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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Caio Augusto Nunes de Carvalho
Conceitos vagos ou indeterminados na fundamentação de decisões judiciais
Mestrado em Direito
São Paulo
2018
II
Caio Augusto Nunes de Carvalho
Conceitos vagos ou indeterminados na fundamentação de decisões judiciais
Mestrado em Direito Processual Civil
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como qualificação de exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito Processual
Civil, sob a orientação do Professor Doutor Olavo
de Oliveira Neto.
São Paulo
2018
III
Banca Examinadora
IV
Dedicatória:
Aos meus pais e à minha avó (in memoriam), por todo o amor que deram.
À minha mãe, por ter apontado o caminho do conhecimento.
V
Epígrafe:
“As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.”
Friedrich Nietzsche
VI
Resumo
O presente texto aborda o preenchimento de normas jurídicas com
conteúdo semântico vago na decisão judicial como conteúdo da fundamentação dessas
decisões, através de uma revisão da literatura jurídica e das ciências humanas.
Assim, o trabalho trata de aspectos processuais e teóricos da
fundamentação das decisões judiciais, tema que ganha relevo dentro do Estado
Constitucional e da teoria do direito, com vistas a gerar controlabilidade dos atos
jurisdicionais e legitimidade do exercício da jurisdição.
Como resultado, fornece-se uma contribuição para a reflexão do
significado atual das dimensões da motivação quando presentes normas de conteúdo
semântico vago e para compreensão da interação da fundamentação com outros
aspectos jurídicos inerentes ao processo civil e aos direitos e garantias constitucionais.
Palavras-chave:
Fundamentação de decisões judiciais – conceitos jurídicos indeterminados – cláusulas gerais – processo civil.
VII
Abstract
The present text addresses the comprehension of legal rules with
vague semantic content in the judicial decision as the motivation content of these
decisions, through a review of the legal literature and the humanities.
Thus, the work deals with procedural and theoretical aspects of the
motivation of judicial decisions, a topic that gains prominence within the
Constitutional rule of law and the theory of law, in order to generate controllability of
court actions and legitimacy of jurisdiction.
As a result, it provides a contribution to the understanding of the
current meaning of the dimensions of motivation when these vague semantic terms
are present, as well as a contribution to the understanding of the reasoning interaction
with other legal aspects of the civil procedure and constitutional rights and guarantees.
Keywords:
Judicial decision motivation – indefinite legal terms – open-ended clauses – civil procedure
VIII
Índice
1. Introdução ............................................................................................................. 10
2. Conceitos indeterminados na motivação ............................................................... 18
3. Estrutura das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados e a
discricionariedade ..................................................................................................... 40
4. Delineamentos processuais sobre a exigência de motivação ................................. 74
5. Formalismo interpretativo: paradigma da escola da exegese .............................. 120
6. Vertentes do formalismo interpretativo e do antiformalismo interpretativo ........ 146
7. Estrutura da fundamentação com emprego de conceitos vagos ou
indeterminados ....................................................................................................... 175
8. O intérprete da decisão e a concreção da vagueza normativa: uma atmosfera
semântico-pragmática ............................................................................................ 205
9. A concreção da vagueza na decisão para além da fundamentação e limites para sua
possibilidade numa comunicação racional .............................................................. 232
IX
10. Conclusões ........................................................................................................ 282
11. Referências bibliográficas ................................................................................. 306
p. 10
1. Introdução
A fundamentação das decisões judiciais é um dos temas que vêm
ganhando relevo dentro do processo civil em particular e dentro da teoria do direito e
do Estado Constitucional em geral, por sua intrínseca relação com o exercício de uma
das funções do Estado e por sua interação com diversos outros aspectos fundamentais
dos direitos e garantias constitucionais.
Embora muitas sejam tratadas no processo civil, como o
contraditório, essas interações se projetam para outros ramos jurídicos e para a própria
noção de como o Estado é estruturado e de como o poder é exercido naquela sociedade
organizada.
À medida que a solução das disputas e dos conflitos sociais deixa de
ser uma atividade arbitrária, a fundamentação é vista como necessária ao exercício da
jurisdição e à efetividade do ordenamento jurídico; inclusive o ensejo notadamente
político de suas origens denuncia sua correlação com a idoneidade da atuação
jurisdicional e a fiscalização do império da lei, trata-se de uma forma de controle do
poder correlata ao Estado de Direito que veio a ser inserida em diversos ordenamentos
e, depois, em diversas constituições dada sua relevância.
Embora já decantada sua posição de garantia do cidadão
jurisdicionado contra o abuso do poder estatal há alguns séculos, há – a cada momento
– uma releitura hodierna de sua importância sistêmica com os novos papéis
desempenhados pela jurisdição, especialmente a constitucional, com uma nova forma
de legislar de nosso tempo contendo elementos semânticos abertos e com a
pluralidade e complexidade sociais que por vezes trazem discussões judiciais
anteriormente gestadas e assimiladas no âmbito de outros poderes do Estado para a
homeostase social.
p. 11
Apesar da percepção dessas novas dimensões do papel da
fundamentação, é intrigante que a motivação tenha sido tratada com uma preocupação
menor, cuja indagação efetiva somente teria relevância prática em poucos casos, quase
teratológicos em que a falta de justificação sobre o que é decidido torna-se patente ou
totalmente ausente. Entretanto, estes poucos casos limítrofes não abarcam a riqueza
com que se pode pensar sobre a fundamentação das decisões no processo.
Nessa esteira, já se afirmou que o assunto não ocupou o merecido
interesse na doutrina nacional, mesmo por constitucionalistas após sua positivação
constitucional, além de ser tratado de forma fragmentada e isolada em cada disciplina,
usualmente por meio de breves comentários da doutrina processual civil em cursos e
manuais; 1 o que revela a limitação sobre o tema da fundamentação na literatura
jurídica que está mais difundida e mais acessível aos operadores do direito.
Por outro lado, a decisão e sua motivação por muito tempo
padeceram de uma noção subjetivista que sempre pode lhe ser atribuída como
inerente, tal como os demais atos humanos, sendo a subjetividade mesma o princípio
dos tempos modernos ou do mundo que veio a ser moderno, que traz tanto a
autoconsciência como a auto-alienação.2
Há autores que se regozijam com esse caráter subjetivo, o que,
concomitantemente, possibilita defender um foro íntimo imperscrutável em cada
decisão e a importância menor da justificação, assim como outros já defenderam, no
passado, a incompatibilidade da fundamentação da decisão com o ato de poder que,
por deter esse caráter, não seria passível de se lhe exigir uma justificação.
Não é demais notar que, em ambas essas hipóteses, o controle do ato
se esvai, ainda que por diferentes justificativas. De nada adiantaria que uma nação
tivesse boas leis e uma boa constituição se não precisassem ser devidamente
observadas; nesse sentido, deixar de estudar o tema da fundamentação equivale a
1 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 15-16. 2 HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1998. p. 27 e 29.
p. 12
devolver ao Estado um poder ilimitado, como o rei que podia julgar conforme seu
próprio arbítrio e sem dar explicação de sua decisão.
Os óbices anteriormente apontados, que em conjunto representam a
própria negação do tema da fundamentação, somente interessam aos que também
desejam negar aos avanços democráticos. Contra isso, o destaque e o estudo cada vez
mais aprofundado da fundamentação das decisões vão ao encontro da racionalização
e da limitação do poder, argumentos de inspiração do constitucionalismo, tornando
esse tema palpitante e contemporâneo na atual conjuntura, o que, por si, já gera seu
interesse e, também, torna seu estudo um meio pelo qual se pode aprimorar os avanços
democráticos.
Entretanto, tal empreendimento seria por demais vasto, sendo
necessário se ater aos aspectos que pareçam, desde esse ponto de vista, mais
intrigantes sobre a fundamentação, relacionada ao emprego de conceitos
indeterminados, balizando-se o objeto a ser discorrido.
Primeiramente, passando-se pela natureza da fundamentação, os
delineamentos dogmáticos a respeito de sua estrutura no processo civil e sua posição
no ordenamento jurídico e através de uma incursão histórica sobre a posição da
interpretação do direito em diferentes escolas de pensamento.
Depois, o que há de específico na fundamentação das decisões
quando empregadas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, segundo os
enfoques propostos, atribuindo-se um quadro teórico acerca do emprego de conceitos
com termos indeterminados e, concomitantemente, acerca da suficiência da
fundamentação nesses casos.
Essas dimensões propostas para análise, desbordam em certos pontos
da dogmática tradicional no processo civil, que está assaz afeita a definições
tautológicas acerca da motivação, que se tornam repetição de um conceito formal
fechado. Ao contrário, busca-se, ademais de um contorno técnico e processual, pensar
a motivação dentro de uma postura investigativa, problemática e aberta – que
p. 13
podemos denominar zetética – para verificar dentro de quais quadros metodológicos
na ciência do direito a fundamentação pode se compatibilizar com o alcance exigido
pelo ordenamento jurídico atual e pelo dever de motivar como corolário do Estado de
Direito.
Para além disso, a postura zetética exige uma dimensão investigativa
que converse com aspectos históricos, dentro de uma concepção historicista do
fenômeno jurídico e dos próprios elementos que existem no fenômeno jurídico,
servindo aos problemas e conflitos sociais e originando-se do contexto sociocultural,
não o contrário, bem como converse com aspectos sociológicos da compreensão de
temas sociais inerentes a conceitos com termos vagos ou abertos, a serem preenchidos
mediante um contexto sociocultural.
Exige-se, enfim, um enfoque que trabalhe os aspectos técnico-
jurídicos e processuais com elementos interdisciplinares das ciências sociais. Sendo o
próprio direito um produto da atividade humana, a fundamentação deve ser
compreendida no âmbito das estruturas reitoras da atividade humana e não
isoladamente, o que é uma decisão fundamentada numa determinada sociedade e num
determinado ordenamento jurídico dessa sociedade somente pode ser compreendido
como algo inscrito numa determinada civilização, que é recriada numa determinada
cultura.
Sem se ter uma dimensão global e transversal do fenômeno da
fundamentação, que não apenas se inter-relaciona com diversos aspectos
constitucionais e processuais magnitude como também se liga à interpretação do
direito e ao modelo de ordenamento jurídico, a fundamentação é relegada à
incompreensão:
“Lo cierto es que en el tema de la motivación los métodos jurídicos tradicionales no han sido un buen ejemplo por lo que hace a su perspicuidad y abundancia de resultados; y, por otra parte, el desarrollo sucesivo de la presente investigación debería, si no demostrar, sí al menos confirmar la impresión de que la misma naturaleza jurídica de la motivación no pueda ser
p. 14
identificable si no es dentro de una aproximación global del fenómeno.”3
A fundamentação de decisões, então, não pode ser vista como algo
subjetivo, misterioso ou discricionário, pois os avanços democráticos e as inspirações
do constitucionalismo de racionalização e de limitação do poder não o permitiriam;
nem os conceitos indeterminados podem ser vistos como algo para ser preenchido
subjetivamente, misteriosamente ou discricionariamente, pois além das razões que
não permitem ser assim tratada a motivação, a compreensão da dimensão histórica do
conhecimento e das representações sociais de objetos culturais também não
possibilitam que sejam assim empregados.
Por esse caminho seguiremos ao longo dos capítulos, sempre tendo
em vista uma descrição crítica do fenômeno jurídico e uma reflexão aberta, mas que
proponha elementos teóricos passíveis de utilização num modelo compreensivo sobre
a fundamentação em casos de emprego de conceitos com termos indeterminados.
Já no segundo capítulo, trataremos, essencialmente, do
posicionamento do problema relativo aos conceitos indeterminados na motivação das
decisões, da previsão normativa relativa a essa situação, o parco tratamento específico
do problema quando comparado à doutrina relativa aos outros standards do art. 489,
§ 1° do Código de Processo Civil, da virada do modo de previsão legislativa de
tipicidade fechada para uma semântica aberta e de alguns pressupostos teóricos
compatíveis para o tratamento do problema.
O terceiro capítulo abordará a estrutura dos conceitos
indeterminados e cláusulas gerais – em verdade de conceitos que possuem termos
vagos ou indeterminados, que é uma terminologia mais adequada –, do que
apresentam de específico e a diferença entre o que se denomina cláusula geral e
3 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid:
Editorial Trotta, 2011. p. 72-73. Em tradução livre: "É certo que, no tema da motivação, os métodos jurídicos tradicionais não foram um bom exemplo em termos de sua perspicácia e abundância de resultados; e, por outro lado, o desenvolvimento sucessivo da presente investigação deveria, se não demonstrar, pelo menos confirmar a impressão de que a natureza jurídica mesma da motivação não pode ser identificada, senão dentro de uma aproximação global do fenômeno".
p. 15
conceito jurídico indeterminado, da evolução da teoria da interpretação jurídica
afeiçoada à compreensão e emprego dessa espécie de norma jurídica e de qual o
contexto de interpretação em que se enquadram.
Também é abordada no terceiro capítulo a existência ou não de
discricionariedade judicial quando existem termos vagos no texto da norma jurídica,
o significado dessa discricionariedade, sua compatibilidade com a segurança jurídica,
previsibilidade e legalidade e sua relação com a tomada de decisão e com a
fundamentação dessa decisão.
O quarto capítulo é dedicado a enfocar com mais especificidade os
aspectos dogmáticos, especialmente na doutrina, relativos à fundamentação das
decisões judiciais, sua previsão constitucional e legal, desde o aspecto histórico na
civil law até a previsão atual e pretérita no Brasil, suas funções e suas relações com
princípios e normas jurídicas, especialmente o contraditório, ampla defesa,
dialeticidade recursal, inafastabilidade do controle jurisdicional, devido processo
legal, legalidade, segurança jurídica e efetividade do ordenamento jurídico.
Ainda no quarto capítulo são tratados especialmente dos aspectos ou
funções endoprocessuais e extraprocessuais atinentes à motivação, sua perspectiva
num modelo constitucional de processo civil e no Estado Democrático de Direito, o
perfil normativo do dever de fundamentar, se se trata de norma ou de princípio, da
suficiência e insuficiência da motivação e de critérios para aferi-la.
No quinto e sexto capítulos faremos uma incursão em modelos de
pensamento jurídico para traçar o panorama das concepções de interpretação e
aplicação do direito e, a partir disso, a suficiência ou insuficiência do texto normativo
para decidir os casos em julgamento, o recurso a outros elementos extratextuais e a
permissão à criatividade interpretativa; enfim, delineando quais quadros teóricos
podem coexistir com o preenchimento de termos normativos vagos e quais se mostram
mais adequados para tratar essa temática.
p. 16
No sétimo capítulo se procederá a uma síntese indicativa de
procedimentos para efetuar a aplicação da norma com termos vagos na decisão através
de sua concreção no caso em julgamento para que se possa estabelecer uma estrutura
na fundamentação decisória que reflita essa concreção, permitindo uma justificação
adequada do emprego dessas normas.
No oitavo capítulo são retratados o intérprete e sua relação com a
concreção da vagueza semântica, como este toma parte na interpretação da norma
vaga e empresta os sentidos hauridos em sua atmosfera semântica através de
interações sociais para compreender o acoplamento dos termos vagos com suas
teorias, pressuposições, dados desestruturados e pulsões para gerar um projeto de
decisão.
Nesse modelo teórico de atmosfera semântico-pragmática, busca-se,
na medida do possível, afastar o subjetivismo para substituí-lo por uma dimensão
social intersubjetiva calcada no processo civilizacional que gera representações
sociais a serem utilizadas como elementos extratextuais para preenchimento das
vaguezas, apontando esse tipo de norma mais para a realidade social do que para
formulações descritivas internas dos textos legais.
No nono capítulo passa-se a alguns limites do processo de
fundamentação em relação à tomada de decisão, a alguns aspectos que estão presentes
no contexto de descoberta mas não necessariamente podem ser transpostos para o
contexto de fundamentação, como o fundo de pulsão da atmosfera semântico-
pragmática e seu caráter estético subjacente ao valor justiça cuja racionalidade não se
revela perfeitamente apreensível nos processos decisórios.
Assim, essa realidade inerente aos processos decisórios que não se
poderia esconder, revela-se mais reflexiva, mas ao mesmo tempo crítica, para ao
menos poder-se expurgar um paradigma que entendemos inadequado como a íntima
convicção, também baseada na insindicável sensibilidade valorativa – ou como
apontado por Piero Calamandrei, na “sensibilidade moral” dos juízes – que jaz além
do mito do homo econommicus puramente racional, revelando-se a permanente
p. 17
impossibilidade de respostas definitivas e pré-ordenadas reconhecida com base em
Pareto e Habermas.
Por derradeiro, encerra-se o trabalho com apontamentos com caráter
remissivo aos pontos tratados e que possam servir de base para uma reflexão sobre o
que possa mesmo ser algo fundamentado, sempre numa perspectiva crítica e, no que
possível, construtiva, bem como algumas conclusões que puderam ser inferidas
mediante o desenvolvimento de cada parte do trabalho.
p. 18
2. Conceitos indeterminados na motivação
O modo como a fundamentação das decisões vem sendo estudado
encontra um panorama peculiar de enfoques e tipicamente diverso em relação aos
temas próprios do direito processual usualmente investigados nesse campo, segundo
Michele Taruffo, pela maneira como o tema tem sido abordado e, especialmente,
como não tem sido abordado no âmbito do direito processual civil: justamente em
razão das repercussões de perspectivas filosóficas, sociológicas e políticas sobre o
tema da motivação e da estrutura da decisão judicial, bem como dos contrastes e das
incertezas que sitiaram o estudo dessa questão na perspectiva processual.4
A posição particular desse panorama, conforme Taruffo, é
primeiramente ocasionada pela aproximação de caráter formalista empreendida em
face da fundamentação e do dever de motivar, considerando-a suficiente para esgotar
seu problema – o que explica, no plano histórico, a falta de contribuição para elucidar
seu alcance efetivo –; segundo porque a motivação é tratada dogmaticamente em
termos imprecisos e normalmente tautológicos (motivação é exposição dos motivos
ou das razões ou é o percurso lógico seguido); e, por fim, ocasionada pelo tema ser
tratado conforme seus pontos de emersão no plano estritamente normativo.5
“Era bastante conocido entre los filósofos del derecho, pero no particularmente entre los juristas, el libro de Hart, pero este era sustancialmente el único volumen que se ocupaba del razonamiento jurídico en una perspectiva analítica. Faltaba todavía, para entonces, la aparición de varios textos que se volvieron sucesivamente puntos de referencia esenciales para quien quisiera ocuparse a nivel de teoría general de los problemas relativos al razonamiento jurídico, y del razonamiento del juez en particular. Basten pocos ejemplos para ilustrar esa afirmación: el volumen de Neil MacCormick
4 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 27. 5 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 29-31.
p. 19
sobre el razonamiento jurídico es de 1978, el de Aleksander Peczeniksobre la justificación jurídica es de 1983, el de Aulis Aarnio – también sobre la justificación jurídica - es de 1987. Además, el libro fundamental de Robert Alexy sobre la argumentación jurídica fue publicado en 1978. También en 1978, finalmente, es el volumen de Ronald Dworkin sobre los ‘derechos tomados en serio’. Como puede verse de estas referencias sintéticas, es esencialmente entre la segunda mitad de los años setenta y la primera mitad de los años ochenta cuando florece una amplia literatura que aborda los temas de la racionalidad del razonamiento jurídico y de la argumentación justificativa. Frecuentemente estos temas son analizados en una perspectiva muy general, pero es claro que los tratamientos relativos también pueden ser referidos en gran medida al razonamiento del juez y a las modalidades con las que él justifica (o, más bien, debería justificar) sus propias decisiones.”6
Quanto ao plano estritamente normativo, a atenção da ciência
processual se deu em três pontos: primeiro, sobre a natureza jurídica do requisito da
fundamentação e o vício que sua ausência acarreta; em segundo, sobre o problema de
poder-se estender ou não a autoridade da coisa julgada à fundamentação (ou à parte
dela); e, por fim, sobre a possibilidade de evidenciarem-se os defeitos da
fundamentação e o controle que se possa fazer sobre esses defeitos.7
6 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 11. Em tradução livre: “Era bastante conhecido entre os filósofos do direito, mas não particularmente entre os juristas, o livro de Hart, mas era substancialmente a única obra que se ocupava do raciocínio jurídico numa perspectiva analítica. Faltava, então, o surgimento de vários textos que se tornaram pontos de referência essenciais para quem quisesse se ocupar em nível de teoria geral dos problemas relativos ao raciocínio jurídico e ao raciocínio do juiz em particular. Bastam poucos exemplos para ilustrar essa afirmação: a obra de Neil MacCormick sobre o raciocínio jurídico é de 1978, a de Aleksander Peczenik sobre a motivação jurídica é de 1983, a de Aulis Aarnio – também sobre a motivação jurídica – é de 1987. Ademais, o livro fundamental de Robert Alexy sobre a argumentação jurídica foi publicado em 1978. Finalmente, também em 1978, é publicado o livro de Ronald Dworking sobre os “direitos levados a sério. Como se pode ver destas sintéticas referências, é essencialmente entre a segunda metade dos anos setenta e a primeira metade dos anos oitenta que floresce uma ampla literatura que aborda os temas da racionalidade do raciocínio jurídico e da argumentação justificativa. Frequentemente, esses temas são analisados numa perspectiva muito geral, mas é claro que os tratamentos a isto relativos também podem ser referidos em grande medida ao raciocínio do juiz e às modalidades com as quais ele fundamenta (ou melhor, deveria fundamentar) suas próprias decisões” 7 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 29.
p. 20
É apenas sobre esse último aspecto que se desenvolverá o presente
estudo: como deve ser realizada a fundamentação das decisões quando empregadas
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, segundo os enfoques teóricos
propostos ao longo do trabalho, em que aspectos deve-se abordar tais elementos do
texto normativo para que a fundamentação não esteja defeituosa, através de um
método propositivo crítico e problemático da questão abordada; passando-se, também,
por parte do primeiro aspecto: sua natureza jurídica, sua posição no ordenamento
jurídico e sua relação sistêmica com outros institutos jurídicos para sua boa
compreensão.
Consequentemente, o enfoque do estudo não são as consequências
da fundamentação insuficiente ou a natureza do dever de motivar as decisões, que
somente serão abordadas em perspectiva de contextualização, mas sim as
possibilidades para uma estrutura da motivação quando presentes cláusulas gerais e
conceitos jurídicos indeterminados e quais elementos significativos devem estar
presentes.
Esse preciso aspecto da fundamentação adquire um especial
interesse, por carecer um desenvolvimento legal e doutrinário que especifique o que
esperar de uma decisão judicial que empregue tais conceitos ou ao menos balizas para
que a fundamentação seja considerada satisfatória nesses casos.
Ao definir o conteúdo e o alcance do princípio da motivação, Nelson
Nery Júnior traz a seguinte definição a respeito: “Fundamentar significa o magistrado
dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela
maneira”8.
Assim como a maioria das definições sobre o tema na doutrina
processual, esta apresenta o problema de designar muito genericamente uma
variedade de mecanismos e de procedimentos que ocorrem na fundamentação a
depender do tipo de norma que será aplicada e de quão necessária é a valoração sobre
8 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 327.
p. 21
certos aspectos descritivos ou não naquele tipo de caso, podendo-se tratar de uma
mera subsunção imediata ou de algo que demanda uma profunda construção lógico-
argumentativa, ou mesmo de uma situação intermediária. Isto, ademais do aspecto
tautológico das definições sobre qual seria o conteúdo do dever de motivar.
Em nível normativo nacional, note-se que o Código de Processo
Civil, em seu art. 489, § 2°, exige a justificação, entre outros, de “critérios gerais de
ponderação” e as “razões que autorizam a interferência na norma afastada” na colisão
entre normas, critérios usualmente empregados no conflito entre princípios e
detidamente estudados em doutrina e utilizados na jurisprudência, a exemplo do que
propõem Robert Alexy, Humberto Bergmann Ávila e Virgílio Afonso da Silva.
A distinção técnico-normativa, para Robert Alexy, entre regras e
princípios consiste nos primeiros serem comandos definitivo e aplicados mediante
subsunção, enquanto os princípios são “comandos de otimização” que podem ser
cumpridos em diferentes graus, sendo comandos prima facie cuja medida de aplicação
está sujeita a contingências relativas às possibilidades fáticas e materiais e também
jurídicas ocasionadas por regras e por princípios opostos: a medida de aplicação pelas
possibilidades jurídicas será determinada pela ponderação, que é a forma de aplicação
de princípios.9
Enquanto a colisão de regras seria resolvida pela inserção de
exceções ou pela invalidação,10 a colisão de princípios é resolvida pela máxima da
proporcionalidade, à qual o próprio significado do caráter dos princípios se liga, com
suas três máximas parciais: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em
sentido estrito, 11 tratando as duas primeiras da otimização com relação às
possibilidades fáticas com base no ótimo de Vilfredo Pareto e tratando a última das
9 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre
Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 146. 10 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 179-180. 11 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 149.
p. 22
possibilidades jurídicas, isto é, dos custos para os fins do legislador e qual lado deve
suportá-los.12
Quanto às objeções de que essa última avaliação exige um
procedimento que não seria adequado como solução à fundamentação e representaria
um aspecto puramente arbitrário ou decisionista, Alexy observa que pode sim ter seus
resultados questionados e discutidos conforme as premissas adotadas, implicando
juízos sobre a intensidade de interferências que resultem soluções diversas ao caso e
não há uma resposta certa ou única, mas isso não implicaria a sua irracionalidade, pois
é condição da racionalidade da ponderação a fundamentabilidade de proposições
sobre intensidade de interferências e o escalonamento possível é sempre rudimentar
pela natureza inerente ao direito, o que “exclui completamente escalonamentos do tipo
infinitesimal”.13
Conforme Humberto Ávila, o postulado da proporcionalidade vem
crescendo em importância no Direito brasileiro como instrumento de controle dos atos
do Poder Público; o postulado tem lugar através de respostas que sejam necessárias e
proporcionais mediante relação de causalidade entre meios e fins: é meio necessário
o que dentre os igualmente adequados for o menos restritivo a direitos fundamentais
e é proporcional se as vantagens que promover superarem as desvantagens que
provocar.14 Daí, diz Humberto Ávila, a diferença entre as categorias normativas (com
relação aos princípios) “não é centrada no modo de aplicação, se tudo ou nada ou mais
ou menos, mas no modo de justificação necessário à sua aplicação”15.
Essa justificação em sua aplicação pode ser controlada através do
exame de critérios inerentes à estrutura do raciocínio do postulado da
12 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 153-154. 13 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 153-159, passim. 14 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 202-204. 15 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 97.
p. 23
proporcionalidade – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito16
–, permitindo à fundamentação balizas de atendimento ao art. 489 do CPC quando há
aplicação de princípios e permitindo a discussão e controle sobre esse aspecto da
fundamentação.
No caso dos princípios há um elemento finalístico de realização
prática de um estado de coisas, devendo-se fundamentar sua aplicação por meio da
“avaliação de correlação entre os efeitos” da conduta adotada e da gradual realização
do estado de coisas exigido no princípio. Não há uma descrição de conteúdo do
comportamento nos princípios e, portanto, não ocorre na fundamentação uma
“demonstração de correspondência, o ônus argumentativo é estável, não havendo
casos fáceis e casos difíceis”.17
Diferentemente, nas regras, sejam vagas ou não, não há um elemento
finalístico de estado ideal de coisas, de maneira que o estado futuro de coisas é
imediatamente irrelevante. Nelas, há uma maior determinação do comportamento em
decorrência do elemento descritivo ou definitório presente no enunciado prescritivo,
assim, “o aplicador deve argumentar de modo a fundamentar uma avaliação de
correspondência da construção factual à descrição normativa e à finalidade que lhe dá
suporte”,18 sendo central a fundamentação da determinação comportamental e não a
implementação do estado ideal de coisas:
“Sendo facilmente demonstrável a correspondência, o ônus argumentativo é menor, na medida em que a descrição normativa serve, por si só, como justificação. Se a construção conceitual do fato, embora corresponda à construção conceitual da descrição normativa, não se adequar à finalidade que lhe dá suporte ou for superável por outras razões, o ônus
16 A respeito: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 209-218. 17 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 98. 18 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 97.
p. 24
argumentativo é muito maior. São os chamados casos difíceis.”19
Por outro lado, o art. 489, § 1°, II do Código de Processo Civil
estipula que se expresse como um conceito jurídico indeterminado ocorre no caso (diz
o dispositivo: “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo
concreto de sua incidência no caso”), mas é notório não haver tamanha elaboração
doutrinária como se sucedeu no caso da incidência de princípios, deixando-se em
aberto a necessidade de melhor explorar o tema para que, talvez, algumas balizas
possam ser alcançadas para permitir uma crítica e, se possível, um controle sobre a
incidência dos conceitos jurídicos indeterminados.
Podemos contrastar a disposição relativa a conceitos jurídicos
indeterminados com a ponderação ocorrida na colisão de princípios em sua “estrutura
racionalmente definida, com subelementos independentes”20 quanto à fundamentação
das decisões judiciais. Nesse sentido, Virgílio Afonso da Silva empreende uma análise
crítica de uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal 21 a partir desses
elementos na fundamentação das decisões, permitindo que a efetiva aplicação seja
controlada e que não resulte de mero arbítrio ou livre opção sem justificativa.
Nessa análise, verifica que, conquanto seja bem sedimentada na
doutrina nacional a estrutura justificativa e de raciocínio da regra da
proporcionalidade, o Supremo Tribunal Federal não aplicava adequadamente, àquela
altura, as três sub-regras em suas decisões, ora utilizando a proporcionalidade ou
ponderação como topos retórico ora como conceito sintético sem análise e correlação
entre os elementos de sua estrutura interna; embora a análise da adequação preceda a
da necessidade, que precede a da proporcionalidade em sentido estrito.22
19 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 97. 20 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. vol. 798/2002, p. 23-
50, Abr/2002. p. 5. 21 Dentre as quais, HC 76.060-4, ADI 1407-2, ADC 9-6 e ADI 855-2 (SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. vol. 798/2002, p. 23-50, Abr/2002.). 22 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. vol. 798/2002, p. 23-50, Abr/2002. p. 6-8.
p. 25
Dentre os exemplos utilizados pelo autor, no caso de uma lei do
Estado do Paraná que obrigava fornecedores de botijão de gás a pesar o produto na
presença do consumidor, houve acolhimento do argumento de violação dos princípios
“da razoabilidade e da proporcionalidade” (que seriam diferentes tanto por sua origem
como por sua estrutura interna e não sinônimos)23 sem qualquer análise concreta e em
separado sobre a adequação e sobre a necessidade da medida a ser adotada. Também
menciona não ter o tribunal se utilizado do critério da necessidade em relação a todas
as finalidades suscitadas de acordo com os meios: verificou-se a necessidade da
pesagem na presença do consumidor em relação à medida alternativa de pesagem por
amostragem quanto à possibilidade de evitar o locupletamento indevido das empresas
(uma das finalidades) mas não quanto à proteção do consumidor individualmente. Em
outra situação, verificou que o Supremo Tribunal Federal entendeu pela
proporcionalidade da Medida Provisória n. 2.152-2, que instituiu racionamento de
energia elétrica, mas sem que analisasse qualquer medida alternativa como aplicação
efetiva do critério da necessidade.24 Enfim, consigna o autor:
“A análise desses casos concretos não pretende fornecer uma resposta única e supostamente correta, (...). Ela serve mais para demonstrar, de forma prática, como seria uma possível análise concreta da proporcionalidade das medidas impugnadas, ou seja, como seria uma aplicação da regra da proporcionalidade que não se limitasse a ser mais um recurso a um mero tópos. Nesse sentido, são esses exemplos meros modelos para análise, não havendo como não abstrair das tecnicidades a eles inerentes, e considerar somente o quanto seja necessário para essa finalidade.”25
Esse tipo de verificação e crítica somente se revela possível na
medida em que certas diretrizes são adotadas para a aplicação da norma e para a
fundamentação da decisão judicial, ensejando maior possibilidade de controle. Por
essa razão, um dos motivos que ensejam o presente estudo e que também é um dos
23 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. vol. 798/2002, p. 23-50, Abr/2002. p. 4-6. 24 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. vol. 798/2002, p. 23-50, Abr/2002. p. 11-13. 25 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. vol. 798/2002, p. 23-50, Abr/2002. p. 9.
p. 26
seus objetivos, é justamente apontar a falta do mesmo nível de desenvolvimento e
divulgação de diretrizes em relação aos conceitos vagos ou indeterminados, em que,
inevitavelmente, “haverá, por parte do juiz, uma atitude valorativa”26 que objetiva
“preencher o conteúdo das normas fundadas em conceitos não determinados, cada vez
mais comuns em nossa legislação”27.
Ainda que não seja possível alcançar a mesma solução em termos de
estrutura da fundamentação, o tema merece reflexão para que ao menos sejam
possíveis balizamentos dentro de determinadas teorias que possam ou não ser
adotadas, de forma a empreender uma tentativa de alcance do conteúdo da norma do
art. 489, § 1°, II do Código de Processo Civil. Para tanto, será necessário olhar um
pouco além de uma dogmática tradicional circunscrita a parâmetros estritamente
formais e técnico-jurídicos para alcançar, na terminologia que Tercio Sampaio Ferrar
Júnior utiliza com base em Viehweg, um enfoque zetético em relação aos elementos
e à estrutura da fundamentação que utiliza conceitos vagos ou indeterminados, mas
uma diretriz dogmática em relação à necessidade de fundamentação e seu papel no
processo civil.28
Haverá um déficit de fundamentação e um déficit de legitimidade
não apenas na ausência de especificação dos motivos para a incidência concreta do
conceito indeterminado, mas enquanto não houver a estipulação de critérios que
possam balizar essa incidência, controláveis na fundamentação do ato e passíveis de
26 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista
dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 7. 27 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. 1ª ed. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 101. 28 A respeito, menciona o autor: “No primeiro caso, usando uma terminologia de Viehweg, temos um
enfoque zetético, no segundo, um enfoque dogmático. Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmática vem de dokein, que significa ensinar, doutrinar. Embora entre ambas não haja uma linha divisória radical (toda investigação acentua mais um enfoque que o outro, mas sempre tem os dois), sua diferença é importante. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve-ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação.” (FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 41).
p. 27
impugnação em recurso cabível; o que seria o estado ideal a se atingir na
fundamentação. Novamente, sem que isso implique a suposição de uma resposta pré-
existente para cada caso ou da possibilidade de fixação de uma única escolha como
sendo correta; contudo, implicando-se o viés dogmático da disciplina processual civil
na fundamentação de decisões.
No campo zetético da formulação de um modelo para a
fundamentação desses casos, busca-se uma perspectiva interdisciplinar como
elemento de reorganização e reabertura do conhecimento técnico às questões reais do
mundo em que está inserido, tendência que vem sendo empregada na ciência jurídica
ao longo da segunda metade do século XX29, buscando-se, ainda, no que possível,
uma zetética aplicada em que os resultados possam ser “aplicados no aperfeiçoamento
de técnicas de solução de conflitos”30 com pressupostos teóricos hipotéticos abertos
que mantenham uma posição crítica e construtiva em relação ao perfil dogmático da
exigência de fundamentação das decisões judiciais.
Concluindo-se, dessa maneira, pela necessidade de uma maior
abertura no processo civil para esses aspectos para o tratamento satisfatório do dever
de fundamentação das decisões dentro de um quadro de pesquisa teórico; como
salienta Willis Santiago Gerra Filho: “Na pesquisa zetética é que haveria o momento
adequado para a inclusão de resultados provenientes das disciplinas empíricas, como
a sociologia, a antropologia, a psicologia, e também das especulações
jusfilosóficas.”31
29 A respeito dessa orientação do final do século passado: “A característica comum de muitas dessas tendências pode ser considerada a superação, na análise dos temas e dos textos de direito, da perspectiva estritamente técnico-jurídica em favor de uma abordagem interdisciplinar. Foram investigadas sobretudo as ligações do direito com outros campos da cultura e do conhecimento: as ligações entre direito e economia (análise econômica do direito), entre direito e estrutura social com relação aos direitos femininos (‘gender and law’), entre direito e interesses político-econômicos (‘critical legal studies’), entre direito e literatura (‘law and literature’), entre direito e moral nas profissões jurídicas (‘legal ethics’), entre direito e ecologia.” (SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 452). 30 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 45. 31 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 53.
p. 28
Retornando ao que ensina Taruffo e que concorre com o eixo que
vem sendo exposto, os juízos de valor empregados pelo juiz condicionam de diversas
maneiras a decisão e, contudo, são um dos aspectos mais descuidados e omitidos
dentro de uma “justificação externa completa” na prática judicial de numerosas ordens
jurídicas.32
A esta altura da dogmática jurídica, não há mais dúvida de que o
julgador realiza numerosas valorações na aplicação das normas e que estas valorações
condicionam e orientam as premissas de direitos e as soluções na decisão judicial;
portanto, sendo absolutamente necessário que estas valorações sejam justificadas na
sentença, enunciando-se critérios de valor adotados, justificando a sua escolha ao
invés de outros e demonstrando porque os critérios eleitos fundamentam as valorações
levadas a cabo no caso.33
Outro aspecto jurídico relevante a trazer interesse ao tratamento
desse tema é uma mudança na técnica legislativa que vem sendo implementada nos
ordenamentos, cujo perfil aponta o incremento do emprego de conteúdo semântico
vago, isto é, uma análise histórico-evolutiva aponta maior utilização de conceitos
jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais, 34 o que se verá estar ligado à
modificação dogmática a respeito da aplicação das normas, o que também exige uma
reflexão sobre a fundamentação dessa aplicação.
Assim, menciona Fredie Didier Junior: “Como parece ser inevitável
a existência de cláusulas gerais no ordenamento jurídico, inclusive no direito
processual, cabe à teoria jurídica e à jurisprudência desenvolver técnicas
dogmaticamente adequadas de manejo destas espécies normativas.”35
32 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 23. 33 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 23-24. 34 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 5; OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. 1ª ed. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 101. 35 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 5.
p. 29
Essencialmente, retoma Didier, o método mais adequado de
aplicação de textos normativos que não se apresentam típicos e fechados, como as
cláusulas gerais, é o da concretização ao invés da subsunção, “não obstante ainda
necessite de um contínuo aprimoramento técnico”.36
O uso e a interpretação dos conceitos vagos vêm adquirindo cada vez
mais importância no mundo contemporâneo, afirma Teresa Arruda Alvim, pois
conformam normas com aptidão para absorver realidades que ainda não existem no
presente ou não foram imaginadas quando da sua elaboração, tratando-se de “técnica
legislativa marcadamente afeiçoada à realidade em que hoje vivemos, que se
caracteriza justamente pela instabilidade, pela imensa velocidade com que acontecem
os fatos, com que se transmitem informações, com que se alteram verdades sociais”37,
enfim, são “sintomas de que o direito contemporâneo tende a ser aberto e flexível”.38
Essa abertura conferida ao sistema resulta de uma modificação de
paradigma que passa a atribuir um sentido histórico ao Direito, com uma consequente
modificação na linguagem normativa, afirma Humberto Ávila.39 Pondera o autor:
“de modo a possibilitar a apreensão dos fatos na sua integralidade, por meio da modificação da própria linguagem normativa, com valorização – e maior utilização na legislação, - das cláusulas gerais, dos princípios e dos conceitos jurídicos indeterminados que permitem a mobilidade do sistema e a melhor decisão diante do caso concreto. Trata-se de uma decisão de política legislativa, tomada para permitir que as
36 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 5; DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 166. 37 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 210 e
220; ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 214. 38 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 220; ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 216. 39 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 419.
p. 30
normas, cujo conteúdo é indeterminado abstratamente, não sofram as consequências do tempo.”40
Assim, as sociedades marcadamente heterogêneas e complexas
como as atuais e com o incremento da velocidade das mudanças sociais não mais se
permitiria que o legislador elabore normas exclusivamente com base em técnicas
“inspiradas no racionalismo iluminista, ou seja, legislar usando conceitos mais rígidos
e a técnica dos numerus clausus”41, mesclando-se novas técnicas que empreguem
conceitos vagos, com a correspondente compatibilização da fundamentação das
decisões:42
“A complexidade das sociedades contemporâneas já não permite que nem mesmo o presente, em sua integralidade, seja abrangido pelo direito escrito, se este se amoldar às codificações oitocentistas, que tinham a pretensão de esgotar o mundo real. Essa pretensão tem origem no Iluminismo e na ilusão racionalista de que seria possível entender e regular a realidade, de modo absolutamente exauriente.”43
Neste sentido, resulta evidente que as transformações sociais
historicamente verificadas ensejam um reposicionamento do papel e da relevância
atribuída à interpretação e, concomitantemente, da fundamentação das decisões, bem
como do estilo de legislar e do papel atribuído à lei na fundamentação, em decorrência
da relação travada entre essas transformações e a conformação do ordenamento
jurídico.
Numa aproximação mais abstrata, o direito se apresenta como
produto cultural ligado à gestão e distribuição das utilidades humanas, que se
40 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 419-420. 41 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 216. 42 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 216-217. 43 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 216; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 220.
p. 31
configuram, assim como o direito, pelos objetos da civilização e pelos ideais culturais:
“o Direito, sendo a disciplina dos comportamentos sociais intersubjetivos, é suscetível
de mudanças sob a pressão das diferentes necessidades, com vistas a adaptar-se ao
modo mais econômico e racional de satisfazer o bem-estar social”44.
Sendo sujeita a rupturas no encadeamento diacrônico de processos
conflitantes, há uma correspondência relativa entre a estrutura de produção em voga
e o direito vigente, ainda que não imediata, dada a necessidade de constante ajuste das
normas jurídicas, na perspectiva dinâmica. Nesse sentido, explica Márcio Pugliese:
“o sistema normativo vigente nada mais é que um construto oriundo da ação concreta dos homens em uma civilidade e cultura concretas, em particular, aquela atividade negocial, e alterável sempre que necessário para atender a evolução das relações sociais reguladas e aptas a provocar conflitos.”45
Dessa forma, permite-se um sistema normativo com conceitos vagos
ou indeterminados, mais adaptado à realidade atual, que é marcada tanto por uma
excepcional velocidade de transformação social, que tornaria impraticável uma
legislação de conceitos sólidos e fechados como por uma sociedade plural e
diversificada que tornaria mais dificultoso encontrar determinados consensos
legislativos detalhada e rigorosamente normatizados.
Os conceitos vagos ou indeterminados não permitem a comunicação
perfeitamente clara e delimitada quanto ao conteúdo, característica que permite
funções positivas, como regular situações não imaginadas dentro de um espectro e
criar normas vocacionadas a absorver o futuro:46 “o uso de um termo vago é, em
muitos casos, propositado porque, em certos casos, o seu emprego é aconselhável”47.
44 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Semiótica do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 19. 45 PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 119. 46 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 210-211 47 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 215.
p. 32
Essa situação, claramente, contrasta com a suposição de
possibilidade de previsão de todas as situações na lei e de regula-las ex ante, o que
está calcado na suposição de onipotência do legislador e na necessidade de controlar
arbitrariedades na aplicação do direito.
Assim, no período da Revolução Francesa, o direito era identificado
com a lei, somente, e a sua onipotência era pregada como dogma necessário para o
controle dos juízes, compreendidos como elementos de “administração” da justiça, do
modo o mais burocrático o possível.48 A atuação do juiz era concebida como conduta
que devesse estar absolutamente livre de influências externas, em especial as de ordem
política ou outras de caráter extra-legal, o que era expresso pela figuração de “boca
da lei”, sem qualquer liberdade para seu próprio pensamento atuasse.49
O “estilo de decisão dos juízes franceses” passa a refletir esses
aspectos, com uma fundamentação à maneira de raciocínios mecânicos em forma de
simples silogismos que fazem querer crer não ser possível se obter outra conclusão
para o problema judicado, refletindo o conceito de direito da época;50 mas que em
verdade, não faz outra coisa senão omitir potenciais aspectos relevantes da
fundamentação da decisão para manter a dogmática jurídica vigente na época,
embasada nos pressupostos teóricos e filosóficos que ensejaram a sua instituição
histórica e social naquele período.
Com a progressiva implantação de um Estado de bem-estar social ou
walfare state, sucedeu-se a uma alteração nas estruturas dos Poderes para que
assumissem papeis ativos na consecução promocional de direitos sociais, de igualdade
material e de efetivação de direitos fundamentais e, especificamente ao Poder
48 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 15. 49 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 97. 50 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 33.
p. 33
Judiciário, a proteção dos cidadãos e da sociedade em geral em face de abusos do
poder político.51
Houve um crescimento em geral do papel do Estado e do papel do
direito em particular na sociedade moderna após essas transformações, com aumento
da intensidade e frequência das intervenções públicas em novas áreas da economia e
sociedade, deslocando a tônica da atividade legislativa da regulação de regras de
conduta para medidas e acomodações institucionais e técnicas legislativas
promocionais que implicassem definir finalidades do sistema e direitos com vistas a
uma gradual transformação do presente para um estado de coisas futuro: “Tal técnica
consiste em prescrever programas de desenvolvimentos futuros, promovendo-lhes a
execução gradual, ao invés de simplesmente escolher, como é típico da legislação
clássica, entre ‘certo’ e ‘errado’, ou seja, entre o caso ‘justo’ e o ‘injusto’”.52
Ao longo dos dois últimos séculos procedeu-se a uma inversão da
centralidade das normas legais para as normas constitucionais no pensamento jurídico,
na concepção anterior. Como menciona Dalmo Dallari, desde a promulgação do
Código de Napoleão e da origem do legalismo e do positivismo jurídico, “o Código
convivia com a Constituição, mas era considerado o diploma jurídico superior, de
maior eficácia jurídica, enquanto a Constituição era concebida e tratada como
documento político” 53 , sendo apenas após a Declaração Universal dos Direitos
Humanos em 1948 pela ONU que teve início uma “nova era do constitucionalismo,
com inovações de grande alcance e, sobretudo, com a concepção da Constituição
como norma jurídica superior”.54
51 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 98-100. 52 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 35 e 40-41. 53 DALLARI, Dalmo de Abreu. QPC e Controle de Constitucionalidade: Evolução do constitucionalismo francês. In: CAGGIANO, Monica Herman; LEMBO, Claudio Salvador; ALMEIDA NETO; Manoel Carlos de. (Orgs.) Juiz Constitucional: Estado e poder no século XXI. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 131. 54 DALLARI, Dalmo de Abreu. QPC e Controle de Constitucionalidade: Evolução do constitucionalismo francês. In: CAGGIANO, Monica Herman; LEMBO, Claudio Salvador; ALMEIDA NETO; Manoel Carlos de. (Orgs.) Juiz Constitucional: Estado e poder no século XXI. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 131.
p. 34
Em consequência, o processo civil também passaria a ser estudado a
partir da Constituição Federal como norma na centralidade do sistema e interpretado
a partir dela, com seus temas fundamentais construídos a partir dela, como designado
por Cássio Scarpinella Bueno, sob inspiração de Italo Andolina e Giuseppe Vignera,
de “modelo constitucional do direito processual civil” dogmaticamente impositivo
sob pena de inconstitucionalidade: “Todas as normas constitucionais de direito
processual civil que criam o modelo de organização e de atuação do Estado-juiz.
Criam no sentido de impor o modelo – não apenas um, mas o modelo – a ser
necessariamente observado pelo intérprete e pelo aplicador do direito processual”.55
A partir dessas modificações, tem-se uma alteração correlata na
fundamentação das decisões judiciais, que precisa refletir a atividade valorativa “com
o fito de preencher o conteúdo das normas fundadas em conceitos não
determinados”,56 como explicam Elias Marques de Medeiros Neto, Olavo de Oliveira
Neto e Patrícia Elias Cozzolino de Oliveira:
“Como se vê, portanto, o novo perfil do Estado implicou o crescimento da atividade do magistrado, obrigado a formular juízos de valores para preencher o conteúdo das normas de conteúdo não determinado; então essa atividade também implicou o aumento da importância da fundamentação da decisão”57
Consoante assinala Mauro Cappelletti, a intensificação da atividade
criadora na função jurisdicional foi um fenômeno típico a partir do século XX e
refletiu-se na literatura jurídica contemporânea, podendo ser enquadrado no âmbito
de um fenômeno mais geral de “revolta contra o formalismo” em que se tornou claro
que o papel do juiz é muito mais complexo do que supunham as doutrinas tradicionais,
55 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo
CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 41; BUENO, Cassio Scarpinella. O “Modelo Constitucional do Direito Processual Civil”: Um paradigma necessário de estudo do direito processual civil e algumas de suas aplicações. Disponível em: <http://scarpinellabueno.com/para-ler.html>. Acesso em 15 de setembro de 2017. p. 2-3. 56 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 101. 57 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 103.
p. 35
desvelando escolhas que não estão impregnadas de neutralidade, mas sim de
valorações e discricionariedades, embora não se possa confundir com qualquer
abertura para arbitrariedade:58 “significa que devem ser empregados não apenas os
argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise linguística
puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da história e da economia, da
política e da ética, da sociologia e da psicologia.”59
Cappelletti verifica que o princípio de “sujeição à lei” – por exemplo,
previsto no art. 101 da Constituição italiana e regra fundamental de muitos outros
ordenamentos – não se mostra em nossa época elemento imprescindível da
jurisdicionalidade para solução de casos, dada possibilidade de fundamento em
equidade e critérios de valoração em conceitos vagos e “praticamente vazios símbolos
de valor”: “também é verdade, contudo, que o juiz, vinculado a precedentes ou à lei
(ou a ambos), tem como dever mínimo apoiar sua própria argumentação em tal direito
judiciário ou legislativo, e não (apenas) na ‘equidade’ ou em análogos e vagos critérios
de valoração”.60
O autor também assinala que um certo grau de liberdade na
interpretação e, assim, de criatividade ou discricionariedade pode ser exercido com
ou sem a consciência do intérprete – e mais à frente veremos hipóteses dessas
situações num arcabouço histórico – e que, em verdade, se trata de definir o grau, os
modos, os limites, a legitimidade e a aceitabilidade da criação do direito pelo
aplicador, 61 o que se reflete na fundamentação tanto em vista da tomada de
consciência acerca do espaço interpretativo (mais amplos em conceitos vagos ou
indeterminados) como em vista dos limites traçados como legítimos e aceitáveis para
que constem na fundamentação das decisões.
58 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 31 e 33. 59 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 33. 60 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 24-25. 61 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 21 e 25.
p. 36
Isto somente é possível, depois da aceitação da existência da
atividade do intérprete na concreção desses conceitos e da aquiescência acerca da
importância da fundamentação da decisão no processo civil, como vetor de
estruturação que não pode ficar comprometido pela adoção de modelos teóricos sobre
o fenômeno jurídico que com ela sejam incompatíveis em sua extensão e conteúdo.
Qualquer sistema que busque a estabilização social, a normatização
e controle de condutas e a implantação de valores e aspirações culturais, como o
jurídico, está inegavelmente atrelado à concepção de mundo instaurada naquele
momento histórico como fator estruturante e a teorização que se fez ou que se faz
presente para a compreensão da ciência jurídica e para a construção da realidade em
que se pretende aplicar aquele direito.
Nesse sentido, o propósito é trazer a discussão para dentro da
fundamentação, como um tema fundamental de processo civil construído a partir da
Constituição, almejando denunciar a necessidade de discussão nesse setor e contribuir
com o seu desenvolvimento e controle; porquanto “aumenta a necessidade de
justificar o motivo” na decisão dentro desse cenário 62 . Conforme Cappelletti, a
possibilidade de “politização” judicial e da escolha entre alternativas admissíveis pode
ser questionada como um bom ou ruim desenvolvimento, mas caracterizado pela
grave seriedade que marca profundamente nosso tempo, não podendo o jurista ignorá-
lo,63 como também não pode o aplicador fugir dessas implicações na decisão e na
fundamentação:
“o juiz não pode mais se ocultar, tão facilmente, detrás da frágil defesa da concepção do direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma ‘neutra’. É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e
62 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 102. 63 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 33-34.
p. 37
política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha diversa.”64
Portanto, é necessário adotarmos, de partida, uma concepção de
direito e da aplicação das normas que seja, por um lado, metodologicamente adequada
a uma análise incisiva sobre a concreção dos conceitos vagos ou indeterminados e que
permita uma descrição sobre o espaço no qual se dá o processo valorativo em que o
julgador emprega modelos e esquemas hauridos de representações da realidade social
para preencher o conteúdo das normas com conceitos vagos ou indeterminados; isto
é, afastando a mera e simples subsunção como critério suficiente para a
fundamentação.
Nessa linha de raciocínio, declara Hart:
“Los diferentes sistemas jurídicos, o el mismo sistema en distintas épocas, pueden ignorar o reconocer en forma más o menos explícita tal necesidad de un ejercicio adicional de elección en la aplicación de reglas generales a casos particulares. El vicio conocido en la teoría jurídica como formalismo o conceptualismo consiste en una actitud hacia las reglas verbalmente formuladas que procura encobrir y minimizar la necesidad de tal elección, una vez que la regla general ha sido establecida.” 65
E, por outro lado, consequentemente, supere a suposição de
suficiência do texto normativo para a determinação da norma, isto é, abarque uma
proposta que se pode denominar como “pós-positivista” na medida em que procura
buscar soluções ou contribuições para a aplicação concreta da norma e sua correlata
fundamentação na decisão judicial dentro da aplicação efetiva do direito: “Essa é a
64 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 34. 65 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 161. Em tradução livre: “Os diferentes sistemas jurídicos, ou o mesmo sistema jurídico em diferentes épocas, podem ignorar ou reconhecer de forma mais ou menos explícita essa necessidade de um exercício adicional de escolhas na aplicação de regras gerais a casos particulares. O vício conhecido na teoria jurídica como formalismo ou conceitualismo consiste em uma atitude frente às regras verbalmente formuladas que procura encobrir e minimizar a necessidade de tais escolhas, uma vez que a regra geral tenha sido estabelecida.”
p. 38
grande preocupação do pós-positivismo: acrescentar às conquistas epistemológicas do
positivismo uma teoria palpável da interpretação e da decisão judicial”66.
Deve-se, então, partir da existência de limites sobre a orientação que
a linguagem prescritiva pode proporcionar no texto legal, num sentido dotado de
incerteza que exige o abandono da possibilidade serem atribuídos exemplos
facilmente reconhecidos, do uso do processo de subsunção e derivação silogística e
que implique uma nova prática de argumentação decisional:67 no pressuposto tomado,
em especial em relação aos conceitos vagos ou indeterminados, “el ámbito
discrecional que le deja la linguaje puede ser muy amplio; de modo que si bien la
conclusión puede no ser arbitraria o irracional, es, em realidade, una elección”68.
Na concepção exposta por H. L. A. Hart, largamente compatível com
o objeto de análise, para quem, independentemente de se tratar de um sistema legal
de precedentes ou de legislação, haverá pontos de aplicação de normas que resultem
pautas indeterminadas de condutas ante a falta de certeza decorrente do “uso de termos
classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação”69, o que o autor denomina
de “textura aberta” das normas no ordenamento jurídico.70
Assim, embora o autor preserve uma função capital de guia para as
regras no sistema jurídico, também reconhece um papel central de sua textura aberta
nessa estruturação:71
66 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas
no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 67. 67 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 157-159. 68 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 159. Em tradução livre: “o âmbito de discricionariedade que a linguagem deixa pode ser muito amplo; de modo que mesmo podendo não ser arbitrária ou irracional a conclusão, ela é, na realidade, uma escolha” 69 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 159. 70 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 159-160. 71 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 168-169.
p. 39
“La textura abierta del derecho significa que hay, por cierto, áreas de conducta donde mucho debe dejarse para que sea desarrollado por los tribunales o por los funcionarios que procuran hallar un compromiso, a la luz de las circunstancias, entre los intereses en conflicto, cuyo peso varía de caso a caso.”72
Ademais, na concepção de Hart, os critérios de relevância e
proximidade para as valorações e eleições de sentidos possíveis se realizam através
de elementos externos ao sistema jurídico por sua complexidade, conectando-se com
ele na argumentação jurídica e na fundamentação: “dependen de muchos factores
complejos que se dan a lo largo del sistema jurídico, y de los propósitos u objetivos
que pueden ser atribuidos a la regla. Caracterizar esto sería caracterizar le que tiene
de específico o peculiar el razonamiento jurídico.”73
Extrai-se dessa passagem que o raciocínio jurídico que se expressará
na fundamentação da decisão merece ser estudado mediante um duplo enfoque: um
perfil dogmático que lhe insira dentro do procedimento processual e lhe confira
sentido sistêmico no ordenamento jurídico e outro perfil complexo, que caracterize as
nuances de sua realização como compreensão global de elementos jurídicos ou
extrajurídicos uma concepção sobre a fundamentação adequada e completa.
Esses aspectos, que devem constar da fundamentação à luz de sua
exigência no ordenamento e da sua suficiência, serão oportunamente analisados
mediante a proposição de um modelo possível que conjugue essas necessidades com
a reconfiguração do entendimento sobre o papel do intérprete compatível com essas
premissas.
72 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 168. Em tradução livre: “A textura aberta do direito significa que há, por certo, áreas de conduta onde muito deve ser deixado para que seja desenvolvido pelos tribunais ou pelos funcionários que procuram encontrar um compromisso, à luz das circunstâncias, entre os interesses em conflito, cujo peso varia de caso a caso” 73 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 159. Em tradução livre: “dependem de muitos fatores complexos que se dão ao largo do sistema jurídico e dos propósitos ou objetivos que podem ser atribuídos à regra. Caracterizar isso seria caracterizar o que tem de específico o raciocínio jurídico. ”
p. 40
3. A estrutura das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados e a
discricionariedade
Como afirma Mitidiero74, a teoria da norma e a interpretação jurídica
passaram por um enriquecimento e por uma dissociação entre texto e norma,
implicando maior dificuldade para sua compreensão e aplicação; isto é, “a teoria
cognitivista deu lugar à teoria lógico-argumentativa da interpretação”75.
Na teoria cognitivista, em que pode se enquadrar a literatura jurídica
do século XIX e a posição de Dworking, sustenta-se a existência de uma única
resposta correta quando da aplicação do direito, enquanto os céticos do realismo ou
antiformalismo sustentam que não existe uma resposta correta, não sendo possível
essa qualificação.76
A perspectiva cognitivista implica uma atividade interpretativa está
jungida a premissas de fato e de direito predeterminadas e suficientes para a produção
da norma concreta individual, que deflui como consequência necessária e irrefragável
da mera aplicação da norma abstrata ao fato.77
Uma teoria não cognitivista é caracterizada pela interpretazione-
attività (“interpretação-atividade”) de atribuição de significados a textos e a elementos
não textuais da ordem jurídica mediante individualização, valoração e escolha de
significados que implica escolha entre sentidos e resultados alternativos
concomitantes e compossíveis, não havendo uma resultado exato ou única resposta
74 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência
ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 56. 75 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 56. 76 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 60. 77 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de
precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 136.
p. 41
possível: “Dito claramente: inexiste uma única resposta correta para todo e qualquer
problema interpretativo”.78
A posição de Hart, menciona Mitidiero 79 , pode ser vista como
eclética ou mista em relação a esse aspecto, por aduzir possível a existência de
respostas corretas para os chamados “casos fáceis” e a impossibilidade para “casos
difíceis”. Com efeito, Hart80 registra haver casos de aplicação clara no seu contexto e
casos que permitem um “âmbito discricional” incerto criado pela textura aberta e que
impossibilita a fixação de uma única resposta.
Há um enfoque tanto positivista como realista em Hart, que aplica
critérios lógicos da análise da linguagem em normas que são reconhecidas, de certa
forma ligado à aceitação de fato das normas jurídicas como no realismo escandinavo,
mas com base em instrumentos de filosofia analítica, conforme menciona Schioppa.81
Ao tempo em que características formais do ordenamento são essenciais, há um
reconhecimento de conteúdo mínimo para um ordenamento, sem o qual não poderia
sobreviver na realidade social;82 e quanto à teoria da interpretação:
“Hart discute as posições contrapostas dos ‘formalistas’ (para os quais a cada norma deve ser atribuído um único significado, que o intérprete deve ‘descobrir’) e dos ‘céticos’ (que atribuem ao intérprete a função de ‘inventar’ o significado da norma, por si só polivalente). Para Hart, ao contrário, existe em cada norma um núcleo certo e unívoco, mas também um halo periférico no qual reina a ‘penumbra’, que o intérprete pode dissipar com os instrumentos de análise da linguagem; ainda
78 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 59-60. 79 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 60-61. 80 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 157-159 e 167. 81 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 454. 82 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 454.
p. 42
que mais tarde o próprio Hart tenha questionado essa teoria ‘mista’.”83
Essa ideia de halo periférico, que está na estrutura dos conceitos
vagos ou indeterminados, é expressamente adotada por Teresa Arruda Alvim
Wambier, haveria, assim, uma diferença especialmente quantitativa: “esta orla
periférica de incerteza está presente em quase todos os conceitos, com exceção talvez
das grandezas matemáticas. O que varia é a extensão dessa orla. Assim, a diferença
entre conceitos indeterminados e determinados é de natureza quantitativa”.84
A indeterminação surgida na extensão dessa orla será tratada de
diferentes formas ao longo do tempo, sendo necessário, por um lado, uma reflexão
crítica e histórica a respeito da dogmática jurídica ao longo dos últimos dois séculos,
o que será realizado mais à frente; como preceito para a compreensão do problema,
levando com conta que “a história do direito é, como qualquer outra história, uma
ciência ideográfica, ou seja, ela tem a ver com processos e situações individuais do
mundo histórico.”85
Por outro lado, necessário estabelecer como pode ser compreendido
o problema nesse quadro para se obter um tratamento adequado e consentâneo à
atualidade do fenômeno jurídico, como também observou Teresa Arruda Alvim
Wambier:
“os parâmetros das decisões judiciais hoje são mais flexíveis (mais fuzzy) e o valor segurança vem cedendo à maleabilidade das regras, sem, contudo, desaparecer. Aí entram os princípios jurídicos, as cláusulas gerais e as normas jurídicas postas, em cuja redação há um conceito vago ou indeterminado, e a importância destes fenômenos na contemporaneidade do direito.”86
83 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 454. 84 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 213. 85 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 5. 86 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 15.
p. 43
Os conceitos vagos ou indeterminados possuem a característica de
não permitir a comunicação perfeitamente clara e delimitada, em razão de
“polissemia, vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento”87
Não há como superar a necessidade de preenchimento da “textura
aberta” de certas normas e conferir total previsibilidade. Para Hart, ademais, isto não
parece ser desejável, pois somente seria possível mediante um engessamento do que
sejam os aspectos relevantes em casos óbvios em que a aplicação é pré-julgada e sem
fundamentação da decisão judicial, um procedimento a obscurecer a aplicação do
direito88: “así habremos conseguido, por certo, resolver por adelantado, pero también
a oscuras, cuestiones que sólo pueden ser razonablemente resueltas se presentan y son
identificadas”.89
Nos casos de indeterminação, em que desponta a textura aberta
normativa, a aplicação do direito somente deixa de ser obscurecida na medida em que
se afasta de um método de subsunção, que descarta certos aspectos da realidade para
enquadrar o fato numa classe de fatos abstratamente prevista, isto é, toma como
relevantes apenas aspectos já apontados na premissa maior da norma utilizada. A
fundamentação, tomada essa premissa, será bastante direta, mas também bastante
pobre.
A consequência, no campo da fundamentação da decisão, é que tanto
mais elaborada e completa quanto mais se afaste da pressuposição abstrata e mais se
aproxime da análise problemática quando se faz presente a textura aberta da norma,
recorrendo ao uso de elementos além de estruturas lógicas ou de sistemática intralegal.
Nesse sentido, acentua Humberto Ávila:
87 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 210. 88 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 161-162. 89 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 162. Em tradução livre: “assim teremos conseguido, por certo, resolver antecipadamente, mas também às escuras, questões que somente podem ser razoavelmente solucionadas se são identificadas e apresentadas”
p. 44
“Dependendo da indeterminação da norma, o aplicador será chamado na proporção direta da abertura normativa, a utilizar mais intensamente princípios valorativos não-codificados e critérios extralegais de variável base empírica: usos do tráfico, bons costumes, ética profissional, boa-fé, etc.”90
Conforme explana Eros Grau, a linguagem, em geral, consiste num
sistema de vocábulos convencionais que pode ter por base uma convenção explícita e
determinada para um fim específico, no caso das linguagens artificiais, com
significados, portanto, precisos. Ou pode ter por base uma convenção tácita e não
específica, aberta a ambiguidades, polissemia, imprecisão e vagueza, no caso das
linguagens naturais, tal como a linguagem jurídica.91
Na linguagem jurídica os juristas não se permitiram, ou não
cultivaram o hábito, de cunhar novas palavras que pudessem servir a determinados
significados específicos somente com esse propósito, tal como o cultivaram
especialistas de outras áreas do conhecimento científico, mas antes preferiu-se a
ambiguidade e a imprecisão como marcas do uso da linguagem natural haurida do uso
comunicativo social popular:92 “A textura aberta da linguagem jurídica decorre do
fato de nutrir-se da linguagem natural, na qual aqueles fenômenos se manifestam”93.
A construção de um sistema de absoluta previsibilidade acarreta a
exclusão do objeto aqui tratado – “los términos de textura abierta de nuestro
lenguage”94 –, o que somente seria alcançado pela definição semântica ex ante de
todos os elementos empregados em previsões normativas, isto é, a precisa definição
90 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 414. 91 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 144-145. 92 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 145. 93 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 146. 94 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 162. Em tradução livre: “os termos de textura aberta de nossa linguagem”.
p. 45
característica das linguagens artificiais que suprimem ambiguidades e vaguezas com
formulações explícitas:
“Não menos importante é o fato de a formulação explícita ter como fim fazer ressaltar mais claramente os defeitos que podem se relacionar ao conteúdo das regras, a incompletude das enumerações, à superficialidade de regras e formas individuais, bem como à sua formulação formal insuficiente. Caso esses defeitos possam ser eliminados, poderia ser possível um dia construir algo com um código da razão prática. Um tal código seria o resumo e a formulação explícita das regras e formas da argumentação prática, em parte mencionadas e em parte analisadas somente isoladamente em tantos escritos.”95
A hermenêutica jurídica vem passando por diversas mutações, no
quadro do reconhecimento da distinção teórica entre texto e norma, da aplicação de
princípios com força normativa e de postulados como proporcionalidade e
razoabilidade na aplicação de normas jurídicas, do reconhecimento do caráter criativo
da interpretação jurídica e da concretização de textos normativos, que passa a conviver
com a subsunção, conforme Fredie Didier Júnior, repercutindo na teoria geral do
processo em decorrência dessas mutações e de alterações na teoria das fontes do
Direito.96
Dentre essas alterações encontra-se o desenvolvimento de cláusulas
gerais no ordenamento, tendo como pressuposto as ocorrências mencionadas no
parágrafo anterior, num quadro teórico normalmente referido como pós-positivismo
ou positivismo jurídico reconstruído ou neopositivismo, com base nessas
características apontadas da atual fase da metodologia jurídica.97
Fredie Didier Júnior conceitua as cláusulas gerais como “uma
espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos
95 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 50. 96 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 160. 97 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 160-162.
p. 46
vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado”98, acrescentando, com base
em Judith Martins-Costa, se tratar de hipótese de indeterminação em ambos os
estremos da estrutura normativa.99
Nesse sentido, a técnica legislativa de cláusulas gerais se caracteriza
por uma contraposição à técnica casuística, que remonta à ideia de previsibilidade
mediante formulação explícita em regras, implicando, consequentemente, numa
atividade jurisdicional com poder interpretativo e criativo, porque há uma
interferência ativa na construção de determinadas normas através dos problemas
concretos submetidos à análise judicial.100 À semelhança do que formulou Didier,
Judith Martins Costa também consigna que tanto os conceitos jurídicos
indeterminados como as cláusulas gerais se opõem, “formal e metodologicamente, à
casuística”101.
Judith Martins Costa acrescenta não se dever confundir as cláusulas
gerais com princípios, pois aquelas são normas102 e, como vimos anteriormente, os
princípios não se aplicam de uma forma diferenciada, como mandados de
otimização103; assim, propõe a autora:
“A grande diferença entre princípio e cláusula geral, do ponto de vista da atividade judicial, está, pois, em que estas permitem a formação da norma não através da interpretação do princípio,
98 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 165-166; DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 2. 99 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 166; DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 2. 100 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 166. Conforme observa o autor, na linha do que fora exposto alhures: “Não há sistema jurídico exclusivamente estruturado em cláusulas gerais (que causariam uma sensação de perene insegurança) ou em regras casuísticas (que tornariam o sistema sobremaneira rígido e fechado, nada adequado à complexidade da vida contemporânea). Uma das principais características dos sistemas jurídicos contemporâneos é exatamente a harmonização de enunciados normativos de ambas as espécies.” (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Op. cit., loc. cit.). 101 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 6. 102 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista
dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 5. 103 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 146.
p. 47
mas pela criação, através da síntese judicial onde encontram como elemento de atuação fatos ou valores éticos, sociológicos, históricos, psicológicos, ou até mesmo soluções advindas da análise comparativista, atuando tais critérios tradicionalmente tidos como extralegais através das verdadeiras ‘janelas’ consubstanciadas em tais cláusulas.”
Embora de maneira diferente, Fredie Didier Júnior também distingue
princípios de cláusulas gerais, aduzindo que os primeiros são uma espécie normativa,
que comporta um modo de aplicação peculiar, enquanto as segundas são um texto
jurídico, que “pode servir de suporte para o surgimento de uma regra. Da cláusula
geral do devido processo legal é possível extrair a regra de que a decisão judicial deve
ser motivada, por exemplo.”104
Teresa Arruda Alvim Wambier conceitua os conceitos vagos ou
indeterminados como “expressões linguísticas (signos) cujo referencial semântico não
é tão nítido, carece de contornos claros”105 , assim, esses conceitos não apontam
objetos fáceis e prontamente identificáveis no mundo dos fatos, pois a comunicação
de seu conteúdo está contaminada por polissemia, vaguidade, ambiguidade,
porosidade ou esvaziamento:106
“A polissemia significa ter o termo diversos sentidos; vaguidade (vaguedad, em espanhol) tem o termo, quando permite informação larga e compreensão escassa; a ambiguidade ocorre quando ‘possa reportar-se a mais de um dos elementos integrados na proposição onde o conceito se insira’; porosidade há quando o termo permite a entrada de elementos significantes de outras áreas e esvaziamento, quando falte, ao termo, qualquer sentido útil”107
Os denominados conceitos indeterminados podem se reportar tanto
a realidades valorativas quanto fáticas, mas sempre integram a descrição do “fato”
104 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 167-168. 105 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 210. 106 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 210. 107 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 210.
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que a norma busca abranger, isto é, de sua hipótese de incidência, apresentando-se
polissêmicos por sua vaguidade e ambiguidade de modo a permitir uma liberdade do
aplicador mediante abertura às mudanças de valoração, liberdade, contudo, que se
exaure na fixação da premissa – coincidência do acontecimento real com o modelo
normativo e aptidão deste para a situação concreta –, como nos leciona Judith Martins
Costa.108
Daí se denota que a principal questão ao trabalhar os conceitos
indeterminados na fundamentação está na fixação das premissas e no exercício dessa
atividade valorativa contida nos termos vagos que lhe são inerentes, o que se procurará
fazer através de modelos mais à frente trabalhados.
Idêntico será o foco de preocupação quando do uso de cláusulas
gerais, como aduz a mesma autora, “as cláusulas gerais apresentam, como primeira
particularidade, o fato de não possuírem qualquer estrutura própria que as diferenciem
dos conceitos jurídicos indeterminados”109. Em outras palavras: “as cláusulas gerais
em sua essência assemelham-se aos conceitos legais indeterminados, na medida em
que elas também são dispositivos legais de texto vago e impreciso, que precisam ser
preenchidos”110.
Embora não haja diferença em relação à estrutura de ambas, pode-se
verificar uma “diferença de grau no que tange à abstração e à generalidade”111, que
seria maior na cláusula geral porque nesta a consequência normativa também está
sujeita a uma definição concreta no caso a ser apreciado ante a imprecisão da abstração
normativa, reputada mais elevada.
108 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 6. 109 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 5. 110 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 357-358. Prossegue o autor: “contudo,, distinguem-se em virtude de sua eficácia e finalidade, isso porque a lei já determina as consequências advindas da aplicação do conceito jurídico indeterminado”(Op. cit., loc. cit.). 111 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 6.
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A mesma expressão ou o mesmo conceito está sujeito a exercer a
função de cláusula geral ou de conceito jurídico indeterminado, conforme esse grau
de abstração normativa, mas sem diferenciação estrutural interna para a aplicação de
cada qual – apenas havendo a continuidade da indeterminação do antecedente para o
consequente. Em todo caso, afirma Humberto Ávila: “são, ambos, fenômenos de
linguagem vaga que se inserem na dinâmica, requerendo atividades valorativas do
aplicador”112.
O exemplo fornecido por Judith Martins Costa, ainda sob a vigência
do Código Civil de 1916, é a comparação entre bons costumes no art. 395, III do
código 113 com a previsão de bons costumes no § 826 do Código Civil alemão
(Bürgerliches Gesetzbuch)114; em que há o mesmo tipo de valoração na premissa sobre
o que se possa compreender, dentro de um contexto comunicacional social, como bons
costumes, mas no primeiro caso há uma solução preconfigurada pela lei quando da
aplicação da norma e no segundo caso há definição imprecisa das condições para que
surja o dever de indenizar sem que haja definição exata da noção de prejuízo, isto é,
a consequência jurídica deverá, igualmente, ser construída a partir de termos vagos,
dentro da aplicação do ordenamento.115 Em suma:
“Em ambos – conceitos indeterminados e cláusulas gerais – haverá, por parte do juiz uma atitude valorativa; em ambos, é certo, o legislador afastou a enumeração casuística dos “atos contrários aos bons costumes”. No primeiro, todavia, o grau de generalidade e abrangência é bem menor do que no segundo; neste, a atitude de subsunção à hipótese legal que ainda subsiste naquele, é substituída pela atividade de criação
112 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 436. 113 “Art. 395 – Perderá o pátrio poder o pai ou a mãe: (...) III – que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes.” 114 “§ 826. Aquele que objetivou prejudicar alguém por meio de atitudes contrárias aos bons costumes é obrigado a reparar o dano.” 115 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 6.
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judicial, por meio da síntese, por forma a constituir processo de verdadeira concreção.”116
Segundo esclarece Gisele Santos Fernandes Góes, a diferença entre
os denominados conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais não reside
na vagueza dos termos da norma e na imprecisão destes quando da aplicação à
situação concreta, mas sim na consequência da aplicação da norma com termos vagos
ou indeterminados117, se há ou não uma consequência pré-estabelecida:
“No diapasão, os termos jurídicos indeterminados são conceitos abstratos, imprecisos, dotados de máxima generalidade e com ampla duração, como bons costumes do art. 122 do CC, porém, distinguem-se das cláusulas gerais, porque o juiz, ao fornecer a eles valoração, deparar-se-á com uma consequência estabelecida anteriormente pela própria lei, enquanto que, nas cláusulas, como a boa-fé objetiva, o juízo que construirá a solução para o caso concreto, porém, todos os dois, tanto os termos indeterminados quanto as cláusulas gerias são solucionadas pelo que se compreende da lei e não que se tenha conveniência pela lei para o juiz agir como queira.”118
Quanto à estrutura, Teresa Arruda Alvim Wambier apresenta a
imagem de três círculos concêntricos, em que há “um círculo de certeza de tamanho
pequeno, um círculo maior que este, que seria a zona de ‘penumbra’ (Begriffshof), e
um ainda maior, que seria uma outra zona de certeza, agora negativa”119.
116 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 7. 117 No mesmo sentido: “Nas cláusulas gerais, o aplicador, pela vagueza da hipótese normativa e pela indefinição das consequências, possui possibilidade de optar, segundo uma série de valores sistemáticos e problemáticos, tanto pela incidência das normas sobre determinadas circunstâncias de fato, como pela escolha dos efeitos jurídicos dessa regulação. Nos conceitos jurídicos normativos de valor, a margem de apreciação valorativa circunscreve-se, na mesma intensidade, sobre o preenchimento da pauta carecida de conteúdo de sentido, mas inexiste, quanto à escolha dos efeitos já determinados pelo ordenamento jurídico” (ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 436-437). 118 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade judicial? Discricionariedade x termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 90. 119 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 213.
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Também conforme Gisele Santos Fernandes Góes, os conceitos
jurídicos indeterminados contêm um “núcleo fixo ou zona de certeza positiva”, bem
como uma zona de certeza negativa e uma zona de incerteza ou indeterminada,120
assim, arremata:
“A zona intermediária é a que patenteia que o juiz, diante do litígio, está em face da incerteza e deve, ao julgar, atrofia-la e se conduzir às zonas de certeza positiva ou negativa e, portanto, dizer que existe, por exemplo, improbidade ou excluí-la, dizendo que não existe”121
Isto é, há, nessa estrutura, uma zona de certeza positiva que se
identifica com o núcleo do conceito e uma zona de certeza negativa que se identifica
com hipóteses impassíveis de atribuição do conceito encerrando uma área
intermediária,122 que, fundo, resulta mais uma diferença quantitativa para o fenômeno
a permitir amplamente a análise do que ocorre neste espaço do que uma diferença
ontológica entre termos vagos e termos precisos:
“Na verdade, esta orla periférica de incerteza está presente em quase todos os conceitos, com exceção talvez das grandezas matemáticas. O que varia é a extensão dessa orla. Assim, a diferença entre conceitos indeterminados e determinados é de natureza quantitativa.”123
A própria existência dessa orla ou zona intermediária, que pode-se
denominar como “zona de penumbra”, portanto, não é exclusiva de um tipo de norma,
mas pode estar presente com maior ou menor intensidade em todas elas, não havendo,
assim, uma diferença estrutural a justificar que pudessem ser apartadas como classes
120 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade judicial? Discricionariedade x termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 88. 121 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade judicial? Discricionariedade x termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 88-89. 122 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 213. 123 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 213.
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distintas, mas apenas uma característica mais acentuada, que enseja explicação mais
acentuada acerca de seu uso na fundamentação.
Como nos informa Ricardo Guastini, remonta a Herbert Hart a ideia
de zona de penumbra inerente às normas, o que configura a trama aberta das normas
contra uma teoria da ciência jurídica de paradigma realista:
“Isso significa que, dada uma certa norma, existem (a) casos particulares que seguramente caem no seu campo de aplicação; (b) casos particulares que seguramente ficam fora de seu campo de aplicação; e, enfim, (c) casos particulares em relação aos quais a aplicabilidade da norma é dúbia, incerta, discutível, contestada. (...) Em Hart, a ideia de que as normas têm uma zona de ‘penumbra’ está ligada a uma teoria da ciência jurídica: mais precisamente, serve para defender uma teoria normativista da ciência jurídica contra os ataques do realismo jurídico.”124
Da mesma forma que se rechaça uma tal perspectiva realista,
entendida como identificação do direito com o comportamento decisório ou com o
produto do exercício de órgão judiciais,125 a postura consentânea a esse quadro teórico
não é compatível com a admissão de decisões discricionais por órgãos judicias quando
do preenchimento concreto de normas com termos vagos, adiantando parcialmente o
que será ainda exposto com relação à discricionariedade. Em outras palavras: se a
decisão se justifica pelo próprio fato de ser prolatada e isso é que deve ser identificado
com o direito, então há espaço lícito para a discricionariedade, como livre escolha que
prescinde fundamentação, mas não é essa a posição que será defendida à frente.
Pode-se afirmar, retomando-se o que fora dito alhures, que há graus
diversos de indeterminação e não uma precisa definição qualificativa para os
conceitos indeterminados e cláusulas gerais, ante o caráter quantitativo para a
atribuição da vagueza nos termos da norma como sua característica: “Orman Quine
faz expressiva analogia com um pintor que, diluindo suas cores, é mais preciso que o
124 GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 146. 125 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 453.
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autor de mosaicos feitos de pedras preciosas. A indeterminação dos conceitos não é,
pois, um defeito da linguagem, mas uma característica”126.
Tanto que, se de um lado os termos indeterminados “são-no quando
carecem de limites precisos, quando não traçam uma linha clara para delimitar a
realidade a que se referem (...) como, por exemplo, fumus boni juris, periculum in
mora, verossimilhança, etc.”127, por outro lado, não se mostra possível uma distinção
teórica formalizada como categoria normativa diferenciada ou como espécie deôntica
estruturalmente diferenciada, mas unicamente uma aplicação judicial que resulta
matizes específicas na fundamentação de decisões por sua peculiaridade quantitativa:
“Na verdade, poderíamos dizer que carece até de importância que se trace uma linha divisória rígida nítida entre essas duas espécies de conceito, uma vez que um dos objetivos deste estudo é justamente expor e justificar nossa posição, segundo a qual todo o conceito jurídico pode ser aplicado e gerar uma só solução justa.”128
Em equivalência, podemos afirmar que o aspecto mais relevante não
seja essa divisão rígida nítida – até por sua impossibilidade teórica –, mas que o
objetivo precípuo seja, no campo da fundamentação, expor e justificar nossa posição
de que as normas com termos vagos acarretam um tratamento diferenciado e
específico, ademais da discussão sobre a existência de discricionariedade, que está no
campo da tomada da decisão (context of discovery) e não no campo da fundamentação
da decisão (justification), embora a existência da exigência da motivação seja
incompatível com a discricionariedade de um ato.
Em consequência, a dimensão quantitativa que gera a especificidade
dessas normas (a extensão de sua indeterminabilidade) implica um tratamento, no
contexto justificativo, também específico, a permitir a elaboração de modelos teóricos
126 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 211. 127 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 212. 128 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 213.
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para esse tratamento. E o que se proporá nesse estudo, nada mais é do que a exposição
da necessidade desse tratamento pertinente aos termos vagos na fundamentação de
decisões e a aplicação de algumas teorias para um possível modelo que satisfaça
melhor algumas das necessidades específicas desse tratamento.
Embora largamente adotada na doutrina a nomenclatura acima
empregada, referente a conceitos jurídicos indeterminados e a cláusulas gerais, Eros
Grau critica essa formulação terminológica, aludindo a “termos indeterminados de
conceitos” e não a conceitos indeterminados, uma vez que não há indeterminação com
relação aos conceitos (que são ideais universais), mas apenas com relação às suas
expressões (seus termos):129
“Este ponto era e continua a ser, para mim, de importância extremada: não existem conceitos indeterminados. Se é indeterminado o conceito, não é conceito. O mínimo que se exige de uma suma de ideias, abstrata, para que seja um conceito, é que seja determinada. Insisto: todo conceito é uma suma de ideias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado.”130
Quando há referência a cláusulas gerais ou a conceitos jurídicos
indeterminados, o que se busca expressar é, na realidade, que seus termos são
indeterminados e, por isso, de aplicação complexa ou não imediata na realidade social
e não que o conceito abstrato não seja determinado.
Entretanto, para resguardar maior compreensão dentro do panorama
doutrinário já instituído, far-se-á alusão aos termos usualmente empregados, mas
guardando-se a ressalva de não se tratar da terminologia mais adequada.
Eis que os conceitos jurídicos são expressos por meio de termos da
linguagem e esses termos são o signo do conceito, havendo duas possibilidades para
esses conceitos: na primeira os termos são expressos em linguagem natural, apenas, e
129 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 159. 130 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 159.
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são deixados para serem interpretados futuramente por meio de técnicas ou métodos
que possam ser utilizados nessa interpretação, permitindo que sejam termos
indeterminados caso imprecisos, ambíguos, etc.; já no segundo caso os termos
(signos) empregados no conceito jurídico podem sofrer uma definição legal, isto é, o
termo empregado no conceito é explicitado no texto normativo com uma definição
estipulada para superar a imprecisão ou ambiguidade, gerando uma “definição
jurídica”.131, 132
Dessa forma, apenas os conceitos jurídicos cujos termos não sofrem
uma definição jurídica são efetivamente indeterminados, contendo a vagueza
semântica própria do objeto tratado nesse estudo, a não ser que a definição de seus
termos seja apenas parcial e não tenha por finalidade a efetiva superação da
polissemia, vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento.
Um claro exemplo dessa situação corresponde à aplicação do
conceito de função social da propriedade que, por seus termos, contém inegável
indeterminação e vagueza, somente podendo ser compreendido num excurso histórico
e socioeconômico de sua significação; entretanto, na medida em que o próprio texto
normativo diz quando se deve entender cumprida a função social da propriedade
urbana e da propriedade rural (art. 182, § 2° e art. 186 da Constituição Federal,
respectivamente)133, 134 há uma definição jurídica aplicável a certos casos de função
131 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 157-158. 132 Sobre a definição estipulativa, menciona Ricardo Guastini: “Por ‘definição’ entende-se o esclarecimento do significado de um vocábulo (ou de uma locução) mediante (outras) palavras. Diz-se léxica a definição de quem descreve o modo no qual o vocábulo em questão é efetivamente usado por qualquer pessoa. Diz-se estipulativa a definição de quem propõe que esse vocábulo seja usado de um certo modo. Podemos dizer: quem apresenta uma definição estipulativa define em sentido estrito” (GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 152). 133 “§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” 134 “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
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social da propriedade, superando, total ou parcialmente a inicial polissemia,
vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento dos termos da norma jurídica.
Eros Grau prossegue formulando uma outra ordenação a respeito de
conceitos jurídicos, a partir de uma classificação de Tullio Ascarelli entre conceitos
meramente formais, regulae juris e conceitos tipológicos (fattispecie), identificando
o que se denomina de conceitos jurídicos indeterminados com essa última espécie.135
Os conceitos meramente formais (tais como ônus, direito e
obrigação) constituem uma série de posições lógicas ancoradas no terreno formal sem
qualquer realidade histórica e, analogamente a uma topologia matemática, permitem
a definição de uma teoria geral do direito; já as regulae juris expressam o conteúdo
de um conjunto de normas jurídicas, de modo a resumir toda uma disciplina normativa
respectiva, a exemplo do conceito de propriedade, que condensa poderes, faculdades
e deveres de uma posição jurídica subjetiva em relação a um bem, como que uma
“estenografia legal” (na expressão de Fábio Konder Comparato).136
Os conceitos jurídicos tipológicos (fattispecie), na realidade, não são
conceitos, enquanto ente abstrato, mas sim noções apreendidas no mundo real alçadas
a tipos jurídicos no texto normativo que identificam espécies de fatos típicos da
realidade com expressão histórica:137
“são expressões da história e indicam os ideais dos indivíduos e grupos e grupos, povos e Países; ligam-se a esquemas e elaborações de caráter lógico – independentemente dos quais é eventualmente impossível a disciplina, e que poderão ser diferentes, mesmo obedecendo, cada um, a uma coerência própria –, bem como a preocupações e hábitos econômicos (...)
135 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 153 e 160. 136 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 153-154. 137 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 154-156, passim.
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conceitos cujos termos são, v.g., ‘boa-fé’, ‘bom pai de família’, ‘coisa’, ‘bem’, ‘causa’, ‘dolo’, ‘culpa’, ‘erro’.”138
Pode-se, assim, fazer um paralelo entre as duas primeiras entidades
com as linguagens artificiais, pela caracterização da primeira como elaboração
exclusivamente formal e da segunda como expressão sintética de um conjunto
semântico explícito e conscientemente elaborado (definições estipulativas); enquanto
faz-se um paralelo com a linguagem natural quanto à última entidade (fattispecie),
permeada de uma dimensão histórica e temporal no seu desenvolvimento ideacional
por contradições e superações:
“a tese essencialista resulta demolida quando cogitamos dos conceitos meramente formais e das regulae juris, que não podem ser definidos em termos de experiência. Quanto aos conceitos jurídicos tipológicos (fattispecie), efetivamente não são conceitos, mas noções. Não obstante, a se admitir que aí se trata de conceitos, dir-se-á que, precisamente porque não há uma relação de necessidade entre a palavra e aquilo que designa, uma e outro seriam dotados de fluidez. O equívoco está em tomarmos os conceitos jurídicos tipológicos (fattispecie) como conceitos – equívoco que procuro corrigir, convencido, agora, de que são noções. É correta, pois, a afirmação de que aos conceitos, sempre precisos – caso contrário não seriam conceitos –, podem corresponder, embora isso não ocorra necessariamente, termos (= palavras) precisos. No que tange às noções, tanto elas quanto seus termos são fluidos. Mas não porque as palavras sejam consequências das coisas, porém porque a linguagem jurídica é ambígua e imprecisa, fluida, e as noções são históricas e temporais.”139
Não seria desejável nem ideal a supressão da textura aberta de
normas através de uma regra tão detalhada que se pudesse definir de antemão se se
aplica ou não a um caso particular e que nunca fosse exigida uma “nova eleição entre
alternativas abertas”, seja porque não porque não seria possível determinar por
critérios gerais os casos futuros em nossa ignorância de situações e propósitos, seja
porque a condição humana do legislador não permitiria a especificação com relação a
138 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 154. 139 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 159-160.
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todos os problemas, seja porque a característica das linguagens naturais (como inglês,
português, etc) empregadas nas normas jurídicas não o permitiria:140
“De hecho todos los sistemas, de maneras diferentes, concilian dos necesidades sociales: por un lado, la necesidad de ciertas reglas que, en relación con grandes áreas de conducta, pueden ser aplicadas con seguridad por los particulares a sí mismos, sin nueva guía oficial o sin necesidad de sopesar cuestiones sociales, y, por otro lado, la necesidad de dejar abiertas para su solución ulterior, mediante una elección oficial informada, cuestiones que sólo pueden ser apreciadas y resueltas cuando se presentan en un caso concreto.”141
Portanto, o sistema normativo deve se equilibrar entre possibilidades
de incidência de normas sobre amplos espectros de conduta, voltadas para situações
futuras e imprevistas, mas mediante uma indeterminação relativa – caso em que temos
o uso de conceitos vagos ou indeterminados – e possibilidades de incidência
identificável com menor esforço e maior segurança para os sujeitos – caso em que não
serão utilizados tais expedientes –, para se manter um sistema operativo e compatível
com os escopos de cada espécie de previsão normativa e com a linguagem natural
utilizada no direito:
“coloca-se a questão sobre a utilidade do sistema de regras obtido. Essa questão tem diversos significados e pode ser estabelecida a partir de diferentes pressupostos. O pressuposto mais forte seria considerar uma teoria do discurso útil apenas se ela levasse, em todos os casos, a um resultado seguro. Isso seria possível se as regras do discurso fossem formuladas de uma forma tão forte a ponto de poderem conter, em um sentido que não será especificado mais de perto aqui, a solução de todo caso individual. Isso só poderia ser alcançável se as regras processuais fossem completadas com as regras materiais, o que acabaria sendo uma codificação de uma moral. As
140 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 159-160. 141 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 162. Em tradução livre: “De fato, todos os sistemas, de diferentes maneiras, conciliam duas necessidades sociais: por um lado, a necessidade de certas regras que, em relação a grandes áreas de conduta, podem ser aplicadas com segurança pelos particulares a si mesmos, sem novo guia oficial ou necessidade de sopesar questões sociais, e, por outro lado, a necessidade de deixar abertas para solução ulterior, mediante uma escolha oficial informada, questões que somente podem ser apreciadas e resolvidas quando se apresentam em um caso concreto.”
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desvantagens são óbvias. Uma tal codificação de uma moral dificilmente poderia aspirar um consentimento geral. A maior segurança dos resultados deveria ser paga com uma maior insegurança dos pressupostos. Além disso, uma tal codificação, como ensina a experiência das codificações jurídicas, de modo algum levaria sempre a um resultado seguro. A insegurança seria apenas reduzida, mas não eliminada. Uma vez que não se vislumbra nenhum outro processo de fundamentação que garanta, em caso de alta aceitabilidade dos pressupostos, a segurança dos resultados, aquele que insiste nessa segurança deve renunciar inteiramente às regras de fundamentação. A ele restaria a mera decisão. Um tal ponto de vista tudo ou nada não é necessário e não faz sentido. Os procedimentos das ciências empíricas também não garantem certeza definitiva em relação as questões.”142
Um ordenamento jurídico permeado de termos vagos em conceitos
jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, em certa medida, obriga o operador do
direito a uma postura que enseja uma relação conflituosa com certas suposições do
normativismo, enquanto construção do fenômeno jurídico por meio exclusivo de uma
autoridade normativa, o que se revela insuficiente:
“O sistema jurídico, assim considerado, volta a ser tido como um ‘sistema aberto’, porquanto a sujeição ao ordenamento já não mais se revela como mera servidão à lei, formalmente caracterizada: (...), afastando-se, por consequência, a ideia de que o Direito possa ser aplicado, interpretado e desenvolvido a partir de si mesmo – seja através das representações do legislador, seja por intermédio de um suposto ‘sentido imanente’.”143
A insuficiência de um paradigma da teoria da ciência jurídica que se
desenvolva unicamente a partir de si mesma, no seio da produção da autoridade
normativa, enseja a possibilidade de identificar no subjetivismo do comportamento de
atores processuais e, em especial, de órgãos jurisdicionais, elementos discricionais,
vendo-se na ciência jurídica “uma ciência que versa comportamentos, não
ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 67. 143 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista
dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 3.
p. 60
diferentemente de todas as ciências sociais”144, isto é, um paradigma que flerta com
conotações do realismo, como observa Ricardo Guastini:
“Em outras palavras, o normativismo supõe que o direito seja produto da legislação (em sentido lato) e que os juristas encontram as normas já feitas e acabadas, suscetíveis de conhecimento; supõe que a interpretação jurídica seja conhecimento de normas. Segundo o realismo, ao contrário, o direito não é outra coisa senão o resultado da interpretação e da aplicação, de sorte que não existem absolutamente normas antes e independentemente da prática judicial e administrativa.”145
A vaguidade semântica das línguas naturais permite, assim, o objeto
de pesquisa tratado, ademais, como vimos, a atualidade exige uma dimensão
adaptativa dos textos normativos do ordenamento jurídico, de modo que é cada vez
mais presente a possibilidade de amoldar uma previsão normativa a uma
multiplicidade de casos seguindo essa lógica do indeterminado e do indeterminável,
mediante alterações promovidas no campo da cultura, da civilização e da sociedade,
campos de estudos das ciências sociais, fora da suposição de poder absoluto da
autoridade normativa sobre o Direito.
Entretanto, nunca se pode alcançar a indiscutível certeza dos
contornos da aplicação destas normas aos casos futuros, sob pena de se desnaturarem
em seu propósito e não mais alcançarem sua função de adaptabilidade pro futuro dos
textos normativos sem a necessidade de alteração da previsão legal.
Por outro lado, a composição do texto normativo com elementos
tipicamente estudados nas ciências sociais não acarreta discricionariedade inerente à
aplicação do Direito, como veremos, e nem implica adotar o realismo jurídico, não se
identificando uma contraposição irreconciliável entre o normativismo e a
subjetividade do intérprete e o solipsismo judicial.
144 GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 354. 145 GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 355.
p. 61
Até mesmo porque a discricionariedade desconsidera os propósitos
da atividade de dizer e aplicar o Direito em juízo, as finalidades de segurança e certeza
a serem implementadas na tutela jurisdicional e a estrutura de construção racional e
motivada que deve permear as decisões judiciais, não podendo ser tomadas sem
justificação.
Como decorrência da indeterminação, alguns autores debatem a
existência ou não de discricionariedade em decisões judiciais, especialmente no caso
aqui tratado, de normas vagas ou conceitos indeterminados; como vimos em Alexy146,
Taruffo147 e Cappelletti148 e Hart149 - para citar alguns dos autores já mencionados -
não existiria uma única resposta certa e, assim, há um espaço para algum tipo de
discricionariedade, ao contrário do que propugnam Teresa Arruda Alvim Wambier150
e Lenio Streck151, não admitindo a possibilidade de mais de uma solução para o caso
e afastando a existência de discricionariedade judicial.
A primeira colocação que se deveria pôr ao problema é discutir em
que termos se entende “discricionariedade” judicial, ou seja, se possui o mesmo
conteúdo do Direto Administrativo, podendo ser definido o ato como “discricionário
porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade,
conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo
legislador”152.
146 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A teoria da argumentação racional como teoria da
fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 23-24; ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 68. 147 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 125 e 209-210. 148 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 21-23. 149 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 159-160 e 167. 150 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 167-169. 151 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 279-279 e 288. 152 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 197.
p. 62
Não parece que haja oportunidade e conveniência para prolatar uma
decisão, como se a tutela jurisdicional estivesse ao arbítrio do julgador, da mesma
forma que se entende que “a atuação é discricionária quando a Administração, diante
do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade
e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas”153, na
definição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
Por outro lado, não parece que seja esse o conteúdo da expressão
“discricionariedade” dentro das decisões que envolvem os casos chamados “difíceis”
(hard cases), na situação proposta por Hart. Nesse sentido: “no Judiciário,
indubitavelmente não se pode falar em binômio de conveniência-oportunidade para
se atingir a solução ‘correta e justa’ ou, melhor traduzindo, mais razoável para o caso
concreto.”154
Ato discricionário, como referência no campo semântico, é aquele
exercido sem restrições, mas como referência no campo jurídico, a discricionariedade
não é tão simples, estando sempre ligado a determinados limites legais, mas com certa
liberdade, não se confundindo com arbitrariedade, nem havendo ausência de
restrições.155 Como pontua Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente, o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em consequência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente. Ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorga tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força de indeterminação legal quanto ao comportamento
153 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 197. 154 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade judicial? Discricionariedade x termos
jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 88. 155 CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 110.
p. 63
adequado à satisfação do interesse público no caso concreto.”156
A segunda colocação que se deve empreender é que parece difícil
afastar a existência de “discricionariedade” no sentido de existir um espaço decisório
não pré-determinado – como se está admitindo nos pressupostos lançados no presente
trabalho –, pois, se não existisse, a própria discussão perderia o seu sentido.
Entretanto, esse espaço decisório, que configura um espaço de
indeterminação ou zona de incerteza, não se identifica com a discricionariedade, no
sentido usualmente empregado, sendo uma expressão que mais traz problemas
teóricos do que soluções para descrever o fenômeno da zona de indeterminação de
conceitos vagos ou indeterminados quando de sua interpretação e emprego em
decisões judiciais.
Nesse sentido:
“O problema da interpretação das normas, mesmo sem se falar nas dificuldades existentes na interpretação de conceitos vagos e cláusulas gerais, foi, ao longo da história, muitas vezes visto como algo muito ligado ao poder discricionário, chegando, às vezes, até a ser identificado com esse fenômeno. E isso pela simples circunstância de ser exata a afirmação no sentido de que uma norma pode mesmo comportar mais de uma interpretação! Veja-se, todavia, que, se se diz que o juiz, ao conceder uma liminar, está exercendo poder discricionário, se o está dizendo porque conceitos vagos hão de ser interpretados e há de ser verificado se estão presentes aqueles requisitos na situação fática que determina a concessão da liminar. Portanto, é-se levado a dizer necessariamente também que, quando o juiz profere sentença, aplicando norma de direito material, que contém conceito vago em sua formulação, estará proferindo sentença discricionária! Talvez o que haja em comum entre ambos os fenômenos (discricionariedade e interpretação de
156 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 205.
p. 64
conceito vago) seja o momento subjetivo que existe nas duas atividades, necessariamente.”157
Segundo especifica Ronaldo Cramer, a interpretação do conceito
jurídico indeterminado não configura discricionariedade, não constitui uma “mera
escolha” de uma dentre outras soluções possíveis, mas um método intelectivo para a
solução do problema.158 O autor dá como exemplo de discricionariedade a escolha de
ocupante de assento em tribunal reservado ao quinto constitucional pelo governador:
qualquer dos três nomes da lista preenche os requisitos e a escolha não precisa ser
motivada, sendo qualquer delas acertada e não sendo possível a revisão de seu
conteúdo.159
O mesmo não acontece no processo civil quando necessária a
concreção de um conceito vago ou indeterminado numa decisão judicial, pelo
contrário, em todos os casos o julgador precisa fundamentar a decisão, ela não pode
carecer de motivação porque discricionária e seu possível desacerto é passível de
revisão mediante meio de impugnação adequado ao caso:
“Ao contrário do que ocorre no ato discricionário, não há, na interpretação de conceito jurídico indeterminado, diversas alternativas cabíveis para o juiz, mas apenas uma solução adequada para o caso concreto. E o juiz deve acertar essa solução, sob pena de sua decisão ser revista.”160
157 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 250-251. 158 CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil.
In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 111. 159 CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil.
In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 110-111. 160 CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 111.
p. 65
Em suma, o ato discricionário, que só tem lugar quando a lei o
autoriza e nos limites por ela permitidos, não precisa ser motivado e não é suscetível
de revisão em seu conteúdo, mas somente quanto à forma em razão de apreciação de
sua legalidade, enquanto na interpretação do conceito jurídico indeterminado não é
conferida a mesma zona de liberdade, mas sim uma outra espécie, uma liberdade em
interpretar para encontrar a solução do caso, não sendo indiferente a solução
encontrada e não estando isento de revisão do próprio conteúdo da decisão.161
Nessa linha de raciocínio, pode-se acrescentar que a liberdade
interpretativa não implica necessariamente a livre escolha ou opção: “Afirmar que as
palavras e expressões jurídicas são, em regra, ambíguas e imprecisas não quer, porém,
dizer que não tenham elas significação determinável. (...) as palavras e expressões
jurídicas expressam significações sempre determináveis.”162
E a admissão de um caráter discricionário com sua inerente
impossibilidade de revisão, no campo judicial, ademais, conflita frontalmente com os
princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal,163 não sendo
pertinente a um modelo constitucional de processo civil para ser admitido a essa
maneira.164
161 CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 111-112. 162 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 147. 163 CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 112 e 113. 164 Nesse sentido, inclusive, o autor critica a súmula n. 622 do STF, por violar o modelo constitucional de processo civil e por confundir interpretação de conceito jurídico indeterminado com discricionariedade judicial (CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 113). Salienta-se, contudo, que jurisprudência posterior do Supremo Tribunal Federal já reconheceu a insubsistência da referida súmula de número 622 (Agravo Regimental no Mandado de Segurança nº 25.563, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgamento em 9.12.2010, DJe de 10.2.2011).
p. 66
Em verdade, há significativa diferença com a discricionariedade
administrativa, de modo que não se mostra adequado sequer utilizar a expressão
discricionariedade para o que ocorre em decisões judicias.165 A respeito:
“Para a Administração, costuma-se dizer que haveria mais de um caminho possível, jurídico. Entretanto, este passa a ser um só em face do caso concreto. Esta pluralidade de possibilidades, com relação ao Poder Judiciário, não se dá na "escolha" dos caminhos, mas exclusivamente com relação à subsunção do fato à norma. Trata-se então, propriamente, não de atividade discricionária, mas de preenchimento de conceito vago, através de atividade eminentemente interpretativa.”166
A existência do que se denomina “conceitos indeterminados” é
logicamente inerente à necessidade de construção da tese da discricionariedade
administrativa, leciona Eros Grau, entretanto, a semelhança se encerra por aí, na
necessidade de aplicação concreta do termo vago, pois, conforme esse autor, o que
existe é uma confusão na doutrina administrativista entre a discricionariedade e a
interpretação.167
Também para Teresa Arruda Alvim Wambier a identificação do
poder discricionário com a interpretação de conceitos vagos e cláusulas gerais foi
ocasionada pelo simples fato destas normas comportarem mais de uma interpretação,
sendo apenas comum a ambos a existência do que denomina um “momento subjetivo”
nas duas atividades, embora já de início se possa verificar que a interpretação é
inevitável a qualquer texto ou documento jurídico, independentemente do grau de
precisão de seus termos, o mesmo não se podendo dizer da discricionariedade, que
não é inerente ou inevitável à aplicação de normas.168
165 PINTO, Teresa Celina Arruda Alvim. Existe “discricionariedade” judicial? Revista de Processo. vol. 70/1993, p. 232-234, Abr-Jun/1993. p. 2. 166 PINTO, Teresa Celina Arruda Alvim. Existe “discricionariedade” judicial? Revista de Processo. vol. 70/1993, p. 232-234, Abr-Jun/1993. p. 2. 167 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 161. 168 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 250-251.
p. 67
Conforme Teresa Celina Arruda Alvim Pinto, existe,
indubitavelmente, uma “margem de liberdade” criada pelos termos vagos da norma,
como quando uma prova é considerada útil ou oportuna de ser produzida naquele
processo, mas isso não significa que exista um poder discricionário do juízo em deferir
ou indeferir uma prova, antes, há o que a autora denomina “liberdade de investigação
crítica” na atividade intelectual de interpretação dessa norma.169
A existência de uma margem de liberdade ao decidir, isto é, a
margem não previamente determinada que será concretizada mediante a aplicação a
um caso específico, não se identifica com a discricionariedade, tal como existe no
âmbito da Administração Pública e tal como é concebida no Direito Administrativo,
quando se está frente à aplicação judicial de termos vagos (denominados conceitos
indeterminados).170
Em síntese, a existência dessa margem se atém ao grau de
dificuldade de interpretação e de aplicação dos termos vagos da norma e, ao contrário
do que ocorre na discricionariedade, em que há uma indiferença entre os resultados
obtidos, no processo de preenchimento (em concreto) dos termos vagos de uma norma
em decisões judiciais há o escopo de gerar uma única resposta para aquele caso, com
a extração de uma interpretação que é passível de reforma caso equivocada.171
Pode-se complementar referindo-se que:
169 PINTO, Teresa Celina Arruda Alvim. Existe “discricionariedade” judicial? Revista de Processo. vol. 70/1993, p. 232-234, Abr-Jun/1993. p. 3. 170 PINTO, Teresa Celina Arruda Alvim. Existe “discricionariedade” judicial? Revista de Processo. vol. 70/1993, p. 232-234, Abr-Jun/1993. p. 1-3. Excepcionalmente, a autora admite a existência de discricionariedade idêntica à administrativa, como na fixação do prazo pelo juízo na citação por edital prevista no art. 232, IV do CPC de 1973. Já Ronaldo Cramer discorda dessa hipótese, por haver possibilidade de impugná-la mediante recurso, entretanto, também aponta a existência de atos discricionários por exceção, como na oitiva, como informante, de testemunha impedida ou suspeita (art. 405, § 4° do CPC de 1973), pois entende que apenas aquilo que for irrecorrível poderia se enquadrar como discricionário, não podendo essas situações, também, implicar qualquer prejuízo às partes. (CRAMER, Ronaldo. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade judicial no processo civil. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 112). 171 PINTO, Teresa Celina Arruda Alvim. Existe “discricionariedade” judicial? Revista de Processo. vol. 70/1993, p. 232-234, Abr-Jun/1993. p. 3.
p. 68
“Na discricionariedade não há atitude interpretativa. Nela somente tem espaço para escolhas que não estão qualificadas no universo jurídico, por isso, são indiferentes, os critérios estabelecidos não têm amálgama na lei, mas em circunstâncias fáticas que denotam conveniência e oportunidade da situação que se apresenta.”172
Em outros termos, a discricionariedade permite um juízo de
oportunidade que encontra um campo de incursão na subjetividade à margem da
legalidade e do controle, enquanto o processo de concreção de termos vagos em
decisões judiciais somente comporta uma apreciação interpretativa dentro de juízos
de legalidade, como menciona Eros Grau:
“O juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente; o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve atado, retido, pelo texto, nos limites da legalidade.”173
Poder-se-ia suscitar que, havendo idêntica gênese nos fenômenos
tratados, em que tanto a discricionariedade administrativa quanto a concreção de
“conceitos indeterminados” em decisões judiciais apresentam termos vagos nas
normas a serem aplicadas, haveria de resultar identidade também em suas
consequências.
Nesse sentido, a suposição de que haveria uma única resposta certa
e de que não existiria discricionariedade (não compreendida como no Direito
Administrativo, mas como espaço decisório) padece dos mesmos vícios das
suposições do positivismo legalista que acreditava poder pré-determinar a solução de
quaisquer casos apenas com previsões de textos de lei. A solução não pode ser sempre
predeterminada e não há incongruência efetiva entre isso e um modelo que afaste a
discricionariedade.
172 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Existe discricionariedade judicial? Discricionariedade x termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: Estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 89. 173 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 163.
p. 69
Esse tipo de abordagem já foi procedida dentro de outras escolas
dentro do formalismo, como na “jurisprudência dos conceitos”, em que se
pressupunha a possibilidade de previsibilidade e certeza no direito apenas trabalhando
os conceitos a serem utilizados no caso, entretanto,
“De fato, o reconhecimento de que é intrínseco em todo ato de interpretação certo grau de reconhecimento de criatividade – ou, o que vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade e assim de escolha –, não deve ser confundido com a afirmação de total liberdade do intérprete. Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial”174
O termo vago na norma permite fazer esse tipo de asserção: de
impossibilidade de previsibilidade jurídica máxima em tais casos. Isso implica que,
na realidade fática, é possível que uma norma com termos vagos resulte em inúmeras
soluções quando da sua aplicação. Porém, essa conclusão é juridicamente inadequada
em face do processo que se tem em conta na aplicação desse tipo de norma em
decisões judiciais, porque não é essa a formulação sistemicamente adequada dentro
do sistema jurídico, por não ser a função esperada do órgão julgador que tome
qualquer tipo de decisão na aplicação do direito sob essa ótica.
Não se trata do mesmo tipo de aplicação na norma com termos
vagos. Como se viu, há uma indiferença do resultado obtido na discricionariedade
administrativa e um escopo em gerar uma única resposta no uso de conceitos vagos
ou indeterminados em decisões judiciais; há um juízo de oportunidade infundido de
subjetividade na primeira hipótese e um juízo de legalidade em atividade
eminentemente interpretativa, qualificada por sua comunicabilidade intersubjetiva e
motivação racional na segunda hipótese.
174 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 23-24.
p. 70
A distinção reside no processo e não no campo semântico-normativo,
não está na gênese, mas no que ocorre entre a norma e sua aplicação; isto é, “o escopo
de gerar uma única interpretação” é uma qualidade do processo de aplicação da norma
e não uma qualidade da previsão normativa em si, de seu texto.
A previsibilidade e a segurança são postulados desejados pelo
ordenamento em sua aplicação, não se concebendo o Poder Judiciário como campo
de preferências na eleição de possiblidades a redundar indiferença quanto aos
resultados alcançados, mas, ao contrário, um campo de construção racional e
intersubjetivamente comunicável de aplicação coerente, íntegra e previsível do
ordenamento jurídico, ainda que este contenha termos vagos em normas.
Estamos frente à estrutura do processo de aplicação quando se trata
dos juízos inerentes à sua concreção ou ao escopo que se pretende gerar com a norma,
o que Taruffo nos informa ser a estrutura interna do raciocínio judicial determinado
pela função (seja a decisória ou a justificativa).175
Ou seja, no Estado Democrático de Direito a função a ser exercida
pelos órgãos julgadores na aplicação de normas com termos vagos não é compatível
com a discricionariedade e com o juízo de oportunidade, mas apenas com a
interpretação crítica e racional em juízos de legalidade e, assim, a estrutura interna do
raciocínio judicial não é conciliável com a discricionariedade que existe no direito
administrativo quando do uso de normas com termos vagos na fundamentação de
decisões judiciais, pois não se trata de função idêntica ou assemelhada à função que a
Administração Pública exerce no âmbito da função executiva no Estado Democrático
de Direito.
Nesse mesmo sentido, adiciona Georges Abboud:
“admitir a inserção da discricionariedade para solução de questões jurídicas constitui, ainda, enorme retrocesso em termos democráticos, pelo simples fato de que a
175 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 204.
p. 71
discricionariedade confere um salvo conduto ao julgador e uma imunização da decisão que a contém, tornando impossível contrastar seu acerto ou desacerto, o que, em última instância, impede a aferição da sua própria constitucionalidade. Pro conseguinte, sem um espaço hermeneuticamente adequado, continuaremos condenados a examinar questões jurídicas em ambiente completamente relativista.”176
Acrescenta-se ao que fora explanado, a lição de Teresa Arruda
Alvim Wambier, no sentido de que, se se admitir haver o exercício de poder
discricionário porque conceitos vagos precisam ser interpretados (como por exemplo
na concessão ou não de uma liminar), deve-se necessariamente admitir que há
sentenças discricionárias quando houver norma de direito material com conceito vago
em sua formulação.177
Esse entendimento acerca da discricionariedade está intrinsecamente
ligado à imunidade de controle sobre a decisão, enquanto a decisão judicial é
controlável e sua fundamentação propicia inerentemente esse controle:178 “o conceito
de discricionariedade foi concebido no âmbito do direito administrativo. A relação do
agente administrativo com o direito é diferente da relação do juiz. Aquele age de
acordo com o direito; este, diz o direito. Logo, os fenômenos não podem ser
idênticos”179.
Conforme conclui Georges Abboud, mencionando preleção de
Marcelo Neves, a necessidade de interpretar não dá azo à discricionariedade em
sentido estrito, embora a imprecisão semântica implique alguma incerteza cognitiva,
o seu manejo é sempre fundamentado, não se sustenta na vontade do intérprete e se
176 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 321. 177 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 251. 178 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2017. p. 266-267. 179 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2017. p. 266.
p. 72
lastreia numa necessária construção histórica que concretize a principiologia
constitucional, com pleno respeito à legalidade.180
A atribuição dessa discricionariedade em decisões, evidentemente,
não se amolda à concepção atual do que seja a interpretação e a aplicação do direito
num sistema jurídico contemporâneo. A aplicação judicial de termos vagos resolve-
se, portanto, no âmbito da interpretação e não da discricionariedade, como acentua
Eros Grau: “Isso porque, no atual estágio de sua evolução, a teoria da interpretação
de textos jurídicos recusa a tese que sustenta operar-se no âmbito da
discricionariedade da Administração o preenchimento dos equivocadamente
designados ‘conceitos indeterminados’.”181
De todo modo, a questão em si não parece plenamente ligada ao
contexto de justificação da decisão, mas mais afeita ao contexto de descoberta nas
decisões judiais, pois a discricionariedade, tomada em seu significado original no
âmbito do direito administrativo, prescinde de fundamentação expressa, como
consignado alhures, ao passo que a decisão judicial não pode subsistir sem
fundamentação.
Isto é, o liame que se forma entre a fundamentação da decisão
judicial e a discricionariedade é que esta não exige ou depende de fundamentação,
enquanto a decisão judicial sempre é fundamentada, exigindo-se-lhe essa nota
característica; muito embora esse elemento, isoladamente, não tornasse impossível
que houvesse ou não discricionariedade na decisão, o que somente se alcança
definitivamente bem compreendendo sistemicamente o papel desempenhado pelas
decisões judiciais dentro do Estado Democrático de Direito.
Sendo o caso de se admitir que não exista discricionariedade na
decisão judicial e que somente é possível obter uma resposta certa, a motivação a
180 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 358-360, passim. 181 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 147-148.
p. 73
respeito dessa única resposta deve ser expressa para que se atenda à exigência de
fundamentação.
Por outro lado, sendo o caso de se admitir que há um espaço de
decisão em aberto a ser delimitado no caso concreto, também é exigida a
fundamentação, igualmente, superando-se, ao menos no context of justification, a
questão da existência ou não de uma discricionariedade nas normas com termos vagos,
o que somente seria passível de análise no context of discovery. Ademais,
compreendendo-se adequadamente a estrutura inerente ao que deve ser o raciocínio
judicial no Estado Democrático de Direito, não haveria campo para essa
discricionariedade, como fora compreendida na doutrina administrativista.
Em ambas as situações a exigência da fundamentação não pode ser
desconsiderada, omitida ou diminuída: seja para demonstrar que somente aquela era
a resposta correta, seja para demonstrar que, dentre as várias existentes, aquela era
possível e era consentânea com critérios racionais argumentativos aplicados ao caso
concreto, justificando-a.
Em outras palavras, a possibilidade de uma ou mais soluções
possíveis é um aspecto atrelado ao context of discovery que, quando transportado para
o âmbito da fundamentação da decisão judicial (no context of justification), perde
significativamente a relevância dogmática, dada a exigência constitucional, legal e
lógica de fundamentação das decisões no ordenamento, em conformidade aos
postulados do processo civil, em especial o contraditório.
p. 74
4. Delineamentos processuais sobre a exigência de motivação
Neste capítulo, pretende-se discorrer sobre a necessidade de
motivação das decisões judiciais, desde sua previsão constitucional e no Código de
Processo Civil, sobre a suficiência ou insuficiência da fundamentação e sua relação
com o contraditório no processo; isto é, sobre delineamentos dogmáticos da
fundamentação, o alcance e o conteúdo de sua exigência no processo.
O dever de motivação das decisões recebeu pouca atenção ao longo
da história do direito até o momento histórico da Revolução Francesa, quando foi
potencializado; embora haja certa divergência sobre a exigência de fundamentar as
decisões no direito romano, havendo poucos registros e, por vezes, vacilantes quanto
a essa necessidade, durante a Idade Média e até o iluminismo pré-revolucionário
houve pouca preocupação com o assunto.182
Por séculos o dever de motivar foi visto como inconciliável com a
prolação das decisões, posto se tratar de uma manifestação de autoridade e poder da
qual não se poderia exigir algum tipo de justificação; nesse sentido, glosadores
medievais recomendavam aos juízes que não motivassem as decisões para resguarda-
las de eventuais defeitos e mesmo de se exporem razões ruins, sendo prudente que
não o fizesse tanto para não transparecer eventuais desconformidades com o direito
material como para proteger a decisão de impugnação ou invalidação.183 No mesmo
sentido, no âmbito do direito canônico, o Papa Inocêncio III dispôs, no ano de 1199,
182 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança
jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 90-104, passim. 183 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 90 e 101.
p. 75
que a validade da sentença não seria objetada por falta de motivação, sendo válida em
decorrência da competência da autoridade.184
No absolutismo também se privilegiou o sigilo das razões das
decisões, na medida em que o rei exercia seus poderes por legitimação divina, não se
poderia admitir que ele ou seus agentes tivessem de justificar os atos praticados; além
disso, o sigilo conferia o misticismo em torno da atividade judicante e lhe aumentava
o poder e o prestígio, conferindo ampla liberdade para proferir a decisão sem que fosse
confrontado com o senso de justiça que pudesse ser suscitado pelo lesado.185
Com essas considerações apontadas, a supressão da fundamentação
ou sua dispensa ou desnecessidade encontrou terreno fértil na necessidade de uso
ilimitado e inquestionado do poder, seja com a invocação da legitimação em divindade
como pretexto, seja com a finalidade prática de proteção do próprio exercício do
poder, o que retrata a situação oposta ao quadro atual de compreensão do dever de
motivação como exigência derivada do Estado de Direito e do exercício legítimo do
poder.
Nesse sentido, inclusive, pode ser mencionado o caso alemão, cuja
constituição não prevê expressamente o dever de motivar todas as decisões judiciais,
contando-se apenas com previsão infraconstitucional no § 313, I da ZPO
(Zivilprozessordnung) com relação às sentenças; entretanto, o Tribunal Constitucional
Alemão e a jurisprudência alemã em geral reconhecem a exigência da motivação das
decisões judiciais como derivação do Estado de Direito, que é um Estado que se
justifica, e de que “os cidadãos têm o direito de conhecer os motivos sobre os quais
se baseia uma decisão que vai incidir sobre uma posição jurídica sua”.186
184 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 100. 185 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 91 e 101-102. 186 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de
precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 126-127.
p. 76
Essa situação histórica começou a se alterar em face da necessidade
de controle sobre a atividade judicial, bem como em face da racionalização da
atividade judicial, sua correlata preocupação com a diminuição de recursos e com a
preocupação de uma jurisprudência linear dos tribunais;187 até que, a partir do século
XVIII, se pode identificar a origem do fenômeno da obrigatoriedade da motivação nos
ordenamentos processuais da Europa continental, 188 bem como nas legislações
ocidentais. 189 Mas apenas no século XX é que a necessidade de motivação das
decisões judiciais passa a integrar muitas das codificações europeias (como a italiana,
a portuguesa e a francesa) e culminou com previsões constitucionais, como na
Bélgica, Grécia e Itália.190
Em geral os ordenamentos jurídicos contemporâneos da civil law
trazem previsão normativa expressa da obrigatoriedade de motivação da sentença civil
no plano constitucional ou, ao menos, nas normas processuais ordinárias de caráter
infraconstitucional, exigindo um modelo de forma e conteúdo para as decisões como
um dos requisitos de validade.191
Nesses ordenamentos, a principal variação encontrada é decomposta
entre os que se filiam ao sistema francês, em que se adota uma única norma geral que
abrange todos os tipos de sentença civil (caso também do Brasil, Itália e Espanha) ou
sem exceções significativas, e os que se filiam ao sistema alemão, que apresenta uma
legislação diversificada contendo uma variedade de previsões normativas sobre a
fundamentação, inclusive com um significativo número de hipóteses em que não há
obrigatoriedade da motivação da sentença, com menor rigidez dessa exigência.192
187 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 102-103. 188 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 293. 189 MELLO, Rogério Licastro Torres de. Ponderações sobre a motivação das decisões judiciais. Revista de
Processo. vol. 111/2003, p. 273-289, Jul-Set/2003. p. 1. 190 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 187; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Ponderações sobre a motivação das decisões judiciais. Revista de Processo. vol. 111/2003, p. 273-289, Jul-Set/2003. p. 2. 191 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 12. 192 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 12-13.
p. 77
Ainda durante o Império Português e no território do Brasil colônia,
o dever de motivar as decisões judiciais veio previsto nas Ordenações Manuelinas, de
1521, impondo aos julgadores que apresentassem as causas em que se fundam,
conforme o que restar alegado e provado, com exceção do rei, que poderia julgar
conforme a consciência por não conhecer autoridade superior.193
Também as Ordenações Filipinas, de 1603, previram a
obrigatoriedade da motivação, sem grandes novidades, para facilitar a impugnação
recursal e o controle do órgão ad quem sobre as decisões dos órgãos a quo; já existindo
no território antes de se configurar como Estado independente.194
Após a independência, a obrigatoriedade da motivação permaneceu
prevista, primeiramente em Portaria de 31 de março de 1824 e, depois, no art. 232195
do Regulamento 737 de 25 de novembro de 1850.196
Com a primeira Constituição da República brasileira de 1891,
iniciou-se um período de “dualidade processual” com a divisão da competência para
legislar sobre processo entre a União e os Estados,197 sendo o direito processual civil
estadual rico em previsões da fundamentação de fato e de direito como requisito da
193 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 103-104. 194 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 104; PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 13; SOUZA, Daniel Adensohn de. Reflexões sobre o princípio da motivação das decisões judiciais no processo civil brasileiro. Revista de Processo. vol. 167/2009, p. 132-168, Jan/2009. p. 4; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Ponderações sobre a motivação das decisões judiciais. Revista de Processo. vol. 111/2003, p. 273-289, Jul-Set/2003. p. 2; NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 27-28. 195 “Art. 232. A sentença deve ser clara, summariando o Juiz o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a lei, uso ou estylo em que se funda.” 196 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 13; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 116; SOUZA, Daniel Adensohn de. Reflexões sobre o princípio da motivação das decisões judiciais no processo civil brasileiro. Revista de
Processo. vol. 167/2009, p. 132-168, Jan/2009. p. 4; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Ponderações
sobre a motivação das decisões judiciais. Revista de Processo. vol. 111/2003, p. 273-289, Jul-Set/2003. p. 2. 197 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 28.
p. 78
sentença, a exemplo do art. 322 do CPC do Maranhão, art. 308 do CPC da Bahia, art.
388 do CPC de Pernambuco, art. 499 do CPC do Rio Grande do Sul, art. 382 do CPC
de Minas Gerais, art. 333 do CPC de São Paulo, art. 273 do CPC do Distrito Federal,
art. 330 do CPC do Ceará e art. 231 do CPC do Paraná.198
Após o restabelecimento da unidade legislativa em matéria
processual na Constituição de 1937 – também conhecida como “polaca” – outorgada
por Getúlio Vargas com a competência privativa da União para legislar sobre processo
(art. 16), a exigência de motivação das decisões passou a fazer parte do Código de
Processo Civil nacional de 18 de setembro de 1939, cujos artigos 118, parágrafo
único199, e 280200 determinavam que o julgador mencionasse os fatos e circunstâncias
que motivaram o seu convencimento nas decisões e incluía-se no conteúdo da
sentença os fundamentos de fato e de direito.201
O Código de Processo Civil de 1973202, assim como o atual (artigos
11, 371 e 489)203 previram em diversas oportunidades o dever de fundamentar as
198 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 325-326; PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 14. 199 “Parágrafo único. O juiz indicará na sentença ou despacho os fatos e circunstâncias que motivaram o seu convencimento.” 200 “Art. 280. A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá: I – o relatório; II – os fundamentos de fato e de direito; III – a decisão.” 201 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 29; NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 326; SOUZA, Daniel Adensohn de. Reflexões sobre o princípio da motivação das decisões judiciais no processo civil brasileiro. Revista de Processo. vol. 167/2009, p. 132-168, Jan/2009. p. 4. 202 “Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento.”; “Art. 165. As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.”; “Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem.”. 203 “Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.”; “Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”; “Art. 489. São elementos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe
p. 79
decisões judiciais no processo civil, bem como o ordenamento jurídico brasileiro
passou a contar com previsão constitucional a partir de 1988 no art. 93, IX da atual
Constituição Federal, adquirindo status de garantia constitucional, não se restringindo
apenas ao processo civil nem mesmo às decisões jurisdicionais, abarcando inclusive
que as decisões administrativas dos tribunais sejam motivadas e imputando o dever a
todos os órgãos prolatores no Poder Judiciário, sob pena de nulidade.204
O direito a uma decisão fundamentada surge, assim, como direito
fundamental no plano das garantias que as constituições democráticas asseguram, em
face do catálogo aberto estatuído na nossa Constituição Federal (art. 5°, § 2°),
legitimando o exercício da atividade jurisdicional como princípio democrático
inerente à ideia de Estado Constitucional; sendo essa, também, a compreensão na
submeterem. § 1° Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.” 204 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 326-327; NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 29-31; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 122; PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 14; MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 128; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Ponderações sobre a motivação das decisões judiciais. Revista de Processo. vol. 111/2003, p. 273-289, Jul-Set/2003. p. 4; SOUZA, Daniel Adensohn de. Reflexões sobre o princípio da motivação das decisões judiciais no processo civil brasileiro. Revista de Processo. vol. 167/2009, p. 132-168, Jan/2009. p. 5; BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 52 e 391; CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 16 e 276; WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). Vol. II. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 434; OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 392.
p. 80
Corte Europeia de Direitos Humanos como cláusula de proteção do indivíduo contra
arbitrariedades.205
Longe de se tratar de apenas mais uma previsão normativa a respeito
da fundamentação de decisões, o estudo a partir do viés constitucional deve ser uma
das características da atual fase científica do direito processual civil, deve, como
leciona Cassio Scarpinella Bueno, integrar a construção de um modelo constitucional
do direito processual civil com uma leitura a partir da satisfação desse modelo no
plano da aplicação do direito processual civil:
“a proposta aqui destacada não pode se encerrar na sua localização naquele plano. Muito mais do que isto, o que importa colocar em relevo é a necessidade de, uma vez identificado o status constitucional desses temas, seu estudo, de suas estruturas e de suas aplicações dar-se desde a Constituição Federal. Não é suficiente listar temas e assuntos. O que importa é que os temas sejam aplicados a partir do seu habitat típico do direito brasileiro, a Constituição Federal. Trata-se de construir – a bem da verdade, reconstruir – o pensamento do direito processual civil daquela ótica, contrastando a legislação processual civil a todo o tempo com o ‘modelo constitucional’, verificando se e em que medida o ‘modelo’ foi ou não alcançado satisfatoriamente. Trata-se, vale a ênfase, de apontar a necessidade de uma alteração qualitativa e consciente na interpretação e na aplicação da legislação processual civil que não pode se desviar daquele ‘modelo’.”206
A leitura a respeito do dever de motivar as decisões judiciais,
portanto, não se esgota no cumprimento de determinado dispositivo legal, mas implica
a construção do que deve ser entendido de cada dispositivo a partir do contexto e do
desiderato constitucional de uma garantia constitucional e de um direito fundamental
que somente se satisfaz caso constatado o efetivo controle do exercício do poder
através da motivação.
205 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 128-130; TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 354. 206 BUENO, Cassio Scarpinella. O “Modelo Constitucional do Direito Processual Civil”: Um paradigma
necessário de estudo do direito processual civil e algumas de suas aplicações. Disponível em: <http://scarpinellabueno.com/para-ler.html>. Acesso em 15 de setembro de 2017. p. 8.
p. 81
Essa releitura mais extensa do significado do dever de motivar as
decisões passa a integrar a atuação do Estado Constitucional através de um devido
processo legal como forma fidedigna de atuação desse modelo de Estado e como
garantia de conformidade ao Direito, tornando verificável o grau de atendimento da
segurança jurídica;207 possuindo estreita “ligação com os princípios estruturantes do
Estado de Direito Democrático”208.
Como expõe Taruffo ao comentar a exigência de motivação na
Constituição italiana, esta constitui um “princípio jurídico-político fundamental para
a administração da justiça”209 e expressa no processo civil a manifestação de um
princípio mais geral de “controlabilidade” sobre a maneira como os órgãos estatais
exercem o poder que lhes fora conferido pelo ordenamento jurídico.210
Trata-se de uma importante concepção democrática do poder, em
que este (e a decisão em si) perdem o caráter autoritário para se constituir no resultado
de um diálogo que se justifica perante uma comunidade – que também não está
necessariamente circunscrita aos intérpretes jurídicos, mas, com base na comunidade
aberta de intérpretes de Peter Häberle, pode-se alçar a fundamentação à justificação
perante todos os que vivem com o contexto de regulação normativa – o que permite a
denominada accountability no Estado Democrático de Direito como aspecto da
fundamentação.211
Para a compreensão da dimensão constitucional e do significado
jurídico-político do dever de motivar, prossegue o autor, deve-se evitar o enfoque
reducionista do conteúdo do “controle” como equivalente à “impugnação” e a
207 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas
no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 182-183. 208 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 180. 209 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 360. 210 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 359-360. 211 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas
no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 212-213.
p. 82
consequente adoção exclusiva da concepção endoprocessual da motivação, o que se
revela insuficiente do ponto de vista constitucional e, na realidade, sequer explica uma
obrigação geral de motivação ou define o alcance da obrigação constitucionalmente
estabelecida para “todas as decisões judiciais”.212 Ao contrário, além do controle
institucional, a motivação deve ser compreendida como instrumento generalizado e
difuso sobre a administração da justiça, também em seu caráter extraprocessual:
“La connotación política de este desplazamiento de perspectiva es evidente: la óptica ‘privatista’ del control ejercido por las partes y la óptica ‘burocrática’ del control ejercido por el juez superior se integran en la óptica ‘democrática’ del control que debe poder ejercerse por el propio pueblo en cuyo nombre la sentencia se pronuncia. Entonces, el principio constitucional que analizamos no expresa una exigencia genérica de controlabilidad, sino una garantía de controlabilidad democrática sobre la administración de justicia.”213
A função ou perspectiva endoprocessual é identificada no direito de
as partes conhecerem o conteúdo e o alcance da decisão, em possibilitar-lhes avaliar
se é conveniente e eventualmente interpor os recursos cabíveis em face da decisão,
bem como em permitir o controle e o juízo sobre os fundamentos pelos tribunais ou
juízes de maior alçada.214
Já a função ou perspectiva extraprocessual consiste na possibilidade
de controle externo ao processo, por parte da opinião pública e da sociedade em geral,
quanto aos fundamentos das decisões judiciais, em expressão da participatividade
212 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 360-361. 213 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 361. Em tradução livre: “A conotação política desta mudança de perspectiva é evidente: a visão ‘privatista’ do controle exercido pelas partes e a visão ‘burocrática’ do controle exercido pelo juiz superior estão integradas na visão ‘democrática’ do controle que deve ser exercido pelo próprio povo em nome de quem a sentença é pronunciada. Assim, o princípio constitucional que analisamos não expressa uma exigência genérica de controle, mas uma garantia de controle democrático sobre a administração da justiça”. 214 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 133; NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 31; PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 70.
p. 83
democrática e da legitimação do exercício da jurisdição à luz dos princípios
estruturantes do Estado Democrático de Direito.215 E, nesse sentido:
“No Estado-de-direito, em que o poder se autolimita e seu exercício só se considera legítimo quanto fiel a regras procedimentais adequadas (Niklas Luhmann, Elio Fazzalari), é natural que à liberdade de formar livremente seu convencimento no processo corresponda, para o juiz, o dever de motivar suas decisões.”216
A perspectiva endoprocessual é reconhecida por sua função de
instrumento técnico processual, que está voltada para dentro do processo, sendo uma
garantia de ordem instrumental para o melhor funcionamento dos mecanismos
processuais, como a impugnação recursal e a revisão da decisão por instância
superior.217
Dentro dessa perspectiva em relação às partes do processo, a
fundamentação das decisões cumpre três papéis principais, sendo o primeiro deles de
persuasão para as partes e seus representantes processuais, para dissuadi-los a recorrer
da decisão; em especial para convencer a parte sucumbente do acerto da decisão, do
atendimento da justiça no caso concreto e de que o julgador apreciou efetivamente os
argumentos suscitados e os refutou com clareza e pertinência ao caso concreto.218
Nesse sentido, a fundamentação serve para esclarecer às partes a aos
seus representantes judiciais que a decisão foi justa e que seus argumentos e o caso
concreto em si foram efetivamente apreciados, possibilitando, inclusive, uma
215 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 133; NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 64-65; PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 69. 216 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 941. 217 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 31-32; MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 133. 218 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 336; NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 32.
p. 84
diminuição das impugnações. Assim, é nela que se verifica se há ou não razão para
questionar a decisão, como aduz Calamandrei:
“A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como num levantamento topográfico, o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois se esta é errada, pode facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado se desorientou.”219
O segundo papel é encontrado no fato de que não somente se torna
mais fácil verificar a pertinência de impugnar a decisão, como é pela fundamentação
que se pode identificar precisamente os vícios da decisão que possam constituir
motivos para impugná-la, bem como individualizar ou vincular o objeto da
impugnação, exercendo uma “função racionalizadora” do sistema processual:220
“la exposición de motivos tiene una función importante en la identificación de los vicios de la sentencia y en la formulación de motivos de la impugnación, porque la motivación en sentido estricto realmente representa la única fuente para la eventual determinación de los errores in iudicando cometidos por el juez, incluso cuando, evidentemente, la sentencia puede impugnarse también por vicios que no provengan directamente del texto de la motivación.”221
Esse papel adquire especial relevância em nosso sistema em razão
do princípio da dialeticidade recursal, que está ligado, em certa medida, ao princípio
da voluntariedade recursal, como menciona Cassio Scarpinella Bueno, pois se é
necessária a exteriorização do inconformismo, também é necessário que a parte
219 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução Ivo de Paula (Edição Digital EPUB DRM). São Paulo: Pillares, 2013. p. 75. 220 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 336-337; NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 32-33. 221 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 337-338. Em tradução livre: “a exposição dos motivos tem uma função importante na identificação dos vícios da sentença e na formulação de razões de impugnação, porque a motivação em sentido estrito realmente representa a única fonte para a eventual determinação de error in judicando cometido pelo juiz, inclusive quando, evidentemente, a sentença também possa ser impugnada por vícios que não provenham diretamente do texto da motivação”.
p. 85
recorrente demonstre as razões de seu inconformismo, como a decisão lhe trouxe
gravame, no que e porquê ela deve ser reformada;222 assim, menciona o autor:
“o recurso deve evidenciar as razões pelas quais a decisão precisa ser anulada, reformada, integrada ou completada, e não que o recorrente tem razão. O recurso tem de combater a decisão jurisdicional naquilo que ela o prejudica, naquilo que ela lhe nega pedido ou posição de vantagem processual, demonstrando o seu desacerto, (...) A tônica do recurso é remover o obstáculo criado pela decisão e não reavivar razões já repelidas, devendo o recorrente desincumbir-se a contento do respectivo ônus argumentativo.”223
Desta feita, para a regularidade do recurso no processo civil, é
necessário que este apresente o fundamento com que impugna a decisão recorrida,
isto é, “o recurso precisa ter fundamentação. Quem discorda de uma decisão tem o
ônus de apontar as razões de sua insurgência”224.
Assim, a fundamentação da decisão revela-se imprescindível para o
atendimento da dialeticidade recursal e do ônus impugnativo recursal, obstando a
formulação das razões recursais; especialmente nos casos de recursos de
fundamentação vinculada, que estão destinados a atacar um tipo específico de defeito,
pois nesses casos, ademais, a fundamentação recursal precisa invocar aquele defeito
específico para chegar a ser conhecido;225 tanto mais para que além do cabimento, seja
verificado se houve ou não o tipo específico de defeito, como a violação a normas
constitucionais ou a leis federais na decisão recorrida.
222 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 671. 223 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 671. 224 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). Vol. II. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 484. 225 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Cognição
jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). Vol. II. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 484.
p. 86
O atual Código de Processo Civil previu no art. 932, III, in fine, a
necessidade de impugnação específica dos fundamentos da decisão recorrida,226 bem
como estabeleceu no art. 1.010, III227 e no art. 1.016, III228, referentes aos recursos de
apelação e de agravo de instrumento, previsão semelhante à do art. 524, II do código
de 1973 229 , em que a doutrina já identificava a dialeticidade e a impugnação
específica.230
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça já mantinha
posicionamento ainda no código anterior a respeito da dialeticidade recursal e do ônus
da impugnação específica como “pressuposto de conhecimento de qualquer
recurso”, 231 na linha do que expõe a doutrina a respeito de ser um princípio
226 “Art. 932. Incumbe ao relator: (...) III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;” 227 “Art. 1.010. A apelação, interposta por petição dirigida ao juízo de primeiro grau, conterá: (...) III - as razões do pedido de reforma ou de decretação de nulidade;” 228 “Art. 1.016. O agravo de instrumento será dirigido diretamente ao tribunal competente, por meio de petição com os seguintes requisitos: (...) III - as razões do pedido de reforma ou de invalidação da decisão e o próprio pedido;” 229 “Art. 524. O agravo de instrumento será dirigido diretamente ao tribunal competente, através de petição com os seguintes requisitos: (...) II - as razões do pedido de reforma da decisão; ” 230 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 33. 231 Nesse sentido, os seguintes julgados: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO INTERNO INTERPOSTO NA ORIGEM CONTRA DECISÃO DO RELATOR QUE NEGA SEGUIMENTO À APELAÇÃO. MOTIVAÇÃO. IMPRESCINDIBILIDADE. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO JULGADO. 1. Consoante entendimento sedimentado desta Corte Superior, a impugnação específica dos fundamentos da decisão recorrida é pressuposto de conhecimento de qualquer recurso (Precedentes: REsp 601.571/RN, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 26/10/2006; REsp 423982/DF, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ 03/08/2006; e AgRg na SL 106/PB, Rel. Min. EDSON VIDIGAL, CORTE ESPECIAL, DJ 26/09/2005). 2. Assim, não se faz merecedor de qualquer reparo o posicionamento da 4.ª Turma Cível do Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, que entendeu pelo não conhecimento de agravo regimental naquela Corte intentado em face de decisão monocrática do relator do feito, por ausência de impugnação específica aos fundamentos deste decisum. 3. Agravo regimental a que se nega provimento” (STJ - 3ª T, AgRg no REsp 713359 / MS, rel. Min. Vasco Della Giustina, j. 25.05.2010, DJe 10.06.2010) PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. INTERESSE DE AGIR. RAZÕES DO PEDIDO DE REFORMA NÃO CONEXAS COM O QUE DECIDIDO NA DECISÃO RECORRIDA. INÉPCIA. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. NÃO-IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DOS FUNDAMENTOS. SÚMULA 182/STJ. 1. Não há interesse recursal quando a parte recorrente deixa de combater as razões de decidir utilizadas pelo acórdão recorrido, apresentando argumentação dissociada delas. Ausência de utilidade na medida impugnativa quando o pedido de reforma não é decorrência lógica da narração das razões da petição do recurso, nem apresenta nexo com o decidido, apresentando-se, pois, como inepta. 2. Revelando-se deficientes as razões do Recurso Especial, aplica-se a Súmula 284/STF: “É inadmissível Recurso Extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia. ” 3. Incabível o recurso que não impugna especificamente os fundamentos da decisão recorrida. Incidência, por analogia, da Súmula 182
p. 87
infraconstitucional inerente aos recursos, como condição para que seja conhecido;232
coadunando-se à função racionalizadora da motivação antes mencionada (Michele
Taruffo) e à possibilidade de controle racional, como também assinala Jerzy
Wróblewski:
“Legal decision has to be based on law and has to be rational. Justification is a means for controlling the dependence of a decision upon law and for determining its rationality depending upon norms, facts and values. If legal decisions are functional parts of the legal control through law, then the decision-maker has to be able to justify his decisions within the legal, conceptual and ideological framework of his activities.”233
O terceiro papel da fundamentação com relação às partes na
perspectiva endoprocessual consiste essencialmente na necessidade de individuação
do conteúdo da decisão judicial, para que seja definido de forma adequada e não se
produzam efeitos além do quantum iudicatum, pois inclusive já existiram
procedimentos para resolver dúvidas interpretativas a seu respeito (declaratio
sententiae) caso a motivação fosse insuficiente para sua adequada compreensão.234
Assim, a motivação também se revela importante para que se
delimitar adequadamente as obrigações contidas na sentença, bem como se delimite o
que fora apreciado e qual o objeto do processo a que se refere o dispositivo que estará
acobertado pela coisa julgada e, por fim, atende à função de instrumento interpretativo
do conteúdo e alcance da própria decisão:
deste Tribunal: "Inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada". 4. Agravo Regimental não conhecido. (STJ - AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 822.723 – RJ, Rel. Min Herman Benjamin, j. 27.02.2007, DJe 19.12.2007) 232 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 671; CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 503. 233 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Legal Decision and its Justification. Logique et Analyse. vol. 14, nº. 53-54, Leuven,
1971. p. 418. Em tradução livre: ”A decisão legal deve ser baseada na lei e tem de ser racional. A justificação é um meio para controlar a correlação de uma decisão acerca da lei e para determinar sua racionalidade acerca de normas, fatos e valores. Se as decisões legais são partes funcionais do controle legal através da lei, então o tomador de decisão deve ser capaz de justificar suas decisões dentro do quadro legal, conceitual e ideológico de suas atividades.” 234 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 339-340.
p. 88
“el interés general de las partes hacia la exacta individualización de los términos de la decisión no se encuentra necesariamente ligado al problema de la impugnación: esencialmente, de hecho, la interpretación de la sentencia es necesaria para la determinación objetiva de lo juzgado. Por otro lado, surge una exigencia general de la motivación como instrumento interpretativo de la sentencia, en tanto que se plantea la necesidad de determinar con exactitud el contenido del pronunciamiento”235
Ainda na perspectiva endoprocessual, pode-se identificar o dever de
fundamentar as decisões dentro de um aspecto burocrático-institucional ou dinâmico
de funcionamento do processo entre as instâncias jurisdicionais. Isto porque a
fundamentação também constitui o meio (assim como para as partes) pelo qual o juízo
ad quem pode verificar os vícios da decisão para que possa melhor julgar a
irresignação e o gravame:236
“De outro lado, a função endoprocessual da fundamentação consiste na possibilidade de os juízes de instância superior poderem melhor analisar as decisões de magistrados de primeiro grau que lhe são submetidas a exame pela via recursal. Ela visa a um melhor funcionamento dos tribunais de segunda instância, propiciando ao órgão ad quem competente um controle mais aprimorado dos atos decisórios submetidos a uma nova apreciação.”237
Nesse sentido, a obrigatoriedade da motivação das decisões ainda
pode ser interpretada em razão das funções exercidas pelos tribunais de cúpula no
ordenamento jurídico brasileiro e, em geral, pelas cortes de cassação na aplicação do
235 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 340. Em tradução livre: “O interesse geral das partes sobre a exata individualização dos termos da decisão não se encontra necessariamente ligado ao problema da impugnação: essencialmente, de fato, a interpretação da sentença é necessária para a determinação objetiva do julgado. Por outro lado, surge uma exigência geral da motivação como instrumento interpretativo da sentença, enquanto se coloca a necessidade de determinar com precisão o conteúdo do pronunciamento”. 236 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 341. 237 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 33.
p. 89
direito, isto é, o exercício das missões nomofilática e de uniformização da
jurisprudência:238
“La obligación de motivación, entonces, puede considerarse como un instrumento destinado a permitir el control de legalidad por parte de la Corte, en la medida en la que el juez se ve obligado a dar existencia, con la motivación, al dato objetivo sobre el que dicho control debe ejercerse.”239
Como sabido, é reconhecido aos tribunais de cúpula o exercício da
função nomofilática, consistente na correta aplicação da lei e a integridade do
ordenamento, interpretando o Direito de maneira coesa (tutela do ius constitutionis),
e da função uniformizadora, que busca uniformidade na interpretação e aplicação do
ordenamento jurídico, tornando-se essencial para a realização dos princípios da
igualdade e da legalidade, pois somente há legalidade se a lei é aplicada da mesma
maneira a casos idênticos, produzindo-se os mesmos efeitos jurídicos e uniformidade
da resposta jurisdicional.240
Dentro deste contexto, pode-se verificar uma conexão entre essas
funções das cortes superiores e o dever de motivação, que serviria de instrumento para
que o controle dessas cortes e a consecução destas funções, o que corresponde a mais
uma das facetas da perspectiva endoprocessual.
Entretanto, vale salientar que os aspectos relacionados ao
convencimento das partes, à viabilidade de impugnação e ao controle por órgãos
238 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 343. 239 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 343. Em tradução livre: “A obrigação de motivação, então, pode ser considerada como um instrumento destinado a permitir o controle da legalidade pelo Tribunal; na medida em que o juiz se vê obrigado a dar existência, pela motivação, ao dado objetivo sobre o qual esse controle deve ser exercido” 240 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 311-313.
p. 90
superiores apenas justificaria o dever de motivação com relação às decisões
suscetíveis de recurso e não com relação a todo tipo de decisão.241
Nesse sentido, o atendimento proficiente da função nomofilática
pelo instrumento processual da motivação se justificaria nas decisões anteriores, mas
não relativamente à decisão da própria corte superior, pois exaurido o controle;
somente, então, se manteria esse dever em pertinência à função uniformizadora,
quando esta ocorre, orientando a aplicação do direito, em geral.
Apenas o papel de delimitação precisa da decisão e de seus efeitos
estaria presente em todos os casos do dever de motivação, também servindo como
instrumento interpretativo da própria decisão, mas mesmo esse papel seria
relativizado quando exercido unicamente o juízo de cassação e não o juízo de revisão
para o rejulgamento, nos casos em que isso ocorre e, em especial, nos sistemas em
que essa é a finalidade precípua da Corte de cassação.
Não há uma diminuição da importância da fundamentação nas cortes
superiores, contudo, pelo contrário, em vista de sua orientação geral, podendo-se
mencionar:
“No caso de decisões dos Tribunais Superiores, a obrigatoriedade de motivação adquire maior relevância, porquanto as cortes superiores, mormente a de índole constitucional, são os órgãos de fechamento do sistema jurídico, o Tribunal Constitucional é o porta-voz do pacto constitucional. Nas democracias pluralistas, a interpretação do texto constitucional significa, essencialmente, a exata determinação e declaração dos valores fundados no pluralismo, assim, entre eles ponderados e balanceados no juízo da Corte. Desse modo, a motivação é constitucionalmente obrigatória, porque é por meio dela que o balanceamento e a evolução histórica da interpretação constitucional devem ser compreendidos.”242
241 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 343 e 346. 242 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 304.
p. 91
Portanto, a exigência geral de motivação de todas as decisões não é
suficientemente explicada pela perspectiva endoprocessual, bem como não enfoca a
totalidade do fenômeno e suas implicações sistêmicas no âmbito de uma leitura pelo
modelo constitucional de direito processual civil em consonância a como deve ser
entendido o dever de motivar na totalidade do ordenamento jurídico, como menciona
Taruffo:
“la única conclusión de índole general a la que podemos llegar indica que dicha concepción es inadecuada para entender el alcance global que el principio de la obligatoriedad de motivación tiene en los ordenamientos procesales modernos, y postula su superación por parte de la concepción extraprocesal de la motivación.”243
Em outra classificação paralela, Alexandre Freitas Câmara, ainda,
fala em “controle forte” sobre a fundamentação, exercido por órgãos superiores ao
prolator da decisão mediante os mecanismos para cassação e reexame da decisão
(recursos, remessa necessária e meios autônomos de impugnação), e em “controle
fraco”, no qual inexiste cassação da decisão, mas debate acerca de sua correção com
vistas ao constante aprimoramento da prestação jurisdicional.244
Para alguns autores245, a fundamentação também desempenha um
papel como indício de imparcialidade do órgão julgador, fornecendo elementos
concretos para sua verificação e voltando-se a colocar em prática a verificação dessa
imparcialidade. Embora sempre seja uma garantia contra o arbítrio, vimos na
abordagem dos aspectos históricos que ensejaram a exigência de fundamentação, a
imparcialidade e independência ligam-se em certa medida para retratar uma
243 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 349. Em tradução livre: “a única conclusão de natureza geral que podemos alcançar indica que esta concepção é inadequada para compreender o alcance global que o princípio da obrigatoriedade de motivação tem nos ordenamentos processuais modernos e postula sua superação pela concepção extraprocessual da motivação.” 244 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 278. 245 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 355-356; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões
Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 214-215; ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 211.
p. 92
efetivação fraca, pois como observam outros autores 246 , quando as decisões são
motivadas por razões escusas, normalmente a fundamentação pode ser prejudicada
em algum aspecto, apresentando certas contradições, mas isso depende mais do caso
concreto a ser julgado do que o fato do órgão julgador não ser parcial naquele caso,
não contribuindo sobremaneira a exigência de se apresentarem fundamentos, pois,
também, dificilmente alguma posição jurídica é totalmente destituída de fundamento.
A motivação ou fundamentação, diz Cassio Scarpinella Bueno,
“expressa a necessidade de toda e qualquer decisão judicial ser explicada,
fundamentada e justificada pelo magistrado que a proferiu, levando em conta o direito
aplicável e as vicissitudes do caso concreto”247; para além dessa diretriz sobremaneira
conceitual, o autor esclarece que sua significação não apenas viabiliza o adequado
controle das decisões, mas também assegura a transparência da atividade judiciária,
constituindo numa forma “ de o magistrado ‘prestar contas do exercício de sua função
jurisdicional’ ao jurisdicionado, aos demais juízes, a todos os participantes do
processo e, mais amplamente – e como consequência inafastável –, a toda a
sociedade”.248
Como as decisões judicias são atos praticados por agentes estatais,
devem ser revestidos de legalidade e legitimidade em consonância ao Estado
Democrático de Direito (art. 1° da Constituição Federal), sendo a legalidade ou
juridicidade da decisão (sua compatibilidade com o ordenamento jurídico) exigida
246 “o juiz que tinha contato com a prova ilícita deveria determinar o seu desentranhamento do processo, mas mesmo assim não podia se eximir de decidi-lo. Mas como retirar do seu convencimento íntimo a convicção gerada pela prova ilícita? Intimamente os motivos que o levavam a decidir emergiam da prova ilícita, mas na decisão com certeza a fundamentação estaria ancorada nas outras provas produzidas. (...) o juiz corrupto, que recebe dinheiro para proferir uma decisão em favor de alguém, tem como motivos determinantes do seu decidir o montante que recebe. Todavia, ele nunca vai utilizar como fundamento da sua decisão referência a que decidiu porque recebeu propina do autor. Seus fundamentos serão outros e completamente divorciados daquilo que motivou sua decisão.” (OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 392-393). 247 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 52. 248 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 52.
p. 93
pelo art. 8° do Código de Processo Civil e a legitimidade aferida em cada ato mediante
a fundamentação da decisão.249
Conforme adverte conceituada doutrina, as atividades empreendidas
pelos agentes que atuam no Poder Legislativo e no Poder Executivo são legitimadas
pelo voto direto que recebem, diferentemente de algumas outras ordens jurídicas, no
Brasil os magistrados não são eleitos e a motivação das decisões é o meio para que
seja conferida e para permitir a fiscalização a atuação do Poder Judiciário,250 pois se
não há legitimidade a priori pelo voto, ela é estabelecida a posteriori na
fundamentação ato a ato por sua compatibilidade com a Constituição da República,
sendo os fundamentos os elementos que permitem aferir a legitimidade constitucional
e democrática dos pronunciamentos jurisdicionais.251
Segundo pondera Alexandre Freitas Câmara, a controlabilidade dos
atos de poder é das características essenciais ao Estado Democrático de Direito, com
os mecanismos inerentes ao exercício desse controle252 e sendo o convencimento
motivado intrínseco ao contexto de legalidade da cláusula do devido processo legal
contida no art. 5°, LIV da Constituição Federal, menciona Cândido Rangel
Dinamarco,253 exsurge como resultante, no campo processual, que a obrigatoriedade
e a publicidade da motivação encampam a faceta do exercício do controle
extraprocessual, consoante pontua Teresa Arruda Alvim:
“O Estado de Direito efetivamente caracteriza-se por ser o Estado que se justifica, tendo como pauta a ordem jurídica a que ele próprio se submete. Assim, quando o Estado intervém na vida das pessoas, deve justificar a intromissão materialmente, pois a intromissão tem fundamento, e formalmente, pois o fundamento é declarado, exposto, demonstrado. Sob esse enforque, a justificação se faz
249 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 277-278. 250 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 104; CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 278. 251 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 278. 252 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 278. 253 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 941; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 72.
p. 94
necessária tanto em relação às decisões impugnáveis quanto com respeito àquelas que são a última palavra acerca do litígio.”254
A inserção do dever de motivar em cláusula constitucional confirma
a relevância e o significado político de seu perfil no discurso judicial, uma posição
que não se esgota simplesmente em integrar uma sentença válida; a questão crucial a
respeito da fundamentação gira em torno da sua função, do que a fundamentação
representa no ordenamento e de como deve a fundamentação se apresentar para que
cumpra satisfatoriamente as exigências de seu significado político constitucional,
enuncia Maria Thereza Gonçalves Pero em obra específica sobre o tema.255
O dever de motivação, enquanto norma dirigida ao juiz, garante a
efetividade de diversos princípios, apresentando-se, de forma conexa, como meio de
efetivação do contraditório e ampla defesa, da legalidade, entre outros; 256 nesse
sentido, afirma-se que “a mera positivação de direitos e garantias do indivíduo, seja
em lei, seja em uma Constituição, é inútil se não estiver acompanhada de instrumentos
processuais que efetivamente realizem e protejam esses direitos e garantias”257.
Em relação à legalidade, a fundamentação constitui uma garantia
contra o arbítrio,258 sendo através dela que se poderá verificar, em cada caso, se a lei
foi aplicada uniformemente, conforme as semelhanças e distinções entre eles e
conforme as razões de decidir, fazendo, assim, que a lei seja igual para todos os que
estejam na mesma situação e seja efetivamente cumprida, tornando efetiva a
legalidade na aplicação das normas.
Em relação à ampla defesa, a fundamentação não apenas possui a
finalidade de demonstrar que foi respeitado o contraditório durante o processo a cada
254 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2017. p. 257. 255 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 58-59. 256 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 58-60; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 205-206. 257 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 90 e 101. 258 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 60.
p. 95
momento, sendo observadas as faculdades para produção de provas, atendida a
paridade de armas, concedidas oportunidades para manifestação oportuna e garantidos
os meios inerentes ao exercício da ampla defesa, mas principalmente para se constatar
que a decisão judicial foi proferida após real e adequada consideração das solicitações
e da argumentação das partes, enfim, constatando que tiveram oportunidade de influir
sobre o resultado da decisão tomada.259
Relativamente a esse aspecto do contraditório, de ver suas razões
serem consideradas e ter a possibilidade de influir na decisão, sua correlação com a
fundamentação das decisões aflora naturalmente como meio de verificação efetiva no
discurso judicial, mostrando-se propício mencionar substanciosa lição de Alexandre
Freitas Câmara a respeito:
"É exigível que haja influência na decisão e não convencimento; o convencimento na decisão final dependerá da sorte dos argumentos lançados e sua aplicação ao caso em concreto. Já a influência existe se os argumentos das partes integram a decisão, sendo considerados efetivamente: Sempre vale recordar que um dos elementos formadores do princípio do contraditório é o direito de ver argumentos considerados (que a doutrina alemã chama de Recht auf Berücksichtingung). Pois só se poderá saber, no caso concreto, se os argumentos das partes foram levados em consideração na decisão judicial – e, portanto, se o contraditório substancial foi observado – pela leitura dos fundamentos da decisão. Daí a intrínseca relação entre contraditório e fundamentação das decisões, por força da qual é possível afirmar que, sendo o processo um procedimento em contraditório, torna-se absolutamente essencial que toda decisão judicial seja substancialmente fundamentada."260
Com efeito, de nada adiantariam o contraditório e a ampla defesa se
o que for alegado pelas partes e, eventualmente, provado pelas partes puder ser
simplesmente ignorado quando da prolação da decisão judicial, seja intencionalmente
ou por força de circunstâncias não desejadas, como o excesso de processos judiciais;
259 PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 61. 260 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 277
p. 96
assim, tornam-se garantias vazias caso não sejam também garantidas, como ocorre
através do dever de motivação das decisões.261
O direito de poder influir na decisão é aspecto dos mais relevantes
no contraditório e ampla defesa, como inerente ao caráter dialético do processo, além
dos já consagrados aspectos de informação e reação; tanto que o atual Código de
Processo Civil explicitou nos artigos 9° e 10 a vedação do que se denominara
“decisão-surpresa”262, em verdade, nenhuma significância teriam as manifestações
das partes em contraditório, caso a decisão não se construísse, também, mediante essa
atividade dialética e representasse mera escolha de uma das alegações de alguma das
partes, sem consideração que mais houver. Em outros termos:
“assegura aos sujeitos interessados no resultado do processo o direito de participar com influência na formação de seu resultado (além de assegurar que não haverá decisões-surpresa). Pois este direito de participação com influência não se resume à garantia de que as partes poderão manifestar-se ao longo do processo (‘direito de falar’), mas também – e principalmente – à garantia de que serão ouvidas (‘direito de ser ouvido’, right to be heard).”263
Pode-se afirmar que o processo dialético supõe como contrapartida
a resposta judicial, devidamente motivada, compondo as teses e antíteses para que as
partes compreendam o papel que desempenharam na formação da decisão tomada.264
A respeito, expõe a doutrina:
“O núcleo essencial do princípio do contraditório compõe-se, de acordo com a doutrina tradicional, de um binômio: "ciência e resistência" ou "informação e reação". O primeiro desses
261 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 90 e 101. 262 A respeito da vedação à decisão surpresa como aspecto do contraditório e ampla defesa: NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 12ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 260-269. 263 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 281. Em outra passagem, relativa à cognição de matérias de ofício, esclarece o autor: “Autorização para conhecer de ofício, porém, não é autorização para decidir sem prévio contraditório. As questões de ordem pública, quando não deduzidas pelas partes, devem ser suscitadas pelo juiz, que não poderá sobre elas pronunciar-se sem antes dar oportunidade às partes para que se manifestem sobre elas.” (Op. cit., p. 11). 264 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 207.
p. 97
elementos é sempre indispensável; o segundo, eventual ou possível. É desejável, contudo, ir além, até para distinguir o contraditório da ampla defesa. Contraditório deve ser entendido como possibilidade de participação e colaboração ou cooperação ampla de todos os sujeitos processuais ao longo de todo o processo. E mais: esta participação, colaboração ou cooperação devem ser compreendidos na perspectiva de as partes e eventuais terceiros intervenientes conseguirem influenciar na decisão do juiz. Quando menos, que tenham condições reais, efetivas, de influenciar os diversos atos e decisões a serem proferidas pelo magistrado ao longo do processo. Contraditório é realização concreta, também em juízo, das opções políticas do legislador brasileiro sobre o modelo de Estado adotado pela Constituição brasileira. Contraditório é forma pela qual se efetivam os princípios democráticos da República brasileira, que viabiliza ampla participação no exercício das funções estatais. É esta a razão, aliás, pela qual é correto entender que o próprio magistrado está sujeito ao contraditório, na ampla acepção que destaquei acima, o que o CPC captura adequadamente como se verifica em vários de seus dispositivos, em especial nos arts. 9º e 10, que vedam o proferimento de decisões pelo magistrado sem que antes as partes sejam ouvidas, mesmo naqueles casos em que cabe ao magistrado pronunciar-se de ofício, isto é, independentemente da provocação de qualquer outro sujeito processual.”265
A fundamentação das decisões, ainda é importante para a
caracterização e eficácia de outras cláusulas constitucionais de significativo vulto,
como princípio dispositivo e coisa julgada, bastando-se pensar que é na motivação
que se identifica a causa de pedir que fora julgada em congruência com a petição
inicial que rompe a inércia jurisdicional e se delimita a demanda que estará acobertada
pela imutabilidade do comando da sentença, além da inovação do art. 503, § 1° do
Código de Processo Civil que estende a coisa julgada a questões prejudiciais em
determinadas hipóteses, expressas na fundamentação; assim:
“A motivação, portanto, embora não possua conteúdo decisório em relação ao mérito do processo – decidindo apenas questões incidentais –, desempenha papel fundamental na identificação do julgamento de demandas cumuladas que
265 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo
CPC. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 46-47.
p. 98
possuam o mesmo pedido, vinculando o dispositivo a cada uma das demandas formuladas. Em caso de improcedência, deve demonstrar por que cada uma das demandas cumuladas não se sustenta. Em caso de procedência, deve explicitar qual explicitar qual das demandas está sendo considerada legítima e qual não considera legítima; e por quê. (...) Assim é porque a motivação qualifica o dispositivo e determina o que está sendo julgado. Inexistente qualquer referência a fatos que compõem a causa de pedir autônomas do pedido, então é evidente que o dispositivo não lhes diz respeito, mas apenas os fatos que efetivamente foram decididos.”266
O dever de motivar as decisões, ademais, deve ser compreendido
como regra jurídica constitucional e processual contida no devido processo legal e não
como princípio.267 Nesse ponto, vale recordar que, conforme o que fora explanado em
capítulo anterior, o dever de motivar não encontra ressonância no modo de aplicação
ou de incidência dos princípios, mas ao contrário, possui a correlação formal entre
hipótese de incidência e consequência jurídica própria das regras.
Verifica-se que a motivação das decisões pode ser aplicada mediante
o critério “tudo ou nada” (all-or-nothing) de Dworkin, no sentido de se a hipótese de
incidência é preenchida e a regra sendo válida, inexoravelmente a consequência deve
ser aceita – isto é, havendo uma decisão judicial está necessariamente implicada sua
fundamentação ante o dever de motivar, não se cogitando de uma diminuição,
relativização ou dimensão de peso do dever de motivar em certa hipótese, não
podendo ser afastada a fundamentação do ato decisório jurisdicional.268
Não se enquadra como “dever de otimização” aplicável conforme as
possibilidades normativas e fáticas, isto é, como princípio cuja realização normativa
está limitada reciprocamente por outros princípios, sendo a colisão resolvida mediante
ponderação em que possa haver uma contingência fática ou normativa que afaste a
266 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 211 e 213. 267 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 82 e 87; SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 210. 268 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 56-57.
p. 99
necessidade de motivação da decisão, critério de Alexy sobre a aplicação, não
constituindo o dever de motivação uma “obrigação prima facie” (Alexy) que possa
ser superara ou derrogada e que apenas é aferida numa situação concreta.269
Nessa distinção técnico-normativa de Robert Alexy, o dever de
motivação configura comando definitivo e aplicado mediante subsunção, tal como as
regras, não havendo seu cumprimento em diferentes graus (como comando de
otimização prima facie) cuja medida de aplicação está sujeita a contingências relativas
às possibilidades fáticas e materiais e também jurídicas ocasionadas por regras e por
princípios opostos: assim, não se realiza ponderação para se definir se é ou não e em
que medida deve-se fundamentar a decisão judicial, que é a forma de aplicação de
princípios.270
Dentre os critérios de distinção expostos por Humberto Ávila,
também se pode verificar a ausência de dúvidas relevantes a respeito da conformação
como regra e não como princípio no processo civil, embora existam críticas a esses
critérios; pelo critério do “caráter hipotético-condicional”, o dever de motivação
apresenta uma consequência que está predeterminada, mediante um elemento
frontalmente descritivo aplicável pelo modo “se, então” e não uma diretriz que sirva
de fundamento para futuramente encontrar regras aplicáveis ao caso sem
predeterminar imediatamente a decisão ou a conclusão.271
O critério do “modo final de aplicação” gira em torno das
perspectivas elucidadas por Dworkin e Alexy acerca da aplicação absoluta (all-or-
nothing) ou gradual, obrigações definitivas (regras) ou obrigações prima facie
(princípios), assim como o critério do “conflito normativo”, que pressupõe a
antinomia entre regras solucionável mediante a invalidação de uma delas ou a
269 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 57-59. 270 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre
Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 146. 271 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 60-65; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 83-84.
p. 100
elaboração de uma exceção, ao passo que nos princípios haveria uma dimensão de
peso (Dworking) ou mandado de otimização (Alexy) e seu imbricamento deve ser
solucionado por ponderação, já antes mencionados.272
Denota-se que o art. 93, IX da Constituição Federal e o art. 489, II
do Código de Processo Civil trazem comandos prontos e definitivos que não
comportam análise sobre as possibilidades fáticas e jurídicas de sua concretização, na
medida em que o conflito com outras normas imporá a invalidade e inaplicação da
norma conflitante e não sua ponderação; há, portanto, uma regra constitucional de
exigência de fundamentação, sob pena de nulidade.273
A partir dos critérios dissociativos propugnados por Humberto
Ávila, pode-se, ainda, identificar como regra o dever de motivação das decisões
primeiramente por se tratar de uma norma imediatamente descritiva, com a qualidade
frontal de previsão de um comportamento consistente em fundamentar, sendo
mediatamente finalístico, e não como norma que prevê um estado de coisas ideal, com
conotação imediatamente finalística, tal como os princípios (critério da natureza do
comportamento prescrito).274
Quanto ao critério da natureza da justificação exigida, o dever de
justificação se identifica com a correspondência entre a construção conceitual da
norma e sua finalidade com a construção conceitual dos fatos, característica das regras
e não como avaliação entre o estado de coisas ideal e os efeitos decorrentes da conduta
tida por necessária, por existir no princípio a primazia do elemento finalístico ao invés
do elemento descritivo ou definitório; já quanto à contribuição para a decisão, as
272 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 65-87; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 84-85; SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 209. 273 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 85; SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 210. 274 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 94-97.
p. 101
regras seriam decisivas e abarcantes, por pretenderem abranger todos os aspectos
relevantes quando de sua aplicação, enquanto princípios seria complementares e
parciais em sua aplicação, não gerando uma solução específica, mas contribuindo para
a tomada de decisão.275
Ainda que pudesse haver algum dissenso tomando-se por base o
critério da “fundamentalidade da norma”, o menos técnico de todos, por supor,
essencialmente, uma eleição arbitrária de quanto uma determinada norma é
fundamento ou está no núcleo do sistema, a motivação é instrumento que visa atingir
diversos outros princípios, como visto, sendo corolário do devido processo legal, do
contraditório e do Estado Constitucional.276 Assim, pode-se concluir:
“O dever imposto aos juízes de motivar suas decisões é uma regra jurídica, independentemente dos critérios utilizados para distinguir regras de princípios. (...). Como regra que é, o dever de motivar as decisões judiciais adquire feições de um comando constitucional pronto, perfeito, acabado; consequentemente, imponderável. Qualquer regra que venha a excepciona-lo será inválida, pois inconstitucional. E nenhum caso concreto poderá afastar a sua incidência para dar prevalência a outros valores supostamente mais importantes. A classificação do dever de motivação segundo a sua real natureza acaba por dar-lhe mais força e maior proteção, exatamente o que pretendem aqueles que o têm como princípio. (...). Além disso, toda e qualquer ponderação e norma jurídica, especialmente das regras, deve ser adequadamente motivada pelo magistrado. Ainda que o dever de motivação pudesse ser ponderado, o magistrado ficaria compelido a explicar em sua decisão por que não iria motivar a decisão – um paradoxo insuperável. ”277
O perfil do dever de motivação das decisões judiciais não comporta
uma aproximação definitória sintética para a apreensão significativa de seu conteúdo,
o que termina por gerar tautologias; antes de mais nada, é seu significado no
275 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 97-102. 276 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 85. 277 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 87-90, passim.
p. 102
ordenamento em correlação às demais normas jurídicas que permite a compreensão
de seu alcance, mediante uma caracterização analítica de seus atributos e das relações
mantidas com outros elementos ou instituições do processo e da teoria do direito.
Até em perspectiva metodológica, o conhecimento congrega
construções teóricas ordenadas mediante a inserção do fenômeno na globalidade da
compreensão,278 integrando-se à abordagem sistêmica mais do que a tentativa de
entabular definições de um conceito formalizado para a fundamentação.
A motivação, portanto, deve ser entendida pelo que significa dentro
do processo e da teoria do direito, por sua posição dentro de um modelo jurídico
constitucional, pela forma como se constrói e se manifesta e pelo alcance de suas
funções no ordenamento jurídico. Nessa toada, pode-se constatar sobre a relevância
da motivação:
“Torna-se possível à conclusão, pois, que a importância da fundamentação das decisões judiciais reside: a) na necessidade do preenchimento de conceitos não determinados com os valores sociais dominantes; b) na justificação do decidido perante a sociedade na qual o magistrado encontra-se inserido; c) na possibilidade de fiscalização da atividade desenvolvida pelo magistrado; e, d) na legitimação da atuação do magistrado, como agente de Poder, num Estado democrático de direito.”279
Michele Taruffo anota que a motivação, como entidade linguística
que é, apresenta um conjunto de potencialidades, podendo ser lida de diversas
maneiras pelas partes, por seus representantes judiciais, pelo juiz, por um estudioso
do direito ou pelo público em geral, tornando-se explícita numa das possíveis leituras
e permanecendo indeterminados os demais, mantidos latentes nas potencialidades do
278 Conforme observa Márcio Pugliese: “O estado de conhecimento sobre o mundo (entendido como um conjunto de informações, tanto internas como externas, configurando o espaço do agir) congrega uma visão teoricamente construída sobre os fatos e representa uma conjectura pessoal e global sobre o mundo e manifestada através de problemas, argumentos e suposições (...) mesmo quando se analisa, transporta-se à análise uma totalidade de compreensão de mundo, isto é, relacionar-se com sentidos e interpretá-los implica na assimilação de um estado de conhecimento global e subjetivo daquele que conhece.” (PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 164). 279 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 104.
p. 103
texto, mas sem alterar a natureza da decisão.280 Daí que resulta “la imposibilidad
teórica de una definición global y exhaustiva de la ‘naturaleza’ de la motivación, más
aún si por lo que ‘es’ la motivación se entiende lo que la motivación ‘significa’.”281
Com base nessa compreensão, Taruffo insere a motivação da
sentença como um fenômeno linguístico cuja especificidade jurídica é a referência ao
sujeito que a origina (ato do julgador) e a referência ao procedimento em que se
manifesta; assim, o tema da motivação pode ser compreendido na integração do
fenômeno por seus aspectos jurídicos e extrajurídicos para que se possa desenvolver
uma linha de pesquisa sobre seus dois principais aspectos de aplicabilidade: o
conteúdo mínimo necessário para que se possa reputar adequadamente fundamentada
e a estrutura em que se organiza a fundamentação para se reputar racional a motivação
empregada.282
O fenômeno da fundamentação com referência ao sujeito que a
origina e a estrutura em que se organiza, restrita à concreção de termos vagos, será
analisada futuramente com a integração dos aspectos extrajurídicos com os aspectos
jurídicos que estão sob enfoque precipuamente neste capítulo.
A nota característica de sua suficiência, embora seja de difícil
definição, surge desde aspectos definitórios conceituais, como mencionam Eduardo
Talamini e Luiz Rodrigues Wambier sobre a fundamentação das decisões judiciais:
“isto é, que seja justificada e explicada, pela autoridade judiciária que a proferiu, a fim de que sejam compreensíveis as suas razões de decidir e de dê transparência à atividade judiciária, possibilitando-se seu controle pelas partes e pela sociedade como um todo. É por essa razão que decisões ‘implícitas’ não são admitidas em nosso ordenamento processual, pois é necessário que todas as decisões judiciais
280 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 62-63. 281 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 63. Em tradução livre: "A impossibilidade teórica de uma definição global e exaustiva da ‘natureza’ da motivação, mas sim que o que se entende por motivação é o que a motivação significa". 282 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 73-75.
p. 104
sejam fundamentadas suficientemente, ainda que de modo conciso, demonstrando o enfrentamento de todas as questões aduzidas.”283
A fundamentação se apresenta, então, como discurso justificativo e
não como iter percorrido para uma tomada de decisão, isto é, como discurso que
descreve as razões pelas quais um determinado fenômeno deve ser acolhido
favoravelmente, mas sempre atrelado às razões reais e não emuladas do processo
decisório.284
Como visto, um dos aspectos relevantes na importância da
fundamentação no quadro contemporâneo, é justamente “a necessidade do
preenchimento de conceitos não determinados”, 285 sendo que, o caso específico
tratado nesse trabalho, conta com previsão normativa especificada no art. 489, § 1°,
II do Código de Processo Civil. Nesse sentido:
“Como sabido, há conceitos jurídicos que são vagos, de definição imprecisa, caracterizando-se por fluidez que não permite o estabelecimento exato de seu significado. Resulta daí uma imprecisão semântica que faz com que seja preciso, em cada caso concreto, estabelecer-se as razões que levam à sua aplicação. É que diante desses conceitos indeterminados não se consegue estabelecer, a priori, as situações que se enquadrariam na sua fórmula.”286
Esse dispositivo do Código de Processo Civil reputa não ser
considerada fundamentada a decisão, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que
“empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua
incidência no caso”, o que traz em si um maior ônus argumentativo no momento da
decisão e impede que tais conceitos (em verdade contendo termos vagos) sejam
283 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Teoria geral do processo. Vol. I. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 78. 284 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 191. 285 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 104. 286 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 279.
p. 105
empregados sem a necessária fundamentação de sua correlação com o caso e sem que
o órgão judicante se desincumba desse especial ônus mais pronunciado.287
Conforme Cândido Rangel Dinamarco, os tribunais brasileiros não
são radicalmente exigentes no nível de minudência da motivação de decisões,
tolerando-se eventuais omissões que digam respeito a pontos colaterais, pontos
irrelevantes ou de escassa relevância para o julgamento, mas não se tolerando
omissões no que for essencial, o que colocaria em xeque a garantia político-
democrática do devido processo legal.288
A dificuldade, entretanto, está em definir o que se deva reputar ou
não essencial, uma vez que o cumprimento do dever de motivar e a inteireza da
fundamentação somente conseguem ser avaliados mediante um caso determinado, em
face das questões debatidas no curso daquele processo, o que torna pouco relevantes
critérios de formulação geral e abstrata.289
A fórmula de que existe omissão se o órgão judicial deixa de apreciar
ponto ou questão sobre os quais deveria se manifestar mostra-se inócua na medida em
que apresenta uma petição de princípio em que já se supõe saber onde se quer
chegar. 290 Dinamarco oferece o seguinte critério para verificação, largamente
adotado:
“Eis a fórmula definitiva. Dispensam-se minúcias e até se repudiam digressões sobre pontos colaterais e irrelevantes, mas exige-se que o essencial seja objeto da motivação. Na prática, reputa-se não-motivada a decisão judiciária que se omite sobre pontos de fato ou de direito cujo exame poderia conduzir a
287 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 207. 288 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 942-943. 289 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 394; DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 943. 290 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 109-110.
p. 106
julgamento diferente daquele pelo qual houver optado o juiz.”291
Embora parte significativa da doutrina mencione que o magistrado
não está obrigado a decidir sobre todas as questões suscitadas pelas partes, a questão
permanece em saber se são ou não “irrelevantes” ou “alheios” ao julgamento,292 pois
a decisão que deixa de apreciar argumentos incapazes de infirmar a decisão seria
plenamente fundamentada por se revelarem não como questões, mas como alegações
impertinentes ao caso, ou seja, não estaria o juiz “obrigado a decidir todas as questões
suscitadas no processo, podendo deixar de fazê-lo quanto às questões irrelevantes ou
impertinentes”293 ou “que nenhuma influência tem quanto ao sentido que se adotou
no julgamento da causa”294. Há, ainda, jurisprudência em sentido mais restritivo295,
embora exista dissenso296.
291 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 943. 292 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 393-394. 293 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 394. 294 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 396. 295 “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONTRADIÇÃO. ERRO MATERIAL. INEXISTÊNCIA. EFEITOS INFRINGENTES. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DE MULTA. 1. Inexiste violação ao art. 535 do CPC quando o Tribunal se pronuncia de forma suficiente sobre a questão posta nos autos, sendo certo que o magistrado não está obrigado a rebater um a um os argumentos trazidos pela parte quando os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. (...) 3. ‘Não cabe ao tribunal, que não é órgão de consulta, responder a 'questionários' postos pela parte sucumbente, que não aponta de concreto nenhuma obscuridade, omissão ou contradição no acórdão, mas deseja, isto sim, esclarecimentos sobre sua situação futura e profliga o que considera injustiças decorrentes do decisum (...)’. (EDcl no REsp 739/RJ, Rel. Ministro ATHOS CARNEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 23/10/1990). 4. Embargos de declaração rejeitados, aplicando-se a multa prevista no art. 538 do CPC.” (EDcl nos EDcl no AgRg no AgRg no CC 130.674/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/11/2015, DJe 17/11/2015) “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. SERVIÇO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA. AUSÊNCIA. COBRANÇA INDEVIDA. DANO MORAL. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. 1. Não ocorre contrariedade ao art. 535, inc. II, do CPC quando o Tribunal de origem decide fundamentadamente todas as questões postas ao seu exame, assim como não há que se confundir entre decisão contrária aos interesses da parte e inexistência de prestação jurisdicional. 2. Cumpre ressaltar que o magistrado não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas em juízo, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. 3. (...)” (AgRg no AREsp 315.629/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014) 296 “PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AÇÃO RESCISÓRIA - REVISÃO DE PROCESSO DISCIPLINAR - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - OMISSÃO QUANTO A ALEGAÇÃO DE NULIDADE DE DOCUMENTO - ARTS.
p. 107
É certo, entretanto, que no Estado de Direito contemporâneo, o dever
de motivar as decisões assume dimensões mais expressivas do que em outros
momentos históricos do passado,297 dessa forma, Teresa Arruda Alvim aduz que
devem ser abrangidas na fundamentação todas as alegações das partes com aptidão
para embasar uma conclusão de procedência ou de improcedência,298 afirmando:
“Deve então o magistrado, na sentença, manifestar-se sobre todas as alegações feitas pelas partes, principalmente, mas não exclusivamente, aquelas cujo exame influi, ou mesmo determina, o teor da parte decisória. Por isso, é nula a sentença em que não se pronuncia o magistrado acerca da alegação de prescrição feita pelo réu.”299
Pode haver uma distinção de grau na adoção deste mesmo critério de
irrelevância ou do que seja essencial para a determinação da conclusão ou resultado,
conforme se faça a construção a partir da decisão prolatada ou a partir do que poderia
vir a ser a decisão prolatada, isto é, a partir de qual enfoque se analisa a aptidão para
embasar a conclusão de procedência ou improcedência. Trata-se de adotar um critério
interno ou externo à própria decisão.
Com efeito, algumas teses apresentadas pelas partes interessadas são
excludentes entre si por tomarem pressupostos muito diferentes em suas premissas,
não podendo ser conciliadas, implicando-se uma eleição de premissas que, sempre,
deve ser justificada e não omitida; sendo que, depois de eleitas, as contrárias não são
165, 458, II E 535, I e II, DO CPC - VIOLAÇÃO EXISTENTE - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA. (...) 2 - Correta é a irresignação do embargante quando o Tribunal a quo deixa de apreciar a questão invocada, impossibilitando seu exame por esta Corte. Havendo omissão, esta deve ser corrigida, pois os embargos declaratórios integralizam o julgado de mérito. Aplicação do art. 535, inciso II, do Código de Processo Civil. 3 - Incumbe ao órgão judicial pronunciar-se sobre todos os pontos, de fato e de direito, relevantes para o deslinde da causa, sendo-lhe vedado discriminar qualquer deles, optando por manifestar-se a respeito de alguns e quedando-se silente acerca de outros. Inteligência ao art. 458, II, do Estatuto Processual Civil. 4 - Precedentes (EREsp nº 141.876/DF e REsp nº 168.641/DF). 5 - Recurso conhecido e provido para, anulando o v. acórdão a quo, determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que este se pronuncie acerca da matéria omitida.” (REsp 509.953/RS, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em 04/12/2003, DJ 08/03/2004, p. 319) 297 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 218. 298 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 212. 299 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 212.
p. 108
capazes, por si mesmas, de contradizer a conclusão da decisão – por não estarem
presentes nas premissas maior ou menor.
É nesse sentido que se pode verificar a existência de opções (de
escolhas livres) sobre a relevância de determinados elementos normativos para a
solução de um caso que se pode denominar “uso estratégico da jurisdição”, um
expediente de manipulação do discurso em que a linguagem e a organização dos
argumentos somente é dirigida à finalidade (conclusão) pretendida pelo julgador;300
isto é:
“A ‘escolha’ dos argumentos já pressupõe, por si só, uma estratégia de convencimento. Aí reside o grande problema do uso estratégico da jurisdição. Via de regra, a fundamentação será aparentemente legítima, escondendo por trás de si mesma um ato velado de discricionariedade. A verificação desse ato de vontade é difícil, e somente poderá ocorrer com a compreensão de o que significa verdadeiramente fundamentar uma decisão judicial.”301
Com efeito, se verificarmos o discurso interno de uma decisão, pode
haver alegações que não influa ou determine em sua estrutura interna, mas que ataque
ou seja incompatível com alguma de suas premissas, sendo essa a diferença entre a
verificação de sua aptidão para embasar uma conclusão de procedência ou
improcedência, mesmo que essa conclusão não tenha sido a adotada no julgamento, e
sua aptidão apenas com relação àquela conclusão que foi adotada.
É nesse segundo caso que pode haver uma seleção da argumentação
entre discursos incompatíveis entre si e, como consequência de uma análise limitada
à conclusão da decisão que foi tomada e não com relação à possibilidade de uma outra
decisão, haveria insuficiência da motivação.
Nesse caso não se diz porque trilhar um caminho e não outro, mas
apenas porque o caminho trilhado efetivamente levaria àquele destino: há
300 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 204 e 207. 301 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 207.
p. 109
desconsideração de premissas do segundo caminho, que podem ou não ser
impertinentes, mas que, em todo caso, devem ser justificadamente tidas por
impertinentes, se for o caso, ou devidamente repelidas, através de fundamentação
idônea que afaste a manipulação do discurso e das premissas. Isso não ocorre quando
a fundamentação é efetivamente desenvolvida em contraditório, tomando os
argumentos de cada parte.
No contraditório, aponta Mitidiero, a suficiência da fundamentação
deve observar o “critério extrínseco”302 e não do ato em si. Nesse sentido, aponta-se
como injustificável que não haja manifestação explícita sobre as alegações das partes,
por permitir uma livre escolha sem justificação racional, na medida em que as razões
alternativas são omitidas.303 E, caso existam alegações absurdas ou protelatórias, tanto
mais simples afasta-las, mas devendo isto ocorrer expressamente,304 bastando para a
suficiência da motivação que seja explicitado porque são absurdas ou protelatórias,
isto é, a impertinência de uma determinada alegação também implica que seja
indicada como tal, externando o motivo da impertinência.
A violação do contraditório e ampla defesa refletem na insuficiência
da motivação, quando apontadas certas razões para a procedência do pedido e opostas
determinados outros motivos para a improcedência, acolhe-se uma das razões de
procedência sem afastar todos os motivos para a improcedência ou, então, acolhe-se
um dos motivos de improcedência sem afastas todas as razões para procedência,
ignorando-as; de modo que a motivação é tanto mais importante para o perdedor do
que para o ganhador, sendo aquele fora lesado pelo ato estatal e deve ser integralmente
refutado em todas as suas justificativas.305
302 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da
jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 60. 303 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 207-208. 304 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 207-208. 305 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 207-208.
p. 110
Nessa perspectiva, toda a argumentação desacolhida é enfrentada
expressamente, enquanto a argumentação que poderia, também, levar ao acolhimento,
coincidindo com o sentido da decisão e corroborando-a, não precisaria ser apreciada
se já há fundamento suficiente para a conclusão alcançada naquele sentido.
Apenas o entendimento nesse sentido, de consideração efetiva na
fundamentação de todos os argumentos capazes de levar a uma decisão favorável à
parte desfavorecida pelo ato decisório cumpre adequadamente o contraditório, a
demonstrar que o ato decisório é fruto de uma construção inter partes mediante um
debate e não um monólogo, como adverte a doutrina:
“Impende, então, que o órgão jurisdicional leve em conta todos os argumentos suscitados pelas partes e que sejam capazes, em tese, de levar a uma decisão favorável. Isto combate o vício de muitos tribunais brasileiros de afirmar algo como ‘o juiz não está obrigado a examinar todos os fundamentos suscitados pelas partes, bastando encontrar fundamento suficiente para justificar a decisão’. Esta é a postura que claramente viola o princípio do contraditório e, portanto, é frontalmente contrária ao modelo constitucional de processo civil brasileiro. É claro que tendo o órgão jurisdicional encontrado um fundamento suficiente para decidir favoravelmente a uma das partes, não há qualquer utilidade (e, portanto, não há interesse) em que sejam examinados outros fundamentos deduzidos pela parte e que também levariam a um resultado a ela favorável.”306
Especialmente quando levamos em conta o objeto tratado, de normas
com termos vagos, a discussão em torno de quais valores e quais premissas devem ser
adotadas torna-se mais relevante, não sendo difícil constatar que a visão de mundo
empregada – seja a cosmovisão do próprio intérprete, a que seja mais ou menos
socialmente dominante ou uma terceira que esteja mais ou menos adequada às
finalidades constitucionais – será significativa no preenchimento ou concreção dos
conceitos indeterminados e cláusulas gerais, possibilitando visões ou narrativas
alternativas do que constitua o sentido da norma vaga:
“A decisão judicial no Estado Constitucional, por envolver estruturas normativas mais complexas que as do positivismo
306 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 17.
p. 111
jurídico, necessita uma fundamentação bastante mais extensa, justamente para evitar a discricionariedade que se quer evitar com uma teoria da decisão. Assim, o espaço de manobra do julgador não é maior, mas seu esforço argumentativo é.”307
A verificação da fundamentação não de seu próprio ponto de vista
interno, mas de pontos de vista alternativos, torna-se significativamente mais
acentuado: é sobre a alegação não acolhida ou julgada impertinente que se deve tecer
considerações a respeito, expondo-se os critérios e seleções realizadas, o que significa
um modelo mais abrangente e mais extenso do que o usual silogismo no contexto do
positivismo legalista. Na realidade, o modelo que se adota vai implicar consequências
importantes para o que se julgue ser uma motivação adequada e suficiente.
A justificação das premissas deve estar presente, não é suficiente que
as conclusões a partir das premissas anteriormente eleitas tenham correção lógica, o
que representa a coerência da justificação interna. A decisão também precisa ser
verificada a partir do que Wróblewski308 denomina justificação externa da decisão
judicial, sendo necessário discorrer e atestar a validade da eleição dessas premissas
para contrastar a decisão com elementos externos aos que foram adotados.
No caso de termos vagos a serem preenchidos, mediante sua
concreção ao caso sob julgamento, as premissas se inferem a partir de valorações
subjacentes e contextos sociais mediante elementos externos ao texto da norma
(extratextuais), que se amalgamam ao aspecto normativo vago, devendo esses
elementos serem expressos na fundamentação e apreciadas as visões alternativas e os
critérios de valoração.
Nesse sentido, embora comentando o art. 489, § 1°, III, do Código
de Processo Civil, Teresa Arruda Alvim tece considerações semelhantes a respeito da
fundamentação em contraste ao contexto da argumentação e não suficiência do exame
interno da decisão, o que, efetivamente, é mais consentâneo ao significado do dever
307 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas
no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 182. 308 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Legal Decision and its Justification. Logique et Analyse. vol. 14, nº. 53-54, Leuven,
1971. p. 412.
p. 112
de motivação, ao seu papel político-constitucional e, especialmente, ao objeto aqui
tratado, em que há aspectos sociais externos ao texto normativo de significativo relevo
para a solução de cada caso:
“Em boa hora, consagra o dispositivo do Código de Processo Civil de 2015 ora comentado, outra regra salutar no sentido de que a adequada fundamentação da decisão judicial não se refere única e exclusivamente pelo exame interno da decisão. Não basta, assim, que se tenha como material para verificar se a decisão é adequadamente fundamentada (= é fundamentada) exclusivamente a própria decisão. Esta nova regra prevê a necessidade – que a nosso ver já decorria do sistema, conforme constou da primeira edição deste nosso trabalho – de que conste, da fundamentação da decisão, o enfrentamento dos argumentos capazes, em tese, de afastar a conclusão adotada pelo julgador. A expressão não é mais feliz: argumentos. Todavia, é larga e abrangente para acolher tese jurídica diversa da adotada, qualificação e valoração jurídica de um texto etc. Vê-se, portanto, que, segundo este dispositivo, o juiz deve proferir decisão afastando, repelindo, enfrentando elementos que poderiam fundamentar conclusão diversa. Portanto, só se pode aferir se a decisão é fundamentada adequadamente no contexto do processo em que foi proferida. A coerência interna corporis é necessária, mas não basta.”309
Teresa Arruda Alvim adota, ainda, uma perspectiva diferenciadora
com relação à fundamentação em primeiro grau e segundo grau, com base no art.
1.013, § 3°, IV do Código de Processo Civil310 e na previsão legal e constitucional de
cabimento dos recursos excepcionais para alcançar o que seria uma fundamentação
adequada quando o acórdão se sujeita aos recursos excepcionais.311
309 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 219. 310 “§ 3° Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando: I - reformar sentença fundada no art. 485; II - decretar a nulidade da sentença por não ser ela congruente com os limites do pedido ou da causa de pedir; III - constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo; IV - decretar a nulidade de sentença por falta de fundamentação.” 311 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 110-111; ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e
da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 271.
p. 113
No caso das sentenças, bastaria, como visto anteriormente, que toda
a argumentação do vencido desacolhida seja apreciada e que um ou alguns dos
fundamentos do vencedor que levaram à procedência ou à improcedência sejam
apreciados fundamentadamente, dispensando-se os demais no mesmo sentido, pois no
caso de apelo ao tribunal, o efeito devolutivo amplo permite o conhecimento dos
demais fundamentos daquele capítulo da decisão, bem como poderá julgar o processo
ainda que na fundamentação não havido análise completa.312
Entretanto, no caso dos acórdãos proferidos pelos tribunais, a
fundamentação somente poderia ser reputada suficiente se todos os argumentos de
ambas as partes de caráter constitucional e infraconstitucional que possa causar
prejuízo à interposição de recurso especial ou extraordinário sob aquele fundamento
não apreciado pelo tribunal, ao contrário do que sustenta a visão tradicional;313 isto é,
“que os tribunais de 2° grau têm uma tarefa mais abrangente no que diz respeito à
fundamentação de seus acórdãos. O dever de motivar as decisões deve ser visto de
forma diferenciada quando se pensa em decisões sujeitas a recursos de estrito
direito”314, concluindo-se:
“é oportuno lembrarem-se as observações feitas no capítulo 4 deste estudo, no sentido de que há diferença digna de nota entre o que sejam decisões suficientemente fundamentadas e decisões completas. Da decisão suficientemente fundamentada, devem constar todos os elementos que o juiz levou em conta para decidir; das decisões completas, que devem ser as decisões sujeitas a recurso extraordinário ou recurso especial, devem constar também elementos fáticos e/ou jurídicos que, segundo as partes, ou segundo uma das
312 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 110 e 112; ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 271. 313 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 110-112. Em outra passagem, menciona a autora: “Parece-nos claro que o juiz há de manifestar-se necessariamente, principalmente nas decisões de 2° grau, sobre todas as causas de pedir mencionadas pelo autor, que autonomamente podem levar à procedência do pedido. Assim como há de referir-se expressamente a todos os fundamentos da defesa. Fundamentos de defesa são aqueles que podem, autonomamente, levar à improcedência da ação ou à extinção sm julgamento de mérito”. (Op. cit., p. 239). 314 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 112.
p. 114
partes, deveriam ter sido levados em conta pelo juiz, para decidir, ainda que o juiz não os tenha considerado como base de sua decisão. Sobre isto dispõe o art. 489, § 1°, IV. Naquele capítulo, ao qual remetemos o leitor, afirmamos também que o Tribunal deve apreciar todos os fundamentos do pedido e da defesa. As decisões sujeitas a recurso especial e extraordinário devem ser completas e não, simplesmente, suficientemente fundamentadas.”315
Denota-se dessa compreensão que apenas a fundamentação completa
é tida por suficiente quando a decisão está sujeita a recursos excepcionais e não apenas
que se fundamente expressamente sobre todos os argumentos suscitados pela parte
que não obteve sucesso em relação àquele pedido, seja pela procedência ou
improcedência.
Estando a fundamentação das decisões correlacionada com
princípios e regras inerentes ao Estado Constitucional num modelo constitucional de
processo civil, fica evidenciado que esse entendimento se ajusta adequadamente à
inafastabilidade do controle do Poder Judiciário em relação ao aspecto
infraconstitucional federal e/ou constitucional do caso concreto e ao controle
nomofilático e uniformizador das cortes superiores.
No limite, trata-se da efetividade do ordenamento jurídico e da
imposição da legalidade na medida em que a supressão de um determinado
fundamento legal ou constitucional obstaculize a jurisdição de um tribunal de
sobreposição e suprima a adequada aplicação da lei por via transversa, sendo a própria
fundamentação uma regra-instrumento para a concretização do Estado de Direito; o
que se coaduna à posição sistêmica e integradora aqui defendida de que o dever de
motivação deva ser compreendido de acordo com a posição que ostenta no Estado
Constitucional e com as funções que exerce no ordenamento jurídico e no processo
civil.
315 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 222.
p. 115
Corroborando, pode-se dizer, também que “a dimensão de seu dever
de fundamentar liga-se também à estreiteza do efeito devolutivo do recurso
subsequente, em certa medida mantida pelo art. 1.034, parágrafo único, que, segundo
pensamos, não autoriza reexame de provas”316.
Sem fazer diferença entre graus de jurisdição ou de ligação entre o
dever de fundamentar e o efeito devolutivo dos recursos subsequentes, Dinamarco
também propugna pela solução de que a despeito de todos os fundamentos deverem
ser apreciados para o adequado cumprimento da norma constitucional que exige
fundamentação, a omissão na apreciação de algum dos fundamentos do autor quando
julgado procedente o pedido ou do réu quando julgado improcedente o pedido não
implicariam a consequência da nulidade do ato decisório apenas em função da
instrumentalidade das formas, por não haver prejuízo à parte vencedora.317
Nessa visão, a fundamentação insuficiente pode ser considerada
tendo o mesmo efeito da fundamentação adequada de modo a não gerar a
consequência de ser inválida por conter nulidade absoluta,318 mas apenas porque o ato
decisório não causa prejuízo à parte vencedora que não viu todas as suas questões
apreciadas, mantendo-se o ato decisório por instrumentalidade das formas e
aproveitamento dos atos processuais.
Embora o objeto de estudo não seja propriamente os tipos de
nulidade gerada, mas sim o conteúdo e o alcance da motivação quando empregados
termos vagos, conforme Teresa Arruda Alvim, há três espécies de vícios intrínsecos
às sentenças que, em última análise, se reduzem a um só: sentenças em que há
ausência da fundamentação, em que há deficiência da fundamentação ou em que há
316 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 116. 317 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 945-946. 318 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 942.
p. 116
ausência de correlação entre a fundamentação apresentada e o decisório; sendo que
em quaisquer dessas hipóteses há nulidade da sentença.319
A fundamentação deficiente, em rigor, não é fundamentação, não
sendo aceitável como tal e sendo equivalentes a fundamentação inadequada e a
inexistente – tanto é que o Código de Processo Civil criou standards mínimos de
qualidade no art. 489, § 1° –, e a fundamentação descorrelacionada também não é
fundamentação daquela decisão, ocasionando sempre a nulidade do ato, mediante um
vício particularmente grave que não pode ser suprido pela sanatória geral da coisa
julgada.320
Consoante Taruffo, as exigências da motivação somente conseguem
ser adequadamente verificadas no caso concreto, com a decisão e seu contexto, mas,
em geral, pode-se elencar os seguintes aspectos necessários na motivação: (i) da
interpretação das normas aplicadas, (ii) da verificação da ocorrência dos fatos, (iii) da
qualificação jurídica do pressuposto fático e (iv) da declaração das consequências
jurídicas que derivam da decisão; bem como quando o julgador não enuncia quais os
critérios usados nas eleições realizadas durante as conclusões de cada aspecto.321
Apesar de fazer algumas indicações casuísticas que possam
auxiliar322 o intérprete a respeito da fundamentação, Dinamarco estabelece que deva
319 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 269; ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 213. 320 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 269-270 e 278; ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 213-214. 321 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 394-395. 322 “Não-obstante a impossibilidade de emitir critérios muito objetivos acerca dos limites entre a sentença mal motivada e a não motivada, algumas indicações são sempre úteis e auxiliam o intérprete: a) a sentença não se considera não-motivada, ou insuficientemente motivada, só pela razão de os motivos expostos serem errôneos, inconvincentes ou pouco convincentes, ou não corresponderem à prova dos autos ou ao sentido da lei; b) idem, quando se omitir quanto a pontos de pequena relevância ou meros argumentos de reforço; c) idem ainda, quando os motivos explicitados forem suficientes, de modo que exame dos pontos omitidos não altere a conclusão (instrumentalidade das formas: CPC, arts. 244 e 249, § 1°); d) mas ela padece do vício de motivação quando se omite a fato que, se fosse considerado, alteraria o julgamento da causa; e) quando omite o exame de preliminares que, se acolhidas, poderiam impedir o julgamento de meritis; f) especificamente, quando o acórdão deixa de examinar preliminares alusivas à própria admissibilidade do recurso; g) quando o acórdão simplesmente se reporta aos fundamentos da
p. 117
ser utilizado como farol para guiar a verificação de sua suficiência e adequação o
critério fundamental do dever de motivação como elemento de limitação ao poder do
juiz;323 por ser forma de limitação ao poder estatal, deve ser verificado se, no caso
concreto, essa finalidade foi atingida ou se há exercício discricionário na decisão:
“É inerente à garantia constitucional do devido processo legal a oposição de limites ao poder estatal como um todo, que o juiz exerce sub specie jurisdictionis. Decidir sem fundamentar suficientemente é exercer o poder sem dar atenção às partes, à opinião pública e aos órgãos superiores da Magistratura, aos quais compete, pela via dos recursos que lhes chegam, examinar os motivos expostos e pronunciar sobre eles – seja para confirma-los, seja para repudiá-los. E isso, como chega a ser intuitivo, não só viola as exigências de motivação postas pela lei e pela Constituição, como ainda desconsidera as exigências do due process of law.”324
A suficiência da fundamentação pode, assim, ser aferida mediante o
exercício justificado do poder decisório, não restando “escolhas” sem a devida
explicação racional. Em outras palavras, no modelo de motivação ideal, diz Taruffo,
deve haver a “controlabilidade da argumentação justificativa expressa” 325 . A
completude da motivação não significa sua inflação com elementos supérfluos nem
um self-restraint estilístico do órgão julgador, mas uma sensibilidade aos aspectos de
racionalidade e aos aspectos garantísticos promovidos pela motivação.326
A controlabilidade devida em uma decisão e a promoção de modelos
de racionalidade e mesmo o alcance de garantias dependem da concepção de sistema
jurídico que se tem, o que pode ser reconduzido ao fato do que o entendimento a
sentença, sem atenção aos fundamentos trazidos pelo recorrente em crítica a ela.“ (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 944.) 323 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 944. 324 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 944-945. 325 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 396. 326 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 396.
p. 118
respeito de como deve ser a motivação de uma decisão ter se alterado ao longo do
tempo.
Isso também é constatado pela relação entre a sentença e a lei não
ser mais tão óbvia quanto antigamente com a superação da ideia de que a primeira
decorreria automaticamente da última, abandonando-se a ideia de interpretação de que
decorram decisões unívocas e independentes de fatos subjacentes a merecer um
tratamento diferenciado. 327 Como dito anteriormente, a insuficiência do texto
normativo e a maior complexidade de sua relação com a fundamentação do ato
decisório sobressai no tema tratado, que está disposto no art. 489, § 1°, II do Código
de Processo Civil.
Será, portanto, necessário abordar essa relação, o modelo do direito
e de suas normas jurídica e a aplicação da norma, que, no caso em voga, não pode ser
um modelo perfeito de aplicação em face da existência de alguma indeterminação
dessa norma – que possui termos vagos –, que podem ser reputados como casos de
maior complexidade para a aplicação:
“Estas observações vêm se tornando mais frequentes na literatura contemporânea, em virtude de se estarem tornando mais frequentes os casos mais complexos, que não são previstos minuciosamente pela lei. (...). A complexidade das sociedades contemporâneas, somada ao acesso à justiça, que se tornou real, já demonstram com veemência que o direito positivo, pura e simplesmente considerado, não é um instrumento bastante para resolver muitos dos problemas que se colocam diante do juiz. Hoje, entende-se que o direito vincula o juiz, mas não a letra da lei, exclusivamente.”328
Em verdade, são essas as duas questões fundamentais e
intrinsecamente relacionadas na filosofia do direito: “a aplicação do direito depende
de como se conceitua o direito e, por outro lado, o conceito de direito depende do
327 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 200. 328 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2017. p. 258-259.
p. 119
modo como se encara a aplicação do direito”329, diz Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno em estudo introdutório à obra de Alexy. Desconhecer em que contexto
está se propugnando pela fundamentação de decisões envolvendo conceitos vagos ou
indeterminados seria equivalente a não saber onde se está andando, o que representaria
uma mera repetição infrutífera de termos descontextualizados e sem relevância
metodológica, um compêndio sem real valor de significado.
Faremos, então, uma incursão em modelos de pensamento jurídicos
que influenciam especialmente o nosso ordenamento em particular no quadro geral da
civil law e em alguma medida determinam o modo de aplicação do direito, refletindo,
consequentemente, no modo como se compreende a fundamentação quando é
aplicado o direito ao caso concreto. E, mais à frente, faremos incursões em elementos
além do texto normativo que possam integrar o significado da norma nos casos
concretos.
329 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre
Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 1.
p. 120
5. Formalismo interpretativo: paradigma da escola da exegese
A “École de l’Exégèse” prosperou ao longo do século XIX com a
proposta de ater o direito à lei, sendo possível distinguir três fases nessa evolução: a
instauração iniciada com a promulgação do Código Civil de 1804, conhecido como
Code Napoléon, e terminada entre as décadas de 30 e 40 daquele século, uma fase de
apogeu até a década de 1880 e sua fase de declínio, encerrada em 1899 após vir à lume
a obra de François Geny Méthode d’interpretation et sources em droit privé positif.330
Obra em que é atacado o positivismo legalista, abandonado o positivismo como
ciência e afirmado que as fontes formais do Direito são insuficientes para a solução
dos problemas a serem julgados.331
A codificação napoleônica produziu profunda influência no
pensamento jurídico moderno e contemporâneo, que se reflete até hoje nas ciências
jurídicas e na academia pelo enraizamento de um paradigma uma forma de
compreensão no direito em termos de codificações, a partir da matriz de pensamento
iluminista desde a segunda metade do século XVIII.332
Ademais, representa uma experiência típica da Europa continental
dos últimos dois séculos, apenas então o direito se tornou codificado, como
entendemos hoje: um “corpo de normas sistematicamente organizadas e
expressamente elaboradas”, enquanto o Corpus juris civilis era mera coletânea de leis
330 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 31; BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 73; MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 32. 331 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 69 e 73; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões
Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 162. 332 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 63.
p. 121
precedentes e o Digesto era uma organização de fragmentos de jurisconsultos romanos
com interpolações e adaptações às necessidades da sociedade bizantina.333
Nessa corrente de pensamento jurídico, o direito é identificado com
o conjunto de textos legais sistematizados, especialmente nos códigos, e a
metodologia de aplicação do direito segue um processo dedutivista, silogístico e
lógico-analítico, buscando-se um sentido unívoco pré-existente no texto legal.334 Essa
concepção de que a lei nada deixaria ao arbítrio do intérprete é tributária da doutrina
da separação de poderes, estribada na “psicologia das faculdades”, sendo a razão e a
vontade faculdades separadas,335 o que supõe a possibilidade de uso de cada uma de
maneira estanque, cabendo uma na elaboração e outra na aplicação da norma jurídica.
Assim, afirma Perelman, a separação de poderes implicaria num
poder legislativo que fixa o direito por ato de vontade do povo, sendo as decisões do
legislativo expressão dessa vontade, e um poder judiciário que diz o direito,
aplicando-o como lhe é dado, o que satisfaria a necessidade de segurança jurídica,
pois seria passível de cognição por todos do mesmo modo, num sistema dedutivo e
imparcial; o que comporta uma aproximação do direito com o método das ciências,
com cálculo e exatidão, além de trazer a ideia de institucionalização impessoal, não
se estando mais à mercê dos homens e dos abusos da justiça corrompida do Antigo
Regime.336
A escola da exegese possuiu particular interesse teórico nas fontes
do direito e no método de interpretação, num ideário de pensamento jurídico com
cinco aspectos marcantes.337 O primeiro sendo uma inversão das relações entre direito
natural e direito positivo mantidas ao longo de dois milênios na tradição jurídica,
333 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 63-64. 334 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 32. 335 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 32. 336 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 32-33. 337 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 84.
p. 122
destituindo o direito natural de significado prático (tido por vago e indeterminado) ao
mesmo tempo que enfocava o direito positivo o exclusivo ponto de interesse do jurista
para encontrar as soluções das controvérsias, pois o direito natural apenas viria a
adquirir relevância enquanto fosse reconhecido pela legislação.338
O segundo aspecto marcante, correlacionado ao primeiro, é a
concepção rigidamente estatal do direito, sendo apenas jurídicas as normas
estabelecidas pelo Estado339 ou por ele reconhecidas em alguma medida, o que resulta
num método prevalente de interpretação fundado na intenção do legislador ou na
vontade da lei, como um terceiro aspecto: “segundo a escola da exegese, a lei não
deve ser interpretada segundo a razão e os critérios valorativos daquele que deve
aplicá-la, mas, ao contrário, este deve submeter-se completamente à razão expressa
na própria lei”.340
A escola da exegese emprega, por excelência, uma teoria formalista
ou cognitivista da interpretação judicial, buscando revelar o sentido unívoco e pré-
existente na norma, implicando apenas uma solução e interpretar envolveria
exclusivamente atos de conhecimento.341
Mas ainda que a legislação tenha se tornado a única fonte do direito
e o único critério normativo válido de decisão,342 a interpretação de sua vontade - que
tem grande importância na história e na prática até os dias de hoje - comporta uma
gradação, pois a vontade do legislador se baseia em concepção subjetiva da vontade
da lei, a ser buscada em investigação essencialmente histórica, como as finalidades
com que fora proposta, discutida e promulgada, a exposição de motivos, discursos
338 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 84-86. 339 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 34. 340340 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 86-87; MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 34. 341 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 30-33, passim. 342 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 34
p. 123
legislativos e razões de veto, enquanto a vontade da lei se baseia numa concepção
objetiva, através de uma investigação do conteúdo normativo da lei em si e não da
intenção de seus autores, como na sua relação com outros dispositivos legais que
possam esclarecer qual seria essa vontade,343 já em conformidade a uma compreensão
do aplicador de como se conforma a realidade atual, enfim, menciona Bobbio:
“enquanto o primeiro método liga a interpretação da lei ao momento de sua emissão e comporta, portanto, uma interpretação estática e conservadora, o segundo método desvincula a interpretação da lei do contexto histórico no qual ela surgiu e permite uma interpretação progressiva ou evolutiva, isto é, uma interpretação que leva em conta a mudança das condições histórico-sociais.344
Os últimos aspectos marcantes são o “culto do texto da lei”345, um
rigoroso e até descomedido apego ao texto como forma de explicação do alcance das
normas e um respeito ao princípio da autoridade centrado no legislador, identificado
com a expressão da soberania popular, que no contexto da escola da exegese também
foi transmitido ao prestígio de que gozaram os primeiros comentadores do Code
Napoléon, repetidos e tomados por tantos outros também como verdadeiros dogmas;
ao passo que o princípio de autoridade vem sendo cada vez mais abandonado no
pensamento científico e filosófico modernos.346
343 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 87-88. 344 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 88. 345 “Existem registros históricos assinalando que Napoleão acompanhou atentamente a elaboração do Código, havendo mesmo a informação de que ele opinou sobre vários capítulos e artigos. E quando se falou na hipótese de estabelecer um procedimento para esclarecimento de eventuais dúvidas sobre o significado e o alcance de algum artigo, falando-se na interpretação de alguma disposição, Napoleão teria reagido indignado, dizendo: ‘o meu Código já está pronto e acabado e suas disposições são muito claras, não precisam de interpretação. Por isso eu não admito que qualquer órgõ ou autoridade interfira em sua aplicação’. A partir de então consagrou-se a ideia de que o Código era ‘a lei’, expressão da vontade soberana do povo (...) estando aí a origem do legalismo e do positivismo jurídico, que ainda hoje tem grande influência no direito francês, inclusive na doutrina jurídica.” (DALLARI, Dalmo de Abreu. QPC e Controle de Constitucionalidade: Evolução do constitucionalismo francês. In: CAGGIANO, Monica Herman; LEMBO, Claudio Salvador; ALMEIDA NETO; Manoel Carlos de. (Orgs.) Juiz Constitucional: Estado e poder no século XXI. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 130-131.). 346 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 88-89.
p. 124
Ao juízo restaria a atribuição de bem estabelecer os fatos, dos quais
decorrerão as consequências jurídicas previstas nas normas, sendo essas a conclusão
de um silogismo em que a premissa maior está delineada pela norma aplicável,
perfeitamente identificável no sistema descrito pela doutrina, à qual caberia formular
a descrição desse sistema tão perfeito quanto possível: completo, coerente e sem
ambiguidade.347
Entretanto, a univocidade dos signos e regras de demonstração que
possibilitam a ausência de ambiguidades e a eliminação de controvérsia sobre a
interpretação é apenas possível num sistema axiomático formalizado, em linguagem
artificial – e sendo o direito prescrito em linguagem natural, não se conseguiria mesmo
obter a solução almejada pela Escola da Exegese para a segurança jurídica e para a
aplicação da norma em tal concepção do direito:
“pois a linguagem artificial, elaborada em lógica formal ou aritmética, exige a univocidade dos signos assim como as regras de manejo. Se o sistema é completo, deveríamos ter condições de demonstrar cada proposição formulada na linguagem ou de demonstrar sua negação. Se o sistema é coerente, deveria ser impossível demonstrar dentro dele uma proposição e sua negação. A univocidade dos signos e das regras de demonstração garante a eliminação de qualquer desacordo ou controvérsia concernente à sua interpretação. A exigência de coerência se impõe de modo imperativo, pois, se um sistema é incoerente, porque dele podemos deduzir uma contradição, torna-se inutilizável e faz-se necessário corrigi-lo.”348
Há uma tendência contemporânea de investigação filosófica
concomitante à análise da linguagem, exigindo uma crítica da linguagem na teoria do
conhecimento em vista da verificação de determinados problemas lógicos e
347 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 32-34, passim. 348 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 34.
p. 125
epistemológicos não poderem ser solucionadas em linguagem cotidiana, mas o serem
com a substituição por sistemas de linguagens construídas artificialmente349:
“No contexto atual, é sobremaneira importante o fato de que determinadas dificuldades, que ocorriam numa teoria filosófica mais antiga, por vezes caem automaticamente pelo fato de agora tal teoria poder ser formulada de forma mais precisa. Um exemplo importante é oferecido pela teoria da verdade como adequação. Os argumentos levantados por Brentano contra versões mais antigas dessa teoria, o que apresentamos anteriormente, são de fato plausíveis. Mas aqueles argumentos pressupõem uma descrição de tal teoria através de meras expressões figuradas, como, por exemplo, a de que a verdade consiste ‘na concordância do juízo com o estado-de-coisas correspondente’ e outras semelhantes. Como mostrou o lógico polonês Alfred Tarski, o conceito de verdade da teoria da adequação não pode ser introduzido de maneira perfeitamente exata na linguagem cotidiana – mas pode sê-lo em sistemas de linguagem formalizada, que são providos de regras precisas de interpretação (os chamados sistemas semânticos) – sem que as dúvidas anteriormente levantadas em relação a este conceito surjam novamente, pois nesta nova introdução do conceito de verdade não ocorrem mais expressões como ‘concordância’, ‘estado de coisas’ e ‘realidade’ ”.350
O tratamento de proposições referentes a expressões abstratas
trazidas por tais possibilidades, ainda não conhecidas no nível atual quando grassava
a Escola da Exegese, possui especial relevância em contextos de formalismo
interpretativo, pois é a forma de solução ex ante de possíveis controvérsias
interpretativas e ambiguidades, através de um adequado tratamento axiomático
formalizado, possibilitando um processo interpretativo meramente declaratório de
códigos e normas que, de fato, nunca ocorreu com a tranquilizadora exatidão proposta
por essa teoria de raciocínio jurídico.
A influência ou justificação jurídico-filosófica por detrás de uma
doutrina de fidelidade ao Código – ou do encerramento da interpretação no próprio
349 STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012. p. 48-49. 350 STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 49.
p. 126
texto normativo – é representada pelo fundamento ideológico do Estado moderno
calcado na doutrina da separação dos poderes, com estremada distribuição das
competências e funções fundamentais do Estado a três órgãos distintos: legislativa,
executiva e judiciária.351
A partir dessa concepção do Estado, o juiz não poderia criar o direito,
atividade que implicaria invasão de esfera de competência alheia, cabendo-lhe aplicar
estritamente o que está expresso no texto normativo ou, na imagem de Montesquieu,
ser a boca através da qual fala a lei, ideia recordada no Tribunal de Rouen, segundo o
qual o uso de elementos normativos que fossem estranhos ao código “sufocaria a voz
do legislador”.352
Além de Montesquieu, 353 Rousseau e Hobbes contribuíram
enormemente para o sucesso do direito positivo em oposição a um sistema de moral
universal, culminando na primazia da lei; conforme o último, o direito é manifestação
de vontade do Soberano e não expressão da razão, não passando o direito natural de
uma lei da selva gerador de um permanente estado de guerra entre os homens, cujos
inconvenientes seriam superados com a criação de um Estado.354
Assim, ao estabelecerem um pacto para cessar esse estado, colocam
suas forças à disposição do Soberano, com atribuição para manter a paz e protege-los
351 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 79. 352 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 79. 353 A respeito dessa contribuição, análise de Gustavo (Lehrbuch des Naturrechts als einer Philosophie des positiven Rechts) mencionada por Bobbio: “Hugo indica como exemplos precedentes de ‘filosofia do direito positivo’ o pensamento de Montesquieu (com uma perspectiva de dois séculos, a obra do autor francês parece bem diferente daquela do autor alemão e se afigura difícil encontrar um ponto de contato entre os dois, visto que o ‘Espírito das leis’ constitui aquilo que hoje chamaríamos de um estudo de sociologia jurídica). De qualquer maneira, Hugo evoca Montesquieu porque a obra deste não se refere absolutamente ao direito natural, mas sim às experiências jurídicas concretas dos vários povos, da época bárbara à civil. Trata-se de um estudo comparado das legislações, feito com a finalidade de conhecer o ‘espírito das leis’, isto é, com a finalidade de individualizar a função do direito, as suas relações com a sociedade, as leis históricas que regulam sua evolução. ” (BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 46). 354 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 17-18, passim.
p. 127
de ataques externos, renunciando à solução dos conflitos por si e aceitando as leis
estabelecidas pelo soberano para regular suas diferenças – e caso não haja educação
suficiente para ensinar o respeito às leis, de modo que não bastem instâncias informais
de controle, haverá tribunais encarregados de dizer a justiça e punir a violação da
lei.355
Na concepção de Hobbes, as leis deverão proteger a vida e os bens
dos habitantes do Estado, para que os súditos possam cuidar de suas ocupações e
interesses privados, de modo que o interesse destes coincide com a do Soberano que
dita as leis e educa os súditos por uma propaganda ideológica permanente para que
concebam a justiça como conformidade às leis promulgadas: no estado de natureza a
justiça era uma ideia vaga e sem conteúdo delimitado, com cada um fazendo o que
lhe aprouvesse pela força conforme seu livre arbítrio, sendo somente com o direito
positivo que a ideia de justiça adquire sentido preciso, dizendo quais são as obrigações
e direitos de todos.356
A obra de Rouseau “O contrato social”, sob inspiração de Hobbes,
teve forte influência ao não identificar o soberano com um monarca, mas com a nação
e a vontade política organizada, que promulga as leis do Estado e decide o justo por
sua vontade geral, num acordo “entre o interesse e a justiça que dá às deliberações
comuns um caráter de equidade”;357 inaugurando uma das mais influentes ideias da
doutrina constitucional no século XVIII, da lei como expressão da vontade geral.358,
359
355 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 18-19. 356 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 19. 357 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 22. 358 NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 48. 359 A suposição acerca da expressão legal da vontade geral, posteriormente, viria a ser severamente criticada, embora estes pressupostos teóricos não venham a ser substituídos de forma absoluta, valendo citar a respeito: “Certamente o racionalismo serviu-se do ambíguo conceito de ‘vontade geral’ de Rousseau, para afirmar que, sendo a lei expressão da ‘vontade geral’, seriam os cidadãos quem na realidade as fariam, através de seus representantes. Esta utopia, porém, começou a esfacelar-se com a
p. 128
Na popular obra de Montesquieu “O espírito das leis”, em que o
autor busca expor as relações entre o direito público e privado e o regime político
constitucional, 360 não se rejeita a ideia de justiça fora do direito positivo, aqui
entendido como as leis postas pelo Estado, mas a positivação torna clara os aspectos
mais relevantes das relações de justiça, fazendo sobressair o interesse público que
estava obnubilado pelo interesse particular, congregando-os: dessa forma resulta
crucial evitar a concentração dos poderes num único órgão, que estaria enviesado a
proclamar como justo e legal o que seriam seus próprios interesses e o que reforça seu
próprio poder.361
Para evitar esses abusos é preconizada a doutrina da separação dos
poderes, não podendo o poder Executivo ou o Judiciário invadir a atuação do poder
Legislativo, sendo o julgador “a boca que profere as palavras da lei” como condição
‘democracia dos partidos’ e com o conceito moderno de lei, mesmo porque, para Rousseau, a função de legislar era uma prerrogativa do cidadão, absolutamente indelegável. De resto, a ‘vontade geral’, como fundamento do regime democrático representativo, já estava virtualmente presente na doutrina de Hobbes, como mostra Norberto Bobbio, ao transcrever esta afirmação do filósofo inglês: ‘Nenhuma lei pode absolutamente ser injusta, na medida em que cada homem cria, com seu consentimento, a lei que ele é obrigado a observar; esta, por conseguinte, tem de ser justa, a não ser que um homem possa ser injusto consigo mesmo’. A fantasia de Hobbes, que provocaria riso se fosse proposta por um filósofo contemporâneo, harmoniza-se com a lógica dedutivista de estilo matemático, peculiar aos juristas e filósofos racionalistas, além de fazer-nos duvidar do caráter democrático de um sistema político sustentado ideia de ‘vontade geral’, porquanto seria um rematado despropósito eleger Hobbes como o primeiro teórico da democracia representativa.” (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia: O paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 26.) 360 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 281. Também menciona Antonio Padua Schioppa: “Costuma-se designar como momento inicial da nova cultura iluminista o ano da primeira edição de uma obra que teve enorme repercussão na Europa: em 1748 foi publicado o Esprit des lois de Charles de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755). Na época alto magistrado e presidente do tribunal soberano de Bordeaux, estudioso de história, de direito, de literatura, mas também de ciências naturais, o autor já se tornara famoso um quarto de século antes com a publicação, em 1721, de uma pequena obra, as Lettres Persanes, em que imaginara que um muçulmano proveniente da distante Pérsia descrevia aos familiares, em forma epistolar, suas impressões sobre a França da época por ocasião de uma viagem a Paris: um feliz recurso literário (...) que permitia ao autor representar com aparente ingenuidade e com pungente ironia não poucos aspectos dos costumes da época, inclusive alguns criticáveis aspectos da justiça.” (SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 281). 361 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 20-21.
p. 129
de segurança jurídica, pois de outra forma não se saberia quais compromissos são
assumidos caso permita-se a opinião particular do julgador.362
Norberto Bobbio elenca cinco causas históricas para o advento da
escola da exegese, sendo a justificação jurídico-filosófica calcada na doutrina da
separação dos poderes a primeira, já tratada acima, e a segunda, de matiz ideológica,
sendo representada pelo princípio da certeza do direito, que consubstanciaria um
critério seguro de conduta, a partir do qual se pode identificar com exatidão as
consequências de cada comportamento de forma antecipada, renunciando-se a
eventuais contribuições criativas na interpretação do texto normativo.363
Nesse aspecto, atribui-se a certeza do direito a um corpo estável de
leis e a serem os únicos critérios aceitáveis para solucionar as controvérsias os
contidos nas normas previstas neste corpo de leis e não em outros critérios, por um
processo que torne explícito o que está contido no texto legal – como um
procedimento silogístico –, sob pena do cidadão não mais poder prever as exatas
consequências de suas próprias ações.364
Menciona Bobbio que a influência desse princípio na interpretação
puramente exegética é marcada pelo jusfilósofo Matteo Pescatore, que divide a
história do direito em quatro principais fases, sendo a última – que nos interessa para
esta digressão – iniciada pelo que chama de “revolução na ciência da legislação”,
constituída pelo direito codificado após a Revolução Francesa.365
A preocupação expressada e que ainda permanece na quadra da
segurança jurídica é de que a “inspiração se torna arbítrio” e que disposições
subjetivas ou opiniões enviesadas desvirtuem a administração da justiça, ainda que
362 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 21-22. 363 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 79-80. 364 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 80. 365 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 80.
p. 130
não houvesse qualquer corrupção ou favorecimento deliberadamente motivado a uma
das partes,366 a certeza é uma qualidade atribuída ao conhecimento dito científico a
que se buscava sob as influências iluministas da época.
E, embora não se tenha alcançado o nível de certeza ex ante
pretendido, muito menos permanecido ao longo do tempo a efetividade de tal
desiderato, quanto mais explícitas forem as assunções e pressupostos de uma dada
interpretação contida numa decisão, maior será a segurança de serem evitados
arbítrios ou enviesamentos que preocupavam os pensadores daquela época assim, a
questão gira em torno da forma como a certeza é trazida através da relação do
ordenamento com a decisão judicial e sua justificação:
“Desde sempre, aqueles que refletem sobre o direito se preocupam com o modo como se dá essa vinculação do juiz à lei (lei = base das decisões judiciais), equação essa que vem sendo entendida de modos diferentes ao longo do tempo. É a variação dos contextos políticos e jurídicos, que ocorre no transcorrer da história, e com o suceder das épocas, que faz com que essa conexão, sempre íntima e necessária, entre lei e decisão judicial, venha sendo concebida e entendida de modos não rigorosamente idênticos. Para que se compreenda como, ao longo dos tempos, tem ocorrido a vinculação do juiz à lei, deve-se perguntar, do ponto de vista político, sociológico e até filosófico, o que vem a ser, em certa época e em cada país, o direito e a que finalidade visa.”367
Desde a Revolução Francesa, a transferência da legitimação do poder
para a vontade do povo implicou a delimitação absoluta da tripartição de poderes e da
submissão do juiz à lei como pressuposto da ideia de soberania popular, levando à
crença na onipotência da lei que influenciou a Europa Continental e se refletiu no
“estilo de decisão dos juízes franceses” de subsunção que pretendia parecer
impossível conclusões diferentes das alcançadas numa dada decisão, conformando-se
366 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 80-81. 367 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 32.
p. 131
no que se esperava daqueles que aplicavam o direito conforme a concepção dominante
à época.368
Foi no processo que culminou com a Revolução Francesa que
modificou-se pela primeira vez na Europa continental o fundamento constitucional da
soberania, com a paulatina concretização de um viés de soberania popular, sendo um
dos aspectos centrais dessa fase histórica a superação definitiva do direito comum que
vigia há aproximadamente sete séculos em favor dos códigos escritos em língua
nacional com o desiderato de substituir completamente as fontes anteriores, isto é,
diferentemente dos regulamentos de soberanos modernos e medievais, não são
passíveis de serem complementados por outras fontes que anteriormente existiam,
iniciando-se a era das codificações que caracteriza o direito há mais de dois séculos.369
Prosseguindo, a terceira causa histórica para a gênese da escola da
exegese é identificada na “mentalidade dos juristas dominada pelo princípio da
autoridade”, representada pela vontade do legislador em expressão da soberania
popular que, com a codificação positivada, a exteriorizava de maneira segura e
completa aos operadores do direito, bastando a estes conhecer a lei em sua
integralidade e a ela se ater sem recorrer a interpretações que pudessem deturpar essa
vontade.370
Um quarto motivo histórico para o advento da escola da exegese, de
caráter político, revela-se nas pressões do regime napoleônico sobre os
estabelecimentos de ensino superior que ministravam o direito (colocadas diretamente
sob o controle das autoridades políticas) para que somente o direito positivo e prático
368 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 32-33. 369 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 280. 370 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 78-79.
p. 132
fosse ensinado em detrimento de teoria geral do direito e de compreensões
jusnaturalistas, tidas por inúteis ou perigosas ao regime autoritário.371
Uma quinta e última razão verificada foi o próprio surgimento da
codificação, compreendida neste sentido moderno ora empregado de “corpo de
normas sistematicamente organizadas e expressamente elaboradas”, pois era a obra
apta para se obter a solução das principais – quiçá todas, poderiam alguns supor –
controvérsias apresentadas, traduzindo-se num paradigma para o pensamento da
época: os operadores do direito buscariam as maneiras mais simples e diretas de
resolver uma questão, o que poderia ser obtido na própria codificação ao invés de
outras fontes mais complexas e dificultosas do que o direito codificado, como
doutrina, costumes, jurisprudência, etc.372
A necessidade de codificação, como sistematização de normas, surge
como fruto da cultura racionalista associada ao iluminismo que adquiriu primazia na
França e ganhou corpo em forças histórico-políticas durante a Revolução Francesa:
essa concepção pressupõe que o legislador possa criar normas universalmente válidas,
através do tempo e dos lugares, como um “legislador universal”, a partir de um ideal
de ciência da legislação equivalente ao que se buscava como paradigma da época para
explicação dos fenômenos naturais e sociais, um “verdadeiro direito”.373
Essa perspectiva racionalista entendia haver um direito histórico e
contingente repleto de leis velhas, complicadas e arbitrárias como sendo resultado de
um fortuito da história em que se encontrava imerso, devendo ser substituído por um
direito simples e unitário, que seria estabelecido por uma investigação da natureza do
homem a culminar em leis universais que lhe regulasse a conduta, pois essa seria a
verdadeira essência da realidade: uma composição harmônica e coligada cuja
371 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 81-82. 372 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 78. 373 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 65.
p. 133
composição natural e real também deveria se expressar no direito codificado, simples
e unitário.374
Esse modelo jurídico encontra paralelo no pensamento de Rousseau,
que considerou a civilização e os costumes causa de corrupção do homem no
“Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”, equivalendo a
multiplicidade de leis acumuladas pelo desenvolvimento histórico ao resultado dessa
corrupção das exigências universais humanas no âmbito legal e jurídico.375 A reflexão
pode ser ilustrada pelo pensamento do barão d’Holbach, defensor da disciplina
normativa soberana consonante aos ditames da razão que depurasse a sociedade de
seus erros e vícios e de Claude-Adrien Helvétius, que via na legislação o instrumento
para que os indivíduos se comportem virtuosamente na consecução do princípio de
matiz utilitarista da maior felicidade ao maior número de pessoas.376
O pensamento era reforçado pelo fato de não haver, na França
daquela época, um único ordenamento jurídico civil, penal e processual, mas direitos
locais territorialmente limitados e com tonalidades diversas, preponderando os
costumes locais (droit coutumier) na parte setentrional e o direito comum romano
(droit écrit) na parte meridional.377
Por outro lado, a França viva um estado de crise das finanças
públicas no final do século XVIII, após a Guerra dos Sete Anos, resultando na
proposta de convocação dos Estados Gerais por iniciativa legislativa, precedida de
pesquisas aprofundadas sobre as expectativas de reforma da sociedade civil (nobreza,
clero e terceiro estado), compilados nos Cahiers de doléance, que detectaram diversas
374 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 65-66, passim. 375 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 65. 376 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 285. 377 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 65.
p. 134
aspirações de revisão e aperfeiçoamento das instituições jurídicas do país,378 tais como
as críticas:
“ao forte poder discricionário dos tribunais soberanos de justiça, às justiças senhoriais exercidas rudemente por pessoas de confiança dos feudatários, à severidade excessiva das penas, ao sigilo das instruções penais, à multiplicidade dos costumes locais, à obscuridade das leis e da linguagem jurídica que faziam a fortuna de uma multidão de advogados vorazes, às compilações do sistema tributário, à multiplicidade de pesos e medidas, aos obstáculos interpostos ao comércio e à circulação de bens, às dimensões da mão-morta eclesiástica que engessava grande parte da propriedade fundiária, aos abusos dos oficiais do rei que dispunham arbitrariamente da liberdade dos indivíduos. E a muitas outras mazelas do ordenamento em vigor.”379
No aspecto jurídico, para dar ordem a esse estado de coisas, sob a
influência do racionalismo e do iluminismo, o movimento histórico e jurídico da
época culminou inserindo o princípio da codificação e a uniformidade na Constituição
de 1791 e na Constituição de 1793, depois influindo na proposta de instituição de júris
populares a partir do ideal de um direito simples, claro e acessível, o que permitiria
378 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 306. 379 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 306.
p. 135
que o processo judicial se concentrasse quase que exclusivamente na questão de
fato380 em primazia sobre uma questão jurídica clara e sem grandes dificuldades.381
Paralelamente a uma série de melhorias e retrocessos na
administração da Justiça na França entre os séculos XIII e XIV, a necessidade de
fundamentação das decisões ora era incentivada, ora suprimida, até que a discussão
fora retomada mediante severas críticas da opinião pública ao Judiciário francês;382
após duas reuniões dos Estados Gerais em que houve pedidos, primeiramente, da
nobreza e, depois, da burguesia para que as decisões fossem motivadas que não foram
atendidos e após diversos conflitos entre a magistratura, o Parlamento e a Coroa,
sobreveio a preocupação dos participantes da Revolução Francesa com a limitação
dos poderes da magistratura e com a manutenção de uma jurisprudência uniforme
pelos tribunais:383
380 Ao contrário das fortes limitações impostas para a interpretação da norma, é interessante notar a ampla liberdade atribuída na análise e fundamentação dos fatos, até por influência filosófica e científica da época (que embasava o conhecimento no sujeito cognoscente, sendo este o critério de certeza, tema que será exposto melhor em capítulos subsequentes) centrava-se na íntima convicção e tornava, portanto, essencial a questão da imparcialidade do julgador; mesmo não se tratando de um trabalho sobre direito probatório ou imparcialidade, atrela-se no aspecto do espaço para fundamentação de conceitos abertos que exigem valoração do intérprete, na medida em que se buscará controlar os vieses do julgador imparcial e a conformidade destes na fundamentação em correlação ao que se possa entender como fundamentação suficiente neste quesito: “No final do Antigo Regime estabeleceu-se uma hierarquia legal das provas diante da qual o juiz tinha de curvar-se, mas já no século XVIII, sob a influência dos livros de Beccaria, principalmente em direito penal, a prova dos fatos passará a depender cada vez mais da íntima convicção dos juízes. Este princípio triunfará na Revolução Francesa, a partir de 1791, e sua expressão mais eloquente encontra-se na advertência que devia ser lida aos jurados ao entrarem na sala de deliberações. ‘A lei não pede contas aos jurados dos meios pelos quais se convenceram, não lhes prescreve regras das quais deveriam fazer que dependessem particularmente a plenitude e a suficiência de uma prova, prescreve-lhes interrogar-se a si mesmos no silêncio e no recolhimento e buscar, na sinceridade de sua consciência, a impressão que deixaram em sua razão nas provas trazidas contra o réu e os meios de sua defesa. A lei não lhes diz: tereis por verdadeiro todo fato atestado por este ou aquele número de testemunhas, tão pouco lhes diz: Não considerareis como suficientemente estabelecida toda palavra a que não tiver sido constituída por tal processo, por tais peças, por tal número de testemunhas ou de indícios; a lei lhes faz apenas uma pergunta, que encerra toda a amplitude de seus deveres: Tendes íntima convicção?’ (Cf. art. 342, C. Instr. Crim.)” (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 37-38). 381 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 66-67. 382 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 105-106. 383 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 106-109.
p. 136
“por causa do papel desempenhado pelos magistrados no ancien régime, uma das principais providências tomadas pelos revolucionários foi ‘subjugar o Judiciário’. Aboliu-se a venalidade do cargo, os juízes passaram a ser eleitos por voto popular e exercer a função por mandatos curtos, instituiu-se o júri em todas as causas criminais, difundiram-se a conciliação e a arbitragem, vetou-se expressamente o poder dos tribunais de criar normas legais e impôs-se o dever de motivar as decisões judiciais. A motivação das decisões judiciais na França surgiu, portanto, como criação essencialmente ideológica e política, produzida no ambiente ideologicamente liberal da Revolução Francesa.”384
Também foram empreendidas reformas administrativas e do sistema
de justiça com propósitos semelhantes de conferir ordem ao estado de coisas anterior,
especialmente para a centralização decisional e uniformização da interpretação da lei
com a criação de um Tribunal Superior de Justiça, conferindo função nomofilática e
aumentando a certeza do direito.385
Já no aspecto político, a assembleia do Terceiro Estado, subvertendo
as bases do anterior equilíbrio das classes do Antigo Regime, proclamou-se nacional,
isto é, representante de toda a nação, a ela se reunindo as duas outras assembleias por
384 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 109-110. 385 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 309-311, passim. Conforme menciona o referido autor sobre as reformas da justiça: “Outro grande capítulo das reformas discutidas foi o da justiça. A oposição contra o arbítrio dos tribunais soberanos era uma das expressas com mais frequência nos Cahiers, como dissemos. E logo a Assembleia dedicou-se a projetar uma nova ordem judiciária. Abolidos os tribunais soberanos, a justiça é articulada de maneira uniforme em vários níveis, com base em um princípio fundamental, a eletividade dos juízes (...) A instituição do Tribunal Superior de Justiça, que retomava e generalizava uma função anteriormente exercida pelo Conseil du roi, tinha a função de garantir a uniformidade da interpretação da lei em todo o Estado: uma função nomofilática fundamental destinada a aumentar a certeza do direito e não a reexaminar o mérito do caso concreto. Também nesse terreno se apreende o efeito unificador da revolução, não mais questionado desde então: enquanto o Antigo Regime mantivera treze tribunais soberanos e inapeláveis em outras tantas regiões históricas, cada uma dotada de seus próprios costumes processuais e substanciais, a reforma de 1970 criou um único tribunal supremo competente para todo o território do Estado.” (SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 310-311)
p. 137
decreto do rei, dando início a um regime representativo que também resolveu abolir o
sistema feudal e senhorial e diversos privilégios da nobreza.386
Vale pontuar, contudo, em relação à fundamentação das decisões
judicias, que não veio procedida de um notável desenvolvimento político-filosófico e
doutrinário sobre sua necessidade, mas sobreveio por força da situação política e
histórica concreta no seio de uma ideologia de justiça e democracia, impregnada de
um “iluminismo eminentemente liberal que lutava para conter a arbitrariedade do
Estado e fazer prevalecer o direito criado pelo povo”387, em oposição às práticas
judiciais do Antigo Regime, bem como se apresentando um mecanismo efetivo de
controle de aplicação das leis num contexto de estímulo da legalidade e de controle
de legalidade pelo juízo de cassação:388
“deben considerarse como un resultado autónomo y original e la ideología democrática de la justicia que emerge en el ámbito de la Revolución misma. De hecho, mientras a la práctica judicial del Ancien Régime le era completamente ajeno la figura de la motivación, no tiene lugar la afirmación y la discusión del principio a examen en el ámbito del debate crítico que los philosophes condujeron, a partir de las primeras décadas del siglo, en torno a los principios y a los modos de administración de la justicia. Condorcet, en un escrito ocasional anterior a la Revolución, afirma la necesidad (para la sentencia penal) de la motivación, dado que el juez tiene, según el derecho natural, la responsabilidad moral del juicio y debe considerar, mediante la motivación, la forma en la que se ejerce el poder que la sociedad le ha otorgado. Esto demuestra cómo el principio de la obligatoriedad de motivación es congruente con la ideología de la justicia que constituye el sustrato de las reformas introducidas por el legislador revolucionario; el hecho de que se trate de un ejemplo aislado, y que ya se coloca en el ambiente cultural de la Revolución, pone en evidencia la
386 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 306-307. 387 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 112. 388 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 298-299.
p. 138
falta de percepción del problema por parte del iluminismo jurídico francés entendido en su conjunto.”389
O projeto que viria a ser aprovado definitivamente como o Code
Civil des Français (na segunda edição designado Code Napoléon – em trinta e quatro
leis separadas e depois compiladas), contudo, distanciou-se progressivamente das
inspirações originárias do iluminismo e do jusnaturalismo racionalista, atrelando-se à
experiência jurídica tradicional francesa do direito comum, em parte devido à
comissão instalada por Napoleão para a finalidade de elaboração do projeto contendo
juristas que criticaram o “abuso do espírito filosófico”, em especial Jean Etienne
Marie Portalis:390
“Portalis se concentra naquilo que, segundo ele, foi o abuso do espírito filosófico, isto é, a crítica indiscriminada conduzida pelo racionalismo contra toda a cultura passada, crítica que levou à destruição da tradição, ao ateísmo e ao materialismo e à parte mais nefasta da Revolução Francesa (o autor apresenta páginas de esconjuramento do Terror, que antecipam os temas contra-revolucionários que são caros aos escritores da Restauração). Essa obra (...) tem um certo significado na história das ideias, porque representa o ponto de passagem da filosofia iluminista da Revolução para aquela (de inspiração espiritualista-romântica) da Restauração: a atitude filosófica de Portalis pode ser considerada a expressão desse espiritualismo eclético que teve os seus maiores expoentes em Victor Cousin e no italiano Rosmini.”391
389 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 297-298. Em tradução livre: “devem ser considerados como um resultado autônomo e original da ideologia democrática da justiça que emerge no âmbito da própria Revolução. De fato, enquanto a figura de motivação era completamente alheia à prática judicial do Ancien Régime, não tem lugar a afirmação e a discussão do princípio em análise no âmbito do debate crítico conduzido pelos filósofos, a partir das primeiras décadas do século, em torno dos princípios e modos de administração da justiça. Condorcet, num escrito ocasional antes da Revolução, afirma a necessidade (para a sentença criminal) da motivação, uma vez que o juiz tem, de acordo com o direito natural, a responsabilidade moral do julgamento e deve considerar, através da motivação, a forma em que o poder que a sociedade lhe outorgou é exercido. Isso demonstra como o princípio da obrigatoriedade da motivação é congruente com a ideologia de justiça que constitui o substrato das reformas introduzidas pelo legislador revolucionário; o fato de que se trata de um exemplo isolado e que já está colocado no ambiente cultural da Revolução, põe em evidência a falta de percepção do problema por parte do iluminismo jurídico francês entendido em seu conjunto.” 390 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 68-71, passim. 391 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 71-72.
p. 139
A ideia era a autossuficiência da lei para aplicação do direito e,
concomitantemente à instauração do dever de motivar as decisões judiciais ocorrida
em 1790, possibilitando a fiscalização, instituiu-se o tribunal de cassação para garantir
e eficácia e observância da lei pelo Poder Judiciário e um recurso de caráter geral ao
Corpo legislativo, sempre que os tribunais entendessem necessário quer interpretar,
quer fazer uma nova lei, para os raros casos em que o texto legal não fosse claro o
bastante ou houvesse alguma dúvida sobre sua aplicação.392
Com todas as vicissitudes da aplicação prática de uma consulta ao
legislativo, o recurso de caráter geral era usado em demasia, provocando atraso
excessivo na prestação jurisdicional e comprometendo o bom andamento da justiça,
além de apresentar o inconveniente de violar a doutrina da separação de poderes na
medida em que o legislador era chamado a resolver o conflito em favor de uma das
partes mediante atuação política e com normas criadas para o caso específico sob
consulta.393
Desse modo, foi mantido no Código de Napoleão o recurso de caráter
especial dirigido ao tribunal de cassação e o recurso ao legislativo foi substituído por
uma disposição no art. 4° vedando que o juiz deixasse de julgar a demanda sob
alegação de “silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei”,394 trata-se da manutenção
de um dogma da completude pela exigência do non liquet e da confirmação de um
espaço para decisão além dos limites da expressão do texto legal.
Com isso, Portalis assumia a impossibilidade do legislador prever
todas as situações (por consequência, afastando o mito de sua onipotência e sua
capacidade omnicompreensiva, aceitando a necessidade de hetero-integração) e
defendia as vantagens de se permitir um espaço de interpretação, que seria preenchido
com técnicas de interpretação ou o recurso ao costume, equidade ou princípios de
392 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 23 e 29. 393 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 24. 394 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 24.
p. 140
direito natural, ainda que tal expediente também implicasse em violação da doutrina
da separação de poderes em alguma medida.395
Poder-se-ia sintetizar que o novo código em si não era um novo
começo absolutamente novo, mas sim uma síntese que não excluiria a experiência
jurídica pretérita ao menos caso não houvesse nova solução instituída na norma,396
sendo que o início de uma nova tradição jurídica deveu-se muito aos intérpretes e ao
contexto jurídico-filosófico em que estava inserido: “Se o Código de Napoleão foi
considerado o início absoluto de uma nova tradição jurídica, que sepulta
completamente a precedente, isto foi devido aos primeiros intérpretes e não aos
redatores do próprio Código.”397
Mesmo que o resultado final da codificação não tenha sido a absoluta
expressão da proposta do ideário jurídico-filosófico da época, isso não invalida a
forma como foi concebida e como permaneceu sendo pensado o direito, refletindo até
os dias de hoje: e da mesma forma que foram privilegiadas concepções que se tinham
por atrasadas ou, em parte, superadas no pensamento da época, nos tempos atuais
também coexistem tradições distintas que se impõe em conceitos e ideologias que
conformam o fenômeno complexo social, não se podendo substituir toda a globalidade
de entendimentos de uma só vez com o passar da história. A respeito:
“É preciso, inicialmente, perceber que a História não é registro linear de ações mas, e até principalmente, de conflitos e rupturas na ordem estabelecida. Um largo período sem conflitos e decisões terá poucos registros de cunho histórico. Mas a atividade humana busca, apesar de si, assegurar a conservação, a segurança e o desenvolvimento permanente da sociedade, isto é, busca reproduzir condições que extravasam a própria necessidade do agente, tais como: as relações sociais; a cultura e o modo de produção em que está inserido, até mesmo pelo uso de processos e instrumentos (meios de
395 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: Nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 24-25; BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 75-77. 396 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 73. 397 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 73.
p. 141
produção) característicos desse modo, como se essas rupturas e estados conflitivos inexistissem. Surge a grande ficção de um espírito absoluto capaz de conduzir a História a seu desígnio.”398
Não é demais pontuar, ainda, que as transformações dessa época das
codificações do direito público e do direito privado (especialmente o direito civil,
penal e processual) após a Revolução Francesa e o iluminismo “constituem uma chave
essencial não apenas para compreender a história política daquele período e do
posterior, mas também para apreender algumas das características determinantes dos
ordenamentos jurídicos da Europa contemporânea”399,400 - e, por consequência, a
brasileira atual que nos interessa nesse estudo.
Como afirma Cappelletti, ainda há uma tendência dos juízes a serem
contrários a evoluções que “tendam a pôr em evidência e exaltar o elemento
voluntarístico das suas decisões, colocando em perigo a mística da sua objetividade e
neutralidade”.401
Conclui-se, após tanto tempo de elaboração de novas concepções na
cultura jurídica, que não há total superação do paradigma da escola da exegese, até
hoje surtindo sua influência paradigmática em pressupostos inerentes à concepção do
Estado de Direito e da legitimidade advinda da soberania popular que também
refletem no que se pode entender como fundamentação suficiente de decisões judiciais
na cultura jurídica contemporânea.
398 PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 52-53. 399 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 305. 400 Como menciona Mario Losano: “Desde a época bizantina, através da Idade Média, do Renascimento e do Iluminismo, as relações entre os indivíduos foram dirigidas pelo corpus Justiniano, exaltado a ponto de se ver nele a própria razão colocada por escrito (ratio scripta). No século XIX, a compilação de Justiniano foi substituída por uma codificação baseada em princípios racionais do Iluminismo. (...) O debate sobre as codificações caracterizará todo o século XIX, remetendo-se a um novo texto sagrado: o Code Napoléon de 1804. Toda a cultura jurídica do século XIX é dominada pela exegese daquele código ou pela oposição à codificação.” (LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 58-59.) 401 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 35.
p. 142
Contudo, a experiência do movimento não obteve o sucesso desejado
e a pretensão do legislador revolucionário francês de excluir a interpretação do direito
pelo Poder Judiciário mostrou-se impossível de ser atingida, dado que “para se
compreender algo, é necessário interpretar esse algo à luz de determinados
parâmetros”, sendo inerente à sua atividade e podendo-se apenas indagar o grau de
esforço interpretativo necessário naquele contexto,402 o que se pode verificar mais
acentuadamente na existência de legislações que tragam conceitos vagos.
Ademais, por paradoxal que aparentemente possa soar, a tentativa de
exclusão da interpretação mencionada e a suposição de regulação ex ante de todas as
possibilidades concretas pelo texto da norma enseja o grave vício do subjetivismo (e
decisionismo) na aplicação da norma, cuja compreensão não precisa ser justificada
sob a alegação vazia de sua objetividade e da escolha tida por “evidente” na
interpretação: o que ocasiona, essencialmente, a impossibilidade de superação do
positivismo pela não compreensão do papel do sujeito na aplicação do direito,403
dentro de um quadro de pós-positivismo, o que será expressamente objeto de
aprofundamento, em momento oportuno.
Nesse contexto geral, resume Eros Grau:
“o pleno discernimento de que a norma é produzida pelo intérprete instala inefável transtorno na estrutura do pensamento liberal, em especial na teoria da separação dos Poderes. (...) O fato é que os arquétipos teóricos que constituem base e ponto de partida do raciocínio dos juristas já não são mais adequados à compreensão – que dirá à explicação – da realidade. A chamada separação dos Poderes é assumida como dogma. Quem a contesta é tido como herege. Especialmente os administrativistas e constitucionalistas de velha cepa
402 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 315. 403 Também nesse sentido: “Podemos dizer, inclusive que a grande parte das tentativas frustradas de superação do positivismo peca no mesmo ponto: a não superação do esquema Sujeito-Objeto kantiano e a não percepção de que a circularidade hermenêutica (que é expressamente adotada por Müller) é a condição de possibilidade para ultrapassar as barreiras do subjetivismo na aplicação do direito. Daí a importância do início do primeiro capítulo do trabalho; não há como compreender o Direito sem se
entender filosoficamente quem é o Sujeito que trabalha com o Direito.” (SCHMITZ, Leonard Ziesemer.
Fundamentação das Decisões Judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 67).
p. 143
continuam presos a ela, como se o tempo não houvesse passado. Como não costumam ler os clássicos no original, não se dão conta de que Montesquieu jamais cogitara de uma separação de Poderes, de que Montesquieu propõe a divisão com harmonia (autêntica interdependência entre eles), nada mais. Daí ser extremamente doloroso para esses senhores aceitar a distinção entre elaboração de textos normativos e construção/produção de normas jurídicas. Permanecem a escrever textos e livros sobre a interpretação do direito e da Constituição exercitando-se na superficialidade, repetindo o que já foi dito até a primeira metade do século passado, sem ousar um passo adiante”.404
Embora a soberania da lei seja o traço característico do Estado de
Direito e não tenha sido encontrada melhor forma de evitar abusos do Poder até os
dias de hoje, a velocidade com que caminha a sociedade contemporânea em suas
transformações e a superação da crença na tradução da vontade do povo pela vontade
da lei tem exigido a revisão da forma como se entende devam estar os julgadores
vinculados à lei, dado que a aplicação silogística e sem maiores hesitações é mais
viável em períodos históricos de estabilidade social,
“em que as sociedades evoluem lentamente. A lei é vista como um fim. Ao contrário, nas sociedades instáveis e que evoluem ou se modificam rapidamente, em movimentos que lhe alteram, às vezes profundamente, as feições, a aplicação dos textos de lei é, em regra, vista como um meio, e não como um fim”.405
Daí que as premissas do formalismo interpretativo, cuja expressão
mais relevante encontra-se na escola da exegese, de que o direito compreende uma
entidade autônoma e neutra em relação ao contexto histórico-cultural,406 cada vez
menos encontram ressonância na complexidade e velocidade de mudanças do
contexto histórico-cultural hodierno, em prejuízo do alcance de suas possibilidades
teóricas.
404 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.p . 45-46. 405 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 34-35. 406 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 37.
p. 144
Assim, a postura do julgador não é de mera descoberta ou revelação
dos termos legais quando conceitos vagos ou indeterminados são utilizados na
fundamentação, podendo-se sintetizar: “o que realmente importa neste momento é
constatar que o juiz que trabalha com conceitos jurídicos indeterminados e regras
abertas está muito longe daquele concebido para unicamente aplicar a lei”407 . É
necessário um outro tipo de elaboração teórica para tratar de conceitos jurídicos
indeterminados que está além dos pressupostos no legalismo iluminista e, em geral,
no formalismo interpretativo em seus estritos termos; assevera Taruffo:
“Por un lado, todavía era dominante la idea que se remontaba a los iluministas, según la cual, la estructura de la decisión judicial era de carácter silogístico, con la premisa mayor representada por la norma, la premisa menor representada por el hecho y la conclusión representada por la decisión final. No se entendía que, en el mejor de los casos, se trataba de una simplificación excesiva, ni que la teoría silogística no era – como nunca lo había sido – una descripción que en verdad reflejara la actuación del juez, sino una ideología del juez centrada en la pretendida certeza deductiva de la decisión. La relativa ingenuidad de estas posturas se explica, más allá del dogmatismo dominante en la doctrina procesalista y de la escasa familiaridad de los juristas con la filosofía y la teoría general del derecho, también por la situación de la literatura existente en los primeros años setenta sobre los temas relativos al razonamiento jurídico, en general, y la decisión judicial, en particular.”408
É essa falta de abordagem da questão dentro de um contexto de
filosofia do direito e de teoria geral do direito, ligados umbilicalmente ao direito
407 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 86. 408 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 10. Em tradução livre: “Por um lado, era ainda dominante a ideia que remontava aos Iluministas, segundo a qual a estrutura da decisão judicial era de caráter silogístico, com a premissa maior representada pela norma, a premissa menor representada pelo fato e a conclusão representado pela decisão final. Não se entendia que, na melhor das hipóteses, tratava-se de uma simplificação excessiva, nem que a teoria silogística não era - como nunca havia sido - uma descrição que refletia verdadeiramente a atuação do juiz, mas uma ideologia do juiz centrada na pretendida certeza dedutiva da decisão. A relativa ingenuidade destas posturas se explica, além do dogmatismo dominante na doutrina processualista e da baixa familiaridade dos juristas com a filosofia e a teoria geral do direito, também pela situação da literatura existente no início dos anos setenta sobre os temas relacionados ao raciocínio jurídico, em geral, e decisão judicial, em particular.”
p. 145
processual civil, e o caráter estritamente dogmático de estudos anteriores, como ora
dito por Taruffo, que torna o raciocínio jurídico e a decisão judicial objetos de uma
excessiva simplificação encarnada em conceitos tautológicos ou inexpressivos.
A aplicação do direito no processo judicial e a fundamentação da
decisão tornam-se expedientes mecanizados que se bastam em referências tomadas
por evidentes, que não capturam a real complexidade do fenômeno desde a coleta,
seleção e uso de conceitos e formulações ideacionais no cérebro do indivíduo até a
elaboração de um discurso racional que justifique as formulações empregadas na
decisão e os critérios valorativos para os juízos empreendidos nas escolhas
compossíveis tomadas nesse processo.
Uma investigação que vá em busca desses pontos propositadamente
obscurecidos fica relegada ao ostracismo na ciência processual, cuja sanha dogmática
e cupidez por uma certeza na resolução de conflitos gera uma resposta ideologizada
sobre a aplicação do direito e, consequentemente, sobre o que deve estar presente
numa decisão e o que deve ser estudado em termos de como motivar uma decisão
judicial, ambientados num paradigma de pureza metodológica dessa ciência e de
neutralidade sem que esses modelos efetivamente respondam às incertezas que
permeiam o sistema.
p. 146
6. Vertentes do formalismo interpretativo e do antiformalismo interpretativo
Há uma diversidade mais de correntes e movimentos na cultura
jurídica dentro do gênero que pode agrupá-los sob a nomenclatura de formalismo
interpretativo, porém, não cabe aqui esgotá-los ou mesmo empreender uma
abordagem exaustiva de cada um deles, por não se tratar de um trabalho exclusivo de
história do direito, buscando-se o enfoque de contextualização da influência dos
principais modos de compreensão acerca da interpretação do direito na Europa
continental e no Brasil, cujo ordenamento deita as origens de suas raízes no europeu
continental, dada a total influência do direito advindo das metrópoles na América do
Sul ante a rápida destruição ou assimilação das culturas primitivas dos povos
autóctones desde as primeiras décadas das descobertas, inibindo a estratificação de
sistemas jurídicos:409
“O estudo do direito sul-americano exige, assim, um conhecimento do direito ibérico (de fato, de 1581 a 1640 Espanha e Portugal foram Estados unificados por um mesmo soberano) e, simultaneamente, do direito promulgado especificamente para as Índias. (...) A assimilação do direito português no Brasil foi total e simultânea, porque Portugal se transferiu para o Brasil, eliminando assim a distinção entre colônia e metrópole. (...) Efetivamente, como já afirmava Bartolo de Sassoferrato, um reino anexado a outro é comparável comparável ao terreno anexado pela aluvião a um fundo, do qual segue o regime jurídico. (...) Essa complexa transferência jurídica da metrópole, unida à evolução jurídica local, formou o substrato do direito a reger os territórios tornados independentes no início do século XIX.”410
Assim, foge ao escopo do presente trabalho uma exposição histórico-
problemática que esgote as vertentes do formalismo e do antiformalismo
409 LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-
europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 213-214. 410 LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-
europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 252-254, passim.
p. 147
interpretativo ou que esgote a exposição sobre alguma dessas vertentes em particular,
pois o que se busca compreender é como determinadas teorias paradigmáticas
compreenderam a relação entre a fundamentação do ato judicial e a aplicação da lei.
Isto é, se aquela forma de uso do texto legal na decisão judicial é entendida como
suficiente para que o ato esteja fundamentado, o que adquire especial repercussão
quando se trata de usar conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais.
Adquire, então, especial relevância as formas de compreensão da
relação que o julgador deve ter com o texto da lei através dessas teorias para se aceitar
como suficientemente fundamentada a decisão, o que merece ser compreendido nesse
estudo, como dissemos, através dos paradigmas principais que se sucederam ao longo
do pensamento jurídico que detenham relevância quanto à forma de aplicação do
direito.
E aqui, assim como ao longo do trabalho, deve-se compreender
“paradigmas” como o conjunto de traços estabelecidos que permitam identificar um
determinado objeto ou explicação e não como conceitos teóricos formalizados num
sistema logicamente fechado (o que, também, seria de dificílima aplicação no direito),
daquela forma como propôs Thomas Kuhn emprestando o vocábulo de
Wittgenstein.411 A respeito da formalização:
“A codificação e a axiomatização não passam de produtos tardios e, no entender de Kuhn, de sintomas de decadência – pois as ciências atingem esse estágio de precisão somente quando se fecham num círculo e não se veem importunadas por concepções desvirtuadas. Acresce que os paradigmas são muito mais abrangentes do que aquelas noções que admitem formulação em enunciados: a um paradigma corresponde, no reino dos fenômenos, toda uma coleção de ideias intuitivas básicas – delimitando, em linhas amplas, quais são, para os pesquisadores, as perguntas que traduzem problemas
411 STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012. p. 819-820.
p. 148
relevantes e importantes e os métodos de solução que podem ser vistos como adequados.”412
O paradigma explica o fenômeno através de aspectos elementares
mais do que por uma delimitação formalizada de enunciados perfeitos, o que é
suscetível de acontecer no campo da matemática em que há possibilidade de fixar
campos de aplicação previamente e sem ambiguidade; por outro lado, o paradigma
“extravasa os limites do puramente teorético e se confunde com o que entendemos
verdadeiro ou com o que entendemos haver observado”.413
Assim, na concepção metodológica que adotamos, buscar-se-á
ressaltar as alterações e rupturas subjacentes a modelos que ensejam a revisão destes,
bem como os elementos subjacentes que procurem explicar cada aspecto estudado, o
que se sintoniza, também, à explicação de Márcio Pugliesi sobre a obra de Kuhn em
relação à teoria do Direito:
“As comunidades científicas compartilham matrizes disciplinares adquiridas através dos cursos de formação. Tais matrizes decorrem do aprendizado de exemplares, isto é, experimentos ou modelos típicos da teoria, pelo instruindo. Quando em atividade de pesquisa ou docência, em períodos de ciência normal, o cientista permanecerá no âmbito dessas matrizes disciplinares e responderá às questões formuladas a partir e por meio de recursos fornecidos pelos mesmos exemplares. Em épocas revolucionárias, apresentará as razões para abandono de todo o paradigma anterior e aceitação do novo. A comunidade científica progressivamente acatará os resultados, se pertinentes, e ter-se-á o predomínio da nova corrente paradigmática ou conjunto de matrizes disciplinares.”414
O resultado dessas influências ressoa em como o direito é aplicado
na prática e reflete diretamente em como se entende a justificação e fundamentação
dos atos jurisdicionais de juízes e tribunais como aceitável, para além das prescrições
412 STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 820. 413 STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 820 e 830. 414 PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 142.
p. 149
positivas dos códigos de processo, através da atividade do intérprete na aplicação do
direito e fundamentação do ato.
Isto é, a importância da descrição do paradigma, não é a
formalização sistemática em termos teóricos, mas a determinação das resultantes
pelos elementos da matriz de pensamento que é construída, permitindo a compreensão
da historicidade daqueles elementos e de seu resultado: como construiu-se uma
realidade pela configuração elaborada através dos elementos matriciais, também
menciona Ovídio Baptista:
“Veremos que o conceito de paradigma proposto por Thomas Kuhn inverte o sentido comum da historiografia moderna, que considera o passado como se as gerações que nos precederam sejam versões parciais e incompletas do que agora se descobre como a verdade definitiva. Segundo Barry Barnes, persiste a tendência a ver a ciência moderna como a configuração da própria realidade, tornando-se praticamente impossível lembrar que também ela é ‘nossa interpretação da realidade, algo que não existiu até o momento em que o construímos’ e que, acrescentamos nós, será igualmente incompleta, aos olhos das gerações que nos sucederem, num período histórico de longa duração”.415
No formalismo interpretativo, em geral, assim como mencionado
alhures a respeito da escola da exegese em particular, o processo de aplicação do
direito segue basicamente regras de lógica formal, apresentando a fundamentação da
sentença a conclusão de um silogismo, e a atividade do intérprete é apenas de
conhecimento do sentido da norma que corresponde ao texto,416 assim o direito pode
ser deduzido formalmente para o caso:
“Do formalismo advém a disposição em deduzir o Direito a partir de um sistema de conceitos e princípios, com a crença de que a correção material decorre do acerto formal dessa operação. Como consequência, tem-se que: (1°) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência perante a realidade social,
415 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia: O paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 17-18. 416 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 31.
p. 150
uma realidade a se, portanto. (2°) Não há lacunas no ordenamento jurídico, por ser sempre possível a subsunção lógica a princípios ou conceitos devidamente construídos. (3°) A atividade judicial de aplicação do Direito é ‘automática’ por ser escrava dessa subsunção silogística. (4°) O ensino jurídico torna-se um treino no manejo de conceitos desvinculados da realidade prática. (5°) O isolamento e a especialização técnica da elaboração jurídica, excluindo a consideração de outra ordem qualquer, terminam por favorecer a manutenção do status quo, protegendo-o dos embates ideológicos e sociais.”417
Na Alemanha, em oposição ao racionalismo iluminista 418 e sua
abstrativização dos fenômenos e do ser humano, visto em aspectos tidos por
universais, o positivismo surgiu ligado à Escola Histórica do Direito, que acentuava a
natureza histórica e contingencial constitutivas da realidade humana, compreendendo
o direito como realidade histórico-cultural de um povo que deveria ser conhecida
através das raízes históricas e da formação cultural específica de uma comunidade em
uma sistematização do que seria o “espírito do povo” (Volksgeist):419, 420, 421 “o objeto
417 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 40-41. 418 Como menciona Bobbio: “Note-se bem que ‘escola histórica’ e ‘positivismo jurídico’ não são a mesma coisa; contudo, a primeira preparou o segundo através de sua crítica radical do direito natural.” (BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 45). 419 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 37-39. 420 Note-se, contudo, que Volksgeist corresponde a uma abstração que reintroduz a especulação espiritual ou metafísica no discurso a partir de um “guia” do devir. Como pondera Márcio Pugliesi sobre a estratégia historicista de fundamentação do conhecimento, ela busca “tornar coerentes duas exigências fundamentais: a) o discurso deve referir-se ao em si da coisa e apreender os princípios estático e dinâmico subjacentes ao seu ser e seu devir; e b) a verdade do discurso deve defluir exclusivamente do jogo dos conceitos, constituindo, assim, a verdade do pensamento. A busca da união do ser e do devir no discurso será intentada, segundo diferentes vertentes, por Marx, Nietzsche, Dilthey e Heidegger, mediante a constituição de uma Metafísica que teve como fulcro, respectivamente, a práxis; a vontade de potência; a vida e o ser; e seu complemento, já no domínio lógico, por meio da dialética (Marx); da intuição simpática do vivido e da hermenêutica (Dilthey); da metáfora e da genealogia (Nietzsche). (...) Há, nesses autores, onipresente, o desejo de libertação da substância (ουσια) com suas entidades e essências fixas; a necessidade de superar o quadro da metafísica tradicional. Hegel afasta a metafísica tradicional das essências fixas ao recusar aquela da substância de Spinoza e mesmo aquelas entidades. Mas a metafísica se introduz sub-reptícia ou declaradamente, com a ontopraxiologia marxiana, com a filosofia de vida de Dilthey ou com a filosofia da vontade de Nietzsche.” (PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 156). 421 “Na verdade, Savigny introduz na ciência jurídica um paradigma das chamadas Geistwissenschaften, as ‘ciências do espírito’ ou ‘culturais’, tais como a história, a filologia e a teologia, de onde toma de empréstimo os cânones da hermenêutica. (...) Na conferência inaugural intitulada Ist die jurisprudenz ein Wissenschaft? (É o Direito uma ciência?) Jhering afirma a necessidade de afastamento do positivismo jurídico e também deixa claro sua diferenciação de Savigny a respeito de que a verdade histórica não está
p. 151
da ciência jurídica é pré-determinado pela historicidade do direito presente (e não
pelas abstracções do jusracionalismo ou pelos comandos dos legisladores
iluministas”.422
Nessa perspectiva, ligada ao historicismo, o direito não era
identificado com a lei e à lei não era dado o papel atribuído pelo legalismo iluminista
(cuja matriz estava no pensamento cartesiano)423, mas sim o de externar a “convicção
jurídica do povo” que constituía o direito originariamente para precisa-lo no que se
mostrasse muito indeterminado, mas apenas como consequência: assim, a ideia de um
código que regulamentasse todo o direito se mostraria uma “superafetação”.424
Em síntese, o historicismo está caracterizado pela consideração do
homem em sua individualidade e em todas as variedades que essa individualidade
comporta, norteada pelos seguintes pontos cardeais: a variedade e concretude dos
homens e da história, que se apresentam diversos e concretos, não como entes
abstratos; irracionalidade das forças históricas, que não são guiadas pela razão, mas
também e especialmente pelas pulsões, vontades e sentimentos dos homens, enfim,
elementos que não são racionais; a tragicidade ou pessimismo antropológico, por não
acreditar num motor racional como guia teleológico (à forma dos iluministas), sabe
possível que não necessariamente há de haver um mundo melhor no futuro com seu
destino traçado pelo progresso; e elogio do passado e valorização da tradição, das
instituições e dos costumes.425
Em consequência, a Escola histórica, com seu expoente em Friedrich
Carl von Savigny, pregava que o direito não era único, mas fruto da história, não
estabelecida desde o início da história no espírito do povo (Volksgeist), mas desenvolve-se no próprio processo histórico.” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 62 e 66, passim). 422 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 403. 423 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 45. 424 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 39. 425 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 48-50.
p. 152
podendo ser igual em todos os tempos e lugares, não sendo guiado pela razão, mas
pelo sentimento de justiça naquele momento histórico que se expressa nas formas
jurídicas e nas instituições já consagradas, devendo-se desconfiar das inovações
jurídicas e das novas instituições (inclusive ao projeto de codificação do direito
germânico) e recepcionar o antigo direito germânico e romano em seus costumes e
tradições, por nascerem da cultura e do povo, exprimindo seu espírito (Volksgeist).426
A despeito dessa constituição histórica do direito, a Escola histórica
ambicionava uma natureza dogmática e sistemática em sua aplicação, que o tornasse
operativo (para Savigny a ciência do direito era histórica e também sistemático-
filosófica), implicando-se num paradoxo de sistematização científica formalizada que
não é de todo compatível com a concretude histórica em suas diversas
contingências:427
“Se o direito positivo é sempre Volksrecht, sendo a lei expressão do direito do povo já existente, e o direito, para ser ciência, deveria ser formalmente sistematizado, a consequência do ponto de vista da teoria jurídica é que o direito é um dado pronto, preexistente, que deve ser descoberto em determinado contexto cultural. O direito poderia ser encontrado olhando-se para a história e para a tradição do povo, nessa história constitutivamente fundado, mas, definitivamente, objeto de conhecimento. Aí está a raiz de origem positivista do direito na Alemanha, pois a Escola Histórica do Direito compreendia que o direito era objeto suscetível de conhecimento. Isso significa que, embora essa corrente do pensamento jurídico não identificasse o direito com a lei, por via diversa da Escola da Exegese acabou pressupondo igualmente uma teoria da interpretação que se pode dizer cognitivista”428
Essa visão comporta uma atividade de reconhecimento de um
sentido preexistente na constituição histórica de um povo e sistematizado
426 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 51-52. 427 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 39-40. 428 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 40.
p. 153
doutrinariamente – uma combinação de metodologias histórica e sistemática –,429
através dos métodos propostos por Savigny (gramatical, histórico, lógico e
sistemático),430 rejeitando-se a interpretação conforme a finalidade ou razão de ser da
lei, dado que a teleologia para ampliar ou restringi-la seria um aposto artificial ao
conteúdo da norma criado pelo intérprete.431, 432
Contudo, já existe uma maior abertura para que dados extra-legais,
como os culturais e históricos, ingressem no momento de aplicação da norma e sejam
utilizados como fundamentação válida da decisão judicial, ainda que por integrar o
que seria o arcabouço constitutivo da norma reconhecida em sua positivação, o que,
no caso de conceitos vagos ou indeterminados, passa a conferir uma outra espécie de
visão sobre o problema, intermediável por elementos não textuais da lei ou
codificados.
Assim, menciona Willis Santiago Guerra Filho que a Escola
Histórica “acentua a inserção histórica e social do Direito, que determina a busca do
jurídico onde ele se dê concretamente, ou seja, na experiência jurídica dos povos.”433
Pode-se, em geral, estabelecer uma correlação entre vieses formalistas e vertentes que
abraçam o positivismo científico e evitam o sincretismo metodológico ou o aporto
429 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. . 18. 430 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 40. 431 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 11-12. 432 Houve, ainda uma fase posterior na obra de Savigny em que admite a teleologia: “em favor de uma consideração mais vigorosa do fim da lei e do nexo de significado fornecidas pela global intuição do instituto. Não esclarece, no entanto, como é possível reconduzir de novo a regra jurídica particular surgida por ‘abstracção’ à unidade de sentido do instituto jurídico correspondente, e tirar desta unidade quaisquer determinações, quando tal unidade só se oferece de modo intuitivo, não sendo acessível ao pensamento conceptual. Falta de clareza que não deve ter pesado pouco no facto de as sugestões metodológicas da obra de maturidade não terem merecido a atenção que se poderia esperar da grande influência que gozou Savigny. Pois o que veio a influir mais tarde foi, além da perspectiva histórica, a ideia de sistema como sistema ‘científico’ construído a partir dos conceitos jurídicos – ideia que serviu de ponto de arranque para a ‘Jurisprudência dos conceitos’, em que não deve incluir-se, ou então apenas com reservas, o nome do próprio Savigny.” (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 19) 433 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 39.
p. 154
metodológico de outras ciências, isto é, que descorrelacionam do direito seu aspecto
de concreção histórico-social:
“Alinham-se entre as doutrinas que enfatizam o aspecto da conceituação abstrata: ainda no século XIX, a ‘jurisprudência dos conceitos’ (Puchta, Windscheid, primeira doutrina de Jhering, Binding, Wach, Kohler, etc.), a Escola Exegética Francesa e a Escola Analítica Inglesa (Benthan, Austin); já no século XX, a Teoria Pura do Direito, a Teoria Fenomenológica do Direito (Nicolai Hartmann, Reinach, Gerhard Husserl etc.), o neopositivismo analítico em suas diversas versões – inglesa (H. L. A. Hart), italiana (Scarpelli), argentina (Vernengo) etc. Dentre os que enfatizam o aspecto da concreção histórico-social, temos a ‘jurisprudência dos interesses’ (concepção tardia de Jhering, Philip Heck, Stoll, Müller-Erzbach), o Movimento do Direito Livre (Oskar von Bülow, Eugen Ehrlich, Kantorowicz), a Escola de Baden (Windelband, Lask, Rickert, Radbruch), o neo-hegelianismo de Julius Binder e Karl Larenz, a Teoria Sociológica de Duguit e Gurvich, a Escola de Upsala (Hëgerström, Lundstedt, Alf Ross), a Tópica de Viehweg e a concepção pragmática do realismo norte-americano, cuja posição radical ao sistematismo é expressa na célebre frase do Juiz Holmes: ‘The life of the law has not been logic: it has been experience’.”434
Embora não seja o propósito esgotar tal miríade, importante
mencionar outras vertentes que foram desenvolvidas no quadro referencial que
propusemos. Seguindo a orientação do programa de Savigny, Puchta propôs uma
ciência jurídica dos conceitos ou jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz),
baseada na dedução de normas e construção do Direito através de uma lógica imanente
ao sistema jurídico,435 como uma “pirâmide de conceitos” concatenadas num nexo
orgânico pelo espírito do povo, mas cuja matriz do pensamento está no
conceptualismo formal e na lógica formal por meio do que se denominou “genealogia
dos conceitos”.436
434 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 39-40. 435 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 40 e 63; LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 18-19. 436 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 457; LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.
p. 155
Assim, a “jurisprudência dos conceitos” 437 elege à filosofia do
Direito como definidora do conteúdo supremo ou vértice ético da pirâmide, a partir
do qual as proposições jurídicas subalternas seriam construídas dedutivamente em
estratos inferiores cuja “substância ética do conceito-chave se reduz
progressivamente” até que se tornem irreconhecíveis nas planuras do direito
positivo.438
A definição do que possa ser direito e, portanto, do que pode ser
aceito como fundamento de decisão, guarda referência com o que se possa subordinar
a esse conceito fundamental, de modo que a Begriffsjurisprudenz não prescinde de
um fundamento suprapositivo, em boa medida, as ideias éticas do idealismo alemão e
de Kant estão presentes nas concatenações desse sistema, ainda que bastante
sublimadas e esmaecidas.439
Essas concepções de ciência do direito e de ideologia jurídica
representaram uma tomada de posição formalista, ainda que com algumas atenuações
ou relativização em certos casos, em que os significados normativos devem ser
descobertos, seja na obra do legislador, seja numa estrutura inerente ao sistema, na
ausência de codificações, desenvolvendo a aplicação do direito por elementos
exclusivamente jurídicos,440 o que marcou profundamente o que se entende hoje como
aplicação do direito, como menciona Mario Losano:
“Toda a cultura jurídica do século XIX é dominada pela exegese daquele código ou pela oposição à codificação. Na Alemanha, a polêmica da Escola histórica do direito contra a
Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 23-25; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 63; 437 O termo “jurisprudência” aqui refere-se à “ciência do direito” na tradução alemã, como menciona Willis Santiago Guerra Filho: “O século XIX traz à baila a chamada Escola Histórica, a qual, conforme já aludimos, emprega pela vez a expressão ‘ciência do direito’ (Rechtswissenschaft, Jurisprudenz).” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 40.) 438 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 25-26. 439 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 26-28. 440MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 42; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 40.
p. 156
codificação surge precisamente do fato de que os Estados germânicos, pátria da reação, não podiam aceitar uma codificação do tipo francês, expressão jurídica da nova ordem social nascida da Revolução Francesa de 1789. Contudo, todo o debate se concluiu com a entrada em vigor do código civil alemão de 1900, tardia consolidação jurídica de uma tardia revolução burguesa.”441
A ideia central do positivismo científico reside na cisão de elementos
de ordem política, jurídica, econômica ou outra qualquer e a utilização exclusiva de
elementos jurídicos na aplicação do Direito, cuja escorreição estaria garantida pelo
acerto formal das deduções lógicas operadas no sistema, remontando à rigorosa
diferenciação trazida por Kant entre a ordem moral e a ordem jurídica.442, 443
Essa distinção kantiana remonta à coercitividade da ordem jurídica
e à liberdade interna inerente ao ato moral, que só ocorre mediante adesão do sujeito
livre de coação, concluindo-se que o uso de elementos não estritamente jurídicos seria
incompatível com essa postura de cientificidade proposta no positivismo e ainda
presente em alguns paradigmas do ideário jurídico:
“a coação é perfeitamente compatível com a noção kantiana do direito como fundamento da liberdade externa. O que distingue o direito da moral é precisamente o fato, que enquanto o primeiro é coercitivo, a segunda não o é; esta relação diversa do direito e da moral com a coerção deriva da natureza diversa do ato jurídico e do ato moral; o ato jurídico consiste puramente na conformação exterior do sujeito à norma e, assim, o fato de tal conformação ser obtida mediante a força não nega a juridicidade do ato; o ato moral consiste, ao
441 LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-
europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 59. 442 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 40. 443 Para Kant o ato de observância da regra moral é inerentemente livre, somente o indivíduo livre e sem qualquer imposição externa pode cumprir o dever moral – voluntariamente (como escolha e fundamento) –, enquanto o direito está marcado pelo caráter coercitivo, em oposição, no que menciona o autor: “Em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade são denominadas leis morais. Enquanto dirigidas meramente a ações externas e à sua conformidade à lei, são chamadas de leis jurídicas; porém, se adicionalmente requerem que elas próprias (as leis) sejam os fundamentos determinantes das ações, são leis éticas e, então, diz-se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade de uma ação, e a conformidade com as leis éticas é sua moralidade. A liberdade à qual as primeiras leis se referem só pode ser liberdade no uso externo da escolha, mas a liberdade à qual as últimas se referem é liberdade tanto no uso externo como no interno da escolha, porquanto é determinada por leis da razão.” (KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003. p. 63-64)
p. 157
contrário, na adesão à norma por respeito à própria norma, não podendo, pois, ser obtido mediante a força, porque esta não obtém a adesão interna necessária para a moralidade do ato. Ou, se quisermos considerar o problema não mais do ponto de vista da natureza do ato mas do ponto de vista da natureza da norma, poderíamos dizer: a coação se concilia com a norma jurídica porque esta é heterônoma, mas não com a norma moral, porque esta é autônoma.”444
Em contraposição, a postura antiformalista pressupõe que o
conteúdo das normas não será revelado, conhecido ou descoberto num sentido
predeterminado e intrínseco ao texto normativo, sendo o texto e a norma dissociáveis
e a atividade do intérprete criativa do direito e envolvendo um ato de vontade, não
apenas um ato de conhecimento.445
Essa postura, embora tenha apresentado variadas matizes, permite a
compreensão da norma como resultado da atividade do intérprete, como
interpretazione-prodotto, e a desvinculação entre texto e norma mediante a
equivocidade dos enunciados linguísticos, a atividade mediativa do aplicador e
escolhas e valorações entre possibilidades de sentidos linguísticos para sua
definição,446 como menciona Mitidiero:
“A teoria da norma experimentou significativo enriquecimento na passagem dos Oitocentos para os Novecentos, cuja principal consequência está no aumento da dificuldade para sua adequada compreensão e aplicação em juízo. A unidade semântica antes pressuposta entre texto, norma e regra cedeu espaço para uma dissociação entre texto e norma, de um lado, e princípios, regras e postulados, de outro. A teoria cognitivista deu lugar à teoria lógico-argumentativa da interpretação. O isolamento das atividades de legislação e jurisdição foi rompido a favor de uma relação de colaboração entre essas duas funções estatais.”447
444 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p. 152. 445 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 46. 446 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 56. 447 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 56.
p. 158
À medida em que o direito e a codificação foram se desenvolvendo
e ganhando autonomia, aumentava-se a distância em relação à realidade sócio-cultural
e econômica, criando um ambiente propício para as concepções antiformalistas nos
últimos dois séculos,448 nesse quadro foram desenvolvidas propostas variadas que
buscavam fundamento das decisões diretamente numa interpretação dessa realidade
sócio-cultural e econômica subjacente, muitas vezes com viés pragmático e, por
vezes, até com desconsideração do sistema normativo e do raciocínio lógico-formal
em suas vertentes mais extremadas. Nesse sentido, sintetiza Mauro Cappelletti:
“Em todas as suas expressões, o formalismo tendia a acentuar o elemento da lógica pura e mecânica no processo jurisdicional, ignorando ou encobrindo, ao contrário, o elemento voluntarístico, discricional, da escolha. Típico de todas essas revoltas – representadas por várias escolas de pensamento, como a sociological jurisprudence e o legal realism nos Estados Unidos, a Interessenjurisprudenz e a Freirechtsschulle na Alemanha e o método da libre recherche scientifique de François Gény e de seus seguidores em França – foi, ao contrário, o reconhecimento do caráter fictício da concepção da interpretação, de tradição justiniana e montesquiniana, como atividade puramente cognoscitiva e mecânica e, assim, do juiz como mera e passiva ‘inanimada boca da lei’. Sublinharam essas escolas de pensamento a ilusão da ideia de que o juiz se encontra na posição de ‘declarar’ o direito de maneira não criativa, apenas com os instrumentos da lógica dedutiva, sem envolver, assim, em tal declaração a sua valoração pessoal. E aplicaram tal crítica a todas as formas de direito, tanto ao direito consuetudinário quanto ao case law, tanto ao direito legislativo quanto às condições sistemáticas.”449
Uma das correntes de reação ao formalismo é retratada pelo realismo
jurídico, que grassou tanto nos Estados Unidos como na Europa, especialmente nos
países escandinavos no velho continente com seus expoentes em Axel Hägerström e
Karl Olivecrona e Alf Ross, postulava a primazia do conhecimento através da
realidade empírica e identificava a essência da juridicidade da norma na sanção e a
448 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 46. 449 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 32-33.
p. 159
essência da normatividade jurídica no fato de serem efetivamente observadas e
cumpridas.450
Nesse diapasão, são as regras de comportamento e o comportamento
efetivo que evidenciam a força vinculante das normas jurídicas e sua validade e, para
Alf Ross, com o acréscimo da expectativa dos indivíduos sobre aquilo que decidirão
os juízes, aceitando plenamente que as decisões judiciais serão influenciadas pelos
valores subjetivos e pela ideologia dos juízes, cabendo à doutrina prever o
comportamento judicial futuro e as linhas jurisprudenciais estabelecidas e por se
estabelecer.451 Como menciona Teresa Arruda Alvim: “Que a sentença não é um
silogismo tem sido afirmado pelos maiores expoentes da escola realista, tanto
americana como escandinava.”452
O realismo americano também se desenvolveu num movimento de
pensamento de forte reação ao formalismo, sobretudo ao longo do século XX,
identificável a partir de considerações comuns, de negações e ceticismo a problemas
típicos, especialmente contra a possibilidade do direito ser aplicado por métodos de
antemão conhecidos pelos juristas e que levariam à descoberta da norma jurídica
aplicável sem o recurso a elementos e opiniões extralegais.453
Dentro desse movimento nos Estados Unidos, chegou-se a colocar
as decisões dos juízes no centro do direito e da realidade jurídica, despidas de qualquer
objetividade, apego às regras legais e impassíveis de controle;454 também cultivou-se
a diferenciação entre direito teórico e direito efetivo ou aplicado (law in action) e entre
paper rules e real rules (as verdadeiras leis), bem como sustentou-se a identificação
do direito com cada decisão concreta, vista como central na formação do common law,
450 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 453. 451 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 453. 452 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 190. 453 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 49-51. 454 SCHIOPPA, Antonio Padoa. História do Direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea. Tradução Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 453.
p. 160
e com o que as cortes fazem de fato (what the courts will do in fact) ou ao que os
operadores do direito fazem: “citando Llewellyn ‘What these officials [of the law] do
about disputes is, to my mind, the law itself’.”455
Por outro lado, na vertente de interpretação e de aplicação do direito
nas decisões judiciais, esse movimento salientou a indeterminação normativa e para a
importância das considerações que estão por detrás da linha formal de justificação,
especialmente através do emprego de conceitos dogmáticos gerais e abstratos cujas
proposições linguísticas tornam a premissa normativa sempre indeterminada.456
O enfoque da indeterminação normativa inerente a esses conceitos
dogmáticos gerais e abstratizados é um campo que passou a ganhar cada vez mais
destaque na legislação e no sistema jurídico,457 mas sem que isso importasse em
idêntico enfoque na fundamentação da decisão judicial no domínio teórico processual.
Michele Taruffo, com base em obra de Richard Wasserstrom,
menciona a possibilidade de distinção entre context of discovery e context of
justification, sendo o último mais afeto à fundamentação no âmbito processual da
decisão judicial, contra o que já constam conhecidas críticas, especialmente em face
da ausência de uma epistemologia que apoie a distinção em termos gerais e na
ausência de “diferencias sustanciales y que, por ello, esa distinción no podía
mantenerse”; o que também é rechaçado com argumentos de ordem prática forense.458
Embora se indique que há considerações “por detrás” de uma linha
formal de justificação, isso não pode ser compreendido no sentido do afastamento da
relevância desse aspecto na motivação através da distinção mencionada no context of
455 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 51 e 55-56. Em tradução livre: “o que esses oficiais da lei fazem a respeito dos conflitos é, na minha concepção, a lei em si mesma”. 456 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 52-56, passim. 457 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 2. 458 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 14-16. Em tradução livre: “diferenças substanciais que, por isso, essa distinção não poderia se manter”
p. 161
jusitification; primeiramente porque não são todos os aspectos da fundamentação que
detém um caráter estritamente lógico e, no que interesse ao presente trabalho, é
justamente os elementos que não possuem esse caráter que devem ser melhor
estudados e compreendidos na doutrina e, assim, indicados na fundamentação de
decisões.
Por uma segunda razão, porque ainda que se admita diferença459, 460
entre os contextos de descoberta e fundamentação e se admita que decidir é diverso
de arrazoar ou motivar, a distinção proposta em Taruffo e Wasserstrom não cuida de
delimitar com precisão quais componentes do context of discovery não devem e não
precisam se encontrar presentes no context of justification e quais outros devem estar.
É razoável que o primeiro se reflita no segundo, em alguma medida,
pois fossem absolutamente independentes, não precisaria um se seguir ao outro, ou
seja, a despeito de não haver identidade entre ambos, uma parte da atividade do
julgador realizada no context of discovery se reflete e está expressa no context of
justification, a medida dessa repercussão não é precisada, porém.
Note-se que, tanto o positivismo legalista como o realismo norte-
americano, como modelos teóricos diametralmente opostos a respeito da criatividade
na interpretação, possuem consequências semelhantes quando trazidos para a questão
da fundamentação da decisão judicial em relação a conceitos vagos ou
459 E Taruffo expressamente adota essa diferença, não reconhecendo identidade entre ambos, mas afirmando que há certos tipos de nexo entre eles (TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 146-147). 460 Embora tenha se tratado a fundamentação e a motivação como sinônimos (nesse sentido: ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 179 e 191), o que é mais usual na doutrina, alguns autores fazem uma distinção de nomenclatura entre fundamentação e motivação aduzindo que esta última representa o que motiva a decisão do magistrado e que a fundamentação representa as razões que são apresentadas, mas não necessariamente as que ensejaram a decisão, isto é, revelando-se um paralelo com o contexto decisório e o contexto de fundamentação: “Quando o magistrado decide, ele o faz em razão de determinados motivos que, no mundo ideal, devem coincidir com os fundamentos que ele transcreve em sua decisão. Mas nem sempre isso acontece. (...). Pode-se dizer, portanto, que a motivação da sentença diz respeito às razões internas que levam o magistrado a proferir a decisão de determinada forma; enquanto a fundamentação da sentença são as razões lançadas na peça processual elaborada, com a finalidade de justificar o sentido dessa mesma decisão.” (OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 392-393).
p. 162
indeterminados: isto é, a ausência de fundamentação real e suficiente para o caso
concreto, um porque supõe que a indicação da disposição legal que contém o conceito
vago ou indeterminado é suficiente para a fundamentação da decisão e o outro porque
entende que a escolha entre significados é livre e soberana, não sendo possível ou
adequada uma exposição racional da justificação desses critérios na fundamentação:
“O verdadeiro problema, portanto, não é a clara oposição, na realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários.”461
Note-se que em ambos os casos, nos espectros mais extremos do
formalismo e do antiformalismo, o context of discovery ou é suprimido ou é
desconsiderado como inacessível ou desimportante no context of justification,
prejudicando as possibilidades tanto de teorização como de controle. Em outras
palavras, Mitidiero, em parte com base em preleções de Gino Gorla, faz semelhante
exposição:
“Imaginar que o processo interpretativo não implica valorações e escolhas do intérprete serve apenas para deixar sem qualquer teorização e longe da possibilidade de qualquer controle jurídico e social as inúmeras decisões tomadas ao longo da interpretação. Vale dizer: serve apenas como um álibi teórico. É por essa razão que a doutrina observa que o formalismo interpretativo oitocentista – notadamente da Ecole de l’Exégèse e da Begriffsjurisprudenz – deixa o juiz tão livre para decidir quanto o antiformalismo na sua feição mais radical ligada ao movimento do direito livre – notadamente da libre recherche scientifique e da Freirechtsbewegung – na medida em que ambos não viabilizam a tematização das valorações e escolhas inerentes ao processo interpretativo.”462
E, nesse sentido, acredita-se que o modelo de processo civil que
impõe o dever de fundamentação das decisões judiciais como o nosso, somente pode
461 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 1999. p. 21. 462 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da
jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 83.
p. 163
ser compreendido devidamente quando parte significativa do que ocorre no contexto
de descoberta quanto às cláusulas gerais e aos conceitos jurídicos indeterminados está
efetivamente expresso na fundamentação, tanto porque nela já se reflete (ainda que
implicitamente em outras correntes de pensamento) como para que a decisão
encontre-se bem fundamentada, especificando as genuínas relações travadas quando
da incidência jurídica de conceitos vagos ou indeterminados.
Outra das correntes do antiformalismo foi a escola do direito livre,
representada na Libre Recherche Scientifique e na Interessenjurisprudenz, com
proposta metodológica combativa aos postulados do positivismo científico, entendia
o direito não como obra imposta pelo legislador, mas reconhecendo-o em fontes extra-
legais, para além do legislado ou mesmo independentemente do legislado, como as
construções consuetudinárias, as decisões judiciais e a elaboração dos juristas.463 As
importantes consequências eram a negação do direito como um sistema fechado, não
se podendo supor a solução dos casos com referência a uma norma clara e a permissão
à atividade criativa na decisão judicial, guiada pela realidade social, pela razão prática
e por uma intuição do justo.464
A Escola do direito livre também se apresentou como reação tanto
contra o positivismo legal como contra a jurisprudência conceitual sustentada no
positivismo científico, postulando que a decisão do juiz não só é legítima como é
mesmo desejável que se afaste da lei que julgar injusta ou inadequada ao caso,
devendo ser norteada antes pela verdade e pela justiça, mas não identificavam
arbitrariedade nesse proceder: de certa forma, a função do Judiciário e o fundamento
de suas decisões passam por uma reformulação para que criem conformação social ao
bem comum, um social engeneering a partir da justiça concreta no caso individual –
463 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 47. 464 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 47-48.
p. 164
certo é que essas “ideias continuaram a influenciar, confessada ou inconfessadamente,
a consciência social”.465
O ponto de partida para a “jurisprudência dos interesses” é a virada
metodológica de Jhering em sua fase tardia, voltada para uma aplicação pragmática
do Direito e com a solução dos problemas a que as normas se destinam a resolver,
mais do que com a manutenção dogmática do sistema normativo.466
Em sua obra “Espírito do Direito Romano”, o autor abandona o
procedimento analítico em favor de uma economia jurídica cujo enfoque é a solução
dos casos concretos apresentados na vida moderna, mesma obra em que apresenta sua
conhecida definição de direito jurídico como “interesse juridicamente protegido”.467
Nessa nova fase confere-se primazia aos aspectos concretos de interesses em conflito
na sociedade a serem juridicamente tratados e harmonizados em detrimento da
tradicional postura do idealismo alemão:
“A situação em que se encontrava a sociedade na época era legitimada ideologicamente, na instância jurídica, por dogmas como o da ‘autonomia da vontade’. Jhering vai, então, na obra A finalidade no direito, especialmente em seu primeiro volume, apresentar sua ‘leitura econômica’ do Direito e da ordem social como um todo, procurando substituir o papel preponderante até aquele momento atribuído, em teoria do direito, à ‘vontade’ e à ideia que lhe é correlata, do ‘arbítrio individual’, pelas figuras do ‘interesse’ e da ‘coação social’ para satisfazê-lo. Nesse deslocamento do eixo central da teoria do direito da vontade para o interesse, Jhering recorre ao apoio, por exemplo, de A. Schopenhauer, de quem cita a frase ‘querer sem interesse é querer sem motivo; é um efeito sem causa’. Aliás, a influência desse filósofo parece ser mais presente no pensamento tardio de Jhering do que até o momento se teria detectado, já que em ambos se nota a preocupação com o homem concreto, dotado de condicionamentos outros, até mais fortes, que a racionalidade. ‘Se a vontade fosse uma potência
465 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 670-673. 466 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 63; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 75. 467 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 66.
p. 165
lógica deveria ceder à coação da ideia abstrata; mas é um ser real que se não deixa mover por simples deduções lógicas. Só atua sob o influxo de uma pressão real. Para a vontade humana essa pressão é o interesse.’”468
Nesse novo paradigma para o Direito e para sua interpretação e
aplicação, com orientação teleológica e recurso a elementos extranormativos há uma
série de implicações relevantes, como menciona Larenz: o deslocamento do eixo do
problema do legislador (como pessoa) para a sociedade, que preside os interesses
causais determinantes; a atribuição de uma relação entre o conteúdo da norma jurídica
com um fim determinado, de interesse da sociedade; e, por fim, apenas o que uma
determinada sociedade historicamente dada entende como interesse relevante às suas
necessidades vitais e seu bem-estar é objetivado nas normas, de forma essencialmente
mutável e sem que exista uma hierarquização objetiva e necessária ou uma referência
supra-positiva para valoração dos interesses contrastantes.469
Esse primado deixa de lado a formalização de um sistema fechado
de conceitos jurídicos para se dedicar a uma postura prática do Direito, cujo desiderato
é formular investigações sobre a vida e as valorações da vida para “facilitar a função
do juiz” e nessas investigações preparar a “decisão objetivamente adequada”;
propondo-se que sejam feitas mediante o conhecimento histórico das forças sociais
ou interesses “causais” para a elaboração das leis numa “teoria dos interesses” e
propondo-se a investigação histórica dos interesses como método de interpretação das
leis:470
“A Jurisprudência dos interesses – e esta é a sua afirmação teorética fundamental – considera o Direito como ‘tutela de interesses’. Significa isto que os preceitos legislativos – que também para Heck constituem essencialmente o Direito – ‘não visam apenas delimitar interesses, mas são, em si próprios, produtos de interesses’ (...) As leis são as resultantes dos interesses de ordem material, nacional, religiosa e ética, que,
468 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 67-68. 469 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 60-62. 470 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 64-67, passim.
p. 166
em cada comunidade jurídica, se contrapõem uns aos outros e lutam pelo seu reconhecimento.”471, 472, 473
Conforme esclarecem Larenz e Wieacker, essa vertente adquiriu
corpo e relevância como tendência metodológica que objetiva fundamentalmente a
aplicação judicial da lei ou “achamento da solução jurídica” (Rechtsfindung), dentro
de um contexto de descoberta da realidade pelo naturalismo jurídico, primeiramente
com a extração de valores sociais subjacentes, depois abertamente como “pensamento
jurídico causal”, como reflexo de uma época e civilização que passa a pensar em
termos econômicos: bens ideais (liberdade, segurança, justiça, etc.) e bens materiais
são colocados em confronto e ordenados através de juízos de valor.474
Quando se trata do preenchimento de termos vagos em conceitos
jurídicos indeterminados ou em cláusulas gerais, esse modelo operativo de campo
vetorial de interesses se apresenta mais consentâneo com a pluralidade e com a
possibilidade de narrativas alternativas de uma realidade que se encontra
hodiernamente, tornando de especial pertinência uma reflexão acerca da interpretação
que leve em conta essas naturais disparidades, como observa Teresa Arruda Alvim:
471 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 65. 472 A abordagem a partir de interesses apresenta-se mais útil à construção de um modelo operativo, podendo-se compreender o resultado de uma alteração normativa dentro de um campo vetorial de interesses dentro de uma forma de modelagem matemática, formando nova homeostase; nesse aspecto, Márcio Pugliesi apresenta sinteticamente a conclusão: “A soma vetorial das ações humanas na sociedade acaba por compor as alterações das situações coletivas da sociedade e, como são compostas dialeticamente, provocarão mudanças no sistema que levarão a novos pontos de homeostase social.”
(PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 97). 473 Atualizando esse olhar para o papel da jurisdicional constitucional no século XXI: “O processo democrático se apresenta como uma competição entre grupos, na qual derrotas e vitórias momentâneas precisam ser aceitas, já que fazem parte do ‘jogo’. Contudo, não é aceitável que os competidores sejam arbitrariamente excluídos ou que nunca possam participar do próprio ‘jogo’. Em análogas situações, que supõem o silenciar de uma parcela dos atores políticos, poderia ser justificada a atribuição de um papel para o Judiciário consistente na correção do processo democrático. Nesse ponto, a questão que permeia a tensão entre o constitucionalismo e a democracia fica mais do que evidente.” (CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. A Jurisdição Constitucional no Século XXI entre Processo e Substância: Um olhar sobre a experiência americana. In: CAGGIANO, Monica Herman; LEMBO, Claudio Salvador; ALMEIDA NETO; Manoel Carlos de. (Orgs.). Juiz Constitucional: Estado e poder no século XXI. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 114). 474 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 68; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M.
Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 656-657 e 664-665.
p. 167
“cada vez mais fica difícil falar-se em interesses da sociedade, já que muito
comumente há interesses de grupos integrantes da mesma sociedade que são
frequentemente conflitantes e reciprocamente excludentes”475.
A Interessenjurisprudenz toma como ponto de partida a insuficiência
da subsunção de um preceito legal para encontrar a solução correta e também
considera insatisfatória a dedução lógica a partir de um sistema conceitual (como fazia
a “jurisprudência dos conceitos”), o que seria uma inversão da justiça social por uma
“justiça lógica”, ante a insuficiência de métodos lógicos para que se possa deduzir os
juízos da sociedade sobre a justiça; ainda assim, Wieacker não identifica o movimento
com uma técnica de criação judicial, mas sim de aplicação judicial da lei, dada sua
aderência ao Estado de Direito: o juiz precisaria acolher a escolha de interesses feita
pelo legislador com uma obediência inteligente, ainda que o interesse oposto lhe
parecesse mais digno de tutela no caso:476
“é aqui que reside, ao mesmo tempo, a confissão de um dualismo indominável entre o positivismo do estado de direito e a consideração do direito do ponto de vista dos seus fins sociais; dualismo que, de resto, é característico da situação que a jurisprudência dos interesses de facto encontra hoje perante si, sendo, nesta medida, perfeitamente legítimo. Do ponto de vista metodológico, essa ruptura é traída pelo facto de que a jurisprudência dos interesses não pode fornecer um fundamento supra-positivo da preferência por um dos vários interesses em conflito; mas, em contrapartida, de que tem (como qualquer naturalismo no momento da aplicação) de preencher o fosso entre o ser e o dever ser jurídico.”477
Como preencher esse fosso é especialmente relevante nos casos em
que a decisão veiculará a aplicação de uma cláusula geral ou de conceito jurídico
475 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 204-205. 476 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 665 e 667. 477 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 667.
p. 168
indeterminado, em que arquétipos e elementos extralegais serão empregados numa
atividade de síntese judicial.478
Ocorre que o método originalmente concebido nessa corrente de
pensamento não alcançava uma resposta suficiente nesses casos-limite por não haver
uma hierarquia pré-estabelecida de valores ou interesses jurídicos; o juiz era
convidado a avaliar o conflito em conformidade aos interesses predominantes nas
decisões semelhantes das leis, mas, se não houvesse tal resposta, estar-se-ia numa livre
valoração sem norteamento, em situação mais difícil do que um sistema de
naturalismo radical que concebesse previamente valores tidos por mais elevados da
vida e sociedade; 479 assim, tais propostas ainda careciam de aprimoramentos a
despeito da inegável indução e condução do pensamento posterior:
“Jhering introduz o método teleológico de interpretação, pelo qual se há de buscar, para além da intelecção gramatical, filológica, histórica e sistemática, a finalidade social, os interesses individuais, coletivos e públicos, que são beneficiados ou prejudicados, com determinada interpretação, em busca do estabelecimento de um equilíbrio entre diversos interesses, para que sejam atendidos na justa proporção, requerida pela ideia de igualdade. É essa ideia de proporcionalidade, de sopesamento entre bens jurídicos conflitantes que será projetada no centro da metódica interpretativa, na Jurisprudência dos Interesses e mais ainda naquela forma como ela hoje se apresenta, a ‘Jurisprudência das Valorações’ (Wertungsjurisprudenz). Nessa ‘mudança de paradigmas’ (Krawietz), não se pode deixar de assinalar a evolução da ideia inicial de Jhering, até chegar à atual Jurisprudência das Valorações, em que os interesses são transmutados em valores, consagrados em princípios jurídicos, positivados, em geral, na Constituição, um passo que, segundo G. Radbruch, faltou ser dado por Jhering para escapar ao determinismo de sua posição original.”480
478 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo. vol. 187/2010, p. 69-83, Set/2010. p. 2; COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 5. 479 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 668-669. 480 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 76.
p. 169
Havia um outro problema metodológico ao exortar a aplicação pelo
juiz dos valores contidos na lei para o caso judicando em harmonia com as exigências
de vida, eis que os “interesses” ou valores eram tanto objeto, como critério de
valoração e fator causal, criando uma perturbação na explicação dos fenômenos.481
Ademais, era necessário prosseguir além em relação à proposta de
“ponderação dos interesses contrastantes” na decisão judicial e de como formar um
juízo de valor que se reconduzisse ao ideal social, delimitando critérios para essa
avaliação pelo julgador;482 para “escapar ao determinismo” como já mencionado e
para que se constituísse efetivamente uma superação da fundamentação sustentada
exclusivamente em termos lógico-formais e embasada somente em procedimentos
silogísticos e subsuntivos.
Essa superação viria em favor de uma nova forma de aplicação das
normas jurídicas e, portanto, de uma nova forma de motivação da decisão, que levasse
em conta as valorações inerentes ao caso concreto e os aspectos da realidade social
que estão presentes na problematização da compreensão semântica. A modificação
ora mencionada é de significativa relevância para o entendimento da dimensão
relativa ao uso de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais na
fundamentação de uma decisão judicial, podendo-se identificar sua origem nessa
corrente do pensamento jurídico como argumenta Larenz:
“Quando a lei diz que é lícito ao credor, ‘por forçada relação obrigacional’, exigir certa prestação do devedor, não se trata como julga Heck, de uma delimitação conceptual realizada para fins de ordenação: trata-se antes de um reconhecimento, por parte do ordenamento jurídico, do direito do credor à prestação (...). Pelo menos este ‘sentido’ do direito de crédito transparece na formulação conceptual abstrata. Ora não pode ficar à mercê de quem aplica a lei o satisfazer-se com a subsunção no conceito preceptivo que se lhe oferece com suficiente clareza, ou, ai invés, o desligar-se desse conceito e decidir ‘de acordo com os interesses’: melhor ainda, com
481 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 69. 482 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 68-71, passim.
p. 170
medidas de valor que lhe estão subjacentes. O que deve é, ao invés, esforçar-se, com o auxílio dos conceitos ‘correctamente’ entendidos, por adoptar as valorações mais ‘correctas’ de acordo com o ordenamento jurídico dado. À Jurisprudência dos interesses estava destinado, na prática jurídica alemã, um sucesso invulgar. Com o decurso do tempo, revolucionou efectivamente a aplicação do Direito, pois veio substituir progressivamente o método de uma subsunção nos rígidos conceitos legislativos, fundamentada tão-somente em termos lógicos-formais, pelo juízo de ponderação de uma situação de facto complexa, bem como de uma avaliação dos interesses em jogo, de harmonia com os critérios de valoração próprios da ordem jurídica. Deste modo deu aos juízes uma consciência sã, tornando frequentemente supérfluas as pseudo-motivações. Basta o confronto entre o estilo de pensamento e os processos de motivação das mais antigas decisões dos tribunais – digamos, até à primeira grande guerra – e as decisões mais modernas ou mesmo contemporâneas das instâncias superiores, para se reconhecer uma diferença que tem de agradecer-se, fundamentalmente, à obra de Heck, Stoll, Müller-Erzbach e muitos outros -, e no Direito Penal, claramente também a adeptos do ‘neokantismos sudocidental alemão’.”483
Em conclusão, a Interessenjurisprudenz encontrou um ponto de
equilíbrio que, ao mesmo tempo, negava importantes premissas metodológicas do
positivismo legalista (cujo arquétipo pode ser representado na Escola da Exegese) e
possuía adesão ao primado do estado de direito e ao caráter central da obra legislativa,
mantendo as premissas da legitimidade da lei na vontade da nação, resignando-se com
uma função técnica e de orientação prática: contribuiu positivamente para a razão
jurídica prática e para a escolha de soluções através de discussão das valorações
possíveis dos interesses em jogo e da discussão dos pontos de vista prático-morais da
situação concreta; realçando o caráter tópico da decisão jurídica que será mais
recentemente explorado por Theodor Viehweg como encontro dos pontos de vista
483 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 76-77.
p. 171
(topoi) dos argumentos na antiga retórica aristotélica,;484 uma forma aporética de
pensamento que complementa a sistêmica e axiomática.485
É o uso dessa vertente que merece ser explorada na fundamentação
das decisões judiciais em casos que envolvem conceitos jurídicos indeterminados e
cláusulas gerais, dada sua vaguidade, através de uma construção argumentativa e
valorativa de aspectos: a construção problemática do aspecto semântico deve estar
presente.
A justificação das premissas deve estar presente, isto é, não bastando
apenas a demonstração formal da inferências e conclusões a partir das premissas
eleitas – o que seria a escorreição interna da justificação ou coerência da justificação
interna –, mas também sendo necessário discorrer e atestar a validade da escolha
dessas premissas, o que Wróblewski denomina justificação externa da decisão
judicial486.
Assim, pode-se passar a uma vertente da fundamentação adequada
ao tratamento da questão proposta relativa à utilização de cláusulas gerais e conceitos
jurídicos indeterminados, que não suponha uma verdade inerente ao texto normativo
nem uma adoção pré-formatada de conceitos gerais e abstratos presentes em cláusulas
gerais, mas que leve em conta a indeterminação normativa e a construção
problemática desses conceitos e inclua na motivação inclusive elementos extratextuais
da norma legal utilizados nas premissas e como foram hauridos da cultura e da
civilização. Nesse sentido:
“O direito, indubitavelmente, lida muito mais frequentemente com a ‘verdade construída’. Não lidamos com verdades reveladas (religiosas) nem descobertas (científicas), mas com verdades que são fruto quase que de um consenso. É a ‘verdade que nasce de um processo de interação entre pessoas a partir de um quadro referencial’. Trata-se, pois, de um conceito de
484 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. p. 668 e 689-690; 485 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 76. 486 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Legal Decision and its Justification. Logique et Analyse. vol. 14, nº. 53-54, Leuven,
1971. p. 412.
p. 172
verdade que se liga à ideia de acordo. Assim, é uma verdade relativa, pois só é aferível em função do contexto em que se insere. Se há desacordo quanto, por exemplo, aos conceitos envolvidos, já perde sentido a discussão a respeito da verdade de certa proposição. Assim, a verdade jurídica não é ‘revelada’ ou ‘descoberta’, já que não vem de Deus, nem preexiste no labor humano, não se encontra, pois, no objeto observado. É uma verdade ‘construída ‘num processo do qual participa o intérprete’. Não é, essa verdade, demonstrada, mas legitimada num processo de justificação.”487
Assim, a vertente formalista não poderia se compatibilizar à proposta
de análise sobre o uso de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados na
fundamentação das decisões, o que seria tido por inútil ou desnecessário
compreendendo-se que já existe um sentido e que não haveria a indeterminação
normativa; por outro lado, aceitar a existência de um espaço de indeterminação ou
vaguidade a ser preenchido é o primeiro passo, mas necessário para responder à
pergunta do que deve constar da fundamentação nesses casos, que deve
paulatinamente ser identificado na concreção da textura aberta do texto normativo.
Na realidade, o pressuposto anterior é que deve ser entendido
arbitrário, porque simplesmente omite todo um processo de concreção que deve estar
presente na justificação da decisão (context of justification) sob uma alegação de
certeza (formal) e de segurança que se crê atingida na pré-existência do significado,
como menciona Hart:
“Hacer esto es asegurar un grado de certeza o predecibilidad al precio de prejuzgar ciegamente lo que ha de hacerse en un campo de casos futuros, cuya composición ignoramos. Así habremos conseguido, por cierto, resolver por adelantado, pero también a oscuras, cuestiones que sólo pueden ser razonablemente resueltas cuando se presentan y son identificadas. Esta técnica nos forzará a incluir en el campo de aplicación de una regla casos que desearíamos excluir para llevar a cabo propósitos sociales razonables, y que los términos de textura abierta de nuestro lenguaje nos habrían permitido
487 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 56.
p. 173
excluir si los hubiéramos dejado definidos de una manera menos rígida.”488
A participação do intérprete, por ser fundamental à concreção da
norma vaga deve constar da fundamentação, os pressupostos e as visões de mundo
que tomou com relação a uma determinada premissa para que seja verificada sua
coerência em relação ao caso e em relação à interpretação que se fez da realidade
sócio-cultural e histórica na construção dos sentidos e da concreção, como forma de
se superar a posição paralisante que ainda supõe a “objetividade” da decisão a partir
do não questionamento dos pontos de partida (das premissas) e da mera correção
lógico-formal de sua estrutura interna como critério de verdade, ideologias das quais
o estágio atual da ciência processual merece desligar-se, como menciona Ovídio
Baptista:
“Hoje ninguém mais duvida de que o processo não tenha por finalidade produzir verdades e que a lei admite duas ou mais soluções legítimas, como já proclamara Kelsen. Depois de haver François Gény, nos albores do século XX, denunciado a ilusão de imaginar a lei como um ‘sistema dotado de exatidão matemática’, ou de advertir James Goldschmidt que a futura sentença nada mais é do que um ‘prognóstico’ que perdurará como simples prognóstico até que se conheça seu conteúdo, depois de Chaïm Perelman investir-se na condição de um Aristóteles moderno, construindo a ‘nova retórica’, ou de um Theodor Viehweg recuperar a tópica aristotélica, e de Luis Recasens Siches postular, para a interpretação jurídica, o ‘logos de lo humano’ ou de ‘lo razonable’, ou depois de Josef Esser – para citar apenas alguns dos mais expressivos do moderno pensamento jurídico – haver transferido para o Direito as proposições básicas de Gadamer, afinal depois de tudo o que se escreveu nas filosofias críticas, e de tudo o que apreendemos com o chamado realismo americano – nosso sistema permanece petrificado, na suposição de que os juízes continuam irresponsáveis, enquanto a ‘boca da lei’, como
488 HART, Herbert Lionel Adolphus. El Concepto de Derecho. Traducción de Genaro R. Carrio. Ciudad de Mexico: Editora Nacional, 1978. p. 162. Em tradução livre: “Fazer isso é assegurar um grau de certeza ou previsibilidade ao preço de prejulgar cegamente o que há de se fazer em casos futuros, cuja composição ignoramos. Assim, teremos conseguido, por certo, resolver de antemão, mas também no escuro, questões que somente podem ser razoavelmente resolvidas quando se apresentam e são identificadas. Essa técnica nos forçará a incluir no campo de aplicação de uma regra casos que desejaríamos excluir para efetivar propósitos sociais razoáveis e que os termos de textura aberta de nossa linguagem teriam nos permitido excluir se os tivéssemos deixado definidos de uma maneira menos rígida.”
p. 174
desejava o aristocrático Montesquieu, e de que o processo seria um milagroso instrumento capaz de descobrir a ‘vontade da lei’ (Chiovenda).”489
Por ser fundamental a participação do intérprete na concreção da
norma vaga, podemos, à guisa de conclusão parcial neste capítulo, depreender que os
paradigmas teóricos que identificam a norma com o texto são incompatíveis e
insuficientes com o conteúdo do dever de fundamentação em se tratando de concreção
da norma vaga. Em geral, os preceitos da escola da exegese, não se adequam a esse
panorama em que a verdade é construída num acordo participativo sobre sua
elaboração e legitimada num processo de justificação com cunho lógico-
argumentativo.
Da mesma forma, ainda à guisa de conclusão nesse capítulo, pode-
se verificar que os paradigmas teóricos que identificam a decisão como ato exclusivo
de vontade, também não se mostram compatíveis com o conteúdo do dever de
motivação, porque encerra a insindicabilidade do ato ou, ao menos, de parte
significativa dele, ao propugnar a inacessibilidade da consciência do julgador como o
locus da gênese do ato para suprimir e obscurecer a motivação, que passa a ser tida
como inalcançável.
489 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia: O paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 26-27.
p. 175
7. Estrutura da fundamentação com emprego de conceitos vagos ou
indeterminados
O atual panorama da ciência processual civil e da teoria geral do
direito vem há tempos veiculando críticas ao emprego preponderante de esquemas
lógico-silogísticos nas decisões e na aplicação do direito; conforme observa Teresa
Arruda Alvim, o que há de característica comum a novas escolas como a
Freierechtslehre ou a Interessenjurisprudenz, em relação à fundamentação das
decisões, é evidenciar a impropriedade do silogismo judicial como “esquema-
esqueleto” das sentenças:490
“Este novo tipo de postura, dando origem a várias novas escolas – que às vezes nada têm em comum entre si, senão esta ‘recusa inicial’ –, provém principalmente não tanto da ideia de que o silogismo não corresponda efetivamente à realidade estrutural da sentença, mas principalmente de novas propostas de critérios de decisão. Ou seja, recursa-se, ao sistema silogístico, fundamentalmente, o papel de iter do raciocínio efetuado pelo juiz, ao decidir.”491
Quando a norma se apresente com um alto grau de tipicidade ou de
rigidez na previsão normativa, sua aplicação é operacionalizada mediante a
subsunção, em que fatos particulares se enquadram numa dada classe normativa
mediante correspondência do conceito do fato com o conceito da norma, num
procedimento lógico que pressupõe a identidade conceitual, sem a qual o
490 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 190; ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 258. 491 ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 258; ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 190.
p. 176
enquadramento não será possível, e dispensa a avaliação do plano concreto; 492
portanto:
“O conceito do fato individual é subsumido ao conceito abstrato, sem ser apreendido na sua totalidade, isso é, os demais caracteres não valorizados pela norma abstrata são, automaticamente, desprezados pelo aplicador. Trata-se de uma aplicação mecânica da lei que reflete um momento histórico – auge do positivismo jurídico, do século XIX – em que o Direito é o Direito escrito. Mas a aplicação do Direito não se exaure na subsunção, porque existem outros elementos, não estritamente positivos, e – embora corroborados pelo sistema e por ele limitados – que influem no processo de aplicação.”493
Está notoriamente ligada a um modelo de formalismo jurídico essa
estrutura decisória, que torna mais simples a fundamentação, mediante a identificação
de quais sejam as premissas maior e menor em atividade puramente cognoscitiva e
predeterminada – há nisso um caráter retrospectivo que já foi comparado à atividade
de um historiador, a atividade do intérprete a uma mera declaração das ocorrências do
passado nesse processo historiográfico e o ato decisório à declaração da vontade da
lei – nessa teoria da decisão, a fundamentação apresenta-se como um resoconto,
conforme doutrina italiana.494
A estrutura silogística não está necessariamente adstrita a esse
arquétipo de fundamentação, mas esse é o seu modelo paradigmático, recebendo
diversas críticas por omitir diversos procedimentos relevantes para dar azo ao
autoritarismo e à arbitrariedade, simplificando a realidade numa mera exposição de
um iter lógico artificial, que não diferencia o discurso justificativo (context of
discovery e context of justification), nem assume que a interpretação pode, conforme
o caso, estar permeada por escolhas, valorações e elementos estranhos ao texto
492 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 413, 421 e 424. 493 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 420. 494 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 134-137.
p. 177
normativo (extratextuais), que reduz o dissenso e furta parcela da fundamentação do
controle devido.495
Todos esses aspectos significam uma crítica à estrutura silogística
dentro de uma teoria não cognitivista, cética ou lógico-argumentativa da
interpretação; nesse sentido:
“A crítica ao esquema silogístico, em nosso sentir, deve situar-se quer ao nível ontológico, quer ao nível deontológico. Nesta linha, em inúmeros casos, que se vêm tornando mais frequentes, nós diríamos que a sentença não é, nem deve ser um silogismo. Que a sentença não é um silogismo tem sido afirmado pelos maiores expoentes da escola realista, tanto americana quanto escandinava. A escola europeia, à diferença das escolas norte-americanas e escandinavas que se inspiram em ideias de fundo pragmático, embora também recusem o esquema silogístico, enquanto realidade do juízo decisório, o fazem por razões de cunho filosófico e político, que representam a nota marcante a partir do fim do século passado. É necessário que se distinga a motivação concretamente considerada dos caminhos que percorre a mente do julgador para chegar até o decisório. São fenômenos, efetivamente, distintos.”496
Como já mencionado, a subsunção se opera entre conceitos
idênticos, os conceitos jurídicos devem possuir a mesma natureza dos conceitos de
fato, dessa forma, há uma dedução de elementos parciais singulares de determinados
objetos que ignora a totalidade do concreto; daí seu caráter a-histórico, não
direcionado às exigências do fato e do problema e não considerando parcelas dos fatos
individuais que não sejam valorizados pela norma, não se adequando à superação de
vaguidades semânticas.497
495 MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da Decisão Judicial: A elaboração da motivação e a formação de precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 137-139. 496 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 190-191. 497 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 423-427, passim.
p. 178
Enquanto a subsunção foi o principal instrumento de aplicação do
Direito no século XIX, baseado na codificação com pretensão exauriente, cujo
pressuposto sociocultural era a busca de uma sociedade formalmente igualitária, da
solidificação da liberdade de propriedade e da liberdade contratual 498 , os novos
problemas sociais, a complexidade e pluralidade socioculturais e a tendência ao real
enquanto concreto no manejo do Direito ensejaram novas técnicas e linguagem
normativas, de tipo aberto e fechado, concomitante à reconstrução na atual
metodologia da ciência jurídica, que passa a explorar sua dimensão histórica com
finalidade científica para possibilitar abertura à realidade social e limitar a
racionalidade como a panaceia do pensamento científico.499, 500
A ciência jurídica perde seu caráter absoluto de racionalidade lógico-
dedutiva501 para ganhar a qualidade de contingente fundada em seu aspecto histórico
– momento em que também se inicia, como vimos, o movimento da jurisprudência
dos interesses e a aplicação do direito em atenção aos valores em conflito e com uso
de valoração –, numa confluência de ideias que culminam em combinações de
498 No mesmo sentido, menciona Mario Losano a respeito do movimento codificador: “O código civil garante juridicamente a liberdade do indivíduo em relação ao Estado, protege o uso autônomo da sua propriedade e não interfere nas suas relações com os outros indivíduos, [...] Toda a sociedade se sustenta na observância do princípio de que é preciso respeitar os pactos (pacta sunt servanda). À livre concorrência em economia corresponde, assim, a tutela da autonomia privada no direito.” (LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 59.) 499 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 414-417. 500 A dimensão histórica na ciência jurídica também traz à tona o próprio aspecto contingencial do sistema normativo, dos valores plasmados no ordenamento e de seu caráter instrumental frente a sociedade, cultura e civilização, como expõe Márcio Pugliese: “o sistema normativo vigente nada mais é que um construto oriundo da ação concreta dos homens em uma civilidade e cultura concretas, em particular, aquela atividade negocial, e alterável sempre que necessário para atender a evolução das relações sociais reguladas e aptas a provocar conflitos.” (PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 119.) 501 Conforme observa Humberto Ávila: “Nesse tipo de pensamento, o sistema é um sistema fechado – cujo valor supremo é a coerência e a ideia de que toda a realidade está nele inserida – e imóvel, já que não permite a aplicação de outras disposições legais que não aquela que opera, perfeitamente a subsunção. (...) O pensamento axiomático é fundado, então, sobre uma dimensão a-histórica do Direito e sobre um método lógico-conceitual que proporciona uma coerência de construção. São afastados os problemas que, no sistema, não encontram solução. O número de problemas é limitado, fechado. A coerência do sistema como que se sobrepõe ao problema a resolver.” (ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 423).
p. 179
estruturas lógicas com o pensamento problemático da realidade concreta, através da
concreção, processo mediador entre os planos abstrato e concreto:502
“Opera-se, como se vê, um movimento de revisão do uso jurídico das categorias lógicas, que passam a não mais ter fim em si. As infra-estruturas econômicas da sociedade individualista, adversa ao intervencionismo estatal, não mais permitem a utilização das antigas técnicas de interpretação. Faz-se necessária a aplicação do Direito levando em consideração os interesses que determinam as opções do legislador. Apela-se, para isso, ao plano dos fatos, sem romper ou abandonar a compreensão normativa. Passa-se a obter o Direito no caso concreto. A ciência jurídica torna-se uma ciência prática ou histórica. A interpretação é ativa”503
Quando se está frente a normas com termos abertos ou vagos ou grau
de tipicidade mínimo – como no caso dos conceitos jurídicos indeterminados e das
cláusulas gerais –, é necessário, com mais intensidade, individualizar a norma e lhe
atribuir sentido concreto, mediante uma atividade de aplicação denominada
concreção, em que a norma se insere no fato e as notas abstratas são substituídas por
especificidades concretas com consequências jurídicas concretas; a subsunção exerce
apenas uma parte desse processo de caráter mais complexo que envolve valores
“extrajurídicos” e apoio nos diversos topoi, no consenso, em precedentes e no sistema
para a transposição concreta da norma.504
À concreção como forma de aplicação, traça-se um paralelo com a
modificação da própria linguagem normativa e da política legislativa que passou a
privilegiar conceitos com termos vagos ou indeterminados como forma de resguardar
o texto normativo das consequências do tempo, com vocação para absorver um futuro
eventualmente alterado maior do que a linguagem normativa rígida, fechada ou típica,
502 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 414-417, passim. 503 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 418. 504 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 413-414 e 418.
p. 180
dando resposta à realidade contemporânea caracterizada pela instabilidade, pela
complexidade e pluralidade sociais e pela imensa velocidade de transformação.505
Com efeito, menciona Judith Martins Costa 506 que a ilusão
codificadora não se trasmuda necessariamente num sistema jurídico de tipo fechado
em que a atividade judicial não é complexa, mas pode autorizar a convivência com
um modelo de raciocínio problemático em que o código sobrevive como eixo central
do seu respectivo subsistema legal com abertura a valores metajurídicos, flexibilidade
e sensibilidade à dinâmica social, em razão da linguagem compreensiva de cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados; elementos esses que permitiram a
adaptação da ordem jurídica aos novos tempos e às modificações estruturais de uma
sociedade profundamente alterada ao longo do tempo.
O auxílio dessas ferramentas externas para a formação dos pontos de
apoio da concreção sustenta-se na cosmovisão do aplicador da norma, que
futuramente irá justifica-la com base nesses elementos inerentes a esse processo;
como expõe a doutrina:
“Às cláusulas gerais, em nosso entender, deve ser dado um sentido normativo pelo intérprete, assim como ocorre, em ponto menor, com os conceitos vagos. Com a maior amplitude, procura o magistrado o sentido de uma cláusula geral, com referência ao caso concreto, permitindo-se o recurso a variados elementos vindos da esfera social, econômica e moral, que são, justamente, de certo modo, juridicizados pela cláusula geral, e tornados realidade concreta pela decisão judicial, que, evidentemente, precisa ter fundamentação diferenciada.”507
O pensamento lógico-sistemático e sua correspondente estrutura
subsuntiva de fundamentação não foi, exatamente, superado, mas passa a conviver
505 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 214-216; ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 419-420. 506 COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista
dos Tribunais. vol. 680/1992, p. 47-58, Jun/1992. p. 7-9. 507 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 217.
p. 181
com um pensamento problemático voltado a um sistema aberto e móvel, que
corresponde a uma estrutura mais complexa e, portanto, mais extensa de
fundamentação que abarca critérios pragmáticos, de tópica ou casuística, de dialética
e de justiça material.508
O esquema silogístico, como vimos em capítulos anteriores, está
fortemente atrelado ao formalismo e a uma interpretação cognitivista, dentro do
contexto do positivismo no direito e de uma conjuntura histórica que marcou a Europa
e o civil law509 nos últimos séculos.
O que está implicado nesse esquema, contudo, é uma fuga a respeito
da interpretação – e, concomitantemente, a respeito da fundamentação. O que
caracteriza a postura positivista, ao menos como proposto por Hans Kelsen510, é a
insuficiência de uma teoria da interpretação que possa delimitar a norma jurídica
concreta; tornando-se um problema alheio à teorização os resultados efetivamente
alcançados:
“A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. (...) Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas. De certo que existe uma diferença
508 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 423-424. 509 Embora nos atenhamos ao civil law no estudo, vale consignar a observação de Georges Abboud: “Frise-se que o problema de interpretar o direito como atividade reprodutiva de vontade da lei ou do legislador não tem por pano de fundo a dicotomia civil law e common law. O que de fato está por trás disso é o paradigma acerca da interpretação judicial, qual seja o positivismo por meio da qual se postula a possibilidade de solucionar questões jurídicas através de silogismo, dispensando-se a interpretação. Tanto assim é que existem positivistas no common law e no civil law.” (ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 318). 510 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Batista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. p. 393-396.
p. 182
entre estes dois casos, mas é uma diferença somente quantitativa, não qualitativa”511
Embora essa questão se ligue em grande medida ao que já fora
tratado acerca da discricionariedade na decisão judicial – em especial quando
presentes termos normativos vagos –, o que importa chamar a atenção é que o
conhecido modelo de moldura no positivismo kelseniano512 não oferece uma resposta
conforme a exigência de motivação das decisões judiciais e ao modelo constitucional
de processo civil atual, por entender todas as soluções igualmente adequadas, dando
azo à livre escolha e à abstenção de controle, o que é impróprio em relação à
fundamentação de decisões com termos vagos, por ter uma base exclusiva no texto
normativo.
Ao contrário de um critério que isente o aplicador de fundamentar
suas premissas e que permita uma miríade de soluções, o que se pretende é a definição
mais precisa possível, no sentido de se conferir previsibilidade (que se pode identificar
como vertente da segurança jurídica), e a justificação relativa que comprove ser a mais
adequada, que não pode ser tomada por base exclusiva no texto aberto de um conceito
jurídico indeterminado ou de uma cláusula geral. Assim, é necessário o recurso a
métodos e a elementos extratextuais para determinar o alcance concreto de termos tais
como a função social (da propriedade, v.g.), bons costumes, preço vil, etc.
A norma, especialmente aquela aberta por termos vagos, precisa ser
interpretada e compreendida, mas não por si só, como nos informa Georges
511 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Batista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 393. 512 “O Direito a aplicar forma (...) uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas ua delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Batista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 390-391).
p. 183
Abboud513, como ente abstrato, porque sua existência e compreensão somente pode
ocorrer em contraposição ao caso concreto, mediante sua concreção em meio ao
“círculo hermenêutico”, isto é, mediante antecipações de sentido e aproximações
incutidas no intérprete pertencente a uma determinada tradição histórica que passará
a constituir sentidos e influenciar os resultados da compreensão.
Essa tradição histórica que antecipa a compreensão do intérprete é
constituída num processo civilizatório através de representações icônicas socialmente
significativas, o que será observado com mais vagar em capítulos futuros,
constituindo, assim, parcela significativa do círculo hermenêutico que deve se
expressar na decisão judicial suficientemente fundamentada em que houve o emprego
de conceitos com termos vagos ou indeterminados para a determinação de cada
elemento na concretude do caso.
A hermenêutica é concebida na Grécia (hermèneutiké) como espécie
de tradução ou deciframento para a linguagem corrente, sendo sua origem associada
ao mito – isto é, uma explicação da realidade através de uma supra-realidade, à
semelhança da arte – relacionado ao deus Hermes, o mensageiro de pés alados filho
de Zeus com a ninfa Maya que é incumbido da função da comunicação entre seu pai
e os mortais, sendo-lhe atribuída a invenção da linguagem e da escrita nessa narrativa
mitológica.514
Essa prática alegórica de transposição da mensagem das deidades
com a compreensão humana guarda aproximação semântica com a interpretação,
como o ajuste entre o que está na sentença e a sua intenção subjacente, como nos
informa Willis Santiago Guerra Filho515 , a etimologia da interpretação remete à
prática adivinhatória romana da leitura das entranhas (inter pres) vistas na abertura
ritual de animais sacrificados para o prognóstico do futuro, atribuindo-se
(desentranhando-se) sentidos ao que ocorreu ou ocorrerá a partir de dispositivos aptos
513 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 66. 514 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p. 20-23. 515 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p. 21-22.
p. 184
a estabelecer conexões entre esta realidade mundana e uma outra realidade superior e
invisível, transitando da interioridade (escondida, em animais, v.g.) para a
exterioridade compreendida.
A etimologia destes vocábulos e a ideação em torno desses processos
aponta para um processo intermediador, os sentidos não estão presentes em si na coisa
ou no texto, necessitam de um instrumento que estabeleça os vínculos com a realidade
e a compreensão ordinária, necessitam de elementos e conexões que somente se
alcançam na efetivação de uma realidade, há, assim, o recurso além do que está
presente no silogismo:
“O texto normativo somente é compreensível quando estiver materialmente ligado ao âmbito normativo e ao programa normativo, e cada norma surge para solucionar um caso concreto que é único e irrepetível, por conseguinte, na formulação dessa decisão (norma) é que se torna viável exigir a resposta correta – constitucionalmente mais adequada, não se considerando tolerável e legítima a produção de discrepantes decisões”516
O sentido da norma vaga não pode ser dado previamente, mas apenas
no próprio processo de aplicação, pelas circunstâncias fornecidas pelo nível
pragmático em que o caso concreto é valorizado integralmente, com os elementos de
historicidade que devem acompanhar o processo de aplicação com referência a
elementos não previstos no ordenamento jurídico e, pela decisão recorrer a valores
externos, o conhecimento da realidade é fundamental, assim como sua expressão na
justificação da decisão;517 nesse tipo de norma preenchido mediante concreção “a
solução fica aberta, sendo dada pelo juiz, segundo os valores éticos e sociológicos e
consoante os princípios de direito no momento da aplicação das normas”518.
516 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 68. 517 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 423-430, passim. 518 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 432.
p. 185
Cabe ao julgador efetivar um procedimento de aplicação não
exaurível do significado da norma, cuja solução encontra-se aberta e em que
reelabora-se o significado da norma vaga com apoio no sistema mediante concreção,
em vista da finalidade da norma em sua regulação social, da pré-compreensão, de
precedentes, do consenso e de valorações judiciais, isto é, “o processo de concreção
consiste em um conjunto de atos tendentes a preencher, valorativamente, as normas,
atribuindo-lhes sentido diante do caso concreto, com base em valores sistemáticos e
problemáticos.”519
Nesse processo, a norma só é efetivamente compreendida em ligação
ao caso concreto, como menciona Georges Abboud520, quando estiver materialmente
ligada ao programa normativo, representado nos elementos linguísticos do enunciado
legal, e ao âmbito normativo, que constitui os elementos não linguísticos associados
ao recorte da realidade social que conforma o âmbito de regulação da norma.
Em relação à finalidade da norma, a aplicação e a fundamentação
devem levar em conta uma orientação voltada a objetivos concretos, que se integram
a interesses e valores concretos, menciona Humberto Ávila521. Essa perspectiva é
notoriamente desenvolvida no método teleológico introduzido por Jhering, como
referido em capítulo anterior, no contexto de finalidade social e de interesses
(individuais, coletivos e públicos) a que visa a norma – ligada à jurisprudência dos
interesses522 e a um fundo teórico consentâneo ao materialismo –, estando, também,
519 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 448. 520 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 68 521 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 439. 522 Vale recordar, a respeito, a explanação de Larenz: “Jhering não reconhece qualquer hierarquização objectiva dos fins da sociedade. Segundo ele, estes resultam antes das diversas ‘necessidades vitais’ da sociedade respectiva, da sociedade historicamente dada. Só o que uma certa sociedade humana vê como útil e vitalmente relevante para o seu bem-estar é que decide da sua própria e historicamente mutável ‘exigência de felicidade’ (...). Deste modo é Jhering o primeiro dos pensadores jurídicos modernos que relativiza por completo as pautas do Direito. O mesmo vale igualmente para as pautas morais (...) De facto, porém, o ‘utilitarismo social’,
p. 186
consagrado no artigo 5° da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e
habitualmente tratado em vasta doutrina, sendo de amplo conhecimento.
A valoração judicial compreende a ponderação dos resultados em
atividade valorativa, em fatores metajurídicos para apreciação de premissas de que a
subsunção é apenas o resultado e apenas aparentemente automática.523 Em termos
designados por Larenz: “o julgador (...) ‘pondera’ factos, quer dizer, valora-os na sua
significação concreta sob o ponto de vista da regulação legal”524.
Quando se trata de juízos de valor impregnados de fatores
metajurídicos, já não se mostra possível estabelecer uma vinculação em termos gerais
dessas pautas, tais como na remissão a um critério de equidade ou de diligência
exigível, que somente podem esclarecer-se ilustrativamente,525 dessa forma surge a
importância do contexto em que inseridas as circunstâncias nesses instrumentos de
adaptação na ordem jurídica, revelando mais um aspecto de concreção inerente ao
preenchimento da vagueza, no que se vislumbra uma nota de raciocínio tópico
conjugado na escala valorativa:
“o julgador tem que previamente preencher a pauta de julgamento de modo tão amplo quanto necessário para a sua aplicação à apreciação de um caso sob todos os seus aspectos significativos, tal qual como no caso aqui apresentado. É inevitável que, a este respeito, lance previamente o seu olhar à consequência jurídica: o julgar uma conduta como ‘negligente’ cifra-se em saber se é apropriado a seu respeito estabelecer uma responsabilidade, com base na valoração legal; ao julgar sobre a questão de se a continuação da relação contratual é ainda
como o próprio Jhering designa a sua doutrina (...), nega, juntamente com a autonomia categorial da Moral, o valor específico do Direito, fazendo deste o joguete dos interesses que em cada caso são dominantes na sociedade.” (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.
Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 61-62). 523 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 440-441. 524 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 406. 525 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 406-407 e 410.
p. 187
‘exigível’ a uma das partes do contrato, trata-se do nível valorativo hierárquico da vinculação a um contrato.”526
Conforme Alexy527, a ponderação constitui uma forma de argumento
do discurso racional, embora sejam reconhecidos limites ao refinamento de atribuição
de medidas, cuja escala infinitesimal é inalcançável na órbita jurídica, essa
racionalidade se funda na comensurabilidade ser justificável – isto é, os juízos são
fundamentáveis mediante argumentação – tendo-se em consideração um ponto de
vista uniforme na classificação: o ponto de vista da Constituição. Dessa forma, ao
menos vislumbra-se necessário que tais valorações possam ser reconduzidas a um
ponto de vista constitucional que constitua a uniformidade da possibilidade valorativa,
ao menos como proposto por Alexy, isto é, o juízo de valor de uma escala moral segue
um apelo das pautas de valoração do ordenamento jurídico a serem lançadas na
fundamentação da decisão.
A pré-compreensão dirige o procedimento de concreção na prévia
análise das circunstâncias de fato e das normas de modo seletivo pelo intérprete,
reconhecendo um sentido através de um círculo hermenêutico, que tem especial relevo
no emprego de normas abertas com sentido conferido em aspectos extrassistemáticos
referidas em contextos sociais e relações da vida.528
As possibilidades semânticas são previamente obtidas em situações
discursivas ideais anteriores e, nessa dimensão hermenêutica, diz Lenio Streck529, a
apofântica da linguagem é insuficiente por não caber a verdade no logos, não há dois
mundos (de fato e de direito), pois o plano hermenêutico revela-se estruturante na
526 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 408. 527 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 157-159. 528 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 439-440. 529 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 143 e 149.
p. 188
compreensão e seletividade ante o cruzamento das possibilidades semânticas com
todos os elementos das circunstâncias fáticas do caso.
No processo de concreção de normas com termos vagos que deve ser
refletido na sentença, o precedente judicial desempenha um importante papel, aduz
Humberto Ávila530, porque serve mais do que um guia informativo, serve também
como transformador de fatores metajurídicos em elementos jurídicos: a definição
concreta de um sentido das normas de tipicidade mínima já está procedida no
precedente, funcionando como mediador entre a teoria e a prática.
O fundamento para utilização de precedentes, no discurso jurídico, é
o princípio da universalidade, de tratar casos iguais de forma igual, o que se transpõe
para o problema da relevância das diferenças; como as regras do discurso não
permitem, por si só, encontrar precisamente um único resultado, o recurso a uma
decisão passada preenche a margem de soluções em favor do princípio da
universalidade, sem excluir a possibilidade de não se seguir a decisão reconhecida
como equivocada, assumindo-se a carga de argumentação para dela se afastar.531
530 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 441. 531 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A teoria da argumentação racional como teoria da
fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 259-262, passim. A respeito, menciona o autor: “Com isso se evidencia imediatamente uma das dificuldades decisivas do uso dos precedentes: nunca há dois casos completamente iguais. Sempre se encontra uma diferença. O verdadeiro problema se transfere, por isso, à determinação da relevância das diferenças. Porém, antes de entrar nele, é importante outra questão. É possível que um caso seja igual a outro anteriormente decidido em todas as circunstâncias relevantes, mas que, porém, se queira decidir de outra maneira porque a valoração destas circunstâncias mudou. Se se quiser seguir apenas o princípio da universalidade, seria impossível essa decisão diferente. Mas a exclusão de qualquer mudança seria então incompatível com o fato de que toda decisão formula uma pretensão de correção. Por outro lado, o cumprimento da pretensão de correção faz parte precisamente do cumprimento do princípio da universalidade, ainda que seja somente uma condição. Condição geral é que a argumentação seja justificável. Nesta situação surge como questão de princípio a exigência do respeito aos precedentes, admitindo afastar-se deles, mas cabendo em tal caso a carga da argumentação a quem queira se afastar. Rege, pois, o princípio de inércia perelmaniano que exige que uma decisão só pode ser mudada se se podem apresentar razões suficientes para isso. A satisfação da carga da prova somente pode ser constatada pelos participantes, reais ou imaginários, do discurso.” (Op. cit., p. 259-260).
p. 189
Os precedentes, consoante Larenz 532 , exercem um papel de
enriquecimento do conteúdo de pautas relativamente indeterminadas e contribui
ilustrativamente em relação a certos casos ou grupos de casos para criar um
entrelaçado de modelos de resolução como uma guia determinada para novos casos
em que há normas de conteúdo vago.
Nesse método de concreção casuística, cada concretização alcançada
em cada caso singular desenvolve sua própria pauta, entretanto, através de casos
típicos e do entrelaçamento, pode-se reconduzir a intersecções e espaços vazios em
crescente possibilidade de comparações na medida em que novos casos vão sendo
decididos, com pontos de vista valorativos cada vez mais especializados e
determinados, embora haja inegáveis limitações para solução de casos novos
(diferentes) nesse proceder.533
Quando as previsões legais contêm os termos vagos aqui tratados,
Teresa Arruda Alvim Wambier534 comenta que, vagarosamente, os termos gerais vão
sendo preenchidos por uma rede abrangente de precedentes com um mecanismo de
comparação de casos num corpo de casos típicos (a body of typical cases) que
compõem um conjunto de estandartes orientadores da interpretação.
Nas hipóteses criadas pelos conceitos jurídicos indeterminados e
pelas cláusulas gerais, afirma a autora, criam-se contextos de ambientes decisionais
“frouxos”, com vistas à adaptação das peculiariedades dos casos concretos e das
alterações da vida no tempo, cabendo maior liberdade criativa ao Judiciário para
inovar mediante a incorporação de tendências externas ao direito (sociológicas, éticas,
sociais e, inclusive, científicas) por meio desses “poros” contidos na norma, como
532 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 411. 533 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 411-412. 534 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. (coord.) Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 65.
p. 190
adaptação do direito à vida, até que seu conteúdo concreto encontre estabilização nos
estandartes orientadores à luz da ordem constitucional.535
O processo possui caráter dialético, proporcionando um diálogo
entre teses contraditórias em que consagra-se a que apresenta melhor persuasão
racional de sua fundamentação, havendo, portanto, uma vinculação intersubjetiva do
diálogo processual em que o consenso surge como legitimação parcial da decisão no
processo de concreção.536
A despeito da defesa de teses díspares e interesses contrários, o que
firma o consenso é a existência de um diálogo no processo, em que a relação
intersubjetiva se desenvolve mediante uma pretensão de justificação racional de suas
posições com vistas ao provimento almejado, havendo, assim, um reconhecimento
mútuo de reivindicações de validade que dá origem a uma legitimação consensual do
resultado final desse diálogo (a decisão), ainda que haja irresignação.
Na ação comunicativa, há uma responsabilidade recíproca por parte
de qualquer pessoa nela envolvida através de uma obrigação imanente ao ato
ilocucional que busca proporcionar justificação para reivindicações invocadas no
discurso, nesse sentido que se pode dizer:
“A concepção de ação comunicativa de Habermas, por outro lado, implica numa estrutura de intersubjetividade da qual pode-se deduzir uma ‘obrigação imanente de ato ilocucional’ mútua para prover justificação para as diferentes espécies de reivindicações que são continuamente levantadas na ação
535 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. (coord.) Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 64-65 e 75. Nesse diapasão, prossegue: “A expressão ‘baixa renda’ é um bom exemplo da capacidade que têm estes conceitos de gerar decisões mais rentes à realidade. Se certo benefício previdenciário é concedido, pela lei, a indivíduos de baixa renda, isto permite ao juiz que considere que José, de 18 anos, solteiro, que mora com os pais, e que ganha 4 salários mínimos não tenha baixa renda; e que João, que é casado, tem 8 filhos, mora com a sogra, e ganha os mesmos 4 salários mínimos tenha baixa renda. A expressão ‘meios de comunicação’ adapta a norma às mudanças na tecnologia: telex, fax, e-mail – todos, à sua época, meios de comunicação. Veja-se que estas expressões adaptam as normas tanto às peculiaridades dos casos concretos quanto às alterações da vida, no tempo”. (Op. cit., p. 75). 536 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 443.
p. 191
orientada por compreensão. Esta obrigação é uma obrigação que todo agente tem ‘implicitamente reconhecida’, simplesmente pelo fato de ter se envolvido na ação comunicativa.537
A situação de discurso ideal é apta a gerar o “acordo racionalmente
motivado” ou “consenso” na pragmática universal de Habermas, muito embora as
regras discursivas para esse consenso universalizável não estejam presente em toda
ação comunicativa, mas situações ideias conforme certas regras discursivas atinentes
a um conceito moderno de argumentação.538
O discurso e a comunicação desenvolvidos no processo, em
decorrência de suas limitações procedimentais inerentes, não pode ser qualificado
como tal situação de discurso de consenso universalizável, dado que não é permitido
a qualquer um questionar e apresentar qualquer proposta a qualquer momento,
entretanto, há uma legitimação parcial do consenso na medida em que, inegavelmente,
as partes desenvolvem uma argumentação racional com vistas à persuasão do julgador
e à refutação racional das pretensões invocadas pela outra parte; a base consensual,
portanto, reside no diálogo presente na vinculação intersubjetiva e não na resignação
das partes com o resultado.
Nessa esteira, Alexy539 menciona que, embora Habermas interprete
o processo como ação estratégica e não como discurso – haja vista as limitações
presentes –, as partes e seus representantes processuais formulam com suas
intervenções uma pretensão de correção em favor de uma determinada decisão, não
procedendo da mesma forma como negociam, por exemplo, um contrato; desta forma,
o processo não se qualificaria nem completamente como discurso ou como ação
estratégica, mas como situação intermediária que não pode ser compreendida
teoricamente sem a referência ao conceito de discurso – porque há pretensão de
537 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 57. 538 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução
Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 61. 539 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A teoria da argumentação racional como teoria da
fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 209-210.
p. 192
argumentar racionalmente e a fundamentação da decisão judicial comumente recorre
aos argumentos formulados.
A construção da fundamentação a partir da argumentação racional
das partes (base consensual), portanto, não apenas confere legitimidade consensual à
decisão, ainda que a compreensão disso seja parcial, como também constitui uma das
formas de dar vazão à técnica da concreção, mediante uma solução decisional que
encontra fundamento nas argumentações suscitadas por ambas as partes em
contraditório em sua visão sobre o caso concreto trazido a julgamento e sua relação
com a norma aplicável por concreção, que pode ser especialmente interessante quando
encontram-se pautas valorativas ou visões de mundo contraditórias.
Enfim, o texto normativo não contém ele mesmo a norma em si, mas
detém aptidão para, em conjunto com o caso concreto, produzir a norma, limitando as
possibilidades do significado da norma e dirigindo a concretização, nos leciona
Georges Abboud540; a previsão textual é a primeira instância indutora da solução
decisória, que configura o programa normativo e alcança a norma diante da
problematização do caso concreto, que é seu âmbito de aplicação – a norma não é uma
entidade abstrata e independente: a norma, portanto, não é lida ou encontrada, mas
sim estruturada.
Explicar o motivo de incidência da norma no caso concreto pode
significar coisas bem diferentes em termos de fundamentação da decisão quando se
trata de um procedimento de subsunção e de um procedimento de concreção; as
normas com conteúdo vago – isto é, quando se trata do segundo caso – exigem muito
mais da fundamentação, uma outra estrutura e um outro conteúdo, mais complexos e
vastos. Nesse sentido compreende-se a menção de que:
“Esse novo papel atribuído ao magistrado, que cada vez mais se afasta do ser inanimado que pronuncia as palavras da lei, implica a ampliação da importância da justificação que dá às suas decisões, ou seja, num aumento de importância da fundamentação da decisão
540 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 74-75.
p. 193
judicial. Se antes bastava justificar a razão pela qual aplicava ou não uma determinada norma no plano meramente jurídico; agora a operação tornou-se mais trabalhosa, na medida em que há de acrescentar, à sua antiga tarefa, a tarefa de justificar a opção por um ou outro valor utilizado no preenchimento das normas de conceitos não determinados.”541
A estrutura da fundamentação da decisão judicial, portanto, deve
corresponder à estruturação da norma vaga e à correspondente necessidade de
explicação mais densa quando do uso de conceitos indeterminados, que ensejam
discussão (problematização concreta) e pouca nitidez,542 e expressar as opções de
primazia entre um ou outro valor no preenchimento da norma fluída;543 para além de
uma explanação lógico dedutiva (como num resoconto), há uma motivação que, em
geral, “têm origem na influência dos precedentes, nas circunstâncias de fato e nos
valores e padrões sociais, sendo esses elementos limitados pelo sistema normativo”544,
isto é, uma estrutura com base nos procedimentos inerentes à concreção da norma de
conteúdo vago ou indeterminado.
O uso desses elementos da concreção (finalidade da norma em sua
regulação social, pré-compreensão, precedentes, consenso e valorações judiciais),
contudo, encontram-se circunscritos no ordenamento, recebem o fechamento sintático
do sistema jurídico mediante “uma clausura operacional, na medida em que implicam
uma seleção e posterior ‘tradução’ dos fatos sociais para o interior do ordenamento
541 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Parte geral. Vol. I. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 101-102. 542 ARRUDA ALVIM, Teresa. Embargos de Declaração. Como se motiva uma decisão judicial? 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 214. 543 OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito Processual Civil: Tutela de conhecimento. Vol. II. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 395. Prosseguem os autores: “Assim, por exemplo, ao julgar uma demanda entre dois vizinhos, deverá o magistrado explicar porque considerou que determinadas circunstâncias não preenchem o conceito de função social da propriedade, permitindo que a parte possa impugnar a sua decisão, tecendo considerações contrárias à aplicação desse valor eleito pelo magistrado para preencher o conteúdo da norma.” (Op. cit., loc. cit.). 544 ÁVILA, Humberto. Subsunção e concreção na aplicação do Direito. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 446.
p. 194
jurídico de forma organizada. Não é a totalidade do contexto social que será traduzida
para o interior da ordem jurídica”545.
Essas opções valorativas de preenchimento da norma vaga serão
hauridas em construtos sociais que representam os termos vagos da linguagem natural
e são compreendidos a partir de elementos extratextuais que existem na realidade
concreta, apreensível mediante aspectos sociais, culturais e civilizacionais de um
determinado momento histórico – aspectos esses que serão melhor analisados com um
quadro teórico firmado em capítulos subsequentes.
A compreensão desses elementos estruturais extratextuais da
realidade concreta que se espelham na estrutura de uma fundamentação de concreção
são tanto melhor apreendidos quando haja um entendimento da realidade embasada
em aspectos mais profundos (episteme), com o auxílio de ferramentas do
conhecimento de algumas ou diversas áreas que possam ir além do senso comum, o
que torna eminentemente relevante a formação interdisciplinar do intérprete.
Como resultado dessa estrutura da concreção que se deve refletir na
motivação do ato decisório, temos que o dever de fundamentação somente restará
atendido se a completude da estruturação da norma concreta estiver presente, não
sendo suficiente a exposição de uma construção subsuntiva tributária de uma
concepção lógico-sistemática de construção do direito, mas sendo necessário o
desenvolvimento dos aspectos de concreção da norma com seus elementos
extratextuais, que remontam à justificação externa da decisão judicial (Wróblewski),
mencionada em capítulos anteriores.
A extensão do conteúdo da fundamentação adquire, assim, uma nova
conotação, mais complexa, à luz do art. 489, § 1°, II do Código de Processo Civil, nos
termos aqui expostos, que não se limita a uma escorreição lógica formal e adquire
uma dimensão específica na concretude da norma reelaborada no caso decidido em
545 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. p. 53.
p. 195
seus aspectos extratextuais do contexto sócio-cultural em que é aplicada para ser
considerada adequada e suficiente a motivação.
Pode-se, então, além do que já fora explanado, tomar-se
casuisticamente situações para remontar a esse referencial, dada a impossibilidade de
fixar um método que determine apriorística e abstratamente a estrutura e o conteúdo
da motivação, no que examinaremos um exemplo de dentro do processo civil, o de
preço vil, por sua indeterminação semântica.
Não é possível, contudo, em termos abstratos e teóricos, firmar um
modelo geral de estrutura aplicável a todo e qualquer caso de concreção e de conteúdo
mínimo para a fundamentação da decisão quando houver o emprego de termos vagos
ou indeterminados, dado o caráter contingencial da norma e, em geral, do direito em
si, histórica e situacionalmente determinados:
“Apresentando-se como um objeto cultural, o direito positivo se constitui como um sistema simbólico. Na medida em que o significado dos símbolos cresce, conforme evolui o direito e a cultura em seu entorno, a interpretação das normas e a construção de suas significações não pode supor nenhum método de análise assentado em premissas unicamente deterministas.”546
A vedação da arrematação por preço vil, diz a doutrina, impede que
esta “aconteça por valor inferior ao preço mínimo fixado pelo juiz ou, na sua falta,
inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação. (...) Mas ele não é um limite para
a definição judicial desse preço mínimo.”547, sendo usualmente o critério de 50%
compreendido como razoável548.
546 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoría e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. p. 23. 547 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Execução. Vol. III.
16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 338. 548 A respeito: “RECURSO ESPECIAL. AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ARREMATAÇÃO. PREÇO VIL NÃO CONFIGURADO. I - Não existem critérios objetivos para a configuração de "preço vil", todavia, a jurisprudência desta Corte, em regra, tem adotado como parâmetro o valor equivalente a 50% (cinquenta por cento) da avaliação do bem, devendo ser consideradas, sempre, as peculiaridades do processo para a definição no caso concreto. II - No caso em análise, não tendo o Tribunal de origem fundamentado a decisão em qualquer peculiaridade que justificasse o entendimento adotado, não deve ser considerado vil o preço que alcançou, de acordo com o Acórdão recorrido, o equivalente a
p. 196
Como se vê, a fixação desse limite retrata uma diretriz, um norte do
que pode ser indicativo de solução adequada, não podendo preencher o conceito vago,
ainda que se tratasse de outro limite qualquer fixado a priori, nesse sentido, consigna-
se comentário de Araken de Assis, com menção a dispositivos do Código de Processo
Civil de 1973:
“Em doutrina, às vezes se aponta o percentual de 60%, mas há várias vacilações. Decidirá o órgão judiciário. Nos últimos tempos, plasmou-se a tendência de somente considerar vil a alienação por menos de 50% do valor da avaliação atualizada. E o juízo, porventura emitido a respeito, se ostentará, necessariamente, discricionário, buscando a devida proporção entre os dois princípios em conflito: o da economia (art. 620) e o da efetividade da tutela judiciária reclamada pelo credor. Tudo dependerá do caso concreto. Em geral, não se estima preço vil o superior a 80% da avaliação. Entretanto, como já ressalvou a 3ª Turma do STJ, este percentual não constitui um piso, ‘abaixo do qual o valor haveria de se reputar vil’, e sim um dado para referência, ao qual se somam circunstâncias outras (local da hasta, situação de mercado, natureza do bem e assim por diante). Em certa ocasião, a 3ª Turma do STJ assentou que ‘preço vil é aquele muito abaixo do valor do bem’. Não parece razoável, porém, relacionar o valor do bem ao valor do crédito”549
Embora o atendimento ao meio menos gravoso (art. 620 do Código
anterior) possa ser invocado, somente seria possível caso haja outros meios, dando a
impressão de que não haveria um conflito caso fosse o único bem a ser executado e
não houvesse outra alternativa, não sendo somente esta a perspectiva valorativa
presente.
De todo modo, ao invocar finalidades a serem atendidas com o
dimensionamento do conceito vago, já se parte para uma perspectiva de concreção da
norma – com valoração judicial –, numa formulação mais consentânea do que a
54,5% do valor da avaliação. Agravo Regimental improvido.” (AgRg no REsp 974.329/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/05/2011, DJe 24/06/2011) 549 ASSIS, Araken de. Manual da execução. 13ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 870.
p. 197
tentativa de criar um limite, qualquer, abstrato que caracterize ou não o termo vago, o
que é uma impossibilidade.
Mesmo que atingida uma determinada concreção da norma para se
definir o preço vil num caso concreto, essa possibilidade de referência a um caso
jamais esgota a dimensão semântica do termo vago. Ainda que inúmeros outros casos
da jurisprudência fossem trazidos, o precedente não faz a total substituição, apenas
apresenta balizas que ressignificam o texto sem esse esgotamento da possibilidade de
concreção da norma vaga: “A incompletude do signo em relação ao objeto constitui
um verdadeiro estímulo à contínua interpretação e autogeração de signos. O objeto do
signo inaugura uma dimensão de alteridade dentro da compreensão da tradução.”550
Na realidade, a expressão vil no texto normativo introduz uma
dimensão cultural, que somente pode ser preenchida mediante recursos a elementos
que residem fora da previsão normativa, tal como a referência a “situação de
mercado”, impregnada com conteúdo extrassistemático da ordem jurídica que pode
ser buscado mediante a compreensão econômica da situação fática e do contexto das
relações mercantis.
As condições do que possa ser considerado preço vil somente podem
ser aferidas dentro de um mercado de bens ou de valores relativos ao caso concreto;
nesse sentido o que avilta a compreensão social do que sejam relações dignas no
comércio, que não constituam a negação da própria transação comercial por seu valor,
podendo ser consideradas as representações sociais formadas a seu respeito (a
formação dessas representações será cuidada em capítulo subsequente).
O que se pode entender por preço vil também se liga ao escopo desse
mercado de transações econômicas em que se afere o que é ou não vil,
contextualmente: a finalidade do mercado é geração e transferência de riquezas, de
propriedade; em última análise, o preço vil é o que ataca o cerne da propriedade de
maneira a desconsiderar esse valor, destruindo o significado do mercado transacional.
550 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoría e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. p. 19.
p. 198
Daí que a valoração possa – e deva – ser reconduzida a padrões
valorativos intrassistêmicos do ordenamento até o nível constitucional, como controle
final do aspecto histórico e contingencial da concreção do termo vago: a valoração
inerente à semântica aberta pode ser reconduzida ao ponto de vista constitucional que
constitua a uniformidade da possibilidade valorativa, como proposto por Alexy551, em
consideração da dimensão histórica institucional da comunidade política, como
propugnado por Georges Abboud552 – no caso do preço vil, a proteção à propriedade
(dos dois lados da valoração) e a efetividade da prestação jurisdicional.
Mesmo os aspectos extratextuais e extrassistemáticos dos
subsistemas que se comunicam com o ordenamento jurídico serão interpretativamente
guiados por balizas institucionalizadas de matiz constitucional como filtro condicional
de “validade da produção de outras normas no fluxo contínuo da concreção
normativa”553, isto é, como fundamento de validade da norma concreta numa cadeia
(ou pirâmide) de normas554:
551 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 157-159. 552 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 359-360. 553 ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoría e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. p. 53. 554 Nesse sentido, inclusive, a fixação do conteúdo de termos vagos pode ser ajustado aos limites que a recondução à principiologia constitucional de sua concreção permite, sendo oportuno citar o caso do termo família no bem de família, exposto por Teresa Arruda Alvim Wambier: “É, também, oportuno mencionar-se como se deu a evolução da compreensão a respeito do que seja família, para efeito da incidência da Lei 8.009/90 que fala da impenhorabilidade do bem de família. A Lei 8.009/1990, criou a figura da impenhorabilidade do bem de família. No art. 1°, estabelece a regra de que ‘O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”. Uma das possíveis interpretações deste dispositivo, que foi a que prevaleceu durante algum tempo, é de que a regra diz respeito exclusivamente às situações em que haja um casal ou entidade familiar. Essa forma de compreender o sentido da norma deixa à margem de sua proteção os solteiros, irmãos, viúvos, com ou sem filhos, separados. Paulatinamente, todavia, esse entendimento foi se alterando, para se passar a admitir que, para efeito de incidência do favor da lei, seria também família ou entidade familiar, ficando o imóvel que reside(m) fora do alcance da penhora: a) a viúva(o) que resida ou não, com os filhos; b) o ex-cônjuge, separado judicialmente; c) os irmãos solteiros que vivam juntos. Porém, a situação mais polêmica sempre foi a do devedor solteiro e, que mora sozinho. O STJ, até 1999, vinha admitindo a penhora, posição que se alterou o pioneiro acórdão decorrente do EDREsp 182.223, da relatoria do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, da 6ª T. (DJ 10.05.1999), com voto vencedor de relatoria do Min. Humberto Gomes de Barros, para se considerar que o indivíduo que reside sozinho também tem seu imóvel protegido pela lei Lei 8.009/1990. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In:
p. 199
“É de se ressaltar que essa fundamentação deve possuir como lastro a história institucional da comunidade política. Essa história institucional se apresenta emblematicamente nos princípios (constitucionais) e nas decisões corretas tomadas no passado. A decisão fundamentada de forma adequada deve, portanto, espelhar uma reconstrução dos elos da cadeia discursiva que compõem a história institucional, cujos marcos iluminadores são os princípios que constituem a moralidade da comunidade política. Em termos simples, a cláusula geral e o conceito jurídico indeterminado somente terão uso legítimo/constitucionalmente adequado se forem manejados para concretizar a principiologia constitucional, mas nunca para afastar-se da legalidade vigente para fazer prevalecer sua discricionariedade.”555
Da mesma forma que o preço vil, em que a parte no processo civil
executa um crédito que diz lhe ser devido, também se discute em direito tributário
qual seria a delimitação do significado do “confisco” na vedação de utilizar tributo
com esse efeito, isto é, qual seria o limite aceitável para que, superado, possa se ter
caracterizado esse conceito; a respeito:
“A ideia de confisco não tem em si essa dificuldade. O problema reside na definição do conceito, na delimitação da ideia, como limite a partir do qual incide a vedação do art. 150, IV, da Constituição Federal. Aquilo que para alguns tem efeitos confiscatórios, para outros pode perfeitamente apresentar-se como forma lídima de exigência tributária. A temática sobre as linhas demarcatórias do confisco, em matéria de tributo, decididamente não foi desenvolvida de modo satisfatório, podendo-se dizer que sua doutrina está ainda por ser elaborada. Dos inúmeros trabalhos de cunho científico editados por autores do assim chamado direito continental europeu, nenhum deles logrou obter as fronteiras do assunto exibindo-as com a nitidez que a relevância da matéria requer. Igualmente, as elaborações jurisprudenciais pouco têm esclarecido o critério adequado para isolar-se o ponto de ingresso nos territórios do confisco. Todas as tendências até aqui encetadas revelam a complexidade do tema e, o que é pior,
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (coord.) Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 77-78). 555 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 359-360.
p. 200
a falta de perspectivas para o encontro de uma saída dotada de racionalidade científica.”556
Essa noção revela também a vagueza semântica e dificuldades
semelhantes em seu preenchimento; a precisão normativa deve atrelar-se a um caso
concreto, não se podendo efetivar uma definição abstrata e geral. Nesse sentido, já se
empreendeu aproximações de que “não há necessidade do tributo corresponder ao
valor do imóvel ou consumir integralmente a renda para configurar-se confisco. (...)
do contrário, tributo com alíquota de 99% sobre a base imponível estaria tutelado pelo
sistema por não ser confiscatório”557; concluindo-se que, em verdade, o significado
desse conceito deve ser mensurado em cotejo com o direito de propriedade, como
finalidade da norma em sua regulação social,558 outro aspecto da concreção.
O preço vil não poderá, da mesma forma, por sua relativa
indeterminação semântica, ser precisado através de uma teorização geral que esgote
aprioristicamente as possibilidades de concreção e a vagueza semântica, pois essa
dimensão incita à contínua reinterpretação e reelaboração de significados. Nessa
esteira, observou a doutrina:
“Como já vinha firmando nos tribunais, ainda antes do atual Código, apenas o exame do caso concreto – levando-se em conta inclusive os princípios do menor sacrifício e da máxima utilidade da execução – permitirá a exata identificação do preço vil, que, em determinadas circunstâncias, pode ser menor do que cinquenta por cento do valor que a avaliação atribui ao bem. A decisão do juiz acerca do tema precisará de fundamentação (CF, art. 93, IX; CPC/2015, arts. 11 e 489, § 1° e 2°)”559
556 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 179-180. 557 DANILEVICZ, Ígor. Direito tributário e confisco. Algumas aproximações acerca do tema. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 406. 558 DANILEVICZ, Ígor. Direito tributário e confisco. Algumas aproximações acerca do tema. In: MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. (org.). Faculdade de Direito: O ensino jurídico no limiar do novo século. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 405-406. 559 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Execução. Vol. III. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 338.
p. 201
Há um contexto social atinente às transações econômicas que deve
ser considerado e avaliado no preenchimento do sentido concreto de preço vil. Dentro
dessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que a arrematação de
“implementos agrícolas tidos como mal conservados”560 podem ser arrematados por
61% do valor de avaliação sem que isso caracterize preço vil, o que leva em
consideração as possibilidades negociais de tais bens num contexto hermenêutico e
mediante valoração judicial, na concreção da norma naquela hipótese, bem como a
manifestação a respeito de uma dada compreensão do conceito preenchido, geradora
de legitimidade consensual do discurso.
Apenas pode-se atribuir determinados critérios que concernem à
concreção para que se expressem na fundamentação da sentença e analisar os casos
mediante esse processo. Muito menos chega-se a uma definição geral e abstrata de
cada vaguidade semântica ou do resultado necessário (correto), mas que pode ser
contingencialmente determinado como o necessário (correto), naquela situação.
Nesse sentido, expõe em termos teóricos Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno:
“de modos diferentes, Kelsen e, depois dele Hart, apontam o fato de que quando uma norma (geral) é aplicada a um caso concreto a sua vagueza impossibilita a obtenção de uma única solução. (...). O fato de, passada a euforia das codificações, ter-se mostrado que o modelo kantiano é insustentável, não quer dizer porém que o modelo da imperfeição de Kelsen e Hart seja correto. Ele é em princípio correto, porque, à primeira vista, parece de fato haver uma indeterminação na aplicação do direito. O desafio da teoria jurídica nos últimos 50 anos vem
560 Processo civil. Recurso especial. Embargos à arrematação. Venda judicial. Valor arrematado. Sessenta e um por cento (61%) do valor avaliado. Implementos agrícolas. Estado de conservação não satisfatório. Preço vil. Inexistência. Auto de arrematação. Prazo para assinatura não observado. Direito de remição não exercido. Ausência de prejuízo. Nulidade afastada. Ausência de assinatura do auto pelo escrivão. Prequestionamento. Embargos à arrematação. Intuito protelatório. Reexame de prova. - A jurisprudência do STJ considera, em regra, vil o preço ofertado que não alcance cinqüenta por cento do valor de avaliação. - Se os bens, implementos agrícolas tidos como mal conservados, foram arrematados por sessenta e um (61%) do valor de avaliação, não se verifica na hipótese a nulidade fundada em preço vil. - A assinatura do auto de arrematação sem a observância do prazo de vinte e quatro horas não acarreta a nulidade se inexistir qualquer elemento hábil a comprovar o exercício do direito de remição. - É inadmissível o recurso especial na parte em que não houve o prequestionamento do direito tido por violado e se dependa, a sua análise, de reexame de prova. Recurso especial não conhecido. (REsp 556.709/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/11/2003, DJ 10/02/2004, p. 253)
p. 202
sendo desenvolver um modelo de aplicação que não signifique a volta ao modelo perfeito de Kant. Constituem tentativas nesse sentido as teorias de Dworkin e Alexy. Por um lado, a teoria de Dworkin prega, como o modelo da perfeição de Kant, uma única solução para cada caso, mas, por outro lado, ela diverge do modelo kantiano, pois nela a solução não decorre de uma legislação perfeita, mas sim de um processo de aplicação em que é possível descobrir a única resposta correta. Em outros termos, a única resposta surge no processo de interpretação (legal reasoning). Por essa razão vou denominar o modelo de Dworkin o ‘modelo da aplicação perfeita’. O modelo de Alexy tem um ponto em comum com o modelo de Dworkin: a aceitação de que a legislação não é perfeita e a constatação da importância do processo de interpretação (em Alexy, argumentação). Mas Alexy, ao contrário de Dworkin, não entende ser possível uma única solução para todo e qualquer caso. (...) Por essa razão, denominarei o modelo de Alexy ‘o modelo da aplicação relativamente perfeita (ou relativamente imperfeita)’.”561
Com efeito, dentro da teoria do direito de Robert Alexy562, tanto
ordenamentos jurídicos como um todo como decisões jurídicas isoladas suscitam uma
pretensão de correção, caso não haja a pretensão de correção (explícita ou
implicitamente sugere ser qualificável como correta) não se trata de um sistema
jurídico: dessa pretensão de correção surge a pretensão de fundamentabilidade do
discurso, de que o sistema jurídico está aberto à argumentação ético-jurídica,
ensejando a possibilidade de argumentos melhores e piores e de que a
fundamentabilidade possui níveis de desenvolvimento, podendo ser mais ou menos
elevados.
Nesse quadro teórico de Alexy, o fato da decisão judicial ter uma
fundamentação irracional, deficiente, ausente ou estar mal fundamentada não lhe
retira o caráter de decisão judicial, pois a fundamentação possui um aspecto
561 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre
Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 5-7. 562 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 256-257 e 266-268.
p. 203
qualitativo e não definitório do ato como integrante do sistema jurídico, sendo passível
de graus de qualidade diversos:563
“O problema mais importante resulta do fato de que não se pretende que decisões jurídicas sejam corretamente fundamentáveis de um modo absoluto, mas sim que seja possível, no contexto do respectivo ordenamento jurídico válido, fundamentá-las de forma correta, o que ocorre quando elas podem ser fundamentadas racionalmente”.564
Não há um modelo de aplicação perfeita, caso contrário seria
despicienda a celeuma em torno da interpretação e aplicação do direito. A forma de
conciliar a ausência de uma discricionariedade interpretativa com a possibilidade de
múltiplas respostas está em que, na realidade há uma resposta adequada (ou certa)
para o caso565 em julgamento naquela conjuntura civilizacional e cultural, conforme
as circunstâncias daquele momento histórico, pois vale lembrar que a construção do
conhecimento e mesmo da compreensão de um determinado fenômeno ou fato é um
processo contínuo que comporta níveis sucessivos de superação e aperfeiçoamento:
“Deveras, a questão da indeterminação dos conceitos resolve-se na historicidade das noções – lá onde a doutrina brasileira erroneamente pensa que há conceito indeterminado há, na verdade, noção. E a noção jurídica deve ser definida como ‘ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e
563 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 267. 564 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 268. 565 Teresa Arruda Alvim adota a concepção de resposta correta como um “pressuposto operativo ou de operabilidade do sistema”, ainda que não se possa definir um método de aplicação que implique uma única possibilidade para todo caso (reconhece, assim, exceções), o que permite remontar à concomitância de múltiplas possibilidades e ausência de discricionariedade, com base na racionalidade interpretativa e no nível de conhecimento de um dado momento para o caso concreto; diz a autora: “Temos insistido na ideia de que cada caso comporta uma só decisão que seja tida como correta. Embora, de um lado, tenhamos consciência de que esta regra comporta exceções, de outro, temos absoluta convicção de que deve sempre nortear a atitude do juiz ao buscar a forma de resolver o caso que se coloca sob sua apreciação. O juiz deve ter como pano de fundo a regra de que só há uma decisão correta para aquele caso: trata-se de um pressuposto operativo de funcionamento ou de operabilidade do sistema. No mesmo sentido, Ronald Dworkin: A decisão judicial ‘é escrita de modo a parecer assegurar a uma das partes (a que venceu) que lhe cabe um direito preexistente a ganhar a causa, mas esta ideia seria só uma ficção’.” (ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 8ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 261).
p. 204
superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas’ (Sartre 1968).”566
Se quisermos descer à estrutura da concreção e perquirir acerca do
emprego de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, isto é, conceitos
com termos vagos, na fundamentação de decisões, será inexorável adentrar em como
a valoração empresta as concepções do contexto social em que está inserida a
aplicação das normas.
A partir daí se inicia uma construção transversal, que não se inter-
relaciona com a fundamentação de uma decisão mediante concreção desses conceitos
dentro de um âmbito mais geral de uma teoria da interpretação que, por sua vez, se
enquadra num contexto mais geral ainda, de uma teoria do direito.
566 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 162.
p. 205
8. O intérprete da decisão e a concreção da vagueza normativa: uma atmosfera
semântico-pragmática
Os conceitos vagos ou indeterminados, juridicamente, possuem um
grau mais elevado de indeterminação, 567 como acentua Atienza, o conceito jurídico
indeterminado possui uma qualificação valorativa a ser atribuída e uma ausência de
elementos descritivos precisos:
“Poder-se-ia dizer que quando o legislador guia a conduta mediante um ‘conceito jurídico indeterminado’ o que faz é ordenar ou proibir ações que mereçam uma certa qualificação valorativa sem determinar por propriedades descritivas quais são as condições de aplicação da qualificação valorativa em questão.”568
Fundamental saber como o intérprete emprestará sua concepção
valorativa ao conceito jurídico indeterminado, através de quais processos formulativos
poderá angariar elementos para preencher os conceitos jurídicos indeterminados; dado
que esses necessariamente passarão por um processo valorativo (na inexistência de uma
linguagem artificial que determine ex ante sua aplicação, o que o transformaria em regra
facilmente subsumível), é essencial descrever o processo de sua aplicação concreta e de
como são hauridos os elementos subjacentes à essa aplicação concreta.
Estes esquemas estão subjacentes no processo de determinação da
norma em relação a conceitos vagos e devem ser explicitados e determinados para que se
entenda fundamentada na decisão. Nesse sentido:
“Vale dizer: a norma é uma outorga de significado ao texto e a elementos não textuais da ordem jurídica, que são reconstruídos pela atividade do intérprete. É uma atribuição de sentido a um enunciado linguístico. A norma é na verdade a interpretação da
567 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos
Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 212. 568 ATIENZA, Manuel. Ilícitos Atípicos: Sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 37.
p. 206
norma: ela simplesmente ainda não é antes da sua interpretação. (...), de modo que entre texto e norma existe sempre uma atividade mediativa do intérprete que demanda individualizações, valorações e escolhas entre diferentes possibilidades de sentidos linguísticos para definição da norma.”569
Iremos descrever, nesse capítulo, como o julgador obtém e emprega
modelos e esquemas de representações descritivas da realidade social para definir
concretamente a incidência de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais e de
que formas o uso desses modelos e esquemas está em conformidade à exigência de
fundamentação.
Nesse momento, o trabalho deve uma busca por modelos de concreção
da norma vaga que estejam assentados na intersubjetividade, afastando, o quanto possível,
que a fundamentação se dê por expedientes que supõem a suficiência do texto normativo
combinada com a elaborações implícitas na fundamentação sob a escusa da consciência
do julgador.
Isto é, busca-se um modelo que remonte ao que há de comum e
comunicável nos conceitos vagos dentro da intersubjetividade, para que a fundamentação
seja compatível com o conteúdo desse dever constitucional nas decisões, como bem
salienta Lenio Streck a respeito: “O ato interpretativo não é produto nem da objetividade
plenipotenciária do texto e tampouco de uma atitude solipsista do intérprete: o paradigma
do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade.”570
Essa formulação, que busca traçar processos ocorridos na concreção de
normas vagas e se propugna que estejam, em alguma medida, expressas na
fundamentação, é um modelo descritivo a partir dos fundamentos teóricos explanados,
que procura conciliar o conhecimento e o objeto a ser conhecido a partir da
569 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do controle à interpretação, da
jurisprudência ao precedente. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 56. 570 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 274.
p. 207
interdisciplinaridade, sem separar o conhecimento técnico do mundo em que está
inscrito571, mas sem que se possa esgotar a complexidade do fenômeno real:572
“Every theory is a modelization of reality – works like a map. Reality is extremely complex, therefore a reduction is needed in order to understand it. A theory is a reduction of a complex reality, in order to understand it somehow. Just like a map, it permits to go to a destination. But a theory cannot be mistaken with reality, as a map cannot be mistaken with a city – if the map were the city, it would be the city, and not a map – and this counts for theories also. Every theory, as every map, has the goal to situate a subject in a complex reality. Physics permits to understand the functioning of certain natural phenomena, as do chemistry; math enables to reach proved results; theory of law permits to situate a subject in a reality of social regulation. In case a theory cannot reach its goal to guide subjects in a complex space – it must be thrown away, searching for a more adequate for that task. There is a problem with ontologizing theories, in other words, taking them for reality itself (even if such thing does not exist), as this discard process becomes much more difficult.” 573
571 “Para o entendimento desse mundo, agora vazio de valores, novas abordagens procuram superar o antagonismo entre conhecimento e objeto a ser conhecido. A interdisciplinaridade é um importante instrumento dessa superação, por não separar o saber técnico (que acarreta o progresso científico da nossa era) do mundo ao qual esse conhecimento se destina. Assim, a interdisciplinaridade é considerada como a mais recente tendência da teoria do conhecimento, decorrência obrigatória da modernidade, possibilitando que, na produção do saber, não se incida nem no radical cientificismo formalista (objetivismo), nem no humanismo exagerado (subjetivismo). Tal saber caracteriza-se por ser obtido a partir da predisposição para um encontro entre diferentes pontos de vista ser obtido a partir da predisposição para um encontro entre diferentes pontos de vista (diferentes consciências), que o poder levar, criativamente, à transformação da realidade. Situando o conhecimento interdisciplinar no contexto das pesquisas orientadas, Hilton Japiassu conclui que ele constitui instrumento de reorganização do meio científico, de modo a desencadear uma transformação institucional mais adequada ao bem da sociedade e do homem. Para o autor, isso ocorre porque esse saber toma de empréstimo às diferentes disciplinas os respectivos esquemas conceituais de análise, submete-os à comparação e ao julgamento e, por fim, promove uma mútua integração.“ (PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: Aspectos da lógica da decisão judicial. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2013. p. 32). 572 Nessa linha, propõe Clarice von Oertzen de Araújo: “a realidade – aquilo que somos, o que nos circunda, nos sustenta, mas que também nos domina e alimenta – é mais rica, mutável, mais viva do que os sistemas e teorias que pretendem retê-la. Não é a realidade o que conhecemos, mas somente uma parte dela; apenas a aprcela que sujeitamos à linguagem, às representações e aos conceitos. ” (ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: teoría e crítica. São Paulo: Noeses, 2011. p. 15). 573 BRANDÃO, André Martins. How they decide in law systems? An approach on systemic constructionism. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). Vol. 8, n. 2, p. 234-248. Maio-Agosto/2016. p. 239-240. Em tradução livre: “Cada teoria é uma modelagem da realidade – funciona como um mapa. A realidade é extremamente complexa, de forma que uma redução é necessária para compreendê-la. Assim como um mapa, permite-se ir até um destino. Mas a teoria não pode ser confundida com a realidade, como um mapa não pode ser confundido com a cidade – se o mapa fosse a cidade, seria a cidade e não um mapa – e isso conta para teorias, também. Toda teoria, assim como todo mapa, tem o objetivo de situar um sujeito numa realidade complexa. A física permite entender o
p. 208
Importa destacar que, na medida que se busca um modelo com
pressupostos que alcancem além dos elementos formais do positivismo e, por isso mesmo,
busquem contribuições para a interpretação e justificação nos casos de concreção de
normas com conceitos vagos, há uma gradual exigência de elementos além das regras de
lógica formal, que se mostram insuficientes, embora mais amplamente aceitáveis no
discurso, como bem pontuou Alexy:
“O dilema de toda teoria do discurso prático consiste no fato de sua significância decisória e com isso sua utilidade aumentarem com a medida de sua força, mas suas chances de ser em geral aceita diminuírem com isso. Quem exige por exemplo somente a observância das regras da lógica, a verdade das premissas empíricas empregadas e talvez ainda a consideração das consequências pode rapidamente encontrar ampla concordância em relação a essas exigências, mas tem que pagar por isso com a franqueza dos critérios oferecidos.”574
O intérprete é compreendido, na formulação aqui exposta, como um
construto de significados formado através de sentidos apreendidos, conforme a
experiência individual e coletiva e um dado nível atual e momentâneo de compreensão
acerca do mundo extensional e conceitual, através de experiências comunicativas que
comportam aproximações, confirmações e refutações.
Assim, significados vão se construindo ou mesmo se aperfeiçoando nas
relações comunicativas sobre as experiências de articulação do mundo, em interações
realizadas através de uma estrutura lógica de um sistema de signos, cuja organização
interna permite a definição e diferenciação de seus elementos nas relações estabelecidas,
criando o conteúdo que será utilizado em termos vagos.
Assim, passam-se a ser formados os conceitos que, posteriormente,
serão empregados, na comunicação e na decisão, que comunica a medida a ser tomada no
funcionamento de certos fenômenos naturais, assim como a química; a matemática permite alcançar resultados demonstrados; a teoria do direito permite situar o sujeito numa realidade de regulação social. No caso de uma teoria não alcançar seu objetivo de guiar sujeitos num espaço complexo – ela deve ser descartada, procurando-se uma mais adequada para a tarefa. Há um problema em ontologizar teorias, em outras palavras, toma-las como a própria realidade (mesmo que tal coisa não exista), na medida em que o processo de descarte torna-se muito mais difícil.” 574 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Organização, tradução e estudo introdutório: Alexandre
Travessoni Gomes Trivisonno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 42.
p. 209
processo. Ao tratar da compreensão do significado não apenas como objeto referente,
Quine procura contextos em que não sejam buscados como entidades mentais
“intermediárias”,575 mencionando:
“What matters rather is likeness in relevant respects. Now the problem of finding the relevant respects is, if we think of the matter in a sufficiently oversimplified way, a problem typical of empirical science. We observe a speaker of Kalaba, say – to adopt Pike’s myth – and we look for correlations or so-called causal connections between the noises he makes and the other things are observed to be happening. As in any empirical search for correlations or so-called causal connections, we guess at the relevance of one or another feature and then try by further observation, or even experiment, to confirm or refute our hypothesis. Actually, in lexicography this guessing at possible relevances is expedited by our natural familiarity with basic lines of human interest. Finally, having found fair evidence for correlating a given Kalaba sound sequence with a given combination of circumstances, we conjecture synonymy of that sound sequence with another, in English, say, which is correlated with the same circumstances. “576
Márcio Pugliese, em sua Teoria do Direito, preconiza ser desnecessária
a delimitação ontológica do conjunto de objetos do conhecimento do mundo (res extensa
cartesiana), a delimitação já se mostra processos comunicativos intersubjetivos e pelas
práticas discursivas,577 há, assim, uma superação do significado como mera referência na
linguagem e de superação gnoseológica da relação sujeito-objeto, como menciona o
autor: “não há sentido de refletir-se sobre o que há em geral, é possível refletir sobre o
575 QUINE, Willard van Orman. The Problem of Meaning in Linguistics. In: From a Logical Point of View. 2ª ed. New York: Harper & Row Publishers, 1963. p. 47-48. 576 QUINE, Willard van Orman. The Problem of Meaning in Linguistics. In: From a Logical Point of View. 2ª ed. New York: Harper & Row Publishers, 1963. p. 60. Em tradução livre: “O que importa mesmo é a semelhança nos aspectos relevantes. Agora, o problema de encontrar os aspectos relevantes é, se pensarmos no assunto de uma forma simplificada o bastante, um problema típico da ciência empírica. Nós observamos um falante de Kalaba falar – para adotar o mito de Pike – e nós olhamos para correlações ou para as assim chamadas conexões causais entre os sons que ele faz e as outras coisas que se observa estarem acontecendo. Assim como em qualquer pesquisa empírica por correlações ou pelas assim chamadas conexões causais, nós supomos sobre a relevância de um ou outro aspecto e, então, tenta-se confirmar ou refutar a hipótese por observação ou mesmo experimentação subsequente. Na verdade, na lexicografia, essa suposição de possíveis relevâncias é acelerada pela nossa familiaridade natural com linhas básicas de interesse humano. Finalmente, tendo-se encontrado razoável evidência para correlacionar uma determinada sequência de sons em Kalaba com uma determinada combinação de circunstâncias, nós conjecturamos sinônimos dessa sequência de sons com uma outra, em inglês, digamos, que este correlacionada com as mesmas circunstâncias.” 577 PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 160.
p. 210
que está havendo, mesmo porque o sujeito é diverso a cada estabelecimento de uma
cosmovisão como decorrência de sua posição de constituído/constituinte do estado de
coisas para si”578.
Quine, retomando a impropriedade de identificação do significado e da
referência a objetos, asseverou sobre nossa suposição de construção equivalente de
organização conceitual:
“Basic differences in language are bound up, as likely as not, with differences in the way in which the speakers articulate the world itself into thing and properties, time and space, elements, forces, spirits, and so on. (…) What provides the lexicographer with an entering wedge is the fact that there are many basic features of men’s ways of conceptualizing their environment, of breaking the world down into things, which are common to all cultures. Every man is likely to see an apple or breadfruit or rabbit first and foremost as a unitary whole rather than as a congeries of smaller units or as fragment of a larger environment, though from a sophisticated point of view all these attitudes are tenable. Every man will tend to segregate a mass of moving matter as a unit, separate from the static background, and pay it particular attention. Again there are conspicuous phenomena of weather which one man may be expected to endow with such the same conceptual boundaries as another; and similarly perhaps for some basic internal states such as hunger. As long as we adhere to this presumably common fund of conceptualization, we can successfully proceed on the working assumption that our Kalaba speaker and our English speaker, observed in like external situations, differ only in how they say things and not in what they say. The nature of this entering wedge into a strange lexicon encourages the misconception of meaning as reference, since words at this stage are construed, typically, by pointing to the object referred to. So it may not be amiss to remind ourselves that meaning is not reference even here.” 579
578 PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 160. 579 QUINE, Willard van Orman. The Problem of Meaning in Linguistics. In: From a Logical Point of View. 2ª ed. New York: Harper & Row Publishers, 1963. p. 61-62. Em tradução livre: “Diferenças básicas na linguagem estão ligadas, tão prováveis quanto não, com diferenças na forma como os falantes articulam o próprio mundo em coisas e propriedades, tempo e espaço, elementos, forças, espíritos e assim por diante. (...) O que fornece ao lexicógrafo um ponto de entrada é o fato de que existem muitas características básicas nas formas como o homem idealiza seu ambiente, nas formas de quebrar o mundo em elementos, que são comuns a todas as culturas. Todo homem está propenso a ver uma maçã ou uma fruta-pão ou um coelho primeiro e acima de tudo como um todo unitário e não como um agregado de unidades menores ou como um fragmento de um ambiente maior, embora de um ponto de vista sofisticado, todas essas atitudes são sustentáveis. Todo homem tenderá a segregar uma massa de matéria em movimento como uma unidade, separada do plano de fundo estático e prestar-lhe particular atenção.
p. 211
A aprendizagem e o aculturamento sofrido pelo intérprete das normas
torna-se cada vez mais base da estruturação jurídica pós-positivista, passando a ser
insuficiente a referência extensional e adquirindo maior relevância a concepção de
articulação dos elementos extra-jurídicos.580 Ademais, como afirma Georges Abboud, a
compreensão se torna uma questão central que não se exaure no texto normativo pós-
positivista:581
“o problema do compreender é determinante para a formatação do sentido que se projeta dos enunciados jurídicos (textos normativos), toda questão jurídica deve passar pela exploração deste ‘elemento hermenêutico’ que caracteriza a experiência jurídica. Há de se ressaltar que, nesse enfoque, hermenêutica deixa de ser uma técnica interpretativa ou uma ferramenta metodológica disponível para determinação da correta interpretação da legislação e passa a ser encarada como um modo de ser daquele que compreende o direito, a linguagem passa a ser constituinte e constituidora do mundo do homem.”582
Mais uma vez, há fenômenos conspícuos do clima que uma pessoa pode esperar atribuir os mesmos limites conceituais que outra; e similarmente, talvez, para alguns estados internos básicos, como a fome. Enquanto nós aderirmos a essa provisão presumivelmente comum de conceituação, nós podemos prosseguir com sucesso na suposição de trabalho de que nosso falante de Kalaba e nosso falante de inglês, observados em situações externas semelhantes, diferem apenas em como eles dizem coisas e não no que eles dizem. A natureza desse ponto de entrada num léxico estranho encoraja o equívoco entre significado e referência, uma vez que as palavras nesse estágio são inferidas, tipicamente, apontando para o objeto em referência. Então não podemos deslembrar que significado não é referência nem mesmo aqui.” 580 Nesse contexto, menciona o professor António Menezes Cordeiro na introdução à edição portuguesa da obra de Canaris: “O Direito – qualquer Direito – depende de uma aprendizagem, sofrida pelos membros da comunidade jurídica; (...). Numa sociedade primitiva, de estruturação normativa simplificada, essa aprendizagem poderia ser ministrada de modo empírico, isto é, fazendo corresponder, em termos descritivos, às situações típicas da vida, determinadas consequências jurídicas. Atingindo, porém, um determinado patamar de desenvolvimento social, a aprendizagem requer reduções dogmáticas, isto é, generalizações simplificadas que facultem a transmissão de conhecimentos crescentemente complexos. (...) O sistema externo torna-se necessário e imprescindível. E quando isso suceda, ele vai bulir, de modo fatal e compreensível, com o próprio sistema interno. O universo das realidades jurídicas, nas suas previsões e nas suas consequências é, pela natureza cultural, logo espiritual ou imaterial, do Direito, um conjunto de possibilidades linguisticamente descritas, relativizadas mesmo à própria linguagem utilizada. (...) A ordenação exterior, imprimida à realidade jurídica com puras preocupações de estudo e aprendizagem, vai moldar, em maior ou menor grau, seja as próprias proposições jurídicas, seja o pensamento geral de que vai depender a sua concretização ulterior.” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução António Menezes Cordeiro. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2002. p. LXVI-LXVII, passim). 581 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 61-62. 582 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 62.
p. 212
Vale lembrar, com Riccardo Guastini, que a interpretação e a tradução
são congêneres que visam reformular textos, sendo o discurso do intérprete assimilável
ao discurso do tradutor: “traduzir significa reformular um texto numa língua diferente
daquela na qual este é formulado. Interpretar significa reformular um texto, não
importando se na mesma língua (...) Em direito, a interpretação é reformulação dos textos
normativos das fontes”583.
A construção dos significados e a posição do intérprete como
constituído/constituinte passa a depender cada vez mais de uma compreensão imersa no
segmento cultural de uma realidade constituída num processo comunicativo de crescente
abstração e complexidade, com interpretações subjacentes de interesses e necessidades
culturalmente forjadas, nesse sentido, arremata Quine:
“I have suggested that our lexicographer’s obvious first moves in picking up some initial Kalaba vocabulary are at bottom a matter of exploiting the overlap of our cultures. From this nucleus he works outward, ever more fallibly and conjecturally, by a series of clues and hunches. (…) But, as the sentences undergoing translation get further and further from mere reports of common observations, the clarity of any possible conflict decreases; the lexicographer comes to depend increasingly on a projection of himself, with his Indo-European Weltanschauung, into the sandals of his Kalaba informant.584
A partir desses elementos, 585 o intérprete desenvolve sua visão de
mundo ou cosmovisão (Weltanschauung) 586 , apreendendo conceitos em sucessivas
583 GUASTINI, Ricardo. Das Fontes às Normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 26-27. 584 QUINE, Willard van Orman. The Problem of Meaning in Linguistics. In: From a Logical Point of View. 2ª ed. New York: Harper & Row Publishers, 1963. p. 62-63. Em tradução livre: “Sugeri que os primeiros passos óbvios de nosso lexicógrafo em buscar algum vocabulário inicial de Kalaba são, no fundo, uma questão de explorar a sobreposição de nossas culturas. A partir deste núcleo, ele trabalha para fora, de maneira cada vez mais falível e conjectural, por uma série de pistas e palpites. (...) Mas, na medida em que as frases em tradução ultrapassam cada vez mais meros relatos de observações comuns, a clareza de qualquer possível conflito diminui; o lexicógrafo passa a depender crescentemente de uma projeção de si mesmo, com o seu Weltanschauung indo-europeu, para se colocar nos pés de seu informante em Kalaba.” 585 A abordagem empregada no aprendizado da linguagem, também pode ser aplicada por analogia no uso por falantes da mesma língua ou na concepção de conceitos abstratos por diferentes intérpretes na medida em que estes produzem um idioleto particular através de sua experiência e percepção individuais, ao passo que permanece uma intersecção não vazia de significados de um discurso permeado por representações sociais comuns; o que se apresenta como um paralelismo com a articulação comum de conceptualização do mundo em diferentes culturas, no caso de diferentes idiomas. 586 A expressão, ainda, comporta ser traduzida como “intuição de mundo”.
p. 213
interações sociais, cuja complexidade e abstração tende a ser crescente; assim,
reconstruindo o alcance do intérprete em sua prospecção e, ao mesmo tempo,
possibilitando uma redefinição do fato no mundo extensional.
O intérprete, ou agente, que toma para si o desenvolvimento de uma
atividade cognitiva e fundamenta uma decisão, pode ser representado por uma atmosfera
semântico-pragmática, como proposto por Márcio Pugliese: “um conjunto de
informações; dados desestruturados; ideologias; pulsões inconscientes, teorias assumidas
e pressupostas; expectativas e temores; desejos formulados etc. ou, para se empregar uma
metáfora: uma atmosfera semântica com sua respectiva poluição, também
semântica.”587,588
Esse aspecto que deve ser explorado na concreção da vagueza que
objetiva superar a indeterminação e preencher os termos vagos de um conceito jurídico
indeterminado ou cláusula geral, isto é, tomar essa atividade realizada pelo intérprete,
mas sem identifica-la como um processo puramente subjetivo, buscando os elementos
extra-legais de orientação para a construção de um discurso controlável, embora não
puramente lógico-formal, como menciona Larenz:
“toda a aplicação de uma regra geral a um caso particular é necessariamente uma atividade pessoal, pelo que será uma ‘empresa inútil’ querer-se anular por completo a individualidade do juiz; só que se esforça, ao mesmo tempo, por identificar critérios objetivos, de natureza extra-legal, a que possa orientar a investigação do Direito. No fundo, Ehrlich nada mais diz que o que dissera precisamente O. Bülow e hoje é quase universalmente reconhecido: que toda a decisão judicial é uma atividade criadora, dirigida pelo conhecimento.”589
“Nesta medida, não se pode fechar completamente a porta a ingredientes ‘subjectivos’. Uma vez que se trata, no entanto, de
587 PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 159. 588 Segundo Wolfgang Stegmüller, consta ter sido o filósofo e pesquisador de sistemas A. Rapoport quem primeiro atribuiu a expressão “atmosfera semântica”, mas para designar parte do meio ambiente criado pelo próprio homem ao longo de sua evolução cultural: “que se compõe de um mar de palavras, convicções e ideologias. (...) Do meio ambiente semântico, que tem na alimentação de ideias a sua ‘entrada’ (input) e nas expressões verbais as suas ‘saídas’ (output), nascem os imperativos ou solicitações contraditórias entre si dirigidas aos indivíduos.” (STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 490.) 589 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 79.
p. 214
ponderações que requerem uma ratificação mediante operações do intelecto, e nesta medida susceptíveis de controlo, deve ter-se sempre presente a exigência colocada aos juristas de uma tanto quanto possível ‘objectivação’ do processo de interpretação, objectivação que deixa assim de aparecer como impossível, e na sequência da qual se deve obter a decisão de acordo com a lei (‘correctamente entendida’).”590
Nesse quadro, o indivíduo591,592 se apresenta através de uma atmosfera
semântica, formada de representações sociais, doxa e episteme, pela qual se relaciona
590 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 166. 591 Busca-se evitar a consagrada expressão sujeito, por estar vinculada ao esquema sujeito-objeto e, portanto, a supostos subjetivismos e objetivismos, ainda marcante no quadro referencial da filosofia da consciência: “A insistência repousa no fato de se desejar abolir, tanto quanto possível, a ideia de sujeito, autor, agente privilegiado e substituí-los por essa atmosfera resultante de todos os fatores históricos, econômicos e sociais que compõem uma dada cosmovisão numa dada sociedade e sob uma certa inserção no sistema produtivo vigente: o que se tem são atos e efeitos materiais constatáveis, não há nenhum misterioso significado essencial nas coisas, nem um deus ex machina produzindo uma ordem essencial na história. Por simplicidade, falar-se-á em sujeito, agente, ator, para significar aquele que age imerso no grande sistema semântico e, parte própria deste, decide jungido pelo seu estado de conhecimento e a partir do desejo de furtar-se a condições indesejadas ou odiosas frente a objetivos e socialmente (incluindo o aspecto propriamente jurídico) dados fatores atuantes. A grande questão, mesmo para o materialismo dialético, é que o sujeito não está fora do sistema a que analisa, muito ao contrário, padece de todos os efeitos do mesmo e do peculiar modo de produção instaurado. (PUGLIESE, Márcio. Teoria do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 158.)
592 Nietzsche rebela-se contra as “necessidades atomistas” que ainda se perpetuam, dentre elas o “atomismo da alma”, que deveria ser superado, sendo uma suposição equivocada o conceito sintético de “eu”: “Em resumo, a asserção ‘eu penso’ dá a entender que comparo meu estado no presente momento com outros estados meus que conheço, a fim de determinar o que ele é; por conta dessa conexão retrospectiva com um ‘saber complementar’ que não traz nenhuma ‘certeza imediata’ para ‘mim’ – No lugar da ‘certeza imediata’ na qual o povo pode acreditar nesse caso em particular, o filósofo detecta uma série de questões metafísicas que lhe foram apresentadas, verdadeiras questões de consciência para o intelecto, ou seja: “De onde retiro a noção de ‘pensar’? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um ‘eu’, e até mesmo de um ‘eu’ como causa, e por fim, de um ‘eu’ como causa de pensamento?” Quem se aventura a responder essas questões metafísicas de súbito, sob o apelo de uma percepção intuitiva, como a pessoa que diz ‘eu penso e sei que isto, ao menos, é verdade, real e certo’ – vai encontrar no filósofo hoje em dia um sorriso e dois pontos de interrogação.” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução Carlos Duarte e Ana Duarte. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 32-33.) A crítica ao pensamento de Descartes prossegue, impondo a necessidade de abandono do esquema sujeito-objeto; para Nietzsche o “atomismo da alma” é uma crença que carece de um refinamento ainda a ser explorado, tais como a “alma como multiplicidade do sujeito” e a “alma como estrutura social de impulsos e afetos”, sendo o “eu” uma manifestação fragmentária, que encerra diversas dualidades um mesmo ser que comanda e obedece, possui impulsividade e resistência, coação e movimento, há um jogo de forças – para usar uma imagem matemática, um campo vetorial – que está além da suposição de “sujeito”, de sua individualidade e de sua inteireza, que, enfim “não passa de uma estrutura social composta de muitas almas” (Op. cit. p. 28-29 e 35-37, passim). Prossegue o autor: “No que diz respeito às superstições dos lógicos, jamais me cansarei de enfatizar um pequeno e conciso fato que é reconhecido a contragosto por essas mentes crédulas – ou seja, que um pensamento surge quando ‘ele’ quer, e não quando eu quero; por isso é um ato de deturpação dos fatos reais dizer que o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’. Algo pensa; mas que esse ‘algo’ seja precisamente o velho e famoso
p. 215
comunicativamente com outras atmosferas por intersecções não-vazias e por meio dela
pode observar e compreender, num corte quase-contínuo.
Doxa (opinião) e episteme (conhecimento) denotam o estado de
conhecimento ou de saber naquela atmosfera num dado momento, sempre relacionados
ao estágio da civilização em que ela se encontra, com um determinado acúmulo de objetos
conhecidos e implantados no campo da civilização.
Numa consideração platônica, doxa é o primeiro conhecimento, uma
aproximação inicial e superficial de algo, como juízo momentâneo, enquanto a episteme
constitui o conhecimento aprofundado, especializado e preciso, que satisfaz a condição
de poder se relacionar a uma téchne.
A aproximação inicial de uma parcela de uma realidade é formada por
concepções imprecisas e deficientes, que podem ou não passar por um posterior
aperfeiçoamento, em escalas crescentes e de grande gradação de estágios, possibilitando
um aprimoramento virtualmente sem fim de uma determinada parcela de uma realidade.
A concepção do mundo, inicialmente, é impregnada pelo senso comum e pelo realismo
ingênuo, com os quais se passa a agir e a se comunicar, até que percepções mais
aprimoradas possam substituir, parcialmente, as primeiras suposições, que ainda
permanecem em alguma medida na concepção (Weltanschauung) do intérprete.
Usando a ideia de atmosfera semântica, podemos visualizar a doxa na
periferia mais rarefeita da atmosfera-semântica e, à medida que o conhecimento se adensa
e aperfeiçoa, a episteme mais próxima ao núcleo de uma dada atmosfera, adquirindo a
consistência necessária para desempenhar um papel central naquela atmosfera de
densidade variável. Nessa referência de densidade, à episteme também se pode designar
‘eu’ é, para colocar isso de forma suave, somente uma suposição, uma afirmação, o que indubitavelmente não é uma ‘certeza imediata’. Afinal, foi-se longe demais com esse ‘algo pensa’ – pois mesmo esse ‘algo’ contém uma interpretação do processo, e não pertence ao processo em si. Aqui se infere conforme a fórmula gramatical costumeira – ‘Pensar é uma atividade; toda atividade requer um agente que está ativo; consequentemente’. Mais ou menos na mesma linha que o velho atomismo buscou, além da ‘força operante’, a partícula material na qual ela reside e a partir da qual opera – o átomo. As mentes mais severas aprenderam, finalmente, a seguir adiante sem esse residuum da Terra e talvez algum dia possamos nos acostumar, mesmo do ponto de vista dos lógicos, a passar adiante sem esse pequeno ‘algo’ (no qual o respeitável e velho ‘eu’ se refinou).” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução Carlos Duarte e Ana Duarte. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 33-34).
p. 216
um aspecto “arcôntico” (do grego arché), correspondente a princípios basilares ou
elementos principais e estruturantes do conhecimento, o que está por detrás e que sustenta.
A situação de discurso ideal proposta por Habermas pressupõe regras
da ação comunicativa dentre as quais se encontra a possibilidade de questionamento de
qualquer proposta ou premissa, assegurando-se que interpretações possam ser colocadas
em dúvida: “assegura que qualquer reivindicação de validade teórica ou prática pode ser
efetivamente questionada; em outras palavras, haverá acesso livre ao teste da
argumentação.” 593 Esse pressuposto teórico para atingir o consenso racionalmente
motivado que configura a “situação de discurso ideal”, contudo, mostra-se inconciliável
com a necessidade de tomada de decisão e com a ação prática.
O caráter tecnológico na aplicação do direito exige um corte, podendo-
se entender decisão como “suspensão do juízo diante de opções possíveis, a decisão
aparece como um ato final, em que uma possibilidade é escolhida, abandonando-se as
demais” 594 , pressupõe-se, portanto, que nem toda doxa seja aperfeiçoada, mas que
coexistam com a episteme diversos tipos de crenças e elementos irracionais
concomitantemente à compreensão e também à tomada de decisão.
Esse caráter prático ou tecnológico exige o reconhecimento dessa
limitação em conhecer, de que haverá um grau significativo de doxa na decisão, tornando,
assim, importante aferir quais “interpretações de necessidades” de cunho valorativo estão
subjacentes: “este é um aspecto essencial do Direito, em qualquer época histórica,
inclusive a nossa, pois na jurisprudentia se tinha uma forma prática de saber, aquele que
não apenas contempla e descreve, mas também age e prescreve.”595.
Descartes, no discurso do método, após suas considerações a respeito
da ciência, trata de algumas regras morais, regras para o melhor agir prático da vida, não
sendo surpreendente ser justamente nesse momento que sugira ao leitor:
593 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução
Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 62. 594 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed.
São Paulo: Atlas, 2003. p. 311. 595 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p. 83.
p. 217
“E assim, como as ações da vida geralmente não toleram nenhuma demora, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder discernir as mais verdadeiras opiniões, devemos seguir as mais prováveis; e, ainda que não observemos mais probabilidade numas do que nas outras, devemos mesmo assim nos decidir por algumas, e considera-las a seguir não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam à prática, mas como muito verdadeiras e muito certas, porque a razão que nos fez decidir por elas se apresenta como tal.”596
A necessidade de agir e a prática da vida, ínsitas à decisão e ao caráter
tecnológico na aplicação do direito, implicam o uso da doxa, que já está presente numa
dada compreensão do mundo (numa atmosfera semântica), não sendo sempre viável
chegar a ter um conhecimento melhor, como se já sugeria Descartes em relação à regra
de conduta, que também mencionava sobre o aperfeiçoamento do entendimento sobre as
coisas, como ilustração de que há uma constante e permanente aproximação inicial de
uma parcela de uma realidade, ainda imprecisa e deficiente:
“E assim como, ao demolir uma velha casa, reservam-se geralmente os escombros para servir à construção de uma nova, assim também, ao destruir aquelas minhas opiniões que julgava malfundadas, eu fazia diversas observações e adquiria várias experiências que me serviram depois para estabelecer outras mais certas. Ademais, eu continuava a exercitar-me no método que me prescrevera”597
Na atmosfera semântica, também se encontram representações
socialmente marcadas, hauridas numa determinada cultura, que permitem o
conhecimento e o reconhecimento por meio de interpretações possíveis construídas e
objetivadas num meio comum: torna familiar o que é desconhecido, aproximando o
mundo exterior.
Compreender (atividade de cognição) não equivale a apenas processar
informações, não há uma descrição neutra (pode-se mencionar axiologicamente neutra) e
o conhecimento está sempre implicado em interesses humanos através da comunicação e
interação em que são formadas as representações sociais: “as representações sustentadas
pelas influências sociais da comunicação constituem as realidades de nossas vidas
596 DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 61-62. 597 DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 66.
p. 218
cotidianas e servem como o principal meio para estabelecer as associações com as quais
nós nos ligamos uns aos outros”, possibilitando aos indivíduos se orientarem no mundo
material e social e se comunicarem com os integrantes de uma comunidade, as
representações são delineadas em consequência de um equilíbrio específico nos processos
de influência social.598
Não quer dizer a supressão da correlação com o que se designa de
mundo externo, mas significa um reconhecimento de especificidades no modo de
compreender e comunicar na sociedade às quais nossa cognição está ajustada e que não é
possível conseguir “nenhuma informação que não tenha sido distorcida por
representações ‘superimpostas’ aos objetos e às pessoas”, o que torna a cognição a
respeito de uma situação “apenas um elemento de uma cadeia de reação de percepções,
opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas em uma determinada sequência.”599
Isto se dá porque existe uma fragmentação preestabelecida da realidade,
para que seja compreensível uma totalidade que não se pode apreender, há suposições
básicas no entendimento e na compreensão aceitas sem discussão e que dificilmente são
questionadas, podendo, a qualquer momento, se transformarem em meras ilusões, por
fim, nossas reações a acontecimentos e respostas a estímulos se ligam a determinadas
definições comuns aos membros de uma sociedade, há uma orientação para respostas
socialmente comunicáveis e dotadas de eficácia.600
As representações possuem uma natureza convencional e prescritiva.
Convencionalizam objetos, pessoas e acontecimentos,601 atribuindo modelos partilhados
num grupo de pessoas, que passam a ser sintetizados e acrescidos com novos elementos,
forçando pessoas e objetos a assumir a forma determinada ou a se tornar idêntico aos
598 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 8-9, 21 e 30. 599 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 32-33. 600 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 31. 601 “não podemos esquecer que interpretar uma ideia ou um ser não familiar sempre requer categorias, nomes, referências, de tal modo que a entidade nomeada possa ser integrada na ‘sociedade dos conceitos’” (MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 70).
p. 219
outros, ainda que não se adeque exatamente, sob pena de não ser compreendido nem
decodificado:602
“Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanecemos inconscientes dessas convenções.”603
Pelo caráter prescritivo, as representações se impõem sobre a cognição
de forma irresistível, pois constituem toda uma estrutura que está presente antes que se
comece a pensar e compõem uma tradição que indica sobre o que se deve dirigir o
pensamento, assim, são repensadas, recitadas e reapresentadas, o conteúdo da
representação passa a ser parte integrante do sujeito, integrante do conteúdo do próprio
sujeito.
É nesse tipo de interação que a fundamentação de uma decisão obtém
um campo de investigação zetética propícia para a conformação de um modelo que
contribua com a elaboração da motivação de decisões em casos que se reputam
indeterminados ex ante pelo texto normativo, a partir de elementos que apontam para a
realidade social ou que extraem de um contexto sociocultural os aspectos integrativos de
termos vagos. Como propõe Willis Santiago Guerra Filho: “Na investigação zetética, não
existem observações meramente estanques, mas sim interdisciplinares.”604. No mesmo
sentido, conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “a investigação zetética tem sua
602 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 34.) Nota-se a semelhança da imposição de modelos no caráter convencional na delimitação da natureza jurídica de institutos com a aplicação jurídica, mostrando que o fenômeno se espraia no problema descritivo de variados objetos e pode ser remetido à necessidade de saber qual elemento é relevante para determinar uma dada resposta social ou comunicativa - na mesma passagem, esclarece o autor: “Essas convenções nos possibilitam conhecer o que representa o quê: uma mudança de direção ou de cor indica movimento ou temperatura, um determinado sintoma provém, ou não, de uma doença; elas nos ajudam a resolver o problema geral de saber quando interpretar uma mensagem como significante em relação a outras e quando vê-la como um acontecimento fortuito ou casual. ” (MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 34.) 603 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 35. 604 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 54.
p. 220
característica principal na abertura constante para o questionamento dos objetos em todas
as direções”605.
Uma vez difundido e aceito o conteúdo da representação, ele passa a
determinar parte “de nossas inter-relações com os outros, de nossa maneira de julgá-los e
de nossos relacionamentos com eles; isso até mesmo define nossa hierarquia social e
nossos valores”, as representações se expressam como o produto de uma sequência de
elaborações no decurso do tempo e de sucessivas gerações:606
“Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação presente.”607
A representação social possui com um dado objeto uma relação de
simbolização e de interpretação que confere significado, se apresenta como uma
modelização do objeto passível de absorção (e de posterior reconstrução subjetiva) e,
também, como uma forma de saber prática referida por experiências, por participação
social e cultural e por processos ideológicos transversais, enuncia Denise Jodelet.608
É nesse sentido que a significação (o que seria o “objeto” de referência)
do conceito jurídico indeterminado (em realidade os termos vagos da norma) são
construídos dentro de um caráter convencional, dentro de relações comunicativas de
participação sociocultural, como expõe Eros Grau:
“O ‘objeto’ do conceito jurídico não existe ‘em si’; dele não há representação concreta, nem mesmo gráfica. Tal objeto só existe ‘para mim’, de modo tal, porém, que sua existência abstrata apenas tem validade no mundo jurídico quando a este ‘para mim, por força de convenção normativa, corresponde um – seja-me
605 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed.
São Paulo: Atlas, 2003. p. 44. 606 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 36-39. 607 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 37. 608 JODELET, Denise. Représentation Sociales: un domaine en expansion. In: Les Représentation Sociales. Sur la direction de Denise Jodelet. 5e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. p. 61.
p. 221
permitida a expressão – ‘para nós’. Apenas e tão somente na medida em que o ‘objeto’ – a significação – do conceito jurídico possa ser reconhecido uniformemente por um grupo social poderá prestar-se ao cumprimento de sua função, que é a de permitir a aplicação de normas jurídicas com um mínimo de segurança e certeza.”609
Na formação da representação social há um processo de objetivação,
concretizando algo abstrato e substituindo o objeto pela sua imagem, que sempre sofre
simplificações, pois é uma versão da realidade; a partir daí a imagem torna-se o objeto,
usado no discurso, na comunicação e no próprio pensamento: passa-se a comunicar a
representação como o objeto, não mais se falando da então realidade extensional. O status
epistemológico da representação possui caráter prático, orientado para a ação e para a
gestão da relação com o mundo: como propõe Piaget, é um modo de conhecimento
sóciocêntrico, isto é, a serviço de desejos, necessidades e interesses de grupo; a
representação é reconstrução do objeto expressiva do sujeito e implica uma mudança no
seu referente, com distorções, perdas ou suplementações no conteúdo representativo.610
A objetivação torna real (realiza) um nível da realidade – une a ideia de
não familiaridade com a de realidade –, transforma um universo puramente intelectual,
abstrato e remoto na essência da realidade, materializada e acessível no pensamento e na
fala. 611 Nesse processo há a descoberta das qualidades icônicas de uma ideia, a
reprodução de um conceito numa imagem e o preenchimento de vazio com substância,
num nível de realidade criado e mantido pela coletividade, que com ela se esvai sem
possuir existência própria, mediante um paradigma figurativo deixado à solta na
coletividade e aceito como uma realidade convencional:612
“Uma vez que uma sociedade tenha aceito tal paradigma ou núcleo figurativo, ela acha fácil falar sobre tudo o que se relacione com esse paradigma e devido a essa facilidade as palavras que se referem ao paradigma são usadas mais frequentemente. Surgem, então, fórmulas e clichês que o sintetizam e imagens, que eram
609 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e dos princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 149. 610 JODELET, Denise. Représentation Sociales: un domaine en expansion. In: Les Représentation Sociales. Sur la direction de Denise Jodelet. 5e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. p . 69-70. 611 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 71. 612 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 71-73.
p. 222
antes distintas, aglomeram-se ao seu redor. Não somente se fala dele, mas ele passa a ser usado em várias situações sociais, como um meio de compreender outros e a si mesmo, de escolher e decidir. ”613
A existência, na representação social, é convencional e se dá pela
comunicação. Há um farto suprimento de palavras em circulação na sociedade que se
referem a ideias e objetos específicos e os indivíduos (atmosferas semântico-pragmáticas)
estão em constante pressão para “provê-los com sentidos concretos equivalentes”, na
objetivação o conceito deixa de ser signo e passa a ser réplica da realidade.614
Nesse segundo estágio da objetivação, em que a imagem foi totalmente
assimilada e o que é percebido substitui o que é concebido, passa-se de uma relação
secundária ou mediada a uma relação primária imediata em que o material comum da
comunicação encontra-se incorporado na fala, nos sentidos e no ambiente, as imagens
tornam-se essenciais à comunicação e à compreensão sociais e tornam-se elementos da
realidade ao invés de elementos do pensamento, sendo preenchida a defasagem entre a
representação e o que ela representa:615
“A cultura – mas não a ciência – nos incita, hoje, a construir realidades a partir de ideias geralmente significantes. Existem razões óbvias para isso, dentre as quais a mais óbvia, do ponto de vista da sociedade, é apropriar-se e transformar em característica comum o que originalmente pertencia a um campo ou esfera específica. Os filósofos gastaram muito tempo tentando compreender o processo de transferência de uma esfera a outra. Sem representações, sem a metamorfose das palavras em objetos, é absolutamente impossível existir alguma transferência. ”616
Há, também, um processo de ancoragem, em que ocorre o enraizamento
social de uma representação, servindo de substrato comunicativo social (intersecções não-
vazias nas atmosferas semânticas), isto é, uma base de representações coletivamente
partilhadas e, assim, familiares. Quando a novidade de um novo conhecimento não pode
613 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 73. 614 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 72 e 74. 615 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 74-75. 616 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 75.
p. 223
mais ser evitada no seio social, se inicia um trabalho de ancoragem visando familiarizá-
lo e transformá-lo de maneira a integrá-lo no universo de pensamento pré-existente,617
trabalho esse que corresponde a uma função cognitiva essencial da representação e pode
envolver qualquer elemento, até então, estranho ou desconhecido no ambiente social ou
ideológico.618
Na ancoragem algo ainda desconhecido ou estranho é inserido em nosso
sistema particular de categorias conforme o que entendermos apropriado, sendo
reajustado e adquirindo as características do paradigma dessa categoria, mesmo que haja
alguma discrepância, como forma de garantir um mínimo de coerência entre o conhecido
e o desconhecido, tornar uma imagem comunicável e passível de conexão com outras
imagens, conferindo identidade:619
“De um modo geral, minhas observações provam que dar nome a uma pessoa ou coisa é precipitá-la (como uma solução química é precipitada) e que as consequências daí resultantes são tríplices: a) uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e adquire certas características, tendências, etc.; b) a pessoa, ou coisa, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos, através dessas características e tendências; c) a pessoa ou coisa torna-se o objeto de uma convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção”620
Nesse processo de classificar e dar nome a alguma coisa, libertando-a
do anonimato, as características atribuídas ao paradigma de categoria são coextensivas a
todos os membros da categoria e a neutralidade proibida, estende-se a aceitação e a
rejeição quando forem positivas ou negativas ao assumir seu lugar na escala hierárquica
e, com essa avaliação, revela-se “nossa ‘teoria’ da sociedade e da natureza humana”,621
617 Juntamente com a objetivação, há uma atividade semelhante à vulgarização na ciência, em determinados aspectos, como a distorção da síntese de conceitos em fórmulas acessíveis e o amplo uso em situações sociais e na comunicação não especializada, integrando as teorias mais avançadas no quadro geral do conhecimento. 618 JODELET, Denise. Représentation Sociales: un domaine en expansion. In: Les Représentation Sociales. Sur la direction de Denise Jodelet. 5e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. p . 68. 619 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 61 e 66. 620 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 67. 621 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 62-65, passim.
p. 224
ou podemos dizer, revelam-se nossas interpretações de interesses e valores subjacentes
às convenções na comunicação.
A ancoragem enraíza a representação e seu objeto numa rede de
significados que permite situá-los em termos de valores sociais e lhes dar coerência, serve
à instrumentalização do conhecimento por conferir um valor funcional; assim fornece
uma noção de realidade concreta aos conceitos a permitir um uso direto na ação e na
comunicação, especifica Denise Jodelet:622 “La ‘naturalisation’ des notions leur donne
valeur de réalités concrètes directement lisibles et utilisables dans l’action sur le monde
et les autres.623
Por outro lado, a imagem latente na estrutura representativa torna-se um
guia de leitura, como teoria de referência para a compreensão em diferentes níveis de
complexidade de percepção e de conceitos e de versões da realidade.624
As representações transmitidas pela comunicação intersubjetiva criam
a necessária estabilidade e recorrência625, constrói uma base comum de significância,
enfim, “capacitam as pessoas a compartilharem um estoque implícito de imagens e de
ideias que são consideradas certas e mutualmente aceitas”. Sempre há nelas uma
quantidade de autonomia e de condicionamento, o que resulta na criação de “filosofias
espontâneas, não oficiais” pelo sujeito, com um impacto decisivo nas relações sociais e
622 JODELET, Denise. Représentation Sociales: un domaine en expansion. In: Les Représentation Sociales. Sur la direction de Denise Jodelet. 5e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. p. 73. 623 JODELET, Denise. Représentation Sociales: un domaine en expansion. In: Les Représentation Sociales. Sur la direction de Denise Jodelet. 5e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. p. 73. Em tradução livre: “A ‘naturalização’ das noções lhes dá valor de realidades concretas diretamente legíveis e utilizáveis na ação sobre o mundo e os outros. ” 624 JODELET, Denise. Représentation Sociales: un domaine en expansion. In: Les Représentation Sociales. Sur la direction de Denise Jodelet. 5e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. p . 73-74. 625 “O não familiar atrai e intriga as pessoas e comunidades enquanto, ao mesmo tempo, as alarma, as obriga a tornar explícitos os pressupostos implícitos que são básicos ao consenso. (...) O medo do que é estranho (ou dos estranhos) é profundamente arraigado. Foi observado em crianças dos seis aos nove meses e certo número de jogos infantis são na verdade um meio de superar esse medo, de controlar seu objeto. Fenômenos de pânico de multidões muitas vezes proveem da mesma causa e são expressos nos mesmos movimentos dramáticos de fuga e mal-estar. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato com o que propicia um sentido de continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável. E quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que ‘não é exatamente’ como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida. ” (MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 56.)
p. 225
nas escolhas do agente 626 e, assim, impacta decisivamente os atos de interpretar e de
decidir.
A fundamentação relativa às premissas da decisão, especialmente de
caráter extralegal, é relevante também para que se possa ter a possibilidade de identificar
o voluntarismo na construção de conceitos e o solipsismo decisional a partir de elementos
“espontâneos”, própria do subjetivismo, ainda que tal delimitação possa não ser sempre
precisa.
A viragem para o subjetivismo foi característica do movimento do
direito livre, que deita suas raízes nas reações ao racionalismo expostos na contra-corrente
do irracionalismo e do voluntarismo, cujos representantes de maior expressão firmaram-
se no século XIX em Schopenhauer, Nietzsche e Bergson, com repercussão no direito no
começo do século XX, chegando-se a identificar a produção da decisão como fundada no
sentimento jurídico.627
Ao tratar da falsa causalidade e das causas do pensamento, Nietzsche,
incitando à superação da metafísica e de explicações inacessíveis à experiência sensível,
convocava a uma reflexão sobre os equívocos provocados pela necessidade de referência
à familiaridade e trazia à tona o poder e o prazer como critérios de verdade, um
falseamento da causalidade pelo habitual e pela experiência do preponderante na filosofia,
o que seria um exemplo da subjetividade na eleição de premissas:
“Fazer remontar algo desconhecido a algo conhecido alivia, tranquiliza, satisfaz e, além disso, proporciona um sentimento de poder. Com o desconhecido há o perigo, o desassossego, a preocupação – nosso primeiro instinto é eliminar esses estados penosos. Primeiro princípio: alguma explicação é melhor que nenhuma. Tratando-se, no fundo, apenas de um querer livrar-se de ideias opressivas, não se é muito rigoroso com os meios de livrar-se delas: a primeira ideia mediante a qual o desconhecido se declara conhecido faz tão bem que é ‘tida por verdadeira’. Prova do prazer (‘da força’) como critério da verdade. – O impulso causal é, portanto, condicionado e provocado pelo sentimento de medo. O ‘por quê’ deve, se possível, fornecer não
626 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 45 e 51. 627 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 77-81.
p. 226
tanto a causa por si mesma, mas antes uma espécie de causa – uma causa tranquilizadora, liberadora, que produza alívio. O fato de ser estabelecido como causa algo já conhecido, vivenciado, inscrito na recordação é a primeira consequência desta necessidade. O novo, o não vivenciado, o estranho é excluído como causa. – Portanto, não se busca apenas um tipo de explicações como causa, mas um tipo seleto e privilegiado de explicações, aquelas com que foi eliminado da maneira mais rápida e mais frequente o sentimento do estranho, novo, não vivenciado – as explicações mais habituais. – Consequência: um tipo de colocação de causas prepondera cada vez mais, concentra-se em forma de sistema e enfim aparece como dominante, isto é, simplesmente excluindo outras causas e explicações.”628
O recorte da realidade feita por determinadas representações sociais
implica no intérprete uma limitação, por um lado, e um enviesamento, por outro, sendo
levado a conformar as hipóteses e possibilidades mediante uma construção socialmente
aceita da realidade que foi previamente selecionada e adotada e que se furta de ser
exposta, que pode por vezes ser expressa com referência a uma construção de
“consciência” (ou decisão conforme a consciência do julgador) e que pode ou não estar
de acordo com um escalonamento de valores integrativo centrado na ordem de valores de
um modelo constitucional axiológico.
A presença de um valor “justiça” na decisão e na interpretação das
normas – refletida na fundamentação – pode implicar a insuficiência da dedução
puramente lógico-formal e do critério subsuntivo e mesmo na atividade individualizada
do juiz, mas não implica a impossibilidade de se estabelecer a atividade construtiva (ou
“criativa”) em ponderações racionais e elementos persuasivos numa teoria do discurso:
“el preguntarse si está bien o mal que el juez utilice juicios de valor, no cambia el dato indiscutible de que el juez realiza necesariamente de manera concreta esos juicios. Entonces, el problema no es tanto de discutir el concepto de valor considerado en sí mismo, sino más bien el de establecer cómo y con qué finalidad el juez cumple valoraciones de carácter axiológico, y de plantear instrumentos de control externos adecuados, sean de tipo
628 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos Ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Cia de Bolso, 2017. p. 36.
p. 227
jurídico o político-social, también en este sector de la actividad del juez.”629
A expressão oculta ou que se procure omitir no convencionalismo das
representações sociais deve ser trazido à discussão e à perscrutação (isto é, a
fundamentação das premissas na justificação externa de Wróblewski) tanto para atenuar
seus efeitos condicionantes como para aferir sua compatibilidade com o que se pode
reputar verdadeiro no atual estágio de conhecimento científico e racional e sua
compatibilidade com a axiologia constitucional do ordenamento jurídico, isto é, até onde
for possível, para que não seja um produto solipsista do intérprete e que se encontre
fundamentada:
“Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do aspecto convencional da realidade e então escapar de algumas exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos. Mas nós não podemos imaginar que podemos libertar-nos sempre de todas as convenções, ou que possamos eliminar todos os preconceitos. Melhor que tentar evitar todas as convenções, uma estratégia melhor seria descobrir e explicitar uma única representação. Então, em vez de negar as convenções e preconceitos, esta estratégia nos possibilitará reconhecer que as representações são inerentes nas pessoas e objetos que nós encontramos e descobrir o que representam exatamente.”630
Na familiaridade gerada pelas representações sociais, o passado e a
memória prevalecem sobre o presente e a dedução, há a encarnação de um pensamento
social em que a resposta está acima do estímulo e a imagem tem precedência sobre a
realidade, o modelo exige que as conclusões se antecipem às premissas: “o veredicto tem
prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir a pessoa, nós já a julgamos, nós já a
classificamos e criamos uma imagem dela”.631
629 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 148. Em tradução livre: “Perguntar-se se é bom ou ruim que o juiz empregue juízos de valor não altera o dado indiscutível de que o juiz necessariamente realiza de maneira concreta esses juízos. Então, o problema não é tanto discutir o conceito de valor considerado em si mesmo, mas estabelecer como e com qual finalidade o juiz realiza valorações de caráter axiológico e de propor instrumentos de controle externo adequados, sejam de tipo jurídico ou político-social, também nesse setor da atividade do juiz.” 630 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 35-36. 631 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 55 e 58.
p. 228
Num processo natural de pensamento ordinário, um fato não é um
elemento puro, neutro ou “dado”, mas uma descrição linguística de uma ocorrência, cuja
viabilidade se dá pela apropriação de significados e configurações pré-formatadas e, após,
particularizadas num entendimento individual construído.
Esse mesmo problema está presente, senão de forma ainda mais grave,
na facticidade relativa a conceitos vagos, que comportam uma concreção a partir de
configurações aproximativas pré-formatadas. Diz Feyerabend: “Em uma análise mais
detalhada, até mesmo descobrimos que a ciência não conhece, de modo algum, ‘fatos
nus’, mas que todos os ‘fatos’ de que tomamos conhecimento já são vistos de certo modo
e são, portanto, essencialmente ideacionais.”632
A crítica feita pelo autor quanto à testagem e confirmação de uma única
teoria com uma classe de fatos é que há uma pressuposição ingênua na assunção dos fatos
como “dados”, sendo demasiado simplificadora da realidade, de modo que somente com
teorias alternativas (mesmo mutualmente inconsistentes) é possível revelar uma parcela
da realidade que não alcançaria descrição em sua complexidade não captada pela
testagem de uma única teoria633 – o que nos remete a uma estratégia historicista de
fundamento –, de forma semelhante, a linguagem revela um retrato demasiadamente
simplório, sendo uma teorização ou ideação de aspectos parciais que carecem descrições
alternativas, ainda que mutuamente inconsistentes – exemplos disso são frequentes no
discurso político ou na argumentação jurídica.
A formação referencial que permite a descrição de uma realidade é
recebida nesse sentido linguístico dentro da crítica ao conhecimento pelo autor em
632 FEYERABEND, Paul K. Contra o Método. Tradução Cezar Augusto Mortari. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 33. 633 FEYERABEND, Paul K. Contra o Método. Tradução Cezar Augusto Mortari. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 52-54. Conforme menciona o autor: “Todas essas investigações usam um modelo no qual uma única teoria é comparada com uma classe de fatos (ou enunciados observacionais) que, supõe-se, estejam de alguma forma “dados”. Penso que esse é um retrato demasiadamente simples da situação real. Fatos e teorias estão muito mais intimamente ligados do que o admite o princípio de autonomia. Não é apenas a descrição de cada fato dependente de alguma teoria (a qual pode, é claro, ser muito diferente da teoria a ser testada), mas também existem fatos que não podem ser revelados, exceto com o auxílio de alternativas à teoria a ser testada, e deixam de estar disponíveis tão logo tais alternativas sejam excluídas. Isso sugere que a unidade metodológica à qual devemos nos referir ao discutir questões de teste e conteúdo empírico é constituída por todo um conjunto de teorias, parcialmente superpostas, factualmente adequadas, porém mutualmente inconsistentes. (op. cit., p. 52).
p. 229
passagem que examina contestações teóricas sobre o movimento terrestre, que eram
denominadas como “interpretações naturais” na querela com opositores de Galileu, nesse
contexto, aduziu Feyerabend:
“Para começar, devemos ter clareza a respeito da natureza do fenômeno total: aparência mais enunciado (...) Essa unidade é o resultado de um processo de aprendizagem que começa na infância. Desde nossos primeiros dias aprendemos a reagir a situações por meio das respostas apropriadas, linguísticas ou outras. Os processos de ensino tanto moldam a ‘aparência’, ou ‘fenômeno’, quanto estabelecem uma firme conexão por palavras, de modo que, no final, os fenômenos parecem falar por si mesmos, sem auxílio externo ou outros conhecimentos. Eles são os que os enunciados associados asseveram que sejam. A linguagem que ‘falam’, é claro, é influenciada pelas crenças de gerações anteriores, crenças mantidas há tanto tempo que não mais aparecem como princípios separados, mas penetram nos termos do discurso cotidiano e, após o treinamento prescrito, parecem emergir das próprias coisas. A esse ponto, podemos desejar comparar, em nossa imaginação e de maneira completamente abstrata, os resultados do ensino de diferentes linguagens que incorporam ideologias diferentes. Podemos mesmo desejar conscientemente modificar algumas dessas ideologias e adapta-las a pontos de vista mais ‘modernos’. É muito difícil dizer como isso alterará nossa situação, a menos que façamos a suposição adicional de que a qualidade e a estrutura das sensações (percepções), ou pelo menos a qualidade e a estrutura daquelas sensações que fazem parte do corpo da ciência, são independentes de sua expressão linguística. Tenho muitas dúvidas sobre a validade aproximada desse pressuposto, que pode ser refutado por exemplos simples, e tenho certeza de que estamos privando-nos de descobertas novas e surpreendentes enquanto permanecermos nos limites por ele definidos.”634
Se já na episteme se pôde identificar a necessidade de pensamento
reflexivo e reestruturação das premissas básicas sobre a descrição de uma realidade, maior
a possibilidade de que as percepções aparentes da doxa estejam longe de encontrar uma
justificação plausível e racionalmente comunicável; mas largamente contaminadas por
“diferentes linguagens que incorporam diferentes ideologias”.
634 FEYERABEND, Paul K. Contra o Método. Tradução Cezar Augusto Mortari. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 88-89.
p. 230
Não podemos supor que nenhum tipo de comunicação esteja isento dos
caráteres prescricional e convencional das representações sociais ínsitas ao pensamento
social, ou mesmo que não esteja presente na atividade processual ou jurídica, o que
também não é de todo indesejado, pois trata-se de aspecto importante para permitir certo
grau de fluidez e compreensão na atividade comunicativa social, entretanto, é necessário
estar conscientes de sua existência, como forma de atenuar suas exigências e de buscar
não aceitar suposições, entendimentos ou interpretações de necessidades tradicionais ou
usuais como necessárias ou auto-evidentes, mas buscar uma postura que leve em
consideração as limitações do raciocínio, a propensão natural ao equívoco e a adoção de
certas inclinações, de modo a adotar um procedimento o mais próximo o possível de ser
aferido cientificamente:
“A ciência caminha pelo lado oposto; da premissa para a conclusão, especialmente no campo da lógica, assim como o objetivo da lei é assegurar a prioridade do julgamento sobre o veredicto. Mas a lei tem de se apoiar em um sistema completo de lógica e provas a fim de proceder de uma maneira que é completamente estranha ao processo e à função natural do pensamento em um universo consensual ordinário.”635
O caminho natural do processo justificativo e da fundamentação é ir da
doxa à episteme, num processo crescente de qualificação do discurso por elementos
fundados em teorias testadas e congruentes, que assegurem uma maior certeza sobre as
afirmativas que se façam a respeito do caso concreto e do mundo circundante, de seu
modo de ser e de existir.
Mas, em ambas as situações e em todos os casos, somente a explanação
suficiente dos elementos hauridos no corpo social e na comunicação pode ser compatível
com uma fundamentação suficiente para a decisão, sempre levando em conta descrições
alternativas e visões alternativas que estejam presentes na fundamentação das premissas.
Esse alcance da fundamentação, que dificilmente se verifica na prática
judiciária fora de casos emblemáticos em processos objetivos de apreciação de
constitucionalidade de normas com relevante impacto social, deve estar presente, em
635 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 59.
p. 231
alguma medida, sempre que a norma não contenha uma posição determinada por
valorações prévias, mas sim deixadas ao critério da concreção pelo juiz que realiza
valoração subjacente ao emprego de conceitos vagos; como aduz Larenz:
“E depois, prepondera ainda na ciência a ideia de que os ‘valores’ são um acto de opção pessoal, não passíveis de uma fundamentação racional. Nesta linha de pensamento, chega-se à inevitável conclusão de que em inúmeros casos – e não apenas em alguns ‘casos de fronteira’ – subentra no lugar da valoração do legislador a valoração pessoal do juiz, a qual se subtrai a comprovação de acordo com um critério objectivo. Tal significaria para a ciência do Direito que uma comprovação de um grande número de decisões de acordo com métodos ‘científicos’ só lhe seria acessível de um modo limitado e que não estaria em ampla medida apta a prestar qualquer auxílio ao juiz na conformação dos juízos de valor que lhe são requeridos.”636
Deve-se concluir, assim, que a justificação externa descrita por
Wróblewski está permeada por representações sociais quando há utilização de conceitos
vagos em decisões judiciais e, para que esteja adequadamente fundamentada, devem ser
indicadas e expostas quais representações estão em palco, quais foram consideradas e
quais foram refutadas caso haja representações alternativas possíveis de serem utilizadas
naquele caso e que influenciariam em como se concebe aquele conceito vago ou
indeterminado.
636 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 165.
p. 232
9. A concreção da vagueza na decisão para além da fundamentação e limites para
sua possibilidade numa comunicação racional
Há um difícil aspecto no âmbito da fundamentação racional que se
atrela à impossibilidade de transposição de alguns elementos ocorridos na decisão para a
motivação dessa mesma decisão, o que remonta, novamente, à distinção entre context of
discovery e context of justification. Não é possível negar a existência de elementos
irracionais no pensamento e não é que seja inviável a expressão exterior desses elementos,
mas não é adequado que se transfira esses aspectos para o contexto de justificação sob
uma atitude irracionalista e decisionista.
Tomando em conta, como Taruffo, que o ato decisório não comporta
uma avaliação ou aproximação única e incindível, como ocorrida de fato, e que a “lógica
do juiz” não se adequa a um fenômeno unitário em termos de decisão jurídica dentro de
uma teoria aproveitável e significativa no Direito e no Processo Civil, mas sim “que dicha
lógica es diferente dependiendo de si tiene que ver con el modo en el que el juez llega a
la decisión, o de la manera en el que el juez justifica la decisión a la que ha llegado”637,
tem de ser observado um limite para a racionalidade justificativa, em contraposição aos
elementos notadamente irracionais que se ligam ao contexto de decisão em si.
Uma tal posição, para que não ocorra a contaminação de um pelo outro
e que se fixe tanto quanto possível os limites que uma fundamentação não pode alcançar,
é reconhecida por Taruffo como útil e necessário para se direcionar a fundamentação do
juiz, além de ser conveniente para reconhecer os limites de um modelo teórico:
“Una vez reconocido el hecho de que el razonamiento decisorio y la motivación comprenden segmentos ‘lógicos’ y segmentos ‘no lógicos’, los modelos estructurales adecuados son aquellos que identifican la naturaleza y la función de los diferentes
637 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 146. Em tradução livre: “que dita lógica é diferente dependendo de se tem que ver com o modo com o qual o juiz chega à decisão ou à maneira com que o juiz justifica a decisão que tenha chegado.”
p. 233
segmentos, y permiten establecer la ratio que los organiza y los vincula entre sí: bajo este aspecto, la estructura está determinada por el sistema de los puntos de intersección entre segmentos de naturaleza diversa, que se identifican a partir de su colocación funcional dentro del contexto orgánico global del razonamiento o del discurso.”638
Para Taruffo, ainda se está muito longe de esclarecer de forma
satisfatória, dentro do Processo Civil, os modos, características e consequências da
atividade valorativa do juiz no raciocínio judicial empregado nas decisões frente à crise
do sofisma logicista puramente lógico-dedutivo e a contrapartida numa visão totalmente
irracionalista dos valores e dos juízes.639 Acrescenta Larenz:
“Nesta medida, não se pode fechar completamente a porta a ingredientes ‘subjetivos’. Uma vez que se trata, no entanto, de ponderações que requerem uma ratificação mediante operações do intelecto, e nesta medida susceptíveis de controlo, deve ter-se sempre presente a exigência colocada aos juristas de uma tanto quanto possível ‘objectivação’ do processo de interpretação, objectivação que deixa assim de aparecer como impossível, e na sequência da qual se deve obter a decisão de acordo com a lei (‘correctamente entendida’).”640
Embora não se deva e não se possa aceitar um modelo subjetivista da
fundamentação da decisão, existe esse aspecto no contexto da descoberta. O que, talvez,
falte no excerto acima é a observação posterior de Larenz de que o “valorar emocional”
predomina largamente na generalidade das situações e nas discussões políticas, mas,
diferentemente, o jurista precisa de um passo além, que se reflita no contexto justificativo:
“a tarefa do jurista é precisamente a ‘materialização’ das valorações. Incumbe-lhe, por
638 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 209. Em tradução livre: “Uma vez reconhecido o fato de que o raciocínio decisório e a motivação compreendem segmentos lógicos e não lógicos, os modelos estruturais adequados são aqueles que identificam a natureza e a função dos diferentes segmentos e permitem estabelecer a ratio que os organiza e os liga entre si: sob esse aspecto, a estrutura está determinada pelo sistema dos pontos de intersecção de natureza diversa, que se identificam a partir de sua posição funcional dentro do contexto orgânico do raciocínio e do discurso.” 639 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 148. 640 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1997. p. 166.
p. 234
isso, um valor ligado a princípios jurídicos com a ajuda de um pensamento ‘orientado a
valores’”.641
Mais do que isso, é preciso reconhecer distintas realidades e
procedimentos em relação à decisão e à fundamentação, gerando uma relação assimétrica
entre raciocínio decisório e raciocínio justificativo sem uma estrutura idêntica.642
Primeiro para constatar que os problemas da subjetividade e da
ilogicidade inerente ao pensamento e ao ato decisional como ato de vontade não devem
ser transplantados para a fundamentação, mas estudados no contexto de descoberta, sendo
sua utilidade traçar um limite para a atividade justificativa, um terreno que está fora do
alcance do processo de fundamentação.
Em segundo lugar, para que se atente para as situações em que há uma
escala de transição fluida que permite uma margem de livre apreciação na qual há mais
de uma solução suficientemente adequada e justa que possa ser adotada, como em
situações de julgamento por equidade autorizado pela lei, na fixação do prazo entre vinte
e sessenta dias na citação por edital prevista no art. 257, III do Código de Processo Civil
e na fixação da pena base no julgamento criminal. Isto é, quando há alguma medida de
discricionariedade, como menciona Larenz:
“Quando nenhuma das resoluções possíveis seja manifestamente injusta, a resolução é deixada, nos casos mencionados, à intuição valorativa e à convicção do juiz. Aqui existe, decerto, o perigo de que no julgamento do juiz se insinuem, sem que ele próprio tenha consciência, preconceitos de diversa ordem, que, como sempre, podem ser limitados.”643
À certa margem de discricionariedade, como afirmamos alhures,
corresponde uma ausência de fundamentação, à ausência dos motivos porque a escolha é
lícita nesse reduzidíssimo âmbito discricional, ou então porque, havendo um
641 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 410. 642 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 146-147. 643 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 415.
p. 235
levantamento de motivos racionais para a escolha, reduziu-se o âmbito discricional
naquela hipótese concreta.
Nesse sentido, a discricionariedade reside fora do discurso justificativo:
“a propósito de la motivación, debe hacerse una precisión ulterior que es inherente a la distinción entre el razonamiento justificativo, entendido como una actividad encaminada a seleccionar y articular las razones que pueden utilizarse para justificar la decisión, y como el resultado lingüístico de dicha actividad, es decir, como un ‘discurso’ en el cual el juez expresa dichas razones de acuerdo con un cierto orden lógico.”644
Então, face à insuperabilidade do problema (de escolha e vontade) em
situações como as elencadas de margem discricional, é válido que se tenha ciência e até
uma eventual análise de aspectos inicialmente relativos ao context of discovery, tanto
como controle de uma possível influência indevida numa escolha discricional como para
reconhecer a ausência de simetria entre os contextos sem negar a existência de elementos
não racionais:
“Que ao juiz resta, de quando em vez, uma margem de livre apreciação, adentro da qual só a sua convicção pessoal do que é correcto vem a decidir, parece, contudo, um ‘resíduo incómodo’ só a quem seja capaz de acreditar na racionalização sem resquícios de todos os fenómenos da vida e, com isso, no afastamento definitivo da personalidade criadora.”645
Como vimos, na poluição da atmosfera encontram-se as falhas das
representações sociais apontadas, que permitem distorções, perdas ou suplementações, a
equivocidade da linguagem, aspectos ideológicos, a insuficiência da doxa como
entendimento, suposições básicas não questionadas, paradigmas epistêmicos
ultrapassados ou incongruentes.
644 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 207-208. Em tradução livre: “a propósito da motivação, deve-se fazer uma delimitação ulterior que é inerente à distinção entre raciocínio justificativo, entendido como uma atividade encaminhada a selecionar e articular as razões que podem se utilizar para justificar a decisão e como o resultado linguístico dessa atividade, é dizer, como um discurso no qual o juiz expressa tais razões de acordo com uma ordem lógica”. 645 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 415-416.
p. 236
E, até mesmo, o substrato emocional que influi sobre as concepções
compossíveis de uma dada versão da realidade, que se encontram subjacentes a algumas
formas de comunicação realizadas na reprodução cultural do mundo da vida, que são
permeadas pela reivindicação de veracidade ou autenticidade, uma das pragmáticas
universais de Habermas, que perfaz um dos tipos de racionalidade possível das ações
comunicativas.
Esse tipo de reivindicação, que permeia uma relação subjetiva e interna
pode ser útil como critério de controle da veracidade de uma correspondência da estrutura
tomada na descoberta e na justificação, isto é, se a justificação está sendo utilizada como
mero expediente formal, subvertendo a integridade e coerência das decisões de um órgão
jurisdicional.
Esse tipo de enfoque sobre a motivação das decisões está inserido no
que Taruffo denomina de “motivação como fonte de indícios”, dentro da construção de
correlações entre as estruturas do contexto de descoberta e contexto de justificação. Isto
é, existe um vínculo indispensável que permanece no discurso justificativo para além do
seu significado como dado semântico expresso, na medida em que o intento ou a vontade
de expressar permanece na motivação como intencionalidade subjacente.646
Nesse sentido, aduz Taruffo:
“eso es lo que ocurre todas las veces que un sujeto interpreta un discurso no sólo y no tanto con la finalidad de establecer lo que el autor intenta comunicar, sino más bien con la finalidad de individuar otros hechos (que no han sido expresados directamente), como, por ejemplo, el estado psicológico, el nivel cultural, las opiniones, el estado social del autor, o bien juicios, valoraciones y actitudes que influyen sobre el discurso aun cuando se mantienen ‘detrás’ de su significado estricto e inmediato.”647
646 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 65. 647 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 67. Em tradução livre: “isso é o que ocorre todas as vezes que um sujeito interpreta um discurso não apenas e não tanto com a finalidade de estabelecer o que o autor deseja comunicar, mas também com a finalidade de identificar outros aspectos (que não tenham sido expressos diretamente), como, por exemplo, o estado psicológico, o nível cultural, as opiniões, o estado social do
p. 237
Esse substrato que se encontra presente na fundamentação, revela uma
estrutura correlata ao context of discovery. Não é demais salientar que, embora sirva como
índice de aspectos que influenciam determinantemente a fundamentação não expressos
diretamente, dificilmente são estudados em alguma medida na fundamentação, como
indica a obra de Taruffo.
Normalmente lhes é atribuída a pecha de matéria extrajurídica,
filosófica ou da teoria de geral do Direito, esquecendo-se que a má compreensão de qual
o contexto em que está inserido o Processo Civil e o ato de motivar dentro de uma teoria
sobre a aplicação do direito leva, inevitavelmente, à má compreensão de qual seja o
significado que se pode atribuir à fundamentação de uma decisão ou, na melhor das
hipóteses, a uma compreensão muito limitada e restrita do que existe, de fato, numa
motivação, em nada contribuindo com o aprimoramento teórico e com a investigação
teórica sobre os fundamentos desse tema de direito processual.
Desta forma, se buscará desenvolver alguns modelos possíveis de
modelagem desse aspecto funcional da motivação como indício, para a compreensão de
outros aspectos, que podem chegar ou não a ter uma utilidade processual, dado o caráter
“global” da fundamentação passível de múltiplos enfoques teóricos.
Para tanto, pode-se complementar o aspecto principal da motivação
como função justificadora com elementos que digam sobre a motivação em seu conjunto,
como resultado de um comportamento do juiz sem que sua expressão tenha sido desejada
como função principal de comunicar expressamente, embora estejam presentes.
Uma das possibilidades desse tipo de abordagem adicional é desvelar
os limites da motivação como expressão direta e como fonte indiciária relevante ou não
relevante, o que se liga diretamente ao tema do que seja uma fundamentação suficiente,
que é uma questão sempre aberta a novas perspectivas ante “a impossibilidade de emitir
critérios muito objetivos acerca dos limites entre a sentença mal motivada e a não
motivada”648. Assim, a reflexão sobre os aspectos indiciários constitui um convite à
autor, ou os juízos, valorações e atitudes que influem sobre o discurso ainda que se mantenham por detrás de seu significado estrito e imediato.” 648 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo, 2010. p. 944.
p. 238
reflexão, em novos enfoques, aos limites dessa estrutura como função motivadora, como
menciona Taruffo:
“La referencia al indicio como ‘comportamiento expresivo’ del juez sirve, en consecuencia, no para colocar el indicio fuera de la motivación, sino para subrayar que éste no está constituido por entidades lingüísticas consideradas en sí mismas, sino por el hecho de que éstas hayan sido postuladas en una situación particular y con una finalidad específica (es decir, la justificación de una decisión particular). (…) los indicios que se desprenden de la motivación y que tienen que ver, precisamente, con la función del juez, con su personalidad o con la naturaleza de la actividad que éste realiza.”649
Afinal, para que se possa estabelecer precisamente como a decisão não
está, de alguma forma, contaminada por vieses cognitivos ou por pré-concepções
inadequadas e que fundamentaram na decisão, embora estejam ocultas, é necessário
conhecer como essa contaminação pode ocorrer. Isto é, como os indícios podem se
expressar e como acontece a influência que não é – e muitas vezes não tem como ser –
expressa na fundamentação.
Na reivindicação de autenticidade, atinente ao modelo dramatúrgico,
avaliam-se se as necessidades, sentimentos e desejos expressados na comunicação
realmente correspondem ao que se diz, significativamente, como a execução de qualquer
ação (a comunicação inclusive) revela algo sobre a subjetividade do agente ou “um
indivíduo representa seu mundo subjetivo de uma maneira subjetiva para uma audiência
de agentes”.650
As reivindicações atinentes às pragmáticas universais podem ser
testadas empiricamente pelos agentes comunicativamente competentes, segundo
649 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 80. Em tradução livre: “A referência a indicio como ‘comportamento expressivo’ do juiz serve, em consequência, não para colocar o indício fora da motivação, mas para sublinhas que este não se encontra constituído por entidades linguísticas consideradas em si mesmas, mas sim pelo fato de que tenham sido postulados numa situação particular e com uma finalidade específica (ou seja, a justificação de uma decisão particular). (...) os indícios que emergem da motivação e que tem de ver, precisamente, com a função do juiz, com sua personalidade ou com a natureza da atividade que ele realiza.” 650 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 46-47.
p. 239
Habermas, dessa forma, “para a reivindicação de veracidade ou autenticidade, o teste
correto é constituído pela comparação das intenções expressas por um locutor com suas
ações subsequentes”,651 o que se torna evidente quando há decisões subsequentes em
sentidos diferentes, sem que tenha havido um acontecimento relevante para a mudança
de orientação do órgão julgador.
Como alhures mencionado, a motivação, assim, para Taruffo, ademais
de exercer sua função justificadora da decisão como caráter precípuo, não se encerra nessa
função, pois também exerce um caráter funcional indiciário particularmente relevante que
pode ser descuidado:652 “Por ejemplo, si se quiere asumir como indicio el hecho de que
el juez haya fundado su decisión sobre ciertos motivos y no sobre otros que habría podido
o debido atender, el vínculo motivación-decisión entra en juego.”653
Um desses aspectos indiciários de interesse é que o juiz fundamente a
decisão em certos motivos que não correspondam ao raciocínio efetivamente utilizado
para a tomada da decisão no context of discovery, isto é, algo que não se encontra expresso
na motivação, mas que permite verificar uma corrupção de sua função comunicativa, na
medida em que o fundamento empregado figura como um expediente performático que
não corresponda em nada aos critérios de avaliação empregados no caso. Dessa forma, a
reivindicação de veracidade ou autenticidade, pode ser útil na verificação da
conformidade dos critérios indiciários da fundamentação com sua motivação expressa.
A pretensão de veracidade ou autenticidade implícita na decisão é
falseada quando há processos idênticos ou sem distinção relevante com decisões opostas
prolatadas por um mesmo órgão julgador (seja um juízo singular ou um órgão fracionário
de tribunal). Nessas situações, há fundamentações aparentes, que acolhem os
fundamentos de uma ou outra parte, mas que revelam a existência de outros aspectos que
651 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 50. 652 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 70. 653 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 70. Em tradução livre: “Por exemplo, se se quer assumir como indício o fato do juiz ter fundado sua decisão sobre certos motivos e não sobre outros que poderia ou deveria atender, o vínculo motivação-decisão entra em jogo”
p. 240
levaram a uma decisão e não foram explicitados, revelando a incongruência entre as
“intenções expressas por um locutor com suas ações subsequentes”.
Nessa hipótese, pode-se mencionar a situação em que um órgão judicial
reiteradamente concede antecipação de tutela contra a Fazenda Pública que impliquem
concessão de aumento ou extensão de vantagens em determinado caso de servidores
públicos ou de benefício previdenciário e, num outro caso, se atenha a dizer que a
antecipação da tutela contra Fazenda Pública está vedada naquela hipótese por disposição
de Lei (p. ex. art. 1.059 do Código de Processo Civil, art. 7°, § 2° da Lei 12.016/09 e arts.
1° a 4° da Lei 8.437/92).
O mesmo ocorre quando reiteradamente um órgão judicial nega
antecipação de tutela em face da Fazenda Pública que implique inclusão em folha de
pagamento sob fundamento de vedação legal e em outro caso idêntico venha a conceder
a antecipação em vista do fundamento relevante que evidencie a probabilidade do direito
naquele caso concreto, sem se desincumbir de mencionar porque aquela hipótese não
incide na vedação legal ou está sendo afastada a vedação legal.
Nas duas situações, não é a vedação legal o raciocínio empreendido no
contexto de descoberta para analisar o caso em que não se vislumbrou a presença de
requisitos autorizadores da antecipação da tutela, a vedação apenas é usada como
expediente performativo para cumprir a exigência de fundamentação de forma
inautêntica.
A fundamentação sucinta em comparação a decisões anteriores sobre o
mesmo caso revela que um mesmo órgão judicial não possui o entendimento sobre o
ordenamento jurídico que está expressando naquela decisão, apenas suscitando vedações
como forma de se abster de uma motivação mais complexa e alongada sobre os reais
motivos que determinaram aquela decisão sobre o caso.
A dissociação entre contexto de descoberta e contexto justificativo não
pode ensejar a inautenticidade do raciocínio justificativo como consequência, sob pena
de uma comunicação performativa e cindida avessa ao conteúdo e significado do dever
de fundamentar decisões judiciais, nessa esteira, consigna Rodrigo Ramina de Lucca:
p. 241
“A motivação é uma justificação daquilo que foi decidido previamente em um ‘contexto de descoberta’. Mas será que isso basta para dissociar a motivação das razões de decidir? Ao traçar as regras da argumentação racional e, consequentemente, as regras de uma motivação racional, Alexy e Aarnio estabeleceram como regra fundamental a sinceridade argumentativa: toda razão apresentada deve refletir aquilo que o seu proponente acredita. Aplicando-se a regra da sinceridade à motivação, então toda razão apresentada pelo juiz para justificar uma decisão deve corresponder à verdadeira razão pela qual o juiz julgou. Desse modo, mesmo existindo uma dissociação entre o ‘contexto de descoberta’ e o ‘contexto da justificação’, a justificação deve refletir exatamente as razões pelas quais a decisão foi tomada. A ‘simulação’ de razões para justificar uma decisão ‘inconfessável’ fere a racionalidade da motivação e, por isso, deve ser inexoravelmente refutada.”654
O falseamento da pretensão de veracidade ou autenticidade na
comunicação pode ser revelada, portanto, pela comparação entre diversas
fundamentações de um mesmo órgão judicial para verificação de sua coerência (a
respeito, vale recordar a obrigação disposta no art. 926 do Código de Processo Civil para
que a jurisprudência mantenha coerência); embora não exista, na fundamentação, sua
expressão como signo linguístico que se deseja comunicar.
A menos que expressa e fundamentada a mudança de orientação e
porque num caso acolhida uma posição e no outro uma diferente, em atendimento à
coerência expressa no art. 926 do Código de Processo Civil. Ainda assim, há situações
em que um mesmo órgão julgador decide num sentido, altera o posicionamento para,
depois, retornar ao primeiro posicionamento sob a alegação de “melhor reflexão sobre a
matéria”, o que não explicita qual seja alteração relevante ocorrida que influi nessa
mudança.
Tal alteração pode se dar de forma legítima ou ilegítima, bem como
expressa ou implícita na fundamentação (ou discurso), por exemplo, ser decorrente da
adoção de uma estrutura de poder ou ideologia alternativa ou uma convicção básica não-
questionada influenciada pelo estado psicológico mediante resíduos e derivações de uma
nova formatação estética. Como eventuais mudanças, que evidenciam o comportamento
654 LUCCA, Rodrigo Ramina de. O Dever de Motivação das Decisões Judiciais: Estado de Direito, segurança
jurídica e teoria dos precedentes. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 203.
p. 242
do intérprete no tempo, devem ser fundamentadas e afinadas à ordem jurídica e aos
preceitos e valores constitucionalmente vigentes, o Código de Processo Civil previu a
estabilidade, integridade e coerência da orientação jurisprudencial dos tribunais no art.
926, caput e no art. 927, § 4°, dizendo a doutrina a respeito:
“Devem procurar não alterar a sua jurisprudência, salvo quando se estiver frente a duas hipóteses: (a) quando o entendimento modificado for reconhecidamente errado; (b) quando alterações ocorridas no plano da sociedade – culturais, portanto, – exigirem que se dê à lei interpretação diferente daquela que se vinha dando até então. Portanto, e essa exigência é pressuposto da manutenção da forma sistemática do direito, a jurisprudência dos Tribunais do país deve ser uniforme, firme e estável.”655
“Muda-se a jurisprudência para se adaptar o direito à realidade social, nos casos em que esta adaptação é desejável e permitida pelo direito. Já tivemos ocasião de comentar critérios que, a nosso ver, podem ser úteis para separar as áreas do direito em que se deve permitir que a adaptação do direito às novas necessidades sociais se faça por obra do juiz, e não do legislador e outras áreas em que, a nosso ver, este desenvolvimento do direito deve ser fruto de atividade do legislador. (..) A alteração da jurisprudência pode, é claro, e deve mesmo ocorrer em certas circunstâncias. Mas não deve haver com a frequência com que tem ocorrido nas últimas décadas no Brasil. A prática que se tornou corriqueira nos nossos tribunais com certeza ofende o princípio da confiança, da segurança jurídica e da isonomia. Mais do que isso: causa tumulto, ensejando recorribilidade irresponsável. Quando a mudança de tese jurídica se dá porque há necessidade de se promover adaptação do direito a alterações havidas na sociedade, não ocorre ofensa a nenhum destes princípios.”656
De todo modo, as mudanças de posicionamento no tempo, que
evidenciam a congruência ou a incongruência das reivindicações explícitas ou implícitas
no discurso, sempre devem ser expressas, sob pena de não se ter atendido o dever de
fundamentação, sendo oportuno dizer que sempre que se mostrarem ilegítimas, maior será
a tendência de que não sejam feitas de maneira explícita, buscando-se fórmulas genéricas
655 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015. p. 1315. 656 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015. p. 1319 e 1321.
p. 243
que não retratem concretamente as razões da mudança, tais como “melhor reflexão sobre
o tema”.
Mesmo que a orientação anterior esteja “errada”, é importante dizer os
porquês de estar errada, assumindo-se que a decisão não teria sido aquela anteriormente
se já antes era reconhecidamente equivocada: algo deve ter se alterado para a concepção
anterior passar a ser vista como “reconhecidamente errada”.
Retomando a distinção elaborada por Taruffo, em que a motivação
apresenta tanto um caráter propriamente significativo como um caráter indiciário presente
no caráter significativo, mas não compreendido necessariamente por esse, a decodificação
do caráter indiciário pode se tornar relevante para tornar explícitos a presença e o
conteúdo dos critérios extrajurídicos de valoração utilizados na decisão:657
“El análisis del discurso del juez que constituye la motivación permite identificar, entre los diversos tipos de juicio que en él se expresan, juicios que pueden calificarse ‘de valor’ en la medida en la que consisten en la apreciación de hechos, cosas o situaciones, realizada conforme a criterios metajurídicos, de naturaleza ética, política, estética, etc.”658
É nesse sentido que, adicionalmente ao caráter significativo desejado
pela fundamentação, merece algum tipo de abordagem os indícios que constituem o juízo
de valor no caráter global da fundamentação, embora sua comunicação não seja
expressamente desejada por quem motiva, porque especialmente pertinente à concreção
de conceitos vagos e seu inerente juízo de valor.
Como os juízos de valor são habitualmente empregados quando
utilizados conceitos vagos ou indeterminados, deve-se observar o desvelamento dos
critérios extrajurídicos, “de natureza ética, política, estética, etc.” para a compreensão do
fenômeno em sua inteireza, ainda que os indícios deixados no contexto de motivação
657 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 80-81 e 84. 658 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 81. Em tradução livre: “A análise do discurso do juiz que constitui a motivação permite identificar, entre os diversos tipos de juízo que nele se expressam, juízos que podem ser qualificados como ‘de valor’, na medida em que consistem na apreciação de fatos, coisas ou situações realizada conforme critérios extrajurídicos, de natureza ética, política, estética, etc.”
p. 244
apenas permitam ver em certa medida o que ocorre no contexto de descoberta quando da
elaboração pelo intérprete (sujeito) de seu juízo de valor.
A própria abordagem de Habermas permite o tratamento de aspectos
normativos ou jurídicos da subjetividade através da “dimensão estético-expressiva”, com
uma atitude reflexiva sobre padrões de valores culturais pelos quais sentimentos e desejos
são interpretados.659 Imaginando que a experiência estética seja incindível no processo de
aculturamento individual, essa dimensão forneceria um acesso à própria alteridade pré-
racional: a experiência estética distintamente moderna mantém implícita uma “libertação
de subjetividade” no processo tipicamente reflexivo da modernidade, em que convenções
da vida ordinária são rompidas e afastada a coercitividade normalizadora:
“O que vincula o ethos de ‘modernidade estética’ à ‘modernidade cultural’ como um todo é que ‘experiências reflexivas de uma subjetividade’ ‘livre’ compartilham daquela ‘abordagem’ geral experimental ou ‘hipotética’ de fenômenos e experiências, que uma descentração da consciência primeiramente possibilita. Uma consciência estética radicalizada é, assim, como o pensar científico e a consciência ética pós-convencional, algo socialmente disponível somente para o sujeito moderno. Este ponto deve sempre ser mantido com firmeza em mente sempre que um apelo ao senso estético for usado pelos críticos da modernidade. Em suma, isso significa que o senso estético não pode ser empregado com a base de uma perspectiva crítica, que reivindica, por assim dizer, observar os problemas da modernidade a partir do exterior, por assim dizer. (...) A desvinculação radical do senso estético dos imperativos da sociedade e tradição tem o potencial para informar a consciência sobre como normalmente interpretamos nossos desejos e sentimentos de maneiras que espelham irreflexivamente os padrões de valor predominantes da cultura que nos cerca. O moderno senso estético assim possui o potencial de nos tornar mais reflexivos em relação a quem e o que está realmente estruturando a interpretação de nossa Bedürfnisnatur.”660
659 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 136-137 660 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 140. Prossegue o autor mais a frente: “Assim, poderíamos considerar em Foucault como nos outorgando uma forma de conceitualizar como o potencial da dimensão estética de penetrar na alteridade pré-racional, encarnada do eu pode ser liberado de uma tal forma que seus efeitos infundem todos os aspectos da vida cotidiana. Com isto quero dizer que o senso estético pode ser visto como permeando não apenas nossas interpretações de necessidades, mas também nossos juízos moral-políticos sobre os tipos de instituições sociais e infra-estrutura tecnológica que achamos
p. 245
A autoformação estética e o substrato emociona 661 presente na
comunicação conformadora de nosso aculturamento pode ser referida como resíduos e
derivações na obra de Pareto, certamente influente na tomada de decisões, inclusive no
campo jurídico.
Pareto, que vê um caráter contingente no direito,662 empreende um
estudo histórico da interpretação de atos não-lógicos, explicações metafísicas e teorias
que ultrapassem a experiência, propugnando objetos inacessíveis, situação exemplificada
com doutrinas do direito natural, cuja pretensão é determinar o conteúdo do direito e no
que consiste a manifestação jurídica sem distinção de tempo ou lugar, isto é, encontrando-
se além da experiência, na qual se observa o que pode ser e deduz-se a partir do que é
observado; para, em seguida, abordar o cerne da teoria das ações não-lógicas: o exame
dos resíduos e derivações.663 Nos adverte Raymond Aron que:
“como os homens suspeitaram da noção de ação não-lógica, esforçando-se por não criar uma teoria a esse respeito, pois nascido como ser raciocinante, o homem prefere acreditar que sua conduta é lógica, determinada pelas teorias, e não quer confessar a si mesmo que agiu movido por sentimentos.”664
A referência a sentimentos reporta-se ao “estado psíquico dos atores”
(ou intérpretes ou julgadores) ou “estado de espírito”, que motivam a conduta dos
homens, por muitas vezes, mais do que as razões que invoquem; pois para se convencer
de suas ideias, acabam agindo também com base em racionalizações:
satisfatórios e autofortalecedoras, bem como nossos juízos sobre que tipos de conhecimento achamos dignos de buscar.” (WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 143) 661 Na filosofia de Franz Brentano, as experiências intencionais, que caracterizam os conteúdos da consciência, podem ser divididas em três classes: as representações, os juízos e os fenômenos emocionais; não apresentando separação entre atos de vontade (como uma decisão) e os sentimentos (isolado), pois a todos seria peculiar um prazer ou desprazer (STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 25). Nessa vertente, reputar que um determinado entendimento sobre como se aplicam certas normas a um caso seja o mais justo equivale a sentir que se esteja fazendo justiça, sendo um fenômeno emocional. Pode-se, ainda, inferir adequação da solução encontrada a um esquema de interpretação de utilidades no entendimento de que uma decisão (ato de vontade) foi o mais justo. 662 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 243. 663 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 615. 664 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 614-615.
p. 246
“A tendência dos intérpretes é, portanto, explicar os atos pelas teorias que invocam, explicar B [os atos] por meio de C [expressões]. Mas ao fazer isto são vitimados pela inclinação humana para a racionalização ou, usando a terminologia de Pareto, para logicização. Iludidos pelo instinto raciocinante dos homens, acreditam que seus atos são autenticamente determinados pelas doutrinas invocadas, quando na realidade o que determina ao mesmo tempo os atos e suas expressões é A, isto é, o estado psíquico ou os sentimentos.”665
Ocorre que a influência do estado psíquico do intérprete ou julgador
para a decisão e a existência de resíduos ou derivações (de “sentimentos”) muitas vezes
está obscura na decisão tomada e não é revelada em sua fundamentação ou na
comunicação. Em termos habermasianos, a reivindicação “expressiva” de validade
(reivindicação de sinceridade ou veracidade) 666 não é tratada, não é explicitada a
subjetividade do agente (por seus sentimentos, desejos, necessidades), embora exista uma
reivindicação de sinceridade ou veracidade implícita na comunicação.
Isso se dá através da supressão de qualquer discussão referente a
resíduos e derivações e da suposição ficcional (e irreal) de uma motivação ou fundamento
puramente racional e que a essência corresponde à aparência (como “coisa em si”), o que,
na realidade é uma conhecida tendência do comportamento humano e da prática
discursiva.667
665 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 611. 666 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução
Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 39. 667 Com sua postura crítica quanto à adoração da razão na filosofia, o que reputa um “declínio” desde o pensamento socrático e o idealismo platônico, Nietzsche questiona as efetivas possibilidades de distinção entre a racionalidade e a sensualidade e até onde, a suposição de não incidência do caráter estético de quem pensa ou raciocina e a unidade do “eu pensante”: “Há ainda observadores inofensivos de si próprios que acreditam na existência de ‘certezas imediatas’; por exemplo, ‘eu penso’, ou como o ‘eu quero’ da superstição de Schopenhauer; como se aqui a cognição sustentasse seu objeto pura e simplesmente como ‘uma coisa em si’, sem que qualquer falsificação pudesse ocorrer por parte do sujeito ou do objeto. Eu gostaria de repeti-lo, no entanto, uma centena de vezes, que ‘certeza imediata’, assim como ‘conhecimento absoluto’ e a ‘coisa em si’, envolve uma contradictio in adjecto; nós realmente deveríamos nos livrar do significado das palavras enganosas! Como o povo acredita que o conhecimento é a conclusão do saber, o filósofo deve dizer a si próprio: quando analiso o processo expresso numa sentença, ‘eu penso’, encontro uma série de afirmações ousadas, a prova argumentativa do que poderia ser difícil, talvez impossível: por exemplo, que sou quem pensa, que o pensamento (denken em alemão) é uma atividade e uma ação por parte de um ser que é considerado como uma causa, que existe um ‘Eu’, e finalmente que já foi determinado o que deve ser designado pelo pensamento – que eu sei o que o pensamento significa. Pois se eu já não me tivesse decidido comigo mesmo que é, em qual padrão eu
p. 247
Sentimentos também podem ser referidos como “a tradução consciente
das tendências de reação que tiveram origem em nossas impressões”, são formações
psíquicas que compostas de uma percepção consciente expressa em uma ou mais ideias
fundida ou integrada a um “sentimento elementar” de prazer ou de desprazer, formando
“sentimentos secundários” ou “ideias-força”.668 Assim, as tendências de reação operam
em níveis mais profundos669, não são de todo conscientes, embora haja uma percepção
consciente que possa ser sentida, mas dificilmente explicada, descritivamente,
associando-se a ideias, especialmente quando encontram-se presentes abstrações cuja
estrutura precisa ser preenchida, como conceitos indeterminados.
Dentro desse quadro, há mecanismos psíquicos de adaptação já bastante
conhecidos, buscando alinhamento entre sentimentos elementares e a consciência moral
incutida pela civilização, no processo de formação do aparelho psíquico do indivíduo e
de sociabilização, dentre eles, o que nos interessa na presente reflexão para tratar da
influência de ordem emocional ou estética é a racionalização, em que a justificativa de
uma decisão ou ação é exposta para mascarar um fundo emocional (um estado psíquico,
de ordem estética), com a supressão de argumentações explícitas sobre a pretensão à
sinceridade ou veracidade:
“Este é o nome que se dá ao mecanismo em virtude do qual os pretextos são erigidos em razões para justificar a posteriori uma ação que se realizou ou vai se realizar em desacordo com o juízo ou censura moral. A racionalização é, de todos os mecanismos até agora descritos, o mais consciente e, por conseguinte, o que melhor pode ser evitado voluntariamente. A racionalização, como se depreende, desempenha um papel primordial em todas as declarações forenses, tanto de acusados como de acusadores, e é preciso toda a severidade do raciocínio lógico, precedida de uma
poderia me basear para saber se aquilo que está acontecendo não é talvez ‘querer’ ou ‘sentir’? (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução Carlos Duarte e Ana Duarte. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 31-32.) 668 MIRA Y LÓPEZ, Emilio. Manual de Psicologia Jurídica. Campinas: Servanda Editora, 2015. p. 57-58. 669 Nessa linha de raciocínio, pode-se acrescentar a concepção de que: “O ‘aparelho psíquico’ possui uma causalidade própria ou autóctone. Em virtude disso, todo ato psíquico tem intenção, motivação e significação; não se trata de um fenômeno esporádico, acidental, isolado e indeterminado, mas de um elo de uma série causal. Por absurdo que pareça à primeira vista, possui sentido e é compreensível, sob a condição de que, mediante técnicas e deduções apropriadas, estabeleçamos suas causa que, geralmente, se encontram nos planos subjacentes de consciência.” (MIRA Y LÓPEZ, Emilio. Manual de Psicologia Jurídica. Campinas: Servanda Editora, 2015. p. 16.)
p. 248
fina seleção do material de fatos que serão discutidos, se quiser poder destruir sua perniciosa ação.”670
A obra sociológica de Vilfredo Pareto procura ir além de abordagens
clássicas que lidam com o homo econommicus e com a total separação entre emoção e
razão na tomada de decisões como pressuposto teórico, embora o autor seja relembrado
marcadamente na economia; a obra de Pareto considera que determinados fatores
psicológicos desempenham um papel central nos campos social, político e econômico,
procurando entender a interdependência entre economia, política e sociedade e como é
alcançado um determinado equilíbrio social em seus complexos movimentos cíclicos (o
autor não propugnava a existência de uma teleologia irresistível ou progresso necessário
na sociedade ou o “fim dos tempos”, como Hegel, Marx e Fukuyama):671
670 MIRA Y LÓPEZ, Emilio. Manual de Psicologia Jurídica. Campinas: Servanda Editora, 2015. p. 80. Um
exemplo limitado à circunstância ocasional e não propriamente com caráter estrutural e amplitude que vem sendo proposto ao tema, mas que ilustra a influência do estado psíquico (emocional ou influência estética) no comportamento ou decisão do indivíduo sem uma dada correlação lógica entre situações de uma forma interessante é denominado constelação, assim descrito: “Com este nome se designa a influência que a vivência ou experiência imediatamente antecedente exerce na determinação da resposta à situação atual. É evidente que um indivíduo que sai de um concerto de música ou acaba de ouvir um sermão religioso não se encontra em idêntica disposição para distribuir bengaladas que quando acaba de ver uma luta de boxe ou partida de futebol. O estado de ânimo anterior depende, como é natural, não só de estímulos exteriores, como de estímulos interiores, e não somente de excitantes psíquicos, mas também de excitantes físicos; é um fato provado, por exemplo, que as temperaturas externas e o confinamento excitam as pessoas. (...) A ‘constelação’ tem, pois, um intenso valor na determinação da reação pessoal, e isso é conhecido empiricamente pelas pessoas que perguntam que hora é melhor para pedir um favor ou fazer uma visita..., “ (MIRA Y LÓPEZ, Emilio. Manual de Psicologia Jurídica. Campinas: Servanda Editora, 2015. p. 80.). 671 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2150-2151. Nesse quadro comparativo, podemos, ainda, mencionar: “As abstrações sentimentais de Pareto equivalem aos conceitos que Auguste Comte chamava de metafísicos. (...). Há, contudo, uma diferença importante entre a concepção de Pareto e a de Comte. Para este último, a despeito de eventuais atrasos, a evolução humana avança do fetichismo para o positivismo, passando pela teologia e pela metafísica; para Pareto, estes quatro modos de pensar podem ser encontrados normalmente, em diferentes graus, em todas as épocas. Ainda hoje, há pessoas que não ultrapassaram o pensamento fetichista ou teológico. Não há, portanto, para a humanidade considerada em conjunto, a passagem necessária de um tipo de pensamento para outro. A lei dos três estados seria verdadeira se nossos contemporâneos pensassem exclusivamente de modo lógico-experimental, mas não é isso que acontece. Este método representa apenas um setor, muito limitado, do pensamento humano da atualidade. Não é mesmo concebível que possa abranger em sua totalidade o pensamento dos indivíduos ou das sociedades. Não há, portanto, passagem de um tipo de pensamento a outro mediante processo único e irreversível, mas sim oscilações de acordo com o momento, as sociedades e as classes, na influência relativa de cada um destes modos de pensamento. Tudo o que temos direito de dizer é que há uma ampliação muito lenta do setor coberto pelo pensamento lógico-experimental, testemunhada pelo desenvolvimento das ciências naturais. Hoje, a humanidade atribui a esse pensamento uma importância maior do que no passado. De certo modo, porém, este progresso não é definitivo; por outro lado, não se pode imaginar que continue
p. 249
“His ambition was to understand how those cycles function. He thought that some sociological schools, like Marxism or positivism, did not pay attention to the irrational, or non-logical, component of society. This failure to recognize certain elements diminished the utility of these theories to model an image of the world. To Pareto, ‘psychic states, sentiments and subconscious feelings and the like’ play a major role in society.”672
Pareto fornece elementos para a compreensão da intrincada
interferência das sensações e sentimentos na forma como agentes tomam decisões no
campo social, de forma contingente e harmônica com o pensamento atual da teoria do
conhecimento, correlacionada a um campo experimental em desenvolvimento contínuo,
aproximando-se do nominalismo no aspecto linguístico.673
Para Pareto, todas as teorias possuem elementos lógicos e não lógicos,
na sua acepção, com inferências lógicas e emocionais, havendo uma proporção cada vez
menor de aspectos emocionais na medida em que ciências lógico-experimentais avançam
em suas teorias; entretanto, em temas sociais, a força persuasiva está especialmente ligada
a aspectos emocionais e a lógica desempenha principalmente um papel harmonizador.674
Pareto divide as ações em racionais e não-racionais conforme sejam ou
não meios apropriados a um fim, em termos que o autor denomina lógico-experimentais,
pois admite que para o agente (subjetivamente)675, todas as ações lhe pareçam do primeiro
tipo, ou seja, racionais, dada a forma de pensar e agir humanas, assim, não há uma
indefinidamente.” (ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 647-648). 672 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2152. Em tradução livre: “Sua ambição era entender como aqueles ciclos funcionam. Ele pensou que algumas escolas sociológicas, como o marxismo ou o positivismo, não prestaram atenção para o componente irracional ou não lógico da sociedade. Essa falha em reconhecer certos elementos diminuíram a utilidade destas teorias para modelar uma imagem de mundo. Para Pareto, estados psíquicos, sentimentos, sensações subconscientes e assemelhados desempenham um papel crucial na sociedade.” 673 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2152-2153 e 2158. 674 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2156. 675 Prossegue o autor: Sotto quest’ultimo aspetto, quasi tutte le azioni umane fanno parte della prima classe. Per i marinai greci, i sacrifizi a Posidone e l’azione di remare arano mezzi ugualmente logici per navigare. (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 65.) Em tradução livre: “Sob este último aspecto, quase todas as ações humanas fazem parte da primeira classe. Para os marinheiros gregos, os sacrifícios a Poseidon e a ação de remar são meios igualmente lógicos para navegar.”
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diferença ontológica entre essas ações, mas uma distinção conforme o estado de
conhecimento676: “I nomi dati a queste due classi non ci devono trarre in inganno. (...)
perchè ogni conoscenza umana è soggetiva, ed esse si distinguono non per una differenza
di natura, ma per una somma più o meno grande di conoscenze de fatti.”677
Há uma diferença de profundidade ou qualitativa nas referências
tomadas para aquilatar o caráter lógico-experimental, que pode ser graduada, nesse
aspecto, da doxa à episteme e, num outro aspecto, há um modelo de racionalidade baseado
no teste e experimentação para balizar esse caráter. Conforme expõe Aron sobre a obra
de Pareto:
“Tal como foi definida, a ciência só cobre um domínio estreito ou limitado da realidade. Estamos longe de conhecer tudo o que se passa no mundo; por conseguinte, longe de ter condições de dominar o conjunto dos fenômenos naturais. As condutas lógicas não cobrem e não podem cobrir mais do que uma parte limitada do conjunto da conduta humana. Se a condição para que uma conduta seja lógica é a de podermos prever as consequências dos nossos atos, e de podermos determinar pelo raciocínio os objetivos que pretendemos alcançar, e se a ciência não permite determinar os objetivos ou conhecermos as consequências dos nossos atos, a não ser em domínios limitados, a maior parte da conduta humana será necessariamente não-lógica. (...) Se há uma ironia, explícita ou velada, na expressão ‘não-lógica’, ela atinge
676 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 64-65. 677 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 64. Em tradução livre: "Os nomes dados a estas duas classes não devem nos enganar. (...) porque todo conhecimento humano é subjetivo e eles são distinguidos não por existir uma diferença de natureza, mas por uma maior ou menor quantidade de conhecimento dos fatos”. Conforme esclarece Raymond Aron: “Para Pareto, a ciência é lógico-experimental. Estes dois termos devem ser interpretados rigorosamente. Lógico significa dizer que é legítimo deduzir de definições enunciadas, ou de relações observadas, as consequências resultantes das premissas. O adjetivo experimental abrange ao mesmo tempo a observação, no sentido restrito do termo, e a experimentação. A ciência é experimental porque se aplica ao real e se refere a ele como origem e critério de todas as proposições. Uma proposição que não comporta demonstração ou refutação pela experiência não é científica. Como meu mestre Léon Brunschvicg gostava de dizer, uma proposição cuja falsidade não pode ser demonstrada não pode ser verdadeira. Esta ideia é evidente, embora não seja percebida por muitos espíritos que veem na impossibilidade de refutar suas afirmações uma prova de verdade destas. Muito pelo contrário, uma proposição vaga e indefinida, a ponto de não poder ser refutada por nenhuma experiência, pode despertar sentimentos, satisfazer ou indignar, mas não é científica. (...) Nesse particular, Pareto pertence à posteridade de Hume. Para ele, as relações singulares entre os fenômenos não comportam a necessidade intrínseca da causalidade. A regularidade observada é mais ou menos provável, de acordo com a natureza dos fenômenos interligados e o número das circunstâncias que foram observados.” (ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 603-604.)
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somente aqueles que, agindo de forma não-lógica, pensam agir logicamente. A ironia do observador não quer sugerir aos homens que ajam logicamente; ela visa ao fato de que os homens são tão irracionais quanto raciocinadores. A principal característica da natureza humana é se deixar levar pelo sentimento e apresentar justificativas pseudologicas para atitudes sentimentais.”678
Contribuindo para diminuir a racionalidade possível, o intérprete
encontra dificuldades tais como a conhecida observação seletiva e a coincidência de
fenômenos que não se ligam por uma causalidade, a evidência anedótica, aforismos,
observação do que "ordinariamente acontece” ou regras de experiência que podem ser
usadas como justificação, ignorando (conscientemente ou não) evidências menos
conhecidas que dão suporte ao contrário, ou situações que por sua coincidência levam à
atribuição de causalidade pelo raciocínio dedutivo, quando não há demonstração do que
é causa e o que é consequência ou, até mesmo, que estejam relacionadas mais do que no
aspecto espaço-temporal.
Todo o conhecimento está em alguma medida baseado em suposições
e construções sociais, sendo relevante admiti-las e conhece-las na formação da visão do
mundo do intérprete e aplicador do direito no momento decisional, em todas as situações
há aproximações sucessivas melhores ou piores na compreensão de uma dada situação,
ainda que se qualifique o pensamento empregado de científico, neutro, imparcial,
objetivo, etc.:
“Possiamo solo avere concetti approssimati dei fenomeni concreti; una teoria non può mai figurare tutti i particolari dei fenomeni; quindi le divergenze sono inevitabili, e rimane solo di ridurle al minimo. Anche da questo lato, siamo quindi ricondotti alla considerazione delle approssimazioni successive. La scienza è in un continuo divenire, ciò vuol dire che ognora, ad una teoria fa seguito un’altra maggiormente approssimata ai fatti reali. La teoria di ieri è stata perfezionata oggi, questa lo sarà domani, quella di domani lo sarà storia delle scienze, e nulla permette di
678 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 608. A denominação de não-lógica não equivale a ser ilógica, mas sim que existem componentes não-lógicos, na maioria das vezes não admitidos, que influenciam ou mesmo determinam a decisão, a ação ou o resultado: “Contudo, a determinação dos fins pelos resíduos é não-lógica, mas não é ilógica, já que, de qualquer forma, não há determinação lógica dos fins. Da mesma forma, as condutas rituais são não lógicas, mas não são ilógicas.” (ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 652).
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supporre che non si seguiterà ancora a leggere per moltissimo tempo.”679
Ações humanas usualmente estão direcionadas a um fim ou procuram
atingir uma finalidade, ainda que assim o seja apenas do ponto de vista individual do
agente, mas há ações direcionadas a um fim conforme a compreensão de diversas pessoas
com um conhecimento mais abrangente do assunto, para essas últimas, pode-se dizer que
há uma razão ou que a ação é racionalmente compreensível numa perspectiva lógico-
experimental, enquanto em outros casos a ação pode ser entendida como não-lógica, ainda
que tenha uma utilidade social ou esteja conforme uma doutrina e que leva a fins
desejados, mas travestido de forma racional para dar uma forma lógica a ações não-
lógicas, sendo de grande importância social.680
O que liga, portanto, as contribuições de Pareto e de Habermas no
quadro teórico da decisão humana (seja uma decisão judicial ou não) é que ambos
exploram, no aspecto ora tratado, os limites da racionalidade humana ou do que vem a
ser chamado de ação racional, ação que estaria fundamentada com relação aos outros: ao
menos fundada na base lógico-experimental, para Pareto, ou justificada por meio das
pragmáticas universais dos sujeitos comunicativamente competentes, para Habermas.
Assim, essas contribuições podem ser colocadas mediante os limites de
racionalidade possível na fundamentação de uma decisão e o que, por seu aspecto global
do fenômeno decisório, existe, mas não tem a viabilidade de ser comunicado
racionalmente.
Nesse sentido, às ações que são guiadas por motivações sociais ou pelas
crenças e normas habituais de uma dada comunidade pode-se conferir uma compreensão
679 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 45-46. Em tradução livre: “Podemos ter somente conceitos aproximados dos fenômenos concretos; em uma teoria não podem nunca aparecer todos as particularidades dos fenômenos; então as divergências são inevitáveis e permanece somente sua redução ao mínimo. Também, por este lado, somos então reconduzidos à consideração das aproximações sucessivas. A ciência é um contínuo tornar-se, o que quer dizer que a todas as horas, à uma certa teoria, segue-se uma outra mais aproximada aos fatos reais. A teoria de ontem é aperfeiçoada hoje, esta o será amanhã, aquela de amanhã será história das ciências e nada permite de imaginar que não acontecerá de novo por muito tempo.” 680 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2153-2154.
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intersubjetiva ou “racionalidade contextual”, embora não contenham racionalidade
lógico-experimental:
“Pensar em termos de motivação social e racionalização contextual envolve uma mudança fundamental na forma pela qual a ação é conceitualizada. O modelo ou estrutura conceitual não é mais monologicamente intencional e consequencialista, mas sim convencional ou guiado por normas. Neste modelo, a ação possui uma estrutura intencional, mas somente no sentido de que o agente pretende expressar algo fazendo sua ação se conformar com a estrutura das normas.”681
As estruturas da racionalidade, assim, possuem contornos diversos em
Habermas (racionalidade instrumental, racionalidade contextual e racionalidade
comunicativa) e em Pareto, que não empreende uma exposição explícita entre sua teoria
da ciência e sua teoria das ações lógicas e não-lógicas,682 mas ambos procuram expor os
seus limites e viabilidades na conduta humana e na comunicação.
É importante estabelecer que designar uma ação como não-lógica, para
Pareto, não significa desvalorizá-la ou diminui-la, mas simplesmente afirmar que há
componentes determinantes em tal ação que são expressões de sentimentos, em sua
concepção própria, quase sempre desconhecidos pelos próprios atores.683
A existência desse aspecto e, em certa medida, uma elaboração teórica
sobre o mesmo não pode ser descurada quando se pretende tratar do tema da motivação
das decisões judiciais, tanto pelo que já fora tratado anteriormente, como pelo fato de que
tanto a decisão como a fundamentação em seu aspecto jurídico precisam ser
compreendidas dentro de uma “aproximação global do fenômeno”684.
A referendar a necessidade de investigação sobre aspectos não racionais
e seus limites, não é nada desprezível a constatação de que há um “sentimento de justiça”
681 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 28. 682 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 606. 683 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 634. 684 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 73.
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por vezes empregado na decisão a que não correspondem todas as razões comunicáveis
expressas, como pontua Piero Calamandrei:
“Mais do que os virtuosismos cerebrais da dialética, os juízes fiam-se na sua sensibilidade moral e quando são obrigados a encher de argumentos jurídicos as razões das suas sentenças, consideram essa tarefa como um luxo de intelectuais desempregados, visto estarem convencidos de que, desde que aquela sua íntima voz da consciência tenha falado, já não são precisos argumentos racionais. (...) Isto sucede porque às vezes o juiz, no qual os dotes morais são superiores aos intelectuais, intuitivamente sabe de que lado está a razão, posto que não consiga depois encontrar os expedientes dialéticos que o demonstrem. Creio que a angústia mais obcecante de um juiz escrupuloso deva ser esta: saber, porque lhe foi sugerida pela consciência, qual é a decisão justa e não conseguir encontrar os argumentos para o demonstrar logicamente. Sob este ponto de vista é de desejar que o juiz tenha um pouco da habilidade do advogado, para que, ao redigir a sentença nos seus considerandos, possa ser o defensor da tese já fixada de antemão pela sua consciência.”685
A compreensão dos resíduos e derivações fornece uma relevante
contribuição e uma chave interpretativa para a real determinação de certas ações e
decisões e mesmo a sua posterior racionalização e fundamentação, tais como o exame do
discurso e da justificação de agentes comunicativos com relação à lógica e o equívoco de
representações sociais e suposições na visão de mundo do intérprete:
“O estudo das derivações, no Traité de sociologie générale, comporta vários aspectos. Podem-se, com efeito, examinar as manifestações verbais dos atores com relação à lógica e mostrar como e quando dela se afastam. Podem-se também confrontar as derivações com relação a realidade experimental, para marcar a distância entre representação do mundo pelos atores e o mundo tal como ele é efetivamente.”686
Pareto também verifica que no discurso jurídico há limites para a
justificação racional, inserindo-se ações não-lógicas no fenômeno jurídico. Para Pareto
não há como definir intrinsecamente o fenômeno jurídico sem abandonar, pouco a pouco,
685 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução Ivo de Paula (Edição Digital EPUB DRM). São Paulo: Pillares, 2013. p. 78-79. 686 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 641.
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o campo experimental ao fazê-lo, até chegar-se no campo da metafísica, 687 assim,
assevera ser o direito contingente, a depender do tempo e lugar, não pode ter uma
“existência objetiva”, sob pena de se adotar conceitos que sutilmente se afastam da
realidade, como num expediente para encobrir ações não-lógicas, 688 a expressão de
resíduos e derivações:
“Un altro bell’esempio di discorsi senza precisione alcuna è quello delle teorie sul diritto naturale e sul diritto delle genti. Molti pensatori hanno avuto un sentimento che hanno espresso alla meglio con tali termini, e si sono poi ingegnati a congiungere tale sentimento coi fini pratici che volevano conseguire. Al solito, grande vantaggio hanno avuto in tale opera dall’uso di vocaboli indeterminati, che non corrispondono a cose, ma solo a sentimenti. Esamineremo ora tali modi di ragionare appunto sotto l’aspetto della corrispondenza che possono avere, o non avere, colla realtà sperimentale. (...) Il diritto naturale è semplicemente quello che pare ottimo a chi usa tal vocabolo; ma non si può spiattellare la cosa ingenuamente in questi termini; giova usare qualche artifizio, aggiungere qualche ragionamento.”689
A validade e fundamento racional são aspectos independentes da
utilidade social, reconhece Pareto, uma teoria pode ter sua utilidade, nesse sentido, sem
qualquer correspondência com a realidade experimental,690 podem as racionalizações ou
teorias justificativas serem constituídas de entidades não racionais, especialmente quando
687 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 209. 688 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 209. 689 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 209-210. Em tradução livre: “Um outro bom exemplo de discursos sem precisão alguma é aquele das teorias sobre o direito natural e sobre o direito dos povos. Muitos pensadores tiveram um sentimento que expressaram na melhor das maneiras com tais termos e se ocuparam de juntar tal sentimento com fins práticos que queriam alcançar. Às vezes, grande vantagem tiveram neste trabalho pelo uso de palavras indeterminadas, que não correspondem às coisas, mas apenas aos sentimentos. Vamos examinar agora as tais maneiras de raciocinar de fato sob o aspecto da correspondência que possam ter ou não ter uma realidade experimental. (…) O direito natural é simplesmente aquele que parece ótimo para quem usa o vocábulo; mas não se pode descartar ingenuamente nestes termos; é bom usar algum artifício, adicionar algum raciocínio.”. Adiante, prossegue o autor no raciocínio: “I materiali che pongono in opera i difensori del diritto naturale sono principalmente: La Retta ragione; la Natura, colle sue appendici, cioè la natura ragionevole, lo stato di natura, la convenienza colla natura, la socialità, ecc.; il consenso di tutti gli uomini, o di parte di essi; il volere divino. Sono considerate specialmente due cose, cioè: Chi è autore del diritto naturalle? Come ci è rivelato?” (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 210.) Em tradução livre: “Os materiais que foram utilizados pelos defensores do direito natural são principalmente: a razão correta, a natureza com seus apêndices, ou seja, a natureza razoável, o estado da natureza, a conveniência com a natureza, a sociabilidade etc.; o consenso de todos os seres humanos, ou de parte destes, o querer divino. São consideradas especialmente duas coisas, quais sejam: Quem é o autor do direito natural? Como ele é revelado?” 690 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 210.
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são aplicadas para motivar uma decisão, que se pretende racional e que depende, em
maior ou menor medida, de um modelo possível do que há no mundo:
“Una certa interpretazione è quasi sempre necessaria, perchè chi riferisce un fatto lo fa col suo linguaggio ed aggiungendoci poco o molto dei suoi sentimenti, e, per risalire al fatto, dobbiamo spogliare la narrazione de questi accessori; alle volte sarà facile, alle volte difficile, ma occorre non mai dimenticarne la necessità o almeno l’utilità.”691
691 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 283. Em tradução livre: “Uma certa interpretação é quase sempre necessária porque quem se refere um fato o faz com a sua linguagem e acrescenta um pouco ou muito dos seus sentimentos e, para voltar ao fato, devemos despir a narração destes acessórios, que as vezes será fácil e as vezes difícil, mas é necessário não esquecer nunca a necessidade ou ao menos a utilidade.” Prossegue o autor, exemplificando situações de evidente compreensão no uso da linguagem para depois chegar à interferência dos resíduos e derivações: “I viaggiatori traducono coi loro concetti e nella loro lingua, i concetti che hanno udito esprimere nella lingua dei popoli che hanno visitato; perciò che loro narrazioni, poco o molto, spesso si allontanano dal vero, ed occorre, quando è possibile, fare una traduzione inversa, per ritrovare i concetti reali dei popoli di cui ci danno contezza i viaggiatori. Similmente, è difficile in molti casi lavorare per la Sociologia sulle traduzioni, ed occorre, quando ciò sia possibile, ricorrere al testo originale. Al solito, non bisogna andare da un estremo all’altro, e vi sono molti casi in cui basta nonché una traduzione, anche un semplice compendio. Per decidersi sul da fare, occorre vedere se la conclusioni dipendono dal senso preciso di uno o più termini; in tal caso occorre proprio ricorrere all’originale. Le difficoltà maggiori per intendere i fatti di altri tempi o di altre popoli, nascono da ciò che noi li giudichiamo colle abitudini mentali della nostra nazione e del nostro tempo. Ad esempio, noi vivendo in paesi ed in tempi in cui esistono leggi scritte che la pubblica autorità impone di osservare, intendiamo malamente lo stato dei popoli presso i quali alle legge nostre corrispondevano certi usi non scritti e di cui nessuna autorità pubblica imponeva l'osservanza. (…). Egualmente presso di noi è completa la separazione, in certi casi, tra il fatto ed il diritto; ad esempio, tra il fatto della proprietà ed il diritto della proprietà. Ci furono popoli e tempi in cui il fatto confondevasi col diritto: poi si disgiunsero a poco a poco, con lenta evoluzione, (…). Ma tutto ciò è poco in paragone delle difficoltà che nascono dall’intromissione dei sentimenti, dei desideri, di certi interessi, di enti fuori dell’esperienza, come sarebbero gli enti metafisici e teologici; ed è appunto la necessità di non appagarci dell'apparenza, spesso molto fallace che danno ai fatti, e invece di risalire a questi, che ci guida nel presente studio e che ci costringe a percorrere lunga e faticosa via.” (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 283-286). Em tradução livre: “Os viajantes traduzem com os conceitos deles mesmos e em sua própria língua os conceitos que ouviram expressados na língua dos povos que visitaram; portanto a narração deles, pouco ou muito, muitas vezes se distanciam do real e acontece, quando é possível, a tradução ao contrário para encontrar os conceitos reais dos povos que os viajantes tomam conhecimento. Também é difícil em muitos casos trabalhar para a Sociologia em traduções e é necessário, quando for possível, recorrer ao texto original. Geralmente não é necessário ir de um extremo ao outro e existem muitos casos em que basta somente uma tradução ou mesmo um simples compendio. Para decidir o que fazer, é necessário ver se a conclusão depende do sentindo exato de um ou mais termos e, neste caso, é necessário recorrer ao original. As dificuldades maiores em compreender os fatos de outras épocas ou de outros povos nascem de que nós os avaliamos com os costumes mentais da nossa nação e do nosso tempo. Por exemplo, vivendo em países e em épocas nos quais existem leis escritas a que a autoridade pública impõe sejam observadas, compreendemos mal o estado dos povos para os quais as nossas leis correspondem a determinados usos não escritos e aos quais nenhuma autoridade pública impunha observância (...). Igualmente para nós é completa a separação, em determinados casos, entre o fato e o direito; por exemplo, entre o fato da propriedade e o direito da propriedade. Existiam povos e épocas em que o fato se confundia com o direito: logo após
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Pareto afirma ser um equívoco crer que as sentenças dos tribunais de
um país sejam dadas apenas com base na lei escrita, há um desvio prático com o
consequente afastamento entre a lei escrita do direito civil e o que chama “legislação
prática”, que se pode apenas aproximadamente se entrever no direito escrito.692 O direito
escrito, então, corresponde menos ainda à aplicação efetiva nos atos judiciais decisórios:
“le leggi scritte di questo diritto non corrispondono punto alle sentenze pratiche, e spesso
la divergenza è enorme.”693
Há diversos fatores para que o desvio da aplicação ocorra,694 dentre
eles, comenta Pareto que em sua época havia um clamo doutrinal para que a legislação
fosse “‘viva, flessibile’, che deva adattarsi alla ‘coscienza popolare’” 695 , o que são
eufemismos para indicar o capricho dos que detêm o poder, também as inclinações do
julgador, a própria influência política, que pode ser bastante relevante em certos casos,
outras inclinações e especificidades da visão de mundo, impressões transitórias do
momento vivido ou de fatos notáveis:696
se distinguiam pouco a pouco com uma lenta evolução, (...) mas tudo isso é pouco em comparação às dificuldades que nascem da intromissão dos sentimentos, dos desejos, de determinados interesses, de entidades fora da experiência, como seriam as entidades metafisicas e teológicas, e é precisamente a necessidade de não estar satisfeito com a aparência, muitas vezes muito falaz que dão aos fatos, mas ao invés disso, voltar a estes que nos guiam no presente estudo e que nos constrangem a percorrer longas e difíceis vias.” 692 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 236-237. 693 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 237. Em tradução livre: “as leis escritas deste direito não correspondem às sentenças práticas e muitas vezes a divergência é enorme” 694 Pareto menciona em outra passagem: “Supponiamo per un momento, sebbene ciò non sia vero in generale, che esista, almeno in uno ristretta collettività, un certo tipo teorico, di cui le credenze e gli usi pratici si possono ritenere deviazioni. Per esempio, dove c’è un codice civile, si può supporre – sebbene ciò non sia interamente vero – che le sentenze, come sono dettate dalla giurisprudenza che si è che si è costituta allato al codice, e qualche volta contro, o come sono formulate per errore od ignoranza dei magistrati, o per altre cause, sono semplici deviazioni delle norme del codice.” (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 235). Em tradução livre: “Vamos imaginar por um momento, embora não seja verdade, em geral, que exista, ao menos em uma restrita coletividade, um certo tipo teórico, do qual crenças e usos práticos podem ser considerados desvios. Por exemplo, onde existe um código civil pode-se supor – embora isto não seja completamente verdade – que as sentenças, como são ditadas pela jurisprudência que foi constituída com base no código, e às vezes contra, ou como são formuladas por erro ou ignorância dos magistrados, ou por outros motivos, ou por outras causas, são simples desvios das normas do código.” 695 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 239. Em tradução livre: “viva, flexível e que se adapte à consciência popular” 696 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 239.
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“In conclusione, la sentenza dipende da interessi, da sentimenti, esistenti in un dato tempo nella società, anche da capricci, da casi fortuiti, e poco, talvolta quasi niente, dal codice o dalle leggi scritte. Tutti questi fatti, quando siano d’indole generale ed operino fortemente, danno luogo a teorie; ed è appunto per ciò che noi stiamo studiando le varie teorie, non tanto per conoscerle direttamente, quanto per giungere, mercè di esse, alla conoscenza delle inclinazioni da cui origine.”697
Os resíduos correspondem a certos instintos humanos, consistem em
manifestações das pulsões que são a motivação primária da conduta humana e sua
compreensão permite o reconhecimento de motivações (resíduos) no processo de decidir
e, assim, permitem a melhor compreensão do processo de decisão. 698 Importante
salientar, contudo, que os resíduos não se confundem com os sentimentos e nem com os
instintos a que guardam correspondência, sendo apenas parte de uma manifestação desses
últimos, 699 são elementos intermediários existentes na conduta humana forjados
analiticamente para a compreensão da sociedade, ao passo que “o estudo dos sentimentos
em si mesmos pertencem à esfera da psicologia”.700
A persuasão provém de forma significativa dos resíduos, primários ou
secundários, enquanto a derivação desempenha um papel importante na aceitação social
de um posicionamento, consolidada pela necessidade humana de explicação racional,
assim, as derivações se apresentam quando explicações sobre algo são dadas: 701
“They are both used by the non-logico-experimental and the logico-experimental sciences, but the first one ‘often ascribe an intrinsic value to derivations and regard them as functioning directly as determinants of the social equilibrium’. In Pareto´s model derivations figure only as ‘manifestations, as indications,
697 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. I. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 239-241. Em tradução livre: “Concluindo, a sentença depende de interesses, de sentimentos existentes em um determinado tempo na sociedade, além de caprichos, de casos fortuitos e pouco, as vezes quase nada, do código ou das leis escritas. Todos esses fatos, quando são de índole geral e se verificam fortemente, dão lugar a teorias; e é por isso que nós estamos estudando as várias teorias, não tanto para conhece-las diretamente, quanto para atingir, através disso, o conhecimento das inclinações que delas se originaram.” 698 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2158-2159. 699 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 11. 700 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 619 e 622-623. 701 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2158-2159.
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of other forces that are the forces which really determine the social equilbrium’ – mainly residues.”702
Sem a existência de uma explicação, de uma fundamentação, não há
lugar para que haja derivação, mas assim que se emprega uma teoria ou justificação,
nascem as derivações, as derivações são expressão do desejo humano de racionalizar, não
estão presentes nos extremos do puro instinto, como nos animais irracionais,703 ou da
dedução científica puramente lógico-experimental, as derivações estão presentes nos
casos intermediários, isto é, na aplicação social e concreta da racionalização teórica:704
“Le teorie concrete, nelle materiale sociale, si compongono di residui i di derivazioni. I residui sono manifestazioni di sentimenti. Le derivazioni comprendono ragionamenti logici, sofismi, manifestazioni di sentimenti adoperate per derivare; esse sono manifestazioni del bisogno di ragionare che prova l’uomo. Se questo bisogno si appagasse solo coi ragionamenti logico-sperimentali, non vi sarebbero derivazioni, ed invece di esse si avrebbero teorie logico-sperimentali; ma il bisogno di ragionamento dell’uomo si appaga in molti altri modi, cioè: con ragionamenti pseudo-sperimentali, con parole che muovono i sentimenti, con discorsi vani, inconcludenti; e così nascono le derivazioni. Esse fanno difetto ai due estremi, cioè per le azioni esclusivamente dell’istinto, e per le scienze rigorosamente logico-sperimentali; si incontrano nei casi intermedi.”705
702 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2160. Em tradução livre: “Ambos são usados pelas ciências não-lógico-experimental e lógico-experimental, mas a primeira ‘usualmente atribui um valor intrínseco ás derivações e as considera como funções diretamente determinantes do equilíbrio social’. No modelo de Pareto, derivações figuram somente como ‘manifestações, como indicadores, de outras forças que são as realmente determinantes do equilíbrio social’ – sobremaneira resíduos” 703 “L’animale che non ragiona, che compie solo atti di istinto (§ 861), no ha derivazioni; l’uomo invece prova il bisogno di ragionare e inoltre di stendere un velo sui suoi istinti e sui suoi sentimenti, quindi in lui manca raramente almeno un germe di derivazioni, come pure non mancano i residui.” (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 330). Em tradução livre: “O animal que não raciocina, que cumpre somente ações por instinto, não possui derivações; o ser humano, ao invés, tem a necessidade de raciocinar e de estender um véu sobre seus instintos e sobre seus sentimentos, portanto, nele raramente falta um germe de derivação como também não lhe faltam os resíduos. ”. 704 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 330-331. 705 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 331. Em tradução livre: “As teorias concretas, em matérias sociais, se compõem de resíduos e de derivações. Os resíduos são manifestações de sentimentos. As derivações compreendem raciocínios lógicos, sofismas, manifestações de sentimentos usados para deduzir, os quais são manifestações da necessidade de raciocinar que o homem experimenta. Se essa necessidade fosse satisfeita apenas com o raciocínio lógico-experimental, não haveria derivação, em vez disso, haveria teorias lógico-experimentais; mas a necessidade de raciocínio do homem se satisfaz de muitos outros modos, ou seja: com raciocínio pseudo-experimental, com palavras que movem os sentimentos, com discursos vãos e inconclusivos; e assim,
p. 260
Pareto, assim, busca compreender a expressão paradoxal do
comportamento humano, em especial em suas justificações ou racionalização sobre o ato
de decidir, ultrapassando o mito do homo economicus puramente racional e que não sofre
influência da emoção, permitindo uma compreensão da formação das decisões por uma
combinação de ambos aspectos coexistentes no homem,706 através de seus resíduos ou
sua formação estética, para usar termos não estigmatizados pela teoria do conhecimento.
Há o reconhecimento de que este tipo de análise vai de encontro ao
senso comum ou à opinião majoritária, que é dominada pelo pensamento de ação
meramente lógica, dando maior importância às derivações do que aos resíduos, pois
conhecendo as derivações – ou tendo elas vindo à consciência do indivíduo – acredita
acolhê-las, ignorando, contudo, os resíduos que lhes são subjacentes e que não chegaram
à sua consciência.707
A teoria de Pareto sobre resíduos e derivações suscintamente
explanada, ainda que seja uma conjectura que comporta aproximações e
aperfeiçoamentos, não pretendendo o autor definitividade em sua elaboração, chama a
atenção para elementos relevantes no discurso de fundamentação de um ato e que
usualmente são relegados ou obscurecidos, talvez até pela histórica exclusão do caráter
estético na formulação de teorias a respeito do pensamento e racionalidade, as quais
pretendem que as decisões dos homens sejam fruto da pura racionalidade, desprendidos
de seu corpo e de seus interesses, perseguindo o mito do homo economicus. Esse quadro
teórico é, ainda, um programa de pesquisa complementar importante a ser
nascem as derivações. Estas têm defeito nos dois extremos, isto é, para as ações exclusivamente de instinto e para as ciências estritamente lógico-experimentais; elas se encontram nos casos intermediários. ” 706 PUGLIESE, Márcio; BRANDÃO, André Martins. Reason and Emotion in Human Decision-Making: a paretian approach. Quaestio Juris. vol. 09, nº. 04, Rio de Janeiro, 2016. p. 2160. 707 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 331-332 (“Chi viene a conoscenza di una derivazione crede di accoglierla – o di respingerla – per considerazioni logico-sperimentali, e non s’avvede che invece, di solito, è mosso da sentimenti, e che l’accordo – o il cozzo – di due derivazioni è accordo – o cozzo – di residui”). Em tradução livre: “Quem vem a conhecer uma derivação acredita em aceitá-la - ou rejeitá-la - por considerações lógico-experimentais e não percebe que, em vez disso, geralmente é movido por sentimentos, e que o acordo, ou o choque, de duas derivações é acordo, ou choque, de resíduos”.
p. 261
desenvolvido 708 para retratar de maneira mais fidedigna a influência de aspectos
ignorados ou desmerecidos na esfera semântico-pragmática do indivíduo.
Nesse programa ainda recente, cujo desenvolvimento comporta
contribuições atuais de outras áreas do conhecimento na medida em que o estudo da
mente humana é aprofundado para a compreensão da ação pragmática humana, alinhado
aos pressupostos de Pareto, mencionaremos algumas correlações entre resíduos e
derivações de aplicação possível nessa conjectura da dissertação, sem esgotar toda a obra
do autor sobre o assunto.
Como no caso já relatado do direito natural como discurso sem precisão
que obscurece resíduos e interesses sob uma abstração que a nada corresponde
efetivamente, há um uso cada vez mais frequente de termo abertos na legislação e na
prática jurídica hodierna (textura aberta do ordenamento), assim como a aplicação direta
de princípios e de valores, como vetores principiológicos, na fundamentação da decisão
de casos concretos, havendo um paralelo com o que relata Pareto:
“Nei ragionamenti scientifici, le più forti conclusioni si ottengono, mercè deduzioni rigorosamente logiche, da premesse di cui la verificazione sperimentale è quanto è possibile perfetta. Nei ragionamenti non-scientifici, le più forte conclusione sono costitute da un potente residuo, senza derivazioni.”709
Não surpreende a coincidência de que o discurso jurídico dê imensa
relevância para a adoção de determinados vetores principiológicos, cuja aplicação direta
(de princípios) adquire o maior dos pesos na fundamentação, o que configura derivação
do tipo verbal nesse aspecto da linguagem, uma quarta classe de derivações que resulta
708 Nesse contexto, pode-se mencionar a indicação de Willis Santiago Guerra Filho: “Também se podem mencionar como um signo da ‘mudança de paradigmas’ em ciência o aparecimento e a importância crescente das investigações psicanalíticas da inconsciente, o qual não se pode deixar de levar em conta para entender concretamente o sujeito cognoscente, que só enquanto abstração está livre de suas determinações. Tais colocações fornecem indicativos para aquela que seria a primeira tarefa a enfrentarmos em nosso estudo de filosofia do direito, correspondente ao ponto (a), acima referido, que se pode qualificar como um estudo de epistemologia jurídica.” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 22.) 709 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 338. Em tradução livre: Nos raciocínios científicos, as mais fortes conclusões são obtidas através de deduções rigorosamente lógicas, por premissas das quais a verificação experimental é, quanto for possível, perfeita. Nos raciocínios não científicos, as mais fortes conclusões são constituídas de um potente resíduo, sem derivações.
p. 262
dos resíduos para Pareto, quando são “meramente aplicados” aos casos concretos. Isto é,
sem estabelecer o motivo concreto da incidência de um conceito jurídico indeterminado
ou uma cláusula geral.
Isto que o Código de Processo Civil busca evitar no art. 489, § 1°, II,
que se identifica com a hipótese da aplicação de princípios no inciso I do mesmo
dispositivo, devendo ser especificada a imprecisão semântica existente e externadas
porquê outras concepções alternativas de conteúdos vagos e outras interpretações
alternativas sobre sua incidência no caso concreto não sejam mais adequadas do que a
que for eleita: “se o conceito jurídico é indeterminado, sua aplicação no caso concreto
deve dar-se de forma determinada, precisa, a fim de permitir que se encontre na
fundamentação da decisão, elementos que levem a afirmar que aquela era a decisão
correta para o caso concreto posto sob julgamento.”710
Conforme Pareto, a quarta classe de derivações, consistente na prova
verbal,711 é obtida por meio do uso de derivações verbais, que não correspondem a um
elemento da realidade, mas que correspondem a resíduos que tomam corpo através de
uma abstração com um determinado nome, conquistam uma expressão de realidade por
haver um nome, supondo-se que o nome corresponda a alguma coisa efetiva.712 Numa
correlação com a ancoragem nas representações sociais, existem situações em que é dada
uma identidade social ao que não estava identificado, nem sempre implicando
correspondência com uma realidade determinada, a “proliferação de nomes corresponde
710 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 280. 711 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. pp. 424-540. 712 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 424. Menciona, ainda o autor: “Come più volte abbiamo notato, i termini del linguaggio ordinario non corrispondono in generale a cose bene determinate, e quindi ogni ragionamento in cui si usano queste termini è esposto al pericolo di non essere altro che una derivazione verbale. Tale pericolo è minimo nei ragionamenti scientifici, perché si hanno ognora presenti le cose di cui i termini usati sono semplici indicazioni, come cartellini” (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 425). Em tradução livre: “Como muitas vezes notamos, os termos de linguagem ordinários não correspondem em geral a coisas bem determinadas e, portanto, todo raciocínio em que esses termos são usados é exposto ao perigo de não ser nada além de uma derivação verbal. Este perigo é mínimo no raciocínio científico, porque sempre estão presentes as coisas das quais os termos utilizados são simplesmente indicações, como etiquetas”.
p. 263
a uma tendência nominalística, a uma necessidade de identificar os seres e coisas,
ajustando-os em uma representação social”713. Esclarece Aron sobre a prova verbal:
“‘As derivações verbais são obtidas graças ao uso de sentido indeterminado, duvidoso, equívoco, e que não se ajustam à realidade.’ (§ 1543.) Por exemplo: um regime é considerado democrático porque trabalha no interesse das massas populares. Ora, esta é uma proposição duplamente equívoca. Que chamamos de democracia? Que significa trabalhar no interesse de alguém? A maioria dos discursos políticos pertencem à categoria das provas verbais.”714
Um dos resíduos mais ínsitos ao raciocínio humano é o que denomina
de resíduo das combinações, exprime o desejo de relacionar ideias e coisas, levando à
extração de consequências e princípios, a percepção humana francamente inclinada para
buscar regularidades na natureza deixa exposto este resíduo – mesmo que às vezes
inexistentes ou não estando correlacionadas –, “o homem é homem porque tem um
instinto das combinações, que provoca atos, expressões, teorias, justificações, e,
subsidiariamente, o próprio Traité de sociologie générale, que é sem dúvida uma
consequência, não inevitável mas efetiva, do instinto das combinações”715.
Uma segunda classe de resíduos, contraposta àquela primeira que
favorece o avenço do conhecimento e a inovação, é denominada de persistência dos
agregados, uma força inercial que mantém interpretações usuais e ações tradicionais,
“corresponde à tendência humana a manter combinações que se estabeleceram, a rejeitar
as transformações e a aceitar de uma vez por todas os imperativos”716.
713 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 68. 714 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. p. 643. 715 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 624. 716 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 626. Prossegue Aron: “Uma incita a elaborar construções intelectuais, a outra a estabilizar as combinações. Pareto observa que as revoluções modificam as pessoas dos governantes, as ideias em nome das quais estes governam e, eventualmente, a organização dos poderes públicos, mais facilmente do que os costumes, as crenças e as religiões. O que pertence à ordem dos costumes, da organização familiar e das crenças religiosas constitui o fundamento da sociedade e é mantido pela persistência dos agregados. (ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 626-627).
p. 264
Nesse caso há uma combinação que se agrega de forma a adquirir uma
personalidade semelhante a um outro ser real, podendo obter um nome distinto da simples
soma das partes e que contribui à maior consistência da personalidade do agregado,
opondo-se separação das coisas originais como a inércia mecânica, e, não havendo
maneiras de evitar a separação, procura-se dissimula-la conservando um simulacro do
agregado:717
“De um modo geral, as relações de um homem com outros homens, e dos homens com os lugares, são exemplos típicos de resíduos que tendem à persistência dos agregados. (...) Da mesma forma, pode haver uma persistência de uma abstração. Os que falam da Humanidade, do Progresso ou da História são movidos pelos resíduos da segunda classe, que pertencem ao gênero ‘persistência de uma abstração’ ou ‘personificação’. Se se afirma que o Progresso exige, ou que o Direito obriga, e se se toma seriamente a palavra abstrata, atribuindo à maiúscula um significado, agimos sob a influência de um resíduo da persistência dos agregados, o qual nos incita a tratar uma abstração como se fosse realidade, a personificar uma ideia e a emprestar vontade a tais abstrações personificadas.”
Quando se aceita uma explicação usualmente empregada para uma dada
situação ou uma estrutura teórica tradicional há oportunidade para que essa escolha seja
permeada pelo resíduo da persistência dos agregados, encontrando-se a força persuasiva
e justificadora como autoevidente por esse resíduo, como no caso em que há de se
perquirir se o costume usado na colmatação de lacuna está adequado à estrutura
teleológica constitucional e se aceitar igualmente uma interpretação alternativa à uma
interpretação usual ou tradicional, eliminando-se a tendência provocada por esse resíduo.
Numa fundamentação qualquer, não é difícil imaginar como a
percepção do que “ordinariamente acontece” (art. 375 do Código de Processo Civil) possa
estar influenciada ou mesmo delimitada pela repetição sem valor lógico-experimental,
seja por um resíduo da “persistência dos agregados” de uma dada tradição, na melhor das
hipóteses, seja por ser intencional e maliciosamente propagada para a consecução de
interesses estruturados de corporações ou grupos de pressão ou para a reprodução
sistêmica da cultura pela propaganda, o que também pode ser transposto pelo conceito
717 PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. II. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 81-82.
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analítico do resíduo “persistência dos agregados”. Neste último caso, Aron adverte: “A
teoria das derivações de Pareto é uma contribuição à psicologia das relações interpessoais
e intergrupais no domínio da política”718.
Mas mais do que isso, todas as suposições de funcionamento do mundo,
de aculturação do ser humano e das formas de reprodução material do mundo da vida
ingressam na motivação ou fundamentação de uma decisão humana – inclusive na
situação em que se empresta voluntariedade a um conceito abstrato para justificar uma
interpretação –, os resíduos e as derivações contribuem para a formação dos conceitos e
do agir, na formação do Weltanschauung do intérprete, que é incindível na estrutura da
fundamentação como ato humano:
“A própria classificação não pretende ser definitiva; sugere apenas as principais tendências das condutas humanas e ao mesmo tempo dos sentimentos. Essa classificação como tal não deixa de ter, contudo, uma significação importante, porque demonstra que os comportamentos humanos são estruturados”719
Outra espécie de resíduo é denominada necessidade de uniformidade e
consiste na inclinação natural a “julgar que a maneira como vive é a maneira como se
deve viver”, 720 pode ser comparada ao etnocentrismo frequentemente exposto em
motivações sobre perspectivas de agir e pensar e normalmente aceita como autoevidente
em conformidade a uma estrutura conceitual, de resíduos e derivações já estabilizada na
psique e custosa para ser assentada, não sendo de se esperar que o indivíduo renuncie à
sua estrutura e adota concepções alternativas de realidade com a mesma facilidade que
compreende às suas próprias ou as que lhe pareçam semelhantes:
“Esta necessidade é incontestavelmente uma das mais difundidas e mais fortes que existem nos seres humanos. (...). Nenhuma sociedade pode existir se não impõe a seus membros certos modos de pensar, de crer e de agir. Mas, porque toda sociedade torna obrigatórias estas maneiras de viver, toda sociedade tende também a perseguir os heréticos. A necessidade de uniformidade
718 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 644. 719 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 649. 720 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 630-631.
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é o resíduo a partir do qual se desenvolvem perseguições dos dissidentes, tão comuns na história.”721
Os valores nucleares de uma dada cultura estruturam profundamente as
“interpretações de necessidades” naquela sociedade conforme uma função das definições
daquela dada cultura, surgindo daí as reivindicações normativas sobre ordenações
alternativas para a satisfação das necessidades, normas que constituem formas para
regular “oportunidades legítimas para a satisfação de necessidades”.722
Essas interpretações de necessidades operam, no campo da aplicação de
certas normas, escolhas valorativas que estão subjacentes e que podem ser trazidas à tona
de maneira explícita na fundamentação das decisões em que foram aplicadas, mediante
um arcabouço teórico que permita uma reflexão adequada sobre o uso destas mesmas
ponderações valorativas na aplicação de normas.
A partir disso, poder-se-ia concluir que um mero apelo à satisfação de
determinadas necessidades ou “interpretações de necessidades” 723 não pode prover
diretrizes suficientemente claras para o estabelecimento de princípios de uma justiça
universal, dado o entrelaçamento das dimensões culturais da vida no conceito de
necessidades, não havendo um ponto de vista arquimediano para a filosofia moral e
política na construção de reivindicações normativas.724 Ao contrário, dado o caráter
cultural e específico de cada contexto social, as “interpretações de necessidades”
721 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 631. 722 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 73-74. 723 Embora a expressão não tenha sido usada com referência à corrente da jurisprudência dos interesses, pode-se ligar necessidade ou interesse aos critérios de valoração como “corolários da ideia de justiça” (substantiva) norteadora, valendo-se mencionar a explanação de Larenz sobre a polissemia do termo interesse empregado pelos juristas: “Essa deficiência foi entretanto reconhecida pelos próprios partidários da Jurisprudência dos interesses. Assim, um deles, Harry Westermann, sublinha que seria necessário o conceito de interesse fosse ‘delimitado às representações da pretensão que as parte num litígio têm ou devem ter, quando se empenham na obtenção de efeitos jurídicos favoráveis’, e distinguir assim, de modo rigoroso, o conceito de interesse dos critérios legais de valoração. Estes não seriam em si propriamente interesses, mas ‘corolários da ideia de justiça’, inferidos pelo legislador desse fim último. A Jurisprudência está ‘na sua essência, mediante aplicações de valorações legais, nos antípodas de uma valoração autónoma’ (do juiz).” (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. p. 163). 724 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 74.
p. 267
subjacentes aos esquemas valorativos aplicados em decisões deve ser justificado
explicitamente em cada caso.
Esta a crítica na ideia de preceitos de justiça que sejam tanto universais
como substantivamente determinados, feita também por Habermas à abordagem de Rawls
em A Theory of Justice com base na lista de bens primários propensa a interpretações de
necessidades de um tipo específico de sociedade, contudo, no modelo de pretensão
universalista de Habermas, é necessário um espaço conceitual crítico para alcançar
interpretações mais verdadeiras sobre suas necessidades particulares e das necessidades
comuns e capazes de um consenso normativo:725
“é preciso submeter-se não somente a regras precisas de argumentação imparcial, como também a regras cujo efeito é expor à avaliação crítica a interpretação de necessidades que informam uma dada reivindicação normativa. Esta exigência é particularmente importante pelo fato de trazer ao questionamento interpretações socialmente dominantes de necessidades, bem como outras. Em suma, o discurso requer um teste de reciprocidade quanto a como cada indivíduo interpreta suas
725 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 74-76. Neste aspecto das necessidades ou interpretações de necessidades, a visão de Pareto se aproxima dessa crítica: “Con buona pace degli umanitari e dei positivisti, una società determinata esclusivamente dalla ‘ragione’ non esiste e non può esistere. E ciò non già perché i ‘pregiudizi’ degli uomini tolgano ad essi di seguire i dettami della ‘ragione’; ma perché mancano i dati del problema che si vuole risolvere col ragionamento logico-sperimentale (§ 1878, 1880 a 1882). Appare nuovamente qui l’indeterminazione del concetto di utilità, la quale indeterminazione già si parò a noi dinanzi quando volemmo definire l’utilità (§ 2111). I concetti che i diversi individui hanno circa il bene proprio e l’altrui sono essenzialmente eterogenei, e non c’è modo di ridurli all’unità. Tale fatto è negato da coloro che credono di conoscere l’assoluto. Essi riducono tutte le opinioni degli uomini alla propria opinione, poichè eliminano le altre coi procedimento delle derivazioni, di cui abbiam dato molti esempi" (PARETO, Vilfredo. Trattato di Sociologia Generale. Vol. III. 2ª ed. Firenze: G. Barbèra, 1923. p. 304). Em tradução livre: “Com todo o devido respeito aos humanitários e aos positivistas, uma sociedade determinada exclusivamente pela ‘razão’ não existe e não pode existir. E isso não porque os ‘preconceitos’ dos homens os privem de seguir os ditames da ‘razão’; mas porque faltam os dados do problema que se deseja resolver com o raciocínio lógica-experimental (§ 1878, 1880 a 1882). Aqui novamente, aparece a indeterminação do conceito de utilidade, a qual já apareceu diante de nós quando queríamos definir a utilidade (§ 2111). Os conceitos que os diversos indivíduos têm sobre o próprio bem de outros são, essencialmente, heterogêneos, e não há um modo de reduzi-los à unidade. Este fato é negado por aqueles que acreditam conhecer o absoluto. Eles reduzem todas as opiniões dos homens à sua própria opinião, porque eliminam as outras com o procedimento das derivações, das quais demos muitos exemplos. "
p. 268
necessidades em relação aos outros, que são potencialmente afetados pela reivindicação normativa desse indivíduo.”726
Esse modelo de discurso ideal para encontrar consensos sobre
reivindicações normativas pressupõe uma abertura a outras vozes e interpretações
diferentes sobre necessidades, que está no centro da ética comunicativa, uma forma de
neutralizar a tendência natural do etnocentrismo e o resíduo da necessidade de
uniformidade:
“Requer tanto uma abertura recíproca dos agentes quanto às suas intenções e motivos verdadeiros quanto uma chance igual de expressar suas atitudes, sentimentos e necessidades. Com a última parte desta exigência, Habermas deseja assegurar especialmente que ‘interpretações tradicionais de necessidades’ podem ser postas em dúvida. A segunda regra que define ação comunicativa pura assegura que qualquer reivindicação de validade teórica ou prática pode ser efetivamente questionada; em outras palavras, haverá acesso livre ao teste da argumentação. Esta regra exige que haja uma igual distribuição de oportunidades ‘para ordenar e resistir a ordens, para permitir e proibir, para fazer e extrair promessas e para ser responsável pela própria conduta e exigir que os outros também o sejam’.”727
A abertura recíproca entre os agentes comunicativos pode encontrar
barreiras na renúncia de algumas orientações de valor nucleares na estrutura do indivíduo
que tenham implicações em sua estabilidade, algo que guarda equivalência ao resíduo da
persistência dos agregados, e também é uma forma de realização de um potencial racional
presente na ação comunicativa acentuado no mundo moderno, que se pode denominar
pós-convencional, um estágio de consciência moral reflexiva.
A contribuição de Pareto dos resíduos e derivações para a conjectura
traçada, no que se refere à compreensão e posição do intérprete ou julgador na elaboração
de uma decisão e sua justificativa, é a desconstrução do mito do homo economicus e a
formulação de um modelo mais preciso sobre a tomada de uma decisão numa dada
situação.
726 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 74-75. 727 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 62.
p. 269
Um modelo que não deixa em segundo plano a influência do agente ou
intérprete em si na elaboração de uma motivação que é racionalizada, demonstrando
elementos constantes a que correspondem resíduos e sua força persuasiva no discurso,
uma parcela que denomina não-lógica somente possível num modelo posterior à
separação absoluta por Descartes entre sujeito e objeto e que, em certa medida, ultrapasse
essa concepção sobre a efetiva interação entre intérprete e objeto interpretado. Citamos
duas conclusões de Aron:
“Para usar outro exemplo, em quase todas as sociedades os homens parecem sentir repugnância pelo que conhecemos como homicídio; contudo, de acordo com a época e a sociedade, acharão motivos diferentes para explicar ou justificar esta rejeição. Em certos casos, dir-se-á que é Zeus que proíbe o crime; em outros, que a razão universal não tolera violações à dignidade da pessoa humana. Há várias teorias que fundamentam a interdição do assassínio, mas há nelas um elemento constante – a rejeição de determinada conduta, cuja origem é um estado psíquico ou sentimento. O fenômeno concreto que se oferece à observação é o binômio rejeição do homicídio-justificação através de teorias concorrentes. O observador, de forma analítica, estabelece uma distinção entre estas teorias justificativas, que têm uma diversidade anárquica, e os elementos constantes dos fenômenos, que se repetem suficientemente para que possamos fazer com eles uma classificação geral. Como é pouco cômodo falar sempre em ‘elemento constante do fenômeno concreto considerado’, e como é inutilmente pedante dizer ‘a’ para designar este elemento constante, daqui em diante falaremos de resíduo para designar o que acabo de analisar sem usar expressões complicadas. Quanto às teorias diversas, que se multiplicam, para justificar os elementos constantes, vamos chama-las de derivações.”728
“Se ouvimos um orador, numa reunião pública, afirmar que a moral universal proíbe a execução de um condenado à morte, podemos estudar seu discurso com relação à lógica, para ver em que medida as proposições encadeadas se seguem de maneira necessária. Pode-se confrontar este discurso, isto é, a ideologia da moral universal, com o mundo tal como ele é; pode-se, enfim, ouvir o orador e perguntar por que suas observações são
728 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 617-618. Como mencionado anteriormente sobre a relatividade ontológica proposta por Quine (QUINE, Willard van Orman. Pursuit of Truth. Cambridge: Harvard University Press, 1990. p. 31), mais uma vez se destaca a finalidade prática do direito na busca da disciplina de comportamentos e relações sociais em prevalência sobre a relevância da determinação da natureza de institutos, preponderando a estrutura.
p. 270
persuasivas com relação a seus ouvintes. O estudo sociológico procura saber como os homens utilizam os procedimentos psicológicos, lógicos ou pseudológicos, a fim de convencer outros homens.”729
E se existem elementos não-lógicos na justificação, eles devem ser
trazidos à tona e expostos para serem testados e contrastados e não descurados ou
omitidos, em especial quais as interpretações de necessidades e utilidades subjacentes
envoltas em resíduos que permeiam a estrutura da decisão, como forma de aprimorar o
que se entende por motivação num quadro teórico do sujeito mais consentâneo aos
pressupostos ora considerados e como forma de reduzir o solipsismo da fundamentação,
com elementos subtraídos da motivação e relegados exclusivamente à esfera da
inalcançável consciência.
Nesse sentido, como menciona Taruffo:
“el poner de relieve la presencia, dentro de la misma motivación, de diversos juicios de valor vuelve posible hacer una valoración crítica de la coherencia interna de ese conjunto, así como de su correspondencia con los valores que están codificados en el ordenamiento, con los valores asumidos como propios de la sociedad o por una clase social en un momento histórico determinado, o con los valores asumidos como propios por el intérprete.”730
Uma reflexão sobre a valoração crítica desse conjunto de juízos de
valor, contudo, não se mostra possível se não for empreendido mediante uma atitude de
abertura para interpretações alternativas sobre necessidades, o que possibilita a tomada
de novas elaborações na base dos raciocínios valorativos empreendidos em conceitos
vagos que exijam juízos de valor.
A abertura para interpretações de necessidades alternativas aos valores
nucleares tradicionais de uma cultura (que podemos correlacionar à persistência dos
729 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 641-642. 730 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 84. Em tradução livre: “acentuar a presença, dentro da própria motivação, de diversos juízos de valor torna possível fazer uma valoração crítica da coerência interna desse conjunto, assim como de sua correspondência com os valores que estão codificados no ordenamento, com os valores assumidos como próprios da sociedade ou por uma classe social num momento histórico determinado, ou com os valores assumidos como próprios pelo intérprete.”
p. 271
agregados em Pareto) é em certa medida alcançada, segundo Habermas, por uma
superioridade racional das estruturas modernas de consciência, marcada pela modalidade
pós-convencional para justificar reivindicações normativas e que correspondem à
realização de um potencial de racionalidade no mundo moderno.731
A situação de discurso ideal requer a possibilidade de juízos
conformados a critérios de procedimentos pós-convencionais e correspondentes a um
estágio de desenvolvimento do juízo moral que Habermas empresta do trabalho de Piaget
sobre a cognição e de Kohlberg sobre o juízo moral na investigação da estrutura e
aquisição das competências humanas.732 Para Kohlberg o desenvolvimento se dá em
estágios cada vez mais integrados e diferenciados que ampliam a consciência moral com
maior equilíbrio do indivíduo no ambiente, partindo dos níveis mais baixos puramente
egocêntricos e ligados à punição e recompensa, passando por níveis intermédios de
manutenção de expectativas sociais e incorporação de papéis e normas sociais, até o mais
desenvolvido estágio que relativiza valores pessoais e normas convencionadas, sendo
orientado por critérios pós-convencionais e de acordo com princípios éticos escolhidos,
levando-se em consideração cada vez mais as perspectivas dos outros, distinguindo-se os
estágios por graus de reflexividade:733
“A capacidade para a ação comunicativa não só assume que um agente tenha o domínio desse sistema de ‘perspectivas do locutor’, como também o domínio das três ‘relações de mundo’ (natural, social e subjetiva) com suas reivindicações de validade correspondentes. A esta última espécie de domínio Habermas se refere como domínio de ‘perspectivas de mundo’. Um agente maduro tem à sua disposição, portanto, uma estrutura complexa tanto de perspectivas do locutor quanto de mundo. E é esta estrutura – Habermas chama de ‘entendimento’ completamente ‘descentrada do mundo [Weltverständnis]’ – que é a chave para a obtenção de uma justificação lógico-desenvolvimental dos estágios morais de Kohlberg.”734
731 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 63. 732 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 64. 733 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 65, 67 e 71-72. 734 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 66.
p. 272
Essa proposta pressupõe a universalização das reivindicações
normativas como fonte de legitimidade, em que todos os potencialmente afetados podem
tomar parte na discussão aberta e fazer valer suas interpretações de necessidades em
confrontação com outras num padrão consensual de reciprocidade.
Entretanto, não há uma resposta sobre a maior adequação de uma ética
discursiva sobre outras formas de ética pós-convencional, nem resta esclarecida a relação
entre as competências de interação e capacidade de julgamento moral (Piaget e Kohlberg)
com a validade universal de juízos pós-convencionais, que ficam em aberto:
“A princípio, Harbemas argumentava que, do ponto de vista teórico vantajoso da competência interativa, ele podia justificar o retrato da ética discursiva como um novo estágio 7, em acréscimo aos estágios 5 (legalismo sócio-contratual) e 6 (orientação por princípios éticos) kohlbergianos, pós-convencionais. Todavia, posteriormente, Habermas renunciou a este tipo de sustentação. Admitiu (como Kohlberg) que a ideia toda de estágios dentro do nível pós-convencional é mal concebida. A razão para isto é que o conceito de estágios naturais de desenvolvimento é inapropriado no nível III. Uma vez que um sujeito tenha atingido este nível de consciência moral reflexiva, o psicólogo não poderá mais sustentar mais o papel de um expert que separa estágios adicionais, como se eles ainda seguissem um ao outro da mesma maneira natural que o fazem para sujeitos nos níveis inferiores, pré-reflexivos. Dizer que um ‘estágio’ é ‘superior’ a um outro no nível pós-convencional representa nada mais do que uma afirmação de que, através do argumento e reflexão filosóficos, tal superioridade pode ser reconhecida pelo sujeito. (...) A conclusão disto é simplesmente que qualquer que seja a superioridade que um tipo de pós-convencionalismo possa reivindicar em relação a outro, esta superioridade será conquistada pelos recursos normais do argumento filosófico.”735
Nesse aspecto, a contribuição possível é que os agentes comunicativos
competentes são capazes de assumir um ponto de vista de reciprocidade e, assim,
constituir uma base não-tendenciosa para a resolução de conflitos sobre interpretações de
necessidades e reivindicações normativas com legitimidade,736 entretanto, mesmo com a
assunção de reciprocidade e abertura do diálogo numa situação de discurso ideal, há
735 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 68. 736
p. 273
consensos culturais prévios sobre os pontos de vista alternativos em consideração pelos
participantes e prévios ao consenso universal proposto por Habermas.
Por outro lado, embora a ética discursiva numa situação ideal possa
ensejar a essa “conversação aberta”, isto não promove, por si só, um tipo de personalidade
que é existencialmente aberta à reflexividade crítica em relação a necessidades,737 assim,
Habermas faz um apelo à conexão entre a razão comunicativa e a dimensão estética:
“Por isso, diz Habermas, temos de olhar para a dimensão estética. Formas de comunicação, para as quais fluem a experiência estética e a imaginação não são redutíveis ao discurso. As primeiras permanecem, entretanto, num ‘relacionamento interno’ com o discurso, pois sem elas a exigência de reflexividade e flexibilidade não teria muito potencial para lançar nova luz sobre necessidades e possíveis formas de vida diferentes daquelas que prevalecem numa dada sociedade. Contrariamente à experiência cotidiana, na qual os valores culturais tradicionais funcionam como ‘matrizes de acordo com as quais as necessidades são modeladas’, na experiência e críticas estéticas, é permitido acesso mais livre ‘às possibilidades interpretativas de... tradições culturais.’ Deste ponto de vista, a experiência estética possui o potencial para ajudar a evitar ‘uma estagnação das estruturas do discurso prático.’”738
Há, assim, uma “condição emocional necessária para as operações
cognitivas pós-convencionais de outros seriamente envolvidos no diálogo” para o alcance
da ética comunicativa e consenso sobre reivindicações normativas,739 há uma parcial
superação da influência do agente em si na justificação nesse modelo comunicativo.
Nesse modelo comunicativo há uma proposta de afastamento do solipsismo do imperativo
categórico na motivação do agente ou intérprete pela abertura do diálogo.
Implica-se uma renúncia ao rigorismo moral e à certeza do juízo
associados à ética kantiana, 740 se para Kant o imperativo categórico é verificável
737 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 85. 738 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 85. 739 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 86. 740 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 86. Conforme menciona White: “Se não estou enganado, é precisamente a ameaça de tal repressão do ‘outro’ e suas reivindicações potenciais o que anima os críticos
p. 274
conforme sua consciência pessoal através de um teste individual, para Habermas a norma
proposta é testada a partir de uma argumentação real entre todos os potencialmente
afetados pela norma, sendo a norma aceitável se incorpora “interesses generalizáveis”741
conforme as necessidades e a interpretação de utilidade alternativas em visões de mundo
diferentes.
Mas ainda resta uma lacuna consistente numa efetiva abertura e
compreensão para a “dimensão da experiência estética” sobre a qual esse modelo
comunicativo não pode munir de considerações,742 esse aporte teórico na nossa análise é
buscado justamente com a contribuição de Pareto sobre aspectos estéticos do intérprete
em suas explicações e sobre a influência dos elementos não-lógicos sobre a racionalidade,
que conformam a visão de mundo do intérprete e permeiam a justificação por resíduos e
derivações. Assim, o acesso à dimensão estética é inserida num modelo de intérprete e
suas implicações dessa dimensão podem ser consideradas sistematicamente no modelo
teórico com o aporte de Vilfredo Pareto.
Como não há possibilidade efetiva de uma situação de discurso ideal,
em que todos possam participar em iguais condições, possam apresentar e questionar
qualquer tipo de convicção básica não-questionada, de forma indiferente às estruturas de
poder e ideologia, para produzir o consenso no discurso argumentativo (acordo
racionalmente motivado), é necessário ter explícitas as relações de resíduos e derivações
com as convicções não-questionadas que fogem à plena possibilidade de reflexão no
discurso ou, ao menos, levar em conta a influência desses fatores nas assunções
implicitamente feitas no discurso.
contemporâneos das filosofias morais e políticas universalistas. O universalismo parece inevitavelmente suportar uma noção de autonomia definida em termos da rígida independência do ego das situações que o confrontam – e assim algum tipo de isolamento das reivindicações do outro, particularmente quando têm um caráter radicalmente diferente. Este ‘rigorismo moral’, evidente em Kohlberg e Kant, tem de ser comparado, afirma Habermas, com a imagem de autonomia que pode derivar das noções de identidade-ego e interpretação comunicativa da reciprocidade. A reflexividade e flexibilidade críticas em relação a interpretações de necessidades não podem ser realizadas através de um estilo monológico, independente de situação de cognição e julgamento.” (WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 84). 741 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 56. 742 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 87.
p. 275
A devida motivação pelo intérprete e o controle sobre ela somente
adquirem suficiente precisão e determinação quando fica exposta a atmosfera semântico-
pragmática do intérprete e quando há possibilidade efetiva de contrastar as interpretações
de necessidades alternativas e seus impactos, quando estão perceptíveis as reivindicações
implícitas, a estruturação das representações sociais e os resíduos e derivações
subjacentes, tomando-se o intérprete como elemento incindível da interpretação e
motivação, eis que este empresta a sua concepção de mundo à decisão tomada.
Em conclusão, temos que o intérprete não mais pode ser concebido
como um sujeito externo e desvinculado do mundo para analisar o objeto a ser descrito,
como um texto ou uma decisão jurídica; nessa quadra da filosofia contemporânea, deve-
se nota-lo como a atmosfera semântico-pragmática descrita, que segue influxos do mundo
da vida para interpretar.
Julgar “conforme a consciência” é o mesmo que ocultar a adoção de
uma visão de mundo, de representações sociais e de construções cognitivas mais ou
menos esclarecidas no julgador que informam a decisão, preenchendo a textura aberta
dos textos normativos, e que podem ou não estar em conformidade, por exemplo, aos
valores constitucionalmente estabelecidos.
É omitir a existência da Weltanschauung do julgador formado por
construções socialmente particulares, é omitir a existência de representações sociais que
não equivalem à realidade ou não equivalem à versão da realidade mais adequada a uma
pretensão de legitimidade que atenda a interesses generalizáveis dos participantes e da
sociedade, conforme pretensões legítimas por todos os potencialmente afetados, é, ainda,
omitir a existência das pretensões de veracidade e autenticidade na formação da decisão,
para dizer que o “livre” convencimento motivado, ou conforme a sua consciência, é
insindicável.
Dizer que há um “livre” convencimento motivado idêntico no Código
de Processo Civil de 1973 (art. 131) e no Código de Processo Civil de 2015 (art. 371) é
ignorar a supressão da expressão “livremente”, para que a motivação se perpetue
conforme a consciência, em desconformidade ao mandamento legal e ao dever de
motivação.
p. 276
A motivação conforme a consciência é a assunção subjacente de um
paradigma teórico cartesiano já ultrapassado no quadro da filosofia da consciência,
assumindo a subjetividade da consciência individual como o substrato absoluto e
fidedigno da representação.
Embora as meditações cartesianas tenham forjado a concepção de
ciência vigente nos tempos modernos, trata-se de modelo defasado na
contemporaneidade, cada vez mais a metodologia das ciências em geral e, em particular
do Direito, adota a ideia de sistema e interação sistêmica. 743
A respeito do convencimento motivado e do livre convencimento
motivado, especialmente com relação à prova, diz autorizada doutrina:
“Este sistema atribui ao juiz o poder discricionário de, conforme seus critérios pessoais, dizer quais provas são ou não capazes de formar o convencimento. Pense-se no seguinte: diante de um caso em que haja duas testemunhas, as quais restam depoimentos radicalmente contraditórios, como poderia o juiz – senão discricionariamente – escolher livremente o depoimento de uma delas e com base neste proferir sua decisão. Pois este é o sistema do livre convencimento motivado. Ocorre que, como já dito ao longo deste trabalho, a atividade jurisdicional não é, não pode ser, discricionária. Não se pode reconhecer ao juiz a possibilidade de, indiferentemente, escolher esta ou aquela prova como sendo capaz de formar seu convencimento, ainda que isto depois seja fundamentado. O Direito no Estado Democrático de Direito não é compatível com escolhas discricionárias, pois não se pode admitira a ideia de que seria indiferente para o Direito e para a sociedade que o juiz escolha esta prova e não aquela, ou vice-versa, (...) Pois foi exatamente por isso que o sistema processual civil brasileiro, a partir do CPC de 2015, superou o critério do livre convencimento motivado, que deixou de ser referido no texto normativo. Diferentemente disso, o art. 371 estabelece que ‘o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver produzido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento’. A diferença parece pequena, mas não é."744
743 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p. 92 e 236-237. 744 CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 229-231
p. 277
Dizer que nada mudou pressupõe um paradigma teórico de um sujeito
externo e livre de influências, que exerce um exame objetivo e desvinculado da realidade
e do mundo da vida, que pressupõe uma ultrapassada e irreal separação absoluta entre
sujeito e objeto745 e pressupõe ser a consciência pessoal com valores contingenciais
compatível com a democracia e com a fundamentação motivada, ignorando todo o avanço
teórico e filosófico dos últimos séculos.
Desconsiderando a simultaneidade definidora do objeto e construtiva
da identidade do sujeito, nota-se na pressuposição subjacente ao julgamento “conforme a
consciência”746 o problema cartesiano implícito à certeza como medida da verdade, como
menciona Heidegger:
“Descartes, em suas meditações, não pergunta apenas e em primeiro lugar tí tò ón – o que é o ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a essência da certitudo. Pois na Idade Média certitudo não significava certeza, mas a segura delimitação de um ente naquilo que ele é. Aqui certitudo ainda coincide com a significação de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a dúvida se torna aquela dis-posição em que vibra o acordo com o ens certum, o ente que é com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixação do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por excelência, e, desta maneira, a essência do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com
745 Em termos de psicologia social, pode-se afirmar a respeito: “a mesma operação que constrói um objeto dessa maneira é constitutiva do sujeito (a construção correlativa do sujeito e objeto na dialética do conhecimento foi também um traço característico da psicologia genética de Jean Piaget e do estruturalismo genético de Lucien Goldmann). As representações sociais emergem não apenas como um modo de compreender um objeto particular, mas também como uma forma em que o sujeito (indivíduo ou grupo) adquire uma capacidade de definição, uma função de identidade, que é uma das maneiras como as representações expressam um valor simbólico” (MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 20-21). 746 Trata-se de um problema inerente ao princípio da subjetividade como guia da modernidade na compreensão de Habermas, que está refletida na subjetividade abstrata do cogito cartesiano: “O problema que se coloca como tarefa é o de decidir se o princípio da subjetividade, com sua imanente estrutura de autoconsciência e reflexão, é suficiente como fonte de toda orientação normativa; se é suficiente não apenas para fundir e reunir, em geral, as esferas da ciência, da moralidade e da arte, como também para estabilizar uma formação histórica que se desligou de todas as vinculações herdadas da tradição.” (GIACOIA JUNIOR, Osvaldo. Nietzsche e a Modernidade segundo Habermas. In: MARTINS, Clélia Aparecida; POKER, José Geraldo (organizadores). Reconhecimento, Direito e Discursividade em Habermas. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2014. p. 48).
p. 278
esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinação de um claire et distincte percipere. A dis-posição afetiva da dúvida é o positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A disposição afetiva da confiança na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arkhé da filosofia moderna.”747
A consequência da certeza alcançada na disposição afetiva da dúvida
de Descartes como medida determinante da verdade, no processo civil, é a instituição de
concepções subjetivistas na fundamentação em especial e na teoria da interpretação em
geral. Nas palavras de Willis Santiago Guerra Filho, trata-se da:
“emergência do ‘paradigma da subjetividade’, pelo qual o sujeito humano passa a ser a instância que garante a verdade de suas constatações, como exemplarmente enunciou Descartes, ao fixar como primeira e inquestionável verdade, da que outras poderiam ser deduzidas, a de que pensava, logo existia – o famoso cogito, ergo sum.”748
Estas concepções de base têm o potencial de transformar a estrutura e a
função da motivação, irrefletidamente e sub-repticiamente, como menciona Taruffo: “por
los juristas y por los filósofos, como una especie de ‘tierra de nadie’ misteriosa y
desconocida”749. Também, arremata o autor, a respeito:
“Consecuentemente, se difundían concepciones substancialmente irracionalistas y subjetivistas sobre el convencimiento del juez, bajo la línea de la intime conviction de la doctrina francesa. La consecuencia ulterior era una grave subvaloración del problema de la motivación de la decisión sobre los hechos, que terminaba por ser considerada como un apéndice no necesario – y que, por lo tanto, podía descuidarse – de la sentencia.”750
747 HEIDEGGER, Martin. Qu’est-ce que la philosophie? In: Os Pensadores: Martin Heidegger – conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 38. 748 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p. 69. 749 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 13. Em tradução livre: “pelos juristas e pelos filósofos, como espécie de ‘terra de ninguém’ misteriosa e desconhecida”. 750 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil. Traducción de Lorenzo Córdova Vianello.
Madrid: Editorial Trotta, 2011. p. 13. Em tradução livre: “consequentemente, se difundiam concepções substancialmente irracionalistas e subjetivistas sobre o convencimento do juiz sob a linha do íntimo convencimento na doutrina francesa. A ulterior consequência era um grave menoscabo do problema da fundamentação sobre fatos, que terminava por ser considerada como um apêndice desnecessário – e que, dessa forma, podia ser descuidado – na sentença. ”
p. 279
O convencimento motivado, como sistema de valoração da prova
instituído na nova codificação, vai além, constituindo-se paradigma teórico que melhor
se amolda ao Estado Democrático de Direito, pois da mesma forma que coíbe a escolhe
discricionária da prova, coíbe a escolha discricionária de pressupostos teóricos ou
práticos, a escolha discricionária de visões de mundo e de pretensões de legitimidade ou
veracidade na estrutura da decisão judicial e na estrutura da replicação material do mundo
da vida quando da interpretação dos fatos (isto é, um estoque de sentidos compartilhados
e não problematizados pelos falantes), transportado para o contexto da fundamentação
em conceitos vagos ou indeterminados.
Lenio Streck aponta especificamente o problema reducionista do ato de
julgar à consciência do intérprete, tido por insuficiente em tempos de viragem linguística
por desconsiderar o mundo enquanto instância produtora de significados compartilhados
a que nos referimos anteriormente por diversas vezes e centrar toda a possibilidade de
juízo no sujeito.751 O que resulta na insuficiência dessa estrutura de compreensão (desse
paradigma) para tratar adequadamente a fundamentação da decisão com conceitos vagos
ou indeterminados, vejamos o que menciona o autor:
“não pode(ria)m passar despercebidas teorizações ou enunciados performativos que reduzem a complexíssima questão do ‘ato de julgar’ à consciência do intérprete, como se o ato (de julgar) devesse apenas ‘explicações’ a um, por assim dizer, ‘tribunal da razão’ ou decorresse de um ‘ato de vontade’ do julgador. (...) com Heidegger, é possível dizer que Kant aceitou acriticamente a ontologia da res cogitans de Descartes no momento em que o eu transcendental representa o ponto de unidade de todos os juízos, o repositório final de todos os conceitos. Isso quer dizer: a crítica kantiana cola o transcendental no sujeito e, nesse momento, ele passa a ser o lugar último e fundamento da verdade. Na filosofia hermenêutica, no modo como Heidegger efetua a analítica do Dasein em Ser e Tempo, o elemento transcendental é deslocado do sujeito para um contexto de significâncias e significados que será chamado de mundo. Não o mundo da cosmologia ou mundo natural (...), mas o mundo enquanto instância e espaço onde o
751 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência? 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2015. p. 18.
p. 280
significado é encontrado e produzido no contexto de um a priori compartilhado.”752
Assim, a releitura do convencimento motivado em novos paradigmas
coíbe a interpretação e aplicação do direito a fatos conforme visões de mundo cuja escolha
não é indiferente aos valores constitucionais e à sociedade, produzindo-se uma concreção
da norma vaga compatível a esses valores. Em termos semelhantes, expõe Chaïm
Perelman:
“Enquanto o raciocínio jurídico relativo à aplicação da lei foi considerado uma simples operação dedutiva, quer se tratasse de decisão judiciária ou administrativa, devendo a solução ser apreciada unicamente segundo critério de legalidade, sem levar em consideração seu caráter justo ou injusto, razoável ou aceitável, podia-se pretender que uma teoria pura do direito devia ignorar os juízos de valor. De fato, na medida em que estes intervêm, sem que disso resulte uma violação à lei, dependeriam apenas da consciência do juiz, escapando, por esta razão, a qualquer controle de ordem jurídica. Mas se, de acordo com Esser, Kriele e Struck, os juízos de valor relativos à própria decisão são insuprimíveis do direito, porque guiam todo o processo de aplicação da lei, já não se pode desprezar a questão de saber se tais juízos são a expressão de nossos impulsos, de nossas emoções e de nossos interesses, e portanto subjetivos ou inteiramente irracionais, ou se, ao contrário, existe uma lógica dos juízos de valor.”753
Dizer que o sistema anterior, da íntima convicção ou livre
convencimento, não implicava alforria para um julgamento qualquer ou para não aplicar
a lei é insuficiente: o Código anterior foi aplicado durante um período concomitantemente
aos preceitos do Estado Democrático de Direito e da atual Constituição, devendo ser
interpretado já a partir de um modelo constitucional consentâneo de processo civil. Isso,
contudo, não obsta o reconhecimento da necessidade de aperfeiçoamento e de mudança
reconhecidas por parte destacada da doutrina para institutos que melhor se afeiçoem uns
aos outros, mediante concepções mais coerentes.
752 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência? 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2015. p. 18-19. 753 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 135.
p. 281
O livre convencimento motivado apenas se justifica em face da
superação do modelo teórico da prova tarifada, a supressão do “livre convencimento” de
todo o texto do Código de Processo Civil busca, justamente, adequar-se aos avanços da
teoria do conhecimento realizadas no último século, passando pela filosofia da
linguagem, pela teoria das representações sociais, pelo modelo comunicacional e pelas
pragmáticas universais de Habermas e pela compreensão do intérprete como uma
atmosfera semântico-pragmática, culminando num modelo adequado para a
fundamentação de normas vagas ou conceitos indeterminados.
p. 282
10. Conclusões
À guisa de conclusão, podem ser brevemente consignadas algumas
considerações remissivas cujo limitado alcance não possui a vocação de substituir o
desenvolvimento do raciocínio e da demonstração, mas apenas retoma para recordar e,
quiçá, despertar o interesse nas colocações completas empreendidas alhures.
Por outro lado, qualquer resgate conclusivo padece da
indissociabilidade das lentes de quem fez a escolha do que lhe pareceu propício, o que
numa audiência é apenas um recorte da atenção que talvez não seja de interesse do leitor
que, em sua leitura, constrói sua própria versão do texto para além do que um autor pode
prever; pois como visto no trabalho, a compreensão do texto não se encerra no próprio
texto e não há uma intenção subjacente que lhe seja inerente, ao contrário, o texto passa
a ser uma construção que ganha vida própria independente da intenção primeva e passa a
ser interpretável aos olhos de cada intérprete.
Feitas essas considerações, logo de início verificou-se que o tema da
fundamentação de decisões judiciais recebeu um tratamento sucinto na doutrina
processual civil nacional, usualmente por breves comentários na literatura jurídica mais
acessível, como manuais e códigos comentados.
Ainda assim, trata-se de tema de nodal importância dentro de um Estado
Democrático de Direito, por se relacionar intimamente como o exercício do poder, com
a legitimidade da decisão, com os valores próprios da legalidade e do ambiente
democrático, passando a uma revisita em termos de dignidade constitucional e relevância
dentro de uma teoria da interpretação e de uma teoria do direito, além de estar relacionado
a diversos aspectos cruciais do processo civil.
No segundo capítulo foi consignado que um tratamento aprofundado
desse tema resulta repercussões sobre a estrutura da decisão judicial e sobre perspectivas
filosóficas, sociológicas e políticas subjacentes, ocasionando uma visão processual de
p. 283
termos imprecisos ou tautológicos quando enfocado isoladamente, enquanto seu
alcance e conteúdo devem ser compreendidos sistemicamente, em sua inter-relação
com outras regras, princípios e aspectos do processo civil ou, preferencialmente, em
sua inter-relação entre esses e o quadro geral do ordenamento jurídico, externando-se
uma compreensão explícita sobre conceito de direito e aplicação do direito para se
ultimar a compreensão sobre a fundamentação da decisão judicial.
Notou-se que, enquanto o uso de princípios em decisões judiciais
possui uma construção teórica mais elaborada, possibilitando um maior controle da
decisão nesse caso, as exigências da fundamentação da decisão quando utilizados
conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais representa um ponto mais
elástico e impreciso, permitindo, em princípio, um nível menor de controle efetivo
sobre a decisão, em vista de um consenso teórico mais acanhado sobre as balizas de
sua aplicação, o que indica um campo de contribuição que pode ser explorado.
Em vista disso, buscou-se uma perspectiva crítica a respeito do
objeto a ser estudado, isto é, na motivação de decisões em que são empregados
conceitos com termos vagos ou indeterminados, tentando-se uma aproximação,
também, zetética, isto é, com a busca de elementos teóricos dentro da sociologia
jurídica e da filosofia do direito, com marca investigativa e interdisciplinar.
O emprego de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais,
vimos, é nota característica de nosso tempo e do modo de legislar hodierno, infundido de
abertura e flexibilidade para alcançar as futuras transformações de crescente velocidade
em oposição à técnica de numerus clausus, fechada e com pretensão de perenidade
embasada na ilusão de regular a realidade social de modo exauriente e na onipotência do
legislador.
Sem passar desapercebidos, esses fenômenos contribuíram dentro de
um quadro de revolta contra o formalismo e de implantação de um Estado promotor de
direitos fundamentais positivos de segunda e terceira gerações para um crescimento da
atividade do magistrado e para uma nova perspectiva de relevância e de dimensão da
p. 284
fundamentação das decisões judiciais, não mais atreladas ao suposto mecanicismo de
fases anteriores.
A partir de tal constatação, não se pôde mais negar a existência explícita
de valorações e escolhas entre possibilidades, mediante elementos extratextuais, em
decisões judiciais, mas sem que isso implique uma livre escolha discricionária ou mesmo
implique arbitrariedade. Não há mais uma suposta neutralidade na aplicação, não deve,
portanto, ser omitida na fundamentação, o que devem representar conquistas
epistemológicas da motivação de decisões.
As pautas indeterminadas que caracterizam a textura aberta proposta
por Hart, tal como se fazem presentes nos casos em que há conceitos com termos vagos
ou indeterminados, passam pela necessidade de preenchimento, mediante um processo de
concreção atrelado ao caso específico e irrepetível, com o acesso a elementos do contexto
histórico, econômico, político, ético, psicológico e sociológico.
Desde o século XIX a teoria da interpretação jurídica passa por
transformações para deixar uma perspectiva cognitivista em favor de feições lógico-
argumentativas com a presença de individualização, valoração e atribuição de sentidos,
que mostra-se essencial quando se trata do preenchimento do “halo periférico” das
normas com termos vagos ou indeterminados ou da imprecisão que constitui a “textura
aberta” de determinadas normas, isto é, casos que exigem a construção desse sentido
concreto.
As normas com termos vagos ou indeterminados, como os conceitos
jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais, possuem exatamente essa característica,
de polissemia, vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento, típica das
linguagens naturais, em que não há uma formalização explícita da semântica que
predetermine a extensão e a possibilidade de uso de cada termo no sistema de
linguagem, o que, no direito, poderia constituir uma pretensão inalcançável de
definições jurídicas exaustivas e um código da razão prática contendo a formulação
explícita de como a argumentação devesse ser realizada em todos os casos (um
sistema de linguagem formalizada ou sistema semântico).
p. 285
Os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais, de inerente
imprecisão semântica das linguagens naturais também pode ser compreendido como
fattispecie: noções apreendidas no mundo real alçadas a tipos jurídicos no texto
normativo que identificam elementos típicos da realidade com inerente dimensão
histórica, que necessita uma determinação concreta na cultura e civilidade em que
estão inseridas. A noção apenas é resolvida em sua historicidade, como ideia que se
desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas.
Não se verificou diferenciação estrutural entre conceitos jurídicos
indeterminados e cláusulas gerais no que se refere à indeterminação semântica e ao
exercício que seu emprego importa na fundamentação da decisão mediante a
respectiva concreção, mas apenas diferença em haver uma consequência
predeterminada quando a norma deva ser aplicada (no caso do conceito jurídico
indeterminado), enquanto a cláusula geral necessita, também, de uma atividade de
construção da solução (consequência).
Embora tais expressões sejam de consagrado uso na cultura e
literatura jurídicas, é terminologicamente inadequado denominar um conceito de
indeterminado, o que é uma contradictio in terminis, na medida em que um conceito
se formaliza justamente para delimitar um segmento da realidade, sendo mais
apropriado referir-se a termos vagos ou indeterminados.
Quando, então, está em aplicação na decisão uma tal norma com
termos vagos ou indeterminados, a principal questão está na fixação das premissas e
no exercício dessa atividade valorativa contida nos termos vagos que lhe são inerentes,
preocupação que deve igualmente se refletir na fundamentação da decisão judicial,
isto é, cujas premissas não sejam ensimesmadas no referencial da própria decisão, mas
que conversem com as diversas possibilidades arguidas pelos atores processuais até
encontrar compatibilidade na concretização da principiologia constitucional,
construindo-se mediante a dialética do contraditório que possa superar as verdades
(aletheuien) iniciais.
p. 286
Respostas abstratamente compossíveis em vista de termos abertos
que passam por esse processo não resultam discricionariedade, tal como em seu
sentido estrito emprestado do direito administrativo, em que há escolha de uma
solução que lhe pareça mais adequada e mais oportuna e acarretaria uma decisão
judicial discricionária nessa órbita.
A existência de um espaço decisório na aplicação concreta de termos
vagos não implica que a forma de uso num ato administrativo e numa decisão judicial
seja a mesma. A discricionariedade pressupõe resultados juridicamente indiferentes
baseados em circunstâncias fáticas que denotem conveniência e oportunidade, sem
necessidade de justificação e impassível de controle, em princípio, especialmente se
ausentes os motivos na atuação do agente.
A liberdade de investigação crítica de termos vagos ou
indeterminados em decisões judiciais não pressupõe resultados indiferentes, é guiada
através de um desenvolvimento lógico-argumentativo que se externa na
fundamentação da decisão, obrigatória em qualquer hipótese e passível de controle
por meios recursais ou impugnações autônomas que visam reapreciar a decisão
tomada inclusive quanto ao preenchimento do termo vago ou indeterminado, em
respeito e observância à ampla defesa, ao contraditório, ao devido processo legal e a
um modelo constitucional de processo civil, com o escopo de gerar a melhor decisão
para aquele caso.
A distinção reside no processo e não no campo semântico-normativo,
a gênese não está no aspecto textual, mas no que ocorre entre a norma e sua aplicação;
isto é, “o escopo de gerar uma única interpretação” é uma qualidade do processo de
aplicação da norma e não uma qualidade da previsão do texto normativo em si: há um
juízo de oportunidade infundido de subjetividade na discricionariedade e um juízo de
legalidade em atividade eminentemente interpretativa, qualificada por sua
comunicabilidade intersubjetiva e motivação racional na concreção de norma com
termos vagos na decisão judicial, em conformidade ao papel de resguardo da
legalidade e de efetividade da lei pelo Poder Judiciário.
p. 287
A relação mais intensa da discricionariedade é com o contexto de
descoberta, perquirindo-se se existiria ou não uma única resposta e se dentre elas, são
juridicamente indiferentes. Esse não é o caso, não poderia haver tutela jurisdicional
discricionária da ordem jurídica e do direito da parte por opção, o que se extrai da
ordem constitucional, de princípios e regras e do Estado Democrático de Direito que
obriga a um modelo constitucional de processo civil.
Já no que se ao contexto de justificação, a exigência de
fundamentação das decisões judiciais não se afeiçoa à pura discricionariedade, cuja
nota característica é sua desnecessidade; quando discricionária a decisão sua
legitimidade não se assenta nos motivos exarados, mas na competência e autoridade
do agente que a editou, sendo uma permissão excepcional do sistema jurídico com
consistência democrática e não a sua regra.
A ausência de motivos ou a sua desnecessidade, bem como a atenção
a esse elementar aspecto de atos decisórios, foi um traço sistematicamente constante
até o momento político da Revolução Francesa, sendo vacilante nos registros dos
glosadores medievais e na reflexão filosófica pré-revolucionária.
Ora sob a alegação de que os atos próprios de poder não podem se
sujeitar à justificação, inclusive por se suporem manifestação de uma divindade, ora
para evitar o próprio questionamento racional do ato, a desnecessidade ou ausência de
motivação grassou na consecução do arbítrio e da ilimitação do poder, sendo hoje
reconhecido por diversas jurisdições constitucionais nacionais ao redor do globo
como inerente ao Estado de Direito e pela Corte Europeia de Direitos Humanos como
cláusula de proteção do indivíduo contra arbitrariedades.
O dever de fundamentação das decisões judiciais está presente hoje
em diversos ordenamentos, especialmente na Europa e na América, no território
brasileiro desde as Ordenações Manuelinas e Filipinas e depois da independência em
diplomas normativos de 1824 e 1850 no Império e em leis de diversos Estados
brasileiros após a Constituição de 1891, ganhando previsão constitucional em 1988.
p. 288
Sua alçada à dignidade constitucional não representa mera repetição
despicienda de consagradas previsões legais precedentes, mas insere-se no contexto
de uma nova era do constitucionalismo qualificada pela inversão da centralidade das
normas no pensamento e cultura jurídicos, superando-se o momento em que códigos
simplesmente conviviam com constituições, mas se lhes atribuindo maior eficácia ao
lado do que eram considerados diplomas políticos, em favor de um momento de
reconhecimento de máxima eficácia constitucional e da consequente releitura do
ordenamento sob a ótica da Constituição, o que resulta, em relação ao processo – na
feliz expressão de Cássio Scarpinella Bueno –, de um modelo constitucional de
processo civil.
A fundamentação das decisões, nesse giro, passa a ser compreendida
por meio do sistema em que está inserido, de seu significado constitucional e das inter-
relações que trava, mais do que a partir de uma conceitualização formal estanque e
pontual.
Como fenômeno de controle do poder dentro do processo civil, a
construção de seu estudo, de suas estruturas e de suas aplicações se dá desde a
Constituição Federal, espraiando-se para a realização do desiderato de integrar a
atuação do Estado Constitucional através de um devido processo legal; e sua
manifestação satisfatória ocorre quando tais perspectivas foram atingidas – não
quando apresenta-se uma justificação qualquer que cumpra o mise en scéne de um
requisito formal da decisão de um processo judicial.
Ainda nesse sentido, consoante mencionado por Michele Taruffo, a
motivação é uma das expressões de um princípio mais geral de controlabilidade sobre
a maneira como os órgãos estatais exercem o poder que lhes for atribuído pelo
ordenamento jurídico, possuindo, assim, estreita ligação com os princípios
estruturantes do Estado Constitucional, bem como liga-se à accountability do Estado
Democrático de Direito que justifica a si mesmo perante a comunidade (aberta) de
intérpretes, na linha de Peter Häberle; quadro este que denota o aspecto usualmente
denominado extraprocessual da fundamentação da decisão.
p. 289
Já a perspectiva endoprocessual é analiticamente discriminada pela
doutrina em diversos subelementos, que revelam a função de instrumento técnico
processual para o melhor funcionamento dos mecanismos processuais, tal como a
impugnação recursal e a revisão da decisão por instância superior.
Em relação às partes e aos seus representantes processuais, a
fundamentação funciona como persuasão racional a convencer do acerto da decisão e
da justiça do caso concreto, dissuadindo-os de possíveis impugnações recursais. A
fundamentação também serve à verificação das falhas de que padece a decisão,
constituindo os motivos para impugná-la num sistema de dialeticidade recursal,
integrando o diálogo processual na medida em configura objeto do ônus
argumentativo da impugnação.
Ademais, a fundamentação empreende a individuação do conteúdo
da decisão, delimitando o que fora apreciado no processo a que se refere o dispositivo
que estará acobertado pela coisa julgada e atende à finalidade de instrumento
interpretativo do conteúdo e alcance da própria decisão, isto é, exerce um papel de
chave interpretativa de si mesma, de seu alcance e dignificado particular ao caso
julgado.
Ainda nessa perspectiva, a motivação permite um efetivo
funcionamento de revisão das instâncias superiores sobre as decisões das inferiores,
sendo meio pelo qual os órgãos ad quem perquirem e contrastam a escorreição da
decisão com a irresignação do recorrente, revisitando a adequação dos fundamentos.
Mesmo quando não houver revisão por órgão superior, auxilia no
desempenho de funções precípuas de cortes superiores, como a nomofilática a partir
das decisões anteriores e a uniformização da jurisprudência, eis que a interpretação
uniforme do direito dificilmente seria alcançada sem conhecer os fundamentos
decisórios, nem a acurada legalidade seria integralmente atendida se as razões de
aplicação da lei em cada espécie de caso não fossem reveladas.
p. 290
A fundamentação da decisão, no processo, se revela um instrumento
processual para a realização e proteção de direitos e garantias, participando de sua
efetivação. Em relação à legalidade, tanto constitui uma garantia contra o arbítrio
como constata, através das distinções e semelhanças do caso e das razões de decidir,
que a lei seja uniformemente aplicada aos que estão na mesma situação, isto é, que
seja igualmente aplicada.
Em relação à ampla defesa, demonstra que foi respeitado o
contraditório durante o processo a cada momento, observadas as faculdades para
produção de provas, atendida a paridade de armas, concedidas as oportunidades para
manifestação oportuna e garantidos os meios inerentes ao exercício da ampla defesa,
bem como permite constatar se a decisão judicial foi proferida após real e adequada
consideração das solicitações e da argumentação das partes, ou seja, de que tiveram
oportunidade de influir sobre o resultado da decisão, constituindo a contrapartida de
um processo dialético.
Ainda, a fundamentação relaciona-se e permite a verificação
instrumental da observância do princípio dispositivo e da congruência, identificando
a causa de pedir e delimitando qual a demanda que está sendo julgada pela sentença e
que estará acobertada pela imutabilidade da coisa julgada.
Como fora visto, a fundamentação é regra de matiz constitucional,
cuja observância é integralmente realizada dentro do processo, sob pena de afronta ao
dispositivo sem que haja uma obrigação prima facie ou a possibilidade de ponderação
como mandamento de otimização em caso de conflito no caso concreto; a primazia é
do elemento descritivo definitório e abarcante de sua aplicação com consequência
predeterminada de nulidade do ato decisório.
Não é possível uma definição global e exaustiva da fundamentação,
segundo Taruffo, por se apresentar como uma entidade linguística de múltiplas
potencialidades que possibilita diversas leituras, podendo ser compreendida, porém,
pelo que significa em referência ao sujeito que a origina e ao procedimento em que se
manifesta, configurando-se por seu conteúdo e estrutura.
p. 291
Em atendimento ao contraditório, a suficiência da fundamentação
deve observar o critério extrínseco, aponta Daniel Mitidiero, e não do ato em si, para
evitar-se o expediente de manipulação do discurso em que a linguagem e a
organização dos argumentos somente é dirigida à finalidade (conclusão) pretendida
pela decisão em detrimento do desenvolvimento dialético do processo e da
argumentação das partes mediante uma seleção entre discursos.
A decisão, especialmente nos casos de termos vagos ou
indeterminados, deve estar motivada a partir do que Jerzy Wróblewski denomina
justificação externa, contrastando a propriedade das premissas que se inferem a partir
das valorações subjacentes e das representações sociais na civilidade e na cultura, que
se amalgamam como elementos extratextuais ao aspecto normativo vago, devendo
esses elementos serem expressos na fundamentação e apreciadas as visões alternativas
aos critérios de valoração.
Na desvirtuação desse caso não se diz porque trilhar um caminho e
não outro, mas apenas porque o caminho trilhado efetivamente levaria àquele destino:
há desconsideração de premissas da segunda possibilidade, o que sempre deve ser
justificado mediante fundamentação idônea. Isso não ocorre quando a fundamentação
é efetivamente desenvolvida em contraditório, tomando os argumentos de cada parte.
Nessa perspectiva, toda a argumentação desacolhida é enfrentada
expressamente – de modo que o desatendido pelo ato estatal tenha todas suas
considerações apreciadas e refutadas –, enquanto a argumentação que poderia,
também, levar ao acolhimento, coincidindo com o sentido da decisão e corroborando-
a, não precisaria ser apreciada se já há fundamento suficiente para a conclusão
alcançada naquele sentido.
Conforme Teresa Arruda Alvim, a despeito de um exame interno da
decisão, todos os elementos que poderiam fundamentar conclusão diversa devem ser
enfrentados. A autora ainda acrescenta, quando à suficiência da motivação em
decisões sujeitas a recursos excepcionais, que todos os argumentos de ambas as partes
de caráter constitucional e infraconstitucional federal devem ser expressamente
p. 292
abordados, gerando um dever mais amplo de fundamentação, em geral, no segundo
grau de jurisdição, que deve ser completa.
Com efeito, na medida que a fundamentação deva ser compreendida
em seu caráter sistêmico, sua inter-relação com a dialeticidade recursal, à
devolutividade e a inafastabilidade de apreciação do Poder Judiciário não pode
acarretar uma supressão argumentativa que tolha a apreciação do aspecto
constitucional ou infraconstitucional federal no órgão de cúpula em adequada
aplicação do ordenamento jurídico federal e constitucional ao caso em julgamento,
suprimindo-se a verificação da legalidade pelo órgão competente mediante deficiência
na justificação.
Quando são empregados textos normativos com termos vagos,
conteúdo e estrutura da decisão recebem um maior ônus argumentativo decorrente da
estrutura normativa mais complexa, o que exige uma fundamentação mais extensa que
não pode ser tratada da mesma maneira que uma decisão de estrutura silogística no
contexto do positivismo e da codificação de séculos pretéritos.
Esse método de aplicação do direito, em verdade de concepção do
próprio direito e de sua interpretação, é sobremaneira representado pela escola da exegese
como uma experiência da Europa ocidental dos últimos dois séculos que produziu
profunda influência no pensamento jurídico.
Nessa corrente de pensamento jurídico, o direito é identificado com
o conjunto de textos legais sistematizados, especialmente as codificações, a partir da
matriz de pensamento iluminista desde a segunda metade do século XVIII, e a
metodologia de aplicação do direito segue um processo dedutivista, silogístico e
lógico-analítico, buscando-se um sentido unívoco pré-existente no texto legal;
pressupondo que razão e vontade sejam faculdades mentais separadas que podem ser
usadas de forma estanque e independente, bem como uma neutralidade da
interpretação e aplicação do direito.
p. 293
Nesse paradigma, a conformação do direito provém exclusivamente da
autoridade legislativa estatal (a ideia central do positivismo científico reside na cisão
de elementos de ordem política, jurídica, econômica ou outra qualquer e a utilização
exclusiva de elementos jurídicos na aplicação do direito, referendada por uma
distinção kantiana entre a voluntariedade livre do dever moral e a coerção do dever
jurídico), sendo as funções do Estado bem delimitadas e apartadas em órgãos distintos,
de modo que a aplicação e a interpretação do direito – com o consequente reflexo na
fundamentação da decisão – devem ocorrer apenas através dos próprios diplomas legais,
supondo-se que contenham uma vontade subjacente que deva ser encontrada e que haja
uma chave interpretativa ensimesmada que permita a solução dos casos concretos,
resultando uma teoria cognitivista.
Esse quadro teórico teve significativa influência das ideias difundidas
por Rousseau e Hobbes para a primazia do direito positivo elaborado por uma vontade
política organizada em oposição ao estado natural de guerra permanente advindo da
natureza através de um pacto que proteja a vida e os bens dos habitantes do território do
Estado, tornando-se certa e determinável a concepção de justiça com a criação do
ordenamento jurídico positivo pela nação em sua expressão de vontade geral.
Outra notável influência desse quadro é perpetrada pela obra de
Montesquieu, retomando a ordem positiva como orientadora do interesse geral e o
equilíbrio no exercício do poder, cuja concentração levaria a uma inversão em favor do
interesse particular e do próprio poder exercido, obnubilando sua qualidade pública,
pugnou pela separação estanque das atribuições do Estado que levaria ao famigerado
adágio do juiz como boca da lei.
A situação histórica da época – retratada nos Cahiers de doléance,
levada a questionamento durante reuniões dos Estados Gerais e, por fim, revista no
contexto da Revolução Francesa –, no que interessa ao estudo, indicava a forte
discricionariedade dos julgamentos, o baixo nível de compreensão e de previsibilidade
do direito e os abusos da magistratura. Dentre diversas providências tidas por
necessárias, havia os pedidos, primeiramente, da nobreza e, depois, da burguesia para
que as decisões judiciais fossem devidamente fundamentadas.
p. 294
Tal conquista jurídico-política sobreveio em 1790, mas a codificação
de pretensão omnicompreensiva promulgada afastou-se progressivamente de diversos
dos ideais inspiradores do iluminismo e do jusnaturalismo racionalista, trocando-se o
recurso legislativo em caso ausência de clara resposta normativa pela vedação ao non
liquet, mantendo-se o dogma da completude. A cultura jurídica instaurada pelos
intérpretes da codificação napoleônica corrobora o ocultamento de elementos
voluntarísticos da decisão que ameaçariam a mística da neutralidade, revelando a
possibilidade de subjetivismos e de decisionismos subjacentes à vazia alegação de sua
objetividade e à escolha tida por evidente.
A despeito da inspiração na certeza do direito, a univocidade dos signos
do texto normativo não seria alcançada da maneira pretendida pela escola da exegese,
nem a segurança jurídica resguardada como se supunha, seja porque a previsão normativa
não era capaz de solucionar todos os casos futuros que a realidade viesse a apresentar,
seja porque a vinculação do julgador à lei não seria garantida por uma suposição de que
os signos do texto normativo não seriam interpretados nem conspurcados com elementos
extratextuais ou que não tivessem sido expressamente previstos e avalizados pela
autoridade legislativa.
O pleno discernimento de que a norma é produzida pelo intérprete
instala inefável transtorno nessa estrutura: é necessário um outro tipo de elaboração
teórica para tratar de conceitos jurídicos indeterminados que está além dos
pressupostos no legalismo iluminista e, em geral, no formalismo interpretativo em
seus estritos termos, que possam, assim, capturar a real complexidade do fenômeno e
refletir-se na fundamentação das decisões que apliquem este tipo de norma com
termos vagos ou indeterminados.
Ao contrário, o subsistema jurídico, a despeito de filtrar as
interferências externas em seu fechamento sintático, possui abertura semântica ao seu
entorno ou contexto e retroalimentação por outros subsistemas; assim, a realidade social
não pode mais ser ignorada ou totalmente desvinculada da aplicação do direito positivo,
que não pode mais ser vista como atividade mecânica automática, o ensino jurídico passa
p. 295
a ser integrado pela interdisciplinariedade e pela complexidade dos sistemas sociais e a
elaboração jurídica deixa de ter uma pretensa neutralidade.
Surgiram movimentos em oposição ao racionalismo iluminista e sua
abstrativização dos fenômenos, especialmente na Alemanha, albergando o caráter
contingencial e histórico do direito, a exemplo da escola histórica, contudo, ainda
ligada à metafísica do devir no Volksgeist, que externaria toda a convicção jurídica de
um povo operativamente dogmática e sistemática ao longo de sua história com viés
cognitivista de sua aplicação.
Diversas escolas empreenderam reações para reconectar a aplicação à
realidade social e, até mesmo, buscar o fundamento de decisões em na interpretação dessa
realidade sócio-cultural, salientando o aspecto valorativo e, por vezes, discricional, da
decisão, como a sociological jurisprudence e o legal realism nos Estados Unidos, a
Interessenjurisprudenz e a Freirechtsschulle na Alemanha e o método da libre
recherche scientifique na França, o que retoma as possibilidades de uma dimensão moral
ostentada na justiça do caso concreto, na conformação social ao bem comum e num papel
político próprio de social engeneering.
Uma das tendências reativas marcadamente extremadas é do realismo
jurídico nos Estados Unidos da América e na Escandinávia, não apenas assumindo o
recurso a elementos e opiniões extralegais, a importância da ideologia e o ceticismo
quanto a métodos de aplicação, mas chegando a identificar o direito com cada decisão
concreta e cada manifestação do órgão judicial, impassíveis de controle ou objetividade;
o que contribuiu para salientar para a importância das considerações que estão por
detrás da linha lógica formal de justificação.
As reações, em geral, semearam um campo fértil para as concepções
antiformalistas e para a concepção lógico-argumentativa da interpretação, gerando novas
conformações para o fundamento das decisões: o verdadeiro problema, além dos
conceitos de criação e interpretação do direito, encontra-se mais intensamente no grau de
criatividade, na possibilidade ou não de discricionariedade e escolha e nos limites de
criação do direito por via interpretativa na aplicação das normas nas decisões judiciais,
enfim, o grau de vinculação da lei nas decisões.
p. 296
Nesse aspecto, tanto o formalismo interpretativo oitocentista como o
antiformalismo mais radical deixam o órgão julgador livre e a decisão com parcas
possibilidades de controle, na medida em que não viabilizam a tematização das
valorações e escolhas inerentes ao processo interpretativo. A relação entre context of
discovery e context of justification na elaboração da decisão judicial e na
fundamentação dessa decisão deve ser ressignificada a partir de reflexões dessa jaez,
para que, nesse modelo de processo civil, parte significativa do que ocorre no contexto
de descoberta quanto às cláusulas gerais e aos conceitos jurídicos indeterminados
esteja efetivamente expresso na fundamentação.
Na virada metodológica de Jhering para a aplicação pragmática do
direito (direito como interesse juridicamente protegido), passa-se a uma transposição da
vontade para o interesse e a uma releitura econômica e da ordem social na dinâmica
jurídica; como consequência, menciona Karl Larenz, o eixo problemático se desloca do
legislador para a sociedade: o quadro normativo é a resultante da soma vetorial de
interesses humanos mais ou menos organizados e distribuídos na comunidade, o que
possibilita um modelo operativo mais consentâneo a um materialismo histórico
determinante das estruturas sociais, inclusive jurídicas, em oposição à perspectiva de
inspiração no idealismo.
Na Interessenjurisprudenz, reconhece-se a insuficiência da
subsunção de um preceito legal para encontrar a solução e considera-se insatisfatória
a dedução lógica a partir de um sistema conceitual (como fazia a
Begriffsjurisprudenz), ante a insuficiência de métodos lógicos para que se possa
deduzir os juízos da sociedade sobre a justiça; ainda assim, Wieacker não identifica o
movimento com uma técnica de criação judicial, mas sim de aplicação judicial da lei,
dada sua aderência ao Estado de Direito.
Essa ideia inicial é posteriormente transmudada de interesses em
valores, depois consagrados em princípios jurídicos positivados, gerando uma
metódica interpretativa de sopesamento e justa proporção de bens jurídicos e valores
conflitantes, como superação da fundamentação calcada exclusivamente em termos
lógico-formais em favor de uma nova forma de motivação da decisão, que levasse em
p. 297
conta as valorações inerentes ao caso concreto e os aspectos da realidade social que
estão presentes na construção problemática da compreensão semântica na razão
jurídica prática.
Em comum nas tendências reativas ao formalismo interpretativo jaz
a crítica ao silogismo subsuntivo como esquema estrutural da decisão, no que se refere
à motivação do ato decisório; não porque tal expediente não seja adequadamente
empregado na correspondência de uma classe de fatos ao conceito da norma com alto
grau de tipicidade e rigidez descritiva, mas porque essa estrutura decisória modesta
não se coaduna com estruturas normativas complexas cuja aplicação não se exaure na
subsunção, em vista de outros elementos não estritamente positivos e textuais
necessários em normas que contenham termos vagos ou indeterminados, como os
conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais.
O mecanismo subsuntivo apenas se opera entre conceitos idênticos
mediante dedução de elementos parciais singulares de objetos, ignorando a totalidade
do concreto, a historicidade e a contingência, a valoração e o pensamento
problemático tópico, inerentes à interpretação prática mediadora dos planos abstrato
e concreto que culmina na concreção exigida pela modificação da própria linguagem
normativa e da política legislativa que passou a privilegiar conceitos com termos
vagos ou indeterminados.
A perda do caráter absoluto de racionalidade lógico-dedutiva da
ciência jurídica para ganhar dimensão histórica e valorativa conjuntamente com a
modificação da própria linguagem normativa e da política legislativa que passou a
privilegiar conceitos com termos vagos ou indeterminados como forma de resguardar
o texto normativo das consequências do tempo, com vocação para absorver o futuro
e a contingência resultaram um novo papel do julgador e uma nova dimensão para a
estrutura e o conteúdo da fundamentação das decisões, mais complexa e mais vasta a
correspondente ao ônus argumentativo que lhe é imposto por essas modificações.
O pensamento lógico-sistemático e sua correspondente estrutura
subsuntiva de fundamentação não foi, exatamente, superado, mas passa a conviver
p. 298
com um pensamento problemático voltado a um sistema aberto e móvel, que
corresponde a uma estrutura mais complexa e, portanto, mais extensa de
fundamentação que abarca critérios pragmáticos, de tópica ou casuística, de dialética
e de justiça material, num processo de concreção da norma com termos vagos à
contingência do caso concreto.
A linha de justificação formal silogística atrelada ao formalismo
interpretativo cognitivista e ao positivismo jurídico equivalem à insuficiência de uma
teoria da interpretação no modelo kelseniano, que deixa em aberto diversas
possibilidades a título de problema de política do Direito, dando azo às escolhas
discricionais e ao déficit de controlabilidade decisional por não criar um quadro
teórico referencial a respeito das valorações e dos elementos extratextuais a serem
desenvolvidos na decisão, isentando o julgador de justificar suas premissas e não se
compatibilizando com o dever de fundamentação em seu conteúdo e estrutura num
modelo constitucional de processo civil.
A norma jurídica com termos vagos não será compreendida como ente
abstrato e independente, mas unicamente atrelando o texto normativo ao caso, mediante
concreção numa determinada tradição histórica num círculo hermenêutico de elementos
hauridos no contexto cultural e civilizatório que o circunda, através de um procedimento
próprio denominado concreção.
A síntese construtiva na concreção das normas com termos vagos ou
indeterminados exposta na fundamentação de decisões judiciais conflita com teorias
que suponham a construção do direito por obra exclusiva de uma autoridade
normativa e que adotem uma postura puramente formalista, pois tanto a realidade
como a construção lógico-argumentativa do intérprete passam a ser relevantes e a
norma passa a ter efetiva existência no caso solucionado em que a vagueza passou à
concretude.
Cabe ao julgador efetivar um procedimento de aplicação não
exaurível do significado da norma, cuja solução encontra-se aberta e em que
reelabora-se o significado da norma vaga com apoio no sistema mediante concreção,
p. 299
em vista da finalidade da norma em sua regulação social, da pré-compreensão, de
precedentes, do consenso e de valorações judiciais, isto é, a norma só é efetivamente
compreendida em ligação ao caso concreto, quando estiver materialmente ligada ao
programa normativo, representado nos elementos linguísticos do enunciado legal, e
ao âmbito normativo, que constitui os elementos não linguísticos associados ao
recorte da realidade social que conforma o âmbito de regulação da norma: a norma,
portanto, não é lida ou encontrada, mas sim estruturada no processo de concreção.
Explicar o motivo de incidência da norma no caso concreto pode
significar coisas bem diferentes em termos de fundamentação da decisão quando se
trata de um procedimento de subsunção e de um procedimento de concreção; as
normas com conteúdo vago – isto é, quando se trata do segundo caso – exigem muito
mais da fundamentação, uma outra estrutura e um outro conteúdo, mais complexos e
vastos.
A estrutura da fundamentação da decisão judicial, portanto, deve
corresponder à estruturação da norma vaga e à correspondente necessidade de
explicação mais densa quando do uso de conceitos indeterminados, que ensejam
problematização concreta, valoração judicial e preenchimento concreto da carga
semântica de pouca nitidez, impondo um maior ônus argumentativo a que deve
corresponder a estrutura da fundamentação, além de uma linha lógico-formal
silogística, isto é, uma estrutura com base nos procedimentos inerentes à concreção
da norma de conteúdo vago ou indeterminado (finalidade da norma em sua regulação
social, pré-compreensão, precedentes, consenso e valorações judiciais) para a
tradução dos fatos sociais para o interior do ordenamento jurídico na norma concreta.
Como resultado dessa estrutura da concreção que se deve refletir na
motivação do ato decisório, temos que o dever de fundamentação somente restará
atendido se a completude da estruturação da norma concreta estiver presente, não
sendo suficiente a exposição de uma construção subsuntiva tributária de uma
concepção lógico-sistemática de construção do direito, mas sendo necessário o
desenvolvimento dos aspectos de concreção da norma com seus elementos
p. 300
extratextuais, que remontam à justificação externa da decisão judicial (Wróblewski),
dentro de uma teoria lógico-argumentativa da interpretação.
A extensão do conteúdo da fundamentação adquire, assim, uma nova
conotação, mais complexa, à luz do art. 489, § 1°, II do Código de Processo Civil, nos
termos expostos, que não se limita a uma escorreição lógica formal e adquire uma
dimensão específica na concretude da norma reelaborada no caso decidido em seus
aspectos extratextuais do contexto sócio-cultural em que é aplicada para ser
considerada adequada e suficiente.
O resultado interpretativo que deve estar expresso na fundamentação
resolve-se na historicidade das noções dos termos vagos que se desenvolvem em
superações sucessivas e na história institucional da comunidade política mediante a
reconstrução, em cada caso, dos elos da cadeia discursiva exposta na principiologia
constitucional, sem que isso implique, contudo, que a decisão sejam corretamente
fundamentável de um modo absoluto, mas apenas que no contexto de sua prolação ela
seja fundamentada de forma correta, ou seja, sem retirar o caráter contingencial do
direito como objeto cultural em desenvolvimento que é, busca-se a certeza
estruturada.
Nos processos subjacentes à concreção, o intérprete emprestará sua
concepção valorativa, a ser explicitada na decisão, mediante reconstrução de
significados que já foram anteriormente estabelecidos em comunicações
intersubjetivas geradoras de representações ideias, isto é, modelos e esquemas de
representações descritivas da realidade social para definir concretamente a incidência de
conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais.
O intérprete é compreendido, nessa formulação, como um construto de
significados (construídos nas relações comunicativas sobre as experiências de articulação
do mundo numa organização conceitual de sistemas de símbolos) formado através de
sentidos apreendidos, conforme a experiência individual e coletiva e um dado nível atual
e momentâneo de compreensão acerca do mundo extensional e conceitual, através de
experiências comunicativas que comportam aproximações, confirmações e refutações.
p. 301
Essa formulação aponta para o aculturamento do intérprete sofrido no
processo civilizatório para a concepção de articulação dos elementos extrajurídicos a
serem utilizados nos mecanismos de preenchimento da norma com termos vagos ou
indeterminados; o intérprete passa a ser entendido como uma atmosfera semântico-
pragmática, que é um conjunto de dados e informações, teorias assumidas e pressupostas,
ideologias, pulsões inconscientes e uma poluição atmosférica semântica.
Ainda, nessa formulação busca-se ressaltar a qualidade de
constituído/constituinte dessa atmosfera, formada de representações sociais, doxa e
episteme, em substituição do sujeito atrelado ao esquema sujeito-objeto na epistemologia
e à filosofia da consciência, como forma de buscar superação da visão processual de
julgamento conforme a consciência e da discricionariedade judicial, apontando-se que
não é necessária qualquer margem para o subjetivismo (e decisionismo) no
preenchimento (concreção) de normas vagas, tornando viável a construção sempre com
base na intersubjetividade comunicativa que possa ser sujeita ao controle argumentativo
na decisão.
Compreender não equivale a apenas processar informações, não há uma
descrição neutra (pode-se mencionar axiologicamente neutra) e o conhecimento está
sempre implicado em interesses humanos através da comunicação e interação em que são
formadas as representações sociais, nas quais se estabelecem associações ideacionais e
simbólicas que permitem a orientação no mundo e a interação entre membros de uma
comunidade.
As representações sociais, formadas por um processo de objetivação e
ancoragem, possuem uma natureza convencional e prescritiva. Convencionalizam
objetos, pessoas e acontecimentos, atribuindo modelos partilhados numa comunidade,
que passam a ser sintetizados e acrescidos com novos elementos, forçando pessoas e
objetos a assumirem a forma determinada, sob pena de não ser compreendido nem
decodificado, impondo uma determinada cognição de forma irresistível no círculo
hermenêutico.
Por essas representações sociais serão formados os elementos
extratextuais do contexto sociocultural a serem empregados no preenchimento de normas
p. 302
com termos vagos ou indeterminados, passando a ser reconhecido de maneira
razoavelmente uniforme num grupo social, para Eros Grau, passa a permitir a aplicação
de normas jurídicas.
A objetivação torna real (realiza) um nível da realidade – une a ideia de
não familiaridade com a de realidade –, transforma um universo puramente intelectual,
abstrato e remoto na essência da realidade, materializada e acessível no pensamento e na
fala: o status epistemológico da representação possui caráter prático, orientado para a
ação e para a gestão da relação com o mundo (modo de conhecimento sóciocêntrico).
Na medida em que o processo de concreção se utiliza de elementos
de caráter extratextual hauridos na cultura e na civilidade, a fundamentação relativa às
premissas da decisão, especialmente de caráter extralegal, torna-se especialmente
relevante em face do solipsismo decisional (que omite o convencionalismo das
representações sociais): a justificação das premissas deve estar presente, o que
Wróblewski denomina justificação externa da decisão judicial, construída sobre uma
verdade procedimental assente num acordo participativo sobre sua elaboração e
legitimada num processo de justificação.
Os processos formulativos além do aspecto lógico-sistemático
ocorridos na concreção, contudo, não podem ser integralmente transpostos para a
fundamentação da decisão, turbando-se a diferenciação de contexto de descoberta e
de contexto de justificação, como apontada por Taruffo: há uma limitação para o que
a motivação pode alcançar em termos de objetivação do processo decisório e de
perscrutação da intuição valorativa do julgador ou de uma intencionalidade subjacente
não expressamente indicada no contexto de justificação.
Uma das formas de encontrar intencionalidade subjacente não
expressa está sob o enfoque da motivação como fonte de indícios (interpretação do
discurso com a finalidade de identificar aspectos que não tenham sido expressos,
como menciona Taruffo), mediante a verificação da reivindicação de veracidade ou
autenticidade no modelo de ação comunicativa de Habermas, em que há um teste entre
as intenções expressas por um locutor com suas ações subsequentes.
p. 303
Nessa hipótese, põe-se em xeque o vínculo motivação-decisão porque
os motivos expostos na fundamentação não representam de fato o que foi levado em conta
para a prolação da decisão, sendo a pretensão de veracidade ou autenticidade falseada
quando há processos idênticos ou sem distinção relevante com decisões opostas
prolatadas por um mesmo órgão julgador, a exemplo do que ocorre quando o mesmo
órgão julgador analisa os requisitos concretos de uma medida de antecipação de tutela
liminar contra a Fazenda Pública num caso idêntico a outro em que a limitar é rejeitada
porque há vedação legal de conceder a antecipação de tutela.
Não há uma irregularidade interna, mas contextual, porque se o órgão
julgador entende que há vedação legal para aquele tipo de caso, não poderia ter analisado
e concedido os requisitos para tal antecipação em outro processo (a vedação legal surge
como subterfúgio para não realizar a concreção da norma com termos vagos -
probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo) e a
fundamentação é meramente performativa, o que fere, também, a coerência prevista no
art. 926 do Código de Processo Civil.
A necessidade de revelar, na fundamentação, cada etapa e cada
elaboração das valorações e dos processos inerentes à concreção é tanto maior quanto
estejam impregnados de conotações de natureza ética, política e estética, que configuram
o Weltanschauung do intérprete, como forma de minimizar os aspectos não-lógicos
presentes no pensamento humano, representados nesse modelo pelas derivações e
resíduos estudados por Pareto.
Não há elaboração mental puramente racional, como supõe o mito do
homo econommicus, ela está permeada de tendências de reação que se ligam à expressão
consciente do intérprete e manifestada pelo mecanismo de racionalização psíquica;
apresentando-se, em verdade, justificativas pseudológicas para reações sentimentais.
Os resíduos correspondem a certos instintos humanos, consistentes em
manifestações das pulsões que são a motivação primária da conduta humana e sua
compreensão permite o reconhecimento de motivações (resíduos) no processo de decidir,
comportando forte força persuasiva, na teoria de Pareto; correspondendo às tendências de
reação retro mencionadas.
p. 304
Já a derivação desempenha um papel importante na aceitação social de
um posicionamento, consolidada pela necessidade humana de explicação racional, assim,
as derivações se apresentam quando explicações sobre algo são, por diversas maneiras,
podendo-se traçar um paralelo com o mecanismo de racionalização psíquica retro
mencionada.
A dimensão estética, incindível no processo de aculturamento
individual e do próprio processo decisório, usualmente não está empregada na
fundamentação (formas de comunicação em que flui a experiência estética não são
totalmente redutíveis ao discurso), sendo que sequer chega de maneira completa à
consciência, constituindo um aspecto não-racional do pensamento que não pode ser
descurado teoricamente quanto às decisões.
Isto porque, a despeito das influências que possa ter, conhecer os
mecanismos operados nos resíduos e derivações possibilita identificar eventuais
interferências indevidas de aspectos não-lógicos dentro da racionalidade discursiva
expressa na fundamentação do ato decisório, não sendo legítimas por violação da
pretensão de veracidade ou autenticidade de Habermas, porque os motivos expostos na
fundamentação não representam de fato o que foi levado em conta para a prolação da
decisão.
O que liga, portanto, as contribuições de Pareto e de Habermas, dentro
desse aspecto, no quadro teórico da decisão humana (seja uma decisão judicial ou não) é
que ambos exploram os limites da racionalidade humana ou do que vem a ser chamado
de ação racional, ação que estaria fundamentada com relação aos outros: ao menos
fundada na base lógico-experimental, para Pareto, ou justificada por meio das
pragmáticas universais dos sujeitos comunicativamente competentes, para Habermas.
Nesse contexto, há a apresentação de elementos teóricos para possíveis
perquirições a respeito dos limites da racionalidade dentro de uma decisão (tomada no
contexto de descoberta) para a compreensão da dimensão global desse fenômeno e sua
correlação com os limites de uma fundamentação tomada no contexto de uma teoria
lógico-argumentativa da interpretação, na linha do que Calamandrei suscita como
“sentimento de justiça”.
p. 305
Em geral, o sentimento de justiça está ligado às “interpretações de
necessidades” naquela sociedade conforme uma função das definições daquela dada
cultura, surgindo daí as reivindicações normativas sobre ordenações alternativas para a
satisfação das necessidades, isto é, à escala valorativa de bens primários com que se faz
essas interpretações, exigindo-se uma abertura recíproca (ponto de vista de reciprocidade)
para o questionamento de interpretações tradicionais de necessidades ser realizado numa
situação ideal de discurso permeado por racionalidade comunicativa.
Quando tais elementos são trazidos para o interior do discurso – e são
exteriorizados na motivação – permite-se fazer uma valoração crítica da coerência interna
desse conjunto, assim como de sua correspondência com os valores que estão codificados
no ordenamento, na linha da realização da principiologia constitucional e do lastro na
história institucional da comunidade política na concreção.
Toma-se, assim, que a devida motivação quando há possibilidade
efetiva de contrastar as interpretações de necessidades alternativas e seus impactos e
quando os elementos de construção da decisão se mostram construídos na fundamentação
sem uma confusão com a atmosfera semântico-pragmática do intérprete, o que gera o
julgamento solipsista conforme a consciência em emergência do ultrapassado paradigma
da subjetividade e do livre convencimento alicerçados na certeza do pensamento do
próprio sujeito como instância garantidora da verdade.
p. 306
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