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População em situação de rua e a linguagem dos direitos:
reflexões sobre um campo de disputas políticas, definições de sentidos e práticas
de intervenção1.
Tiago Lemões da Silva
(UFRGS/RS)
Resumo: Interessa-me realizar neste ensaio algumas reflexões preliminares, de base
etnográfica, sobre determinadas práticas, discursos e intervenções, no campo da organização e
mobilização política engendrada por homens e mulheres “em situação de rua”, psicólogos,
assistentes sociais e dirigentes de instituições públicas. Estes atores, mobilizados contra
“violações de direitos”, inserem-se na disputa por significados e poder de enunciação em torno
das formas de compreensão, definição e intervenção sobre a questão da “situação de rua”, tendo
como resultado o delineamento de novas pedagogias e sensibilidades no campo da defesa dos
direitos da “população em situação de rua”. A motivação para tais reflexões provém da
percepção de que estes diferentes sujeitos encontram-se posicionados e envolvidos nos
processos de inscrição daquela “população” nas arenas de reivindicação de direitos específicos,
principalmente a partir da aprovação, pelo governo federal, do Decreto 7.053/09 que institui a
Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Palavras-chave: direitos, moralidades, mobilização política.
1. Considerações inicias
Interessa-me realizar neste ensaio algumas reflexões preliminares, de base
etnográfica, sobre determinadas práticas, discursos e intervenções, no campo da
organização e mobilização política engendrada por homens e mulheres “em situação de
rua”, psicólogos, assistentes sociais e dirigentes de instituições públicas. Estes atores,
mobilizados contra “violações de direitos”, inserem-se na disputa por significados e
poder de enunciação em torno das formas de compreensão, definição e intervenção
sobre a questão da “situação de rua”, tendo como resultado o delineamento de novas
pedagogias e sensibilidades no campo da defesa dos direitos da “população em situação
de rua”. A motivação para tais reflexões provém da percepção de que estes diferentes
sujeitos encontram-se posicionados e envolvidos nos processos de inscrição daquela
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
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“população” nas arenas de reivindicação de direitos específicos, principalmente a partir
da aprovação, pelo governo federal, do Decreto 7.053/09 que institui a Política Nacional
para a População em Situação de Rua.
Instituída em decorrência das disposições da Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS - Lei 8.742/93) a política nacional prevê, dentre outros objetivos, o
desenvolvimento de ações educativas permanentes que contribuam para a “formação de
uma cultura de respeito, ética e solidariedade entre a população em situação de rua e os
demais grupos sociais, de modo a resguardar a observância aos direitos humanos”, além
da implantação de Centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação
de rua, prevendo também a participação da referida população no Comitê Intersetorial
de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional da População em Situação
de Rua2. Comemorada enquanto uma conquista no campo dos direitos humanos, a
política nacional é entendida como resultado de reivindicações e negociações
empreendidas entre o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e o governo
federal, marcando também a incorporação da linguagem dos direitos humanos pelos
militantes do MNPR, integrado tanto por sujeitos “em situação de rua” ou “com
trajetória de rua” quanto por parceiros ou apoiadores, representados por assistentes
sociais, psicólogos, enfermeiros, advogados, pesquisadores.
É a partir da observação, interação e participação em seminários e reuniões de
discussão sobre a política nacional, realizados tanto pelo poder público quanto pelos
próprios integrantes do MNPR e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da
População de Rua (NDDH) em Porto Alegre, que proponho as reflexões aqui
delineadas. A pesquisa etnográfica está em andamento desde outubro de 2013, com
interesse principal em compreender as formas como, a partir da dimensão discursiva dos
direitos, se perpetuam ou se constroem categorias que balizam especificidades no
entendimento e, por conseguinte, na intervenção em representação e em defesa das
pessoas “em situação de rua” em Porto Alegre. Nesse processo, o MNPR e seus
esforços na implementação e garantia de direitos previstos na política nacional figuram
como porta de inserção no campo de pesquisa.
2 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Política Nacional para a População em situação de rua, Decreto n.
7.053, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Decreto/D7053.htm
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Sem negar a visibilidade e a ampliação de espaços de enunciação da população
em situação de rua na arena pública (promovida, em grande parte, por sua atual
organização política nacional), pretendo, de forma preliminar, atentar para práticas,
discursos e interações que confluem para a constituição de novas pedagogias em um
contexto no qual, por um lado reafirma-se a retórica dos direitos humanos e das
denúncias de violações, de outro multiplicam-se autoridades e mecanismos de produção
de uma determinada “conduta ideal” para a pessoa “em situação de rua”, como
condicionalidade ao seu engajamento na luta por direitos.
Com estas questões, não pretendo inferir distâncias entre o “real” e o “ideal” no
campo do engajamento por direitos, apenas tomo estes questionamentos como pano de
fundo para o que sugiro neste texto: se por um lado a Política Nacional para a
População de Rua vem representar um marco na visibilidade política e ampliação da
interlocução destes sujeitos com o Ministério Público e Defensoria Pública, com visível
conquista de determinadas demandas, por outro os diferentes agentes envolvidos nesta
interlocução contribuem para a construção de uma concepção moral do “morador de
rua” politizado – que deve incorporar uma forma específica de fazer política –
articulada à uma certa moral da superação das dificuldades e “inserção social” em
padrões de normalidade. É possível desconfiar que este processo produz refinamentos
de categorias de classificação e especificação (SCHUCH, 2009) a partir das disputas
cotidianas em torno dos significados atribuídos à “situação de rua” e as consequentes
lentes de compreensão e intervenção decorrentes desse processo.
É nesse sentido que torna-se imprescindível atentar para o que Patrice Schuch e
Ivaldo Gehlen (2012) observam em torno da associação entre esforços de categorização
desta população e uma série de conjuntos definidores da noção de normalidade,
associação que estaria atrelada à criação de estratégias de gestão pública destes sujeitos.
Estas estratégias também possuem sua dinamicidade e historicidade, na medida em que
as formas de conceber, administrar e atribuir significados relacionados à existência de
grupos que desafiam a ordem sedentária são cambiantes e heterogêneas, de acordo com
diferentes processos sociais e históricos, o que nos evidencia a intimidade destas
nomeações com dispositivos, ao mesmo tempo, de compreensão, definição e controle.
Assim, as tecnologias de governo, disseminadas no intuito de administrar e
circunscrever populações e de constituir um corpo saudável e homogêneo
(FOUCAULT, 1996) possuem uma historicidade que, atrelada a outros dispositivos
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analíticos, nos permite apreender as percepções elaboradas sobre a “população em
situação de rua” na contemporaneidade, atentando para as sutilezas discursivas das
definições e nominações lançadas sobre sujeitos enquadrados neste perfil populacional.
Se atualmente figura no cenário nacional do MNPR e das políticas públicas a
compreensão de que pessoas em situação de rua são “sujeitos de direitos” e que, com
“fome de direitos”, reivindicam o “direito a ter direitos”, o percurso histórico dos
esforços, tanto acadêmicos quanto da sociedade civil, em reformular e transcender
percepções deterministas sobre estes perfis populacionais, deixaram ruídos
interpretativos cujos reflexos podem ser identificados no discurso de diferentes agentes
de políticas públicas e também nas atuações dos interlocutores inseridos nos
enquadramentos institucionais como pessoas “em situação de rua”. Passo, agora, a
reportar brevemente alguns elementos da historicidade dos processos de produção e
controle desta “população”, atentando para continuidades e rupturas destas categorias.
2. Rupturas e continuidades nos modos de controle, intervenção e
compreensão da “situação de rua”.
O higienismo social, estruturado a partir do século dezenove, forjou o dilema da
confusão, da imobilidade e lançou novos poderes e saberes sobre a cidade, cujas
imagens fundantes são a diferenciação e a circulação. Nesta engenharia urbana, a ordem
é diferenciar o indistinto e fazer circular o que é estagnante, numa contradição em que o
que circula é exatamente uma ameaça ao desejo obstinado de fixação. Em nome da
“desinfecção social” de espaços obstruídos pela aglomeração humana, assentou-se uma
lógica asséptica de urbanismo legitimada por uma noção moderna de cidade. Escopos
de controle disciplinar de determinadas categorias sociais ocultavam-se sob o manto da
higienização dos espaços, dos planos de saneamento, do melhoramento e adaptação da
morfologia urbana às necessidades da sociedade industrial. Ao mesmo tempo, o
“nômade urbano” pobre que insistia em exercer sociabilidades e atualizar vínculos,
fundamentais à existência social, era visto como foco de doenças e ameaça ao valor do
trabalho, da família e da vida sedentária. Assim, o “urbano” substitui a noção de cidade,
5
ou seja, a disciplina urbanística interdita o entrecruzamento e a relativa fixidez de
corpos (PECHMAN, 1993).
Neste processo histórico de longa duração, a experiência nas ruas passa a ser
constituída como um problema social e urbano, permeado pela consensualidade,
partilhada entre agentes e instituições diversos, da vida nas ruas como uma experiência
inaceitável e, por isso, desviante e combatível pelos aparelhos da repressão estatal,
encarregados de controlar desvios e assegurar condutas aceitáveis (DE LUCCA, 2007).
Neste contexto, fenômenos inicialmente nomeados por “vadiagem”, “vagabundagem” e
“mendicância” passam a suscitar grandes investimentos repressivos, uma vez regulados
por enquadramentos jurídicos que os institucionalizavam na ilegalidade (NEVES,
2010).
No Brasil, como assinala Tomás Melo (2013) já na primeira metade do século
XIX, a prática da mendicância é criminalizada pelas Leis Criminais do Império (1830),
tendo continuidades no Código Penal da República (1890) e na própria Constituição de
1934. Ainda na Lei das Contravenções Penais, de 1941, identifica-se resquícios das leis
anteriores, expressos na ambiguidade da distinção entre vadios e mendigos, indicando a
penalização dos que, mesmo aptos ao trabalho, “entregam-se à ociosidade”, uma vez
que desprovidos de recursos para a sobrevivência, e dos que “mendigam por
ociosidade” (MELO 2013). As acusações, neste contexto, moralizam o comportamento,
a partir de valores como trabalho, casa e família. Estes mesmos elementos moralizantes
não deixam de operar no contexto contemporâneo, uma vez que a mesma lógica de
concepções jurídicas
[...] perdurou até recentemente, quando é sancionada a Lei 11.983/2009, que
revoga o art. 60 do citado Decreto-Lei n° 3688, de 3 de outubro de 1941. Ao
mesmo tempo, o art. 59 permanece em voga, trazendo novamente a questão
da ambiguidade em torno dos conceitos, pois, mesmo que a partir de 2009 a
mendicância tenha deixado de ser plausível de punição, permanece a
possibilidade de criminalizar pessoas caracterizadas como vadios (MELO,
2013, p. 3).
A partir destas breves problematizações em torno dos códigos penais e suas
ressonâncias morais na atualidade, Tomás Melo (2013) observa que a análise destes
processos está muito além de preocupações e dificuldades em relação à definição de um
fenômeno específico, concentrando-se principalmente na produção da criminalização
sustentada por práticas e discursos jurídico-administrativos reformulados no tempo e
6
que engendram uma compreensão específica da improdutividade e do ócio, perpassada
pela retórica da ausência de valores morais – o que é apropriado para justificar e
legitimar determinadas ferramentas de controle social, mesmo diante da instituição de
uma política pública instituída no mesmo ano em que é sancionada a Lei 11.983/09, que
dá continuidade à criminalização da “vadiagem”.
Em meio a estes processos históricos e sociais de criminalização deste segmento,
esforços analíticos de base marxista, a partir da década de 1970, passam a compreender
os sujeitos em questão enquanto “lupemproletariados”, sem “consciência de classe” por
não estarem filiados ao âmbito formal de produção capitalista – estruturando, porém,
uma crítica contundente ao sistema capitalista de produção de desigualdades, retirando o
manto moral da culpa individualizante. Tal compreensão inicial permite reconhecer que
os “sujeitos em situação de rua”, na atualidade, engendram um fenômeno inédito em
suas trajetórias histórica e social no Brasil: a construção de um espaço de reivindicações
que os permite afirmar-se como uma categoria política, sob a rubrica do MNPR.
Ainda em diálogo com Tomás Melo (2013) é possível indicar três principais
fatores que influenciaram na construção e compreensão das atuais dinâmicas sociais e
políticas acionadas pela população em situação de rua em âmbito nacional, quais sejam:
um conjunto de pesquisas acadêmicas realizadas desde a década de 1970, que buscou
desconstruir estereótipos, deslocando as causas e efeitos de explicações morais e
individualizantes para um questionamento crítico no quadro das estruturas capitalistas; a
influência direta de instituições religiosas na crítica e reformulação de nomenclaturas
diversas numa tentativa de desconstrução de conceitos estigmatizantes e, por fim, a
retomada da atenção à população em situação de rua na década de 1990, em face da
mobilização crescente por políticas destinadas ao referido segmento, ao mesmo tempo
em que se discutem formas de organização e reivindicação de direitos, como resultado
de iniciativas de caráter político/religioso – como as experiências da Organização do
Auxílio Fraterno (OAF) e do movimento Da Rua para a Terra, que constituíram
primeiras ações de discussão, formação e organização política da população de rua,
especificamente na cidade de São Paulo.
No que tange especificamente ao campo das produções acadêmicas, muitas
pesquisas trataram de compreender alguns elementos do modo de vida destes grupos
heterogêneos, refutando certos axiomas fundamentados em estereótipos sociais.
Conforme Simone Frangella (1996) tais estudos focaram-se, principalmente, nas
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“causas que produzem” estes sujeitos e suas análises direcionaram-se para as barreiras
socioeconômicas, como instabilidade no emprego formal, insalubridade, pobreza
extrema e violência – fatores alocados num universo de desmantelamento familiar em
múltiplas configurações.
Pesquisas baseadas na dinâmica destes sujeitos na cidade também denunciaram a
violência física e simbólica lançada sobre eles, assim como as representações
estigmatizantes que os percebem como inúteis e ameaçadores. Reforçaram, ainda, a
atuação de grupos de extermínio, as agressões morais das instituições por onde
passaram, além da relação com o espaço público e suas problemáticas. São questões
importantes a serem consideradas, pois escancaram os preconceitos e estereótipos que
justificam a violência movida contra eles.
Esse caráter denunciativo das mazelas que cercam a vida nas ruas, apesar de sua
importância, muitas vezes deixa escapar outro aspecto fundamental: os vínculos
constituídos no universo das ruas, os mecanismos que os mantêm e a potência política
que guardam as diferentes articulações engendradas no espaço público rumo à
construção de territórios existenciais possíveis (LEMÕES, 2013). Quando estas
questões são negligenciadas, a tendência é que as reflexões tomem a rua a partir de um
determinismo: sendo espaço de perigo, de abandono e de necessidade, não há
visibilidade ao caráter inventivo dos que nela aventuram-se.
Contudo, algumas reflexões, como as elaboradas por Patrice Schuch e Ivaldo
Gehlen (2012), conduzem-nos a pensar que a tendência à essencialização que a vida nas
ruas instiga, sintetiza duas perspectivas básicas sobre a questão: a primeira está marcada
pela individualização da situação de rua e legitima intervenções e práticas de governo
sedentas a suprimir tal fenômeno pelo desaparecimento destes sujeitos do espaço
urbano; a segunda perspectiva localiza o fenômeno em causalidades macroestruturais
que representam pessoas em situação de rua como sujeitos da “falta”. De acordo com os
autores, ambas perspectivas ocultam a “complexidade da agência dos sujeitos” (p.12).
Com tal viés, é possível pensar que as elaborações teóricas sobre a noção de
“exclusão social”, em reflexões sobre “pessoas em situação de rua”, define quem se
integra a esta situação, a despeito da variedade e multiplicidade de trajetórias e
configurações relacionais com a rua, sempre a partir da despossessão simbólica e do
isolamento social (SCHUCH & GEHLEN, 2012) ou seja, sempre a partir da
negatividade. Nestes termos, a retórica da “exclusão social”, irmã gêmea da “retórica da
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falta”, dificulta o reconhecimento de que para entender a complexidade do fenômeno, é
fundamental o dimensionamento
[...] tanto das multicausalidades que estão na origem desse fenômeno, entre
as quais devem ser incluídos processos sociais e históricos, tecnologias de
governo específicas e certas práticas dos sujeitos, quanto o reconhecimento
de que a rua é, também, um espaço de produção de relações sociais e
simbólicas habitado por sujeitos com agência política que exploram o mundo
na instabilidade de seu movimento (SCHUCH & GEHLEN, 2012, p.13).
Quando evidenciamos a dimensão política dos sujeitos categorizados a partir da
“rua”, estamos atentando para as práticas que desafiam o controle estatal e seus
mecanismos de identificação, imobilização, padronização, rastreamento e esterilização
dos corpos e das formas de agir, pensar e existir socialmente. Nestes termos, coloca-se a
possibilidade de compreender a itinerância como expressão de resistência e de agência
política frente às práticas normalizadoras de governo, incluindo-se aí o
redimensionamento da rua como universo da “falta” para a sua definição enquanto um
espaço possível de existência social e simbólica. Nesta constatação, é pertinente atentar
que a retórica da falta (que abre justificativas para a intervenção) está presente na
própria definição do decreto que institui a Política Nacional para a população “em
situação de rua”, que passa a definir estes sujeitos como “um grupo populacional
heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares
fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional regular”.
Em face destas discussões, o surgimento do MNPR coloca novas questões para a
compreensão das dinâmicas políticas dos sujeitos categorizados “em situação de rua” e
inseridos nestas arenas de interlocução com o Estado rumo à reivindicação de direitos
específicos. Se no contexto das ruas, a dimensão política manifesta-se na própria
negociação de espaços existenciais, no desafio e negação de diferentes tecnologias de
controle e normatização estatal (LEMÕES, 2013), é fundamental indagar sobre a
construção de novas dinâmicas políticas em que estes sujeitos inserem-se ao
ingressarem no MNPR, cuja atuação envolve uma constante interface com gestores de
políticas públicas, assim como assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros,
pesquisadores e outros profissionais engajados na mobilização e ocupando, muitas
vezes, a linha de frente organizativa e propositiva do movimento social.
Contudo, não se trata aqui de reificar processos de construção desigual de
sujeitos políticos preferenciais para intervenções por meio de políticas públicas – como
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se estas pessoas figurassem de forma passiva, tendo que adequar-se constantemente às
condicionalidades da participação política institucionalizada. Tampouco pretendo tomar
os agentes vinculados às instituições estatais como representantes diretos dos interesses
do Estado, com objetivos claros e conscientes de controle e produção de sujeitos ideais
“em situação de rua”. Para além disso, dialogo com Daniel Ceffaï (2009), para quem os
dispositivos de ação pública não somente encerram os sujeitos em mecanismos de
controle e normalização mas estruturam novos direitos e delegam poderes outros que
podem corrigir e reparar uma série de injustiças. Com isso, em superação aos
determinismos de forças antagônicas, é importante atentar para as práticas dos sujeitos
no trânsito entre múltiplas moralidades, autoridades e disputas por espaços de
enunciação.
3. A consolidação do MNPR em Porto Alegre
Como culminância das inserções da “população em situação de rua” no cenário
político (que provocam uma pluralização das nomenclaturas, tais como “povo sem
casa”, “povo de rua” e, por fim, “sofredores de rua”) funda-se em 2005, na capital
paulista, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), em face do Massacre da
Praça da Sé, que figura hoje como narrativa fundadora do MNPR (MELO, 2013) e
como estopim para reivindicação e organização política destes sujeitos cuja força ganha
amplitude a partir do decreto presidencial 7.053/09, que institui a Política Nacional para
a População de Rua. O marco fundador mais institucionalizado do MNPR, contudo,
localiza-se no cruzamento com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR), cujas primeiras mobilizações em torno de associações e
cooperativas remontam à década de 1970. Nesse processo, os representantes de
articulações mais localizadas entre sujeitos “em situação de rua”, inicialmente em São
Paulo e Belo Horizonte (principalmente após o massacre de 2004) foram convidados a
participar do 4º Festival Lixo e Cidadania, convite que também estendeu-se a outras
organizações que já ocorriam no Rio de janeiro, Bahia e Cuiabá. Neste encontro
histórico, o MNPR é lançado e, nos anos subsequentes, multiplicado pelas principais
capitais do país.
Em dez anos de existência, o MNPR declara entre suas conquistas emblemáticas,
além da política nacional, a eleição, em 2008, de um representante do movimento para o
10
Conselho Nacional de Assistência Social; a pesquisa nacional de contagem da
população de rua, realizada entre agosto de 2007 e março de 2008 e o Projeto de
Capacitação e Fortalecimento Institucional da População em Situação de Rua, uma
parceria entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a
UNESCO, entre 2009 e 20103.
Em Porto Alegre, a coordenação estadual do MNPR organizou-se em 2010 com
a população em situação de rua, usuários da rede de atendimento, acolhimento público e
uma série de profissionais de diversas áreas e interesses que dialogam em reuniões
semanais, promovem seminários específicos para discussão da implementação da
política nacional no âmbito municipal, em interface com profissionais da saúde,
psicologia e assistência social. Alguns destes atores que tomaram a frente na
organização, já traziam uma trajetória em movimentos sociais, principalmente em
sindicatos de municipários, no caso de técnicos e servidores da Fundação de Assistência
Social e Cidadania (FASC).
É importante assinalar que a experiência de mobilização política por direitos da
população em situação de rua, em Porto Alegre, remonta à década de 1990, em meio a
um cenário de ampliação da rede de serviço socioassistencial. Conforme Pizzato (2012),
em 1995, ocorreu o I Encontro de Moradores de Rua, ocasião em que também foram
devolvidos dados quantitativos sobre essa população, coletados um ano antes pela PUC-
RS em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre. Os debates propiciaram a constituição
da Comissão de Rua, formada por usuários da rede de serviços, que participou do
planejamento dos dois abrigos para população em situação de rua existentes hoje na
cidade. Ainda conforme Pizzato, é a partir de 1999 que se percebe uma ampliação da
participação desta população nas instâncias políticas da cidade, com presença em
fóruns, conferências e plenárias do orçamento participativo.
O movimento Aquarela da População de Rua, existente entre 2008 e 2010, é
representativo da continuidade deste histórico de mobilizações e busca por visibilidade
pela articulação entre agentes e técnicos dos serviços de assistência e usuários, assim
como o Jornal Boca de Rua, produzido e comercializado por “sujeitos em situação de
rua” e encabeçado pela Organização não-governamental Agência Livre para
Informação, Cidadania e Educação desde 2001. Foi através da articulação dos
integrantes do Movimento Aquarela com o Movimento Nacional de Catadores, com a
3 Tais conquistas são declaradas na Cartilha de Formação Política “Conhecer para Lutar”, lançada em
2010 pelo MNPR, MDS e UNESCO.
11
participação em debates nacionais, que os sujeitos mobilizados em Porto Alegre
estabeleceram maior diálogo com o MNPR, o que resultou na adesão ao MNPR/RS
(PIZZATO, 2012).
4. “A política está nas ruas” ou “isso tudo é falta do movimento”?
Tenho acompanhado, há oito meses, as reuniões e mobilizações dos integrantes
do MNPR/RS, do NDDH/RS assim como os seminários organizados pelos militantes e
pelo poder público. Nas reuniões semanais, registro e participo dos debates acerca dos
problemas enfrentados nos serviços públicos de assistência social4 (tanto na
infraestrutura, quanto no tratamento dispensado pelos funcionários), nas abordagens
policiais truculentas, nos temores de remoção compulsória em função da Copa, até
questões relativas à representatividade do movimento ou das demandas por denúncias
de violações de direitos humanos. Já nos seminários dos quais participei, estas mesmas
questões são trazidas à tona porém em um contexto de enfrentamento com os
representantes institucionais, pautado por acusações discursivas e performáticas de
violações de direitos, perpetradas por agentes da segurança pública e da assistência
social.
Atualmente, as principais discussões do MNPR-RS ocorrem em espaço cedido
pelo Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA) – sindicato este ao qual
alguns dos principais apoiadores do movimento e técnicos da FASC estão filiados. Em
algumas situações, estas reuniões também acontecem em “praça pública”, próximo a
viadutos ou no Parque da Redenção, área verde na região central da cidade. Quando
organizados ao ar livre, os debates costumam atrair outros sujeitos em situação de rua,
muitos dos quais ainda não conhecem o movimento, embora tenham contato com os
agentes da rede de assistência que militam ou apoiam as causas.
Alguns apoiadores do movimento (duas técnicas educadoras, uma psicóloga e
um militante “com trajetória de rua”, coordenador do MNPR-RS) integram o Núcleo de
4 Porto Alegre conta com uma rede municipal de assistência que se proclama integrada pelo Serviço de
Atendimento Social de Rua, ancorado em serviços de abordagens de rua e abrigagem. Ao todo, existem
cinco instituições de acolhimento na cidade: a Casa de Convivência, o Albergue Municipal, o Abrigo
Municipal Marlene, o Abrigo Municipal Bom Jesus e a recém criada “República Junto”, com 24 vagas,
resultante de convênio entre Estado, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e a Central
Única de Favelas (Cufa-RS).
12
Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua (NDDH), vinculado ao Centro
Nacional de Defesa dos Direitos Humanos5. As denúncias são registradas por estes
profissionais e militantes, principalmente durante as reuniões do MNPR, mas também
na interação cotidiana destes agentes em seus espaços de trabalho e mobilização.
Se técnicos da assistência social, vinculados à FASC figuram como principais
apoiadores do MNPR, coordenando as reuniões, delegando pautas e organizando os
debates, os sujeitos “em situação de rua” que participam ativamente das atividades e
discussões, em sua grande maioria estão inseridos na rede de assistência social – são os
“usuários” dos serviços públicos, já possuindo, assim, uma inserção nestes espaços de
interação com os técnicos e profissionais da área, com uma trajetória de relações e
vínculos estabelecidos ou mesmo atuando como facilitadores em programas municipais
de enfrentamento à situação de rua6. Embora uma média de cinco a dez integrantes com
tal perfil se mantenha com assiduidade nas ações do movimento, o número de sujeitos
em situação de rua, participantes do MNPR, ainda é considerado incipiente, sendo uma
reclamação constante o fato de a maioria dos militantes compor-se de apoiadores – ou
seja, pessoas que não passaram pela experiência da “situação de rua”.
A representação estadual do MNPR, porém, é assumida por Marco Antônio7, um
“ex-morador de rua”, branco, aproximadamente 60 anos de idade e um dos principais
articuladores da ampliação do MNPR no interior do Rio Grande do Sul, com uma
trajetória de inserção no Conselho Municipal de Saúde e vínculos afetivos com
assistentes sociais e psicólogos da rede assistencial, também integrantes do MNPR.
É neste quadro de posicionamentos e trajetórias específicas dos interlocutores
que localizo o campo de disputas em torno de sentidos e significados que definem tanto
5 O Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em situação de rua e dos Catadores
de materiais recicláveis (CNDDH/PSR/CMR), foi implantado em 2011 pela Secretaria Nacional de
Direitos Humanos (SNDH), em atendimento às demandas conjuntas do MNPR, do MNCR e do Fórum
Nacional da População de Rua. Conforme folder explicativo lançado este ano pelo CNDDH, a dinâmica
de atuação do Centro, por meio de seus núcleos em 440 cidades, abrangendo todos os estados brasileiros
(com exceção de Roraima) consiste na sistematização de dados e produção de conhecimento sobre
violações e planejamento de formações e capacitações que viabilizem a eficácia das denúncias. Em sua
atuação, o CNDDH conta com diversos parceiros envolvidos na defesa da população em situação de rua,
quais sejam: a Secretaria de Direitos Humanos do Paraná, a Coordenadoria de Inclusão e Mobilização
Social do Ministério Público de Minas Gerais, o MNPR, o MNCR, a Pastoral Nacional do Povo da Rua e
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
6 Refiro-me ao Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua (PMESR), lançado em 2011. A
execução do plano conta com a firmação de convênio com facilitadores sociais com trajetória de rua ou
em situação de rua, para atuarem na linha de frente das abordagens, principalmente em seus territórios de
origem, com vistas a contribuir para a inserção de demais companheiros de rua nos serviços assistenciais. 7 Utilizo nomes fictícios para preservar o anonimato dos interlocutores.
13
o que é estar “em situação de rua” quanto o que legitima a constituição de sujeitos
políticos, especificamente detentores de determinados “discursos e posturas
politizadas”.
Nos debates propiciados nos diferentes espaços de enunciação política, é comum
o debate sobre a necessidade de “capacitação” de novos integrantes em situação de rua.
O assunto provoca intensas discussões entre apoiadores do movimento, que defendem
tal necessidade sob a justificativa de que há uma incomunicabilidade entre as pautas do
MNPR e os anseios da população em situação de rua não inserida nas discussões do
movimento e que, por tal condição, não estariam capacitadas politicamente. Em
contraposição, Adriana, militante do movimento e com trajetória de rua, manifesta a
opinião, compartilhada por outros companheiros, de que “o movimento vem das ruas”,
de que a “política está nas ruas” e que “qualquer pessoa que tenha sofrido nas ruas
sabe o que a população de rua precisa”.
Esta discussão também é tencionada pela mesma interlocutora, agora em outra
reunião, acerca da representatividade. Na reunião que antecedeu os preparativos para o
II Encontro Nacional da População de Rua em Curitiba, Ana Paula, assistente social e
militante, perguntou aos presentes o que o MNPR significava para eles e como
avaliavam a representatividade do mesmo (se deveriam ser eleitas duas ou mais pessoas
ou se todos teriam a capacidade de representar o movimento, descentralizando a
representação), alertando que somente os “em situação de rua” deveriam responder.
Adriana responde com uma contestação retórica: “mas eu pensei que automaticamente
todos nós fossemos representantes do movimento! Têm que falar em várias pessoas
como representantes, não somente o Marco Antônio (atual coordenador) e o Diego
(militante com trajetória de rua e uma das principais lideranças). Em meio às falas
sobrepostas neste debate, Marco Antônio manifesta-se para considerar que “temos que
criar um código de ética do MNPR, para saber o que vamos falar nos encontros
nacionais. Sete integrantes foram selecionados e são os que mais participam das
reuniões e estão por dentro do debate”.
Muito embora estes embates parecessem, num primeiro momento, ruídos
comuns a toda mobilização social, foi numa reunião entre representantes do MNPR, do
Jornal Boca de Rua e a secretária da Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos
Humanos e Segurança Urbana (CEDECONDH) da Câmara dos vereadores, que
evidenciou-se a amplitude e o poder dos questionamentos que os permeiam.
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Pesquisadores da universidade e outras pessoas “em situação de rua” não pertencentes
ao MNPR estavam presentes ao redor de uma grande mesa cujos assentos não
comportavam a totalidade dos presentes, a disposição das cadeiras em formato de L
(com a coordenadora técnica da comissão em lugar central) permitia que muitos
ficassem frente-a-frente. A reunião foi convocada pela CEDECONDH a fim de discutir
a elaboração de um minisseminário com o tema da “população em situa de rua e
segurança pública em tempos de copa do mundo”, abrindo espaço para que os
representantes deste perfil populacional pudessem participar da construção das pautas a
serem discutidas no evento.
A rodada inicial de apresentações tomou quase a totalidade das duas horas
destinadas à reunião: cada um que se apresentava também despejava um turbilhão de
insatisfações com os serviços públicos e denúncias de violência e abuso de autoridades
e mesmo de assuntos para além da segurança pública. Marcelo, jovem integrante do
MNPR e do Boca de Rua, questiona: “por que quanto mais querem ajudar, mais eles
nos tiram? Vou falar o quê? Se o mais importante é a copa, e não o ser humano”.
Adriana, por sua vez, afirma estar “cansada de violência, mas é uma violência que está
além do físico, são palavras, privações, é a indiferença, assim como os vereadores
dessa câmara são indiferentes conosco. Estamos cansados de pedir, temos que exigir e
cobrar ação dos gestores”. Marco Antônio, então, elenca em sua fala as conquistas do
MNPR, o aceite da política nacional pelo município e o serviço de denúncias “disque
100”, acrescentando que “o maior violador de direitos humanos é o Estado”. Contudo,
é Marcelo quem responde para Marco Antônio, inferindo que o “disque 100” não serve
para nada e que “isso tá há 20 anos na minha vida e nunca funcionou”. Em defesa das
conquistas do movimento, Marco Antônio afirma que “antes o movimento estava
morto”, ao que Adriana retruca: “morto não! O senhor nunca acampou conosco lá na
prefeitura! ” (referindo-se a uma mobilização realizada por sujeitos em situação há
alguns anos atrás).
Na efervescência do debate (que nestas alturas estava incontrolável pela
coordenadora técnica da CEDECONDH, que ensaiava tentativas frustradas para intervir
e acalmar os ânimos) eis que surge uma figura chave para compreender alguns
descontentamentos relativos à questão da representação política, apresentados por
Adriana nas reuniões do MNPR. Demonstrando inquietude e revolta sempre quando
Marco Antônio manifesta-se, Jonatas, homem negro de aproximadamente 30 anos,
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explode seus descontentamentos: “o senhor trabalha ao lado de gente que tá com a
prefeitura! O MNPR tem a mão da FASC! E onde tem a mão da FASC, pra nós não
serve! Aquelas reuniões de vocês são só de fachada, são todos um bando de sem-
vergonhas! Jonatas segue atacando todos os representantes do MNPR vinculados à
FASC e que estavam presentes na reunião, inclusive Carina, psicóloga e integrante do
NDDH e do MNPR.
Ao término da reunião na câmara dos vereadores, saio junto com Adriana e
Jonatas pelas ruas em direção ao centro da cidade. No caminho, contam-me que o Plano
Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua é uma farsa e que Jonatas, quando atuou
como facilitador, ficou por dentro de todas as tramoias de desvios de recursos. Com
grande influência de liderança nas ruas, Jonatas afirma que repudia o MNPR por ser
coordenado por agentes da FASC e que, nas ruas, existe um outro movimento cuja
nomenclatura ele explica-me mostrando o bíceps enquanto caminhamos: MUC -
Movimento Unificado de Combate, cuja atuação privilegiaria o enfrentamento direto
com gestores e agentes da assistência social, adjetivados por ele como um “bando de
sem-vergonhas”. Antes de nos despedirmos, Jonatas convida-me jocosamente a
participar, com ele e seus companheiros, de uma invasão ao prédio da FASC, “o
negócio é meter o pé na porta”.
Os enfrentamentos ocorridos no referido encontro com a CEDECONDH
deixaram Marco Antônio emocionalmente abalado. Dois dias depois, na reunião do
MNPR, declara ele que não vai “falar nem responder nada em relação ao que
aconteceu naquela reunião” e que “a gente não deve mais responder ou deve se retirar
quando for criticado”, pois “temos que falar a mesma língua, mas vivemos numa
democracia e o movimento nacional é nacional, não é da rua! Não estamos mais para
conflitos”. Na tentativa de apontar os efeitos desta conflitualidade, Carlos, “em situação
de rua’ e usuário dos serviços de assistência, constata que “o pessoal não tá mais unido,
antes iam direto para a frente da FASC para reclamar”. Ana Paula, atenta ao
comentário de Carlos, imediatamente compartilha sua opinião sobre os conflitos de
representação: “isso tudo é falta do movimento”.
Neste contexto de reivindicação de direitos e denúncias de violações, articulado
pelo MNPR/RS e CNDDH, que outras vozes, proposições e posições podem estar sendo
ocultadas ou minimizadas? Seria demasiado arriscado, aqui, falar em “violência
simbólica dos processos políticos” que, na acepção de José Carlos dos Anjos (2004) se
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reproduz na constituição de um espaço especializado de tradução e politização de
determinadas demandas, no qual edifica-se uma “redução ao silêncio dos destituídos
dos instrumentos políticos [...] e reduzidos à condição de profanos quando o que está em
jogo é a interpelação politicamente especializada”? (DOS ANJOS, 2004, p.116).
Nesse sentido, é significativo que os critérios utilizados para constituir e abrir
espaços de fala e representação aos participantes traduzem-se pela participação nas
reuniões do movimento e a incorporação de determinadas retóricas e modos de
interlocução institucional como condicional à inserção na gramática da reivindicação de
“direitos da população em situação de rua”. Nas ocasiões em que pessoas “em situação
de rua” não se deixam levar pelas solenidades e protocolos de reuniões, seminários e
audiências públicas, interrompendo constantemente os discursos de autoridades por
meio de denúncias e inconformidades as mais diversas, é interessante constatar que a
tentativa de transmissão pedagógica de um modo específico de falar, comportar-se e
agir nestes espaços venha sempre dos trabalhadores dos serviços públicos e militantes.
5. Moralidades, vínculos e pedagogias na formação do “sujeito ideal” para
a defesa e para a aliança.
É mais instigante ainda o fato de que os sujeitos que mais obtêm êxito no
cumprimento dos critérios supracitados são os que possuem proximidade com os
agentes dos serviços assistenciais. Essa proximidade, inclusive – e aqui ressalto as
negociações de autoridade que se dão nestes espaços – é de extrema importância na
definição de quem fala e quem cala em nome dos direitos da “população em situação de
rua”. Se desentendimentos e redução de espaços de fala se dão em função do não
engajamento de determinados sujeitos às mobilizações articuladas à uma agenda
nacional de interlocução constante com órgãos e autoridades públicas, é imprescindível
atentar para os elementos que se interpõem à qualquer possibilidade de articulação com
aqueles agentes marcados por um histórico reprovado de conduta e tratamento negativo
com a população de rua.
Quanto a isso, é emblemática a ocasião na qual, em meio à busca de consenso
sobre a escolha de facilitadores/debatedores para os grupos de trabalho que comporiam
o seminário “Direito à cidade: a efetivação das políticas públicas para a população em
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situação de rua8”, os ânimos exaltaram-se quando a coordenadora de um dos albergues
públicos foi indicada como possível facilitadora. Adriana manifesta-se totalmente contra
à referida indicação, relatando, como justificativa, uma série de situações em que foi
maltratada pela coordenadora. Numa performance contestadora, em face da organização
relativamente rígida do espaço e das falas na reunião, ela levanta-se e dirige-se até um
conhecido “de rua” que comparecia pela primeira vez no local e, dando voltas ao redor
do colega, ela representa o modo como fora tratada pela funcionária pública – chutando
as sacolas do parceiro, ela o inquiri com rispidez: “te endireita e junta as tuas coisas...
te endireita”, e finaliza sua argumentação perguntando ao colega: “vai dizer que não
era assim que ela nos tratava?”, “vê se uma mulher como essas pode nos representar
?”.
A condicionalidade, aqui, ancora-se nas diversas “violações de direitos” a que se
possa enquadrar a rispidez com a qual estes sujeitos se deparam nos equipamentos de
assistência. É instigante pensar que, se o oposto a isso, ou seja, o tratamento carinhoso e
preocupado abre espaço para o vínculo e permite compartilhar campos de enunciação,
de modo semelhante, por parte dos técnicos dos serviços engajados nas causas da
população em situação de rua, as ações de proteção e denúncia de violações também,
por vezes, assentam-se no grau de diálogo, proximidade e sujeição às práticas
interventivas dos serviços. Quando participei, por exemplo, pela primeira vez da reunião
do NDDH, com a presença de Marco Antônio, Ana Paula e Carina, algumas denúncias
ocorridas durante a semana foram discutidas, mas chamou-me a atenção o caso de um
garoto que, na região metropolitana de Porto Alegre, teria sido agredido no interior de
um albergue. O motivo da agressão fora a denúncia de maus tratos que o jovem teria
feito ao NDDH. Os demais usuários do albergue, ao serem advertidos pelos monitores
de que todos pagariam pelo “erro” da denúncia, inquiriram o “delator” de forma
violenta. Carina finaliza o relato contando-nos que Diego, integrante do MNPR, não se
conteve e “investiu nas denúncias em favor do agredido, pois (o garoto) estava fazendo
o tratamento e tinha uma ótima relação com o pessoal do CAPS” (Centro de Atenção
Psicossocial).
8 Organizado pela Defensoria Pública da União - RS, este seminário ocorreu na primeira semana de
novembro de 2013, como resultado parcial de consultoria proposta pela Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República, que objetivou fortalecer as redes municipais de atendimento por meio do
mapeamento, identificação e divulgação dos serviços públicos. Assim como o seminário, também
constou, como resultado da consultoria, o lançamento de um guia dos serviços de atendimento específico
para a população em situação de rua nas grandes capitais do Brasil, incluindo Porto Alegre.
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Em outra situação, em que uma das reuniões do MNPR ocorreu nas ruas, a
denúncia apresentada pessoalmente por um jovem “em situação de rua”, escrita à mão e
lida pelo mesmo aos demais, teve desfechos semelhantes: a carta que o garoto negro, de
não mais do que 25 anos, lera em público naquela tarde, relatava a expulsão violenta
que sofrera em um dos abrigos da rede assistencial, enfatizando que, pelo atraso de sua
entrada na instituição, ficara sem alimentação naquela noite. Marco Antônio, Valéria
(técnica da FASC), Janaína (enfermeira no consultório de rua) e Jurema (professora de
enfermagem), alguns usuários dos serviços e eu já estávamos sensibilizados – inclusive
já havia me comprometido em digitalizar a carta para formalizar a denúncia junto ao
NDDH. Por mais que tivéssemos intenções baseadas na sensibilização com o fato
relatado, é com a chegada de Ana Paula e Diego, ao final da reunião, que somos
advertidos de que é muito precipitado acatar esta denúncia porque é necessário
considerar o lado do trabalhador, e Diego acrescenta que já conhece o denunciante de
longa data e sabe que “ele não é santo”. Qualquer procedimento em defesa do jovem
foi deixado de lado diante de tal advertência.
6. Considerações finais
Para além de uma compreensão que oponha estes valores que regulam
interações, o que está em jogo, ao que parece, é a constituição de um espaço plural de
moralidades que incidem sobre o vínculo de proximidade ou a ruptura relacional. Os
valores que, por parte dos integrantes do NDDH, positivam os sujeitos que aceitam os
tratamentos dos serviços assistenciais e que constroem vínculos afetivos com os agentes
destes serviços, muitas vezes também delimitam as possibilidades de fusão ou cisão de
parcerias na luta por direitos e na mobilização política.
É importante considerar, contudo, que estes preceitos morais, atrelados ao
vínculo e a adesão aos processos que indiquem a “saída das ruas” ou a vontade de fazê-
lo, também constroem um sujeito ideal para a intervenção no campo da assistência
social e mesmo para a denúncia e defesa de pessoas “em situação de rua”. Nestes
termos, se quisermos dialogar com Gustavo Lins (2004), incluiríamos na análise o peso
das representações sobre direitos humanos, as quais forjam “humanos direitos”,
idealizados como legítimos merecedores de vozes em sua defesa.
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Mas tal consideração deve atentar também para a dimensão da agência dos
próprios “assistidos”, quando acessam os serviços exatamente quando necessitam e,
para lograr êxito, forjam discursos, aparências e maleabilidades performáticas que
agradem o senso moral que alimenta a atuação de múltiplos agentes sociais,
principalmente os valores da família, da casa, do trabalho, da higiene, ou seja,
parâmetros indicadores de um padrão de normalidade estimada.
A atenção ao agenciamento dos diferentes sujeitos e suas moralidades
envolvidas no campo de pesquisa assinala a intencionalidade tanto cognitiva quanto
emocional dos envolvido e que, ainda que plasmada por regimes de poder (ORTNER,
2007), evidencia-se seja na articulação de atitudes e discursos antagônicos em contextos
distintos, a fim de tecer vínculos e alianças, ou lançando mão da radicalização de
rupturas dos vínculos com pessoas e instituições cujo histórico de atuação violenta e
impositiva, afasta a constituição comum de espaços de representatividade e
mobilização.
Por fim, estas questões ao mesmo tempo apontam para o rompimento de uma
visão instrumental e estratégica da experiência coletiva (CEFAÏ, 2009), em atenção às
dimensões da afetividade, da sensibilidade, das memórias e projetos que figuram, nas
formas de se mobilizar politicamente, enquanto critérios de constituição de afeições, de
disputas, de antagonismos e afetuosidades que influenciam tanto nos processos de
intervenção estatal e constituição de sujeitos alvo destas intervenções (seja para
“defende-los” ou para “assisti-los”), quanto nos vínculos e alianças que tecem a partir
da intencionalidade.
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