssima Trindade;

b) o enunciador expressa o seu pertencimento à Igreja Católica Apostólica

Romana;

c) há a expressão da vontade de fazer o testamento de forma consciente,

embora em estado debilitado da saúde;

d) alguns privilégios são concedidos para quem prestou serviço ao autor-sujeito

durante sua corporificação;

e) há a intenção de ajudar o escravo a adquirir a alforria dele após a morte do

autor-sujeito;

f) são feitos pedidos de celebração de missas para os escravos que já eram

falecidos;

g) explicação de quais vestimentas e paramentos o corpo do autor-sujeito

deveria ser envolvido após a morte dele;

h) discurso materializado para ordenar que o sepultamento do corpo do autor-

sujeito fosse enterrado dentro ou ao redor da Igreja, próximo a uma imagem de santo;

i) declaração de vínculo com as irmandades;

j) ordem para os herdeiros ou testamenteiros quitarem os débitos com as

irmandades e com pessoas da comunidade;

k) exigência para que houvesse um velório e sepultamento sem ostentações;

l) a imposição de mandar celebrar missa de corpo presente e outras nos oitos

dias seguintes;

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m) recomendação para o usar os sinos da Igreja na hora do sepultamento, de

acordo com as regulamentações vigentes;

n) revelação de infortúnios que sofreram na vida.

Tendo a estrutura geral dos discursos testamentais delimitada, o nosso próximo

passo se volta para investigações que serão empreendidas, considerando algumas

unidades de análise que constituem o discurso, tais como: as condições sócio-

históricas de produção, o primado do interdiscurso, a cenografia, o ethos discursivo e

a autoralidade.

4.3 As unidades de análise do Discurso testamental

4.3.1 As condições sócio-históricas de produção

4.3.1.1 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 1

O discurso testamental 1 foi produzido na Fazenda da Cachoeira, na cidade de

Passos, MG, em 1º de dezembro de 1864. A espécie do testamento, estabelecida na

Consolidação das Leis Civis de 1858, é a cerrada, com instrumento de aprovação cuja

característica é aquela mencionada no nosso capítulo I, no qual consta que esse tipo

de documento deveria ser escrito pelo testador ou por outra pessoa solicitada por ele.

Na ocorrência de outra pessoa ser instituída para escrever, o testador deveria assinar.

Caso o testante não soubesse assinar, a pessoa que escreveu o documento deveria

fazê-lo.

O testador do discurso testamental 1, João Pimenta de Abreu, um dos

fazendeiros que ajudaram no crescimento político-social da freguesia, nome sinônimo

de paróquia nos dias atuais, até a sua emancipação em 1858.

A materialidade linguística desse discurso testamental segue os parâmetros

das leis vigentes quando constatamos a preocupação de registrar a situação física

frágil e o pressentimento de morte, salientando a intenção de documentar as

disposições de última vontade e ainda ratifica que possui condições intelectuais para

isso.

Há a declaração de que é católico apostólico romano e filho legítimo de João

de Deos Pimenta de Abreu e de Magdalena Maria Rodrigues de Jesus. Essa menção

de dizer que é filho legítimo significa que é proveniente do casamento dos pais e, por

isso, é amparado por lei. Nas Consolidações das Leis Civis há também o conceito de

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filho natural, ou seja, filho concebido fora do casamento, seja antes, durante ou depois.

É considerado natural porque é o filho gerado a partir do instinto natural do ser

humano.

Consta a declaração de que se casou por duas vezes, em conformidade com

as leis da Igreja e relata os filhos das duas uniões e afirma que todos são os herdeiros

das duas partes de seus bens, inclusive seus netos cujos pais são falecidos. Há

exclusão de pessoas do testamento, inclusive de alguns filhos. Nomeia três

testamenteiros: José Caetano Machado, Antônio Pires de Morais e João Candido de

Mello e Souza. Todos os testamenteiros são seus genros.

Pede para que os seus testamenteiros não cobrem a vintena pela

testamentaria. Isso significa que eles não receberiam o prêmio por estarem na

representatividade daquele documento. Estabelece o prazo legal de dois anos para

que os testamenteiros cumpram as contas finais de seu testamento e um ano para

arrematarem as obrigações com o Pio, ou seja, a Igreja. O Papa da época estudada

era o Cardeal italiano Mastai, eleito no dia 16 de junho de 1846, e o seu nome papal

era Pio IX. Foi um papa que enfrentou desafios políticos, entre eles, a unificação da

Itália e a perda dos estados pontifícios.

Afirma que pertence às irmandades Nossa Senhora do Carmo, Terra Santa e

Senhora Mãe dos homens e que nada deve a elas. Há a declaração que é irmão das

irmandades do Senhor Bom Jesus dos Passos e da Senhora do Rosário para as quais

deve as contribuições anuais e, por isso, pede aos testamenteiros que as paguem.

Prescreve sobre os procedimentos para o seu funeral, ordenando que o seu

corpo seja envolvido num hábito de Nossa Senhora do Carmo com correia e

escapulário. A correia se assemelha a um cordão, que possuía alguns nós para

simbolizar as orações realizadas no momento da ritualística do vestuário, e servia para

amarrar os defuntos na preparação fúnebre. O escapulário é uma faixa de tecido

usada sobre o peito por frades e freiras de algumas ordens religiosas. Ele é composto

por dois pedaços de pano que recebia a benção de um padre e eram ligados por duas

fitas. Nele continha o nome de Maria, mãe de Jesus Cristo. Segundo a tradição, o uso

do escapulário era um instrumento de fé porque acreditava-se que, em 1251, Nossa

Senhora do Carmo fez aparição a Simão Stock, superior geral da ordem dos

carmelitas, pedindo que o usasse para evitar o fogo do inferno.

Há o pedido de que houvesse um enterro sem pompa e ainda manda celebrar

uma missa de corpo presente e outras oito, cada uma em uma dia consecutivo, após

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103

o sepultamento. Eles chamavam isso de oitavários. É dessa forma que acreditamos

ter surgido a novena: uma missa mais oito missas igual a uma novena, ou seja, nove

dias consecutivos de oração. Essa nomenclatura é utilizada hodiernamente.

Ordenou a celebração de mais quarenta e cinco missas pela alma do testante

e que a cada uma delas seja paga a esmola de mil réis. Além disso, pede celebração

de cinco missas para cada uma de suas esposas, oito pelas almas de seus irmãos,

cinco pelas almas do purgatório e dez pelas almas dos escravos e escravas da casa.

Doações da terça do testador foram feitas para obras da Igreja. A terça era a

parte que ele podia dispor da maneira que quisesse. A herança do cônjuge

sobrevivente deveria ser conforme o pacto do regime de casamento. Comunhão de

bens era a forma mais usada e era conhecida como carta de ametade, que estabelecia

meia parte do conjunto de bens para o cônjuge herdeiro. Após os descontos das

disposições de última vontade do testador, os filhos recebiam os restantes.

Há a declaração de escravos doados aos filhos, que podiam servir como dote

também, já que se tratavam de valores considerados altos. Apenas os mais abastados

conseguiam comprar escravos. Essa prática do dote começou no Brasil no século XVI

e tornou-se quase nulo no final do século XIX. Era uma parte da herança encaminhada

para as filhas, na maioria das vezes, para que pudessem constituir um matrimônio.

Salientou que seria preciso fazer um desconto da herança de um dos filhos

porque ele pagara suas dívidas. Declarou que não possuía quase nenhum bem no

tempo do falecimento de sua primeira mulher, apenas uma “criolinha” e de um escravo

chamado Lourenço que encontra foragido. Dessa forma, teve que vender o escravo

José, que recebeu de dote da segunda mulher, a fim de pagar dívidas.

Relatou que um dos genros, Miguel Gonçalves Borges, o coagiu com capangas

armados, a fazer o inventário.

4.3.1.2 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 2

Foi na Vila Formosa dos Passos, em 16 de julho de 1853, que houve a

constituição do discurso testamental 2. A materialização desse discurso é uma cópia

do texto original e por isso, é chamada de cópia fiel porque é uma constituição material

válida. O testador do discurso testamental 2, Justino Rodrigues de Sousa, enuncia o

nome de Deus, o seu nome, atesta estar em seu juízo perfeito e o nome do lugar onde

nasceu, Arraial da Boa Vista, freguesia de São Caetano que ficava nos limites de

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Mariana, MG. Como já mencionamos, freguesia era o nome utilizado para designar

uma paróquia.

Na enunciação há a declaração de ser filho legítimo de “Jose Rodrigues de

Souza e de sua mulher Anna (...) Maria da Silva”. Ser filho legítimo, como já sabemos,

significava ser fruto de um casamento que cumpria as questões sociais e religiosas.

Menciona o fato de ser solteiro e, por isso, não há filhos. Há, também, um

enunciado que nos chama atenção por materializar que o enunciador não possuía

“amantes” e isso representava a não existência de herdeiros necessários. Dentro de

um escopo onde havia a diferenciação entre filho legítimo e filho natural, negar a

existência de amantes, talvez, deveria ser um modo de excluir a possibilidade de haver

algum filho natural que por ventura aparecesse.

Em seguida nomeia os testamenteiros para cumprir a exigência da lei e declara

que a vintena, que é o pagamento pelo trabalho da testamentaria, seria dada para

quem a aceitasse, depois de dois anos, prazo final para o acerto das contas. Pede

um enterro sem pompa e que o corpo fosse depositado perto da porta do cemitério,

em seu lado interno. Exige missa de corpo presente e pede dez missas para a alma

do pai e dez para a alma da mãe.

Declara haver dívidas que precisam ser pagas, bem como deixa bens para

alguns afilhados e suas respectivas esposas. Institui sua serviçal Laura Maria do

Espírito Santo como herdeira por ter-lhe prestado serviços durante a vida,

principalmente, no momento de suas enfermidades e, por isso, deseja que viva de

maneira honesta. Termina dizendo que desconsidera qualquer outra materialização

contrária dessa e atesta a sua veracidade e sua consciência sobre o documento.

4.3.1.3 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 3

A constituição do discurso testamental 3 se deu na Fazenda do Aterradinho,

em 19 de junho de 1864. Considerando os dias atuais, essa fazenda era localizada

no município de Ibiraci, MG, que fica ao lado da cidade de Franca, SP. O tipo

materializado é o mesmo dos outros discursos: cerrado, com instrumento de

aprovação.

A testadora do discurso testamental 4, Maria Joaquina do Espirito Santo,

também materializa um discurso testamental que segue os parâmetros das leis

vigentes e prefere colocar em primeira instância a invocação do nome de Deus,

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afirmando em seguida a sua condição de cristã católica e apostólica romana desde o

seu nascimento até o momento de sua morte. Há o discurso sobre a questão da

fragilidade corporal, mas que se encontrava em perfeito juízo e tinha vontade própria

na constituição daquela materialização linguística.

A organização de seu discurso testamental começa com as ordens a seu

herdeiro e seu testamenteiro para que pudessem se responsabilizar pelo seu funeral,

obedecendo a estas recomendações: o seu corpo deveria ser envolvido com as

vestimentas da Ordem de São Francisco das Chagas e de Senhora das Dores. O

enterro deveria ser no adro da Igreja Matriz de Dores do Aterrado, o mais perto

possível da entrada da porta principal. Aterrado era nome antigo atribuído ao

município de Ibiraci, MG. O seu corpo deveria estar ornado com a cruz e todos os

objetos próprios para os funerais. Pediu as encomendações, orações feitas por padres

com a aspersão de água. Além disso, exigiu os toques dos sinos, respeitando as

orientações da Igreja do artigo 828 das Constituições Primeiras do Arcebispado da

Bahia que discorre sobre o uso dos toques dos sinos no caso de funerais a fim de

evitar os exageros que estavam acontecendo. Dessa forma, três badaladas breves

deveriam ser dadas na ocorrência da morte de um homem. No falecimento de uma

mulher, dois sinais eram suficientes. Com a morte de um menor não importando o

gênero, entre sete e quatorze anos, apenas um sinal. A repetição dos sinais deveria

ser feita nos momentos do cortejo e do sepultamento. Ao todo, não poderia haver mais

que nove sinais para os homens, seis para as mulheres e três para os menores.

Há o pedido da celebração da missa de corpo presente e mais um oitavário,

isto é, oito missas em oito dias consecutivos. Como já mencionamos anteriormente, a

missa de corpo presente mais as oito nos dias seguintes formam uma novena. Pede

simplicidade na execução do seu funeral, característica de um discurso que acredita

no desapego para conquistar um lugar no céu. Faz a declaração de ser filha legítima

de Joaquim Rodrigues Lopes e Francisca Xavier e também de que é casada com

Antonio Felippe da Silva, desaparecido fazia 20 anos, não sabendo se ele estava vivo.

O único filho legítimo daquele casamento foi instituído como o seu herdeiro universal.

Reparemos novamente na regularidade da materialidade em torno de “legítimo”.

Há a ordem de dar duzentos réis para que o escravo Manoel pudesse comprar

a própria liberdade e, ainda, declarou que ele valia dois contos de réis. Consta uma

denúncia de um requerimento que foi obrigada a assinar após o falecimento da mãe.

No discurso, existe a delação que a aponta o juiz municipal daquele local como alguém

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que fez um documento que continha a intenção de doar a terça de seus bens para o

escravo Manoel no qual constava o nome da testadora. No entanto, esse ato foi contra

a vontade dela.

O discurso revela a intenção em reservar uma quantia para o escravo citado,

mas não era a terça inteira. Na continuidade desse discurso, relata que aquele

documento foi feito de modo clandestino e apressado, citando que o ato foi realizado

na casa de Manoel Joaquim de Andrade.

Dívidas com as irmandades foram declaradas já que era prática muito comum.

Desse modo, honrar esses compromissos financeiros fazia parte da cultura local. Há,

do mesmo modo, a declaração de dívidas com outras pessoas, citando os nomes de

seus credores e, por isso, declara que o valor da venda da escrava Catharina Africana

seja destinado para o pagamento dessas dívidas.

Declara que possui mais uma escrava chamada Maria Francisca no valor de

oitenta e dois mil e noventa e oito réis. Importante reafirmar que os abastados da

época eram os que possuíam escravos. Além dos escravos, constam terras no valor

de seiscentos mil réis e outros objetos de valor já declarados no inventário.

4.3.1.4 As condições sócio-históricas de produção do discurso testamental 4

A materialização do discurso testamental 4 é, também, proveniente de uma

cópia fiel que está no inventário de Mathilde Cândida da Silveira, natural do Arraial

das Candeias, lugar de onde veio o enunciador do discurso testamental 1, João

Pimenta de Abreu. Como os outros, é um documento da espécie cerrado, com

instrumento de aprovação. Foi constituído em 11 de maio de 1858, na Vila do Senhor

Bom Jesus dos Passos.

A testadora enuncia a santíssima trindade, cuja crença está apoiada em um

Deus trino constituído por pai, filho e espírito santo. Depois disso, há a enunciação do

seu nome e da legitimidade constituída em sua filiação onde o pai é o Capitão Antonio

da Silveira Fernandes e a mãe, Dona Isabel Prudencia do Carmo. Há a enunciação

do fato de estar casada com o Coronel Jose Leite de Araujo e atesta estar em seu

perfeito juízo, mesmo estando acamada.

Declara ser cristã católica e por isso, que o seu corpo fosse envolvido com o

hábito de Nossa Senhora do Carmo que era uma das mortalhas mais utilizada em um

funeral. Enuncia que o seu funeral ocorresse conforme a vontade do marido, mas

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deixa expressa a vontade de ter cem missas celebradas com intercessão de Nossa

Senhora do Carmo e cinquenta com a intercessão de Nossa Senhora das Dores.

Ordena que missas sejam celebradas pelas almas do pai, do padrinho Padre Antonio

Ferreira, dos avós e dos escravos. Há o enunciado de doação de cinquenta mil réis

para os pobres que serão escolhidos pelo marido.

Declara não possuir filhos daquele consórcio, ou seja, do casamento com o

Coronel Araujo e nenhum outro descendente. Enuncia que duas partes de sua

meiação que significa metade do montante, deveriam ir para a sua mãe Dona Isabel

Prudencia do Carmo. Por conta disso, há um subentendido de que a enunciadora

testadora morrera com pouca idade. Porém, mais à frente, em sua enunciação

materializada consta o seguinte: “não me do brevimundo porem esta, instituo por

herdeiro das mesmas partes o supra dito Leite”, isto é, a enunciação é de alguém que

está convicto de que não morrerá precocemente, mas, do mesmo modo irá instituir o

marido como seu herdeiro também. Parte da terça que poderia dispor livremente,

enuncia que por esmola estava deixando para o irmão Antonio da Silveira e filhos dele

que fossem afilhados e filhas dele. Para os maridos de suas irmãs, as próprias irmãs

e as filhas deles que eram afilhadas, deixara, para serem partilhados em igualdade,

os seus “oiros lavrados” que é o mesmo que ouros que estão registrados em cartório.

Enuncia a instituição de seus herdeiros em progressão do seu marido,

novamente, em segundo, o seu irmão Antonio Julio da Silveira, em terceiro, o seu

irmão Jose Venancio da Silveira e deu prazo de cinco anos para que o testamenteiro

responsável fechasse as contas. A conclusão do discurso se dá quando enuncia que

deixou as suas disposições de última vontade que foram materializadas por Jose

Custodio Baptista Negro, lidas, conferidas e assinadas.

4.3.2 As unidades de análise com base no interdiscurso

A ênfase que Maingueneau (2008a) dá para a interpretação substancial,

exigida pela hipótese que o primado do interdiscurso exige, traz à tona a questão do

interdiscurso como um espaço de regularidades constantes, ou seja, as correlações

interdiscursivas é que estruturam um modo de ser, uma identidade. Além disso, esses

espaços discursivos oriundos do campo discursivo que pertence ao inalcansável

universo discursivo, segundo Maingueneau (2008a), podem ter como primeira

hipótese a precedência do interdiscurso sobre o discurso, pois “a unidade de análise

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pertinente é um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente

escolhidos” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 20).

Partindo disso, em uma perspectiva mais restrita, a AD irá nos conduzir a uma

abordagem que elege várias formas de privilegiar o interdiscurso que não se

assemelham. Dessa maneira, os recortes do discurso testamental 2 nos levarão a

perceber algumas dessas formas a fim de mostrar que tipos de interdiscursos poderão

ser propostos nessa unidade de análise.

Vejamos o fragmento discursivo abaixo para retomarmos os aspectos

interdiscursivos que compreendemos no nosso capítulo 1.

4.3.2.1 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 1

1. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo 2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen- 3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta- 4. de pela forma seguinte.

Quando o enunciador que se encontra enfermo, temendo a morte, mas que

está com o seu intelecto intacto e, por isso, irá constituir o seu discurso testamental a

fim de apresentar as disposições de últimas vontades, verificamos o interdiscurso

sobre a preocupação da salvação da alma que poderia ficar prejudicada por conta de

uma exigência da Igreja de que era proibido morrer sem deixar o testamento. No caso

de não haver o registro material de tal discurso, haveria a pena de não ser digno de

ter a possibilidade de um enterro dentro da Igreja ou, pelo menos, perto dela para que

pudesse alcançar um lugar no reino dos céus.

A temeridade está na regularidade constante de correlações interdiscursivas

com as quais a igreja se preocupava para garantir a continuidade do poder religioso

sobre as pessoas, bem com conseguir mais benesses em seu favor. Dessa forma,

vemos que as regularidades enunciativas dos discursos testamentais do século XIX,

trazem interdiscursos religiosos sobrecarregados de aflições com o destino da alma

depois da morte. Afirmamos isso com base no que constatamos no recorte abaixo no

qual há a designação de mandar celebrar missas de corpo presente e outras mais

depois do sepultamento.

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43. Meus Testamenteiros mandarão dizer por minha alma tan- 44. tas missas de corpo presente quantos forem os Sacerdotes 45. que acompanharem meu corpo a sepultura. 46. Meus testamenteiros mandarão dizer por minha alma dois oita- 47. varios de missas sendo hum pelo Padre João Prudêncio, e outro 48. pelo Vigário Ulhoa Cintra, se a esse tempo forem vivos.

A exigência de haver tantas missas de corpo presente, quantos forem os

padres participantes, confirma os espaços discursivos do século XIX que

consideravam a pessoa do padre como alguém que pudesse testemunhar os

sacrifícios realizados pelo enunciador crente. Mais que isso, adquirir o direito de ter

um ritual fúnebre que pedisse a misericórdia divina, era a garantia de mostrar a Deus

a efervescência da fé na doutrina dos representantes de Cristo. A partir do século XII,

a materialidade do discurso testamental apresentava a característica de ser um ato

que possuía por primazia, um caráter religioso apoiado por uma identidade jurídica

necessária.

49. Assim mais quarenta e cinco missas por minha alma pela es- 50. mola de mil reis cada huma.

Era muito comum o discurso que enfatizava a preocupação com a salvação da

alma e a presunção da passagem pelo purgatório, lugar para purgar, purificar as almas

que não conseguiram acesso ao céu diretamente, nem foram para o inferno em via

direta. Para isso, era preciso garantir uma quantidade em dinheiro para que os rituais

fúnebres acontecessem. Nisso, examinamos uma correlação com o interdiscurso do

mundo de Hades, da mitologia grega, no qual o defunto carregava consigo uma moeda

para pagar ao barqueiro, a fim de conseguir o acesso ao universo dos mortos, sob

pena de a alma ficar perambulando pelo resto da vida.

51. Assim mais cinco missas por alma de minha primeira mu- 52. Lher, e bem assim cinco missas por alma de minha segun- 53. da mulher, bem como oito missas por alma de meus irmãos 54. Joaquim e Maria, assim mais cinco missas pelas almas do 55. purgatorio, aquellas mais necessitadas.

A mesma correlação podemos inferir quando vemos um discurso, que

pressente a chegada da morte, aflito em mandar celebrar missas a entes queridos e

por almas do purgatório. Isso nos lembra a categoria do ethos discursivo sobre a qual

nos apoiaremos para outras análises que serão feitas mais adiante.

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4.3.2.2 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 2

4. Em nome de Deos Amem ...

A enunciação da invocação a Deus no início do discurso, nos mostra um

enunciador que se preocupa em revelar uma devoção e o respeito com os desígnios

divinos mantendo uma memória discursiva que conserva a ideia de um ser temente a

Deus, a fim da conquista da misericórdia divina em garantia de um lugar junto aos

anjos e santos no céu.

Uma passagem pelo purgatório para a purificação da alma era uma

possibilidade considerada já que havia a consciência de uma corporeidade humana

passível de falhas que desagradavam a Deus, segundo os discursos religiosos. Nessa

perspectiva, há a presença de um interdiscurso que remonta a narração do purgatório

de São Patrício, contada entre 1180 e 1184, pelo monge Henri de Saltrey, como vimos

em nosso capítulo das condições sócio-históricas de produção, em que constatamos

a devoção da esperança do perdão divino e o regozijo celestial após o purgamento da

alma para que tivesse acesso ao paraíso de Deus. Para isso, atendendo ao pedido

de São Patrício, era preciso invocar o nome de Deus, para que o demônio ficasse

distante dos atos e pensamentos do enunciador.

4. ...........................................Eu Justino 5. Rodrigues de Sousa estando enfermo 6. porem em meu perfeito Juíso faço 7. meu Testamento pela a forma se- 8. guinte, sou natural do Arrayal 9. da Boa Vista, Freguesia de Sam Cae- 10. tano do Fasguino termo de Mari- 11. anna, ...

As condições discursivas de temeridade da morte não estão materializadas

nesse recorte do discurso testamental 2, todavia, constatamos isso na parte linguística

“porem em meu perfeito Juíso”, pois revela que aquele ato de constituir o testamento

é válido porque há consciência corpórea do enunciador, ainda que seja visível a

fragilidade humana.

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31. ..........................O meu Testamen- 32. teiro alma da missa de corpo pre- 33. sente mandará diser por minha 34. alma cincoenta missas e assim 35. mais dez pela alma de meu Paÿ, 36. e des pela a de minha maÿ acima 37. mencionados...

Apesar de não haver nesse discurso, menções de nome de padres, de

irmandades ou até mesmo de pertencimento ao quadro de fiéis da igreja católica, é

possível constatar que, uma memória discursiva em relação à ordem de mandar

celebrar a missa de corpo presente e outra orientação para rezar missas pelas almas

do enunciador e dos pais dele. Isso pode significar que o co-enunciador representado

corporeamente pelo testamenteiro, em uma postura interdiscursiva, tenha assumido

esse discurso por conta da condição de solteirice do enunciador corporificado.

4.3.2.3 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 3

1. Em nome de Deos amem.

A análise do discurso testamental 3 aponta esse tipo de invocação divina que

faz um interdiscurso com o pedido de Santo Patrício, a fim de se ter uma preparação

para uma purificação da alma no purgatório. Portanto, as mesmas análises que

fizemos nesse mesmo tipo de enunciação disposta no discurso testamental 2, podem

ser consideradas neste ponto do discurso testamental 3.

7. conservado, e espero morrer, ten- 8. do me deliberado a fazer meo 9. testamento como faço, de 10. minha livre vontade e posto 11. que enferma, em meo perfei- 12. to Juízo declaro minhas des- 13. posições pela maneira e for- 14. ma seguinte;

Ao temer a morte e por isso, enuncia a deliberação da feitura da materialidade

linguística do discurso testamental, a enunciadora reproduz o interdiscurso do gênero

salvífico da igreja que se preocupa com a salvação da alma e para isso faz-se

necessário expressar documentalmente para que os co-enunciadores corporificados

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possam garantir o atendimento dos pedidos de última vontade, apesar de terem sidos

materializados em fragilidade corporal da enunciadora.

48. Tambem he minha vontade 49. que se diga por minha al- 50. ma huma missa de corpo pre- 51. zente, e logo em seguida ma- 52. is hum oitavario déllas =

O interdiscurso de perspectivas de morte da mitologia grega está presente, pois

a coletividade discursiva demonstra que é preciso um funeral que contivesse as

bênçãos da igreja, para que a alma pudesse alcançar o paraíso ou o purgatório.

4.3.2.4 As unidades de análise com base no interdiscurso no discurso testamental 4

6. Em nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo,

7. Amem. ...

Conforme apontamos nas análises dos discursos testamentais 2 e 3, há essa

invocação divina no início para preservar a face que retrata o temor a Deus. No caso

desse discurso, a invocação está direcionada à santíssima trindade, que atende a

perspectiva de uma fé crente em um Deus trino: pai, filho e espírito santo, dogma da

igreja católica.

15. estando de cama, duente mas em meu per – 16. feito juíso, ordenno este Testamento, 17. esthima vontade pela forma seguinte.

As mesmas condições discursivas de temeridade da morte apontadas nos

discursos testamentais anteriores, estão presentes no material linguístico desse

discurso, já que a decisão de constituir o documento se dava por conta dos discursos

católicos de que era pecado morrer sem deixar o testamento materializado.

23. ro testamenteiro abaixo declarado. man- 24. do que se digão cém missas a Nossa Senho- 25. ra do Carmo por minha alma, e assim mais 26. cincoenta missas a Nossa Senhora das Dores. 27. Mando, que se digam vinte missas pela al- 28. ma de meu paÿ acima fecho; assim mais 29. vinte missas pela alma de meu finado

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30. padrinho o Padre Antonio Ferreira de Mi- 31. randa; assim mais dez pelas almas de mi- 32. nhas finadas avos; e afim mais vinte pe- 33. las almas de meus finados escravos.

Diferentemente dos discursos testamentais 1, 2 e 3, nesse discurso não há

menção materializada que exigisse a missa de corpo presente, mas como vemos, há

pedidos mais numerosos de missas, 100 e 50, respectivamente, em intenção da alma

da testadora. Não está expresso linguisticamente, o valor que deveria ser pago para

cada missa; no entanto, sendo um costume da época, podemos afirmar tais

pagamentos eram realizados. Isso evoca o interdiscurso com o mundo de Hades, da

mitologia grega, conforme já mencionamos em análises anteriores dessa tese.

As missas para as almas dos pais, do padrinho padre, das avós e dos escravos

nos levam para o aspecto discursivo religioso das irmandades que foram criadas para

zelar pelos rituais fúnebres, impedindo que as almas ficassem perdidas. Esse é um

ponto que nos remete também à mitologia grega.

4.3.3 A categoria de análise com base na cenografia

Segundo Maingueneau (2013), em certa medida, o enunciador está livre para

escolher a sua cenografia. Nos discursos testamentais de nossa tese, a cenografia

está na constituição de últimas vontades porque são por elas que se estabelece o

contato entre o enunciador e os co-enunciadores, levando em consideração a

subdivisão dos discursos do campo jurídico e do religioso que ancorarão os objetivos

de deixar benesses para os entes queridos, bem como se arrepender dos pecados

cometidos para o alívio de consciência e a consequente salvação da alma.

Essa ancoragem no discurso jurídico amplia a disposição de última vontade,

pois é por conta dele que os co-enunciadores corporificados possuem a obrigação de

atender tais desejos, mesmo que estejam contrariados. É dessa forma que o

enunciador, desde que se coadune com todas as perspectivas do discurso jurídico,

constrói a sua cenografia em busca da legitimidade do seu discurso, por meio do ato

de uma enunciação personalíssima. Dessa forma, partindo dessa cenografia da

disposição de última vontade, como já dissemos, levantamos um quadro cênico que

é composto para cada discurso testamental.

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4.3.3.1 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 1

Cena englobante: como se trata de colocar as pessoas a par da tipologia

discursiva que está representada no corpus, apontamos o discurso jurídico-religioso

como aquele que irá atingir o co-enunciador.

Cena genérica: é a partir dela que temos a possibilidade de estudar os gêneros

de discurso. Os que estão prontos para tais análises e partem do discurso testamental

1, são o discurso contrito e o discurso salvífico que, entre outras possibilidades de

análise, são aqueles pelos quais podemos perceber o arrependimento enunciativo que

faz questão de explicitar quais são as ações que devem ser realizadas para que a

alma tenha o destino do céu ou, pelo menos, do purgatório.

4.3.3.2 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 2

Cena englobante: no discurso testamental 2, a cena englobante também está

no discurso jurídico-religioso, pois é isso que manterá as características da cenografia

uma vez que para atingir o co-enunciador, o enunciador corporificado, ora no testante,

ora no testamenteiro, irá se valer das memórias discursivas jurídicas e religiosas.

Cena genérica: apesar de haver menos incidências materiais, o discurso

testamental 2 também apresenta uma cena genérica que nos leva aos discursos

contrito e salvífico já que nos levam a entender a preocupação de ter a alma conduzida

para um bom lugar e para isso, era necessário estipular algumas ações por meio de

considerações discursivas no testamento.

4.3.3.3 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 3

Cena englobante: do mesmo modo, o discurso testamental 3 apresenta a cena

englobante que abarca o discurso jurídico-religioso para que ele possa ter força

suficiente a fim de persuadir o co-enunciador.

Cena genérica: como vimos, nesse tipo de cena há a possibilidade do estudo

dos gêneros de discurso. O discurso testamental 3 apresenta regularidades

enunciativas de arrependimento, almejando a salvação da alma. Por isso, os

discursos contrito e o salvífico representam esses gêneros de discurso.

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4.3.3.4 A categoria de análise com base na cenografia do discurso testamental 4

Cena englobante: no discurso testamental 4, o mesmo ocorre em relação à

cena englobante, ou seja, ela se apoia no discurso jurídico-religioso.

Cena genérica: a mesma preocupação de possibilitar à alma, um acesso ao

paraíso ou, pelo menos, ao purgatório, por meio de regularidades enunciativas de

arrependimentos e de benesses para outras almas e pobres, nos remetem aos

discursos contrito e salvífico.

4.3.4 A categoria de análise com base no ethos discursivo

Para Maingueneau (2008b), é o discurso que constitui a noção discursiva como

um ethos, pois ele é um processo de interação que vai em direção à influência sobre

o outro e possui a característica da sociodiscursividade. Isso implica que conceituar o

ethos vai além da dimensão verbal uma vez que existem fatores que reúnem desígnios

físicos e psíquicos que estão envolvidos com o fiador que, segundo Maingueneau

(2005), é uma constituição de uma imagem do co-enunciador com critérios que levam

em conta os vestígios textuais de distintas ordens.

Nesse cenário, apresentaremos alguns recortes dos discursos testamentais

que representam noções discursivas, a fim de gerar um ethos em busca da

sociodiversidade e da ascendência sobro o outro.

4.3.4.1 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 1

1. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo 2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes,...

O enunciador afirma estar lúcido, apesar de doente. Isso nos remete a uma

composição de ethos discursivo que quer mostrar que aquela capacidade mental em

um corpo fragilizado, não inviabiliza a constituição do seu discurso que precisa ser

respeitado.

5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de 6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.

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Essa enunciação que confirma a identidade de ser católico apostólico romano

e um seguidor fiel dos preceitos da fé institucional, estabelece um tom corporificado

para que os co-enunciadores que são tomados também pelo ethos discursivo da

religião cristã católica, possam respeitar os preceitos da fé de alguém que está no

limite da vida e da morte.

7. Declaro que sou filho legitimo de João de Deos Pimenta de Abreu 8. e de Magdalena Maria Rodrigues de Jesus, ambos já falecidos.

No item 4.3.1.1, sobre as condições sócio-históricas de produção do discurso

testamental 1, discorremos sobre o enunciado “sou filho legitimo” e sua constituição

jurídica. No caso da construção do ethos discursivo, examinamos que se trata de

instaurar uma imagem que está dentro dos parâmetros sociodiscursivos da época que

prezava pelos comportamentos sociais da moral e dos bons costumes. Não ser um

“filho natural”, fora dos padrões familiares, era considerado um privilégio social.

11. Declaro que fui cazado a face da Igreja em primeiras Nupcias 12. com Antonia Maria Fausta, de cujo matrimonio tivemos cinco 13. filhos de nomes Maria, Thereza, Joanna, Anna, e João; ao dispois 14. fallecendo a dita minha primeira mulher passei a segunda 15. núpcias com Silvéria Maria da Conceição tão bem já falle- 16. cida, e deste consorcio tivemos quatorze filhos que são José, Joa- 17. quim, Antonio, Manoel, Domingos, Francisco, João, Cândi- 18. do, Belchior, Maria cazada com José Caetano Machado, Anna 19. já fallecida sem deixar filhos e Matildes cazada com João Candido 20. de Mello e Souza, Hypolita cazada com João Severianno dos Santos 21. e Maria cazada com Antonio Pires de Moraes

Do mesmo modo, a enunciação que traz a estrutura social-religiosa do

matrimônio e que, a partir dele, houve a constituição de uma família com filhos, noras

e genros, está dentro do padrão ideal no qual os co-enunciadores estão inseridos.

9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias 10. do Termo de Tamanduá do Bispado de Marianna.

Ser nascido e batizado na igreja católica compõe uma cenografia que corrobora

com as questões de uma enunciação advinda de uma corporificação de fé, aceita pela

sociodiscursividade.

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31.Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter 32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens, as quais irmandades 33. Nada devo, por estarem pagas; bem como sou irmão da irmandade 34. do Senhor Bom Jesus dos Passos, e da Senhora do Rozario desta Ci- 35. dade, e devo annuaes que meus testamenteiros pagarão, e a ou- 36. tra qual quer irmandade que eu esteja a dever. Logo que eu 37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das 38. mesmas irmandades, bem como a do Carmo no Ouro Preto.

58. Meu testamenteiro dará da minha terça a quantia de cincoen- 59. ta mil reis para as obras de Nossa Senhora da Penha desta Ci- 60. dade de Passos. A constituição de um ethos discursivo por meio de uma irmandade religiosa era

uma maneira de mostrar um status revelador de uma postura discursiva temente a

Deus e generosa com as obras de caridade, já que era preciso descontruir a imagem

proveniente de cenografias que compunham a escravidão, por exemplo.

39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo 40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora. 41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus 42. testamenteiros.

Um ethos discursivo que revelasse a mesma simplicidade da vida, morte e

sepultamento de Jesus, mais os aspectos discursivos da igreja católica, era o mais

adequado para abarcar a misericórdia divina e o compadecimento dos co-

enunciadores corporificados.

56. Assim mais mandará dizer dez missas por tenção e alma de 57. todos os escravos e escravas da caza.

A constatação de um discurso que materializa a vontade de rezar pelas almas

de todos os escravos já falecidos e o pedido de doar uma quantidade em dinheiro para

obras de uma paróquia local, nos mostra um ethos discursivo que perante o final da

vida, revela uma postura piedosa com a alma daqueles que foram escravizados e

sofreram em vida. Aqui prevalece a memória discursiva religiosa que entende que o

sofrimento terreno é uma preparação para alcançar o reino dos céus.

58. Meu testamenteiro dará da minha terça a quantia de cincoen- 59. ta mil reis para as obras de Nossa Senhora da Penha desta Ci- 60. dade de Passos.

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Aqui está a materialização discursiva em um ordenamento que os co-

enunciadores, na figura dos testamenteiros, fizessem uma doação em dinheiro para

obras de uma paróquia local. Essa contribuição financeira à Igreja era uma forma de

confirmar um ethos discursivo religioso pretencioso do pedido de ajuda à comunidade

cristã, principalmente aos padres e às irmandades, a fim de que eles intercedessem

pela alma do enunciador.

No texto abaixo, deparamo-nos com uma postura reveladora de um ethos

discursivo que confirma a memória ligada ao sofrimento no plano terreno para que a

alma seja recompensada no céu.

114. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu 115. nada possuia, pois só tinha uma criolinha de nome Luiza 116. que falleceo, e hum escravo de nome Lourenço que se achava 117. fugido nessa ocazião, sem delle haver noticia alguma, e es- 118. te mesmo se achava sugeito a huma divida que o cazal de- 119. via ao capitão Antonio Rodrigues Neves da quantia de 120. 150$000 e para esse pagamento vendi hum escravo de nome 121. José que minha segunda mulher trouxe de dote, por aquelle 122. iscravo Lourenço não aparecer, e quando aparecesse ficar em 123. lugar do outro que vendi,...

Há um ethos discursivo apoiador do sistema escravagista, intensificando a

coisificação da pessoa negra quando percebemos um discurso trata o negro como um

negócio. Além disso, a materialização da escrava como “criolinha” identifica uma

menina, filha de escravos, já que o termo crioulo era usado para o negro que nasceu

no sistema escravagista em algum país da américa do sul. Abaixo, segue outro

fragmento que aponta outro discurso que vai ao encontro do discurso que vê o negro

como um negócio.

130. Declaro que algumas rezes que havião na caza erão de minhas 131. filhas por dadivas dos padrinhos, as quais a proporção que mi- 132. nhas filhas hião se cazando eu fui intregando a seus maridos, 133. sem que lancasse mão dellas para pagar as minhas dividas 134. e me foi mais facil em vida da minha primeira mulher vender 135. a única escrava que lhe servia para gastar em sua infermidade 136. que durou três annos do que lançar mão do gado de minhas filhas.

Nesse caso, o discurso da predileção em vender a pessoa negra, ao invés do

gado para cuidar da enfermidade da esposa, nos aponta em direção à questão do

valor financeiro da pessoa e como ela é considerada apenas como um produto.

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4.3.4.2 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 2

1. Em nome de Deos Amem Eu Justino 2. Rodrigues de Sousa estando enfermo 3. porem em meu perfeito Juíso faço 4. meu Testamento pela a forma se- 5. guinte, sou natural do Arrayal 6. da Boa Vista, Freguesia de Sam Cae- 7. tano do Fasquin termo de Mari- 8. anna,

Ao enunciar o discurso testamental 2, há a exposição da corporificação do

testador por ter sido nascido em Mariana. Esse enunciador confirma a sua condição

de discernimento, mesmo em estado de saúde débil. A constituição do ethos

discursivo se dá ao enfatizar a disposição de última vontade para que seja respeitada.

27. O meo interro se fará 28. se fará sem pompa alguma e o 29. meu cadaver será sepultado na 30. entrada da porta do simeterio da 31. parte de dentro ...

Nesse discurso, o ethos discursivo se revela com aquela postura da

simplicidade, assim como foi Jesus Cristo em sua passagem na terra. Tudo dentro

daquela memória discursiva de que nada se leva da vida terrena, isto é, os puros e os

humildes de coração receberão a recompensa que vem do céu. A simbologia de estar

o mais próximo possível de uma imagem de santo, seja na igreja, seja no cemitério,

seria a condição necessária para que Deus pudesse atender às preces da alma com

o desejo de estar entre os glorificados.

1. ..........Filho Legítimo de Jose Ro- 12. drigues de Souza e de sua mulher 13. Anna (...) Maria da Silva ja fi- 14. Nados. Sou solteiro não tenho 15. filhos nem as amantes (...) 16. por conseguinte não tenho herdei- 17. ros necessários...

A marca sobre a legitimidade da filiação, já apontada na análise do discurso

testamental 1, é constitutiva do ethos discursivo daquele recorte temporal. Ademais,

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o ethos que aponta um discurso de um enunciador em corporificação masculina,

ressalta o sistema no qual prevalece a discursividade do homem que optou pela não

constituição da família e não possui nenhum tipo de pudor quando enuncia que não

possui “amantes” para a negação de aparecimento de algum filho natural que

aparecesse.

4.3.4.3 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 3

1. .......................................Eu Ma- 2. ria Joaquina do Espirito Santo 3. como Christão Catholica e Aposto- 4. lica Romana que sou, em qual 5. Religião nasci e fui criada, e 6. educada e em que tenho 7. conservado, e espero morrer,

Nessa introdução da materialidade discursiva 3, há a preocupação da

enunciadora em declarar que é católica apostólica romana. A base de se mostrar

como uma seguidora fiel dos dogmas católicos, reforça para nós o ethos discursivo

de uma fé pela qual a coletividade possui confiança e, por isso, respeita a decisão

testamental.

7. conservado, e espero morrer, ten- 8. do me deliberado a fazer meo 9. testamento como faço, de 10. minha livre vontade e posto 11. que enferma, em meo perfei- 12. to Juízo declaro minhas des- 13. posições pela maneira e for- 14. ma seguinte;

Há a enunciação de deliberação própria para constituir a materialidade

testamental haja vista a livre vontade, com as capacidades intelectuais intactas,

mesmo apresentando enfermidade. Isso demonstra um ethos discursivo forte para

fazer valer as últimas vontades expressas linguisticamente no testamento.

14..........................Primeiramen- 15. te que meo herdeiro, e testa- 16. menteiro logo que eu falle- 17. ça e tenha de dar se o meo

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18. Corpo á sepultura, recomen- 19. do que seja este envolvido 20. em hum habito da Ordem 21. de São Francisco das Cha- 22. gas e da Senhora Maÿ dos 23. homens com capa da Se- 24. nhora das Dores, de quem 25. sou indigna Irmam pa- 26. ra ser enterrada no adro 27. da Igreja Matriz desta Fre- 28. guezia o mais proxima- 29. mente que for possivel 30. a entrada da porta princi- 31. pal da mesma Igreja, e que 32. o meo caixão seja preparado. 53.= Dezejo que o meo herdeiro 54. e testamenteiro faça todos 55. os esforços para que este 56. acto do meo desaparecimen- 57. to seja tão inapercebido 58. como foi a minha vida 59. o que muito lhe recomen- 60. do por que overdadeiro dó 61. só está nos corações sensíveis 62. e não em exterioridades de 63. representação esteril.

O ethos discursivo da simplicidade, revelador de que desta vida não se leva

nada de palpável, mostra um espírito imbuído de uma postura temente a Deus

pertencente às enunciações regulares da época e, por isso, era desejada pela

coletividade. É por isso que se pede um funeral com vestimentas de santos, sem

pompa e que o corpo permaneça próximo a algum símbolo cristão para que fique

marcado esse tipo de ethos discursivo piedoso a fim de servir como exemplo para a

coletividade discursiva.

Há a condição de um ethos discursivo que se apresenta inferior quando a

enunciadora se considera uma “indigna irmam” das irmandades ali postas. Isso nos

leva às interdiscursividades do costume das sociedades patriarcais nas quais são

externadas as sobreposições que os homens sempre tiveram em relação às mulheres.

63. ................................. De 64. claro que sou filha legi- 65. tima dos meos fallecidos 66. Pais Joaquim Rodrigues

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67. Rodrigues Lopes e Francisca Xa- 68. vier de Jesús nascida e Bapti- 69. zada na cidade de Pouzo Ale- 70. gre, outra hora conhecida 71. por Freguesia de Pouzo Ale- 72. gre do Mandú désta Pro- 73. vincia de Minas Geraes, 74. em cuja Matriz si achava 75. o assento do meo Baptiste- 76. rio

Novamente, aparece a materialização de um ethos discursivo que pretende

garantir a legitimidade da filiação, pois um filho legítimo, nascido de pais casados na

igreja, significava uma maneira de ser bem vista pela discursividades coletiva.

76. rio = Declaro que sou caza- 77. da com Antonio Felippe da 78. Silva ha de haver quarenta 79. seis annos, de quem não te- 80. nho serteza si hé vivo ou 81. morto por ter si auzen- 82. tado a vinte annos = Declaro 83. que tenho hum só filho 84. digo hum filho legitimo 85. de nome Miguel, unico 86. fructo existente deste 87. meo consorcio,

Nesse ponto, constatamos, mais uma vez, a enunciação do padrão social-

religioso constituído pelo casamento para a justificativa da existência de um filho, isto

é, do filho legítimo.

94. ....................................= De- 95. claro que no valor do escra- 96. vo Manoel, pardo, que se- 97. paro para minha terça 98. deduzindo a computo da es- 99. molla que lhe faço de reis 100. reis duzentos em prol da sua 101. liberdade ficará o resto per- 102. tencendo ao meo testamen- 103. teiro que acceitar este meo 104. testamento, o qual entrará 105. para o monte como rece- 106. bente, qualquer que seja 107. a quantia, e nelle si in-

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108. deninizará indennizará 109. do que faltar para com- 110. pletar a mesma terça, 111. alem do premio abaixo 112. declarado = Declaro que 113. deicho ao Escravo Mano- 114. el pardo, que houve por 115. herança de minha falle- 116. cida Maÿ, avaliado em 117. dous contos de reis a quan- 118. tia de duzentos mil reis de 119. esmolla em adjutório 120. de sua alforria, ficando o res- 121. tante do seo valor perten- 122. cendo a minha terça co- 123. mo já disse =

O ethos discursivo da benevolência ao escravo como reconhecimento dos

serviços prestados, deixando para ele uma quantidade em dinheiro para que buscasse

a liberdade, deixa a constatação de dois caminhos: um que nos mostra a compaixão

materializada dentro de um padrão discursivo que deseja a salvação da alma e, outro

que trata o escravo como herança materna, mostrando o aspecto discursivo de apoio

ao sistema escravagista, apesar da benesse em favor do escravo.

4.3.4.4 A categoria de análise com base no ethos discursivo do discurso testamental 4

7. Amem. Eu Mathilde Cândida da Silveira, 8. Brasileira, natural de Arraial de candeias, 9. Aplicação da Freguesia de campo Bello, fi- 10. lha legítima do Capitão Antonio da Silvei- 11. ra Fernandes já falei, e de sua mulher 12. Dona Isabel Prudencia do carmo, casada 13. com o Coronel Jose Leite de Araujo, morado- 14. res nesta Villa do Senhor Bom Jesus dos Passos, 15. estando de cama, duente mas em meu per – 16. feito juíso, ordenno este Testamento, 17. esthima vontade pela forma seguinte.

Como em todos os discursos testamentais analisados, o enunciado “filha

legítima” nos traz as sociodiscursividades da moral e dos bons costumes nos quais,

as famílias bem constituídas eram aquelas formadas a partir do casamento da igreja

e procriação de filhos advindos dele.

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Nesse mesmo fragmento material do discurso, consta a enunciação do

casamento da testadora, que é constitutiva de um ethos discursivo daquele tipo de

instituição familiar.

Por último, há a enunciação da fragilidade corporal, mas que, diante do estado

mental consciente, revela um ethos discursivo que apresenta maneira personalíssima

de ser, conforme o discurso jurídico determina.

17. esthima vontade pela forma seguinte. Co- 18. mo Christan Catholica, que sou, quero 19. que o meu corpo,...

A enunciação de ser cristã católica tem como alicerce, o ethos discursivo

expressivo de uma fé coletiva que torna possível a garantia, juntamente com os

aspectos do discurso jurídico, da realização das disposições de última vontade.

23. las almas de meus finados escravos. Deixo 24. dusentos é cincoenta mil reis de esmola pa- 25. ra se repartir com pobres, que meu dito 26. marido julgar dignos disso, e a com modo

57. reis. Declaro que sou Irman de Nossa Se- 58. nhora das Dores, e da Ordem terceira de Nossa 59. Senhora do Carmo.

As enunciações que expressavam as participações em irmandades religiosas

constituem um ethos discursivo de comportamentos religiosos que, por temor a Deus,

geravam doações àqueles menos favorecidos do espaço social.

4.3.5 A categoria de análise com base na autoralidade

Em nossa proposição do item “3.3 Autoralidade e Ethos discursivo”, dissemos

que, além da memória discursiva religiosa presente nas enunciações e nas co-

enunciações em que pesa o caráter respeitoso em relação às manifestações

religiosas que determinavam aspectos discursivos que pudessem garantir a ascensão

ao plano divino após a morte, também há um discurso jurídico como um modo de

constatar a obrigatoriedade do cumprimento das vontades discursivas do enunciador

testamental.

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Foi dessa forma que tratamos da concepção da existência de um sujeito-autor

nos discursos testamentais, pois, ainda que haja essas questões discursivas que

atuam em um parâmetro social, é necessário considerar que o enunciador se torna

um sujeito-autor porque estabelece vontades próprias a partir de sua condição

expirante, tendo como apoio os discursos jurídico-religioso-sociais impostos na

memória discursiva. Por isso, apresentamos essas condições da categoria de

autoralidade por meio dos fragmentos da materialidade linguística que se impõe e nos

apresentam o sujeito enunciador que mostra a sua condição individualizada,

preservando os enunciados que foram constituídos historicamente, ora pelo seu

próprio tom corporificado, ora pela ajuda discursiva dos co-enunciadores que

compõem uma base legalizada.

4.3.5.1 A autoralidade do discurso testamental 1

1. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo 2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen- 3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta- 4. de pela forma seguinte.

25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José 26. Caetano Machado, em segundo a Antonio Pires de Morais, 27. e em terceiro a João Candido de Mello e Souza, e ao que aseitar

28. esta minha Testamentaria deixo de premio a quantia de cem 29. mil reis, e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade 30. e o tempo de dois annos para contas finaes, e hum anno para o Pio.

148.E por esta forma heÿ por 149. findo este meu Testamento que mandei escrever por João Ferrei- 150. ra Godinho, o qual depois de lido e o achar conforme ditei, o assig-

151. no de meu proprio punho nesta Fazenda da Caxoeira ao primeiro 152. de Dezembro de mil oito centos e cessenta e quatro. 153. João Pimenta de Abreu. 154. Que este escrevÿ a rogo do Testador e vÿ assignar.

155. João Ferreira Godinho

Nesses recortes, o discurso expresso por meio dos usos linguísticos que

indicam a individualidade em: “eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-

me infermo mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuais”, “nomeio para

meus Testamenteiros em primeiro lugar a José”, “esta minha Testamentaria deixo de

premio a quantia de cem”, “e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade” e

“o qual depois de lido e o achar conforme ditei, o assigno de meu proprio punho”

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existem para confirmar a questão da autoralidade corporificada pelo testador, mesmo

que a execução material do discurso tenha sido executada pelo co-enunciador

legalmente constituído cuja marca linguística diz o seguinte: “que este escrevÿ a rogo

do Testador e vÿ assignar”, uma vez que a lei expressava que no tipo cerrado de

testamento, havia a necessidade de aprovação corporificada. A presença do material

“eu”, “achando-me”, “minhas faculdades intectuais”, “nomeio”, “minha testamentaria”,

“por ser essa minha vontade”, “conforme ditei” e “assigno de meu proprio punho”

estabelecem essa autoralidade do sujeito-autor cuja marca enunciativa essencial é o

discurso personalíssimo e que expõe as últimas vontades, apoiado pela

transversalidade discursiva do jurídico-religioso.

68. Deixo da minha terça a quantia de cem mil reis a Maria, filha 69. de Miguel Gonçalves Borges, cazada com Joze Gonçalves, fican- 70. do excluidos de herdarem dos remanecentes da minha terça os me- 71. us netos filhos do referido Miguel Gonçalves Borges. 72. Tão bem fica excluido de herdar dos remanecentes da minha terça 73. meu filho Domingos, herdando em seu lugar Dona Isabel mulher 74. do mesmo, com a condição porem, de que não servirá o que her- 75. dar, para pagamento de dividas quer anteriores quer posterio- 76. res ao meu fallecimento. 77. Tão bem ficão excluidos de herdarem da minha terça meus Netos 78. Filhos de Joze Ferreira Carvalhaes. 79. Tão bem fica excluido de herdar da minha terça meu filho José 80. Pimenta de Abreu, herdando em seu lugar minha neta Rita 81. filha do mesmo, cazada com meu Neto João Caetano.

107. Declaro que fica excluido de herdar dos remanecentes da minha 108. terça meu filho Antonio, por ter este disfructado muito da 109. minha Fazenda, em madeiras que de meus matos tem vendi- 110. do, em prejuizo dos mais herdeiros.

A perspectiva do sujeito-autor é reforçada quando presenciamos a

materialidade discursiva que foi expressada diante do pressentimento de morte e do

desejo do acolhimento celestial depois da passagem da alma para o Além, bem como

na constatação da ordem que fossem excluídos filhos e netos, inclusive um filho que

considerou ter causado prejuízo aos outros herdeiros quando desfrutou das benesses

do sujeito-autor durante a vida.

Vejamos abaixo, outras ações discursivas que nos apresentam o desfazimento

de condutas tomadas anteriormente, revelando uma postura de autoria.

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137. Alem do que devíamos ao Neves, devíamos mais ao capitão Anto- 138. nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas, dinheiro este que 139. dei a descrever no Inventario amigavel que fiz com meu(s) filhos, genros 140. do primeiro matrimonio, cujo inventario o fiz coacto por 141. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra- 142. zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven- 143. tario a força; e neste Inventario dei a descrever o que não devera 144. dar por não haver como forão as duzentos e trinta e oito oitavas 145. que érão para o Capitão Moreira, e estas mesmo adquiri oito 146. annos depois da morte de minha primeira mulher, como consta 147. do Testamento de meu finado pai, e pela certidão de obito que 148. está guardada em minha caixa.

O sujeito-autor aqui se estabelece aproveitando-se do escopo do discurso

jurídico-religioso que lhe garante atitudes discursivas personalíssimas constitutivas

das realizações de últimas vontades, sem que haja interferências contrárias dos co-

enunciadores, pois ao redefinir os valores instituídos em um primeiro inventário,

desfaz o que considerou uma injustiça que foi feita em modo de coação.

4.3.5.2 A autoralidade do discurso testamental 2

4. Eu Justino 5. Rodrigues de Sousa estando enfermo 6. porem em meu perfeito Juíso faço 7. meu Testamento pela a forma se- 8. guinte, sou natural do Arrayal 9. da Boa Vista, Freguesia de Sam Cae- 10. tano do Fasquin termo de Mari- 11. anna

17. .......................nomeio para meus 18. Testamenteiros em primeiro lugar 19. o Coronel Jose Leite de Araujo, em 20. segundo lugar o Tenente Coronel 21. Manoel Joaquim Ribeiro do Valle, 22. e em terceiro Maijor Francisco de Pau- 23. la Passos as quaes

59. ..........................................Por esta 60. forma hei por findo este meo Testa- 61. mento pelo qual revogo outro qual- 62. quer que antes tinha feito, e para 63. firmeza do referido pedia Jose Cus- 64. todio Baptista Negro que este escre- 65. vesse o qual sendo por mim lido 66. e assignado por estas conforme a 67. havia ditado digo lido o assigno 68. por estas conforme o havia ditado

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Há nesses recortes do discurso testamental 2, aqueles aspectos que indicam o

ato personalíssimo: “Eu Justino Rodrigues de Sousa estando enfermo porem em meu

perfeito Juíso”; “Faço meu testamento pela a forma seguinte”; “nomeio para meus

testamenteiros”; “Por esta forma hei por findo este meo Testamento pelo qual revogo

outro qualquer que antes tinha feito”. Tratam-se de discursos afirmativos que

demonstram uma autoralidade corporificada no testador, mesmo que o co-enunciador

corporificado no testamenteiro tenha conduzido a parte linguística do testamento. As

presenças linguísticas de “eu”, “em meu perfeito juíso”, “Faço meu testamento”,

“nomeio”, “Por esta forma hei por findo”, “qual revogo outro qualquer que antes tinha

feito”, “e para firmeza do referido pedia Jose Custodio Baptista Negro que este

escrevesse o qual sendo por mim lido e assignado”, do mesmo modo como vimos na

análise do discurso testamental 1, observarmos posições discursivas do enunciador

e, por isso, identificamos a autoralidade do sujeito-autor que se estabelece pelo

discurso de exposição de últimas vontades que se apoia do discurso jurídico-religioso.

7. ..........Filho Legítimo de Jose Ro- 12. drigues de Souza e de sua mulher 13. Anna (...) Maria da Silva ja fi- 14. Nados. Sou solteiro não tenho 15. filhos nem as amantes (...) 16. por conseguinte não tenho herdei- 17. ros necessários...

Voltando a essas enunciações, constatamos, novamente, a declaração de que

o enunciador é filho legítimo de “Jose Rodrigues de Souza e de sua mulher Anna (...)

Maria da Silva”. Aqui há a presença mais marcada da voz do enunciador testamenteiro

porque ela dá ênfase na materialização da esposa do pai do enunciador testador e

não da mãe. Em uma enunciação de um filho, seria natural materializar o seguinte

“sou filho legítimo de Jose Rodrigues de Souza e de Anna (...) Maria da Silva”, no

entanto, aparece “filho legítimo de Jose Rodrigues de Souza e de sua mulher Anna

(...) Maria da Silva” que nos remete ao fato de que essa enunciação pertence a quem

está constituindo o documento. Mesmo com essa constatação, afirmamos que o

sujeito-autor enuncia com a ajuda de um enunciador que lhe garante uma sustentação

por conta do discurso jurídico que é imposto para a constituição da categoria da

autoralidade.

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4.3.5.3 A autoralidade do discurso testamental 3

1....................................... Eu Ma- 2. ria Joaquina do Espirito Santo

7. ..........................................., ten- 8. do me deliberado a fazer meo 9. testamento como faço, de 10. minha livre vontade e posto 11. que enferma, em meo perfei- 12. to Juízo declaro minhas des- 13. posições pela maneira e for- 14. ma seguinte;

14. ma seguinte; Primeiramen- 15. te que meo herdeiro, e testa- 16. menteiro logo que eu falle- 17. ça e tenha de dar se o meo 18. Corpo á sepultura, recomen- 19. do que seja este envolvido 20. em hum habito da Ordem 21. de São Francisco das Cha- 22. gas e da Senhora Maÿ dos 23. homens com capa da Se- 24. nhora das Dores,

239. = Declaro que nomeio para 240. meo testamenteiro, e herdeiro 241. da minha terça em primeiro 242. lugar ao Senhor Inocencio 243. Gomes Figueira= em segun- 244. do lugar ao Senhor Joze 245. Antunes Cintra= e em terceiro 246. lugar ao Senhor Luiz 247. Alves Carrijo da Cunha, pela 248. muita confiança que ponho 249. na fé, probidade, intelligencia 250. e assiduidade de qualquer 251. déstes Senhores, e pela muita es- 252. tima e amisade com que sem- 253. pre elles me tratarão

302. ......................................= E 303. por esta forma tenho con- 304. cluido, e acabado este meo 305. testamento e despozição de 306. ultima vontade que por não 307. saber escrever pedia a Pedro 308. Gil de Oliveira Horta que 309. este por mim escrevesse e......

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310. pelo mesmo a meo rogo as- 311. signado. Fazenda do Atter- 312. radinho dezenove de Junho 313. de mil oitocentos sesenta 314. e quatro.

O discurso testamental 3 também apresenta materialidades que expressam a

individualidade do sujeito-autor em: “Eu Maria Joaquina do Espirito Santo”, “tendo me

deliberado a fazer meo testamento como faço, de minha livre vontade e posto que

enferma, em meo perfeito Juízo”, “que meo herdeiro, e testamenteiro logo que eu

falleça e tenha de dar se o meo Corpo á sepultura”, “declaro que nomeio para meo

testamenteiro, e herdeiro da minha terça em primeiro lugar ao Senhor Inocencio

Gomes Figueira...”, “por esta forma tenho concluido, e acabado este meo testamento

e despozição de ultima vontade que por não saber escrever pedia a Pedro Gil de

Oliveira Horta que este por mim escrevesse e... pelo mesmo a meo rogo assignado”.

As expressões linguísticas, pronomes e verbos, colocadas no documento para

revelar as enunciações do testador corporificadas no discurso testamental, apontam

a posição de um sujeito-autor que se vale do aparato do discurso jurídico-religioso

para prevalecer a sua autoralidade.

123. ....................Declaro que 124. nos Autos de Inventa- 125. rios e Partilhas, que se pro- 126. cedeo por falecimento 127. de minha May= Françis- 128. ca Xavier de Jezus existe 129. hum requerimento do 130. Senhor Juiz Municipal 131. do Termo, feito em meo 132. nome, e contra meo consenso 133. consenso e sciencia oferecendo 134. toda a minha terça em prol 135. da liberdade do dito escravo, 136. isto por ter eu mostrado in- 137. tenção de ofavorecer com 138. qualquer quantia, mais 139. nunca com toda a terça 140. inteira embora si ache 141. o dito requerimento ina- 142. divertidamente assigna- 143. do por João Gonçalves 144. Lopes Sobrinho á meo ro- 145. go porque ignorando

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146. o que nélle si continha 147. e pertubada com apresen- 148. ça do Senhor Juiz ........- 149. .............. e inadivertidamen- 150. te obedeci lhe quando 151. me ordenou que mandas- 152. se assignar o dito reque- 153. rimento contra o qual 154. protesto alto e bom som 155. por semelhante extorção, 156. que pretendem fazer em 157. detrimento de minhas des- 158. posições, e ultima vontade; 159. fallo do Autor de seme- 160. lhante requerimento= 161. Declaro que esse requeri- 162. mento não pode, e nem 163. deve prevalecer por não 164. se achar revestido de cir- 165. cunstancias indispensaveis 166. indispensaveis a hum acto practi- 167. cado em boa fé, pois si assim 168. fora ter se hia feito e assig- 169. nado por alguém a meo 170. rogo em minha presença de- 171. pois de me ser lido, e mos- 172. trar me saptisfeita, e não 173. em minha ausencia fei- 174. to atropelado, e clandestina- 175. mente em casa do Senhor 176. Manoel Joaquim de Andra- 177. de para ser assignado co- 178. mo foi, em deversa paragem 179. em caza de minha finada 180. Maÿ sem saber o que nélle 181. se continha por me achar 182. como já disse pertubada 183. e por conseguinte affecta- 184. da mo meo moral= Ago- 185. ra porem que me acho 186. em socego de consiencia, 187. e destituída de affectos e 188. paixões terrenas, desejo e re- 189. comendo ao meo testa- 190. menteiro que requeira 191. e faça quanto antes 192. extrahir dos Autos o dito 193. requerimento, que não po- 194. de ter vigor em vista das 195. minhas desposições aqui

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196. declaradas, e mesmo por 197. que nelle falta e faltou 198. sempre o concenso de minha 199. minha vontade, que em tais cir- 200. cunstancias parece me dever ser 201. attendida=

O recorte discursivo acima vem confirmar a condição de sujeito-autor que

possui consciência do estado de morte de sua representação corporal para

estabelecer um discurso de ordem tendo em vista o discurso jurídico-religioso. Esse

tipo de condição de autoralidade dá sustentabilidade a um discurso que não se importa

com situações constrangedoras nos tons corporificados de enunciadores e co-

enunciadores. Em outra análise, com a consciência do leito de morte e com a garantia

instituída nos discursos, o enunciador não se esconde quando há algum fato que

tenha causado perturbação em seu ethos discursivo.

4.3.5.4 A autoralidade do discurso testamental 4

1. Amem. Eu Mathilde Cândida da Silveira,

9. estando de cama, duente mas em meu per – 10. feito juíso, ordenno este Testamento, 11. esthima vontade pela forma seguinte

29. dentes alguns; e por isso instituo por her- 30. deira de duas partes de minha meiação 31. apredita minha maÿ Dona Isabel Pru- 32. dencia do Carmo;

40. ...................... Deixo na dita terça, e por es- 41. mola, a meu Irmão Jose Venancio da Silvei- 42. ra, quinhentos milhois. Deixo na mesma 43. herça, e por esmola, a Maria, e Anna, filhas 44. de meu Irmão Antonio Bruno da Silveira, 45. cem milhois a cada numa, a meus sobrinhos, 46. que forem meus afilhados cincoenta mil 47. reis a cada num; as minhas afilhadas Co-autor 48. na Laura, filha do finado Capitão Ma- 49. noel Jose Lemos, e de sua mulher, minha 50. Irman Dona Ipolita Cassiana do Carmo, 51. e Dona Isabel filha do Tenente Manoel 52. Jose de Toledo, e sua mulher, minha Irman 53. Dona Anna Rotina, todos os meus Oiros 54. lavrados para repartirem entre si com 55. toda igualdade; e a Anna, filha de meu

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56. Irmão João Evangelista cincoenta mil 57. reis.

62. ....................................Nomeio por meu tes- 63. tamenteiros em primeiro lugar o menciona- 64. do meu marido Leite de Araujo: em segundo 65. meu Irmão Antonio Julio da Silveira: em 66. terceiro meu Irmão Jose Venancio da Silvei- 67. ra, eao que aceitar esta Testamenteira 68. deixo #, eo praso de cinco annos pa- 69. ra contas.

70. ...................E por esta forma tenho conclui- 71. do este meu Testamento, e disposições de ul- 72. tima vontade, o qual, sendo escripto por 73. Jose Custodio Baptista Negro a meu pe- 74. dido, assigno, ao depois de o ter lido, e acha- 75. do conforme havia detado.

Como vimos nas análises anteriores, a autoralidade de um discurso testamental

se constitui quando o seu enunciador impõe, por meio de sua voz, condições que

devem ser seguidas pelos co-enunciadores. Dessa forma, no discurso testamental 4

constatamos, também, a presença de um sujeito-autor que se ancora nas

discursividades jurídico-religiosas para tornar válidos os discursos que carregam os

seus desejos de última vontade.

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CONCLUSÃO

Quando, por meio dos estudos da AD, nos propusemos elencar discursos

testamentais produzidos no século XIX, em Passos, cidade do sudoeste de Minas

Gerais, para compor esta tese que versa sobre o exame de práticas discursivas neste

tipo de materialidade linguística, já tínhamos a noção do ineditismo desta proposição

haja vista a utilização da AD com as enunciações testamentais.

O que nos possibilitou a compreensão de aspectos discursivos reveladores de

circuntâncias de memórias coletivas do século XIX, foi uma linha investigativa que

possui o discurso na modalidade escrita como norteador de aspectos constitutivos de

regularidades enunciativas de uma sociedade.

Dessa forma, investigamos as formações discursivas por meio de categorias

de análises que nos proporcionaram compreender os efeitos de sentido a partir dos

estudos empreendidos nos discursos testamentais. Para que isso fosse possível,

descrevemos condições sócio-históricas de produção dos lugares nos quais foram

materializados aqueles discursos, pesquisamos sobre os interdiscursos,

apresentamos a cenografia e descobrimos o ethos discursivo. Essas categorias nos

ajudaram a entender a ordenação dos discursos testamentais e abordar as condições

de autoralidade advindas das teorias de Barthes (2004); Chartier (1999, 2010 e 2012);

Foucault (2002) e Maingueneau (2010b), sobre as quais se ancora a nossa tese.

Por meio da análise de questões que perpassam sobre os aspectos históricos,

jurídicos, religiosos e sociológicos, observamos conjunturas de transferência a

espaços sociais do século XIX, nos possibilitando um conhecimento de situações que

permitiram compreender aquelas memórias coletivas, bem como, entender o porquê

de muitos processos psíquico-sociais do mundo pós-moderno.

Nossa base teórico-metodológica foi ancorada em Maingueneau (1990; 1997a;

1997b; 2004; 2005; 2007; 2008a; 2008b; 2010a; 2010b; 2013; 2015). Isso nos

viabilizou conhecer o cerne da AD e, portanto, deu-nos solidificação para considerar

materialidades testamentais daquele recorte histórico, a fim de empreender análises,

a partir das cenografias apresentadas por enunciadores e co-enunciadores

constituídos em superfícies que se apresentam em regularidades discursivas.

Dessa maneira, podemos afirmar que entender as concepções religiosas,

diante de perspectivas sociológicas e antropológicas, apontadas por Durkheim (1975),

foram pertinentes para organizar a concepção de condições sócio-históricas de

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produção daquele cenário religioso como instituição social no século XIX. Isso nos

indicou o caminho de conhecer a região de Passos e seus lugares circunvizinhos na

constituição de sua identidade já que a sua emancipação aconteceu em 1858.

A partir do levantamento histórico sobre o testamento em sua origem,

concepções e evolução histórica, tivemos a possibilidade de fazer um constructo da

atuação da igreja católica por meio de irmandades religiosas que ajudavam na

divulgação da fé, alertando sobre a necessidade da constituição do documento

testamental e no auxílio dos morimbundos que não possuíam condições estruturais

mínimas para garantir um ato fúnebre de acordo com os preceitos católicos, a fim de

assegurar um bom lugar no reino de Deus. Para isso, foi preciso estudar como se deu

a formação da concepção da existência do purgatório, lugar considerado entre o céu

e o inferno. Essa ideia nos remeteu ao aspecto interdiscursivo sobre as

recomendações discursivas religiosas que deviam ser cumpridas após o pagamento

direcionado. Essas discursividades estão relacionadas com a mitologia grega, mais

precisamente, com o submundo dos mortos no qual Hades é o deus grego controlador.

O acesso aos documentos que tratavam da natureza jurídica dos testamentos,

a “Consolidação das Leis Civis”, de 1858, e as “Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia”, de 1853, nos confirmou a hipótese de que o corpus

estabelecido nessa tese apresenta um discurso testamental que, embora esteja

imbuído de regras e organizações oficializadas, a sua concepção é, em essência, de

cunho religioso, haja vista as preocupações discursivas de um sujeito-autor desejoso

do alcance do reino do céus.

Por se tratar de uma abordagem científica voltada para AD, tivemos o cuidado

de inserir na tese, a noção de discurso desde o seu aparecimento na obra de Harris

(1952) cujo objetivo era a análise de textos sem a pretensão de observar as condições

sócio-históricas de produção, até os estudos mais recentes, principalmente, os

defendidos por Maingueneau que não se cansa em afirmar que as pesquisas são

incipientes ainda e, por isso, precisam ser, cada vez mais, ampliadas com o propósito

de revelar discursividades que demonstrem a memória de povos e lugares.

Essas pesquisas empreendidas tendo em vista as categorias que expomos

acima, propiciaram os aspectos discursivos necessários para descobrirmos condições

de autoralidade em discursos testamentais. Dessa maneira, vimos como se dava essa

autoralidade instalada nesses discursos, quando seguimos, passo-a-passo,

especificidades objetivas a começar pela revelação de atitudes interdiscursivas tais

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como, a invocação de Deus como intento de fé e esperança para vencer o mal e a

morte eterna, como ordenou São Patrício. Isso nos remete, ainda aos dias de hoje, ao

vermos pessoas fazerem o sinal da cruz quando lembram da possibilidade de

acontecer algo ruim em suas vidas e/ou projetos profissionais.

Nessas atitudes interdiscursivas, por causa da preocupação com a salvação da

alma, há as tradições católicas fúnebres que usam símbolos no momento da

despedida do defunto e outros sinais cristãos nos túmulos, que preservam as

memórias dos enterros realizados dentro das igrejas ou logo atrás delas já que em

muitos lugares, os cemitérios lá eram instalados.

Também lembramos das missas de corpo presente que, mesmo não

acontecendo para a maioria dos critãos hodiernamente, ainda se faz uma tradição,

principalmente, em lugares menores. Nisso, ainda existe a constatação da

possibilidade de ascensão ao céu pelo caminho do purgatório como vemos nos terços

que consistem em orações realizadas de modo repetido por ave-maria e pai-nosso,

juntamente com outras orações da igreja católica. O terço é uma parte da oração do

santo rosário que é composta por 153 ave-marias. Uma dessas orações do rosário faz

a menção da preocupação com as almas que irão ser purgadas: “Ó meu Jesus,

perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno. Levai as almas todas para o Céu, e

socorrei principalmente aquelas que mais precisarem”.

Como vimos nos discursos testamentais, pela tradição, os parentes da pessoa

morta mandam celebrar missas na intenção da alma. Há sempre uma ajuda de custo

para a igreja. Isso nos lembra os pagamentos firmados pelo sujeito-autor nos

discursos testamentais. Por isso, estudamos posturas discursivas da mitologia grega

pelas quais ficamos sabendo dos rituais fúnebres que tinham o costume de utilizar

uma moeda para coloca-la em baixo da língua do morto. Isso significava que aquele

espírito passara pelas celebrações fúnebres e, simbolicamente, teria como cumprir a

obrigação de realizar o pagamento ao barqueiro, responsável por sua condução ao

submundo de Hades.

Nessa tese, apresentamos uma cenografia que se constitui nas enunciações

de últimas vontades que fazem a ligação entres os enunciadores, por questões legais

e religiosas. A partir disso, surgiram dois tipos de discurso na cena genérica: discurso

contrito e o discurso salvífico. O primeiro, está ligado ao discurso de arrependimento

pelos atos enunciativos praticados ao longo da vida, considerados ruins pela

coletividade discursiva religiosa. O segundo, possui intenções a partir da realização

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de princípios discursivos que estão na memória coletiva da igreja, específicas para a

garantia de obtenção da salvação da alma.

Nessas perspectivas, identificamos um ethos discursivo nos discursos

testamentais que nos dirigiu a um tipo de enunciador que, mesmo fragililzado em sua

constituição corpórea, mostrava-se em plena consciência jurídico-religiosa para exigir

o cumprimento de suas discurvidades. Há, ainda, a revelação de enunciações

contraditórias, pois em uma maneira de ser, característica do ethos discursivo, expõe

a intenção de se transparecer nas mesmas vibrações de uma vida simples,

coadunando com princípios cristãos, mas que, por outro lado, demonstra um discurso

apoiador de um sistema escragista, tendo a pessoa negra como um objeto de valor a

ser deixado como herança. Há, em outros pontos, discursividades que trazem

benesses aos negros que estão voltadas a um comportamento revelador de um ethos

discursivo que se mostra com a característica de arrependimento.

Por fim, por conta de todas as pesquisas realizadas e os exames postos em

ação, a condição autoral nesses discursos testamentais se apresenta de forma

assertiva. Essa conclusão é baseada nas categorias que já foram expostas aqui. Elas

serviram de alicerce para garantir a autencidade da categoria autoralidade cuja lacuna

preenchida está no fato de enxergarmos um sujeito-autor que depende de

discursividades jurídico-religiosas, todavia não demonstra nenhum tipo de

constrangimento ao fazer exigências que iriam desagradar a alguns co-enunciadores

corporificados. Para nós, esse é um dos maiores legados dessa tese já que, em

verdade, por todos os tempos, não importa a qual tipo de discurso pertençamos, há

sempre mudanças em nossas enunciações no final de nossa presença corpórea. É

nesse momento que o sujeito-autor se revela porque o seu ato discursivo é

personalíssimo, não só por causa da garantia jurídica, mas pela colaboração humana

que cada enunciador pode deixar ao mundo, pois o homem diante da morte,

aproveitando o título de Ariès (2014), é capaz de mostrar a verdadeira essência

humana quando demonstra as discursividades coletivas em suas enunciações de

última vontade.

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ANEXOS

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Discurso testamental 1

Testamento de João Pimenta de Abreu

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Transcrição do testamento de João Pimenta de Abreu

1. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo 2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen- 3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta- 4. de pela forma seguinte. 5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de 6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer. 7. Declaro que sou filho legitimo de João de Deos Pimenta de Abreu 8. e de Magdalena Maria Rodrigues de Jesus, ambos já fallecidos e 9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias 10. do Termo de Tamanduá do Bispado de Marianna. 11. Declaro que fui cazado a face da Igreja em primeiras Nupcias 12. com Antonia Maria Fausta, de cujo matrimonio tivemos cinco 13. filhos de nomes Maria, Thereza, Joanna, Anna, e João; ao dispois 14. fallecendo a dita minha primeira mulher passei a segunda 15. núpcias com Silvéria Maria da Conceição tão bem já falle- 16. cida, e deste consorcio tivemos quatorze filhos que são José, Joa- 17. quim, Antonio, Manoel, Domingos, Francisco, João, Cândi- 18. do, Belchior, Maria cazada com José Caetano Machado, Anna 19. já fallecida sem deixar filhos e Matildes cazada com João Candido 20. de Mello e Souza, Hypolita cazada com João Severianno dos Santos 21. e Maria cazada com Antonio Pires de Moraes, os quaes todos são 22. herdeiros dos meus bens, isto é das duas partes dos meus bens, bem 23. como meus netos cujos pais foram fallecidos, herdando a parte 24. que por direito lhes compretir. 25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José 26. Caetano Machado, em segundo a Antonio Pires de Morais, 27. e em terceiro a João Candido de Mello e Souza, e ao que aseitar 28. esta minha Testamentaria deixo de premio a quantia de cem 29. mil reis, e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade 30. e o tempo de dois annos para contas finaes, e hum anno para o Pio. 31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter 32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens, as quais irmandades 33. Nada devo, por estarem pagas; bem como sou irmão da irmandade 34. do Senhor Bom Jesus dos Passos, e da Senhora do Rozario desta Ci- 35. dade, e devo annuaes que meus testamenteiros pagarão, e a ou- 36. tra qual quer irmandade que eu esteja a dever. Logo que eu 37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das 38. mesmas irmandades, bem como a do Carmo no Ouro Preto. 39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo 40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora. 41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus 42. testamenteiros. 43. Meus Testamenteiros mandarão dizer por minha alma tan- 44. tas missas de corpo presente quantos forem os Sacerdotes 45. que acompanharem meu corpo a sepultura. 46. Meus testamenteiros mandarão dizer por minha alma dois oita- 47. varios de missas sendo hum pelo Padre João Prudêncio, e outro 48. pelo Vigário Ulhoa Cintra, se a esse tempo forem vivos.

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49. Assim mais quarenta e cinco missas por minha alma pela es- 50. mola de mil reis cada huma. 51. Assim mais cinco missas por alma de minha primeira mu- 52. lher, e bem assim cinco missas por alma de minha segun- 53. da mulher, bem como oito missas por alma de meus irmãos 54. Joaquim e Maria, assim mais cinco missas pelas almas do 55. purgatorio, aquellas mais necessitadas. 56. Assim mais mandará dizer dez missas por tenção e alma de 57. todos os escravos e escravas da caza. 58. Meu testamenteiro dará da minha terça a quantia de cincoen- 59. ta mil reis para as obras de Nossa Senhora da Penha desta Ci- 60. dade de Passos. 61. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a minha 62. filha Maria das dores cazada com Antonio Pires de Moraes, 63. em remuneração do zelo e caridade que commigo tem tido, isto 64. além do que lhe couber nos remanecentes da minha terça. 65. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a Amélia, 66. filha natural de meu filho Joaquim Joze de Toledo Pimenta, fi- 67. cando este excluido de herdar dos remanecentes da minha terça. 68. Deixo da minha terça a quantia de cem mil reis a Maria, filha 69. de Miguel Gonçalves Borges, cazada com Joze Gonçalves, fican- 70. do excluidos de herdarem dos remanecentes da minha terça os me- 71. us netos filhos do referido Miguel Gonçalves Borges. 72. Tão bem fica excluido de herdar dos remanecentes da minha terça 73. meu filho Domingos, herdando em seu lugar Dona Isabel mulher 74. do mesmo, com a condição porem, de que não servirá o que her- 75. dar, para pagamento de dividas quer anteriores quer posterio- 76. res ao meu fallecimento. 77. Tão bem ficão excluidos de herdarem da minha terça meus Netos 78. Filhos de Joze Ferreira Carvalhaes. 79. Tão bem fica excluido de herdar da minha terça meu filho José 80. Pimenta de Abreu, herdando em seu lugar minha neta Rita 81. filha do mesmo, cazada com meu Neto João Caetano. 82. Declaro que dei de dote aos filhos do meu primeiro matrimo- 83. nio o seguinte: aJoanna já falecida cazada com Miguel Borges, digo 84. Miguel Gonçalves Borges huma Escrava de nome Felicia 85. no valor de trezentos mil reis, e bem assim em dinheiro trezentos e 86. quarenta e seis mil reis. 87. A minha filha Thereza cazada que foi com Joze Ferreira Carva- 88. lhaes huma escrava de nome Joaquina no valor de quatro centos 89. mil reis. 90. A minha filha Anna cazada com Salvador Pereira da Conceição 91. úma escrava de nome Maria no valor de quatro centos mil 92. reis, e assim mais huma escrava de nome Joaquina no valor de 93. seis centos e cincoenta mil reis. 94. A meu filho João, hum escravo de nome Joaquim digo de nome João 95. no valor de trezentos mil reis, e em dinheiro a quantia de cento 96. e cincoenta e seis mil e quatro centos e oitenta reis. 97. Declaro que aos meus filhos do segundo matrimonio dei de dote a- 98. quilo que consta dos recibos que passarão. 99. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta

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100. de Moraes alem de hum credito que serve de recibo da quantia 101. de seis centos mil reis, deve mais a quantia de 735$000 reis que por 102. elle paguei a Joaquim Theodoro de Andrade, devendo esta última 103. quantia ser dada em pagamento a minha terça, e na partilha 104. dos remanecentes da mesma, se dará esta mesma quantia em 105. pagamento ao dito meu filho João, e se o que lhe couber não Che- 106. gar a dita quantia, reporá elle aos mais herdeiros da terça. 107. Declaro que fica excluído de herdar dos remanecentes da minha 108. terça meu filho Antonio, por ter este disfructado muito da 109. minha Fazenda, em madeiras que de meus matos tem vendi- 110. do, em prejuizo dos mais herdeiros. 111. Declaro que excluidos os já mencio nados, o restante da minha 112. terça será repartido pelos meus herdeiros na forma que for 113. de direito, entre meus herdeiros não excluidos. 114. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu 115. nada possuia, pois só tinha uma criolinha de nome Luiza 116. que falleceo, e hum escravo de nome Lourenço que se achava 117. fugido nessa ocazião, sem delle haver noticia alguma, e es- 118. te mesmo se achava sugeito a huma divida que o cazal de- 119. via ao capitão Antonio Rodrigues Neves da quantia de 120. 150$000 e para esse pagamento vendi hum escravo de nome 121. José que minha segunda mulher trouxe de dote, por aquelle 122. iscravo Lourenço não aparecer, e quando aparecesse ficar em 123. lugar do outro que vendi, e como nada mais possuía para 124. isso senão o dito escravo e mesmo por morte de minha primei- 125. ra mulher eu me achar individado, fui pagando com al- 126. gum bens que me forão dados em dote pelo segundo caza- 127. mento, e com os quais fui adquirindo alguma coiza mais 128. por Deos me ajudar, tanto que pude pagar as dividas e adquirir 129. adquirir alguma coiza. 130. Declaro que algumas rezes que havião na caza erão de minhas 131. filhas por dadivas dos padrinhos, as quais a proporção que mi- 132. nhas filhas hião se cazando eu fui intregando a seus maridos, 133. sem que lancasse mão dellas para pagar as minhas dividas 134. e me foi mais facil em vida da minha primeira mulher vender 135. a única escrava que lhe servia para gastar em sua infermidade 136. que durou três annos do que lançar mão do gado de minhas filhas. 137. Alem do que devíamos ao Neves, devíamos mais ao capitão Anto- 138. nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas, dinheiro este que 139. dei a descrever no Inventario amigavel que fiz com meu(s) filhos, genros 140. do primeiro matrimonio, cujo inventario o fiz coacto por 141. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra- 142. zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven- 143. tario a força; e neste Inventario dei a descrever o que não devera 144. dar por não haver como forão as duzentos e trinta e oito oitavas 145. que érão para o Capitão Moreira, e estas mesmo adquiri oito 146. annos depois da morte de minha primeira mulher, como consta 147. do Testamento de meu finado pai, e pela certidão de obito que 148. está guardada em minha caixa. E por esta forma heÿ por 149. findo este meu Testamento que mandei escrever por João Ferrei-

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150. ra Godinho, o qual depois de lido e o achar conforme ditei, o assig- 151. no de meu proprio punho nesta Fazenda da Caxoeira ao primeiro 152. de Dezembro de mil oito centos e cessenta e quatro. 153. João Pimenta de Abreu. 154. Que este escrevÿ a rogo do Testador e vÿ assignar. 155. João Ferreira Godinho

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Discurso testamental 2

Testamento de Justino Rodrigues de Sousa

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Transcrição do testamento de Justino Rodrigues de Sousa

1. Fiel copia do Testamento com que

2. que fallecio Justino Rodrigues de

3. Sousa como abaixo declara

4. Em nome de Deos Amem Eu Justino

5. Rodrigues de Sousa estando enfermo

6. po sim em meu perfeito Juíso faço

7. meu Testamento pela a forma se-

8. guinte, sou natural do Arrayal

9. da Boa Vista, Freguesia de Sam Cae-

10. tano do Fasguino termo de Mari-

11. anna, Filho Legítimo de Jose Ro-

12. drigues de Souza # mulher

13. # # Maria da Silva ja fi-

14. nados, sou solteiro não tenho

15. filhos nem as amantes seiras a

16. pas conseguinte não tenho herdei-

17. ras mas asios nomeio para meus

18. Testamenteiros em primeiro lugar

19. o Coronel Jose Leite de Araujo, em

20. segundo lugar o Tenete Coronel

21. Manoel Joaquim Ribeiro do Valle,

22. e em terceiro Maijor Francisco de Pau-

23. la Lumiros as quais leio por abona-

24. las para administrasem esta mi-

25. nha Testamentaria , eao que aceitar

26. deixo a ventura does annos para

27. prestar contas . O meo interro ufará

28. ufará sem pompa alguma eo

29. amo Cadaves será sepultado na

30. entrada da porta do simiterio da

31. parte de dentro . O meu Testamen-

32. teiro alma da missa de corpo pre-

33. sente mandará diser pas minha

34. alma cincoenta missas assim

35. mais dez pela alma de meu Paij,

36. e des pela a de minha maij acima

37. mencionados a ler # #

38. # # aquela # pre-

39. sente. Declaro que meus bens são

40. as que por meu fallecimento sua

41. # , com o produto das que

42. das que upagará o que eu estiver

43. disendo # # o Senhor Ca-

44. cianno Leite Ribeiro é quais quer

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45. outras dívidas que verdadeiras le-

46. gais forma . Deixo aos meus afilha-

47. dos Mirael filho de Gabriel de tal ,

48. Manoel, e Jleria Filhos de Joaquim

49. de Sousa Pereira , e de sua mulher

50. Anna de tal cincoenta mil reis a

51. cada hum. Do restante de meus

52. bens pagar as minhas dívidas ,

53. e saptisfeitas minhas disposições

54. instituo para a minha servisal her-

55. deira a Laura Maria do Espírito

56. Santo em remuneração da servi-

57. saes que tem prestado o principal-

58. mente nas infermidades e para

59. que viva honestamente . Por esta

60. forma hei # este meo Testa-

61. mento pelo qual revogo outro qual-

62. quer que antes tinha feito , e para

63. # do referido pedia Jose Cus-

64. todio Baptista Negro que este escre-

65. veu o qual sendo por mim lido

66. e afignado por estas conforme a

67. havia ditado digo lido o assigno

68. por estas conforme o havia ditado .

69. Villa do Senhor Bom Jesus dos Passos

70. deraseis de Julho de mil oito centos e

71. cincoenta e tres , Justino Rodrigues

72. de Sousa que escrevi arogo e vi assi-

73. gnar, Jose Custodio Baptista Negro

74. Saibão quantos estes publico instdu-

75. mento de aprovação de testamento

76. # que no Anno de Nascimen-

77. to de nosso Senhor Jesus Christo de

78. mil oito centos e cincoenta e tres Tri-

79. gesimo Segundo da Independencia

80. da Independencia do Imperio do Bra-

81. sil Aos deraseis dias do mes de Julho

82. do ditto anno Nesta Villa Formosa do

83. Senhor Bom Jesus dos Passos comar-

84. Ca de Tres Pontas Província de Minas

85. Gerais, em casas de morada de Justino

86. Rodrigues de Sousa a onde eu Tabelli-

87. ão a seu rogo sim sendo ahij o ditto

88. Justino Rodrigues de Sousa doente

89. de cama mas em seu perfeito Juí-

90. so segundo anno # do que

91. dou fé bem como dever aprofesio

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100. deque trato e dou fé pas # # 101. mim bem conhecido sendo tão 102. bem presentes as testemunhas ao 103. diante nomiadas no fim deste afi- 104. gnadas que tão bem as reconheço 105. perante ellas o ditto Justino Rodri- 106. gues de Sousa me embrigou este pa- 107. pel que disse ser o seu Testamento 108. escripto pelo Advogado Jose Cus- 109. todio Baptista Negro e assignado 110. por elle Testador o qual eu Tabelli- 111. ão # de sua mão sei mão li 112. achei não ter barrâo entre linha 113. ou causa que duvida a faça e a elle 114. Testador perguntei # este o seu 115. Testamento e se # por bom fermia 116. # as que respondia que sem 117. duvida he este seu testamento 118. ultima vontade, que aha por bom 119. firme e valioso que por isso me 120. pedia lhe ferisse este instrumento 121. de aprovação, o qual eu firmo # 122. do escripta da disposição do texto 123 das sendo a tudo testemunhas pre- 124. sentes Francisco Jose Cintra, Jo- 125. aquim Rodrigues de Vasconcelos, Anto- 126. nio Levis Barbara, Carlos Jose Cardo- 127. so, e liverio Moreira de Faria ledas 128. moradores nesta Villa maiores de 129. maiores de quatorse annos que assigno o 130. com atestados depois de lido por mim 131. João Penna de Miranda Tabelhão 132. do primeiro Officio que o escrevij e afi- 133. gno em Publico resto # # 134. da Verdade estava o signal Publico 135. O primeiro Tabelhão João Penna de 136. Miranda, Justino Rodrigues de Sousa, 137. Francisco Jose Cintra, Joaquim 138. Rodrigues de Vasconcellos, Antonio Leni 139. Barbosa, Oliverio Marciva de Faria 140. Aos oito dias do mes de Junho de mil 141. oito centos e cincoenta e seis nesta 142. Villa de Passos, em casas de morada 143. do Juis Municipal # # 144. Nato Brasileiro onde eu Escrivão 145. desse Cargo sim sendo ahij pelo 146. Coronel Jose Leite de Araujo tai 147. apresentado ao referido Juis o testa- 148. mento # com que Falecio 149. Justino Rodrigues de Sousa o qual

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150. uachas a intaelo, cosido com cinco 151. pontos deretras # e outras tantos 152. pingos de lacre vermelho o qual tes- 153. tamento foi aberto pelo referido 154. Juis, do que para constar mandar 155. Lavrar este termo de abertura no 156. qual eu afigno Eu João Ferreira 157. Godinhos Escrivão que aos # e Brasileiro. 158. Aos nove dias do mes de Junho de 159. mil oito centos e cincoenta e seis nes- 160. ta Villa de Passos em meo Cartorio 161. a parecio a Coronel Jose Leite de Arau- 162. jo primeiro testamenteiro nomiado 163. no Testamento rietro e pas elle me foi 164. ditto que pelo presente Termo faria 165. aceitação do presente Testamento, 166. e que se obrigava a cumprir todas 167. as suas dispogiçoms subjudando se 168. as Leis Testamentarias e protestava

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Discurso testamental 3

Testamento de Mathilda Candida da Silveira

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Transcrição do testamento de Mathilda Candida da Silveira

1. Fiel copia do Testamento com que faleceo Dona

2. Mathilda Candida da Silveira, o qual hido the

3. Seguintes. Está arembado muta calcutoria dos

4. onze de maio de mil oito centos e cincoenta e oito.

5. Franco, o Escrivão Jou Carlos Correia Lima.

6. Em nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo,

7. Amem. Eu Mathilde Cândida da Silveira,

8. Branleira, natural de Arraial de candeias,

9. Aplicação da Freguesia de campo Bello, fi-

10. lha legítima do Capitão Antonio da Silvei-

11. ra Fernandes já falei , e de sua mulher

12. Dona Isabel Prudencia do carmo, casada

13. com o Coronel Jose Leide de Araujo , morado-

14. res nesta Villa do Senhor Bom Jesus dos Passos,

15. estando de cama , duente mas em meu per-

16. feito juíso , andam no este Testamento,

17. esthima vontade pela forma seguinte. Co-

18. mo Christan Catholica, que sou, quero

19. que o meu corpo , ao dipois do meu falecimen-

20. to, seja envolto no maleito de nossa se-

21. nhora do Carmo, e que meu interro seja

22. feito a elliçao de meu marido, primei-

23. ro testamenteiro abaixo declarado. man-

24. do que dedigão cém missas a Nossa Senho-

25. ra do Carmo por minha alma , e assim mais

26. cincoenta missas a Nossa Senhora das Dores.

27. Mando, que dedicam vinte missas pela al-

28. ma de meu paij acima fecho; assim mais

29. vinte missas pela alma de meu finado

30. padrinho o Padre Antonio Ferreira de Mi-

31. randa; assim mais dez pelas almas de mi-

32. nhas gônadas avos ; e afim mais vinte pe-

33. las almas de meus finados escravos . Deixo

34. dusentos é cincoenta mil reis de esmola pa-

35. ra se repartir com pobres, que meu dito

36. marido julgar dignos disso, e a com modo

37. delle. Declaro, que do consórcio com o referi-

38. do Leide não tive filhos, e nem tenho descen-

39. dentes alguns; e por isso instituo por her-

40. deira de duas partes de minha meiação

41. apredita minha maij Dona Isabel Pru-

42. dencia do Carmo; não medo brevisundo po-

43. rem está, instituo por herdeiro das mes-

44. mas duas partes o supra dito Leide, meu

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45. marido. Lego na herça, e por esmola, dois

46. contos de reis a Antonio , Esposto em minha

47. casa, sub condição de que , se elle fallecer , sem

48. descendentes, este Legado , e suas seguinci. As

49. # ao herdeiro da herça por mim ins-

50. tituido abaixo. Deixo na dita herça, e por es-

51. mola, a meu Irmão Jose Venancio da Silvei-

52. ra, quinhentos milhois . Deixo na mesma

53. herça, e por esmola , a Maria , e Anna, filhas

54. de meu Irmão Antonio Bruno da Silveira ,

55. cem milhois a cada numa, a meus sobrinhos,

56. que forem meus afilhados cincoenta mil

57. reis a cada num; as minhas afilhadas Co-autor

58. na Laura, filha do finado Capitão Ma-

59. noel Jose Lemes, e de sua mulher, minha

60. Irman Dona Ipolita Cassiana do Carmo,

61. e Dona Isabel filha do Tenente Manoel

62. Jose de Toledo, e sua mulher, minha Irman

63. Dona Anna Rotina, todos os meus Ouros

64. lavrados para repartirem entre si com

65. toda igualdade ; e a Anna , filha de meu

66. Irmão João Evangelista cincoenta mil

67. reis. Declaro que sou Irman de Nossa Se-

68. nhora das Dores, e da Ordem terceira de Nossa

69. Senhora do Carmo. Cumpridas todas as

70. minhas disposições, instetuo por herdeiro dos

71. # da herança ao retro dito meu ma-

72. rido Leide de Araujo Nomeio por meu tes-

73. tamenteiros em primeiro lugar o menciona-

74. do meu marido Leide de Araujo: em segundo

75. meu Irmão Antonio Julio da Lebreira: em

76. terceiro meu Irmão Jose Vinaneio da Librei-

77. ra, eao que aceitar esta Testamenteira

78. deixo # , eo praso de cinco annos pa-

79. ra contas. E por esta forma tenho conclui-

80. do este meu Testamento, e disposições de ul-

81. tima vontade, o qual, sendo escripto por

82. Jose Centodio Baptista Negro a meu pe-

83. dido, assigno, ao depois de o ter lido, e acha-

84. do conforme havia detado. Villa de pas-

85. sos quatorse de março de mil oito centos

86. e cincoenta e oito . Mathildes Candida da

87. Silveira. Aprovação. Saibão quantos estes

88. publico Instrumente de aprovação de Tes-

89. tamento ou como em direito melhor nome

90. e lugar haja vivem , que sendo no anno do

91. Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo,

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92. de mil oito centos e cincoenta e oito , aos vin-

93. te e tres dias do mes de Abril do dito anno,

94. nesta Villa de Passos , em casas de morada

95. do Coronel Jose Leide de Araujo, onde eu

96. Tabelliam ao diente nomeado fui vindo

97. a chamado da Testadora Dona Mathilde

98. Candida da Silveira, sendo # # a 100. Sobre dita Dona Mathilde Cândida da Sil- 102. veira, reconhecida de mim Tabelliam, pela 103. propria de que trato e dou fé, duente de 104. cama mas em seu perfeito juiso e claro 105. intendimento pelas perguntas que lhe 106. fis, e respostas que me deo, em presença 107. das testemunhas ao diante nomeados ea 108. baixo assinadas, e por ella dita Dona 109. Mathilde Candida da Silveira foi pas- 110. sado da sua para a minha mão o pre- 111. o presente papel dizendo me que ira o seu 112. # Testamento, que o havia man- 113. dado escrever pelo Advogado Jose Custo- 114. dio Baptista Negro, que depois de escrip- 115. to e lido, ea mando-o conforme o havia 116. ditado o afignára com sua propria 117. mão e punho, cujo Testamento é escrip- 118. to em huma meia folha de papel, ifin- 119. da onde comessou o presente Instrumento 120. de aprovação, e por ella Testadora foi 121. dito que derrogava outro qualquer Tes- 122. tamento ou # que antes destes 123. tenha feito, e que só queria que o pres- 124. sente Testamento tinha toda a força 125. e vigor em Juiso e fora delle, e que pedia 126. as justiças de sua magestade Imperi- 127. al de hum e outro foro assim o fação 128. cumprir e guardas são inteiramente 129. como nelle se contem e declara; e pedio 130. a mim Tabelliam que aceitasse e apro- 131. vasse, o que assim fis em rasão do meu 132. officio e corrindo nelle avista de olhar, 133. lhe não achei borrão, ainda, entreli- 134. nha, ou coisa que duvida fassa, pelo que 135. o aprovo, e heij por aprovado tanto quan- 136. to devo pesso consesão do meu Officio 137. sou obrigado, o qual numerei e rubriquei 138. com a minha rubrica que diz = Godinho = 139. tendo vigor apresente aprovação não de 140. incontrando nella clausulas, ou clau- 141. sulas contra as leis do Imperio do Bra- 142. sil; sendo a tudo Testemunhas presen- 143. tes o Major Francisco de Paula Gueiros,

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144. Silvio Antonio Tavares, Antonio Fer- 145. reira Bretau, Candido Jose de Carvalho, 146. e Francisco Lourenço do Nascimento 147. Rosa, todos moradores deste termo e 148. Maiores de quatorse annos, e reconhecidos 149. de mim Tabelliam, que assignão com 150. ella Tutadora perante mim João Ferrei- 151. ra Godinho Tabelliam do segundo Offi- 152. cio que o eseruij ea feig ao em publico eraro 153. em testemunho de verdade estava o sig- 154. nal publico. Segindo Tabelliam João 155. Ferreira Godinho. Mathildes Cândida 156. da Silveira, Francisco de Paula Gueiros, 157. Silvio Antonio Tavares, Antonio Ferrei- 158. ra Bretas, Candido Jose de Carvalho, 159. Francisco Lourenço do Nascimento Rosa. 160. Termo de Aberturas Aos quatro dias do 161. mes de Maio de mil oito centos e cinco- 162. enta e oito, nesta Villa de Passos em o meu 163. Castonio sendo ahij presente o sargento 164. mor Jose Joaquim Fernandes de Paula 165. terceiro substituto do Juis Municipal 166. em exercício, e sendo por Antonio Julio 167. da Silveira foi apresentado o presente 168. testamento ao mesmo Juis pedindo que 169. fosse aberto para dar seu devido cumpri- 170. mento, e por isso pelo dito Juis foi aberto 171. o mesmo Testamento que sea havia cosido 172. e lacrado na forma do Sobrenipto, de que 173. para constar mandou o Juis lavrar o pre- 174. sente termo em que assigna depois de lido 175. por mim Amaro Gonçalves de Mendonça 176. Coelho Escrivão da Provedoria que o escre- 177. vij. Jose Joaquim Fernandes de Paula. Cum- 178. prase é registre depois de averbado na 179. estação competente. Villa de Passos qua- 180. tro de Maio de mil oito centos e cinco- 181. enta e oito. Paula. Numero num seis 182. quatro centos e oitenta Pagou de Sello 183. quatro centos e vinte reis Passos onse 184. de Maio de mil oito centos e cincoenta 185. e oito. Franco, Lima. Afistação. Aos 186. dose dias do mes de Agosto de mil oito 187. centos e cincoenta e oito, nesta cidade 188. de Passos, em o meu cartorio comparecer 189. o Coronel Jose Leide de Araújo

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Discurso testamental 4

Testamento de Maria Joaquina do Espírito Santo

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Transcrição do testamento de Maria Joaquina do Espírito Santo

1.Em nome de Deos amem. Eu Ma- 2. ria Joaquina do Espirito Santo 3. como Christão Catholica e Aposto- 4. lica Romana que sou, em qual 5. Religião nasci e fui criada, e 6. educada e em que tenho 7. conservado, e espero morrer, ten- 8. do me deliberado a fazer meo 9. testamento como faço, de 10. minha livre vontade e posto 11. que enferma, em meo perfei- 12. to Juízo declaro minhas des- 13. posições pela maneira e for- 14. ma seguinte; Primeiramen- 15. te que meo herdeiro, e testa- 16. menteiro logo que eu falle- 17. ça e tenha de dar se o meo 18. Corpo á sepultura, recomen- 19. do que seja este envolvido 20. em hum habito da Ordem 21. de São Francisco das Cha- 22. gas e da Senhora Maÿ dos 23. homens com capa da Se- 24. nhora das Dores, de quem 25. sou indigna Irmam pa- 26. ra ser enterrada no adro 27. da Igreja Matriz desta Fre- 28. guezia o mais proxima- 29. mente que for possivel 30. a entrada da porta princi- 31. pal da mesma Igreja, e que 32. o meo caixão seja preparado. 33. ..............................(falta uma linha) 34. já tenho pronptos d’ antemão 35. para este fim, sendo con- 36. duzido o meo corpo em o di- 37. to caixão com a companha- 38. mento solenne levando em 39. frente a Cruz e mais objetos 40. que costumão servir em se- 41. melhantes occaziãoes efazen- 42. do se as encommendacãoes do 43. costume sem mais demons- 44. traçãoes que há dos signa- 45. es e toques de sino recom 46. mendados pelo rito da Igreja 47. em taes circunstancias=

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48. Tambem he minha vontade 49. que se diga por minha al- 50. ma huma missa de corpo pre- 51. zente, e logo em seguida ma- 52. is hum oitavario déllas = 53. = Dezejo que o meo herdeiro 54. e testamenteiro faça todos 55. os esforços para que este 56. acto do meo desaparecimen- 57. to seja tão inapercebido 58. como foi a minha vida 59. o que muito lhe recomen- 60. do por que overdadeiro dó 61. só está nos corações sensíveis 62. e não em exterioridades de 63. representação esteril. De 64. claro que sou filha legi- 65. tima dos meos fallecidos 66. Pais Joaquim Rodrigues 67. Rodrigues Lopes e Francisca Xa- 68. vier de Jesús nascida e Bapti- 69. zada na cidade de Pouzo Ale- 70. gre, outra hora conhecida 71. por Freguesia de Pouzo Ale- 72. gre do Mandú désta Pro- 73. vincia de Minas Geraes, 74. em cuja Matriz si achava 75. o assento do meo Baptiste- 76. rio = Declaro que sou caza- 77. da com Antonio Felippe da 78. Silva ha de haver quarenta 79. seis annos, de quem não te- 80. nho serteza si hé vivo ou 81. morto por ter si auzen- 82. tado a vinte annos = Declaro 83. que tenho hum só filho 84. digo hum filho legitimo 85. de nome Miguel, unico 86. fructo existente deste 87. meo consorcio, ao qual 88. instituo por meo univer- 89. sal herdeiro de todos os 90. meos bens á recepção só- 91. mente da minha terça que 92. deicho departe para cer- 93. tos legados apontados nés- 94. te meo testamento = De- 95. claro que no valor do escra- 96. vo Manoel, pardo, que se- 97. paro para minha terça

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98. deduzindo a computo da es- 99. molla que lhe faço de reis 100. reis duzentos em prol da sua 101. liberdade ficará o resto per- 102. tencendo ao meo testamen- 103. teiro que acceitar este meo 104. testamento, o qual entrará 105. para o monte como rece- 106. bente, qualquer que seja 107. a quantia, e nelle si in- 108. deninizará indennizará 109. do que faltar para com- 110. pletar a mesma terça, 111. alem do premio abaixo 112. declarado = Declaro que 113. deicho ao Escravo Mano- 114. el pardo, que houve por 115. herança de minha falle- 116. cida Maÿ, avaliado em 117. dous contos de reis a quan- 118. tia de duzentos mil reis de 119. esmolla em adjutório 120. de sua alforria, ficando o res- 121. tante do seo valor perten- 122. cendo a minha terça co- 123. mo já disse = Declaro que 124. nos Autos de Inventa- 125. rios e Partilhas, que se pro- 126. cedeo por falecimento 127. de minha May = Françis- 128. ca Xavier de Jezus existe 129. hum requerimento do 130. Senhor Juiz Municipal 131. do Termo, feito em meo 132. nome, e contra meo consenso 133. consenso e sciencia oferecendo 134. toda a minha terça em prol 135. da liberdade do dito escravo, 136. isto por ter eu mostrado in- 137. tenção de ofavorecer com 138. qualquer quantia, mais 139. nunca com toda a terça 140. inteira embora si ache 141. o dito requerimento ina- 142. divertidamente assigna- 143. do por João Gonçalves 144. Lopes Sobrinho á meo ro- 145. go porque ignorando 146. o que nélle si continha 147. e pertubada com apresen-

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148. ça do Senhor Juiz ........- 149. .............. e inadivertidamen- 150. te obedeci lhe quando 151. me ordenou que mandas- 152. se assignar o dito reque- 153. rimento contra o qual 154. protesto alto e bom som 155. por semelhante extorção, 156. que pretendem fazer em 157. detrimento de minhas des- 158. posições, e ultima vontade; 159. fallo do Autor de seme- 160. lhante requerimento= 161. Declaro que esse requeri- 162. mento não pode, e nem 163. deve prevalecer por não 164. se achar revestido de cir- 165. cunstancias indispensaveis 166. indispensaveis a hum acto practi- 167. cado em boa fé, pois si assim 168. fora ter se hia feito e assig- 169. nado por alguém a meo 170. rogo em minha presença de- 171. pois de me ser lido, e mos- 172. trar me saptisfeita, e não 173. em minha ausencia fei- 174. to atropelado, e clandestina- 175. mente em casa do Senhor 176. Manoel Joaquim de Andra- 177. de para ser assignado co- 178. mo foi, em deversa paragem 179. em caza de minha finada 180. Maÿ sem saber o que nélle 181. se continha por me achar 182. como já disse pertubada 183. e por conseguinte affecta- 184. da mo meo moral= Ago- 185. ra porem que me acho 186. em socego de consiencia, 187. e destituída de affectos e 188. paixões terrenas, desejo e re- 189. comendo ao meo testa- 190. menteiro que requeira 191. e faça quanto antes 192. extrahir dos Autos o dito 193. requerimento, que não po- 194. de ter vigor em vista das 195. minhas desposições aqui 196. declaradas, e mesmo por 197. que nelle falta e faltou

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198. sempre o concenso de minha 199. minha vontade, que em tais cir- 200. cunstancias parece me dever ser 201. attendida = Declaro que devo ao 202. Divino Espirito Santo cincoenta 203. mil reis, e assim mais a Nossa 204. Senhora Maÿ dos homens vin- 205. te annos de annuaes entre 206. ella e São Francisco das Cha- 207. gas do tempo que era Juiz o fal- 208. lecido Superior Padre Jero- 209. nimo Gonçalves de Macedo 210. = Declaro que devo mais ao 211. Senhor Caetano Antunes Cin- 212. tra não sei quanto, e bem as- 213. sim ao Senhor Joaquim Fran- 214. cisco da Silva Souto, que tam- 215. bem não sei quanto, ao Se- 216. nhor Joze Manoel da Silva 217. e Oliveira Sobrinho cento e dezese- 218. te mil reis, ao Senhor Inocen- 219. cio Gomes Figueira oitenta 220. seis mil e quinhentos reis 221. = que anda tudo em trezen- 222. tos e trez mil e quinhentos 223. reis fora os que não sei as 224. quantias a cima declara- 225. das = Declaro ser minha von- 226. tade que fique os Escravos 227. Catharina Affricana destina- 228. da ao pagamento déstas di- 229. vidas; fora das quais nada 230. mais devo = Declaro que 231. alem destes dous Escravos 232. Escravos tenho mais huma par- 233. te na Escrava Maria Francis- 234. ca de oitenta dous mil e no- 235. venta e oito reis e assim ma- 236. is Seicentos mil reis em ter- 237. ras alem de outros objetos 238. declarados no meo Formal 239. = Declaro que nomeio para 240. meo testamenteiro, e herdeiro 241. da minha terça em primeiro 242. lugar ao Senhor Inocencio 243. Gomes Figueira= em segun- 244. do lugar ao Senhor Joze 245. Antunes Cintra= e em terceiro 246. lugar ao Senhor Luiz 247. Alves Carrijo da Cunha, pela

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248. muita confiança que ponho 249. na fé, probidade, intelligencia 250. e assiduidade de qualquer 251. déstes Senhores, e pela muita es- 252. tima e amisade com que sem- 253. pre elles me tratarão= Decla- 254. ro que concedo ao meo tes- 255. tamenteiro, a quem peço e 256. rogo si digne pelo amor de Deos 257. acceitar este meo testamento 258. para dar comprimento.= 259. A prazo de dous annos para 260. prestar contas de sua testa- 261. mentaria, cujo prazo será 262. contado a começar da da- 263. cta em que for por elle aber- 264. to o mesmo testamento, e te 265. testamento, e terá de premio alem 266. da terça que lhe deixo mais ter- 267. zentos mil reis em renumeração 268. do seo trabalho = Declaro que o 269. meo testamenteiro ficará sen- 270. do egualmente o Tutor do 271. dito meo filho Miguel por 272. não si achar este em circuns- 273. tancias de poder administrar 274. os poucos bens, que lhe deixo, 275. pela falta que tem de senso 276. commum= e submetto esta 277. minha nomeação á appro- 278. vação do Digno Magistra- 279. do, cuja confirmação deverá 280. ser lhe requerida= Decla- 281. ro que o dito meo testamen- 282. teiro entrará na posse e ad- 283. ministração de todos os meos 284. bens logo depois do meo falle- 285. cimento, ficando egualmen- 286. te entregue do dito meo fi- 287. lho afim de zellar todos 288. os meos bens digo os seos 289. bens, tratar délle, ampara- 290. lo, e protegel-o como si fora 291. seo proprio Pay; sem já- 292. mais consentir que ele 293. padeça, ou lhe falte qual- 294. quer couza por falta de cui- 295. dados na sua conservação 296. = Declaro que como testa- 297. menteiro o Senhor Inocencio

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298. Inocencio Gomes Figueira, ou 299. em sua falta qualquer dos ou- 300. tros nomeados, cumprirá em tu- 301. do á risca o que aqui fica ex- 302. pressamente declarado= E 303. por esta forma tenho con- 304. cluido, e acabado este meo 305. testamento e despozição de 306. ultima vontade que por não 307. saber escrever pedia a Pedro 308. Gil de Oliveira Horta que 309. este por mim escrevesse e......... 310. pelo mesmo a meo rogo as- 311. signado. Fazenda do Atter- 312. radinho dezenove de Junho 313. de mil oitocentos sesenta 314. e quatro. Eu que fis a pe- 315. dido da Senhora Maria 316. Joaquina do Espirito San- 317. to assigno a rogo da mesma 318. por não saber escrever= 319. Pedro Gil de Oliveira Horta 320. =testemunha prezente Ma- 321. noel Honório Garcia= Tes- 322. temunha prezente Joaquim 323. Antonio de Moraes = Teste- 324. munha prezente Joze Alves 325. da Costa = Testemunha prezen- 326. te Joze Antonio de Moraes 327. Junior = Testemunha prezen- 328. te Joze da Costa Rodrigues