20
1 População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões sobre um campo de disputas políticas, definições de sentidos e práticas de intervenção 1 . Tiago Lemões da Silva (UFRGS/RS) Resumo: Interessa-me realizar neste ensaio algumas reflexões preliminares, de base etnográfica, sobre determinadas práticas, discursos e intervenções, no campo da organização e mobilização política engendrada por homens e mulheres “em situação de rua”, psicólogos, assistentes sociais e dirigentes de instituições públicas. Estes atores, mobilizados contra “violações de direitos”, inserem-se na disputa por significados e poder de enunciação em torno das formas de compreensão, definição e intervenção sobre a questão da “situação de rua”, tendo como resultado o delineamento de novas pedagogias e sensibilidades no campo da defesa dos direitos da “população em situação de rua”. A motivação para tais reflexões provém da percepção de que estes diferentes sujeitos encontram-se posicionados e envolvidos nos processos de inscrição daquela “população” nas arenas de reivindicação de direitos específicos, principalmente a partir da aprovação, pelo governo federal, do Decreto 7.053/09 que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Palavras-chave: direitos, moralidades, mobilização política. 1. Considerações inicias Interessa-me realizar neste ensaio algumas reflexões preliminares, de base etnográfica, sobre determinadas práticas, discursos e intervenções, no campo da organização e mobilização política engendrada por homens e mulheres em situação de rua, psicólogos, assistentes sociais e dirigentes de instituições públicas. Estes atores, mobilizados contra “violações de direitos”, inserem-se na disputa por significados e poder de enunciação em torno das formas de compreensão, definição e intervenção sobre a questão da “situação de rua”, tendo como resultado o delineamento de novas pedagogias e sensibilidades no campo da defesa dos direitos da “população em situação de rua”. A motivação para tais reflexões provém da percepção de que estes diferentes sujeitos encontram-se posicionados e envolvidos nos processos de inscrição daquela 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

  • Upload
    phamanh

  • View
    218

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

1

População em situação de rua e a linguagem dos direitos:

reflexões sobre um campo de disputas políticas, definições de sentidos e práticas

de intervenção1.

Tiago Lemões da Silva

(UFRGS/RS)

Resumo: Interessa-me realizar neste ensaio algumas reflexões preliminares, de base

etnográfica, sobre determinadas práticas, discursos e intervenções, no campo da organização e

mobilização política engendrada por homens e mulheres “em situação de rua”, psicólogos,

assistentes sociais e dirigentes de instituições públicas. Estes atores, mobilizados contra

“violações de direitos”, inserem-se na disputa por significados e poder de enunciação em torno

das formas de compreensão, definição e intervenção sobre a questão da “situação de rua”, tendo

como resultado o delineamento de novas pedagogias e sensibilidades no campo da defesa dos

direitos da “população em situação de rua”. A motivação para tais reflexões provém da

percepção de que estes diferentes sujeitos encontram-se posicionados e envolvidos nos

processos de inscrição daquela “população” nas arenas de reivindicação de direitos específicos,

principalmente a partir da aprovação, pelo governo federal, do Decreto 7.053/09 que institui a

Política Nacional para a População em Situação de Rua.

Palavras-chave: direitos, moralidades, mobilização política.

1. Considerações inicias

Interessa-me realizar neste ensaio algumas reflexões preliminares, de base

etnográfica, sobre determinadas práticas, discursos e intervenções, no campo da

organização e mobilização política engendrada por homens e mulheres “em situação de

rua”, psicólogos, assistentes sociais e dirigentes de instituições públicas. Estes atores,

mobilizados contra “violações de direitos”, inserem-se na disputa por significados e

poder de enunciação em torno das formas de compreensão, definição e intervenção

sobre a questão da “situação de rua”, tendo como resultado o delineamento de novas

pedagogias e sensibilidades no campo da defesa dos direitos da “população em situação

de rua”. A motivação para tais reflexões provém da percepção de que estes diferentes

sujeitos encontram-se posicionados e envolvidos nos processos de inscrição daquela

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

Page 2: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

2

“população” nas arenas de reivindicação de direitos específicos, principalmente a partir

da aprovação, pelo governo federal, do Decreto 7.053/09 que institui a Política Nacional

para a População em Situação de Rua.

Instituída em decorrência das disposições da Lei Orgânica de Assistência Social

(LOAS - Lei 8.742/93) a política nacional prevê, dentre outros objetivos, o

desenvolvimento de ações educativas permanentes que contribuam para a “formação de

uma cultura de respeito, ética e solidariedade entre a população em situação de rua e os

demais grupos sociais, de modo a resguardar a observância aos direitos humanos”, além

da implantação de Centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação

de rua, prevendo também a participação da referida população no Comitê Intersetorial

de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional da População em Situação

de Rua2. Comemorada enquanto uma conquista no campo dos direitos humanos, a

política nacional é entendida como resultado de reivindicações e negociações

empreendidas entre o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e o governo

federal, marcando também a incorporação da linguagem dos direitos humanos pelos

militantes do MNPR, integrado tanto por sujeitos “em situação de rua” ou “com

trajetória de rua” quanto por parceiros ou apoiadores, representados por assistentes

sociais, psicólogos, enfermeiros, advogados, pesquisadores.

É a partir da observação, interação e participação em seminários e reuniões de

discussão sobre a política nacional, realizados tanto pelo poder público quanto pelos

próprios integrantes do MNPR e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da

População de Rua (NDDH) em Porto Alegre, que proponho as reflexões aqui

delineadas. A pesquisa etnográfica está em andamento desde outubro de 2013, com

interesse principal em compreender as formas como, a partir da dimensão discursiva dos

direitos, se perpetuam ou se constroem categorias que balizam especificidades no

entendimento e, por conseguinte, na intervenção em representação e em defesa das

pessoas “em situação de rua” em Porto Alegre. Nesse processo, o MNPR e seus

esforços na implementação e garantia de direitos previstos na política nacional figuram

como porta de inserção no campo de pesquisa.

2 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Política Nacional para a População em situação de rua, Decreto n.

7.053, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-

2010/2009/Decreto/D7053.htm

Page 3: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

3

Sem negar a visibilidade e a ampliação de espaços de enunciação da população

em situação de rua na arena pública (promovida, em grande parte, por sua atual

organização política nacional), pretendo, de forma preliminar, atentar para práticas,

discursos e interações que confluem para a constituição de novas pedagogias em um

contexto no qual, por um lado reafirma-se a retórica dos direitos humanos e das

denúncias de violações, de outro multiplicam-se autoridades e mecanismos de produção

de uma determinada “conduta ideal” para a pessoa “em situação de rua”, como

condicionalidade ao seu engajamento na luta por direitos.

Com estas questões, não pretendo inferir distâncias entre o “real” e o “ideal” no

campo do engajamento por direitos, apenas tomo estes questionamentos como pano de

fundo para o que sugiro neste texto: se por um lado a Política Nacional para a

População de Rua vem representar um marco na visibilidade política e ampliação da

interlocução destes sujeitos com o Ministério Público e Defensoria Pública, com visível

conquista de determinadas demandas, por outro os diferentes agentes envolvidos nesta

interlocução contribuem para a construção de uma concepção moral do “morador de

rua” politizado – que deve incorporar uma forma específica de fazer política –

articulada à uma certa moral da superação das dificuldades e “inserção social” em

padrões de normalidade. É possível desconfiar que este processo produz refinamentos

de categorias de classificação e especificação (SCHUCH, 2009) a partir das disputas

cotidianas em torno dos significados atribuídos à “situação de rua” e as consequentes

lentes de compreensão e intervenção decorrentes desse processo.

É nesse sentido que torna-se imprescindível atentar para o que Patrice Schuch e

Ivaldo Gehlen (2012) observam em torno da associação entre esforços de categorização

desta população e uma série de conjuntos definidores da noção de normalidade,

associação que estaria atrelada à criação de estratégias de gestão pública destes sujeitos.

Estas estratégias também possuem sua dinamicidade e historicidade, na medida em que

as formas de conceber, administrar e atribuir significados relacionados à existência de

grupos que desafiam a ordem sedentária são cambiantes e heterogêneas, de acordo com

diferentes processos sociais e históricos, o que nos evidencia a intimidade destas

nomeações com dispositivos, ao mesmo tempo, de compreensão, definição e controle.

Assim, as tecnologias de governo, disseminadas no intuito de administrar e

circunscrever populações e de constituir um corpo saudável e homogêneo

(FOUCAULT, 1996) possuem uma historicidade que, atrelada a outros dispositivos

Page 4: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

4

analíticos, nos permite apreender as percepções elaboradas sobre a “população em

situação de rua” na contemporaneidade, atentando para as sutilezas discursivas das

definições e nominações lançadas sobre sujeitos enquadrados neste perfil populacional.

Se atualmente figura no cenário nacional do MNPR e das políticas públicas a

compreensão de que pessoas em situação de rua são “sujeitos de direitos” e que, com

“fome de direitos”, reivindicam o “direito a ter direitos”, o percurso histórico dos

esforços, tanto acadêmicos quanto da sociedade civil, em reformular e transcender

percepções deterministas sobre estes perfis populacionais, deixaram ruídos

interpretativos cujos reflexos podem ser identificados no discurso de diferentes agentes

de políticas públicas e também nas atuações dos interlocutores inseridos nos

enquadramentos institucionais como pessoas “em situação de rua”. Passo, agora, a

reportar brevemente alguns elementos da historicidade dos processos de produção e

controle desta “população”, atentando para continuidades e rupturas destas categorias.

2. Rupturas e continuidades nos modos de controle, intervenção e

compreensão da “situação de rua”.

O higienismo social, estruturado a partir do século dezenove, forjou o dilema da

confusão, da imobilidade e lançou novos poderes e saberes sobre a cidade, cujas

imagens fundantes são a diferenciação e a circulação. Nesta engenharia urbana, a ordem

é diferenciar o indistinto e fazer circular o que é estagnante, numa contradição em que o

que circula é exatamente uma ameaça ao desejo obstinado de fixação. Em nome da

“desinfecção social” de espaços obstruídos pela aglomeração humana, assentou-se uma

lógica asséptica de urbanismo legitimada por uma noção moderna de cidade. Escopos

de controle disciplinar de determinadas categorias sociais ocultavam-se sob o manto da

higienização dos espaços, dos planos de saneamento, do melhoramento e adaptação da

morfologia urbana às necessidades da sociedade industrial. Ao mesmo tempo, o

“nômade urbano” pobre que insistia em exercer sociabilidades e atualizar vínculos,

fundamentais à existência social, era visto como foco de doenças e ameaça ao valor do

trabalho, da família e da vida sedentária. Assim, o “urbano” substitui a noção de cidade,

Page 5: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

5

ou seja, a disciplina urbanística interdita o entrecruzamento e a relativa fixidez de

corpos (PECHMAN, 1993).

Neste processo histórico de longa duração, a experiência nas ruas passa a ser

constituída como um problema social e urbano, permeado pela consensualidade,

partilhada entre agentes e instituições diversos, da vida nas ruas como uma experiência

inaceitável e, por isso, desviante e combatível pelos aparelhos da repressão estatal,

encarregados de controlar desvios e assegurar condutas aceitáveis (DE LUCCA, 2007).

Neste contexto, fenômenos inicialmente nomeados por “vadiagem”, “vagabundagem” e

“mendicância” passam a suscitar grandes investimentos repressivos, uma vez regulados

por enquadramentos jurídicos que os institucionalizavam na ilegalidade (NEVES,

2010).

No Brasil, como assinala Tomás Melo (2013) já na primeira metade do século

XIX, a prática da mendicância é criminalizada pelas Leis Criminais do Império (1830),

tendo continuidades no Código Penal da República (1890) e na própria Constituição de

1934. Ainda na Lei das Contravenções Penais, de 1941, identifica-se resquícios das leis

anteriores, expressos na ambiguidade da distinção entre vadios e mendigos, indicando a

penalização dos que, mesmo aptos ao trabalho, “entregam-se à ociosidade”, uma vez

que desprovidos de recursos para a sobrevivência, e dos que “mendigam por

ociosidade” (MELO 2013). As acusações, neste contexto, moralizam o comportamento,

a partir de valores como trabalho, casa e família. Estes mesmos elementos moralizantes

não deixam de operar no contexto contemporâneo, uma vez que a mesma lógica de

concepções jurídicas

[...] perdurou até recentemente, quando é sancionada a Lei 11.983/2009, que

revoga o art. 60 do citado Decreto-Lei n° 3688, de 3 de outubro de 1941. Ao

mesmo tempo, o art. 59 permanece em voga, trazendo novamente a questão

da ambiguidade em torno dos conceitos, pois, mesmo que a partir de 2009 a

mendicância tenha deixado de ser plausível de punição, permanece a

possibilidade de criminalizar pessoas caracterizadas como vadios (MELO,

2013, p. 3).

A partir destas breves problematizações em torno dos códigos penais e suas

ressonâncias morais na atualidade, Tomás Melo (2013) observa que a análise destes

processos está muito além de preocupações e dificuldades em relação à definição de um

fenômeno específico, concentrando-se principalmente na produção da criminalização

sustentada por práticas e discursos jurídico-administrativos reformulados no tempo e

Page 6: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

6

que engendram uma compreensão específica da improdutividade e do ócio, perpassada

pela retórica da ausência de valores morais – o que é apropriado para justificar e

legitimar determinadas ferramentas de controle social, mesmo diante da instituição de

uma política pública instituída no mesmo ano em que é sancionada a Lei 11.983/09, que

dá continuidade à criminalização da “vadiagem”.

Em meio a estes processos históricos e sociais de criminalização deste segmento,

esforços analíticos de base marxista, a partir da década de 1970, passam a compreender

os sujeitos em questão enquanto “lupemproletariados”, sem “consciência de classe” por

não estarem filiados ao âmbito formal de produção capitalista – estruturando, porém,

uma crítica contundente ao sistema capitalista de produção de desigualdades, retirando o

manto moral da culpa individualizante. Tal compreensão inicial permite reconhecer que

os “sujeitos em situação de rua”, na atualidade, engendram um fenômeno inédito em

suas trajetórias histórica e social no Brasil: a construção de um espaço de reivindicações

que os permite afirmar-se como uma categoria política, sob a rubrica do MNPR.

Ainda em diálogo com Tomás Melo (2013) é possível indicar três principais

fatores que influenciaram na construção e compreensão das atuais dinâmicas sociais e

políticas acionadas pela população em situação de rua em âmbito nacional, quais sejam:

um conjunto de pesquisas acadêmicas realizadas desde a década de 1970, que buscou

desconstruir estereótipos, deslocando as causas e efeitos de explicações morais e

individualizantes para um questionamento crítico no quadro das estruturas capitalistas; a

influência direta de instituições religiosas na crítica e reformulação de nomenclaturas

diversas numa tentativa de desconstrução de conceitos estigmatizantes e, por fim, a

retomada da atenção à população em situação de rua na década de 1990, em face da

mobilização crescente por políticas destinadas ao referido segmento, ao mesmo tempo

em que se discutem formas de organização e reivindicação de direitos, como resultado

de iniciativas de caráter político/religioso – como as experiências da Organização do

Auxílio Fraterno (OAF) e do movimento Da Rua para a Terra, que constituíram

primeiras ações de discussão, formação e organização política da população de rua,

especificamente na cidade de São Paulo.

No que tange especificamente ao campo das produções acadêmicas, muitas

pesquisas trataram de compreender alguns elementos do modo de vida destes grupos

heterogêneos, refutando certos axiomas fundamentados em estereótipos sociais.

Conforme Simone Frangella (1996) tais estudos focaram-se, principalmente, nas

Page 7: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

7

“causas que produzem” estes sujeitos e suas análises direcionaram-se para as barreiras

socioeconômicas, como instabilidade no emprego formal, insalubridade, pobreza

extrema e violência – fatores alocados num universo de desmantelamento familiar em

múltiplas configurações.

Pesquisas baseadas na dinâmica destes sujeitos na cidade também denunciaram a

violência física e simbólica lançada sobre eles, assim como as representações

estigmatizantes que os percebem como inúteis e ameaçadores. Reforçaram, ainda, a

atuação de grupos de extermínio, as agressões morais das instituições por onde

passaram, além da relação com o espaço público e suas problemáticas. São questões

importantes a serem consideradas, pois escancaram os preconceitos e estereótipos que

justificam a violência movida contra eles.

Esse caráter denunciativo das mazelas que cercam a vida nas ruas, apesar de sua

importância, muitas vezes deixa escapar outro aspecto fundamental: os vínculos

constituídos no universo das ruas, os mecanismos que os mantêm e a potência política

que guardam as diferentes articulações engendradas no espaço público rumo à

construção de territórios existenciais possíveis (LEMÕES, 2013). Quando estas

questões são negligenciadas, a tendência é que as reflexões tomem a rua a partir de um

determinismo: sendo espaço de perigo, de abandono e de necessidade, não há

visibilidade ao caráter inventivo dos que nela aventuram-se.

Contudo, algumas reflexões, como as elaboradas por Patrice Schuch e Ivaldo

Gehlen (2012), conduzem-nos a pensar que a tendência à essencialização que a vida nas

ruas instiga, sintetiza duas perspectivas básicas sobre a questão: a primeira está marcada

pela individualização da situação de rua e legitima intervenções e práticas de governo

sedentas a suprimir tal fenômeno pelo desaparecimento destes sujeitos do espaço

urbano; a segunda perspectiva localiza o fenômeno em causalidades macroestruturais

que representam pessoas em situação de rua como sujeitos da “falta”. De acordo com os

autores, ambas perspectivas ocultam a “complexidade da agência dos sujeitos” (p.12).

Com tal viés, é possível pensar que as elaborações teóricas sobre a noção de

“exclusão social”, em reflexões sobre “pessoas em situação de rua”, define quem se

integra a esta situação, a despeito da variedade e multiplicidade de trajetórias e

configurações relacionais com a rua, sempre a partir da despossessão simbólica e do

isolamento social (SCHUCH & GEHLEN, 2012) ou seja, sempre a partir da

negatividade. Nestes termos, a retórica da “exclusão social”, irmã gêmea da “retórica da

Page 8: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

8

falta”, dificulta o reconhecimento de que para entender a complexidade do fenômeno, é

fundamental o dimensionamento

[...] tanto das multicausalidades que estão na origem desse fenômeno, entre

as quais devem ser incluídos processos sociais e históricos, tecnologias de

governo específicas e certas práticas dos sujeitos, quanto o reconhecimento

de que a rua é, também, um espaço de produção de relações sociais e

simbólicas habitado por sujeitos com agência política que exploram o mundo

na instabilidade de seu movimento (SCHUCH & GEHLEN, 2012, p.13).

Quando evidenciamos a dimensão política dos sujeitos categorizados a partir da

“rua”, estamos atentando para as práticas que desafiam o controle estatal e seus

mecanismos de identificação, imobilização, padronização, rastreamento e esterilização

dos corpos e das formas de agir, pensar e existir socialmente. Nestes termos, coloca-se a

possibilidade de compreender a itinerância como expressão de resistência e de agência

política frente às práticas normalizadoras de governo, incluindo-se aí o

redimensionamento da rua como universo da “falta” para a sua definição enquanto um

espaço possível de existência social e simbólica. Nesta constatação, é pertinente atentar

que a retórica da falta (que abre justificativas para a intervenção) está presente na

própria definição do decreto que institui a Política Nacional para a população “em

situação de rua”, que passa a definir estes sujeitos como “um grupo populacional

heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares

fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional regular”.

Em face destas discussões, o surgimento do MNPR coloca novas questões para a

compreensão das dinâmicas políticas dos sujeitos categorizados “em situação de rua” e

inseridos nestas arenas de interlocução com o Estado rumo à reivindicação de direitos

específicos. Se no contexto das ruas, a dimensão política manifesta-se na própria

negociação de espaços existenciais, no desafio e negação de diferentes tecnologias de

controle e normatização estatal (LEMÕES, 2013), é fundamental indagar sobre a

construção de novas dinâmicas políticas em que estes sujeitos inserem-se ao

ingressarem no MNPR, cuja atuação envolve uma constante interface com gestores de

políticas públicas, assim como assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros,

pesquisadores e outros profissionais engajados na mobilização e ocupando, muitas

vezes, a linha de frente organizativa e propositiva do movimento social.

Contudo, não se trata aqui de reificar processos de construção desigual de

sujeitos políticos preferenciais para intervenções por meio de políticas públicas – como

Page 9: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

9

se estas pessoas figurassem de forma passiva, tendo que adequar-se constantemente às

condicionalidades da participação política institucionalizada. Tampouco pretendo tomar

os agentes vinculados às instituições estatais como representantes diretos dos interesses

do Estado, com objetivos claros e conscientes de controle e produção de sujeitos ideais

“em situação de rua”. Para além disso, dialogo com Daniel Ceffaï (2009), para quem os

dispositivos de ação pública não somente encerram os sujeitos em mecanismos de

controle e normalização mas estruturam novos direitos e delegam poderes outros que

podem corrigir e reparar uma série de injustiças. Com isso, em superação aos

determinismos de forças antagônicas, é importante atentar para as práticas dos sujeitos

no trânsito entre múltiplas moralidades, autoridades e disputas por espaços de

enunciação.

3. A consolidação do MNPR em Porto Alegre

Como culminância das inserções da “população em situação de rua” no cenário

político (que provocam uma pluralização das nomenclaturas, tais como “povo sem

casa”, “povo de rua” e, por fim, “sofredores de rua”) funda-se em 2005, na capital

paulista, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), em face do Massacre da

Praça da Sé, que figura hoje como narrativa fundadora do MNPR (MELO, 2013) e

como estopim para reivindicação e organização política destes sujeitos cuja força ganha

amplitude a partir do decreto presidencial 7.053/09, que institui a Política Nacional para

a População de Rua. O marco fundador mais institucionalizado do MNPR, contudo,

localiza-se no cruzamento com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais

Recicláveis (MNCR), cujas primeiras mobilizações em torno de associações e

cooperativas remontam à década de 1970. Nesse processo, os representantes de

articulações mais localizadas entre sujeitos “em situação de rua”, inicialmente em São

Paulo e Belo Horizonte (principalmente após o massacre de 2004) foram convidados a

participar do 4º Festival Lixo e Cidadania, convite que também estendeu-se a outras

organizações que já ocorriam no Rio de janeiro, Bahia e Cuiabá. Neste encontro

histórico, o MNPR é lançado e, nos anos subsequentes, multiplicado pelas principais

capitais do país.

Em dez anos de existência, o MNPR declara entre suas conquistas emblemáticas,

além da política nacional, a eleição, em 2008, de um representante do movimento para o

Page 10: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

10

Conselho Nacional de Assistência Social; a pesquisa nacional de contagem da

população de rua, realizada entre agosto de 2007 e março de 2008 e o Projeto de

Capacitação e Fortalecimento Institucional da População em Situação de Rua, uma

parceria entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a

UNESCO, entre 2009 e 20103.

Em Porto Alegre, a coordenação estadual do MNPR organizou-se em 2010 com

a população em situação de rua, usuários da rede de atendimento, acolhimento público e

uma série de profissionais de diversas áreas e interesses que dialogam em reuniões

semanais, promovem seminários específicos para discussão da implementação da

política nacional no âmbito municipal, em interface com profissionais da saúde,

psicologia e assistência social. Alguns destes atores que tomaram a frente na

organização, já traziam uma trajetória em movimentos sociais, principalmente em

sindicatos de municipários, no caso de técnicos e servidores da Fundação de Assistência

Social e Cidadania (FASC).

É importante assinalar que a experiência de mobilização política por direitos da

população em situação de rua, em Porto Alegre, remonta à década de 1990, em meio a

um cenário de ampliação da rede de serviço socioassistencial. Conforme Pizzato (2012),

em 1995, ocorreu o I Encontro de Moradores de Rua, ocasião em que também foram

devolvidos dados quantitativos sobre essa população, coletados um ano antes pela PUC-

RS em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre. Os debates propiciaram a constituição

da Comissão de Rua, formada por usuários da rede de serviços, que participou do

planejamento dos dois abrigos para população em situação de rua existentes hoje na

cidade. Ainda conforme Pizzato, é a partir de 1999 que se percebe uma ampliação da

participação desta população nas instâncias políticas da cidade, com presença em

fóruns, conferências e plenárias do orçamento participativo.

O movimento Aquarela da População de Rua, existente entre 2008 e 2010, é

representativo da continuidade deste histórico de mobilizações e busca por visibilidade

pela articulação entre agentes e técnicos dos serviços de assistência e usuários, assim

como o Jornal Boca de Rua, produzido e comercializado por “sujeitos em situação de

rua” e encabeçado pela Organização não-governamental Agência Livre para

Informação, Cidadania e Educação desde 2001. Foi através da articulação dos

integrantes do Movimento Aquarela com o Movimento Nacional de Catadores, com a

3 Tais conquistas são declaradas na Cartilha de Formação Política “Conhecer para Lutar”, lançada em

2010 pelo MNPR, MDS e UNESCO.

Page 11: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

11

participação em debates nacionais, que os sujeitos mobilizados em Porto Alegre

estabeleceram maior diálogo com o MNPR, o que resultou na adesão ao MNPR/RS

(PIZZATO, 2012).

4. “A política está nas ruas” ou “isso tudo é falta do movimento”?

Tenho acompanhado, há oito meses, as reuniões e mobilizações dos integrantes

do MNPR/RS, do NDDH/RS assim como os seminários organizados pelos militantes e

pelo poder público. Nas reuniões semanais, registro e participo dos debates acerca dos

problemas enfrentados nos serviços públicos de assistência social4 (tanto na

infraestrutura, quanto no tratamento dispensado pelos funcionários), nas abordagens

policiais truculentas, nos temores de remoção compulsória em função da Copa, até

questões relativas à representatividade do movimento ou das demandas por denúncias

de violações de direitos humanos. Já nos seminários dos quais participei, estas mesmas

questões são trazidas à tona porém em um contexto de enfrentamento com os

representantes institucionais, pautado por acusações discursivas e performáticas de

violações de direitos, perpetradas por agentes da segurança pública e da assistência

social.

Atualmente, as principais discussões do MNPR-RS ocorrem em espaço cedido

pelo Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA) – sindicato este ao qual

alguns dos principais apoiadores do movimento e técnicos da FASC estão filiados. Em

algumas situações, estas reuniões também acontecem em “praça pública”, próximo a

viadutos ou no Parque da Redenção, área verde na região central da cidade. Quando

organizados ao ar livre, os debates costumam atrair outros sujeitos em situação de rua,

muitos dos quais ainda não conhecem o movimento, embora tenham contato com os

agentes da rede de assistência que militam ou apoiam as causas.

Alguns apoiadores do movimento (duas técnicas educadoras, uma psicóloga e

um militante “com trajetória de rua”, coordenador do MNPR-RS) integram o Núcleo de

4 Porto Alegre conta com uma rede municipal de assistência que se proclama integrada pelo Serviço de

Atendimento Social de Rua, ancorado em serviços de abordagens de rua e abrigagem. Ao todo, existem

cinco instituições de acolhimento na cidade: a Casa de Convivência, o Albergue Municipal, o Abrigo

Municipal Marlene, o Abrigo Municipal Bom Jesus e a recém criada “República Junto”, com 24 vagas,

resultante de convênio entre Estado, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e a Central

Única de Favelas (Cufa-RS).

Page 12: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

12

Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua (NDDH), vinculado ao Centro

Nacional de Defesa dos Direitos Humanos5. As denúncias são registradas por estes

profissionais e militantes, principalmente durante as reuniões do MNPR, mas também

na interação cotidiana destes agentes em seus espaços de trabalho e mobilização.

Se técnicos da assistência social, vinculados à FASC figuram como principais

apoiadores do MNPR, coordenando as reuniões, delegando pautas e organizando os

debates, os sujeitos “em situação de rua” que participam ativamente das atividades e

discussões, em sua grande maioria estão inseridos na rede de assistência social – são os

“usuários” dos serviços públicos, já possuindo, assim, uma inserção nestes espaços de

interação com os técnicos e profissionais da área, com uma trajetória de relações e

vínculos estabelecidos ou mesmo atuando como facilitadores em programas municipais

de enfrentamento à situação de rua6. Embora uma média de cinco a dez integrantes com

tal perfil se mantenha com assiduidade nas ações do movimento, o número de sujeitos

em situação de rua, participantes do MNPR, ainda é considerado incipiente, sendo uma

reclamação constante o fato de a maioria dos militantes compor-se de apoiadores – ou

seja, pessoas que não passaram pela experiência da “situação de rua”.

A representação estadual do MNPR, porém, é assumida por Marco Antônio7, um

“ex-morador de rua”, branco, aproximadamente 60 anos de idade e um dos principais

articuladores da ampliação do MNPR no interior do Rio Grande do Sul, com uma

trajetória de inserção no Conselho Municipal de Saúde e vínculos afetivos com

assistentes sociais e psicólogos da rede assistencial, também integrantes do MNPR.

É neste quadro de posicionamentos e trajetórias específicas dos interlocutores

que localizo o campo de disputas em torno de sentidos e significados que definem tanto

5 O Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em situação de rua e dos Catadores

de materiais recicláveis (CNDDH/PSR/CMR), foi implantado em 2011 pela Secretaria Nacional de

Direitos Humanos (SNDH), em atendimento às demandas conjuntas do MNPR, do MNCR e do Fórum

Nacional da População de Rua. Conforme folder explicativo lançado este ano pelo CNDDH, a dinâmica

de atuação do Centro, por meio de seus núcleos em 440 cidades, abrangendo todos os estados brasileiros

(com exceção de Roraima) consiste na sistematização de dados e produção de conhecimento sobre

violações e planejamento de formações e capacitações que viabilizem a eficácia das denúncias. Em sua

atuação, o CNDDH conta com diversos parceiros envolvidos na defesa da população em situação de rua,

quais sejam: a Secretaria de Direitos Humanos do Paraná, a Coordenadoria de Inclusão e Mobilização

Social do Ministério Público de Minas Gerais, o MNPR, o MNCR, a Pastoral Nacional do Povo da Rua e

a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

6 Refiro-me ao Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua (PMESR), lançado em 2011. A

execução do plano conta com a firmação de convênio com facilitadores sociais com trajetória de rua ou

em situação de rua, para atuarem na linha de frente das abordagens, principalmente em seus territórios de

origem, com vistas a contribuir para a inserção de demais companheiros de rua nos serviços assistenciais. 7 Utilizo nomes fictícios para preservar o anonimato dos interlocutores.

Page 13: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

13

o que é estar “em situação de rua” quanto o que legitima a constituição de sujeitos

políticos, especificamente detentores de determinados “discursos e posturas

politizadas”.

Nos debates propiciados nos diferentes espaços de enunciação política, é comum

o debate sobre a necessidade de “capacitação” de novos integrantes em situação de rua.

O assunto provoca intensas discussões entre apoiadores do movimento, que defendem

tal necessidade sob a justificativa de que há uma incomunicabilidade entre as pautas do

MNPR e os anseios da população em situação de rua não inserida nas discussões do

movimento e que, por tal condição, não estariam capacitadas politicamente. Em

contraposição, Adriana, militante do movimento e com trajetória de rua, manifesta a

opinião, compartilhada por outros companheiros, de que “o movimento vem das ruas”,

de que a “política está nas ruas” e que “qualquer pessoa que tenha sofrido nas ruas

sabe o que a população de rua precisa”.

Esta discussão também é tencionada pela mesma interlocutora, agora em outra

reunião, acerca da representatividade. Na reunião que antecedeu os preparativos para o

II Encontro Nacional da População de Rua em Curitiba, Ana Paula, assistente social e

militante, perguntou aos presentes o que o MNPR significava para eles e como

avaliavam a representatividade do mesmo (se deveriam ser eleitas duas ou mais pessoas

ou se todos teriam a capacidade de representar o movimento, descentralizando a

representação), alertando que somente os “em situação de rua” deveriam responder.

Adriana responde com uma contestação retórica: “mas eu pensei que automaticamente

todos nós fossemos representantes do movimento! Têm que falar em várias pessoas

como representantes, não somente o Marco Antônio (atual coordenador) e o Diego

(militante com trajetória de rua e uma das principais lideranças). Em meio às falas

sobrepostas neste debate, Marco Antônio manifesta-se para considerar que “temos que

criar um código de ética do MNPR, para saber o que vamos falar nos encontros

nacionais. Sete integrantes foram selecionados e são os que mais participam das

reuniões e estão por dentro do debate”.

Muito embora estes embates parecessem, num primeiro momento, ruídos

comuns a toda mobilização social, foi numa reunião entre representantes do MNPR, do

Jornal Boca de Rua e a secretária da Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos

Humanos e Segurança Urbana (CEDECONDH) da Câmara dos vereadores, que

evidenciou-se a amplitude e o poder dos questionamentos que os permeiam.

Page 14: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

14

Pesquisadores da universidade e outras pessoas “em situação de rua” não pertencentes

ao MNPR estavam presentes ao redor de uma grande mesa cujos assentos não

comportavam a totalidade dos presentes, a disposição das cadeiras em formato de L

(com a coordenadora técnica da comissão em lugar central) permitia que muitos

ficassem frente-a-frente. A reunião foi convocada pela CEDECONDH a fim de discutir

a elaboração de um minisseminário com o tema da “população em situa de rua e

segurança pública em tempos de copa do mundo”, abrindo espaço para que os

representantes deste perfil populacional pudessem participar da construção das pautas a

serem discutidas no evento.

A rodada inicial de apresentações tomou quase a totalidade das duas horas

destinadas à reunião: cada um que se apresentava também despejava um turbilhão de

insatisfações com os serviços públicos e denúncias de violência e abuso de autoridades

e mesmo de assuntos para além da segurança pública. Marcelo, jovem integrante do

MNPR e do Boca de Rua, questiona: “por que quanto mais querem ajudar, mais eles

nos tiram? Vou falar o quê? Se o mais importante é a copa, e não o ser humano”.

Adriana, por sua vez, afirma estar “cansada de violência, mas é uma violência que está

além do físico, são palavras, privações, é a indiferença, assim como os vereadores

dessa câmara são indiferentes conosco. Estamos cansados de pedir, temos que exigir e

cobrar ação dos gestores”. Marco Antônio, então, elenca em sua fala as conquistas do

MNPR, o aceite da política nacional pelo município e o serviço de denúncias “disque

100”, acrescentando que “o maior violador de direitos humanos é o Estado”. Contudo,

é Marcelo quem responde para Marco Antônio, inferindo que o “disque 100” não serve

para nada e que “isso tá há 20 anos na minha vida e nunca funcionou”. Em defesa das

conquistas do movimento, Marco Antônio afirma que “antes o movimento estava

morto”, ao que Adriana retruca: “morto não! O senhor nunca acampou conosco lá na

prefeitura! ” (referindo-se a uma mobilização realizada por sujeitos em situação há

alguns anos atrás).

Na efervescência do debate (que nestas alturas estava incontrolável pela

coordenadora técnica da CEDECONDH, que ensaiava tentativas frustradas para intervir

e acalmar os ânimos) eis que surge uma figura chave para compreender alguns

descontentamentos relativos à questão da representação política, apresentados por

Adriana nas reuniões do MNPR. Demonstrando inquietude e revolta sempre quando

Marco Antônio manifesta-se, Jonatas, homem negro de aproximadamente 30 anos,

Page 15: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

15

explode seus descontentamentos: “o senhor trabalha ao lado de gente que tá com a

prefeitura! O MNPR tem a mão da FASC! E onde tem a mão da FASC, pra nós não

serve! Aquelas reuniões de vocês são só de fachada, são todos um bando de sem-

vergonhas! Jonatas segue atacando todos os representantes do MNPR vinculados à

FASC e que estavam presentes na reunião, inclusive Carina, psicóloga e integrante do

NDDH e do MNPR.

Ao término da reunião na câmara dos vereadores, saio junto com Adriana e

Jonatas pelas ruas em direção ao centro da cidade. No caminho, contam-me que o Plano

Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua é uma farsa e que Jonatas, quando atuou

como facilitador, ficou por dentro de todas as tramoias de desvios de recursos. Com

grande influência de liderança nas ruas, Jonatas afirma que repudia o MNPR por ser

coordenado por agentes da FASC e que, nas ruas, existe um outro movimento cuja

nomenclatura ele explica-me mostrando o bíceps enquanto caminhamos: MUC -

Movimento Unificado de Combate, cuja atuação privilegiaria o enfrentamento direto

com gestores e agentes da assistência social, adjetivados por ele como um “bando de

sem-vergonhas”. Antes de nos despedirmos, Jonatas convida-me jocosamente a

participar, com ele e seus companheiros, de uma invasão ao prédio da FASC, “o

negócio é meter o pé na porta”.

Os enfrentamentos ocorridos no referido encontro com a CEDECONDH

deixaram Marco Antônio emocionalmente abalado. Dois dias depois, na reunião do

MNPR, declara ele que não vai “falar nem responder nada em relação ao que

aconteceu naquela reunião” e que “a gente não deve mais responder ou deve se retirar

quando for criticado”, pois “temos que falar a mesma língua, mas vivemos numa

democracia e o movimento nacional é nacional, não é da rua! Não estamos mais para

conflitos”. Na tentativa de apontar os efeitos desta conflitualidade, Carlos, “em situação

de rua’ e usuário dos serviços de assistência, constata que “o pessoal não tá mais unido,

antes iam direto para a frente da FASC para reclamar”. Ana Paula, atenta ao

comentário de Carlos, imediatamente compartilha sua opinião sobre os conflitos de

representação: “isso tudo é falta do movimento”.

Neste contexto de reivindicação de direitos e denúncias de violações, articulado

pelo MNPR/RS e CNDDH, que outras vozes, proposições e posições podem estar sendo

ocultadas ou minimizadas? Seria demasiado arriscado, aqui, falar em “violência

simbólica dos processos políticos” que, na acepção de José Carlos dos Anjos (2004) se

Page 16: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

16

reproduz na constituição de um espaço especializado de tradução e politização de

determinadas demandas, no qual edifica-se uma “redução ao silêncio dos destituídos

dos instrumentos políticos [...] e reduzidos à condição de profanos quando o que está em

jogo é a interpelação politicamente especializada”? (DOS ANJOS, 2004, p.116).

Nesse sentido, é significativo que os critérios utilizados para constituir e abrir

espaços de fala e representação aos participantes traduzem-se pela participação nas

reuniões do movimento e a incorporação de determinadas retóricas e modos de

interlocução institucional como condicional à inserção na gramática da reivindicação de

“direitos da população em situação de rua”. Nas ocasiões em que pessoas “em situação

de rua” não se deixam levar pelas solenidades e protocolos de reuniões, seminários e

audiências públicas, interrompendo constantemente os discursos de autoridades por

meio de denúncias e inconformidades as mais diversas, é interessante constatar que a

tentativa de transmissão pedagógica de um modo específico de falar, comportar-se e

agir nestes espaços venha sempre dos trabalhadores dos serviços públicos e militantes.

5. Moralidades, vínculos e pedagogias na formação do “sujeito ideal” para

a defesa e para a aliança.

É mais instigante ainda o fato de que os sujeitos que mais obtêm êxito no

cumprimento dos critérios supracitados são os que possuem proximidade com os

agentes dos serviços assistenciais. Essa proximidade, inclusive – e aqui ressalto as

negociações de autoridade que se dão nestes espaços – é de extrema importância na

definição de quem fala e quem cala em nome dos direitos da “população em situação de

rua”. Se desentendimentos e redução de espaços de fala se dão em função do não

engajamento de determinados sujeitos às mobilizações articuladas à uma agenda

nacional de interlocução constante com órgãos e autoridades públicas, é imprescindível

atentar para os elementos que se interpõem à qualquer possibilidade de articulação com

aqueles agentes marcados por um histórico reprovado de conduta e tratamento negativo

com a população de rua.

Quanto a isso, é emblemática a ocasião na qual, em meio à busca de consenso

sobre a escolha de facilitadores/debatedores para os grupos de trabalho que comporiam

o seminário “Direito à cidade: a efetivação das políticas públicas para a população em

Page 17: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

17

situação de rua8”, os ânimos exaltaram-se quando a coordenadora de um dos albergues

públicos foi indicada como possível facilitadora. Adriana manifesta-se totalmente contra

à referida indicação, relatando, como justificativa, uma série de situações em que foi

maltratada pela coordenadora. Numa performance contestadora, em face da organização

relativamente rígida do espaço e das falas na reunião, ela levanta-se e dirige-se até um

conhecido “de rua” que comparecia pela primeira vez no local e, dando voltas ao redor

do colega, ela representa o modo como fora tratada pela funcionária pública – chutando

as sacolas do parceiro, ela o inquiri com rispidez: “te endireita e junta as tuas coisas...

te endireita”, e finaliza sua argumentação perguntando ao colega: “vai dizer que não

era assim que ela nos tratava?”, “vê se uma mulher como essas pode nos representar

?”.

A condicionalidade, aqui, ancora-se nas diversas “violações de direitos” a que se

possa enquadrar a rispidez com a qual estes sujeitos se deparam nos equipamentos de

assistência. É instigante pensar que, se o oposto a isso, ou seja, o tratamento carinhoso e

preocupado abre espaço para o vínculo e permite compartilhar campos de enunciação,

de modo semelhante, por parte dos técnicos dos serviços engajados nas causas da

população em situação de rua, as ações de proteção e denúncia de violações também,

por vezes, assentam-se no grau de diálogo, proximidade e sujeição às práticas

interventivas dos serviços. Quando participei, por exemplo, pela primeira vez da reunião

do NDDH, com a presença de Marco Antônio, Ana Paula e Carina, algumas denúncias

ocorridas durante a semana foram discutidas, mas chamou-me a atenção o caso de um

garoto que, na região metropolitana de Porto Alegre, teria sido agredido no interior de

um albergue. O motivo da agressão fora a denúncia de maus tratos que o jovem teria

feito ao NDDH. Os demais usuários do albergue, ao serem advertidos pelos monitores

de que todos pagariam pelo “erro” da denúncia, inquiriram o “delator” de forma

violenta. Carina finaliza o relato contando-nos que Diego, integrante do MNPR, não se

conteve e “investiu nas denúncias em favor do agredido, pois (o garoto) estava fazendo

o tratamento e tinha uma ótima relação com o pessoal do CAPS” (Centro de Atenção

Psicossocial).

8 Organizado pela Defensoria Pública da União - RS, este seminário ocorreu na primeira semana de

novembro de 2013, como resultado parcial de consultoria proposta pela Secretaria de Direitos Humanos

da Presidência da República, que objetivou fortalecer as redes municipais de atendimento por meio do

mapeamento, identificação e divulgação dos serviços públicos. Assim como o seminário, também

constou, como resultado da consultoria, o lançamento de um guia dos serviços de atendimento específico

para a população em situação de rua nas grandes capitais do Brasil, incluindo Porto Alegre.

Page 18: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

18

Em outra situação, em que uma das reuniões do MNPR ocorreu nas ruas, a

denúncia apresentada pessoalmente por um jovem “em situação de rua”, escrita à mão e

lida pelo mesmo aos demais, teve desfechos semelhantes: a carta que o garoto negro, de

não mais do que 25 anos, lera em público naquela tarde, relatava a expulsão violenta

que sofrera em um dos abrigos da rede assistencial, enfatizando que, pelo atraso de sua

entrada na instituição, ficara sem alimentação naquela noite. Marco Antônio, Valéria

(técnica da FASC), Janaína (enfermeira no consultório de rua) e Jurema (professora de

enfermagem), alguns usuários dos serviços e eu já estávamos sensibilizados – inclusive

já havia me comprometido em digitalizar a carta para formalizar a denúncia junto ao

NDDH. Por mais que tivéssemos intenções baseadas na sensibilização com o fato

relatado, é com a chegada de Ana Paula e Diego, ao final da reunião, que somos

advertidos de que é muito precipitado acatar esta denúncia porque é necessário

considerar o lado do trabalhador, e Diego acrescenta que já conhece o denunciante de

longa data e sabe que “ele não é santo”. Qualquer procedimento em defesa do jovem

foi deixado de lado diante de tal advertência.

6. Considerações finais

Para além de uma compreensão que oponha estes valores que regulam

interações, o que está em jogo, ao que parece, é a constituição de um espaço plural de

moralidades que incidem sobre o vínculo de proximidade ou a ruptura relacional. Os

valores que, por parte dos integrantes do NDDH, positivam os sujeitos que aceitam os

tratamentos dos serviços assistenciais e que constroem vínculos afetivos com os agentes

destes serviços, muitas vezes também delimitam as possibilidades de fusão ou cisão de

parcerias na luta por direitos e na mobilização política.

É importante considerar, contudo, que estes preceitos morais, atrelados ao

vínculo e a adesão aos processos que indiquem a “saída das ruas” ou a vontade de fazê-

lo, também constroem um sujeito ideal para a intervenção no campo da assistência

social e mesmo para a denúncia e defesa de pessoas “em situação de rua”. Nestes

termos, se quisermos dialogar com Gustavo Lins (2004), incluiríamos na análise o peso

das representações sobre direitos humanos, as quais forjam “humanos direitos”,

idealizados como legítimos merecedores de vozes em sua defesa.

Page 19: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

19

Mas tal consideração deve atentar também para a dimensão da agência dos

próprios “assistidos”, quando acessam os serviços exatamente quando necessitam e,

para lograr êxito, forjam discursos, aparências e maleabilidades performáticas que

agradem o senso moral que alimenta a atuação de múltiplos agentes sociais,

principalmente os valores da família, da casa, do trabalho, da higiene, ou seja,

parâmetros indicadores de um padrão de normalidade estimada.

A atenção ao agenciamento dos diferentes sujeitos e suas moralidades

envolvidas no campo de pesquisa assinala a intencionalidade tanto cognitiva quanto

emocional dos envolvido e que, ainda que plasmada por regimes de poder (ORTNER,

2007), evidencia-se seja na articulação de atitudes e discursos antagônicos em contextos

distintos, a fim de tecer vínculos e alianças, ou lançando mão da radicalização de

rupturas dos vínculos com pessoas e instituições cujo histórico de atuação violenta e

impositiva, afasta a constituição comum de espaços de representatividade e

mobilização.

Por fim, estas questões ao mesmo tempo apontam para o rompimento de uma

visão instrumental e estratégica da experiência coletiva (CEFAÏ, 2009), em atenção às

dimensões da afetividade, da sensibilidade, das memórias e projetos que figuram, nas

formas de se mobilizar politicamente, enquanto critérios de constituição de afeições, de

disputas, de antagonismos e afetuosidades que influenciam tanto nos processos de

intervenção estatal e constituição de sujeitos alvo destas intervenções (seja para

“defende-los” ou para “assisti-los”), quanto nos vínculos e alianças que tecem a partir

da intencionalidade.

7. Referências bibliográficas

CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem

pragmatista para a sociologia da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito

e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, abr./maio/jun. 2009

DE LUCCA, Daniel. A Rua em movimento – experiências urbanas e jogos sociais em

torno da população de rua. Dissertação de mestrado. USP, São Paulo, 2007.

DOS ANJOS, José Carlos. Etnia, raça e saúde: sob uma perspectiva nominalista. In:

MONTEIRO, S.; SANSONE, L. (org.). Etnicidade na América Latina: um debate sobre

raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.

Page 20: População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões

20

FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. La Plata: Editorial Altemira, 1996.

FRANGELLA, Simone. “Capitães do Asfalto”: a itinerância como construtora da

sociabilidade de meninos e meninas “de rua” em Campinas. Dissertação de Mestrado

em Antropologia Social. Universidade Estadual de Campinas, 1996.

LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos

entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas,

2013.

MELO, Tomás. Memória, trauma e sofrimento: a construção de uma identidade

militante no Movimento Nacional de População de Rua. Anais da X Reunião de

Antropologia do Mercosul, GT 23, Córdoba, Argentina, 2013.

NEVES, Delma. Apresentação. Antropolítica, n.29. Niterói: EDUFF, 2010.

ORTNER, Sherry. Uma atualização da Teoria da Prática e Poder e Projetos: Reflexões

sobre a Agência. In: GROSSI, Miriam; ECKERT, Cornelia; FRY, Peter. Conferências e

diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova Letra/ABA, 2007, p. 19-

80.

PECHMAN, Robert. Os excluídos da rua: ordem urbana e cultura popular. In: Cadernos

da ANPUH, 1993.

PIZZATO, Rejane. A trajetória do protagonismo dos grupos e dos movimentos da

população em situação de rua. In: DORNELES, Aline; OBST, Júlia e SILVA, Marta

(Orgs). (Org.). A Rua em Movimento: debates acerca da população adulta em situação

de rua na cidade de Porto Alegre. 1ed.Belo Horizonte: Didática Editora do Brasil, 2012,

v. 1, p. 11-25.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Política Nacional para a População em situação de

rua, Decreto n. 7.053, 2009. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm

SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e

juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

SCHUCH, Patrice; GEHLEN, Ivaldo. A Situação de rua para além de determinismos:

explorações conceituais. In: DORNELES, Aline; OBST, Júlia e SILVA, Marta (Orgs).

(Org.). A Rua em Movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na

cidade de Porto Alegre. 1ed.Belo Horizonte: Didática Editora do Brasil, 2012, v. 1, p.

11-25.