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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Aline Jurca Zavaglia Vicente Alves
Saúde, direitos humanos e proteção judicial:
aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento
Mestrado em Direito
São Paulo
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Aline Jurca Zavaglia Vicente Alves
Saúde, direitos humanos e proteção judicial:
aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito, na área de concentração de Direitos
Humanos, sob a orientação do Professor Doutor
Motauri Ciochetti de Souza.
São Paulo
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Aline Jurca Zavaglia Vicente Alves
Saúde, direitos humanos e proteção judicial:
aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito, na área de concentração de Direitos
Humanos, sob a orientação do Professor Doutor
Motauri Ciochetti de Souza.
Aprovado em: ____/____/____.
Banca Examinadora
Professor Doutor Motauri Ciochetti de Souza (Orientador).
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Julgamento _________________________________ Assinatura__________________
Professor Doutor Vidal Serrano Nunes Junior Instituição: PUC/SP
Julgamento _________________________________ Assinatura__________________
Professor Doutor Gianpaolo Poggio Smanio Instituição: Mackenzie
Julgamento _________________________________ Assinatura__________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Laura e à Luisa, as mais lindas flores do jardim da minha vida.
Vocês são as minhas maiores inspirações na luta por um mundo melhor e mais justo.
Ao Emerson, pelo seu incentivo em mais esse desafio e dedicação à nossa
família enquanto me ausentei para os estudos. Obrigada por compartilhar comigo sua
sólida compreensão do sistema de saúde e pelas reflexões conjuntas sobre suas
interfaces com o Direito. A você, todo o meu amor e consideração.
Aos meus pais, Regynaldo e Carolina, que abriram meus caminhos, me
ensinaram os valores da vida e me deram o exemplo forte de dedicação e de trabalho.
Ao meu irmão Regynaldo Neto, meu primeiro professor na escola da vida.
À Carol, irmã que a vida me trouxe de presente.
Ao Pedro, Rafael e Marina, sobrinhos queridos os quais amo profundamente.
Ao Luis Felipe, companheiro de trabalho e de estudos que, no melhor sentido da
palavra amizade, sempre esteve ao meu lado desde nosso ingresso no Ministério Público
do Estado de São Paulo.
Ao professor Motauri, profundo conhecedor dos direitos humanos e dos
interesses difusos e coletivos, que me convenceu a desafiar a trilha acadêmica e muito
me auxiliou na confecção deste trabalho.
Ao Ministério Público do Estado de São Paulo, instituição que escolhi para
trabalhar e que me encanta todos os dias na promoção real dos direitos humanos. No
exercício das funções de Promotora de Justiça vivenciei experiências notáveis que me
permitiram refletir sobre a verdadeira função do Direito e sobre seu papel na
concretização do direito à saúde.
RESUMO
O presente estudo trata do direito à saúde enquanto direito humano, previsto em tratados
internacionais com o propósito de reduzir desigualdades. A partir de pesquisa sobre a
evolução histórica geracional de direitos humanos, propõe-se o estudo do direito à saúde
sob os enfoques evolutivos de primeira, segunda e terceira gerações, os quais revelam
seus aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento. Essa cisão conceitual busca
compreender as melhores estratégias de se concretizar o direito à saúde. Resgatam-se os
aspectos históricos do direito à saúde, os mecanismos destinados a sua proteção e os
elementos que norteiam a compreensão do seu conteúdo. Constata-se que pela via
judicial as respostas são distintas de acordo com os aspectos do direito à saúde
envolvidos e que sozinha a via judicial não basta para a suficiente tutela do direito
humano à saúde. São estudadas, então, outras vias que se somam ao controle judicial na
proteção do direito à saúde, como o controle social, a mediação e os mecanismos
internacionais, concluindo que para melhores resultados sociais é importante prestigiar
os aspectos coletivos e de desenvolvimento da saúde, o que não corresponde às
respostas judiciais encontradas nas ações judiciais em que se postula o direito à saúde
no Brasil.
Palavras-chave: Direito à saúde. Saúde pública. Direitos humanos. Proteção judicial.
Desenvolvimento. Judicialização da saúde.
ABSTRACT
The present study is focused on the right to health as a human right, provided in
international treaties with the purpose of reducing inequalities. Based on research on the
generational historical evolution of human rights, it is proposed to study the right to
health under the evolutionary approaches of first, second and third generations, which
reveal their individual, collective and developmental aspects. This conceptual split seeks
to understand the best strategies to achieve the right to health. The historical aspects of
the right to health were rescued as well as the mechanisms designed for their protection
and the elements useful to understand its contents, and it was verified that the judicial
responses are different according to the aspects of the right to health involved and that
the judicial process alone is not enough for sufficient protection of the human right to
health. Other ways that are added to judicial control for the protection of the right to
health, such as social control, mediation and international mechanisms, are studied and
it is concluded that for better social results it is important to emphasize development
aspects and the collective aspects of health, which does not correspond to the judicial
responses found in lawsuits in which the right to health in Brazil is postulated.
Keywords: Right to health. Public health. Human rights. Judicial protection.
Development. Judicialization of health.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 08
2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS SOCIAIS 12
2.1 Gerações de direitos humanos 12
2.2 Características dos direitos humanos 15
2.3 Direitos humanos e direitos fundamentais 16
2.4 Direitos sociais 18
3 DIREITO À SAÚDE 24
3.1 Saúde: evolução legislativa no plano internacional 27
3.2 Saúde: evolução legislativa no direito brasileiro 37
3.3 Conceito de direito à saúde 41
3.4 Saúde e direitos humanos 46
4 CONTROLE JUDICIAL 49
5 TRIPLO ASPECTO DO DIREITO À SAÚDE 56
5.1 Aspectos individuais 59
5.1.1 Ações individuais de saúde 62
5.2 Aspectos coletivos 69
5.2.1 Sistema de proteção de interesses difusos e coletivos 74
5.2.2 Ações coletivas de saúde 77
5.3 Aspectos de desenvolvimento 82
5.3.1 Concretização do direito a saúde enquanto instrumento
de desenvolvimento 91
6 OUTRAS FORMAS DE IMPLEMENTAR DIREITOS SOCIAIS 94
6.1 Controle social 95
6.2 Justiça internacional 97
6.3 Mediação 99
7 CONCLUSÃO 104
REFERÊNCIAS 106
8
1 INTRODUÇÃO
O direito à saúde, corolário do direito à vida, é um direito humano. Surgiu na segunda
geração de direitos do homem como um direito social e tem previsão em diversos tratados
internacionais, além de ser um direito expresso na Constituição Federal de 1988.
Trata-se de um direito de conteúdo complexo. Com o objetivo de aprofundar as
estratégias para sua proteção, neste estudo propõe-se a cisão conceitual em três vertentes, as
quais foram baseadas na análise da evolução geracional de direitos humanos. Essas vertentes,
evidentemente, estão interligadas e são interfaces de um mesmo bloco. Mas, quando
examinadas separadamente, permitem melhor compreensão sobre os diversos estágios de
efetivação do direito em benefício das pessoas e da sociedade.
O conteúdo jurídico do direito à saúde tem três vertentes essenciais: I) um aspecto
individual ligado unicamente à pessoa; II) um aspecto coletivo que abrange toda a sociedade;
III) um aspecto de desenvolvimento humano.
Esses aspectos se baseiam na perspectiva evolutiva dos direitos humanos e têm por
objeto o direito material, sem correspondência direta com o sistema de tutela processual
desses direitos, tal como previsto pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do
Consumidor.
O aspecto individual, focado na pessoa, refere-se ao seu máximo e melhor bem-estar.
É o direito a manter-se vivo, por meio das medidas necessárias para não adoecer e se manter
saudável. É, também, o direito a manter-se vivo com dignidade, mediante providências que
possam garantir o tratamento e diminuir o sofrimento em caso de doenças. Parte do princípio
de que não existem apenas doenças, mas pessoas doentes com peculiaridades individuais, e,
assim, busca o melhor atendimento possível para cada pessoa.
O aspecto coletivo enfatiza a saúde como um direito da sociedade. Essa perspectiva
parte do pressuposto de que saúde é direito de todos e se baseia no fato de que a saúde de uns
interfere na saúde de outros. Tem como principal característica o direito de todos a não
adoecer por causas evitáveis. É bastante dependente de medidas preventivas de doenças e de
providências tendentes a reduzir agravos mas também envolve evidentemente o tratamento de
doenças curáveis. Fundamenta-se em políticas públicas de saúde, que devem ser construídas
pelo Estado nos moldes determinados pelo direito respeitando-se os conhecimentos
cientificamente comprovados da área de saúde. Em suma, é a chamada saúde pública.
O aspecto de desenvolvimento busca elevar os níveis de qualidade de vida da
população e tem fortes marcas globais, especialmente visando reduzir a desigualdade entre as
9
pessoas. O desenvolvimento contém a premissa de bem-estar social e não se limita ao
crescimento econômico, de maneira que a elevação em patamares de desenvolvimento social
(assim como o desenvolvimento político) é reconhecida internacionalmente como um passo
indispensável em direção à paz e à segurança dentro das nações.
Esses três aspectos contêm uma escala crescente de titularidade: um individual, outro
difuso e outro de desenvolvimento mais abrangente em relação aos dois anteriores. A
diferença na titularidade demonstra os diferentes estágios de concretização do direito e a
possibilidade da implementação progressiva de medidas para seu adimplemento.
A proteção judicial é uma importante forma de concretizar direitos humanos tanto que
é considerada instrumental pelos mais importantes tratados de direitos humanos vigentes. O
mecanismo judicial acessível ao indivíduo é uma das formas idealizadas pelo sistema de
proteção de direitos humanos para efetivá-los e cumpre distinto papel para garantia da saúde
como um direito humano.
O direito à saúde, conforme preconizam as regras vigentes, é sindicável pela via
judicial e sujeito ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. No entanto, seus
diversos aspectos geram respostas judiciais diversas.
No aspecto individual, o mecanismo judicial é altamente eficiente e tem se revelado
protetivo ao indivíduo porque as medidas postuladas judicialmente pelos pacientes, em regra,
são obtidas por ordens judiciais imperativas que determinam providências materiais visando
atender às necessidades individuais específicas prescritas pelo sistema de saúde. A via é
eficiente e útil tanto em ações propostas em face do Estado quanto em ações privadas
propostas em face de planos e seguros de saúde.
No aspecto coletivo, o mecanismo judicial está disponível por meio do sistema de
proteção de interesses difusos e coletivos, desenvolvido para tutelar interesses que atingem
titulares indetermináveis e cujo objeto é indivisível. No entanto, no que diz respeito às
questões de saúde pública, por diversas razões que serão objeto deste estudo, a via judicial
não tem sido suficiente para se concretizar o direito.
No aspecto de desenvolvimento, por insuficiência da via processual atualmente
existente, sua efetivação nos parece a mais tormentosa pelos meios judiciais, de modo a exigir
o estudo de outras formas de concretização do direito.
Assim, quanto mais difuso é o aspecto do direito humano à saúde, mais restrita é sua
proteção judicial na sistemática vigente.
Diante dessa conclusão, emerge outra constatação aparentemente contraditória: quanto
mais abstrata a vertente do direito à saúde, sua concretização é mais dependente de ação do
10
Estado e menor é a margem do indivíduo para garantir sua efetivação. Em sentido oposto, no
aspecto individual da saúde, a pessoa até tem meios para buscar por caminhos próprios o
socorro necessário, especialmente porque a via particular é disponível para atender às
necessidades individuais independentemente de ação do Estado. Nos aspectos coletivos, por
outro lado, as ações para concretizar o direito são pouco disponíveis ao cidadão e dependem
bastante da ação do Estado. Um indivíduo sozinho, por exemplo, não formula políticas de
prevenção de doenças e depende de atuação estatal para sua consecução. Além disso, nos
aspectos relacionados ao desenvolvimento, há pouco disponível para ação particular do
indivíduo porque a grande atuação para efetivar o direito à saúde com marcas globais depende
do Estado e dos esforços da comunidade internacional.
Sem pretender esgotar o assunto, e sob o enfoque do direito material, o estudo aponta
que a principal estratégia concreta utilizada pelos cidadãos para efetivar o direito à saúde é
judicial e individual. No entanto, o enquadramento do direito à saúde no desenho dos tratados
de direitos humanos que cuidam do assunto depende de prestígio aos aspectos coletivos e de
desenvolvimento.
Embora indispensável à garantia de todos os direitos humanos, nem sempre a
estratégia judicial é suficiente para proteger todos os direitos em sua integralidade. Apesar de
seu papel fulcral no sistema de proteção de direitos, sozinha a via judicial não tem se revelado
o bastante para concretizar os direitos já reconhecidos como direitos humanos. Assim, é
importante avaliar a existência de outros instrumentos de concretização dos direitos humanos
que possam ser aliados a ela para a tutela satisfatória do direito.
A partir desse resgate, são estudadas as demais estratégias para concretizar o direito à
saúde que podem ser somadas ao controle judicial: o controle social, os mecanismos
internacionais e a mediação.
Registre-se, por fim, que o presente estudo não aproxima as lentes em relação ao tema
“assistência farmacêutica”, que é o fornecimento de remédios pelo sistema de saúde, e não se
restringe ao estudo das ações com pedidos de medicamentos em face do Poder Público porque
parte do pressuposto de que o atendimento do direito à saúde na ótica dos direitos humanos
extrapola muito o simples fornecimento de um fármaco, por mais moderno que seja e por
mais elevado que seja seu custo. Conforme advertem as estudiosas da área sanitária Tatiana
Aragão Figueiredo, Vera Lúcia Edais Pepe e Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro:
“fornecimento do medicamento não se traduz necessariamente em garantia da saúde do
indivíduo. Este fenômeno pode ser analisado sob diferentes perspectivas, inclusive a sanitária,
11
entendida aqui como os desfechos sobre a saúde dos indivíduos que demandam estes
medicamentos”.1
1 FIGUEIREDO, Tatiana Aragão; PEPE, Vera Lucia Edais; OSORIO-DE-CASTRO, Claudia Garcia Serpa. Um enfoque
sanitário sobre a demanda judicial de medicamentos. Physis, Rio de Janeiro, v.20, n.1, p.101-118, 2010.
12
2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS SOCIAIS
2.1 Gerações de direitos humanos
A convivência pacífica em sociedade é a finalidade precípua do Direito, que busca, por
meio da definição de regras, organizar a convivência humana e evitar conflitos.
Essas regras de convivência emanam do Estado de Direito, conforme ensina Manoel
Gonçalves Ferreira Filho:
O Poder Político está preso e subordinado a um Direito Objetivo, que exprime o
justo [...] E, ademais, esse poder há de comandar os homens por meio de leis que,
para merecerem o nome, hão de ter os caracteres de generalidade (aplicar-se a todos
os casos iguais) e impessoalidade (sem fazer acepção de pessoas).2
A implementação e o reconhecimento de direitos humanos são os primeiros passos
para a convivência harmônica em sociedade. Norberto Bobbio anuncia a correlação entre
direitos humanos, democracia e paz: “direitos do homem, democracia e paz são três
momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos
e protegidos não há democracia; sem democracia, não existem condições mínimas para a
solução pacífica dos conflitos”.3
Os direitos do homem são históricos, “nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”, prossegue Bobbio.4
A evolução dos direitos foi inicialmente classificada em três gerações. Embora a
classificação seja apenas didática – porque na prática a relação entre os direitos é de
complementaridade – seu estudo é importante para a compreensão do atual estágio dos
direitos humanos. O professor inglês Thomas Marshall, na década de 1960, ao estudar o
desenvolvimento da cidadania na Grã-Bretanha, definiu sua formação a partir de três
elementos: civil, político e social. Os direitos civis foram objeto da primeira onda de
conquistas, seguidos pelos direitos políticos e, então, pelos direitos sociais. Para Thomas
Marshall,
O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual –
liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade
e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. [...] O elemento político deve se
entender como o direito de participar no exercício do poder político, como um
2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.18. 3 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.01. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.05.
13
membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos
membros de tal organismo. [...] O elemento social se refere a tudo o que vai desde o
direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar,
por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os
padrões que prevalecem na sociedade.5
Marshall destaca que esses elementos surgiram em momentos históricos distintos e
marca o século XVIII em relação aos direitos civis, o século XIX em relação aos direitos
políticos e o século XX em relação aos direitos sociais.
As gerações de direitos estão “atreladas ao momento histórico em que foram
reconhecidos”,6 segundo explica Vidal Serrano Nunes Junior. Elas se somam às evoluções
históricas, por isso, a relevante advertência de Gilmar Mendes e Paulo G. G. Branco: “a
sucessão de gerações de direitos não significa dizer que os direitos previstos em um momento
tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte”.7
Os direitos de primeira geração são contemporâneos ao fim das monarquias absolutas
e são limitadores do poder do Estado. Primam pela abstenção de condutas pelo Estado em
prol dos direitos individuais e por isso são consubstanciados essencialmente nos direitos de
liberdade e de personalidade. Sintetizam-se com os direitos civis e políticos. São chamados
também de direitos de defesa, conforme apontam Gilmar Mendes e Paulo G. G. Branco.8
Em perspectiva histórica, os direitos de primeira geração decorrem das revoluções
americana e francesa e foram inicialmente assinalados na Declaração de Direitos do Bom
Povo de Virgínia (1776) e na Declaração Francesa (1789). Essas cartas possuem suma
importância, conforme observa Motauri Ciocchetti de Souza, por “imunizarem os
denominados direitos fundamentais, retirando do arbítrio do legislador o poder de suprimi-los
ou alterá-los consoante o seu entendimento”.9
A segunda geração de direitos contempla os direitos sociais, econômicos e culturais.
Eles se fundamentam nas noções de igualdade entre as pessoas e se caracterizam pela
necessidade de medidas redutoras de desigualdades, especialmente aquelas decorrentes do
modelo econômico. A realização prática desses direitos depende de ação do Estado, de modo
que “a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva [...] exige ampliação
dos poderes do Estado”10
, de acordo com a ponderação de Bobbio.
5 MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p.63. 6 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, estratégias de positivação e exigibilidade
judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p.43. 7 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.156. 8 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.178. 9 SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ministério Público e o princípio da obrigatoriedade. São Paulo: Método, 2007, p.17. 10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.67.
14
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, por seu turno, assevera: “como as liberdades
públicas, os direitos sociais são direitos subjetivos. Entretanto, não são meros poderes de agir
– como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas poderes de exigir. São direitos
‘de crédito’”.11
Nessa ordem de ideias, enquanto os direitos de primeira geração inibem os poderes do
Estado, os direitos de segunda geração ampliam estes poderes. As duas categorias de direitos
– de primeira e de segunda geração – envolvem investimentos públicos, de maneira que não é
correta a assertiva de que a principal característica dos direitos sociais é que eles envolvem
custos. É verdade que proporcionar a infraestrutura necessária à prestação dos direitos sociais
e sua efetiva implementação envolvem aportes financeiros relevantes e que os próprios
instrumentos legais garantidores desses direitos admitem a sua implementação progressiva
por esse motivo. Mas também é verdade que a implementação dos direitos de primeira
geração envolve custos. Assim como prestar saúde e educação depende de investimentos do
Estado, garantir segurança e realizar eleições também envolve gastos públicos. Os custos dos
direitos – sejam eles de primeira, de segunda ou até mesmo de terceira geração –
correspondem ao adimplemento de obrigações estatais em benefício dos seres humanos e têm
retorno social imensurável economicamente porque tendentes a garantir a convivência
harmônica da sociedade.
Por outro lado, os direitos de terceira geração englobam os direitos essencialmente
coletivos, baseados na noção de gênero humano. Eles nasceram no período pós Segunda
Guerra Mundial e se baseiam nas noções de solidariedade entre os povos. Seu objetivo,
segundo Vidal Serrano Nunes Junior, é “a preservação do ser humano como parte da
humanidade”. Como exemplos, temos “o direito à paz no mundo, o direito ao
desenvolvimento por parte dos países subdesenvolvidos e o direito à preservação do
patrimônio comum da humanidade”,12
o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a saúde
pública, a probidade administrativa, o respeito à diversidade sexual, a inclusão social, a
proteção do consumidor, da infância e juventude, do idoso e da pessoa com deficiência, dentre
outros.
Paulo Bonavides, em posição minoritária na doutrina sobre gerações de direitos,
acrescenta uma quarta geração de direitos ligados à globalização:
11 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.66. 12 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, estratégias de positivação e
exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p.47.
15
[...] são direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o
direito ao pluralismo. Delas depende a concretização da sociedade aberta para o
futuro, em sua dimensão máxima da universalidade, para a qual parece o mundo
inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.13
Bonavides propõe, ainda, uma quinta geração de direitos, na qual inclui o direito à paz,
“no seu caráter universal, em sua feição agregativa de solidariedade, em seu plano
harmonizador de todas as etnias, de todas as culturas, de todos os sistemas, de todas as
crenças que a fé e a dignidade do homem propugnam, reivindicam, concretizam e
legitimam”.14
Bobbio, por seu turno, insere na classificação da quarta geração de direitos aqueles
“referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá
manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”.15
Atualmente, há importantes documentos garantidores de direitos humanos que
consagraram os direitos do homem de acordo com as linhas geracionais majoritárias de
primeira, segunda e terceira dimensão. A Declaração Universal dos Direitos Humanos em
1948 foi ampla e definidora da mudança de paradigma normativo. Em 1966 vieram os dois
pactos sobre direitos civis e políticos e sobre direitos econômicos, sociais e culturais. Embora
consolidados em documentos distintos, prevalece a indivisibilidade dos direitos humanos, aos
quais se somam os documentos internacionais subsequentes.
O movimento contemporâneo é pela reconstrução dos direitos humanos, conforme
explica Flávia Piovesan:
[...] no momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no
momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor
da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como
paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável.16
2.2 Características dos direitos humanos
As principais características dos direitos humanos são a historicidade, a
universalidade, a limitabilidade e a concorrência.
A historicidade é a marca da evolução dos direitos humanos ao longo do tempo, de
forma paulatina e aglutinadora. O reconhecimento de novos direitos não elimina as conquistas
13 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.571. 14 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.591. 15 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.5. 16 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.37.
16
anteriores e a elas é somado, compondo o arcabouço jurídico que fundamenta a proteção da
pessoa por sua característica humana.
A universalidade significa a abertura do direito a todos os seres humanos. Direito
universal é aquele sem limitação subjetiva e que pertence a todos os homens, mulheres,
crianças, jovens, idosos, integrantes de maiorias ou minorias, etc. A universalidade dos
direitos humanos tem respaldo expresso na Declaração de Viena de 1993, documento
internacional que consagrou um programa de ação para proteger os direitos humanos, o qual
prevê em seu artigo 5º: “todos os direitos do homem são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados”. A Declaração de Viena explicitou a unidade dos
direitos humanos que tinham sido cindidos em dois pactos em 1966 e definiu que cabe à
comunidade internacional considerar “globalmente os direitos do homem, de forma justa e
equitativa e com igual ênfase”.
Os direitos humanos têm a característica da limitabilidade porque não existem direitos
considerados absolutos. Os direitos humanos são heterogêneos e há hipóteses de colidência
que justificam regras de sopesamento para solucionar eventuais conflitos, baseados na mínima
restrição de direitos e na máxima efetividade dos direitos humanos. Nesse sentido, explica
Vidal Serrano Nunes Junior:
Muito embora não exista propriamente hierarquia entre as normas constitucionais
definidoras de direitos fundamentais e as que consagram outros valores
constitucionais, a colisão deve ser equacionada de duas formas distintas: 1) se
houver colisão entre dois direitos fundamentais, o intérprete deve, aplicando o
princípio da cedência recíproca, buscar um ponto de convivência dos dois direitos,
sem que um anule o outro e sem que um seja ampliado e outro diminuído; 2) caso
haja colisão entre um direito fundamental e um direito consagrador de outro valor
constitucional, deve o intérprete ampliar o direito fundamental e restringir o direito
constitucional não fundamental.17
A característica da concorrência significa que diversos direitos humanos podem ser
exercidos de uma só vez, concomitantemente.
2.3 Direitos humanos e direitos fundamentais
Os direitos humanos tais como atualmente definidos foram uma importante resposta às
atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Eles foram consolidados em
tratados internacionais e internalizados nos sistemas legais dos países signatários.
Teoricamente, há distinção conceitual entre direitos humanos e direitos fundamentais.
17 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, estratégias de positivação e
exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p.41.
17
Alguns definem que a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais
decorre do documento legal em que estão inseridos. Se decorrente de tratado internacional
seria direito humano e, se decorrente da Constituição Federal, seria direito fundamental.
Nesse sentido, direito humano seria gênero enquanto direito fundamental seria sua espécie
positivada pelos países no seu direito interno. Em outras palavras, direitos humanos são
construções sociais de caráter histórico enquanto direitos fundamentais estão estabilizados no
ordenamento jurídico. Fábio Konder Comparato defende essa linha:
A vigência de direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e
tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à
dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não.
A doutrina jurídica contemporânea [...] distingue os direitos humanos dos direitos
fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos
consagrados pelo Estado mediante normas escritas.18
O foco de proteção no ser humano é o mesmo nos conceitos de direitos humanos e de
direitos fundamentais, mas as funções que eles cumprem no sistema são diferentes de acordo
com a doutrina de Vidal Serrano Nunes Junior. Para ele, direitos fundamentais cumprem
função normativa e prescrevem direitos exigíveis na via judicial enquanto direitos humanos
trazem a ideia de que a lesão a um direito fundamental não deve ficar adstrita à ordem de um
país e tem importância transnacional:
Uma forte tendência doutrinária caminha no sentido de adstringir a expressão
direitos fundamentais à designação daqueles positivados em nível interno, deixando
a expressão direitos humanos para a identificação dos direitos constantes das
declarações e tratados internacionais, bem como para identificar os direitos que,
voltados à proteção da liberdade, da igualdade e da fraternidade, não tenham
granjeado incorporação pelo sistema jurídico de um país [...] Os conceitos se
distanciam quando enfocados a partir da função que devem cumprir no sistema. Os
direitos fundamentais, hospedados na ordem interna, asseguram direitos e concorrem
para a consagração de um modelo de Estado. Em outras palavras, cumprem função
normativa em cada Estado, prescrevendo direitos sindicáveis, inclusive por via
judicial. Os direitos humanos, por sua vez, recuperam a ideia de direitos naturais do
ser humano, recebendo assento, de regra, nas declarações e convenções
internacionais, forjando a ideia de que a lesão a um direito fundamental do ser
humano não é questão que deve ficar adstrita à ordem interna de um país, mas tem
importância transnacional. Nesse sentido, os direitos humanos remetem a um
esforço de criação de um sistema transnacional, supraconstitucional, que tem por
escopo policiar e fazer cumprir as regras protetivas da dignidade em todos os
Estados.19
Motauri Ciocchetti de Souza, por seu turno, destaca a maior amplitude dos direitos
humanos em relação aos direitos fundamentais:
18 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.239. 19 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, estratégias de positivação e
exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p.23-24.
18
O conceito de direitos humanos é mais amplo quando em cotejo com o de direitos
fundamentais, posto abarcar direitos naturais e valores básicos em constante
mutabilidade e que, em cada momento histórico, concentram as exigências de
dignidade, liberdade e igualdade humanas, que devem ser reconhecidas por todas as
nações, ao passo que os últimos expressam as normas positivadas pelo ordenamento
jurídico interno, notadamente pela Constituição, que lhes confere maior grau de
estabilidade e de segurança jurídica.20
O Brasil incorporou em sua ordem jurídica os mais importantes tratados de direitos
humanos vigentes no mundo. Por isso, em termos de aplicabilidade normativa, no direito
brasileiro a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais tem mais importância
teórica do que prática.
Na ordem constitucional brasileira, há amplo rol de direitos fundamentais
reconhecidos pela Carta Magna. Os tratados de direitos humanos são incorporados ao direito
nacional com o status de emenda constitucional (Constituição Federal, artigo 5º, §3º21
). Eles
não podem ser abolidos ou suprimidos por meio de emenda constitucional, o que lhes confere
o patamar de cláusulas pétreas (Constituição Federal, artigo 60, §4º, IV). Vigem sob o mais
alto patamar normativo de modo a pautar a formação de todo o ordenamento jurídico e de
modo a nortear toda interpretação jurídica.
2.4 Direitos sociais
A desigualdade social é um fator desencadeador de conflitos. Em sociedades com
distribuição mais homogênea de direitos, observa-se menos litígios entre os cidadãos.
Observa-se também que a igualdade social tende a evoluir em proporção diferente do
crescimento econômico, o que indica a necessidade de se adotar medidas tendentes a fomentar
a igualdade material.
No âmbito do Direito, dentre as medidas redutoras de desigualdades, destaca-se o
atendimento aos direitos sociais, especialmente importantes na distribuição da justiça social e
na pacificação de conflitos da sociedade.
Historicamente, os direitos sociais tiveram início nos primórdios do capitalismo
industrial “diante da constatação da incapacidade do Estado absenteísta em garantir
convivência livre e harmoniosa”,22
de acordo com a afirmação de Vidal Serrano Nunes Junior.
20 SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ministério Público e o princípio da obrigatoriedade. São Paulo: Método. 2007, p.26. 21 “Artigo 5º §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais”. 22 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, estratégias de positivação e
exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p.50.
19
Gilmar Mendes e Paulo G. G. Branco também reconhecem que nesse momento histórico “o
ideal absenteísta do Estado liberal não respondia satisfatoriamente às exigências do
momento”. Segundo eles, foi, então, construído o papel do Estado na realização da justiça
social com o objetivo de “estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação
corretiva dos Poderes Públicos”.23
Carolina Zockun constata que “o Estado mínimo liberal, no afã de cumprir seu papel
de mero expectador da vida social, não assegurava condições dignas à maior parte da
população” e que “a transformação trazida pela Revolução Industrial acentuou as
desigualdades sociais”.24
E pondera:
Uma mobilização de massas pela reivindicação de direitos trabalhistas, notadamente
no final do século XIX e início do século XX, passou a exigir do Estado uma
interferência positiva na ordem social, para garantir condições mínimas de existência
do cidadão. Daí surgiu uma nova categoria de direitos, a dos direitos fundamentais
sociais. Dentre esses ‘novos’ direitos, destaque-se: o direito à greve, à
sindicalização, a melhores condições de trabalho, à educação, à saúde e à
habitação.25
Surge a intervenção do Estado no domínio social baseada no princípio da igualdade
material e não apenas na igualdade formal, conforme explica Carolina Zockun:
É com fundamento no princípio da igualdade material que se alavanca uma profunda
alteração na estrutura do Estado, passando este a adotar uma postura ativa,
intervindo na ordem social mediante a implementação de políticas públicas que
visam a fornecer medidas concretas para a melhoria das condições de vida da
população.26
Em igual sentido, sustenta Motauri Ciocchetti de Souza:
A igualdade cartesiana, teoricamente proporcionada pela natureza abstrata da norma
jurídica, no entanto, culminou por gerar forte aumento das desigualdades sociais.
Com efeito, o sistema ditatorial anterior – em que o Estado era onipotente,
onipresente e onisciente – acabou sendo substituído por outro, de similar magnitude,
estratificado por classes sociais e vazado no poder econômico. Assim, o indivíduo
não possuía mecanismos de defesa em face das forças econômicas de entidades
privadas, uma vez que ao Estado não era permitido intervir nas citadas relações.27
Nesse contexto, o Estado foi levado a rever seu papel e evoluiu de Estado de Direito
para Estado Social de Direito.
23 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6.ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p.155. 24 ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros, 2009, p.18. 25 ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros, 2009, p.19. 26 ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros, 2009, p.19. 27 SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ministério Público e o princípio da obrigatoriedade. São Paulo: Método. 2007, p.29.
20
O Estado de Bem-Estar Social é também conhecido por welfare state, expressão em
inglês influenciada pelo plano econômico chamado new deal (novo acordo), formulado pelo
presidente americano Franklin Roosevelt após a crise econômica de 1929. Tal como
concebido inicialmente, o Estado de Bem-Estar Social também “não atingiu os objetivos
propostos”, razão pela qual se apurou ser “imprescindível a participação popular na
formulação e na gestão das políticas públicas, único modo de assegurar-se a efetivação da
igualdade”28
, conforme explica Motauri Ciochietti de Souza. Surgiu, então, o Estado Social
Democrático de Direito.
Influenciado pelos modelos econômicos vigentes, o Direito foi conclamado a
minimizar desigualdades e contribuir para a justiça social. Emergiu, assim, a segunda geração
de direitos humanos, consolidada nos direitos econômicos, sociais e culturais.
Os direitos sociais despontam, pois, encadeados aos direitos de primeira geração e em
papéis relevantes para a própria fruição dos direitos de liberdade característicos da primeira
geração. A Declaração de Teerã de 1968, reconhecendo a indivisibilidade dos direitos
humanos e a importância dos direitos econômicos, sociais e culturais para o gozo dos direitos
civis e políticos, assentou: “como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são
indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos,
sociais e culturais resulta impossível”.
Nessa linha, os direitos sociais são direitos a prestações estatais que garantem o gozo
das liberdades porque buscam favorecer as condições materiais necessárias ao proveito
efetivo dessas liberdades. O exemplo de Maria Paula Dallari Bucci é bastante ilustrativo sobre
os direitos sociais: “São direitos-meio, isto é, direitos cuja principal função é assegurar que a
pessoa tenha condições de gozar os direitos individuais de primeira geração. Como poderia,
por exemplo, um analfabeto exercer plenamente o direito à livre manifestação do
pensamento?”29
Os direitos sociais sofreram importantes redefinições após o fim da Segunda Guerra
Mundial quando se firmou o entendimento de que o adimplemento dos direitos humanos
dependia de progresso social e não apenas de regras garantidoras dos direitos de liberdade.
A proteção de direitos sociais se aliou às ideias de desenvolvimento econômico, como
destacado por David Trubeck. Iniciou-se na década de 1960 o movimento do Direito &
Desenvolvimento (D&D), que marcou o império do direito como condutor de alterações na
realidade econômica, política e social. Trubeck ainda alinhava que a proteção aos direitos
28 SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ministério Público e o princípio da obrigatoriedade. São Paulo: Método. 2007, p.31. 29 BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p.3.
21
sociais “envolve a crença de que o bem-estar individual resulta, em parte, de condições
econômicas, sociais e culturais”.30
Esse ponto também é levantado por Gilberto Bercovici:
O desenvolvimento é condição necessária para a realização do bem-estar social. O
Estado é, através do planejamento, o principal promotor do desenvolvimento. Para
desempenhar a função de condutor do desenvolvimento, o Estado deve ter
autonomia frente aos grupos sociais, ampliar suas funções e readequar seus órgãos e
estrutura. O papel estatal de coordenação dá a consciência da dimensão política da
superação do subdesenvolvimento, dimensão esta explicitada pelos objetivos
nacionais e prioridades sociais enfatizados pelo próprio Estado.31
Os direitos sociais no enfoque moderno defluem da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, a qual pressupõe a igualdade material como fundamento da liberdade: “a
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e
inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.32
Os direitos humanos inicialmente previstos na Declaração Universal de 1948 foram
consolidados nos Pactos de 1966, sobre direitos civis e políticos e sobre direitos econômicos,
sociais e culturais. Os dois tratados, que têm força normativa em direito internacional, contêm
os principais comandos jurídicos dos direitos humanos por meio de previsões juridicamente
vinculantes e obrigatórias, de maneira que “constituem referência necessária para o exame do
regime normativo de proteção internacional dos direitos humanos”33
, conforme o
entendimento de Flávia Piovesan:
Inobstante a elaboração de dois pactos diversos, a indivisibilidade e unidade dos
direitos humanos era reafirmada pela ONU, sob a fundamentação de que, sem
direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos civis e políticos só poderiam
existir no plano nominal e, por sua vez, sem direitos civis e políticos, os direitos
sociais, econômicos e culturais também apenas existiriam no plano formal.34
O pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais é o principal documento
internacional protetivo dos direitos sociais. Em seu preâmbulo, parte do pressuposto de que “o
relacionamento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus
direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo”. O preâmbulo ainda reconhece que liberdade e igualdade estão relacionadas: “o ideal
do ser humano livre, liberto do temor e da miséria não pode ser realizado a menos que se
30 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.197. 31 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2005, p.51. 32 Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. 33 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.176. 34 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.178-
179.
22
criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e
culturais, assim como de seus direitos civis e políticos”.35
O Pacto de 1966 é um documento amplo que envolve medidas redutoras de
desigualdade e que contempla direitos diferentes entre si, como a proteção ao trabalho, à
saúde e à educação. Vidal Serrano Nunes Junior constata a ‘assincronia’ desses direitos, cuja
implementação ora depende de atividade prestacional (dependente de prestação de serviços
públicos, como nos casos da saúde e educação) e ora depende de atividade normativa e
reguladora (intervindo em relações privadas para estabelecer regras como nos casos de
definição de questões trabalhistas).36
Em 2008 foi editado o Protocolo Facultativo ao Pacto sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, o qual instituiu mecanismos de denúncia individual pelas violações dos
direitos humanos enunciadas no Pacto. Por meio do protocolo, criou-se um Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais com a função de receber e examinar comunicações
de violações aos direitos econômicos, sociais e culturais.
Na ordem jurídica brasileira vigente, os direitos sociais encontram amplo respaldo na
Constituição Federal de 1988, a qual cuida dos direitos sociais desde o seu preâmbulo,
conforme previu a reunião da Assembleia Nacional Constituinte “para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”.
Os direitos sociais estão definidos no Capítulo II do Título II da Constituição Federal
(“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”). O artigo 6º dispõe que “são direitos sociais a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição”.37
A importância conferida pela Constituição da República aos direitos sociais a fez
incluir dentre os crimes de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem
contra o “exercício dos direitos políticos, individuais e sociais” (artigo 85, III).
A Constituição Federal também traz importante regra sobre os direitos sociais no
artigo 170, o qual determina que o Estado deva intervir na ordem econômica e na ordem
social com o compromisso de realização da ‘justiça social’.
O artigo 193 prescreve que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e
como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
35 Preâmbulo do Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. 36 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, estratégias de positivação e
exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p.63. 37 Redação de acordo com a Emenda Constituição n.90/2015.
23
Os comandos constitucionais atinentes aos direitos sociais, segundo Celso Antônio
Bandeira de Mello, são agrupados em três espécies:
a) algumas são concessivas de poderes jurídicos, os quais podem ser executados de
imediato, com prescindência de lei; b) outras são atributivas de direito a fruir,
imediatamente, benefícios jurídicos concretos, cujo gozo se faz mediante prestação
alheia que é exigível judicialmente, se negada; c) outras, que apenas apontam
finalidades a serem atingidas pelo poder público, sem indicar a conduta que as
satisfaz, conferem aos administrados, de imediato, direito de se oporem
judicialmente aos atos do Poder Público acaso conflitantes com tais finalidades.
O administrativista prossegue explicando que independentemente da estrutura
tipológica, as normas constitucionais referentes à justiça social “surtem, de imediato, o efeito
de compelir os órgãos estatais, quando da análise de atos ou relações jurídicas, a interpretá-los
na mesma linha e direção, estimativa adotadas pelos preceitos relativos à justiça social”.38
Além do efetivo reconhecimento dos direitos de segunda geração, a atuação do Estado
para diminuir desigualdades passou a reclamar atuação positiva e eficiente do Poder Público
para que esses direitos se concretizassem e efetivamente representassem a implementação da
cidadania. Esse movimento aproximou o Direito da Política, ciências que tradicionalmente
integram sistemas distintos. Nesse sentido, leciona Gianpaolo Smanio:
A relação entre direito e política ocupa há longo tempo papel central nos debates da
Ciência Política e da Ciência Jurídica. Preferimos vê-los como sistemas autônomos,
mas interdependentes, com uma relação bastante complexa dentro do sistema social,
que os abrange. Basta percebermos que as decisões políticas são exercidas e
realizadas através do direito, que os legitima e delimita, por sua vez.39
A aproximação entre Direito e Política solidificou o conceito de políticas públicas,
instrumento tendente a concretizar direitos de cidadania e cujo estudo será aprofundado
adiante, na ocasião do estudo do controle judicial.
A implementação de direitos sociais alterou posturas do Poder Judiciário, que passou a
assumir posições ativas e assecuratórias de direitos em situações conhecidas como ‘ativismo
judicial’, tema que também será estudado adiante no contexto do controle judicial.
38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais. São Paulo: Malheiros,
2015, p.56. 39 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legitimidade jurídica das políticas públicas: a efetivação da cidadania. In: (Coords.)
SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patricia Martins Tuma. O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo:
Atlas, 2013, p.5-6.
24
3 DIREITO À SAÚDE
O direito à saúde é corolário do direito à vida no sentido de que é direito do homem
nascer, viver e manter-se vivo tanto por meio de medidas tendentes a evitar doenças quanto
por meio de acesso a tratamentos que garantam a vida dentro da técnica científica
comprovadamente eficaz em caso de doenças.
Nas palavras de Geisa de Assis Rodrigues, “o direito à saúde é passaporte para a
potencialização dos atributos da vida” e “exercício pleno da dignidade da pessoa humana”.40
Embora o direito à vida seja considerado um direito de primeira geração, na categoria
dos direitos civis e políticos, o direito à saúde é considerado direito de segunda geração, na
categoria dos direitos sociais.
A distinção tem importantes reflexos na concretização prática do direito à saúde. O
direito à vida é premissa para o exercício de todos os outros direitos do homem e tem nuances
de abstenções estatais em respeito ao particular, com reflexos que impõem ao Estado o dever
de respeitar a vida de cada indivíduo. Por isso existem regras expressas de direitos humanos
para não se privar a vida de forma arbitrária e não se aplicar pena de morte. O direito à saúde,
por outro lado, é considerado direito social porque depende de prestações positivas do Estado,
que não apenas deve se abster de condutas que violem a vida, mas deve adotar
comportamentos positivos que garantam o direito a uma vida saudável. Esse sentido social
amplia o direito de se manter vivo e se liga à subsistência do ser humano com dignidade.
Por essa lógica, apesar de o direito à saúde ser intimamente ligado ao direito à vida, no
enfoque da evolução geracional de direitos humanos o fundamento é diverso: o direito à vida
enquanto direito de primeira geração, limita poderes do Estado e exige abstenções de
condutas que atentem contra a vida ao passo que o direito à saúde enquanto direito de segunda
geração amplia poderes do Estado e exige prestações materiais consubstanciadas em políticas
públicas protetivas da saúde.
O direito à vida, nos aspectos de direito de primeira geração e do Pacto dos Direitos
Civis e Políticos, não comporta interpretação restritiva de que ele vigora apenas em relação a
privações arbitrárias da vida. A interpretação ampliada é válida: com fundamento no direito à
vida, o Estado deve respeitar e proteger o direito à saúde.
40 RODRIGUES, Geisa de Assis. Direito sanitário. In: (Coord.). NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de direitos
difusos. 2.ed. São Paulo: Verbatim, 2012, p.308.
25
Assim, o direito à saúde possui dois aspectos positivos: no sentido da vida (direito de
primeira geração) e no sentido de prestações materiais protetivas da saúde (direito de segunda
geração).
Mas o direito à saúde tem também aspectos negativos: no sentido de abster-se de
condutas que violem a saúde, tais como, por exemplo, proibir pesquisas clínicas realizadas
sem o consentimento do paciente ou em pessoas incapazes (direito de primeira geração) e no
sentido da proibir retrocessos sociais, impondo ao Estado a manutenção de medidas já
adotadas que garantam o direito à saúde dos cidadãos (direito de segunda geração).
Por outro lado, direito à saúde não se resume aos aspectos de primeira e segunda
geração e avança como um direito que também pode se enquadrar na terceira geração. Ele tem
características que demonstram que a satisfação do direito de uma pessoa reflete
adimplemento do direito de todas as outras. Tem notas, também, que comprovam que uma
vez oferecido a uma pessoa, não se permite a exclusão de outras pessoas de seus benefícios. É
o que ocorre com os aspectos de vigilância sanitária e controle de doenças contagiosas, que
exemplificam os aspectos difusos do direito à saúde.
Além de prestar políticas públicas de saúde, principal obrigação estatal em relação à
saúde, o Estado deve assegurar condições para que os indivíduos exerçam seu direito à saúde,
adotando condutas que garantam sua adequada fruição, como, conforme o exemplo de
Lawrence Gostin, cumprindo seu dever de coibir discriminações por usuários dos sistemas
público e privado de saúde.41
A propósito, a Recomendação n.14 do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais destaca que o princípio da não discriminação nos serviços de
saúde é legalmente exigível em número considerável de jurisdições no mundo.42
Ele também
é previsto no artigo V, “d”, “IV” da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial.43
Em termos de conteúdo do direito à saúde, a Recomendação n.14 do Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais delineia o teor do direito à saúde explicitado no
Pacto de 1966 como “o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de
saúde física e mental”:
41 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.259. 42 Recomendação n.14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, p.18 (tradução livre). 43 “De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes comprometem-se a proibir e
a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada uma à igualdade perante a lei sem
distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: [...] e) direitos
econômicos, sociais culturais, principalmente: [...] IV) direito à saúde pública, a tratamento médico, à previdência social e
aos serviços sociais”.
26
O direito à saúde, como todos os direitos humanos, impõe três níveis de obrigações
aos Estados partes: obrigações de respeitar, proteger e prover. A obrigação de
respeitar requer medidas por parte do Estado para não interferir, direta ou
indiretamente, no gozo do direito à saúde. A obrigação de proteger requer a adoção
de medidas por parte do Estado para prevenir interferência de terceiros em relação à
saúde dos indivíduos. Finalmente, a obrigação de prover exige que o Estado adote
providências apropriadas nas áreas legislativa, administrativas, orçamentárias,
judiciais e prestacionais que possam asseguram a plena realização do direito à
saúde44
(tradução livre).
Diante das obrigações de ‘respeitar, proteger e prover’, verifica-se que violações do
direito à saúde, enquanto direito humano, podem ocorrer por ações ou omissões do Estado ou
de particulares.
O direito à saúde deve ser interpretado dentro da lógica da máxima efetividade das
normas constitucionais e por isso deve ser aplicado de forma moderna e compatível com a
melhor técnica científica. Sobre o tema, Luiz Manoel Fonseca Pires pondera:
O núcleo essencial e o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais
apenas se aperfeiçoam com a atualização das técnicas de cirurgia que asseguram ao
paciente o menor desgaste, menor risco e melhor recuperação. [...] O Judiciário, se
provocado, deve intervir para determinar à Administração Pública que assegure
atualização científica do dever de prestação da saúde, pois o núcleo essencial do
direito à prestação da saúde atinge um novo patamar a ser correspondido a contento.
(grifos no original).45
Na mesma linha, destaca Geisa de Assis Rodrigues:
O direito à saúde, como todo direito social, pode ter uma enorme variação de
conteúdo a partir das mudanças socioeconômicas, mas também guarda estreita
relação com o conhecimento técnico, relevante para a identificação das medidas
profiláticas e de reparação dos agravos à saúde, na medida em que novos padrões
são constantemente incorporados em seu conceito, bem como revistos paradigmas
anteriores, como a proscrição de medicamentos e técnicas consideradas, a partir de
um dado momento, como nocivas à saúde.46
A saúde é bem indistinto na sociedade porque as condições saudáveis de vida e a
doença atingem a todos, independentemente da vontade ou condição social e econômica do
indivíduo. Saúde, nesse sentido, exibe a igualdade em seu sentido mais primário. Por isso,
atingir patamares mínimos de bem-estar para todos contribui sobremaneira para a convivência
pacífica em sociedade. A meta de equidade traz bons resultados em políticas de saúde, como
apontam Lenaura Lobato e Ligia Giovanella: “Não por acaso, os países que alcançaram
44 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. Twenty-second
session Geneva, 25 April-12 May 2000, Substantive Issues Arising in the implementation of the international covenant on
economic, social and cultural rights. General Comment n.14 (2000). Disponível em: <http://tbinternet.ohchr.org>. Acesso
em: 20 maio 2017. 45 PIRES, Luiz Manoel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos
indeterminados às políticas públicas. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.280. 46 RODRIGUES, Geisa de Assis. Direito sanitário. In: (Coord.). NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de direitos
difusos. 2.ed. São Paulo: Verbatim, 2012, p.329.
27
melhores indicadores de saúde são aqueles que apresentam sistemas universais e públicos
com base solidária de financiamento”.47
3.1 Saúde: evolução legislativa no plano internacional
A saúde sempre se revelou como uma importante preocupação da sociedade. Antes
mesmo da organização do Direito, a história da humanidade já registrava o surgimento de
médicos no período mesopotâmico (4000 a.C.) e a Grécia Antiga marcava a evolução da
medicina com o pensamento de Hipócrates, conhecido como “pai da medicina”.
A preocupação com a saúde e a cura de doenças, por este ângulo, é anterior ao
surgimento das primeiras leis conhecidas pela humanidade. O Código de Hamurabi, famoso
por definir por escrito o primeiro critério objetivo de justiça (“olho por olho dente por dente”),
data de 1782 a.C.
Os cuidados médicos foram sendo estudados e aperfeiçoados de forma absolutamente
independente da evolução da organização do Estado e do Direito. Seguiu-se a lógica
tradicional de que ciências naturais são distintas das ciências sociais.
Como a saúde tem impacto direto no bem-estar do cidadão e na evolução econômica,
ganhou relevância para o Estado e passou a ser reconhecida como direito. Desta forma,
paulatinamente, saúde deixou de ser considerada caridade ou filantropia e ganhou contornos
jurídicos. Todavia, como sistema social que é, e dependente de estruturas sociais, os sistemas
de saúde foram desenhados de forma diferente nos diversos países do mundo.
Os primeiros marcos legais referentes à saúde datam de 1779 na Alemanha
(intervenção do Estado na saúde pública por meio de polícia médica ou sanitária) e 1848 na
Inglaterra (Public Health Act, que criou uma Diretoria Geral de Saúde, encarregada de propor
medidas de saúde pública e de recrutar médicos sanitaristas).48
A industrialização do século XIX e a necessidade de força de trabalho evidenciaram a
característica de saúde como a ausência de doenças. A necessidade de trabalhadores sadios
motivou os documentos que inicialmente contemplaram o direito à saúde. “A saúde tinha uma
concepção liberal: repor o indivíduo ao trabalho”, pondera Germano Schwartz.49
47 LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; GIOVANELLA, Lígia. Sistemas de saúde: origens, componentes e dinâmica.
In: GIOVANELLA, Lígia; ESCOREL, Sarah; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; NORONHA, José Carvalho de;
CARVALHO, Antonio Ivo de. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012, p.92. 48 SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis, Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, p.29-41, 2007. 49 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001, p.33.
28
A primeira Constituição que contemplou o direito à saúde com o viés de direito social
foi a Constituição alemã de Weimar em 1919, no capítulo que trata da economia e
assegurando a saúde em sistema contributivo de seguridade.50
O seu artigo 161 prescrevia:
A fim de manter a saúde e a capacidade de trabalho, a fim de proteger a maternidade
e prevenir as consequências econômicas da idade, fraqueza e para proteger contra as
vicissitudes da vida, o Reich estabelece um sistema abrangente de seguros, com base
na contribuição crítica do segurado (tradução livre).
O período após a Segunda Guerra Mundial, marcado pelo fim de brutais violações de
direitos humanos, produziu importantes documentos internacionais tendentes a proteger a
saúde.
A partir deste período, verificou-se que a saúde não era apenas curativa enquanto
ausência de doenças, mas deveria ser preventiva. Nessa linha, Schwartz constata: “saúde não
deveria ser mais apenas um ‘poder comprar a cura’ mas, sim, direito de que ‘todos tenham
acesso à cura’. O Estado interventor deveria, pois, proporcionar a saúde aos cidadãos
mediante serviços básicos de atividade sanitária”.51
Foi nesse período que se desenharam modelos de sistemas de saúde universais,
inspirados no precursor modelo inglês proposto por Beveridge, conforme explicam Lobato e
Giovanella:
Na saúde, a modalidade de proteção social do tipo seguridade social, inspirada em
princípios de justiça social, se concretiza em sistemas universais de saúde, os
chamados sistemas nacionais de saúde (como o inglês National Health Service –
NHS), financiados com recursos públicos provenientes de impostos gerais. Esses
sistemas são também conhecidos como beveridgianos, pois, como discutido no
capítulo 1, sua referência histórica é o Relatório Beveridge, de 1942, na Inglaterra,
que propôs pela primeira vez um novo modelo de proteção social baseado na
condição de cidadania, segundo o qual os cidadãos passam a ter seus direitos sociais
assegurados pelo Estado. Os sistemas nacionais de saúde universais são apontados
como mais eficientes (fazem mais com menos recursos), mais equânimes e,
portanto, com maior impacto positivo nas condições de saúde (OMS, 2010).52
A preocupação internacional com a área da saúde, especialmente em seus aspectos
globais, foi destacada em 1946, em conferência internacional de saúde realizada em Nova
York, que redundou na criação de organismo internacional específico para a área da saúde, a
Organização Mundial de Saúde (OMS). O documento que criou o organismo estabeleceu
50 A Constituição mexicana de 1917, outro marco importante na evolução dos direitos sociais, cuidou de direitos sociais e
trabalhistas, mas não abordou o tema de saúde. 51 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001, p.34. 52 LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; GIOVANELLA, Lígia. Sistemas de saúde: origens, componentes e dinâmica.
In: GIOVANELLA, Lígia; ESCOREL, Sarah; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; NORONHA, José Carvalho de;
CARVALHO, Antonio Ivo de. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012, p.92.
29
princípios “basilares para a felicidade dos povos, para suas relações harmoniosas e para sua
segurança”:53
A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste
apenas na ausência de doença ou de enfermidade.
Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos
fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo
político, de condição econômica ou social.
A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende
da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados.
Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de
valor para todos.
O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de
saúde e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum.
O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para
viver harmoniosamente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento.
A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos,
psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde.
Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de
uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos.
Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser
assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas.54
O preâmbulo da Carta da OMS traz um conceito amplo de saúde que envolve variáveis
de conteúdo vago como felicidade, segurança e relações harmoniosas. Por esse motivo, na
área de saúde, muitos dizem que ele é utópico e que não pode ser cumprido. Marco Segre e
Flávio Carvalho Ferraz verificam que a definição da OMS “avançada para a época em que foi
realizada, é, no momento, irreal, ultrapassada e unilateral” e propõem que “saúde é um
estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade” (destaques no
original).55
O conceito também sofreu críticas de natureza política, porque “permitiria abusos por
parte do Estado, que interviria na vida dos cidadãos, sob o pretexto de promover a saúde”,56
conforme aponta Moacyr Scliar.
O conteúdo vago de alguns termos do conceito e as críticas não esvaziam por absoluto
a concretização prática dos parâmetros trazidos no conceito da OMS. Em relação aos
conceitos vagos relacionados a temas de direitos sociais, Bandeira de Mello garante:
A existência de conceitos vagos, fluidos ou imprecisos nas regras concernentes à
Justiça Social não é impeditivo a que o Judiciário lhes reconheça, in concreto, o
âmbito significativo. Essa missão é realizada habitualmente pelo juiz nas distintas
53 Preâmbulo da Carta de criação da Organização Mundial de Saúde (OMS). 54 Preâmbulo da Carta de criação da Organização Mundial de Saúde (OMS). 55 SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Revista Saúde Pública, São Paulo, v.31, n.5, p.538-
542, out.1997. 56 SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis. Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, p.29-41, 2007,
p.37.
30
áreas do Direito e, sobretudo, no direito privado. Além disso, por mais fluido que
seja um conceito, terá sempre um núcleo significativo indisputável.57
Por isso, juridicamente, podemos afirmar que o conceito de saúde da OMS foi
importante para firmar o compromisso histórico em relação à saúde e ainda tem um relevante
significado para a construção das políticas de saúde nos países signatários da convenção. Esse
conceito fincou o dever estatal em proporcionar saúde aos indivíduos, na linha dos direitos
sociais de segunda geração. Também considerou os aspectos de desenvolvimento humano da
saúde, como um direito de terceira geração e dependente da colaboração de todos (Estados e
indivíduos). O conceito também abriu as portas do controle social e participação popular no
sistema de saúde. Por fim, estabeleceu os parâmetros de equidade e universalidade do sistema
de saúde.
Outros documentos internacionais registram com destaque o direito à saúde e
embasam a sua posição de direito humano na acepção técnica do termo.
No sentido de vida enquanto direito de primeira geração, despontam a Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais de 1966 e o Pacto de San Jose da Costa Rica de 1969.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 o artigo 3º previu: “todo ser
humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
protegeu o direito à vida no seu artigo 6º: “o direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse
direito deverá ser protegido pela lei”.
Em 1969 foi firmada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San
José da Costa Rica, que também garantiu o direito à vida e à integridade física (artigos 4º e
5º), e foi oficialmente promulgada no Brasil pelo Decreto n.678, de 6 de novembro de 1992.
No sentido de saúde como um direito social, a Declaração Universal de 1948, previu
em seu artigo 25:
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios
de subsistência fora de seu controle.
Nesse mesmo sentido, o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
prescreve no seu artigo 11:
57 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais. São Paulo: Malheiros,
2015, p.57.
31
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível
de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e
moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida.
Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse
direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação
internacional fundada no livre consentimento.
O artigo 12 do Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
prescreve:
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de
desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.
2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o
fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam
necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade
infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os
aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento
das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra
essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica
e serviços médicos em caso de enfermidade (destaques nossos).
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948 prevê em seu
artigo 11: “Toda pessoa tem direito a que sua saúde seja resguardada por medidas sanitárias e
sociais relativas à alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos correspondentes ao
nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade”.
Enquanto as medidas de direitos humanos firmadas no pós-guerra se consolidavam, a
OMS seguiu promovendo normativas importantes na área da saúde e realizando conferências
periódicas para definir diretrizes para a atuação dos Estados na área de saúde, inclusive para
aperfeiçoar o conceito amplo de saúde trazido pela Carta de 1946. Dessas conferências, para
os recortes deste estudo, destacam-se os documentos produzidos nas Cartas de Alma Ata
(1978), de Ottawa (1986) e do México (2000).
Em 1977, a OMS lançou a primeira lista oficial de medicamentos. Nela identificou
208 drogas que poderiam servir para o tratamento efetivo e seguro da maioria das doenças
transmissíveis e não transmissíveis.58
Os trabalhos iniciais da OMS coordenaram ações de saúde e largaram com medidas
efetivas que culminaram com a erradicação da varíola no mundo, doença que afligia grande
contingente populacional. No entanto, a instituição redefiniu estratégias e, no lugar de buscar
58 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Essential medicines and health products. Disponível em:
<http://www.who.int/medicines/services/essmedicines_def/en>. Acesso em: 08 maio 2017. Essas listas norteiam a elaboração
de listas de fornecimento de medicamentos e com esse fundamento o Ministério da Saúde organiza a Relação Nacional de
Medicamentos (Rename) e a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases), conforme previsto nos artigos 21 a
29 do Decreto n.7.508/2011 (que regulamenta a Lei n.8.080/90).
32
apenas enfrentar doenças, optou também por implementar aspectos de desenvolvimento social
da saúde. É o que observa Moacyr Scliar:
Quando se esperava que a OMS escolhesse outra doença transmissível para alvo, a
Organização ampliou consideravelmente seus objetivos, como resultado de uma
crescente demanda por maior desenvolvimento e progresso social. Eram anos em
que os países socialistas desempenhavam papel importante na Organização – não
por acaso, Alma Ata ficava na ex-União Soviética.59
A Carta de Alma Ata, em 1978, estabeleceu:
I) A Conferência enfatiza que a saúde – estado de completo bem-estar físico, mental
e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade – é um direito
humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a
mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros
setores sociais e econômicos, além do setor saúde.
II) A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos,
particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como
dentro dos países, é política, social e economicamente inaceitável e constitui, por
isso, objeto da preocupação comum de todos os países.
III) O desenvolvimento econômico e social baseado numa ordem econômica
internacional é de importância fundamental para a mais plena realização da meta de
Saúde para Todos no Ano 2000 e para a redução da lacuna existente entre o estado
de saúde dos países em desenvolvimento e o dos desenvolvidos. A promoção e
proteção da saúde dos povos é essencial para o contínuo desenvolvimento
econômico e social e contribui para a melhor qualidade de vida e para a paz
mundial.
IV) É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no
planejamento e na execução de seus cuidados de saúde.
V) Os governos têm pela saúde de seus povos uma responsabilidade que só pode
ser realizada mediante adequadas medidas sanitárias e sociais. Uma das principais
metas sociais dos governos, das organizações internacionais e de toda a comunidade
mundial na próxima década deve ser a de que todos os povos do mundo, até o ano
2000, atinjam um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e
economicamente produtiva.
VI) Os cuidados primários de saúde constituem a chave para que essa meta seja
atingida, como parte do desenvolvimento, no espírito da justiça social.
VII) Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em
métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e
socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da
comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o
país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de
autoconfiança e automedicação.
A Conferência de Alma Ata cumpriu um distinto papel porque reconheceu
expressamente que a saúde é um direito humano fundamental, com potencial de reduzir
desigualdades sociais e direcionou as prioridades para sua consecução de acordo com
aspectos coletivos. Ela situou a saúde como um mecanismo de justiça social e estabeleceu
importantes prioridades para a atenção primária em saúde, que é a porta de entrada dos
sistemas de saúde porque serve para atender os cuidados de menor complexidade com grande
59 SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis, Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, p.29-41, 2007,
p.38.
33
potencial de evitar problemas de saúde mais graves e que demandariam maior estrutura para
fazê-lo.
A Carta de Ottawa em 1986 estabeleceu diretrizes para o Programa Saúde para todos
no ano 2000. Aprimorou os debates de Alma Ata e firmou pré-requisitos para a saúde: “paz –
habitação – educação – alimentação – renda – ecossistema estável – recursos sustentáveis –
justiça social e equidade”. A Carta de Ottawa definiu que “saúde é o maior recurso para o
desenvolvimento social, econômico e pessoal, assim como uma importante dimensão da
qualidade de vida” e fixou a importância de critérios que norteiam a ação dos Estados: a)
mediação entre governo, setor da saúde e outros setores sociais e econômicos, organizações
voluntárias e não governamentais, autoridades locais, indústria e mídia como forma de
coordenar as diferenças intrínsecas ao sistema de saúde; b) políticas governamentais reflexas
que têm impacto na saúde, porque a política de promoção da saúde combina diversas
abordagens complementares, que incluem legislação, medidas fiscais, taxações e mudanças
organizacionais; c) fomento de ambientes favoráveis à saúde, como trabalho, lazer, meio
ambiente; d) reforço da ação comunitária; f) reorientação dos serviços de saúde, que devem
mover-se, gradativamente, no sentido de promover a saúde, além das suas responsabilidades
de prover serviços clínicos e de urgência; e g) planejamento para o futuro.
Em 1986 também foi editada a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Ela
cuidou da saúde no artigo 8º, o qual tem a seguinte redação:
§1. Os Estados devem tomar, em nível nacional, todas as medidas necessárias para a
realização do direito ao desenvolvimento, e devem assegurar, inter alia, igualdade
de oportunidade para todos no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de
saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa da renda. Medidas
efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo
no processo de desenvolvimento. Reformas econômicas e sociais apropriadas devem
ser efetuadas com vistas à erradicação de todas as injustiças sociais.
§2. Os Estados devem encorajar a participação popular em todas as esferas, como
um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos
humanos.
Buscando dar efetividade à Declaração sobre o direito ao desenvolvimento, que
aglutina direitos mínimos para reduzir desigualdades, em 1995 a Assembleia Geral das
Nações Unidas convocou uma cúpula mundial para debater o desenvolvimento social na
cidade de Copenhague, que buscou a integração social e “atenção prioritária na luta contra as
condições de âmbito mundial que ameaçam gravemente a saúde, a paz, a segurança e o bem-
estar das populações”. A respeito da saúde, a cúpula destacou aspectos cruciais aos governos
em termos de saúde: universalidade de atendimento, priorização dos cuidados em atenção
34
primária, enfrentamento de estratégias para reduzir doenças transmissíveis, incremento da
educação em saúde e estabelecimento de medidas de planejamento familiar.
Em 1998 foi firmado o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais (Protocolo de San Salvador),
incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto n.3.321, de 30 de dezembro de 1999,
que dispôs em seu artigo 10 sobre o direito à saúde:
1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de
bem-estar físico, mental e social.
2. A fim de tornar efetivo o direito à saúde, os Estados Partes comprometem-se a
reconhecer a saúde como bem público e, especialmente, a adotar as seguintes medidas
para garantir este direito: a. Atendimento primário de saúde, entendendo-se como tal a
assistência médica essencial colocada ao alcance de todas as pessoas e famílias da
comunidade; b. Extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as pessoas
sujeitas à jurisdição do Estado; c. Total imunização contra as principais doenças
infecciosas; d. Prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de outra
natureza; e. Educação da população sobre prevenção e tratamento dos problemas da
saúde; e f. Satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco e que,
por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis.
Em 2000, outro importante documento da OMS foi elaborado durante uma conferência
realizada na Cidade do México. Nele, reconheceu-se que a elevação de níveis de saúde é
necessária para o desenvolvimento social e econômico e para a equidade. Segundo o
entendimento firmado na conferência, a promoção da saúde e do desenvolvimento social é um
dever e responsabilidade central dos governos, compartilhada por todos os setores da
sociedade. O encontro constatou, ainda, a necessidade urgente de abordar os determinantes
sociais, econômicos e ambientais da saúde, inclusive mediante fortalecimento dos
mecanismos de colaboração para promover a saúde em todos os setores e níveis da sociedade.
Ainda no ano 2000 foi editada a Recomendação n.14 do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, segundo a qual saúde é um direito humano fundamental
indispensável para o exercício dos demais direitos humanos. O documento deu interpretação
ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, explicitando as nuances do direito à
saúde.
Em 2000 também foram então estabelecidas pela Organização das Nações Unidas
(ONU) as metas do milênio, com o apoio de 191 nações e que ficaram conhecidas como
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). A saúde entra especialmente nas
prioridades de redução da mortalidade infantil e do combate à AIDS, à malária e a outras
doenças. Os oito objetivos do milênio propostos pela ONU são os seguintes:
1 – Acabar com a fome e a miséria;
2 – Oferecer educação básica de qualidade para todos;
35
3 – Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres;
4 – Reduzir a mortalidade infantil;
5 – Melhorar a saúde das gestantes;
6 – Combater a AIDS, a malária e outras doenças;
7 – Garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente;
8 – Estabelecer parcerias para o desenvolvimento.
No âmbito da América Latina, o braço da Organização Mundial de Saúde é a
Organização Pan-americana da Saúde (OPAS). Além da função de escritório regional para as
Américas da Organização Mundial da Saúde, a OPAS também integra a Organização dos
Estados Americanos (OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2003, promoveu
a renovação do compromisso de Alma Ata na Américas por meio do programa de renovação
da atenção primária em saúde nas Américas.
Em 2015, novamente foram revistas as metas da ONU. A partir da Agenda 2015, foi
desenhada a Agenda 2030 delineando os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o
que representou uma evolução dos debates para incorporar a sustentabilidade ao
desenvolvimento.
Por meio dos objetivos do desenvolvimento sustentável, foram estabelecidas dezessete
metas:
ODS 1 (erradicação da pobreza);
ODS 2 (fome zero);
ODS 3 (boa saúde e bem-estar);
ODS 4 (educação de qualidade);
ODS 5 (igualdade de gênero);
ODS 6 (água limpa e saneamento);
ODS 7 (energia acessível e limpa);
ODS 8 (emprego digno e crescimento econômico);
ODS 9 (indústria, inovação e infraestrutura);
ODS 10 (redução das desigualdades);
ODS 11 (cidades e comunidades sustentáveis);
ODS 12 (consumo e produção responsáveis);
ODS 13 (combate às alterações climáticas);
ODS 14 (vida debaixo da água);
ODS 15 (vida sobre a terra);
ODS 16 (paz, justiça e instituições fortes) e
ODS 17 (parcerias em prol das metas).
A ODS número 3 cuida de saúde e bem-estar em termos também amplos e impõe
metas ousadas:
3.1 até 2030, reduzir a taxa de mortalidade materna global para menos de 70 mortes
por 100.000 nascidos vivos;
3.2 até 2030, acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças menores
de 5 anos, com todos os países objetivando reduzir a mortalidade neonatal para pelo
menos 12 por 1.000 nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos
para pelo menos 25 por 1.000 nascidos vivos;
36
3.3 até 2030, acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças
tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e
outras doenças transmissíveis;
3.4 até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não
transmissíveis (DNTs) via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o
bem-estar;
3.5 reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso
de drogas entorpecentes e uso nocivo do álcool;
3.6 até 2020, reduzir pela metade as mortes e os ferimentos globais por acidentes em
estradas;
3.7 até 2030, assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e
reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a
integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais;
3.8 atingir a cobertura universal de saúde (UHC), incluindo a proteção do risco
financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a
medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços
acessíveis para todos;
3.9 até 2030, reduzir substancialmente o número de mortes e doenças por produtos
químicos perigosos, contaminação e poluição do ar e água do solo;
3.a fortalecer a implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco em
todos os países, conforme apropriado;
3.b apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as
doenças transmissíveis e não transmissíveis, que afetam principalmente os países em
desenvolvimento, proporcionar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais a
preços acessíveis, de acordo com a Declaração de Doha, que afirma o direito dos
países em desenvolvimento de utilizarem plenamente as disposições do acordo
TRIPS sobre flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular,
proporcionar o acesso a medicamentos para todos;
3.c aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento,
desenvolvimento e formação, e conservação do pessoal de saúde nos países em
desenvolvimento, especialmente nos países menos desenvolvidos e SIDS;
3.d reforçar a capacidade de todos os países, particularmente os países em
desenvolvimento, para o alerta precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos
nacionais e globais de saúde.
Conquanto sujeitas a sucessivas revisões, as metas e objetivos da ONU cumprem um
importante papel. Elas sistematizam os trabalhos e inserem seu conteúdo no cenário político.
Pelo formato eleito, extrapolam o campo jurídico normativo e ingressam na agenda política,
além de ganhar espaço na comunicação social que permite sua divulgação à sociedade civil.
Elevar um debate ao âmbito de direitos humanos hoje inegavelmente significa potencializar a
sua concretização, porque a agenda de direitos humanos tem condições de alterar regras
internas dos países, delimitar aos agentes públicos suas responsabilidades e catalisar os
movimentos sociais na sua defesa.
A análise da evolução histórica da saúde no plano internacional revela que da
preocupação inicial com a simples cura de doenças seguiu-se a prestação de saúde por
caridade e a atividade do Estado por meio de polícia sanitária. Com a evolução liberal do
século XX, foram inaugurados sistemas contributivos e que foram substituídos por sistemas
universais. Os pactos de direitos humanos firmados após a Segunda Guerra Mundial
reconheceram o caráter de direito humano da saúde. Os aspectos sociais passaram a
37
preponderar até a constatação de que a saúde tem importantes características de
desenvolvimento. Avaliou-se, então, que o desenvolvimento deve focar também nas gerações
futuras e que o ritmo atual da saúde é no sentido do desenvolvimento sustentável, interligando
outras áreas mediante parcerias e reforçando os aspectos globais da saúde.
3.2 Saúde: evolução legislativa no direito brasileiro
A história do Brasil Imperial registra medidas iniciais de saúde e de higiene pública
em 1808 com a vinda da coroa portuguesa ao Brasil.60
A organização normativa das questões sanitárias tem seu primeiro marco no início do
século XX, por meio da criação da Diretoria Geral de Saúde Pública sob o comando do
médico sanitarista Oswaldo Cruz, que liderou um movimento de vigilância sanitária e de
combate a endemias baseado em modelos militares. A polícia sanitária adotava medidas
rigorosas no combate aos vetores transmissores de doenças, propunha o isolamento
compulsório de pacientes e medidas tendentes à vacinação forçada da população, além de
recomendar higiene de espaços públicos e infraestrutura de saneamento básico.61
Estas
medidas geraram, entretanto, fortes resistências da população. O debate jurídico foi levado ao
Supremo Tribunal Federal porque haviam sido determinadas medidas de desinfecção em
combate ao mosquito causador da febre amarela que esbarravam na proteção da
inviolabilidade do domicílio. Na ocasião do célebre julgamento conhecido como “Revolta da
Vacina”, a corte constitucional decidiu pela prevalência do direito individual do impetrante e
concedeu habeas corpus para impedir ingresso forçado de agentes sanitários em seu domicílio
(HC 2244, j. 31.01.1905, Rel. Min. Hermínio Espírito Santo). As medidas adotadas por
Oswaldo Cruz, apesar de drásticas, foram efetivas porque contribuíram para erradicar à época
o tão conhecido mosquito aedes aegypti.62
Em 1923, a Lei Eloi Chaves (Decreto n.4.682/23), precursora no sistema de
seguridade social brasileiro, criou caixas de aposentadorias. Ela instituiu sistema de
aposentadoria, pensões e socorro médico mediante a contribuição de empregados e
60 BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à saúde. In: (Orgs.)
MATTA, Gustavo Correa; PONTES, Ana Lucia de Moura. Políticas de saúde: organização e operacionalização do Sistema
Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007, p.30. 61 BRASIL. Ministério da Saúde. Portal da Fundação Nacional de Saúde. Cronologia Histórica da Saúde Pública.
Disponível em: <http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/cronologia-historica-da-saude-publica>. Acesso em: 28 fev.
2017. 62 O debate é ainda absolutamente atual. O mosquito, que hoje é alvo de intensas preocupações em saúde porque é vetor de
doenças como a dengue, chikungunya e zika, retornou ao Brasil depois de anos de erradicação e hoje, um século depois das
atividades do sanitarista Oswaldo Cruz, a situação que vivenciamos é de nova luta contra o Aedes Aegypti, inclusive com
desabastecimento das vacinas na rede pública.
38
empregadores de poucas categorias. As categorias foram unificadas em 1966 na oportunidade
em que foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), por meio do Decreto-Lei
n.72/66, mantendo-se o sistema contributivo.
A Constituição Federal de 1934 foi a primeira a trazer o direito à saúde no texto
constitucional brasileiro. Ela disciplinou a responsabilidade dos três entes da federação
(União, Estados e Municípios), deu prioridade às medidas de redução de mortalidade infantil
e reiterou as medidas vigentes para o controle de doenças transmissíveis. O texto
constitucional também assegurou a importância da ‘higiene mental’ em termo hoje conhecido
como ‘saúde mental’ e determinou o incentivo à ‘luta contra venenos sociais’, expressão vaga
que só faz sentido naquele momento histórico da ditadura Vargas porque hoje seria
absolutamente condenável sob o enfoque de direitos humanos. Dispunha o artigo 138 da
Constituição Federal de 1934:
Artigo 138 – Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis
respectivas:
[...]
f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e
a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças
transmissíveis; g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos
sociais.
A Constituição de 1937 (conhecida como ‘Constituição Polaca’ em razão da forte
influência do pensamento autoritário vigente na Europa), a Constituição de 1946 (que chegou
a dispor sobre direitos sociais) e a Constituição de 1967 (subsequente ao golpe militar),
silenciaram quanto ao direito à saúde.
Apesar do período de governo ditatorial e da política econômica brasileira não
corresponderem ao movimento de welfare state que ocorria em muitos países do mundo, o
movimento desenvolvimentista teve sua importância e reflexos no sistema de saúde brasileiro,
conforme destaca Tatiana Baptista:
No Brasil, não se configurou nesse período (anos 50) uma política de bem-estar
social, mas ganhou espaço a ideologia desenvolvimentista que apontou a relação
pobreza-doença-subdesenvolvimento, indicando a necessidade de políticas que
resultassem em melhora do nível de saúde da população como condição para se
obter desenvolvimento. Este foi o primeiro passo para uma discussão mais
aprofundada sobre o direito à saúde e à proteção social como política pública.63
A Lei n.2.312 de 3 de setembro de 1954 estabeleceu normas gerais sobre a defesa e
proteção da saúde nos moldes definidos em seu artigo 1º: “É dever do Estado, bem como da
63 BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à saúde. In: (Orgs.)
MATTA, Gustavo Correa; PONTES, Ana Lucia de Moura. Políticas de saúde: organização e operacionalização do Sistema
Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.
39
família, defender e proteger a saúde do indivíduo”. Essa lei era conhecida como Código
Nacional de Saúde e foi regulamentada pelas Normas Gerais sobre Defesa e Proteção da
Saúde (Decreto n.49.974-A, de 21/1/61), revogada apenas com a Lei n.8.080/90.
A Constituição de 1967 tratou de saúde, mas de forma bem mais enxuta que a
Constituição de 1934. Já na vigência dos tratados de direitos humanos pós-guerra e,
provavelmente em função do período militar em que foi elaborada, suprimiu os detalhes que
constavam no documento de 1934. O dispositivo que tratava de saúde na Constituição Federal
de 1967 tinha a seguinte redação: “Artigo 8º – Compete à União: XIV – estabelecer planos
nacionais de educação e de saúde”.
Em 1975 foi editada a Lei n.6.259, que dispôs sobre a organização das ações de
vigilância epidemiológica, o Programa Nacional de Imunizações e estabeleceu normas
relativas à notificação compulsória de doenças.
A partir do intenso movimento pela redemocratização do Brasil na década de 1980, foi
proposta a reforma sanitária, cujos trabalhos estão documentados em conferências de saúde
com participação de técnicos no assunto e da sociedade. A VIII conferência de saúde de 1986
agrupou consensos que nortearam a redação do texto constitucional em 1988, especialmente
com vistas a um sistema universal e gratuito em evolução ao sistema contributivo de pessoas
detentoras de vínculos empregatícios.
Lenaura Lobato e Ligia Giovanella apontam: “as formas de organização social, as
condições de vida e de trabalho em uma dada sociedade são determinantes para a saúde e
quanto mais desiguais forem essas condições, mais desiguais e piores serão os resultados em
saúde”. Segundo as autoras, essa premissa
foi fundamental na geração da proposta da Reforma Sanitária brasileira, que previa a
saúde como elemento central na construção de uma sociedade mais igualitária e
solidária. E tinha no SUS o seu projeto mais concreto – um sistema público universal,
integral e financiado por toda a sociedade. Como consequência também desse
movimento social, em nossa Constituição a saúde está ancorada em um conceito
ampliado, em que é entendida como o resultado de um conjunto de condições sociais,
não só a ausência de doenças.64
No direito brasileiro, como resultado de conquistas democráticas65
, a Constituição
Federal prevê a saúde como um direito social (artigo 6º) e o disciplina detalhadamente (Título
64 LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; GIOVANELLA, Lígia. Sistemas de saúde: origens, componentes e dinâmica.
In: GIOVANELLA, Lígia; ESCOREL, Sarah; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; NORONHA, José Carvalho de;
CARVALHO, Antonio Ivo de. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012, p.117. 65 Outra conquista democrática digna de destaque na Constituição Federal de 1988 foi o fortalecimento do Ministério
Público, instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos direitos individuais indisponíveis e
dos serviços de relevância pública (Constituição Federal, artigos 127 e 129, II). Como os serviços de saúde são considerados
40
VII, que trata da Ordem Social). Ao lado de previdência e da assistência social, a saúde é
considerada parte do sistema de seguridade social.
O artigo 196 da Constituição Federal estabeleceu: “A saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”. Esse dispositivo constitucional norteia o estudo do
conteúdo jurídico da saúde no Brasil porque cria o direito fundamental subjetivo do cidadão e
o correlato dever do Estado em prover políticas públicas preventivas, universais e equitativas
de saúde.
No âmbito infraconstitucional, o grande marco é a Lei n.8.080/90, conhecida como Lei
Orgânica da Saúde. Ela regulamentou o direito previsto na Constituição de 1988 trazendo os
contornos jurídicos do cumprimento do dever estatal, a forma de execução das políticas
públicas da saúde e definiu saúde como direito fundamental, sem seu artigo 2º:
A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as
condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de
políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros
agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e
igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
§2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da
sociedade.
Na sequência, veio a Lei n.8.142/90 que trata do controle social da saúde, instrumento
de democratização da execução de políticas públicas de saúde por meio dos conselhos
compostos por integrantes dos gestores e trabalhadores em saúde e dos usuários do serviço.
Por meio desta sequência temporal, os direitos humanos definidos nos documentos
internacionais após a Segunda Guerra (1948 e 1966) foram implementados no Brasil apenas
em 1988 com a Constituição Federal. A disciplina normativa veio em 1990 por meio da Lei
n.8.080, regulamentada em 2011, pelo Decreto n.7.508. Esse vácuo temporal de meio século
entre o movimento internacional e a edição de regras no direito brasileiro tem consequências
práticas relevantes, dentre as quais se destaca a falta de concretização integral do direito à
saúde.
Em suma, de princípio, com a vinda da coroa portuguesa ao Brasil em 1808, após
passar por um período de saúde como filantropia, surgiram as medidas do médico sanitarista
Oswaldo Cruz que de forma drástica, mas efetiva, inseriu a saúde na agenda do início do
de relevância pública pelo artigo 197 da Constituição Federal, a existência de instituição com essa atribuição constitucional
representa importante instrumento na consolidação do direito à saúde.
41
século XX. Criou-se um sistema contributivo baseado em caixas de previdência e reconheceu-
se o caráter social da saúde na Constituição Federal de 1934. O próximo marco nacional
digno de nota foi o movimento sanitarista da década de 1980, que redundou na reforma
sanitária inspiradora do modelo constitucional vigente, baseado em princípios de
universalidade e gratuidade.
Ainda no plano legislativo, a Lei Complementar n.141/12 também é um importante
diploma legal para o estudo do direito à saúde porque regulamenta os comandos
constitucionais referentes ao seu financiamento. A saúde é financiada por recursos públicos,
com imposição de deveres de gastos mínimos pelos entes da federação determinados pela
Constituição Federal. Os pisos de gastos são instrumentos garantidores do adimplemento
mínimo da prestação do serviço de saúde e vinculam os investimentos públicos na oferta de
saúde (Constituição Federal, artigo 198, §2º).
Além da legislação vigente, não esgotada nesse resgate histórico que se limitou às
principais regras norteadoras do sistema de saúde, há um superlativo número de regras
administrativas na área sanitária. O Poder Executivo, incumbido de concretizar materialmente
as políticas de saúde, legisla sobremaneira em todas as suas esferas sobre o direito à saúde.
Qualquer estudo nesta área depende da busca criteriosa das regras administrativas sobre cada
tema. Esse conjunto de leis e regras corresponde ao direito sanitário, um ramo específico do
direito administrativo que disciplina o funcionamento do Sistema Único de Saúde.
3.3 Conceito de direito à saúde
Compreender o conceito de um direito é importante para delimitar o objeto de sua
proteção. O conceito de direito à saúde define o conteúdo do que pode ser reivindicado pelo
cidadão e o que deve ser prestado pelo Estado. Por isso, a efetivação do direito à saúde
depende da compreensão do seu conteúdo jurídico.
Há definições conceituais do direito à saúde em tratados internacionais e em seus
documentos interpretativos, na legislação brasileira, nos documentos que nortearam a
produção legislativa nacional e também na doutrina, os quais permitem o estudo de qual é
efetivamente o seu objeto.
Dentre os tratados internacionais, destacam-se as definições trazidas pelo Pacto sobre
os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e da Carta de criação da OMS em 1946.
42
O Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 prescreve em
caráter universal o “direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde
física e mental” (artigo 12).
O documento de criação da OMS, elaborado em 1946, previu: “a saúde é um estado de
completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de
enfermidade”. Esse conceito, absolutamente amplo, parte do pressuposto de que a saúde não é
um bem exclusivamente individual porque tem características sociais, que se referem à
sociedade. Desse conceito também se extrai que saúde não significa apenas ausência de
doenças e tampouco que a saúde se restringe aos aspectos físicos, porque engloba também os
aspectos psíquicos e sociais.
Dos documentos interpretativos desses tratados, despontam o conteúdo debatido em
Alma Alta e a Recomendação n.14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Na conferência de Alma Ata ficou assentado expressamente o caráter conceitual de
direito humano fundamental da saúde. Também ficou sublinhado que a promoção de saúde
depende não apenas do setor saúde mas também de outros setores da sociedade e da
economia:
A Conferência enfatiza que a saúde – estado de completo bem-estar físico, mental
e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade – é um direito
humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a
mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros
setores sociais e econômicos, além do setor saúde.
A Recomendação n.14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 2000
traz importantes delineamentos para o conceito do direito à saúde. Ela fixa a importância das
determinantes em saúde, estabelecendo que um amplo aspecto de fatores socioeconômicos
influencia nas condições que proporcionam às pessoas uma vida saudável, dentre eles,
alimentação, moradia, acesso à água potável e saneamento básico, segurança no trabalho e
meio ambiente equilibrado. Traz limites do direito à saúde e não impõe todo o dever pela sua
prestação ao Estado, reconhecendo tanto limitações biológicas quanto orçamentárias e
concluindo pela ‘igualdade de oportunidades às pessoas no atingimento do melhor patamar
possível de saúde’:
O direito à saúde não deve ser compreendido como o direito a estar saudável. O
direito à saúde contém liberdades e direitos. As liberdades incluem o direito a ter
controle sobre a própria saúde e o próprio corpo, incluindo liberdade sexual e
reprodutiva, além do direito de não sofrer interferências em sua saúde tais como o
direito a não ser torturado, a não sofrer tratamentos médicos contra a sua vontade e
não participar de experimentos científicos sem consentimento. Por outro lado, os
direitos relacionados à saúde incluem o direito à proteção por sistema de saúde que
43
proporcione igualdade de oportunidades às pessoas no atingimento do melhor
patamar possível de saúde. A noção de maior patamar possível de saúde prevista no
artigo 12 do Pacto leva em conta tanto as condições pessoais quanto as condições
socioeconômicas e os recursos estatais disponíveis. Existem muitos aspectos na
relação Estado-indivíduo que não podem ser examinados sozinhos; a boa saúde não
pode ser proporcionada apenas pelo Estado e os Estados também não podem evitar
todas as causas possíveis que possam culminar em doenças. Existem fatores
genéticos, suscetibilidades individuais a doenças e estilos de vida arriscados que
influenciam o estado de saúde dos indivíduos. Consequentemente, o direito à saúde
deve ser compreendido como o direito ao desfrute de variedade de serviços, insumos
e condições necessárias para a realização do maior patamar possível em saúde66
(tradução livre; destaques nossos).
Dos documentos internacionais, Sueli Dallari e Vidal Serrano Nunes Junior extraem
múltiplas facetas do direito à saúde, individuais, coletivas e de desenvolvimento:
O conceito de saúde adotado nos documentos internacionais relativos aos direitos
humanos é o mais amplo possível, abrangendo desde a típica face individual do
direito subjetivo à assistência médica em caso de doença até a constatação da
necessidade do direito do Estado ao desenvolvimento, personificada no direito a um
nível de vida adequado à manutenção da dignidade humana. Isso sem esquecer-se do
direito à igualdade, implícito nas ações de saúde de caráter coletivo tendentes a
prevenir e tratar epidemias ou endemias, por exemplo. Não há dúvida, portanto, de
que o conceito de saúde acolhido pelo direito contemporâneo abarca, em todas as
suas facetas, aspectos ligados à organização internacional, seja ela mais diretamente
ligada à economia, ou à tecnologia, ou à movimentação de pessoas, ou – ainda – à
ordem institucional.67
A VIII Conferência Nacional de Saúde, inspiradora do modelo constitucional de 1988,
também seguiu o conceito amplo de saúde e o relacionou às determinantes em saúde de outras
áreas. No relatório da VIII Conferência constam definições de saúde como direito:
Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É,
assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as
quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. [...] Direito à saúde
significa a garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de acesso universal
e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação de saúde, em
todos os seus níveis, a todos os habitantes do território nacional, levando ao
desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade. (grifos nossos).68
Na legislação brasileira, a Lei n.8.080/90 trouxe importantes elementos do conteúdo do
direito à saúde e destacou em seu artigo 3º (redação alterada pela Lei n.12.864/13) as
determinantes e condicionantes que expressam os níveis de saúde:
66 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. Twenty-second
session Geneva, 25 April-12 May 2000, Substantive Issues Arising in the implementation of the international covenant on
economic, social and cultural rights. General Comment n.14 (2000). Disponível em: <http://tbinternet.ohchr.org>. Acesso
em: 20 maio 2017. 67 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano; DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p.20. 68 BRASIL. Ministério da Saúde. 8ª Conferência Nacional em Saúde. Relatório Final, 1986, p.12. Disponível em:
<http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_8.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2017.
44
Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a
saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia,
o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade
física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto
no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de
bem-estar físico, mental e social.
A doutrina interpreta o mosaico normativo visando compreender o objeto do direito à
saúde. Geisa de Assis Rodrigues discorre sobre a abrangência do conceito de saúde, que vai
desde medidas profiláticas até terapias de alta complexidade:
[...] podem se enquadrar no direito à saúde as medidas profiláticas em geral, que vão
desde o direito ao saneamento básico (hoje expressamente amparado na Lei
n.11.445/2007), o direito ao meio ambiente natural e artificial ecologicamente
equilibrado, os programas de imunização, de vigilância epidemiológica, de
vigilância sanitária, os de educação e conscientização sanitária até as ações e
serviços de saúde como os programas de agente de saúde, as terapias de baixa,
média e alta complexidade, inclusive tratamento ambulatorial e cirúrgico, acesso aos
remédios, transplantes de órgãos, internações, serviços hemoterápicos e todo tipo de
procedimento médico para as doenças agudas e crônicas, de ordem física ou mental,
incluindo a saúde reprodutiva (Lei n.9.263/96).69
Já Schwartz define saúde como
um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo
em que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de
aferição a realidade de cada indivíduo e o pressuposto de efetivação à possibilidade
de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular
estado de bem-estar.70
Marco Segre e Flávio Carvalho Ferraz definem que “saúde é um estado de razoável
harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade” (destaques no original).71
A análise dos dispositivos legais – internacionais e nacionais – e das interpretações
autêntica ou doutrinária aponta para a conclusão de que a prestação de saúde como direito
humano não significa necessariamente atender a todas as individualidades em saúde de todos
os cidadãos, de qualquer maneira e sem qualquer critério. Para sua proteção adequada e
relembrando que o sistema veda retrocessos sociais, crucial que seus limites sejam
estabelecidos com transparência e rigor científico, além de serem constantemente reavaliados
para garantir atualização técnica. Fundamental, também, que uma vez definido o conteúdo do
direito à saúde, ele seja cumprido à risca para não ofender às regras de direitos humanos em
estudo, frustrando-se o objetivo de reduzir desigualdades e de incrementar a qualidade de vida
69 RODRIGUES, Geisa de Assis. Direito sanitário. In: (Coord.). NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de direitos
difusos. 2.ed. São Paulo: Verbatim, 2012, p.328. 70 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001, p.43. 71 SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Revista Saúde Pública, São Paulo, v.31, n.5, p.538-
542, out.1997, p.542.
45
dos cidadãos.
Outrossim, o conceito amplo em documentos internacionais e na lei brasileira,
passíveis de críticas já registradas neste trabalho, traz questionamentos que emperram a
concretização do direito à saúde, especialmente pela via judicial, porque esta depende de um
objeto claro que possa se enquadrar em comandos mandamentais originados a partir de um
processo judicial. Essa não é uma exclusividade do direito brasileiro, conforme aponta
Oliveira:
A definição do objeto do direito de proteção à saúde é o desafio maior para os
juristas que se dedicam ao seu estudo. Vale, para tanto, sublinhar que a mera
referência a direito de proteção à saúde em substituição a direito à saúde contém
distinção, cuja existência não é alheia ao conteúdo e ao alcance das normas que
disciplinam o acesso e o fornecimento de recursos necessários à preservação da
integridade física e psíquica dos indivíduos contra o risco de doença e outros fatores
que possam importar perigo à conservação da vida humana. Embora seja
reconhecido o emprego usual e majoritário do termo direito à saúde, a rejeição de
sua utilização alinha-se à crítica feita por Lise Casaux-Labrunée, professora da
Universidade de Nantes, segundo a qual, além da incerteza que é relacionada ao seu
conceito, a noção de direito à saúde perpassa pelo obstáculo de o Poder Judiciário
não poder garantir aquilo que não pode ser assegurado, uma vez que a saúde,
compreendida como graça, dom, ou, em senso mais contemporâneo, como
somatório de condições genéticas, ambientais e cuidados pessoais, foge à tutela
jurisdicional, eis que essa é incapaz de prolongar a vida para além de seu natural
fim.72
Lawrence Gostin, professor da universidade de Georgetown nos Estados Unidos,
também pontua que a moldura do direito à saúde tem padrões imprecisos e muitas vezes não
apresenta mecanismos adequados de concretização. No entanto, ele assegura que se quisermos
pensar em padrões de saúde distribuídos com equidade no mundo precisamos focar na saúde
como um direito mais coletivo que individual e que assegure condições de saúde e segurança
igualmente distribuídas a todas as pessoas em todos os lugares do mundo.73
Considerando a dificuldade conceitual de saúde, os fatores biológicos e sociais
inerentes ao seu conceito e considerando os contornos jurídicos do direito à saúde, é
fundamental o intercâmbio multidisciplinar e sistêmico para se concretizar o direito à saúde.
Vale dizer, para enfrentar de maneira consistente as questões de saúde trazidas ao debate
jurídico é importante que os operadores do Direito que se deparam com as questões sanitárias
busquem conhecer a estrutura e o funcionamento dos sistemas de saúde para não serem
ofuscados pelo mero senso comum. A estruturação do sistema de saúde é complexa e tem
fundamentos históricos e científicos que justificam o seu desenho institucional, de maneira
72 OLIVEIRA, Fabio Cesar dos Santos. Direito de proteção a saúde: efetividade e limites à intervenção do Poder Judiciário.
Revista dos Tribunais, v.865, p.54-84, nov.2007. 73 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.15.
46
que o conhecimento do contexto em que aquelas ações se inserem qualifica a compreensão do
operador do direito e sua interferência no sistema.
As interfaces são tão extensas que a efetivação do direito à saúde hoje, especialmente
pela via judicial – que não é a única, mas é uma importante estratégia de positivar direitos –
passa necessariamente por ampliar os contatos entre as áreas de saúde, do Direito e da própria
Política que norteia as escolhas democráticas do Estado. Uma análise responsável dos casos
de saúde que aportam no Poder Judiciário, nesse sentido, depende de maior diálogo entre
juízes, membros do Ministério Público e advogados com os profissionais de saúde e também
com os gestores públicos responsáveis pela execução dos atos de governo. Esse diálogo faz
sentido em via de mão tripla, de modo que as três áreas possam se comunicar com maior
fluidez.
Nessa linha, há importantes iniciativas de intercâmbio de informações, especialmente
emanadas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Buscando congregar todos os possíveis
atores do sistema de saúde e de justiça, o CNJ instituiu por meio da Resolução n.107/2010, o
Fórum Nacional de Saúde para estudar possíveis soluções em razão da problemática
encontrada no Poder Judiciário, procurando aquilatar o cenário judicial destas ações.74
A
Resolução n.238/2016, por sua vez, determinou a implementação de Fóruns Estaduais de
Saúde.75
3.4 Saúde e direitos humanos
Considerar a saúde como um direito humano é importante não apenas para afirmá-lo
como direito do indivíduo (e não favor ou caridade ou filantropia), mas também para
implementá-lo em consonância com os demais direitos humanos.
A história registra que, a pretexto de se garantir saúde, já houve excessos que
configuraram violações aos direitos humanos. Conforme relata Lawrence Gostin, políticas de
controles de endemias já envolveram discriminação contra pessoas oriundas de países
superpopulosos ou pobres e também excessos contra nacionais dos próprios países em 74 Artigo 1º – Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o monitoramento e
resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de elaborar estudos e propor medidas concretas normativas
para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos. 75 Artigo 1º Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais criarão no âmbito de sua jurisdição Comitê Estadual de
Saúde, com representação mínima de Magistrados de Primeiro ou Segundo Grau, Estadual e Federal, gestores da área da
saúde (federal, estadual e municipal), e demais participantes do Sistema de Saúde (ANVISA, ANS, CONITEC, quando
possível) e de Justiça (Ministério Público Federal e Estadual, Defensoria Pública, Advogados Públicos e um Advogado
representante da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do respectivo Estado), bem como integrante do conselho
estadual de saúde que represente os usuários do sistema público de saúde, e um representante dos usuários do sistema
suplementar de saúde que deverá ser indicado pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor por intermédio dos
PROCON de cada estado.
47
isolamentos, quarentenas e tratamentos compulsórios desproporcionais aos riscos ou
inefetivos.76
Sueli Dallari e Vidal Serrano apontam também a importância de regras internacionais
para “encontrar o equilíbrio entre os custos humanos e o progresso científico, instaurando
sobre o trabalho científico um controle democrático”77
, diante de situações como pesquisas
clínicas sem consentimento ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial e dos trágicos
efeitos da talidomida que exigiram comprovação científica de segurança e eficácia de novos
medicamentos. Nessa esteira, é papel dos direitos humanos evitar sofrimentos desnecessários
de pessoas com o regramento claro sobre a disposição do próprio corpo em relação às
pesquisas científicas e sobre a importância do consentimento válido da pessoa participante da
pesquisa.
A esses relatos, acrescentamos exemplos de alegação de proteção à saúde que viola
direitos humanos em pesquisas clínicas em detentos ou doentes mentais, em testes de
medicamentos sem consentimento do paciente, em internações em estabelecimentos
psiquiátricos asilares que impedem a inclusão social do paciente. A respeito da internação
irregular em estabelecimento psiquiátrico, o Brasil foi condenado em 2006 pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Ximenes Lopes, por maus tratos em hospital
psiquiátricos na cidade de Sobral/CE.
A propósito do atendimento em saúde consentâneo aos direitos humanos, acrescenta
Geisa de Assis Rodrigues:
Aos pacientes é garantido o tratamento humanitário por parte dos profissionais de
saúde, a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração; a garantia de sigilo
nas informações prestadas; o pleno esclarecimento médico, o acesso a informações a
respeito de sua doença e de seu tratamento e o tratamento terapêutico com os meios
menos invasivos possíveis, dentre outros, previstos no Código de Ética Médica. Vale
consignar a importante influência dos precedentes da Suprema Corte norte-
americana, que, na segunda década do século XX, reconheceram a existência
jurídica do direito ao consentimento informado, o que acabou se espraiando para as
normas de deontologia médica de outros países.78
A advertência é relevante porque a saúde é exceção que justifica inclusive a restrição
de outros direitos humanos. Nesse sentido, por exemplo, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos
de 1966, incorporado no direito brasileiro por meio do Decreto n.592/92, estabelece que
medidas previstas em lei e tendentes à proteção da saúde pública podem justificar restrições
aos direitos de livre circulação (artigo 12, item 3), de liberdades religiosa (artigo 18, item 3),
76 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.178. 77 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano; DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p.25. 78 RODRIGUES, Geisa de Assis. Direito sanitário. In: (Coord.). NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de direitos
difusos. 2.ed. São Paulo: Verbatim, 2012, p.333.
48
de expressão (artigo 19, item 3), de reunião (artigo 21) e de associação (artigo 22, item 2). O
Pacto de San Jose da Costa Rica tem disposições semelhantes (artigo 12 em relação à
liberdade de religião, artigo 13 em relação à liberdade de expressão, artigo 15 em relação ao
direito de reunião, artigo 16 em relação à liberdade de associação, e artigo 22 em relação ao
direito de circulação e residência).
Portanto, afirma-se que o direito à saúde é direito humano e deve ser exercido em
equilíbrio com os demais direitos humanos.
49
4 CONTROLE JUDICIAL
O direito à saúde, como um direito humano, é sujeito ao controle judicial conforme
definido pela Constituição Federal (artigo 5º, XXV), que prevê a inafastabilidade da
jurisdição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Cassio Scarpinella Bueno defende que “qualquer forma de ‘pretensão’, isto é, de
‘afirmação do direito’ pode ser levada ao Poder Judiciário para uma solução. Uma vez
provocado, o Estado-juiz tem o dever de fornecer àquele que bateu às suas portas uma
resposta, mesmo que seja negativa”.79
Osvaldo Canela Junior pontua: “comprovada a lesão a direito fundamental, o Poder
Judiciário, autorizado pelo princípio da inafastabilidade, admite o exercício do direito de ação
e lança a mais ampla cognição sobre as políticas públicas realizadas e pelas demais formas de
expressão do poder atual”.80
Marco Antonio da Costa Sabino, por sua vez, sustenta:
A jurisdição e o processo não podem atuar apenas subsidiariamente mas, antes,
devem fazer valer a tutela de qualquer ameaça ou lesão a direito. De fato, se o artigo
3º da Constituição preconiza que um dos objetivos da república é a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, quaisquer políticas que possam comprometer
esses ideais são passíveis de correção judicial, se implementadas (portanto, por ação)
ou não (nesse caso por omissão).81
As garantias processuais são tão importantes quanto o próprio reconhecimento do
direito, conforme define Norberto Bobbio: “o problema fundamental em relação aos direitos
do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los mas o de protegê-los. Trata-se de um problema
não filosófico, mas político”82
(grifos no original). Diante dessa conclusão sobre a influência
política e considerando o dever estatal na concretização dos direitos, Jean Carlos Dias observa
que o controle judicial dos direitos fundamentais é uma salvaguarda institucional e que tem
sentido justamente para retirar algumas decisões do âmbito estritamente político
discricionário.83
79 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p.40. 80 CANELA JUNIOR, Osvaldo. O orçamento e a reserva do possível: dimensionamento no controle judicial de políticas
públicas. In: (Coords.) GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas.
2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.232. 81 SABINO, Marco Antonio da Costa. Quanto o Judiciário ultrapassa seus limites constitucionais e institucionais. O caso da
saúde. In: (Coords.) GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas.
2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.366. 82 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.23. 83 DIAS, Jean Carlos. O controle judicial: direitos fundamentais e a teoria do processo. Revista de Direito Constitucional e
Internacional, v.83/2013, p.95-116, abr.-jun. 2013; Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, v.7/2015, p.1191-
1212, ago. 2015, DTR\2015\11000.
50
Não basta, outrossim, a existência do controle judicial. É importante que o processo
seja efetivo na entrega a cada um do que é seu, conforme destaca Cassio Scarpinella Bueno:
Dito de forma direta: o processo é a forma de atuação do Estado-juiz, é a forma pelo
qual o Estado exerce a chamada jurisdição. Ao longo do processo, o Estado-juiz
praticará uma série de atos que podem ser classificados como atos de
“reconhecimento do direito” e de “realização de direito”. Jurisdição, ao contrário do
que a etimologia da palavra está a sugerir, não se resume a dizer (declarar ou
reconhecer) o direito. Jurisdição é também realizar, cumprir, executar, satisfazer o
direito tal qual reconhecido lesionado ou ameaçado.84
O controle judicial tem sido exercido no Brasil não apenas para corrigir distorções na
aplicação da lei, dentro da lógica binária de certo e errado, mas também para efetivar direitos
em lógica que demanda maior complexidade.
Vivemos em um contexto de elevados níveis de judicialização no Brasil.
Judicialização, segundo Luís Roberto Barroso, “significa que questões de larga repercussão
política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário e não pelas instâncias
políticas tradicionais”.85
Direitos sociais têm sido buscados constantemente no Poder
Judiciário (e nesse aspecto se sobressaem em volume os pedidos de medicamentos e de vagas
em escolas que indicam a preponderância da litigância nas áreas de saúde e educação nos
processos afetos aos direitos sociais). Os pedidos de acesso a saúde por meio de processos
judiciais, nesse sentido, representam a chamada ‘judicialização da saúde’, que pode ser
definida como a decisão sobre a saúde em termos latos no âmbito do Poder Judiciário. A
judicialização envolvendo processos na área de saúde é tão volumosa que comporta sua
consideração como ‘hiperjudicialização da saúde’. Outros importantes temas para a sociedade
têm sido decididos nos tribunais especialmente em razão de falta de solução no âmbito do
Poder Legislativo, como a criminalização do porte de drogas, a união civil entre casais
homossexuais e o aborto em casos de anencefalia.
A estrutura do Estado, baseada na repartição de funções administrativas entre os três
poderes conforme idealizado por Montesquieu no período iluminista, colocou o Poder
Judiciário no papel de árbitro de conflitos mas não de executor de políticas ou de produtor de
leis em sentido amplo. Por isso, o debate judicial sobre a concretização de direitos sociais
passa pela análise do controle judicial da política pública.
Política pública, segundo Maria Paula Bucci, é
84 BUENO, Cassio Scarpinella. A nova etapa da reforma do código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 8. 85 BARROSO, Luís Eduardo. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Eletrônica de Direito do
Estado. n.18, abr.-maio-jun.2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-18-ABRIL-2009-
LUIS%20BARROSO.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2016, p.3.
51
programa ou quadro de ação governamental porque consiste num conjunto de
medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a
máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública ou, na
ótica dos juristas, concretizar um direito.86
Ronald Dworkin define política pública como
O tipo de padrão que define um objetivo a ser atingido, geralmente uma melhora nas
condições políticas, econômicas ou sociais da comunidade (apesar de alguns desses
objetivos serem negativos, nesses casos a política estipula quais características
devem ser preservadas de alterações adversas)87
(tradução livre).
Política pública, segundo pondera Gianpaolo Smanio, tem conteúdo jurídico e por isso
se sujeita a controle:
É importante retomarmos, sob essa ótica, o fato de que as decisões sobre políticas
públicas tomadas pelo Estado ou pelo governo, dependendo da hipótese, são
exercidas e realizadas através do Direito, que por sua vez também as condiciona,
legitimando e delimitando o seu âmbito. O Direito recebe a Política Pública do
ambiente social e do sistema político, conferindo-lhe natureza jurídica própria. Não
há como não fixarmos um conceito jurídico de políticas públicas, pois estas também
são fenômeno jurídico, que pode ser realizado, executado, controlado, enfim
efetivado juridicamente. Isso não exclui a Ciência Política como fonte das Políticas
Públicas, pois muito do fenômeno se realiza em seu âmbito, mas apenas significa
que o fenômeno deve ser reconhecido como jurídico.88
Vale frisar, política pública não é sinônimo de direito subjetivo enquanto direito
individual de obtenção do direito pretendido. Em outras palavras, política pública de saúde é a
forma de gestão do sistema de saúde pelo Estado e não equivale ao direito individual à saúde
do cidadão.
Por isso, deve-se lembrar de que a via judicial não é a via de execução de políticas
públicas. O primeiro locus para se concretizar direitos é o Poder Executivo, que tem a função
de gerir o dinheiro público e a legitimidade popular decorrente do voto para realizar escolhas
administrativas. Nas falhas da política, surgem os mecanismos de controle administrativo,
judicial e social.
Neste contexto, pertinentes, portanto, as reflexões de Maria Paula Bucci:
A atuação judicial na conformação de políticas públicas seria, de certo modo,
imprópria, uma vez que a formulação das políticas públicas cabe, em regra, ao Poder
Executivo, dentro de marcos definidos pelo Poder Legislativo. Entretanto, o debate
judicial sobre a aplicação de políticas públicas é o que se revela mais
intrinsecamente jurídico porque é onde se leva ao limite a questão da
86 BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p.14. 87 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriosly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1977, p.22. 88 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legitimidade jurídica das políticas públicas: a efetivação da cidadania. In: (Coords.)
SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patricia Martins Tuma. O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo:
Atlas, 2013, p.9-10.
52
vinculatividade, isto é, o poder de coerção da norma jurídica, em relação ao direito,
em especial aos direitos sociais.89
Ela adverte, ainda, que o controle jurisdicional
centra-se na proteção a direito, sendo esse o elemento de conexão a considerar. O
Judiciário tutela as políticas públicas na medida em que elas expressem direitos.
Excluem-se, portanto, os juízos acerca da qualidade ou da adequação, em si, de
opções ou caminhos políticos ou administrativos do governo, consubstanciados na
política pública.90
Luiz Manoel Fonseca Pires sublinha que o controle judicial de políticas públicas é
uma “espécie do gênero controle da discricionariedade administrativa”91
e explica:
Toda política pública submete-se ao controle judicial dos seus pressupostos e/ou
elementos vinculados, como a competência e o sujeito, o motivo de fato, a
motivação e a finalidade, e está de acordo com a teoria do desvio de finalidade. O
suposto espaço legítimo da discricionariedade administrativa deve ser confirmado ou
infirmado tanto em análise do âmbito normativo – se a lei ou a emenda
constitucional estão em conformidade com a Constituição – como do exercício da
função administrativa em relação ao momento de ação, à forma, aos requisitos
procedimentais, à formalização, ao objeto, ao conteúdo e ao motivo do direito.92
O controle judicial da política pública tem respaldo nos tratados internacionais e na
ordem constitucional vigente. Seu embrião é o judicial review do sistema americano, que
permitiu o controle de constitucionalidade no consagrado caso Marbury versus Madison em
1803 na Suprema Corte Americana. A revisão do papel tradicional do Poder Judiciário
caminhou ao lado do movimento pela intervenção do Estado no domínio social e da
construção de políticas públicas, com a finalidade de reduzir desigualdades sociais e coibir
violações de direitos sociais pelo próprio Estado.
Os tribunais brasileiros e o Supremo Tribunal Federal registram julgados marcantes
sobre controle judicial da política pública, como, por exemplo, a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 45 em que o Ministro Celso de
Mello impediu a utilização de manobras no orçamento da saúde que implicassem em menor
disponibilidade financeira para a execução da política pública de saúde. Esse caso foi
paradigma na tese de que o Poder Judiciário tem legitimidade para controlar políticas públicas
quando configurado abuso ou omissão pelo Poder Executivo. Do julgado, extrai-se:
89 BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p.22. 90 BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p.31 91 PIRES, Luiz Manoel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos
indeterminados às políticas públicas. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.243. 92 PIRES, Luiz Manoel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos
indeterminados às políticas públicas. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.273.
53
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo
artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira
e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de
fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da
pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF,
Rel. Min. Celso de Mello, Informativo/STF n.345/2004).
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo encampou a tese e sumulou a questão:
Súmula 65: Não violam os princípios constitucionais da separação e independência
dos poderes, da isonomia, da discricionariedade administrativa e da anualidade
orçamentária as decisões judiciais que determinam às pessoas jurídicas da
administração direta a disponibilização de vagas em unidades educacionais ou o
fornecimento de medicamentos, insumos, suplementos e transporte a crianças ou
adolescentes.
Observa-se que o Poder Judiciário tem sido um destacado palco para o debate de
políticas públicas, seja pelas ações individuais volumosas que alteram comportamentos do
poder público, seja em ações coletivas, que são um importante cenário para discutir políticas
públicas. Isto tem mudado o perfil de decisões judiciais e até mesmo da postura dos
julgadores. A postura inicial que considerava o juiz como ‘boca da lei’ se transforma e surge o
‘ativismo judicial’. Ao constatar que a prolação de comandos mandatórios não serve para
efetivar todos os direitos de todas as pessoas na prática e pode causar injustiças em relação
àqueles detentores do direito que não buscaram a via judicial, em muitos processos o Poder
Judiciário tem ampliado o debate, inclusive valendo-se de instrumentos inovadores em termos
processuais.93
Luís Roberto Barroso define: “o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um
modo específico e proativo de interpretar a constituição, expandindo seu sentido e alcance”. E
explica: “a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa
do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no
espaço de atuação dos outros dois poderes”.94
Sobre a admissibilidade da intervenção judicial nas políticas públicas, a doutrina
adverte que há cautelas a serem observadas com a finalidade de coibir excessos do Poder
Judiciário. Segundo o entendimento de Ada Pellegrini Grinover,
93 Nesse contexto, as audiências públicas podem ser convocadas, inclusive no âmbito judicial, para oitiva de todos os
interessados e de setores de sociedade civil em busca da construção de alternativas para a solução do problema sub judice.
Também visando à compreensão da complexidade do problema debatido podem ser admitidos amicus curiae, que intervêm
no processo “por iniciativa própria, por provocação de uma das partes ou, até mesmo, por determinação do magistrado com
vistas a fornecer elementos que permitam o proferimento de uma decisão que leve em consideração interesses dispersos na
sociedade civil e no próprio Estado”, conforme definição de Cassio Scarpinella Bueno (BUENO, Cassio Scarpinella. Manual
de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p.160). 94 BARROSO, Luís Eduardo. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Eletrônica de Direito do
Estado. n.18, abr.-maio-jun.2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-18-ABRIL-2009-
LUIS%20BARROSO.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2016, p.06.
54
o pressuposto, que autoriza a imediata judicialização do direito, mesmo na ausência
de lei ou de atuação administrativa, é a restrição à garantia do mínimo existencial.
Constituem limites à intervenção: a razoabilidade da pretensão individual/social
deduzida em face do Poder Público e a irrazoabilidade da escolha da lei ou do agente
público; a reserva do possível, entendida tanto em sentido orçamentário-financeiro
como em tempo necessário para o planejamento da nova política pública.95
Com a finalidade de instrumentalizar o acesso à saúde por meio do Poder Judiciário
existe o processo. Ele deve ser acessível e disponível aos usuários do sistema de saúde, como
previsto inclusive nos documentos internacionais. A propósito, consta na Recomendação n.14
do Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais:
Toda pessoa ou grupo de pessoas que seja vítima de violações do direito à saúde
deve ter acesso a respostas judiciais efetivas ou outros instrumentos adequados nos
níveis domésticos e internacionais. Todas as vítimas de violações desta natureza
devem ter acesso à reparação adequada, que pode ocorrer por meio de restituição,
compensação, satisfação ou garantias de não-repetição. Ombudsman nacionais,
comissões de direitos humanos, fóruns de usuários, associações de pacientes ou
instituições similares devem poder noticiar violações do direito à saúde. (tradução
livre).96
Apesar de sua justiciabilidade reconhecida nos tratados internacionais, da previsão de
reivindicação do direito à saúde no sistema processual brasileiro e do registro de casos de
efetivação da política pública de saúde pela via judicial, a doutrina adverte quanto aos limites
do instrumento judicial para efetivar direitos sociais, conforme destaca Manoel Gonçalves
Ferreira Filho:
A experiência prática, todavia, não é animadora. Ademais, a efetivação de direitos
sociais, quando reclama a instituição de serviço público, dificilmente pode resultar
de uma determinação judicial. Tal instituição depende de inúmeros fatores que não
se coadunam com o imperativo judicial. Por isso, a inconstitucionalidade por
omissão tem sido letra morta e o mandado de injunção tem pouco servido.97
Ao analisar as ações de saúde no Brasil, Flávia Piovesan constatou que elas não
debatem saúde enquanto direito humano e que os tratados internacionais pouco são
invocados:
[...] no âmbito do direito à saúde, percebe-se que a jurisprudência oscila, por um
lado, a assegurar o acesso à saúde, mediante o fornecimento de medicamentos, como
um direito constitucional inviolável, e, por outro, a tratar saúde como uma relação de
consumo, entre consumidor e fornecedor, merecendo o primeiro, como parte
95 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: (Coords.). GRINOVER, Ada Pellegrini;
WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.149. 96 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. Twenty-second
session Geneva, 25 April-12 May 2000, Substantive Issues Arising in the implementation of the international covenant on
economic, social and cultural rights. General Comment n.14 (2000). Disponível em: <http://tbinternet.ohchr.org>. Acesso
em: 20 maio 2017. 97 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.68.
55
vulnerável maior proteção jurídica. Não se discute a qualidade dos serviços de saúde
prestados, mas, sobretudo, o acesso a esses serviços, seu alcance e cobertura.98
Luís Roberto Barroso explica que essa postura do Poder Judiciário decorre do preparo
judicial para “realizar justiça no caso concreto, a microjustiça” e discorre que nem sempre o
juiz “dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de
determinadas decisões, proferidas em processos judiciais, sobre a realidade de um segmento
econômico ou sobre a prestação de um serviço público”. E utiliza o exemplo da saúde para
concluir seu pensamento:
[...] ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de
decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, que
põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde,
desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos
recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode mas nem sempre deve
interferir [nas políticas públicas de saúde].99
Portanto, apesar de questões ligadas ao caráter predominantemente comutativo do
processo, em contraposição ao caráter distributivo da justiça, é inegável que a via judicial é
importante para se concretizar o direito à saúde. Se, por exemplo, um grande volume de ações
judiciais de medicamentos tem acelerado a apreciação pelos órgãos sanitários a respeito da
incorporação de tecnologias no Sistema Único de Saúde e a sua inclusão nas listas oficiais de
fornecimento de medicamentos, alguns limites do próprio processo judicial impedem que a
via judicial possa ser considerada o primeiro locus para se concretizar o direito à saúde.
98 PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In: (Coords.)
CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Erica Paula Barcha. Direitos fundamentais
sociais. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p.63. 99 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Eletrônica de Direito do
Estado. n.18, abr.-maio-jun.2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-18-ABRIL-2009-
LUIS%20BARROSO.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2016, p.16-17.
56
5 TRIPLO ASPECTO DO DIREITO À SAÚDE
Diante da complexidade do conceito de saúde e do papel do Poder Judiciário em
relação à efetividade de políticas públicas, o desmembramento conceitual de saúde é crucial
para compreender seu alcance e as melhores estratégias para positivá-la.
Atentos ao tema, Sueli Dallari e Vidal Serrano Nunes Junior advertem:
A saúde depende, ao mesmo tempo, de características individuais, físicas e
psicológicas, mas, também, do ambiente social e econômico, tanto daquele mais
próximo das pessoas quanto daquele que condiciona a vida dos Estados. O que
obriga a afirmar que, sob a ótica jurídica, a saúde deverá inevitavelmente implicar
aspectos individuais, sociais e de desenvolvimento.100
Essa cisão conceitual é relevante ao estudo das formas de se efetivar o direito, das
respostas judiciais apresentadas pelo sistema brasileiro, da titularidade do direito e da
responsabilidade do Estado em relação à sua concretização.
A proposta conceitual está baseada na perspectiva evolutiva das gerações de direitos
humanos e não guarda correspondência direta com os sistemas de tutela dos direitos,
especialmente os previstos na Lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do
Consumidor. Há uma evidente distinção entre o tipo de interesse tutelado e o tipo de tutela
processual. No entanto, esse não foi o recorte escolhido neste estudo, realizado pela ótica dos
direitos humanos e segundo a teoria geracional de direitos inaugurada por Marshall e
consagrada por Bobbio.
O aspecto individual, focado na pessoa, refere-se ao seu máximo e melhor bem-estar.
É o direito a manter-se vivo, por meio das medidas necessárias visando prevenir doenças
evitáveis e tratar doenças curáveis. É, também, o direito a manter-se vivo com dignidade,
mediante providências que possam garantir tratamento de doenças e diminuir o sofrimento da
pessoa doente. Por isso, parte-se do princípio de que não existem apenas doenças, mas
pessoas doentes com peculiaridades individuais. Busca-se, portanto, o melhor atendimento
possível para cada pessoa.
O aspecto coletivo enfatiza a saúde como direito da sociedade e, em razão disto, tem
fortes características sociais. Parte do ponto de que saúde é direito de todos e se baseia no fato
de que a saúde de uns interfere na saúde de outros. Liga-se ao direito de não adoecer em
decorrência de agravos evitáveis. É bastante dependente de medidas preventivas de doenças e
de providências tendentes a reduzir agravos. Fundamenta-se em políticas públicas de saúde,
100 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano; DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p.11.
57
que devem ser construídas pelo Estado nos moldes determinados pelo direito respeitando os
conhecimentos cientificamente comprovados da área de saúde. Em suma, é a saúde pública.
O aspecto de desenvolvimento busca elevar os níveis de qualidade de vida da
população e tem fortes marcas globais, especialmente visando reduzir a desigualdade entre as
pessoas. O desenvolvimento contém a premissa de bem-estar social101
e não se limita ao
crescimento econômico, de maneira que a elevação em patamares de desenvolvimento social
(assim como o desenvolvimento político) é internacionalmente reconhecida como
indispensável para se obter a paz e a segurança dentro das nações.102
Esses três aspectos contêm uma escala crescente de titularidade: um individual, outro
difuso e outro de desenvolvimento mais abrangente que os dois anteriores. A diferença de
titularidade evidencia os diversos estágios de concretização do direito e a possibilidade da
implementação progressiva de medidas para seu adimplemento.
O direito à saúde, por aplicação das regras vigentes, é sindicável pela via judicial e
sujeito ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. No entanto, seus diversos
aspectos geram respostas judiciais diversas.
No aspecto individual, o mecanismo judicial é altamente eficiente e tem se revelado
protetivo ao indivíduo porque as medidas postuladas judicialmente pelos pacientes, em regra,
são obtidas por ordens judiciais imperativas que determinam a realização de providências
materiais que atendam às necessidades individuais específicas prescritas pelo sistema de
saúde. A via é operativa e útil tanto em ações propostas em face do Estado quanto em ações
privadas propostas em face de planos e seguros de saúde.
No aspecto coletivo, o mecanismo judicial está disponível ao indivíduo por meio do
sistema de proteção de interesses difusos e coletivos, desenvolvido para tutela de interesses
que atingem titulares indetermináveis e que têm objeto indivisível. No entanto, no que
concerne às questões de saúde pública, por diversas razões, a via judicial não tem sido
suficiente para proteger o direito à saúde coletiva.
No aspecto de desenvolvimento, o mecanismo processual não tem detalhamento
expresso no sistema e sua efetivação nos parece a mais tormentosa pela via judicial.
Assim, quanto mais difuso é o aspecto do direito humano à saúde, mais restrita é sua
proteção judicial na sistemática vigente.
101 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2005, p.51. 102 DECLARAÇÃO e Programa de ação da cúpula mundial sobre desenvolvimento social. Dinamarca, Copenhague, 1995.
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 30 maio 2017.
58
Diante deste cenário, emerge outra constatação aparentemente contraditória: quanto
mais abstrata a vertente do direito à saúde, sua concretização é mais dependente de ação do
Estado e menor é a margem do indivíduo para garantir sua efetivação. Em sentido oposto, é
possível afirmar que no aspecto individual da saúde, a pessoa até tem meios para buscar por
vias próprias o socorro necessário, especialmente porque os caminhos particulares são
disponíveis para atender às necessidades individuais independentemente de ação do Estado.
Nos aspectos coletivos, por outro lado, as ações para concretizar o direito são pouco
disponíveis ao cidadão e dependem bastante da atuação estatal. Vale dizer, um indivíduo
sozinho não consegue formular políticas de prevenção de doenças e depende do Estado para
sua consecução. Tome-se como exemplo as ações de vigilância sanitária atinentes ao combate
ao mosquito transmissor da dengue: o indivíduo adota medidas para sua proteção individual
(especialmente por meio de barreiras físicas), mas não consegue erradicar o mosquito do lugar
em que ele reside (dependentes de ações de vigilância sanitária). No que diz respeito ao
desenvolvimento, há pouquíssimo disponível para ação do indivíduo porque a grande atuação
para efetivar o direito em níveis globais depende de ação do Estado e da comunidade
internacional.
Os três aspectos propostos, entretanto, não se excluem. O fato de se considerar saúde
em seus aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento não significa que cada um
desses aspectos perca importância quando individualmente considerado. Frise-se, com ênfase,
que o indivíduo é o sujeito central de todo o sistema de direitos humanos. Nesse sentido,
importante o destaque de Robério Nunes dos Anjos Filho:
É o indivíduo quem possui direito à saúde, à assistência social e à aposentadoria, e
que até mesmo o direito ao meio ambiente sustentável e equilibrado é passível de ser
reconduzido a uma dimensão individual [...] Ainda que os direitos sociais sejam
considerados direitos do homem situados no plano coletivo, isso não implica que
estes defendam apenas interesses coletivos, pois não se trata de proteger os grupos
como tais, mas sim os indivíduos no seio de suas situações concretas na
sociedade.103
A Constituição Federal cuida da universalidade do sistema de saúde (artigo 196),
indicando a preponderância de sua titularidade coletiva. No entanto, o texto constitucional não
restringe a saúde aos aspectos coletivos, conforme destaca Ingo Sarlet:
É justamente esta referência expressa ao princípio da universalidade, ou seja, de que
o direito à saúde é um direito universal, no sentido de um direito de todos e de
qualquer um, que fornece, desde logo, um indicativo de não estar em causa, pelo
menos não com arrimo apenas neste argumento, a circunstância – atualmente
sustentada por alguns – de que a titularidade do direito à saúde seria necessariamente
103 ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.127.
59
coletiva (transindividual), menos ainda no sentido de uma exclusão da titularidade
individual.104
O direito à saúde se liga à dignidade da pessoa humana e, por isso, convivem seus
aspectos individuais e coletivos, assim como seus aspectos de desenvolvimento. O professor
gaúcho destaca que os direitos sociais são assim considerados por seu objeto e não pela
titularidade exclusivamente coletiva:
Os direitos sociais não são sociais pelo fato de serem, em primeira linha (ou
exclusivamente) direitos coletivos, no sentido de sua titularidade ser eminentemente
coletiva. Os direitos sociais assim foram e têm sido designados por outra razão,
mesmo no âmbito da superada distinção entre direitos individuais e direitos sociais,
visto que tal distinção não repousa na titularidade coletiva dos direitos sociais, mas
na natureza e objeto dos direitos.105
E o desafio, segundo o professor Ingo Sarlet, como se trata de “direito de todos e de
cada um, é saber harmonizar – sem que ocorra a supressão de uma das dimensões”.
A cisão dos aspectos também permite visualizar que o direito à saúde, como um
direito humano, é oponível mesmo em relações privadas. É a chamada projeção horizontal dos
direitos humanos que faz com que as pessoas ocupem, ao mesmo tempo, posições ativa e
passiva das obrigações respectivas. Esse raciocínio faz sentido quando se avaliam os critérios
de equidade intergeracional que norteiam os debates de desenvolvimento sustentável,
conforme aponta Robério Nunes Anjos Filho.106
E também faz sentido porque regras de
economia têm forte influência sobre os direitos sociais. Não é desarrazoado afirmar que
pessoas jurídicas de direito privado como agentes econômicos são geradoras potenciais de
desenvolvimento e que, por isso, podem ter responsabilidade pelo desenvolvimento e pela
saúde inserida em seu conteúdo.
A eficácia horizontal dos direitos humanos busca maximizar a concretização de
direitos. No entanto, conforme ensina Daniel Sarmento, os direitos fundamentais atingem os
particulares de forma diferente em relação ao Estado porque deve ser sopesado o direito em
jogo e a autonomia privada da pessoa cujo comportamento se cogita restringir. Segundo ele,
cada pessoa ou entidade privada tem a obrigação jurídica de respeitar o direito alheio, mas
não tem o dever de protegê-lo porque o uso da força é inerente ao poder do Estado.107
5.1 Aspectos individuais
104 SARLET, Ingo. O direito à proteção e promoção da saúde entre tutela individual e transindividual. Revista de Processo,
v.199, p.13-40, set.2011. 105 SARLET, Ingo. O direito à proteção e promoção da saúde entre tutela individual e transindividual. Revista de Processo,
v.199, p.13-40, set.2011. 106 ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.229. 107 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
60
O direito à saúde na sua vertente individual enfatiza o máximo bem-estar do indivíduo.
Envolve o direito a se manter saudável e a tratar doenças. É o direito a obter tratamento
integral, atendimento médico e fornecimento de insumos e remédios quando houver doenças a
serem tratadas.
A saúde individual é tão peculiar que a saúde de um indivíduo difere da de outro
indivíduo. Tão sujeita a percepções individuais que o mesmo paciente examinado por dois
médicos pode receber dois tratamentos distintos e ambos fundamentados em boa técnica
científica.
Nesse sentido, argumenta Moacyr Scliar:
O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Ou
seja: saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da
época, do lugar, da classe social. Dependerá de valores individuais, dependerá de
concepções científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das
doenças. Aquilo que é considerado doença varia muito.108
O aspecto individual da saúde tem se mostrado ilimitado diante da quantidade de
potenciais soluções que a ciência traz para aumentar a saúde, reduzir doenças e prolongar a
vida. Marco Antonio da Costa Sabino constata:
[...] um cumprimento exato e perfeito do comando constitucional é uma tarefa
hercúlea e virtualmente impossível, e variados fatores concorrem para esta
conclusão: a) a infindável gama de doenças e moléstias que acometem a população;
b) o não menos infindável compêndio de medicamentos e doenças a tratar tais
ocorrências, uns com grau de eficiência maior que outros, uns com custo diverso de
outros; c) o surgimento de novas doenças e novos medicamentos e tratamentos; d) a
necessidade de tempo para aperfeiçoamento do fármaco e constatação de sua
segurança e eficácia; e) a burocracia do Estado, que igualmente demanda tempo para
análise, aceitação do medicamento, inclusão nas listas de dispensação obrigatória,
aquisição por meio de licitação e disponibilidade nos postos de saúde (i.e. ausência
de recursos humanos adequados, impossibilidade ocasional de estudo sobre os
medicamentos, ausência de investimentos na realização de pesquisas e cooptação
das autoridades por interesses privados, dentre outros fatores).109
Sueli Dallari observa que o direito à saúde como direito individual privilegia a
liberdade em sua mais ampla acepção:
As pessoas devem ser livres para escolher o tipo de relação que terão com o meio
ambiente, em que cidade e que tipo de vida pretendem viver, suas condições de
trabalho, e, quando doentes, o recurso médico sanitário que procurarão, o tipo de
tratamento a que se submeterão, dentre outros. Note-se também que ainda sob a
ótica individual o direito à saúde implica a liberdade do profissional de saúde para
108 SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis, Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, p.29-41, 2007. 109 SABINO, Marco Antonio da Costa. Quanto o Judiciário ultrapassa seus limites constitucionais e institucionais. O caso da
saúde. In: (Coords.) GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas.
2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.372.
61
determinar o tratamento. Ele deve, portanto, poder escolher entre todas as
alternativas existentes aquela que, no seu entender, é a mais adequada.110
São inseridas neste contexto, inclusive, a opção de pessoas conscientes e lúcidas por
não tratar doenças ou escolher procedimentos em momentos terminais por meio de
testamentos vitais ou declarações antecipadas de vontade, explicitando sua intenção com
relação aos cuidados de saúde que deseja ou não receber ao final da vida. A propósito, dispõe
o artigo 15 do Código Civil: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de
vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Saúde em seu aspecto individual é direito de titularidade ativa do indivíduo. Ele pode
escolher a forma que irá exercê-lo e, em alguns casos como citado acima, até pode renunciá-
lo.
A titularidade passiva é primordialmente do Estado, a quem foi atribuído o dever
prestacional de saúde pelos tratados de direitos humanos e pela Constituição Federal. Assim, é
possível que o Estado seja acionado para prover medidas que atendam às necessidades de
saúde das pessoas. Em razão da solidariedade imposta pelo artigo 198, §1º da Constituição
Federal, cada um dos três entes da Federação – União, Estados e Municípios – deve financiar
o sistema de saúde e tem responsabilidade pelo direito à saúde dos indivíduos.
Mas também é possível inserir no polo passivo do direito à saúde os particulares, tanto
porque a Constituição Federal, em seu artigo 199, permite que a iniciativa privada integre o
sistema de saúde de forma complementar quanto porque o Código de Defesa do Consumidor
impõe o dever de preservar a saúde nas relações que disciplina. A participação da iniciativa
privada na saúde fundamenta a prestação de serviços privados e planos de saúde em atividade
considerada de natureza econômica, sujeita às regras das relações de consumo apesar de sua
fiscalização pelo Poder Público (artigo 200, I da Constituição Federal). Nessa linha, são
sujeitos passivos do direito à saúde entes particulares contratados para essa finalidade, como
operadoras e planos de saúde, médicos, hospitais e clínicas contratados pelo paciente. No
âmbito das relações de consumo, os prestadores também podem responder passivamente pela
saúde, porque a legislação consumerista proíbe inserir no mercado de consumo produtos e
serviços que acarretem riscos “à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os
considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os
fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu
respeito” (artigo 8º do Código de Defesa do Consumidor).
110 DALLARI, Sueli. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 1988, p.59.
62
Particulares não contratados também podem ser inseridos no polo passivo do direito à
saúde, especialmente no aspecto negativo, que impõe abstenção de condutas violadoras à
saúde alheia e protegidas legalmente. A lei penal prevê que periclitação da vida, isto é,
exposição da vida de alguém a perigo, é crime previsto no artigo 132 do Código Penal.111
Também é possível enquadrar a titularidade passiva do direito à saúde em particulares sem
vínculo contratual no aspecto positivo, o qual impõe dever de solidariedade entre as pessoas.
Aqui se incluem as regras, por exemplo, de socorro a pessoas doentes e que podem até
comportar punição sob a ótica penal pelo crime de omissão de socorro previsto no artigo 135
do Código Penal.112
No entanto, são pertinentes as cautelas propostas por Daniel Sarmento de
que a vinculação do particular a determinada obrigação positiva decorrente de direito social
depende da existência de alguma conexão entre a relação jurídica mantida pelas partes e a
natureza da obrigação jusfundamental.113
5.1.1 Ações individuais de saúde
O aspecto individual tem se mostrado prioritário, especialmente nas ações judiciais
propostas na última década. As ações judiciais individuais, em regra, no âmbito público, são
aquelas propostas pelos cidadãos em face das Fazendas Públicas com base em receituários
médicos, públicos ou particulares, que indicam as prescrições diante de uma determinada
doença.114
Normalmente debatem o direito do cidadão ao atendimento de sua prescrição
médica, de um lado, e a resistência do Poder Executivo, de outro, sob o argumento de que o
serviço de saúde deve ser prestado mediante políticas públicas e que não há orçamento
público que possa garantir toda espécie de tratamento disponível no mundo a todas as pessoas,
sem qualquer aferição qualitativa de seu conteúdo. Estas ações utilizam comumente as vias de
mandado de segurança ou ações de obrigação de fazer.
O conflito inerente a esse tipo de ação contém um componente especial de urgência,
em razão da peculiar situação do paciente que precisa de atendimento eficiente e rápido. Por 111 “Artigo 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de três meses a um ano, se o
fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou
da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer
natureza, em desacordo com as normas legais”. 112 “Artigo 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou
extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro
da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se
da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte”. 113 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 114 No âmbito privado, há também numerosas ações debatendo direito à saúde entre usuários e operadoras ou planos de saúde
com fundamento no Código de Defesa do Consumidor. Apesar de planos e operadoras de saúde integrarem o sistema de
saúde de forma complementar (Constituição Federal, artigo 199), a relação privada, a existência de contrato e as regras
consumeristas afastam as ações envolvendo planos e operadoras de saúde do enfoque escolhido neste estudo.
63
outro lado, há questões polêmicas na controvérsia, que envolvem a concretização dos direitos
sociais, tais como a aplicação prática do princípio da dignidade da pessoa humana, a garantia
do mínimo vital dos direitos fundamentais frente às limitações orçamentárias e a necessidade
de planejamento e de execução de políticas públicas complexas.
Como o Poder Judiciário tem sido bastante chamado para dirimir estes conflitos e
proteger o direito fundamental à saúde, importante ponderar que essa é uma oportunidade de
aplicação prática do princípio da igualdade. O objetivo é que a interferência judicial na
concretização do direito à saúde daqueles que buscaram socorro judicial não cause
desigualdade em relação àqueles que não tiveram acesso à justiça, mas têm o mesmo direito à
saúde. Essas ações individuais tutelam direitos subjetivos dos postulantes e não têm vocação
para controlar a política pública. Logo, medidas que compatibilizem os aspectos individuais
buscados por meio de ações individuais com os aspectos sistêmicos da saúde devem se
destacar como uma preocupação do sistema político, do Poder Executivo e do próprio Poder
Judiciário.
A análise dos números das ações judiciais contabilizadas com essa temática chama a
atenção para uma crescente considerável em termos absolutos, que revela a possível
influência dessas ações em relação ao funcionamento estrutural do sistema único de saúde.
Segundo Ana Luiza Chieffi e Rita Barradas Barata, a Secretaria de Estado da Saúde de
São Paulo gastou, com o cumprimento das decisões judiciais da comarca da capital, R$ 65
milhões para atender cerca de 3.600 pessoas. No mesmo ano, investiu R$ 838 milhões no
Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional (alto custo), atendendo 380 mil
pessoas. Foram gastos aproximadamente R$ 18 mil por paciente com ações judiciais naquele
ano, enquanto o Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional consumiu R$ 2,2
mil por paciente.115
Além disso, somado à desproporção de gastos mencionada, na última década, o
aumento dos números absolutos foi exponencial. Dados oficiais do Conselho Nacional de
Justiça demonstram que até 2014 havia 62.291 ações em andamento cadastradas nos
Tribunais Regionais Federais e 330.630 ações em andamento nos Tribunais de Justiça dos
Estados sobre o tema.116
Em termos qualitativos, os dados oficiais do Estado de São Paulo apontam muitas
ações nas quais os medicamentos postulados judicialmente são protocolares (constam nos
115 CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e equidade.
Rio de Janeiro, Caderno de Saúde Pública, ago.2009, p.1839-1849. 116 BRASIL. Portal do Conselho Nacional de Justiça. Relatórios de cumprimento da Resolução CNJ n.107. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/demandasnostribunais.forumSaude.pdf>. Acesso em: 21 set. 2016.
64
protocolos oficiais do Sistema Único de Saúde), itens de comercialização ainda não aprovados
pela ANVISA (falta análise sobre segurança sanitária e eficácia), medicamentos sem
prescrição médica (que podem ser substituídos por alternativas terapêuticas protocolares, sem
conferência dos equivalentes previstos nos protocolos do Sistema Único de Saúde) ou
medicamentos de referência (relacionados a uma marca ou fabricante quando comportariam
substituição por medicamentos genéricos ou similares).117
Um estudo recente elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça apontou que (a) as
demandas judiciais têm predominantemente foco curativo; (b) predomina a litigância
individual; (c) há tendência do deferimento da antecipação de tutela e do provimento final; e
(d) há pouca menção à audiência pública do Supremo Tribunal Federal, ao CNJ e ao Fórum
Nacional de Saúde.118
Fernando Rister de Sousa Lima, em extensa análise das decisões proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal sobre o direito à saúde, contidas em tese defendida sob o enfoque
da filosofia do direito, analisou o papel do Supremo Tribunal Federal nas ações referentes a
pedidos de medicamentos. A sua análise se aplica às demais instâncias judiciais, porque os
parâmetros definidos em última instância conduzem a interpretação do tema em todo o Poder
Judiciário. O estudo concluiu que o debate atual travado na Suprema Corte atende apenas à
microjustiça, aquela que se resume às partes do processo. Ele pondera que há racionalidade
bem definida “em favor da efetividade do direito à saúde no que diz respeito à justiça
adjudicatória”119
e não como um problema distributivo porque “a questão do direito à saúde
como direito público social ainda está muito incipiente, sendo ainda utilizada como retórica
para justificar o individual, mas a questão global, complexa, que gira ao entorno desse
problema, encontra-se muito longe de qualquer encaminhamento”.120
Os números da ‘judicialização da saúde’ nos aspectos individuais revelam que o Poder
Judiciário tem cumprido um importante papel na efetivação da saúde em seu âmbito mediato,
conforme postulada pelos litigantes por inteligência dos artigos 5º, XXXV e 196 da
Constituição Federal. Pesquisas de jurisprudência realizadas em em tribunais superiores, em
tribunais de segunda instância e em primeiro grau de jurisdição demonstram grande êxito dos
indivíduos que postulam judicialmente por prestações em saúde, seja em face do Poder
117 SIQUEIRA, Paula Sue Facundo. Judicialização da saúde no Estado de São Paulo. In: Para entender a gestão do SUS.
Brasília: CONASS, 2015, p.8-10. 118 ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseli (Coords.). Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2015, p.43. 119 LIMA, Fernando Rister de Sousa. Saúde e Supremo Tribunal Federal. Lisboa, Juruá, 2016. 120 LIMA, Fernando Rister de Sousa. Saúde e Supremo Tribunal Federal. Lisboa: Juruá, 2016, p.182.
65
Público (envolvendo qualquer dos três entes da federação responsáveis pela saúde – União,
Estados e Municípios) seja em face de planos ou operadoras de saúde.
O mapa dos lugares-comuns na microjustiça traçado por Fernando Rister de Sousa
Lima definiu os principais pontos discutidos nas ações apreciadas pelo Supremo Tribunal
Federal:
I) a efetivação do direito à saúde não se trata de violação ao princípio da separação
dos poderes; II) o direito à saúde é um direito público subjetivo indisponível; III)
normas consideradas programáticas não podem ser reputadas promessa
constitucional inconsequente; IV) o Ministério Público tem legitimidade para
postular em juízo o direito à saúde; V) temática enfrentada (julgada) à luz da
adjudicação e não de um problema distributivo; VI) solidariedade dos entes públicos
(União, estados e municípios) como responsáveis pela manutenção do direito à
saúde; VII) prestação de tratamentos não incluídos na lista da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA); VIII) desqualificação da reserva do possível como
desculpa para a não efetivação do direito à saúde.121
O cenário revela que os pedidos veiculados judicialmente são deferidos conforme
postulados e, muitas vezes, sem a contextualização sistêmica necessária ao rigoroso
cumprimento do artigo 196 da Constituição Federal. Por meio de ações judiciais são obtidos
provimentos que determinam obrigações de fazer tendentes ao cumprimento de prescrições
médicas trazidas pelo paciente sem o confronto do pedido com a política pública vigente.
Conquanto garanta o acesso individual à saúde daquele indivíduo em termos imediatos, em
termos mediatos essas ações têm um importante impacto coletivo que deve ser avaliado, não
de forma restrita à gestão de volume processual, mas com foco na efetivação do direito do
cidadão no sentido mais amplo possível.
A preocupação com os reflexos do acolhimento indistinto das ações individuais no
sistema de saúde, entretanto, tem sido apresentada dentro do sistema de justiça por meio de
iniciativas destacadas.
No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, no processo da Suspensão de Tutela
Antecipada n. 175, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, foi realizada audiência pública
em 2009 pela qual foi debatida a ‘judicialização da saúde’.122
A decisão determinou o
fornecimento do medicamento individualmente postulado, mas envolveu a oitiva das partes,
de especialistas, de órgãos de direitos humanos e da sociedade, em evidente abertura do Poder
Judiciário ao diálogo plural além das partes daquele processo.
No ano de 2016, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n.5.501,
de relatoria do Ministro Marco Aurélio, durante a discussão do fornecimento da
121 LIMA, Fernando Rister de Sousa. Saúde e Supremo Tribunal Federal. Lisboa: Juruá, 2016, p.83. 122 Suspensão de Tutela Antecipada n.175, requerida pela União Federal em face de julgado oriundo do Tribunal Regional
Federal da 5ª Região, relator Ministro Gilmar Mendes. Acórdão publicado em 30.04.2010.
66
fosfoetalonamina (a ‘pílula do câncer’), o Supremo Tribunal Federal decidiu pela
impossibilidade de o Poder Judiciário autorizar o fornecimento de remédios que não tenham
sido submetidos a estudos clínicos nos moldes definidos pelo órgão sanitário. A eficácia da
Lei n.13.269/2016 – que autorizou o uso da substância fosfoetanolamina sintética por
pacientes diagnosticados com neoplasia maligna apesar dos esclarecimentos formulados pela
ANVISA de que ela não poderia tecnicamente ser considerada remédio123
– foi suspensa em
decisão liminar; ainda não foi proferida decisão final sobre o tema.124
A decisão judicial neste
caso foi acertada porque estudos clínicos posteriores comprovaram a ineficácia da substância
para o tratamento do câncer,125
no mesmo sentido da advertência técnica preparada pela
ANVISA.
A polêmica sobre o objeto do direito à saúde e seus aspectos sistêmicos segue na pauta
atual do Supremo Tribunal Federal: em recentes debates de repercussão geral, o órgão tem
analisado o dever do Estado em fornecer medicamentos de alto custo e fármacos não
autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RE 566471126
e RE 657718127
).
Nesses casos, os Ministros Marco Aurélio, Edson Facchin e Luís Roberto Barroso já
proferiram votos, buscando uma interpretação da Constituição que assegure o acesso aos
medicamentos com base em critérios que garantam maior equidade no acesso à justiça.
Há, ainda, julgamentos destacados nos quais se aguarda decisão em caráter de
repercussão geral sobre os limites da interferência judicial na determinação de obrigações de
fazer destinadas ao atendimento do direito social à saúde128
e sobre a solidariedade dos entes
federados no dever de prestar assistência à saúde.129
Desses julgados, extrai-se a tendência do Supremo Tribunal Federal em vedar a
responsabilidade do Estado por medicamentos e tratamentos experimentais e em atribuir
preferência aos medicamentos e tratamentos pelas políticas públicas já instituídas, a
123 BRASIL. Anvisa. Superintendência de Medicamentos e Produtos Biológicos (SUMED/ANVISA). Nota Técnica
n.56/2015. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/>. Acesso em: 22 jun. 2017. 124 Ação Direta de Inconstitucionalidade n.5501, requerida pela Associação Médica Brasileira com decisão monocrática
proferida em 27.05.2016 pelo Ministro Marco Aurélio. 125 CAMBRICOLI, Fabiana. Sem resultados de eficácia, pesquisa com 'pílula do câncer' é suspensa. O Estado de S. Paulo.
Publicada em 31 de março de 2.017. Disponível em: <http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sem-apresentar-resultados-
de-eficacia-pesquisa-sobre-pilula-do-cancer-e-suspensa,70001721756>. Acesso em: 22 jun.2017. 126 Recurso Extraordinário n.566.471, interposto pelo Estado do Rio Grande do Norte em ação proposta por Carmelita
Anunciada de Sousa. Rel. Min Marco Aurélio. Decisão proferida em 15.09.2016. Julgamento suspenso com pedido de vista
do Min. Luís Roberto Barroso. 127 Recurso Extraordinário n.657.718 interposto por Alcirene de Oliveira em face de acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça de Minas Gerais em favor do Estado de Minas Gerais. Decisão proferida em 15.09.2016. Julgamento suspenso com
pedido de vista do Ministro Luís Roberto Barroso. 128 Recurso Extraordinário n.684.612, interposto pelo Município do Rio de Janeiro em ação proposta pelo Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro. Relator Ministro Ricardo Levandowski. 129 Recurso Extraordinário n.855.178, interposto pela União em ação proposta por Maria Augusta da Cruz Santos. Relator
Ministro Luis Fux.
67
evidenciar sua preocupação com os reflexos coletivos decorrentes de ordens judiciais
proferidas em ações individuais.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, da mesma forma, há julgamentos
relevantes que subsidiam o estudo das ações de medicamentos, tanto para a sua efetividade
quanto para a sua subsunção às regras de direito público que norteiam o funcionamento do
Sistema Único de Saúde.
O tema de recurso repetitivo número 84 firmou a tese: “tratando-se de fornecimento de
medicamentos, cabe ao juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo,
se necessário, determinar até mesmo o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o
seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação” (Resp. 1069010/RS). Já o
tema de recurso repetitivo número 686 optou pela seguinte tese:
O chamamento ao processo da União com base no artigo 77, III, do CPC, nas
demandas propostas contra os demais entes federativos responsáveis para o
fornecimento de medicamentos ou prestação de serviços de saúde, não é impositivo,
mostrando-se inadequado opor obstáculo inútil à garantia fundamental do cidadão à
saúde (Resp. 1203244/SC).130
O tema de recurso repetitivo número 106 definirá a “Obrigação do Poder Público de
fornecer medicamentos não incorporados, através de atos normativos, ao Sistema Único de
Saúde” (Resp. 1657156/RJ). Neste caso, na ocasião em que afetou o julgamento do processo
nos termos do artigo 1037 do Código de Processo Civil, o Superior Tribunal de Justiça
determinou a suspensão de todas as ações individuais que versam sobre a controvérsia.
Esses processos, que comportam amplo debate, trarão importantes nortes para o futuro
da própria efetivação do direito à saúde e exigem compatibilizar aspectos individuais com
políticas públicas sociais de saúde. Por isso, aguarda-se que a atuação não seja meramente
simbólica, conforme adverte Fernando Rister de Sousa Lima.131
As ações individuais de saúde normalmente envolvem pedidos de medicamentos,
terapias ou insumos. No entanto, a garantia do direito à saúde do cidadão é maior que o
próprio fornecimento de medicamentos, terapias ou insumos. O fornecimento de
medicamentos é parte da responsabilidade do Estado em relação à saúde, que é ampla. Por
isso, o recorte escolhido para este estudo não foi a assistência farmacêutica, apesar de este ser
o tema que atualmente envolve o maior número de processos judiciais relacionados à saúde
em trâmite no Poder Judiciário. O direito à saúde, no seu aspecto curativo, é prestado por 130 No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo editou as Súmulas 29 e 37, respectivamente:
“Inadmissível denunciação da lide ou chamamento ao processo na ação que visa ao fornecimento de medicamentos ou
insumos” e “A ação para o fornecimento de medicamento e afins pode ser proposta em face de qualquer pessoa jurídica de
Direito Público Interno”. 131 LIMA, Fernando Rister de Sousa. Saúde e Supremo Tribunal Federal. Lisboa: Juruá, 2016, p.188.
68
meio de atendimento médico para diagnosticar doença e oferecer tratamento adequado. O
tratamento ocorre por meio de medicamentos testados e de atendimentos realizados por
profissionais bem treinados para não colocar em risco a saúde e a própria vida do paciente.
Há, destaque-se, o aspecto preventivo que é crucial para se efetivar o direito à saúde da
população. Ou seja, a assistência farmacêutica é uma parte do processo de oferecimento de
prestações estatais em saúde pública. Sustenta-se, portanto, que oferecer saúde é mais que
oferecer remédios e que o cumprimento do dever estatal depende dessa análise ampla sob a
ótica dos direitos humanos.
A propósito, Lawrence Gostin argumenta:
Saúde com justiça não se realiza pela entrega de intervenções médicas heroicas ou
por vitórias judiciais individuais em relação a algumas terapias. Justiça se entrega
com itens cotidianos que podem muitas vezes estar sendo desprestigiados e que
influenciam na saúde tais como disponibilidade de água limpa nas torneiras,
saneamento básico, oferta de comida não contaminada, vigilância sanitária apta a
controlar a disseminação de doenças, etc.132
(tradução livre).
O fato de as ações individuais tutelarem interesses individuais não significa que elas
não podem servir ao controle da política pública de saúde. O debate processual sobre interesse
público não se limita ao processo coletivo; além disso, por meio das ações individuais
também é possível intervir na política pública. É o que destaca Hermes Zaneti Junior:
O direito individual à saúde, por exemplo, como direito subjetivo que é, poderá
encetar apreciação judicial de um caso concreto e individual, mesmo que a
generalização do caso leve o Estado a prover, a posteriori, uma política pública
eficiente para solucionar os casos análogos.133
Na mesma linha, segundo Ada Pellegrini Grinover, “é certo também que por
intermédio de uma demanda individual podem ser protegidos direitos e interesses coletivos
lato sensu”.134
E pontua:
Existem demandas individuais com efeitos coletivos, conceituados no artigo 81, I e
II do CDC, às quais se aplica induvidosamente o artigo 83 do CDC c.c. artigo 21 da
Lei de Ação Civil Pública [...] Mesmo na tutela jurisdicional exclusivamente
individual é aplicável o princípio de que são admissíveis todas as espécies de ações
capazes de propiciar a adequada e efetiva proteção de qualquer direito ou
interesse.135
132 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.425. 133 ZANETI JUNIOR, Hermes. A teoria da separação de poderes e o estado democrático constitucional: funções de governo e
funções de garantia. In: (Coords.) GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas
públicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.56. 134 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: (Coords.). GRINOVER, Ada Pellegrini;
WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.145. 135 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. In: (Coords.). GRINOVER, Ada Pellegrini;
WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.146-147.
69
O novo Código de Processo Civil, com suas inovações principiológicas trazidas ao
ordenamento jurídico em 2015, também é um importante instrumento que pode contribuir
para melhor solucionar a equação, conforme já sustentamos: “O novo perfil do processo civil
cooperativo altera a posição estática tradicional do juiz nos autos, de modo que seu papel
instrutório recomenda que sua atuação seja destinada a concretizar direitos, e não apenas a
dizer o direito no caso concreto”.136
Embora não tenha disciplinado os aspectos do processo coletivo, o Código de
Processo Civil 2015 previu mecanismos que revelam uma preocupação com os aspectos
coletivos das demandas individuais, como a cientificação do Ministério Público e da
Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas (artigo 139, X137
) e o incidente de
resolução de demandas repetitivas (artigos 976 e seguintes).138
O mecanismo do artigo 1036
do Código de Processo Civil, que cuida da afetação em recursos especiais ou extraordinários
com fundamento em idêntica questão de direito, também se enquadra nesse equilíbrio de
demandas individuais e coletivas.139
5.2 Aspectos coletivos
O direito à saúde na sua vertente difusa é definido essencialmente como o direito à
saúde pública. Envolve políticas públicas de saúde que criem condições à vida saudável das
pessoas e ao tratamento de doenças, com grandes notas transversais relacionadas a outros
direitos. Nesse sentido, proteção da saúde pública se liga, dentre outros, a direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, à habitação, à educação, ao trabalho e à assistência
social.
A interferência da saúde de uns na saúde de outros impõe a análise da saúde sob o viés
coletivo. É o que já dizia Hipócrates, no século IV a.C., ao se referir à influência da cidade e
do tipo de vida de seus habitantes sobre a saúde e ao afirmar que o médico não cometeria
136 ALVES, Aline Jurca Zavaglia Vicente; SANTOS, Ceres Linck. Anamnese e o juiz: contribuições à efetividade sistêmica
da tutela antecipada antecedente nas ações individuais de saúde. Revista de Processo, v.266/2017, p.341-363, abr.2017. 137 “Artigo 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: [...] X – quando se deparar
com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível,
outros legitimados a que se referem o artigo 5o da Lei n.7.347, de 24 de julho de 1985, e o artigo 82 da Lei n.8.078, de 11 de
setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva”. 138 O artigo 333 do Código de Processo Civil previa a possibilidade de conversão de ação individual em ação coletiva mas foi
vetado. 139 O Superior Tribunal de Justiça, em 03/05/2017, definiu o tema de recurso repetitivo número 106 e decidiu afetar o
julgamento do Recurso Especial n.1657156/RJ, submetendo a julgamento a questão referente à “Obrigação do Poder Público
de fornecer medicamentos não incorporados, através de atos normativos, ao Sistema Único de Saúde” (Resp. 1657156/RJ),
determinando a suspensão de todas as ações individuais e coletivas que tratam do tema no país e estão pendentes de
julgamento.
70
erros ao tratar doenças de determinada localidade se compreendesse adequadamente estas
influências.140
Estudos sanitários atestam que a proteção coletiva da saúde tem maior eficiência
social, como destacam Lenaura Lobato e Ligia Giovanella: “a proteção à saúde será tanto
mais ampla quanto mais a sociedade entender a saúde como um problema coletivo, não de
cada indivíduo ou família, mas de todos os cidadãos”.141
Lawrence Gostin sublinha que os aspectos coletivos devem ser priorizados quando se
avalia a saúde porque:
A saúde da população nunca será efetiva se as intervenções forem apenas médicas e
direcionadas apenas aos indivíduos. Os tijolos do prédio da saúde pública devem ser
assentados para que a sociedade possa efetivamente desfrutar de sistemas de saúde
fortes, uma vez que o viés da saúde pública conduz à saúde global com justiça142
(tradução livre).
O tratamento coletivo das questões de saúde é imperativo do próprio artigo 196 da
Constituição Federal segundo o qual a saúde será garantida “mediante políticas sociais e
econômicas que visem a redução dos agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços de saúde para sua promoção, proteção e recuperação”.
Do texto constitucional extraímos aspectos de saúde pública não apenas do artigo 196,
mas também das atribuições do Sistema Único de Saúde definidas no artigo 200. Dentre as
funções destacadas nesse dispositivo, exemplifica-se parte do objeto da proteção do direito à
saúde em seu aspecto coletivo:
I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a
saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos; II – executar as ações de vigilância sanitária e
epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III – ordenar a formação de
recursos humanos na área de saúde; IV – participar da formulação da política e da
execução das ações de saneamento básico; V – incrementar, em sua área de atuação,
o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação; VI – fiscalizar e
inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como
bebidas e águas para consumo humano; VII – participar do controle e fiscalização da
produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos,
tóxicos e radioativos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele
compreendido o do trabalho.
O comando constitucional em questão contempla parte do objeto do direito à saúde em
seu viés coletivo porque o principal objeto é construir políticas públicas de saúde, priorizando
140 DALLARI, Sueli. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 1988, p.57. 141 LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; GIOVANELLA, Lígia. Sistemas de saúde: origens, componentes e dinâmica.
In: GIOVANELLA, Lígia; ESCOREL, Sarah; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; NORONHA, José Carvalho de;
CARVALHO, Antonio Ivo de. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. 142 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.423.
71
ações preventivas que garantam acesso universal e igualitário. Os aspectos do artigo 200,
contudo, são relevantes porque não comportam fruição individual, a exemplo da fiscalização e
do controle de medicamentos, da fiscalização e do controle de segurança alimentar e das
atividades de vigilância sanitária.
Neste sentido, Geisa Rodrigues argumenta:
A dimensão difusa do direito à saúde é que garante a todos a adoção de medidas
públicas de prevenção e promoção do bem-estar sanitário da coletividade e de cada
um de seus integrantes. Há um interesse de toda a sociedade no sentido da proteção
da saúde de todos os seus membros.143
Os aspectos coletivos não eliminam os aspectos individuais. Entretanto, há situações
nas quais os aspectos coletivos devem preponderar, conforme anota Fabio Oliveira:
Conquanto os instrumentos de proteção da saúde pública não possam, com espeque
na preservação dos interesses da sociedade, excluir absolutamente os direitos e
liberdades individuais de forma abstrata em hipóteses de colisão, é inegável ressaltar
a importância da face coletiva do direito de proteção à saúde, que avulta em países
onde a redução da mortalidade infantil, o fornecimento de água potável e a
instalação de rede de saneamento básico consubstanciam desafios a serem
vencidos.144
Ao avaliá-la sob seus aspectos sociais, Sueli Dallari pontua que a saúde coletiva
privilegia a igualdade:
As limitações a comportamentos humanos são postas exatamente para que todos
possam usufruir igualmente as vantagens da vida em sociedade. Assim, para
preservar-se a saúde de todos é necessário que ninguém possa impedir outrem de
procurar seu bem-estar ou induzi-lo a adoecer. Essa é a razão das normas jurídicas
que obrigam à vacinação, à notificação, ao tratamento, e mesmo ao isolamento de
certas doenças, à destruição de alimentos deteriorados e, também, ao controle do
meio ambiente, das condições de trabalho. A garantia da oferta de cuidados de saúde
do mesmo nível a todos que deles necessitam também responde a uma exigência de
igualdade.145
Acrescentando novos argumentos, Sueli Dallari e Vidal Serrano Nunes Junior
explicam:
O bem-estar do indivíduo supõe aspectos sanitários, ambientais e comunitários que
só podem ser concebidos a partir de uma perspectiva coletiva, donde resulta que
uma concepção jurídica da saúde há de envolver não só direitos mas também
deveres, e não só por parte dos Estados mas também das pessoas e da sociedade.146
[...]
143 RODRIGUES, Geisa de Assis. Direito sanitário. In: (Coord.). NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de direitos
difusos. 2.ed. São Paulo: Verbatim, 2012, p.317. 144 OLIVEIRA, Fabio Cesar dos Santos. Direito de proteção a saúde: efetividade e limites à intervenção do Poder Judiciário.
Revista dos Tribunais, v.865, p.54-84, nov.2007. 145 DALLARI, Sueli. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 1988, p.59. 146 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano; DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p.9.
72
é impensável que se conceba saúde sem uma dimensão coletiva, que envolva a
comunidade e o Estado, que, por meio de ações variadas, intervém não só em
atividades prestacionais, como também no controle sanitário e de zoonoses.147
As características coletivas de certa forma retiram da esfera do indivíduo a proteção
total por sua saúde. A saúde do indivíduo sofre interferência de fatores externos dependentes
de outras pessoas e do próprio Estado. Essa condição exclui certa margem de ação e de defesa
do próprio indivíduo, inserindo a todos na condição de usuários do sistema de saúde. Com
base neste cenário, pondera Sueli Dallari:
Ninguém pode, portanto, ser individualmente responsável por sua saúde. Com
efeito, o aparecimento de doenças pode estar ligado mais diretamente a
características e fatores individuais, embora não deixe de apresentar traços que o
liguem à organização social ou política. A maior força dos fatores e características
ambientais, econômicas e sociopolíticas fica evidente nas doenças transmissíveis,
onde existe uma ameaça à saúde de toda a população e as pessoas individualmente
pouco podem fazer para se protegerem, pois ainda que suas condições físicas e
psicológicas possam tornar mais fácil ou dificultar seu adoecimento é fácil perceber
a predominância da organização social, nacional e global, produzindo doenças. Na
realidade, existe um continuum na noção de saúde, que tem em um de seus polos as
características mais próximas do indivíduo e, no outro, aquelas mais diretamente
dependentes da organização sociopolítica e econômica dos Estados.148
Essa percepção coletiva do direito à saúde altera o seu foco em relação aos direitos
clássicos, concebidos sob a esfera individual. Ela se encaixa, contudo, na definição de direito
difuso, moderna categoria de direito e submetida à tutela processual específica.
A titularidade do direito à saúde, no sentido de saúde pública, é difusa. Saúde, nesse
viés, é um direito transindividual e de natureza indivisível. Os titulares são pessoas
indeterminadas e ligadas por situações de fato. Por isso, saúde pública se encaixa no sistema
processual de proteção de interesses difusos e coletivos.
A titularidade passiva do direito à saúde nesse sentido é eminentemente do Estado, a
quem o sistema constitucional atribuiu a função de garantir a saúde pública. Particulares
também podem ser sujeitos passivos do direito à saúde pública tanto em seu sentido negativo,
ou seja, no sentido de se abster de condutas que coloquem em risco a saúde coletiva, quanto
em seu sentido positivo.
No sentido positivo, de ação em prol da saúde pública, dentre as funções inerentes ao
sistema de saúde previstas no artigo 200 da Constituição Federal, estão abertas à via particular
a formação de recursos humanos em saúde e o desenvolvimento científico. São hipóteses em
que, nessa qualidade, particulares podem figurar como sujeitos passivos do direito à saúde na
147 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano; DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p.12. 148 DALLARI, Sueli. A construção do direito à saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v.9, n.3 p.9-34,
nov.2008-fev. 2009, p.12.
73
sua dimensão coletiva. Nessas duas atividades, inserem-se as universidades que formam
profissionais das mais variadas categorias que trabalham na saúde e a indústria farmacêutica,
a qual tem sido hoje responsável por grande parte das inovações em saúde no mundo.
Há, ainda, no aspecto privado da saúde coletiva, a responsabilidade de particulares que
produzem os bens ou prestam os serviços fiscalizados pelo sistema de saúde, como produtos e
substâncias utilizados para a execução do serviço de saúde, mas também aqueles que
produzem água e alimentos e que devem ser submetidos ao controle de segurança sanitária.
Por outro lado, a via privada existente no aspecto individual e o socorro que pode ser
obtido na rede particular (inclusive por meio de planos ou seguros saúde) não existe com a
mesma intensidade nos aspectos coletivos. Aqui, o direito à saúde se direciona
primordialmente ao Estado, porque o principal objeto do direito à saúde em seu sentido difuso
é formular políticas de saúde, além das atribuições importantes delimitadas no artigo 200 da
Constituição Federal. Todos eles são exigíveis do Estado e há pouca margem para atuação
privada.
Esse fato reduz a margem de ação individual em relação à saúde no aspecto difuso. Se
no sentido individual a pessoa tem possibilidade de buscar socorro por meios próprios, no
sentido difuso os meios são distintos. Tome-se o exemplo do combate ao mosquito da dengue:
no sentido individual, o que o indivíduo pode fazer é adotar barreiras para evitar a picada pelo
mosquito mas as medidas de controle do vetor são essencialmente coletivas e concentradas na
ação do Estado. Outro exemplo: ainda que o paciente tenha seu plano de saúde e arque com os
custos do seu tratamento, o controle da segurança de seu atendimento é função do Estado.
Incumbe ao sistema de saúde fiscalizar e controlar os produtos e substâncias em saúde, de
modo que a regularidade sanitária do estabelecimento, embora particular, deve ser conferida
pelo Estado. A venda de remédios em condições de segurança deve ser fiscalizada pelo
Estado, sem que haja ao indivíduo margem de conhecimento do problema em caso de venda
de remédio irregular.149
É possível ainda utilizar o exemplo da segurança dos alimentos e da água. A
fiscalização da qualidade dos alimentos e da água é uma atribuição do Estado, a quem
incumbe fiscalizar a eventual existência de substâncias nocivas ou tóxicas em alimentos e na
água, como forma de evitar agravos à saúde pública. O indivíduo não tem como conferir a
segurança dos produtos que está adquirindo ou ingerindo por seus próprios meios..
149 A propósito, no caso das ‘pílulas de farinha’, anticoncepcionais vendidos sem o princípio ativo, em 1998 e que
redundaram em milhares de ações de indenização em todo o Brasil, o único instrumento que poderia ter protegido as
pacientes que ingeriram o remédio seria o da vigilância sanitária, a quem incumbia fiscalizar a venda de remédios.
74
Essa pouca margem disponível ao indivíduo decorre principalmente do poder de
polícia, concentrado nas mãos do Estado por força de sua obrigação de fiscalizar o
cumprimento das regras estabelecidas. A estreita atuação individual, desta forma, não apenas
coloca todas as pessoas na condição de titulares do direito à saúde coletiva, mas também na
condição de usuários do sistema único de saúde.
5.2.1 Sistema de proteção de interesses difusos e coletivos
Os interesses difusos foram definidos pelo artigo 81, parágrafo único, I, do Código de
Defesa do Consumidor como aqueles “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”. Segundo Ricardo de
Barros Leonel, eles não se restringem à soma de interesses individuais, mas se referem às
necessidades da coletividade como um todo, daí surge a sua indivisibilidade.150
Por isso,
afirma: “a satisfação de um só implica a satisfação do todo e a lesão a um só implica a lesão
da inteira coletividade”.151
Os interesses difusos compõem os interesses transindividuais, juntamente com os
interesses coletivos152
e individuais homogêneos.153
Na definição de Hugo Nigro Mazzilli,
interesses difusos são como “um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto
indivisível, compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por
circunstâncias de fato conexas”.154
Os interesses difusos são sujeitos à tutela coletiva, prevista como mecanismo
específico dentro do sistema jurídico processual.
Em razão da sua definição como interesse que atinge titulares indetermináveis e que
tem objeto indivisível, desenvolveu-se um sistema processual específico a essas
peculiaridades. A defesa coletiva dos interesses difusos potencializa a sua proteção judicial e
a própria efetividade dos direitos difusos.
Os instrumentos processuais existentes para proteger os interesses difusos são
“garantias instituídas com o fim de conferir-lhes efetividade” e foram concebidos porque “os
ordenamentos eram ricos em prever mecanismos de tutela de direitos individuais, pecavam
sobremaneira quando o assunto era propiciar concretude aos coletivos em sentido amplo,
150 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 3.ed. São Paulo: RT, 2013, p.93. 151 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 3.ed. São Paulo: RT, 2013, p.95. 152 “transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a
parte contrária por uma relação jurídica base” (artigo 81, parágrafo único, II do Código de Defesa do Consumidor). 153 “decorrentes de origem comum” (artigo 81, parágrafo único, III do Código de Defesa do Consumidor) 154 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.50.
75
mormente tendo em conta a indivisibilidade inerente ao seu objeto”,155
conforme explica
Motauri Ciocchetti de Souza.
Esse subsistema processual tem previsão constitucional no artigo 129, III156
e seu
§1º157
, artigo 5º, XXI158
, artigo 5º, LXX159
, artigo 5º, LXXI, artigo 8º, III160
, artigo 102, I, ‘a’,
e §§1º e 2º e artigo 232161
da Constituição Federal. A previsão legal concentra-se na Lei de
Ação Civil Pública (Lei n.7.347/85), na Lei de Ação Popular (Lei n.4.717/65) e no Código de
Defesa do Consumidor (Lei n.8.078/90), mas também há amparo em legislações específicas
como, por exemplo, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.8.069/90), na Lei
Brasileira de Inclusão (Lei n.13.146/15), na Lei da Pessoa com Deficiência (Lei n.7.853/89),
na Lei da Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no
mercado de valores mobiliários (Lei n.7.913/89), na Lei Improbidade Administrativa (Lei
n.8.429/92), no Estatuto do Idoso (Lei n.10.741/03), na Lei Maria da Penha (Lei n.11.340/06),
no Estatuto da Advocacia (Lei n.8.906/94) e no Estatuto do Torcedor (Lei n.10.671/03).
O principal instrumento processual do sistema é a ação civil pública. Pelo disposto no
artigo 5º da Lei de Ação Civil Pública (Lei n.7.347/85) são legitimados ativos: a) o Ministério
Público; b) a Defensoria Pública; c) a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
d) a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; e) a associação
que, concomitantemente esteja constituída há pelo menos um ano nos termos da lei civil e
inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao
meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de
grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico.
A exclusão da legitimidade individual foi opção consciente do legislador, que admitiu
a insuficiência da legitimidade ordinária, tendo em vista as dificuldades de se deixar, para
155 SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ministério Público e o princípio da obrigatoriedade. São Paulo: Método. 2007, p.18. 156 “Artigo 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] III – promover o inquérito civil e a ação civil pública,
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. 157 “Artigo 129 §1º – A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros,
nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei”. 158 “Artigo 5º, XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus
filiados judicial ou extrajudicialmente”. 159 “Artigo 5º, LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no
Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há
pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”. 160 “Artigo 8.º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: [...] III – ao sindicato cabe a defesa dos
direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”. 161 “Artigo 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus
direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
76
cada lesado, “a iniciativa de comparecer em juízo, diante do ônus que isso representa (não só
o custeio da ação como os de caráter probatório)”162
, de acordo com a explicação de Mazzilli.
A coisa julgada erga omnes e ultra partes é efeito relevante do sistema de proteção de
interesses difusos e coletivos, que permite ampliar os efeitos subjetivos da decisão de mérito
de modo a atingir os aspectos sistêmicos da saúde.
No sistema de proteção de interesses difusos e, especialmente, considerando o caráter
difuso do direito à saúde, especial é a atuação do Ministério Público, “instituição permanente,
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (Constituição
Federal, artigo 127) que tem como função institucional “zelar pelo efetivo respeito dos
Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (Constituição Federal,
artigo 129, II). Os serviços de saúde, por força do artigo 197 da Constituição Federal, são
considerados de relevância pública e essas regras explicitam a ligação institucional entre o
Ministério Público e o sistema único de saúde.
Embora tenha legitimidade para ações individuais referentes a interesses indisponíveis,
o Ministério Público exerce um relevante papel no trato coletivo de questões de saúde pela via
processual. Não apenas pela legitimidade no sistema de proteção de interesses difusos e
coletivos mas especialmente pelo seu perfil constitucional. No sistema de proteção de
interesses difusos e coletivos, o Ministério Público tem poderes de requisição que servem para
colher provas que instruirão ações judiciais ou que serão trabalhadas extrajudicialmente na
mediação de debates entre os diversos atores dos sistemas de saúde e de justiça.
A atuação do Ministério Público, que tem sido protagonista na tutela dos interesses
difusos e coletivos, não pode e não deve inibir a atuação dos demais colegitimados. Ao
contrário, a atuação coordenada dos demais atores sociais tem apresentado relevantes
resultados na efetivação do direito à saúde. Afinal, a participação social na saúde também é
uma diretriz constitucional.
Buscando aprimorar o sistema processual no que se refere ao debate judicial de
políticas públicas, foi proposta a alteração no sistema por meio do Projeto de Lei n.8.058/14,
baseado em estudos de Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe. O projeto, ainda em
tramitação legislativa, prevê um processo baseado nos princípios da proporcionalidade,
razoabilidade, garantia do mínimo existencial, justiça social, atendimento do bem comum,
universalidade de políticas públicas e equilíbrio orçamentário, assim como prevê 162 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.60.
77
características estruturais, policêntricas, dialogais, de cognição ampla e profunda,
colaborativas e participativas, flexíveis quanto ao procedimento, sujeito à informação, debate
e controle social, tendente a soluções consensuais, aptos a comandos abertos e flexíveis,
passível de flexibilização do cumprimento das decisões e com previsão de acompanhamento
da execução da decisão (artigo 2º).
5.2.2 Ações coletivas de saúde
A tutela coletiva é absolutamente relevante para a concretização do direito à saúde. É
por meio dela que se pode debater amplamente os conflitos de massa que envolvem a saúde e
que evitariam milhares de ações individuais sobre o mesmo tema. As ações coletivas hoje,
conforme pondera Sérgio Cruz Arenhart, tornaram-se “mecanismos de participação da
sociedade na administração da coisa pública”.163
As ações coletivas em saúde são instrumentos utilizados na prática para
responsabilizar os entes pela omissão na prestação de serviços, interditar equipamentos de
saúde sem condições sanitárias adequadas e que não atenderam ao poder de polícia do Estado,
garantir o financiamento adequado mediante o cumprimento dos pisos constitucionais de
gastos em saúde, abastecer farmácias públicas com os medicamentos mínimos inseridos em
protocolos e o mercado em casos de vacinas e remédios para doenças negligenciadas e revisar
listas contendo protocolos de medicamentos, dentre outras ações.
Especificamente em relação às ações contendo pedidos de medicamentos, que se
multiplicam progressivamente pelo país, Luís Roberto Barroso propõe que as listas contendo
os medicamentos básicos e inseridos nos protocolos sejam debatidas em ações coletivas, onde
será possível examinar o contexto da política pública e a “alocação de recursos ou a definição
de prioridades em caráter geral, de modo que a discussão será prévia ao eventual debate
pontual entre micro e macro-justiças”.164
Embora possa ser mais efetiva a tutela do direito à saúde por meio da tutela coletiva,
ela convive com a tutela individual. Pertinentes, portanto, as advertências de Ingo Sarlet:
Por outro lado, se é possível afirmar a correção do entendimento de que a tutela
coletiva (especialmente em nível preventivo) deva assumir caráter preferencial, já
que possui a incensurável virtude de minimizar uma série de efeitos colaterais mais
163 ARENHART, Sérgio Cruz. Ações coletivas e controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário. In: (Coords.) MAZZEI,
Rodrigo Reis; DIAS, Rita. Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.504. 164 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de
medicamentos e parâmetros para atuação judicial. Disponível em:
<http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/0132009.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017, p.31.
78
problemáticos da tutela jurisdicional individual na esfera dos direitos a prestações
sociais, também é certo – de acordo com o que se extrai da decisão do STF já
referida, que assegurou o fornecimento de medicamento de alto custo em demanda
individual promovida pelo Ministério Público Federal – que a eliminação da
possibilidade de demandas individuais poderá, por si só, representar uma violação de
direitos fundamentais, notadamente quando em causa o direito a uma vida digna e
quando não assegurado um patamar suficiente de proteção social. Não se pode
olvidar – e importa repisar tal aspecto! – que a tutela individual poderá, em
determinadas hipóteses, ser mesmo a maneira mais adequada e mesmo necessária de
proteção e promoção do direito, já pelo simples fato de que especialmente no campo
do direito à saúde existem necessidades que apenas no contexto do caso individual
podem ser adequadamente aferidas e satisfeitas, inclusive no âmbito de determinado
grupo de pessoas portadoras de uma determinada enfermidade.165
Na mesma linha, assevera Hermes Zaneti Junior:
A tentativa de alguns setores da doutrina de melhor resolver as questões ligadas às
políticas públicas através de ações coletivas não pode resultar em capitis diminutio
dos direitos individuais, suprimindo toda a teoria dos direitos fundamentais que vem
sendo construída, de modo a reconhecer os direitos subjetivos como situações
jurídicas complexas ou permissões especiais de aproveitamento, individuais ou
coletivas, ao contrário, transformando-os em promessas vazias diluídas em
responsabilidades coletivas.166
O próprio sistema processual prevê mecanismos de convivência das ações individuais
com as ações coletivas (ex. artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor).
Apesar da existência normativa do sistema de proteção de interesses difusos e
coletivos e do enquadramento do conceito de saúde como um interesse metaindividual
submetido ao sistema processual, a análise de soluções judiciais em processos coletivos
mostra que esta via, na maioria dos casos, não tem sido suficiente para tutelar o direito
coletivo à saúde. A doutrina constata que os resultados judiciais têm ficado aquém das
expectativas sociais por variadas razões.
Nesse sentido, argumenta Sueli Dallari:
A construção do direito à saúde, com toda a abrangência que lhe foi dada no texto
constitucional, exigindo para sua garantia o controle popular das políticas públicas,
tem sido efetivada com muita lentidão pelo Poder Judiciário. Deve-se reconhecer,
entretanto, que a dificuldade de compreender a amplitude do direito à saúde é devida
tanto aos fatores culturais quanto, sobretudo, à inexperiência dos operadores do
direito no tratamento jurídico das políticas públicas.167
165 SARLET, Ingo. O direito à proteção e promoção da saúde entre tutela individual e transindividual. Revista de Processo,
v.199, p.13-40, set.2011. 166 ZANETI JUNIOR, Hermes. A teoria da separação de poderes e o estado democrático constitucional: funções de governo e
funções de garantia. In: (Coords.) GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas
públicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.57. 167 DALLARI, Sueli. A construção do direito à saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v.9, n.3 p.9-34,
nov.2008-fev. 2009, p.27.
79
Assim como Fernando Rister de Sousa Lima, ela verifica que “o Supremo Tribunal
Federal tem demonstrado a dificuldade de alcançar uma concepção coerente do Sistema
Único de Saúde”.168
O estudo das ações judiciais de saúde revela que a concepção individualista e
comutativa do processo prevalece em face da concepção coletiva e distributiva da justiça. José
Reinaldo de Lima Lopes explica que “somos treinados a falar e a pensar na justiça comutativa
ou justiça de retribuição”, mas que “os direitos sociais têm objeto diferente, têm uma lógica
diferente: o bem é coletivo e a lógica é a lógica da justiça distributiva”.169
Desse cenário, a análise de jurisprudência das ações de saúde sob o enfoque coletivo
revela que a tendência é a ‘autocontenção judicial’, expressão cunhada por Luís Roberto
Barroso como oposta ao ‘ativismo judicial’.170
Observa-se certo conservadorismo do Poder
Judiciário em decisões que optam por não enfrentar o cerne do debate a partir de argumentos
de que haveria indevida interferência na função Executiva, que a discricionariedade
administrativa impediria um exame de legalidade de políticas públicas ou que não é viável
debater judicialmente os orçamentos públicos.
Luís Virgílio Afonso da Silva constata:
A partir desse pano de fundo, o papel do direito é constantemente colocado à prova,
visto que, na tradição liberal, a implementação de políticas públicas nunca foi
matéria afeita aos profissionais do direito. A consequência dessa constatação pode
ser percebida quando se analisam decisões judiciais e trabalhos jurídico-
doutrinários. O que geralmente ocorre é a simples transposição de uma racionalidade
da tradição liberal, baseada quase que exclusivamente em relações bilaterais –
normalmente entre um credor e um devedor – para a área dos direitos sociais.171
E prossegue:
O Judiciário não deve distribuir medicamentos ou bens similares de forma irracional
a indivíduos, ele deveria ser capaz de canalizar as demandas individuais e, em uma
espécie de diálogo constitucional, exigir explicações objetivas e transparentes sobre
a alocação de recursos públicos por meio das políticas governamentais, de forma a
estar apto a questionar tais alocações com os poderes políticos sempre que
necessário for. Ainda mais importante seria o papel do Judiciário, em conjunto com
o Ministério Público, como controlador das políticas públicas já existentes. Boa
parte dos problemas de efetividade do direito à saúde (e também de outros direitos
sociais) decorre muito mais de desvios na execução de políticas públicas do que de
168 DALLARI, Sueli. A construção do direito à saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v.9, n.3 p.9-34,
nov.2008-fev. 2009, p.27. 169 LOPES, José Reinaldo de Lima. Da efetividade dos direitos econômicos, culturais e sociais. In: Direitos humanos: visões
contemporâneas. São Paulo: Associação ‘Juízes para a Democracia’, 2001, p.94. 170 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de
medicamentos e parâmetros para atuação judicial. Disponível em:
<http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/0132009.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017, p.07. 171 SILVA, Luis Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização
dos direitos sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.588.
80
falhas na elaboração dessas mesmas políticas. Nesses termos – ou seja, como
controlador da execução de políticas já existentes –, o Judiciário conseguiria, ao
mesmo tempo, pensar os direitos sociais de forma global, respeitar as políticas
públicas planejadas pelos poderes políticos, não fazer realocação irracional e
individualista de recursos escassos e, sobretudo, realizar com maior eficiência os
direitos sociais.172
Essa situação foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento
paradigmático da Suspensão de Tutela Antecipada n.175, definido após realizar audiência
pública sobre o tema ‘judicialização da saúde’, em 2009. Do voto do Ministro Gilmar Mendes
naquele julgado, extraímos o trecho:
Após ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores
envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da
judicialização do direito à saúde no Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a
intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de
políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma
necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas.
Portanto, não se cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre
apreciação ou de ampla discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de
políticas públicas.
A pesquisa jurisprudencial de casos coletivos em saúde revela poucas demandas
debatidas no Supremo Tribunal Federal. E mostra, especialmente, que a grande maioria delas
o são sob o enfoque individual. De certa forma, equivale a dizer que o comportamento da
Suprema Corte remonta à lógica que norteou o julgamento do habeas corpus proferido em
razão da Revolta da Vacina em 1904, optando pela vertente individual em detrimento do
direito coletivo.
Destoa do padrão o Recurso Extraordinário n.812.626, do Estado do Rio Grande do
Sul, julgado em 9 de agosto de 2016, em que foi determinada a construção de serviços de
residências terapêuticas, equipamentos previstos na Rede de Atenção Psicossocial para
pacientes egressos de hospitais psiquiátricos (Portaria n.3.088/2011-GM/MS), refutando as
alegações de reserva do possível e separação de poderes. O Relator Ministro Celso de Mello
constatou que a inércia transgride o direito fundamental à saúde e determinou a efetivação da
política pública:
[...] considerada a indiscutível primazia constitucional reconhecida à assistência à
saúde, que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos
básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a incompetência na
adequada implementação da programação orçamentária em tema de saúde pública, a
falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado
social de que se reveste a saúde dos cidadãos, a inoperância funcional dos gestores
172 SILVA, Luis Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização
dos direitos sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentação,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.598.
81
públicos na concretização das imposições constitucionais estabelecidas em favor das
pessoas carentes não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo
Poder Público, notadamente pelo Município (Constituição Federal, artigo 30, VII),
das normas inscritas nos artigos 196 e 197 da Constituição da República, que
traduzem e impõem, ao próprio Município, um inafastável dever de cumprimento
obrigacional, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental
importar em grave vulneração a um direito fundamental da cidadania e que é, no
contexto que ora se examina, o direito à saúde.
Outro caso que se destaca é o Recurso Extraordinário n.684612, do Estado do Rio de
Janeiro. O precedente refere-se a funcionamento hospitalar precário, que dependia de
execução de obras e de contratação de profissionais. Em 7 de fevereiro 2014, por meio de
deliberação no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, os ministros, por maioria,
consideraram que a matéria transcende o interesse das partes envolvidas e reconheceram a
existência de repercussão geral sobre o tema, que discute, especificamente, os limites do
Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes em realizar
concursos públicos, contratar servidores e executar obras que atendam ao direito social da
saúde, previsto na Constituição Federal.
Os poucos julgados existentes no Supremo Tribunal Federal demonstram que ainda há
espaço para a construção jurisprudencial em prol da máxima efetividade do direito à saúde,
especialmente como alternativa concreta a enfrentar o vertiginoso número de ações
individuais com pedidos de medicamentos. As ações coletivas de saúde, diante do
amadurecimento do sistema de proteção de interesses difusos e coletivos, representam uma
importante válvula na tutela do direito à saúde pública.
Por isso, “o grande desafio do processo civil contemporâneo é saber como dar voz e
voto a esses interesses a non domino, mas socialmente muito relevantes”173
, conforme pontua
Rodolfo Camargo Mancuso:
[...] muitas decisões sobre questões coletivas exigem soluções que vão além de
decisões simples a respeito de relações lineares entre as partes. Exigem respostas
difusas, com várias imposições ou medidas que se imponham gradativamente. São
decisões que se orientam para uma perspectiva futura, tendo em conta a mais
perfeita resolução da controvérsia como um todo, evitando que a decisão judicial se
converta em problema maior do que o litígio que foi examinado.174
Sérgio Cruz Arenhart defende a abertura do sistema a tomada de decisões estruturais,
baseadas nas structural injunctions do sistema americano. As decisões estruturais, segundo
Arenhart, dependem de se revisar a ideia de separação de poderes, porque “não há estado
173 MANCUSO, Rodolfo Camargo. A concomitância de ações coletivas, entre si, e em face das ações individuais. Revista
dos Tribunais, v.782, p.20-47, 2000, p.20-47. 174 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.394.
82
contemporâneo que conviva com a radical proibição de interferência judicial nos atos de
outros ramos do Poder Público”175
e também dependem de permeabilidade a certa atenuação
ao princípio da demanda a fim de “permitir ao magistrado alguma margem de liberdade na
eleição da forma de atuação do direito a ser tutelado”.176
As decisões estruturais também
podem admitir “provimentos em cascata, de modo que os problemas sejam resolvidos à
medida que apareçam”177
e podem “ir além da simples especificação do resultado a ser obtido,
esclarecendo os meios para tanto”.178
Os provimentos estruturais “são uma necessidade de
qualquer sistema que pretenda lidar com casos complexos, especialmente ligados ao Poder
Público e às políticas públicas”179
e não tratam de simplesmente verificar se alguém tem um
direito que merece ser atendido em detrimento de outra pessoa que não tem direito algum mas
trata-se de “compor os vários interesses legítimos que estão em litígio, de modo a otimizar a
sua convivência e a conferir a melhor proteção possível para a sociedade como um todo e para
os valores públicos por ela abraçados”.180
5.3 Aspectos de desenvolvimento
A saúde tem aspectos que extrapolam inclusive a tutela difusa e assumem importância
global, refletindo no desenvolvimento dos povos. O mundo globalizado convive com grandes
discrepâncias entre os países no acesso à saúde; além disso, a circulação de pessoas e de
produtos é exponencial.
Determinantes em saúde não respeitam fronteiras geográficas ou políticas. Doenças
infecciosas podem se espalhar rapidamente pelo mundo por meio de aglomerações humanas,
migrações, viagens e refúgios.181
A degradação do meio ambiente em um país pode afetar
populações de outros países. O desenvolvimento científico em um país pode beneficiar a
população do mundo todo, com a ampliação do acesso a remédios novos e a cura de doenças.
175 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.397. 176 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.398. 177 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.400. 178 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.400. 179 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.403. 180 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v.225,
nov.2013, p.409. 181 A propósito do controle sanitário em relação à propagação de endemias, a Organização Mundial de Saúde publicou o
Regulamento Sanitário Internacional. O documento vigente data de 2005 e fixa compromissos e responsabilidades para que
os países adotem medidas de promoção e controle de saúde pública (Resolução WHA 58.3 da Assembleia Mundial da
Saúde).
83
A saúde, por outro lado, é um fator revelador das grandes desigualdades existentes no
mundo. Os dados colhidos pela Organização Mundial de Saúde que, em ação integrada com a
Organização das Nações Unidas, monitora o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável demonstram as disparidades no acesso à saúde e na qualidade de vida das pessoas.
No documento elaborado pela entidade para contemplar as estatísticas mundiais referentes ao
cumprimento das ODS se define que “equidade é o coração das ODS” e que o objetivo é “não
deixar ninguém para trás”.182
O relatório que contempla as Estatísticas Mundiais em Saúde relativas ao ano de 2015
aponta, por exemplo, que enquanto a expectativa de vida ao nascer mais alta no mundo para
homens é na Suíça (81,3 anos) e para mulheres é no Japão (86,8 anos), na Serra Leoa a
expectativa é de 49,3 anos para homens e 50,8 anos para mulheres.183
São praticamente trinta
anos a mais que dividem a maior e a menor expectativa de vida no mundo.
As estatísticas da OMS mostram ainda que 5,9 milhões de crianças morreram no
mundo, em 2015, antes de completarem cinco anos de idade. Somente na África Subsaariana,
uma em cada doze crianças morre antes do seu quinto aniversário. O relatório aponta que
desigualdades socioeconômicas se refletem nesses números e que a mortalidade abaixo dos
cinco anos é 15% mais alta dentre os filhos de mães que não estudaram até o segundo grau de
ensino.184
Há, ainda, dados que revelam números desproporcionais referentes a doenças
evitáveis. No ano de 2015, surgiram 9,6 milhões de casos novos de tuberculose, ocorreram
438 mil mortes por malária, 1,7 bilhões de pessoas ainda convivem com doenças
negligenciadas e 871 mil já morreram por doenças causadas em decorrência de águas
contaminadas.185
Esses dados demonstram disparidades reais e apontam fatos que efetivamente podem
representar violação de direitos humanos. Por isso, surgem as preocupações em saúde global,
visando melhorar os indicadores em saúde, tais como mortalidade infantil, mortalidade
182 WORLD HEALTH ORGANIZATION. World health statistics 2016: monitoring health for the SDGs, sustainable
development goals. Geneve, 2016. Disponível em: <http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2016/en/>.
Acesso em: 06 abr. 2017, p.23. 183 WORLD HEALTH ORGANIZATION. World health statistics 2016: monitoring health for the SDGs, sustainable
development goals. Geneve, 2016. Disponível em: <http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2016/en/>.
Acesso em: 06 abr.2017, p.10. 184 WORLD HEALTH ORGANIZATION. World health statistics 2016: monitoring health for the SDGs, sustainable
development goals. Geneve, 2016. Disponível em: http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2016/en/
Acesso em: 06 abr.2017, p.25; 34. 185 WORLD HEALTH ORGANIZATION. World health statistics 2016: monitoring health for the SDGs, sustainable
development goals. Geneve, 2016. Disponível em: http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2016/en/
Acesso em: 06 abr.2017, p.35.
84
materna e expectativa de vida. Mas, conforme salienta Lawrence Gostin, é importante avaliar
se a saúde global está sendo distribuída e de maneira justa.186
Os aspectos de desenvolvimento da saúde, com notas de saúde global e que buscam
maior igualdade, ao contrário do aspecto individual, se ligam umbilicalmente ao conceito de
‘mínimo existencial’. São os mínimos imagináveis ao bem-estar coletivo, relacionados à
sobrevivência sem padecer por doenças evitáveis ou mortes prematuras e representam
condições elementares para a própria vida digna, enquanto os aspectos individuais se referem
ao máximo bem-estar do indivíduo.
O direito à saúde tem conteúdo complexo e exige algumas providências essenciais. A
Recomendação n.14 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais traz parâmetros
úteis para a compreensão do conteúdo do ‘mínimo existencial’ em saúde:
a) Assegurar o direito de acesso a serviços de saúde em base não discriminatória,
especialmente em relação a grupos vulneráveis e marginalizados; b) Assegurar
acesso ao mínimo essencial de comida nutritiva e segura para eliminar a fome; c)
Assegurar acesso à moradia, saneamento básico e água potável; d) Oferecer acesso
aos medicamentos mínimos e drogas essenciais definidos em listas da Organização
Mundial de Saúde; e) Assegurar distribuição equitativa à população dos serviços de
saúde; f) Adotar e implementar estratégia nacional de saúde pública e planos de ação
baseados em dados epidemiológicos que evidenciem os problemas de saúde da
população como um todo e que sejam feitas por métodos transparentes e
democráticos.187
Esses parâmetros devem servir de norte para o conteúdo do direito à saúde no seu
aspecto de desenvolvimento, tendo em vista os pilares de não discriminação, de acesso à
comida nutritiva, de acesso à moradia, saneamento e água potável, de medicamentos definidos
em protocolos da OMS, de distribuição equitativa de serviços de saúde e de implementação de
planos de ação baseados em dados epidemiológicos transparentes e democráticos.
O mínimo em saúde relacionado aos aspectos de desenvolvimento se liga ao próprio
exercício das liberdades individuais, conforme concebido por Amartya Sen, indiano agraciado
com o prêmio nobel em economia em 1998 pelos seus estudos relacionando escolhas sociais,
medidas de bem-estar social e pobreza:
Um número imenso de pessoas em todo o mundo é vítima de várias formas de
privação de liberdade. Fomes coletivas continuam a ocorrer em determinadas
regiões, negando a milhões a liberdade básica de sobreviver. Mesmo nos países que
já não são esporadicamente devastados por fomes coletivas, a subnutrição pode
afetar numerosos seres humanos vulneráveis. Além disso, muitas pessoas têm pouco
186 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.412. 187 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. Twenty-
second session Geneva, 25 April-12 May 2000, Substantive Issues Arising in the implementation of the international
covenant on economic, social and cultural rights. General Comment n.14 (2000). Disponível em:
<http://tbinternet.ohchr.org>. Acesso em: 20 maio 2017.
85
acesso a serviços de saúde, saneamento básico ou água tratada, e passam a vida
lutando contra uma morbidez desnecessária, com frequência sucumbindo à morte
prematura. Nos países mais ricos é demasiado comum haver pessoas imensamente
desfavorecidas, carentes das oportunidades básicas de acesso a serviços de saúde,
educação funcional, emprego remunerado ou segurança econômica e social.188
Esse conteúdo mínimo essencial para o desfrute das liberdades é exatamente o sentido
que inspira a segunda geração de direitos humanos e que consta no Preâmbulo do Pacto dos
Direitos Econômicos, Sociais e Políticos (1966) e na Declaração de Teerã (1968).
É por isso que podemos associar os aspectos de desenvolvimento da saúde ao próprio
direito ao desenvolvimento, que é um direito formalmente reconhecido em importantes
documentos internacionais produzidos no século XX.189
O direito ao desenvolvimento
representa, na lição de Wagner Balera, “a dimensão universalizante dos direitos humanos” e a
“fixação dos termos jurídicos da solidariedade”.190
O desenvolvimento, nessa linha, é
“fundado não antes na dimensão individual, civilística, onde a personalidade se acha colada
ao sujeito, mas sobretudo na projeção coletiva, do povo, da nação, e, para além dela, na
comunidade internacional”.191
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, em seu artigo 1º, reconhece que
direito ao desenvolvimento é direito humano inalienável, nas vertentes de desenvolvimento
econômico, social, cultural e político que viabilizem a realização de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais.
Desenvolvimento, nesse sentido, não se limita a progresso e, muito menos, a sua
vertente econômica. Abarca, necessariamente, outras “dimensões necessárias à plena
realização da dignidade humana, como educação, saúde e liberdade civil e política”.192
conforme explica Robério Nunes dos Anjos Filho. Ele argumenta que o crescimento é
quantitativo enquanto o desenvolvimento é qualitativo, porque “altera não só estruturas
econômicas e produtivas, mas também sociais, institucionais e políticas”.193
Os níveis de saúde, tomados por base a expectativa de vida ao nascer, ao lado dos
números do Produto Interno Bruto (PIB) per capita corrigido pelo poder de compra da moeda
e dos números da educação a partir de taxas de analfabetismo e de matrícula em todos os
níveis de ensino compõem o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), conforme exposto
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD):
188 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.28. 189 Declaração de Teerã (1968), Declaração sobre o Progresso e o Desenvolvimento Social (1969), Declaração sobre o Direito
ao Desenvolvimento (1986). 190 BALERA, Wagner. Declaração sobre o direito ao desenvolvimento anotada. Curitiba: Juruá, 2015, p.15. 191 BALERA, Wagner. Declaração sobre o direito ao desenvolvimento anotada. Curitiba: Juruá, 2015, p.37. 192 BALERA, Wagner. Declaração sobre o direito ao desenvolvimento anotada. Curitiba: Juruá, 2015, p.15. 193 ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.21.
86
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso
a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda,
educação e saúde. O objetivo da criação do IDH foi o de oferecer um contraponto a
outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que
considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. Criado por Mahbub ul
Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio
Nobel de Economia de 1998, o IDH pretende ser uma medida geral e sintética que,
apesar de ampliar a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, não abrange nem
esgota todos os aspectos de desenvolvimento.194
Nos aspectos de desenvolvimento, Sueli Dallari defende que o direito à saúde se
caracteriza pelo equilíbrio instável entre os valores de liberdade e igualdade:
Fica evidente a dificuldade que existe para a garantia do direito quando se considera
a amplitude da significação do termo saúde e a complexidade do direito à saúde que
depende daquele frágil equilíbrio entre a liberdade e a igualdade, permeado pela
necessidade de reconhecimento do direito do Estado ao desenvolvimento.195
Flávia Piovesan defende que o direito ao desenvolvimento compreende três
dimensões: a) importância de participação, com realce ao componente democrático a orientar
a formulação de políticas públicas; b) proteção às necessidades básicas de justiça social,
centrada na pessoa humana como sujeito central e c) a necessidade de adotar programas e
políticas nacionais, além de cooperação internacional.196
Os aspectos de desenvolvimento do direito à saúde se extraem do preâmbulo da
Constituição da Organização Mundial de Saúde, que prevê dever de solidariedade em saúde:
“A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins
é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde”.
Outro grande documento que contempla saúde no sentido de desenvolvimento é a
Agenda 2030 que definiu os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. A ODS 3, que cuida
da saúde, resume o objeto do direito à saúde enquanto desenvolvimento: I. Redução da taxa
de mortalidade materna global; II. Acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e
crianças menores de 5 anos; III. Acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e
doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e
outras doenças transmissíveis; IV. Reduzir a mortalidade prematura por doenças não
transmissíveis (DNTs) via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar;
V. Reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas
entorpecentes e uso nocivo do álcool; VI. Reduzir pela metade as mortes e os ferimentos
194 UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Portal do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
no Brasil. Desenvolvimento Humano e IDH. Disponível em: <http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0.html>.
Acesso em: 26 mar. 2017. 195 DALLARI, Sueli. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 1988, p.60. 196 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 2.ed. Saraiva: São Paulo, 2011, p.50.
87
globais por acidentes em estradas; VII. Assegurar o acesso universal aos serviços de saúde
sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a
integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais; VIII. atingir a
cobertura universal de saúde (UHC), incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a
serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais
seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos; e IX. reduzir
substancialmente o número de mortes e doenças por produtos químicos perigosos,
contaminação e poluição do ar e água do solo.
Os aspectos de desenvolvimento da saúde se voltam à solução de problemas que
atingem maior quantidade de pessoas em determinado território. Por isso é que são
importantes os estudos técnicos baseados em dados epidemiológicos – elaborados de forma
transparente e democrática conforme adverte a Recomendação 14 do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Políticos – que possam demonstrar quais são as causas de maior
mortalidade e de maior incidência para que sejam desenvolvidas políticas públicas
consistentes.
A titularidade do direito à saúde, no sentido de desenvolvimento, equivale em
titularidade ativa e passiva ao próprio direito ao desenvolvimento. A titularidade ativa é ampla
e atinge não apenas o indivíduo, mas também o próprio Estado. A titularidade passiva, por
outro lado, é composta por todos os elementos do corpo social internacional, ou seja, “Estado
em questão, demais Estados e comunidade internacional, esta última ocupando a posição de
principal devedora, tendo em vista as responsabilidades assumidas quanto à aplicação da
Carta das Nações Unidas”197
, conforme pontua Robério Nunes Anjos Filho.
Outro ponto de contato interessante entre os direitos à saúde e ao desenvolvimento é a
integralidade: a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) prevê que o direito ao
desenvolvimento deve ser integral assim como a Constituição Federal garante que o
atendimento do direito à saúde deve ser integral (artigo 198, II). A Carta da Organização dos
Estados Americanos cuida do desenvolvimento integral em seu capítulo VII, considerando-o
fundamental para a justiça social internacional, a paz e a segurança dos povos e especifica que
ele depende de solidariedade e de cooperação entre os países interamericanos. A Constituição
Federal preconiza: “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes
diretrizes: [...] II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais”. Explicando esse dispositivo, Vidal Serrano Nunes Junior 197 ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.217.
88
e Sueli Dallari indicam que “o dever do Estado não pode ser limitado, mitigado ou dividido,
pois a saúde, como bem individual, coletivo e de desenvolvimento pressupõe uma abordagem
assistencial completa, vale dizer, integral, envolvendo todos os aspectos a ela
relacionados”.198
Nos aspectos de desenvolvimento, não há margem para a ação do indivíduo. Sozinho,
não há como a pessoa adotar providências, por exemplo, em prol de reduzir a mortalidade
materno-infantil, ampliar o acesso a novos medicamentos, garantir a existência de serviços de
saúde e reduzir desigualdades efetivamente existentes em saúde conforme consta nos
objetivos do desenvolvimento sustentável. Emerge o importante papel do Estado, como
verdadeiro promotor da saúde enquanto um direito humano, que atinge a todos os indivíduos
simultaneamente e influencia as gerações futuras. Ao papel do Estado se aliam os papéis da
comunidade internacional e de setores privados que podem contribuir para reduzir
desigualdades em saúde.
Esse contexto mundial fez surgir o direito sanitário global, definido por Lawrence
Gostin como “ramo do direito internacional que define normas, processos e instituições que
possam atingir o maior patamar de saúde”199
(tradução livre).
A oferta genuína de saúde exige solidariedade global e por isso precisa ser
compartilhada entre os países. Por outro lado, os riscos em saúde são mundiais e impõem-se
deveres de colaboração entre os países. Sobrevivência mútua é problema de todos os países e,
neste cenário, a globalização exige ação conjunta para as atuais e futuras gerações.
Em relação aos aspectos de desenvolvimento da saúde, cabe também observar que ele
pode ser interpretado no sentido de evolução ou crescimento da oferta em saúde. E esse
sentido se interliga à ciência e à tecnologia. Além de ampliar o horizonte do debate em termos
de melhora na prestação social em saúde, por meio de tratamentos mais modernos e que
atenuem o sofrimento de pessoas doentes, também abre espaço para outros contrastes.
O desenvolvimento de remédios, técnicas, tratamentos, insumos e demais itens
envolvidos no atendimento em saúde provém de estudos e pesquisas que geram novas
tecnologias sujeitas a regras de propriedade intelectual. Disciplinando a propriedade
intelectual decorrente de pesquisas científicas, em 1994 foi celebrado o acordo Agreement on
Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), promulgado no Brasil pelo
Decreto n.1.355/94 com o objetivo de suprimir distorções comerciais que inibam a inovação,
198 DALLARI, Sueli. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 1988, p.75. 199 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.59.
89
a pesquisa, o desenvolvimento e o fluxo de novas tecnologias.200
As questões levantadas a
respeito das implicações do acordo TRIPS sobre a saúde pública se refletiram na adoção, por
iniciativa dos países em desenvolvimento, da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a
Saúde Pública na Quarta Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio em
2001. Nessa ocasião, foram flexibilizadas regras de proteção a marcas e patentes, permitindo-
se a fabricação de medicamentos genéricos e a licença compulsória de medicamentos.201
Vidal Serrano Nunes Junior e Sueli Dallari enaltecem as medidas: “a horizontalização
dos benefícios da evolução tecnológica e do saber científico constitui pressuposto para a
preservação do estado de saúde”.202
Importante salientar que, apesar de oriundos da iniciativa
privada ao redor de um segmento altamente lucrativo, medicamentos não são meros bens de
consumo e a sua propriedade intelectual também se sujeita às regras de função social da
propriedade (Constituição Federal, artigo 170, III). Os desafios, nesse aspecto, são
compatibilizar a propriedade intelectual com a sua função social, assim como conciliar o
incentivo a pesquisas e a inovação científica com a ampliação do acesso a medicamentos.
Comentando o Pacto de Direitos Sociais e Econômicos, Fábio Konder Comparato
defende o controle pelo Estado da produção e distribuição de medicamentos para evitar que a
indústria farmacêutica invista apenas naqueles produtos que são lucrativos e permita a
escassez de produtos destinados a tratar doentes sem condições de arcar com seus custos:
É indispensável que o Estado, sobretudo em países subdesenvolvidos, intervenha
largamente no setor de produção e distribuição de medicamentos, de forma a
eliminar ao máximo as perversões que o sistema capitalista provoca, em detrimento
das populações de baixa renda. Atualmente, com efeito, um punhado de
macroempresas transnacionais controla a produção e distribuição, em todo o mundo,
dos remédios específicos para o tratamento das principais doenças. Além disso, tais
empresas centralizarão, frequentemente com o auxílio de recursos públicos, a
pesquisa e o desenvolvimento dos novos produtos farmacêuticos, monopolizando a
sua produção com base em patentes e a sua distribuição por meio de marcas
registradas. A pesquisa farmacológica, aliás, é orientada exclusivamente para o
mercado dos consumidores solváveis, deixando ao abandono e à morbidez as
multidões miseráveis dos países subdesenvolvidos.203
O professor americano Lawrence Gostin constata iniquidades nas inovações em saúde
e informa um vácuo chamado de 10/90, indicando que menos de 10% das pesquisas em saúde
se destinam a doenças que atingem 90% da população.204
200 Artigo 7º do acordo TRIPS: “A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual
devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício
mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a
um equilíbrio entre direitos e obrigações”. 201 Regulamentada no Brasil pelos artigos 71 e seguintes da Lei n.9.279/96 e pelo Decreto n.3.201/99. 202 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano; DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p.9. 203 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.369. 204 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.433.
90
Esses fatos demandam reflexão sobre o papel do Estado como regulador da atividade
sanitária e justifica a intervenção nos domínios social e econômico (Constituição Federal,
artigo 174) em busca de alternativas que garantam que pesquisas em saúde e produção de
medicamentos sejam voltadas também a doenças que não têm interesses comerciais.
Existem remédios conhecidos pela ciência e úteis para tratamento que não são de
interesse mercantil, seja porque perderam a patente e a fórmula está em domínio público ou
simplesmente porque não há interesse na sua produção ou comercialização pelo titular da
propriedade intelectual. Dentre esses casos, tomamos o exemplo dos tratamentos destinados
às chamadas doenças ‘negligenciadas’, normalmente incidentes nas zonas tropicais do planeta
e que afetam doentes de países subdesenvolvidos e dependentes de políticas de acesso a
medicamentos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, as doenças negligenciadas atingem cerca
de um bilhão de pessoas no mundo e são transmitidas por insetos ou outros vetores tais como
doença de chagas, esquistossomose, filariose e cisticercose.205
As medidas propostas pela
Organização Mundial de Saúde para enfrentar a falta de estudos e tratamentos para doenças
negligenciadas não as relaciona ao modelo econômico, conforme fez Fábio Konder
Comparato. No recente estudo produzido pela entidade, destacou-se a importância das
seguintes medidas: quimioterapia preventiva realizada com medicamentos doados, tratamento
intensificado das doenças, controle dos vetores, serviços de controle de zoonoses e oferta de
água limpa e saneamento básico.206
A posição da OMS demonstra, portanto, que as medidas
relacionadas ao enfrentamento de doenças negligenciadas são conhecidas e não dependem de
grandes investimentos em tecnologia farmacêutica. Parece um contrassenso investir em
pesquisas de novas moléculas para tratar doenças que poderiam ser evitadas mediante
medidas simples, como oferta de água limpa e controle de vetores que beneficiam não apenas
a redução de uma doença específica, mas proporcionam inúmeros outros benefícios à
qualidade de vida de toda a população.
De todo modo, é possível que medicamentos úteis deixem de ser produzidos por
interesses comerciais. Nesses casos, é importante partir das premissas de que não existe
exclusividade de pesquisas científicas e que na área privada vige o princípio da livre iniciativa
(Constituição Federal, artigo 1º, inciso IV). Assim, na falta de interesse comercial sobre
205 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Integrating neglected tropical diseases into global health and development:
Fourth WHO reporton neglected tropical diseases. Geneve, 2017. Disponível em:
<http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/255011/1/9789241565448-eng.pdf?ua=1>. Acesso em: 27 jun. 2017, p.7 206 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Integrating neglected tropical diseases into global health and development:
Fourth WHO reporton neglected tropical diseases. Geneve, 2017. Disponível em:
<http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/255011/1/9789241565448-eng.pdf?ua=1>. Acesso em: 27 jun. 2017, p.9.
91
estudos e produção de medicamentos, a melhor solução, a nosso ver, está no viés de
desenvolvimento do direito à saúde. Por essa ótica, emerge a obrigação do Estado no fomento
de estudos e pesquisas por particulares e também na própria produção estatal de
medicamentos e insumos. Emergem, ainda, possibilidades de atuação conjunta, com
incentivos para a sua produção pela iniciativa privada. No Brasil existem alternativas de
parcerias para desenvolvimento produtivo (PDP) de medicamentos, definidas pela Portaria
n.2.531, de 12 de novembro de 2014, do Ministério da Saúde:
Parcerias que envolvem a cooperação mediante acordo entre instituições públicas e
entre instituições públicas e entidades privadas para desenvolvimento, transferência
e absorção de tecnologia, produção, capacitação produtiva e tecnológica do País em
produtos estratégicos para atendimento às demandas do SUS (art. 2º, inciso I).
Estas parcerias podem contribuir para ampliar o acesso a medicamentos não
produzidos por particulares. E emergem, por fim, os aspectos de solidariedade inerentes aos
direitos de terceira geração, que colocam todos – pessoas e entes dos primeiro, segundo e
terceiro setor da economia – como responsáveis pela melhora na saúde de todos em benefício
das atuais e futuras gerações.
5.3.1 Concretização do direito à saúde enquanto instrumento de desenvolvimento
O aspecto de desenvolvimento da saúde, assim como o próprio direito ao
desenvolvimento, pelas suas peculiaridades, não é de efetivação simples pela via judicial. Isso
não significa, contudo, que ele não seja relevante e, muito menos, que não seja exigível
judicialmente. Nesse sentido, explica Fábio Konder Comparato:
O núcleo essencial dos direitos subjetivos não está na garantia de sua realização
forçada com o concurso dos órgãos do Estado – Judiciário, a força pública –, mas
sim na devida atribuição a cada qual dos bens da vida que lhe pertencem (suum
cuique tribuere: dar a cada um o que é seu). Ora, a todos os seres humanos sem
exceção, independentemente de quaisquer diferenças de natureza biológica, étnica
ou cultural, devem ser atribuídas condições sociais de uma vida digna. As garantias
de realização coativa dessa atribuição de bens constituem um bem acessório,
importantíssimo sem dúvida, mas não indispensável ao reconhecimento da
existência de direitos subjetivos. [...] A ausência ou insuficiência de garantias
jurídicas para a sua realização não significa que se está diante de meras exortações à
ação estatal. Aliás, a grande tarefa atual dos profissionais do direito, nessa matéria,
consiste em construir tecnicamente garantias públicas adequadas à realização desses
direitos.207
207 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.353.
92
Enquanto ‘saúde mundial’ em patamar mínimo, a estratégia de positivação não é
apenas judicial. Lawrence Gostin defende que sua efetivação depende tanto da hard law, a lei
dura decorrente de regras imperativas, quanto da soft law, a lei suave construída
consensualmente. O autor sugere que a implementação da saúde global seja realizada
mediante instrumentos internacionais que possam definir normas, processos e instituições que
elevarão o patamar da saúde física e mental para a população mundial. E isso “exige inovação
de meios para mobilização de recursos, estabelecimento de prioridades, coordenação de
atividades, monitoramento de progressos e criação de incentivos em meio à proliferação de
atores na saúde mundial, sempre inspirados na justiça social”208
(tradução livre). Portanto, ele
propõe um mecanismo chamado global governance for health (governança global para a
saúde), a qual defende como altamente interdisciplinar e que perpassa diversos campos,
dentre eles a agricultura, o comércio, o desenvolvimento, os direitos humanos e o meio
ambiente.
Ele pontua que nenhum governo, mesmo com recursos ilimitados, pode garantir o
“completo bem estar-físico e mental” das pessoas. Segundo ele, o que se deve esperar é que
os Estados assegurem condições mínimas para que as pessoas sejam saudáveis, anotando que
se tivesse uma única mensagem a encaminhar aos líderes mundiais seria a de primeiro se
preocupar em construir um meio ambiente saudável e habitável.209
Essa mensagem, de certa
forma, tem relação com a opção feita por Oswaldo Cruz no início do século XX, quando
centrou os esforços de saúde em saneamento básico, prevenção de vetores e vacinação da
população.
Lawrence Gostin também trata de escolhas em ambiente de escassez orçamentária e
propõe definições a partir da teoria da justiça de John Rawls, optando pela vida em um mundo
saudável em contraponto à vida em um mundo com atendimento médico fortalecido. No
entanto, constata: “os países mais pobres não cumprem essa opção e investem em
atendimento terciário e em pesquisas genéticas mas negligenciam na atenção básica”.210
O direito não resolve sozinho a equação da saúde e, por isso, outras áreas,
especialmente a economia, devem agir em benefício da saúde. Assim, a ideia da governança
global em saúde congrega outras áreas também responsáveis pela saúde e as articula de modo
a redefinir comportamentos que efetivamente possam inserir a prioridade da saúde no âmbito
dos negócios e do comércio, do meio ambiente e das demais relações humanas. A somatória
208
GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.59. 209 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.416. 210 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.420.
93
de esforços é importante mas também não dispensa a evolução das próprias práticas na área
de saúde, as quais devem se pautar por componentes éticos voltados ao bem comum inerentes
à saúde e à vida humana.
Governança global em saúde, para Lawrence Gostin, é
O conjunto de regras, normas, instituições e processos que determinam os contornos
da saúde da população no mundo. O objetivo da estratégia em governança é
organizar interesses conflitantes, administrar questões políticas, econômicas e
sociais para melhorar a saúde no mundo e reduzir as desigualdades.211
E com esse desenho, somam-se esforços dos diversos mecanismos internacionais em
prol do “direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e
mental”, conforme proposto pelo Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Unem-se regras da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial de Saúde, da
Organização Mundial do Comércio, da Organização Mundial do Trabalho, da Organização
das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, dentre outras, a atores da sociedade
civil organizada e dos países para a gestão de programas nas mais diversas áreas que tenham
compromisso com a saúde e o bem-estar do cidadão (inclusive como destacado na
Recomendação n.14 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais). É o que
sugere Lawrence Gostin quando cuida da health in all policies (saúde em todas as políticas).
Sua proposta é que a saúde esteja inserida em todas as políticas, cuja responsabilidade seja
compartilhada entre o Estado e a sociedade, influenciando o horizonte saudável das pessoas
desde a oferta de opções nutricionais e o estímulo à prática de exercícios físicos até iniciativas
voltadas à segurança do meio ambiente do trabalho.212
211 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.72. 212 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.426.
94
6 OUTRAS FORMAS DE IMPLEMENTAR DIREITOS SOCIAIS
A realidade que vivenciamos demonstra que apesar da proteção judicial e da previsão
legislativa em prol do direito à saúde, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que
ele se reverta em prestações materiais disponíveis a todos os cidadãos de forma equânime.
Conforme observam Lenaura Santos e Ligia Giovanella,
O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, por exemplo, é o resultado de um longo
processo social que visou a mudar a forma como o Brasil garante a atenção à saúde
de seus cidadãos. Entretanto, muito do que a lei prevê ainda não se tornou realidade
até o momento, por algumas razões. Uma delas é que certas mudanças são mais
lentas do que outras porque encontram mais resistência, ou requerem decisões mais
difíceis de implementar. Outras razões para que a lei ainda não tenha se cumprido de
maneira plena devem-se ao fato de as instituições ou profissionais envolvidos não
estarem preparados ou não aceitarem as mudanças previstas, ou alguns governos não
estarem de acordo com elas e evitarem implementá-las.213
A ‘governança global em saúde’ é um moderno enfoque para concretização do direito
à saúde. Mas há outros caminhos que podem ser úteis na prática para efetivá-lo e que se
somam ao controle judicial. Portanto, na busca de efetividade prática do direito à saúde,
nenhuma estratégia pode ser desconsiderada.
Apesar da hiperjudicialização de conflitos em saúde apontada no tópico deste estudo
que tratou das ações individuais, é fato que a solução de conflitos não é competência
exclusiva do Poder Judiciário e da função jurisdicional conforme assevera Cassio Scarpinella
Bueno.214
A reivindicação judicial é apenas uma das formas de dirimir controvérsias e
concretizar direitos porque existem outras vias também eficientes. Mecanismos internacionais
e instrumentos de controle social, assim como a mediação, também têm por função
concretizar direitos sociais, com peculiaridades específicas.
Nessa linha, Lawrence Gostin pontua que a lei tem limitações inerentes para
solucionar os complexos problemas de saúde no mundo e que a maioria dos desafios em
saúde não se enquadra no perfil tradicional da lei, razão pela qual sugere uma nova linguagem
global de governança do setor saúde e a ele relacionados.215
213 GIOVANELLA, Lígia; ESCOREL, Sarah; LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; NORONHA, José Carvalho de;
CARVALHO, Antonio Ivo de. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012, p.91. 214 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p.41. 215 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.71.
95
Medidas atinentes ao controle orçamentário também podem ser úteis, como proposto
por Fábio Konder Comparato:
Seria preciso assim, entre outras medidas, institucionalizar a participação popular na
elaboração dos orçamentos públicos, aparelhar uma ação judicial de
inconstitucionalidade de políticas públicas (e não apenas de leis ou atos normativos
da Administração Pública), bem como reconhecer a competência do Judiciário para
invalidar a aprovação de orçamentos públicos que desrespeitem as prioridades
sociais estabelecidas na Constituição.216
Fernando Rister de Sousa Lima também propõe o exame orçamentário sob o viés
distributivo considerando que “não é possível distribuir o que não se tem ao menos a noção do
tamanho da riqueza a ser repartida” e conclui que “sem a análise do orçamento, pouco,
racionalmente, é possível de ser feito”.217
Ainda que de justiciabilidade intrincada, “os direitos humanos têm valor simbólico e
são capazes de abrir espaços de mobilização nacional e internacional no sentido da promoção
de direitos”,218
conforme verifica Robério Nunes dos Anjos Filho. Essa afirmação não deve
ser interpretada no sentido de que o que se almeja em termos de direitos humanos seja algo
simbólico, mas com base na capacidade de mobilização de pessoas em torno da causa dos
direitos humanos que tem condições de mudar a realidade.
6.1 Controle social
A participação popular é uma vertente de liberdade instrumental para o exercício de
liberdades materiais reconhecida em muitos países do mundo. O Tribunal Constitucional
Alemão, por exemplo, em julgamento sobre vagas em universidades e reserva do possível em
1972 assentou:
Quanto mais fortemente o Estado moderno se inclina à seguridade social e ao fomento
cultural dos cidadãos, mais aparece, no contexto da relação entre os cidadãos e o Estado, a
exigência complementar pela outorga de direito fundamental de participação (grundrechtliche
Verbüngung der Teilhabe) em prestações estatais, ao lado da garantia de direito fundamental
de liberdade em face do Estado.219
O controle social é instrumento previsto nos tratados de direitos humanos e tem
destaque especial na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que prevê:
216 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.353. 217 LIMA, Fernando Rister de Sousa. Saúde e Supremo Tribunal Federal. Lisboa: Juruá, 2016, p.196. 218 ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.132. 219 Acórdão: BVERGE 33,303. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Leonardo Martins
(Org.), p.1661.
96
Todos os seres humanos, individual e coletivamente, têm responsabilidade pelo
desenvolvimento, levando em consideração a necessidade do pleno respeito aos
direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como de seus deveres para com a
comunidade, único âmbito no qual se pode alcançar a livre e completa realização do
ser humano e devem assim promover e proteger a ordem política, social e
econômica apropriada para o desenvolvimento.
Desse conceito decorre que o aparelhamento dos instrumentos de participação popular
é meio para o desenvolvimento dos povos. Assim, é importante que a participação social
ocorra tanto ao formular políticas públicas quanto ao fiscalizar sua execução.
Na área da saúde, o movimento pelo controle social decorreu das conferências
temáticas que levaram ao conceito de saúde inserido no documento que criou a Organização
Mundial de Saúde em 1946.
A participação direta e democrática foi fundamental no desenho do Sistema Único de
Saúde por meio do movimento sanitarista ocorrido na década de 1980.
A Constituição Federal de 1988 submeteu o Sistema Único de Saúde ao controle
social porque previu a participação da comunidade como uma diretriz das ações e dos
serviços públicos de saúde.
A Lei n.8.142/90 dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema
Único de Saúde por meio das conferências e dos conselhos de saúde. Legalmente as
conferências devem ter encontros quadrienais; os conselhos são previstos para as três esferas
de governo (União, Estados e Municípios), em caráter permanente e deliberativo, mediante
colegiado integrado por representantes dos gestores de saúde, dos prestadores de serviços e
dos usuários do sistema de saúde para formularem estratégias e controlarem a execução da
política de saúde.
A participação de integrantes do Poder Executivo, de representantes dos trabalhadores
da saúde e dos usuários do sistema, conforme definido pela Lei n.8142/90, confere
legitimidade democrática para o acompanhamento da execução da política pública de saúde.
Os conselhos de saúde implicam uma alternativa à democracia representativa
tradicional e representam o exercício da democracia participativa e deliberativa. A via é
importante para a cidadania e marca o aprofundamento da democracia mediante novos
arranjos deliberativos e novos padrões de relações entre o Estado e a sociedade civil.
O controle social do sistema de saúde é bem concebido em termos ideais no Brasil
mas tem apresentado dificuldades práticas em benefício da efetivação do direito à saúde. É o
que apontam Fernando Santana de Paiva, Cornelis Johannes Van Stralen e Pedro Henrique
Antunes da Costa:
97
Os resultados expressos pelas diferentes pesquisas analisadas apontam para as
dificuldades de consolidação dos conselhos de saúde como espaços públicos de
deliberação participativa. As categorias apresentadas: representatividade política,
capacitação política, relações entre os atores sociais, cultura política, desenho
institucional, discursos sobre saúde/doença, bem como o debate em torno do
potencial democrático de tais arenas sinalizam as questões que merecem ser
profundamente analisadas no contexto político contemporâneo em relação aos
conselhos gestores na área da saúde.220
6.2 Justiça internacional
No sistema global, não há um Tribunal Internacional de Direitos Humanos, conforme
explica Flávia Piovesan:
[...] há a Corte Internacional de Justiça (principal órgão jurisdicional da ONU, cuja
jurisdição só pode ser acionada pelos Estados), os Tribunais ad hoc para a ex-
Iugoslávia e Ruanda (criados por resolução do Conselho de Segurança da ONU) e o
Tribunal Penal Internacional (para o julgamento dos mais graves crimes contra a
ordem internacional). A criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos
no âmbito da ONU constitui medida imperativa para o fortalecimento dos direitos
humanos na ordem contemporânea.221
Nos sistemas regionais estão previstos mecanismos específicos para proteger os
direitos humanos. Segundo Flávia Piovesan, “a jurisprudência internacional tem consolidado
uma importante arena para a proteção de direitos, quando as instituições nacionais se mostram
falhas e omissas em fazê-lo”.222
Esta constatação evidencia que o sistema global funciona mais pela lógica penal
enquanto o sistema regional funciona mais pela lógica civil de direitos humanos.
A Convenção Interamericana prevê um aparato para implementar os direitos os quais
enuncia, composto pela Comissão Interamericana e pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (artigo 33 do Pacto de San Jose da Costa Rica).
A Comissão está disciplinada no capítulo VII da Convenção e representa todos os
membros da Organização dos Estados Americanos (artigo 33 do Pacto). É composta por sete
membros de países diversos e tem a função principal de observar e defender os direitos humanos,
mediante as seguintes atribuições, nos termos do artigo 41 do Pacto: estimular a consciência dos
direitos humanos nos povos da América; formular recomendações aos governos dos Estados
membros; solicitar aos governos dos Estados membros que lhe proporcionem informações sobre
as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; atender às consultas que, por meio da
220 PAIVA, Fernando Santana; STRALEN, Cornelis Johannes Van; COSTA, Pedro Henrique Antunes. Participação social e
saúde no Brasil: revisão sistemática sobre o tema. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.19, n.2, p.487-498, fev.
2014, p.495. 221 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 2.ed. Saraiva: São Paulo, 2011, p.92. 222 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 2.ed. Saraiva: São Paulo, 2011, p.92.
98
Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados membros
sobre questões relacionadas aos direitos humanos; atuar com respeito às petições e outras
comunicações e apresentar relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos.
A Comissão recebe petições contendo denúncias ou queixas de violações de qualquer
pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou
mais Estados membros da Organização. O objetivo é averiguar denúncias ou queixas de violação
da Convenção por um Estado Parte (artigo 44 do Pacto).
Nos termos do artigo 46 do Pacto, são requisitos de admissão de petições pela Comissão:
se interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna (com exceções em casos de não
existir na legislação interna o devido processo legal para proteger o direito violado, se não tiver
sido permitido o acesso aos recursos na jurisdição interna e se houver demora injustificada no
julgamento dos recursos); ser apresentada em seis meses, a partir da data em que o presumido
prejudicado em seus direitos tiver sido notificado da decisão definitiva; que a matéria da petição
ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; que a petição
contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas
ou do representante legal da entidade que submeter a petição.
A Corte Interamericana é composta por sete juízes de nacionalidades distintas, eleitos
nominalmente pela Assembleia Geral da Organização. Ela tem função jurisdicional e consultiva.
Somente os Estados Parte e a Comissão têm direito de submeter casos à sua decisão (artigo 61 do
Pacto).
Na área da saúde, o caso que se destaca na Corte Interamericana de Direitos Humanos é a
decisão proferida em petição encaminhada pela família de Damião Ximenes Lopes, no qual o
Brasil foi condenado por maus tratos em hospital psiquiátrico, ocorrido em 1998, na cidade de
Sobral/CE. A decisão proferida em 2006 reconheceu formalmente a violação aos direitos à vida,
à integridade física e à proteção judicial da vítima e determinou: a) realizar processo interno em
prazo razoável para apurar os fatos; b) indenizar a família da vítima; c) dar ampla publicidade ao
ocorrido e d) capacitar profissionais da área de saúde mental.
Especificamente em relação à saúde, desde a edição do Pacto de 1966 sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ocorrem intensos debates sobre os mecanismos para
sua implementação. Lawrence Gostin aponta quatro grandes dificuldades na implementação
do direito à saúde tal como previsto no Pacto de 1966:
Os documentos legais contêm aspirações vagas com obrigações pouco detalhadas
que dificultam seu rigoroso monitoramento e exigibilidade; 2) Os comitês da ONU
99
têm poucos instrumentos de exigibilidade além de relatórios descritivos de violações
de direitos; 3) Os documentos internacionais admitem a implementação progressiva
dos direitos sociais; 4) O dever legal recai sobre os Estados e não sobre a
comunidade internacional, de modo que mesmo que seja notória a incapacidade de o
Estado cumprir o compromisso não foi prevista responsabilidade sucessiva da
comunidade internacional223
(tradução livre).
Contudo, importante instrumento de efetivação do direito à saúde está previsto no
Protocolo Facultativo do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
porque, por meio dele, foi criado um mecanismo que permite que pessoas, grupos e
comunidades de todo o mundo, cujos direitos econômicos, sociais e culturais não tenham sido
respeitados por seus Estados, tenham a possibilidade de acessar o sistema universal de
proteção de direitos humanos.
Pelo Protocolo Facultativo foi criado um Comitê que poderá tratar de casos concretos
de violações destes direitos, examiná-los e recomendar reparações. Segundo o protocolo, as
denúncias podem ser apresentadas ao comitê por comunicações individuais de pessoas ou
grupos de pessoas, por medidas provisionais, por queixas de um Estado Parte contra outro e
também por meio de procedimento de investigação para violações graves ou sistemáticas dos
direitos.
Assim, para proteger o direito à saúde, além dos mecanismos de proteção judicial e do
controle social, há mecanismos de controle internacional, com especial destaque à Corte
Interamericana de Direitos Humanos e ao Comitê criado a partir do Pacto sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
Eles representam mecanismos supletivos, porque dependem do esgotamento da via
judicial no âmbito nacional. Os tribunais internacionais não substituem as decisões judiciais
internas e não são instância para rever decisões judiciais como mais uma via recursal. Sua
função é adequar ações ou omissões estatais frente aos tratados internacionais de direitos
humanos. Compete aos Estados reconhecer a competência contenciosa da decisão da Corte (o
Brasil a reconheceu por meio do Decreto Legislativo n.89, de 3 de dezembro de 1998).
6.3 Mediação
Ao longo da evolução das sociedades, os meios de realização de justiça foram
retirados das mãos dos cidadãos e transferidos aos órgãos legitimados socialmente,
223 GOSTIN, Lawrence. Global health law. London: Harvard University Press, 2014, p.20.
100
concentrando e monopolizando a solução de conflitos pelo Estado por meio da via judicial de
solução de controvérsias.224
Nada obstante, existem meios de solução de conflitos que não estão atrelados à
manifestação de um órgão de Estado ou que não dependem diretamente da atuação do Poder
Judiciário e que, em regra, provém da autocomposição das partes ou da heterocomposição,
realizada com auxílio de um terceiro imparcial sem jurisdição estatal.
São os meios não jurisdicionais (ou não adjudicativos) de solução de conflitos que
podem englobar diversos procedimentos e servir como solução para superar a ‘crise da
justiça’, denominação utilizada como decorrência da excessiva utilização do Poder Judiciário
para a solução de conflitos em geral.
Dentre estes meios alternativos, destaca-se a mediação, conhecida pela presença de
um terceiro distinto das partes, o mediador, que atua com a finalidade de buscar a solução do
conflito. Ou seja, a mediação se apresenta como um dos meios de solução de controvérsias
visando prevenir ou corrigir pontos de divergência decorrentes da interação e organização
humana.225
A normatização deste meio alternativo de solução de conflitos se apresentou no
ordenamento jurídico por meio da Lei n.13.140/15, que prevê a possibilidade de mediação
judicial ou extrajudicial e que também dispõe sobre a mediação envolvendo a administração
pública. O Código de Processo Civil de 2015 tem importante perfil cooperativo e tratou do
tema especificamente no artigo 165, determinando a criação de centros judiciários de solução
consensual de conflitos, que devem ser “responsáveis pela realização de sessões e audiências
de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar,
orientar e estimular a autocomposição”.
No que se refere à relação da mediação com a judicialização da saúde, importa
considerar que a área de direito da saúde é essencialmente interdisciplinar. Contempla
aplicação do direito constitucional e de vasta legislação administrativa, mas seu núcleo central
é o atendimento a saúde do cidadão. Nesse contexto, a participação dos atores do sistema de
saúde no processo aparece como medida importante para inserção daquele pedido judicial
dentro do contexto de direito público que norteia o funcionamento do Sistema Único de
Saúde.
224 MORAIS, José Luiz Bolzan de. Crise(s) da jurisdição e acesso à justiça – uma questão recorrente. In: (Coord.) SALES,
Lília Maia de Morais. Estudos sobre mediação e arbitragem. Fortaleza: ABC, 2003, p.80. 225 SANTOS, Theophilo de Azeredo; GALVÃO FILHO, Maurício Vasconcelos. A mediação como método (alternativo) de
resolução de conflitos. In: MUNIZ, Joaquim de Paiva. Arbitragem e mediação – temas controvertidos. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, cap.20.
101
A mediação sanitária tem por objetivo tanto solucionar determinado atendimento
pendente em saúde quanto contribuir para evitar demandas repetitivas que oneram
desnecessariamente as estruturas judiciárias e de saúde. Considerando o entendimento de
Maria Celeste Cordeiro Leite Santos de que a mediação é a busca do ponto de equilíbrio e a
ação que visa o ponto intermediário entre os dois extremos226
, podemos afirmar que a
mediação em saúde seria uma válvula importante para equalizar o fornecimento dos
medicamentos indicados para o paciente com a conferência de sua eficácia e com a
contextualização da prescrição dentro da política pública de saúde previamente estabelecida.
Isto, porque, “a mediação é concepção não contenciosa de resolução de conflitos, mediante a
negociação direta entre as partes, com o escopo de preservar o relacionamento, obtendo-se
soluções mutuamente aceitáveis”.227
Nada obstante, deve-se relembrar que a tônica da mediação é o consenso e sua
construção depende de um processo de convencimento das próprias partes. Ou seja, a
negociação pode ser mais longa, mas a execução é facilitada em razão do compromisso
firmado pelas partes de algo que elas sabem que podem cumprir e não envolve imposição
coercitiva.
Assim, na busca pelo equilíbrio, emergem valores que contribuem sobremaneira para
a solução do problema e, nesse passo, o componente ético é fundamental, na medida em que
representa a intenção honesta, especialmente por parte do Poder Público, de oferecer solução
ao problema de forma coletiva e de não usar o tempo que pode envolver a negociação de
maneira protelatória, como uma etapa a mais para inviabilizar o acesso da população ao seu
direito fundamental de acesso à saúde.
226 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (Coord.). O Novo Código de Processo Civil brasileiro, um enigma a ser
decifrado. São Paulo: Max Limonad, 2016, p.138. 227 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (Coord.). O Novo Código de Processo Civil brasileiro, um enigma a ser
decifrado. São Paulo: Max Limonad, 2016, p.139.
102
7 CONCLUSÃO
De acordo com a análise da evolução geracional dos direitos humanos, o direito à
saúde é direito humano, não apenas como consectário do direito à vida no sentido de primeira
geração, mas também como direito social de segunda geração no sentido de prestações
estatais que garantam a saúde e, ainda, como um direito difuso de terceira geração que atinge
a todos indistintamente.
O direito à saúde tem aspectos individuais, pertinentes unicamente ao indivíduo. Mas
também tem aspectos coletivos enquanto saúde pública porque a saúde de uns interfere na
saúde dos outros. E tem, ainda, aspectos de desenvolvimento relacionados à redução de
desigualdades globais e que se ligam ao potencial transmissor de doenças em um mundo
globalizado.
A proteção judicial é uma estratégia forte para se proteger o direito à saúde. Quando
utilizada, é importante que ela seja efetiva para que a tutela jurisdicional seja cumprida da
forma mais rápida e menos onerosa possível. Ela funciona melhor nos aspectos individuais,
mas com potencial de ofuscar os seus demais aspectos nos processos judiciais. Ela tem bom
instrumental previsto para a tutela coletiva, mas ainda subutilizado no sistema brasileiro. Nos
aspectos de desenvolvimento, o sistema processual é insuficiente para a adequada proteção do
direito.
À estratégia judicial se somam os mecanismos de controle social, de controle
internacional e de mediação. No entanto, esses instrumentos não se sobrepõem ao controle
judicial e são supletivos para os resultados esperados em termos de equidade na promoção da
saúde.
O direito à saúde, pela sua magnitude, deve ser buscado por meio de todas as
estratégias de concretização: execução primária pelo Poder Executivo, controle social,
controle judicial, controle internacional, mediação ou qualquer outra forma que seja viável em
busca de maior qualidade de vida para as pessoas saudáveis e de menor sofrimento às pessoas
doentes. Nenhuma estratégia pode ser desconsiderada e todas devem ser somadas, inclusive
com a participação de particulares e de entidades do terceiro setor. Afinal, a elevação dos
níveis de saúde depende de ação conjunta e de foco nas atuais e futuras gerações.
Conforme explica Ronald Dworkin, em Taking rights seriosly, o Estado deve sempre
buscar as respostas certas para o direito dos indivíduos. Para que esses direitos sejam levados
a sério, é preciso que se sustente uma teoria consistente de quais são eles e que os operadores
do direito atuem para protegê-los. Se o Estado não leva os direitos a sério, ele também não
103
leva a lei a sério.
Para levar o direito à saúde a sério, no sentido trazido por Ronald Dworkin, importa
inverter a lógica de interpretação do direito à saúde. Os aspectos de desenvolvimento devem
ser os primeiros na agenda de concretização, seguindo-se os aspectos coletivos para, só então,
avaliá-lo por meio da ótica individual.
Sob a ótica individual há mecanismos de socorro e uma eficiente via judicial
disponível. Sob a ótica coletiva, o sistema processual de tutela de interesses difusos e
coletivos é disponível e pode ser suficiente se adequadamente manejado. Sob a ótica de
desenvolvimento, por outro lado, não há via judicial bastante e a margem de ação individual é
inexistente embora capaz de gerar grandes desigualdades no mundo e fortes impactos na
saúde de todas as atuais e futuras gerações.
A prioridade dos aspectos de desenvolvimento e coletivos decorre de interpretação dos
tratados internacionais que preveem o direito à saúde enquanto direito humano e que
disciplinam seu conteúdo. Os documentos internacionais estudados trazem elementos para a
interpretação do conteúdo do direito à saúde e o que deve ser exigido a esse título,
evidenciando a prevalência dos aspectos de coletivos e de desenvolvimento.
Para a verdadeira efetividade do direito à saúde, crucial é o resgate do seu conteúdo
humanitário, que conduz à interpretação mais ampla no sentido do desenvolvimento. Crucial,
também, o fortalecimento dos aspectos coletivos porque representam importante caminho na
concretização do direito à saúde como direito social. Caso contrário, o pensamento de direitos
humanos se resumiria à retórica e à utopia sem cumprir sua finalidade de pacificação das
relações sociais.
104
REFERÊNCIAS
Acórdão: BVERGE 33,303. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal
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