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Teologia: ciência de Deus e do homem 1 PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Osmar Cavaca Teologia: ciência de Deus e do homemA teologia que emerge do antropológico, segundo Leonardo Boff MESTRADO EM TEOLOGIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Antonio Manzatto SÃO PAULO 2010

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Osmar Cavaca

“ Teologia: ciência de Deus e do homem ”

A teologia que emerge do antropológico, segundo Leo nardo Boff

MESTRADO EM TEOLOGIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção

do título de MESTRE em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

sob orientação do Prof. Dr. Antonio Manzatto

SÃO PAULO 2010

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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B a n c a E x a m i n a d o r a:

______________________________________

______________________________________

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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“TEOLOGIA: CIÊNCIA DE DEUS E DO HOMEM”

A teologia que emerge do antropológico, segundo Leo nardo Boff

INDICE

Banca Examinadora.................................. .......................................................02 Índice............................................. ....................................................................03 Resumo e palavras-chave............................ ...................................................08 Abstract and Keywords.............................. .....................................................09 Abreviaturas....................................... ..............................................................10

Introdução......................................... ...............................................................11

Pressupostos: CONTEXTUALIZANDO O TEÓLOGO E SEU PENSAMENTO..................................................................................................19

1. O teólogo Leonardo Boff......................... ....................................................19

2. O desdobrar de um pensamento.................... ............................................19

2.1- O primeiro momento: a proximidade da teologia européia..................20

2.2- O segundo momento: teologia ad intra sob o paradigma da libertação......................................... .................................................................21

2.3- O momento atual: o rito da passagem paradigmát ica..........................22

CAPÍTULO I: UMA “ TEOLOGIA SOB O SIGNO DA TRANSFORMAÇÃO..... 24

1. Que é isso, a teologia?......................... .......................................................24

2. Uma teologia em transformação: o novo paradigma. ..............................27

2.1- A “virada ecológica”: “O despertar de uma nova consciência face à vida”.............................................. ....................................................................28

3. Os dois “hoje” da teologia...................... ....................................................30

3.1- O hoje Kairológico: a realidade da fé......... ............................................31

3.2- O hoje cronológico: a realidade social e cósmi ca................................31

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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4. A articulação dos dois “hoje” e a emergência de um novo pensar teológico: a teologia da libertação ampliada....... .........................................32

4.1- Articulação sacramental da teologia da liberta ção...............................35

4.2- Articulação sócio-cósmico-analítica da teologi a da libertação...........36

4.3- Lugar social e lugar epistêmico da teologia... .......................................40

5. Libertação: compromisso com um “ modo de vida sustentável ”............41

5.1- A pobreza como esquizofrenia radical humana e o processo de libertação......................................... .................................................................44

5.2- O planeta “terra” à espera da libertação...... ..........................................45

5.3- Alternativas de libertação humana e ecológica. ....................................47

5.4- Um novo paradigma civilizatório, um novo patam ar de hominização........................................ .............................................................49

6- Encontros e confrontos com uma theologia pro paganis e supraconfessional.................................. .........................................................53

Capítulo II: O SER HUMANO É PESSOA

1. Pressupostos....................................... ............................................................57

2. O ser humano, pessoa e sujeito.................. ...............................................58

2.1- Pessoa é ser-em-comunhão...................... ..............................................61

2.2- Liberdade: o caminho da pessoa-comunhão....... .................................63

3- Pessoa: uma dialética existencial............... ...............................................64

3.1- Pessoa como unidade corpo-alma................ .........................................65

3.2- Pessoa como abertura para o outro............. ..........................................69

3.3- Pessoa como abertura para o Infinito.......... ..........................................73

3.3.1- Deus, a experiência humana fundamental de co munhão..................76

3.3.2-As representações de Deus.................... ...............................................80

4- Hominização: um processo de divinização......... .....................................82

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Capítulo III: REVELAÇÃO, ESTRUTURA PERMANENTE DA HI STÓRIA.....85

1- Pressupostos.................................... ...........................................................85

2- A revelação: leitura da história a partir do seu sentido derradeiro........85

2.1-Palavra de Deus é pro-posta divina e res-posta humana......................88

2.2-Dimensão existencial da revelação: o homem como “ ouvinte-da-Palavra ”.................................................. ..........................................................90

3- A Palavra de Deus e sua articulação lingüística. .....................................91

4-A Palavra de Deus na revelação bíblico-cristã.... ......................................93

5. A revelação como “ estrutura permanente da história ”...........................99

6- A religião: a acolhida humana da revelação...... .....................................104

6.1-A presença da verdade revelada na religião cris tã..............................107

7- Enfim, uma teologia da revelação a partir do pro fundo existencial humano............................................. ..............................................................109

Capítulo IV: UM DEUS QUE SE PERSONIFICA HUMANAMENTE ..............112

1- Pressupostos.................................... .........................................................112

2- Conceitos-chave para uma identificação do Deus c ristão....................114

2.1- O eterno Vivente.............................. .......................................................114

2.2- Três Viventes em comunhão..................... ............................................117

2.3- Três Viventes em uma relação particular denomi nada Pericórese ...119

3- O Mistério divino se autocomunica na história... ...................................121

4- Deus Trindade se personifica humanamente e se dá a conhecer........123

4.1- A personificação do Pai em José............... ...........................................126

4.2- A personificação do Filho eterno em Jesus de N azaré......................128

4.2.1- O Verbo eterno assume a natureza humana em J esus de Nazaré.132

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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4.2.2- Reino de Deus, a malkuta de Jesus de Nazaré................................. 136

4.2.3- A morte e a ressurreição de Jesus como momen tos de plenificação humana e máxima revelação divina................... ..........................................139

4.2.4- A estrutura crística de toda a criação...... ..........................................144

4.3- A espiritualização de Maria................... .................................................148

5- O humanum como transparência histórica do mistério trinitári o.........155

5.1- A Trindade, protótipo da comunidade antropocós mica.....................157

6- Enfim... ....................................... ................................................................160

CONCLUSÃO: “ Teologia: ciência de Deus e do homem ” - A teologia que emerge do antropológico, segundo Leonardo Boff..... ..............................161

1- No princípio está a experiência... ............. ...............................................161

2- E a teologia se faz... ......................... .........................................................164

3- ... por meio de categorias teoantropocósmicas... ..................................165

3.1- O diálogo teoantropocósmico necessário........ ...................................166

3.2- Uma epocalidade original...................... ................................................169

3.3- ... que se desdobra na situação desumana da po breza... ..................170 3.4- ... e na exploração desumana do planeta....... ......................................172

3.5- A ampliação do conceito de libertação: o grito pelo cuidado............173

4- Considerações finais............................ .....................................................175

BIBLIOGRAFIA....................................... ........................................................177

BIBLIOGRAFIA ESPECÍICA............................. ..............................................177

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1.1- Artigos de Leonardo Boff...................... ................................................177

1.1.1- Em co-autoria………………………………………………………………178

1.2- Livros de Leonardo Boff....................... .................................................179

1.2.1- Em co-autoria ou textos inseridos em publica ções mais amplas..183 1.3- Artigos sobre o pensamento de Leonardo Boff... ...............................184

1.4- Recensões de livros de Leonardo Boff.......... ......................................184

1.5- Livros sobre o pensamento de Leonardo Boff.... ................................185

2. BIBLIOGRAFIA GERAL.............................. ...............................................185

2.1- Artigos em revistas........................... .....................................................185

2.2- Livros........................................ ...............................................................185

3. DOCUMENTOS DO MAGISTÉRIO DA IGREJA.............. ..........................188

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“TEOLOGIA: CIÊNCIA DE DEUS E DO HOMEM"

A teologia que emerge do antropológico, segundo Leo nardo Boff Osmar Cavaca

RESUMO

O objetivo do trabalho é mostrar que o substrato antropológico é ponto

de emergência da teologia; uma referência à (re)descoberta da teologia que pensa Deus como fator de humanização e de cuidado da vida. Como um dos teólogos que mais trabalha antropologicamente, Leonardo Boff é um ponto de partida e não objeto pontual deste estudo.

Desde a virada em direção ao “novo paradigma ecológico” da teologia, os termos “antropologia”, “homem”, “ser humano” e derivados devem ser entendidos para além do indivíduo humano singular: o homem cósmico.

O estudo é oportuno para o amadurecimento, já em processo da ‘consciênca planetária’ na teologia do mundo inteiro. Bem como para levar a teologia da libertação a descobrir que sua tarefa deve ser alargada; além de despertar uma opção consciente e evangélica pelos pobres, deve oferecer subsídios também para a libertação do cosmos.

Após “Pressupostos”, que apresenta a evolução do pensamento de Leonardo Boff ao leitor, o trabalho reflete a teologia como ciência da fé (Capítulo I) que estuda Deus e as realidades a Ele referidas. A “virada ecológica”, construindo uma nova consciência e um novo patamar civilizatório, mostra que entre o desafio atual da pobreza humana, do meio ambiente espoliado, e a mensagem da salvação divina há uma relação intrínseca, que gera uma teologia que só pode ser de libertação, dos pobres e do cosmos. A reflexão sobre o humano (Capítulo II), na teologia, parte do sentido que lhe dá a virada antropocosmológica. É pessoa e sujeito, ser-em-comunhão, e se constrói dinamicamente em liberdade. Deve ser contemplado em sua unidade e de abertura para o outro e para Deus, sua experiência fundamental. Compreendida como leitura da história a partir do seu sentido derradeiro, a revelação (Capítulo III) é compreendida como "estrutura permanente da história". O paradigma da omnirelacionalidade cósmica relativiza todo dogmatismo e destaca a busca da verdade nas várias religiões.

A compreensão antropológica da teologia supõe uma reflexão sobre a identidade do Deus cristão (Capítulo IV), desdobrando-se então a visão originalíssima do teólogo, com seu teologúmeno da humanização trintária: o Pai em José; o Filho em Jesus, e o Espírito Santo em Maria.

A conclusão integra e articula os dados da pesquisa e da reflexão à luz do novo paradigma, para uma possível demonstração racional dos parâmetros que possam levar à concepção de teologia como ciência de Deus e do homem. Palavras-chave : Deus, teologia, homem, antropologia, ecologia

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"THEOLOGY: THE SCIENCE OF GOD AND MAN"

The theology that emerges from the anthropological, according to Leonardo Boff

Osmar Cavaca

ABSTRACT

The objective of the work is to show that the anthropological substrate is an emergence point of theology; a reference to the (re)discovery of theology considers God a factor of humanization and life care. As one of the most anthropologically-active theologians, Leonardo Boff is a starting point but not a punctual object of this study.

Since the turn towards the "new ecological paradigm" of theology, the terms "anthropology", "man," "human being" and derivatives should be understood beyond the individual human being: the cosmic man.

The study is timely for maturing, in the process of 'planetary consciousness' in the theology of the world. And to take the liberation theology to discover that its task must be extended; besides triggering a conscious choice and gospel for the poor, it should also provide subsidies for the liberation of the cosmos.

After "Assumptions", which shows the reader the evolution of thought of Leonardo Boff, the work reflects the theology as a science of faith (Chapter I) that studies God and the realities referred to Him. The "green turn", building a new consciousness and a new civilized level, shows that among the current challenge of human poverty, the plundered environment, and the message of God's salvation is an intrinsic relationship, which generates a theology that can only be of liberation of the poor and the cosmos.

The reflection on the human (Chapter II), in theology, starts from the meaning that gives the antropocosmologic turn. It is person and subject, being-in-communion, and dynamically builds in freedom. It must be considered in its unity and openness to others and to God, his essential experience.

Understood as reading of the story from its ultimate meaning, the revelation (Chapter III) is understood as a "permanent structure of history." The paradigm of cosmic omnirelacionality makes all dogmatism relative and highlights the search for truth in different religions.

The anthropological comprehension of theology presupposes an anthropological reflection on the identity of the Christian God (Chapter IV), unfolding the original vision of the theologian, with its thirty theologoumenon humanization: the Father in Joseph, the Son in Jesus, and Holy Spirit in Mary.

The conclusion integrates and articulates the research data and reflects the light of the new paradigm for a possible rational demonstration of the parameters that could lead to the conception of theology as a science of God and man.

Keywords: God, theology, man, anthropology, ecology

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ABREVIATURAS

AA – Apostolicam Actuositatem

AG – Ad Gentes

CNBB – Conferênia Nacional dos Bispos do Brasil

CELAM – Conselho Episcopal Latino-americano

CL – Christifideles Laici

DAp – Documento de Aparecida

DM – Dives in Misericordia

DP – Documento de Puebla

DS - DENZINGER, Henricus & SCHÖNMETZER, Adolfus; Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum.

EN – Evangelii Nuntiandi

GS – Gaudium et Spes

LC – Libertatis Conscientia: Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação

LN – Libertatis Nuntio: Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação

LG – Lumen Gentium

RC – Redemptoris Custos

RH – Redemptor Hominis

SD – Documento de Santo Domingo

UR – Unitatis Redintegratio

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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“TEOLOGIA: CIÊNCIA DE DEUS E DO HOMEM"

A teologia que emerge do antropológico, segundo Leonardo Boff

INTRODUÇÃO

A afirmação do Concílio Vaticano II: "na realidade, só no Mistério do

Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem... Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a vocação sublime" (GS 22) e a de João Paulo II na Redemptor Hominis: "o homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente... deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e a sua morte, aproximar-se de Cristo” (RH 10) constituem os paradigmas provocativos desta reflexão.

Conhecer o Deus de Jesus Cristo e, a partir das palavras acima, também o homem, é tarefa que promove a teologia. Por isso Tomás de Aquino diz que Deus é o único objeto da teologia, mas, nele, todas as realidades podem ser consideradas: "a sagrada doutrina tudo trata com referência a Deus ou das coisas que lhe digam respeito, como princípio e fim. Pelo que, é Deus verdadeiramente o objeto desta ciência... Todos os demais assuntos tratados na doutrina sagrada estão incluídos em Deus, não como partes, espécies ou acidentes, mas como a ele de certo modo ordenados"1. Da mesma forma, Rudolf Bultmann entende o fazer teológico como "a representação conceitual da existência do homem enquanto determinada por Deus"2. Assim também o alemão Karl Rahner, por muitos tido como o maior teólogo do Século XX, afirma que "... a teologia dogmática deve tornar-se hoje uma antropologia teológica... Não devemos considerar o problema do homem nem a resposta a este problema como área diferente, material e localmente dos outros domínios da expressão teológica, pois abrange toda a teologia dogmática... Desde que se considere o homem como absoluta transcendência orientada para Deus.. Não é possível compreender um dos dois aspectos sem o outro"3. Assim, dessas afirmações se pode ter uma concepção de teologia como logos de Deus e logos do homem que, ao elaborar sua verbalização de Deus conta com uma antropologia que expressa a realidade humana no contexto onde ela se faz. O pensamento de Leonardo Boff é uma amostragem dessa maneira de compreensão e de fazer teologia entre nós. Por isso, esta dissertação pretende fazer emergir o substrato antropológico como ponto de emergência da teologia, a partir do pensamento do teólogo. Recorrendo a pontos fundamentais do seu pensamento, procuro observar como e porque pode o referido teólogo afirmar que “de dentro da antropologia deverá emergir o teológico”4. A opção por esse

1 Suma teológica., I, q. 1, a. 7. 2 Apud Walter SCHMITHALS, La teologia di Bultmann, p. 51. 3Teologia e antropologia, p. 13 4 Antropologia teológica: o homem à luz do projeto teológico, p. 4.

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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autor decorre do fato de que, entre os teólogos latino-americanos, é ele o que mais reflete a fé a partir de tais pressupostos.

Primeiramente, devo explicar que desde a virada paradigmática de Boff em direção ao por ele chamado “novo paradigma ecológico” da teologia, os termos “antropologia”, “homem”, “ser humano” e derivados devem ser entendidos para além do indivíduo humano singular. Por isso, desejando falar da teologia também como ciência do homem a partir dos escritos de Boff, é ao homem cósmico que me refiro. Se a teologia se preocupa com o conhecimento de Deus, e se, por meio dele, em conhecer o homem também, é o “homem cósmico” que ela possibilita conhecer.

Consequentemente teologia, Deus, homem e cosmos são categorias presentes na reflexão teológica, e neste estudo, implícitos em todos os capítulos, dado a verdade da afirmação que se pretende concluir. Em alguns momentos, no decorrer do trabalho, explicito essa nucleariedade através de termos como “antropocósmico”; “teoantropocósmico”; outras, por razões óbvias da própria redação, retenho-me a “antropológico”, embora no sentido acima referido. A teologia, classicamente concebida como logos de Deus, contém, ao mesmo tempo e a partir daí, uma logicidade humana, na medida em que entende o homem como ser capaz de Deus (CEC, secção I, Cap. I). O trabalho quer também mostrar que, a partir da reflexão de um dos grandes pensadores da atualidade, se pode perceber como a teologia contemporânea e sobretudo a teologia latino-americana articulam sistematicamente essa questão. Simultaneamente tão pequeno e tão grande, tão fraco e tão forte, tão miserável e tão cheio de graça, ele faz o salmista irromper num louvor inusitado: "...que é um mortal, para dele te lembrares, e um filho de Adão, que venhas a visitá-lo? E o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e beleza!" (Sl 8,5-6)... Este trabalho significa para mim, antes de tudo, a opção por um jeito de fazer teologia. O mergulho no mistério de Deus a partir da concretividade humana, em suas expressões de glória e fracasso, de impulsos e bloqueios, de graça e pecado, bem como a maior compreensão do humano a partir da epifania divina, maximamente em Cristo Jesus, indicam-me uma fenda particular de onde vislumbrar todo o mistério da existência que me intriga e empolga. Os místicos e os santos são os que descobriram isso e viveram a partir daí. Por essa razão, refiro-me a uma (re)descoberta da teologia, que me possibilita enxergar e ouvir, numa harmonia cósmica e dançante, as variantes divinas e humanas, da graça e da natureza, numa integração que seduz Deus e homem.

Subjetivamente falando, o presente tema reflete minha concepção de trabalho teológico. Confesso que a atração que sinto pela teologia se deve à descoberta dessa sua dimensão antropológica. Sobretudo quando me conscientizo que essa dimensão se estende para a totalidade do corpo criatural.

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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A partir do apriori teologal humano, a teologia deve ter claras e objetivas opções. Para tornar-se inteligível ela deve apresentar propostas sintonizadas com as questões fundamentais da pessoa, da sociedade de hoje e com os desafios de todo o planeta neste momento delicado da história. Bem como em seu encontro com Deus, o que faz da reflexão teológica um veículo de serviço à pessoa e à comunidade humano-cósmica. Além disso, creio que um embasamento antropológico, sistematizado cientificamente em vista da ciência teológica, é necessário e oportuno para o amadurecimento e para a aceitação universal da reflexão teológica latino-americana. A reflexão sistemática do diálogo amoroso de Deus com as criaturas refere-se necessariamente à unicidade de toda a realidade. Por isso, não pode realçar apenas um dos pólos, ainda que seja o dAquele que, por graça e misericórdia, toma sempre a iniciativa. Ao assumir integralmente sua tarefa, a teologia faz aprofundar o conhecimento de Deus e do homem simultaneamente. O que se "conhece" de Deus, na verdade, é o que Ele comunica ao homem, e o que se sabe realmente do homem em sua maior verdade provém de sua experiência de busca das realidades últimas e transcendentais. Dessa forma, por um lado, as ciências humanas buscadoras da identidade do homem evoluem como expressões pluriformes da revelação; por outro, a revelação tem uma prolongada dimensão de vir-a-ser, expressando-se também implicitamente nas ciências e realidades humanas.

No entanto, ao falar de teologia como ciência de Deus e do homem, não me refiro a dois objetos para a ciência da fé, mas ao objeto único, definido e claro da ciência teológica, que é sempre Deus, que, por iniciativa de amor e gratuidade, busca, encontra o homem e se entrega a ele, no diálogo histórico-encarnado da Graça com a natureza humana. A revelação divina supõe uma kénosis, determinada pela relativa possibilidade humana de acolhê-la, o que, de certa forma, “condiciona” o divino ao humano. Por sua vez, este ser espiritual, de inteligência e vontade, tende, cada vez mais maturamente, a uma consciência evolutiva de sua Origem. Por isso sua vida se desenrola sempre numa contínua, misteriosa e historicamente insaciável busca de sua Fonte e Destino. É nessa procura mútua Deus-homem que as realidades se dão a conhecer e a ciência teológica se desdobra. A teologia contemporânea procura mostrar que não há contradição entre a proposta cristã e a da centralidade antropológica. Tenta fazer uma conciliação da revelação cristã com os humanismos, cuidando de ampliar seus horizontes para além de propostas às vezes autocentrativas e por demais intraterrestres. É sabido de todos que, nessa procura de harmonizar-se com a ideologia da modernidade5, às vezes a teologia se deixou influenciar por idéias

5 Quando fala em modernidade, Boff tem presente as duas cristalizações históricas que a Idade Moderna gerou: a modernidade burguesa, da sociedade industrial, do mercado e do consumo, da democracia liberal-representativa... e a modernidade proletária, do novo sujeito histórico hegemônico da sociedade, do socialismo... Positivamente, ele se refere a uma modernidade alternativa e integral, que integre os frutos da ciência e da técnica com a democracia liberal, para o bem de todos... (in Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 103).

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Teologia: ciência de Deus e do homem

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antropocentristas reducionistas do humanismo burguês. Assim, um protestantismo liberal pecou por reduzir o pensamento teológico a uma simples antropologia sensível-naturalista como se pode ver, por exemplo, em Feuerbach6 e Schleiermacher7. Ainda que sem o mesmo radicalismo, também o pensamento tradicional católico tem explicado a revelação pela mesma via antropológica quando, por exemplo, numa clara evidência da influência platonista, propõe a mediação da "analogia" para o conhecimento dos mistérios divinos, como se pode ver nas vias de conhecimento de Deus apresentadas por Tomás de Aquino8. Numa reação às posições protestante liberal e católica tradicional, Karl Barth insiste na transcendência da revelação. Esta é pura obra da graça exclusiva e livre da auto-comunicação de Deus. Nada a determina; nada a motiva a não ser a gratuidade divina9. Rudolf Bultmann acrescenta que o divino não se circunscreve ao humano, não estando condicionado a seus sentimentos e subjetividades, mas porque essa gratuidade se revela de modo pleno e definitivo em Jesus Cristo, não há outra referência revelacional senão ele10. Embora num realce à vertente antropológica da revelação, esta dissertação não tem a intenção de reforçar o reducionismo teológico de cunho subjetivo antropocentrista, que acaba por destruir toda positividade histórica do eixo revelacional e por subjulgar a critérios humanos tidos como absolutos toda a natureza craiada. Ao contrário, quer realçar que a grandeza do homem está em ter sido criado como um ser capaz de Deus, e por essa razão responsável pelo cuidado das demais criaturas do mundo. O jeito de se trabalhar essa verdade na teologia é o que aqui me interessa. A preocupação fundamental desta dissertação é afirmar que o diálogo da salvação começa com a revelação da inseparabilidade entre a graça de Deus e o substrato teologal humano primeiro, que supõe o homem com ser de comunhão cósmica, e que encontra sua expressividade perfeita em Jesus Cristo e na comunicação de Seu Espírito. A teologia como ciência de Deus e do homem, não se preocupando tanto em decifrar verdades eternas imutáveis -o que lhe exigiria recorrer a categorias filosóficas universais-, vai procurar estar atenta aos instrumentais que mais ajudam a perscrutar, no chão da vida, a presença e a forma reveladora de Deus na realidade do homem. Por essa razão, deve buscar mediações o mais possível expressivas da realidade humana.

6 "O conteúdo da revelação divina é de origem humana, pois ele não surge de Deus enquanto Deus, mas de um Deus determinado pela razão humana; i. é, surge diretamente da razão humana e da necessidade humana. Assim também na revelação, o homem sai de si para voltar para si, numa linha curva. Assim se confirma também neste objeto, da maneira mais crassa, que o mistério da teologia não é outro que a antropologia" (A essência do cristianismo, p. 250). 7 "Schleiermacher reestabeleceu, na religião, o valor do sentimento e da experiência religiosa..." (René LATOURELLE, Teología de la revelación, p. 288). 8 Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3. 9 Apud Rudolf BULTMANN, L'idea di Dio e l'uomo moderno. In Credere e comprendere; raccolta di articoli, p. 995. 10 Il concetto di rivelazione nel Nuovo Testamento. In Credere e comprendere; raccolta di articoli, p. 657.

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A presente reflexão pode contribuir também para uma consciência de totalidade dentro da reflexão teológica latino-americana. Sendo esta uma teologia da experiência de Deus no pobre e a partir do pobre, busca subsídios para uma práxis transformadora das realidades desumanas e anti-ecológicas, através da ampla mediação antropológica. Entre outras conveniências, o aprofundamento do substrato teologal humano permite desvendar e compreender as artimanhas intrincadas e sutis elaboradas por sistemas alienantes de nível político, econômico, cultural e mesmo religioso, na investida que fazem através de evidente manipulação desse substrato para impor-se convenientemente, bem como sua introjeção, a nível inconsciente certamente, por parte da massa. Finalmente, a presente reflexão realça o ponto comum a que todas as teologias modernas apontam: o entendimento da fé como um elemento possível de hominização, de libertação, de revolução, de esperança..., dimensões que podem se tornar teológicas quando consideradas a partir da dimensão teologal humana. Tal reconciliação não desarticula a natural e oportuna postura crítica diante das várias orientações teológicas. Pastoralmente falando, a teologia que considera o a priori teologal humano reforça a responsabilidade de todos no que diz respeito à consciência e ao compromisso para com a vida em todas as suas expressões. A superação do dualismo clássico natural-sobrenatural permite à Igreja organizar-se de modo a estabelecer-se pastoralmente num compromisso cristão com o homem em sua totalidade, indiviso e uno, bem como perceber sinais da revelação em situações convencionalmente tidas como simplesmente profanas. Por isso, a teologia que realça o humano assumido pelo divino leva a prática cristã a se pôr ao lado do mesmo homem em suas buscas e anseios de libertação. Além disso, uma teologia assim trabalhada supõe uma nova postura de respeito diante da religiosidade simples do povo, que revela, mais virginal e placidamente, os substratos religiosos profundos do humano.

O estudo de um pensador pode se desenvolver pelo acompanhamento do processo de seu pensamento –portanto uma opção de caráter cronológico- ou pela análise de blocos referenciais. A primeira opção tem a vantagem da visão histórico-processual; a segunda, da visão de conjunto. Não sendo este propriamente um estudo do pensamento do autor, mas a partir dele, opto pela segunda possibilidade. Por isso privilegio alguns temas ou tratados, justamente aqueles que me parecem mais reveladores do substrato antropológico na teologia, à luz do novo paradigma cosmológico da ecologia.

Os campos teológicos em que Leonardo Boff expressa mais visivelmente tal mudança paradigmática são os da revelação (embora não tenha escrito propriamente um tratado normativo sobre ela), da concepção de Deus, da antropologia e, ainda que em menor elaboração mas em grande confronto, da eclesiologia. Por outro lado, o conjunto do pensamento teológico boffiano é marcado por cinco prioridades: o primado do elemento antropológico sobre o eclesiológico; do utópico sobre o factual; do crítico sobre o dogmático;

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do social sobre o pessoal, e, por fim, da ortopraxia sobre a ortodoxia. 11 È na tentativa de conjugar esses dados que procuro elaborar os capítulos.

Para começar, numa espécie de ante-sala que denomino de “Pressupostos”, apresento ao leitor o teólogo Leonardo Boff, alguns dados biográficos, mas sobretudo as fontes das quais bebe o teólogo para a elaboração de seu pensamento. Introduz também essa compreensão do teólogo e sua obra uma breve análise sobre as tendências teológicas do atual Boff.

Após tais pressupostos logísticos, começo pela apresentação do conceito de teologia do autor (capítulo I), com sua insistência no novo paradigma e nas conseqüências dele para o fazer teológico. A “virada ecológica” que caracteriza o pensador dá nomes concretos às formas de encontro e integração entre o desafio atual da pobreza humana e da espoliação do meio ambiente e a mensagem da salvação. Uma teologia que só pode ser de libertação, dos pobres e da terra. Em seguida (capítulo II), exponho a compreensão boffiana de ser humano, a partir do sentido que lhe dá a chamada virada antropocosmológica. Ele é pessoa e sujeito, ser-em-comunhão, e se constrói dinamicamente em liberdade. A dialética humana existencial me leva a trabalhar, primeiro, a questão da antropologia bíblica, em que homem é entendido como uma unidade integrante corpo-alma, procurando diluir resquícios do dualismo antropológico grego tão impregnado na compreensão ocidental. Nessa perspectiva, incido na relação da pessoa como ser-de-abertura-para-o-outro e de abertura-para-o-infinito. Finalmente, torna-se necessário dar nome a esse infinito: Deus, e entendê-lo, como o faz o teólogo, como experiência humana fundamental; daí, importa ver as representações que têm caracterizado esse Deus para a pessoa humana, para então concluir o capítulo com o tema da hominização, que Leonardo Boff aproxima do processo de divinização.

O capítulo III analisa o evento da revelação como encontro entre o divino e o humano. Ela é compreendida como leitura da história a partir do seu sentido derradeiro, em que Palavra de Deus é a simultaneidade entre a pro-posta divina e a res-posta humana. O humano é um “ouvinte da Palavra", de uma "Palavra transcendente", da qual decorre toda uma nova visão de inspiração e de revelação. Mas a Palavra de Deus se articula em linguagem humana, ou seja, a Palavra se manifesta na mediação das palavras. Essa Palavra é tão presente na realidade humana que se torna "estrutura permanente da história", que é por isso o lugar privilegiado da revelação de Deus. A religião é expressão cultural da acolhida da revelação de Deus. Dado o forte acento revelacional que o teólogo dá ao aspecto religioso, o assunto precisou deslocar-se da antropologia para esta seção. O novo paradigma boffiano da omnirelacionalidade cósmica leva ao discernimento da presença da verdade nas religiões, reflexão que culmina com a análise da presença da verdade revelacional na religião cristã.

11 Jesus Cristo Libertador, p. 57-60; cf. tb. Luis Marcos SANDER, Jesus Libertador; a cristologia da libertação de Leonardo Boff, p. 43-44.

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O capítulo seguinte (IV) mostra que é impossível uma compreensão verdadeira da visão ântropo-teológica de Boff sem uma referência objetiva à identidade do Deus cristão. Trata-se, então de entender a visão originalíssima que Boff tem de Deus, em seu mistério Uno e Trino, humanizando-se trinitariamente. A opção pelo paradigma cosmológico se integra bem à priorização da pericórese como ponto de partida para falar da Trindade numa elaboração utópica em vista de uma verdadeira comunhão humano-cósmica. O Pai, “mistério abissal” com vestígios de sua misteriosidade no humano e em toda a criação, transparece na história como libertador, defensor dos pobres, protetor da vida... Seu amor pelo mundo é tão grande que é capaz de levá-Lo a entregar-lhe o próprio Filho (cf. Jo 3,16) e a infundir esse mesmo amor em nós pelo dom do Espírito Santo (cf. Rm 5,5). Ele se faz visibilizar humanamente, na história, por intermédio de São José, esposo de Maria. As duas formas fundamentais de autocomunicação divina12, o Filho encarnado e o Espírito comunicado, constituem, conjunta e simultaneamente, a máxima expressão e concreção da autocomunicação livre e amorosa de Deus e a plenitude da sua acolhida pelo humano. Verdadeiro Deus, o Verbo encarnado traz em si também a plenitude do homem, de forma que é protótipo humano para toda referência a Deus, e critério divino para toda referência ao ser humano. Continuador dessa obra de salvação, o Espírito, a seu jeito, amadurece e fortalece o homem, criando nele traços profundos e essenciais e enxertando nele a “raiz da imortalidade” (cf. Sb 15,3) (III.4). Expressão visível desse autocomunicação de Deus através do Espírito é Maria, a mulher pneumatificada.

Finalmente, a conclusão, de caráter fortemente epistemológico, tenta

recolher os dados da pesquisa e da reflexão, integrá-los e articulá-los para uma possível demonstração racional dos parâmetros que possam levar à concepção de teologia como ciência de Deus e do homem. Alguns esclarecimentos metodológicos se fazem necessários.

Com exceção desta introdução e da conclusão final, em toda a extensão do trabalho tenho o cuidado de manter a redação na terceira pessoa do singular, na tentativa de expressar uma análise objetiva e imparcial. O tempo verbal do indicativo presente, o quanto possível, favorece a compreensão da permanente atualidade do mistério de Deus e da pessoa humana.

A metodologia seguida é aquela proposta por Antonio Joaquim Severino13 com adaptações aproximativas para casos particulares aí não contemplados pontualmente. As notas de roda-pé, procuro apresentá-las simplificadamente. As inúmeras citações de obras de Leonardo Boff trazem tão somente o nome da obra e a(s) página(s) em questão. Os textos do Magistério oficial da Igreja, compilados por Henry DENZINGER e revistos e completados por Adolph SCHÖNMETZER em obra entitulada "Enchiridion Symbolorum Definitionum et

12 Karl RAHNER, Deus Trino, fundamento da História da Salvação, in. Johannes FEINER & Magnus LOEHRER, Mysterium Salutis, II/1, A história salvífica antes de Cristo, p. 292. 13 Metodologia do trabalho científico; diretrizes para o trabalho didático-científico na universidade; 23ª.ed., São Paulo: Cortez Editora, 2007.

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Declarationum; de rebus fidei et morum", são citados através da sigla clássica DS, seguida do número que lhes diz respeito. Da mesma forma, outros documentos oficiais do Magistério eclesiástico aparecem em suas siglas convencionais, deixando maiores detalhes para a bibliografia final. Os textos bíblicos são tirados da Bíblia de Jerusalém, da Paulus, em nova edição revista e ampliada de 2002, dado o alto nível científico da sua tradução e das notas explicativas. Acredito que o trabalho alcançou o objetivo que me prepus. Não poderia ter chegado até aqui sem a ajuda preciosa de pessoas como Côn. Dr. Antonio Manzatto, orientador que soube conduzir-me com seriedade e serenidade na construção do texto, como D. Benedito Beni dos Santos, com quem venho, de longa data, conversando sobre questões teológicas, e como tantos outros que, interessados na reflexão, foram se tornando grandes incentivadores e animadores no decorrer do desafio... A eles todos, sou devedor de uma gratidão imensa.

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PRESSUPOSTOS:

Contextualizando o teólogo e seu pensamento

1. O teólogo Leonardo Boff

Catarinense, nascido em 1938, Leonardo Boff é um dos mais conhecidos teólogos da libertação. Tendo se doutorado em Teologia Sistemática pela Universidade de Munique, ao voltar ao Brasil assume por mais de 20 anos o magistério da teologia, além de assessorar um sem número de cursos pelo Brasil afora e pelo mundo todo. Desligando-se da vida religiosa franciscana e do ministério sacerdotal em 1992, não deixa sua missão de teólogo. Hoje professor emérito de ética e filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é também professor visitante em várias universidades estrangeiras, pesquisador, assessor, conferencista e escritor nas áreas de teologia da libertação, filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Boff é um dos intelectuais mais proeminentes na atualidade panorâmica religiosa, não somente no Brasil e na América Latina, mas no mundo inteiro. É um pensador crítico: questiona a ordem estabelecida na Igreja, na sociedade, nas instituições, no pensamento ocidental...

Sua reflexão expressa a conjugação da mística evangélica dos simples, herdada de sua mãe, e a sensibilidade aguçada para a democracia e a justiça social, aprendida do pai. Assim, continua a desenvolver sua teologia através de uma intransigente defesa dos direitos humanos, particularmente dos pobres e oprimidos, e em defesa de uma ordem cosmológica respeitosa. De forte conotação antropológica, sua teologia é sua própria “caminhada humana e espiritual”, como ele próprio descreve em alguns de seus textos de caráter biográfico14.

Hoje, sua obra já ultrapassa 180 livros, publicados no Brasil e no

exterior, mais de 180 artigos em periódicos, e uma média de 300 textos publicados na imprensa escrita e virtual, em várias linguas...

2. O desdobrar de um pensamento Na antropologia teológica de Boff podem-se constatar com facilidade as

bases sólidas do humanismo revelacional cristão iluminadas pelas fontes mais primeiras da teologia, como são a revelação bíblica, a Tradição e o Magistério, e daí por outras fontes teológicas católicas (tradição franciscana, Pierre Teilhard de Chardin, Karl Rahner, Vaticano II, Dominique de Chenu, Yves de Congar...). Num nível terciário de locação teológica, fontes filosóficas (existencialismo, personalismo, neo-marxismo, humanismo socialista...) e fontes das ciências humanas, sociais e físicas (Teoria da Personalidade, de Carl Gustav Jung, sociologia dialética, teoria da dependência, cosmologia moderna, física quântica...) se mostram vivamente presentes.

14 Cf. Uma caminhada humana e espiritual. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade; cf. tb. Um balanço de corpo e alma. In Leonardo BOFF & outros, O que ficou... Balanço aos 50.

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A luz do humanismo franciscano, em Boff, brilha não apenas nos poucos escritos em que trata temáticas explicitamente franciscanas15, mas sobretudo aparece como um substrato de toda a sua teologia, particularmente na direção cristocêntrica, encarnacionista e cosmológica. Dessa correlação tira elementos como a questão da opção preferencial pelos pobres, a emergência de uma Igreja popular e pobre, a dimensão de fraternidade mundializada, humana e cósmica, a questão ecológica como experiência relacional, a compreensão do processo de individuação como humanização ou divinização do homem, etc...

Um estudo sobre a compreensão da ciência teológica a partir de um autor com obra tão vasta, com um pensamento tão dinâmico, com tamanha abertura não linear, ainda complexificado por uma mudança de paradigma, não deixa de ser grande desafio.

A teologia de Leonardo Boff pode ser entendida em três momentos: a do “jovem Boff”, recém-saído da academia; a do frade franciscano presbítero e professor de teologia, um expoente da teologia da libertação e conferencista de nível mundial e que vai vertiginosamente amadurecendo; e a do Leonardo que passa a desenvolver um pensamento original sob a luz de um novo paradigna..

2.1- O primeiro momento: a proximidade da teologia européia

O Concílio Ecumênico Vaticano II areja a teologia de Boff com forte

espírito ântropo-teológico, inspirando sua tese de doutoramento sobre a Igreja como sacramento num mundo secularizado16. O maior encontro entre Boff e o Vaticano II está naquilo que a Gaudium et Spes afirma de modo tão objetivo: “... testemunhamos o nascimento de um novo humanismo, no qual o homem se define, em primeiro lugar, por sua responsabilidade perante seus irmãos e a história” (GS 55).

Tendo em conta essa influência basal, já nesses primeiros tempos

transparece no pensamento do teólogo a presença chardiniana, que vê o mundo como um cosmos onde a graça de Deus provoca uma evolução cristogenética e onde a criação toda vive no bojo de um “meio divino” (cf. At 17,28), com momentos nodais de maior transparência da manifestação de Deus17.

Nessa fase, Boff encontra-se também com Karl Rahner, “quiçá a cabeça mais iluminada dos teólogos católicos deste século”18 XX, que deixa marcas profundas no pensamento do jovem teólogo brasileiro, impressionado pelo impacto do método da antropologia transcendental. Assim é que Boff fala do homem como ser-de-relações, sujeito existencial sobrenatural, sujeito transcendental, ser-no-mundo, ser-para-os-outros, ser-para-Deus, ouvinte da Palavra...

15 São Francisco de Assis, ternura e vigor; uma leitura a partir dos pobres; A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual; Francisco de Assis, saudade do paraíso...., além de vários artigos em periódicos. 16 Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung, Paderborn, 1972. 17 Euler R. WESTPHAL, O pensar trinitário em Boff, Estudos Teológicos ano 48, n. 2, 47-48. 18 Um balanço de corpo e alma. In Leonardo BOFF & outros, O que ficou... Balanço aos 50, p. 13.

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O primeiro artigo de Boff, publicado na Revista Eclesiástica Brasileira,

em 1963, se chama “Conceitos de inspiração ao tempo do Vaticano II” e já traz elementos teológicos sobre o diálogo inter-religioso. Seu primeiro livro, O Evangelho do Cristo cósmico, em 1971, trabalha a cristologia cósmica, como que prefigurando os dois pólos em que um dia vai se projetar mundialmente, a cristologia e a cosmologia.

Algum tempo depois, os influxos de João Batista Metz e de Jürgen

Moltmann, com a teologia política, vêm relativizar a influência rahneriana sobre Boff, e lhe “abriram o mundo como conjunto de relações sociais e políticas e a responsabilidade do cristianismo para a gestação da crítica denunciadora das ilusões da modernidade individualista e também para a projeção do homem novo e da mulher nova”19. Essa mesma teologia, porém, vai ser depois criticada por Boff por seu limite de reflexão apenas a partir da riqueza e do capital. Assim, explica o pensador que, na Europa, “a questão central era como conciliar fé e razão crítica moderna. Aqui, a questão axial era como conciliar fé com pobreza e injustiça social...”20. O teólogo já está no seu segundo momento. 2.2- O segundo momento: teologia ad intra sob o paradigma da libertação

Esse momento conseqüente tem início quando Boff se depara com a

triste realidade do homem empobrecido da América Latina: “Nos anos 70, ao regressar da Europa, caí no Brasil real dos 2/3 de pobres e excluídos”. E no processo de um novo fazer teológico, com alguns companheiros, se espraia na elaboração do que depois vem a ser denominada de ‘teologia da libertação’: “Junto com Gustavo Gutiérrez, do Peru, e Juan Luis Segundo, do Uruguai, elaborei uma teologia comprometida com esses expropriados que ficou sendo conhecida como teologia da libertação, a primeira teologia dos tempos modernos produzida na periferia da galáxia eclesial e com significação universal... Ajudei a montar um ousado projeto teológico para a América Latina, ainda em curso: reescrever toda a teologia cristã, em mais de cinqüenta tomos, a partir do interesse da libertação dos nossos povos condenados. (...)”21.

Até meados dos anos 90, o autor é tido como um dos expoentes da teologia da libertação. Desde que, no final dos anos 80, eventos decisivos no cenário mundial (queda do muro de Berlim, implosão do império soviético, emergência dos mercados nacionais e regionais dentro do mercado mundial, a hegemonia do neoliberalismo no mundo político e cultural, amplitude manifesta da crise ecológica...) e pessoal (sobretudo os graves confrontos com a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé) obrigam o teólogo a recriar novas categorias de análise, a abrir horizontes de sua compreensão de ‘libertação’ e a desenvolver novas estratégias libertadoras. Por ocasião da publicação de Igreja, carisma e poder, acredita-se que o processo histórico de Boff tende a

19 Um balanço de corpo e alma. In Leonardo BOFF & outros, O que ficou... Balanço aos 50, p. 15. 20 A esperança é hoje a virtude mais urgente e necessária; entrevista de Leonardo Boff a Juarez Guimarães, in Juarez GUIMARÃES (org.), Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 176). 21 Uma caminhada humana e espiritual. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 159.

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fazer dele um aprofundador das raízes brasileiras do cristianismo, como ele próprio testemunha22. Mas sua caminhada prolonga-se por outras vias: “a força de sua razão, estendida na história dos milênios, e agora expandida em direção ao cosmos, por um dinamismo intrínseco a ela...”.23

O pensamento teológico de Boff aos poucos vai tomando o sentido que leva para fora dos assuntos convencionalmente religiosos, eclesiásticos e cristãos, e se direcionando para o grande problema que interroga fundamentalmente a humanidade: o futuro temeroso do planeta. Em 1993, num momento mais amadurecido de sua grande transformação epistemológica, publica o livro Ecologia, mundialização, espiritualidade: a emergência de um novo paradigma, e então passa a ser conhecido sobretudo por sua preocupação cosmocêntrica e ecológica. 2.3- O momento atual: o rito da passagem paradigmát ica

O momento atual de Boff é o da criação do paradigma teológico da ecologia. Volta-se para a emergência de uma antropogênese, de um processo histórico de emergência de um novo homem em diração à comunhão planetária24.

Racionalmente, pode-se dizer que tudo começa nas últimas duas

décadas, com a reflexão antropológicas que se refere às humilhações a nível cosmológico, biológico, psicológico, racional e religioso a que o homem tem sido submetido nos últimos séculos25. Pela humilhação cosmológica, o homem se convence, já desde Copérnico, que ele, em seu pequeno planeta, não é o centro do universo físico. Na consciência crescente da evolução, que gradativamente o liberta da situação de simples animal fazendo emergir só paulatinamente nele a noogênese, o humano se depara com sua relativa situação biológica. Na desbancada da supremacia da consciência ele descobre a situação animal sobrevivendo também em sua psique, bem como seu consciente se movendo através de forças inconscientes do seu eu profundo e do inconsciente coletivo, vivenciando a terceira humilhação, que é a psicológica. Da mesma forma, são conhecidas as conseqüências da hegemonia pretensiosa do racionalismo moderno e suas graves conseqüências para o convívio social e cósmico. Guerras, violência, problemas sociais de variados portes, manipulações genéticas e biológicas, holocaustos em nome da segurança humana, manipulações ecológicas com terríveis e irreversíveis resultados, e outros tantos graves perigos para a sobrevivência do homem e de todo o cosmos testemunham o fracasso dessa pretensa superioridade e

22 “Pela celebração dos 500 anos de Brasil intencionava fazer uma leitura teológica da história do país, relendo as fontes todas nesta ótica. Mas me faltou fôlego, pois, a tarefa se apresentava imensa, seja do ponto de vista da montagem do quadro teórico, seja na domesticação das muitas fontes. Se já se fez uma leitura sociológica, política, econômica, antropológica, por que não tentar uma teológica? Será um desafio para futuros teólogos do Brasil” (A esperança é hoje a virtude mais urgente e necessária; entrevista de Leonardo Boff a Juarez Guimarães, in Juarez GUIMARÃES (org.), Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 176). 23 Juarez GUIMARÃES, Igreja, carisma e poder e a cultura brasileira, in Ibid, p. 80. 24 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 281-284; cf. tb. Terra e Humanidade: uma comunidade de destino, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. LXX, fasc. 277: 187. 25 Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 31.

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centralidade humanas. Finalmente, na dimensão religiosa ele experimenta o fracasso humilhante de sua pretensão de superar o próprio Deus, curtindo sua fraqueza frente às forças do mal e do pecado, com suas conseqüências escravizadoras.

Um tal conjunto de humilhações, na verdade, constitui o cenário de fundo no qual Boff, hoje, após longos anos de estudo, de reflexão e trabalho, entrelaçando seus conhecimentos teológicos e filosóficos com outros adquiridos das ciências físico-químico-biológicas, pode se encontrar um Boff maduro, não apenas na idade, mas sobretudo nas coisas do coração e do pensamento, Coloca-se mais amplamente a serviço da vida, em todas as suas formas e manifestações, valendo-se para isso do conceito de autopoiese (autocriação, auto-organização da matéria...) de Maturama e Varela26. Colaboram na gestação do novo paradigma dados da nova cosmologia, da mecânica quântica, da nova biologia, da psicologia transpessoal...27.

O teólogo fala de uma necessária tomada de consciência e superação do complexo antropocentrista ocidental, de superioridade em relação aos outros seres do cosmos28. Desloca a dignidade humana do caráter de privilégio para o de ética, de modo que sua posição no mundo não revela superioridade, mas vocação. As reflexões do teólogo brasileiro dilatam o pensamento de Teilhard de Chardin, de forma a se poder afirmar que este último encontra complementaridade, para o tempo e o contexto cultural atuais, na orientação sócio-cósmológica dialética que a antropologia de Leonardo Boff hoje considera.

Essa fase atual do teólogo Leonardo Boff parece ser mais um momento, um rito mesmo, de passagem, como que assumido profeticamente por alguém que não mais se limita a trabalhar conceitos clássicos da ciência da fé, mas que resiste em permanecer num enfoque muito particular de um terreno tão pouco pisado, como que esperando companheiros de caminhada que um dia, já tranqüilizados pela sua experiência, possam dar continuidade a ela, até que a também nova teologia se estabeleça e se firme...

Mas há que se perceber, nas três fases do pensamento de Boff, uma

clara tendência ao trabalho da teologia a partir do antropológico. O humano e Deus são seres inseparáveis noi labor da teologia, de modo que o que se diz de um refere-se necessariamente ao outro.

26 H. R. MATURAMA & F. J. VARELA, A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana; Palas Athena, São Paulo, 8ª. ed., 2010, passim. 27 A voz do arco-íris, pp. 62ss. 28 Ernesto BERNARDES, Teologia da Colisão - Entrevista: Leonardo Boff, VEJA, 16 de agosto, 1995: 8.

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CAPÍTULO I

UMA “ TEOLOGIA SOB O SIGNO DA TRANSFORMAÇÃO ” 29

Dentro da temática do presente trabalho é necessário, antes de tudo, se perguntar como o pensador em questão concebe a ciênbcia teológica, qual a gênese e a evolução de seu pensamento... e em que isso favorece o tema que aqui se trata.

1. Que é isso, a teologia?

Tendo em vista a compreensão clássica de que teologia é, num primeiro momento, discurso sobre Deus, e que é também referência a toda realidade em referência a Deus, no momento atual de seu pensamento, Boff propõe uma leitura teológica das realidades não enquanto entes estancados e separados entre si, embora em relação a Deus, mas enquanto entes integrados numa única realidade planetária. O ser humano hoje se vê forçado a se perguntar por seu lugar no processo cósmico global, pois ele aí expressa sua consciência. Perguntar por isso é encarar o novo desafio a que a teologia hoje deve responder30. A partir daí, pergunta-se o que é mesmo essa ciência, a teologia, capaz de integrar em seu seio reflexivo elementos aparentemente tão díspares e incongruentes...

Há um a-priori que determina o ser humano existencialmente, e dois caminhos se abrem para sua compreensão: o racional e o religioso31. O primeiro se define pelo perguntar existencial sobre tudo o que existe e inclusive sobre o próprio perguntar. Conclui pela existência de um Ser Supremo e Sumo Bem, presente como momento prévio na realidade criacional em si mesma. É o caminho da teologia natural. O outro caminho é o religioso. O fenômeno religioso irrompe universal e convincentemente, apesar das investidas dos racionalismos... O ser humano responde ao divino, que irrompe a-prioristicamente em sua vida, através da fé, que passa a ser seu parâmetro de interpretação e compreensão da realidade. Ou seja, antes de toda e qualquer reflexão racional da fé existe o a-priori experiencial da busca do humano por Deus. Sem essa experiência de Deus é impossível fazer teologia. A razão se sente impotente para falar de Deus; só na fé, que é a acolhida gratuita do Inefável e ImperceptÍvel, quando a pessoa sente o limite de toda sua atividade, ao mesmo tempo que remetido a um Ser Supremo, é possível falar de Deus. Mas a primeira experiência logo se revela impotente e incapaz de falar de Deus: “Acolher jovialmente essa impotência e esse mistério, sentir-se enviado dele, poder dizer um sim e um amém a tudo isso é viver a dimensão da fé”32. Portanto, o caráter teologal da própria teologia está em que a razão se exerce no coração do próprio mistério, e só é possível fazer teologia quem consegue ultrapassar a racionalidade objetivante e dar lugar à razão sapiencial e

29 O título do capítulo é extraído de texto homônimo de Leonardo Boff, in L. Carlos SUSIN (org.), O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: Soter/Loyola, 2000. 30 Terra e humanidade: uma comunidade de destino, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol.LXX, fasc. 277: 187-188; Nova era: a civilização planetária, p. 45. 31 O caminhar da Igreja com os oprimidos, pp. 155-156. 32 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 85.

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sacramental33. Além disso, fé e teologia não são dados exclusivos de uma religião instituída, mas “constituem uma profundidade existente dentro da própria vida, mesmo quando ela não assoma à consciência nem se chama ou aceita ser chamada de fé e teologia... Elas pertencem, simplesmente, à estrutura da própria realidade”34.

A fé cristã tem uma determinação bastante objetiva: a revelação de Deus como Santíssima Trindade, através de Jesus Cristo. A memória da vida, paixão e morte e ressurreição de Cristo é guardada, celebrada e pregada pela Igreja. No entanto, a densidade dessa verdade que constitui o núcleo da fé da Igreja ainda não é a teologia.

Para explicar a relação entre fé e teologia, Boff apresenta a imagem de um lago que alguém pode contemplar de duas maneiras. Quando olha a superfície, vê a limpidez, tranquilidade e harmonia e beleza de todo o conjunto. Se, como o mergulhador aventuroso, procura perscrutar suas profundezas, depara com um abismo profundo, cheio de acidentes, com uma flora específica, um mundo habitado por criaturas misteriosas. A fé é como a contemplação da límpida superfície do lago. Suas verdades seculares apresentam-se prontas e estabelecidas, em sua beleza e discernimento: o credo, os dogmas, as orientações litúrgicas, o catecismo... No caso dos cristãos, é a fé apresentada pela Igreja; é a visão do fiel. Mas, quando ela penetra nas profundezas do lago, vira teologia. Então, esta, que pensa o mistério de Deus na vida do ser humano expresso através das fórmulas dogmáticas, é o mergulho nessas profundezas, de modo que pode surpreender-se ao descobrir que coisas aparentemente claras, límpidas e pacíficas ocultam uma misteriosidade que tem provocado muitas controvérsias na história do pensamento cristão. A teologia é “a fé que procura compreender”, como diz Santo Anselmo (+1109)35, que precisa ser argumentada e justificada pela razão (cf. 2 Pd 3,15). Mas, só chega a uma verdadeira síntese entre fé e teologia aquele que se aventura a mergulhar, pela experiência e pela racionalidade, no aparentemente tranquilo lago da fé.

Não tem sido fácil e tranquilo manter essa bipolaridade na história da teologia, razão porque se constata uma “dupla patologia” na aventura teológica de todos os tempos36. À primeira delas se chama teoburocracia, tentação de transformar o teólogo num simples repetidor das verdades da fé conservadas no depositum fidei da Igreja, negando-se-lhe a tarefa de perscrutar a profundidade do lago do mistério de Deus na vida humana. Essa patologia sofre de amnésia, pois se esquece que a ousadia intelectual arriscada dos teólogos do passado e do presente é que tem tornado possível a conquista da explicitação inclusive das verdades de fé que a própria corrente teoburocrática pretende que ele simplesmente anuncie. Tal patologia é uma “preguiça mental” diante da estafante e perigosa tarefa científica que, segundo Tomás de Aquino, “exige muito trabalho e são poucos os que suportam este labor por amor à

33 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 145. 34 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 77. 35 “Fides quaerens intellectum” (Proslógio. In Monológio. Proslógio. A verdade. O gramático., proêmio, 104). 36 O caminhar da Igreja com os oprimidos, pp. 164-165.

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ciência teológica”37. A segunda patologia é a do diletantismo especulativo. Numa vertente radicalmente oposta à anterior, o teólogo despreza o passado, a tradição multissecular do processo teológico da Igreja e da caminhada de fé do povo de Deus. Não fica difícil perceber a ingenuidade intelectual dessas invencionices e criatividades. A teoburocracia leva a um dogmatismo que não raro se torna intolerante e repressor; o diletantismo especulativo, a um vivencialismo fideísta, que gera o que Boff chama de orgia de experiências religiosas38 que tendem ao isolacionismo.

Ao falar de Deus e, em relação a Ele, de toda a realidade, a teologia refere-se a uma utopia. Por isso, ela se torna “uma profecia do ser, a proclamação de uma promessa do ser orientada a um cumprimento”39. Enquanto outros saberes e ciências falam do que existe, do que pode ser conhecido e comprovado empiricamente, a teologia fala do que ainda não é, da utopia de que se reveste a fé (cf. 1Cor 1,28). Por tratar das questões existenciais históricas mais profundas e fundamentais, constata-se que o desejo humano parece impossível aos olhos positivistas do mundo. “Não quer a vida; quer a vida eterna. Não quer amor; quer amor sem fim. Não quer isso ou aquilo; quer tudo. Quer a utopia”40, que só a fé pode tornar realidade.

Por isso, a linguagem da teologia é teomorfa, ou seja, é uma forma de falar divinamente do homem, ou melhor, do divino que está no homem. Por isso, hoje, o maior desafio não está na descrença, na falta de fé, mas nas estruturas desumanizantes, que não respeitam a dignidade das pessoas e a necessária integração com a realidade planetária. Toda a reflexão teológica do autor se faz nesse tecido epocal da opressão humana, do mal uso dos recursos do planeta Terra e de sua necessária libertação.

Por ser a consideração da realidade toda à luz de Deus, a teologia é, em princípio, uma só. Mas, o universal existe concretizado no particular, e então se pode falar de distintas teologias. Os diferentes nomes que ela recebe caracterizam nucleações ou preocupações fundamentais de onde a tarefa de reflexão da fé se desenrola. A patrística, nos primeiros séculos, com sua reflexão teológica sapiencial; mais tarde, as sumas teológicas medievais, dotadas de uma preocupação argumentativa e lógica da revelação; depois, a teologia moderna, com seu caráter histórico-existencial, fazendo da articulação fé-ciência sua grande questão...; após o Vaticano II, no Primeiro Mundo, uma teologia preocupada em responder às exigências da fé do homem moderno e pós-moderno; nos contextos de Terceiro Mundo, uma reflexão de fé que manifesta a consciência explícita de transformação das estruturas sociais injustas, do desrespeito à criação, de re-ligação dos humanos entre si. Ultimamente, essa teologia se amplia e entende-se também como promotora da consciência de uma integração com toda a realidade criada. No dizer de Boff, é a realidade das pessoas e dos povos e de todo o planeta terra que determina hoje os critérios básicos de leitura da revelação através da teologia

37 Summa Contra Gentiles I. 1,c.4. 38 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, p. 49 39 Antropologia teológica; o homem à luz do projeto teológico, p. 9. 40 Ibid., p. 9.

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que, se empenhada com a transformação das realidades, então é uma teologia da libertação41.

2. Uma teologia em transformação: o novo paradigma

Boff é um teólogo que se caracteriza pela contínua mudança. Sem negar absolutamente nada do que tem dito no decorrer das tantas décadas de ministério teológico, é visível, em seu pensamento, um espírito de mudança. Esta se torna mais clara diante da mudança de paradigma que há alguns anos vem comunicando e expressando em seu pensamento e em seus textos.

Paradigma é “uma maneira organizada, sistemática e corrente de nos relacionarmos com nós mesmos e com tudo o resto à nossa volta. Trata-se de modelos e padrões de apreciação, de explicação e de ação sobre a realidade circundante”42.

Surge um novo paradigma quando, por uma mudança de mentalidade causada pela consciência da incapacidade de antigas referências paradigmáticas responderem aos novos problemas fundamentais da existência, todas as áreas do pensamento humano passam a ser atingidas por essa mudança.

Aplicada à teologia, uma categoria é paradigmática enquanto elemento

integrado e integrador que faz referência explícita ao mistério de Deus sobre o qual se propõe a pensar. Por isso, o paradigma –e para sê-lo não pode deixar de fazê-lo- oferece um novo horizonte a toda a teologia, deslocando sua centralidade e tornando-se o ponto obrigatório de referência de todos os tratados.

A opção por um novo paradigma na teologia significa uma abertura para

problemas antes impensáveis. Reforça, assim, a tradição teológica latino-americana que passa da dedução para a indução, partindo da realidade dolorosa do pobre e da criação desvastada e explorada para a iluminação da hermenêutica da fé.

No que se refere a Leonardo Boff, essa abertura começa por um questionamento do paradigma técnico-científico da modernidade, que é uma reação ao essencialismo e dogmatismo clássico e medieval, fundamentada no antropocentrismo que domina o pensamento e a prática humana até meados do século XX e que é de caráter subjetivista, materialista, mecanicista, dualista, linear, reducionista, atomístico, compartimentado, patriarcal e androcêntrico, que disfarça uma antropologia da vontade de poder, de exploração, colonialismo e de imperialismo. Sobre ele estão as bases onde se plasmam economia, política, desenvolvimento industrial, urbanização, relações de classe e outras realidades.... A crise da ciência empírica, trazida pelo seu próprio desenvolvimento, se encarrega de mostrar que a euforia da verificabilidade de seus enunciados e o otimismo pelas conquistas não conseguem evitar as 41 A originalidade da teologia da libertação em Gustavo Gutierrez, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 48, fasc. 191: 532. 42 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 27.

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catástrofes que assolam a humanidade sobretudo depois do século XVIII. Boff põe às claras seus resultados destruidores da vida, da mesma forma que critica a ideologia otimista do “progresso infinito” pela evidência do acelerado esgotamento dos recursos naturais, dado o seu uso descriterioso pelo ser humano. Por isso, gradativamente, novas concepções gestadas sobretudo no campo da física, da química e da biologia, vão forjando uma nova cosmologia, com conseqüências profundas e visíveis na filosofia, na ética e na própria teologia43.

Novos conhecimentos físico-químicos vão ilustrando a reflexão científica da não-linearidade (tudo é relação e não se limita ao movimento causa-efeito), da dinâmica cíclica (permanente processo de adaptação e equilíbrio da realidade), do sistema estruturado (os sistemas, que interagem entre si, fazem parte de um organismo maior), da autonomia e integração entre os sistemas, da auto-organização e da criatividade (reestruturação criativa de cada sistema).44 Redescobre-se a terra como um organismo vivo, portador de uma pluralidade de formas de vida. Quebra-se o antropocentrismo que relega a uma segunda categoria tudo o que não se refere diretamente ao humano; cria-se um novo paradigma... 2.1- A “virada ecológica”: “O despertar de uma nova consciência face à vida” 45

O novo paradigma teológico de Boff, o da ecologia, tem caráter cosmocêntrico, que propicia uma nova base para o fazer teológico. Trata-se do horizonte amplo a partir do qual todos os outros elementos são pensados teologicamente. A partir dele, descobre-se a necessidade de uma democracia cósmica, própria de uma civilização planetária. A nova categoria cosmológica exige nova leitura das antigas afirmações do teólogo, embora algumas delas já apresentem em potência em seus primeiros escritos, sinais do paradigma atual. Como toda releitura, esta não deixa de ser muito exigente.

Nessa nova maneira de pensar, não há conflitos entre o humano e o cosmos, não há exploração descabida e irracional. Ao contrário, com muito respeito e cuidado, coloca a ambos, cosmos e ser humano, no mesmo nível da subjetividade, promovendo entre eles diálogo, mútua-relação, interdependência, solidariedade... É a solidariedade cósmica, fundamentada na fraternidade-irmandade sem fronteiras. Nessa harmonia de relações é que a divindade aparece translúcida e reluzente, como realidade pan-relacional.

43 Paulo A. Nogueira BATISTA, Teologia e ecologia: a mudança de paradigma de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit, p. 107. 44 Ecologia, mundialização e espiritualidade: a emergência de um novo paradigma, p. 43-44. 45 A expressão encontra-se na conclusão da Carta da Terra, documento resultante de um grande esforço internacional para equacionar a crise ecológica. Numa reflexão que tem como centro a vida em todas as suas dimensões, do planeta, de todos os seres e a vida humana, a Carta da Terra é uma proposta de responsabilidade coletiva e de cuidado essencial de todos em relação às questões ecológico-sociais. Escrita finalmente em 2003, a Carta da Terra é fruto de ampla consulta, durante 2 anos, em 46 países, com o envolvimento de mais de cem mil pessoas, organizações e entidades, sobre os desejos e anseios de todos para promover a vida de todos os seres do planeta e defendê-la. Juntamente com a cantora Mercedes Sosa, Leonardo Boff é o representante da América Latina nesse movimento mundial em defesa da vida do planeta e dos seres que ele acolhe.

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Consoante a essa cosmovisão, a síntese atual que domina o

pensamento do teólogo é resultado da orientação de um paradigma em defesa da vida em todos os níveis. No centro dele estão a ecologia, a novas cosmologia e biologia e a psicologia transpessoal. Estes não são simplesmente novos temas de teologia, mas um verdadeiro referencial novo a partir do qual se reflete toda a revelação. O paradigma não consiste numa originalidade propriamente de Boff, uma vez que já na década de setenta, o sociólogo francês Edgar Morin -embora contestado e rejeitado na época, mas hoje considerado um dos maiores pensadores vivos nessa área- lança as bases para o despertar do “paradigma ecológico” ou do “pensamento ecossistêmico”46. Mas é o pensador brasileiro que o traz para dentro da teologia: “Leonardo Boffé o teólogo que sacudiu a consciência das organizações ambientais ao recordar-lhes que, no processo de devastação ambiental desencadeado pela civilização industrial, não morrem somente plantas e animais, mas também os pobres deste mundo”47,

A história de sua mudança começa com o “silêncio obsequioso” (1984) com que é brindado com a publicação de Igreja, carisma e poder. O difícil relacionamento com a Sagrada Congregação e o agravamento da crise mundial ecológica vão preparando os caminhos da grande transformação48. É verdade que os primeiros sinais do novo paradigma já se fazem sentir em Francisco de Assis: ternura e vigor (segunda metade dos anos setenta), mas só adquire mesmo consistência clara e explícita após longas reflexões, em continuidade e descontinuidade, nos inícios dos anos noventa, data que coincide com seu desligamento do ministério presbiteral e da vida religiosa franciscana. Desde que assume oficialmente o “paradigma ecológico” em seu escrito “Refundação da dignidade humana a partir da nova cosmologia”49, em 1992, praticamente todas as suas publicações acontecem sob um enforque que articula teologia, antropologia, cosmologia e ecologia.

Mas um paradigma novo não se impõe mecanicamente, nem acontece de uma hora para outra. Após um tempo de certa indefinição, de convivência ao lado de outros antigos, o novo paradigma começa a tomar corpo e a produzir uma nova compreensão da realidade50.

De tais reflexões vai nascendo, em Leonardo Boff, um conceito original de ecologia: “o estudo do inter-retro-relacionamento de todos os sistemas vivos e não-vivos entre si e com seu meio ambiente, entendido como uma casa, donde deriva a palavra ecologia (oîkos, em grego = casa, a mesma raiz

46 Cf. Edgar MORIN, O paradigma perdido: a natureza humana. 4 ed., Lisboa: Publicações Europa-América, 1973. 47 Juan A. Mejia GUERRA, Dimensões da crise ecológica, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. LXX, fasc. 277, p. 15. 48 “Nos últimos três anos, diz Boff em 1988, em razão da crise ecológica mundial, ocupei-me com o mistério da criação” (O que ficou...Balanço aos 50, p. 23). “A partir do conflito com o Vaticano em 1984, entrei de corpo inteiro na questão ecológica, como prolongamento da teologia da libertação” (A esperança é, hoje, a virtude mais urgente e necessária, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 178). 49 Refundação da dignidade humana a partir da nova cosmologia. Cadernos Fé e Política, vol. 7, passim. 50Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 30.

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etimológica de ecumenismo)”51. Por isso, como análise que abrange os vários setores, apontando critérios e valores para tudo, numa referência última a Deus, a ecologia pode ser considerada um paradigma teológico.

O paradigma ecológico boffiano, na superação dos dualismos do paradigma anterior, acentua a re-ligação, a dialogação, a articulação, a busca da unidade e o trânsito entre os pólos. No mundo físico-químico, fala-se em intercambiabilidade de matéria e energia, de partícula e onda...; no mundo das humanidades, fala-se em harmonia e relação...: “Tudo o que existe coexiste. Tudo o que coexiste preexiste. E tudo o que coexiste e preexiste subsiste através de uma teia infindável de relações omnicompreensíveis. Nada existe fora da relação. Tudo se relaciona com tudo em todos os pontos”52

Nessa perspectiva, para referir-se à ordem dialógica, de complementariedade e de reciprocidade entre Deus e criação53, e entre os próprios seres criados, o paradigma holístico, panrelacional e espiritual boffiano gira ao redor de três eixos: a sustentabilidade ecológica da terra e das sociedades fundamentada na relação de fraternidade humana e cósmica, o respeito à diversidade humana, cultural e biológica e a promoção da participação e da comunhão nas relações nas diversas instâncias da família, da escola, da igreja, dos movimentos sociais e do Estado54.

É a partir dessa opção atual do teólogo que neste trabalho se tenta recuperar o substrato antropológico de todo o seu pensamento. Assim, conceitos anteriormente explicitados necessitam, agora, ser novamente enfocados e, ainda que não perdendo sua veracidade, traduzidos à luz do novo paradigma.

3. Os dois “hoje” da teologia

A compreensão cristã de todos os tempos é a de que o Senhor se manifesta no passado e continua se auto-comunicando no hoje da história. Por isso os Santos Padres falam de uma theologia ante et retro oculata, numa compreensão do passado e do presente como tempos próprios da Palavra. Cabe-lhe, pois, centrar seus esforços não somente nas fontes da fé como são particularmente a Bíblia e a Tradição, mas também na historia mundi, prenhe da História da Salvação. Para explicar a força que perpetua a contínua atualidade da auto-comunicação de Deus neste mundo o teólogo trabalha a imagem dos dois “hoje”55. 3.1- O hoje Kairológico: a realidade da fé

A teologia reflete a fé recebida dos apóstolos. Ela fala de um “hoje” permanente, denso de salvação, de presença divina, que supera as

51 Ética da vida, p. 25. 52 Ecologia, mundialização e espiritualidade. A emergência de um novo paradigma, p. 15. 53 Euler R. WESTPHAL, O pensamento trinitário em Leonardo Boff: comunhão e criação, in Estudos Teológicos, no. 2: 32 54 A voz do arco-íris, p. 79. 55 A fé na periferia do mundo, pp. 7-11.

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coordenadas do tempo linear e inaugura uma nova forma de experimentar e entender o tempo. A dimensão desse kairós une eternidade e momento presente: “Eis agora o tempo favorável por excelência. Eis agora é o dia da salvação” (2Cor 6,2; Rm 13,11). A encarnação de Deus em Jesus Cristo, bem como todo o processo de seu mistério pascal se insere de tal forma nas estruturas do mundo que toda a matéria se torna revestida do significado novo do Emanuel, fazendo emergir sua estrutura crística. O hoje kairológico é a consciência dessa salvação de Cristo sempre presente, e a função da teologia, com o auxílio das ciências hermenêuticas, é refletir criticamente sobre esse testemunho de fé56.. 3.2- O hoje cronológico: a realidade social e cósmi ca

A realidade da fé (hoje kairológico) acontece num determinado contexto de tempo histórico linear e realidade sócio-cósmica que Boff chama de hoje cronológico. A teologia, como discurso crítico da fé, não a manipula numa realidade puramente objetiva. Acontecendo na história dos homens, a fé lhe dá “olhos” próprios para enxergar e compreender o mundo. As afirmações que a teologia tem classicamente empregado para referir-se à ação salvadora-libertadora de Deus em Cristo estão sedimentadas em bases culturais diferentes das nossas de hoje. Por isso é necessário atenção e cuidado ao aspecto semântico de hoje que já não é mais o de ontem. Dessa forma, a temática dominante de uma teologia se define pelo que emerge como importante num determinado tempo e contexto, isto é, epocalmente. Por isso, o discurso religioso deve necessariamente considerar a realidade dentro da qual se move a dinâmica da fé.

Por isso, a teologia conta com o auxílio das ciências do homem e do social. Já Tomás de Aquino fala da necessidade de se ter um conhecimento geral das ciências, para conhecer melhor a Deus: “Conhecer a natureza das coisas ajuda a destruir os erros acerca de Deus (...). É falsa a opinião daqueles que diziam não importar nada à verdade da fé a idéia que alguém tem sobre as criaturas, contanto que pense corretamente acerca de Deus (...), pois, um erro sobre as criaturas redunda numa idéia falsa de Deus”57. Da mesma forma, o Vaticano II fala da legitimidade da ciência que, “quando tenta perscrutar com humildade e perseverança os segredos das coisas, é como que conduzida pela mão de Deus” (GS 36), podendo contribuir, portanto, para um real e verdadeiro trabalho teológico.

Dada a subjetividade própria, desde a seleção de temas até a opção por uma ótica de reflexão, a produção teológica se faz sob a influência de determinada contextura social, eclesial, cultural, ideológica, ideal... Por isso, a reflexão teológica supõe a ajuda de uma teoria sociológica., e compromete o pensador com o grupo eclesial e social a quem a ótica nuclear de seu pensamento diz respeito. Consciente ou não, um teólogo é sempre partidário, pois nunca faz uma teologia neutra e imparcial. No entanto, quando consciente e lúcido, ele pode controlar e reorientar essa parcialidade. 56 A fé na periferia do mundo, p. 8. 57 Summa contra gentiles, I.2, c. 3.

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É importante lembrar finalmente que nenhuma teologia realiza totalmente a tarefa de responder, à luz da revelação, às questões fundamentais da existência humana e de toda a criação. Nessa consciência o teólogo cresce progressivamente quanto mais mergulha no abismo da fé, e começa a perceber a relatividade de toda reflexão. Nessa experiência percebe que a tensão entre a calmaria da superfície e a misteriosidade das profundezas é tão chocante que Tomás de Aquino, após a aventura do mergulho no mistério de Deus, através da Suma Teológica, permanece num silêncio respeitoso e contemplativo, dizendo que toda sua teologia não é mais do que palha58. Boff tem reação semelhante quando, a partir de um estudo da teologia espiritual de mestre Eckhart, faz referência a uma inflação teológica, dizendo que “toda nossa teologia e espiritualidade são uma imensa tagarelice”59. No entanto, só quem se dispõe à aventura do mergulho no lago da fé e da teologia pode atingir essa maturidade, fazendo com que a teologia reencontre a unidade perdida com a mística e a espiritualidade.

4. A articulação dos dois “hoje” e a emergência de um novo pensar teológico: a teologia da libertação ampliada

Se nenhuma teologia é neutra, então, fazer teologia num determinado contexto exige que se procure elaborar a reflexão sobre a fé mais adequada para determinada situação. Na América Latina essa análise teológica permite detectar que a dimensão teologal humana se expressa numa realidade de exploração econômica e de marginalização social, com suas fontes no sistema liberal. Embora sempre dessa plataforma na qual vive e faz teologia, Boff hoje amplia seu universo dialogante, dirigindo-se ao interlocutor pós-moderno do mundo todo, num apelo à consciência ecológica.

E se, então, a análise teológica compreende a situação como realidade de pecado, a fé deve ajudar o cristão a definir-se diante dessa complexidade e assumir uma postura firme contra o pecado, que Boff entende como ruptura do ser humano com o amor de Deus, tornando-se, assim, infiel ao próprio projeto e desintegrando-se da comunhão com a totalidade.

Portanto, cabe à teologia “refletir criticamente, à luz da experiência cristã da fé, sobre a práxis dos homens, principalmente dos cristãos, em vista da libertação integral dos homens”60. Na América de Boff, essa forma de entender teologia se desdobra, desde o final da década de sessenta, com momentos ao mesmo tempo de crescimento e de crises profundas, e recebe o nome de “teologia da libertação”. O Concílio Vaticano II, uma vez acolhido no contexto eclesial do Terceiro Mundo, favorece esse nascimento. A proposta conciliar de uma nova leitura da vocação da Igreja no mundo moderno de hoje tem inspirado pastores e teólogos do Terceiro Mundo a uma reflexão da fé que responda às pessoas desse mundo em sua totalidade existencial. Mergulhada nessa epocalidade, a Igreja na América Latina tem conseguido fazer emergir dos anseios, expressos nessas utopias e práticas, a produção teológica. Esse

58 In O Caminhar da Igreja com os oprimidos, p. 164. 59 A transparência: experiência originária. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 74. 60 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 45.

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pensamento teológico, na verdade, tem já suas raízes em antepassados teológicos do continente que remontam a reflexões e práticas eclesiais de pessoas como Montesinos, com seu profetismo no famoso sermão de advento em 1511, os primeiros missionários franciscanos no México (1524)61, Felipe Guaman Poma de Ayala (1583-1615?)62, Bartolomé de Las Casas63, ... e embora não propriamente entre os precursores da referida teologia, Boff cita também o Pe. Antonio Vieira64 quando, em carta ao rei de Portugal, denuncia a injustiça cometida contra os Índios... Fruto dessa longa caminhada teológica libertadora é a emergência da democracia popular na América Latina, como testemunha Patrus Ananias: “Podemos dizer que estamos colhendo os frutos de uma pregação que propôs a inversão de prioridades, com ênfase na questão social, com os pobres em primeiro lugar e a defesa da vida como direito mais elevado”65.

A teologia da libertação nasce do encontro das experiências política e teológica, isto é, no ponto de intersecção entre o kairós e o chronos da Palavra. É sobre esse emaranhado social do hoje cronológico que caracteriza a América como continente de dependência desumanizante, que gera empobrecimento, degradação social e moral, violência, desvastação das reservas florestais, poluição das águas e toda sorte de manifestações desumanas e desumanizantes, que o hoje kairológico da teologia se debruça para entender a necessária atualização da Palavra aí também revelada. Uma reflexão assim concebida, capaz de articular, numa só reflexão, Deus, o humano e o cosmos. Tem-se chamado a essa integração de teoantropocósmica66.

Por isso, a tarefa do teólogo deve ser a de buscar, com os olhos próprios da ciência teológica, suas contribuições na “decifração do mistério humano, donde partem e para onde devem convergir todas as ciências, se não quiserem transformar-se em ideologias”67. Daí se entende que, para Boff, as ciências só podem se tornar mediadoras do pensar teológico se assumem uma orientação antropológica e cósmica. Não é o mistério de Deus em si que elas explicam; é ao mistério do ser humano e do mundo que se referem... Compete à teologia, administrar com elas os próprios conteúdos da fé e, a partir de então, buscar compreender seu significado no grande conjunto da realidade humano-cósmica.

61 Tais missionários franciscanos “acreditavam sinceramente que na América iam instaurar uma Igreja pura, sem ruga e sem mancha, prognosticada pelo Novo Testamento e pelo profético monge Joaquim de Fiore” (América Latina: da conquista à nova evangelização, pp. 73-74). 62 Felipe é um inca nobre, educado na Espanha. Retorna ao Peru e, por vinte anos, luta, ao lado de seus irmãos indígenas, a quem chama de “os pobres de Jesus Cristo”, que correm o risco da erradicação. 63 Bartolomeu de las Casas é um encomendeiro que se converte e se faz religioso dominicano. Torna-se grande defensor dos indígenas e iniciador de um movimento cristão de denúncias ao rei das atrocidades cometidas contra os Índios. Suas obras mais importantes, “Brevíssima história de la destrucción de Indias” e “Apologética história”, têm grande influência na criação e alimentação das utopias americanas. 64 ”Este dizia que a dominação dos indígenas constituía o pecado original e capital do estado português” (Carta ao rei D. João IV, de 4 de abril de 1654)”, in América Latina: da conquista à nova evangelização, p. 64. 65 Patrus Ananias SOUZA, Leonardo Boff: um testemunho, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 45. 66 Paulo A. Nogueira BATISTA, Teologia e ecologia: a mudança de paradigma de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit. p. 118. 67 A Ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 80.

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Apresentando a teologia da libertação como verdadeira teologia, Boff

acentua que a revelação é sempre a fonte de fé onde ela bebe suas inspirações mais primigênias, e que ela deve ser lida a partir do hoje histórico. Por isso, a questão da libertação nessa teologia não pode ser algo arbitrário, resultado de uma opção apaixonada e emocional, mas nascido justamente como exigência da fé cristã. As práticas libertadoras são o sinal da veracidade que esses teólogos fazem uma opção por ver a realidade sócio-cósmica sob a ótica dos interesses dos pobres, na perspectiva de sua libertação, e todo o conteúdo do cristianismo passa a ser pensado por eles a partir dessa mesma ótica. Se as libertações históricas são manifestações e vislumbres da plena libertação futura, a teologia vive nessa relação dialética entre o hoje cronológico das libertações históricas e o hoje da plena libertação kairológica.

O seguidor de Jesus de Nazaré não pode se conformar omissivamente diante do risco do perigo de destruição que enfrenta hoje o planeta, ainda que haja possibilidade de a vida resistir e sair ilesa, qualquer que seja a forma que venha a tomar, nem diante das situações desumanas em que vivem aqueles a quem Jesus chama de “meus irmãos mais pequeninos” (Mt 25,40). A teologia da libertação reconhece a América Latina hoje como um lugar teológico privilegiado para a ação e a reflexão da teologia, pois aí o humano vive sérios problemas que dizem respeito à sua fé.

A teologia contextualizada, tal como Boff a desenvolve, evita generalizações, pois sabe que elas são niveladoras e ideologicamente perigosas. Por exemplo, enquanto para uma teologia progressista, sedimentada nos valores da sociedade democrática burguesa, a liberdade é um tema que pode, inclusive, ocupar espaço, interesse e preocupação em suas reflexões, a teologia na América Latina entende que a liberdade não existe em si mesma, mas enquanto práxis de libertação, que não diz respeito apenas a uma ou outra dimensão da vida, mas a toda a realidade vivencial do não-homem, do oprimido, das vítimas do desenvolvimento do modelo capitalista... Assim também, entende que ciência e técnica, ao mesmo tempo que representam a oportunidade humana de assenhoramento da natureza e do direcionamento deste mundo e da história, como promulga a teologia moderna, podem significar também, não raro, fatores de dominação e submissão por parte de pessoas ou organismos detentores do poder científico68. Da mesma forma se pode perceber que o desenvolvimento do Primeiro Mundo custa a dependência do Terceiro, e que não se pode falar genericamente em mundo, pois existe uma outra realidade de mundo de miséria humana, mais corretamente denominado de sub-mundo...69.

Por isso tudo, a preocupação da teologia de Leonardo Boff, hoje, já não está tão centrada no depositum fidei entendido como um corpo pronto e definido de doutrinas nas quais se deve acreditar. Do mesmo modo, ela não parte do princípio de que a religião deve apresentar, como mater et magistra, as soluções para todos os problemas do mundo. Assim como também não trata do grande problema teológico do mundo moderno, que é o distanciamento 68 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 86. 69 Que são as teologias do Terceiro Mundo?, Concilium/219: 18 (570).

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entre a modernidade e a fé cristã. Tampouco preocupada com a articulação fé-ciência, procurando responder ao homem crítico de hoje, exigente em termos de racionalidade e de demonstrações exatas; nem com a dialética homem secularizado-homem religioso. Antes, a teologia de Boff é uma nova epistemologia, “uma nova forma de fazer teologia: a partir da prática transformadora, de dentro da prática, como crítica dessa prática e para a prática da libertação”70. O “novo” dessa teologia está justamente em que “os pobres fundam um lugar social e epistemológico...”, lembrando como o próprio Boff afirma, que o “pobre”, aqui, é o indefeso, o que não tem voz, e por isso também o próprio cosmos71.

Boff promove uma verdadeira revolução metodológica na teologia, na medida em que promove uma correta articulação entre teoria e prática, fé e sabedoria, revelação de Deus e experiência humana, entre teologia e antropologia, entre novas categorias teológicas e novas posturas da cultura e do pensamento humano, entre cristianismo e outras tradições religiosas, entre linguagem dogmática e linguagem simbólica, bem como o uso correto do recurso dos métodos histórico-críticos de aproximação das fontes teológicas.72

No âmago do novo método está a questão já discutida da localização social e eclesial do teólogo. Seu lugar eclesial é a Igreja dos pobres, das comunidades de base, das pequenas comunidades de periferias, dos encontros bíblicos... São esses os lugares que condicionam o discurso do teólogo e determinam o curso de seu trabalho. Jamais ele é neutro: vida, lugar social e reflexão teológica formam um só conjunto. 4.1- Articulação sacramental da teologia da liberta ção

A articulação sacramental da teologia começa por uma constatação da miséria da realidade humana, das esperanças de libertação, na comunhão e na participação. Esse primeiro passo consiste num sentir a situação desumana da realidade e anti-ecológica no trato com as criaturas deste mundo.

Brota então uma indignação ético-religiosa. Para melhor compreendê-la, Boff recorre a Merleau-Ponty que diz que “uma pessoa não se faz revolucionária pela ciência, mas sim pela indignação. A ciência vem depois para encher e precisar este protesto vazio”73, e ao conhecido sociólogo da religião, Emile Durkheim em sua afirmação de que na origem do cristianismo se encontra uma paixão: pela justiça e pela redenção dos explorados74; A leitura que esse modelo faz da realidade conflitiva manifesta uma intuição de fé sobre a realidade percebida e desenha pistas de ação transformadora. O sentir e indignar-se com as realidades de opressão e miséria dos pobres e de 70 A originalidade da teologia da libertação em Gustavo Gutierrez, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 48, fasc. 191: 533. 71 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 98; cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 169. 72 Juan José TAMAYO, Leonardo Boff: no horizonte da teologia da libertação e da ecologia, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 87. 73 Humanisme et terreur, Paris. Galimard. 1956, p. 13; 74 Le socialisme. Sa définition. Ses débuts. La doctrine saint-simonienne, Paris, 1928; PUF, Paris, 1992, passim.

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depredação desenfreda dos recursos da terra despertam na comunidade cristã uma ação de solidariedade. De uma prática de assistência à pobreza ou de ecologia burgueza, a teologia passa a uma postura profética, com práticas éticas e sociais de libertação e de promoção da pessoa e do cosmos.

Entre outros valores, essa via teológica alcança uma superação do

intimismo e privatização da mensagem cristã, além de vincular a pessoa e o projeto libertador de Jesus Cristo às realidades históricas. Às vezes, tal teologia se mune de sérias pesquisas exegéticas e teológicas, chegando mesmo a críticas sérias no que diz respeito aos modelos de Igreja, às imagens de Cristo das diversas cristologias populares... Embora já significando um passo para o pensamento mais elaborado, os momentos de sentir, protestar e fazer não vão além de uma reação da própria fé sensibilizada diante da realidade opressiva em todos os âmbitos.

As limitações ficam principalmente por conta da eficácia política. Seu alcance na luta contra a pobreza, bem como nas medidas práticas quanto à presevrvação do meio ambiente é bastante tímido, uma vez que carece, de um lado, do enfoque sócio-analÍtico da realidade, e de outro, do recurso das análises da cosmologia, da física, da psicologia transpessoal... Dentro dessa forma de compreensão teológica, “pode ocorrer que os grupos sejam teologicamente (teoricamente) revolucionários e por suas práticas sejam conservadores ou meramente progressistas”75. Faltando uma análise científica acurada e crítica, a práxis dessa articulação teológica se torna acentuadamente pragmática. De uma práxis do amor engajado, mas de curto alcance; sua eficiência e durabilidade são imprevisíveis, também porque expressam a dimensão emocional da pessoa. 4.2- Articulação sócio-cósmico-analítica da teologi a da libertação

O teólogo da reflexão libertadora de caráter científico e crítico também faz a experiência da indignação. Mas ela se fundamenta e se constrói através de mediações básicas que integram a relação profunda entre o hoje cronológico, das realidades sociais, e o hoje kairológico, das realidades da fé. Dessa relação deriva uma práxis que pretende ser libertadora. Os três passos do método constituem na análise da realidade, a reflexão teológica e a dedução de pistas de ação pastoral, mais tecnicamente chamadas de mediação sócio-analÍtica, mediação hermenêutica e mediação prático-pastoral. Esse método deriva já da Gaudium et Spes e tem se oficializado nas Conferências Gerais mais importantes do Episcopado do Continente, como em Aparecida. Constitui uma revolução metodológica na teologia76, e corresponde

75 A fé na periferia do mundo, p. 20; cf. tb. Jesus Cristo Libertador, 21. 76 A fé na periferia do mundo, p. 21; cf. tb. A salvação nas libertações; o sentido teológico das libertações sócio-históricas, in Leonardo BOFF & Clodovis BOFF, Da libertação; o teológico das libertações sócio-históricas, pp. 13-21; cf. tb. O Caminhar da Igreja com os oprimidos, pp. 188-191; cf. tb.Leonardo BOFF & Clodovis BOFF, Como fazer teologia da Libertação, p 40-63; cf. tb. Teologia do Cativeiro e da libertação, p. 31; cf. tb. E a Igreja se fez povo; Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo, pp. 103-104; cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 170-172; cf. tb. Teologia da Libertação: o mínimo do mínimo; Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 38, fasc. 152: 696-705; cf. tb. Clodovis BOFF, Teologia e prática; teologia do político e suas mediações, p . 378.

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ao que classicamente se chama, já desde os tempos da Ação Católica, de método do ver, julgar e agir.

Hoje, tendo em vista a já anunciada mudança de paradigma, no pensamento boffiano se faz necessário ampliar a análise sociológica por mediação sócio-cósmico-analítica.

O primeiro passo metodológico dessa teologia criticamente libertadora, a mediação sócio-cósmico-analÍtica, consiste na análise e conhecimento das realidades dentro das quais se pretende descobrir o teologal. Tal conhecimento se dá a partir de reflexão científica portadora inclusive da utopia da busca duma sociedade igualitária e transformada em comunhão com toda a realidade criacional . Por isso, o trabalho teológico supõe a opção por uma teoria explicativa da sociedade e da evolução cósmica. Escolhe-se, então, o caminho de uma análise sociológica não funcionalista, como preferem as classes dominantes, mas, dialética que, considerando a sociedade de baixo para cima, consegue ver de onde brotam os conflitos e desequilíbrios sociais. Da mesma forma, no que tange à compreensão da totalidade planetária, não se pode prescindir da mediação da nova cosmologia, da nova física, das ciências transpessoais... Enfim, “a fé há de optar por aquele tipo de análise que mais se coaduna com a sua direção...”77

O ethos cultural do capitalismo é sustentado por uma visão própria da vida e da morte, das relações com o outro, com os bens, com a terra e com o Transcendente..., alimentando a dependência em todos os níveis, seja no sistema econômico, seja na divisão do trabalho, na cultura, na política, na religião... uma dependência, enfim, que assume forma de opressão, usando inclusive da força para se manter. Para compreender a gravidade da situação de dependência, é necessário “descer a uma consideração de corte estrutural e cultural”78. Uma análise verdadeiramente crítica da realidade mostra que a questão cósmico-social e a existencial co-existem na mesma unidade da pessoa. Urge, pois, um tipo de análise da realidade que busque levar a pessoa humana e a sociedade à transformação desse ethos cultural. Dessa feita, essa mediação supõe inclusive a superação das análises de corte meramente sociológico ou das ciências do humano. Por isso, se diz que o instrumental de análise sócio-cósmica feita pela teologia de Boff é de corte estrutural-dialético.

A análise conta com a pressuposição da opção preferencial pelos pobres e pela cosmovisão interativa de toda a realidade como atitude evangélica. O conhecimento do racionalismo elaborado pelas classes dominantes também é necessário, pois permite conhecer mais profundamente o emaranhado, às vezes ingênuo, às vezes proposital, dos interesses de classe que estão por detrás de suas afirmações religiosas e teológicas. A reflexão sócio-cósmico-analítica conta com uma complementar reflexão filosófica que lhe permite discernir as visões de realidade histórica, de ser humano, de sociedade, de mundo... que lhe são passadas pela cosmovisão capitalista, daquelas que lhe parecem ser mais humanas, sadias e realizadoras. 77 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 36. 78 A fé na periferia do mundo, p. 25.

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Em seguida se dá o passo da leitura teológica específica, e por isso com uma dimensão epistemológica que se caracteriza pelo protagonismo da realidade da fé. Se antes, na mediação sócio-cósmico-analÍtica, se procura conhecer a realidade como um todo, agora, a tarefa é a de descobrir o teológico aí presente. O trabalho hermenêutico, com as mediações anteriormente anunciadas, ajuda a aprofundar e a atualizar o conhecimento do texto bíblico, de forma que ele possa julgar a realidade social e cósmica. O juízo, feito à luz da fé, permite entender os descaminhos como pecados, quando ofendem a dignidade humana e a da terra. Critérios especificamente bíblico-cristãos são esses do juízo crítico, e têm como olhar fixo e comum o advento do Reino pregado por Jesus.

Finalmente, a articulação entre a realidade de fé e a realidade social alcança um terceiro momento, que é o da prática consequente do juízo crítico feito pela Palavra de Deus sobre a realidade total. O cristão, por imperativo primordial de sua vocação, se compromete simultaneamente com as realidades transcendentais e com as históricas. A práxis que se estabelece deriva desse suplo compromisso. A articulação em questão lhe possibilita integrar vivência litúrgica, catequética e sacramental com, por exemplo, opção e militância políticas, práticas sociais de variados portes, com gestos ecológicos e atitudes comprometidas, fruto do confronto entre o kairós da fé e o chronos da realidade humano-social.

A teologia é reflexão que parte fundamentalmente da fé, e por isso pode

se elaborar simultaneamente em três níveis: orante, lógico-sistemático e ético-praxÍstico79. Mas, no concreto, o teólogo prioriza a compreensão de fé como simultaneamente atitude e práxis. Devido a essa concepção se diz que a teologia da libertação, com ponto de partida na fé comprometida com a transformação, é uma teologia que leva da práxis para a práxis, tentando discernir as práticas que levam à libertação daquelas que reforçam a opressão. A pregação de Jesus sobre Deus ilumina-lhe e caracteriza sua ótica de fé, que passa a ser concebida não mais apenas como um dado interior e subjetivista, mas como constituindo-se numa experiência e numa práxis libertadora. Como práxis, a fé opera pela caridade, preocupada com a justiça, a solidariedade, a política cósmica e o amor fraterno. Por isso, a teologia, à luz da fé e na ótica do pobre, exerce também um papel crítico en relação à pessoa, à Igreja e à sociedade.

Outras teologias no Primeiro Mundo que também partem da compreensão de fé como práxis, como a teologia da esperança, da revolução, da política... embora vistas com reservas por teólogos latino-americanos devido às suas generalizações, é certo que oferecem contribuições muito bem vindas ao pensamento libertário da América latina.

Boff parte do princípio de que, além de qualquer particularismo confessional, “toda práxis libertadora revela uma dimensão teológica” e soteriológica80. Por isso, teólogos protestantes, hoje, falam da teologia de Boff ao mesmo tempo num caráter de continuidade, enquanto reassume os valores 79 Antropologia teológica; o homem à luz do projeto teológico, p. 5. 80 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 77.101.

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e as concepções clássicas da teologia, e de descontinuidade, enquanto articula essa mesma teologia com uma nova construção teológica praxística da Teologia do Pluralismo Religioso, voltada sobretudo para uma grande dialogação teoantropocósmica81.

Assim, a reflexão sobre a libertação que envolve a vida humana e o cosmos, tem, em si mesma, sempre, uma conotação teológica quando integra o humano e o universo com Deus. A tonalidade prática da teologia da libertação vem à tona quando a fé, interrogada pelo grito da terra e dos pobres, relê os temas clássicos da teologia como manifestações do Deus libertador da Bíblia. Assim, o tema Deus deixa de ter o enfoque das categorias metafÍsicas abstratas para ser aprofundado em relação à vida: Deus é o Deus da vida, e como tal, coloca-se ao lado dos que a têm ameaçada. A Trindade de Deus, revelada por Jesus Cristo, passa a ser entendida, em primeiro lugar, não sob os conceitos gregos e romanos de pessoa, substância, natureza, etc..., mas sob a dimensão de um Deus-comunhão de divinas pessoas, que busca envolver em sua comunhão pericorética todos os humanos e todo o cosmos. O Verbo encarnado deixa de ser estudado através das categorias filosóficas abstratas; desloca-se o acento de sua compreensão da encarnação (gregos) e da paixão e morte (latinos) para sua vida histórica, sua prática que produz o Evangelho, na medida em que a pessoa humana passa a ser valorizada acima das instituições, o pobre manifestado como objeto de amor preferencial de Deus, os doentes curados, os cegos recuperando a vista, os pecadores perdoados... O sentido de Reino de Deus ultrapassa o de domÍnio divino triunfalista sobre a história para alcançar o de domÍnio do amor, da realização pessoal e comunitária, da justiça, da paz e da fraternidade sobre as realidades humana e de toda criatura... A Igreja deixa de ser entendida como sociedade perfeita e ultrapassa mesmo a concepção espiritual globalizante de povo de Deus (cf. LG II; DP 232), para ser vivenciada como a Igreja dos pobres, cuja alma é o EspÍrito Santo vivificador e pai dos pobres, que gera comunidade, compromissos e obras libertadoras em todos os setores da existência humana e cosmológica... Todos esses temas, com suas derivações, são sempre focalizados e compreendidos a partir da utopia evangélica de um homem realizado consigo próprio, com Deus e com as demais criaturas, de um mundo de irmãos e irmãs que se constrói à medida que se transformam as relações e estruturas sociais... Ou seja, a teologia da libertação desenvolve uma nova maneira de pensar Deus e todas as coisas a Ele ligadas, É dessa ótica do pobre e do excluído e de um mundo espoliado pelo egoísmo que a teologia latino-americana se elabora em uma epistemologia particular e constrói seu painel teórico-prático.

81 Paulo A. Nogueira BATISTA, Teologia e ecologia: a mudança de paradigma de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 126.

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4.3- Lugar social e lugar epistêmico da teologia

A ciência teológica como tal se situa, simultaneamente, num regime de autonomia e noutro de dependência. Enquanto ciência autônoma, diz-se que ela tem um lugar epistêmico; enquanto ciência dependente, um lugar social82.

Como ciência portadora de uma epistemologia, a teologia é autônoma enquanto tem suas regras internas de elaboração, sua própria metodologia, sua legitimidade e seus próprios critérios de verdade. A epistemologia trata do regime interno da ciência e, como tal, não tem juízo de contextualização, razão pela qual, epistemologicamente não se fala em teologia latino-americana ou teologia moderna, teologia secularizada ou radicalmente espiritual, teologia progressista ou reacionária, teologia do dominador ou do oprimido, teologia dos ricos ou dos pobres... A rigidez científica da teologia não diz respeito a esses adjetivos, o que não impede, porém, que o regime científico interno possa se tornar de caráter libertador ou reforçador de um regime de opressão...

Por outro lado, a teologia tem também um regime de dependência. A ele se submete todo pensamento teológico; é de caráter externo e diz respeito à sociologia do conhecimento. A reflexão teológica, portanto, não parte apenas de suas regras internas, nem só da Bíblia, da Tradição, do Magistério eclesiástico, mas também da realidade cultural. A leitura teológica propriamente dita é mediatizada por uma leitura cultural83. Trata-se do lugar social de um pensamento teológico.

A questão do lugar social da teologia constitui o espaço mais comum

das tensões teológicas dentro da Igreja. Isto é, as diferenças de uma teologia para outra indicam lugares sociais diferentes a partir dos quais se racionaliza a fé Mas, Boff não restringe as tensões apenas para o lugar social, mas para a articulação dos dois lugares, o social e o epistêmico, isto é, à proposta que fazem as novas teologias de uma releitura da realidade social à luz da fé..

O lugar social é tão importante na elaboração teológica que ele tem força para direcionar um pensamento científico. Na verdade, “o lugar social origina o lugar epistêmico”84, não no sentido em que dita as regras internas da teologia, mas enquanto “permite uma determinada elaboração de idéias e de visões do mundo”85. Na teologia da libertação esse lugar hermenêutico se faz na periferia do sistema de poder; não se aceita o tipo de sociedade que está aí, nem sua prática espoliadora do planeta, como se conclui por uma rigorosa análise sócio-cósmica.

Não obstante sua veemência e tenacidade nas afirmações a respeito da teologia da libertação, o teólogo reconhece limites em seu processo. Limites, porque, devido à necessidade urgente de transformação das dimensões sócio-políticas e das relações ecológicas, há sempre o risco de se esquecer ou

82 A fé na periferia do mundo, pp. 16-17; cf. tb. Jesus Cristo Libertador, pp. 17-18; cf. tb. João B. LIBÂNIO, Teologia da Libertação; Roteiro didático para um estudo, pp. 123-125. 83 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 87. 84 O caminhar da Igreja com os oprimidos, 168. 85 Ibid., p. 168.

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relegar a um segundo plano a necessidade fundamental de conversão pessoal, a busca da perfeição cristã... Há sempre o risco de se sobrexaltar a dimensão da imanência e desconsiderar a dimensão da fé, ocupando todo o seu espaço; não só a política, diz ele, é dimensão urgente da fé, mas também a expressão mística, litúrgica, pessoal...86 Por isso, sendo Deus mistério, toda linguagem teológica racional deve ter consciência de que sua apresentação ainda não é Deus, mas um caminho para ele; assim, deve sempre de novo remeter ao mistério: “a teologia cessa, então, de ser teologia, para ressuscitar como mística e experiência de Deus”87. Fecha-se, então, o círculo hermenêutico que leva o humano da fundamental experiência de Deus à reflexão teológica, que o envolve com Deus e com todas as realidades, e daí, novamente à mística da experiência fundamental. Com essa perspectiva, Boff apresenta, uma vez mais, o corte antropológico como chave de leitura de todo o processo teológico libertário.

5. Libertação: compromisso com um “ modo de vida sustentável ”

O ser humano é originariamente um “ser cativo”, pois vem a este mundo modulado por uma realidade existencial que Boff denomina de “cativeiro inocente“88, aquela situação criacional, existencialmente paradoxal e ambígua em que todo ser humano, chamado para a totalidade, experimenta simultaneamente a realidade do limite e da fraqueza. Não se trata de pecado, nem resultado de qualquer opressão exterior, mas de sua condição de criaturalidade no mundo.

No entanto, tal ambigüidade, em si mesma mais um desafio que dimensão negativa, se desdobra na gama humana de liberdade, abrindo, por isso, a possibilidade do exercício indevido do então limite inocente. A realidade humana, pessoal e social, de liberdade compreendida e vivenciada como egoísmo, num jeito de viver estrangulado pela ganância, competição, pecado... testemunha que, a partir daí, instala-se para o ser humano uma escravidão moralmente má, um cativeiro culposo: “ruptura do homem com seu sentido transcendente e dilaceramento da tecedura social; não conseguimos mais ver a face do outro como irmão”89. Todas as dimensões do humano, então, são atingidas e modificadas por tais opções anti-éticas.

Fala-se então da necessidade de uma libertação integral da pessoa humana. “Por integral entendemos que a libertação passa por um processo onde cada etapa alcançada está aberta a um mais, até a plenitude escatológica”90.

No entanto, a crise da pessoa e da humanidade pode se tornar também a oportunidade de um novo salto complexificador, e por isso, mais evolutivo, mais perfeito, possivelmente caracterizado pela interdependência, pelo crescimento na solidariedade, sinergia e cooperação, pelo cuidado, pela

86 Igreja: carisma e poder, p. 47. 87 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 141. 88 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 94. 89 Ibid., pp. 55-56. 90 Ibid., p. 47.

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fraternidade, pela responsabilidade, espiritualidade e sabedoria, por um novo mundo, por uma nova civilização91...

Dessa forma, a história do mundo todo e de sua evolução passa a ser entendida sob a ótica libertadora, e todo processo de libertação histórica, como movimento de progressiva complexificação cósmica e de hominização. Assim, a história de todo o cosmos, desde seu surgimento há 4,44 bilhões de anos, bem como do homo habilis, há aproximadamente 1,5 milhão de anos, e depois, desde a noogênese até o homem informatizado de hoje, constrói um processo de libertação. Da mesma forma, todo progresso, todas as conquistas materiais e espirituais da humanidade constituem sinais de um movimento globalizante de evolução cósmica e de hominização.

Mas o planeta, como meio ambiente natural do ser humano, também experimenta as conseqüências do cativeiro culposo da humanidade. O pecado leva o ser humano a desrespeitar não só a Deus e ao próximo, mas também a natureza, pensando que seus recursos são inesgotáveis e que, consequentemente, o progresso pode ser ilimitado. Mas a natureza se rebela e mostra sinais disso em fenômenos desastrosas que assolam o planeta e assustam a humanidade que, não obstante isso, faz resistência a mudanças: a diminuição dos recursos hídricos, o superaquecimento global, os tufões, os tsunamis, os degelos das calotas polares, a desertificação, as secas, as enchentes... Ou seja, pelo pecado, o ser humano tem o poder de destruir-se a si mesmo e ao planeta.

Na busca das possíveis causas desse perigo descobre-se que elas são estruturais e complexas, e não se rendem a uma análise simplista. Mas, pelo menos um princípio se mostra com clareza como causa da violência generalizada à vida humana e planetária: a competitividade e a concorrência ilimitadas92, sinais inequívocos do estado humano de cativeiro culposo.

Ao referir-se ao processo de remissão do humano por sua atitude de ruptura generalizada, isto é, por seu pecado, Boff observa que o Concílio de Trento não articula a “justificação” do pecador em termos processuais e históricos, razão pela qual é melhor traduzir hoje “justificação“ por “libertação“: “é a mesma realidade, mas vertebrada em sua dimensão humana e histórica”93. A morte de Cristo na cruz não tem o sentido de apaziguar a ira de Deus, mas de libertar integralmente a pessoa humana. Libertação, portanto, que significa re-ligação de todos os seres entre si e com o Ser essencial94.

Na origem do processo de libertação está Deus, e compete à teologia debruçar-se sobre essas manifestações e buscar nelas o que de teologal apresentam. Por essa razão, deve a teologia integrar fé e vida, que se desdobra em aspectos de economia, política, cultura, ecologia..., realidades que são “articulações do Mistério que por elas se dá e se retrai. A libertação

91 Homem: satã ou anjo bom?, p. 220. 92 Ibid., p. 21; Terra e Humanidade: uma comunidade de destino, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. LXX, fasc. 277: 186-187. 93 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 183. 94 Homem: satã ou anjo bom?, p. 136.

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também é então teologia“95, graças a seu caráter simultaneamente antropológico e teologal.

A teologia bíblica, associada a uma antropologia teológica, lembra continuamente que todas as dimensões da história estão integradas no plano e desígnio de Deus e que o humano é ser de abertura ao Transcendente, vivendo essa experiência em suas concreções religiosas, sociais, políticas, culturais, ideológicas... O caráter de convivência da dura realidade da opressão humana e da contemporânea agressão ao meio ambiente com a esperança do humano e da re-ligação e re-irmanização com todo o cosmos, faz da mensagem cristã uma mensagem libertadora, que leva Boff a integrar os dois conceitos, falando de uma “teologia do cativeiro e da libertação“.

Quando, nos anos 90, fatos históricos decisivos já citados levam a teologia da libertação a perceber a necessidade de articular-se com o discurso ecológico, ampliando seus horizontes, ela se vê urgida a recriar categorias de análise. Descobre que teologia e discurso ecológico partem de um mesmo princípio: o respeito (ou desrespeito) à vida. Ambos procuram a libertação: a primeira, dos pobres; o segundo, da terra. Faz-se urgente descobrir a aproximação dos dois discursos, pois, ainda que diferentes, eles se complementam. A opressão social e coletiva leva também à opressão planetária. Mas o referencial é o mesmo, em ambos os casos: opressão/libertação, numa perspectiva globalizadora.96

O paradigma da ecologia amplia a compreensão de libertação, conjugando a práxis de transformação sócio-político-econômica com a prática ecológica. Com seu fundamento dialogal, integrador e teoantropocósmico, busca a religação de todas as realidades numa fraternidade cósmico-universal.

Se, ao modo dos teólogos do mundo inteiro que, nos tempos pós-conciliares se perguntam numa preocupação epocal “como ser cristão num mundo crítico, adulto, funcionalista?”, e de Karl Rhaner que se questiona, a partir da secularização, sobre como pode um homem moderno honestamente crer97, nos primeiros momentos da teologia da libertação se pergunta como se pode ser cristão num mundo de miseráveis98, como enfrentar os desafios que o ser humano encontra neste continente, como resgatar a força de libertação da fé cristã99. 95 América Latina:da conquista à nova evangelização, p. 86; cf. tb. A salvação nas libertações; o sentido teológico das libertações sócio-históricas. In Leonardo BOFF e Clodovis BOFF, Da libertação; O teológico das libertações sócio-históricas, pp. 24-25; cf. tb. A originalidade da Teologia da Libertação em Gustavo Gutierrez, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 48, fasc. 191:538. 96 “Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma”, in Marcio F. dos ANJOS (org.), Teologia e novos paradigmas, p. 76. 97 Curso fundamental da fé; Introdução ao conceito de cristianismo, p. 12. 98 Citado em A salvação nas libertações; o sentido teológico das libertações sócio-históricas. In Leonardo BOFF & Clodovis BOFF, Da libertação; O teológico das libertações sócio-históricas, p. 44; cf. tb. Igreja: carisma e poder, p. 45. 99 ”A teologia e a Igreja para libertarem não precisam se filiar a uma ideologia revolucionária ou socializante...O que a teologia e a igreja necessitam é acionar o tesouro de sua própria riqueza libertadora e tematizar o que já está implÍcito dentro de seu próprio horizonte” (Teologia do cativeiro e da libertação, p. 68).

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5.1- A pobreza como esquizofrenia radical humana e o processo de libertação

A expressão histórica mais evidente da situação de cativeiro e pecado, segundo Boff, é o empobrecimento da sociedade, de modo que “hoje, é na dimensão social que Deus-Pai é ofendido maximamente”100. A prosperidade e o desenvolvimento de uma sociedade não se julgam por suas conquistas científico-técnicas, mas pela qualidade de vida de seu povo; por isso, o critério de julgamento de uma sociedade são seus pobres101. O fato de existirem constitui uma mancha no esforço humanizante de qualquer sociedade.

Através da pobreza, a pessoa experimenta basicamente a morte, desde a de seus projetos até a sua própria morte biológica, e a não-solução dela mantém o humano numa primitividade pré-histórica102. A pobreza sócio-econômica desestrutura a pessoa em todas as suas dimensões. Mas, muito embora certo tipo de reflexão filosófica, sociológica, mas inclusive espiritual e teológica tenha tentado e conseguido por tempo relativamente longo dar uma característica mística à pobreza, num reforço ao sistema opressor vigente, o potencial evangélico volta hoje a questionar e a mostrar com a Bíblia que a pobreza jamais pode ser um bem em si mesma.

Numa visão sócio-analítica dessa realidade, verifica-se que a ciência e a técnica se transformam em instrumentos poderosos dessa escravização e ajudam a manter na dependência escravizante a América Latina e outros países de periferia. Uma visão meramente positivista do mundo se manifesta no acúmulo do saber e do poder técnico nas mãos de poucos, no empobrecimento de nações inteiras, na destruição do meio ambiente, no uso militar das descobertas científicas, nas manipulações genéticas, na ideologização dos meios de comunicação de massa, etc... O ethos cultural dominante não permite ao humano ser mais humano, pois, além de anti-evangélico é também anti-humano. À semelhança do escritor bíblico que lança sua lamentação aos céus, gritando que “já não vemos nossos sinais, não existem mais profetas, e dentre nós ninguém sabe até quando” (Sl 74,9), Boff refere-se à sociedade humana corrompida em sua estrutura funcional, dizendo que já “não há nenhum recanto em que ela se encontre sadia e simétrica... todos vivemos no cativeiro que exaspera a ânsia de libertação sempre buscada e quase sempre frustrada; vivemos numa situação de decadência estrutural e institucionalizada”103.

O despertar para o mundo dos pobres e a emergência da consciência libertadora na América Latina se concretizam historicamente especialmente na esfera sócio-política. Aí a libertação encontra uma concreção prioritária. É a partir dessa ótica que a totalidade do humano na América Latina vê, entende e filtra sua compreensão de todas as demais realidades; ao mesmo tempo que se torna critério de veracidade de todo esforço de libertação sócio-política.

100 Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 62. 101 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 239. 102 Saber cuidar; Ética do humano – compaixão pela terra, 141. 103 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, pp. 55-56.

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Historicamente, a Igreja sempre tem se voltado para a problemática da pobreza. Paulo fala com clareza dessa preocupação (cf. Gl 2,10), e a história da Igreja está repleta de casos e situações que revelam a compreensão do pobre inserido no seu mistério104. Na América Latina, essa problemática atinge uma maturidade teológico-pastoral e sócio-analítica, numa compreensão do pobre como elemento de centralidade teológica político-transformadora.

O processo de desumanização proveniente do empobrecimento atinge tanto o pobre quanto o rico; àquele, pela exclusão generalizada; a este, pelo enrijecimento na insensibilidade e na falta de solidariedade. Por isso, também o processo de libertação deve fazer caminho inverso: criar no rico espaço para a solidariedade e a justiça, e devolver ao pobre seus direitos humanos mais fundamentais.

Mas a liberdade não consiste apenas em dizer não às opressões sócio-político-econômicas, às dependências de sistemas ideológicos globais, aos comportamentos tradicionais mais conformes à lógica da exclusão que à da dignidade... e nem é uma simples qualidade humana, ou uma possibilidade de optar entre uma realidade ou outra. O processo libertário é um dinamismo ântropo-teológico universalizante, pois, na origem de toda opressão e alienação está uma “esquizofrenia radical que afeta a raiz da personalidade humana”105, a “corporificação de um desvio mais profundo do homem, atingindo o sentido fundamental de ser e de viver compreendido como poder-conquista-dominação, gerando opressão, repressão, e regime global de cativeiro”106. Emerge historicizado um sistema de iniquidade, de desumanização, de exclusão de tantos e de acumulação de riquezas para poucos; as pessoas interiorizam o processo pecaminoso do sistema, assumem a sua filosofia e se tornam seus agentes de manutenção e continuidade107.

Por isso duas pontas do existir humano se tornam o foque de uma real libertação: o direito à própria identidade e história, e a vocação humana à convivência social fraterna e solidária. Então, muito embora o processo se expresse polarizadamente através de termos da linguagem sócio-política, na verdade ele representa a busca de uma libertação última, global e totalizante. Ele é a concretização histórica da libertação de Deus. Então se entende que a libertação é simultaneamente humana -porque efetivada pelo humano em sua liberdade- e de Deus, que move e penetra a ação humana108. 5.2- O planeta “terra” à espera da libertação

Mas, em A águia e a galinha, Leonardo inicia um processo de autocrítica da teologia da libertação. Conceitua que esta deve ser, ao mesmo tempo, libertária e ecológica: é necessário libertar a pessoa em todas as suas

104 E a Igreja se fêz povo; Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo, pp. 34 e 35. 105 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 106; cf. tb. O rosto materno de Deus, p. 156. 106 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 141; cf. tb. O Pai Nosso; A oração da libertação integral, pp. 133-134. 107 O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 134; cf. tb. Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 109. 108 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 184.

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dimensões na lei do amor e da compaixão. Por isso, não dá para pensar em libertação sem o referencial cósmico.

Inicialmente a teologia da libertação não comporta uma preocupação ecológica explícita. No entanto, não é difícil perceber que suas intuições básicas estão prenhes da questão. Embora pensado dentro de um horizonte histórico-social bem determinado, “o pobre e o oprimido são membros da natureza, e sua situação representa uma agressão ecológica”109. Sem dúvida, a opção pelo pobre e por sua libertação continua sendo o eixo fundamental da teologia da libertação. Não há dúvida que no processo predatório dos recursos naturais ao longo da história da humanidade, são os pobres os mais afetados pelos seus efeitos. Então, é a partir dessa premissa que a teologia da libertação trata da questão ecológica, pois, a lógica que justifica a exploração e abuso do pobre é a mesma da exploração humana irracional e impiedosa da natureza.

Com este novo paradigma, amplia-se o horizonte da teologia da libertação. Compreende-se que pobreza e questão ecológica compõem harmonicamente a questão fundante desse enfoque teológico. Os pobres e a terra se encontram num só e mesmo grito, e a teologia deve sensibilizar-se à sua escuta, pois, a criatura oprimida geme dores de parto, aguardando a libertação e a glorificação junto com os filhos de Deus (cf. Rm 8,19-21). A opção pelos pobres, dado tão marcante da teologia na América Latina, inclui a criação em sua situação de ameaça, de desrespeito e de perigo.

Por isso, toda a humanidade está convocada a um pacto sócio-ecológico que busque salvar o planeta, a partir do estabelecimento de uma “democracia sócio-cósmica”110. Esta consiste na participação da natureza do convívio dos homens, e estes, do convívio cósmico. Pois a terra está articulada com a totalidade do cosmos, e homem e mulher são expressão inteligível e amorosa do universo. Por isso vida do planeta, que depende, ao mesmo tempo de forças incontroláveis da natureza, e de outras controláveis pela responsabilidade humana, é essencial para a sobrevivência da espécie humana.

A marca da ecologia presente na teologia de Boff segue o processo de amadurecimento da própria compreensão de ecologia, que de uma preocupação regionalizada com a preservação de algumas espécies (baleias, urso Panda, mico-leão-dourado...) e das florestas tropicais, evolui para uma outra globalizada que entende que toda a terra está ameaçada, doente, e precisa ser curada. A partir dessa nova compreensão se desenvolve então uma vigorosa crítica social111.

Desde o surgimento do homo habilis, há mais de 1,5 milhão de anos, a relação humana com a natureza tem estado desequilibrada. O ser humano é hoje “um asteróide terrível” que devassa a terra. Irrompe o risco da falta de

109 “Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma”, in Márcio F. dos ANJOS, Teologia e novos paradigmas, p. 80. 110 Ibid., p. 86. 111 Ibid., p 78.

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respeito e da negação da alteridade da natureza112. Apesar de a intervenção planejada e sistemática nos mecanismos da natureza pela civilização moderna trazer imensos benefícios, tem custado à terra a modificação em sua base físico-química, a danificação da biosfera, da biodiversidade e a possibilidade da auto-destruição. Tudo na vida social (saúde, educação, cultura, religião...) gira ao redor desses interesses inescrupulosos, qualquer que seja o custo social ou ecológico a se pagar. O ser humano é mero reprodutor desse dinamismo que faz tudo girar ao redor da competição. Enfim, cosmos e sociedade humana, tudo parece caminhar para uma situação de desintegração generalizada. Após séculos de intervenções desse tipo só hoje se pode perceber mais claramente as conseqüências desses gestos exploradores.

Concluindo, diga-se que, mais que temas, pobre e natureza são para Boff “sua própria identidade, sua própria essência, humana e cósmica ao mesmo tempo”113. A existência de mais de três bilhões de pessoas no mundo vivendo em extrema pobreza e a violência contra a terra gerando um irracional e impiedoso desequilíbrio constituem dois parâmetros que sangram como duas feridas abertas no coração e no pensamento do teólogo. Por isso, para ele, são estes os dois principais desafios do cristianismo hoje. 5.3- Alternativas de libertação humana e ecológica

Ao pessimismo, frustração e indignação despertados pela COP 15 de Copenhague114 ao tratar da questão do aquecimento global, Boff acrescenta uma análise negativa das alternativas comumente propostas como soluções para a questão da desintegração antropocósmica115. Por isso, o teólogo propõe aquela postulada pela que vem sendo chamada de Carta da Terra, com sua opção radical por um modo sustentável de vida em todos os níveis. Ela tem a visão que melhor sintetiza as aspirações da humanidade hoje. Os grupos que formam essa “Sociedade de Sustentação de Toda a Vida”, oriundos da Carta da Terra, são os únicos resquícios possíveis para a continuidade do projeto civilizatório humano em caso de confirmação do desastre humano-ecológico que se anuncia116.

Antes de tudo, é fundamental ter clareza de que a situação de tragédia é real; depois, se deve resistir ao mal, colocar-se consciente e absolutamente a favor do bem; entender que o mundo não sai pronto das mãos de Deus, mas por se fazer. Jesus de Nazaré, independentemente da fé que alguém possa ter, é sempre modelo e inspiração de enfrentamento do mal: não explicando-o,

112 Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 55; Homem: satã ou anjo bom?, p. 58. 113 Juan José TAMAYO, Leonardo Boff: no horizonte da teologia da libertação e da ecologia, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 86. 114 Terra e Humanidade: uma comunidade de destino, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. LXX, fasc. 277: 187. 115 O social-liberalismo, também chamado neokeynesianismo, que entende que o motor da economia é o mercado, é contraditório por sua opção pelo mercado; o ecossocialismo, que postula o cuidado do social e do ecológico com aberturas para outras formas de convivência, tem amplas possibilidades se não vier a perder de vista o biológico; o pós-capitalismo, que desloca o sentido da economia do acúmulo para a produção dos bens necessários à vida, é irrealizável por falta de vontade política e social... 116 Homem: satã ou anjo bom?, p. 19-20.

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nem teorizando sobre ele, mas combatendo-o e mostrando-se compassivo para com os sofredores. Optar por ele é entrar na luta por seus mesmos ideais.

Nesse tempo de crise humana e ecológica, para que a libertação possa de fato ser real, exige-se de todos a vivência de três virtudes: a audácia (coragem de tomar decisões e de pôr em prática iniciativas arrojadas), a prudência (atitude de escolher o melhor caminho, com mais vantagens e menores riscos) e a temperança (sabedoria que sabe dosar equilibradamente audácia e prudência)117.

No entanto, há valores de resistência capazes de remeter o humano de volta à originalidade de sua existência: a cooperação, a amizade, o amor, a compaixão, a devoção, o cuidado..., valores que fazem emergir a humanidade de seu estado primitivo de animalidade para a espécie humana. São os únicos capazes de fazer frente aos “valores” da competitividade do interesse egoísta e do mercado, bem como de resgatar a aliança perdida do humano com Deus, consigo mesmo e com todo o cosmos.

A “Carta da Terra”, de cuja redação o teólogo tem orgulho de ter participado, é um documento de rica densidade ecológica, ética e espiritual, estruturado em quatro princípios fundamentais: respeito e cuidado da comunidade de vida; integridade ecológica; justiça social e econômica e, finalmente, democracia, não-violência e paz. O princípio do “desenvolvimento sustentável”, que caracteriza comumente os documentos governamentais, é deslocado na Carta para o de um “modo de vida sustentável”. “Que nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a intensificação da luta pela justiça e pela paz, e a alegre celebração da vida”118.

“Comunidade de vida” é a opção assumida pela Carta para designar a vida em totalidade no planeta, sendo a vida humana um elemento ao lado de outros referidos à vida. À espécie humana cabe a dimensão ética de ser guardião dos demais seres da terra, de cuidar deles e de representá-los.

Um novo paradigma civilizatório, que desenvolva não uma relação destrutiva com a natureza, mas um compromisso de sustentabilidade da vida e abertura à solidariedade geracional, é fundamental. O desafio dessa mudança é resultado de “mudanças na mente e no coração”, diz a Carta da Terra. Mudança que leva o humano a considerar-se como um entre outros membros da comunidade de vida, e a tomar consciência de que a biosfera não é propriedade exclusiva sua, mas também de outros seres, que estão sob seus cuidados e proteção. Enfim, “deve passar de uma sociedade de uso e produção industrial para uma sociedade de produção do suficiente e do decente para todos, também para os demais seres vivos e, por isso, de sustentação de toda vida”119.

117Homem: satã ou anjo bom?, p. 78-80. 118 Sobre a Carta da Terra, cf. a página Web: www.earthcharterinaction.org/contenido 119 Homem: satã ou anjo bom?, p. 39.

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O novo paradigma reorienta mais especificamente a compreensão sobre o destinatário da teologia. Ela não se dirige apenas a um grupo, como que deixando outros de lado, mas se volta para toda a humanidade contemporânea em si mesma. É ela, como um todo, que necessita de uma espiritualidade e de uma ética em vistas das urgentes e necessárias transformações. O teólogo grita ao mundo tal urgência, mostrando que, sem reversão da crise ecológica e da situação de desumanização dos pobres, não haverá condição humana de sobrevivência na terra120. A teologia, em sua reflexão de Deus, se volta para a realidade do homem que a faz e a quem se dirige. O encontro entre os dois “hoje” da teologia atual revela o interlocutor do processo teológico que faz “conhecer” Deus e decodificar o homem e o mundo. 5.4- Um novo paradigma civilizatório, um novo patam ar de hominização

No contexto de sua mudança de paradigma teológico, Leonardo Boff tem trabalhado de forma holística a abordagem da dimensão social, multidimensional e relacional humana121, fazendo referências a uma nova era humanista: ”Não estaríamos hoje, com a complexificação dos meios de comunicação, com o estreitamento das interdependências, com a consciência da unificação da humanidade e a aceleradíssima mundialização, criando as condições para um novo patamar de hominização?”122. Assim, cresce “um novo paradigma de re-ligação, de re-encantamento pela natureza e de com-paixão pelos que sofrem (...). Inaugura-se uma nova ternura para com a vida e um sentimento autêntico de pertença amorosa à Mãe-Terra123”. Contempla-se, portanto, a emergência do novo paradigma que é a comunidade planetária como “emergência de um sistema nervoso complexo e planetário e... um cérebro global”124. A nova era humanista supera a visão cosmológica pré-moderna, em si dualista, racional, instrumental, científica e secular, dando o passo decisivo para um momento novo, de caráter holístico, participativo, democrático125 e criando uma “nova compreensão do homem e de sua função no universo”126.

Consequentemente, cresce no ser humano a consciência da necessidade de saber cuidar das realidades mais parentais de si mesmo: o equilíbrio ecológico, a biodiversidade, a totalidade dos habitantes do planeta, as minorias socialmente discriminadas, como bem o lembra também a recente V Conferência do CELAM (cf. DAp cap. IX, 431-475)127.

120 PRESIDÊNCIA E COMITÊ EDITORIAL, Leonardo Boff e Jon Sobrino: setenta anos de vida, Concilium 328: 158. 121 São consideradas características básicas de uma antropologia holística a compreensão da realidade como um todo integrado, do relacionamento como o dado mais fundamental da realidade, a consciência de que os fenômenos do mundo e da pessoa como um todo estão em permanente inter-relação e interdependência...; (Luis R. Rivera RODRÍGUEZ, Anthropogenesis: the theological anthropology of Leonardo Boff, 147). 122 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 27. 123 Saber cuidar; Ética do humano – compaixão pela terra, 25-26. 124 Ibid., p. 29. 125 Nova era: a civilização planetária, p. 37.46-47. 126 Jesus Cristo libertador, p. 175. 127 Cf. tb Virtudes para um outro mundo possível. Vol 1: Hospitalidade: direito e dever de todos, p. 17.

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O “cuidado” tem uma ligação aparentemente paradoxal com a “conquista”. Não possuindo nenhum órgão especializado para conseguir os meios de sobrevivência, o ser humano, desde os mais tenros anos da humanidade, vai aprendendo a sobreviver através de esforços de conquista, que o torna primeiro homo erectus, depois homo habilis, e depois homo sapiens... De conquista em conquista vai alcançando seu status de humano, de forma que tudo procura conquistar: a terra, o mar, os animais, a natureza, o próximo, a amizade, e mesmo a salvação eterna... as duas Grandes Guerras e as demais em menor proporção, as grandes conquistas, domínios e colonizações de países sobre outros, os grandes progressos da humanidade, mas também o desejo humano permanente de dominar e de estar por cima do outro... são todas atitudes movidas pelo tão forte arquétipo humano da conquista pelo qual o humano é movido.

Em si, ‘conquista’ é um impulso bom que leva o ser humano a transcender-se. Mas, junto a ela, um outro elemento acompanha a criação cósmica desde os tempos mais ancestrais: o do ‘cuidado’, chamado a dialogar com a conquista para impedir que se brutalize e para torná-la benéfico Graças ao ‘cuidado’ a vida pode se potencializar desde 3,8 bilhões de anos, as bactérias e outros seres podem dialogar e se combinar quimicamente produzindo a vida e garantindo a evolução... E graças a ele também, nos animais mamíferos, surgidos há 251 milhões de anos, emerge o cérebro límbico, órgão responsável pelo cuidado, pelo afeto e pelo enternecimento. Graças ao ‘cuidado’ eclodem no humano a inteligência e a amorosidade, ligando-se a esse processo tão complexo as qualidades da liberdade responsável e da ética.128

Mas, no afã da conquista, o ser humano parece ter se descuidado do cuidado e relegado esse aspecto tão intrínseco à sua essência humana. Dessa forma, se desumaniza e se desequilibra a si mesmo e ao mundo que o cerca. Por isso, para re-humanizar-se e re-equilibrar-se ele precisa hoje re-conquistar o dom do cuidado. Felizmente a história é repleta de exemplos fantásticos de humanos que reconquistam, pela solidariedade e pela entrega por uma causa humanitária, justa e honesta, por uma causa religiosa libertadora..., o arquétipo do cuidado. Enfim, sem o cuidado, o ser humano, desequilibrado pelo arquétipo da conquista, corre o risco de destruir-se a si mesmo e a toda a obra de Deus.

O cuidado, portanto, tem efeito curativo e libertador, e vale tanto para a relação com o humano como para com o planeta. “A terra sempre cuidou de nós, dando-nos tudo de que precisávamos. Mas a ferimos tanto que agora cabe a nós cuidar dela para que continue cuidando de nós ”129

Do cuidado fraterno universal nasce uma nova espiritualidade cósmica que seja capaz de perceber a urgência de um novo ethos civilizacional,

128 Homem: satã ou anjo bom?, p. 42. 129 Ibid., p. 30.

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fundado em formas cooperativas de convivência e de mútua reverência entre os seres. Afinal, cuidado e ética são dois valores afins130.

A atual crise ética é resultante da forma globalizada desigual e exploratória em que as sociedades modernas se organizam, tanto em relação às pessoas como à natureza. Como que vivendo um “complexo de Deus”, a pessoa se desumaniza a si mesmo e destrói o ecossistema. Uma tal globalização negativa reclama uma nova ética global que parta de um paradigma que inspire outros princípios: o da compaixão e do cuidado, não apenas em atos isolados, como um modo de ser essencial131. Tal ética pode ser chamada de muitas formas: ética do cuidado, da solidariedade, da responsabilidade, do diálogo, da compaixão e da libertação, da holística...132 As religiões e as culturas têm muito a contribuir nesse processo.

A nova ética que desponta dessa consciência deve ser uma “ética da sustentabilidade”, que é uma ética de solidariedade, que supere o utilitarismo e elitismo e que se articule por meio de princípios básicos: o pathos, o cuidado, a cooperação, a comensalidade e a responsabilidade133. Esses quatro princípios podem colocar freios à atual desvastação da natureza, bem como de sustentar uma nova consciência civilizatória e humana. E deles derivam comportamentos e padrões encarnatórios desses princípios: a hospitalidade, a convivência, o respeito a todo ser e a comensalidade.

O pathos, que é a composição da sensibilidade, da emoção, da afetividade... Dele nascem os valores, os critérios de juízo e o próprio ethos. A insensibilidade e indiferença diante da miséria de milhões de seres humanos e da degradação dos ecossistemas, da poluição dos ares e dos solos e da lenta extinção das espécies é um desequilíbrio de pathos.

O cuidado, já acima refletido, é compreendido pelos orientais como compaixão. O ser humano é carente, e sem cuidado não pode sobreviver. A ética do cuidado é uma ética da compaixão, isto é, do respeito solidário e do cuidado para com o outro e para com toda a criação.

Outro princípio da nova ética é a cooperação. O universo em si é um complexo equilibrado e harmonioso resultante da cooperação entre as energias e entre os seres todos. O ser humano é chamado a ser consciente solidário e fazer da cooperação seu projeto de vida pessoal.

Finalmente, o princípio da responsabilidade. É preciso que o humano se dê conta das conseqüências de seus atos. O humano precisa conscientizar-se do real perigo da auto-destruição, para poder tomar atitudes e medidas práticas necessárias.

130 Saber cuidar; Ética do humano – compaixão pela terra, p. 26; O homem: satã ou anjo bom?, P. 212; cf. Meditação da Luz; O caminho da simplicidade, p. 14; Virtudes para um outro mundo possível; vol. III: Comer e beber juntos e viver em paz, p. 52. 131 Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra, p. 25. 132 Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos, pp. 101-125. 133 Homem: satã ou anjo bom?, pp. 106-109; Virtudes para um outro mundo possível: vol III: Comer e beber juntos e viver em paz, pp. 26-27.

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No entanto, a força mundializante nessa possível nova fase humanista

só pode, de fato, acontecer e tornar-se benéfica se percorrer um duplo movimento, um de emergência e outro de deslocamento. Primeiramente, deve emergir de dentro mesmo das profundezas e da fontalidade essencial do humano. Depois, deslocar-se do espaço do mercado, das formas de produção e de consumo, de acumulação..., aos quais tende hoje toda atividade humana, também para outras dimensões que vão na direção da inclusão de todos os organismos vivos do universo, num processo de verdadeira “globalização”.

Normalmente se pensa a globalização no sentido econômico. Mas, muito mais que isso, para se entendê-la é preciso voltar à idéia da expansão cósmica que faz surgir o universo e, nele, as várias fases que culminam na vida humana. Esta, participando do ímpeto da expansão, se multiplica, cresce em número, se esparrama por toda a terra, criando uma multiplicidade de instituições... Mas depois da expansão começa novamente a concentração; por isso, há alguns séculos a humanidade vem tomando o caminho de volta, concentrando-se, globalizando-se e percebendo cada vez melhor o caminho salutar da unidade. Uma concentração que vai desde a consciência da unidade espiritual, metafísica, política, organizacional, de solidariedade, etc... até a consciência de que todos são uma única raça, um único povo, uma só civilização, um só mundo, um só cosmos, um só universo...

Com isso, “está nascendo um novo tipo de percepção da realidade, com novos valores, novos sonhos, novos mitos, novas formas de organizar os conhecimentos, novo tipo de relação social, nova forma de dialogar com a natureza,novo modo de experimentar a Última Realidade e nova maneira de entender o ser humano no conjunto dos seres”134. Assim, “Importa mundializar outros hábitos culturais de solidariedade, de compaixão coletiva para com as vítimas, de respeito a suas culturas, de partilha de bens, de integração emotiva com a natureza, de sentimentos de humanidade, solidariedade e misericórdia para com os humilhados e ofendidos”135. O futuro da humanidade passa por essas vertentes, que representam também a possibilidade de compor a mundialização da democracia que, muito mais que forma de governo, é um espírito, um valor universal, portador de valores básicos como a participação, a solidariedade, a igualdade, a diferença e a comunhão136.

Mas uma mudança assim radical não se dá sem tensões e crises. Antes, obriga o ser humano a conversões em vários aspectos de vida: “a passar da parte para o todo, do simples para o complexo, do local para o global, do nacional para o planetário, do planetário para o cósmico, do cósmico para o mistério e do mistério para Deus”137. Isso mostra que a terra, o cosmos, o universo todo é muito mais que a dimensão física que aparece; eles apontam para uma dimensão de comunidade e de mistério. Cresce na humanidade numa identidade coletiva e planetária, fruto da convivência e da solidariedade

134 Homem: satã ou anjo bom?, p. 44. 135 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 105; cf. tb. Ver além das aparências. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 110; cf. tb. DAp 64. 136 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 106. 137 Homem: satã ou anjo bom?, p. 44.

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mundial. Daí a nova consciência ética de responsabilidade e de compromisso com todas as realidades; é a isso que se entende por globalização num sentido mais original que o simples econômico, que, como todo fenômeno reducionista, torna-se cruel e desequilibradora do convívio fraternal.

6- Encontros e confrontos com uma theologia pro paganis e supraconfessional

Desde os Santos Padres, pode-se dizer que a teologia tem se desenvolvido praticamente em duas direções138. Uma primeira, denominada theologia pro christianis, consiste numa reflexão da fé a partir das riquezas do depositum fidei, da Tradição cristã e se caracteriza pela proposta da mensagem cristã ao homem. Seu ponto de partida é, portanto, o estabelecido, da identidade cristã. Já a segunda vertente, a daquela denominada de theologia pro paganis, privilegia o presente, em sua dimensão histórica e real, procurando oferecer a todos, homens de fé ou não, um sentido transcendental para suas vidas. Parte das interrogações, esperanças e angústias do homem de seu tempo; a história e o mundo são o palco donde ela perscruta as Escrituras para delas tirar parâmetros para o presente.

Enquanto a theologia pro christianis pressupõe a fé cristã, para aprofundá-la em sua reflexão, acentuando as diferenças Igreja-Mundo; a segunda as relativiza, colocando-as num quadro mais amplo de relação com o Reino de Deus139, a theologia pro paganis considera em primeiro lugar a busca humana de sentido da existência de todos os seres, e assim poder iluminá-la com a luz da fé.

A direção assumida por Boff no primeiro e segundo momento de sua teologia é claramente pro christianis; enquanto que, no considerado terceiro momento, à luz do novo paradigma teológico, sua teologia é uma theologia pro paganis.

As duas opções frequentemente entram em choque. Os teólogos pro paganis vêm a theologia pro christianis por demais doutrinária e carente de encarnação na realidade humana, além de centrada e excessivamente preocupada com a ortodoxia. Os teólogos pro christianis, por sua vez, suspeitam dos primeiros de modismo passageiro, de imanentismo e de secularismo, bem como, de deixarem de lado o específico cristão. Nessa ordem é que vai a suspeita dos críticos da teologia de Leonardo Boff. Numa reflexão que considera a base antropológica de sua teologia não se pode deixar de fazer referência aos confrontos que o teólogo tem mantido com a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé e com outros críticos mais atuais.

A suspeita da Igreja oficial a respeito de um possível imanentismo histórico da teologia da libertação (LN XI,17), na qual se insere a do teólogo em

138 O Caminhar da Igreja com os oprimidos, pp. 161-162. 139 Igreja: carisma e poder, pp. 20-21.

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questão, deve ser verificada, não a partir de um dado isolado, ou de uma singular afirmação, mas do conjunto de toda a teologia em questão.

Outra forma de reducionismo atribuído à teologia e antropologia de Boff é a da redução da teologia à politologia, e a da desconsideração do pecado individual ou pessoal; sua clara opção pelo social nem sempre permite a evidência do que se refere à esfera do pessoal e individual (LN IV,14)140.

Segundo a referida Congregação, o regime de dependência e de cativeiro não pode ser reduzido tão somente às esferas do econômico, político e social, e hoje, do ecológico. Pois é o pecado a “fonte de divisão e de opressão”, bem como a “raiz das alienações humanas” em todos os sentidos (LC V). Na Instrução anterior, em crítica direta e objetiva à teologia da libertação, a mesma Congregação afirma que “... não se pode, portanto, restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina de 'pecado social'... (LN IV,14.15). O imperativo da revolução radical das relações sociais e cósmicas, e as críticas às expressões de busca da perfeição pessoal, tendem a negar o sentido da pessoa e de sua transcendência...

Tendo em mãos todas esses questionamentos, que não podem ser desconsiderados, pode-se chegar a algumas conclusões sobre a orientação atual da obra do teólogo brasileiro.

Numa realidade em que a urgência do resgate do potencial transformador da fé é enorme, é compreensível a preocupação teológica do autor. Se trabalhadas com mais frequência a partir da categoria da transparência, muitas de suas afirmações, à primeira vista reducionistas, se tornam menos polêmicas, mais compreensíveis e enriquecedoras para a teologia, além de favorecer mais a compreensão da teologia como ciência de Deus e do homem.

Hoje é facilmente perceptível que a proposta do Evangelho de Jesus

reflete um dado ontológico fundamental para se compreender a real vocação humana. Ao afirmar que o mandamento do amor ao próximo é semelhante ao do amor a Deus com todo coração, alma e entendimento, e que de ambos dependem toda a Lei e os profetas (cf. Mt 22,37-40), Jesus proclama a identidade do seu seguimento como uma realidade que não separa o regime pessoal do social.

Para entender a posição do teólogo, é preciso recorrer a uma visão mais

completa e integradora de seu pensamento. Para ele, na origem e raiz de todos os males sociais está o que ele chama de “esquizofrenia radical que afeta a raiz da personalidade humana”141 e que, muito mais que simplesmente político, econômico ou social, o mal é a “corporificação de um desvio mais profundo do homem, atingindo o sentido fundamental de ser e de viver compreendido como poder-conquista-dominação, gerando opressão, repressão e regime global de 140 Cf. tb. Boaventura KLOPPENBURG, Las tentaciones de la teología de la liberación, Selecciones de Teología, vol. 15, no. 60: 288-289. 141 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 106.

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cativeiro”142. Por isso, a honestidade teológica não permite afirmar que o pensamento de Boff circunde as causas do mal histórico apenas a razões sociais e imanentistas. O que não desconsidera sua afirmação de que no prisma social se vizibilizam mais evidentemente os desvios ontológicos e ecológicos causados pelo pecado, que para ele é a “ruptura do homem com seu sentido transcendente e dilaceramento da tecedura social”143.

Sem dúvida, é clara a secularidade que transparece no pensamento do

teólogo. Na linha da theologia pro paganis, para libertar-se dos condicionamentos epistemológicos da ciência tradicional da fé, Boff procura um jeito de falar de Deus sem passar pela religião convencional, sem falar religiosamente, como se costuma nestes “tempos de idolatria oficial”, pois, como diz o maior místico do Islã: “Quem ama a Deus não tem nenhuma religião, a não ser Deus mesmo”144, razão porque, embora Boff se diga teólogo católico, alguns preferem vê-lo mais propriamente como católico supraconfessional e transreligioso145.

É claro também que, não obstante a grande riqueza ântropo-teológica, argumentada sobretudo nas contribuições da físico-química, da biologia e de outras ciências do cosmos e do humano, de fortes conotações holísticas... , os últimos escritos de Leonardo Boff não respondem às exigências da epistemologia teológica convencional. Por isso, não são, a rigor, explicitamente, textos de teologia, ao menos de teologia cristã. Inclusive, há quem prefira chamar seu pensamento, hoje, de “ecoteologia”146. Na verdade, o trabalho atual de Boff é, mais que o de um fazedor de teologia, o de um preparador, de um ensaísta, o de alguém que monta o cenário para um futuro teológico que ele espera para não muito longe. A proposta e o aprofundamento do novo paradigma que ele propõe, ainda não bem assimilado nos meios acadêmico e intelectual, certamente exige tempo e paciência até que se torne convincente. Então, possivelmente, outros, colhendo os frutos de seu enorme esforço, vão assumir o novo fazer teológico que ele espera.

A pergunta fundamental que o teólogo hoje procura responder com sua teologia não é sobre o futuro da Igreja ou do cristianismo, mas do planeta terra e da humanidade que é sua expressão147. No entanto, praticamente em todos os seus escritos ele faz referência a Deus, sem necessariamente contextualizá-lo religiosa e dogmaticamente. Gosta de denominá-lo de “Fonte Originária de Todo o Ser”, por vezes referindo-se a Ele como Energia Universal, Vácuo Quântico, Alimentador de Tudo...148 O que não deixa certamente de ser um risco, por tender a obscurecer o explícito evento bíblico da ação histórica de um

142 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 141. 143 O Pai Nosso; a oração da libertação integral, pp. 55-56. 144 In Homem: satã ou anjo bom?, P. 67. 145 Hermann BRANDT, Leonardo Boff como teólogo protestante? Um balanço pessoal, in Estudos Teológicos ano 48, no. 2: 5. 146 PRESIDÊNCIA E COMITÊ EDITORIAL, Leonardo Boff e Jon Sobrino: setenta anos de vida; Concilium 328; 2008/5: 157. 147 Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma, in AAVVc, Teologia e novos paradigmas, p. 87. 148 Meditação da Luz; O caminho da simplicidade, p. 25.35; Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 65.

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Deus pessoal em meio ao povo eleito, e sobretudo a fé cristã da encarnação do Verbo divino. Além de poder favorecer a emergência de um neo-panteísmo pós-moderno e holístico.

A opção de Boff por essa maneira de fazer teologia, ainda que nem sempre muito bem-vinda por parte de alguns de seus críticos, tem, sem dúvida, caráter profético, e mostra com clareza que o mistério de Deus e do homem se evocam mutuamente. E sua cristologia é o momento culminante dessa intencionalidade. A humanidade encontra seu acabamento em Cristo. A estrutura crística que existe no coração da realidade humana não é um principio, mas uma maneira de viver a capacidade de abertura ao outro e a Deus. A possibilidade de ser um com Deus está inscrita no coração do homem. O cristianismo, muito mais largo que a religião cristã149, é a resposta a essa proposta de Deus, atualização da estrutura crística antropológica em cada homem para a sua salvação. Um tal modo de pensar teologicamente se distingue pela originalidade, pois, através dele se pode perceber e encontrar no coração do homem o coração de Deus150. Para concluir este capítulo sobre a fisionomia de uma reflexão, é preciso convir que, não obstante os limites e as tendências holísticas que hoje caracterizam o pensamento do teólogo, ele apresenta com originalidade e maestria as bases antropológicas de toda teologia. Além disso, o inconformado teólogo, desconfiado de toda metafísica cristã convencional, e influenciado pela educação familiar e pela sua formação franciscana, não tem medo nem vergonha de mostrar sua sensibilidade e de “produzir uma teologia que evoque beleza, que tenha fluidez linguística e inspiração poética”151. O grande mérito de Boff é lembrar à comunidade acadêmica que, antes de ser uma abordagem científica e reflexiva, a teologia é uma doxologia, o que reafirma o espírito profético da nova teologia. Sem dúvida,uma contribuição inestimável para a teologia e para as ciências como um todo152.

149 É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré?, in Concilium 319; 2007/1, p. 62.64. 150 Bruno CADORÉ (Recensão de) Jésus Christ Libérateur. In AAVV, Les livres, La Vie Spirituelle, n§ 659: 266. 151 João Batista LIBÂNIO, Pensamento de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 22 152 PRESIDÊNCIA E COMITÊ EDITORIAL, Leonardo Boff e Jon Sobrino: setenta anos de vida; Concilium 328; 2008/5: 157.

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Capítulo II

O SER HUMANO É PESSOA

1. Pressupostos

Entre as mudanças que vão caracterizando o pensamento de Boff destaca-se na antropologia a mudança da terminologia: quando se refere ao ântropos, prefere a expressão “ser humano” em lugar do termo masculino “homem”. Não se trata de uma simples alteração terminológica, mas de um amadurecimento nas relações, dada a consciência de que varão e mulher são seres chamados à grande comunhão com toda a realidade, e o termo “homem” estar culturalmente desgastado e reduzidamente identificação com varão. Mas,a mudança não deixa de ser problemática quando alguém procura estudar o conjunto de toda a obra boffiana, uma vez que o teólogo joga às vezes com um termo, às vezes com outro. Por isso também, neste trabalho, é impossível ser absolutamente rigoroso na adoção de uma ou de outra categoria.

É visível na antropologia de Boff o resultado de um aprofundamento existencial, espiritual e intelectual: “Quem toma a sério a filosofia e a teologia se encontra com os problemas mais radicais da existência, com realidade últimas, como o sentido da vida e de todo o universo, com a perdição e a salvação”153

Entendido como mistério, o ser humano não se esgota em nenhuma análise científica. Leonardo Boff entende mistério como aquela realidade infinitamente complexa na qual a pessoa pode se aprofundar – pois “pertence ao mistério ser conhecido”, embora sem jamais se esgotar154. Mais que uma realidade fixa e definida, mistério é uma experiência de sentir-se pequeno existencialmente diante do profundamente questionante.

A teologia cristã entende o humano como um ser existencial histórico-concreto que vivencia estruturalmente uma integração do natural criacional com a graça, dom livre de Deus a ele manifestado. A convivência desses dados faz da revelação contida nas Escrituras e da revelação de Deus na criação e na história, decodificada pela razão, as duas dimensões fontais que permitem ao humano compreender-se em profundidade.

O mistério determinado por essa integração possibilita ao ser humano chegar à orientação primordial de sua existência. Há uma questão vital que o circunda e que transcende a sua realidade visível e a psicológica, ajudando também a compreendê-las. Ele é espírito, e, como tal, “todo inteiro enquanto se dimensiona para o céu, para o transcendente da alteridade, se abre ao mistério do outro e do Grande Outro, transcende os mecanismos do princípio de realidade, vive uma liberdade em aberto, é ilimitado e é imortal”155 . Por isso o

153 A esperança é, hoje, a virtude mais urgente e necessária, in Juarez GUIMARÃES (org.), Ibid., p. 170. 154 Sentido antropológico-existencial de mistério e mística. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 14. Cf. tb. Experimentar a Deus hoje, p. 128. 155 Natal: A humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 53.

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humano é sua própria espiritualidade, ou seja, é capacidade de dialogar com os apelos de sua profundidade e de entrar em harmonia com elas, em profunda liberdade e criatividade156, o que nenhuma instituição ou confissão religiosa pode controlar. Quando o humano é pensado a partir desse mistério fundamental, isto é, quando a antropologia é “pensada até o fim”, vem à tona a questão de Deus, pois, o teológico emerge da antropologia. A via da transcendentalidade do ser humano constitui o caminho de encontro com esse complexo ser, que carrega em si todas as experiências positivas e negativas, suas e da humanidade, através de um inconsciente pessoal e coletivo. Entre elas estão as do encontro com aquele mysterium tremendum et fascinosum que caracteriza Deus157.

Uma auto-compreensão do humano que supere o aparente e o superficial, um conhecimento metafísico da sua própria realidade, torna-se sempre complexo devido -entre outras razões- às contínuas e aceleradas mutações que ocorrem praticamente em todos os setores de sua vida.

A historicidade constitui dado fundamental para a essência e o existir humanos, e só a partir dela é possível conhecer o ser humano. Este não compreende o mundo naturalmente, mas historicamente, ou seja, a partir de seu relacionamento com ele. Nesse sentido a história, mais do que uma sucessão lógica de fatos e acontecimentos, é o próprio humano enquanto ser cultural que interpreta, decide, faz opções, convive, transforma seu mundo, busca as raízes mais profundas do sentido de tudo... Por isso, a consideração da história exige que se passe de uma compreensão de tempo como um simples dado cronológico para outra de caráter ontológico, uma realidade unitária e totalizante no qual acontece o humano como ser espiritual.

A reconstituição de tais valores permite reencontrar o humanum na originalidade primeira de sua misteriosidade: o fato de ser pessoa, que é a maneira mais original da compreensão cristã do ser humano.

Na aventura de refletir o mistério humano, temas como liberdade, libertação, crise e construção de um projeto fundamental de vida, esperança, unidade dialética corpo-alma, corpo-espírito, conceito de pessoa e personalidade, concepção de morte, de imortalidade, integração masculino-feminino, simbólico-diabólico, condição sapiens e demens do ser humano... são todos tratados amplamente por Boff em sua longa produção antropológica. Os itens que seguem procuram abordar, em um amplo conjunto, tais elementos antropológicos em sua relação com o teológico, a partir desse pensador. 2. O ser humano, pessoa e sujeito

A grande virada antropológica do pensar teológico moderno caracteriza-se pela passagem da perspectiva essencialista formal-ontológica para a

156 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 295; Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 113; Virtudes para um outro mundo possível; vol. III: Comer e beber juntos e viver em paz, p. 125. 157 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 82; cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 181.

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conceituação dialogal da pessoa como relação totalizante, singular, indivisa, insubstituível, de natureza espiritual, numa tematização e reflexão sistemática sobre a subjetividade humana. Essa virada constitui-se num dos maiores acontecimentos culturais do ocidente, hoje certamente uma das categorias mais importantes da cultura planetária; apesar disso, talvez nenhuma outra época tenha desrespeitado tanto a pessoa humana como na atualidade158.

As categorias da revelação cristã estão fortemente condicionadas ao conteúdo dos conceitos pessoa e sujeito, e pela compreensão do ser humano como ser de relação dialógica com Deus. O diálogo da revelação só é possível porque ele, interlocutor de Deus, é pessoa “de permanente ausculta e de ser relacional com Deus”159. Em sua procura de diálogo e confronto com o mundo moderno, com a evolução do mundo pós-industrial e com a emergência dos pobres em sua vida, a Igreja tem se debruçado conscientemente sobre esse dado fundamental da pessoa em sua dignidade humana (GS 26b; DH1, DAp 104-105.387-.391....). Por isso é necessário aprofundar o conceito de pessoa, se se quiser tornar inteligível o verdadeiro conteúdo da revelação, a base antropológica do teólogo em estudo e toda a mensagem que a Igreja prega.

Os cristãos têm como base da compreensão e de aprofundamento do verdadeiro conceito de pessoa a abertura dialogal total de Cristo a Deus, bem como sua disponibilidade fraterna inquestionável160. É ele que realiza mais perfeitamente a dimensão dialogal humana. Os valores fundamentais do personalismo cristão são revelados pela singularidade e exclusividade da relação que Jesus vive intensamente com o Pai e com os outros. Da mesma forma, pode-se concluir que a proposta cristã constitui-se uma potencialidade plenamente personalizante e hominizante.

No entanto, a elaboração da teologia cristã em um ambiente helenista provoca uma obscuridade da original concepção bíblica de pessoa, traduzida por categorias metafísicas objetivistas161. Para a clássica filosofia grega é o espírito que define o ser humano que, por meio dele entra em contato com o mundo verdadeiro, eterno e imutável; o indivíduo não é o real, mas limitação e decadência para o espírito. Daí a tendência geral de universalização, em detrimento do particular e do histórico, que caracteriza o pensamento grego, que passa a influenciar a teologia cristã. Dessa forma, não é possível falar de direito e de dignidade da pessoa humana enquanto indivíduo acima da família, da cidade ou da sociedade..

Impregnando-se na cultura ocidental, a ressonância do pensamento grego na Igreja, no humanismo cristão e na teologia em geral é contundente..., e leva a permanecer quase sempre no universal, sem entrar no concreto. Por isso, tanto a teologia patrística como a teologia clássica apresentam às vezes conceituações de pessoa excessivamente substancialistas e estáticas, desatentas à sua realíssima dimensão histórica, numa forte tendência em

158 A Trindade e a sociedade, p. 113; Graça e experiência humana, A graça libertadora no mundo, p. 41. 159 O destino do homem e do mundo, p. 55. 160 A Trindade e a sociedade, p. 113. 161 O destino do homem e do mundo, p. 55

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realçar a questão de sua independência e autonomia, o seu estar em si e para si, sem necessitar do outro para subsistir.

O pensamento moderno, sobretudo através do existencialismo personalista162, reagindo a essa tendência substancialista clássica, propõe que “pessoa” ontologicamente, seja compreendida como uma possibilidade oferecida ao homem163, e “personalidade”, como uma ordem dinâmica interna existencial, “o exercício livre do ser-pessoa”164, um movimento para a pessoa. O caráter do conceito, portanto, é dinâmico, histórico e funcional. Por isso, na seqüela de Inácio de Antioquia165, Boff entende que “o verdadeiro homem ainda é um projeto. Ele não nasceu”, pois, “o homem verdadeiro, em sua radical patência, é só o homem escatológico”166, e o processo de personalização ainda representa um desafio à humanidade.

Mas, a totalidade de vida humana não é referência excludente. Ao contrário, pode ser captada à medida que a pessoa se sente imersa numa situação de fraternidade universal, quando experimenta que as dimensões “masculino e feminino, Deus/Mundo, corpo/psique devem ser integrados no horizonte de uma imensa comunidade cósmica”167, pois “nós, seres humanos conscientes, somos parte integrante do universo e não um ser errático que veio de uma realidade fora da nossa cósmica”168, e por isso a consciência humana é simultaneamente cósmica e pessoal. A matéria (mater=mãe) oculta as potencialidades da vida, e a preservação da vida depende da maturação humana naquilo que Boff chama de “democracia ecológico-social”, ou “sócio-cósmica”169. É a realidade utópica que o teólogo caracteriza como sendo de profunda síntese, como faz São Francisco de Assis, entre ecologia interior e ecologia exterior170. Cresce então no ser humano a consciência de que tudo vem de uma outra realidade que não é ele mesmo, mas a própria infinitude. O processo de personalização supõe essa caminhada conscientizadora, e deve levar o indivíduo a integrar-se na Totalidade que dá origem e vida à sua totalidade. O sentido último dessa consciência talvez só possa ser “decifrável a partir de uma instância transcendente e religiosa”171. Nessa relação com Deus e com tudo o que existe, toda criatura amadurece e se plenifica.

162 Entre os personalistas destacam-se, no pensamento judaico, homens como F. Rosenzweig, F. Ebner, Martin Buber, E. Levinas, A. Heschel, e, no pensamento cristão, pessoas como Sören Kierkegaard, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, E. Mounier, Romano Guardini, P. Wusto, Th. Haecker ... 163 José COMBLIN, Antropologia cristã, p. 69. 164 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 81; cf. tb. João B. LIBÂNIO, Modernos conceitos de pessoa e personalidade de Jesus, Revista Eclesiástica Brasileira vol. 31, fasc. 121: 51. 165 Aos Romanos 6,2. 166 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 9.108. 167 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 33; cf. tb. Tempo de transcendência; O ser humano como um projeto infinito, p. 89. 168 Ecologia, grito da terra, grito dos pobres, p. 88. 169 Ibid., pp. 85-91.175; cf. tb. Tempo de transcendência; O ser humano como um projeto infinito, p. 90. 170 Ecologia, grito da terra, grito dos pobres, pp. 287-291; cf. tb. Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 53; cf. tb. Nova era: a civilização planetária, p. 43. 171 Nova era: a civilização planetária, p. 36.

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2.1- Pessoa é ser-em-comunhão

O pensamento moderno assume a concepção clássica original de pessoa como aquele ser que, pela consciência, possui um centro de autonomia a nível ôntico, de disposição de si mesmo, como ser de auto-posse, de forma que se distingue do outro ser pelo conhecimento e pela liberdade. Acrescenta, no entanto, que esse centro é essencialmente caracterizado pela relação, comunhão e diálogo. Nessa maneira de ser ultima solitudo, ser de liberdade, de posse de si mesma, de auto-consciência e de autonomia interior; um eu, pessoa é relação, ser de comunhão, que necessita de um tu para se definir...: “a palavra originária não é ‘eu’, mas ‘eu-tu-nós’”. A partir daí, é compreendido como um ser para, um nó de relações172, que “torna os homens responsáveis uns face aos outros, realizando-os, frustrando-os...”173. É nesse encontro com o outro que a auto-posse, o estar-em-si se consolida e se enriquece. “Interioridade (consciência em seu aspecto ontológico) e abertura ao outro (a liberdade e a dimensão ética) constituem o modo de ser próprio da pessoa”174 na liberdade, de forma que o teólogo conclui que se se deseja manter a terminologia clássica, é melhor que se diga que “pessoa é uma substância relacionada, ou uma relação substancializada”175.

Boff faz uma análise da comunhão em três óticas: uma ântropo-

sociológica, outra filosófica e, uma terceira, teológica176, o que de certa forma é supreendente, pois nem sempre a comunhão tem espaço nas análises sociológicas e políticas, que vêm a realidade apenas de modo crítico, estruturalista e sistêmico.

Ântropo-sociologicamente, afirma que a comunhão é um tipo de presença que, mais que estar-aí é uma “potenciação do ser”. Comunhão supõe reciprocidade e imediatez. A experiência é uma utopia que energiza a realidade em vista de transformações de todo tipo. É nessa ótica de comunhão que a humanidade emerge quando, como atestam etnobiólogos e arqueólogos, os antepassados do ser humano, aprendendo a colocar em comum frutos, sementes, caças e peixes coletados, fazem acontecer a comensalidade, que possibilita o primeiro salto da animalidade em direção à humanidade177.

Filosoficamente, a análise privilegia a dimensão ontológica do processo. O eu percebe que só existe na relação, e se transforma num nós que, humanamente falando, significa passar do viver ao con-viver, no exercício da saída de si. Mas o ser não esgota sua abertura em nenhuma relação; experimenta-se como ser-em-transcendência a ponto de, como humano, buscar uma relação absoluta que o preencha em definitivo, numa máxima realização.

172 Jesus Cristo Libertador, p. 186; cf. tb. Graça e experiência humana, p. 127. 173 O Pai Nosso: a oração da libertação integral, p. 107. 174 A Trindade e a sociedade, p. 116; cf. tb. Homem: satã ou anjo bom?, p. 102.. 175 O destino do homem e do mundo, p. 57. 176 A Trindade e a sociedade, pp. 163-169; cf. Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, pp. 38-39. 177 Virtudes para um outro mundo possível;vol. III: Comer e beber juntos e viver em paz, p. 16.

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Por isso abre-se finalmente a análise para uma ótica teológica. Toda relação de comunhão encontra em Deus sua origem e realização. A Aliança de Deus com a humanidade, através de Noé (cf. Gn 9), e com o povo escolhido em favor da humanidade, através de Abraão (cf. Gn 12), é expressão da comunhão que Deus quer realizar com todos os homens. No Novo Testamento, São João deixa claro que a dimensão humana da comunhão consiste em viver com Cristo e com o Espírito, na comunhão do Pai (cf. 1Jo 1,3); Paulo fala que o caminho dessa comunhão é através da fé e da eucaristia (cf. Rm 6,6; 1Cor 10,16-18), e ambos afirmam que a comunhão humana com Deus se traduz e tem base na comunhão fraterna (1Jo 1,1-3; 2Cor 9,13; cf. tb. At 4,32).

Com a “virada ecológica”, a rede comunional amplia-se também para “a inter-ação e dialogação de todas as coisas existentes”, trabalhando a questão da ecologia humana e social a partir dessa ótica da relação, chamando atenção para a “teia infinita de relações omnicompreensivas”, pois, “nada existe fora da relação”178. Então se estabelece uma dimensão psicossocial e cósmica de comunhão chamada ‘convivência’179.

Momento muito particular da antropologia de Boff, possibilitado pela virada ecológica, é sua crítica ao antropocentrismo. Lembra que o ser humano tem apenas 7 milhões de anos, bem menos que, por exemplo, os gatos, que têm 35 milhões de anos, ou as lagartixas, que têm uma média de 50 milhões de anos... Portanto, “nenhum antropocentrismo nem humanismo derivado dele se justifica”180. Boff diz que “a reflexão ecológica ajudou-nos a entender que o ser humano é parte da natureza e da biosfera. Ele não é o centro do universo”181. O “arrogante antropocentrismo” tem coroado pelo menos os últimos três séculos de uma depredação desenfreada da natureza. O amadurecimento para a relação com o cosmos faz o humano começar a ver a terra como um superorganismo vivo, a Gaia. Ele aprende que, com ela, a humanidade constitui uma entidade única e entrelaçada, e que homem e mulher não são seres na terra, mas seres da terra, a própria terra pensante. Assim, começa então um caminho de volta para a casa comum de todos os seres, a terra. E cresce a consciência da comunidade cósmica, da comunidade planetária, nascendo então a era ecológica.

Mas, se o ser humano não se destaca pela superioridade em relação às demais criaturas, “precisa se perguntar sobre o lugar que ocupa no conjunto dos seres, qual é a sua singularidade e qual é a sua missão. E aí podemos dizer que ele é o único ser da comunidade de vida que ostenta uma dimensão ética (...) Ele é portador de subjetividade, de inteligência, de capacidade de amor, de cuidado e de espiritualidade (...) Ele pode plasmar o seu destino, fazê-lo, por sua liberdade, trágico ou bem-aventurado ”182. 178 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 15; cf tb Virtudes para um outro mundo possível: Hospitalidade, direito e dever de todos; Virtudes para um outro mundo possível: convivência, respeito e tolerância; Éticas da mundialidade: o nascimento de uma consciência planetária... 179 Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 39-44. 180 A esperança é, hoje, a virtude mais urgente e necessária, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 184. 181 Ecologia, mundialização e espiritualidade: a emergência de um novo paradigma, p. 87. 182 A esperança é, hoje, a virtude mais urgente e necessária, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 184.

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2.2- Liberdade: o caminho da pessoa-comunhão

Mas uma tal comunhão não pode ser ato pessoal se não exercida na liberdade. Só na responsabilidade que daí deriva se pode afirmar a nobreza da dignidade da pessoa. Como ser desafiado a tomar decisão diante do mistério -porque no mistério se oculta o sentido derradeiro e definitivo de sua vida-, apenas na liberdade responsavelmente assumida como valor ontológico que se exterioriza e se faz concreção pode ela se posicionar.

É nessa central ontológica que a pessoa “elabora sínteses pessoais... Por isso, mais do que a natureza, é a liberdade a determinante do homem. É o seu mistério e a sua grandeza”183. A natureza o modula com o potencial da liberdade, mas esta se torna o lugar existencial onde o humano aparece mais fortemente. Nela a pessoa se exprime, se constrói, se possui a si mesma e constrói o seu mundo; através dela é possível falar em maturação da personalidade humana184. Enfim, liberdade não é apenas capacidade eletiva, de escolha; antes de tudo, ela é um dado entitativo, uma postura interior do coração onde se decidem todos os passos.

O tema da liberdade constitui um dos baluartes da modernidade. Apesar da resistência da Igreja durante pelo menos um século, um tipo de catolicismo liberal sobrevive até Pio IX, quando então é decisivamente podado por um rígido e explícito antiliberalismo eclesiástico. Cabe ao Vaticano II, mormente na Gaudium et Spes (GS 17) e em toda a declaração Dignitatis Humanae, reerguer as utopias frustradas do catolicismo liberal, proclamando explicitamente a liberdade como elemento constituinte da pessoa humana, inviolável em sua dignidade e em seus direitos. Hoje, as aspirações da liberdade são mais que reconhecidas e assumidas pela Igreja, ainda que não deixando de alertar (GS 419; cf. tb. DAp 44.51.110.148.479.514; DP 92.324.437.495.497.542.546.550) para o risco do individualismo presente nas instituições e declarações liberalistas da sociedade moderna ocidental, às quais falta acentuadamente um sentido de solidariedade humana, de compromisso comunitário e de prioridade dos pobres.

Embora solidário com os movimentos humanos libertários, e mesmo empenhado em suas mesma lutas, o cristianismo propõe um alargamento da compreensão da liberdade: “Do ponto de vista ético, há frequentemente na modernidade um equívoco: o de pensar a liberdade como simples autonomia da pessoa, que não se sujeita a ninguém. Na realidade, a pessoa humana se torna livre não só enquanto não está submetido a outro indivíduo humano, mas enquanto aceita a voz da consciência, o apelo a uma vida ética, em que são reconhecidos direitos e deveres de todos...” (Doc. CNBB 50, n. 75).

Portanto, é em critérios éticos que a visão cristã fundamenta hoje a compreensão de liberdade. Enquanto para os outros seres interioridade e exterioridade constituem a mesma realidade, para o humano, a exterioridade se confronta não só com a subjetividade, mas ainda com a postura ética 183 Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 36. 184 Graça e experiência humana: A graça libertadora no mundo, 115.

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definida na liberdade, de modo que a decisão humana se constrói de dentro para fora, diante de Deus e do outro185.

É na administração da natureza e na sua transcendência que o ser humano vive sua liberdade, quando evolui do estado natural dado por seu nascimento e natureza para um outro moldado com sua própria liberdade. É na realidade finita e relativa que ele entra em diálogo, que luta pela vida em todas as suas dimensões, ao mesmo tempo que apalpa, em tentativas históricas de criatividade, comunhão e comunicação, a realidade do outro e aquela infinita de Deus.

Por isso, a verdadeira liberdade humana é também tema da teologia e da antropologia teológica, pois só como ser livre o humano pode avaliar-se diante de Deus como responsável e interlocutor -quando o exercício da liberdade corresponde fielmente à ética revelada pelo Deus da liberdade-, ou como ingrato e culpado -quando a prática de sua liberdade legitima ideologias desumanas e anti-divinas.

Mas, o processo de personalização é histórico e se dá através da existência humana no mundo, de ser-em-comunhão, com toda carga de hereditariedade que possa trazer186. Por isso, também a experiência transcendental da liberdade se desdobra historicamente, e o acesso a ela só é possível na história, isto é, na própria experiência existencial que é experiência do mistério187. Ou seja, para o teólogo, a pessoa se aprofunda no mistério da existência quando cresce simultaneamente na experiência da liberdade.

Mas, porque o humano é uma liberdade criada, sua resposta a ela não pode ser fatal e definitiva, e sua prática se revela como um jogo arriscado pela incrível capacidade de recusar a liberdade e de fugir dela e de sua responsabilidade. Mas, ainda assim, qualquer racionalização ou fuga da liberdade é ato livre e do sujeito como tal.

Mas, para se viver intensamente o mistério humano é preciso assumir o risco da liberdade, aprendendo a conviver com a angústia, o desespero e a solidão existenciais. Por isso, personalização e libertação são faces de um único processo, só mesmo realizado por pessoas conscientes. 3- Pessoa: uma dialética existencial

Como ser simultaneamente preso às situações histórico-concretas deste mundo e direcionado para uma totalidade transcendental, feito e por se fazer, já e ainda-não, finito e infinito..., “o homem é um ser em tensão constante entre uma abertura realizada e uma abertura absoluta”188.

O clássico dualismo grego que concebe o homem composto por uma realidade chamada espírito, universal, transcendente e divino (alma); e de

185 Jesus Cristo Libertador, p. 59. 186 A ressurreição de Cristo: a nossa ressurreição na morte, p. 81. 187 Graça e experiência humana, A graça libertadora no mundo, p. 143. 188 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 84.

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corpo material, imanente e sujeito a limitações (corpo), não corresponde à compreensão antropológica bíblica. Por isso,é importante redifinir tais conceitos. Numa explicação original, embora reconhecendo o desgaste sofrido pelas categorias corpo e alma, o teólogo afirma que elas são consagradas pela tradição e fazem parte do inconsciente da cultura ocidental. Por isso, não há que se descartá-las, mas resgatar seu significado bíblico mais autêntico. 3.1- Pessoa como unidade corpo-alma

A expressão “corpo e alma” identifica a experiência radical da unidade humana189. Todo o seu eu está presente em cada uma dessas dimensões. Assim, ´corpo´ não é algo que ele tem, mas é ele próprio, todo inteiro, enquanto ser voltado para as realidades da história, as situações de comunhão, comunicação, presença, doação... Da mesma forma, ´alma´ não significa uma qualidade espiritual humana, mas o humano em totalidade enquanto voltado para as esferas espirituais do infinito e do transcendente: ela é “a subjetividade do ser humano concreto, o que inclui também a dimensão corpo”, e este, como sendo “o próprio espírito se realizando dentro da matéria”190, num determinado espaço e tempo dentro do mundo.

Por isso tudo, não se pode falar de pessoa humana senão enquanto ser encarnado e vivendo na história, bem como uma totalidade que se encontra, se relaciona e dialoga ao mesmo tempo com o outro humano e com as outras realidades do mundo. É enquanto corpo-alma que estabelece relações de fraternidade ou de ódio, de cuidado ou de abuso, que o ser humano vai para Deus ou O rejeita, se salva ou se condena...: “só na totalidade dos relacionamentos o homem experimenta sua verdadeira espiritualidade e corporalidade”191. Esta não é senão o conjunto existencial em que o espírito humano, expresso no corpo material, estabelece laços e relações com o mundo. Não há atos humanos tão somente corporais ou tão somente espirituais, pois o humano é um espírito corporalizado e um corpo espiritualizado. Por isso, “quanto mais o espírito é espírito, mais se manifesta e penetra a matéria. Quanto mais o corpo é corpo, tanto mais se exprime espiritualmente”192. O teólogo usa termos como encarnação, para se referir à alma como expressão espiritual do homem corporal, e excarnação para se referir ao corpo como expressão histórica do homem espiritual. Isso na Bíblia é tão evidente que ela não tem um termo que designe alma sem se referir ao corpo, e nem corpo sem se referir à alma.

Por razões diversas, a teologia ocidental clássica, fortemente influenciada pela determinação não-platônica da antropologia, tem pensado dualisticamente a realidade humana. Mas, o atual paradigma permite a entrada numa via antropológica que se aproxima muito mais da Bíblia, que é essencialmente de unidade e integração193.

189 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 84. 190 Jesus Cristo Libertador, p. 100; A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 85. 191 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 86. 192 Ibid., p. 85. 193 Ibid., pp. 87-89; cf. Vida segundo o Espírito, pp. 42-50.

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Para se referir ao homem biológico, feito da terra, o termo bíblico, no Antigo Testamento, é basar, que corresponde ao grego neo-testamentário sárx. É a idéia bíblica de homem-carne. Criatura, o ser humano não é realidade absoluta nem independente. Por isso, o homem-carne é finito, pois, “Dizer criatura é dizer dependência e, por isso, limitação”194. Por causa dessa finitude, o humano está sempre sujeito ao sofrimento e à morte... Uma finitude ontológica que acontece sempre mediada concreta e historicamente. Por extensão, quando o ser humano se mantém preso apenas à dimensão terrestre, torna-se fechado em si mesmo, limitado, sujeito às tentações e ao pecado (cf. Rm 7), e a Bíblia refere-se a ele também como homem-carne, e aqui sua existência é inautêntica, pois se historifica hoje em práticas humanas de egoísmo, de auto-suficiência, de fechamento, de injustiça, opressão, exclusão...

A mesma palavra basar, na Bíblia, é traduzida também pelo grego soma, e serve para designar o homem-corpo, o ser humano enquanto ser-em-comunhão com os outros (cf. Rm 12,1; 1Cor 7,4; 9,27), em seu relacionamento interpessoal, social e político.

O ser humano como ser vivente é homem-alma, correspondente ao hebraico nefesh e ao grego psiqué. Alma, aqui, significa, acima de tudo, vida (cf. Gn 2,7; Jó 12,10). O humano é um ser corporal vivente. É neste sentido que a Bíblia o entende como homem corpo-alma.

Finalmente, o homem-espírito, equivalente a ruah, em hebraico, e a pneuma, em grego, designa o homem total, corpo-alma, enquanto se abre para Deus. Os limites da existência histórica, enquanto homem-carne-corpo-alma, o homem-espírito os transcende na comunicação com Deus. Como outro possível projeto de vida, este é sinal da transcendência humana. Uma vida segundo o espírito volta-se para os verdadeiros valores existenciais de comunhão humana e de comunhão com Deus. Paulo refere-se ao homem ressuscitado como corpo espiritual (1Cor 15,44), quando então os limites de toda vida carnal e corporal vão ser transfigurados, emergindo assim o homem-corpo espiritual, então pessoa realizada e acontecida, plena em sua capacidade de comunicação de comunhão com Deus, com outras pessoas e com toda a realidade, à semelhança do Senhor ressuscitado (cf. Lc 24,36-43; Jo 20, 19-20).

Como se vê, as duas categorias, corpo e alma, que no ocidente, a partir de Santo Agostinho começam a ser separadas e antagonizadas, biblicamente são muito equivalentes. Ao colocar na boca de Jesus que “...aquele que quiser salvar sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (16,25), Mateus mostra que, “para a Bíblia, tudo no homem é de alguma forma corporal. Pertence ao ser-homem a corporalidade”195. Esta pode ter variadas faces e expressões: de fechamento e egoísmo, como homem-corpo-carne (cf. Rm 8,5; 8,9; 2Pd 2,10), ou de abertura, comunhão e referência radical a Deus, como homem-corpo-espírito (cf. Gl 5,16; 1Pd 4,6). 194 Vida segundo o Espírito, p. 42-43. 195 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 89; cf. tb. Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 60.

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Por isso, para Boff, em Jesus Cristo o corporal se mostra como o caminho que leva a Deus e aos homens, pois ele é humano em sua dimensão pessoal de diálogo e comunhão196, pois também, a maior e mais perfeita comunicabilidade habita em Cristo em forma corporal (cf. Cl 2,9).

Todas essas categorias encontram um ponto de convergência numa encruzilhada dialética que manifesta as duas opções fundamentais da existência humana: viver segundo o espírito ou viver segundo a carne. Ao organizar sua vida segundo a carne, a pessoa se estabelece e se relaciona segundo os critérios e as capacidades deste mundo, vivendo no acúmulo de bens, na desonestidade, na corrupção, na esperteza, no egoísmo, nos prazeres... e gerando conseqüências como a impureza, o ódio, o rancor, o pecado, as divisões, a injustiça, o empobrecimento, a violência (cf. Gl 5,19-21)..., bem como desequilíbrios ecológicos de toda ordem. De outro lado, a vida segundo o espírito, sem deixar de lado as exigências naturais da existência humana, acolhe as dificuldades, os sofrimentos, a pequenez, a mortalidade...; nela o humano pode assumir com seriedade e responsabilidade seu compromisso com as realidades históricas, direcionando-as ao Reino de Deus; bem como ver o mundo com olhos de eternidade, sentir-se filho diante de Deus, ser fraternal com os outros, e senhoril frente ao mundo197.

No entanto, já ao nascer, a pessoa começa a participar de uma cumplicidade universal humana198, voltada simultaneamente para o bem e para o mal. Todos participam do drama da existência humana de ter que viver na ambiguidade existencial da vida segundo o espírito e segundo a carne. Tal situação de “finitude consciente do mundo”, leva o humano à consciência da estrutura de todo ser criado. “Esta pertença a duas dimensões da realidade o fazem sofrer, pois elas o atravessam por inteiro; ele é carne (do mundo) e é espírito (de Deus), perfeito e imperfeito”199, ao mesmo tempo onticamente finito e orientado para o infinito. Esta abertura infinita ele a realiza parcialmente, enquanto ser histórico, corporal. O finito aponta uma realidade para além dele, plena e absoluta, que ao mesmo tempo o ilumina e o faz discernir com clareza a relatividade das situações históricas. A encarnação do espírito na matéria conta com essa defasagem. Por isso, diz ele, “toda encarnação é a um tempo limitação e concreção”200. O paradoxo existencial é o de experimentar simultaneamente a graça e a des-graça201.

A situação é ainda mais dramática porque os projetos de vida se interpenetram, o que faz do ser humano um ser ontologicamente em tensão: vivendo simultaneamente na carne e no espírito, ele se sente encurralado no próprio limite, mas dimensionando-se irresistivelmente para o ilimitado. Ele é simultaneamente capaz de atos heróicos de solidariedade e de gestos animalescos de terríveis carnificinas humanas. Adão e Cristo, anjos e

196 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 89. 197 O destino do homem e do mundo, pp. 37-39; cf. tb. Vida segundo o Espírito, p. 45. 198 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 124. 199 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 124. 200 O caminhar da Igreja com os oprimidos, p. 168. 201 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 17.

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demônios, simbólicos e diabólicos habitam conjuntamente a pessoa humana202, à semelhança do que Paulo expressa em Gl 5,17; e em Rm 7,19.23-24. o bem e o mal são realidades coexistentes em contínua dialética no humano que, ser de abertura infinita, consegue viver tão apenas uma realização parcial dela.

No entanto, em si mesma, a ambiguidade humana deve ser encarada positivamente. A condição de finitude consciente é de caráter inocente e, antes de ser um mal, revela a dignidade humana de criatura dependente de Deus203, e é sinal do dinamismo da vocação simultaneamente carnal e espiritual. Ela deriva não da limitação do espírito na matéria, mas, ao contrário, da complexificação consciente do ser que atinge a transcendência. Isso porque a consciência é um dado transcendente, e o humano verdadeiro emerge quando o ser adquire consciência. Se o espírito é o “sentido e progresso da matéria”, esta vem a ser “a pré-história do espírito... um momento próprio do espírito”204.

A ambiguidade gera no humano a compreensão de que sua razão última, bem como a de todo o cosmos, não está nele, mas em Alguém maior, mais perfeito. Mas, embora existencial, e em si mesma inofensiva, essa situação pode vir a ser oportunidade do pecado quando não se aceita essa condição de criatura dependente de Deus (cf. Gn 3,5). Pecado é o desejo prático de se dizer não à sua criaturalidade, e procurar ser o que ele não é: Deus205. Por isso, é alienação, é sofrimento, é neurose ontológica. Assim é que, na origem do homem está a experiência de pecado original que modula nele uma esquizofrenia ontológica histórica206. Por isso, em lugar de ‘pecado original’, a tradição cristã usa a palavra ‘corrupção’, no sentido que Agostinho lhe dá, segundo a orientação etimológica: corrupção é o coração (cor) rompido (ruptus); ser homo corruptus é a condição pecaminosa do humano207.

Vocacionado a encontrar seu fundamento em Deus, o ser humano experimenta seu pecado como uma recusa da aceitação da limitação de um espírito na carne; no fundo, resultado de um uso errôneo da liberdade. Este pecado humano impregna-se em toda a realidade e constitui o chamado pecado do mundo (cf Jo 1,29) e cria um sistema de internalização no próprio homem, e passa a ser quase que uma sua segunda natureza.

A bipolaridade é estrutural da existência; é condição humana ser simultaneamente amor e ódio, caos e cosmos, simbólico e diabólico... Mas, a boa orientação de sua existência tem o poder de levá-lo a reforçar o pólo luminoso dessa contradição, controlando, limitando e integrando o pólo negativo. Tal é a estratégia que Francisco de Assis usa para a construção da paz. A oração da paz, que não é propriamente de sua autoria, mas que registra

202 Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 43; Homem: satã ou anjo bom?, p. 198; cf. tb. O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 120; cf. tb. Meditação da Luz; O caminho da simplicidade, p. 27.32. 203 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 155. 204 Antropologia teológica; O homem à luz do projeto teológico, p. 57s; Homem: satã ou anjo bom?, p. 219. 205 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 156. 206 Pecado original; discussão antiga e moderna e pistas de equacionamento, Grande Sinal 29: 109-133. 207 Homem: satã ou anjo bom?, p. 72.

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fielmente suas intuições, trabalha com os opostos harmonicamente: o pólo positivo não recalca o negativo, mas o assume e o absorve.208 3.2- Pessoa como abertura para o outro

Uma leitura atenta da vida permite perceber que as limitações do homem-carne se integram num universo infinito de multiplicidades, aprofundamentos e desafios. Como ser-carência que não tem nenhum órgão especializado, ele pode transformar seu limite em uma oportunidade original, criando novos instrumentos, novas culturas, novo mundo..., ao mesmo tempo que não se esgota em nada disso e tem seus olhos voltados para um infinito209. Quer dizer, a experiência da finitude humana se desenrola numa possibilidade infinita de ser transcendental e espiritual, numa estrutura ontológica de abertura que constitui como que o pano de fundo da existência humana e molda a vida desde as origens primeiras. Por isso, ela vai além de um simples impulso consciente e objetivo, e também não coincide com um conceito tematizado.

Mas, também essa abertura é marcada pela ambigüidade. Assim, a nível de relações com o semelhante e com o mundo, o humano é simultaneamente sapiens et demens. Sapiens enquanto vivencia um sentido, tem projetos de existência e de criação; demens enquanto produz também absurdos, violências e destruições irracionais210. Toda postura, prática, questionamento, opção, na vida histórica humana, acontece a nível dessa dialética finitude-infinitude, carne-espírito, imanência-transcendência... Cada experiência é sempre o começo de uma outra situação, na qual ele nunca se detém de modo definitivo, razão pela qual, “mais que um ser, o homem emerge como um poder ser”211. Situação para ele sem dúvida problemática e muito inquietante; por isso pode ser tentado a furtar-se a essa experiência. Mas, mesmo fugindo ou se omitindo, está tomando uma opção pessoal em vista da transcendentalidade.

Por isso, não pode o ser humano fragmentar-se para se refugiar na pura essencialidade de uma subjetividade ou interioridade (alma), nem pretender fazer da mundanidade histórica (corpo) um campo perfeito onde possa viver suas plenas potencialidades. Só assumindo sua condição de duplicidade pode chegar à própria verdade unitária. Assim, “existência quer dizer a capacidade que o ser tem de sair de si e regressar para si (re-flexão)”212. Ao sair de si, a pessoa se encontra com a alteridade com tudo o que lhe é próprio, numa comunicação de acolhida e abertura; ao regressar para si, ela se encontra consigo mesma, um ponto de concentração e energias potencializadoras de vida. Entre todas as criaturas só a pessoa pode fazer isso.

208 Virtudes para um outro mundo possível; vol. III: Comer e beber juntos e viver em paz, p. 110-113; A oração de São Francisco; Uma mensagem de paz para o mundo atual, p. 30. 209 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 82. 210 Nova era: a nova civilização planetária, pp. 27.30.43; cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 57.92 et passim; cf. tb. Virtudes para um outro mundo possível. Vol I: Hospitalidade: direito e dever de todos, p. 56; Tempo de transcendência; O ser humano como um projeto infinito, p. 27. 211 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 67; cf. tb. Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 41. 212 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 81; Tempo de transcendência; O ser humano como um projeto infinito, p. 26.

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A saída de si próprio para o encontro com o outro constitui-se em experiência transcendental, que é um dado existencial do ser humano como ser-pessoa-em-comunhão. A experiência transcendental vai além do empirismo coisificante, do racionalismo categorizante e do idealismo nivelador do espírito. A experiência existencial de saída de si diz respeito à totalidade da vida em sua significação, e é, antes de tudo, um encontro que mostra que o “outro” ou o “algo” é fundamental para a existência humana.

Ao sair de si (ex), o ser humano leva sua subjetividade à objetividade com a qual se relaciona. Nesse encontro experimental, ao confrontar-se com a realidade que quer conhecer, abre-se a ela, colocando-se todo nela, interiorizando-a e interiorizando-se nela, numa profunda comunhão de existências. Quer dizer, o conhecimento não é tanto um saber quanto um sabor213, no qual humano e realidade objetiva são transformados. Na experiência da transcendência o ser humano sai de si porque reconhece uma alteridade recíproca que o complementa. O outro é cada ser da criação. Essa capacidade de se auto-transcender é experimentada numa contínua auto-doação. Nesse sentido, os cientistas afirmam que a tendência proto-primária da história dos humanos testemunha mais gestos de partilha comunitária que de tecnologia, como culturalmente se tem acostumado a argumentar214. Só nessa auto-doação e saída de si é que a pessoa pode dizer que realmente existe215, pois, “pessoa, nesse sentido, é um permanente criar-se a partir de uma relação”216.

“Ser pessoa” é ser ontologicamente chamado à abertura e ao encontro. Trata-se, então, de entender a transcendência humana também no que se refere à relação dialogal, aspecto não trabalhado suficientemente pela reflexão teológica clássica, que desenvolve mais uma antropologia dualista que divide a pessoa em termos imanentes, de um lado, e transcendentes, de outro, ao molde da clássica dualidade grega. A tendência individualista da modernidade também acelera um processo de privatização da vida, e esvazia o dado fundamental da dimensão dialogal humana. O personalismo e a teologia moderna, ao insistir na dimensão dialogal da transcendência humana, sem desconsiderar o fundamental das afirmações clássicas, resgatam a unidade da pessoa, e entendem sua dimensão relacional a partir dessa abertura humana transcendental.

A pessoa humana é criada com essa dimensão de transcendência enquanto saída de si mesma e abertura ao outro, para poder chegar até o Grande Outro. Jesus interpreta essa dimensão ontológica e lhe dá um direcionamento concreto, através da fraternidade. O ser irmão tem três raízes fundamentais: a pertença de todos a um mesmo phylum biológico (protologia), a pertença à mesma natureza humana do Filho de Deus encarnado e, finalmente, a destinação de todos ao mesmo fim, o Deus de Jesus de Nazaré. Assim, o amor fraterno consiste em amar o outro como irmão por causa daquilo que de divino existe nele. No próximo, não se ama a beleza, o jeito, a

213 Experimentar Deus hoje, in FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, pp. 135-136. 214 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 89. 215 Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 55. 216 O destino do homem e do mundo, p. 56.

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inteligência..., pois é amor a alguma coisa dele, não ele mesmo. O amor verdadeiro é totalizante. Amar alguém verdadeiramente é amar o seu mistério que, embora passe pelas concreções históricas, transcende-as e aponta para um infinito.

Superando-se o fixismo grego e clássico, pode-se concluir que a personalidade é dinâmica e por isso um vir-a-ser que se assume na comunicação e na reciprocidade. A realização humana supõe fidelidade do indivíduo ao seu processo de ser pessoa, numa abertura incondicional à fraternidade, que é mais exigente quanto mais diferente se é. Por isso a espiritualidade e a teologia da libertação partem do princípio da conversão ao pobre e ao marginalizado, alargando hoje para a conversão ao cuidado para com o cosmos como momento necessário do processo personalizante dessa alteridade profundamente diferente.

Dessa forma, “a palavra fundamental não é mais eu, mas eu-tu. Isto é, a partir da relação é que a pessoa se faz: o tu cria o eu; o eu é um eco do tu”217. Mas, o mesmo Boff se completa dizendo que uma leitura latino-americana da relação buberiana eu-tu deve superar a dimensão da interpessoalidade, que cria o diálogo, e abrir-se de fato aos “muitos outros” que interpelam, provocam, que são diferentes, a mais real alteridade, e que o autor elenca em pelo menos nove grupos: a mulher, o homossexual, o idoso, o doente, o iletrado, o pobre, o excluído, o estranho e o estrangeiro218.

O ocidente tem mostrado dificuldade para lidar com a questão da alteridade desde os tempos da filosofia grega. Centrada demais na própria identidade, a cultura ocidental não abre suficiente espaço para o diferente, para os “culturalmente outros”, como atestam as freqüentes violações dos valores humanos, as catástrofes causadas pelas ideologias totalitárias, as guerras desvastadoras, o colonialismo e o imperialismo que dizimam nações, as devastações do meio ambiente...219. As dificuldades não se manifestam enquanto o diferente é encarado como indivíduo singular, mas quando ele se apresenta estruturalmente, como classe social, povo... Nesse caso, exige-se uma transformação da relação eu-tu numa relação antes de tudo estrutural, eu-tu-nós220, que é a experiência da comunidade.

Da afirmação de que “o outro faz emergir em nós a ética” se conclui pela insuficiência e carência éticas que caracterizam os pensamentos essencialistas sobre o ser humano, que é, antes de tudo, “guardião do irmão”221. Mas é necessário superar a fisionomia ética individual, bem como a apenas ético-social -como se referindo a pobres no plural-, e reconhecer o caráter político da ética. Tal dimensão comporta o compromisso em nível estrutural de forjar uma sociedade justa, com direitos humanos respeitados e possibilidades de personalização para todos.

217 O destino do homem e do mundo, p. 55. 218 Virtudes para um outro mundo possível. Vol 1: Hospitalidade: direito e dever de todos, p. 116-126. 219 Ibid., p. 115-116. 220 A Trindade e a sociedade, p. 148. 221 Virtudes para um outro mundo possível. Vol 1: Hospitalidade: direito e dever de todos, p. 150; cf. tb. Homem: satã ou anjo bom?, p. 96.

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A perspectiva da modernidade que entende e identifica redutivamente a

pessoa com consciência e promulga claramente o subjetivismo que reforça o uso do poder, tornando o homem moderno conquistador, competidor e rival... pode se dizer impregnada de uma ideologia que sustenta a força como forma de auto-afirmação. A ciência e a técnica modernas projetam um logos particular, com sua razão analítico-instrumental insuficiente para compreender o verdadeiro humano, e escondem uma disfarçada sede de poder. Dessa forma, o projeto antropológico da modernidade é o da criação do homo faber, produtor e consumidor por excelência. Conseqüência dessa ideologia é o domínio de um sobre outro, de um povo forte e rico sobre um outro empobrecido e fraco, do ser humano sobre a natureza..., de modo a desumanizar cada vez mais a condição humana. A crise trazida pela modernidade é de caráter estrutural, e “atinge os fundamentos de nosso sistema de convivência”222. Como a teologia acontece dentro da história, não raro ela precisa assumir uma posição apologética, não apenas mostrando o caminho correto da vida, mas, também, desmascarando sofismas, desfazendo falsidades e detectando ideologias opressoras do humano e do cosmos. Dessa forma, ela entende que a objetividade científica da modernidade ofusca e recalca o caminho mais originário e real de acesso à pessoa humana: sua dimensão de pathos, afetividade e simpatia, de eros, desejo de comunhão fraterna e de ternura223 e, acrescenta ultimamente Boff, sua dimensão de daimon, comunicação e atenção à voz da criação toda que nele se comunica. A teologia cristã entende que é na ruptura com a hegemonia do logos, na humanização do eros, superando seu vigor “demoníaco”, e na integração desses dois pólos mais primigênios do existir humano que acontecem a verdadeira “civilização da convivialidade”, a “democracia cósmica”, a mais autêntica inserção de toda a criação no coração de Deus, o verdadeiro homem da manhã da criação e a Teosfera, isto é, a realidade de tudo em Deus e de Deus em tudo224.

Ser pessoa como “abertura ao outro” supõe, portanto, o diálogo com o diferente. O ser humano é constitucionalmente um ser dialogal, e a alteridade é o bastante provocante para o diálogo humanizador.

O maior desafio dialogal está na área da cultura. Antes de tudo faz-se necessária a “reculturação” das culturas oprimidas, capaz de resgatar valores, tradições, apropriações, identidades... Depois disso, é preciso dar um passo maior, não se limitando apenas à inculturação, mas promovendo a interculturação, que favorece o encontro entre culturas diferentes, com suas distintas visões de mundo, espiritualidades, tradições éticas, artísticas... Nesse relacionamento respeitoso com o diferente desenvolve-se o processo humanizante, que supõe, ao mesmo tempo, a emergência de valores e pontos

222 São Francisco de Assis: ternura e vigor; Uma leitura a partir dos pobres, p. 19. 223Cf. sobretudo o capítulo entitulado “São Francisco: a irrupção da ternura e da convivialidade”, do livro São Francisco de Assis: ternura e vigor; Uma leitura a partir dos pobres, pp. 17-63, bem como Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 316-319, 324-328. 224 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 217-242; cf. tb. Saber cuidar; Ética do humano – compaixão pela terra, pp. 116-118.

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comuns entre as culturas, bem como oposições, anti-valores, o que exige empenho conjunto numa verdadeira catársis cultural em relação àquilo que não favorece a construção de uma convivência pacífica. Um verdadeiro desafio, portanto, para o processo de hominização225.

Dado fundamental nessa provocação é o da sexualidade que, longe de ser uma determinação biológica ou genital, se revela com muito mais profundidade, como realidade ontológica, pervadindo todas as dimensões da pessoa humana. Tanto o varão como a fêmea, ambos são dotados de masculinidade e feminilidade, embora naquele predomine mais conscientemente a masculinidade, e nesta, a feminilidade. “Toda mulher possui sua carga de animus (masculinidade) e o homem, a sua de anima (feminilidade), que lhes pervadem todas as dimensões de sua realidade até intracelulares”226. A integração masculino-feminino, na estrutura existencial de uma pessoa, é condição necessária na relação dialogal e em todo o processo de hominização. A relação varão-mulher é um dado ontológico que se apresenta como o estar diante do tu necessário para a real hominização227. Por isso, qualquer preconceito nesse aspecto é prejudicial para o processo humano, e compete às instituições sociais e religiosas, compreendida essa verdade, banir de seu meio toda manifestação exclusivista na linha sexual, todo preconceito desvirtuante e todo complexo desumanizante. 3.3- Pessoa como abertura para o Infinito

O relacionamento dialogal humano abre uma profundidade inesgotável: à medida que caminha, “o homem revela um caráter excêntrico e assintótico”228 e vai percebendo que seu mistério se abre para um Mistério maior que ele mesmo. Então Boff conclui que “a experiência última do homem não é mais homem. É a experiência daquilo que transcende o homem; é a experiência do Mistério”229. Partindo para a busca desse mistério que é o sentido último de tudo o que existe, que está para além dela mesma e das suas outras relações conaturais, a pessoa se revela como um buscador ontológico de sentido.

Na esteira do poeta cubano Roberto Retamar, para quem “o ser humano é habitado por duas fomes: a fome de pão, que é saciável, e a fome de beleza, que é insaciável”230, é possível perceber que os reais interesses humanos caminham sempre nessas duas direções: garantir, o quanto possível as condições básicas de vida e encontrar caminhos que apontem para seu sentido último e definitivo. “Duas fomes” que, na verdade, constituem uma única carência histórico-existencial humana. Se por um lado, “por mais altos que forem os vôos do espírito, por mais profundos os mergulhos da mística, por mais metafísicos os pensamentos abstratos, o ser humano sempre depende de 225 Virtudes para um outro mundo possível. Vol 1: Hospitalidade: direito e dever de todos, p. 169; 186ss. 226 O destino do homem e do mundo, p. 60; cf. tb. O rosto materno de Deus, pp. 47-76; Masculino e feminino: o que é? Fragmentos de uma ontologia, Revista de Cultura Vozes 68: 677-690; Eclesiogênese: As Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja, p. 135. 227 Homem: satã ou anjo bom?, P. 94 228 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 83. 229 Experimentar Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 159. 230 Boff cita o poeta em Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 97. Cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 169.

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um pouco de pão, de um copo de água, enfim, de uma pequena porção de matéria”231, por outro, o problema humano não se reduz a uma simples questão de sobrevivência, através do comer, mas é muito mais amplo: “supõe uma compreensão adequada do que seja a vida humana (um ser de liberdade, de solidariedade, de relações ilimitadas e capaz de comunicação, também com Deus)”232.

A orientação da vida na aceitação desse sentido último e definitivo de toda realidade é a vida na fé, que consiste numa tensão existencial de sempre estar buscando o sentido de toda realidade. Jamais alguém o possui totalmente e nem pode viver sem ele; por isso o humano é sempre, na história, o peregrino do absoluto. A mínima experiência de amor às pessoas e à vida, de realização ou de empenho em alguma obra..., e mesmo a afirmação pessimista do absurdo como o cenário da existência humana, contém oculta a afirmação de um sentido. Na verdade, “o homem não descobre o sentido. Ele se descobre já dentro de um sentido afirmado irreflexamente e vivido inconscientemente”233, do qual não pode absolutamente se furtar. Um fundo simultaneamente ontológico e teológico então se evidencia: na última profundidade da pessoa mora o Mistério que dá origem à sua própria misteriosidade humana.

O ser humano possui uma confiança permanente, não reflexa nem tematizada, na bondade e no sentido da vida. Por isso é capaz de resistir a tantas contrariedades e de não desanimar diante das dificuldades quotidianas. A bondade da vida ele a vive irreflexamente, assim como respira. Ela não está nem aqui nem ali; simplesmente é. Quando na reflexão se pretende captá -la ela se revela eivada de caracteres ambíguos, próprios da realidade humana, do bem e do mal, do belo e do feio... A experiência da bondade da vida é elemento estrutural existencial de todo ser humano.

As religiões, particularmente o cristianismo, chamam a esse “mistério supremo e inefável que envolve nossa existência” (NA 2), de Deus. A abertura ontológica, sinalizada pela situação assintótica e ex-cêntrica de vida, possibilita entender o humano como um-ser-que-procede-de-Deus. Por isso, as tradições espirituais vêm nele um ser capaz de Deus, isto é, que vai para Deus, como quem está na história como homo viator, em busca do Absoluto do qual procede234. “A palavra Deus exprime o infinito da abertura infinita do homem”235. O que há de mais excelente no ser humano, diz Boff, é sua “capacidade de estar para além do mundo, do espaço e do tempo; de realizar seu sonho para cima, que é o encontro com a divindade”236. A referência última do humano não é ele mesmo, nem as demais criaturas; é Deus: “a pessoa não é somente para outra pessoa, mas radicalmente para a Pessoa divina”237. De fato, o ser humano descobre que só em Deus pode encontrar satisfação plena 231 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 92. 232 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 127. 233 Ibid., p. 31. 234 A ressurreição de Cristo; A nossa ressurreição na morte, p. 84. 235 Experimentar Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 143. 236 A transparência: experiência originária. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 67. 237 O destino do homem e do mundo, p. 58.

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em sua busca de relação; só em Seu mistério ele desvenda o próprio mistério humano. Assim, “quanto mais nós nos conhecemos e conhecemos o sol que nos habita, Deus, mais nos integramos, voltados para aquele centro poderoso a que chamamos Deus, mais nos humanizamos”238. Por isso, “o processo de individualização se realiza na capacidade do homem de cada vez mais poder se acercar do símbolo ou arquétipo de Deus, o Selbst-Self”239, responsável pela harmonia integrativa de toda a existência humana. Quanto mais cresce no aprofundamento da vida a partir desse núcleo integrador, mais a pessoa se individualiza, mais é ela mesma, mais se personaliza e realiza seu ethos cultural240, a partir do qual dinamiza sua vida. E mesmo um ethos resultante da negação dessa orientação última existencial sobrenatural é sempre uma referência última a essa dimensão fundamental e totalizante.

Quando alguém diz Deus, não está se referindo a uma categoria óbvia e controlável, como uma realidade entre outras quaisquer. Na vida humana, a palavra Deus é a expressão pronunciada, escrita ou ouvida de uma realidade anterior, de uma experiência fundamental, do “problema radical” da pessoa. Torna-se, então, a palavra humana última, no sentido que reconhece que todas as realidades existem na medida em que fazem referência a ela; deixando Deus de pousar sobre o que existe, dilui-se também a vida de tudo (cf. Ecl 12,7; Ez 1,20; 37,10, etc). Toda a realidade encontra em Deus seu último fundamento e apoio ontológico. Então se pode compreender a exclamação dolorosa do sábio asteca em seu diálogo com os missionários franciscanos: “Deixai-nos, pois, morrer; deixai-nos perecer, pois nossos deuses já estão mortos”241, pois, como justifica Boff, “quando até os próprios deuses já estão mortos, então não há mais nenhuma razão para continuar a viver”242. Essa afirmação de Boff se explica na concepção de Mircea Éliade, para quem, antes de tudo, a sacralidade é real, e quanto mais religioso é o ser humano, mais real ele é e mais sua vida se enche de significação243. Deus, então, é a palavra que a humanidade cria para designar uma realidade que expresse a meta total e absoluta de toda sua busca insaciável, razão pela qual ela adquire também um caráter eminentemente antropológico.

No fundo, o ser humano e sua problematicidade fundamental constituem uma única e mesma realidade; a referência última do ser humano a Deus faz dele um ser teologal, de realidade totalmente problematizada pela questão de Deus. O fundamento ontológico da vida humana é Deus, e ser humano é viver na ótica de Deus244. Por isso, o confrontamento com a palavra Deus e com toda a força vital que ela carrega, leva a pessoa a uma decisão básica quanto à forma de caminhar para o seu eu fundamental. A realização pessoal depende dessa opção, que tem também um elemento de racionalidade, uma justificação intelectiva. Se isso pode dar um caráter de extraordinariedade à experiência,

238 A transparência: experiência originária. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 79. Cf. tb. Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 55. 239 Jesus Cristo Libertador, pp. 178-179. 240 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, PP. 59.173. 241 Miguel LEÓN-PORTILLA, A conquista da América Latina vista pelos índios, p. 20. 242 América Latina: da conquista à nova evangelização, p. 29. 243 Tratado de história das religiões, p. 542. 244 Graça e experiência humana. A graça libertadora no mundo, p. 135.

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por outro lado, o fato de ser fundamental descobre-lhe o que há de fundamentalmente natural nela. 3.3.1- Deus, a experiência humana fundamental de co munhão

Se Deus é a questão radical da pessoa, então sua experiência fundamental é experiência de Deus. E se Deus não é uma realidade que a pessoa descobre fora, nem acrescentada, mas intrínseca a si mesma, então diz-se que o ser humano é, constitutivamente, experiência de Deus.

A referência a Deus envolve a questão do Mistério stricte dictum, mas que é revelado: “uma verdade que transcende as possibilidades de compreensão humana, verdade garantida somente pela comunicação divina e que mesmo depois de comunicada não pode ser positivamente apreendida”245.

A realidade de Deus, que determina a existência humana, é, acima de tudo, uma pergunta infinita, ou seja, um mistério. A experiência do fundamental na vida humana provoca uma abertura para “o Mistério de Deus ou o Deus do Mistério, como fundamento ontológico e abertura permanente de todos os cortes epistemológicos do humano”246.Ou seja, a caminhada humana para a realização tem Deus no centro de seu processo, e se trata de uma experiência portadora de uma “paixão subjetiva”247. Dessa forma, enquanto a filosofia grega concebe Deus como um princípio imutável e inacessível, e enquanto o Deus bíblico vétero-testamentário é tido como bom, justo, fiel e princípio de todo ser vivente, o Deus da revelação cristã transparece encarnatoriamente como sendo a experiência humana do amor, o real absoluto do humano.

Num determinado momento, Deus pode emergir na vida de alguém, por exemplo, de um místico, após longo processo de ascese e amadurecimento, ou de uma pessoa muito pecadora, como diafania e evidência, numa daquelas situações em que o mistério envolvente em si mesmo não permite à razão encontrar razões que a expliquem. “Se isso acontecer, diz Boff, saiba então que Deus terá emergido na vida. Ele há de lhe ser mais real do que sua própria realidade: há de existir mais seguramente do que você mesmo existe. Pois irrompeu em você o Absoluto. Revelou-se o que lhe concerne definitivamente e lhe dá o Sentido de todo viver. É nessa oportunidade que você talvez faça a experiência mais gratificante da vida: sentir a necessidade de agradecer, e saber a quem dirigir-se: a Deus”248.

Se o teologal é essa dimensão humana em que Deus toca o humano em seu cerne, o conhecimento teologal é mais que uma simples questão intelectual ou racional. Inicia-se por um “conhecimento” interior, acontecido nas profundezas do humano, e só então pode se tornar explícito e tematizado pela razão. O fundamento último da racionalidade é sempre o momento primeiro e vital da dimensão teologal humana, com pressupostos que podem ser

245 A Trindade e a sociedade, p. 196. 246 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 73. 247 Como afirma Rubem ALVES, “A verdade da religião não está, assim, na infinitude do objeto, mas, antes, na infinitude da paixão” (O enigma da religião, p. 27). 248 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 160.

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assumidos numa reflexão teórica, numa auto-interpretação da existência humana -filosofia, ou num confronto com os dados da revelação, teologia-, com a finalidade de levar o homem a emergir conscientemente como ser criado e amado por Deus. Por isso, pode-se afirmar que colocar-se a questão fundamental é ser sempre, pelo menos um pouco, filósofo e teólogo, e que na base de qualquer reflexão sobre a existência está a pessoa enquanto ser tocado pelo Mistério de Deus.

Por isso tudo, o conceito ´Deus´ não pode ser apreendido ou definido como os demais conceitos; conhecê-Lo significa deixar-se apreender por Ele. Na verdade, encontra Deus quem antes é encontrado por Ele, numa iniciativa sua de total gratuidade (cf. 1Jo 4,19): “afirmar Deus é acolher implicitamente alguém maior que me aceita”249. Tal conhecimento significa deixar-se envolver pelo mistério, numa perspectiva de contemplação. Dessa forma, o conhecimento de Deus e de sua ação no mundo e no humano não pode ser fracionado. É na totalidade que se pode deixar envolver por esse mistério e ousar pronunciar algo sobre ele. Assim, então, também se podem elaborar conceitos tematizados, mas sempre a partir do envolvimento da contemplação. Mas o conceito deve sempre favorecer também o caminho de volta ao mistério; não pode fechar-se em si mesmo, sob o risco de se tornar infiel.

Deus integra em sua realidade, simultaneamente, o estar presente em toda parte, como fundamento de tudo o que existe, e o aparente não estar em lugar nenhum, pois nenhuma criatura pode contê-Lo. Nesse aspecto, a experiência humana é paradoxal: de um lado, uma referência incontida; de outro, a incapacidade de objetivar a realidade a que se refere. Assim, Deus está no humano, mas “não aparece em si mesmo. Aparece por trás e dentro da ação criadora e livre do ser humano”. No entanto, é esse “lugar nenhum” de Deus, que possibilita ao humano viver e atuar como ator da história250.

Na mesma linha paradoxal, enquanto no mundo categorial um grande conhecimento da realidade gera uma maior independência pessoal, na relação entre criatura e Criador, liberdade e dependência radical são elementos proporcionais. O ser humano só faz a experiência de ser profundamente livre e responsável à medida que reconhece sua própria radical referência a Deus e ao Seu mistério, de modo que experiência de Deus e dependência radical constituem aspectos de uma única e mesma realidade.

Ao afirmar que a experiência originária de Deus não é cosmológica, mas existencial, Boff deseja realçar que o encontro com Ele se dá, antes de tudo, nas situações humanas históricas. Inseridas nesse dinamismo existencial que as relaciona com o homem, as realidades naturais cósmicas se revestem de sentido teologal, e a experiência de Deus valoriza as categorias e as mediações históricas. A teologia tem sempre combatido as concepções de experiência de Deus de cunho imediato, chamada ontologismo, bem como as afirmações de que tudo é Deus, panteísmo, e a experiência de Deus concebida na pura subjetividade humana, quietismo. Na Bíblia, o Deus Inefável, Inatingível, Inominado, é explicitado antropomorficamente através de conceitos 249 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 155. 250 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 79.

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e expressões categoriais. Na realidade humana, o infinito é experimentado e explicitado através de finito, e de modo relativo. Assim, na verdade, para o ser humano, sentir-se finito é já estar na abertura para o infinito251. Por isso, como Mistério, Deus pode emergir até mesmo na experiência do vazio da vida. Só assim, na imanência, é que a pessoa, condicionado pelas dimensões categoriais de espaço e tempo, pode experimentar o Deus Transcendente, Inespacial e Eterno.

Se “o saeculum, o mundo, constitui o centro orientador de nossa compreensão”252, é só através das categorias mundanas que a pessoa humana pode encontrar-se com o transcendente. A manifestação de Deus ao humano se dá, conforme a experiência judaico-cristã, bem no âmago da realidade histórica, e com suas categorias. Por isso, não fala de Deus não como uma realidade pensada em si mesma, mas sempre como referência à situação histórica humana, pois, “Deus nunca se mostra cara a cara. Ele nos vem ao encontro pelas coisas deste mundo”253. Ele “quer ser servido em tudo e através de todas as mediações que mostrem a vida e a verdade da vida, vale dizer, a comunhão e a comunicação”254. Abstrair o religioso dessa dimensão é manipulá-lo e esvaziá-lo de seu potencial transformador.

A categorização da experiência de Deus constitui para o cristianismo como religião histórica um dos maiores desafios, pois deve mostrar Jesus de Nazaré como, acima de tudo, a mediação absoluta e fundamental de Deus (cf. Hb 8,6; 9,15; 12,24). Dessa mediação fundamental de Deus é possível afirmar que “o sagrado não está nos objetos, no altar, na eucaristia, no livro sagrado ou em pessoas consagradas. O sagrado é a profundidade de cada pessoa humana. É a misteriosidade de cada ser da criação”255. Portanto, a presença do Mistério na história é considerada simultanea e totalmente como sendo de Deus e do homem, e deve ser buscada não na obra, mas no seu agente256. A experiência de Deus categorizada tem significado particular lá onde o cristão, mesmo se confrontando com o fracasso e a derrota, é capaz de manter a coragem de resistir, de empenhar-se e de arriscar-se por uma causa justa257. Nessa compreensão, o outro se torna o lugar do encontro com o transcendental que, na América Latina, encontra concreção particularmente no clamor dos pobres.

Na integração dos passos epistemológicos da teologia da libertação, as mediações sócio-analítica e hermenêutica possibilitam compreender que na realidade de sofrimento da América Latina, a busca de Deus acontece em duas situações de ausência258. Na primeira delas constata-se que cresce no cristão que tem fome e sede de justiça e que clama por Deus diante da extremamente dolorosa situação de pobreza, a consciência de que há uma profunda sintonia 251 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, 157. 252 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 40. 253 A absoluta frustração humana, Revista de Cultura Vozes 75: 575. 254 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 67. 255 A transparência: experiência originária. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 67. 256 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 143. 257 Mística e mistério. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 11. 258 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 149-151.

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entre a verdade de Deus e a realidade social de uma vida na justiça e na fraternidade... Sua existência é uma necessária referência a esses valores. Por isso, faz-se a experiência de um Deus inversus, de um Deus sub-contrario259, que emerge do contraste, que aparece mais luminoso e libertador quanto mais densas forem as nuvens da escuridão e da opressão... A segunda ausência atinge o cristianismo em seu coração e refere-se à dificuldade cristã de, às vezes, articular bem as dimensões subjetivas e objetivas da fé cristã, não conseguindo um verdadeiro sentido de integração entre fé e vida. Por isso, não se pode identificar cristianismo teológico, em sua verdade a partir do Deus Libertador de Jesus Cristo, com cristianismo sociológico260, em sua inculturação numa determinada realidade. É tão contundente nisso que, numa afirmação profética, protesta que aquele que “nega o cristianismo sociológico na América Latina, porque foi usurpado pelo poder estabelecido como sua legitimação ideológica, mas busca a Justiça, a Participação e a Libertação, está mais próximo do cristianismo teológico e do Deus vivo e verdadeiro do que aqueloutro que professa a Deus e Jesus Cristo e assume toda a ortodoxia católica, mas fechou os olhos e cerrou o coração à dolorosa marginalidade de milhões, à exploração instituída em sistema e à repressão aceita como legal”261.

Numa excelente reflexão de forte conotação ântropo-teológica, Boff recorda as três eras da busca humana de Deus e de unidade interior e com toda a realidade262. A primeira é a do espírito, centrada no sagrado, no religioso e no espiritual, com sua rica linguagem simbólica, projeção dos mitos, nascimento das divindades... A segunda era é a do corpo, com suas descobertas científicas e tecnológicas, descobertas de novos mundos, conquistas intelectuais e espaciais... convivendo com armas da morte, desvastação da vida... Finalmente, a terceira, na qual entra agora a humanidade, é a era da vida, que tenta integrar e unir corpo e espírito. Assim, “o ser humano está descobrindo seu caminho de volta rumo à grande comunidade dos viventes sob o arco-íris da fraternidade/sororidade cósmica”263.

Na modernidade, o paradigma da razão, com toda sua pretensão de hegemonia e dominação, funciona como uma película que ofusca a presença do divino no mundo. Entrando a modernidade em crise, “o olho capta o que sempre estava aí presente: o gracioso advento da divindade e a possibilidade do extasiar-se humano... uma nova capacidade de encantamento, admiração e magia”264, suscitando um novo tempo de re-ligação do humano e do cósmico com Deus, de forma que pode o humano dizer agora com Jó: “conhecia-Te, ó Deus, só por ouvir dizer; mas agora viram-Te os meus próprios olhos!” (Jó 42,5). A conhecida “volta ao sagrado” põe em evidência uma cultura humana em crise, cansada de propostas religiosas abstratas e ideológicas e ao mesmo 259 Euler R. WESTPHAL, O pensamento trinitário em Leonardo Boff: comunhão e criação, in Estudos Teológicos ano 48, no. 2: 49. 260 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 150. 261 Ibid., p. 150. 262 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 120-123. 263 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 122; cf. tb. Terra e Humanidade: uma comunidade de destino, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. LXX, fasc. 277: 187. 264 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 62.

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tempo sedenta de um encontro com o mistério. Desperta a humanidade para um sentido novo e profundo capaz de re-ligar a consciência pessoal dos homens com sua profundidade, o eu com os outros, o presente com o passado e o futuro, o mundo com Deus... De modo que, segundo Boff, a re-emergência da vida espiritual humana se torna uma das transformações culturais mais importantes do século XXI265.

No Terceiro Mundo, particularmente na Igreja da América Latina, a nova percepção da presença de Deus se reveste de um caráter original: integra a pujança da nova “era da vida”, que desnuda os dados realistas e concretos da história do Continente e faz emergir a riqueza evangélica do pobre, com a manifestação sacramental de Deus nas realidades criadas, numa verdadeira comunhão cósmico-holística. Assiste-se, então, ao nascimento de uma mística, resultado dessa integração fecunda. A nova experiência de Deus gera crises que, destruindo imagens de Deus, reconstrói outras, porque “no processo da experiência de Deus, colocam-se em crise as imagens de Deus”266. Dessa espiritualidade surge, então, a imagem do rosto de um Deus presente nos pequenos e excluídos e em toda a criação. 3.3.2-As representações de Deus

A modernidade se caracteriza como um tempo de desmitologização e secularização. Procura fazer vingar uma chamada teologia da morte de Deus, na Europa, e desencadeia um processo de desmascaramento da religião como reforço da ordem estabelecida e bem constituída. No entanto, não obstante o pretensioso primado absoluto da razão, bem como as investidas iconoclastas, a crise da modernidade também significa um momento positivo para a fé e sua reflexão, no sentido em que lhe dá oportunidade de repensar-se, de descobrir em seu seio possíveis articulações menos fiéis à proposta de Jesus de Nazaré e de se purificar, recolocando-se os próprios valores fundamentais.

Assim, o mundo técnico-científico visto por dentro provoca um efeito justamente oposto àquele que pretende a modernidade. Ele coloca, na verdade, a questão de Deus. O homem, em sua experiência de finitude, busca, no exercício da técnica e da ciência, o sentido último da realidade. Mas só o descobre, acrescenta Boff, “quem se engaja profundamente dentro deste mundo. Quem não teme a mundanidade do mundo. Quem tenta pensar radicalmente e até o fim aquele sentido que está latente dentro da tarefa técnico-científica”267. Em sua finitude, quanto mais mergulha o humano no mistério infinito que o atrai, mais percebe que categorias, conhecimento, bens, poderes, prazeres, etc..., nada pode preenchê-lo, pois sua sede fundamental é de infinito e só Ele pode satisfazê-la.

A realidade, se reduzida à mundanidade, permanece apenas no horizonte científico-técnico; mas se concebida a partir do Sentido do Mistério, na linha da graça, entra no horizonte da fé, e é acolhida pela pessoa sub

265 Do iceberg à Arca de Noé, 117. 266 Os caminhos da experiência de Deus. In Leonardo BOFF e FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 89. 267 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 143.

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specie Dei268. Ou seja, a experiência de Deus que emerge na vida pessoal não é captada através das objetivações científicas, dos sentimentos ou da imaginação... Ele permanece sempre o Inominável, o Mistério Santo, que só pode ser experimentado à medida que se mergulha na radicalidade da experiência do mundo, da vida, do existir...

A tradição teológica apresenta as realidades da transcendência e da imanência. Se Deus é o ponto de referência, a transcendência faz emergir o Pai como referência última, e a imanência é a realidade do ser humano na história. A modernidade tem oscilado na criação de imagens de Deus ora transcendentalistas ora imanentistas. Ambas imagens constituem um desgaste da história como lugar teologal e teológico. Por isso, Boff introduz o conceito da transparência, que não é grego, não vem carregado de dualismos e é essencialmente cristão, como acena o mistério da encarnação. A categoria tem fundamentação nas palavras de Paulo aos Efésios: “Há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos (trans-cendente), por meio de todos (trans-parente) e em todos (in-manente)” (4,6). Portanto, uma categoria que inclui, em vez de excluir.

“Transparência significa a presença da trans-cendência dentro da in-manência”269: a divindade se faz presente em toda sua transcendência nas realidades do mundo. A categoria tem também o mérito de inaugurar um novo sentido de transcendência: ela não acontece tanto no fato de Deus estar para além dos entes criados, mas, neles, tornando-os seres co-habitados pelo divino. Isto é, como mistério de transparência, Deus é transcendente não à realidade, mas nela. É como mistério assim de transcendência que Deus está presente no ser humano, nele transparente. O próprio Deus (transcendência) encarnado na história (imanência), através do Filho, assume, em Jesus de Nazaré, a condição da transparência.

Uma tal nova compreensão de transcendência de Deus permite conhecer a verdadeira identidade do mundo: lugar da manifestação de uma realidade infinitamente superior a ele, pois, “nossa realidade de mundo, de história, de cosmos, tocada pela divindade, ficou transparente, sacramental”270. Por isso, tarefa do humano na história é administrar o mundo de tal forma que ele seja sempre esse espaço da diafania transparente de Deus.

Pensar o Mistério de Deus fora da história é recair nos erros do transcendentalismo ou do imanentismo. A teologia é uma reflexão que acolhe Deus no dado da epocalidade, isto é, da realidade humana histórica na qual se podem perceber as manifestações transparentes de Deus nos homens e nas

268 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 85. 269 Em vários de seus escritos BOFF explana a questão dessas três categorias: Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 132; O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 11., Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos; Minima Sacramentalia, pp. 46s; cf. tb. Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, pp. 49s. No entanto, originariamente, a problemática filosófica dessas categorias pode ser encontrada em seu Das sakramentale Denken: legitimität und Grenzen einer sakralen Denkweise. In Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung, pp. 123-181. 270 A transparência: experiência originária. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 71.

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coisas. Deus é o Absoluto Sentido Radical de tudo, que emerge quando o humano mergulha na profundidade do mistério de tudo o que existe.

Sem que as realidades deixem de ser o que são, “pela presença do divino nelas, tornam-se sinais, símbolos e sacramentos do Mistério que as habita, mistério vital, amoroso e comunional”271. A afirmação central do cristianismo é a de que “Deus aponta em cada ser, acena em cada relação...”, e “principalmente se sacramentaliza na vida de cada pessoa humana”272 insere o humano no interior da própria vida divina.

Para a teologia latino-americana o encontro com Deus em sua forma mais visível depois do Verbo Encarnado, se dá no rosto do pobre, quando se está disposto a aceitá-lo no sentido profundo da vida que ele, por graça de Deus, manifesta privilegiadamente. A realidade do pobre é tão angustiante e real que “se isso não acontecer, então Deus de fato não tem realidade para nós porque não tem relação com o homem e seu mundo. É uma palavra vazia e alienante”273. 4- Hominização: um processo de divinização

O princípio andrópico lembra que o surgimento da vida é resultado de uma série de condições de combinações entre os micromovimentos da energia e da matéria primordiais. Assim, após os primeiros 13,7 bilhões do início da evolução, num tempo que já conta também 3,8 bilhões, surgem as formas primitivas de vida, e num outro que já leva 7 milhões de anos desponta a vida humana. Olhando todo esse processo, o que se revela surpreendentemente é que tudo tem um direcionamento ascendente que aponta um futuro. Dessa forma, o futuro apenas em si mesmo não existe; “O que existe é o passado que contém seminalmente tudo, também o futuro. (...). O futuro significa o repositório ilimitado das possibilidades” ”274, de forma que presente e futuro são seus desdobramentos, o lugar “para-onde” do passado e do presente, o tempo da novidade, do inesperado e da surpresa.

Na perspectiva do novo paradigma, também o cosmos não pode ser reduzido a uma ordem meramente física, química ou energética, mas deve ser compreendido numa dimensão de transparência: “Não é esse o desígnio do Criador, o Futuro Absoluto? Ele é o grande Atrator que atua no futuro e atrai tudo para si, fazendo que tudo passe pelo presente e, uma vez acontecido no presente ingresse no passado”275.

Numa compreensão dessa evolução na perspectiva da compreensão da verdadeira identidade da pessoa humana em Deus, que é o seu fundamento último, o cristianismo tradicionalmente tem levantado a questão da deificação ou divinização. “A completa hominização do homem supõe sua divinização... para tornar-se ele mesmo deve poder realizar a capacidade máxima inscrita em

271 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 79. 272 Ibid., p. 50. 273 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & Outros, Experimentar Deus hoje, p. 151. 274 Homem: satã ou anjo bom?, p. 24. 275 Ibid., p. 26.

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sua natureza de ser um com Deus”276. Quanto mais orientado para essa dimensão infinita que é Deus, mais ele pode ser ele mesmo, situação plenamente vivida por Jesus.

Há quem veja nesta afirmação uma extrapolação para além daquilo que a revelação possibilita compreender277: o homem é assumido por Deus da mesma forma como a humanidade do homem concreto Jesus Cristo é assumida pelo Verbo: “Ora, se Jesus se divinizou no Filho e se o Filho se humanizou em Jesus, e esse Jesus é em tudo igual a nós, significa então que ser Filho humanado e homem divinizado está dentro das possibilidades da humanidade. Caso contrário seria impossível que esse evento benaventurado tivesse acontecido”278. O que sugere união de duas naturezas a nível humano universal.

Com um olhar crítico, no entanto, vê-se que a clássica teologia da

divinização do homem, de elaboração grega e de fundamental importância para o cristão de todos os tempos, não chega a afirmar tais caminhos. “Divinização” é o termo que os teólogos gregos usam para significar a realização humana, na experiência vivencial da graça; em uma palavra, a salvação, quando todos vão se reconhecer plenamente como verdadeira imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27). Como filhos de Deus, na eternidade, todos vão viver a plenitude, em Deus, à semelhança de Cristo. Segundo tais críticos, a reflexão de Boff extrapola essa compreensão e chega às raias da sugestão de uma possível união hipostática em todo homem, conclusão a que a revelação não permite chegar.

No entanto, expressões como “ser um com Deus”,“identificar-se com o Infinito”, “projeção da realidade divina” tão somente indicam uma vida de profunda comunhão com Deus, jamais uma perda de identidade, fusão ou absorção do humano pela divindade. A ordem de Jesus para que seus seguidores sejam santos e perfeitos como o Pai (cf. Mt 5,48; Lc 6,36) indica que o homem é chamado por Deus a participar onticamente da Sua vida, e eticamente do Seu agir279; nisso está seu processo de divinização. A participação da natureza divina revela a essência mais secreta do ser humano. Sem esta participação, o ser histórico não chega jamais à sua humanidade e identidade pessoal.

A teologia da divinização (theopóiesis) é fruto da doutrina da teologia grega sobre a graça, elaborada já nos séculos II e IV. “Como diziam muitos Padres gregos: o homem foi criado homem, mas foi chamado a ser Deus”280, ou ainda: “Deus se fêz homem para que nós homens nos tornássemos deuses, isso é, para que tivéssemos parte da vida divina”281. Tem-se aqui uma teologia prenhe de humanismo, de forma que não deve ser descartada: “o modo de 276 O destino do homem e do mundo, p. 28; Jesus Cristo Libertador, p. 186. 277 Cláudio L. BINS, (Recensão de) BOFF, Leonardo, Vida para além da morte, In AAVV, Recensões, Perspectiva Teológica, n§ 10: 126. 278 É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré?, in Concilium 319; 2007/1, p. 66; cf. tb. Vida para além da morte, p. 80. 279 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 59. 280 Ibid., p. 211, ao comentar Santo IRINEU, Adv. Haer IV, 38,2-4. 281 SANTO ATANÁSIO, Oratio de Incarnatione, cap. 54.

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dicção do problema é grego, mas o problema mesmo não é exclusivamente grego; é humano, e por isso nos interessa”282.

A teologia da graça dos Santos Padres gregos constitui uma referência à essência mais secreta do ser humano. Então, pode-se concluir que ele, só na graça gratuita e generosa de Deus, isto é, “somente na participação daquilo que não é ele, na participação de Deus, se torna homem em plenitude”, e dessa forma, em seu íntimo “se produz um reflexo pálido do inefável processo trinitário”283.

Como Deus é suprema abertura e interpenetração na pericórese trinitária, vivendo no amor e na autocomunicação histórica realizada plena e definitivamente em Jesus Cristo, assim, participar na vida de Deus consiste também em viver na mesma abertura radical e amor total em que Deus vive. “Quanto mais alguém sai de si, comunga com o outro e dá, tanto mais se enriquece em si e a si mesmo e tanto mais se assemelha com o ser próprio de Deus”284 e quanto mais a pessoa vive na comunhão e irrestrita doação, participando da natureza divina, mais humano ele se torna.

A extrema sensibilidade dos Padres gregos na elaboração da teologia da graça traz importantes conseqüências para o pensamento teológico da América Latina. Diferentemente dos países do Primeiro Mundo, onde cresce a busca do sagrado devido ao vazio trazido pela modernidade, no Terceiro Mundo, é principalmente a partir dos pobres e simples de coração que cresce uma procura de Deus. A religião, aqui, adquire, num primeiro momento, um caráter de resistência, de “desfrute de uma liberdade simbólica”, da “libertação da completa desumanização a que são submetidos” os pobres. E quando então esses cristãos começam a “perceber o caráter político de sua miséria” e se articulam “com as armas de luta dos oprimidos”, então suas práticas religiosas “deixam de ser religiões de resistência e começam a ser religiões de libertação”285. É nesse sentido que, para os oprimidos e seus aliados, deve ser entendida hoje a função deiformizante, hominizante e realizadora, da religião cristã. E seu alcance não se dá pela simples tendência apriorística do humano a esse estado, mas, acima de tudo, sempre por obra da graça divina.

282 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 213. 283 Ibid., pp. 217-218. 284 Ibid., p. 218; cf. tb. Juan L. SEGUNDO, A concepção cristã do homem, p. 25. 285 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 69.

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Capítulo III

REVELAÇÃO:

ESTRUTURA PERMANENTE DA HISTÓRIA

1-Pressupostos

Diferentes ângulos de análise e compreensão tecem, hoje, o horizonte da teologia da revelação. De fato, entre os teólogos encontram-se pontos de vista e de compreensão da revelação os mais variados. Eles não se excluem, e em um mesmo teólogo podem ser encontradas tendências que se mesclam.

Boff está entre aqueles, como Karl Rahner, que preferem pensar a

revelação a partir da ótica antropológica existencial. Primeiramente, a perspectiva histórica na compreensão da revelação coloca o homem como personagem importante na história da salvação, dando ênfase à sua experiência existencial. Mas também, na seqüela de Blondel, Tillich, Rahner, Baum, Moran, Tracy, Darlap e da teologia da libertação, especialmente com Gustavo Gutierrez, Boff privilegia o estudo da revelação a partir da dimensão humana do encontro relacional. As ciências modernas, insistindo nessa dimensão, têm contribuído para essa passagem.

A revelação é a força motriz da vida, celebração, oração, reflexão e pastoral da Igreja. A tradição cristã vive dela, meditando-a e pregando-a; mas só no século passado o tema da revelação como tal passa a ser estudado e sistematizado como categoria teológica explícita. Tradicionalmente a teologia da revelação tem sido elaborada a partir de definições e conceitos de revelação muitos deles abstratos, intelectualizados e apriorísticos. A presente reflexão se incumbe de mostrar a tendência boffiana de fazer teologia da revelação a partir das condições ontológicas existenciais humanas e, em conseqüência, da pergunta pelas realidades sócio-históricas desse existir.

Interessa sobremaneira ao teólogo desenvolver uma reflexão capaz de interpretar dialeticamente realidade humana e revelação. Essa relação impede reducionismos que possam comprometer o cerne da mensagem revelada, bem como esvaziamentos de caráter subjetivista, racionalista ou emocional da realidade histórico-concreta do homem latino-americano.

2- A revelação: leitura da história a partir do seu sentido derradeiro

Quase todas as religiões falam de revelação. Sonhos, visões, audições, êxtase, inspiração, fatos extraordinários... são os meios pelos quais uma misteriosa e divina profundidade da realidade se manifesta aos homens, que a experimentam como um mysterium tremendum et fascinans286. Uma força superior à capacidade humana neles se manifesta e os atrai, ao mesmo tempo que os amedronta. Uma dupla reação de atração e de fuga caracterizam essa experiência humana diante do Santo (cf. Ex 3,5; 6,7; 3,3). 286 Cf. Rudol OTTO, O sagrado, Coimbra: Edições Setenta, 1992. Cf. O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 57.

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Na tradição judaico-cristã fato e palavra se relacionam mutuamente. Um

fato está sempre sujeito às mais variadas interpretações; a palavra‚ sua iluminação: interpreta-lhe o sentido, evitando ambiguidades. Mas, a palavra não sobrevive sem o fato. É ele que lhe dá conteúdo, a livra de tornar-se palavrório inócuo. Assim, para caracterizar a Palavra de Deus dirigida aos homens, numa representação que une constitutivamente palavra e fato, os judeus usam o termo Dabar. Deus fala e age na história dos homens (cf. Ez 22,14b). Por isso, a revelação se caracteriza explicitadora mais do fazer que do ser de Deus, bem de acordo com o sentido bíblico de Dabar. Segundo o pensamento semita, não é em Sua essência ontológica que Deus se manifesta, mas em Seu amor, em Suas opções, tomadas de posição e intervenções na história... Por isso, num contexto de compreensão holística da história da humanidade, cresce naturalmente a compreensão “de espiritualidade e de Deus, não como realidades pensadas em si mesmas, mas como referências presentes nos embates, nas grandes decisões, nos avanços e recuos, enfim, no drama humano e histórico”287.

Para as teologias do Antigo e do Novo Testamento, a revelação constitui aquele horizonte a partir do qual se interpreta a história, a do povo judeu e a de toda a humanidade. Os escritores bíblicos relatam suas reflexões ao olhar para trás e descobrir, no entremeado de fatos da vida e da história do povo, um fio condutor a orientar todo um caminho. Não é uma análise historiográfica, política, econômica, estética ou filosófica; tampouco de uma leitura histórica em um nível meramente subjetivo humano. Trata-se de uma compreensão da história como acontecimento salvífico. Os fatos interessam aos hagiógrafos enquanto carregados de um significado. Dentro dessas coordenadas eles interpretam seu sentido derradeiro à luz de Deus e assim os transmitem aos demais.

“A essência da revelação está na espontaneidade do Numinoso que se re-vela e se dá a conhecer, sob várias formas, até sob a forma de Encarnação da divindade, como no cristianismo”288. Por isso, se o judeu do Antigo Testamento vê toda sua história sob o filtro da presença e ação de Yahweh, a primitiva comunidade cristã entende que seu sentido revela-se plenamente na pessoa de Jesus de Nazaré. A ressurreição ajuda a olhar para trás, reler a história de Jesus e verificar que tamanho amor, profundidade e equilíbrio nas relações só podem vir de Deus mesmo289. Em Jesus de Nazaré a fala de Deus e a fala humana se integram em perfeita harmonia, de forma que se torna a pro-posta única de Deus aos homens e a possibilidade de res-posta humana mais plena a Deus. Por isso o cristianismo, embora reconhecendo a presença da verdade também em outros credos, se entende como a melhor explicação de Deus na história humana e a melhor resposta que se possa dar a Deus. Cristo passa a ser entendido, então, como o Logos, Sentido absoluto de toda

287 Mística e mistério. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 11; cf. tb. A Trindade e a sociedade, p. 154. 288 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 652. 289 Jesus Cristo Libertador., p. 131.

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realidade, no qual a história atinge seu Eschaton290. Numa leitura assim interpretativa é que João afirma que o Sentido absoluto da história do mundo “se fêz homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória...” (Jo 1,14).

Os cristãos da primeira hora traduzem sua experiência de Deus em Jesus Cristo de formas variadas. A Palavra revelada encontra eco em seus corações ontologicamente abertos para a revelação, num encontro denominado de experiência cristã fundante. Os evangelhos são uma descrição dessa experiência, tão original em cada evangelista e comunidade. Sua permanente reinterpretação deflagra um seguimento radical de Jesus nas primeiras comunidades cristãs, dentro e fora da Palestina. A transformação de vida (Lc 7,38; 19,1-10; Mt 9, 9-13; Mc 1,20); o despertar de novos valores (Fl 3,8ss), o entusiasmo pelo Reino (At 13,52), o compromisso comunitário (At 2,42s), a solidariedade para com os necessitados (At 4,34), as atitudes proféticas (At 4,8-14;23-31...), a coragem enfrentadora (Jo 3,1; 19,39), a disposição ao martírio (At 5,41; 21,13; 1Pd 4,13)... são marcas da experiência fundante vivida na aurora do cristianismo.

Essa experiência cristã fundante conserva-se viva na Igreja como tradição. Atualizá-la é desafio de todos os tempos. Se as experiências do passado já não falam a linguagem do homem de hoje, devem se submeter a um processo hermenêutico, pois, trazem em si a presença da verdade sempre atual, que de novo conduz à experiência fundante. Como a tendência da tradição é a de estruturar-se e se pensar como bastando-se a si mesma, é preciso sensibilidade para não sufocar o “novo” que a experiência atual traz consigo. Assim, os termos, as idéias, as situações, os problemas, as necessidades e expectativas de todos os tempos encontram resposta e consideração na Palavra de Deus vivenciada e proferida pela Igreja, e que é sempre atual e vivificante.

Então, a partir de Cristo, sabem os seus seguidores que a Palavra de Deus realiza-se lá onde se estabelece a estrutura fundamental do amor. Nesse sentido, a Palavra pode acontecer em todos os ambientes, nos meios cristãos ou fora deles, pois sendo o critério da Sua realização a abertura ao amor a Deus e ao próximo (cf. Mt 22,37; Mc 12,30; Lc 10,27), ele pode ser vivido em todas as situações, lugares e tempos. Por isso, como ponto mais alto da revelação divina, o critério derradeiro de avaliação do grau de legitimidade do testemunho da Palavra de Deus nas religiões e em todos os comportamentos humanos é Jesus Cristo, enquanto vida e mensagem.

A afirmação de que a revelação é o ponto de partida do qual se lê e se compreende a história291 parte do princípio de que esta é movimento da existência humana caracterizada em suas opções livres. Se por um lado a Palavra criadora de Deus existe antes de qualquer dinâmica histórica humana, de forma que a história não pode ser compreendida sem o a-priori da revelação, por outro, é só a partir de sua realidade histórica, de espaço e de tempo, que o homem pode acolher a graça da auto-comunicação de Deus. 290 Jesus Cristo Libertador, pp. 89-101. 291 O destino do homem e do mundo, p. 71.

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2.1-Palavra de Deus é pro-posta divina e res-posta humana

Boff não apresenta propriamente uma definição de ‘revelação’, mas, ao falar dela, aproxima-se de Karl Rahner, referindo-se à revelação mais como um fato de base existencial antropológica que de intervenção divina externa. Assim ele fala de uma Palavra transcendente de Deus292, que entende como a pro-posta universal e eterna que Deus faz a todos os homens para que evitem o mal e façam o bem, uma revelação universal que pode se dar direta ou indiretamente. É direta no caso da revelação mística e profética, tão comum em pessoas carismáticas de todas as religiões. A revelação indireta é a também chamada revelação cósmica, histórica e que se dá por vias da consciência moral, também comum na Bíblia e na história das diversas religiões. A consciência humana é a guardiã dessa Palavra e dos princípios supremos dessa moralidade. Porém, sendo a consciência humana a articulação judicativa dos valores éticos sobre os fatos “externos” humanos, a pro-posta de Deus se faz ouvir dentro das situações concretas, quando então os princípios de moralidade da consciência interagem com a realidade social, histórica e religiosa do contexto humano. E então se pode entender que “o grito do homem é apenas o eco da voz de Deus que o chama”293.

A essa pro-posta de Deus, que na verdade é a recordação de um dever existencial, a pessoa precisa dar uma res-posta. Às questões de consciência cabe responder, sob o risco de se perder o real caminho da profundidade humana. Por isso, “nessa relação para com a Palavra de Deus, que faz surgir a responsabilidade, reside toda a dignidade humana e aí se decide também o futuro do homem, sua salvação ou perdição”294. Assim, a Palavra de Deus é uma realidade sempre atual; é transcendente, pois constitui um apelo às verdades mais derradeiras e absolutas que dinamizam a vida; é existencial, uma vez que não é um acréscimo, mas um constitutivo da existência. Ela não está fora, mas no mais profundo do real humano. E se é assim, diz-se que, ontologicamente, o humano está diretamente comprometido com ela e que, existencial e historicamente, se relaciona com ela através das mediações de captação.

Em seu amor imensurável, Deus quer comunicar-se a um ser diferente de Si mesmo. Para tanto, “criou uma natureza humana, capaz de recebê-lo, permanecendo natureza humana criada e limitada”295, conferindo-lhe, a partir daí, uma identidade ontológica. “O homem, então, é o ser da criação que pode ouvir a pro-posta do Amor e pode dar-lhe uma res-posta com responsabilidade”296. A teologia escolástica chama a essa possibilidade

292 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 658. 293 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 61. 294 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 664. 295 Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 58; cf. tb. Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 61. 296 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 145; cf. tb. Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 660.

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humana de potentia oboedientialis297. A proposta de Deus já traz a exigência da resposta humana, e jamais esgota a pro-posta divina, pois, também, por sua vez, em cada resposta humana já se encontra uma nova proposta de Deus. Mas, por conta de sua condição humana de ambigüidade, o ser humano não consegue jamais equacionar plena e totalmente a proposta de Deus. A cada resposta dele corresponde uma nova proposta divina. No entanto, não cabe a ele o destino eternamente frustrante de Sísifo e de Prometeu. Sua procura e busca existencial de felicidade e de realização encontram ressonância no ato revelador e provocativo de Deus.

“Por isso, os livros sagrados são antes respostas dos homens à proposta de Deus, que a proposta de Deus mesmo”. Aliás, é melhor dizer que, como a resposta humana contém em si a proposta de Deus, os livros sagrados contêm a proposta divina e a resposta humana298, de modo que a Palavra de Deus ressoa na palavra humana. Tamanha relacionalidade entre Palavra divina e palavra humana, entre revelação divina, revelação humana e revelação cósmica, entre pro-posta divina e res-posta humana; enfim, entre Deus, o homem e o cosmos, tem sido az vezes tachada de imanentismo feuerbachiano. No entanto, uma teologia tão fortemente trinitária como se pode ver nos itens seguintes, não pode ser simplesmente acusada de imanentista; além disso, está claro que não se exalta pura e simplesmente a palavra humana (resposta) a ponto de reduzir a Palavra a ela (Revelação). A preocupação é integrar essas “duas palavras” numa Única e mostrar que a proposta transcendente de Deus se “visualiza” na imanente categorização da resposta humana. Mesmo no profetismo, quando “se fala em nome” de Deus, a comunicação se categoriza nas mediações verbais da pessoa carismática.

Entre natureza humana e mistério há uma co-naturalidade devida à objetiva e decisiva orientação do humano para a vida de comunhão plena com Deus e com todas as realidades299. Mas, o Mistério de Deus, compreendido stricte dictum, ao mesmo tempo que se revela, se vela também. Ao ser revelado e comunicado pelas testemunhas (cf. Rm 15,25; 1Cor 2,1-6; Ef 1,9; Cl 1,26; 1Tm 3,9.16; Mc 4,11; Mt 13,11; Lc 8,10), ele permanece mistério. A forma paradoxal de Deus se fazer presente, simultaneamente nessa distância-proximidade, ausência-presença, silêncio-palavra...mostra que é impossível ao humano dominá-lo, manipulá-lo e categorizá-lo como lhe apraz. Mas sua busca o insere numa experiência da graça. Por isso, cabe à razão humana perscrutá- 297 ”Potentia Oboedientialis é a aptidão das coisas para que, por vontade de Deus e com o auxílio comunicado às coisas por Deus, executem alguma incumbência que naturalmente não poderiam executar. Assim, “potência obediencial”, a inteligência dos bem-aventurados ‚ elevada a ver Deus intuitivamente. Diz-se “obediencial” porque só por ordem de Deus, como autor sobrenatural, tal potência pode se tornar ato. Por esta “potência obediencial” qualquer coisa pode ser elevada a produzir qualquer efeito, excetuados, porém, aqueles nos quais se encontrasse alguma complicação ou embaraço. Assim, a pedra, nem com o auxílio especial de Deus poderia raciocinar, ou o olho ouvir, porque isto seria subverter as essências das coisas, e isto repugna ao próprio Deus” ( José Z. MELLINI, Léxico da filosofia medieval. In TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica, Suplemento, vol. XI, p. 97). 298 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 659. Nesse sentido o teólogo Rubem Alves, ciente de que a Palavra não só é mais ampla que a sua sistematização, mas também a contém, entende que dizer “Palavra de Deus” é querer religiosamente sugerir “Palavra de Deus e dos homens” 298, uma vez que “palavra” supõe comunicação vivencial. 299 A Trindade e a sociedade, p. 197.

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Lo, não com a pretensão de esgotá-Lo, mas de entender sua pertinência em relação à existência humana300. A busca humana do mistério, que é sempre antecipada pela contínua manifestação de Deus, faz permanentizar a revelação. Deus continua revelando o onde de Sua presença, através de Sua Palavra, enquanto acolhida, lida e meditada numa comunidade de fé.

As Escrituras são interpretação da história não apenas a partir das respostas positivas do ser humano a Deus, mas também das negativas. A Bíblia mostra bem essa faceta realista da condição humana do povo judeu, na sede de responder responsavelmente a Deus, e na realidade de conviver com o limite do pecado e da ambiguidade existencial. Na mesma história humana, a relação proposta-resposta-proposta que permeia toda a dinâmica revelacional, indica a insuficiência e relatividade do presente histórico, ao mesmo tempo que aponta um futuro escatológico. Mas, é na integração com essa ambiguidade da resposta humana que a Palavra transcendental de Deus permanece verdadeira, e em todo seu vigor, de modo que diante dela toda pessoa é chamada a posicionar-se. 2.2-Dimensão existencial da revelação: o homem como “ ouvinte-da-Palavra ”

Sendo ontológica e estruturalmente um ser em abertura à pro-posta de Deus e com capacidade de dar-Lhe uma res-posta; o ser humano é tido como um ouvinte-da-Palavra301.

A orientação fundamental humana é para Deus, mas só pode

estabelecer com a divindade um relacionamento positivo porque o próprio Deus toma a iniciativa de fazê-lo (cf. 1Jo 4,19). Ontologicamente desproporcional, a comunicação que se estabelece só pode ser de iniciativa de Deus, sinal de Seu grande amor pela humanidade (cf. 1Jo 4,10). A dimensão ontológica humana transcendental que faz do homem um ser de abertura incondicional à auto-comunicação de Deus, e por isso um “ouvinte da Palavra”, deriva da concepção antropológica, ecumênica e universal de revelação. Não é uma qualidade acrescentada à natureza humana, mas é ela mesma enquanto ontológica e definitivamente selada pela Graça. Esta não se percebe como potencialidade pronta e definida de antemão, mas à medida que é vivenciada. Numa linguagem existencialista, assim como o ser humano e todo ente está aberto ao Ser, da mesma forma, o homem religioso está aberto a Deus e à Sua Palavra302.

O campo primário de atuação da Palavra transcendente é o coração humano. Este se sente envolvido no Mistério transcendental, uma atração primária espontânea, uma co-naturalidade sem explicações com o sagrado,

300 Ou seja, há uma relação intrínseca entre a busca de Deus e a busca de Sua compreensão, como diz J. B. Libânio: “enquanto a comunhão com ele não for plena, suas perguntas continuarão a fluir” (Teologia da revelação a partir da modernidade, p. 192). 301 O destino do homem e do mundo, p. 73; cf. tb. Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 658. 302 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 657.

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não primeiramente numa relação física de escuta da mensagem sagrada, mas numa comunicação atemática viva de pessoa para pessoa. Deus está no núcleo da experiência existencial humana não como um apêndice, mas como sua máxima profundidade303.

Na ordem do conhecimento racional, num primeiro momento, o ser humano ouve e entra em contato com a revelação histórica de Deus. Acolhendo-a e refletindo nela, amadurece e chega à ordem primeira do ser, descobrindo e tomando consciência de que é constituído ontologicamente como abertura à revelação e auto-comunicação de Deus, que respeita sua liberdade, mas a determina, no sentido de ter que responder à sua proposta.

Se todo esse processo revelacional é de iniciativa gratuita e amorosa de Deus, em princípio diz-se que a experiência é imediata, pois Ele vem diretamente a encontro do humano. Mas, como sua presença acontece na realidade existencial histórica, a experiência que se faz dEle é mediada por suas condições. Deus não necessita de mediação; Sua comunicação é a realidade mais imediata possível. Mas o ser humano só a ouve através da mediação de si próprio. Na imediatez de Deus o ser humano se torna, para si mesmo, mediação de acolhida. Mediação e imediação não são, de antemão, contraditórias entre si, mas realidades afins, pois, é próprio do transcendente vizibilizar-se na concreção da imanência histórica. Assim, no Antigo Testamento, Deus é “Deus Conosco” (Is 8,8) na medida em que se experiencia sua ação e presença na vida e na história do povo, através dos fatos, acontecimentos, palavras...; no Novo Testamento, enquanto pessoa, vida, palavras e gestos de Jesus Cristo, o Filho Encarnado.

3- A Palavra de Deus e sua articulação lingüística

Na lógica da mediação, a auto-comunicação de Deus à humanidade dá à linguagem um papel fundamental. Como fator histórico, esta adquire fisionomia própria do ser que, condicionado à história, necessita dessas categorias para se fazer entender e para entender o outro. A forma única e ordinária que se tem para compreender a revelação é a da linguagem, em seus diversos modelos de expressão. A Palavra se faz carne e profere palavras, pois só assim pode compreendê-La o humano. A encarnação do Verbo é a realização mais evidente dessa assunção. Tem-se aí uma clara evidência que não se pode falar de Deus sem tratar do homem e uma razão que explica que toda teologia é uma antropologia teológica304. Assim se compreende também que a Escritura é necessária, pois é a forma como os seres humanos preservam e contatuam a experiência que os homens do Antigo e do Novo Testamento fazem da auto-comunicação de Deus. “Sem o texto-testemunho perderíamos o acesso histórico à mensagem e ao Jesus que viveu entre nós. Daí a fé, que se constitui como força histórica, está ligada a estes primeiros textos”305. Por isso, para a teologia, as palavras são mais importantes que para qualquer outra ciência, “porque Deus ninguém vê nem experimenta

303 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 83. 304 Antropologia teológica; o homem à luz do projeto teológico, p. 2. 305 Igreja: carisma e poder, p. 136.

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empiricamente, como experimentamos as realidades do mundo...”306. Jamais a inteligência humana consegue penetrar a totalidade do mistério. Assim, a revelação não se concretiza sem a palavra, e esta não existe sem as articulações e as objetivações, uma vez que acontece em favor do ser humano histórico.

Por isso, a Palavra jamais se reduz à mera materialização objetiva da palavra-termo que se usa para a comunicação do dia-a-dia. Revelação e Palavra não se esgotam nessas articulações. A Palavra de Deus, estando na Escritura, vai além dela. Sua interpretação hoje constitui a problemática fundamental para a teologia, “que sofre com a reconhecida insuficiência de nossos conceitos e expressões humanas”307, sempre frágeis, embora contendo uma essência preciosa. Por isso, a Escritura, na verdade, não remete para si mesma, mas para a fundamental questão de que Deus fala. Ou seja, a linguagem tem uma “função constitutiva”308 no processo revelador, de forma que possa expressar o conteúdo da revelação e de seu sentido.

Na tentativa de explicar-se diante da Sagrada Congregação para a

Doutrina da Fé, por ocasião da polêmica quanto ao seu livro “Igreja, carisma e poder”, Boff diz que tentativas de identificação da revelação divina com uma formulação humana constituem “atitudes dogmatistas e doutrinalistas”, que “facilmente levam à violação de direito dos fiéis a expressões pluralistas de sua fé, no quadro aceito dos dogmas e das expressões da revelação”309. Assim, permanecer nas fórmulas dogmáticas, absolutizando-as como sendo a própria revelação é fazer uso fetichista e mágico das palavras da Escritura, transformando a função simbólica em diabólica, isto é, em função de divisão e desunião310. Por isso é preciso estar atento ao sentido verdadeiro da relação entre a revelação e sua articulação numa determinada expressão objetivada, discernindo bem a experiência de sua expressão, a Palavra da linguagem.

Da mesma forma, existe o perigo de se confundirem expressões culturais particulares e dados imutáveis da revelação311. As fórmulas doutrinais expressam a revelação, mas não toda ela que, não acontecendo fora das determinações concretas, também não se esgota nelas, assim como a experiência de Deus não pode ser de todo racionalizada, pois “a Palavra de Deus não está algemada” (2Tm 2,9). A transcendentalidade da Palavra permite que seja sempre aprofundada, atualizada e traduzida em outras linguagens e termos, a exemplo daquele “pai de família que do seu tesouro tira coisas novas e velhas” (Mt 13,52). É preciso sempre procurar viver o mistério que a palavra busca transmitir, e tentar dizê-lo numa linguagem compreensível dentro das coordenadas de cada tempo312.

306 A Trindade e sociedade, p. 80. 307 Ibid., p. 17. 308 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 35. 309 Igreja: carisma e poder, passim; aqui, pp. 314-315. 310 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 40. 311 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 70. 312 Jesus Cristo Libertador, p. 134.

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No entanto, a palavra como meio de comunicação e de informação, possibilita articulações reflexivas, discussivas, conclusivas, debates, contestações, interpretações... que são tentativas de expressar a palavra-comunicação de base. A teologia acontece nesse segundo momento, e sendo um falar sempre humano sobre Deus, vem carregada do simbólico e do mítico, pois o humano é um ser semiótico. A seu modo, ele se projeta na tentativa de conhecer e de expressar a realidade divina, com a consciência de que nenhuma articulação sua esgota a profundidade e a verdade presente na palavra-comunicação. Este sentido de palavra corresponde ao momento da articulação racional e verbal da experiência de Deus.

Diante do fato comunicativo de Deus na linguagem humana, a pessoa reage de modo evolutivo. Num primeiro momento acredita que a palavra traduz perfeitamente, ou quase, a realidade da auto-comunicacão de Deus. Então, procurando descrever a experiência vivencial da “escuta” dessa auto-comunicação, faz de uma ciência primeiramente experiencial uma outra já racional, com argumentações filosófico-teológicas. Palavras, termos, conceitos e categorizações são veiculados abundantemente; Deus é identificado com os conceitos que dele humanamente se tem. A revelação de Deus se imanentiza nos conceitos e nas palavras. Mas, à medida que se aprofunda na mensagem da revelação, a pessoa experimenta uma reação oposta. Começa a perceber que a Palavra não se adequa a nenhum conceito, tamanha a manifestação de sua transcendência. Pode entender melhor, então, a afirmação de Paulo que diz que foi enviado “para anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se torne inútil a cruz de Cristo” (1Cor 1,17). Finalmente, num terceiro momento, num mergulho mais profundo no mistério da revelação, o ser humano compreende que é “ouvinte da Palavra” através das palavras. Percebe a relatividade de qualquer expressão humana para traduzir a Palavra de Deus, ao mesmo tempo que reconhece sua necessidade. Sente-se simultaneamente necessitado e livre diante delas. Aprende a lê-las com serenidade, vendo-as como possível transparência da auto-comunicação de Deus.

4-A Palavra de Deus na revelação bíblico-cristã

Presente no mundo desde sua criação (cf. Jo 1,1), a Palavra é auto-comunicação de Deus que deve descer ao nível de compreensão do seu interlocutor. O processo encarnatório da revelação tem início já nas origens da história humana, e alcança seu apogeu e expressão máxima no Verbo feito carne, na “plenitude do tempo” (Gl 4,4).

Assim, pode-se afirmar que “a revelação é permanente, em contínuo processo, pois Deus continua se autodoando e historicamente fazendo aparecer outras dimensões de seu mistério na medida em que a própria criação avança”313. A bíblia fala de um povo que vai compreendendo aos poucos a manifestação de Deus. Nos primeiros tempos, um povo ainda a superar a tendência politeísta e imatura (cf. Gn 31,19; Is 31,7) (cf. DV 15), ou antropomorfista e imanentista de Deus. Um povo que aos poucos, vai

313 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 48.

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crescendo na consciência do encontro com Deus, de modo que revelação divina e acolhida humana progressiva interagem e se articulam numa mesma história até serem codificadas nas Escrituras314. Os textos sagrados revelam essa progressividade na experiência da acolhida e da compreensão de Deus, de modo que textos mais recentes completam, corrigem e alteram imagens de Deus presentes nos textos mais antigos.

Como então entender inspiração e inerrância bíblicas nesse contexto tão histórico e tão suscetível aos limites da condição humana a que a revelação divina se dispõe? Conforme a teologia clássica da revelação, inspiração e inerrância bíblicas se supõem. Inspirada, a Bíblia não pode conter erros; é inerrante em todos os seus aspectos. Essa concepção de inerrância tem origem no Concílio Vaticano I (DS 1787 e 1809). A tal entendimento segue na Igreja uma concepção tradicional de inspiração profundamente influenciada principalmente pelas idéias de Orígenes e de Santo Agostinho, com resquícios de teorias pagãs a respeito da natureza da inspiração profética315. A teoria tradicional de inerrância deriva de concepções desse tipo.

A Dei Verbum não define propriamente a inspiração, mas elabora uma

reflexão que abre um caminho de desmitologização e de despsicologização do conceito. Reafirmando evidentemente a inspiração divina de toda a Escritura, o Concílio substitui as antigas fórmulas doutrinais sobre a totalidade da isenção de erros na Escritura, como se afirma no Vaticano I, por uma expressão que diz: “...os livros da Escritura ensinam, com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV 11). Em outras palavras, o Concílio condiciona inerrância às verdades que dizem respeito à salvação humana e, portanto, as demais não precisam estar isentas de erro. Segundo o Concílio, a inerrância não tem a mesma extensão da inspiração.

A uma Palavra transcendente equivale uma inspiração transcendente316. Deus, que pro-põe ao ser humano através da revelação, também o inspira para que Lhe dê uma res-posta positiva e responsável. Assim é que se encontra em São Tiago a seguinte afirmação: “Toda dádiva boa e todo dom perfeito vem do alto, desce do Pai das luzes” (1,17). A inspiração transcendente, sempre no sentido da realização do bem, se categoriza na obra humana da redação do texto literário. O autor bíblico é sempre Deus, não enquanto escreve, mas enquanto se torna força que impulsiona o sujeito a escrever. Esta escrita tem todas as qualidades divinas e por isso é sempre inerrante, enquanto diz respeito não a detalhes em último caso irrelevantes, mas à mensagem específica da salvação.

314 Constantes Antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 40. 315 “A cristandade carrega por séculos, sob a autoridade do maior dos Padres da Igreja, uma teoria que não é senão uma doutrina pagã sobre os livros inspirados, a muito custo cristianizada”, (H. SASSE, Sacra Scriptura. Bemerkungen zur Inspirationslehre Augustins, em Festschrift Franz Dornseiff, Leipsig 1953, pp. 262-273; aqui, p. 267; apud Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119, cit. 42: 655). 316 Ibid.: 660.

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A concepção moderna de história insiste sobretudo no espaço de liberdade e de ação criadora humana que determina o ser humano. A modernidade lega ao mundo uma exuberante exigência de liberdade. A pessoa constitui a síntese do “ser-em-si”, da relação e da liberdade, e onde ela não acontece, certamente não existe a pessoa em plena constituição. Mas esse valor coincide sobremaneira com a proposta de Deus comunicada pela revelação; a ação de Deus na história passa pela liberdade humana. Razão porque a revelação cristã, em contraposição à teologia do judaísmo tardio e do politeísmo dos romanos, dos gregos e dos outros povos, surpreende o mundo com sua proposta de vida na liberdade: “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade” (Gl 5,13a), ou então, “Pois o Senhor ‚ o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade” (1Cor 3,17). A liberdade trazida pelo cristianismo apóia-se fundamentalmente no Espírito. Cristo liberta a todos (Gl 5,14; Rm 13,8-10; 2Cor 5,14). Por isso, como dimensão sine qua non para a existência do “ser pessoa”, a liberdade humana constitui-se como veículo fundamental da revelação e da ação de Deus no mundo. Ao dirigir ao homem sua Palavra, Ele se dá ao homem num oferecimento à sua liberdade. Não usa de poder; não impõe; “não esmaga o homem, mas o con-voca a se exprimir; a pro-posta divina apela para uma res-posta”317.

Sem aprofundar a questão articuladora da inspiração divina com a liberdade humana, o teólogo se limita a referências sobre a possibilidade humana de responder responsável ou irresponsavelmente, adequada ou inadequadamente a Deus. No entanto, a liberdade, como caminho constituinte da pessoa-ser-em-comunhão ressente essa lacuna.

A compreensão boffiana de inspiração é de caráter amplo, ecumênico, universal, e se entende praticamente como o momento da revelação que pede ao homem uma resposta e posicionamento positivos em relação ao Deus que Se lhe comunica. A inspiração é, então, o desejo que o ser humano sente de acolher a Palavra. O que pode ser feito em maneiras e em momentos diversos. Assim, o conceito de inspiração corresponde ao próprio caráter bíblico e está em sintonia com a compreensão do Vaticano II (DV III), favorecendo a acolhida de outras manifestações inspiradas de Deus, também nas religiões extra-bíblicas318 que outras concepções, mesmo atuais, não permitem, ou pelo menos não consideram.

É verdade que, por um lado, tal compreensão de inspiração aproxima de tal forma as realidades Palavra e inspiração319 que não permite ver com clareza e objetividade o que é uma e o que é outra, caracterizando esta última mais como um “momento” da própria Palavra do que um “fato” mesmo, como alude o Concílio... Em contrapartida, por outro, a compreensão carrega o mérito de libertar-se do pontualismo de algumas definições que relacionam 317 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 80. 318 O conceito de ecumenismo em Boff é bem amplo: “Ecumenismo não se restringe mais às confissões cristãs; ele se interessa por todo o fenômeno religioso e por todas as religiões que hoje, num processo de crescente planetização do mundo, se tornam nossos interlocutores habituais” (Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 648). 319 “Essa Palavra transcendente de Deus nós a interpretamos como inspiração transcendente que se categorializa na inspiração literária”, diz Leonardo BOFF in Ibid.: 665.

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imediatamente inspiração com fixação e consignação por escrito de experiências da revelação de Deus320. O que muitos chamam de “inspiração” Boff considera como momento segundo, mais propriamente uma “inspiração literária”321. Finalmente, o acento dado à transcendentalidade humana na história possibilita entender que “inspiração” vai além do caráter cronológico de fixação dos escritos bíblicos, e por isso continua, como ação de Deus, por todo o sempre.

A Igreja insere no conjunto de seus escritos sagrados os livros que considera inspirados, no sentido acima referido de inspiração; são os chamados livros canônicos. Eles constituem uma proposta da mesma Igreja para todos; são mostrados como modelo e fonte de experiência de Deus, de diálogo e de revelação. No entanto, se todos os livros canônicos são inspirados, nem todos os inspirados são canônicos322. A Bíblia registra a revelação completa de Deus; no entanto, as experiências de ausculta da proposta divina e de resposta humana mais ou menos fiel a ela se encontram também relatadas em livros sagrados de outras religiões. Isso, primeiramente, porque a Palavra de Deus é transcendente, uma experiência universal que acontece lá onde o homem busca nas reais profundezas de sua existência a proposta de Deus, através de Seu Cristo, embora em formas diferentes daquelas consideradas oficiais e canônicas (cf. At 17,22-23). Depois, porque, estando a Palavra para além da realidade positiva escrita, os livros canônicos são expressões dessa Palavra, testemunhas que mostram corretamente quem é o Cristo e como os cristãos o experimentam em sua vida e em sua história.

Inspirados e canônicos, ou até mesmo inspirados e não-canônicos, os escritos sagrados são sempre testemunhos humanos. Por isso, a palavra, transcendental, perfeita e eterna, pode ser expressa por uma resposta humana que inclusive pode conter erros e imprecisões através dos quais Deus pode falar com acerto. Na Bíblia, ou em escritos sagrados das outras religiões, eventuais incorreções históricas, científicas, geográficas... não impedem que a verdade absoluta de Deus se manifeste.

Nessa ótica, o Novo Testamento, que contém o conjunto das experiências de fé dos primeiros seguidores de Jesus, representa um testemunho da Igreja primitiva de como os cristãos reagem à Proposta-Resposta de Deus manifestada em Jesus Cristo. A Gnose de Marcião (século II) força a Igreja a definir os escritos que considera de inspiração apostólica e que contêm a experiência referida dos primeiros cristãos. Assim, os quatro evangelhos são diferentes expressões histórico-culturais do único e mesmo Evangelho. No conjunto, se pode perceber que existe “uma unidade estrutural entre os vários documentos, de sorte que podemos, de fato, falar de uma só Escritura, como a história da consciência de uma revelação de Deus na história

320 Para J. B. LIBÂNIO, inspiração é “impulso, moção especial de Deus sobre os autores humanos dos livros da Escritura para redigí-los, permanecendo, Ele, Deus, o autor dos mesmos”, in Teologia da revelação a partir da modernidade, p. 332. 321 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 665. 322 Ibid.: 664.

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do povo judeu”323. Mas, se como o visto anteriormente, a realização plena e absoluta da pro-posta de Deus e da res-posta humana não se confina na Escritura, nenhuma dessas quatro expressões esgota o sentido pleno do Evangelho vivo que é Jesus mesmo, como atesta o próprio evangelista João (21,25). Por isso diz Boff que “o Novo Testamento não é o evangelho, mas as respostas dadas ao evangelho”324, e é dado aos homens “para conservar a pureza do evangelho na Igreja” (DS 501).

Assim, para os primeiros cristãos, muito significativo é o testemunho do “ver” (cf. Mt 28,17; Jo 20,8.18.20.25), que evolui posteriormente nas cartas pastorais para uma teologia da presença do Ressuscitado no seio de sua comunidade, cuja sã doutrina e depósito devem ser guardados cuidadosamente (cf. 1Tm 6,20; 2Tm 1,13ss; Tt 2). Posteriormente se desenvolve uma consciência reflexa de tais experiências e verdades inicialmente muito espontâneas, caminhando-se gradativamente para uma cristologia elaborada. Por essa razão, também nos escritos do Novo Testamento as expressões articuladas e objetivadas podem variar -e variam necessariamente- conforme os tempos e os lugares para expressar a unicidade e a eternidade da Palavra transcendente encarnada em Jesus Cristo.

Esses escritos da Bíblia, particularmente os do Novo Testamento são a fonte originária através da qual se pode perceber hoje, na história atual, a presença das múltiplas propostas de Deus na vida humana. Relendo-os, pode o homem moderno ter acesso, sem erros substanciais, à centralidade da proposta-resposta de Deus em Jesus Cristo, e inspirar-se na mesma experiência dos apóstolos e dos primeiros cristãos. Em sua inspiração transcendental, Deus continua fazendo Sua proposta ao ser humano de hoje, que busca a forma mais adequada de responder-Lhe com responsabilidade, a partir das atuais situações concretas. Boff não se preocupa em dividir, nem mesmo sistematicamente, o dado da revelação em normativa e permanente. Suas reflexões indicam a concepção de um só conjunto revelacional, em concordância com as etapas de maturação da humanidade. Os cristãos sabem que “Deus continua se autodoando e historicamente fazendo aparecer outras dimensões de seu mistério...”325, na medida que vivem a partir dos testemunhos de Jesus Cristo apresentados pelo Novo Testamento. A Tradição é um contínuo recorrer à Palavra de Deus, buscando nela a verdade eterna, que é redita hoje, dentro dos novos horizontes, de uma forma atual e em uma linguagem particular326. A Palavra de Deus é realmente vida, capaz de salvar e de encher de sentido a história humana de todos os tempos.

A compreensão da categorização da inspiração transcendente na história tem consequências importantes para o estudo filológico-histórico-crítico-hermenêutico da Sagrada Escritura. Se a proposta de Deus está contida na resposta humana, então é necessário levar em consideração o panorama histórico, com todos os seus agravantes. Escritos com a ajuda de categorias e

323 Tentativa de solução ecumênica para o problema da inspiração e da inerrância, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 30, fasc. 119: 663. 324 Ibid.: 664. 325 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 48. 326 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 38.

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dados históricos do contexto cultural de uma época, os textos sagrados devem ser relidos e traduzidos dentro dos novos horizontes e linguagens dos tempos e culturas atuais. A compreensão da inspiração transcendente facilita movimentar o texto dentro do horizonte maior da história. Dessa forma resgata-se a atualidade permanente e sempre viva da Palavra.

A Palavra transcendente de Deus é, antes e acima de tudo, a entrega que Deus faz de Si mesmo à pessoa humana. O “falar” de Deus é Ele mesmo; a palavra e sua realização não são dois momentos, mas expressões diferentes da mesma revelação. A concreção semita de Dabar possibilita entender porque a Escritura é farta em expressões fortes para referir-se à Palavra de Deus identificando-a com seu agir. Por isso, a revelação é totalizante, pois Deus não “é” e não age nunca incompletamente327.

Ser ouvinte da Palavra caracteriza o humano como uma criatura que está sempre capacitada a receber o ser de Deus, numa atitude dialogal, aspecto que o define mais que suas categorias metafísicas. A emergência de Deus na vida humana se dá sempre que se pergunta pela profundidade e sentido da existência em suas últimas conseqüências328, num jogo existencial entre proposta e resposta, que sinaliza a interpessoalidade da revelação. Deus, que é comunidade de Pessoas, se auto-comunica ao ser humano, que também é pessoa, mostrando que revelação é um dado interpessoal. Se comunicação requer comunhão de vida, situação de verdadeiro amor e amizade, em todo o contexto cósmico apenas o humano pode acolher conscientemente Sua revelação. Somente ele é capaz, como pessoa e ser espiritual de liberdade, de acolher a oferta da intimidade divina. A revelação à criação só é possível porque o ser humano é esse ser relacional, semiótico e captador da Palavra e de seu sentido...

Essa determinação revela, ao mesmo tempo, uma antinomia existencial humana. A grandeza humana como ser capaz de Deus e capaz de acolhê-Lo em Sua Palavra, convive com a consciência de que tal plenitude não pode ser alcançada senão por dom e graça do mesmo Deus, portanto enquanto ele, antes de tudo, “referência” a Deus. “Depois” é que requer também sua abertura numa resposta de auto-doação humana ao mistério, o que é possível porque o humano é pessoa. Essa contradição existencial, no entanto, deve ser compreendida mais como um impulso do que como limite. Assim, a visão antropológica é otimista: apesar de limitado e condicionado historicamente, o homem é ser de transcendência, de atração para o infinito. O “apesar de...” não diz respeito à atração ao infinito, mas, aos condicionamentos da história... Por isso, pode-se dizer que o que o define essencialmente não é o limite histórico, mas o apelo transcendental que experimenta na condicionalidade histórica.

O diálogo da revelação histórica e explícita acontecida em Jesus Cristo, a Proposta-resposta de Deus feita carne, estabelece um diálogo eclesial que contempla pessoa e comunidade. Por isso, a Palavra é elemento vitalmente constitutivo da Igreja; junto com a Tradição ela é “fonte de vida para a Igreja e 327 Igreja: carisma e poder, p. 314. 328 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 32-34; cf. tb. João B. LIBÂNIO, Teologia da revelação a partir da modernidade, p. 190.

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alma de sua ação evangelizadora” (DAp 247). Há um entrelaçamento profundo entre Igreja, Sagrada Escritura e Tradição (DV 9). Elas “constituem um só sagrado depósito da Palavra de Deus confiado à Igreja”, a quem compete, inclusive, interpretar autenticamente, a mesma palavra. A estrutura sacramental que inclui no processo simultaneamente a “horizontalidade do fato e a verticalidade do sentido salvífico”329, implica necessariamente na existência da Igreja como comunidade à qual está confiado o depositum fidei.

No entanto, a teologia da revelação de Boff deixa a desejar o leitor que espera ver aí um esclarecimento do dado revelacional articulado com a dimensão comunitária eclesial. Nas sendas dos pressupostos da teologia da libertação, entre os quais a priorização do antropológico sobre o eclesial, Boff centra na história aberta, inclusiva, ecumênica... o enfoque da auto-comunicação de Deus, sem se deter muito em sua consideração eclesial.

Consequentemente, o teólogo se distancia também do que objetivamente se entende por estrutura sacramental da revelação cristã, aquilo que a torna distinta de outras formas de revelação, justamente por trazer implicações que se fazem sentir em todos os níveis, sobretudo o eclesial330. Numa conceituação aberta, ampla e menos institucionalizada, a dimensão sacramental da revelação fica por conta da presença da vida divina na realidade e história humanas, santificando as relações e as ações profanas, fazendo assim perpetuar e redimensionar a revelação. Consequentemente, o aspecto eclesial cede preferencialmente lugar a uma forma humana de relacionamento mais profundo com o semelhante.

5. A revelação como “ estrutura permanente da história ”

A virada antropocêntrica da modernidade traz em seu bojo uma visão do mundo bastante comprometida com a história. Diferentemente dos gregos, para quem história vem carregada dos sinais da estaticidade, da perfeição, do acabado, de uma essência definida, o homem bíblico a entende como uma dinâmica de movimento, de ímpeto, de paixão e de vigor... Enquanto o grego se preocupa fundamentalmente com o ser, o judeu se volta basicamente para o acontecer. Por isso, o pensamento helênico fala em duas realidades distintas, antagônicas e em constante conflito que são a natural e a sobrenatural. E também na dupla atitude humana diante do divino, a da contemplação estática e a da libertação da matéria ilusória e opressiva. Ao contrário, no dinamismo histórico dos semitas articula-se bem o evento da revelação de um Deus em permanente dinamismo. Os fatos históricos do povo são entendidos como prenhes da ação libertadora de Deus, o que Israel sabe cantar afinada e harmoniosamente nos inúmeros salmos que proclamam a presença cheia de paixão de Javé na história, que por isso não pode ser concebida como uma realidade dividida entre o profano e o sagrado.

Na perspectiva semita, os homens “fazem história”, enquanto esta é o lugar privilegiado em que Deus se manifesta. Por essa razão, é preciso ver “a história sob a dimensão do definitivamente importante e infinitivamente 329 René LATOURELLE, Op. cit., p. 837. 330 Ibid., p. 837.

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transcendente”331, ao mesmo tempo que acolher a revelação na dinâmica do compromisso histórico, pois a “revelação é um modo de considerar a única história que vivemos, contudo, a partir da última Realidade, descoberta e decifrada como o sentido último da Realidade”332. Como se vê, “a revelação assim é uma estrutura permanente da história”333, uma realidade historicamente estruturada.

A historicidade da revelação é uma opção livre e gratuita de Deus. Tem um caráter de imanência e mostra com clareza que Deus se manifesta ao humano através de suas próprias categorias. É nelas, e não noutras, que o homem deve buscar a presença do Mistério de Deus. A dimensão histórica da revelação leva o homem a comprometer-se com a própria história, pois aí Deus está, aí Deus fala, aí Deus se comunica, nela está Sua proposta que lhe pede resposta. Dessa forma, a situação histórica de dependência, sofrimento e miséria de milhares de humanos representa uma proposta de libertação de Deus. Só na resposta adequada a ela é possível fazer transparecer a face do verdadeiro Deus anunciado por Jesus de Nazaré. As religiões todas, particularmente o cristianismo, estão convidadas a se dar as mãos nesse esforço de responder conjuntamente a essa proposta-desafio. A inspiração divina se manifesta hoje no coração daqueles e daquelas que se dispõem a responder positivamente a esse desafio que Deus está fazendo na história dos homens. Trazer a revelação para a história implica mostrar que a Palavra de Deus escrita na Bíblia Sagrada se estende ao mundo e aos tempos de hoje, urgindo-os a uma tomada de posição como resposta.

A revelacionalidade da história, por sua vez, expressa uma dimensão de transcendência. Se a revelação constitui uma “estrutura permanente da história”, esta não deve ter um fim absurdo e sem sentido, como anunciam os propagadores do nihilismo e do derrotismo. A Proposta-Resposta de Deus, acontecida em sua máxima expressão na ressurreição de Cristo, aponta para um futuro utópico, de plenitude e de libertação, que a experiência cristã chama de Reino de Deus. Assim a libertação humana histórica não é um fim em si mesma, mas se volta para a salvação escatológica. Além disso, a revelacionalidade da história mostra que, na vida, as coisas todas estão interligadas e perpassadas por um Sentido Maior que é a realidade transcendental. O homem é convidado a contemplar a sacramentalidade histórica e a articulá-la com as necessárias transformações que aí emergem da pro-posta libertadora de Deus.

Como lugar da auto-comunicação de Deus, a história reveste-se de um caráter sacramental, pois se torna lugar de antecipação do Reino escatológico. O universo todo se constitui como um transbordamento da presença amorosa de Deus. Daí a necessidade do resgate da antiga idéia cristã do pan-en-teísmo. Diferentemente de panteísmo, para o qual tudo é Deus, o panenteísmo distingue a autonomia relativa de toda realidade e afirma que “tudo não é Deus, mas Deus está em tudo (...) Faz de cada realidade seu Templo ”. Por isso o

331 Constantes Antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 31.33; cf. tb. Virtudes para um outro mundo possível; Vol. 1: Hospitalidade: direito e dever de todos, p. 27. 332 O destino do homem e do mundo, p. 71. 333 Ibid., p.36.

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mundo... “é espelho da Trindade... Deus aponta em cada ser, acena em cada relação, irrompe em cada ecossistema...”334. Sendo o palco da revelação máxima de Deus, pela encarnação de Seu Filho, a história humana se torna lugar de epifania e de encontro dialogal soteriológico. A recuperação da categoria grega do panenteísmo se adequa perfeitamente à presente mudança de paradigma. Consequentemente, Boff trabalha também a questão da transparência, que supera a clássica dualidade imanência-transcendência, numa visão lucidamente sacramental-trinitária.

Ao morrer na Cruz, Cristo entrega seu Espírito aos homens no mundo (cf. Jo 19,29b), de modo que, a partir de então, o Espírito Santo manifesta-se como permeando as estruturas desse mundo histórico, conduzindo-o ao encontro com o Deus revelado pelo Filho.

“Deus se oferece a si mesmo como salvação universalmente a todos os homens, de sorte que há uma só História da Salvação que vai do Abel justo usque ad ultimum electum, recobrindo toda a história dos homens”335. Portanto, no sentido amplo, toda a história universal é de salvação, na medida em que todo ato humano livre coloca o homem em confronto responsável com seu destino de salvação ou de perdição, e a história particular da salvação se manifesta quando o homem toma consciência de uma densidade salvífica numa determinada situação. A História da Salvação é experiência que o humano faz das raízes profundas de seu ser e de toda a realidade, no exercício da liberdade. Uma leitura ambígua da realidade resulta também numa compreensão dualista da história. Assim, a revelação acontece como uma história sagrada, qual óleo que não se mistura à água da grande história universal profana da humanidade, onde se dão as situações de opressão, de empobrecimento e de injustiça, do mal...; como isto tudo não entra da dinâmica da revelação, do agir sagrado neste mundo, a História da Salvação tem pouco ou nada a dizer sobre a opressão e maldade.

A temática da unicidade histórica constitui elemento nodal na reflexão boffiana e latino-americana da libertação, mas bastante questionada pela primeira Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé. Para esta, a distinção entre história universal e História da Salvação é fundamental, e não fazê-lo é arriscar-se a cair num imanentismo histórico que tende a identificar Reino de Deus com movimento de libertação humana...(LN IX,3). No entanto, Boff e os demais teólogos da libertação também distinguem e discernem entre história universal e História da Salvação; apenas não as separam. Há uma só história do homem na medida em que ele a experimenta como espaço existencial da auto-comunicação de Deus. A história humana não sabe que é

334 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 50.52; Eologia, grito da terra, grito dos pobres, PP. 234-237. 335 Igreja: carisma e poder, p. 40. O mesmo pensamento encontra-se na teologia rahneriana, para quem “A própria História é a história dessa salvação ainda que ocultamente e sempre a caminho de sua última e definitiva interpretação” (Karl RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 57), e no livro fundacional da teologia da libertação: “Não há duas histórias, uma profana e outra sagrada, 'justapostas' ou 'estreitamente unidas', senão um só devir humano assumido irreversivelmente por Cristo, Senhor da história... A História da Salvação é a própria entranha da história humana... O devir histórico da humanidade deve ser definitivamente situado no horizonte salvífico... Há uma só história: história cristofinalizada” (Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, pp. 125-146).

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História da Salvação; precisa da revelação, e particularmente da revelação cristã, para tomar consciência disso. É essa história que é de salvação ou de perdição; não há, para o humano, outro espaço de teofania. Também René Latourelle diz que “a História da Salvação é co-extensiva à história da humanidade”336. Consequência natural dessa visão é que tudo o que acontece na história se insere no compromisso de todo ser humano, sobretudo do cristão; nada há de histórico que não tenha a ver com a fé, e vice-versa. Uma separação entre elas equivale a uma compreensão dualista na concepção de cristianismo, além de não favorecer uma visão contemplativa da realidade existencial. O esforço latino-americano deriva de uma forma de compreensão da história como permanente revelação de Deus, que aí está, como presença e graça, nos fatos positivos e bons, e sub specie contrarii, nos acontecimentos maus e pecaminosos. Na lógica do pensamento boffiano anteriormente refletida, caracterizado como teologia que se desenvolve a partir do paradigma “dabar”, torna-se compreensível essa opção.

A existência humana é repleta de momentos de profunda instrospecção e de busca do sentido último da realidade. A consciência humana experimenta, nas coordenadas da epocalidade, a articulação do Mistério com a realidade histórica. Então, mais sensível e atinada ao fundamental, pode captar com maior nitidez a presença do sentido transcendental de toda a realidade, Deus. “Sempre que o homem é abordado por algo definitivamente sério e de radical significado, aí se realiza a revelação”337. É a graça que cria tais marcos referenciais na vida da pessoa e do povo. O fato histórico pode ser ressignificado e acolhido como revelação divina tanto em situações comuns, como, por exemplo, a libertação do Egito, o exílio babilônico, o culto, a tranquilidade da paz e da ordem, etc...., quanto em outras mais direcionadas, como, por exemplo, a iluminação profética. Os dois momentos são reconhecidos e acolhidos pela comunidade de fé como momentos kairói da palavra revelada por Deus.

Na ótica da Teologia da Libertação, não são os critérios da historiografia, da análise científica, sociológica, da ciência literária, etc..., os fundamentais para a compreensão da História da Salvação, mas a ótica da transcendência humana, que se integra no círculo hermenêutico revelação-história338. A revelação acontece na radical e séria busca do definitivo e fundamental da existência, através de momentos que na vida humana oportunizam um encontro salutar e revelador com a Palavra. Então, a questão mais importante já não é perguntar se a revelação ainda hoje acontece ou não, pois Deus fala sempre (cf. Jó 33,14; Dt 5,24; Pv 8,1-9), “mas se o homem é capaz de ouví-la e articulá-la dentro da vida e não lhe oferecer resistência”339. Por isso, para o teólogo, a maior preocupação não são os ateus, que não ouvem a voz de Deus na história, mas os cristãos que não se dão ao trabalho de se perguntar se acaso Deus não lhes está falando nesta ou naquela situação crítica, difícil ou luminosa da própria condição histórica...

336 Dicionário de Teologia Fundamental, p. 845. 337 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 36. 338 Ibid.: 32-33. 339 Ibid.: 36.

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A dificuldade de ouvir a Palavra transcendente está no fato de que ela não pertence à quadratura racional em que o homem ordinariamente se move, porque seu universo é outro que o das categorias históricas ordinárias; está numa dimensão de radical transcendência.

Mas, se a Palavra de Deus à qual o humano está “naturalmente” aberto só se faz entender no complexo da história, ela não deixa de ser transcendente e nem se reduz a expressões históricas imanentes como uma realidade que não existe em si mesma. Mas, permite entender que a história é o habitat natural humano ao qual Deus se auto-comunica. Há uma radical historicidade humana que determina a historicidade da salvação, mas a opção revelacional pela história antecede o homem, e não depende dele, mas da plena liberdade e pura vontade de Deus. Ele mesmo quer entrar e atingir essa história humana por dentro, em seu núcleo, tornando-a simultaneamente divina e humana. Entrada na história que Deus faz acontecer através do Verbo e do Espírito Santo, e que confere à ação e práxis humana histórica um valor definitivo e absoluto. A história se torna lugar teológico no sentido em que tudo nela passa a referir-se ao último e radical nela inaugurados pelo Deus encarnado, o “Deus-conosco”.

Em oposição à pré-modernidade, acostumada a particularizar dados óbvios e a identificar com facilidade dados completamente distintos –como, por exemplo, humanidade e ocidente, Igreja e salvação, cristianismo e cultura européia...-, a modernidade traz a consciência do particular e do individual.

Influenciados por esse modo de ver a realidade, os exegetas descobrem também a riqueza do particular e individual no que toca à revelação: Deus pode escolher alguém, um povo, sem deixar de ser justo e bom para todos (Mt 20,1-16)... Percebem que, sobretudo na revelação, a escolha do particular se dá em função da solidariedade universal: Deus se manifesta a alguém para, através dele, transmitir sua mensagem universal de salvação (Cf 2Tm 2,4). Assim se dá a escolha do povo de Israel, cuja história, no Antigo e no Novo Testamento, “emerge como uma história sacramental (sinal e instrumento), como o momento de conscientização e de reflexão de que a salvação é um oferecimento a todos os povos”340. Nessa mesma ótica, Jesus assume a particularidade da auto-comunicação de Deus e a revela em benefício dos homens do mundo inteiro e de todos os tempos, a homens e mulheres bem determinados, com identidade, cultura e língua bem específicos.

É nessa analogia que se pode sustentar o amor preferencial de Deus pelos pequenos: “os pobres possuem um privilégio divino e jesuânico, pois são os primeiros destinatários da palavra da revelação e da intervenção libertadora de Deus na história”341. É nesse mesmo sentido que se diz hoje que os pobres, preferidos de Deus, possuem enorme potencial evangelizador.

Mas uma tal descoberta do sentido verdadeiro do particular e individual só se faz possível graças à consciência de unicidade histórica. Se, por causa disso, a teologia integra história e revelação, tais considerações permitem 340 Igreja: carisma e poder, p. 40. 341 América Latina: da conquista à nova evangelização, p. 60.

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concluir também que o verdadeiro conceito de salvação faz referência não apenas a uma vida futura, e que não se trata de um dom feito a alguém através de um juízo moral, mas é, antes, o problema fundamental da existência desde já, aqui e agora. A salvação é compreendida corretamente quando em referência originária ao sujeito, em sua natureza de liberdade; caso contrário, ela reflete mais uma visão mágica e mitológica de Deus e de sua ação no mundo. Salvação, conforme o genuíno conceito teológico, é a “auto-realização da pessoa em liberdade diante de Deus, mediante o seu próprio ser autêntico, tal como se lhe manifesta e se lhe oferece na escolha da transcendência interpretada livremente”342. A pessoa cresce na dinâmica da salvação ao progredir como sujeito livre e responsável diante da própria existência.

Essa relação integrativa entre revelação e história, porém, não se dá sem tensões, e corre sempre o risco de elaborar sistematizações em desajuste. Dessa forma, uma concepção cientificista da história tende a não deixar espaço para a revelação quando procura explicar toda a realidade através do raciocínio positivista verificável empiricamente; um dogmatismo de pura e simples identificação da revelação com uma forma histórica particular, pode apresentar um Deus desinteressado da ação e liberdade históricas, reduzindo o humano a um mero reflexo de Sua vontade e de Sua ação; e um extremo biblicismo que proclama as verdades da fé, desconsiderando a realidade humana histórica no processo de revelação, pode fechar-se num ortodoxismo legalista.

6- A religião: a acolhida humana da revelação

“A recepção da revelação divina dentro da realidade humana se chama religião”343, que é a expressão cultural da experiência desse encontro. Revelação e religião são inseparáveis na Bíblia.

Mas, na perspectiva da anteriormente refletida revelação transcendental, a recepção dessa revelação é, antes de tudo, uma experiência mística, que não é doutrina, mas experiência de Deus. Javé, Tao, Pai e Mãe, Buda, Chuang Tzu, Olorum, Deus... não importa o nome que se lhe dê; trata-se sempre da experiência daquele que tudo move e que constitui o Elo fundamental que cimenta em união todas as realidades344.

Nessa perspectiva, a religião, antes de ser uma instituição social hierárquica bem definida, é uma vivência espiritual e mística capaz de re-ligar a pessoa, a humanidade e e todo o cosmos com sua Fonte Originária, numa superação vitoriosa da tensão contínua entre o bem e o mal, o simbólico e o diabólico, entre a sapiência e a demência, em favor do bem e do amor. Nessa religação a religião ocupa lugar de destaque, não apenas porque relê e sistematiza a experiência mística fundamental, mas sobretudo porque se torna capaz de captar o outro lado de toda a realidade e de se tornar uma dimensão

342 Karl RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 55. 343 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 26. 344 Meditação da luz; O caminho da simplicidade, p. 20; Homem, satã ou anjo bom?, p. 138; cf. É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré?, in Concilium 319; 2007/1, p. 63

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do profundo humano, capaz de re-ligar os seres humanos entre si e com o Ser essencial345.

A religião é a codificação da experiência humana fundamental de Deus. Não tem um fim em si mesma, mas, com seu conjunto de doutrina, tem a finalidade de proporcionar sempre mais profundamente a experiência de vida interior com Deus. As várias religiões do mundo são tentativas diferentes de resposta que as todas culturas se preocupam em elaborar à proposta divina346. A religião preserva, reaviva e codifica a experiência humana da “escuta” da Palavra transcendente, e torna-se, assim, a “cristalização posterior da experiência mística”, que é “o ponto comum de todas as religiões”347. Assim, a história das religiões é a história da experiência teologal de toda a humanidade.

Codificadora e reanimadora das expressões das experiências humanas de Deus, a “religião é a tomada de consciência da presença do divino no mundo”348. Por isso aparece referida à história, às suas perguntas e aspirações, às suas angústias e esperanças. A experiência religiosa move-se no espaço dos conceitos últimos e dos valores supremos do ser humano. Elabora utopias e se apresenta como “o universo do sentido derradeiro da história e do cosmos”349. O Vaticano II reforça essa idéia ao dizer que “por meio das religiões diversas procuram os homens uma resposta aos profundos enigmas para a própria condição humana, que tanto ontem como hoje afligem intimamente os espíritos dos homens, quais sejam: que é o homem, qual o sentido e o fim de nossa vida, que é bem e que é pecado, qual a origem dos sofrimentos e qual sua finalidade, qual o caminho para obter a verdadeira felicidade, que é a morte, o julgamento e retribuição após a morte e, finalmente, que é aquele supremo e inefável mistério que envolve nossa existência, donde nos originamos e para o qual caminhamos” (NA 1). Como dados fundamentais do humano, a carência e a gratuidade encontram espaço de realização particularmente na vivência religiosa. No encontro com o sentido último da própria realidade o humano toca a Deus, experiência que traduz em forma de símbolos religiosos.

Sendo a experiência religiosa “um patrimônio antropológico de base”, ela apresenta três atributos fundamentais, que são a globalidade, a integração de todas as dimensões e a diafania do divino na história350. Por sua característica de globalidade, a religião possibilita ao humano a experiência de Deus em todos os setores da vida, mesmo nos espaços e situações de secularização. Como integradora de todas as dimensões ela testemunha que toda a realidade está marcada pela presença sacramental do divino. Finalmente, como diáfana ao divino, ela lembra que este não é algo que se acrescenta ao mundo, mas

345 Homem: satã ou anjo bom?, p. 136; cf. tb. Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 53. 346 Meditação da Luz; O caminho da simplicidade, p. 18-19; Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 147. 347 Homem: satã ou anjo bom?, p. 138; Sentido religioso de mistério e mística. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 19. 348 André T. QUEIRUGA, Revelação e realização humana, p. 118. 349 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 294. 350 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 64.

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que emerge a partir do mais profundo da realidade, que fica transparente e panenteísta a ele.

As diversas religiões representam respostas para os profundos enigmas da condição humana e, através delas, o homem tem “certa percepção daquela força misteriosa que preside o desenrolar das coisas e acontecimentos da vida humana, chegando mesmo às vezes ao conhecimento da suprema Divindade ou até do Pai (NA 1 e 2)” 351.

A verdade fundamental de todos os homens e de todas as realidades é Jesus Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6) para todos. Por isso a revelação cristã, antes de tudo, é a própria pessoa de Jesus Cristo, em seu ser, seu agir e seu falar, que comunicam a verdade de Deus Uno e Trindade de amor.

Mas Cristo se encontra presente e agindo em toda parte onde, ainda que ele não seja nomeado, alguém procura viver a sua proposta de fraternidade. A revelação cristã tematiza essa presença, conservada na fala, pregação e outros sinais da revelação salvadora de Cristo pelas igrejas, mas não esgota a riqueza de toda a sua pessoa, uma vez que nas outras religiões acontece também a verdadeira revelação, à medida que se procura viver relações fraternas. Por isso, a Igreja “nada rejeita do que há de verdadeiro e santo nessas religiões” e, apesar de muitos pontos de discordância com elas, reconhece que “refletem lampejos daquela Verdade que ilumina a todos os homens” (NA 2), Jesus Cristo. “A Igreja espera por aquele dia, só de Deus conhecido, em que todos os povos, a uma só voz, aclamarão o Senhor e se submeterão num mesmo espírito (Sf 3,9)” (NA 4). Dia, porém, não da emergência de uma determinada hegemonia religiosa, mas da transparência de Cristo Jesus como Senhor de todos os povos e de todas as realidades.

Por isso, o cristianismo, que se entende depositário da verdade revelacional universal e da salvação em Jesus Cristo, deve ensinar os cristãos a perscrutarem as “sementes do Verbo”352 presentes nessas outras experiências religiosas revelacionais, impulsionando-as, ao mesmo tempo, a emergirem e crescerem até “a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13). Por isso, não vale dizer que se há um só Deus, deve haver uma só religião, uma vez que “a natureza de Deus é o Mistério. Esse Mistério nunca pode ser captado adequadamente por uma linguagem, um símbolo ou uma doutrina...”353.

Como as culturas latina e anglo-saxônica constituem o principal reduto inicial do cristianismo, é a partir dos seus elementos culturais que se modula grande parte dos costumes, tradições e concepções cristãs. Mas, a cultura latina é fortemente marcada por estruturas políticas e organizações de trabalho predominantemente verticais, hierárquicas e centralizadoras, com tendência ao dogmatismo, à intolerância, ao tradicionalismo e ao etnocentrismo... O perigo é confundir e identificar elementos culturais com elementos básicos da revelação, 351 Cf. tb. Homem, satã ou anjo bom?, p. 139. 352 JUSTINO DE ROMA, II Apol. 7(8), 1-3; 13, 3-6; cf. tb. IDEM, I Apol. 46, 2-4; 63, 10. 353 Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 112.

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e por isso considerá-los de caráter imutável. Por isso, no diálogo inter-religioso, não se deve encalhar na consideração de um ou outro elemento isolado das religiões não-cristãs, mas se olhe uma totalidade cultural, mais atentos às intencionalidades profundas que às manifestações superficiais... Assim, “talvez descubramos que a experiência que eles querem traduzir é muito mais radical, mais completa, mais integradora de Deus do que a nossa, que tem séculos de dualismos, de oposições não reconciliadas”354. Enfim, referindo-se a uma orientação ontológica de toda a humanidade em ordem à salvação, Paulo entende que Deus “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”, e que “há um só Deus e também um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo-Jesus, que se entregou por todos” (1Tm 2,3-6). E o critério inegociável para o qual devem tender todas as religiões está expresso, sem rodeios, no Evangelho de Jesus, em Mt 25, 31-46. Isto é, é no critério do amor aos pobres que todos vão ser julgados. A valorização da vida e a com-paixão para com os sofredores é um ponto comum fundamental de todas as religiões: “a desumanização da qualidade de vida em nível mundial desafia todas as religiões. Será seu teste de autenticidade o posicionamento solidário e libertário que elas assumirem diante dessa anti-realidade”355. Estar do lado da vida; este é o critério fundamental para a legitimidade de qualquer sistema religioso.

6.1-A presença da verdade revelada na religião cris tã

Mas se a revelação de Deus diz respeito também a outras religiões, se todos podem se salvar em Cristo, como cristãos latentes, que sentido tem ser cristão explícito?

O cristão explícito é alguém que revela um crescimento de consciência da realidade religiosa, que em sua consciência vê todas as realidades a partir do mistério de Cristo. O Antigo e o Novo Testamentos são testemunhos escritos da auto-consciência de um povo para o qual tudo está integrado no mistério da revelação, que é a ótica de sua compreensão do mundo e de seus mistérios. O cristão explícito é aquele que professa o sentido radical do humano e do mundo em Deus: estes não estão jogados ao léu, nem condenados a um eterno nihilismo, mas seu futuro é Deus, como o revela patente e plenamente Jesus de Nazaré, o Cristo. O cristão explícito é aquele que, com seus valores, e sobretudo sua vida, questiona profeticamente a supervalorização da efemeridade do presente e se torna sinal, luz e caminho para os demais. É aquele que, por detrás do sofrimento, do fracasso e da própria morte, é capaz de ver sinais de vida e de esperança, pois tal é a experiência do seu Deus crucificado. Volta-se mais para o futuro que para o passado, que está sepultado e redimido pelo sangue de Cristo. O futuro deve ser de eterna comunhão com ele, situação em que toda dor, maldade e a própria morte são superadas, e o homem alcança sua plenitude maior.

354 Mística e cultos africanos. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 94; cf. tb. Homem: satã ou anjo bom?, p. 139. 355 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 72.

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A experiência do encontro com Deus no humano é a novidade que o cristianismo apresenta na história das religiões. Na figura de Jesus de Nazaré, acreditado como Filho de Deus encarnado, os cristãos, após a sua ressurreição, entendem de modo mais pleno o projeto de Deus acerca do homem. Se religião é re-ligação com o Sentido Absoluto que é Deus e com a totalidade do universo, então, Jesus, o Cristo, é a verdadeira religião, pois, “nele os anseios de plenitude, de patência total do ser e de reconciliação global com Deus, com os outros e com o mundo se tornaram realidade concreta”356. O cristianismo, então, “não se entende (propriamente) como religião, mas como a própria vida divina penetrando a vida humana”357. É a plenitude de Deus e do homem, revelada e acontecida no Amor Infinito, que vai do esvaziamento quenótico da encarnação até a glória da ressurreição. Por representar um momento de maior maturidade existencial humana, o cristianismo se sobreleva entre as demais religiões do mundo. Depois sistematizado, se caracteriza, por um lado, pela manifestação do Deus Altíssimo, Senhor dos Exércitos (cf. Is 1,9) na fragilidade e pequenez humanas; por outro, pela grandeza e sublimidade com que se reveste a natureza humana ao acolher Deus mesmo em sua concreção histórica carnal. Então já se pode falar em uma inegável e original antropologia teológica cristã.

O cristianismo constitui uma proposta que gravita ao redor de quatro pólos: a comunidade, a cultura, a identificação simbólica e a comunhão358. Antes de tudo, no centro está a experiência de Deus como comunhão de pessoas, que gera o modelo da comunidade cristã. Depois, a cultura, como um a-priori no qual se integra a mensagem cristã, uma assimilação necessária, sem a qual a mensagem não se faz história. Em terceiro lugar, a identificação simbólica vem caracterizar as atualizações exemplares, sempre renovadas, com que o cristianismo se manifesta aqui e ali. Trata-se de expressões vivenciais que brotam de matrizes culturais que formam a sensibilidade de um povo. Finalmente, é fundamental, nessa forma de entender cristianismo, a cultura da comunhão, derivada da própria identidade do Deus-comunhão-trinitária.

Numa reflexão ad intra, nenhuma expressão cristã deve se julgar a única forma de seguir Jesus. Voltando-se ad extra, a mundialização do cristianismo supõe uma abertura a toda manifestação religiosa da humanidade, esforçando-se por compreender a todas elas como formas distintas que Deus usa para fazer-se presente na história. Num passo mais amplo ainda, a mundialização cristã exige total acolhida de toda experiência produtora de sentido na humanidade, de tudo aquilo que revela a nobreza e a profundidade do mistério humano. A preocupação do cristianismo mundializado não é ele mesmo, mas o futuro da humanidade, incluindo aqui o futuro ecológico. Na medida em que é fiel a essa missão, o cristianismo, está sendo fiel à sua própria utopia e, longe de estar se impondo, cedendo a uma tentação apologética ultrapassada, está abrindo caminho para a verdadeira experiência humana universal do sonho utópico de Jesus com o Reino de Deus. Esse cristianismo mundializado “postula a ressurreição de toda a carne, a vida eterna e a entronização da 356 A ressurreição de Cristo, a nossa ressurreição na morte, p. 15. 357 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 148. 358 América Latina: da conquista à Nova Evangelização, pp. 138- 142.

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Criação inteira, com pedras, animais, pessoas, estrelas, micro e macrocosmo dentro do Reino da Trindade. O cristianismo latino-americano, com sua aura mística popular, sincrética e libertária, poderá oferecer uma colaboração original e fecunda ao cristianismo ecumênico mundializado”359.

Como religião de revelação, o Cristianismo apresenta uma mensagem permeável ao humano. O Cristianismo “sabe” do pressuposto humano teologal derivado sobretudo Cristo, Filho de Deus encarnado em Jesus de Nazaré. A experiência de Deus conforme a proposta cristã consiste na experiência de Sua ética, isto é, na acolhida de um Deus que vem em socorro do homem, protegendo o desvalido, vingando o oprimido, identificando-se com os pobres. O próprio Deus, ontologicamente inacessível, supera a distância que O separa do homem e se torna eticamente próximo dele. Essa compreensão afasta para longe da vivência social cristã a tentação do totalitarismo histórico, da auto-suficiência humana. Por isso, ao lutar pela dignidade humana e dos seres criados, contra tudo o que diminui a graça da vida, o cristianismo está anunciando Deus, pois o ponto de partida da revelação de Jesus Cristo sobre seu Deus é, antes do ontológico, o critério da ética. Por isso, o conhecimento do Deus cristão não é em primeiro lugar uma questão teórico-doutrinal, mas vivencial-ética. É na medida que se assumem os desafios dessa situação de desumanidade que se revela o rosto novo e verdadeiro do Deus de Jesus Cristo. A teologia da libertação desenvolve uma “articulação sacramental”360 que relaciona o mistério de Deus com as necessidades humanas fundamentais. Só a prática desse amor, realizada dentro da história humana, possibilita o verdadeiro conhecimento do Deus que se revela. Nenhum outro sinal, nenhuma outra revelação fora essa é feita por Deus (cf. Mt 16,4). Ao Deus que se revela como Deus corresponde o homem que se liberta como homem. Portanto, apenas uma concepção de homem que leve os cristãos a extirparem da história a miséria humana, a opressão, o desrespeito pode, de fato, corresponder a um humanismo autenticamente cristão.

7- Enfim, uma teologia da revelação a partir do pro fundo existencial humano

A compreensão histórico-existencial de revelação em Boff esbarra no questionamento de René Latourelle no que se refere ao seu ponto de partida. O teólogo francês critica aquelas teologias da revelação que, “em vez de partirem do universal concreto, isto é, Cristo, preferem desenvolver primeiro uma tela de fundo, isto é, a revelação transcendental, a graça e a salvação dada a todo homem que vem a este mundo... Em vez de partir do universal concreto e conhecido, parte-se do universal escondido e indeterminado, escapando ao domínio da consciência. Tal perspectiva não é adotada nem pelas Escrituras nem pelos documentos do Magistério da Igreja”361. Para o teólogo francês, sem a consideração explícita e clara da revelação histórica e

359 América Latina: da conquista à Nova Evangelização, pp. 141-142. 360 A salvação nas libertações; o sentido teológico das libertações sócio-históricas. In Leonardo BOFF & Clodovis BOFF, Da Libertação; o sentido teológico das libertações sócio-históricas, pp. 12-13. João B. LIBÂNIO expressa a mesma idéia sob o nome de “círculo hermenêutico existencial”, in Teologia da revelação a partir da modernidade, p. 439. 361 René LATOURELLE, Op. cit., p. 817 e 845.

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categorial, a revelação se torna ambígua. Na verdade, essa revelação universal não é anônima, mas encontra seu ápice em Jesus Cristo. Não deixar isso claro significa “inverter as perspectivas (...), obscurecer a luz e prolongar uma confusão que não encontra fundamento algum nas Escrituras e no magistério, para os quais a revelação se apresenta como uma irrupção histórica inaudita, da parte de Deus, por meio de nós”362. Uma opção quase que exclusiva pelo aspecto subjetivo da revelação transcendente traz consigo o risco de levar a identificar a atração interior -na linguagem de São Tomás, o “instinto interior”363- com a própria revelação, sendo que “num discurso teológico rigoroso, não se poderia designá-la com o nome de revelação...”364. Por essa razão, pensa o teólogo francês que talvez seja melhor reservar os termos revelação e história da revelação para designar, antes de tudo, a revelação em Jesus Cristo365.

A crítica não difere muito daquele mesma suspeita de reducionismo imanentista que pesa sobre a teologia da libertação em geral. Parece em geral a seus críticos que, nessa interpretação, a revelação seja considerada como um acontecimento natural e consequente do próprio mistério do homem, e “qualquer concepção de revelação que tendesse a reduzir a revelação ao sentido que o homem quer reconhecer-lhe, na compreensão de si mesmo, equivaleria a perverter um dos traços afirmados com maior nitidez pelo Antigo e Novo Testamentos. A revelação é graça do Deus absolutamente livre”366.

No entanto, longe de representar perigo para o teocentrismo da

teologia367, a direção antropocêntrica que caracteriza o pensamento de Boff e de tantos outros sobre a revelação favorece o conhecimento de Deus e do homem. Uma teologia assim concebida trabalha com a existência humana como natureza disponível à fé, e com a revelação concebida como a mais profunda auto-comunicação de Deus mesmo, que acontece nas profundezas ontológicas do ser. Um jeito assim de fazer teologia traz um caráter de envolvimento total e radical do sujeito que busca e compromete o todo da sua existência, tanto mais ele se aprofunda na reflexão da revelação. Constitui a interpretação do fato humano a partir da Palavra de Deus, e a compreensão desta a partir da existência histórica do homem. Ao interpretar-se, o sujeito se experimenta como ser vocacionado, chamado à escuta e à acolhida de Deus, e compreende que a Palavra é auto-comunicação de Deus para si. A “virada antropológica” favorece essa forma de fazer teologia.

A plena correspondência entre o divino e o humano não se confunde com vulgarização da Palavra. “‘Palavra de Deus’ não é uma palavra a mais no conjunto das palavras humanas... Ela pertence a uma outra dimensão, a da profundidade que forma o horizonte da transcendência”368. Na medida em que 362 René LATOURELLE, Op. cit., p. 846. 363 Suma Teológica II-II, 2, 9 ad. 3 364 René LATOURELLE, op. cit., p. 848 365 Ibid., p. 845. 366 Ibid., p. 841. 367 Paulo VI, por ocasião do encerramento do Concílio Vaticano II, afirma que o antropocentrismo não compete com o teocentrismo; antes, ‚ sua verdadeira e autêntica culminação; in Juan L. SEGUNDO, ¿Qué Mundo? ¿Qué Hombre? ¿Qué Dios?, p. 402. 368 Constantes antropológicas e revelação, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 32, fasc. 125: 34.

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amadurece, o homem se torna mais sensível à Palavra transcendente que cala fundo nele; da mesma forma, quanto maior abertura para a auto-comunicação de Deus, a revelação, tanto mais cresce o homem em sua experiência existencial humana.

Mas, de certa forma relacionado a essa questão, sente-se na teologia de Boff uma carência de tratados sistemáticos sobre a temática da revelação. O teólogo tem se limitado a artigos que, embora de grande contribuição para a reflexão, não podem evidentemente tratar com suficiência um tema de tão grande porte. Permanecendo preferencialmente na linha da Palavra Transcendente, é compreensível que o teólogo não se prenda muito ao aspecto normativo da revelação.

Consequentemente, é evidente que o teólogo não realce suficientemente a dimensão eclesial da revelação, seu depositum fidei, a fé apostólica de onde o Evangelho é sempre de novo anunciado. Fica evidente, aqui também, a orientação pro paganis da teologia boffiana. No entanto, um aprofundamento sistematizado do evento da revelação, considerada em sua normatividade, pode ser de grande ajuda para a compreensão do homem como ser portador natural e íntimo da Palavra e da lei de Deus (cf. Dt 30,11-14).

Mas, no geral, também o Magistério, em afirmações como as já vistas em GS 22 e 41 reafirma a íntima relação entre revelação e antropologia. Além disso, pode-se constatar em teólogos de renome afirmações semelhantes. Entre elas pode se encontrar, por exemplo, a afirmação de Bultmann de que falar em revelação não é senão falar do homem em sua relação com Deus: ela “é, antes de tudo, um discurso sobre o homem”369. Apesar de certa reticência, o próprio René Latourelle, afirma que “embora não seja antes de tudo uma antropologia, a revelação tem uma destinação antropológica”. Mas, “para discernir a especificidade da revelação cristã em sua relação com o homem, é preciso, portanto, partir da fonte de luz, isto é, de Cristo, e não das trevas que devem ser iluminadas”370.

369 Apud René LATOURELLE, Op. cit., p. 842. 370 Ibid., p. 842.

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Capítulo IV

UM DEUS QUE SE PERSONIFICA HUMANAMENTE

1- Pressupostos

Original é o rosto do Deus vivido e comunicado por Jesus Cristo: uma

comunhão de Pessoas. Não é uma solidão onipotente, mas uma comunhão de relacionamento e de amor. Desde os primeiros tempos da reflexão teológica a Igreja tem se preocupado em cuidar para que a sutileza que envolve esse mistério não se desdobre em caminhos que deslizem da delicada verdade nuclear. Nos tempos atuais a atenção se renova, pois, aos riscos dos tempos das clássicas controvérsias trinitárias do triteísmo, do subordinacionismo e do modalismo, hoje de certa forma atualizados, quando se fala em paradigma antropológico da teologia, um outro perigo vem à ordem do dia, embora sedimentado numa matriz do longínquo século V: o pelagianismo.

A concepção de Deus do teólogo Leonardo Boff é essencialmente trinitária. A Trindade “constitui um dos cernes do meu pensamento... Toda verdadeira teologia tem que se enfrentar com essa dialética de três termos, cuja síntese é impossível porque nunca se fecha”371. Mas, fala do Deus Trindade mais com um teor vivencial que dogmático. Volta-se mais para o sentido que Ele possa ter na vida e na história da pessoa humana, da sociedade e do cosmos que para a exatidão dos termos e expressões dogmáticas. É na Trindade, enquanto modelo de comunhão, que Igreja e sociedade devem buscar parâmetros para sua vida comunitária e social.

Falar em Deus como Trindade é abrir espaço para um grande desafio, não apenas de lógica, mas sobretudo de mentalidade. Embora a palavra “trindade” lembre imediatamente uma relação matemática, referindo-se às “três” Pessoas que são o Pai, o Filho e o Espírito Santo, não é correto pensar Deus numericamente. Nele não há número; o Único não pode ser um número ao lado de outros. Entender Deus numericamente é pensar as realidades em ordem estática de justaposição.

O desafio antropológico consiste em ultrapassar essa convencionalidade própria da lógica cultural segmentada e atomizada, que vê as coisas desconectadas e isoladas umas das outras. A própria teologia padece desse modo de ver as coisas, por isso pode ter pouco interesse na reflexão trinitária e, quando o faz, pensa de modo tão abstrato e inacessível sem fascinar ninguém.

O desafio está em mudar tal convencionalidade e redescobrir a relacionalidade que envolve toda a realidade. Os nomes trinitários já indicam a relação como única possibilidade de aproximação do mistério de Deus: Pai, Filho e Espírito são realidades claramente relacionais. O número “três” da Trindade se transforma em símbolo e em arquétipo, passando a expressar a 371 A esperança é, hoje, a virtude mais urgente e necessária, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 195.

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unidade na diferença e a diferença na unidade. Mais que número, “três” indica o mistério divino que integra, harmoniza e inclui diferenças, colocando-as em comunhão. Isso é a Trindade.

É impossível descrever com pontualidade e objetividade o mistério de cada uma das divinas Pessoas. Sempre que se fala de Uma, se fala ao mesmo tempo das Outras. Só assim são possíveis referências mais singularizadas, com acentos mais sobre uma ou outra divina Pessoa. Da mesma forma, é impossível ao humano abordar com exatidão o mistério imanente de Deus em Si mesmo; sobre Deus Trino apenas se tiram conclusões a partir de sua revelação na economia da salvação. Só assim, em seguida, cada Uma delas aparece mais singularizada.

É do conhecimento de todos que o autor trabalha o tratado da Santíssima Trindade sobretudo em seu texto A Trindade e a sociedade, que traz os conceitos básicos e fundamentais da tradição cristã sobre a Santíssima Trindade, ao mesmo tempo que é um texto tempo proposta de alternativa e crítica a todo poder não exercido como serviço. É um livro de muitas edições e que tem sua versão popular e sucinta em A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Surpreendentemente, na metade desta década, mais exatamente em 2005, a teologia é enriquecida com outra obra de caráter trinitário do teólogo: São José, a personificação do Pai, praticamente uma extensão do texto anterior a partir de uma análise teológico-espiritual do pai terrestre de Jesus. De modo que, iluminadas pelo novo paradigma ecológico assumido por Boff no fazer teológico, são tais as principais fontes inspiradoras do presente estudo.

Pode estranhamente surpreender o título do capítulo, que anuncia a humanização de Deus como tal, e não apenas de uma das divinas Pessoas, conforme a tradição teológica da Igreja. Mas o título é proposital, e visa chamar atenção para o posicionamento original do teólogo sobre Deus, em seu teologúmeno incidente sobre a personificação humana de cada uma das três Pessoas trinitárias. O que faz ver com maior clareza os passos para a fundamentação da presente tese. Se a antropologia teológica tem seu fundamento tradicional na encarnação do Verbo eterno, que dizer então de uma teologia que afirma objetivamente uma espécie de “encarnação” trinitária? O capítulo se debruça sobre essa questão, apresentando as reflexões teológicas e algumas críticas a elas apresentadas.

Finalmente, é bom lembrar que, embora apresentando algumas categorias mais próprias da teologia trinitária, o presente capítulo não pretende ser um estudo trinitário em si mesmo. Não se espere, aqui, o desenvolvimento de uma doutrina de Deus, da Trindade, ou algo parecido. A intenção primeira não é outra que apresentar o Deus da fé cristã, na hermenêutica do teólogo brasileiro, de modo a ser capaz de permitir vislumbrar sua compreensão de que o estudo sobre Deus emerge de um mergulho na realidade humana.

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2- Conceitos-chave para uma identificação do Deus c ristão

Na tentativa de favorecer a aproximação do Mistério de Deus, a teologia se empenha no trabalho de articular os elementos trinitários presentes na revelação que lhe permitem uma aproximação da lógica e da beleza da vida que flui da comunhão trinitária. Pelo menos três conceitos-chave a teologia consegue captar sobre a identidade do Deus que se manifesta na história humana: Ele é o eterno Vivente, em três Pessoas em comunhão e em relação de pericórese. 2.1- O eterno Vivente

Segundo as escrituras, Deus é aquele que vive (cf. Sl 18,47), a fonte de toda vida (cf. Sl 36,10). O Pai revelado por Jesus é “um mistério de vida, de comunhão e de irrupção para todas as direções”372, como a própria categoria “Pai” já indica. Para realçar a fontalidade vital de Deus, do qual provém toda a vida, divina e humana, o Magistério fala do Pai como princípio sem princípio (DS 1331), como o que tudo o que tem o tem por si mesmo desde toda a eternidade (DS 1331), como fonte e origem de toda a divindade (DS 490; 525; 3326). Os gregos falam do Pai como Arché (causa originária) e Peghé (fonte primordial) de toda a vida divina e criacional, termos que os latinos traduzem por “principium”. Por isso, Deus é o Vivente; é a plenitude da vida em si mesma e o distribuidor dela, tanto na dimensão intra-divina como na dimensão criacional.

Como vida, Deus é também unidade e origem de toda diferença. Por isso, como diz São Gregório Nazianzeno, Ele não é nem masculino nem feminino373. Antes, é a fonte originária abundante do mistério do masculino e feminino da existência humana e também de toda a criação. Por isso, cresce na humanidade uma consciência de que se pode entender melhor a Deus através das simbólicas simultâneas do masculino e do feminino, possibilitando ao humano uma experiência mais completa e integradora dAquele que é Fonte e Origem de sua vida, expressa também em masculinidade e feminilidade374.

O pensamento antropológico tem desenvolvido um novo modo de falar de Deus, que é, em última instância, uma superação do multissecular machismo antropocentrista e um resgate da compreensão estrita da teologia trinitária. Deus-Pai é uma realidade transexual: “pai”, aqui, é indicativo da fontalidade da qual tudo deriva e emana, inclusive a própria divindade trinitária.

Por isso, embora chamando Deus de Pai, o tratamento filial de Jesus está para além da identificação sexual. Deus é ser trans-sexuado. Por isso pode ser expresso tanto em categorias de Pai como de Mãe, ou, como “Pai maternal” ou como “Mãe paternal”375, numa integração do masculino com o feminino, na linha de Moltmann, que entende que “um Pai que gera e parteja o

372 A Trindade e a sociedade, p. 212. 373 Orationes theologicas 31,7. 374 A Trindade e a sociedade, p. 155. 375 Ibid.,. p 155.

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próprio Filho não é somente um Pai masculino. É também um Pai materno”376. A Bíblia e os pronunciamentos da Igreja frequentemente deixam transparecer traços simultaneamente paternais e maternais de Deus. Ele às vezes é comparado a uma mãe terna que não esquece e que consola seu filho (cf. Is 49,15; Is 66,13), com a dimensão feminina da misericórdia (cf. Ex 33,19; 34,6-7; Lc 6,36), sob a figura das entranhas maternas (cf. Lc 15,20). Da mesma forma, o Concílio de Toledo (675) refere-se ao Filho como gerado e nascido do útero do Pai (cf. DS 526). O papa João Paulo II, na encíclica Dives in Misericordia, n. 4, apela abundantemente a textos bíblicos que tratam desse aspecto maternal de Deus. Portanto, ainda que Deus seja chamado de Abba por Jesus, as características do pai terreno não são suficientes para caracterizar a primeira Pessoa divina; é preciso considerar também sua dimensão maternal. Nele se reúnem plenamente o vigor do amor paterno e a ternura do amor materno.

Assim também, Jesus de Nazaré, Deus encarnado, na história é varão, mas, como varão não se reduz ao masculino; nele vigora também a dimensão feminina que o Verbo eterno do Pai contém, e faz dele Filho-Filha de Deus, como Filho sororal ou Filha fraternal, marcado por grande sensibilidade, amor aos fracos, doçura no trato, etc...377

Como realidade do amor divino, também a Pessoa do Espírito Santo manifesta dimensões femininas, particularmente maternais378. O próprio termo ‘espírito’ em hebraico e siríaco é feminino. E como tal, aproxima-se das dimensões de geração e de proteção da vida. Por isso, o Espírito não pode ser entendido como realidade divina em oposição à matéria, mas à morte379. Por essa razão, o Espírito aparece, na Bíblia e na Tradição da Igreja, sempre ligado às dimensões da vida. Ele é o Consolador (Jo 14,26; 16,13), não deixando órfãos os seres humanos (Jo 14,18); como mãe ensina a balbuciar o nome de Deus (cf. Rm 8,15), o nome secreto de Jesus (cf. 1 Cor 12,3), a rezar e a pedir (cf. Rm 8,26)...

Por isso, o conceito “vida” também deve ser referido ao Filho e ao Espírito. O Filho é o Logos da vida (cf. Jo 1,4), o Vivente (cf. Ap 4,9; 10,6; 15,7; Rm 9,26; Mt 16,16; 26,63; At 14,5), imortal (cf. 1Tm 6,16), princípio fontal da vida (cf. At 3,15), e nele “apareceu a vida” (1Jo 1,2), ele é Vida e traz Vida a todos (cf. Jo 11,25; 14,6; 5,26). Também por sua vez, “O Espírito é vida” (Rm 8,10), e quem nele semeia “colherá vida eterna” (Gl 6,8). Consequentemente, a vida humana alcança sua plenitude quando participa dessa vida divina (cf. 2Pd 1,4). É com esse sentido que a recente V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe opta pelo paradigma da “vida” para desenvolver sua compreensão da vida cristã. Os títulos das três partes do documento assinalam essa opção: “A vida de nossos povos hoje”, “A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários” e “A vida de Jesus Cristo para nossos povos” (DAp partes I, II e III).

376 Jürgen MOLTMANN, “O Pai maternal”, em Concilium 163: 60-61 377A Trindade e a sociedade, p. 226. 378 Em A Trindade e a sociedade, p. 240, Boff conta com humor que São Jerônimo diz que o Espírito é feminino em hebreu, neutro em grego e masculino em latim. 379 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 66.

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Assim localizada, a vida constitui o símbolo-síntese de todas as

promessas divinas. Sendo o próprio viver absoluto, Deus assume a causa da vida, por isso Ele é aquele que defende os pobres, as viúvas, os órfãos, e todos os demais que se sentem ameaçados de alguma forma em sua vida (cf. Sl 146,7-9; Pr 14,31; 17,5; 22,23; Dt 6,21; 10,18; Jr 22,16; 1Sm 17,26.36; Os 2,1).

Mas, a vida humana e de toda a criação, na história, é uma ambiguidade; o humano vive se protegendo dos riscos da morte, da não-vida, da mesma forma que cresce hoje a preocupação e a responsabilidade para com a vida de todos os seres criados. A utopia cristã caracterizada pela esperança aponta para a vida não mais a perigo, livre de qualquer ameaça, num processo infindo de evolução e realização.

Ao pleno viver, só possível em Deus, a fé cristã denomina de Vida eterna, que se expande como Pai, Filho e Espírito Santo, três Viventes, cada um voltado em direção ao outro. Ao mesmo tempo que é próprio da vida o estar em si, o é também o estar para fora, em comunhão consigo mesma e em comunhão com o diferente. Assim, o que caracteriza cada uma das Pessoas trinitárias é que cada uma vive para a outra, pela outra, com a outra e na outra. O “em si” de cada uma delas é sempre vida “para a outra”...380

Mas, pode-se chamar Deus indiferentemente de Pai maternal ou de Mãe paternal, colocando num mesmo plano os dois aspectos? Segundo alguns críticos, apesar da dimensão maternal de Deus (cf. DM 4 e 5), é preciso ter presente que Jesus chama continuamente a Deus de Pai, jamais de Mãe, o que deve ter algum significado381. No entanto, é preciso perguntar-se se o próprio termo “pai”, antropomorfismo que é, já não coloca Deus no mesmo plano do mistério humano.

Continuando a observação crítica, vê-se que Boff se preocupa tanto em fazer uma radical distinção entre o masculino e o feminino que perde de vista a comunhão dos sexos, na categoria do humano, procurando, dessa forma, encontrar um jeito de defender sua igual dignidade mediante feitos semelhantes no hipostático. “De minha parte, penso que se trata de um zelo exagerado. Pois não só em Deus, não só em Cristo (cf. Gl 3,28), mas também na profundidade humana há uma comunhão de valor pessoal não condicionada por ulteriores acidentes. O sexo potencia qualidades secundárias ou facilita serviços diferenciados, porém, não necessita de soluções teológicas a um nível que rebaixa o problema”382.

Teólogas feministas, por sua vez, criticam a tendência boffiana de identificar o feminino com sentimentos de compaixão e de ternura, e o masculino com expressões de força, autoridade, poder. Segundo elas, o

380 A Trindade e a sociedade, p. 161. 381 Jean-Marie HENNAUX, “L'Esprit et le féminin: la mariologie de Leonardo Boff, Nouvelle Revue Théologique, tome 109/6: 894. 382 Bernardino de ARMELLADA, (Recensão de) BOFF, Leonardo, O rosto materno de Deus, Naturaleza y Gracia, vol. XXVII/1: 184.

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discurso reflete resquícios machistas no pensamento do teólogo383, que não percebe, na base de tais considerações feministas, a identificação reducionista entre feminino e mulher. O feminino deve ser pensado o quanto possível independente de sua identificação histórica mais densa na mulher.

Para a Arquidiocese do Rio de Janeiro, as afirmações do teólogo contrariam a experiência religiosa e a prática histórica como base dos credos e dos dogmas, numa consonância com o sistema modernista384 e em oposição à Mysterium Ecclesiae e à Humani Generis, bem como ao papa Pio IX e ao Vaticano I (DS 2802; 3020; 3043). Segundo a Comissão, elas revelam influência de teólogos recentes de origem russa, protestante ou feminista, como Moltmann, Mary Daly, Bolotov, Bulgakov, Evdomikov e outros. Por isso, a hermenêutica do teólogo é de caráter perturbador e corruptivo da fé comum385. 2.2- Três Viventes em comunhão

A originalidade do Deus bíblico-cristão é o fato de ser uma comunidade de Pessoas. Por isso, a possibilidade da comunhão tem raiz e modelo final em Deus. Só Ele é abertura absoluta, só Ele é presença suprema, só Ele imediatez total, só Ele é transcendência eterna e comunhão infinita. Sinais de tal singularidade podem ser percebidos na criação, mas Ele próprio revela isso historicamente.

Assim, no Antigo Testamento, Deus aparece como o Deus da Aliança: quer unir-se a toda a humanidade (cf. Gn 9) e por isso faz aliança com um povo (cf. Gn 12; Ex 19 e 24), que deve tornar-se sinal dessa universalidade (cf. Ap 21,3). Essa aliança é figura da comunhão que Deus deseja viver com todos os homens, quer em sua expressão social e política, quer na intimidade de cada pessoa; por isso inscreve sua comunhão no coração de cada pessoa (cf. Jr 31,33; Ez 37,26; Hb 10,16).

Paulo compreende a comunhão do ser humano com Deus como comunhão com Cristo e com o Espírito de Cristo (cf. 2Cor 13,13), e se inicia por uma comunhão de vida e de destino (morte, ressurreição e glorificação) com Jesus (cf. Rm 6,6; 8,17; 2Cor 7,3; Gl 2,19; Cl 2,12; 3,1; Ef 2,6; 2Tm 2,12; Flp 3,10) e se aprofunda na comunhão do corpo eucarístico de Cristo (cf. 1Cor 10,16-18; Rm 12,5). Em João, a comunhão com Deus consiste em estar em Cristo, no Espírito (cf. 1Jo 1,3).

Comunhão com Deus e comunhão fraterna são situações diretamente proporcionais (cf. 1Jo 1,1-3; At 2, 42; 4,32; 2Cor 9,13; Rm 15,26; Hb 13,16), caminho necessário para fazer acontecer a utopia comunitária cristã do “um só coração e uma só alma” (At 4,32). A Igreja primitiva, denominada “communio sanctorum”, é regida principalmente por essa preocupação comunional.

383 Maria José Rosado NUÑES & outros, Las mujeres toman la palabra, p. 111. 384 Cf. A Trindade e a sociedade, pp. 11-14, 21-22, 44-46, 50, 145, 197-198, 206, 220. Cf. Tb. DS 3406, 3459, 3483, 3487, 3488. 385COMISSÃO ARQUIDIOCESANA PARA A DOUTRINA DA FÉ, A arquidiocese do Rio e o livro “A Trindade, a Sociedade e a Libertação”, Atualização, no. 206: 141-142.

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O Vaticano II coloca a comunhão como fundamentação da antropologia teológica (GS 24-25) e da eclesiologia (GS 92b), bem como da ação política dos cristãos (AA 18). Recentemente, a V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe, em Aparecida, realça o dado da comunhão como marca fundamental da comunidade dos discípulos missionários de Jesus, estabelecendo os lugares privilegiados para a vivência do carisma comunional e o processo de formação para a boa vivência desse carisma discipular (DAp 154-345).

Enquanto pessoa é ser relacional, ela funda a possibilidade da unidade. Sendo a Trindade Deus por excelência em relação, é ela a fontalidade de toda expressão de relação e de unidade na criação. O que se vê na história como esforço de união, de partilha, de solidariedade, de busca de igualdade entre as pessoas e entre as comunidades humanas sinaliza a união fontal da Trindade. Ou seja, na unidade relacional da Trindade se pode entender a origem da unidade humana.

Na linguagem humana, a categoria “família” se torna uma imagem oportuna para referir-se a um Deus assim. Por essa razão, João Paulo II, em sua primeira visita à América Latina, no México, em janeiro de 1979, afirma: “Já se disse de forma bela e profunda que nosso Deus, em seu mistério íntimo, não é uma solidão, mas uma família, pois leva em si mesmo a paternidade, a filiação e a essência da família, que é o amor; este amor, na família divina, é o Espírito Santo”, de forma a se poder dizer que “a Santíssima Trindade realiza no modo infinito aquilo que entrevemos em nossa experiência de família humana”386.

Ao se referir a Deus, a “família” é uma realidade a ser analisada sempre trinitariamente: Deus é Alguém que gera o Filho, e ambos se comungam eternamente no amor, espirando assim o Espírito Santo. Paternidade implica necessariamente filiação. É a vida histórica de Jesus de Nazaré que permite chegar a tais conclusões, pois, “o que contemplamos dele no tempo é uma revelação do que é na eternidade”387.

A unidade na diferença, as relações interpessoais, o amor, a comunhão e a participação, mostram que o concreto mesmo de Deus é ser família divina, e do homem, ser família humana. E que, ainda que hoje a família seja uma instituição em constante e profunda crise e transformação, não perde jamais seu caráter de “lugar natural e privilegiado de constituição de nossa humanidade concreta”388. A teologia busca, portanto, na família humana, o rosto de Deus, e daí, em última instância, o homem encontra as condições mais originais para ser plenamente.

386 São José, a personificação do Pai, p. 160; cf. tb. Homem: satã ou anjo bom?, p. 215. 387 A Trindade e a sociedade , p. 204. 388 São José, a personificação do Pai, p. 161.

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2.3- Três Viventes em uma relação particular denomi nada Pericórese

Portanto, a melhor maneira de caracterizar o Deus cristão enquanto processo de efusão, de encontro, de comunhão entre divinos Três é afirmá-Lo como uma comunidade de três Pessoas em comunhão.

A tradição teológica tem expressado esse essencial da unidade trinitária através da categoria pericórese389. O termo é grego e tem dupla significação. Primeiro, quer dizer inabitação, isto é, o fato de uma Pessoa estar na outra, envolvendo-a totalmente e enchendo-a com sua presença. Mas pericórese significa também interpenetração ativa e entrelaçamento dinâmico de uma Pessoa na e com a outra, num relacionamento vivo e eterno entre elas. Pericórese “sempre se trata de um processo de reciprocidade ativa, de um caminho de duas mãos: as Pessoas se comunicam umas às outras e este processo de comunhão constitui a própria natureza das Pessoas”390. Ao ser traduzido para o latim, pericoresis necessita de duas palavras. Assim, circuminsessio (de sedere, sessio = sentar, ter sua sede) expressa o primeiro sentido de pericórese, e circumincessio (de incedere = permear, compenetrar e interpenetrar), o segundo.

Segundo Agostinho, “cada uma das Pessoas divinas está em cada uma das outras e todas em cada uma e cada uma em todas e todas estão em todas e todas são somente um”, e se o ser é ser para si e estar em si, então a pessoa indica relação ao outro391. É essa comunhão sublime e perfeita entre as Pessoas divinas que faz com que haja uma trina unitas, ou uma una trinitas392.

A relação entre teologia e antropologia é tão estreita que, quando se fala de Deus, não a partir de seus elementos essenciais, mas da afirmação pericorética, todos os conceitos humanos são colocados em cheque. As palavras são relativizadas e a própria antropologia, tão caracterizada pela reflexão causal, passa a ser revista à luz da terminologia bíblica da revelação.

Portanto, para adentrar o mistério de Deus, a melhor opção é afirmar não a misteriosa unidade divina em si mesma, mas a comunhão eterna e a essencial pericórese, isto é, essencial interpenetração de vida e de amor entre as três Pessoas. É mais conveniente partir não diretamente da fé trinitária, mas das processões e derivações que os divinos Três mantêm entre si, o que permite perceber, ao mesmo tempo, a diferença e a reciprocidade entre as Pessoas393.

Segundo a Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé do Rio de Janeiro394, essa anteposição da “comunhão pericorética” divina à unidade essencial do Deus Trino contraria a explicação de Santo Tomás, para quem

389 A Trindade e a sociedade, p. 290. 390 Ibid., p. 171. 391SANTO AGOSTINHO, A Trindade, VI, 10, 12; VII, 6, 11. 392Idem., Sermo 182, 3, 3: PL38, 986. 393 A Trindade e a sociedade, p. 213. 394COMISSÃO ARQUIDIOCESANA PARA A DOUTRINA DA FE, A Arquidiocese do Rio e o livro “A Trindade, a sociedade e a libertação”, Atualização, no. 206: 136-138.

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pericórese é uma forma especialíssima de presença mútua, baseada nas relações, nas processões e na unidade de essência que vigoram em Deus395. Portanto, antes de tudo, a pericórese pressupõe a consubstancialidade das pessoas. Quer dizer, é a unidade essencial de Deus que fundamenta a pericórese, e não o contrário. Assim é que primeiro Jesus diz “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30); e só depois fala “... a fim de conhecerdes sempre mais que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10,38 b). O Concílio Florentino fundamenta a imanência recíprocra das Pessoas na unidade da essência divina (DS 518-520 e 1330-1331). Para a Comissão, Boff inverte as realidades. Pensar pericórese como “entrelaçamento”, “interpenetração”, “comunhão”396, continuam os críticos, no máximo permite fundamentar uma união acidental, nunca uma verdadeira unidade substancial, como é a unidade da essência divina.

No entanto, a crítica acima padece de certo dualismo, uma vez que separa unidade essencial e comunhão, em Deus. A condensação dos dois sentidos de “pericórese” numa única palavra grega permite concluir a simultaneidade das duas características, não possibilitando jamais separá-las, ainda que a língua latina necessite dois termos para expressá-los. A questão está em que Boff acentua, no mistério trinitário, a dimensão relacional, enquanto a Comissão, na esteira de Santo Agostinho, prefere pensar Deus, antes de tudo em sua unidade substancial. No entanto, para melhor compreender as opções, faz-se necessário analisar os contextos das afirmações.

O século de Agostinho, caracterizado por um cristianismo recém-saído das catacumbas, precisa ainda sedimentar sua concepção monoteísta bíblica e sobretudo cristã, à luz da fé niceno-contantinopolitana recém-sistematizada. Os riscos do modalismo, do triteísmo e do subordinacionismo estão ainda bem presentes, e diante deles não se pode titubear. Além disso, o Império, à beira da derrocada, embora tenha se aproveitado ideologica e politicamente da afirmação cristã do Deus único, tende agora a culpar o cristianismo de seu esfacelamento inevitável. É do conhecimento de todos que “A cidade de Deus e a cidade do homem” é a inteligente resposta de Agostinho a essa acusação. Num contexto histórico-político-religioso-cultural assim estruturado, não é difícil compreender a insistência na unidade substancial divina.

A teologia contemporânea, por sua vez, na qual a teologia de Boff se insere, desenvolve-se num contexto pós-moderno de grande individualismo. Por isso, manter hoje a opção pela unidade de substância para falar de Deus é correr o risco de permanecer desatento a delicadas questões de ordem relacional que podem estar sutilmente presentes na vida do individuo, da comunidade, da sociedade e mesmo da Igreja. O essencialismo pode constituir um ambiente para gerar um monoteísmo com tendências atrinitárias, reforçando uma visão individualista de pessoa.

Por outro lado, a procura da identidade de Deus a partir das relações intra-trinitárias e de suas expressões econômicas, ajudam a perceber que a 395 Suma Teológica, I, 42,5. 396 A Trindad e a sociedade, pp. 16, 163-166, 233 et passim.

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identidade da pessoa humana se define a partir do outro. Da mesma forma, permite vislumbrar também a pericórese como comunhão entre Deus e a criação, numa verdadeira compreensão social e cósmica da Trindade397. O teólogo partilha da reflexão moderna que caracteriza pessoa como ser-em-si, mas afirma que sua auto-gestão e incomunicabilidade existem em função da relação e da comunhão com o diferente.

Além disso, num tempo de realidade globalizada, de crescimento material ilimitado (DAp 60-73), que cria profundas desigualdades sociais e sistemáticas explorações dos recursos do planeta, que podem inclusive legar ao humano o mesmo destino dos dinossauros, só o resgate do modelo pericorético-comunitário da revelação trinitária comunicada e testemunhada pelas Escrituras pode ajudá-lo a reaprender a viver valores éticos altruístas, como o cuidado, a cooperação, a compaixão e o amor398. Nesse paradigma, todas as demais categorias associadas à reflexão trinitária tomam sentido particular.

Por isso, segundo o teólogo, tanto a tradição teológica da essência e da unidade divina defendida pelos orientais, centrada no Pai, como a compreensão do Pai como princípio monárquico de toda a divindade, como prefere a tradição do ocidente, que prioriza a única substância divina diferenciada internamente nas Pessoas, são insuficientes para falar devidamente de Deus. Por sua vez, o Vaticano II, com sua guinada trinitária, representa a oportunidade com que a ciência teológica é agraciada de redimensionar as verdadeiras bases da experiência de Deus para restaurar o homem em sua verdade.

3- O Mistério divino se autocomunica na história

A teologia considera o mistério de Deus antes por sua revelação na história que pela realidade imanente em si mesma. É a partir das missões trinitárias explicitadas na revelação de Cristo e de seu Espírito que brota o conhecimento humano de Deus Trindade. Por isso, aqui se faz da Trindade econômica o ponto de partida para aprofundamento de uma aproximação do mistério imanente de Deus.

A partir do pressuposto dessa condição econômica da Trindade, torna-se mais evidente e compreensível que a teologia, com suas fontes inegáveis da revelação, Tradição e Magistério, emerge mesmo no horizonte antropológico. Orígenes, primeiro a usar a palavra hipóstase para designar cada um dos divinos Três, entende a Trindade como “um eterno dinamismo de comunicação”399; Tertuliano cria a palavra Trindade e a fórmula expressa da fé verdadeira em Deus Trino: “tres unum sunt, non unus”400; os Padres Capadócios comentam as relações entre as três Pessoas divinas e clarificam a

397 Rudolf von SINNER, A Santíssima Trindade é a melhor comunidade; Trindade, Igreja e sociedade civil, in Estudos Teológicos, ano 48, n.2: 63. 398 Homem: satã ou anjo bom?, p. 12. 399 Contra Celsum 8, 12; Com. In Joann. 2, 10, 75. 400 Adversus Praxeam 25.

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doutrina sobre o Espírito Santo como Deus401; Santo Agostinho fala com genial intuição e reflexão sobre o inefável mistério trinitário402 e São Tomás de Aquino completa as intuições de Agostinho através de seu sistema trinitário altamente lógico403.

A “criação”, mais que um “algo criado”, é a comunidade dos irmãos e irmãs que são todos “filhos e filhas no Filho Jesus” (1Jo 3,1); ser humano e natureza, todos participam dessa comunidade familiar. A essa criação no Filho eterno chama-se de “adoção filial”, que não deve ser entendida jurídica, mas ontologicamente. Nesse sentido, o Pai gera, através da vida do Filho nas pessoas, a vida divina nelas. Se se distingue geração do Filho unigênito e criação do nada dos outros filhos, esta não é menos real do que aquela404.

Nenhuma imagem parece ser tão boa para falar de Jesus como revelação do mistério do Pai como a imagem da luz. As Escrituras o atestam abundantemente: o Pai “mora numa luz inacessível que ninguém viu nem pode ver” (1Tm 6,16); “Eu, a luz, vim ao mundo para que aquele que crê em mim não permaneça nas trevas” (Jo 12,46); “... a vida era a luz dos homens... Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vinha ao mundo” (Jo 1,4.9); “Eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5); “Enquanto tendes a luz, crede na luz, para vos tornardes filhos da luz” (Jo 12,36); a humanidade é composta de “filhos deste século” e de “filhos da luz” (Lc 16,8); tais “filhos da luz” são aqueles que aderem a Cristo e que produzem “o fruto da luz” e “é luz tudo o que é manifesto” (cf. Ef 5,8-9.14). Enfim, as Escrituras explicitam aquilo que, no inconsciente coletivo humano, é uma imagem poderosa para falar de Deus, mostrando que é próprio do homem “iluminar-se”, tornar-se, também ele, como Cristo, “luz do mundo” (Mt 5,14).405

Essas palavras da revelação mostram o mistério abissal que o Pai significa. Mas, a relação de Jesus com Deus atesta que, para conhecer a Ele é preciso fazer a passagem do “tremendum” de Deus, na história das religiões, para o “fascinans” do Pai, revelado por Jesus.

A vinda do Filho tira Deus de seu silêncio eterno e O torna visível e acessível aos homens (cf. Jo 1,18; 14,9). Mais do que “contar” quem é o Pai, Jesus O mostra em sua prática, em seu fazer. De modo que o silêncio infinito do Pai corresponde ao agir concreto e histórico do Filho, que age num “silêncio operativo”, manifestado em gestos de cura, de superação do legalismo, de companhia a pecadores e aos tidos como impuros, de perdão dos pecados, de ressuscitação de mortos, de cuidado e carinho para com os pobres e pequenos, para com os lírios do campo, as aves do céu..., tudo isso presente na prática e na vida do Filho eterno em Jesus de Nazaré.

401 Or. Theol. V, 5. PG 36, 137. 402 Em sua obra De Trinitate; em quinze livros (I-VII, de cunho bíblico-positivo, e VIII-XV, de cunho especulativo). 403 Suma Teológica I, q. 27-43; Tratado sobre a Santíssima Trindade. 404 A Trindade e a sociedade, p. 208. 405 Meditação da Luz; O caminho da simplicidade, p. 57.

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Mas a grande obra do Pai que o Filho expressa com maior nitidez e como uma espécie de síntese e condensação de tudo o que o Pai faz e deseja é o Reino: situação generalizada de bondade, de amor, de compaixão, de definitiva libertação dos pobres e sofredores, de doenças curadas, de pecados perdoados, de morte vencida... Por isso, o compromisso com o Reino é definitivo para reconhecer Jesus como o Filho enviado, bem como a autenticidade de seus seguidores e discípulos.

Ao explicitar a utopia humana do Reino, Jesus a concebe em termos de filiação. Revela assim a grandeza e a dignidade do homem graças ao amor carinhoso que Deus lhe devota. Reino e filiação divina formam uma dupla realidade arquetípica humana que deve ser lida dentro de um conjunto único. Se Yahweh significa ‘Eu estou aqui’, na realidade de Jesus que o invoca como Pai querido, Abba quer significar, então, ‘Deus-está-em-nosso-meio’406.

4- Deus Trindade se personifica humanamente e se dá a conhecer

Se, como o já visto, a família é a imagem humana mais conveniente para referir-se à vida e comunhão pericorética entre os divinos Três, então emerge aquilo que constitui o grande teologúmeno do teólogo brasileiro: a família trinitária divina se personifica numa família humana, a família de Nazaré. Nesta, cada uma das pessoas divinas se personifica: o Pai em José, o Filho em Jesus e o Espírito em Maria. Dessa forma, o “homem justo” (Mt 1,19), aquele que “crescia em estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52) e a “cheia de graça” (Lc 1,28) são, em comunhão familiar, a Trindade terrena. Não somente em forma simbólica, mas real: a Sagrada Família “é a própria comunidade do Pai no Filho pelo Espírito que ganha corpo e se faz história na comunidade de José, de Maria e de Jesus”407. Se, conforme a tradição teológica, toda manifestação divina é trinitária, também aqui isso deve ser reconhecido. A Família divina, em sua totalidade, desce ao nível humano e se faz família humana408.

E assim como a encarnação do Verbo eterno modifica substancialmente toda a realidade criacional, a personificação da Família divina na família humana insere toda a família humana e, através dela, a família cósmica e todos os seres do universo. Ou seja, por meio da família de Nazaré, todo o universo, sob o paradigma de “família”, fica assim inserido no Reino da Trindade409.

A tese impõe-se em nome de uma coerência e suprema sinfonia entre humanidade, história, cosmos e Deus Trindade. Num primeiro momento, por ocasião da publicação de “A Trindade e a sociedade”, de “O rosto materno de Deus” e de “Ave Maria”, o teologúmeno boffiano defende a hipostatização do Espírito Santo em Maria; nessa época o teólogo não faz menção alguma à personificação do Pai. Apenas recentemente, a partir de 2005, acrescenta essa

406 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 41. 407 São José, a personificação do Pai, p. 162. 408 Homem: satã ou anjo bom?, p. 158. 409 São José, a personificação do Pai, p. 163.

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última questão, de forma que fala agora em “personificação humana da Trindade”.

Dando maior importância à forte experiência de Deus que esse fato significa do que a consciência intelectual dele, Boff fala de “níveis de crescimento e de profundidade” na missão trinitária da família de Nazaré, de forma a entender que “a personificação é um processo que acompanha as várias fases e situações da família terrestre. A Família divina as vai assumindo, à medida que elas se realizam”, da mesma forma que “uma correta teologia da encarnação nos ensina que o Verbo vai assumindo a natureza humana à medida que ela vai se manifestando...”410.

As argumentações para um tal teologúmeno, Boff as extrai principalmente de duas áreas do conhecimento: a antropológica e a bíblica.

Antropologicamente falando, há um dispositivo humano que torna o homem capaz de ser assumido por Deus e que o revela como projeto teológico de abertura à Transcendência. O axioma fundamental cristão da encarnação do Verbo constitui a emergência mais nítida e visível dessa qualidade humana prévia, sem a qual jamais a encarnação pode ser uma realidade411. Graças a essa potencialidade explícita em Jesus Cristo, é possível falar em personificação humana de toda a Trindade.

O humano só se realiza na plena efetivação de suas potencialidades no fim de todo o processo histórico evolutivo. Assim, a potencialidade humana de ser assumido por Deus tem futuro certo de realização plena quando “Deus for tudo em todas as coisas” (1Cor 15,28). Maria antecipa por graça essa plenificação da potencialidade divina, e assim nela se personaliza o Espírito Santo; na celebração de sua assunção ao céu a comunidade de fé explicita essa crença. É nesse sentido que José, humano que é, possui a mesma disposição de ser assumido por Deus e antecipa também ele na história esse dom e se faz, sempre por graça, a personalização do Pai.

Por outro lado, falando biblicamente, Deus se aproxima progressivamente de toda sua criação com a finalidade de levá-la, também ela, através dos seres humanos, à participação no mistério mais íntimo da vida divina. O sentido teológico dela é tornar-se revelação do próprio Deus (cf. Rm 1,20). Em Jesus, Maria e José se encontra o ponto culminante da aproximação de Deus de suas criaturas, de forma que cada uma dessas pessoas se torna a revelação mais nítida do mistério de Deus:

Duas imagens bíblicas ajudam a entender melhor a aproximação progressiva de Deus da humanidade: a aliança e a tenda.

A aliança, nos primeiros “momentos” bíblicos é bastante plasticizada: fala-se em aliança com a terra, com a vida, com toda a humanidade... (cf. Gn 9,11-13). Depois, ela se condensa como aliança que Deus faz com o povo eleito, no monte Sinai (cf. Ex 19-20). Num momento religioso mais aprimorado, 410 São José, a personificação do Pai., p. 166. 411 Ibid., p.152.

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é entendida como internalizada no coração de cada pessoa. Finalmente, a “plenitude dos tempos” (Gl 4,4) é o momento em que a aliança mostra sua total radicalidade e definitividade, levando Deus a sair de si mesmo e se humanizando em Maria e em Jesus de Nazaré. E então, “José não podia ficar de fora dessa vontade encarnatória e personalizadora de Deus. O Pai invisível se torna visível nele”, de modo que “José bem poderia dizer como disse Jesus: ‘O Pai está em mim e eu estou no Pai (...). Eu e o Pai somos uma coisa só” (Jo 10,38; 14,11; 10,30)’”412.

A tenda, na linguagem semita, é a palavra generalizada para referir-se à morada de Deus. Às vezes o termo se desdobra também em palavras como nuvem, sombra, tabernáculo, templo, como se pode ver em Ex 40,34-36; 25,8.26, para referir-se ao Deus que promove e acompanha a libertação do povo do Egito, e em 1Rs 8,10-13, para referir-se à consagração do Templo. A consciência religiosa semita sobre Deus é que Ele é de fato um “Deus conosco”, jamais abandonando seu povo, ainda que às vezes uma presença escondida num mistério inacessível. A própria categoria teológica shekinah, usada para traduzir a mística judaica da presença infalível de Deus Transcendente nas realidades pobres e relativas da história humana, tem suas raízes na palavra skené, que significa tenda, morada.

As Escrituras usam os verbos skenóo (armar a tenda) e episkenóo (cobrir com a sombra) para falar da máxima autocomunicação das Pessoas divinas aos seres humanos. Jo 1,14 diz que o Verbo eskénosen, isto é, armou sua tenda entre nós; Lc 1,35 afirma que o Espírito episkiásei, isto é, cobrirá Maria com sua sombra. É nesse sentido que São José é citado por alguns teólogos como “sombra do Pai”413, o que Boff prefere atualizar por “personificação do Pai”. Assim, desde o momento em que acolhe Maria em sua casa, em obediência à voz de Deus em seu sonho, José já não é apenas o “homem justo” (Mt 1,19), mas a própria personificação do Pai celeste dentro da humanidade. Dessa forma, “ingressamos, todos, por José, por Maria e por Jesus, na Família divina”.414

Portanto, tanto na antropologia como nas Escrituras, o ponto de partida da argumentação é sempre cristológico: a afirmação indiscutível do cristianismo da autocomunicação de Deus realizada em Jesus Cristo, que é o Filho de Deus encarnado, “aquele que nossos olhos viram, nossos ouvidos ouviram e nossas mãos apalparam” (1Jo 1,1). Dada a relação pericorética trinitária, o Filho encarnado traz consigo o Pai e o Espírito. Assim sendo, admitindo que Deus Trindade se revela como Trindade, “aquilo que aconteceu com o Filho não teria acontecido também com o Pai? Não teria acontecido igualmente com o Espírito Santo?”415

Deus se comunica a Si mesmo tal como é, ou seja, como família. Ora, uma família é necessariamente constituída por pessoas de uma mesma

412 São José, a personificação do Pai, p.154. 413 Joseph DOZE A., ombre du Père, Éditions du Lion de Judá, 1989; tb. DOBRACZYNSKI, L’ombra del Padre, il romanzo di Giuseppe, Brescia, 1982; ambos citados em Ibid., p. 28, cit.6. 414 Ibid., p.155. 415 Ibid., p. 149.

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natureza. Por isso tudo, a relação autocomunicativa de Deus, que envolve a encarnação do Verbo, é entre famílias, isto é, a relação acontece entre a família divina e a família humana. 4.1- A personificação do Pai em José

Para tal afirmação, o teólogo se vale de clássicas reflexões como as do jesuíta Francisco Suárez, no século XVII, de G. M. Piccirelli e L. Bellovet, no século XIX, e de A. Michel, B. Llamera, de André Doze, e sobretudo do conhecido Paul-Eugène Charbonneau, todos no século XX416. Mas, acostumado a garimpar pérolas preciosas de sabedoria nas afirmações dos simples e pequenos, torna-se determinante para Boff a intuição explícita do frade brasileiro Adauto Schumacker de que São José é o próprio Pai presente, personalizado e historicizado em sua pessoa417. Assume essa intuição e se decide por elaborar uma reflexão que seja capaz de “oferecer as boas bases teológicas que sustentam essa afirmação. Ao término, fomos premiados com uma visão completa e totalizante da realidade divina e da realidade humana”418. Argumentos da antropologia filosófica, da tradição psicanalítica e da moderna cosmologia permitem ao teólogo a projeção dessa hipótese.

Num primeiro momento, da união com Maria, relacionada de forma singular ao Espírito Santo, deriva a relação de pai matrimonial de Jesus, que também estabelece uma relação toda particular com o Filho de Deus. É a tais formas de relação particular que o teólogo denomina de “pertença hipostática”419, de forma que, com a personificação do Pai, José “começa a pertencer à ordem que é própria das divinas Pessoas”420. As palavras de João Paulo II, na Redemptoris Custos, argumentam a seu favor: “Juntamente com a assunção da humanidade, em Cristo foi também ‘assumido’ tudo aquilo que é humano e, em particular, a família, primeira dimensão de sua existência na terra. Nesse contexto foi ‘assumida’ também a paternidade humana de José” (RC 21).

Numa breve retrospectiva histórica, o teólogo detecta e apresenta cinco etapas da evolução do pensamento teológico sobre a personificação do Pai eterno em São José: a consciência da participação de José na economia da salvação, a da pertença à ordem hipostática, a difusão dessa idéia de forma mais pacífica, a visão de José como “sombra” do Pai e finalmente a consciência de José como personificação do Pai421.

A partir do princípio de que o Pai encontra em José a pessoa conatural a ele, Boff começa a traçar paralelos entre ambos, o Pai e José, realçando elementos que convergem, que os aproximam e que, segundo o teólogo, os identificam. Por exemplo, a invisibilidade do Pai e a vida oculta de José; o 416 Referências mais detalhadas desses autores e de outros que tratam do assunto podem ser encontradas em São José, a personificação do Pai, p. 27 e 133, nota 1. 417 Cf. seu manuscrito “Josefologia: o Pai ‘personificado’”, de 19 de março de 1987; citado em Ibid., p. 29. 418 Ibid., p. 201. 419 Ibid., p. 132. 420 Ibid., p. 25. 421 Ibid., p. 133-146.

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silêncio abissal do Pai e o silêncio reverente de José; o trabalho artesanal do Pai na criação do universo e o trabalho na carpintaria do artesão José; o cuidado providente do Pai para com cada filho e filha e para com toda a criação e o cuidado de José, chefe de família, para com Maria e Jesus, tudo provendo para que nada lhes falte422... Da mesma forma, a relação íntima de Jesus com o Pai celeste, o Abba, deriva de sua experiência terrestre com o Pai José.

Mas, essa personificação não deve ter sido vivida por José no nível de consciência. Ele é plenamente pai; está mergulhado em Deus, ou, é melhor dizer, Deus está mergulhado nele na totalidade de seu ser, em todas as suas dimensões, de tal forma que se pode dizer que a experiência da personificação do Pai, em José, lhe transcende o nível da consciência423.

A reflexão abre portas para outra sobre a relação entre Deus e o pai humano ao qual cabe, não só aconchegar, mas também exigir... O pai exerce uma força arquetípica e simbólica em seus filhos, o que lhes permite amadurecer sem grandes traumas, cultivados que são pelo pai em direção à maturidade e à independência. A civilização pós-moderna tem eclipsado a figura do pai, mas sente saudade de sua volta. As parábolas de Jesus mostram bem a necessidade de se resgatar essa figura na experiência humana. A criança só pode amadurecer e ser feliz se aprender a elaborar uma imagem boa do pai; aquilo que Boff denomina de “princípio antropológico do pai”424 Da mesma forma, só pode de fato descobrir o Deus amoroso e paternal de Jesus se realiza uma boa imagem de uma sadia experiência do amor paternal terrestre.

A reflexão do teólogo brasileiro, por mais simpática que pareça ser, levanta a questão de que é no mínimo estranho que em seu tratado clássico “A Trindade e a sociedade”, em 1986, ele não trate dela e nem sequer acene para a possibilidade. Aliás, nesse mesmo livro são literais expressões como: “De Deus Pai a fé cristã não possui nenhuma imagem. O Filho apareceu em forma humana na figura de Jesus de Nazaré. O Espírito, em forma de pomba. O Pai é invisível”, ou “Se o Pai é invisível, então nosso único acesso é pelo Filho e pelo Espírito que vêm dele”425. Vem a fazê-lo apenas praticamente vinte anos depois, em 2005, em seu “São José, a personificação do Pai”. Não há dúvida que se trata de uma idéia singela e muito sedutora, vindo bem de encontro à piedade popular. No entanto, a tese soa mais como uma dedução própria de um raciocínio lógico. Mas, conclusão e lógica são categorias que a revelação de Deus nem sempre pressupõe, visto que Deus sempre surpreende com suas inovações.

Da mesma forma, a tese se faz derivar de um outro teologúmeno, como aquele da espiritualização de Maria. Derivação que não se aconselha na reflexão teológica, justamente porque o primeiro não está ainda suficientemente digerido, e por isso se constitui ainda teologúmeno.

422 Homem: satã ou anjo bom?, p. 159. 423 São José, a personificação do Pai, p. 164. 424 Homem: satã ou anjo bom?, p.216; Meditação da Luz; O caminho da simplicidade, 13. 425 A Trindade e a sociedade, p. 206.

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Por isso tudo, ficam no ar algumas questões. Por exemplo, como conciliá-la com a afirmação joanina de que “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18), ou com a afirmação paulina de que Deus “habita uma luz inacessível” (1Tm 6,16), e outras nesse gênero? Deve a dimensão trinitária da autocomunicação divina ser entendida tão rigorosamente em torno ao número “três”, de forma “pontual” ou “matemática”, quando o próprio teólogo afirma que o “três”, da Santíssima Trindade, é antes uma dimensão de comunhão que aritmética? 4.2- A personificação do Filho eterno em Jesus de N azaré

Iniciando Leonardo Boff a série de produção sistemática, sua obra Jesus Cristo Libertador, na década de 70, constitui a primeira obra de cristologia da libertação. Causa grande impacto no meio teológico por duas razões: primeiro porque rompe com a clássica cristologia essencialista, em sua insistência na ‘união hipostática’ conforme o Concílio de Calcedônia. Depois, porque assume a posição antioquena da priorização do Jesus histórico, como condição para o conhecimento de sua divindade, resultado de um movimento já iniciado no século XIX, que Boff assume de uma exegese e cristologia européia de ponta. A originalidade do teólogo está em afirmar a interpretação latino-americana na historicidade de Jesus como uma vida historicamente libertadora426.

Muitos reconhecem o valor de sua cristologia, como, por exemplo, Battista Mondin, ao dizer: “Leonardo Boff é um dos autores que mais contribuíram para a elaboração, em termos de libertação, de duas partes fundamentais da teologia: a cristologia e a antropologia teológica”427.

Outros reagem com certa cautela, não tanto quanto ao conteúdo da sua cristologia, mas ao como o autor diz as coisas. Ao apresentar Jesus Cristo, o teólogo o faz dentro do amplo plano histórico-salvífico, discutindo ao mesmo tempo o sentido da própria vida humana. Ou seja, o mistério de Cristo, e toda a revelação cristã, são apresentados inseridos dentro de uma ampla economia da salvação.

A cristologia de Boff, como “cristologia de baixo”, preocupa-se com a base antropológica do falar teológico. A grande preocupação do teólogo é apresentar um Jesus Cristo-resposta aos anseios do homem de hoje. A grande contribuição de sua cristologia está sobretudo em seu método e em suas posições exegéticas e antropológicas. O teólogo “fala de Jesus Cristo de modo a tocar dimensões fundamentais de nossa existência humana”428.

De modo originalíssimo, Boff relaciona com um equilíbrio e harmonia impressionantes a paixão de Cristo com o sofrimento humano e, atualmente,

426 João Batista LIBÂNIO, Pensamento de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 17 427 Os teólogos da libertação, p. 104. 428 Urbano ZILLES, (Recensão de) BOFF, Leonardo, Jesus Cristo Libertador; ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. In AAVV, Recensões. Perspectiva Teológica, São Leopoldo, n. 8: 88.

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com o sofrimento do planeta. Com o novo paradigma, Boff relê seu próprio Jesus Cristo Libertador, apresentando, agora a Cristo como, não só libertador das condições sociais opressoras, dos pobres e realizador de todas as potencialidades de cada ser humano, mas também aquele que redime toda a natureza, todo o cosmos, num salto verdadeiro de “eco-socialismo”429.

A história da teologia destaca duas tendências cristológicas sobre a encarnação, uma que sublinha a divindade de Jesus (João e escola de Alexandria), e outra que realça a humanidade de Deus (sinóticos e escola de Antioquia). Na tensão entre humanidade e divindade do Verbo encarnado, ambas as tendências apresentam limites e riquezas. Na Idade Média, suas correspondentes são, respectivamente, as escolas tomista e franciscana. Nos tempos modernos fala-se de cristologia descendente e de cristologia ascendente, a primeira realçando a divindade no gesto sublime da encarnação, e a segunda, a revelação lenta e gradativa da divindade através da humanidade histórica. Não é difícil concluir a opção de Boff pela segunda corrente.

Historicamente, duas tendências clássicas interpretam a relação encarnação-redenção. A teologia grega vê na encarnação o ponto decisivo da redenção –daí a necessidade de uma participação subjetiva no fato objetivo da encarnação através dos sacramentos que divinizam-. A teologia romana, de cunho mais ético-jurídico, centra a redenção na paixão e morte de Jesus –e por isso a necessidade humana de participar dessa kênosis redentora do Cristo-. Ambas, porém, padecem de reducionismo teológico, pois colocam entre parêntesis a vida terreno-histórica de Jesus, esfacelando assim sua unidade histórica antropológica, pois entendem de forma estanque os dois momentos, que não podem ser tidos isoladamente, de todo o processo redentor de Cristo.

A teologia grega, ao colocar a encarnação como ponto de partida e de início do Jesus histórico, enfrenta uma série de perguntas que só a metafísica pode responder, com suas categorias e tendências a-históricas: o que é natureza humana e o que é natureza divina; a qual natureza, humana ou divina, este ou aquele gesto de Jesus diz respeito; como se interpenetram eles... Só na fé em Jesus Filho de Deus, na aceitação que Deus se esvazia a ponto de assumir e plenificar a natureza humana em Jesus de Nazaré é que os cristãos podem aceitar e professar a encarnação como sendo essa “unidade inconfundível e imutável, indivisível e inseparável de Deus e do homem num e no mesmo Jesus Cristo, ficando Deus sempre Deus, e o homem radicalmente homem” (DS 302).

Na concepção romana, o grande protagonista não é propriamente Deus, mas o homem Jesus, que repara o mal causado. Para esta teologia, a morte é vista como fato pré-estabelecido e necessário para a salvação do mundo. O Pai deseja a morte do Filho na cruz, para que o mal possa ser reparado e a justiça restabelecida. Esta visão se esquece de considerar as muitas mediações necessárias que possibilitam entender o intricado complexo que envolve a morte de Jesus. Por isso, reforça uma posição ideológica que, ao

429 Patrus A. SOUZA, Leonardo Boff: um testemunho, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 48.

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invés de comprometer os cristãos na luta pela vida, pode levá-los à resignação e ao submissionismo, glorificando o sofrimento e a morte em si mesmos.

A história dos dogmas cristãos está marcada por passagens trágicas, um misto de interesses teológicos, religiosos, culturais e políticos... Em 428 a disputa cristológica se acirra, vindo a alcançar seu ponto máximo no Concílio de Éfeso. Apesar das sérias controvérsias e lutas de teor político-religioso que envolvem Calcedônia, o concílio traz enorme contributo para a reflexão cristológica. Afirma em Jesus a unidade da pessoa, mas não da natureza, e a dualidade da natureza, mas não da pessoa: “A diferença entre as naturezas jamais fica suprimida por causa da união; antes, a propriedade de cada natureza fica preservada..., concorrendo ambas para formar uma só pessoa ou subsistência. Professamos a Jesus Cristo não em duas pessoas separadas e divididas, mas um e o mesmo Filho Unigênito” (DS 302). As qualidades das duas naturezas são tão íntimas na unidade que podem ser atribuídas à mesma Pessoa do Verbo em Jesus de Nazaré. Por isso, pode-se afirmar que Deus nasce, Deus sofre, Deus morre em Jesus, bem como dizer que Jesus Cristo é todo-poderoso...430 Isto é, as duas naturezas se manifestam concreta e realmente na única Pessoa do Verbo eterno.

Apesar da grande importância do Concílio de Calcedônia para a evolução da cristologia, ele também tem seus limites. Na antropologia moderna, pessoa e natureza têm significados diferentes, o que pode induzir a erros numa interpretação atual do Concílio. Pessoa não é o melhor conceito para referir-se a Deus, que é Trindade, pois trata-se de um conceito coletivo que expressa o que é comum. A rigor, não se pode aplicá-lo indistintamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, pois cada um deles tem sua identidade própria. O ideal é referir-se a cada elemento da Santíssima Trindade com um nome próprio, pois a especificidade de cada um dos divinos Três não aparece quando se usa uniformemente o termo pessoa431. O próprio Santo Agostinho sente essa limitação432. No entanto, a teologia parece não ter encontrado outro termo mais conveniente.

Também em relação à expressão natureza divina, algumas observações restritivas433. Uma insistência muito acentuada na unidade da essência divina pode provocar uma compreensão modalística. Por isso, na linha da teologia latino-americana, sua compreensão deve ter base na pericórese, como já se tem mostrado anteriormente.

Calcedônia não considera suficientemente a evolução humana em Cristo presente nos sinóticos, nem as transformações causadas nele pela ressurreição, que o faz passar do Logos-carne para o Logos-Pneuma. Torna-se difícil vislumbrar com realismo a dimensão quenótica da encarnação, vindo com isto a cristologia a perder. Além disso, falta às afirmações conciliares a dimensão universal e cósmica do Logos, pois, se na encarnação do Verbo de Deus atinge não só o homem Jesus, mas a toda a humanidade (cf. GS 22), na

430 Jesus Cristo Libertador, p. 141 431 A Trindade e a sociedade, p. 18.78. 432 A Trindade, V e VII. 433 A Trindade e a sociedade, p. 18.

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ressurreição a humanidade de Jesus e de todos os homens se expande cosmicamente. Mas a grande limitação do Concílio é colocar as naturezas divina e humana, o infinito e o finito, Deus e o homem, ambos num mesmo horizonte e plano, de modo que a união das duas naturezas pode parecer significar a fusão de duas essências e a unificação de duas dimensões434.

No emaranhado da multiplicidade de caminhos e enfoques da história das interpretações cristológicas, Boff expressa a sua opção: “Por formação espiritual e opção fundamental nos orientamos pela escola franciscana, de tradição sinótica, antioquena e escotista. É na humanidade total e completa de Jesus que encontramos Deus...”435. Tocado pelo espírito de grande ternura com que São Francisco de Assis medita a paixão de Jesus, o autor segue os parâmetros científicos e exegéticos de estudiosos do porte de E. Lohse, H. Schurmann, J. Blinzler, Pierre Benoit e outros... A proposta é a de enfrentar o problema da divindade e humanidade de Jesus, não numa análise das naturezas, nem do significado de pessoa, mas a partir de Jesus mesmo, isto é, de sua vida, sua história... Através de Jesus o homem revela-se em sua máxima radicalidade, e nele, também, manifesta-se o Deus humano436; por isso, o caminho de conhecimento do homem passa muito mais pela vida e história de Jesus que pela análise de categorias teórico-filosóficas.

Por isso tudo, os teólogos da libertação encontram no seguimento da vida histórica de Jesus a melhor via de compreensão do processo da redenção. Seis razões apostam na vantagem da prioridade do Jesus histórico sobre o Cristo da fé: o isomorfismo estrutural entre o tempo de Jesus e o atual, a possibilidade de um contato mais real com a prática de Jesus, a emergência mais visível do conflito e do destino de todo seguidor de Jesus, a possibilidade de uma visão mais objetiva do seguimento de Jesus e de sua causa, a revelação do Pai no processo de assunção do projeto e não na reflexão abstrata, e, finalmente, a emergência mais palpável da crise que Jesus representa para as situações pecaminosas do mundo. Enfim, “o Jesus histórico significa crise e não justificação da presente situação do mundo; exige não tanto uma explicação, e sim uma transformação”437. 434 Jesus Cristo Libertador, p. 143. 435 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 7-8.39. Em “Teologia sob o signo da transformação”, Boff afirma que “ao me aprofundar no carisma pessoal de São Francisco, quase sucumbi à tentação dos ‘fraticelli’ do século XIV, ao considerá-lo mais fecundo que os Evangelhos e mais inspirador que Jesus de Nazaré”(in Luis Carlos SUSIN (org.), O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina; p. 64. Isso porque, embora Francisco de Assis se aproxime de Jesus de Nazaré ao “identificar-se” com os pobres, eles se diferenciam no que diz respeito ao amor cósmico, pois, “não aparece nenhuma postura ecológica de Jesus nem um enternecimento efusivo para com a natureza”, diferentemente de como acontece com Francisco, que cresce nesse amor. No entanto, Boff reconhece que uma consciência ecológica na época de Jesus ultrapassa a consciência do possível. De fato, aqui o teólogo se aproxima dos fraticelli que, na linha do cisterciense Joaquim de Fiore, vêem Francisco de Assis como a abertura personificada da Era do Espírito Santo, superando assim o próprio Jesus Cristo. Mas, Boff termina por conciliar esses dois basilares, entendendo Jesus e Francisco se tornam dois arquétipos do inconsciente coletivo da humanidade, duas forças que conduzem à plenificação humana... (A esperança é, hoje, a virtude mais urgente e necessária, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 175). 436 Jesus Cristo Libertador, p. 210. Trabalham nessa mesma linha outros teólogos latino-americanos e europeus. Entre eles, Jon SOBRINO, Cristologia a partir da América Latina, PP. 8ss; IDEM, Jesus, o Libertador, PP. 62-101; Christian DUQUOC, Christologie, vol. II: Le Messie, PP. 95.245-249.266-272, et passim; IDEM, Jesús, hombre libre, PP. 107ss; Edward, Jesus, pp. 527ss,... 437 A fé na periferia do mundo, p. 26s.

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A teologia da libertação insiste na necessidade da compreensão do

significado histórico-salvífico da cruz de Jesus iluminado pelo sentido soteriológico da encarnação, e vice-versa. Dessa forma, na priorização do Jesus histórico, integra os três momentos que a teologia grega e romana separam: encarnação, vida histórica e crucificação do Filho de Deus.

Ao dizer que “não podemos falar ‘sobre’, mas ‘a partir de’ Jesus Cristo”, Boff está apresentando o método de sua cristologia: uma opção preferencial pela história como lugar de encontro com alguém concreto, que é Deus mesmo feito carne. Há todo um bloco de coerência metodológica presente por detrás dessa opção do autor. Além disso, a prioridade do Jesus histórico possibilita vislumbrar com mais concreção e objetividade os elementos antropológicos aí manuseados. Por isso, ao dizer que a teologia emerge da antropologia, afirma-se que esta tem sua expressão mais nítida em Cristo, razão porque há de se dizer também que “é da cristologia que se deve elaborar a antropologia”438.

4.2.1- O Verbo eterno assume a natureza humana em J esus de

Nazaré

O ser humano “... era um vazio à espera de plenitude... Assim o homem tornou-se Deus porque Deus se tornou homem”439. A virada antropológica no universo do pensamento começa, na verdade, para a teologia cristã, na encarnação do Verbo, que por isso decifra o mistério humano: “Na realidade, o mistério só se ilumina verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado... Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação” (GS 22; cf. tb. SD 13 e 164). Nele acontece a articulação da experiência do Mistério com a história (cf. Cl 1,26); nele o Mistério se faz não-Mistério, carne e história, sem com isso perder sua identidade. O Mistério pode tornar-se o outro de si mesmo; o outro do Mistério é sua kénosis: o Verbo faz um caminho que o leva da glória à humilhação da cruz, numa experiência de Deus inversus (cf. Fl 2,6-8)440. Por isso, sendo ele vida, pode morrer; sendo morte, pode viver. Ele, sendo inacessível, pode tornar-se acessível, sendo invisível, fazer-se visível... Graças a isso, a pessoa humana pode “conhecer” a Deus e a si mesmo.

O homem Jesus é Deus mesmo que vem ao mundo para viver e fazer história com os homens. A dimensão é real e concretamente encarnatória. A maioria dos cristãos, após séculos de cristianismo, ainda não está acostumada a essa idéia. A tentação é sempre a de desencarnar o Verbo, espiritualizando-o e mistificando-o em sua Transcendência e Infinitude, tirando-o para fora da história. Na encarnação, Deus entra nas realidades do mundo e as modifica por dentro.

“A união inconfundível do material com o espiritual, do humano com o

divino, constitui a força do mistério da encarnação”441. A totalidade do mundo

438 Jesus Cristo Libertador, p. 143. 439 Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 41. 440 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, p. 161-162. 441 O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 91.

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se torna, então, portadora da dimensão divina442; torna-se sacramental, de forma que tudo passa a dizer respeito a Deus, razão. Daí a necessidade “de se compreender adequadamente o cristianismo não como uma região determinada da realidade, como o campo religioso, mas precisamente como um processo de encarnação em toda a realidade para redimi-la e fazê-la matéria do Reino de Deus”443.

Quanto à humanidade, só quando se a aceita em tudo o que ela tem de ambíguo e contraditório se consegue encontrar pistas para a compreensão e entendimento do que significa a humanidade do Filho de Deus. Da mesma forma, na medida que se leva a sério a humanidade de Deus, concebendo-a dentro dos conflitos que podem caracterizar a existência humana, se acolhe a si mesmo no concreto real da vida humana.

Os contemporâneos de Jesus fazem a experiência de um encontro com um ser humano comum, sem preconceitos, voltado para o essencial da existência, um ser-para-os-outros, dotado de qualidades excepcionais..., mas sempre um homem. A cristologia negativa, por exemplo, se elabora a partir das reações de escândalo dos adversários de Jesus, devido à sua grande bondade, extrema sensibilidade aos marginalizados e sofredores, enfim, à sua plena humanidade. Ele é demais humano e natural. A dificuldade de aceitá-lo como Deus provém dessa perfeita humanidade (cf. Mt 13,55; Mc 6,3). Só a ressurreição, iluminada pela vinda do Espírito, pode dar aos discípulos a “certeza” da fé.

Jesus é a máxima aproximação de Deus que um ser humano pode ter. A humanidade de Jesus é de tanta profundidade que “os apóstolos e os que o conheceram, no final de um longo processo de decifração, só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo!”444 Portanto, só é possível aceitar Jesus como Deus feito carne através de sua humanidade que, vivida com toda potencialidade, se torna paradigma de qualquer outra experiência de humanização, de modo que, então, já não é mais possível falar de Deus sem falar do homem e vice-versa445.

Ao assumir a natureza humana, Deus o fez integralmente, entrando no processo humano histórico evolutivo. “Deus vai assumindo a vida de Jesus desde a sua concepção, na medida em que esta vida ia se desenvolvendo e assumindo suas opções decisivas”446, passando por fases evolutivas de crescimento e amadurecimento. Assim, em cada fase sua humanidade integra a divindade sob um determinado aspecto, e dentro dos parâmetros normais e próprios dessa etapa.

442 “Como o homem não reconhece a face de Deus na copa de uma árvore, ele a derruba sem remorso. Como não vê o sagrado da vida de uma criança, não se escandaliza com seu extermínio. As conseqüências dessa descrença estão aí, na degradação do planeta e da própria vida humana. Para mudar esse quadro, precisamos mudar nosso modo de vida e reconhecer, como São Francisco de Assis já fazia no século XII, que tudo é sagrado, dos vermes às baleias” (Ernesto BERNARDES, Teologia da colisão; entrevista: Leonardo Boff, Veja, 16 de agosto, 1995: 8). 443 Jesus Cristo Libertador, p. 143. 444 Ibid., p. 131. 445 Ibid., p. 133. 446 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 22.

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Não é difícil perceber, aqui, que Boff inaugura uma espécie de “neo-

adocionismo”. A afirmação cristológica acima contraria não só a dimensão revelacional de que o “Verbo se fez carne” (Jo 1,14), mas também o dogma cristológico, defendido em Calcedônia (451), da união hipostática, em que se afirma a união total, inconfusa e indivisível das naturezas divina e humana em Jesus (DS 302). Ambas as citações são claras e mostram a pontualidade do fato, e não apenas que o Verbo tenha dado início a um processo de encarnação em que lentamente as duas naturezas vão se fundindo até um momento de total e definitiva união.

Com a ressurreição, o processo encarnatório atinge sua plenitude, numa unidade entre matéria e espírito, homem e Deus. Cabe ao seguidor de Jesus o mesmo destino. Por esse motivo, “não conhecemos ninguém tão profundamente como a Jesus. Porque o conhecemos não tanto pelas fontes de informação do passado, mas por aquelas estruturas profundas de nosso ser que nele, em Jesus, receberam a plenitude divina”447. O cristianismo assume a tarefa de ser prolongamento consciente desse processo encarnatório-ressuscitador que acontece em todas as realidades e que só vai ter um fim quando, as realidades todas transformadas, Deus se torna tudo em todas as coisas (cf. 1Cor 15,28).

A revelação de Deus por Jesus se reveste de uma originalidade sem igual448. Sobretudo quando este, em sua vida e em suas palavras, começa a referir-se a Deus, chamando-O confiada e carinhosamente de Abba, Paizinho (termo que aparece 170 vezes nos quatro evangelhos), na linguagem própria da criança que confia desmesuradamente em seu pai (Mc 14,36; cf. Rm 8,15; Gl 4,6). Ao sentir-se de fato Filho de Deus (cf. Mt 11,25-27; Mc 12,1-9; 13,32), Jesus assume essa identidade com o Filho Eterno.

Dessa forma, mostra aos discípulos e a todos os judeus que, antes de ser criador, Deus é o gerador do Filho. Está revelada a identidade de Deus, identidade que decorre da mútua interpenetração e comunhão: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). A paternidade é sua essência; ou seja, Deus é Pai, porque é Pai de Jesus Cristo (cf. Rm 15,6; 1Cor 1,3; 2Cor 11,31; Ef 3,14, etc...), o que apenas pela revelação se pode saber; por isso, somente por meio do Filho e de seu Espírito se tem acesso ao Pai. Sem a revelação do Filho e do Espírito, a intuição humana sobre Deus possibilita, no máximo, concebê-lo como Criador, Arquiteto do Universo, Demiurgo, Motor Imóvel, etc...

A pregação de Jesus sobre o Pai e sua bondade não consiste, em primeiro lugar, em uma doutrina, mas na sua própria vida fundamentada na bondade, na acolhida e em atitudes de perdão. Daí, ao aproximar-se preferencialmente dos pobres, dos pequenos, dos doentes, dos pecadores e

447 Jesus Cristo Libertador, p. 173. 448 O original relacionamento de Jesus com Deus, Boff o desenvolve especialmente em textos como: Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, pp. 162-173; Paixão de Cristo, paixão do mundo, pp. 37ss e 77; A fé na periferia do mundo, pp. 29s; O Pai Nosso; a oração da libertação integral, pp. 35-44, 110-116; Uma cristologia a partir do povo cristão oprimido. In Adriano HIPÓLITO & outros, Pastoral popular libertadora, pp. 48ss...

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dos caídos, Jesus de Nazaré torna manifesta a fisionomia de Deus: Ele é Pai do Filho eterno, na plena intimidade do Amor, que se dilata e se estende em vestígios de paternidade, filiação e amorização a todas as realidades criadas. Na prática jesuânica de bondade e de libertação, revelam-se as Pessoas do Pai e do Espírito Santo. O humanismo de Jesus, portanto, supera o simples humanitarismo, transparecendo vivencialmente uma profunda experiência de amor com Deus.

A atitude filial humana de Jesus é sadia e equilibrada. Ele integra as dimensões da figura de Édipo, superando o sentimento de castração e o da dependência infantilizadora frente ao pai. Tem consciência de sua identidade, de sua missão, e mantém uma intimidade facial com o Pai celeste. O sentido bíblico de ‘filho de Deus’ indica simultaneamente que o Filho nunca está sem o Pai; que o termo grego uiós não é sinônimo de criança, téknon, e por isso manifesta a maioridade e a liberdade do filho de Deus; e que ‘filho’ revela não tanto uma relação causal, mais própria de uma criatura, mas especialmente uma relação pessoal de intimidade449.

A consciência da filiação divina na pessoa humana deriva da experiência de Filho de Deus feita por Jesus. Sua raiz está, portanto, na filiação eterna e encarnação do Verbo e, portanto, na realidade trinitária: quando, mediante Jesus, é revelada plenamente ao humano sua filiação, dá-se então a conhecer aquilo que sempre é o humano: desde sempre é filho no Filho. Agora, com o evento cristão, a estrutura filial humana é trazida ao nível da consciência histórica. Pode ser celebrada, tematicamente refletida e vivida numa intensidade nunca dantes possível e se desenvolve à medida que ele mergulha na dinâmica de Jesus Cristo (cf. Sl 2,7; Is 54,13; Os 1,10; 1 Jo 3,1-2; Gl 4,28; Rm 8,17). Ao amar as pessoas como seus filhos e filhas, o Pai está gerando, como num ato único, o próprio Filho eterno, fruto primogênito de seu amor, e, a partir dessa geração de amor, projeta os irmãos e irmãs criados à sua imagem e semelhança.

Já entre os povos antigos, o costume de referir-se a Deus como Pai manifesta um anseio humano de parentesco com a divindade. A referência que Jesus faz ao Pai como Abba, ao mesmo tempo que transparece a relação única e íntima de Jesus com Deus, faz ressoar a vibração de um dos arquétipos mais ancestrais da experiência de todos os homens450. Falar teologicamente da paternidade-maternidade de Deus significa fazer referência ao mistério absoluto e insondável que está por debaixo de toda e qualquer realidade, tanto divina quanto criada451. Ao mesmo tempo, como tudo é criado no Filho, a realidade toda reflete traços do Filho encarnado. Um caráter de filiação452 pervade também toda a criação desde seus primeiros momentos. Com o mistério da encarnação, o Filho de Deus, Verbo eterno, em Jesus de Nazaré assume de forma concreta e visível a estrutura filial de toda a realidade e o ser humano, em Cristo, é vocacionado a vivê-la conscientemente em nome

449 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 220-230; cf. tb. Jesus e a experiência de Deus-Pai e Mãe. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 122. 450 O Pai Nosso; A oração da libertação integral, p. 36. 451 A Trindade e a sociedade, p. 212. 452 Ibid., p. 229.

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de toda a realidade universal. Isto é, dizer que o humano é filho de Deus no Filho é dizer a absoluta destinação e vocação humana: ser em Deus, com Deus, para Deus e de Deus.

4.2.2- O Reino de Deus, a Malkutah de Jesus

Sem preocupar-se em definir o que seja Reino de Deus, este constitui a malkuta453 de sua mensagem, isto é, a palavra-chave que exprime sua experiência. Através de Jesus de Nazaré, Deus intervém no mundo para restabelecer a ordem do cosmos e do humano transtornada pelo pecado. Ao apresentar-se como uma existência centrada no Reino454, Jesus desperta a esperança presente nas raízes mais profundas da existência da pessoa humana, manifestada através de arquétipos fundamentais. “É lá que Cristo atinge e acorda os dinamismos de absoluta esperança adormecidos ou recalcados pelas estruturações históricas, esperança de total libertação de todos os elementos que alienam o homem de sua verdadeira identidade”455. Por isso, diz-se que ele “assume e leva até a última conseqüência o universal humano”456. A utopia do reino, enfim, constitui o anúncio de um sentido absoluto e radical de toda a realidade, de forma que, nele, “as esperanças mais arcaicas do homem começam a se realizar”457.

Nas realidades sócio-político-religiosas de opressão em que vive, Jesus experimenta o Reino de Deus “como libertação. Reino é a política de Deus, libertadora, resgatadora da vida, das relações sociais perversas, da natureza, que redime todo ser humano... Ele descobre que Deus mesmo está por trás desse processo de libertação”458. Na perspectiva antropológica, “Reino de Deus é a realização fundamental do coração humano de total transfiguração deste mundo, livre de tudo o que o aliena, como sejam a dor, o pecado, a divisão e a morte”459, “o sentido absoluto e pleno a que chegarão a criação e os homens”460, a realização da utopia de uma libertação global, universal, estrutural e escatológica.

A síntese da causa de Deus e da causa humana se encontra na oração do Pai Nosso que, por apresentar a Deus a realidade conflitiva das grandes questões da existência dos homens de todos os tempos, é chamada pelo teólogo de “oração da libertação integral”. O núcleo da vida e pregação de Jesus considera seus os problemas humanos; por isso, sua proposta não contém propriamente uma moralidade nova e diferente daquela que o humano

453 Termo aramaico que significa “palavra geradora”. 454 Juntamente com Leonardo Boff, vários outros teólogos, ainda que divergentes em alguns pontos, são concordes em afirmar que Jesus não pregou a si mesmo, mas o Reino de Deus. Entre eles estão Jon Sobrino, K. Rahner, W. Pannemberg, J. Moltmann, W. Kasper, H. Küng, E. Schillebeeckx, J. I. Gonzáles Fauss, etc... 455 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 26; cf. tb. Teologia do cativeiro e da libertação, p. 170. 456 O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 36. Aí Boff trabalha, a partir de Moltmann, o “princípio esperança” que está por detrás da utopia do Reino(cf. p.p. 67-70). 457 O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 72. 458 Jesus, a experiência de Deus-Pai e Mãe. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 120. 459 Jesus Cristo Libertador, p. 38. 460 O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 72.

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já possui. Antes, “Ele traz à luz aquilo que os homens sempre deviam ou deveriam saber e que, por causa de sua alienação, não chegaram a ver, compreender e formular”461.

Ao assumir a natureza humana na história provisória marcada pelo pecado, Jesus experimenta a mesma duplicidade dos apelos do homem-carne e do homem-espírito que nele convivem. Como todo ser humano, deve passar por um processo de amadurecimento para ver as coisas com mais clareza. Por isso, é “um verdadeiro ‘homo viator’ como qualquer um de nós, menos naquilo que nos inimiza de Deus, o pecado”462. Dessa forma, “os altos e baixos, naturais à vida humana, serviam para ele também como formas de se aprimorar e acrisolar e de mergulhar com mais profundidade na percepção do que seja o homem e do que signifique Deus”463. Dessa forma, à medida que o tempo avança, Jesus aprende a resistir às tentações de regionalização do Reino (cf. Mt 4,1-11), bem como a se convencer de que “nenhuma libertação intra-histórica define o quadro final do mundo e realiza a utopia”464 do Reino.

Portanto, encarnação significa não apenas que Deus se faz homem, mas que a divindade penetra em todas as contradições que a humanidade carrega, assumindo-as e as redimindo por dentro. O esvaziamento de Deus é tão grande que a face da divindade se ofusca, demodo que a encarnação é a “festa da secularização”465.

Jesus vive continuamente uma unidade dialética de ser. Por um lado, como proclamador do Reino; por outro, como seu próprio mediador, pois se torna o instrumento da realização do sentido absoluto do mundo, de forma a se poder afirmar que “Jesus Cristo é o Reino de Deus” (DAp 382). Eis então o novo e original do homem Jesus: ele antecipa o futuro e transforma em topia a própria utopia que anuncia466.

Mas, se o Reino é uma situação que produz realidades de libertação em todos os níveis humanos, então sua aceitação supõe uma pré-disposição prioritária aos pobres, não devido às suas qualidades morais, mas porque são vítimas do sistema desumano e satânico contra o qual o Reino deve se impor. Este é para todos, mas numa ótica de prioridade, de forma que “o Evangelho resgata a humanidade a partir das vítimas”467. Estando já nos pobres a salvação por graça de Deus, com freqüência ela irrompe no presente em gestos e situações concretas de Reino, possibilitando assim que ela permaneça permanentemente mediada: “os pobres, além de sua determinação econômica, constituem o lugar de uma teofania e cristofania e a possibilidade, para o homem, de um encontro de salvação”468. “Talvez seja por causa deles que a salvação é permanentemente mediada a toda a humanidade. Em razão 461 Jesus Cristo Libertador, p. 62; cf. tb. Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 26. 462 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 22. 463 Jesus Cristo Libertador, p. 147. 464 Ibid., p. 27; cf. tb. Paixão de Cristo, paixão do mundo, pp. 26-28; cf. tb. Teologia do cativeiro e da libertação, p. 117. 465 Jesus Cristo Libertador, p. 180. 466 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 26; cf. tb. Teologia do cativeiro e da libertação, p. 170. 467 América Latina: da conquista à nova evangelização, p. 112. 468 Teologia do cativeiro e da libertação, p. 144; cf. tb. Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 135.

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desta salvação, que está neles por graça de Deus, irrompem de vez em quando manifestações humanas que nos restituem a fé em Deus e a esperança do Reino”469.

Tal afirmação, típica da teologia da libertação, introduz um novo elemento ântropo-teológico: o pobre, por exclusiva graça e vontade de Deus, encarna a realidade humana mais densamente sacramental e articulativa de Deus e de Sua salvação em benefício de todos os homens, o que Puebla denomina de “potencial evangelizador dos pobres” (1147). Ele não é o único lugar de encontro com Deus, mas é um lugar privilegiado que, “se for esquecido, torna os demais lugares de encontro com Deus problemáticos”470.

Na mudança de paradigma, é preciso relacionar o pobre com a terra, num esforço para estender também o caráter cósmico da libertação. O Maligno que ofende a Deus e humilha o homem se corporifica na exclusão de Deus da vida humana, gerando o egoísmo coletivo de um sistema social elitista que não apenas exclui, mas também torna os pobres sobrantes e descartáveis (DA 65). Somadas a isso, violentas interferências sobre todos os ecossistemas envenenam a o planeta terra e colocam em risco toda espécie de vida, através de atividades irresponsáveis que provocam “a dizimação da biodiversidade, a erosão generalizada, a desertificação, o desflorestamento descontrolado, a quimicalização crescente dos alimentos, a intensificação do efeito estufa, dos furacões, do degelo das calotas polares e das alterações no código genético de muitos organismos...”471. As faces desse maligno são duramente denunciadas pelos bispos em Aparecida (DAp parte I, cap. 2). Ele seduz as mentalidades e amortece a consciência e o coração, alienando e descentrando o homem de sua vocação digna e transcendental; em outras palavras, desumanizando-o.

A existência de Jesus é sempre orientada para os outros e para o Grande Outro que é o Pai. Por isso ela é uma “pró-existência”. Calcedônia afirma a união hipostática: na única pessoa do Verbo se unem duas naturezas. Ele não é hypóstasis humana, isto é, a subsistência, o permanecer em si mesmo e para si mesmo que define a pessoa humana472. Mas é justamente essa ausência da hypóstasis humana que o leva à máxima perfeição, ao vazio que se plenifica com a realidade do outro. Sua “radical humanidade foi conquistada, não pela autárquica e ontocrática afirmação do eu, mas pela entrega e comunicação de seu eu aos outros e para os outros, especialmente para Deus, a ponto de identificar-se com os outros e com Deus”473. É nessa máxima abertura que o homem Jesus manifesta o Deus plenamente humanizado nele.

Simbólica fundamental do Reino, na pregação de Jesus, é a imagem do banquete. No entanto, não é a importância da comida ou do vinho que aqui se realça, mas da comensalidade: o repartir o pão e dividí-lo com os outros, o beber da mesma taça de vinho passada de um para outro... É no contexto da

469 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 135. 470 Nova era: a civilização planetária, p. 80. 471 Homem: satã ou anjo bom?, p. 12. 472 Jesus Cristo Libertador, p. 144. 473 Ibid., p. 145. Cf. tb. Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 34.

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comensalidade que se entende e se situa então a celebração da Eucaristia (cf. 1Cor 10-11)474. Deus se faz presente, então, no exercício desse arquétipo fundamental antropológico da comensalidade. 4.2.3- A morte e a ressurreição de Jesus como momen tos de plenificação humana e máxima revelação divina

A imortalidade constitui o grande sonho utópico dos homens de todos os tempos. Portanto, “a antropologia moderna (...) se coordena bem com o conceito cristão de ressurreição”475. Ou seja, a revelação cristã contém, a seu modo e com sua terminologia, a antropologia em seus aspectos fundamentais.

A sintonia acima referida pelo teólogo entre ao história de Jesus e a antropologia moderna não é tranquila como pensa o teólogo, pois, a antropologia moderna não é um bloco monolítico de pensamento. Além disso, traz, no fundo de sua reflexão, uma rejeição à religião, não perguntando e não aceitando respostas acerca da vida pós-morte. Para Sander, a referência cabe mais a uma moderna “antropologia metafísica cristã”, que à antropologia moderna em geral476.

Aqui é necessário discernir entre reflexão antropológica como ciência, elaborada pela intelectualidade no assunto, e reflexão antropológica vivencial, aquela antropologia historicizada, mais vivida nos confrontos da existência que sistematizada como ciência. Fundamentalmente vivencial, a preocupação do teólogo, em toda antropologia que subjaz ao seu pensamento, não é tanto com perspectiva sistemática dessa ciência quanto com o confronto existencial experimentado no dia-a-dia do homem moderno e pós-moderno. Por isso, permanece válida a sintonia que vê entre essa reflexão e as afirmações teológicas sobre a vida, pregação, morte e ressurreição de Jesus.

A ressurreição humana transfigura o “eu pessoal”, aquela identidade interiormente trabalhada e moldada durante a existência histórica, de forma que a ressurreição é a experiência de uma libertação que “não reside no abandono do corpo, mas na sua assunção e total orientação para Deus, de tal forma que o homem se torne repleto da realidade divina”477.

Ao transformar a realidade corporal, a ressurreição adequa a realidade humana para dimensões que não se condicionam mais aos limites do espaço e do tempo. A potencialidade humana de divinização se realiza, portanto, na situação do homem ressuscitado. Então ele se encontra com seu verdadeiro télos; é, por isso, o homo revelatus. Uma nova corporeidade se expressa na totalidade da matéria e do mundo, da personalidade e interioridade moldadas no decorrer da existência histórica. Como diz o teólogo, “o fim dos caminhos de

474 Virtudes para um outro mundo possível, vol. III: Comer e beber juntos e viver em paz, p. 65. 475 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 102. 476 Luis Marco SANDER, Op. cit., p. 182-183. 477 Ibid., p. 74; cf. tb. Jesus Cristo Libertador, p. 150; Vida para além da morte, p. 43; O caminhar da Igreja com os oprimidos, p. 244s.

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Deus reside no homem-corpo, totalmente transfigurado e feito total abertura e comunicação”478, tal como acontece com a Mãe de Deus, em sua assunção.

Mas, a teologia escolástica, carregada de certo dualismo antropológico grego, prega mais a imortalidade da alma que da pessoa humana nessa totalidade, como concebe a antropologia semita. Duas antropologias com profundas e vitais diferenças, que podem ajudar a compreender melhor o próprio mistério da revelação e a aprofundar a reflexão teológica. Cristo não apenas liberta o homem do morrer, mas da morte enquanto tal. Sua entrega incondicional lhe permite vencer o império do maior mal humano. A ressurreição irrompe, em Cristo, no próprio coração do aniquilamento479.

A morte não vem de fora, e nem existe em si mesma; o que existe é a pessoa que morre. Ela é, em sua constituição e estrutura, um ser mortal. A morte não é o último momento da vida mortal, mas de um processo que vai se desenvolvendo já desde o nascimento, e que atinge plenificação num determinado instante, de modo que não é possível falar da morte sem referência à vida mortal480. Dessa forma, se a morte de Jesus é redentora é porque sua vida de contínua auto-doação também o é em totalidade. E “porque se esvaziou completamente, pôde ser repletado totalmente. A isso se chama ressurreição”481. Pois, “a morte é redentora na medida em que está dentro de sua vida... Evidentemente, como a morte possui antropologicamente um significado qualitativo eminente, porque significa a culminância da vida, devemos dizer que ela representou para Jesus o ápice de sua pró-existência e de seu ser-para-os-outros...”482. Morte, assim, é entendida como “passagem necessária para que a vida realize seu projeto e viva num outro nível de processo evolucionário... uma forma superior de re-ligação com a totalidade”483. Assim, a morte de Jesus adquire um caráter de serviço à humanidade, assim como serviçal é toda a sua existência. “O término do processo da morte propicia ao ser humano uma última entrega a alguém maior, uma extrapolação completa do próprio centro para o coração de Deus. (...). Viver, então, não significa caminhar inexoravelmente para a morte. Morrer é peregrinar auspicioso para Deus”484. Então, “quando a morte é assumida dentro de um projeto que alcança para além desta vida, ela é assim superada e integrada”485.

O pecado atinge sua maior expressão na morte de Jesus na cruz, por isso, esta também representa o auge da experiência humana do fracasso, quando o próprio Deus humanado faz a experiência da frustração e até do abandono do Pai. Ao perguntar pelo sentido desse mistério, a cristologia entende que Cristo leva até o fim as conseqüências de sua encarnação. Suporta o conflito fundamental da existência do homem, e não desiste de “querer realizar o sentido absoluto deste mundo diante de Deus, a despeito do

478 Jesus Cristo Libertador, p. 101. 479 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 85 480 Estrutura pascal da existência humana, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 42, fasc. 165: 10. 481 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 69. 482 Ibid., p. 82. 483 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 133. 484 Do lugar do pobre, p. 127. 485 A fé na periferia do mundo,p. 44.

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ódio, da incompreensão, da traição e da condenação à morte”486. Jesus Cristo é a historicização daquilo que há de mais real na vida do ser humano; sua cruz e sua morte mostram o que existe nele de verdadeiramente humano. Como se vê, o tema comporta extrema riqueza antropológica e teológica, pois a realidade da morte se apresenta como um “nó que enfeixa a problemática geral da antropologia no seu sentido mais vasto”487.

A ressurreição do crucificado mostra que todos os que este mundo condena injustamente “também herdarão a plenitude da vida, quer dizer, a ressurreição. Pois Jesus se fez um deles. Seu destino feliz é destino prometido a todos que tiverem sorte semelhante àquela de Jesus... Os humilhados e ofendidos são de fato os continuadores do Servo Sofredor Jesus Cristo”488, cuja ressurreição ilumina a cruz e a morte de todos os vencidos da história por causa da justiça ou pela miséria decretada pelo egoísmo humano. O gancho da antropologia com a ressurreição está justamente nesse novum: a esperança que ela representa para os excluídos, subjetiva ou objetivamente, da vida plena que Jesus vem trazer a todos489.

A morte vencida pela ressurreição traz um sentido novo para o ignominioso símbolo da cruz, que passa a adquirir um significado ambíguo, sendo o positivo muito mais forte que seu oposto. Se ela revela a que ponto pode chegar a maldade do ser humano quando ele se distancia de Deus, também indica com mais vigor ainda a que radicalidade pode chegar o amor gratuito e misericordioso de Deus. Se ela é símbolo do crime, da maldição e do pecado, é também sinal do infinito amor de Deus pelos seres criados. Se, por um lado, ela é sinal de contradição, que aparece como loucura aos olhos da sabedoria grega e da santidade judaica, por outro, é expressão de uma fraqueza e pequenez misteriosas que tornam o ser humano forte, feliz e completo (cf. 2Cor 12,9; Gl 6,14). Por isso a cruz se torna sinal de libertação e da verdadeira força e sabedoria. É a resposta do absurdo de Deus para os absurdos humanos.

Deus Pai responde à situação humana de ambigüidade assumida por seu Filho com a ressurreição. Jesus, que promete a “vida em plenitude” (Jo 10,10b) para seus seguidores, mostra-a realizada em si mesmo: em si próprio ele a resposta de Deus à condição humana. Nele se revela a possibilidade de um sentido absoluto, não obstante o mundo do absurdo. Com a vitória sobre a morte, o Pai mostra que o Reino acontece mesmo que tenha que passar pelos caminhos contraditórios da recusa humana, e que os absurdos intra-históricos não impedem o seu advento.

A ressurreição de Jesus manifesta a realização de suas potencialidades humanas e divinas. Ela “constitui o primeiro ensaio e a amostra grátis daquilo 486 Jesus Cristo Libertador, p. 87. 487 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 66. Nesse mesmo sentido, José COMBLIN também diz que “na existência humana não há acontecimento mais importante do que a morte” (Antropologia cristã, p. 108). 488 Sentido cristão de Mistério e Mística. In Leonardo BOF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 21; cf. tb. Mística e Militância. In Ibid., p. 27; cf. tb. Jesus Cristo Libertador, p. 34; cf. tb. Paixão de Cristo,paixão do mundo, p. 87; cf. tb. O destino do homem e do mundo, p. 28. 489 Luís Marco SANDER, Op. cit., p. 185.

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que vai acontecer para cada ser e para a totalidade do universo”490. Portadora de um enorme potencial antropológico liberador da grande utopia humana, a ressurreição provoca a sua realização e constitui a grande novidade e contribuição com que o cristianismo enriquece a antropologia geral: se Cristo ressuscita, “todos somos vivificados nele” (1Cor 15,20.22; Rm 8,29; Cl 1,18), pois ele é o primogênito dentre os mortos (cf. Cl 1,18), o novo Adão (cf. Rm 5,14). Caso contrário, os cristãos são os mais infelizes dos homens (cf. 1Cor 15,12-19). A verdade sobre o homem é aquela que emana da ressurreição: o homem é um ser-para-a-vida-em-plenitude. O querigma cristão, portanto, supera as expectativas da imortalidade, pois na ressurreição em Cristo diz-se não só que a utopia humana de imortalidade se transforma em topia que rompe o círculo paradoxal do humano, mas também que o introduz no Reino de Deus. Portanto, a ressurreição, representando um novum em relação às cosmovisões religiosas, inclusive a semita, não apenas não desloca a pessoa de seu estatuto básico antropológico, mas ainda a liberta e a plenifica, tornando-a mais propriamente humana.

Isso tudo significa que a utopia cristã da ressurreição faz com que o homem, a mulher, o mundo e todas as suas realidades passem a ser compreendidas não tanto através de seu passado biológico, mas principalmente através de seu futuro, já mostrado na antecipação de Jesus Cristo. Ou seja, há um sentido latente presente no coração humano e em todo o mistério da realidade. Então, se a questão principal da antropologia teológica não é a pergunta sobre quem é o ser humano, mas o que há de ser dele, então ele se define pelo vir-a-ser: “não nos podemos mais contentar em analisar o mundo a partir da criação ‘in illo tempore’, mas devemos compreendê-lo a partir da escatologia, do futuro presente em Jesus ressuscitado”491; isto é, o começo deve ser entendido pelo fim.

A ressurreição não tira Cristo deste mundo; a promessa de estar com os seus para sempre (cf. Mt 28,20) não é certamente abalada. Ao contrário, o ressuscitado penetra mais profundamente no coração de todas as coisas, numa realidade transfísica e pan-cósmica, que lhe possibilita estar em íntima unidade com todos os seres e sempre presente em todo e qualquer lugar e em todos os tempos. Se os contemporâneos de Jesus podem encontrá-lo andando pela Palestina ou pelas ruas de Jerusalém, hoje e sempre também se pode vê-lo e experimentá-lo em todas as realidades deste mundo, graças à sua presença de ressuscitado. A realidade torna-se sacramento que coloca o homem e a mulher em comunhão de vida e de amor com Deus, pois, no seu mais íntimo, toda ela pertence à própria realidade de Cristo. Por isso também, em Jesus de Nazaré, o já acontecido homo revelatus, descobre-se que “na ordem concreta não existe destino natural do homem que não seja simultaneamente seu destino sobrenatural”492.

Mas, não há uma lógica formal que evidencie o significado da cruz e do sofrimento, nem de Jesus nem de ninguém. Há apenas um logos tõu staurõu (cf. 1Cor 1,18), que se desenvolve quando Cristo a assume na liberdade e no 490 Nova era: a civilização planetária, p. 54; cf. tb. Homem: satã ou anjo bom?, pp. 170-171. 491 Jesus Cristo Libertador, p. 153. 492 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 102.

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amor. “A liberdade e o amor são maiores que todos os absurdos e mais fortes que a morte”493. Desse seu sentido teológico brota também um significado antropológico realizador para todo compromisso assumido com consciência, amor e liberdade.

Por isso, o sentido da cruz só é assimilado por aquele que acolhe o Cristo sofredor em sua existência; só o homem espiritual pode crescer mesmo na dor, e a teologia deve ser contínua proclamação dessa esperança. O homem se realiza não enquanto reage conforme seus instintos, mas enquanto é capaz de quebrar a espiral de eficácia ilusória que gera violência e dor. O sofrimento de Cristo mostra a vitória dos valores humanos fundamentais: “dá mostras de que o futuro e o desejável para o homem está do lado do direito, da justiça, do amor e da fraternidade, e não do lado da cobiça, da violência e da vontade de poder”494.

Pregar a cruz de Jesus Cristo hoje, numa sociedade cheia de homens sofridos consiste em suportar e sofrer a inversão dos valores humanos fundamentais pregados por Cristo, porque “eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Nesse sentido, é “possível suportar o abuso de poder sem resignar, sem apelar para o mesmo esquema e sem pagar com a mesma moeda”495. A pregação da cruz de Cristo exige do homem a máxima descentração de si mesmo, a exemplo do Crucificado.

A morte de Cristo na cruz é a maior visibilidade da morte como fruto do pecado (cf. Rm 5,12; cf. Gn 3; cf. tb. DS 372.1511). No projeto de Deus, o núcleo central da morte não é nem dor nem sofrimento, mas a maturidade existencial que ela comporta, maturidade conquistada por Cristo. “Cristo assumiu esta última solidão humana. A fé nos diz que ele desceu aos infernos, isto é, ultrapassou os umbrais do radical vazio existencial, para que nenhum ser mortal pudesse, de ora em diante, sentir-se só”496. Daí, aquele que vive em Cristo pode, mesmo no sofrimento físico e no desgaste das condições naturais, acolhê-la fraternalmente como seu vere dies natalis. Se a proposta de Jesus na pregação do Reino é de auto-doação e entrega ao Pai e ao próximo, a morte, nessa mesma linha, é o momento culminante desse abandono confiante. Abandono que é a resposta-superação de Jesus à mais assustadora tentação que alguém pode sofrer no fim de sua existência, como sofrem também tantos seguidores fiéis de Jesus: “a tentação de que nada valeu a pena, de que tudo foi em vão, de que não há mais nenhuma esperança”497.

Na presente condição humana, o homem permanece na ambigüidade da justiça e do pecado. Quando finalmente acontecer o homo revelatus na situação humana total, então ele deve participar da ubiqüidade cósmica de 493 Paixão de Cristo, paixão do mundo, p. 144; cf. tb. Pp. 83-84 494 “O sofrimento do povo latino-americano ao largo de todos estes séculos deve ter um sentido. Deve estar gestando uma grande virada histórica, uma humanidade mais humana e fraterna. Não pode ser o totalmente absurdo” (Graça e experiência humana; a graça libertadora no mundo, p. 107). 495 Luis Marcos SANDER, Op. cit., p. 66; cf. tb. A fé na periferia do mundo, p. 31. 496 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 100s; cf. tb. Jesus Cristo Libertador, p. 147; cf. tb. Via Sacra da ressurreição, pp. 97-100.109-111; cf. tb. Do lugar do pobre, pp. 122-125; cf. tb. Vida para além da morte, pp. 185-187. 497 Homem: satã ou anjo bom?, p. 196.

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Deus e de Cristo, nascendo assim o homo cosmicus498. Então o cristianismo surge como resposta às questões mais pungentes do ser humano. “À pergunta fundamental de toda antropologia –que será do homem? O que podemos esperar?- a fé responde jubilosa: ‘vida eterna do homem-corpo-espírito em comunhão íntima com Deus, com os outros e com todo o cosmos’ “499.

Enfim, “o processo de hominização chegou ao seu termo em Jesus Cristo ressuscitado, irmão nosso e Filho de Deus, revelação divina e alegria humana”500. Doravante, os cristãos sabem que Deus pode ser encontrado vivo e feito história numa pessoa, Jesus de Nazaré; e que a possibilidade de real conhecimento, tanto de Deus como do homem, deve ser buscada na vida e história humana desse Jesus. Nele, Deus é humano, e o homem, divino.. 4.2.4- A estrutura crística de toda a criação

Como que num ensaio para o novo paradigma então ainda por assumir, já nos inícios de seu trabalho teológico, Boff elabora, numa grande proximidade a Teilhard de Chardin, sua cristologia cósmica, com um processo que vai da cosmogênese à cristogênese, e daí à Trindade. Numa cristologia assim concebida, supera-se o antropocentrismo, pois Cristo “ultrapassa o âmbito humano, tem uma implicação cósmica”501.

Hoje, num passo ainda mais ousado, e sem mjuitas referências

explicitamente teológicas, o teólogo faz uma leitura do processo que, há bilhões de anos, vem da geosfera (Terra), passa pela hidrosfera (água), pela litosfera (continentes), posteriormente pela biosfera (vida) e pela antroposfera (ser humano), em direção à cristosfera (Cristo), para os cristãos. Mas fala da iminência de um novo salto: “a irrupção da noosfera que supõe o encontro de todos os povos num único lugar, vale dizer, do planeta Terra e com a consciência planetária comum. Noosfera, como a palavra sugere (‘nous’, em grego, significa mente e inteligência), expressa a convergência de mentes e corações, dando origem a uma unidade mais alta e complexa”502.

Nessa hirarquia cósmica, transparece a estrutura crística no mais profundo da natureza humana e de toda a criação. Então, “Cristo não é um nome. É uma dimensão, um comportamento, um novo estado de consciência de quem se sente ligado e re-ligado a Deus ”503.

498 Numa grande proximidade com Teilhard de Chardin, Boff alude ao Cristo cósmico, que fermenta a totalidade do universo conduzindo-o para seu ponto ômega, que é Deus. In Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 79. Expressões singulares do Cristo cósmico na história são personagens como Krishna, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, João XXIII, Dom Helder Câmara, Luther King, Madre Tereza de Calcutá... (É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré?, in Concilium 319; 2007/1, p. 68). 499 A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte, p. 109;cf.tb. Jesus Cristo Libertador, p. 99. 500 A fé na periferia do mundo, p. 47. 501 O Evangelho do Cristo cósmico, 125-129. 502 Terra e Humanidade: uma comunidade de destino, in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. LXX, fasc. 277: 187. 503 Virtudes para um outro mundo possível; vol. II: Convivência, respeito e tolerância, p. 117; A Trindade e a sociedade, p. 229.

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Por “estrutura crística” Boff designa uma dimensão criatural anterior ao próprio Jesus de Nazaré. Presente desde a criação, ela se manifesta sempre que alguém vivencia a experiência do verdadeiro amor, a busca do bem, os esforços de superação do egoísmo, das divisões, os esforços de justiça, de solidariedade, de perdão... Paulo faz referência ao processo encarnatório dessa estrutura na história, já a partir da criação (cf. Cl 1,15-20). Nada subsiste fora dela, pois desde sempre as realidades do mundo se encontram impregnadas da presença encarnadora e vivificante de Deus. Ela vai se densificando gradativamente até que, finalmente, na plenitude do tempo (cf. Gl 4,4), Deus a explicita historicamente na Pessoa do Verbo, que, por ter vivido plenamente essa dimensão, acaba por tomá-la como seu nome.

Jesus de Nazaré, o Cristo, é a máxima patência dos valores cristãos, a realização integral e absoluta da estrutura crística humana. Ele é a revelação desse segredo íntimo do coração humano e de como realiza-lo de modo patente e eficiente. A encarnação do Verbo, em Jesus, como auge da interpenetração do divino com o humano, do eterno com o histórico, surge como eixo central do mistério cristão, inaugurando uma forma nova de compreender a realidade. Com a encarnação, matéria, história, sentimentos, alegrias e sofrimentos e tudo o mais que diz respeito ao humano, se reveste de um significado novo. À vivência histórica concreta e real dessa estrutura se denomina cristianismo. Embora não existindo anteriormente com esse nome, está latente nas realidades do homem de todos os tempos. Por isso se pode dizer com Santo Agostinho: “A substância daquilo que hoje nós chamamos de cristianismo existia já nos antigos, e estava presente desde os primórdios da humanidade. Finalmente, quando Cristo apareceu em carne, começou-se a chamar àquilo que sempre existia de religião cristã”504.

Hoje, o paradigma teológico da ecologia ajuda a entender melhor que a encarnação não esgota a dimensão “Cristo”; antes, ela se esclarece à luz da ressurreição, que torna transparente o que está oculto em Jesus de Nazaré: “a universal e máxima abertura para toda a realidade cósmica, humana e divina, a ponto de Paulo poder confessar Jesus ressuscitado ‘tudo em todas as coisas’ (Cl 3,11)”505.

Dessa forma, o cristianismo propriamente dito se ultrapassa a si mesmo506. É uma vivência que está para além das sistematizações humanas religiosas. Ser cristão, em primeiro lugar, é viver uma vida que realiza a estrutura crística, ou seja, a abertura total ao outro e a Deus, o que pode ser vivido mesmo por pessoas que nunca ouviram falar de Cristo. Por isso pode o primeiro filósofo cristão São Justino (+ 167) dizer: ”Todos os que vivem conforme o ‘Logos’ são cristãos. Assim, entre os gregos, Sócrates, Heráclito e outros; e entre os não-gregos, Abraão, Ananias, Azarias, Elias e muitos outros cuja citação dos nomes e obras nos levaria longe demais”507.

504 Retr. 1,12,3 505 Jesus Cristo Libertador, p. 215. 506 É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré?, in Concilium 319; 2007/1, p. 62.64. 507 Apologia, I, 46.

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A estrutura crística é uma potencialidade e uma vocação do homem. Ao realizá-la exaustivamente, de modo a encarná-la em si mesmo, Jesus é chamado por Paulo de Novo Adão (cf. 1Cor 15,45), isto é, o homem em sua originalidade mais primigênia e ao mesmo tempo em sua realização mais total do processo de hominização. Se Deus entra na história dessa forma, assumindo o humano em todas as suas possibilidades e limites, então pode-se dizer que em Jesus Cristo Deus se humaniza e o homem se diviniza. Por isso, “a divinização constitui o sentido da hominização... Divinizando-se, o homem é mais homem. Humanando-se, Deus é mais Deus (para nós)”508. Ou seja, a expressão concreta da humanização de Deus e da divinização do ser humano é Jesus de Nazaré, o Cristo. Enfim, “o termo da antropogênese reside na cristogênese...”509.

A estrutura crística, também denominada “estrutura filial”, é o esquema teológico da antropologia. O humano só se plenifica e se realiza se se “verbifica”510, isto é, se assume a dimensão fundamental do Verbo de Deus, que é essa dimensão crística filial. Quanto mais o homem se relaciona com a alteridade, mais ele é ele mesmo, mais é pessoa. Por isso, o processo de divinização implica um processo de personalização, e vice-versa511. A hominização coincide com a vivência dessa estrutura crística de abertura. Fica então fácil compreender que vitalizá-la leva o ser humano a aproximar-se de Deus, santificando-se; das criaturas todas, irmanando-se, e de si próprio, hominizando-se. Por outro lado, a frustração dessa estrutura provoca o fechamento egoístico, a ponto de brutalizar o humano. Divinização, santificação, fraternismo e humanização são palavras-afins, assim como o são também, entre si, egoísmo, individualismo, fechamento, tristeza, frustração e desumanização.

Ao dizer que “Deus é amor” (1Jo 4,8.16), antes de definir ou conceituar a Deus, São João pretende revelar o caminho único de sua experiência. Deus se manifesta e se deixa encontrar na relação pericorética trinitária, quando o Pai e o Filho se comunicam e se doam um ao outro no Espírito Santo. Pois bem, a estrutura crística humana, ao se compreender a partir da doação e oblatividade, revela uma origem trinitária512 e coloca o homem no cerne mesmo do mistério de Deus. A encarnação, na linha do prólogo do Evangelho de João, das Epístolas aos Efésios, aos Colossenses e aos Hebreus, e da teologia franciscana, associa o homem e a mulher, através do Filho, por impulso do Espírito Santo, à intimidade de sua vida, na relação pericorética trinitária. Assim, “fica claro que a encarnação do Filho não se deveu ao pecado humano... Pela compreensão cósmico-verbocêntrica, a encarnação pertence ao mistério da criação. Esta é, de sua natureza, crística. O Filho ter-se-ia encarnado independentemente do pecado, porque a criação foi projetada no, para, por e com o Filho”513, tese eminentemente franciscano-scotista514.

508 Natal: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus, p. 42. 509 Jesus Cristo Libertador, p. 187. 510 A Trindade e a sociedade, p. 229s. 511 Graça e experiência humana; A graça libertadora no mundo, p. 214. 512 Razão pela qual também Boff diz que “tudo na criação possui a estrutura do Filho, enquanto tudo se comunica, está em relação para fora e realiza seu ser se autodoando ” in Jesus Cristo Libertador, p. 193. 513 Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 282-283.

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O mistério da encarnação manifesta convincentemente que a estrutura

crística de toda a realidade é pro-posta de Deus ao homem. Na realidade sacramental de Cristo, em quem se dá o encontro da divindade com a humanidade em transparência515, o ser humano se torna também sacramento de Deus. Daí decorre ainda que também por isso ele pode ser uma manifestação articulada do próprio ser de Deus, à medida que assume o processo de estruturação crística, na profunda liberdade da doação e abertura total para o outro, para o mundo e para Deus.

A vida humana de tal forma está mergulhada na dinâmica dessa estrutura que a história humana pode ser entendida como história do encaminhamento de sua estrutura crística, história de salvação ou de perdição, portanto.

A vivência dessa estrutura, embora centrada no amor fraterno através da doação e oblatividade, se articula historicamente de formas diversas. As religiões, se atentas à exigência existencial da fraternidade e da abertura ao mistério de Deus, que é amor, podem ser consideradas formas culturais dessa vivência crística. O cristianismo católico é “a mais excelente articulação ‘institucional’ do cristianismo..., a mais límpida interpretação do mistério de Deus, do homem e de sua mútua interpenetração”516. Mas, só se torna “católica” no verdadeiro significado do termo, quando sabe detectar e acolher a presença do Cristo em todas as realidades, inclusive naqueles espaços tidos convencionalmente como não-religiosos ou não sociologicamente católicos. Por isso, alguns falam hoje de Boff como um “teólogo católico protestante”517, pois, no paradigma ecológico, sua idéia de “Cristo” como dimensão junto a

514 Para Santo Tomás de Aquino, conforme a fórmula do Credo: “por causa de nossa salvação”, a encarnação de Deus se faz necessária a partir da situação humana de pecado, que é, portanto, o motivo concreto da encarnação (Suma Teológica III, I, 2,3). O teólogo franciscano Duns Scotto, ao qual Boff segue com uma maior tendência, reage a essa tese, dizendo que “nenhuma predestinação é ocasionada por uma falta anterior” (“ Nullius praedestinatio videtur fuisse occasionata ex culpa priori”), pois, “o bem menor é ordenado ao bem maior, e não o bem maior ao bem menor”. Em sua Opus Oxoniensis, L.3, d.t, q.3 (14,335), in P. BALIC, Joannis Duns Scotti Doctoris Mariani theologiae marianae elementa, p. 7, Scotto afirma que Cristo é predestinado a ser Filho de Deus, e que por isso não pode se submeter a nenhuma subordinação em relação à criatura, como é o caso do pecado humano. Por isso, “Digo, pois, assim: primeiro, Deus se ama; segundo, Deus se ama para ir a outrem, e esse amor é ordenado; terceiro, Deus quer ser amado por alguém que possa amá-lo como o ‘summum’ do amor, e eu falo de um amor extrínseco a ele; quarto, Deus prevê a união consigo mesmo desse amor que deve amá-lo supremamente, mesmo que não houvesse entre os seres criados ninguém que traísse o amor ” (Reportata Parisiensia, L. 3, d. 7; a. 4, n. 5. In P. BALIC, Joannis Dunbs Scotti Doctoris Mariani theologiae marianae elementa, p. 145). Tal reflexão forma, praticamente, o núcleo do pensamento filosófico, teológico, ascético e místico de Duns Scotto. Portanto, para ele, o amor é a causa única da encarnação. “Deus quis a união hipostática a fim de dar e receber fora de si mesmo o supremo amor em igualdade infinita na Pessoa do Verbo encarnado, Jesus Cristo...” (Béraud de SAINT-MAURICE, João Duns Scot, doutor dos tempos novos, p. 248); cf. tb. O Evangelho do Cristo cósmico, pp. 103-108. 515 Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos; Minima sacramentalia, p. 46. 516 Jesus Cristo Libertador, p. 191. 517 Cf. Hermann BRANDT, Leonardo Boff como teólogo protestante? Um balanço pessoal. Estudos Teológicos, ano 48, n. 2, 2008.

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outras formulações, favorece o que se tem chamado de Teologia do Pluralismo Religioso518.

Cristo é a máxima expressão da “bondade e amor humanitário de Deus” (Tt 3,4) e a possibilidade conciliadora dos opostos que impedem a criatura de realização plena. A espera do Senhor que vem (cf. 2Cor 11,26; 1Ts 5,2; Hb 10,37; 2Pd 3,10; Apc 22,7.20) é sobretudo a expressão de um compromisso humano com Deus e com o próximo, de tal forma que “sem Cristo faltaria algo à criação e o homem jamais chegaria à sua completa hominização”519. 4.3- A espiritualização de Maria

As afirmações teológicas de Boff que dizem respeito à relação ontológica, de caráter excepcional da graça, entre Maria e o Espírito Santo, interessam sobremaneira à antropologia teológica. Revelam a concepção boffiana sobre pessoa humana em seu vislumbre utópico antecipado na vida de Maria de Nazaré. O presente item mostra o conteúdo teologumenal de Boff, um dos seus pensamentos mais contestados, bem como os comentários e as contestações que enfrenta, e que podem enriquecer o conteúdo deste estudo.

O conteúdo do teologúmeno boffiano, na linha da personificação humana da Trindade, diz: o Espírito Santo se encontra personificado humanamente em Maria de Nazaré. Para argumentar, Boff confere em raízes bíblicas e teológicas um forte acento feminino à Terceira Pessoa. A palavra “Espírito”, no hebraico, é uma palavra feminina. Já no Antigo Testamento, os textos favorecem essa interpretação: o ato feminino de fecundar a criação, simbolizado no verbo “pairar” (cf. Gn 1,2), a identificação do Espírito com a Sabedoria, amada e buscada como uma mulher (cf. Eclo 14,22)...

“Espírito” aparece na revelação sempre referido à vida e à sua defesa. No Novo Testamento, Ele aparece como uma mãe, responsável pela criação da humanidade do Verbo (cf. Mt 1,18), pelo impulso à vida ministerial messiânica de Jesus, no batismo que inaugura seu ministério (cf. Mt 3,16), pelo seu novo nascimento na ressurreição (cf. Rm 1,4)... Na comunidade-corpo de Cristo, o Espírito é mãe que ensina a chamar Deus de Abba (cf. Rm 8,15), que ensina que Jesus é o Senhor (cf. 1Cor 12,3), e que ensina como rezar e pedir a Deus (cf. Rm 8,26).

Desdobrando a lógica desse pensamento, buscando fundamentar-se na reflexão trinitária da Igreja, nos textos bíblicos principalmente de Mt 1,20.35; Lc 1,35.37; Gn 1,1 e At 2,2, e em vários precursores520, Boff afirma, enfim, que, ao vir sobre Maria, o Espírito Santo a pneumatifica, tornando-a repleta da graça divina, numa verdadeira união hipostática521. Assim, Maria é a configuração 518 Paulo A. NOGUEIRA BATISTA, Teologia e ecologia: a mudança de paradigma de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 122. 519 Jesus Cristo Libertador, p. 192. 520 Boff cita como precursores desse teologúmeno pessoas como Cirilo de Alexandria, Pétau, Scheeben, Pseudo-Felipe de Harvengt, Chardon e Gibieuf da Escola Francesa, os russos Paul Evdokimov e P. Bulgakov, Maximilano Kolbe, Manteau-Bonamyà (O rosto materno de Deus, pp. 109-111). 521 O rosto materno de Deus, pp. 92-117; cf. tb. A Ave Maria, pp. 41-46; 81-85; cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 260-264; cf. tb. A Trindade e a sociedade, pp. 256-258.

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humana do Espírito Santo, e, juntamente com Jesus e com José, representa a humanidade diante de Deus. Ela representa a plenitude da forma de vida em que o pólo feminino tem prioridade sobre o masculino522. Em Jesus, José e Maria a humanidade toda, em sua expressão concreta feminina e masculina, torna-se o receptáculo da auto-entrega do Filho que, junto a José, diviniza o masculino explicitamente e implicitamente o feminino, e do Espírito Santo, que diviniza o feminino explicitamente e implicitamente o masculino523.

Dessa forma, a mariologia do autor pretende apresentar-se como uma proposta de equilíbrio teológico. Não usando a palavra ‘encarnação’, que é de caráter técnico da cristologia, Boff refere-se à união hipostática do Espírito Santo com a realidade humana, através de Maria, com o termo ‘espiritualização’524. Através da personificação em José, da verbificação em Jesus de Nazaré, e da espiritualização em Maria, chega-se a uma verdadeira síntese entre o histórico e o teológico: o que um esconde, o outro revela, e vice-versa. E então, começa propriamente a verdadeira tarefa da teologia.

Na análise crítica ao livro de Boff “A Trindade, a sociedade e a libertação”525, a Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé, do Rio de Janeiro, considera o tema como “o ponto mais chocante”, pois considera que “à semelhança da encarnação do Filho”, por própria ação, o Espírito se autocomunica hipostaticamente à Virgem526. E daí, “Boff não hesita em concluir que Maria é então, não apenas o Templo de Deus, mas o próprio Deus do templo (sic), isto é, o Deus que mora em Maria e que se faz nela o templo vivo e verdadeiro”527. A união hipostática da Terceira Pessoa da Trindade com Maria “nada tem de hipótese teológica”; constitui uma “fantasiosa pseudo-novidade a um fato de todo inexistente, e por isso mesmo nunca revelado”528. O teólogo espanhol Bernardino de Armellada, numa análise do mesmo teologúmeno diz que “mais que fundada na tradição teológica, (a afirmação da união hipostática de Maria com o Espírito Santo), apesar de formosa e cativante, a hipótese aparece como um desideratum do autor”529.

A teóloga belga Alice Dermience, numa análise da edição francesa de “Je vous salue Marie”530, reconhece nas afirmações de Boff, as quais ele mesmo considera pessoais531, a afirmação de uma relação ontológica entre

522 Luis R. Rivera RODRÍGUEZ, Anthropogenesis: the theological anthropology of Leonardo Boff, p. 198; cf. tb. O rosto materno de Deus, pp. 523 A Trindade e a sociedade, p.257. 524 O rosto materno de Deus, p. 110. 525 A Arquidiocese do Rio e o livro A Trindade, a sociedade e a libertação, Atualização, n§ 206: 133-161. 526 Cf. A Trindade e a sociedade, pp. 23, 41, 123, 144, 146, 261. 256-258. 274. 527 Cf. Ibid., p. 258. 528 A Arquidiocese do Rio e o livro “A Trindade, a sociedade e a libertação”, Atualização, n§ 206, p. 135. 529 Bernardino de ARMELLADA, (Recensão de) BOFF, Leonardo, O rosto materno de Deus, aturaleza e Gracia, vol. XXVII/1: 184. 530 Alice DERMIENCE, (Recensão de) BOFF, Leonardo, Je vous salue Marie, Revue Théologique de Louvain 19, fasc. 2: 245. 531 ”o que afirmamos aqui não é doutrina oficial. Trata-se de um Theolegúmenon (hipótese teológica), fundado num dado bíblico em articulação com o nexo existente entre as várias verdades da fé” ( A Trindade e, a sociedade, p. 257).

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Maria e o Espírito Santo. A afirmação de que o Espírito se “pneumatizou” em Maria532 significa que nela Ele tomou forma humana, numa referência determinante ao gênero feminino do termo hebraico para se referir ao Espírito, Ruah, e à revelação de Deus em Maria, Sua face feminina, entendendo que nela, Nova Eva, o princípio feminino, presente também nos homens, se diviniza e se torna portador de Deus533. Após tecer considerações sobre o fervor mariano e a simpática perspectiva feminista de Boff, a teóloga admite que é muito difícil partilhar de suas idéias. As expressões bíblicas, diz ela, são mais sóbrias em relação a Maria, e os próprios evangelistas lhe fazem escassas referências, concedendo-lhe um papel bastante discreto durante o ministério de Jesus. Além disso, ao colocar no seu texto evangélico a saudação de Isabel, “bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1,42), o evangelista está retomando expressões vétero-testamentárias como as contidas em Jz 5,24 e Jt 13,18, o que enfatiza mais o teológico que o histórico da saudação mariana. E, continua ela, se “o Espírito Santo toma em Maria uma forma histórica”534, irradiando-se daí sobre a Igreja, por que Jesus deve ainda prometê-lo e enviá-lo após sua ressurreição? Enfim, questiona Alice Dermience se é mesmo necessário, para elaborar uma teologia da libertação feminina, afirmar que “o Espírito Santo é a mãe divina do homem Jesus” e daí desenvolver uma mariologia a tal ponto idealizada535.

Ao dizer que “o vir do Espírito significa assumir a realidade humana de Maria, assim como o Filho assumiu a realidade humana de Jesus”536, Boff, estabelece não uma mesmicidade, uma igualdade, mas uma comparação. “A união hipostática afirmada de Maria com relação ao Espírito Santo tem necessariamente outro sentido do que quando afirmada do homem Jesus em relação ao Logos”. No entanto, “a tese é infeliz, pois dá azo à confusão e escandaliza nossos irmãos separados”. Tais comentários são de Francisco Taborda, que entende que o grande mérito da mariologia de Boff está no método empregado e na erudição no estudo interdisciplinar do feminino, em sua originalidade como princípio mariológico fundamental. E conclui dizendo que Boff abre, em sua mariologia, um caminho original teológico: sua incorporação à cristologia e sua inserção numa dimensão maior tal como a eclesiologia ou a antropologia. Com isso, diz crítico, o tratado maior se torna enriquecido pela inclusão da dimensão do feminino em sua elaboração” 537..

Mas, continua Taborda, Boff não usa os termos em sua exatidão teológica, tomando critérios contraditórios no caso da mariologia e da cristologia. Enquanto em relação a Jesus Cristo Boff desenvolve uma “cristologia de baixo” de forma que seu Cristo é tão humano que chega mesmo a causar uma suspeita da negação da sua divindade, em relação a Maria a posição de Boff ‚ a de acentuar tanto o divino que recende um certo monofisismo ou uma mariologia mitológica. Monofisismo porque sobreleva a

532 Je vous salue Marie, pp. 36, 40, 43, 47, 55, 59. 533 Ibid., p. 77. 534 Ibid., p. 75. 535 Ibid., p. 76.245. 536 O rosto materno de Deus, p. 173. 537 Francisco TABORDA, (Recensão de) BOFF, Leonardo, O rosto materno de Deus. Perspectiva Teológica, n§. 34: 388.

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pretensa categoria do divino sobre o humano em Maria, e mitologia porque coloca Deus, através do Espírito Santo, no mesmo nível da condição humana. Isto é, enquanto Boff trabalha claramente uma cristologia de baixo, desenvolve uma “mariologia de cima”538. Além disso, pergunta Taborda se é mesmo possível, dada a exiguidade dos dados históricos sobre Maria de Nazaré, elaborar uma “mariologia de baixo”.

Segundo esse pensador, Boff tende a ser pouco crítico na seleção dos dados históricos, admitindo com facilidade a historicidade das narrações da infância ou da tradição oral539. Embora uma nota540 diga o contrário, Boff parece fazer com que o hino mariológico do Magnificat seja de autoria mesmo de Maria, compreensão teológica que já não tem quase adeptos na teologia de hoje. No entanto, talvez seja bom lembrar ao crítico que em relação às narrações da infância de Jesus, por muitas vezes Boff fala de uma elaboração teológica, ou de um “predomínio da teologia sobre a história”, especialmente ao referir-se às narrativas de Lucas, o evangelista da infância541.

Na análise do mesmo tema, Jean-Marie Hennaux542 afirma que a compreensão de Boff a respeito da união de Maria e do Espírito não parece ser a melhor forma para pensar a relação ontológica, plenamente aceitável entre a Virgem e o Espírito Santo. Para ele, o Espírito deve permanecer como aquela luz, invisível em si mesma, mas que ilumina o Mistério do Verbo encarnado. Além disso, diz o teólogo, se Boff entende Maria como o termo de uma missão do Espírito Santo, o brasileiro está realçando como principal a dimensão exterior dessa mesma missão, e não sua dimensão interior, que lhe parece ser fundamental no caso do Espírito. Finalmente, Hennaux se pergunta se Jesus não deve ser considerado pela Igreja como o primeiro portador do Espírito na História da Salvação e se a Encarnação do Verbo pode acaso se tornar uma espécie de “analogante”, em se admitindo um “analogado”. Hennaux diz também, que, ao afirmar que “Maria é não só o templo de Deus, mas o Deus do templo”543, Boff não leva em consideração a diferença ontológica abissal entre Deus e a criatura, diferença que nem mesmo a divinização do ser humano pode diluir. O IV Concílio de Latrão, em 1215, já exprime essa idéia: “Entre o Criador e a criatura não se pode estabelecer uma semelhança tão grande que não implique numa dessemelhança maior ainda” (DS 806).

Por isso tudo, diz Hennaux, a ação do Espírito Santo em Maria não pode ser entendida através da causa materialis, mas da causa efficiens, isto é, não como uma intervenção físico-psíquica, mas espiritual. Falar em união física de Maria com a Terceira Pessoa da Trindade é aproximar-se da interpretação mitológica dos “casamentos divinos” da antiquidade. Santo Tomás apresenta

538 Francisco TABORDA, (Recensão de) BOFF, Leonardo, O rosto materno de Deus. In AAVV, Recensões, Perspectiva Teológica, n§. 34:, n§. 34: 386. 539 Cf. O rosto materno de Deus, p. 124. 193.194. 540 Cf. Ibid., cit. 2, 201. 541 Conferir, por exemplo, o próprio Rosto materno de Deus, pp. 124-128; Jesus Cristo Libertador, pp. 116-130; “A alegre mensagem do Natal: conto ou realidade?”, Revista de Cultura Vozes, volume LXV, n§. 10: 777-787. 542 “L'Esprit et le féminin: la mariologie de Leonardo Boff”, Nouvelle Revue Théologique, tome 109/6:884-895. 543 Cf. O rosto materno de Deus, p. 75; A Trindade e a sociedade, p. 258.

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argumentos que contradizem a paternidade do Espírito Santo em relação ao Cristo544, que podem servir também para refutar a tese da maternidade do mesmo Espírito. Para J. M. Hennaux, basicamente, o erro de Boff está em confundir graça e natureza, no que se refere à vida de Maria. A reflexão de Boff vai na linha da causalidade exemplar de Deus em relação ao criado, mas não considera suficientemente as dimensões da causalidade eficiente: “Quando se fala em divinização do homem operada pela graça do Espírito Santo, é bom distinguir ser e essência, ato e natureza. O homem é ontologicamente transformado pela graça, mas permanece homem. A essência do homem não se torna divina; seu ato e seus atos são elevados, sem perder porém sua estrutura natural”545, o que, segundo o crítico, Boff não considera. Hennaux chama atenção para a ambiguidade presente nas afirmações de Boff. Não que elas não tenham um sentido aceitável, mas da forma como ele as apresenta, revelam uma ambiguidade. Dão a impressão de afirmar que o feminino -que vai além da mulher- é definitivamente divinizado em Maria. Arrisca-se ao esquecimento de que a revelação do feminino em Maria constitui uma vocação para toda mulher.

Ao afirmar que “Somente Deus pode gerar Deus. Maria foi elevada a esta altura divina pelo Espírito que a toma por habitação”546, Boff supõe que a maternidade de Maria exerce uma causalidade real sobre a divindade do Filho, mas, diferentemente do que diz o Concílio de Éfeso, segundo o qual a maternidade de Maria tem por termo não a divindade de Jesus, mas a pessoa do Verbo encarnado (DS 251). Já os Padres da Igreja afirmam que Maria foi mãe antes por sua fé que por seu corpo547. De fato, se Boff considera o corpo divinizado de Maria como necessário para poder gerar Deus, a encarnação deixa de ser uma intervenção milagrosa de Deus e se torna tão somente uma decorrência natural da assunção do corpo humano de Maria pelo Espírito Santo, consequência natural da divinização de Maria.

A exemplo de Moltmann, Boff desloca para o Espírito Santo aquilo que a Igreja tradicionalmente tem atribuído à Virgem Maria, buscando também despatriarcalizar a idéia de Deus, visualizando o Pai com rosto materno, cheio de misericórdia.

Para Galot, essa posição de Moltmann e de Leonardo Boff se fundamenta sobre uma interpretação que altera o sentido original do diálogo da anunciação548. Segundo o teólogo francês, não há como chamar o Espírito Santo de “Mãe divina”, nem como imaginar que Maria possa ter tomado, entre

544 Suma Teológica, III, q. 32, a.3. 545 Jean-Marie HENNAUX J.-M., “L'Esprit et le féminin: la mariologie de Leonardo Boff”, Nouvelle Revue Théologique, tome 109/6:,887. 546 O rosto materno de Deus, p. 36. 547 Diz SANTO AGOSTINHO que em Lc 11,27ss e em Mt 12,46-50, Jesus faz um louvor à sua mãe, não precisamente porque ela gerou de sua carne a carne do Filho, mas pelo fato de ter realizado a vontade do Pai. Assim, como se Jesus dissesse que “também minha mãe, que vocês chamaram de ditosa; ditosa porque observa a Palavra de Deus, não porque nela o Verbo se fêz carne e habitou entre nós; porque guardou o Verbo de Deus por meio do qual foi criada e que nela se fêz carne. Não se alegrem os homens dos filhos segundo a carne; exultem antes se no espírito estão unidos a Deus” (Tratados sobre el Evangelio de San Juan, 10,3. In Obras de San Agustin, vol. XIII, p. 265). 548 Jean GALOT, “L'Esprit Saint et la féminité”, Gregorianum 76/1: 28.

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os cristãos, o lugar que compete ao Espírito Santo. Só ela é Theotókos, mãe na ordem da Igreja. “Ela possui esta maternidade em virtude da ação do Espírito Santo, mas trata-se de uma maternidade que qualifica sua pessoa, e não a pessoa do Espírito Santo, que transcende as distinções sexuais”549.

Da mesma forma, a Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé do Rio de Janeiro550 não mede críticas a essa estranha atribuição de função geradora que Boff faz à pessoa do Espírito Santo551. Dada a já comentada despreocupação do teólogo com as “relações diádicas de oposição” na Trindade, ele acaba por desconsiderar também a fórmula de fé de Dâmaso, o símbolo do Concílio I de Toledo, a Epístola de Hormisdas a Justino, o Concílio XI de Toledo e o Concílio Lateranense IV, que afirmam claramente que essa função é de exclusiva propriedade do Pai (DS 188; 367; 533; 800).

Como se vê, Boff realça especificamente a dimensão feminina de Deus na Terceira Pessoa da Trindade, idéia da qual Moltmann também participa552. No entanto, Jean Galot chama atenção para o fato de que, apesar de se poder detectar com clareza aspectos de caráter feminino na ação do Espírito Santo -a expressão das capacidades afetivas, o acento forte sobre a intuição, uma solicitude maternal, através da compreensão, da compaixão, do esquecimento de si mesmo, a que Boff frequentemente se refere-, para não se perder de vista a riqueza de personalidade e da ação do Espírito Santo, é necessário também realçar aspectos de ordem masculina nelas presentes. Assim, na verdade, o Espírito suscita não só intuições de fé, mas ainda a reflexão racional e sistemática sobre a revelação; não manifesta só a ternura divina, mas também o poder de Deus e, em Pentecostes, uma força que impulsiona e mobiliza. O Espírito de Deus inspira o espírito de comunhão na vivência eclesial, mas também anima a organização hierárquica da comunidade. Ele não só multiplica a variedade de carismas na vida eclesial em benefício da comunidade, mas ainda promove a santificação dos fiéis pelo sacerdócio e pela administração dos sacramentos. É verdade que é Ele quem suscita renovações fecundas e vitalizantes, mas também é Ele quem assiste a Igreja na busca de uma estrutura estável e de uma sábia legislação553. Para o crítico francês, “feminizar” o Espírito Santo significa reduzir a totalidade expressiva da Sua personalidade que, se “possui eminentemente, a um nível transcendente, as qualidades que pertencem à mulher”, também “possui, não menos, a esse mesmo nível, as que pertencem ao homem”554.

Embora as críticas de Galot sobre a “feminização” do Espírito Santo padeçam de um reducionismo que identifica feminino com mulher e masculino com varão, como se pode perceber literalmente na última citação, são deveras pertinentes quando realçam as dimensões também masculinas do Espírito.

549Ibid.: 28. 550 COMISSÃO ARQUIDIOCESANA PARA A DOUTRINA DA FE, A Arquidiocese do Rio e o livro “A Trindade, a sociedade e a libertação”, Atualização, no. 206: 136-138. 551 Cf. A Trindade e a sociedade, pp. 240-241.252 552 Jürgen MOLTMANN, op. cit., p. 131. 553 Jean GALOT, “L'Esprit Saint et la féminité”, Gregorianum 76/1: 29. 554 Ibid.: 29.

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Nessas reflexões, a intenção de Boff é situar o Pai, o Verbo e o Espírito, um em relação ao outro, como um confronto do arquétipo do masculino com o do feminino. Assim, em Boff, o esposo é mais “esposa”555 que esposo. Embora concorde em entender o Espírito Santo como uma personalização do aspecto feminino e maternal de Deus, Hennaux não admite que o confronto humano entre o homem e a mulher seja o lugar último em que se pode pensar a relação do Verbo e do Espírito556.

A uma habitual reflexão teológica feita a partir de um forte acento reducionista masculinizante causa estranheza uma opção diferente. No entanto, apesar das reservas principalmente no que tange à afirmação da pneumatização de Maria, a ótica de Boff e de outros teólogos mais arrojados deve ser levada também em consideração. O acento sobre o feminino, na pessoa humana e no próprio Deus, representa, de certa forma, uma reação à tendência de caráter masculinizante de toda a realidade, do homem e de Deus, que por séculos o ocidente cultiva dentro de uma visão machista.

De toda essa reflexão, parece claro que enquanto o referencial

mariológico se mantém no nível da divindade, não é possível chegar a um acordo teológico. Com exceção da encarnação do Verbo, fundamentada escrituristicamente, nada se pode afirmar de outras personificações humanas da divindade.

Por isso, não é a divindade, mas a eclesialidade o melhor referencial

para se falar de Maria, pois seu mistério se esclarece à luz do mistério da Igreja. Desde longa data, a tradição cristã costuma aplicar os mesmos símbolos a ela e à Igreja: mãe, virgem... O Vaticano II chama Maria de “membro supereminente e absolutamente singular da Igreja, e também seu protótipo e modelo acabado da mesma” (LG 53). Nela, continua o Concílio, a Igreja “alcançou... essa perfeição que faz que ela se apresente sem mancha nem ruga (cf. Ef 5,27)...” (LG 65).

Maria se vincula ao Corpo de Cristo porque é “coberta pela sombra do

Espírito” (cf. Lc 1,35), tanto na encarnação como em Pentecostes. Então, ela é não é a dimensão feminina de Deus, mas a expressão do feminino da Igreja557.

Para se engrandecer a Mãe do Salvador não é necessário chegar às

vias de um argumento tão inseguro e sem suficiente solidez revelacional como esse da pneumatização de Maria. Afirmá-la é esvaziar a abertura humana que ela tem para com Deus, e que todo cristão é chamado a ter. É sua condição humana de total abertura a Deus em seu Povo, ao Filho em seu Corpo, e ao Espírito Santo em seu Templo, que arranca de seu próprio Filho o elogio de sua bem-aventurança (cf. Lc 11,27-28).

No entanto, para Hennaux, as citações de Boff não se reduzem a

simples exageros momentâneos de linguagem, mas se tratam verdadeiramente

555 O rosto materno de Deus, 86. 556 Jean-Marie HENNAUX, “L'Esprit et le féminin: la mariologie de Leonardo Boff”, Nouvelle Revue Théologique, tome 196/6: 894. 557 H. U. von BALTHASAR, Puntos centrales de la fe, p. 243.

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de uma nova teoria. Ainda que se sujeitando a erros, Boff tem o mérito de abrir uma questão delicada de se pensar teologicamente. E, numa simpática manifestação de abertura de quem procura ver mais o positivo que apontar agressivamente o negativo, diz o teólogo francês que “seu ensaio mostra, em todo caso, que o teólogo brasileiro não despreza as veredas de um pensamento contemplativo e espiritual”558. 5- O humanum como transparência histórica do mistério trinitári o

O a-priori teologal humano, que neste aspecto significa a presença do mistério da Trindade na existência humana abre a ela a possibilidade de uma experiência radical de vida, de modo que, atento à própria existência, a pessoa pode perceber os vestígios de Deus. Então, fazer a experiência radical de ser pessoa é fazer a experiência daquela realidade que a Trindade significa: do mistério absoluto sem origem (Pai) que se autocomunica (Filho), mas que não perde sua unidade fundamental porque retorna completamente ao mistério de sua origem (Espírito Santo)559.

Deus entra dentro da pequenez da história, dando-se a Si mesmo de tal forma que o humano guarda dentro de sua existência um tesouro que é muito maior que ele mesmo. É na aceitação e vivência do Deus Trindade que se desvela o mistério, não só de Jesus Cristo, mas, também, do humano mesmo, pois, “se há um símbolo real deste augusto mistério, então este será a própria dinâmica vital do ser humano”560.

Criado à imagem e semelhança de Deus, o ser humano sinaliza essa realidade em seu próprio dinamismo existencial. Fundamentado na idéia de que a melhor forma de expressar a significação humana não são os conceitos, mas as imagens e os símbolos, Mistério de Deus Uno e Trino e mistério humano encontram ressonância nas imagens analógicas de Santo Agostinho, as quais se referem a uma unidade vital que se expressa em três concretizações radicais561. Primeiramente, a pessoa sente-se a si mesma como um mistério, uma realidade que nenhuma categoria racional da própria pessoa consegue explicar. Em seguida, como o mistério humano experimentado comporta uma verdade própria, a pessoa corre em busca da compreensão dessa verdade; é próprio dela expressar-se inteligentemente. Finalmente, o mistério portador da verdade busca comunicar-se para fora e estabelecer uma relação de amor. A vida humana, portanto, é uma unidade dinâmica portadora de mistério, verdade e amor que, ao mesmo tempo idênticas, são categorias existenciais distintas entre si.

A analogia agostiniana apropriada por Leonardo Boff se explica na medida que se entende que tais manifestações são figuras de uma Realidade maior, da qual provêm: o Deus ao mesmo tempo Uno e Trino. O mistério

558 Jean-Marie HENNAUX, “L'Esprit et le féminin: la mariologie de Leonardo Boff”, Nouvelle Revue Théologique, tome 196/6: 895. 559 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, p. 179. 560 A Trindade e a sociedade, p. 135. 561A Trindade, livros IX-XV; cf. tb. A. VAN DEN BERG, A SS. Trindade e a existência humana, in Revista Eclesiástica Brasileira 33, p. 629-648.

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humano representa o Pai, mistério abissal, sem origem do qual tudo procede. Enquanto mistério humano que busca a intelecção e a inteligência, que se comunica e que busca se fazer compreender, ele representa o Filho, o Lógos de Deus Pai. Enquanto mistério que necessita do amor para sobreviver, que busca e que se entrega em amor que unifica e amalgama o mistério e a verdade, ele representa o Espírito Santo. Um único mistério, portanto, que dinamiza um estar-em-si, sair-de-si e retornar-a-si, e envolve os seres humanos e a todo o cosmos562.

No entanto, por nenhuma imagem Deus pode ser atingido plenamente. Mas esse recurso analógico se faz necessário -a analogia é a linguagem da teologia!- para se referir à imensidão infinita do divino. Porém, são meios e expressões de um tempo e de um contexto, por isso, carregadas de elementos culturais que devem ser necessariamente relativizados e revistos, para não esclerosarem ou virem a fechar o mistério que em si mesmo é infinitamente aberto.

A fixação em imagens inapropriadas de Deus tem sido, inclusive, a causa de conflitos entre povos e religiões. Hoje se afirma que a paz mundial só será possível quando as religiões souberem cultivar a paz entre si apesar de suas diferenças. Mas, mesmo entre cristãos, o tema Deus pode ser motivo de desentendimentos; a teologia se questiona sobre o fato de tão diferentes tendências lerem a mesma Bíblia, as mesmas Escrituras, e de apresentarem compreensões tão distintas de Deus, tais como a de um Deus de resignação e a de um Deus de libertação563.

Assim, há cristãos que pensam o mistério de Deus a partir de uma imagem que convém a uma sociedade machista, que reforça o paternalismo, ofusca a liberdade e mata a criatividade é a de um Pai Todo-Poderoso, Juiz supremo e absoluto. É a religião da supremacia isolada de Deus Pai564, em que o Filho e o Espírito são rebaixados. Uma espécie de arianismo pós-moderno. Consequentemente, os homens não são “filhos”, mas servos submissos. A ordem estabelecida a partir daí é domesticadora e mitos são criados para reforçar essa ideologia. Uma moral mágica deriva também dessa imagem de Deus, e os significados dos acontecimentos históricos não têm importância significativa para a ética cristã. A pessoa, o diálogo histórico co-responsável, a liberdade criativa... pouco dizem, pois tudo já está previsto no plano de salvação de Deus.

Outros cristãos desvinculam Deus dos conflitos humanos e da união transcendental com o Pai: a religião só do Filho565, tido como “Chefe e Mestre”, muito comum em ambientes cristãos aburguesantes de alguns movimentos de espiritualidade... Presta-se muito aos interesses da classe dominante, que

562 A Trindade e a sociedade, pp. 135-136; cf.tb. Euler R. WESTPHAL, O pensamento trinitário em Leonardo Boff: comunhão e criação, in Estudos Teológicos na 48, ano. 2, 2008: 43; cf. tb. Rudolf von SINNER, A Santíssima Trindade é a melhor comunidade: Trindade, Igreja e sociedade civil, in Estudos Teológicos, ano 48. n. 2, 2008: 64. 563 Homem: satã ou anjo bom?, p. 66. 564 A Trindade e a sociedade, p. 26. 565 Ibid., pp. 26-27.

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tenta impor um Deus conforme seus interesses e visão. Assim, figuras carismáticas assumem a liderança e a militância em nome dos demais, justificam-se a situação e a ordem estabelecida, que não deve ser questionada.

E por fim, há cristãos que pensam Deus a partir de uma vivência religiosa só do Espírito566, com conseqüências que fazem uma antropologia em que os seres humanos são indivíduos privatizados, e a espiritualidade mero espiritualismo alheio às estruturas que possam coletivizar as responsabilidades do processo. Ao Deus privatizado se transferem sonhos e frustrações, desejos e utopias... Individualismos espirituais e sociais decorrem dessa fisionomia de Deus na história da humanidade.

Tais imagens distorcidas mostram como a transcendentalidade humana pode ser, inclusive, manipulada por sistemas inescrupulosos de poder. Tais ideologias sabem integrar os elementos e as categorias do cristianismo e articulá-los de modo a se tornarem seus instrumentos de manuseio em seu proveito567. O teólogo conclama o cristão a tomar consciência e a denunciar que “a sistemática violência do sagrado das pessoas danifica o caminho para o sagrado na interioridade humana”568.

Daí a necessidade, teológica e antropológica, do resgate da face trinitária do Deus de Jesus Cristo, pois, “uma sociedade que se deixa inspirar pela comunhão trinitária não pode tolerar as classes, as dominações a partir de um poder (econômico, sexual ou ideológico) que submete e marginaliza os demais diferentes”569. Atenta a essa urgência, a teologia contemporânea trabalha a doutrina da Trindade em articulação com as realidades sociais humanas e cósmicas. Trindade e libertação são duas realidades que se consideram mutuamente. É nessa compreensão da libertação inspirada na comunhão trinitária, que se encontra uma fundamentação teológica para a verdadeira libertação cristã, humana e cósmica.

A libertação, processo nunca acabado e vai resultando da vivência religiosa trinitária, é mediada pela opção pelos pobres, cujo sentido deve ser alargado, devendo “incluir também uma opção pelos seres e espécies mais ameaçados, a começar pelos humanos pobres, pelas culturas em extinção...”, na experiência de uma “democracia ecológico-social-cósmica”570. 5.1- A Trindade, protótipo da comunidade antropocós mica

A abordagem trinitária clássica tem sido feita fundamentalmente em perspectiva ou metafísica, quando parte do conceito de substância (natureza, essência) para falar da identidade de Deus. No entanto, como o humanismo aflora da imagem que se tem de Deus, a Trindade não pode ser entendida

566 A Trindade e a sociedade, p. 27. 567 Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, p. 148. 568 Ecologia, mundialização e espiritualidade,p. 168. 569 A Trindade e a sociedade, p. 189. 570 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 91; cf. tb. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p.

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como uma realidade longínqua e abstrata, mas como “a suprema expressão da experiência que todos fazemos do amor e da comunhão humanas”571.

Assim, “a Trindade é o nosso verdadeiro programa social”572, o melhor modelo de Igreja e de sociedade humana. Por isso, a tendência atual da teologia trinitária é pensar Deus Uno e Trino a partir das relações comunitárias e sociais. Em primeiro lugar, porque o entrelaçamento das Pessoas no amor e na comunhão salva com mais propriedade a unidade dos divinos Três que a exatidão metafísica. Depois, porque a pessoa humana está de tal modo intrincada e comprometida num emaranhado de relações, de funções e de instituições, constituindo assim comunidade social e política, que é impossível, antropologicamente falando, pensá-la puramente em si mesma ou numa simples e superficial referência a tais relações.

A realidade trinitária, de perfeita comunhão e interpenetração, pericórese, está no âmago de toda a criação. “Somos uma só vida e comunhão realizadas distintamente, sendo unos e múltiplos em analogia com o mistério do Deus tri-uno”573. Toda a história e toda a criação são vocacionadas a participar do mistério trinitário, e o fazem na medida em que procuram nessa sociedade divina os critérios e os valores básicos de sua existência e acontecimento.

Com um pensamento intensamente marcado pela trinitariedade de Deus, Leonardo Boff entende que o paradigma ecológico ajuda a abordar melhor o mistério trinitário do Deus da revelação, pois favorece a compreensão de “um jogo de relações, um Deus ecológico”574. Sendo comunhão e relação, Ele que é o autor de tudo, do qual tudo provém, o universo e os seres humanos são chamados a essa mesma harmonia de relações e de convivência.

Assim, ao mesmo tempo que se fala da realidade humano-cósmica como vestigium Trinitatis, Deus surge como comunidade modelo para qualquer outro tipo de convivência. Então, o teólogo “desloca-se da ‘ecclesia’ e da ‘societas’ para o ‘cosmos’ e a integração ‘pericorética teoantropocósmica’”575.

Um pensamento tão integrativo entre a realidades não-divina e mistério da comunhão trinitária desautoriza todo totalitarismo baseado no monoteísmo, bem como todo paternalismo fundado no monarquismo do Pai. E então já não há espaço para qualquer dominação. Através das missões do Filho e do Espírito o mistério de Deus se abre para todas as realidades históricas, e sua compreensão humana impõe a constituição de uma sociedade fraterna, o que vale tanto para a sociedade civil como para a sociedade eclesial.

571 Sentido cristão de mistério e mística. In Leonardo BOFF & FREI BETTO, Mística e espiritualidade, p. 23. 572 Ibid., p. 29. 573 Ecologia, mundialização e espiritualidade, p. 50. 574 Ibid., p. 49. 575 Paulo A. Nogueira BATISTA, Teologia e ecologia: a mudança de paradigma de Leonardo Boff, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 123. Cf. tb. Euler R. WESTPHAL, O pensamento trinitário de Leonardo Boff: comunhão e criação, in Estudos Teológicos ano 48,no. 2: 30.

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Em todo o espaço salvífico universal da história humana transparece a luz da comunhão pericorética da Trindade. As pessoas humanas e sua história estão incluídas nessa unidade. É com esse pensamento que se pode entender as palavras da oração sacerdotal de Jesus: “Que todos sejam um como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21). A unidade trinitária arrasta consigo todas as realidades criadas, integrando-as e incluindo-as numa comunhão totalizante, que deve começar desde já, e se concretiza com o empenho de todos em superar toda forma de divisão e de ruptura (cf. Gl 3,28; Rm 10,12). Dessa forma, segundo o teólogo, o homem e todo o universo são assumidos progressivamente na comunhão pericorética trinitária a partir de Cristo e de Maria576, de forma que “só então as três Pessoas serão uma comunhão total”577. Enquanto isso não acontece, enquanto Deus não é “tudo em todas as coisas” (1Cor 15,28), é possível falar ainda de um “futuro da Trindade”578. As três Pessoas serão uma única comunhão total somente quando a criação estiver totalmente integrada na comunhão dos divinos Três.

Uma tal concepção da Santíssima Trindade autolimitada pela criação e aberta para o futuro recebe veementes críticas579. A idéia, dizem seus críticos, padece de panteísmo de tipo dinâmico, e se opõe diametralmente à doutrina do Sílabo anti-modernista (DS 2901) e ao Concílio Vaticano I (DS 3001, 3023 e 3024), contrastando-se vivamente com a profissão de fé do Concílio XVI de Toledo, que exclui da Trindade qualquer relação de dependência temporal (DS 569).

Consequentemente, ao reduzir a pericórese a uma noção progressiva, chegando a conceber um “universo trinitarizado” como corpo pleno da Trindade580, o teólogo incorre no erro de nivelar todas as explicações, manipulando conceitos irredutíveis com outros tão díspares, anulando articulações conceituais que constituem a única forma possível de falar nocionalmente do Mistério de Deus. Por isso, a compreensão de Boff não corresponde às Escrituras nem ao ensinamento do Magistério, transformando a pericórese em pericorismo, através de uma concepção comunitarista universal.

Além disso, diz Sinner, é difícil operacionalizar a “crítica e inspiração” que a pericórese sugere à Igreja e à sociedade de hoje. Existe um excesso de concretude quando se formula a teologia trinitária em termos humanos: “Deus não pode ser considerado comunhão no sentido humano, a não ser que se afirme que sejam três deuses e não apenas um...”581. Enfim, parece ser um exagero esperar da comunidade humana tamanha possibilidade de convivência e de comunhão.

576 A Trindade e a sociedade, pp. 41, 123, 144, 187, 230, 253-258. 577 Ibid., pp. 185-186, cf. pp. 14, 253, 267. 578 Ibid., pp. 185- 187. 267. 579 COMISSÃO ARQUIDIOCESANA PARA A DOUTRINA DA FE, A Arquidiocese do Rio e o livro A Trindade e a sociedade, Atualização, no. 206: 136-138. 580 A Trindad e a sociedade, pp. 186, 267 e 278. 581 SINNER Rudolf von, Leonardo Boff: um católico protestante, in Juarez GUIMARÃES (org.), Op. cit., p. 153.

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6- Enfim...

Em muitas das críticas acima, percebe-se claramente que o confronto é de caráter epistemológico. Boff claramente se fundamentando na relação de pericórese como ponto de partida da compreensão de Deus, e, seus críticos, sobretudo a Comissão da Arquidiocese do Rio de Janeiro, na chave de leitura que é a unidade essencial das Três Pessoas. No entanto, a contestação frontal a um método é muito mais vital e desintegradora que a contestação a uma idéia. Esta é discutível, reflexível e, desses confrontos, pode-se chegar até mesmo a pontos comuns. Mas, o confronto metodológico mina todo um conjunto, pois o método é o caminho através do qual o pensador, não só elabora suas idéias, mas, acima de tudo, articula suas opções fundamentais, seu ponto de vista e enfoque, e mesmo seu próprio ser... Assim, embora algumas afirmações do autor sejam de fato passíveis de questionamento, também é fato que seu antropocentrismo teológico, também partilhado por grandes teólogos da Igreja e ainda pelos últimos papas, não transtorna a verdade da revelação. Antes, dá a ela uma conotação dialogal, fazendo superar qualquer compreensão da essência divina como insensível às reações históricas do homem.

Analogamente a alusões anteriores sobre “cristologia-de-cima” e “cristologia-de-baixo”, ou “mariologia-de-cima” e “mariologia-de-baixo”, abrem aqui, por analogia, a perspectiva de se pensar numa “teologia-trinitária-de-cima” e de outra “teologia-trinitária-de-baixo”, esta com forte conotação antropológica. E, da mesma forma que se tem afirmado anteriormente que a prioridade do Jesus da História como ponto de partida para a cristologia não desconsidera a reflexão sobre o Cristo da fé, mas representa antes uma ótica a partir da qual se compreende o Mistério de Deus, inclusive do Ressuscitado e de sua glorificação, assim também uma “teologia (cristologia, mariologia, teologia trinitária...)-de-baixo” representa um patamar a partir de onde se pode vislumbrar o Mistério de Deus em sua essência e em sua realidade mais absoluta. Trata-se de uma opção metodológica, de acentuado corte antropológico, com suas evidentes consequências teóricas, no que Boff e a teologia latino-americana estão sem dúvida conformes ao espírito do Vaticano II (cf. GS 62).

O esforço teológico de Leonardo Boff deve ser considerado de grande contributo para o permanente amadurecimento da ciência da fé. Os pontos críticos e polêmicos não lhe ofuscam o brilhantismo. Numa expressão de zelo para com a liberdade de pensamento, diz o Vaticano II que “o que acima foi dito acerca da legítima diversidade, é-nos grato declará-lo também com relação à diversidade na enunciação teológica das doutrinas” (UR 17), pois, “resguardando a unidade nas coisas necessárias, todos na Igreja, segundo o múnus dado a cada um, conservem a devida liberdade, tanto nas várias formas de vida espiritual e de disciplina, quanto na diversidade de ritos litúrgicos, e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada. Mas em tudo cultivem a caridade” (UR 4).

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CONCLUSÃO

“ Teologia: ciência de Deus e do homem” A teologia que emerge do antropológico, segundo Leo nardo Boff

A ampla pesquisa e análise relatada nos capítulos anteriores já trazem à

tona a problemática que desde o início constitui o corte antropológico a partir do qual me propus a refletir sobre a ciência teológica. Finalizando esta dissertação, cabe-me agora amarrar as várias vertentes que insinuam e abrem pistas para a conclusão de que a teologia emerge de fato do antropológico.

Que a teologia seja ciência de Deus, isso já é conhecido de todos. O novo se apresenta quando alguém afirma que essa ciência, classicamente conhecida como a racionalidade e a inteligência da fé, não só leva ao conhecimento de Deus, como também do homem. Embora Tomás de Aquino já tenha discutido o assunto há séculos, ainda hoje a afirmação soa de certa forma estranha a piedosos ouvidos cristãos. O “elemento estranho” aqui considerado, na teologia, é justamente o homem. Por isso, constitui o princípio, dado de antemão, da tese.

O humano se caracteriza como um ser de interpretação. Do mundo, das relações com os outros e com a natureza, ele tira o material fundamental para a sua vida e constrói a realidade significativa.

1. No princípio está a experiência...

A existência humana é marcada, num primeiro momento, pela experiência. Diz Aristóteles que o princípio do raciocínio não é ele mesmo, mas uma realidade maior e melhor que ele: “Assim como ocorre no universo, também na alma, Deus tudo move. O princípio do raciocínio não é o raciocínio, mas algo de melhor. Que poderia ser melhor do que o próprio conhecimento e o intelecto senão Deus? Não é a virtude, pois a virtude é um instrumento do intelecto”582. Se isso vale para todo raciocínio, quanto mais para a racionalização de Deus. Boff diz que a experiência é um saber que tem sabor, que alguém adquire quando sai de si (ex) e se confronta com uma outra realidade. “Sair de si” significa ter disponibilidade de abertura e de acolhida do diferente. Pois bem, este é o primeiro ato humano: a experiência.

No princípio está a experiência..., também na relação do homem com Deus. Mas, mesmo nessa experiência, é Ele quem sempre toma a iniciativa. Não é assim que Jesus afirma que ninguém pode ir a ele se o Pai não o atrair antes (cf. Jo 6,44)? Não é São João que diz que o amor de Deus consiste em Ele nos ter amado por primeiro (cf. 1 Jo 4,10.19)? A dianteira de Deus pode ser entendida como ato da graça, através do qual Deus nos chama à fé. Assim é que entendemos que a realidade de Deus em nossa vida não vem de fora, mas de dentro de nós mesmos, como um vínculo substancial que tudo une e integra em nós, dando um direcionamento teologal para toda a nossa realidade histórica.

582 In Et. Eudem. VII, 14, 1268 a. 26-29

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Ao caracterizar a experiência de Deus como uma saída de si e um

confronto com uma Realidade diferente, estou caracterizando o homem como ser de dimensão transcendental, capaz de transpor as barreiras das próprias circunstâncias em direção a uma abertura misteriosa. Portanto, afirmar que o homem é ser de transcendência é dizer que ele “É” experiência de Deus, pois as realidades fundamentais humanas são, não propriedades, mas dimensões do ser humano. Assim também a experiência de Deus. Dessa forma se entende a libertação humana não como o empenho de se dar ao homem o que há de melhor, em nome da caridade, mas como uma reconquista de uma dimensão do seu ser que é o modo de ser na liberdade. A libertação torna-se uma emergência do humano. Ajuda a compreender melhor isso a afirmação de Boff sobre o pobre como sujeito da libertação. Como esta se dá no histórico-existencial, a emergência do homem verdadeiro acontece através das mediações do religioso, do social, do político, da cultura, da consciência planetária... A teologia da libertação é a reflexão da fé a partir das práticas históricas da hominização libertadora.

Ao dizer experiência de Deus, mais que a um determinado acontecimento religioso explícito, refiro-me ao radical confrontamento do homem consigo mesmo, capaz de concentrá-lo tão profundamente em si próprio a ponto de fazê-lo perceber que o seu núcleo mais central é um Mistério indizível.

Responder adequadamente à Palavra transcendente, sob a inspiração também transcendente, constitui para o homem a experiência de Deus –qualquer que seja o nome que se lhe dê- o que significa que revelação e experiência constituem uma unidade indissociável. No fundo, experiência de Deus é experiência de admiração e encantamento, que primeiro se dá diante da cosmicidade circundante, mas que em seguida conduz o homem para um deslumbramento mais comprometedor, ante o Mistério que se desvenda nas suas profundezas e dirige toda a vida em sua direção.

Esse Mistério, a que as religiões dão nomes diversificados, pode ser vivenciado e historicizado nas vidas dos homens de variadas formas, assim como a revelação que lhe corresponde. Para nós, cristãos, a explicitação bíblica do Mistério é a nossa experiência de fé sistematizada e escrita, que corresponde ao diálogo historicizado de Deus com a condição humana e que atinge seu clímax na Palavra que é o Filho encarnado. Mas pode haver outras, algumas sistematizadas em religiões, outras mais vivenciadas como éticas ou filosofias de vida nas quais às vezes nem se tem consciência explícita de Deus... Estas, embora as julguemos incompletas e menos aprimoradas, não deixam de trazer também centelhas da verdade de Deus, o Mistério de tudo.

Nessa experiência de Deus, a que todo homem deste mundo é chamado, este se encontra de modo paradoxal. Ao mesmo tempo que ela o centra, o descentra também. Deus é a realidade mais íntima, que o homem só descobre à medida que mergulha em si mesmo e se descobre parte de uma totalidade estonteante. Sua misteriosidade provém da inabitação nele do próprio Mistério de Deus. Mas, ao mergulhar em si o homem se encontra numa

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dinâmica que o remete para fora de si mesmo, para uma realidade que o transcende. Da mais profunda concentração ele emerge para a descentralização de si próprio, para a comunhão com todos os outros seres, e encontrando Aquele que é mais íntimo e profundo nele do que ele próprio, retomando a idéia de Santo Agostinho583. O encantamento humano se dá nessa experiência de descentração da concentração e de concentração da descentração.

Mas, o homem é assim porque antes Deus o é também. A mesma experiência de concentração-descentração Ele a realiza na Trindade, como eterna e infinita experiência de Si mesmo através da comunhão plena da pericórese. Na imanência trinitária, a centração é a unidade de Deus em cada uma das divinas Pessoas em sua própria identidade, e a descentração é a abertura eterna de Uma para a Outra. Na encarnação do Verbo, por sua vez, a centração se dá no mistério da unidade histórica permanente do Filho com o Pai no Espírito (cf. Jo 10,30; 12,44-45), e na kênosis da encarnação do Filho e da inabitação do Espírito no humano-cósmico, a mais perfeita descentração que acontece na história (cf. Fl 2,6-8).

A vivência de Cristo do radical humano lembra ao homem sua referência ontológica ao Mistério absoluto, que faz dele um ser teologal e espiritual de transcendência historicizada. Por isso, Deus não é um acréscimo à condição humana e criacional, mas sua mais verdadeira realidade, de modo que não se pode falar do homem sem referência a Deus. Participar da vida de Deus, numa plenitude de comunhão com Ele, numa inserção em Seu Ser, constitui a divinização do homem, a utopia humana verdadeira “escatologia antropológica”.

O homem é um ser histórico, e por isso, é através das mediações históricas que realiza sua espiritualidade de transcendência. Centrado na profundidade de si mesmo e na atração do Mistério supremo e inefável que lhe envolve a existência (NA 2), o homem se vê descentrado pelo mesmo Mistério, e lançado por Ele para os compromissos históricos no mundo.

Nosso atual contexto social faz com que a experiência mística de Deus se traduza em práticas concretas de libertação de tudo aquilo que impede no homem a emergência do verdadeiro humano e, no mundo, da verdadeira criaturalidade. É na práxis, portanto, que a teologia entende a descentração transcendental humana. Na saída de si mesmo para a alteridade do pobre, do marginalizado, assim como para a alteridade do planeta pelo qual Deus o responsabilizou, o homem se aprofunda no seu próprio mistério e no Mistério de Deus.

Enfim, podemos dizer que a experiência de Deus, como originária e atemática, expressa a mais séria busca que o homem pode fazer do sentido último de toda realidade e de sua vida. Quem não se aventura a mergulhar no Mistério da vida em todas as suas expressões não fará nenhuma outra experiência em profundidade. Qualquer atitude humana encontra na

583 Conf. III,6,11.

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profundidade e na seriedade desta experiência primigênia a sua própria profundidade e seriedade. Deus encarnado a viveu profundamente; Jesus de Nazaré encontrou-se a si mesmo revelado na vontade do Pai que ele se propôs realizar fielmente. Na mesma experiência de Jesus, na medida em que é fiel à inspiração transcendente de libertar-se, a si e às demais criaturas para a Vida, o homem se encontra, na profundidade do seu ser, com Deus, o Seu Mistério Maior, e consigo próprio.

2- E a teologia se faz...

O segundo momento da inspiração, que no interior da religião

corresponde à tentativa de fixar na lembrança, na memória e no coração a experiência da Palavra transcendente, faz derivar o outro momento da experiência de Deus, que é a teologia.

Estamos aqui diante do desafio concreto de entender e fazer teologia como extensão da experiência de Deus. Isso significa que o teólogo não é um pensador ao estilo do cientista que objetiva a “coisa”, dissecando-a e deduzindo conclusões. Ao refletir sobre Deus, ele aprofunda a vivência do mistério. Como leitura da realidade à luz da fé, a ciência teológica acontece no desvelamento de duas realidades fundamentais: a do homem em sua pan-relacionalidade cósmica, e a de Deus, nas circunstâncias da fé. Faltando uma dessas realidades não é possível fazer teologia.

A reflexão teológica é um processo humano. A presença do mistério de Deus no interior da pessoa se articula com o homem todo inteiro em sua subjetividade e objetividade. A experiência mística integra, portanto, Deus, em sua autocomunicação, e o homem, em sua totalidade. Então, a teologia se torna uma comunicação não apenas da mensagem de Deus, pura em si mesma, mas articulada com a subjetividade do teólogo. Se palavra é o próprio homem em comunicação e tentativa de comunhão, teologia não pode ser tampouco uma racionalização fria e tão somente objetivista. A verdadeira comunicação só existe se o homem está todo nela; assim também, a teologia só é mesmo verdadeira se as realidades de Deus e do homem estiverem integradas no processo de reflexão. Dessa forma, ao fazer teologia, o homem ao mesmo tempo que aprofunda seu conhecimento de Deus, fala de si mesmo com mais comprometimento. Além disso, compreendendo o Deus bíblico mais pela relação histórica que pela identidade ôntica (cf. Ex 3,6; 20,2; Dt 7,9; Sl 57,2; Is 41,10; Mt 1,23; 22,32; Mc 12,26; Lc 20,37; etc...), o homem só O “conhece” mediante as suas próprias coordenadas.

As Escrituras revelam, permanentemente, os projetos de Deus para o homem e para o mundo todo. A teologia entende todos esses desejos como expressões epocais do Grande Projeto e Plano de Salvação, que não é primeiramente verbalizado, mas inscrito na própria tecitura ontológica do humano. A transcendentalidade é o veículo ontológico que expressa esse Plano de Deus de salvação ou divinização do homem, e a Teologia, uma forma de compreensão hermenêutica desse Projeto.

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Nas realidades históricas, o Projeto de Deus passa pela epocalidade, e por isso exige do humano opções e atitudes que correspondam às necessidades vitais de determinado momento. A articulação entre revelação e epocalidade determina bem a dimensão teoantropocósmica da fé e de sua reflexão científica. O caráter epocal do projeto de Deus para nós é de libertação. Com a mudança de paradigma teológico, a interlocução com a teologia de Boff se amplia e atinge o mundo inteiro, conclamando a todos para uma libertação não apenas do pobre, mas também do planeta terra em que vive o homem. A reflexão teológica, como sistematização científica das experiências de fé, caracteriza-se como a articulação epocal integrativa entre o plano divino de salvação de todas as criaturas e os gemidos da criação inteira para o Criador.

Não se trata de afirmar que a teologia se “transforma” numa antropologia. Cada uma dessas ciências tem epistemologia e papéis definidos. Semelhante travestimento traria consigo o grande erro de tornar a teologia infiel à missão de buscar “compreender” Deus, ao mesmo tempo que, falando do homem, o faria muito mal, pois, prescindiria da sua realidade mais ontologicamente fundamental que é a abertura ao Transcendente.

Por outro lado, devido ao caráter dialógico da revelação, a teologia não pode se negar a trazer em seu discurso uma reflexão sobre o homem. Ao priorizar a vida histórica de Jesus na reflexão cristológica, a cristologia na América Latina testemunha essa convicção.

3- ... por meio de categorias teoantropocósmicas O que venho propondo nesta reflexão, não é a articulação de temas

teológicos com outros de caráter antropológico ampliado para a cosmicidade, mas que a criatura humana e todas as outras possam ser compreendidas a partir da reflexão científica sobre a revelação de Deus, mormente daquela no Verbo encarnado em Jesus de Nazaré. Toda a realidade humano-cósmica passa assim a ser refletida e compreendida a partir do corte teológico. Ela se torna uma especificidade do logos da teologia, uma chave hermenêutica, através da qual os temas teológicos todos passam a ser considerados. Quando o homem cósmico deixa de ser um assunto e se torna a chave hermenêutica da teologia, paradigma, todas as dimensões e expressões humanas passam a participar dessa ótica.

Passo agora a identificar, considerando os dados das reflexões

anteriores, algumas categorias antropocósmicas que podem favorecer essa forma particular de fazer teologia, sem perder de vista que sua teologalidade deriva necessariamente do compromisso gratuito de Deus com a história dos homens, aliança que começa na criação e tem seu momento pleno e particular na Graça da encarnação do Verbo pela “sombra” do Espírito.

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3.1- O diálogo teoantropocósmico necessário

As interpretações humanas valem-se também da história da ciência, que atesta que as grandes revoluções científicas são determinantes na mudança das pessoas entenderem a realidade, bem como a si próprias. A reflexão contemporânea testemunha que se há uma ciência que tenha mudado profundamente a história das interpretações e do pensamento humano, essa é a “nova cosmologia”, que desenvolve uma visão científica do universo muito original em relação àquela que durante milênios vigorou nas diversas ciências.

No campo da teologia não pode ser diferente. A atual concepção de um universo em contínuo movimento e expansão, em permanente evolução, com focos de novas emergências, orientado em direção à vida, em vistas a uma pan-relacionalidade..., traz grandes e graves conseqüências para o pensamento teológico cristão e das demais religiões.

A nova cosmologia carrega em seu bojo a emergência da passagem do antropocentrismo para o teoantropocosmocentrismo, que desencadeia, por sua vez, uma série de outras passagens como de uma mentalidade fragmentária para outra totalizante, do racionalismo para o misticismo, da obediência à espontaneidade criativa, da salvação pessoal à salvação comunitária, de uma visão de Deus fora para uma outra de Deus dentro (panenteísmo)... Mudanças como a da imagem da natureza e da imagem de Deus implicam, nessa gama de novas emergências, explicitamente, a mudança da imagem do ser humano.

A dinâmica relacional inspirada pela consciência planetária envolve o ser humano como um todo procurando relacionar-se com o Todo. A hospitalidade e a cortesia que a consciência desperta inaugura uma nova antropologia, que exige do humano grande humildade para se re-compreender e renunciar à sua tendência de centralidade e de controle absoluto de todas as realidades.

A nova consciência planetária faz o ser humano descobrir que ele não surge do nada, nem do céu, nem da estratosfera, mas da própria terra, do cosmos, e por isso, é um com ele. Então está possibilitado para admitir que não é o dono da criação, nem superior ou alheio a ela. Da mesma forma, supera a compreensão do sobrenatural em oposição ao natural, tão própria de uma cosmovisão teológica antropocentrista e essencialista que não tem fundamento bíblico. Percebendo-se tão radicalmente natural, deste mundo e deste planeta, conclui que sua vocação é a de conduzí-lo a Deus, num processo de plenificação permanente.

Desse encontro da fé com a razão, iluminada pela nova consciência planetária, surge uma nova teologia como um saber sistemático, regrado e crítico.

A mudança climática do planeta deixou de ser um mero problema ambiental e se tornou, de fato, um problema antropológico, um problema político, ético... desde que a problemática emergiu com o fato da Revolução Industrial. O problema ecológico não constitui um assunto explicitamente

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bíblico, pois a bíblia não trata disso, uma vez que o problema é fenômeno novo na história da humanidade. Na verdade, o novo paradigma da teologia nasce daquilo que nos estudos epistemológicos se chama hoje de correlacionalidade, que constitui a tentativa de contextualizar e atualizar permanentemente a Palavra de Deus de modo que ela possa responder aos desafios que se apresentam.

É a categoria do panenteísmo, hoje resgatada na teologia, que favorece a compreensão teoantropocósmica, pois permite falar do universo e do cosmos numa referência à transparência de Deus nele. A partir da leitura panenteista da realidade, esta se reveste de profunda sacramentalidade, embora na história ainda fragmentada e relativa.

Entre a visão panenteísta e o novo paradigma teológico há contínua interação. De modo que, não se poderia falar em presença de Deus em toda a realidade senão a partir de uma cosmologia dinâmica, aberta e em contínuo processo de evolução. Na perspectiva cristã, o panenteísmo dá relevo especial à terceira Pessoa da Trindade: se Deus está em tudo, isso é graças ao Espírito Santo. Ainda na teologia católica, é a imagem do Cristo cósmico, de que trata coincidentemente a primeira reflexão de grande porte de Boff após a elaboração de sua tese doutoral, que oferece o suporte para a teologia pensar hoje cosmologicamente. A perspectiva do Cristo cósmico é capaz de desencadear um processo de libertação da Terra e dos pobres.

O panenteísmo enfatiza a presença de Deus na criação, não só de forma pessoal, mas também transpessoal. De maneira que não nos permite fixismos no que diz respeito a Ele, que então pode ir muito além das representações que a Ele atribuímos. Assim, imagens como Pai maternal ou Mãe paternal, ou categorias como Uno, Totalmente Simples, Oceano Cósmico, etc... são perfeitamente aceitáveis para referir-se ao Mistério divino. O que significa que Deus não pode ser simplesmente reduzido a expressões rigidamente cristãs e nem a expressões necessariamente teomorfas, e que, a partir daí, se abrem perspectivas para um diálogo inter-religioso mais consequente.

Olhando o paradigma ecológico a partir do humano, dizemos que ele é um paradigma antropológico, pois queremos perceber nele vestígios do óikos do homem, de sua casa, de seu habitat. Por isso, vale afirmar a neo-centralidade ecológica para um fazer teológico que emerge da antropologia.

Quando a teologia da criação tem coragem de admitir o fato de que a visão antropocêntrica é responsável pelo processo de destruição do planeta, nasce uma teologia disposta a assumir o paradigma do cuidado como chave de interpretação. Da mesma forma, quando a teologia dialoga com a teoria da evolução, admitindo sem crises que o universo se expande continuamente, entende nesse processo o ato criativo de Deus, que recorda que o Espírito de Deus recria constantemente o mundo.

O novo paradigma teológico, de caráter então antropológico, enfatiza que o ser humano não está acima, mas dentro da criação. Ele só poderá de

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fato hominizar-se se cumpre fielmente sua vocação de cuidador e de guardião da criação que lhe foi confiada como um jardim a cultivar.

Pensar assim a teologia da criação remete a um repensar também a teologia da redenção. Não tendo cumprido a sua missão, o humano se lança dentro de um processo de danificação da obra criada por Deus. A redenção de Cristo a reassume em totalidade, com a finalidade de resgatar desde o ser humano até a última criatura inanimada do cosmos. A morte e ressurreição de Jesus de Nazaré representam o ponto culminante do processo evolutivo que tende, escatologicamente, à recapitulação de tudo em Cristo.

O que relaciona a ecologia à teologia não é apenas a consequência ética que se impõe, mas a redescoberta do valor ôntico do mundo como lugar teológico, isto é, como sacramento de Deus. O paradigma funda uma teologia que participa do clamor de toda a Terra, que conclama e convoca ao cuidado, à responsabilidade para com o meio ambiente, criado e querido por Deus.

Um velho axioma que vem desde São Tomás já afirmava que “um erro a respeito da natureza leva a um erro a respeito de Deus”. Então, se nossa compreensão cosmológica sofreu profundas alterações, temos que admitir que precisamos também refazer nossa imagem de Deus e da religião. Ora, a teologia tal como classicamente a concebemos, tem sido elaborada num contexto que desconsidera o evento da nova cosmologia. O argumento da imutabilidade das “verdades reveladas” ou das “verdades eternas” já não valem tão evidentemente, mas apenas se submetido a séria e urgente hermenêutica que o adapte à nova lingagem e aos novos paradigmas. Da ampliação do sentido de ‘libertação’ na teologia latino-americana se deduz sobre a necessidade de se reformular seus conteúdos dogmáticos, bem como da espiritualidade e da ética contemplarem também esses desafios.

Uma grande contribuição de caráter ântropo-teológico trazido pela nova cosmologia é a possibilidade de superar tensões e dualismos entre ciência e teologia, ciência e espiritualidade, ciência e fé... hoje pode-se falar, inclusive, em uma cosmologia espiritual. O paradigma, aplicado à teologia, proporciona uma superação de barreiras que conduzem preconceituosamente à rejeição do diferente. Por isso, assumir o paradigma ecológico na teologia é admitir também que a alteridade e o próximo a que se refere o mandamento do amor (cf. Jo 13,34) é não apenas o ser humano, mas também as demais criaturas1.

O Vaticano II, em sua “virada antropológica”, representou a perspectiva promissora de uma nova primavera na teologia. Os tempos seguintes, ao contrário, testemunharam grande fechamento e retrocesso, frustrando assim aqueles que se dedicavam ao fazer teológico de então. A esperança é que, na perspectiva do novo paradigma antropológico da ecologia e de outros similares que ainda possam ser despertados, despertemo-nos para a nova antropologia e vejamos brotar da comunidade homem-Terra uma teologia primaveril.

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3.2- Uma epocalidade original...

Elemento fundamental dentro da vertente antrocósmica na ciência teológica é, sem dúvida, o da história. A teologia moderna compreende a história da salvação não como uma inserção justaposta à dimensão da salvação no interior da história universal, mas como a mesma história, em sua totalidade, vista e compreendida através das intervenções de Deus nela. É a revelação, como leitura da história a partir da ação salvadora de Deus no mundo, que faz da história uma unidade de salvação. Não há duas histórias, mas uma única, carregada da densidade da autocomunicação de Deus, e que é de salvação quando o homem acolhe a ação salvadora de Deus aí presente, ou, de perdição quando se fecha a essa ação. Se assim é, a história é o único espaço de hominização ou de desumanização, de deiformidade ou de negação da vocação humana. Dessa forma, a presença do divino na história e no mundo dos homens não constitui um dado factual isolado num momento específico e determinado, mas uma presença permanente e totalizante, que assim precisa ser compreendida através da teologalidade humana. A partir dessa articulação, a teologia se entende a si mesma numa chave de leitura que compreende o homem, o pobre, o cosmos... como imersos numa única realidade histórica de libertação-salvação. Daí, questões como os dados da subjetividade humana, da dignidade, da liberdade, dos direitos humanos, da justiça, da solidariedade ecológica..., pertencentes ao homem como expressão de vida, são temas bem presentes no bojo mesmo da reflexão teológica sobre a revelação, pois são constantes dinâmicas fazedoras da história.

A história da Salvação mostra um diálogo de amor entre Deus e o homem, o mais importante fundamento do existêncial humano. Por isso, nenhum caminho melhor para o conhecimento do homem e da misteriosidade cósmica que o da própria teologia. A cristologia sobreleva a importância disso, pois o Cristo, Deus feito homem, encarna simultaneamente a expressão histórica mais perfeita de Deus e a amostragem humana em sua maior nitidez. Assim como acontece com a teologia em geral, também e particularmente aqui, cristologia e antropologia são inseparáveis. À medida que o homem concretiza sua estrutura crística na vivência histórica, mais ele estreita os laços entre cristologia e antropologia. Quando, após uma história de contínua e profunda maturação em Cristo, Paulo se expressa dizendo “Já não sou em que vivo, mas é Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20), está bradando uma fórmula simultaneamente teológica e antropológica que significa que, estando totalmente consumido por Cristo (cf. Fl 3,7), mais está em si mesmo. Quanto mais o homem se entrega a Deus, na vivência da fé e na reflexão sistemática, mais ele se possui e se conhece a si mesmo. Podemos entender então que história, na compreensão da teologia, ultrapassa os parâmetros dos movimentos, dos fatos e acontecimentos em si mesmos, para ser entendida como processo de maturação para a plenitude da vida com Deus ou da fatalidade da vida sem Ele; a história do ser humano e da Terra é a história de seu amadurecimento para Deus. O sujeito da história, nesse sentido, é o homem enquanto em referência a Deus, e é também o “Deus conosco” enquanto agente na circunstancialidade dos homens.

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A mediação histórica é totalizante e por isso contém qualquer outra mediação. A estrutura histórica da revelação é um dado antropocósmico que caracteriza o homem e o cosmos em um contínuo devir, fazendo a história da Salvação coincidir com o processo de hominização, de deiformização e de cristificação de todo o universo.

As contribuições dos Padres gregos, e no Ocidente, de outros como Santo Agostinho, Boécio, Santo Anselmo, Abelardo, São Bernardo, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Duns Escoto, Guilherme de Ockham, e outros, com enfoques e interesses diferentes, testemunham que a concepção do pensamento da fé (kairós) se condiciona à realidade histórico-concreta contextual (chronos). Assim, mesmo na teologia clássica, em sua pretensão de universalidade, a razão se caracterizava como histórica, pois era fortemente marcada pelo pensamento semita, grego, romano, germânico... Então, também neste ponto a teologia da libertação não é tão original. O que há realmente de novo e específico na reflexão de Boff e de outros teólogos do Continente é que eles falam de uma razão histórica que se refere a uma determinada realidade social de dependência e a uma realidade cósmica em processo de destruição. Enquanto a fé é a realidade kairológica que apresenta a chegada da salvação, o racional, para o teólogo, se reveste de um caráter marcadamente localizado pelo chronos e pelo espaço antropocósmico. 3.3- ... que se desdobra na situação desumana da po breza...

É também de fundamental importância para esta reflexão a consciência de que também “pobre” não é um tema da teologia da libertação, mas uma inspiração a partir da qual se visualiza todo o mistério de Deus. Se entendemos que a inspiração é a luz animadora que quase se confunde com a Palavra transcendente, podemos compreender o alcance dessa concepção da teologia da libertação. Trata-se de refletir teologicamente, não a partir de uma dimensão, mas de um dado integrado em um conjunto, o pobre como pessoa, ser de relação, de liberdade, de abertura a Deus..., vivendo num determinado contexto histórico-social, o que dá mais consistência ao pensar teológico e à compreensão a que pretendemos chegar nesta dissertação. A “pobreza”, juntamente com sua “libertação”, modula um aspecto de epocalidade latino-americana. Como tal, ela é um dado histórico-antropológico que leva o pensamento teológico a se contextualizar, de forma que a teologia seja uma resposta ao homem localizado. A preocupação com os pobres sempre foi uma marca da própria Igreja cristã, mas, colocada dentro deste nosso novo contexto histórico, a idéia reforça uma ótica particular de compreensão da história, além de levar a Igreja a assumir uma postura de simplicidade sem triunfalismo e de tomar consciência de que ela não é a única portadora da libertação-salvação. A categoria “pobre” corresponde, portanto, hoje na América Latina à vital categoria antropológica que torna a reflexão teológica latino-americana uma ciência que fala do homem através da compreensão do Deus bíblico libertador.

A ação salvífica de Deus no hoje da história, o cristão a vivencia como integração: Deus se revela a ele na realidade de sofrimento, de empobrecimento, de miséria de milhões de seres humanos... A experiência de Deus aqui se dá a partir dos pobres. A referência feita anteriormente à

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admiração como característica da experiência de Deus aqui se reveste de uma conotação negativa. Como é possível que humanos vivam nessa situação? Como pode o Mistério insondável, em sua beleza, majestade e glória, se fazer presente na feiura da miséria, da pobreza, da violência, do pecado, da injustiça, da opressão? Tal sentimento humano leva a uma mística e espiritualidade, que é a espiritualidade da experiência do mesmo Deus inversus, a que me refiria anteriormente. Flui dessa “admiração” uma oração encarnada, que traz o mundo com suas realidades mais gritantes para dentro da Bíblia e dos manuais de oração... A teologia é um momento decorrente dessa experiência de admiração que, na realidade de desumanização, leva o nome de “indignação ética”. Ela é o resultado dessa experiência primeira anterior e fundamental que é a espiritualidade. Nasce, portanto, de uma base espiritual e mística que acontece no mais profundo existencial humano. Porque pertence ao mistério ser buscado, é tarefa da razão humana procurar a compreensão da fé, aqui de modo particular a partir da realidade paradoxal da presença de Deus no sofrimento humano dos pobres, como mysterium liberationis.

Quando alguém faz essa experiência de admiração e de indignação, diante de Deus e das realidades humanas, a reflexão libertária da fé não equivale mais a uma opção ideológica opcional, mas a uma necessidade vital. A partir da experiência de Deus no pobre, o cristão se sente como Paulo, diante do grande desafio de evangelizar: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; É, antes, uma necessidade que se me impoõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!” (1 Cor 9,16).

A epocalidade da pobreza marca os parâmetros do que se entende hoje por antropologia na América Latina. Se afirmamos que a teologia emerge da antropologia, aqui é preciso acrescentar que não se trata de qualquer antropologia!... Mas de uma antropologia que pensa o ser humano em sua epocalidade concreta e real. Na América Latina, o humano é o não-humano, ou o homem desumanizado, “supérfluo” e “descartável”... Essa é a feição e o rosto do ântropos vislumbrado pelo nosso pensar teológico, como afirmam tão claramente as Conferências Episcopais de Puebla e de Aparecida (DP 30-39; DAp 65). Uma teologia latino-americana que deseja ser fiel à sua missão e tarefa deve emergir das questões fundamentais sobre Deus, a existência, o cosmos e toda a realidade a partir das interrogações do homem concreto que ela encontra: o pobre.

A epistemologia teológica que articula uma ciência assim pensada também revela caráter antropológico. A cientificidade da teologia na busca e intelecção da Palavra transcendente, consideradas as realidades de opressão e exclusão social, de abuso irracional do meio ambiente, toma, evidentemente, conotações próprias. Então, as imagens de Deus que daí emergem são certamente as de um Deus libertador de tudo o que diminui a vida, diferentes daquelas imagens de Deus que uma teologia metafísica, transcendental, política... pode levar a compreender. A cientificidade teológica na América Latina leva a descobrir a face bíblica de um Deus em correspondência com a realidade do homem empobrecido e de uma criação em processo de devastamento. A constatação da realidade social de que dois terços da população são constituídos de miseráveis e excluídos, abre o campo de

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reflexão para a antropologia da libertação, que então não pode se reduzir a uma ciência cujo objeto de análise positiva seja o homem, mas o não-homem. Trata-se, portanto, de uma “antropologia inversa” quando comparada à tradicional e sistemática ciência do homem. 3.4- ... e na exploração desumana do planeta

Através de toda a reflexão feita pudemos constatar como, não só para Boff, mas também para todo aquele que deseja honestamente fazer teologia, que pobre e natureza são como que duas faces da mesma moeda. A mesma antropologia que sustenta a opção preferencial pelos pobres deve ser ampliada por uma opção preferencial também pelo meio ambiente. Enfim, pobreza e desequilíbrio ecológico são fisionomias de uma mesma antropologia e, consequentemente, de uma mesma teologia. E assim como pobreza não é um tema a mais da teologia, mas um paradigma que lhe dá vida, também o cuidado ecológico deixa de ser um tema dessa ciência, para tornar-se, junto com a libertação dos pobres, a angústia fundante do atual fazer teológico.

Tradicionalmente, estamos acostumados a pensar a ecologia como uma questão das ciências da natureza, da cosmologia, e não da teologia. A teologia emergente da antropologia, hoje, causa em Boff e em nós uma inversão da lógica que tradicionalmente sustentava esse pensamento. Entender o humano como centro, ao mesmo tempo sujeito e destinatário da ciência da fé, é aceitar o desafio de fazer teologia nessa nova perspectiva. Então, Deus, ser humano e natureza se integram numa única reflexão e compromisso de libertação.

O novo paradigma ecológico da teologia muda a concepção cosmológica, liberta a antropologia de seu antropocentrismo clássico e a abre em termos de relacionalidade; resgata o panenteísmo na concepção de Deus, e resgata a pneumatologia, a cristologia e a Trindade em sua dimensão cósmica, ao mesmo tempo que relativiza a eclesiologia, embora realçando a idéia de Povo de Deus e de rede-de-comunidades584, mas aberta para o diálogo ecumênico e inter-religioso, para o compromisso libertador com o pobre, o índio, a mulher e para o cuidado da terra...

A teologia elaborada a partir do novo paradigma abre horizontes para o vislumbre da verdade de um Deus Criador e sempre transparente em sua obra, de uma antropologia que seja tematizadora das experiências de abertura humana a todas as dimensões do ser, e de uma ecologia que supera regionalismos e ambientalismos, e sai em busca do universal, de modo que seja possível falar em subjetividade do cosmos. Por isso, não se trata de um diálogo humano religioso apenas a respeito da defesa do “verde”, da proteção do meio ambiente, ou da defesa da vida dos animaizinhos, mas de uma reflexão muito mais ampla e comprometedora, capaz de ver, à luz da fé, todas as realidades integradas e em comunhão fraternal. Uma integração assim elaborada permite ao homem de hoje falar em ecotecnologia, ecopolítica, ecologia ambiental, ecologia social, ecologia mental, ética ecológica, ecologia integral e mística ecológica.

584 Contribuição da eclesiogênese brasileira à Igreja universal; in Concilium 296; 2002/3: 80-85.

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3.5- A ampliação do conceito de libertação: o grito pelo cuidado

Quando a teologia latino-americana afirma que “libertação” não é um tema entre tantos, como em outras teologias, mas uma chave hermenêutica de toda a revelação, está fazendo a afirmação de um corte epistemológico contextualizado da dimensão antrocosmológica na reflexão teológica. Neste continente, a libertação é o aspecto através do qual a antropologia exerce sua tarefa hermenêutica em relação à teologia e à revelação. Se, como temos afirmado, libertação é uma permanente abertura humana que conduz até a plenitude escatológica, um dado ético que atinge todos os campos da vida e das atividades humanas, entramos, por aí, numa virada hermenêutica que faz compreender libertação, cuidado e hominização como pontos de um mesmo processo, e a teologia como prenhe de uma forte intensidade antrocosmológica epocal. É a partir dessa ótica dialética do humano que a teologia da libertação se propõe a compreender a Deus em sua relação de autocomunicação com o homem. A libertação “de” e “para” revela que a vida do homem é constituído por uma abertura que o faz desvencilhar-se de amarras, e abrir-se para uma realidade totalizante, ponto culminante do processo libertário que sinaliza a justificativa teológica do processo.

Ainda que a consciência ecológica não estivesse ainda desenvolvida no

tempo de Jesus de Nazaré, podemos afirmar, a partir do conjunto todo de sua pró-existência, que ela corresponde ao que hoje chamamos de ipsissima intentio Jesu. A racionalização da fé, nessa teologia, tudo compreende a partir do corte antropocosmológico da libertação, razão porque a teologia fala simultaneamente de Deus e do homem.

Assim sendo, nossa tarefa de teólogos é a de costurar o tecido teológico entretecendo os fios da revelação bíblica com aqueles da existência cósmica em geral na qual o homem subsiste. Por tudo isso se pode entender que uma teologia que integra a libertação do pobre e do cosmos é uma forte candidata a realizar as já citadas palavras do grande Karl Rahner: a teologia deve tornar-se sempre uma antropologia teológica.

A superação apologética hoje exige não apenas que deixemos de lado imposições de verdades dogmáticas, mas, abertura para os novos horizontes em que o novo paradigma se assenta. O Concílio Vaticano II (GS 53-62) atesta a compreensão eclesial de sua missão de diálogo e de abertura ao mundo e às culturas diversas. A cultura hoje passa pela consciência planetária. Por isso, é preciso que o pensamento da fé busque também outros parâmetros de compreensão da verdade. Juntando a isso tudo as conquistas na área bíblica, particularmente na ciência exegética, reflexões mais contextualizadas sobre a fé vão surgindo na vida da Igreja. As questões antropológicas (esperança, política, revolução, libertação, etc...) entram em cena, ao lado de outras questões, como são as do universo inteiro. Portanto, emergem e se definem novas epistemologias teológicas, de tal forma que hoje já não se pode mais refletir a fé sem considerar os dados fundamentais da história e da complexidade de fatores que determinam o humano. Fatores como direitos humanos, empobrecimento, opressão, segregação racial e sexual, ecologia,

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aquecimento global, desequilíbrio cósmico etc..., antes tidos em conta como tão somente de profanos, passam a ser reconhecidos como lugar teológico, entrando, portanto, no cenário dos livros de teologia, de moral, de espiritualidade, de mística...

A mundialização, que tende a provocar uma nova era humanista, e que

se expressa particularmente através da mutação tecnológica, da economia de mercado e da emergência de uma nova consciência planetária, exige da teologia uma nova postura diante da problemática do mundo moderno e contemporâneo. Da mesma forma, a nova teologia que está nascendo tem como base cronológica a situação da imensa comunidade cósmica, e consequentemente de necessária democracia ecológico-social.

A teologia da libertação é a atividade reflexiva de uma Igreja contextualizada em meio a esses desequilíbrios humanos ecológicos. Então, a veracidade da teologia passa também pelo crivo da libertação: somente uma reflexão que veicule a fé como elemento humanizante em todos os aspectos pode ser oportuna e pertinente nessa realidade. E assim como o pobre e seu meio ambiente condensam com maior evidência a presença sacramental de Deus, possibilitando discernir valores realmente humanos de outros ideológicos desumanizantes, assim também uma teologia que reflete a fé entrecortada por elementos ântropo-cósmicos históricos tão palpáveis, pode condensar mais intensamente a presença da verdade de Deus e da verdade humana simultaneamente. A tarefa de vigilância da fé, própria da teologia, não permite que se perca sua dimensão praxística de transformação, e nem que seja desencrnada de seus compromissos com o homem em sua totalidade. A teologia, como tarefa eclesial de reflexão da fé, se reveste, portanto, de um caráter de serviço, atenta às mais reais e iminentes necessidades humanas.

A teologia moderna tem colocado essa questão no centro de sua preocupação. Se em outras épocas, a teologia da libertação se preocupava em se fazer a partir dos pobres, com os pobres e para os pobres, hoje entende ser necessário ampliar o conceito do universo que clama por libertação. Assim, sua tarefa é a de dirigir-se ao mundo todo, com um grito de alerta sobre os perigos que ameaçam, conjuntamente, a humanidade e o planeta. A preocupação já não é a relação entre fé e descrença, religião e ateísmo, cristãos e não-cristãos, e nem mesmo entre evangelização e pobreza, mas a urgência de um postura em favor da vida de todos os seres criados.

O Deus inversus, hoje, é uma referência às situações de desumanidade

e exploração impiedosa da natureza. Consequentemente, a theologia inversa não é a racionalidade da fé a partir do secularismo, da incredulidade ou do ateísmo, mas da realidade do não-ser, do não homem, da pessoa desumanizada e de seu meio ambiente desfigurado e ameaçado.

Se a antropologia em cujo cenário se desdobra a teologia é de caráter contextual, a problemática ecológica que desafia o ser humano é pan-cósmica, portanto não problema de um ou outro continente, mas de a toda a humanidade. A questão ecológica não conhece fronteiras, não respeita limites geográficos nem convenções nacionais. Por isso, se a reflexão teológica

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contemporânea tende a pensar o problema a partir do novo paradigma da ecologia, antes de se particularizar e se contextualizar –o que certamente é sempre necessário- ela deve constituir como que um acordo teoantropocósmico católico, isto é, universal. Num segundo momento, sim, a reflexão se contextualiza a partir de desafios bem localizados, mas fundamentada no consenso universal. Não se trata apenas de uma estratégia, mas da consciência de que a questão pede respostas responsáveis, também no nível da fé, de cristãos do mundo inteiro. Tal deve ser o critério de destinação da teologia. 4- Considerações finais

Tendo percorrido todos esses passos na tentativa de compreensão do que é teologia, não fica difícil nem estranho admitir seu caráter antropológico.

Num primeiro momento se constata que a reflexão sobre o homem é parte intrínseca ao trabalho teológico porque, como ser teologal, o ser humano é “ouvinte da Palavra” na história da Salvação que assume a história humana em que Deus se manifesta com uma mensagem libertadora e salvadora. Como sujeito fazedor de teologia, ao refletir e elaborar racionalmente os dados da fé, ele se projeta, não só psicologica, mas tambem ontologicamente: ao falar de Deus, fala também de si próprio. Além disso, como destinatário da teologia, o homem reflete a fé para poder crer mais; interpreta a Palavra da revelação para poder realizar-se como pessoa humana que crê. Portanto, a revelação e, então, a teologia, devem necessariamente falar dele e de todas as suas circunstâncias, estas entendidas como as realidades criacionais todas.

Mas as razões que justificam a afirmação da teologia como ciência de Deus e do homem encontram centralidade e origem numa fonte que ultrapassa essa fundamental argumentação ontológica: o mistério do Deus Trindade, que cria, redime, inhabita e santifica o ser humano e todo o cosmos. Para além do teologúmeno trinitário encarnacionista que Boff se propõe, a teologia trinitária permite vislumbrar na autocomunicação de Deus, por meio de Seu Filho e de Seu Espírito, a amorosa e delicada reverência antropocósmica desse Deus que se debruça sobre o mundo por Ele criado, e por meio de Suas “duas mãos” refeito e aprimorado. Na perspectiva do Filho eterno encarnado, a cristologia é tentativa de sistematização intelectiva desse Mistério, tarefa que executa numa contínua e ininterrupta articulação entre o divino e o humano-cósmico plenamente presentes em Jesus Cristo. Na perspectiva do Espírito, que inabita os corações humanos, a pneumatologia aponta para a unidade trina de um Deus que é Amor. Então, fundamentados no próprio Boff, podemos ampliar a sua fala, dizendo que a partir do Verbo encarnado, morto e ressuscitado, presente pan-cosmicamente nas entranhas humanas e do mundo, e do Espírito Santo que inunda definitivamente os corações humanos e cada partícula da matéria criada, já não se pode mais falar de Deus sem se referir simultaneamente ao homem e ao cosmos, nem vice-versa. Por isso também, não dá para fazer teologia, esta entendida como ciência sobre Deus, a despeito da antropologia em sua dimensão mais ampla. Na teologia podemos sentir o Mistério de Deus e o mistério do ser humano e de suas circunstancialidades articulando-se incessantemente.

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Deus é o objeto central da teologia, mas, porque a revelação é a

comunicação de Sua vida íntima e de seu Mistério à criatura, o que pode haver de mais íntimo e mais profundo na existência humana e cósmica é a presença desse Mistério revelado. Dessa forma, ao falar da verdade de Deus, a teologia refere-se a ela como presença e graça no coração do homem e da matéria, e da mesma forma, ao falar do mundo como um todo, a teologia fala de um lugar teológico, pois Deus está no mais íntimo de sua realidade. O próprio ser humano como ser teologal que acolhe de forma consciente a autocomunicação de Deus e se vê revelado de modo mais pleno e evidente em Jesus de Nazaré, é o mais evidente argumento da teologia como ciência de Deus e do homem. É do Mistério divino presente no âmago de sua vida e da matéria, que o homem faz emergir sua reflexão, elaborando, então, uma teologia que é sempre, em certo sentido, uma antropologia teológica. Justamente por ser ciência de Deus e do homem, a teologia nunca está pronta e nem acabada; ela se faz, acontecendo no artesanato dinâmico da vida humana e do cuidado da criação, num dinamismo que envolve Deus, o homem e tudo o que existe. Por isso é sempre um “fazer”.

Possivelmente, com o evoluir da reflexão teológica a partir do patadigma da ecologia, seja necessário ampliar também a expressão, dizendo que a teologia é ciência de Deus, do homem e do cosmos. Mas, para tanto, a teologia da criação ainda precisa dar passos mais decididos para a superação do antropocentrismo.

Os enunciados clássicos da ciência são balizas de orientação e pontos

fundamentais de referência, que nos vêm da Revelação ou da Tradição da Igreja, aquecidos pelas mediações das ciências as mais variadas, entre as quais, hoje, a antropologia e a nova cosmologia, e sobre os quais se desenvolve a cena do verdadeiro e real movimento teológico, quando o homem mergulha na fascinante aventura de descobrir-se, a si e a todo o cosmos, inserido no coração de Deus. As margens plácidas do lago da fé guardam em seu útero os segredos do Mistério Total: de Deus, do homem e de todo o cosmos. Só quem não teme rasgar esse tecido líquido da fé e perscrutar suas profundezas é que pode, pela intelecção e pela contemplação mística, aproximar-se do tesouro teoantropocósmico oculto por sob as ramagens e dunas do fundo do lago da existência.

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BIBLIOGRAFIA

1. BIBLIOGRAFIA ESPECÍICA

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3. A alegre mensagem de Natal: conto ou realidade? Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, vol.LXV, n.10:777-787, dez.1971.

4. A atual problemática da inerrância da Escritura. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 30, fasc. 118: 380-392, Junho de 1970.

5. Concílio Vaticano II: Igreja-Sacramento-primordial. Vozes- Revista Católica de Cultura, Petrópolis: 881-912, dez.1964.

6. Constantes antropológicas e revelação. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 32, fasc. 125: 26-41, março 1972.

7. Contribuição da eclesiogênese brasileira à Igreja universal. Concilium 296; 2002/3: pp. 80-85.

8. Cristianismo: religião na qual a utopia se tornou topia. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, vol. LXVII, 1: 35-48, jan-fev. 1973.

9. Difícil liberdade (Editorial). Perspectiva Teológica 14.n. 33, 1982: pp. 133-137.

10. É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré? Concilium 319; 2007: 61-82.

11. Estrutura pascal da existência humana. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 42, fasc. 165: 5-11, março 1982.

12. A filosofia da integralidade de M. F. Sciacca. Em quatro artigos na Vozes-Revista Católica de Cultura , Petrópolis, 1964, ano 58, assim divididos: (I) (497-507, julho 1964), (II)(561-580, agosto 1964), (III) (652-666, set. 1964), (IV) (721-738, out. 1964).

13. Maria, mulher profética e libertadora; a piedade mariana na TdL. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 38, fasc. 149: 59-72, março1978.

14. Masculino e feminino: o que é? Fragmentos de uma ontologia. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, vol. LXVIII: 677-690, 1974.

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15. A mensagem da Bíblia na linguagem secular. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, Petrópolis, vol. 32, fasc. 128: 842-854, dez. 1972.

16. O que significa propriamente sacramento? Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 34, fasc.136: 860-895, dez. 1974.

17. A originalidade da TdL em Gustavo Gutiérrez. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 48, fasc. 191: 531-543, set. 1988.

18. Pecado original: discussão antiga e moderna e pistas de equacionamento. Grande Sinal, Petrópolis, 29: 109-133, 1975.

19. Que são as teologias do Terceiro Mundo? Concilium/219, Petrópolis: 12 (564)-23(575),1988/5.

20. Que significa teologicamente Povo de Deus e Igreja Popular? Concilium, Petrópolis, v. 196, n. 6, pp. 123-125, 1984.

21. Refundação da dignidade humana a partir da nova cosmologia. Cadernos Fé e Política, Petrópolis, vol. 7, pp. 7-54, 1992.

22. Salvação em Jesus Cristo e processo de libertação. Concilium/10, Petrópolis:753-775,1974.

23. Tentativa de solução para o problema da inspiração e da inerrância. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 30, fasc. 119: 648-667, Set.1970.

24. Teologia à escuta do povo. Separata da Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol.41, fasc.161: 55-118, março 1981.

25. Teologia da Libertação: o mínimo do mínimo. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 38, fasc. 152: 696-705, dez. 1978.

26. Teoria e práxis. Os direitos humanos ao interno da Igreja. Revista Eclesiástica Brasileira. REB 37, n. 145, 1977: pp. 143-159.

27. Terra e Humanidade: uma comunidade de destino. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. LXX, fasc. 277, 2010: pp. 187-188.

1.1.1- Em co-autoria 28. BOFF, Leonardo & BOFF, Clodovis, Cinco observaciones de fondo sobre la Teología de la Liberación. Selecciones de Teología, vol. 23, n. 92: 264-267, oct-dic 1974.

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1.2- Livros de Leonardo Boff

1. A águia e a galinha: Uma metáfora da condição humana. Petrópolis, Vozes-Nobilis, 2006. 140 p.

2. América Latina: da conquista à Nova Evangelização. 3a. ed. São Paulo, Ática S.A., 1992. (Col. Fé e Libertação). 142 p.

3. Antropologia teológica; o homem à luz do projeto teológico. Petrópolis, Instituto Filosófico-Teológico de Petrópolis, 1976. 133 p. Mimeografado.

4. A Ave-Maria; o feminino e o Espírito Santo. Petrópolis, Ed. Vozes, 7ª.edição, 2003.102p.

5. O caminhar da Igreja com os oprimidos; do Vale de Lágrimas à Terra Prometida.Rio de Janeiro, Codecri, 1980. (Col. Terceiro Mundo, 5). 252 p.

6. Civilização planetária: Desafios à sociedade e ao cristianismo. Rio de Janeiro, Sextante, 2003. 132 p.

7. Crise: Oportunidade de crescimento. Campinas, Verus, 2002. 212 p.

8. A cruz nossa de cada dia: Fonte de vida e de ressurreição. Campinas, Verus, 2003. 87 p.

9. Depois de 500 anos, que Brasil queremos? Petrópolis, Vozes, 2000.

10. O despertar da águia: O dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Petrópolis, Vozes-Nobilis, 2006. 206 p.

11. O destino do homem e do mundo; ensaio sobre a vocação humana. 5a. ed. Petrópolis,Vozes,1978.(SérieTeologia/6).166p. 12. O Deus dos filósofos contemporâneos. Petrópolis, Vozes, Série Cristianismo e Libertação, 2003. 212 p.

13. Do iceberg à arca de Noé: O nascimento de uma ética planetária. Rio de Janeiro, Garamond, Série Os Visionários, 2002. 159 p.

14. Do lugar do pobre. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1984. 151 p.

15. E a Igreja se fêz povo; eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do

povo. 2a. ed. Petrópolis, Vozes, 1986. (Col. Teologia/23). 200 p.

16. Eclesiogênese; a reinvenção da Igreja. Rio de Janeiro, Record, 2008. 251p.

17. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro, Sextante, 2004. 320 p.

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18. Ecologia, mundialização, espiritualidade; a emergência de um novo paradigma. Rio de Janeiro, Record, 2008. 235 pp.

19. O Espírito Santo: Pessoa, presença, atuação. Petrópolis, Vozes, 1973. 157p.

20. Espiritualidade: Um caminho de transformação. Rio de Janeiro, Sextante, 2001. 96 pp e CD.

21 Ethos mundial: Um consenso mínimo entre os homens. Rio de Janeiro, Sextante, 2003. 130 p.

22. Ética da vida. Rio de Janeiro, Sextante, 2005. 173 pp.

23. Ética e eco-espiritualidade. Campinas, Verus, 2003. 203 p.

24. Etica e sustentabilidade. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, Caderno de debate, Agenda 21, 2006. 14 pp.

25. Éticas da mundialização: O nascimento de uma consciência planetária. São Paulo, Paulinas, 2000. 250 p.

26. Evangelho do Cristo Cósmico. Rio de Janeiro, Record, 2008. 190 pp.

27. La experiencia de Dios. Bogotá: CLAR, 1983, 93 p.

28. Experimentar Deus: A transparência de todas as coisas. Campinas, Verus, 2002. 163 p.

29. Fé e política: Fundamentos. Aparecida, Idéias & Letras, 2004. 216 p.

30. A fé na periferia do mundo. 5a. ed. Petrópolis, Vozes, 1991. (Col. Teologia/17).128p.

31. Feminino e masculino: Uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro, Sextante, 2002. 287 p.

32. Francisco de Assis: saudade do paraíso. Pinturas de Nelson Porto. Petrópolis, Vozes, 1985/1999.

33. Fundamentalismo: A globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro, Sextante, 2002. 96 pp.

34. Gênero e teologia: Interpelações e perspectivas. São Paulo, Paulinas, 2003. 312 p.

35. Graça e experiência humana: A graça libertadora no mundo. Petrópolis, Vozes, 1998. 356 p.

36. Homem: satã ou anjo bom?. Rio de Janeiro, Record, 2008. 223 pp.

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37. Igreja: carisma e poder; inclui os documentos de polêmica com o Vaticano. Rio de Janeiro, Record, 2005, Edição ampliada com a documentação. 472 pp.

38. Jesucristo y la liberación del hombre. Madrid: Cristiandad, 1981. 669 p.

39. Jesucristo y nuestro futuro de liberación. Bogotá: Indo-American Press Service, Série Iglesia Nueva, 32. 61 p.

40. Je vous salue Marie. L'Esprit et le féminin. Paris, Cerf, 1986. (Coll. théologies). Traduit du brésilien par Christine et Luc Durban. 92 p.

41. Jesus Cristo Libertador; ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. 13a. ed. Petrópolis, Vozes, 1991. (Série Teologia/2). 236 p.

42. Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung; Versuch einer Legitimation und einer Struktur-funktionalistischen Grundlegung der Kirche im AnschluS an das II. Vatikanische Konzil. Druckerei Paderborn, Verlag Bonifacius, 1972. 554 p.

43. O masculino em questão. Petrópolis, Vozes, 1997. 259 p.

44. Mestre Eckhart: A mística do ser e do não-ter. Petrópolis, Vozes, 1983, 186p.

45. Natal; a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Petrópolis, Vozes, 2000. (Série Festas do Povo de Deus/1), (re-edição modificada), 5ª. edição, 104 p.

46. Nova era: a civilização planetária; desafios à sociedade e ao cristianismo. São Paulo, Ática S.A., 1994. (Série Religião e Cidadania). 88 p.

47. Nova Evangelização: perspectiva dos oprimidos. 4a. ed. Fortaleza, Vozes, 1991. 128 p.

48. Novas fronteiras da Igreja: Futuro de um povo a caminho. Campinas, Verus, 2004. 193 p.

49. A oração de São Francisco: Uma mensagem de paz para o mundo atual. (edição para distribuição interna com ilustrações). Bragança Paulista, Universidade São Francisco, 2001

50. O Pai Nosso; a oração da libertação integral. 10ª. ed. Petrópolis, Vozes, 2003. (Série Espiritualidade/2). 150 p.

51. Paixão de Cristo, paixão do mundo; os fatos, as interpretações e o significado ontem e hoje. Petrópolis, Vozes, 2003. (Série Teologia/13), 5ª. edição. 170 p.

52. Princípio de compaixão e cuidado. Petrópolis, Vozes, 2001. 164 p.

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53. Quinientos años de evangelización; de la conquista espiritual a la liberación integral. Santander, Sal Terrae, 1992. 148 p.

54. A ressurreição de Cristo; a nossa ressurreição na morte. 7ª.ªed. Petrópolis, Vozes, 1986. (Série Teologia/3). 112 p.

55. O rosto materno de Deus; ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. 9a. ed. Petrópolis, Vozes, 2003. (Teologia/18). 268 p.

56. Saber cuidar: Ética do humano-compaixão da terra. Petrópolis, Vozes, 2001. 199 p.

57. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos; ensaio de teologia narrativa; minima sacramentalia. 16a. edição, Petrópolis, Vozes, 1993. (Col. Teologia/9). 80 p.

58. São Francisco de Assis, ternura e vigor; uma leitura a partir dos pobres. Petrópolis, Vozes, 2000. (Col. Cefepal/15). 198 p.

59. São José: A personificação do Pai. Campinas, Verus, 2005. 214 p.

60. Tempo de Transcendência; O ser humano como um projeto infinito. Rio de Janeiro, Sextante, 2000. 93 p.

61. Teologia à escuta do povo. Petrópolis, Vozes, 1981.

62. Teologia da Libertação no debate atual. Petrópolis, Vozes, 1985. 77 p.

63. Teologia do cativeiro e da libertação. São Paulo, Círculo do Livro, s/d. 274p.

64. Testigos de Dios en el corazón del mundo. Madrid, Instituto Teológico de Vida Religiosa, 1977. Trad. y adapt. de M. Díez Presa, 344 p.

65. A Trindade, a sociedade e a libertação. 2a. ed. Petrópolis, Vozes, 1986. 296p.

66. A Trindade e a sociedade. 3a. ed. Petrópolis, Vozes, 1987. (Coleção Teologia e libertação, tomo V). 296 p.

67. Um balanço de corpo e alma. In BOFF, Leonardo & outros, O que ficou... Balanço aos 50. Petrópolis, Vozes, 1989, 160 p.

68. Via-sacra da justiça. Pinturas de Mario Mendonça. Petrópolis, Vozes, 1978. 140 p.

69. Via-sacra da ressurreição. Pinturas de Nelson Porto, Petrópolis, Vozes, 1982. 83 p.

70. Vida para além da morte; o futuro, a festa e a contestação do presente. Petrópolis, Vozes, 2000, (Coleção Teologia/5), 18ª. edição. 210 p.

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71. A vida religiosa e a Igreja no processo de libertação. Petrópolis e Rio de Janeiro, Vozes e Conferência dos Religiosos do Brasil, 1976. (Col.Vida Religiosa: Temas Atuais/1).104 p.

72. Vida Religiosa e secularização. Rio de Janeiro, Publicações da CRB, 1971, Coleção Vida Religiosa n.4, 32 p.

73. Vida segundo o Espírito. 3a. ed. Petrópolis, Vozes, 1985. (Série Espiritualidade/4). 184 p.

74. Virtudes para um outro mundo possível: A hospitalidade, direito e dever de todos. Petrópolis, Vozes, 2005. 199 p.

75. Virtudes para um outro mundo possível: Convivência, respeito e tolerância. Petrópolis, Vozes, 2006. 126 p.

76. Virtudes para um outro mundo possível, vol. III: Comer e beber juntos e viver em paz. Petrópolis, Vozes, 2006. 135 pp. 78. A voz do arco-íris. Rio de Janeiro, Sextante, 2004 (re-edição) 157 pp.

1.2.1- Em co-autoria ou textos inseridos em publica ções mais amplas

77. BOOF, Leonardo & BOFF, Clodovis, Como fazer Teologia da Libertação. 5ª. ed. Petrópolis, Vozes, 1991. (Col. Como Fazer/17-18). 142 p.

78. BOFF, Leonardo & FREI BETTO, Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. 208 p. Deste livro foram consultados os seguintes escritos, todos de BOFF, Leonardo: A Deus se chega por muitos caminhos, p. 84-86; Os caminhos da experiência de Deus, p. 89-92; Jesus e a experiência de Deus-Pai e Mãe, p. 117-124; Mística e cultos africanos, p. 93-95; Mística e militância, p. 26-27; Mística e mistério, p. 9-11; Sentido antropológico-existencial de mistério e mística, p. 14-16; Sentido cristão de mistério e mística, p. 20-23; Sentido religioso de mistério e mística, p 17-19; A transparência: experiência originária, p. 66-80; Uma caminhada humana e espiritual,159-161; Ver além das aparências, p. 104-111.

79. Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma, in ANJOS Márcio Fabri dos (org.), Teologia e novos paradigmas. São Paulo, Soter & Loyola, 1996, 75-88.

80. Experimentar a Deus hoje. In FREI BETTO & outros, Experimentar Deus hoje, Petrópolis, Vozes, 1974. (Teologia/8). pp. 126-190.

81. BOFF Leonardo e MURARO Rose Marie, Feminino e masculino: Uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro, Sextante, 2002. 287 p.

82. BOFF Leonardo e RIBEIRO Lucia, Masculino e feminino: experiências vividas. Rio de Janeiro, Record, 2007. 84 pp.

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83. A Salvação nas libertações; o sentido teológico das libertações sócio-históricas. In BOFF, Leonardo & BOFF, Clodovis, Da libertação; o sentido teológico das libertações sócio-históricas. Petrópolis,Vozes, 1979.p.9-65.

84. Uma cristologia a partir do povo cristão oprimido. In HIPÓLITO, Adriano & outros, Pastoral popular libertadora. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1981. (Col. Pensamento, 8). pp.35-54.

1.3- Artigos sobre o pensamento de Leonardo Boff

1. BERNARDES, Ernesto, Teologia da colisão; entrevista: Leonardo Boff. Veja, São Paulo: 7-9, 16 de agosto de 1995.

2. BRANDT Hermann, Leonardo Boff como teólogo protestante? Um balanço pessoal. Estudos Teológicos, São Leopoldo: 5-26, ano 48, n. 2. 2008.

3. HENNAUX J.-M., L’Esprit et le féminin: la mariologie de Leonardo Boff. Nouvelle Revue Théologique, Namur, tome 109/no. 6: 884-895, novembre-décembre 1987.

4. PRESIDÊNCIA E COMITÊ EDITORIAL, Leonardo Boff e Jon Sobrino: setenta anos de vida; Concilium, Petrópolis: 156-159; no. 328; 2008/5.

5. SINNER, Rudolf von, A Santíssima Trindade é a melhor comunidade: Trindade, Igreja e sociedade civil. Estudos Teológicos, São Leopoldo: 51-73, ano 48, n. 2. 2008.

6. WESTPHAL, Euler R., O pensamento trinitário de Leonardo Boff: comunhão e criação. Estudos Teológicos, São Leopoldo: 27-50, ano 48, n. 2, 2008.

1.4- Recensões de livros de Leonardo Boff

1. ARMELLADA, Bernardino de, (Recensão de) BOFF, Leonardo, O rosto materno de Deus; ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. In AAVV, Bibliografía. Naturaleza y Gracia, Salamanca, vol. 27/1: 184, enero-abr 1980.

2. CADORÉ, Bruno, (Recensão de) BOFF, Leonardo, Jésus Christ Libérateur. In AAVV, Les livres. La Vie Spirituelle, Paris, 64e. année, n. 659, tome 138: 264-266, mars-avr 1984.

3. DERMIENCE, Alice, (Recensão de) BOFF, Leonardo, Je vous salue Marie; L’Esprit et le féminin. In AAVV, Notices Bibliographiques. Revue Théologique de Louvain; Louvain-la Neuve, 19e. année, fasc. 2: 245-247, 1988.

4. TABORDA, Francisco, (Recensão de) BOFF, Leonardo, O rosto materno de Deus; ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, n. 34: 373-405, set-dez 1982.

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5. ZILLES, Urbano, (Recensão de) BOFF, Leonardo, Jesus Cristo Libertador; ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. In AAVV, Recensões. Perspectiva Teológica, São Leopoldo, n. 8: 86-89, jan-jun 1973.

1.5- Livros sobre o pensamento de Leonardo Boff

1. GUIMARÃES Juarez (org.), Leituras críticas sobre Leonardo Boff. Belo Horizonte, UFMG e São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2008, 206 p.

2. RODRÍGUEZ, Luis R. Rivera, Anthropogenesis: the theological anthropology of Leonardo Boff. Tese de doutorado. Harvard University, Cambridge, Massachusetts, 1993. 346 p.

3. SANDER, Luis M., Jesus, o libertador; a cristologia da libertação de Leonardo Boff. São Leopoldo, Sinodal, 1986. 287 p.

2. BIBLIOGRAFIA GERAL

2.1- Artigos em revistas

1. GALOT, Jean, L’Esprit Saint et la féminité. Gregorianum , Roma, 76/1: 5-29, 1995.

2. GUERRA, Juan A. Mejía, Dimensões da crise ecológica. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. LXX, fasc. 277: 5-21, janeiro 2010.

3. KLOPPENBURG, Boaventura, Las tentaciones de la Teología de la Liberación. Selecciones de Teología, Barcelona, vol. 15, n. 60; condensado por Paul Bricall.: 284-293, octubre-diciembre 1976.

4. LIBÂNIO, João B., Modernos conceitos de pessoa e personalidade de Jesus. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 31, fasc. 121: 47-64, março 1971.

5. VAN DEN BERG, A., A Santíssima Trindade e a existência humana. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 33, fasc. 131: 629-648, set. 1973.

6. Página Web: www.earthcharterinaction.org/contenido

2.2- Livros

1. AGOSTINHO (Santo), A Trindade. São Paulo, Paulus, 1994. Trad. Agustino Belmonte. (Patrística, 7). 736 p.

2. AGUSTIN (SAN), Tratados sobre el Evangelio de San Juan. In Obras de San Agustin. 2ª. ed. Ed. bilingue. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1968. Vol. XIII. Versión, traducción y notas de Teófilo Prieto. 670 p.

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3. ANSELMO DE CANTUÁRIA, Proslógio. In Monológio, Proslógio, A Verdade, O Gramático. São Paulo, Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores, vol. 7). Trad. Ângelo Ricci. p. 103-146.

4. BALTHASAR H. U. von, Puntos centrales de fa fé, Madrid,1985. 270 p.

5. A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo, Paulinas, 2002. Nova ed., revista. Traduzida por um grupo de exegetas católicos e protestantes.

6. BOFF, CLodovis, Teologia e prática; teologia do político e suas mediações. Petrópolis, Vozes, 1978. 407 p.

7. BULTMANN Rudolf, Il concetto di rivelazione nel Nuovo Testamento. In Credere e Comprendere; raccolta di articoli. Brescia, Queriniana, 1977, tomo III. (Col. Biblioteca di Teologia Contemporanea, 30). Trad. di Carmine Benincasa. Pp. 655-689.

8. __________, L’idea di Dio e l’uomo moderno. In Credere e Comprendere; raccolta di articoli, Brescia, Queriniana, 1977, tomo IV. (Col. Biblioteca di Teologia Contemporanea, 30). Trad. Trad. di Rizzi Armido. P. 989-1002.

9. COMBLIN, José, Antropologia cristã, Petrópolis, Vozes, 1985. (Col. Teologia e Libertação, tomo I, série III: A libertação na História). 272 p.

10. DUQUOC, Christian, Christologie; essai dogmatique, vol. II: Le Messie. Paris, Du Cerf, 1972. 354 p.

11. __________, Jesús, hombre libre; esbozo de una cristología. 6ª. ed. Salamanca, Sígueme, 1982. Trad. Alfonso O. García. 123 p.

12. FEUERBACH, Ludwig, A essência do cristianismo. Campinas, Papirus, 1988. Trad. José da Silva Brandão, 1988. 396 p.

13. GREGORIUS THEOLOGUS,Orationes theologicas XXVII-XLV. In MIGNE, J.-P. (accurante), Patrologiae cursus completus, MG. Tomus XXXVI. Turnholti (Belgium), Brepols Ed. Pontificii, s/d. Col. 9-66.

14. GUTIERREZ, Gustavo M.,Teologia da libertação; perspectivas. 2ª. ed. Petrópolis, Vozes, 1976. Trad. de Jorge Soares. 276 p.

15. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Aos Romanos. Petrópolis, Vozes, 1967.

16. JUSTINO DE ROMA, I e II Apologias ; Diálogo com Trifão. São Paulo, Paulus, 1995. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. (Col. Patrística, 3). 330 p.

17. LATOURELLE, René, Revelação In LATOURELLE, René FISICHELLA, Rino (dir.), Dicionário de Teologia Fundamental, Petrópolis e Aparecida, co-edição Vozes e Santuário, 1994. Trad. Luiz João Baraúna. p. 816-852.

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18.__________, Teología de la revelación. Salamanca, Ediciones Sígueme, 11ª. edición, 2005. 583 p.

19. LEÓN-PORTILLA, Miguel (org.), A conquista da América Latina vista pelos índios; relatos astecas, maias e incas. 2ª. ed. Petrópolis, Vozes, 1985. Trad. Augusto Ângelo Zanatta. 143 p.

20. LIBÂNIO J. Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade.São Paulo, Loyola. (Col. Fé e Realidade-31). 480 p.

21. __________, Teologia da Libertação; roteiro didático para um estudo. São Paulo, Loyola, 1987. (Col. Fé e Realidade-22). 300 p.

22. MATURAMA H. R. & VARELA F. J., A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.

23. MELLINI, José Z., Léxico da filosofia medieval. In TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica; suplemento, questões 69-99, vol. XI. 2ª. ed. Porto Alegre e Caxias do Sul, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Universidade Caxias do Sul e Livraria Sulina, 1981. Org. e dir. Rovílio Costa e Luiz Alberto de Boni. Trad. Ambrósio Tondello. p. 65-116.

24. MONDIN, Battista,Os teólogos da libertação. São Paulo, Paulinas, 1980. (Col. Libertação e Teologia/4). Trad. Hugo Toschi, 182 p.

25. NUÑES, Maria J. Rosado & outras, Las mujeres toman la palabra; San José, Costa Rica, DEI, 1989. 112 p.

26. Rudol OTTO, O sagrado, Coimbra: Edições Setenta, 1992. Cf. O Pai Nosso; a oração da libertação integral, p. 57.

27. RAHNER, Karl, Curso fundamental da fé; introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo, Paulinas, 1989. (Col. Teologia Sistemática). Trad. Alberto Costa. 541p.

28. __________, Teologia e antropologia. São Paulo, Paulinas, 1969. (Col. Revelação e Teologia, 8). Trad. Hugo Assmann. 262 p.

29. SAINT-MAURICE, Béraud de, João Duns Scot, doutor dos tempos novos.Petrópolis, Rio de Janeiro, São Paulo, Vozes Ltda., 1947. (Col. Biblioteca de Cultura Católica, vol. XI). Trad. Luís Leal Ferreira. 328 p.

30. SCOTI, Joannes Duns, Opus Oxoniensis. In BALIC, P. (dir.), Joannis Duns Scoti Doctoris Mariani theologiae marianae elementa. Sibeneci (Yugoslavia), Kacik, 1933. (Bibliotheca Mariana Medii Aevi, tomo II). P. 4-133.

31. __________, Reportata Parisiensia. In BALIC, P. (dir.), Joannis Duns Scoti Doctoris Mariani theologiae marianae elementa. Sibeneci (Yugoslavia), Kacik, 1933 (Bibliotheca Mariana Medii Aevi, tomo II). P. 134-185.

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32. SEGUNDO, Juan L., A concepção cristã do homem. Petrópolis,Vozes, 1970. (Col. Liturgia-Mundo, 3). 98 p.

33. __________, ¿Qué mundo? ¿Qué hombre? ¿Qué Dios? Maliaño, Sal Terrae, 1993. (Col. Presencia Teológica, 72). 503 p.

34. SEVERINO, Antonio Joaquim Severino, Metodologia do trabalho científico; diretrizes para o trabalho didático-científico na universidade. São Paulo, Cortez, 2007, 23ª. ed. 256 p.

35. SOBRINO, Jon, Cristologia a partir da América Latina; esboço a partir do seguimento do Jesus histórico. Petrópolis, Vozes, 1983. Trad. Orlando Bernardi. 432 p.

36. __________, Jesus, o libertador; a história de Jesus de Nazaré. São Paulo, Vozes, 1994. (Col. Teologia e Libertação, II/3). Trad. Jaime A. Clasen. 392 p.

37. SUSIN Luis C.(org.), O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina

38. TOMAE DE AQUINO S., Summa Contra Gentiles. Romae, Sedem Commisionis Leoninae et Libreriam Vaticanam, Desclée & Herder, 1934. 581 p.

39. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, 1ª. parte, questões 1 a 49 (vol. I), 456 p.; 1ª. parte, questões 50-119 (vol. II), 567 p., e 1ª. parte da 2ª. parte, questões 1-70 (vol. III), 573 p. Org. e dir. Rovilio Costa e Luis Alberto de Boni. 2ª. ed. Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes (Porto Alegre), Universidade de Caxias do Sul (Caxias do Sul), Livraria Sulina Editora (P. Alegre), em colaboração com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Grafosul, Indústria Gráfica Editora Ltda (P. Alegre), 1980. Trad. de Alexandre Corrêa.

3. DOCUMENTOS DO MAGISTÉRIO DA IGREJA

1. COMISSÃO ARQUIDIOCESANA PARA A DOUTRINA DA FÉ, A Arquidiocese do Rio e o livro “A Trindade, a sociedade e a libertação”. Atualização, Belo Horizonte, n. 206: 133-161, Mar/Abr. 1987.

2. III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO, A evangelização no presente e no futuro da América Latina; Puebla: conclusões. 6ª. ed. S. P., Loyola, 1979. Apresentação didática de João B. Libânio. 364 p.

3. IV CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO, Nova Evangelização, promoção humana, cultura cristã, Jesus Cristo ontem, hoje e sempre; Santo Domingo; conclusões. S. P., Loyola, 1993. Ed. didática. 222 p.

4. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, Documento de Aparecida; Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe; Brasília e São Paulo, Edições CNBB, Paulinas & Paulus, 2007. 301 p.

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5. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação (Libertatis Nuntio). S P, Loyola, 1986.134 p

6. __________, Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação (Libertatis Conscientia). São Paulo, Loyola, 1986. 57 p.

7. CONSTITUIÇÃO Pastoral Gaudium et Spes. In COMPÊNDIO do Vaticano II; 6ª. ed. Petrópolis, Vozes, 1980. P. 141-256

8. CONSTITUIÇÃO Dogmática Lumen Gentium. In COMPÊNDIO do Vaticano II; 6ª. ed. Petrópolis, Vozes, 1969. P. 37-113.

9. CONSTITUIÇÃO Dogmática Dei Verbum. In COMPÊNDIO do Vaticano II; 6ª.. ed. Petrópolis, Vozes, 1969. P 119-139.

10. DECLARAÇÃO Nostra Aetate. In COMPÊNDIO do Vaticano II; 6ª. ed.. Petrópolis, Vozes, 1969. P. 617-625.

11. DECRETO Unitatis Redintegratio. In COMPÊNDIO do Vaticano II; constituições, decretos, declarações. 6a. ed. Petrópolis, Vozes, 1969. Coord. geral Frederico Vier. P. 307-332. Petrópolis, Vozes, 1969. P. 307-332.

12. DENZINGER, Henricus (ed.) & SCHMETZER, Adolfus (revis. et notae), Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. Ed. XXXVI, emendata. Barcinone, Friburgi Brisgoviae et Romae, Herder, 1976. 954 p.

13. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Redemptor Hominis. 5ª. ed. São Paulo, Paulinas, 1990. (Série A Voz do Papa n. 90). 96 p.

14. __________, Exortação apostólica pós-sinodal sobre vocacão e missão dos leigos na Igreja e no mundo Christifideles Laici. 2ª. ed. Petrópolis, Vozes, 1989. (Documentos Pontifícios n. 225). Trad. Tipografia Poliglota Vaticana. 168 p.

15. __________, Carta-encíclica Dives in Misericordia. Petrópolis, Vozes, Petrópolis, 1980 (Documentos Pontifícios n. 193). Trad. Poliglota Vaticana. 64 p

16. __________, Evangelii Nuntiandi; a evangelização no mundo contemporâneo, apresentação didática, São Paulo, Loyola, 1976. 71p.

17. Missa da Noite do Natal do Senhor; oração sobre as oferendas. In MISSAL Romano. Restaurado por decreto do Sagrado Concílio Ecumênico Vaticano II e promulgado e promulgado pela autoridade do Papa Paulo VI. Trad. portuguesa da 2ª. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. São Paulo, Paulinas, 1992. p. 412.